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Curando o incurável

Triunfo sobre o câncer com a Terapia do Futuro


Beata Bishop
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O DR. MAX GERSON É UM DOS MAIS EMINENTES GÉNIOS DA HISTÓRIA DA MEDICINA
Dr Albert Schweitzer
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Curando o incurável é uma corajosa narrativa sobre a Terapia de Gerson, uma
terapia de muito sucesso no tratamento não apenas do câncer, mas também de doenças
degenerativas, cuja validade é confirmada por pesquisas médicas recentes.
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Ao saber que uma verruga em sua perna era um melanoma maligno, um dos tipos
de câncer com mais rápida disseminação no organismo, Beata Bishop sentiu-se arrasada.
Após submeter-se a uma cirurgia dolorosa e desfiguradora, os médicos lhe disseram
que estava livre de seu problema. Um ano depois, contudo, o câncer disseminara-se para
o sistema linfático c Beata viu-se frente a duas terríveis alternativas: submeter-sc a outra
grande cirurgia, com resultado incerto, ou não fazer nada c esperar a morte, que viria no
período de seis semanas a seis meses.
Ela recusou ambas as opções e, em vez disso, optou por um tratamento alternativo,
criado pelo famoso médico alemão, o dr. Max Gerson. Sua terapia, baseada em nutrição
perfeita e completa desintoxicação, parecia atraente, já que visava restaurar o sistema
imunológico debilitado até torná-lo capaz de destruir o tumor. Tomando as rédeas de seu
destino. Beata passou dois meses na única clínica Gerson do mundo, no México,
aprendendo sobre a teoria e prática da terapia intensiva que, depois, seguiu durante
dezoito meses, em Londres.
Não foi fácil, mas hoje, mais de dez anos depois, ela está bem e saudável,
desfrutando plenamente a vida. Curando o incurávtl, aqui com um capítulo escrito
especialmente para o público brasileiro, é uma narrativa pessoal, de coragem e
determinação. O livro também apresenta um método incrivelmente eficiente para o
tratamento de doenças degenerativas crónicas - cuja validade í confirmada pelas pesquisas
médicas mais recentes.
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Beata Bishop é escritora e psicoterapeuta jungiana e transpessoal. Com uma
bagagem cosmopolita, ela passou a maior parte de sua vida em l.ondrcs, exceto pelo curto
período em que residiu no Canadá e na França c pelas extensas viagens por toda a
Europa. Bishop trabalhou como jornalista e, durante onze anos, escreveu roteiros para
rádio, a serviço do BBC World Service.
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ATENÇÃO
Este livro é um relato pessoal, de caráter jornalístico, de cura através da terapia de
Gerson e tem por principal objetivo divulgar essa terapia de muito sucesso no combate ao
câncer. Por este motivo, esta obra não pode ser utilizada como guia para o tratamento do
câncer.
Esperamos que este relato contundente sensibilize e atraia o interesse de
profissionais da área médica no Brasil para que, desta forma exclusivamente - com
acompanhamento médico especializado -, a terapia de Gerson possa ser efetivamente
utilizada em nosso país.
Se você se interessar pela terapia, entre em contato com The Gerson Institute, P. O.
Box 430, Bonita, Califórnia, 91908, USA. Telefone 001.619.585.7600, fax
001.619.585.7610.
Na Grã-Bretanha, o Gerson Support Group, um grupo informal, formado por ex-
pacientes e outros voluntários, oferece informações, ajuda prática e apoio psicológico para
pacientes e interessados. Contatos podem ser feitos pelo telefone 01372.817652.
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Este livro é dedicado, com amor e gratidão, a todos aqueles que ajudaram em
minha recuperação, e à memória do dr. Max Gerson.
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NOTA DA AUTORA
Eu deveria ter morrido de melanoma maligno, um dos cânceres de disseminação
mais rápida no organismo, mais ou menos em junho de 1981. Hoje, estou saudável, no
sentido pleno da palavra; não apenas sem doença, mas desfrutando de grande bem-estar
e energia.
Quando meu câncer secundário foi diagnosticado, no fim de 1980, eu também
sofria de diabete, artrite em estágio inicial, enxaquecas frequentes e abscessos dentários
crónicos. Todos esses males desapareceram. É como se eu tivesse recebido o presente de
uma segunda juventude. Grande parte de minha perna direita, mutilada pela cirurgia para
extirpação do câncer, foi recuperada. Alguns médicos amigos garantem que tal
regeneração é impossível - e acredito neles -, mas eu ando apoiando-me nessa
impossibilidade, todos os dias de minha vida.
Juntamente com minha recuperação física, também passei por uma transformação
íntima que me livrou de muitos de meus medos, preocupações e valores obsoletos,
deixando-me com um senso de maior liberdade e integridade. Preocupo-me muito menos
e rio muito mais hoje do que no passado. Contudo, depois de chegarmos às portas da
morte e voltarmos com uma vida mais plena, nossa capacidade para nos preocuparmos
simplesmente desaparece.
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APRESENTAÇÃO
Cada detalhe da história que você lerá a seguir é verdadeiro. Esta história não foi
escrita recentemente. Comecei a escrevê-la há mais ou menos vinte anos, quando ainda
lutava para recuperar-me de um melanoma maligno que sofrera metástase, subme-tendo-
me à terapia intensiva de Gerson.
A época, eu carregava dois fardos. Um deles era minha doença. O melanoma está
entre os cânceres de crescimento mais rápido e, depois de dissemi-nar-se pelo organismo,
as chances de cura são remotas.
O outro fardo que optei por carregar era a terapia rígida e intensiva de Gerson, um
tratamento nutricional difícil e restritivo, ao qual me entreguei na esperança de salvar
minha vida.
Comecei a redigir minha história mais ou menos na metade desta terapia, que
consumiu a maior parte de meu tempo e energia durante dois anos, praticamente
confinando-me à minha casa. Se eu me recuperasse, a história de minha doença e cura
inspiraria outros pacientes de câncer e lhes mostraria que existe outro caminho para a cura
- um método sem qualquer toxicidade, diferente da radioterapia e quimioterapia, que
opera em harmonia com o corpo, não contra ele. Se eu não me recuperasse e deixasse de
concluir minha história... Bem, pelo menos teria superado o desafio de escrever em
circunstâncias bastante incomuns, enfrentando obstáculos imensos.
Felizmente, escolhi a trilha certa. Minha história tem um final adequado e gozo de
boa saúde desde 1983, quando terminei a terapia. Em nosso mundo acelerado, um relato
iniciado há vinte anos estaria desatualizado, se não obsoleto. Infelizmente, o tema coberto
neste livro torna-se mais atual a cada ano, e a incidência de câncer cresce
inexoravelmente.
De acordo com o último relatório anual da International Agency for Research on
Câncer, publicado em setembro de 2001, a doença matará dez milhões de pessoas por
ano, no mundo inteiro, em 2020 (em 2000, este número chegou a seis milhões). A
medicina ainda não encontrou um modo de deter esta terrível epidemia ou de curar a
maior parte de suas vítimas.
Até agora, os avanços científicos anunciados periodicamente nos meios de
comunicação não trouxeram resultados. Além disso, a medicina ainda não chegou a um
consenso sobre as causas subjacentes do câncer, em suas variadas formas.
Não podemos dizer que tais causas são desconhecidas. A poluição e deterioração do
meio-ambiente, agrotóxicos usados em produtos com poder nutricional cada vez menor, o
lançamento crescente de alimentos sem qualquer valor para uma dieta saudável, estilos de
vida nocivos e hábitos autodestrutivos, além de interesses comerciais que ignoram
considerações ligadas à saúde, podem ser vistos como fatores importantes para o aumento
da incidência de câncer.
A epidemia da doença não é um ato de Deus ou algo sem explicação - o problema
foi gerado pelos seres humanos atuais, fascinados com seu próprio talento tecnológico,
rnas tragicamente cegos para as leis da vida.
Tudo o que sobrevêm à terra afeta os filhos da terra. O homem é apenas um dos
Fios, na teia da vida. Aquilo que fizer à teia estará fazendo a si também", disse o cacique
americano Seattle, ern 1854. Um século e meio depois, percebemos o quarto ele estava
certo.
Por que, então, meu relato é ainda mais atual hoje do que quando comecei a
escrevê-lo ? Porque, embora seja uma narrativa pessoal, envolve muito mais que a
recuperação de urna única pessoa que se submeteu a uma terapia que foge ao
convencional.
Em primeiro lugar, sou apenas urna, entre muitas centenas, se não milhares de
pessoas afetadas pelo câncer, que reconquistaram a saúde com este tratamento, desde
que foi criada pelo falecido dr. Max Gerson, ao longo de trinta anos de prática clínica.
Mais importante ainda, porém, é que a verdadeira heroína da história é a própria
terapia, que vai frontalmente contra o que dita a medicina convencional para o tratamento
de câncer. Em vez de se concentrar na erradicação do tumor por cirurgia, radioterapia ou
quimioterapia, e ficar só nisso, como ocorre na oncologia, o regime de Gerson visa
fortalecer o sistema imunológico ao máximo, para que o organismo possa curar a si
mesmo.
Tal meta é conquistada apenas com uma dieta muito rígida, que consiste de sucos
de frutas cruas e de vegetais, muitos alimentos vegetarianos orgânicos, medicamentos não-
tóxicos e poderosa desintoxicação. Nem todos conseguem recuperar-se, mas a verdade é
que todos precisamos morrer, em algum ponto; ainda assim, seu histórico de "incuráveis
recuperados" é impressionante, sob qualquer ponto-de-vista.
Uma vez que, apesar do enorme investimento financeiro e pesquisas incessantes, a
oncologia convencional pode fazer muito pouco para ajudar vítimas dos tipos mais comuns
de câncer, qualquer outro método, qualquer outro enfoque que prometa resultados
melhores é atual e merece atenção.
Por esta razão, sin-to-me feliz porque minha história, que já foi traduzida para
várias línguas, agora chega ao Brasil, para transmitir a boa nova de que existe outro
caminho para a cura.
O custo do tratamento era bem mais alto há vinte anos, quando esta obra começou
a ser escrita; os produtos orgânicos eram ainda raros no mercado e vendidos a preços
proibitivos (nota da editora).
Este caminho não é fácil - exige compromisso, persistência, força de vontade e
muito auxílio e apoio de parentes e amigos. Ele é caro, uma vez que requer quantidades
imensas de frutas e vegetais orgânicos, além de medicamentos especiais.
O tratamento deve ser realizado durante dois anos e, pelo menos nos primeiros
meses, o paciente não pode trabalhar; depois disso, o trabalho será possível, mas apenas
em um período do dia. Porém, se tudo correr bem, o resultado é uma cura verdadeira, não
apenas a remissão, e, além do câncer, muitos outros problemas físicos também serão
resolvidos - o que é muito mais do que os tratamentos convencionais podem oferecer.
Em janeiro de 1981, quando iniciei a terapia de Gerson, des-cobri-me em uma
jornada solitária. Poucos leigos sabiam o que era um melanoma. Ninguém, inclusive
médicos, haviam ouvido falar de uma terapia nutricional para o tratamento de câncer. Na
verdade, a atitude oficial era de que a dieta nada tinha a ver com câncer ou com seu
tratamento.
A maior parte de meus amigos e colegas achava loucura eu optar por esta terapia
obscura e extravagante, embora fossem gentis demais para me dizerem isso. Na época,
era quase impossível obter alimentos orgânicos.
Fui ao México, onde se localizava a única clínica do mundo especializada na terapia
de Gerson, mas esta era longe demais de Londres e não tinha a reputação de um centro
de excelência médica.
Essas eram apenas duas, entre muitas dificuldades. Ainda assim, fui em frente,
porque a alternativa ortodoxa parecia-me muito, muito pior.
Depois de minha recuperação, em meu entusiasmo idealista, ou talvez por
ingenuidade, tentei fazer com que alguns médicos se interessassem pelo potencial de cura
da terapia de Gerson.
Parecia-me óbvio que desejariam ouvir sobre um método revolucionário que
poderia ajudar seus pacientes; achei que minha recuperação, documentada por outros
médicos, acenderia sua curiosidade.
Eu estava errada. Com duas exceções, todos os médicos com os quais falei optaram
por fazer declarações categóricas, em vez de questionar, de modo que nossas conversas
terminaram antes de podermos realmente dialogar.
Um médico informou-me que minha recuperação havia sido espontânea, o que não
era absolutamente incornum ( e eu me pergunto: por que será que a recuperação
espontânea é atribuída apenas a pacientes que adotaram tratamentos não-ortodoxos ? ).
Outro, disse-me que, como o câncer é incurável, eu estava apenas ern remissão e o
processo da doença recomeçaria, mais cedo ou mais tarde ( na época, eu já estava com
urna sobrevida de dez anos, desde que iniciara a terapia de Gerson e, de acordo com o
consenso médico, a sobrevivência assintomática durante cinco anos equivale à cura. Por
que tal regra aplica-se apenas a pacientes tratados de modo convencional ? ).
Um terceiro médico declarou que me recuperei apesar daquela terapia esquisita.
Um quarto, disse-me que o método de Gerson não era científico e acrescentou que,
após a excisão de meu tumor primário, eu deveria ter extirpado também algumas
glândulas linfáticas, passado por radiação intensiva e, então, esperar pelo melhor.
Quando sugeri que esperar pelo melhor não era muito científico, ele irritou-se.
Um quinto médico, ao saber de meu caso por um conhecido comum, sorriu e disse:
"Ela bem poderia ter pedido um milagre".
Ainda assim, dois profissionais de grande reputação escutaram minha história e a
consideraram interessante - mas depois consideraram as evidências insuficientes e inúteis
para um estudo sério. Segundo eles, casos individuais não contavam. Apenas estatísticas
baseadas em grandes amostras poderiam ser consideradas com seriedade. Muito bem, eu
reagi, mas como os pesquisadores ou médicos estabelecem um ensaio adequado para
uma abordagem totalmente nova, se não escolhem a metodologia a partir de casos
individuais como o meu ? Como podemos aprender algo novo, se nos recusamos a
examinar resultados positivos individuais ?
Eu acrescentei que, além disso, é impossível estabelecer um grande ensaio clínico
controlado, capaz de ceder resultados com importância estatística, sem verbas suficientes.
Contudo, sem tais resultados, não veremos nenhuma grande doação para pesquisas sobre
o câncer. O ciclo vicioso perpetua-se. Como podemos rompê-lo ?
Minhas perguntas permaneciam sem resposta. Eu travava uma luta contra o que o
filósofo Herbert Spencer chamou de "o princípio da condenação sem investigação" - que,
em suas palavras, "certamente mantém o homem em ignorância permanente".
Depois de tantas decepções, finalmente aquietei-me e não tentei mais conquistar o
interesse desses profissionais da saúde pelo trabalho que um médico incrivelmente
inovador realizara antes e que poderiam aprimorar. Ás vezes, eu imaginava quanto tempo
seria preciso até a medicina resolver abrir os olhos para as descobertas feitas por Max
Gerson meio século antes. E, francamente, minha tristeza era grande.
Hoje, não estou mais triste, embora a medicina ortodoxa para o câncer ainda
persista na prática daquilo que seus críticos descrevem como "cortar, queimar e envenenar"
e não demonstre interesse por qualquer coisa radicalmente alternativa. Ainda assim, muita
coisa mudou nos últimos vinte anos. Muitos tipos de medicina complementar e alternativa -
MCA, em resumo - são investigados em termos de seu potencial de cura e eficiência de
custos.
Já há alguns anos, departamentos governamentais, instituições ligadas ao câncer,
organizações educacionais e a mídia têm oferecido bons conselhos sobre dieta saudável.
O consenso é total - mais frutas, vegetais e grãos integrais, menos carne vermelha,
álcool, gordura, sal e açúcar podem proteger-nos de doenças malignas. A campanha
"Europa Contra o Câncer", da União Europeia, con-centra-se na prevenção pela dieta.
Estudos de grande escala foram iniciados em sete países europeus, com o intuito de
comparar dietas e perfis nutricionais das pessoas, ao longo de vinte anos. A ligação entre
dieta e câncer nunca recebeu tanta atenção quanto hoje - mas apenas no contexto da
prevenção. A declaração oficial é que a dieta certa pode proteger contra o câncer, mas,
depois que a doença aparece, esta não faz muita diferença.
Não sou a única a reconhecer que isso não é verdade.
O valor da terapia de Gerson para o tratamento de pacientes com câncer já foi
comprovado por dois estudos. O primeiro foi realizado pelo cirurgião oncologista dr. Peter
Lechner, do Dis-trict Hospital, em Graz, na Áustria, que publicou os resultados de um
ensaio clínico de seis anos, de uma versão muito mais suave do programa de Gerson, corn
sessenta pacientes que apresentavam tipos variados de câncer- muitos deles corn câncer
hepático secundário.
Até mesmo este programa modificado, adoçado pelos pacientes ernsuas casas, sob
supervisão médica, trouxe resultados inesperados. Os pacientes viviam mais, sentiam-se
melhor e precisavam de menos drogas, demonstravar> mais otirnismo e sofriam menos
efeitos colaterais - se chegavam a tê-los - do que com os tratamentos convencionais que
muitos deles também recebiam. Em seu trabalho, publicado em um periódico de medicina
alemão, o dr. Lechner indicou a necessidade de um estudo de longa duração envolvendo
um número maior de pacientes.
O segundo estudo dizia respeito a um relatório publicado pela pequena
Organização Gerson para Pesquisas, da Califórnia, sobre as taxas de sobrevivência em
cinco anos de pacientes com melanoma tratados com terapia de Gerson, comparando-as
com resultados equivalentes conquistados por tratamentos ortodoxos. As diferenças
impressionam.
Entre 1975 e 1990, 100% de pacientes com melanoma de Estágios I e II sob a
terapia de Gerson conquistaram a sobrevivência no período crítico de cinco anos, contra
79% dos pacientes sob tratamento convencional. Para pacientes nos Estágios HIA e IIIB,
com metástases localizadas, o grupo sob terapia de Gerson conquistou 70% de
sobrevivência, enquanto isto ocorreu com apenas 41% do grupo "ortodoxo". O mais
impressionante a notar é que no grupo de pacientes mais graves, no Estágio IVA com
metástases distantes, os pacientes de Gerson conquistaram uma taxa de sobrevivência de
39% em cinco anos, enquanto a taxa para pacientes com tratamento convencional foi de
apenas 6%.
Ainda precisamos de um número muito maior de estudos de grande escala para
fazermos plena justiça ao potencial impressionante desta forma de cura. Estou certa,
porém, de que isso ocorrerá. Afinal, há quem diga que nada é mais forte do que uma
ideia, quando chega o momento certo para sua concretização.
Um dos grandes problemas, com o programa de Gerson, é o aspecto financeiro. Uma vez
que a terapia não é aceita por convénios particulares ou pela rede pública de saúde,
potenciais pacientes precisam bancá-la.
Isso pode causar-lhes sérias dificuldades. Contudo, mesmo este problema pode ser
superado. Não é necessário ir ao Gerson Hospital, no México, como eu fui, embora haja
vantagens nisso. Muitos pacientes realizaram a terapia em suas próprias casas, com
sucesso, tanto na Grâ-Bretanha quanto na Hungria, onde lancei a terapia, dez anos atrás.
Depois, e em menor grau hoje, as condições na Hungria degradaram-se muito,
comparadas com as dos países ocidentais, assemelhando-se mais às de um país do
Terceiro Mundo que com o resto da Europa.
Ainda assim, indivíduos persistentes realizaram a terapia, tiveram sucesso e cada
recuperação causou-me prazer, uma vez que sempre achei que a capacidade para
recuperar-se de uma doença com risco de morte não deveria ser uma questão de dinheiro.
No "Epílogo para a edição brasileira", apresento detalhes adicionais acerca de como
realizar a terapia em casa e, para aqueles que não estão doentes, mas desejam melhorar
e preservar sua saúde, apresento os aspectos do estilo de vida de Gerson que os ajudarão
para este fim.
Mas, primeiro, leia minha história.
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CAPÍTULO 1
Não sei quando apareceu aquela mancha marrom, quase no meio da minha
panturrilha direita, entre o joelho e o tornozelo. Talvez isso tenha acontecido em meados
dos anos setenta, mas eu não percebi, no início. Em algum momento indeterminado,
percebi que estava lá e depois, muito depois, que sua área crescia lentamente, embora
não apresentasse qualquer outra alteração. Eu a observava com cuidado, em busca de
mudanças em sua cor, textura ou espessura - nos folhetos de prevenção do câncer eu lera
que esses sinais podiam representar perigo. Contudo, minha mancha marrom não estava
mudando, nem se parecia, mesmo que remotamente, com uma verruga ou ferida. Era
apenas um pedaço de pele cor de café-com-leite, normal e lisa, que se expandia
lentamente.
Minha mancha marrom não me preocupava. Eu a examinava diariamente no
banho, e apenas um punhado de vezes, no período de três anos ou mais, cheguei a me
perguntar, sem grande preocupação, se aquilo poderia ser um melanoma ( acerca do qual
eu sabia apenas que era o câncer cutâneo de mais rápido avanço e que podia ser fatal ).
Contudo, a voz interna que indagava isto era diferente da que eu usava normalmente para
discutir outros assuntos comigo mesma. Ela vinha de uma área desconhecida de minha
consciência e, portanto, eu a ignorei. Com o tempo, a mancha atingiu o tamanho de uma
unha de formato irregular, mas não era algo feio.
Uma amiga chegou a comentar que isto era sexy, parecido com um sinal de beleza
bem visível. Eu mesma não poderia ter definido com mais elegância aquela manchinha.
Minha saúde também não me dava maiores preocupações. Na meia-idade, eu estava em
melhor forma que em minha juventude, com boa energia e alta resistência a infecções.
Durante uma epidemia de gripe que atingiu a maioria de meus colegas, eu
trabalhei sozinha, na ponta de um corredor cheio de escritórios desertos, quase desejando
também pegar aquele vírus, em vez de ser uma heróica trabalhadora solitária. A verdade é
que, ao contrário dos meus colegas - eu escrevia scripts para a BBC, na época -, eu seguia
um regime que alguns consideravam saudável e outros viam como excêntrico, na melhor
das hipóteses; de qualquer forma, para mim ele funcionava.
Minha dieta era lacto-vegeta-riana, e eu evitava lanchonetes e fast foods. Também
evitava a medicina ortodoxa, sempre que podia, e consultava uma excelente especialista
em ervas curativas, em vez do clínico geral mais próximo ( este profissional parecia-se com
um agente funerário e prescrevia sempre aspirina solúvel ou antibióticos ). Eu também
fazia ioga e, embora esta não envolva competição, eu me orgulhava de ser mais flexível
que muitas mulheres com metade de minha idade. Em resumo, minha condição física era
muito satisfatória - mas eu raramente precisava pensar sobre isso. Para mim, meu corpo
era o veículo que me transportava por este mundo. Ele parecia adequado, de modo que
não ocupava muito meus pensamentos.
O que me preocupava, cada vez mais, era minha incapacidade para deixar de
fumar. Isto era um problema eum peso em minha consciência, já que fumar não se
encaixava em minha auto-ima-gem ou estilo de vida. Parecia ilógico cultivar boa saúde
com dieta e exercícios e, depois, prejudicá-la com nicotina. Além disso, o que aquela
dependência cara e mal-cheirosa fazia em minha vida, quando eu me esforçava para
conquistar minha liberdade interior -ou pelo menos, achava que fazia isso ? Como eu
podia justificar o fatode poluir o ar que todos respiravam ? Ainda assim, nenhum desses
argumentos funcionava. Meuvícioera irracional,de modo que as razões que apresentava a
mim mesma não me bastavam para largá-lo. Pelo menos, eu não tossia ou arfava - meus
exercícios respiratórios na ioga me ajudavam muito, neste sentido - e sempre prometia a
mim mesma que, um dia, largaria os cigarros.
Esta era a situação geral, em novembro de 1979, quando realizei um check-up de
rotina com a dra. Ailsa Hay, a ginecologista com quem eu me consultava havia alguns
anos. Eu estava contente por revê-la. Ela era simpática, gentil e receptiva, uma pessoa de
quem eu gostava e que, por acaso, era médica, não o contrário. Iniciamos um bate-papo
e, depois, continuamos a conversa enquanto ela me examinava. Este era sempre um
momento de apreensão, porque sempre havia a possibilidade de ela descobrir um caroço
em meu seio ou alguma anormalidade assustadora em algum outro ponto, que não estava
ali antes ("Sempre há uma primeira vez", nosso velho médico de família costumava dizer,
em tom lúgubre).
Contudo, em vez de anunciar alguma terrível ameaça ginecológica, a dra. Hay
apenas perguntou-me se "aquela coisa" em minha perna estava me incomodando.
"Que coisa ?". Torci meu pescoço e a vi contemplando a mancha marrom em minha
perna. "Ah, isso aí...", comecei a dizer, mas parei, porque sob sua forte lâmpada de exame
a mancha parecia diferente. Estava enrugada, não mais lisa e controlada, mas com um
ponto roxo muito pronunciado bem no meio, quase rompendo a pele. Eu nunca havia visto
nada assim antes, mas, de um modo absurdo, recordei um sonho recente que tivera, no
qual dois paralelepípedos estavam sendo empurrados para cima por alguma força
sombria e misteriosa, que brotava da terra. Quando aquela mancha começara a mudar ?
Por que eu não a tinha visto antes ? Ou será que, inconscientemente, eu optara por não
ver ?
"Dói ou sangra ?", a dra. Hay perguntou.
"Não, nunca. O que pode ser isso ?"
"Eu não sei. Mas, se algo assim aparecesse na minha perna, eu procuraria um
dermatologista imediatamente".
"Tudo bem", respondi. "Se você faria isso, eu também farei". Vesti-me, intrigada por
esta virada dos acontecimentos. A dra. Hay já redigia um encaminhamento para o dr.
Colville, um grande dermatologista de sua confiança - "Ele é o instrutor de todos os jovens
médicos", ela acrescentou, aconselhando-me a vê-lo logo. Enquanto nos despedíamos, sua
preocupação parecia ainda maior que a minha. Ao sair de seu consultório, eu não
conseguia parar de olhar para aquela mancha, que não me parecia mais algo natural.
Poderia ser uma úlcera da perna, imaginei, sem saber exatamente que aparência
isto deveria ter. Contudo, eu tinha certeza de que não era nada grave e, assim, corri para
o escritório, para trabalhar em meu roteiro para um programa de Natal.
O afamado dr. Colville atendeu-me quatro dias depois. Era um homem alto e
elegante, na casa dos sessenta anos, que usava um terno elegantíssimo, gravata de seda e
sapatos brilhantes. Quando entrei em seu consultório, ele estava encostado em um móvel
antigo, como se fosse um bom ator no papel de um famoso médico. Na verdade, o que
mais me impressionou, além da perfeição de suas roupas, foram seus modos teatrais
antiquados. A maneira como sorriu e veio em minha direção, com movimentos
moderados, rápidos e leves, a forma como gesticulou e me fez sentar com um floreio de
abotoaduras, sugeriu que poderia irromper, de repente, em uma rotina de música e
dança, oferecen-do-me uma imitação de Maurice Chevalier Imaginei que tipo de. persona
ele projetava na ala geral de um hospital comum.
Ele leu o encaminhamento da dra. Hay e me disse: "Ela é uma boa garota". Piscou
para mim como se eu tivesse me materializado do nada e me pediu para lhe mostrar
minha perna. Ele também iluminou a mancha com uma luz forte, por alguns segundos,
antes de dizer: "Teremos que tirar isso aí".
"Por quê ?"
"Porque em dois ou três anos, isso poderá lhe dar muitos problemas. É melhor tirar
agora e viver feliz pelo resto da vida. O que você fará no período de festas ?'
"Nada especial".
"Bem, então vamos operar no Natal. E um período meio confuso, de qualquer
maneira. E então \ocê poderá recuperar-se até o Ano Novo. Concorda ?"
"Espere um momento", eu disse. Que conversa era aquela ? Recuperar-me - que
espécie de cirurgia ele tinha em mente ? Senti-me como se tivesse caído na frente de um
aspirador de pó gigantesco, que me sugava irresistivelmente para seu interior escuro. Pare
de me pressionar, eu pensei, qual é a pressa ? "Espere um momento... será que é tão
urgente ?"
"Meu conselho é que você faça a cirurgia no Natal", o dr. Colville disse-me, em um
tom de voz do tipo "Sou Deus e você é um verme ignorante", e cerrou as mandíbulas, como
se para me dizer que não esperasse dele mais uma palavra sequer. Assim, decidi provocá-
lo e indagar aquilo que minha voz íntima sugerira algumas vezes, no passado.
"O que tenho é um melanoma ?", perguntei, em tom casual.
"Claro que é um melanoma". Ele declarava o óbvio, respondendo à pergunta de
uma criança tola. "Como você sabe disso ? Já estudou medicina ?"
"Não, mas sou jornalista, e em meu trabalho, recolho muitas informações, dos mais
variados tipos". Não permiti que minha mente assimilasse seu veredito, naquele momento.
Eu percebia sua irritação por ter caído em minha armadilha, mas ele conseguiu recompor-
se e sentou-se em sua cadeira.
"Você já morou nos trópicos ? Pessoas de pele clara têm melanoma como resultado
de uma exposição exagerada à luz solar. Na Austrália e Nova Zelândia, suas chances de
ter melanoma seriam bem altas. Na África também".
"Nunca fui à Austrália ou Nova Zelândia. E passei apenas dez dias na África, em
Cartum, onde enfrentei tempo nublado o tempo todo e entrei e saí de prédios com ar
condicionado. Fora isso -férias na Grécia, em maio ou setembro, não se qualificaria como
algo tropical, suponho. Além disso, não tomo banho de sol, se puder evitar. Acho isso um
tédio".
"Bem, então, em seu caso podemos esquecer a exposição solar excessiva. E não
conhecemos outras causas para melanoma. Dei-xe-me verificar apenas mais uma coisa",
disse, vindo em minha direção. "Desculpe-me se parecer atrevido..." Ele levantou
cuidadosamente minha saia e apalpou minha virilha direita, algo que considerei
desconcertante. "Está tudo bem", disse então, olhan-do-me de cima. Eu não tinha ideia do
que estava acontecendo. "O nevo pigmentado - sua mancha marrom - será removido e
você terá uma grande incisão em sua perna direita - digamos, vinte por dez centímetros.
Depois, você receberá um enxerto de pele de sua coxa esquerda. Para cobrir o
buraco, por assim dizer".
"Mas esta área é enorme! Por que precisa ser tão grande ?!", perguntei, atónita.
"Para evitar problemas adicionais. Para garantir que não fique nada que não deva
estar aí. Se removêssemos apenas aquele pedacinho imediatamente adjacente à mancha,
em alguns anos você poderia estar com algo muito pior e ficaria furiosa conosco. Com
razão, diga-se de passagem".
Em minha mente, eu agora via minha perna direita na forma de um mapa. A
mancha marrom era o centro da zona de perigo, que se estendia de um modo irregular
para o norte, rumo ao joelho, e para o sul, na direção do tornozelo, e toda a zona estava
coberta por pequenas linhas retorcidas imaginárias, indicando o poder de disseminação
do... melanoma, se era isso que eu tinha. Mas como esse homem elegante e idoso sabia
que era melanoma, depois de uma rápida olhada ? Como ? Provavelmente por ter
passado grande parte de sua vida vendo manchas exatamente como a que eu tinha. Em
cujo caso, ele sabia o quanto as células doentes poderiam se espalhar. Isto fazia sentido.
Ainda assim, tudo em mim — mente, corpo, emoções, sistema nervoso - mostrava tensão,
colocando-me no modo de 'fuga ou luta', porque o dr. Colville prescrevia uma violência
cirúrgica contra a integridade de meu corpo, para eliminar um problema que eu mal sabia
que tinha. Senti-me gelada, por dentro e por fora, eernuma espécie de choque.
"Você conhece um bom cirurgião ?", ele perguntou. "Não ? Bem, tenho o homem
certo para seu caso. Extremamente bom em enxertos de pele, cora muita experiência'. Ele
retirou da gaveta de sua mesa um cartão de visita e o estendeu para mim. 'Aqui está.
Marque uma consulta imediatamente. O consultório do dr.- Lennox é aqui perto".
"Desculpe-me", eu disse. "Preciso voltar para meu escritório agora. Ligarei para a
secretária do dr. Lennox mais tarde".
"Não, eu quero que você faça isso agora. A marcação pelo telefone pode demorar
mais".
Sua insistência irritou-me. Eu achava que não deveria ser forçada a nada, sem ouvir
boas razões para isso. "Certamente não pode ser tão urgente", eu disse. "É claro que não
posso ter algo tão grave que precise correr até a sala de operação. Não é como se esta
mancha em minha perna me impedisse de comer ou respirar, é ?" Ele não respondeu.
"Você está dizendo que se não dermos um jeito nisso imediatamente eu posso
morrer ?".
"Todos podemos morrer, querida", ele disse. "Por favor, perceba a gravidade da
situação e não adie sua consulta com o dr. Lennox. Ele é um homem muito ocupado e
pode não ser capaz de atendê-la com a rapidez necessária".
"E quanto a esta mancha aqui, então ?", perguntei, apontando para uma grande
mancha marrom de formato irregular em minha mandíbula esquerda, perto de minha
orelha, que me incomodava por razões estéticas. "Isso também deve ser removido ?"
Ele correu os dedos sobre a mancha. "Ah, não! Esta é uma mancha comum ligada
ao envelhecimento. Eu sempre peço que meus alunos observem a textura dessas coisas. Se
parecerem aveludadas, são manchas normais que ganhamos com a idade. O único
problema com elas é que não podem ser removidas".
"Nem mesmo com cremes especiais ?"
"Particularmente com esses. Depois que surgem, estão aí para o resto de sua vida".
A consulta terminou. Eu me senti aliviada por me despedir do dr. Colville e mais
ainda por sair de seu consultório no grande prédio da Harley Street, cheio de consultórios,
escritórios administrativos e sabe-se lá mais o quê. Tendo vivido grande parte de minha
vida sem precisar de tratamento médico, eu agora sentia uma extrema antipatia pelo clima
de agitação daquele centro médico que acabara de deixar. Além disso, percebi que
antipatizava demais com o dr. Colville.
Com seu diagnóstico instantâneo, que eu suspeitava estar errado, e com sua pressa
em me encaminhar para cirurgia, ele mudara todo o estado de minha existência - de
alguém saudável para uma pessoa com probabilidade de estar com câncer - e
determinara meu futuro imediato sem fazer o menor contato humano comigo. Ele falara
para mim, mas não comigo, nem mesmo por um segundo.
Senti-me perturbada e humilhada por sua indiferença superior a mim como pessoa
e, talvez em virtude de minhas emoções negativas a seu respeito, recusei-me a aceitar seu
diagnóstico sem questioná-lo. Contudo, o que eu mais precisava no momento era ser
confortada, de modo que entrei em meu café favorito na Wigmore Street, pedi café com
croissant e manteiga, fumei um cigarro e, com esses prazeres básicos, convenci-me
rapidamente de minha autonomia e liberdade de escolha.
Ainda assim, relutantemente, liguei para a secretária do dr. Lennox e marquei uma
consulta para a sexta-feira seguinte. Depois, corri para a Oxford Street, para longe da área
da Harley Street, com seus sombrios consultórios cheios de médicos e doença. Era um
alarme falso, eu pensei, não há nada de errado comigo, mas farei tudo direitinho, apenas
para provar que estou tão saudável quanto me sinto.
Aquela semana foi muito atarefada, tanto no trabalho quanto fora dele, mas
sempre que eu me concentrava em algo o suficiente para esquecer daquela marca
ameaçadora em minha perna, ela voltava correndo à minha consciência. Era como viver
com uma bomba-relógio presa em meu corpo.
Meu problema imediato dizia respeito ao que contar a Hudie, meu amor e
companheiro naqueles últimos treze anos (eu era uma divorciada feliz, assim como
algumas pessoas mantêm casamentos felizes, vivendo em termos amistosos com meu ex-
mari-do, mantendo contato e, ao mesmo "empo, distância).
Meu relacionamento com Hudie era aparentemente indestrutível. Já passáramos por
alguns altos e baixos espetaculares e por vários rompimentos, mas sempre fazíamos as
pazes, às vezes surpreendendo a nós mesmos. A primeira vista, não parecemos
particularmente compatíveis, mas compartilfiamos algumas qualidades e necessidades
vitais - precisando, por exemplo, de calor humano e proximidade, tanto quanto de
privacidade e distanciamento. Ele é uma pessoa com muito bom-senso, prática e muito
confiá-vel; eu, por outro lado, sou propensa a me envolver com teorias estranhas e
informações interessantes, mas inúteis. Ele é auto-su-ficiente e solitário; eu sou gregária e
ávida por comunicação.
Diferente de mim, ele é paciente, tolerante e generoso com os erros alheios, o que
pode explicar por que nosso relacionamento existe há tanto tempo. O que o salva de um
excesso de virtude e placidez é uma veia de exuberância e extravagância digna de Luís XIV,
e surtos ocasionais de obstinação adorável.
Não tínhamos segredos um com o outro, mas agora, frente a uma situação
ameaçadora, eu não sabia o que lhe dizer. Uma de suas características é a preocupação,
e eu queria poupá-lo de uma ansiedade que poderia ser evitada, especialmente porque
sabia que qualquer ameaça potencial a mim ativaria seu medo com relação à separação,
perda e morte.
O tema da morte era uma de nossas áreas não resolvidas: eu sabia que isso o
assustava, ele sabia que a mim não amedrontava. Eu ansiava que Hudie resolvesse seus
temores, mas achava que não deveria tocar no assunto, a menos que ele o abordasse.
Na época, não me ocorreu que protegê-lo de algo tão importante quanto a morte
não apenas era tolice, mas também uma atitude condescendente de minha parte. Afinal,
quem era eu para decidir o que um homem adulto podia ou não suportar ? Porém, todas
essas considerações eram, mais uma vez, pura teoria. A medida que se aproximava o dia
da consulta com o dr. Lennox, não tive escolha, exceto contar-lhe o que estava
acontecendo.
Ele mostrou-se tão surpreso com a ameaça do melanoma quanto eu, mas com seu
otimismo inabalável, que coexiste de algum modo com sua capacidade infinita para
preocupar-se, ele decidiu que, no final, a mancha seria benigna. Eu lhe disse que também
esperava que fosse assim, imaginando se não estávamos enganando um ao outro.
A sexta-feira chegou e, ao meio-dia, eu estava de volta à Harley Street. O dr.
Lennox parecia surpreendentemente jovem, não apenas do modo como policiais parecem
mais joviais enquanto nós entramos na meia-idade, mas absurdamente jovem e ágil, as-
semelhando-se a um garoto de sexta série com cabelos muito curtos. Será que ele tinha
idade suficiente para ser um cirurgião e, além disso, experiente ? Enquanto nos
cumprimentávamos, porém, percebi que sua aparência era enganadora, ao perceber
rugas finas, pele seca e cansada e desnutrição óbvia.
Por causa de seu sorriso tímido, de seu terno bem comum e de seus modos
desajeitados - em resumo, porque parecia o extremo oposto do elegante e todo-poderoso
dr. Colville -, simpatizei imediatamente com ele.
Contei-lhe minha história. Ele também perguntou se eu já vivera nos trópicos e
confirmou que a luz solar excessiva era a principal causa identificável de melanoma. "Mas,
é claro, nem sabemos ainda se você tem melanoma", disse. "Posso olhar sua perna ?"
Fomos para a sala de exames. Despi minhas calças compridas e me deitei na mesa.
O Dr. Lennox contemplou minha panturrilha direita. A sala estava tão quieta que,
de vez em quando, o silêncio parecia chiar, como óleo fervente em uma frigideira. Eu
também começava a sentir calor.
"Não posso dizer o que você tem, sem uma biópsia", o dr. Lennox disse, finalmente.
"Pode ser totalmente inofensivo, algo como um cisto que está se rompendo. Ou
pode ser algo que permaneceu em estado latente por algum tempo e agora está se
tornando ativo".
"Quando você diz 'ativo', quer dizer maligno ?". Ele assentiu. "Por favor, diga-me
exatamente o que está pensando", eu continuei. "Sou adulta, não tenho medo e não
preciso de eufemismos. Só me sentirei mais segura se souber dos fatos nus e crus".
"Sim, é claro, se você prefere assim". Ele sorriu. "Esta coisa pode ser melanoma,
como o dr. Colville sugeriu, mas sem uma biópsia não podemos ter certeza. Portanto, eu
gostaria de realizá-la ornais breve possível e cepois, se for maligno, lidaremos com o
problema imediatamente. Como o dr. CoIvillesem dúvida já lhe explicou..."
Sua voz prosseguiu, mas eu deixei deacompanhá-lo e me sentei. A. mesa parecia
desconfortavelrnente quente. Percebi que tinha aquecimento térmico e a sala já estava
quente. Mas o que me perturbou mais que o calor foi o fato de o dr. Lennox falar comigo
de cima para baixo, de pé, olhando para mim que estava deitada, na pose clássica de um
sacerdote pagão examinando a vítima de um sacrifício, de um pai inspecionando o bebé
ou de um mágico prestes a serrar uma mulher ao meio. Percebi de repente, com irritação,
que esta não era a posição na qual eu desejava estar, ao discutir sobre meu futuro ou
sobre minhas chances de saúde ou doença. Será que o dr. Lennox, aparentemente retraído
e suave, tinha um complexo de poder inconsciente ? Será que tentava transformar-me em
uma paciente dependente, quando eu ainda não era nada disso ?
"Desculpe-me", eu disse, saindo da mesa e ficando de pé, para poder olhá-lo nos
olhos. "A mesa está muito quente". Esta voz era a da covarde bem-educada que habitava
em mim, justificando minha rebeldia. Eu não tinha coragem de lhe dizer que preferia
tomar decisões de pé, em vez de deitada.
Foi então que recebi aquele seu olhar especial, que veria diversas vezes nas
semanas seguintes: um olhar franco e nada hostil de paciência mesclada à resignação, o
olhar de um professor cansado frente a um aluno estúpido ou problemático, que precisaria
ser disciplinado sem demora. "Como eu estava dizendo", ele resumiu, "e como o dr.
Colville já lhe disse, talvez precisemos fazer uma grande excisão e um enxerto cutâneo,
com a pele retirada de sua coxa esquerda. Você se importaria de sentar naquela cadeira
um instante ?". Ele também examinou minha virilha direita, apalpando em busca sabe-se
lá do quê. "Está bem", disse. "Podemos fazer a biópsia hoje à tarde ?"
"Hoje não pode ser".
"E posso saber por quê ?"
"Porque estou ocupada demais no trabalho". Eu quase não conseguia esconder
minha irritação. "Estou trabalhando em um roteiro que ninguém mais pode terminar, que
deve ser apresentado no Natal. E um compromisso que não posso romper". Minha ética
profissional batia de frente contra as exigências da ética do dr. Lennox. "Além disso, qual é
a pressa ?
Por que precisamos correr tanto ? Tanto você quanto o dr. Colville dão a impressão
de que, a menos que tomemos uma providência imediata, minha vida estará em risco.
Certamente não pode ser tão urgente".
Houve uma longa pausa. Depois, ele disse: "Não, não é tão urgente, mas quando
temos a mais leve suspeita de que algo está errado, é melhor agir rapidamente. De quanto
tempo você precisa para terminar seu roteiro ?".
"Meu prazo final é na próxima quarta-feira".
"Cinco dias a partir de hoje - sim, acho que pode ser".
Ali estava um homem sensato, eu concluí, enquanto ele me conduzia até a sala de
sua secretária para providenciar a biópsia no West End Hospital. O procedimento seria
realizado com anestesia local, de acordo com o dr. Lennox, e eu poderia ir para casa
sozinha, mas teria de repousar por alguns dias, com a perna levantada.
"É provável que a biópsia termine com suas preocupações", ele disse, levando-me
até o alto da escada antiga, em espiral. Neste caso, eu indaguei, por que o dr. Colville
demonstrara tanta certeza de que eu tinha um melanoma ? O dr. Lennox sorriu e sacudiu
os ombros. "O dr. Colville pertence a uma geração de médicos que se considera infalível.
Claro, na maior parte das vezes eles estão certos. Mas nern sempre".
Meu alívio foi enorme. Talvez o dr. Lennox não tivesse intenção de me apoiar contra
o Dr. Colville, mas este foi o efeito de seu comentário gentil. Ele era um homem agradável,
razoável e sem pompas, em quem eu podia confiar. Saí dali e enfrentei o ritmo frenético
do meio-dia na cidade, sentindo-me reconfortada e oti-mista. Eu andava a passos rápidos,
sem tensão ou esforço. Não tinha dores ou quaisquer sintomas e todo meu corpo
funcionava bem. Certamente, se tivesse algogravecomo melanoma, não me sentiria tão
bem.
Eu disse exatamente isso ã minha amiga Catherine, quando jantamos em South
Kensington, dois dias depois. Elaeraa minha amiga mais íntima há mais de doze anos e
mu itas vezes eu achava que, desde nosso primeiro encontro, conduzíamos um diálogo
contínuo, sem a mais leve esperança de esgotarmos nossa multiplicidade de assuntos em
comum. Catherine era terapeuta, muito envolvida no treinamento de outros terapeutas.
Além disso, ela e seu companheiro, John, também psicólogo, conduziam uma série
de oficinas altamente originais sobre autodescoberta (de acordo com minha experiência
pessoal, o efeito de tais oficinas era uma mescla de bálsamo e dinamite, em uma psique
frágil). Catherine era miúda e graciosa, com olhos tão brilhantes e tão destemida quanto
um tordo. Eu adorava seu calor humano e sabedoria, bem como sua mente lúcida, que
nunca perdia um truque, nuança ou, acima de tudo, um significado; adorava, também,
seu senso irreverente do absurdo e bom-humor delicioso.
Catherine era uma mulher com quem se podia contar, igualmente interessada por
livrarias e lojas de moda, fascinada por boa comida e bebida, capaz de sentir prazer como
as crianças sentem. Contudo, também fazia parte de sua personalidade um traço de
tranquilidade e profundidade, no qual eu pensava como sendo sua "veia do Himalaia" -
estava presente o tempo todo, como uma nota calma e meditativa soando por trás da
música vibrante.
Ao longo dos anos, já havíamos dividido incontáveis refeições e garrafas de vinho
popular, em todos os restaurantes despretensiosos de South Kensington, já conversáramos
extensamente sobre problemas tanto pessoais quanto mundiais e já déramos boas risadas
juntas. Também já havíamos demonstrado frustração e até chorado um pouco no ombro
uma da outra, quando algo se tornava doloroso demais.
Naquela noite, contei-lhe tudo sobre meu problema. Como Hudie e como eu
mesma, ela também demonstrou otimismo sobre o provável resultado da biópsia e quis
saber, apenas, como eu me sentia acerca de tudo aquilo. Eu lhe disse que estava bem,
honestamente - equilibrada, na expectativa, sem medo, como um móbile (figura de
linguagem que criamos para nos referirmos ao modo como um móbile bem feito recupera
sua forma e equilíbrio após qualquer perturbação).
Além disso, acrescentei, eu não tinha o tipo de personalidade propensa a câncer,
ora! Algum tempo antes, ao redigir um artigo para rádio sobre câncer, ela e eu
conversáramos muito sobre as pesquisas britânicas e norte-americanas acerca da assim-
chamada "personalidade propensa ao câncer", caracterizada por repressão emocional e
incapacidade para expressar raiva, agressividade ou espontaneidade no amor.
"Você me conhece como ninguém", eu disse. "Eu não sou assim, sou ?"
"Não, pelo menos não é mais. Mas lembre-se do tempo que levou para começar a
expressar sua raiva. As vezes, acho que você ainda não sabe muito bem como a liberar,
depois de reprimi-la durante toda a vida".
"Desde os quatro anos, para ser exata". "Era nisso que eu estava pensando".
Fiz uma expressão pesarosa. "Meu Deus, ainda recordo tão bem! Se pelo menos eu
soubesse desenhar - talvez se desenhasse aquela cena, pudesse exorcizá-la. Minha mãe,
em sua linda camisola cor-de-rosa de seda, na porta do quarto, absolutamente furiosa,
olhos flamejantes, mandando embora alguém que estava fora do quarto. E eu, sentada
em minha caminha branca e pensando que jamais deveria perder a paciência, jamais
deveria enfurecer-me daquele modo, porque é feio e perigoso... uma pessoa furiosa já é o
bastante, em uma família. E como mantive minha promessa a mim mesma, ao longo dos
anos! E impressionante ".
"Eu me sentiria melhor se soubesse que você finalmente a quebrou. Não tenho
certeza".
"Ah, mas eu a quebrei. E que você nunca me viu furiosa".
Se Catherine tinha mais alguma coisa a dizer sobre o assunto, resolveu deixar para
outro momento. Comemos bem. O vinho até que era bom, e brindamos ao Advento, o
início do mês anterior ao nascimento de Cristo, assim como recordamos habitualmente
solstícios, equinócios e festivais cujo simbolismo consideramos relevantes. A caminho de
casa, pensei na importância do Advento e visualizei uma vela acesa solitária flutuando em
um negrume total, sozinha, mas com seu brilho inalterado. Eu podia aceitar tal imagem,
mas para que espécie de Natal a vela se dirigia ? Ah, era melhor dar um passo após o
outro, cruzar aquela ponte quando chegasse lá. De volta, sozinha em minha casinha
pequena, silenciosa e segura, fui para cama imediatamente e dormi um sono só, até de
manhã.
Ao retornar ao trabalho, terminei meu roteiro e, então, contei a meus superiores o
que estava acontecendo. Eles demonstraram preocupação, mas estavam otimistas e me
ofereceram um tremendo apoio. Concordamos que, para todos os fins "oficiais", eu teria
me afastado por causa de uma gripe. Se tudo corresse bem, não precisaríamos mudar a
história.
A preparação para a biópsia era mais ou menos como a preparação para uma
viagem curta, algo pleno de pequenas providências. De vez em quando, eu escutava
minha voz interior, questionando meu corpo e indagando se estava tudo bem, mas não
havia resposta, exceto por um senso geral de bem-estar.
Foi naquele momento sombrio, no começo de dezembro, no dia anterior à biópsia,
que uma moita de margaridas que floresciam em abril subitamente produziu uma única
dor perfeita em meu jardim, branca e dourada, como um pequeno sol e radiante como
ele, no clima lúgubre do inverno. O botão parecia heróico e deslocado, fazendo-me
pensar em The secret of lhe golden flower, um texto chinês muito antigo sobre a busca da
imortalidade espiritual.
Eu o conheci graças ao comentário de Jung sobre o texto taoísta, durante uma de
minhas imersões periódicas no universo jungiano. Contudo, a flor dourada deve ser um
símbolo arquetípico universal, porque eu já a visualizara de modo fugaz em sonhos e
fantasias, sempre agindo como uma entidade redentora ou salvadora, capaz de iluminar a
escuridão ou guiar alguém para fora de um labirinto mortal. Entre variados símbolos
místicos de minha predileçáo, a flor dourada vinha em primeiro lugar.
E, agora, ela estava ali, em meu pequeno jardim catatônico, brotando de um
punhado de folhas enlameadas e adormecidas que nem se abalaria em gerar vida,
durante os próximos quatro meses.
Decidi que aquela flor era um bom presságio.
Em 6 de dezembro, por volta do meio-dia, apresentei-me no pequeno hospital perto
de Leicester Square, onde o dr. Lennox deveria realizar a biópsia. Depois da rotina
administrativa, fui parar em uma sala pequena, onde uma enfermeira tagarela pediu que
eu me despisse e mantivesse apenas minha roupa íntima.
Enquanto eu vestia a bata e chinelos hospitalares, ela falava com admiração sobre
o dr. Lennox. "E um homem maravilhoso", disse. "Estamos felizes por trabalhar para ele,
que é sempre gentil e sensível e, ao contrário de outros, nunca perde a paciência. Você
não poderia estar em melhores mãos". Seu entusiasmo parecia sincero e me senti bem, ao
ouvi-la.
Na pequena sala de cirurgia, o dr. Lennox, todo paramentado de verde claro,
saudou-me como se eu estivesse chegando para uma festa divertida. Ele parecia tranquilo,
animado e até alegre demais, um homem em seu ambiente, exercendo sua habilidade e
gostando do que fazia. Inspirei profundamente e me deitei na mesa.
Durante toda a operação, conversamos animadamente, principalmente sobre o
mundo do entretenimento e sobre nossos programas favoritos. Eu estava em grande
forma, quase esfuzian-te, entretendo o dr. Lennox e as duas enfermeiras como se esta
fosse a única finalidade de minha presença.
Uma vez que não sentia dor, era fácil fazer de conta que nada importante
acontecia, nada mais sério que operar uma unha encravada. E, então, tudo terminou.
Fizeram curativos, ajudaram-me a levantar e fui para casa. "Mantenha a perna levantada e
caminhe o mínimo possível", ele alertou. "Ligarei assim que receber o laudo do patologista,
talvez amanhã".
Levemente sedada, fui para casa de metro, imaginando qual seria a aparência de
minha perna anestesiada, sob o curativo. Em casa, coloquei-me à vontade no sofá, perto
do telefone, com a perna direita levantada sobre o encosto do sofá, uma pilha de livros e
frutas ao meu alcance. Hudie ligou, depois Catherine e, finalmente, alguém da chefia da
empresa.
Garanti-lhes que estava tudo bem e então voltei ao meu repouso tranquilo. Que
esquisito, pensei, estar em casa cedo em una quarta-feira à tarde, em vez de no trabalho,
quando nem rnesrno estou doente.
No dia seguinte, odr. Lennox ligou no rneio da tarde, para dizer que a mancha ern
minha perns era maligna eque eu precisaria realizar a cirurgia. 'Tentarei obter uma baixa o
quanto antes", disse, mencionando um hospital na parte central de Londres, aceito por
meu convénio de saúde. "Por favor, não se preocupe", ele lalou, em sua voz leve e precisa.
"Nós a livraremos deste problema e você ficará novinha em folha. Descanse
bastante e nem mesmo toque no curativo. Ligarei sobre os arranjos para a baixa em um
ou dois dias".
"Por quanto tempo ficarei no hospital ?"
"Ah, duas ou três semanas. Depende de sua recuperação";
"Tanto tempo assim ?"
"Sinto muito, mas é um hospital agradável, com visitas liberadas o dia inteiro".
Fiquei deitada, imóvel no sofá. Então, era câncer. O padrão interno
cuidadosamente equilibrado dos últimos dez dias des-fez-se de repente, como um
caleidoscópio atingido por um martelo. Eu não conseguiria mais manter meu humor de
interesse descomprometido, esperando que a ameaça de uma doença grave sumisse.
Agora, eu sabia que não poderia mais fazer isso. Mesmo assim, sentia-me
totalmente perplexa ante o pensamento de ter um processo maligno, a pior de todas as
doenças, que boicotava em silêncio meu corpo aparentemente saudável, sem produzir o
menor sintoma. Certamente, para ter câncer seria preciso estar debilitada, me sentir mal,
estar sofrendo de vários sintomas ou talvez profundamente infeliz. Nada semelhante me
afligia.
Fechei meus olhos e pensei em minha vida, buscando indicadores psicossomáticos
de câncer e não encontrando nenhum. No geral, eu me considerava mais feliz do que já
fora em muito tempo.
Meu relacionamento com Hudie era o vínculo melhor e mais duradouro de minha
vida. Minha casinha, perto do rio Tamisa, era a primeira residência que me agradava sob
todos os aspectos, escolhida e desenhada por mim, sem nenhuma interferência ou
necessidade de me satisfazer com algo que me desagradasse.
Eu tinha amigos excepcionais, que considerava como se fossem minha família, já
que não tinha uma de verdade; cada um deles havia sido escolhido, não imposto pelo
acaso, e era muito amada. Eu tinha um bom emprego, chefes e colegas estimulantes e
ampla responsabilidade. Ás vezes, a tensão cruel do trânsito e pressões que ultrapassavam
meu horário de trabalho pareciam pesadas e assustadoras, e eu ansiava por mais
liberdade e espaço, mas não conseguia pensar em qualquer emprego que me agradasse
mais.
Além disso, eu já estava fazendo planos para minha próxima carreira:
aposentadoria precoce e retomo à carreira de escritora free lance, além do trabalho como
terapeuta, para o qual eu já me preparara. Eu considerava este padrão bom e vigoroso,
não negativo e causador de sofrimento, e recordei uma frase dita pelo falecido médico sir
Heneage Ogilvy, "Um homem feliz não tem câncer", que chocou seus colegas, mas faz
sentido, se pensarmos em corpo e mente como partes inseparáveis de um todo. Nada
disso me ajudava.
Droga, droga. Se eu tinha câncer, então minha felicidade não era real, ou talvez a
teoria de Ogilvy estivesse errada. Tinha que ser algo assim.
Pensei em minha mãe, minha única parenta real. Não poderia contar-lhe, porque a
preocupação a deixaria doente. Mamãe estava com oitenta e um anos e vivia em uma
pequena cidade à beira da floresta Negra, na Alemanha, perto de sua amiga mais antiga
ainda viva.
Mudara-se para lá cinco anos atrás, quando julgou que Londres estava estressante
demais. Enquanto ela envelhecia, com perda gradual da saúde e queixas crescentes, eu
ha%ia sido a filha forte, saudável e relativamente jovem, de quem podia depender. Para
mim, ter câncer em uma idade em que seu único problema de saúde havia sido uma
hérnia de disco rompida, parecia imperdoável, quase que uma traição. Pelo menos, essa
era minha impressão.
Eu precisaria evitar que ela tomasse conhecimento da má notícia, especialmente
porque mamãe tinha horror a câncer. Tendo chegado a esta decisão, esvaziei minha
mente e me deitei, muito quieta, ern um estado de contemplação meditativa. Este era o
único modo que eu conhecia de criar paz e me distanciar do futuro imediato, o estado
recomendado por lCrishna, no Bhagavad Gita: "Mantenhaa paz, no prazer e na dor, ao
ganhar ou perder, na vitória e na derrota em uma batalha..." Será que eu perdera a
batalha, ou ela recém se iniciava ?
Mais tarde liguei para Hudie, para Catherinee outros amigos, que aguardavam o
resultado da biópsia. Maligno - que palavra mais vistosa e má, sugerindo um vilão saíco
de um melodrama, do tipo que esfaqueia pessoas escondendo-se atrás de pilares góticos.
Ainda assim, tive de usá-la para descrever minha doença, e depois precisei lidar
com o choque, carinho e preocupação que vieram ao meu encontro pelo telefone, até que
isso também se tornou doloroso.
Liguei também para minha especialista em ervas e lhe perguntei se eu deveria me
submeter à cirurgia ou experimentar alguma terapia alternativa, em vez disso. "Tudo o que
desejo é uma opinião", eu disse. "Não estou pedindo que você tome a decisão por mim,
apenas eu posso fazer isso, mas quero saber sua opinião. Você cuida de mim há onze
anos, conhece bem minhas condições gerais de saúde..."
"Melanoma é um câncer muito imprevisível", ela disse, após uma pausa. "Não há
como saber como avançará. Talvez o mais sensato seja submeter-se à cirurgia e esperar
que seus problemas terminem. Afinal, você é bastante saudável".
Bem, então era isso. Achei que ela tinha razão. Terapias alternativas eram ótimas
para a maioria das coisas, mas quando o assunto era sério, o mais sensato a fazer era
aderir aos métodos estabelecidos. Fechei meus olhos. A sala estava aquecida e muito
silenciosa, perdida na escuridão do Advento pré-natalino iluminado por uma vela solitária.
Por que, com tanta frequência, os desastres ocorrem antes do Natal ? Se não é a
caldeira que explode, é um caso de amor que termina, e se nada disso acontece,
recebemos o diagnóstico de câncer e precisamos fazer a cirurgia no Natal.
"Mantenha a paz..." Levantei-me com cuidado e fui até a janela da cozinha. Mesmo na
escuridão da rua eu podia ver a margarida solitária em toda sua glória, em meu jardim
morto.
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CAPÍTULO 2
JÁ ERA QUASE NOITE, EM 12 DE DEZEMBRO, quando Hudie le-vou-me até o
hospital, em Bryanston Square. Não conversamos muito, durante o percurso. Já havíamos
dito tudo o que precisávamos nos últimos dias e estávamos exaustos, emocionalmente. As
ruas estavam escuras e reluzentes, depois de uma chuva gelada. Minha perna doía um
pouco.
Esta foi a única sensação que registrei. Tudo o mais - pensamentos e emoções -
havia desaparecido, sob um distanciamento calmo e sereno, que não continha medo ou
apreensão; na verdade, eu começava a perceber que o fenómeno já me ocorrera várias
vezes no passado, sempre em um momento de crise aguda e perigo - sobrevinha-me uma
serenidade totalmente irracional, baseada na percepção de que tudo estava exatamente
como deveria estar e de que, não importando se a situação parecia desesperadora, tudo
acabaria bem.
Por que bem ? Eu não sei, mas sentia que tudo acontecia em duas dimensões
separadas. Crise e perigo, doença e dor pertenciam a uma dimensão, mas minha
consciência operava na outra, pelo menos parte do tempo, e acerteza, serenidade e senso
inabalável de que tudo estava certo, que vinha daquela segunda dimensão, de algum
modoeram mais reais que a experiência físicaaparentemen-te real. A linica coisa que me
entristecia era não conseguir compartilhar rneu senso misterioso ce bem-estar com Hudie,
já que ele o veria como uma tentativa de negar minhas emoções reais.
O hospital não se parecia com os hospitais que eu sempre vira. Poderia muito bem
ser um prédio de escritórios ou apartamentos, com uma recepcionista alegre e uma sala de
espera elegante. Hudie trouxe minha valise, abraçou-me, beijou-me e se apressou em sair.
Nenhum de nós teria suportado mais um momento juntos. Percebi vários cinzeiros
brilhantes na área de espera. Será que a liberdade estendia-se também aos quartos dos
pacientes ? Eu ansiava por um cigarro.
A enfermeira encarregada da ala à qual eu me destinava, chamada pela
recepcionista, era uma mulher de meia-idade e nada simpática. Naquela manhã, minha
amiga Pat me alertara para não permitir que me tratassem apenas como uma doente,
como alguém sem identidade. Esta enfermeira parecia ser o tipo de pessoa disposta a
tentar exatamente isso, com seus modos secos e nada sociáveis. Mostrava-se
desinteressada, recusando-se a fazer o mais leve e fugaz contato com meus olhos. No
quarto 47, escuro e quente demais, ela anotou meus dados em um formulário. Parente
mais próximo ?
Dei o nome de Hudie. Uso de drogas ? Neguei, com a cabeça. As ervas e remédios
homeopáticos que recebia de minha especialista em ervas para diminuir o choque da
cirurgia e promover a cura não eram drogas, e eu não queria parar de usá-los.
Religião ? Católica Romana, eu disse - talvez devesse ter acrescentado "não-
praticante", entre parênteses, como "Enfermeira (aposentada)", mas não fiz isso. Talvez,
para fins oficiais, fosse melhor oferecer a religião oficial, em vez de tentar definir meu
credo real e não oficial - em meu caso, algo como cristã liberal com fortes simpatias
budistas e amor profundo pelo Bha-gavad Gita. Sei que isso não agradaria a ela.
Ao vê-la sair, inspecionei meu quarto e o considerei muito lúgubre, como uma
tentativa bem-sucedida de privação sensorial completa. Paredes, pintura, leito, armário e
prateleiras eram brancos. Apenas o piso e a cadeira tubular diferiam, em seu bege
desbotado e sem graça. Não havia quadros nas paredes, nem um pingo de cor ou textura,
nada para desviar a mente da tristeza ou ansiedade.
Felizmente, a janela dava para a praça e para o topo dos impressionantes plátanos
londrinos, com seus galhos nus e robustos com o céu ao fundo, enchendo toda a grande
janela. Senti-me um pouco menos isolada, imediatamente. Árvores estavam entre as coisas
que eu mais amava. Elas sabiam como manter raízes firmes no chão, enquanto lançavam-
se para o céu. Mesmo nas grandes cidades, nunca vivi longe de árvores. Agora, sentia-me
imensamente aliviada ao vê-las, e o quarto 47 precisava de qualquer alívio que eu
pudesse obter.
O jantar chegou e continuou na bandeja, praticamente intacto. Tudo o que havia ali
era morto: sopa enlatada e rala, carne dura e parca, vegetais cozidos além do ponto, pão
branco fatiado, compota de fruta industrializada, o tipo de refeição detestável, que nos
deixa inchados e ainda famintos.
Aborreci-me ao perceber que até este hospital, tão elogiado, servia refeições que
lembravam um restaurante barato, e decidi organizar meu próprio suprimento de
alimentos pela manhã.
Havia um cinzeiro sobre o criado-mudo. Eu sabia que deveria ignorá-lo, mas fumei
um cigarro e, então, saí para o corredor, para me distrair um pouco.
Havia um adesivo na porta do meu quarto, onde constava meu nome e, sob este, o
do dr. Lennox. Isso pareceu-me esquisito, como se dividíssemos o quarto. As portas dos
dois quartos adjacentes estavam abertas.
Em um deles, vi um homem gordo sentado na cama, conversando com dois
visitantes. Exceto por sua cor, que me pareceu quase tão roxa quanto seus pijamas, ele
parecia em bom estado. No outro quarto, porém, o paciente apresentava uma palidez
assustadora. Estava deitado e imóvel em seu leito, parecendo tão frio e frágil quanto uma
lasca de gelo.
Será que ainda aguardava para ser operado, ou isso já acontecera ? Na verdade,
imaginei se estava vivo ou morto. Mais adiante, uma enfermeira saiu apressada de um
quarto e deixou a porta aberta para trás, permitindo-rne um vislumbre de uma mulher
desgrenhada e ligada a tubos, rosto amarelado, cabelos como um ninho de pássaros e ar
de desamparo terrível.
O modo nada natural como apertava suas rnãos magras causou-rne desconforto.
Achei que meu lugar era em outro país, sendo forte, apta e normal, exceto pelo curativo
em minha perna. Será que eu estava encenando na vida real uma versão daqueles sonhos
pavorosos, nos quais saímos do elevador no andar errado, saltamos do trem na estação
incorreta e nos perdemos irremediavelmente para sempre ? O que, afinal de contas, eu
estava fazendo ali ?
"Por favor, recolha-se ao leito até às nove horas", disse a enfermeira da ala,
materializando-se de repente ao meu lado. "E melhor repousar bastante". Eu assenti. Sim, o
leito. Não havia mais nada para fazer, exceto, talvez, recolher meus pertences, ir para casa
e não participar daquilo. Contudo, a tentação durou pouco. Além disso, eu já havia
assinado um formulário, prometendo pagar todas as despesas hospitalares; era tarde
demais para mudar o rumo das coisas. Fui para a cama, tomei meus remédios herbáceos
e homeopáticos furtivamente, como um dependente de drogas administrando uma dose, e
comecei a ler.
Ouvi uma batida na porta e um homem entrou, antes que eu tivesse chance de
responder. Seu rosto era tão amarrotado quanto suas roupas, ele parecia extremamente
cansado e fedia a tabaco. Pensei que era um visitante que entrara no quarto errado ou,
mais provavelmente, um paciente recém-chegado que saltara no piso errado - mas não,
na verdade aquele era o anestesista, que vinha para tomar meu pulso, auscultar meu
tórax, fazer-me tossir e indagar algumas questões.
Embora parecesse satisfeito com minha condição, eu me preocupei com a sua. Se
aparências significam algo, ele é quem deveria estar hospitalizado, não eu.
Alguns minutos após sua saída, uma enfermeira entrou também sem avisar, trazendo
comprimidos para dormir e uma dose de laxante.
Recusei ambos. Contudo, ela insistiu em me dar o so-nífero, para que eu pudesse
dormir com o ruído do tráfego, em suas palavras. Pensei em lhe dizer que a intenção real
era me 'apagar' por aquela noite, mas não queria me afirmar, tão rapidamente, como
uma paciente difícil.
Assim, engoli o Mogadon e apaguei as luzes. Vi pela janela, cujas cortinas fechara
apenas parcialmente, os topos das árvores, negros contra o céu noturno de Londres, que
nunca é muito escuro, nem mesmo no auge do inverno, e os ramos entrelaçados evocaram
uma leve recordação, que consegui trazer ao primeiro plano de minha lembrança, após
algum tempo.
Então, lembrei. Os ramos lá fora lembravam o plátano de Hipócrates, na ilha de
Cos, um gigante muito antigo, mais parecido com um bosque muito unido e circular, com
uma única árvore, com seus galhos maciços repousando sobre colunas quebradas e outros
pedaços da construção em ruínas.
E uma árvore extraordinária, com a presença poderosa de uma pessoa sábia e
venerável, que compreendeu o segredo da vida e a considerou maravilhosamente simples.
Supõe-se que Hipócrates lecionou sob aqueles galhos, exceto que a árvore não é
velha o bastante para isso. Ela, porém, combina com a lenda. Além disso, quem sabe
como um plátano divino e mágico se renova, quem sabe se a imensa árvore que hoje
cobre toda uma praça com sua sombra não começou como um único broto originário do
tronco moribundo daquela árvore de Hipócrates ?
A recordação da árvore trouxe consigo um fluxo abundante de imagens, todas elas
ligadas aos santuários de cura da Grécia. Eu vi os três terraços do majestoso templo de
Esculápio de Cos, e a fonte curativa de água cristalina, fluindo eternamente do declive do
monte; vi a paz e beleza de Epidauros, umbigo do mundo. Depois, meu cinema interno'
produziu a imagem de meu centro de cura favorito, o pequeno e discreto Amphiaraion (ou
"Anfia-reon"), perto de Atenas, escondido em um vale profundo, ao lado de um córrego.
Ruínas, canto de pássaros, pinheiros escuros, um carpete de anémonas na primavera.
Acima de tudo, a atmosfera calma e reconfortante de um lugar onde a cura era possível.
Deitada em meu leito hospitalar de alta tecnologia, com múltiplas alavancase
polias, fui tomada pelo anseio de uma forma simples e tranquila de medicina, que tratasse
a pessoa como um todo, não apenas a doença. Já discuti isso muitas vezes com amigos
que trabalham ern vários rarnos da medicina alternativa; agora, quando minha
necessidade pelo enfoque alternativo era maior que nunca, descobri-me abandonada no
campo oposto.
Para reconfortar-me, reconstruí cuidadosamente o Amphiaraion por tiásde minhas
pálpebras fechadas, com seu pequeno templo e teatro abertos para o céi e para a catarse,
risos e lágrimas. Fantasiei que dormia ai; em um cubículo de pedra, levada por ervas e
pelo murmúrio do riacho a um estado de incubatio, e que, pela manhã, um sacerdote-
curandeiro escutaria meu sonho, que cederia um diagnóstico ou até mesmo uma
prescrição (como ocorre com tanta frequência na psicoterapia)...
Certamente, eu não receberia uma droga que inibe a atividade onírica. Depois
disso, eu dormiria.
Logo cedo, na manhã seguinte, em vez de um sacerdote-curandeiro silencioso,
despertei com a invasão de meu quarto por uma enfermeira que falava alto. Depois de
meu sono nada natural, ainda aborrecida e grogue, fiquei me perguntando por que ela
gritava, por que implodia em meu espaço íntimo como se fosse minha inimiga ? Depois,
dei-me conta de que minha cirurgia ocorreria hoje, 13 de dezembro, dia de santa Lúcia,
abundância de luz na escuridão, um dia nada mim para uma cirurgia. Contudo, a
enfermeira já injetava o medicamento pré-operatório em meu braço e logo afundei em um
profundo vácuo sem fundo, suave e negro.
Readquiri a consciência no outro lado do vácuo, com duas enfermeiras dando
tapinhas em meus braços e chamando meu nome em voz muito alta. Minha mente logo
adquiriu foco, mas quando tentei pedir água, minha fala estava tão arrastada que elas
não me entenderam.
Eu não lembrava nada da operação. Meus dentes frontais doíam. Será que o
anestésico afetava meu rosto ? Depois, outros tipos de dor manifestaram-se, dos dedos dos
pés para cima. O grosso curativo em minha perna direita dificultava os movimentos, mas
eu não deveria me movimentar, de qualquer forma. Aceitei analgésicos, quando me
ofereceram.
As horas passaram, naquela névoa confusa. Rostos apareciam e desapareciam.
Hudie apareceu brevemente, parecendo ansioso, tentando sorrir, sem sucesso, apenas
contraindo seu rosto.
Recebi flores, pedi a Hudie para providenciar muitas frutas, pão de centeio e iogurte
sem sabor. Ele partiu em busca dos alimentos. Fiquei ali, não totalmente de volta ao meu
corpo, uma vez que a unidade de corpo e consciência não havia sido restaurada. O
anestésico causara algo horrível a mim, porque podia sentir minha consciência quase que
alienada de meu corpo, nem livre, nem presa a ele, uma sensação de desorganização
completa.
Depois, porém, a dor física e o desconforto mental sumiram, enquanto uma onda
de serenidade irracional e impressionante pareceu cair sobre mim. Ali estava ela
novamente, a convicção de que, no fundo, tudo estava como deveria, sem nada a
lamentar ou com que se preocupar, e eu não podia explicar aquele momento injustificado
de felicidade, assim como não podia explicar meu sinal maligno na perna.
O dr. Lennox apareceu, sorrindo de modo tranquilizador. Ah, sim, tudo correra
bem. Não, ele não descobrira nada alarmante. "Conseguimos detectar a tempo e já
tiramos tudo. Não há nada com que se preocupar", ele disse.
"Farei o enxerto de pele daqui a seis dias, já que a probabilidade de ser assimilado
é melhor depois desse período. Depois, você poderá se concentrar em sua real
recuperação". Como sempre, odr. Lennox falava com muita clareza, com a pronúncia
cristalina de um professor de dicção. Concluí que muitos de seus pacientes deviam ser
surdos, estúpidos ou ambos.
Somente depois percebi que a dicção perfeitamente modulada do dr. Lennox era,
acima de tudo, totalmente impessoal, servindo para manter a distância e a formalidade.
Afinal de contas, quem podia proferir um discurso emocional para um relógio falante ?
Porém, só descobri isso mais tarde. Naquele momento, em meu estado de confusão
pós-operatória, senti-me contente por seu tom de voz moderado, por saber que ele me
livraria de meus problemas. Ele demonstrou solidariedade por minha dor - e me disse que
as enfermeiras me forneceriam analgésicos à vontade.
"O que me perturba mais", eu falei, "é que não sei por que tive melanoma e, assim,
não seio que fazer para evitá-lo no futuro, além de fugir da exposição solar".
"Bem, obviamente você deve evitar carcinógenos, embora isso seja muito difícil,
hojeemdia"'
Eu esperava que ele me mandasse parar de fumar, mas isso não aconteceu. "Bem,
então, será que posso fazer algo para... reforçar minhas defesas ? Será que eu deveria
seguir alguma dieta especial, por exemplo ?"
Ele negou, com a cabeça. "A dieta não tem nada a ver com câncer. Apenas
consuma alimentos bons e nutritivos para aumentar sua resistência. Isso é tudo".
"Você já percebeu a comida horrível que servem aqui ?", perguntei.
"Ah, eu já vi pior. E você não ficará aqui muito tempo".
Uma vez que ele não tinha mais conselhos para mim, comecei a cogitar novamente
sobre sua dieta. Será que esse homem tinha uma, será que comia, santo Deus ? Um
cirurgião pálido e emacia-do e um anestesista acinzentado e exausto não formavam uma
equipe muito encorajadora. Imaginei como seria o patologista.
Minha preocupação principal, porém, era comigo mesma e, apesar de toda a dor e
desconforto, eu me sentia bem, além de grata. Eu achava que era sorte o fato de ter tido
câncer em um ponto de fácil detecção, em vez de apresentar um tumor sinistro e profundo,
que poderia causar danos irreversíveis sem um único sintoma, antes de ser descoberto. Eu
me safara desta. Com as técnicas maravilhosas de enxerto de pele, talvez minhas cicatrizes
nem fossem tão perceptíveis.
Os cinco dias seguintes fundiram-se em um bloco único e disforme. Dias e noites de
dor e mais dor, confinada à cama, sentada ou deitada de costas, desconfortável de
qualquer modo. As enfermeiras eram jovens e agradáveis - alemã, francesa, índia, uma
das índias Ocidentais e uma chinesinha miúda e graciosa de Hong Kong que era uma
fonte inesgotável de sorrisos.
Amigos re-vezavam-se para me fazer companhia. Pat, com sua voz suave e sua
inteligência escocesa aguçada, foi especialmente gentil com seu tempo. Finalmente, após
vinte e cinco anos de amizade, quase tivemos tempo livre suficiente para discutir todos os
assuntos que desejávamos.
O telefone ao lado da cama foi minha salvação. Eu precisava de contato com o
mundo lá fora, para evitar a sensação de estar totalmente confinada e dominada pelo
sistema. Não me sentia tão dependente e indefesa desde meus primeiros anos de vida.
Teria sido muito fácil entregar os pontos e regredir para a passividade completa.
Hudie vinha todos os dias, ou até duas vezes por dia, cheio de ansiedade e tensão.
Tentei acalmá-lo e enchê-lo de minha convicção de que tudo estava nos devidos lugares,
apesar das aparências, mas depois de alguns dias percebi o quanto era esquisito confortá-
lo, em vez de ele a mim. Se eu tivesse sentido medo, será que ele teria se encarregado de
me confortar ou teríamos afundado juntos no pânico ?
Meu quarto parecia um cruzamento de floricultura e fruteira, e eu comia frutas dia e
noite. Tentei, também, comer parte das refeições do hospital, já que estava pagando caro
por ela, mas tudo continuava obstinadamente horrível e cada vez mais salgado. Minha
queixa resultou em uma visita da enfermeira-chefe, uma loira de pele rubra, forte e com
maquiagem pesada, em um uniforme lilás com gorro da mesma cor. Em menor escala, ela
poderia ter sido uma fadinha para decorar o topo da árvore de Natal; com suas
dimensões reais, era um pouco alarmante.
"Eu soube de sua reclamação", ela disse. "Você acha mesmo que a comida é
salgada demais ?"
Se não achasse, oh fada da árvore, será que teria reclamado ? Minha resposta,
porém, foi apenas: "Sim, não consigo comê-la, já que vem mais sal que comida".
"Isso é esquisito", foi a resposta pensativa. "Dois dias atrás pedi que as cozinheiras
pusessem mais sal na comida".
"E para que isso ?! Sempre podemos acrescentar sal, mas é impossível removê-lo! E
quanto aos pacientes com hipertensão, que não deveriam ter sal na dieta ?"
"Ah ?", foi o comentário surpreso. "Muito bem, direi para diminuírem o sal. Espero
que, exceto por isso, você esteja satisfeita".
Seria absurdo continuar aquela conversa ou imaginar por que a administração não
levava mais a sério a questão nutricional. A única coisa sensata a fazer era comer mais
duas maçãs.
A enfermeira-chefe lilás seguiu-se um homem de jaqueta impermeável azul, um
padre. Ele apresentava o tipo de rosto gentil e ansioso que combina corn pessoas formais
e previsíveis. Primeiro, eu não sabia quem ele era, depois não sabia por que estava ali, até
perceber, finalmente, que o padre visitava rotineiramente todos os pacientes católicos.
Conversamos sobre amenidades por algum tempo. Então, ele perguntou sobre a
igreja que eu frequentava normalmente. Precisei admitir que não ia regularmente à igreja.
Isso obviamente o desagradou, e pareceu ainda mais surpreso quando lhe contei que não
era ateia nem agnóstica, mas preferia tratar sozinha de minha própria salvação.
"Ah, mas isso não é possível!" Ele não reconheceu a citação e, é claro, não havia
motivo para estar familiarizado com os ensinamentos de Buda. "Todos precisamos da
ajuda da Igreja para levarmos uma boa vida. Será que este não é o momento certo para...
rever sua situação e... voltar ao seio da igreja ?"
Eu sorri e não falei nada, de modo que ele mudou o rumo da conversa.
"Pode ser difícil pensar nessas coisas agora. Ouso dizer que você sofreu muito, antes
de chegar ao hospital".
"Ah, não, padre. Eu estava bem e bastante feliz, mas tudo está mudando
rapidamente. Depois que a gente entra na faca..."
"Pode parecer assim", ele disse, com ardor, "mas os cirurgiões estão fazendo o
possível e sempre pioramos, antes de melhorarmos. É claro, agora você está imaginando
por que Deus permite a doença, sofrimento ou mesmo a morte. Devo dizer que a resposta
para essas perguntas é muito difícil, de modo que, se você quer me perguntar por que isto
está lhe acontecendo..."
Errado novamente, padre - pensei. Por que você não me pergunta, primeiro, se
desejo lhe indagar algo ? Senti um pouco de afeto e pena pelo homem. Ele era ruim no
que fazia e claramente incapaz de se comunicar além do nível mais básico de adulto para
criança.
Assim, respondi: "O senhor não precisa se preocupar comigo. Não estou
questionando ou culpando o Poder Superior pelo câncer. Suspeito que esta doença me
aflige porque é parte do meu padrão e porque preciso aprender algo que não aprenderia
de outro modo".
Abençoado homem, pensei com surpresa, que me fez formular uma vaga convicção
íntima pela primeira vez, ajudando-me pelo fato de ser totalmente inútil. "Sabe, uma santa
disse, certa vez: 'Tudo o que me acontece vem d'Ele, que é meu amigo'.
Creio que ela tinha razão. E o senhor ?", perguntei, sem mencionar que o autor da
frase era um místico muçulmano do século XIII.
Sem uma palavra, o padre ajoelhou-se. Nossa, eu pensei, isso é um exagero! Será
que ele acha que também sou santa ? Mas não, ele não estava me reverenciando, e sim
decidindo acabar com nosso encontro desajeitado recitando o Pai Nosso em favor de uma
de Suas filhas, com as mãos unidas na altura do nariz e disparando palavras como balas.
Orei também. Após o amém, levan-tou-se rapidamente e se apressou em sair do
meu quarto.
As noites eram horríveis. Em grande parte do tempo, a dor em minha perna vencia
o efeito combinado dos soníferos e analgésicos. Contudo, quando eu conseguia cair no
sono após dois surtos de dor torturante, os sonhos vinham com rapidez e clareza.
Muitos deles envolviam o oceano e suas criaturas. Em um, vi um golfinho falante,
encapsulado em um cubo enorme de água marinha. Ele pediu-me para nadar ao seu
lado, para poder ensinar-me a mergulhar nas profundezas e depois saltar alto no ar.
Em outro sonho, eu salvava um número imenso de animais marinhos de cores vivas
do dono de um restaurante, que não percebia que essas eram criaturas mágicas, não os
ingredientes de uma sopa de frutos do mar. Meu inconsciente chegou a inventar um bote
cinza e plano, que começou a deslizar suavemente sobre a água, tão logo embarquei nele,
impulsionado por meios invisíveis.
Mergulhar, voar, deslizar - a imensa liberdade do mar era exatamente o que eu
precisava para compensar a natureza cativa e árida de minha realidade.
2 Animar. Estatura inconsciente que tepxesenta a parte sexual oposta de cada
indivíduo; Jung Henomi na :al estrutura de finimíi no homem e tusiimis na mulher (rota da
tradutora).
Consigo recordar apenas um sonho que retratava minha doença e tratamento. Seu
herói era um jovem alegre, minha "outra metade", meu animvs.- Eu o cumprimentei com
alegria e, depois, ele foi atacado por homens que usavam roupas e toucas brancas -
cirurgiões ? -, que deceparam sua perna direita e o deixaram deitado no chão
Furiosa, eu os ataquei e descobri que não apenas suas roupas, mas também seus
corpos eram feitos de papel; tais personagens não eram mais que bonecos recortados,
frágeis e irrelevantes.
Também descobri que eu conseguia restaurar a perna decepada do jovem e o
deixava inteiro novamente. Apesar deste final feliz, o sonho deixou-me levemente
assustada. Eu o recordei e, então, tratei de varrê-lo de meus pensamentos.
Tive também outros sonhos que, sem dúvida, continham mensagens relevantes que
eu mandava para mim mesma, mas essas eram perturbadas por enfermeiras que
invadiam rudemente minha consciência, no fim de seu turno da noite. Apenas a garota
índia despertava-me sem alardes.
Todas as outras entravam no quarto com a energia barulhenta de capitães de
hóquei, acendendo todas as luzes, lançando decibéis suficientes para despertarem os
mortos. Isso me incomodava, a temperatura gélida era desagradável e a tentativa de me
lavar na cama era uma farsa deprimente. Para coroar tudo, depois de ser acordada por
vozes altas, de me arrumar de modo insatisfatório e ser colocada sentada na cama, eu era
abandonada por uma hora ou mais, sem desjejum ou qualquer outro consolo.
Sentada ali, na escuridão da manhã, pensei no dr. Leboyer, o pioneiro do parto sem
violência, o primeiro homem a privilegiar a necessidade do bebé por nascer em um
ambiente silencioso, aconchegante e semi-escurecido, não com as luzes brilhantes e a
cacofonia das salas-de-parto hospitalares.
Onde estava o dr. Leboyer para adultos, eu cogitei, alguém que pudesse ensinar
médicos e enfermeiras a permitirem um renascimento suave para pacientes hospitalizados,
especialmente quando estão entre o sono e a vigília ? Por que essas enfermeiras apenas
tomam a temperatura de meu corpo, mas não de minha psique, por que causam tamanho
choque na passagem de um para outro estado de consciência ? Por que nem mesmo
conheciam o que os gregos já conheciam três mil anos atrás ? - indaguei a mim mesma,
antes de comer outra maçã.
Logo cedo, no dia dezenove de dezembro, duas enfermeiras submeteram-me
novamente à rotina pré-operatória. Era o dia do enxerto de pele, quando o dr. Lennox
transporia um grande pedaço de pele de minha coxa esquerda, conhecida como
'doadora', para minha panturrilha direita. Desta vez, porém, a sedação foi incompleta e eu
tinha uma vaga consciência de estar sendo levada de maca por um longo corredor.
Cheguei até mesmo a vislumbrar o anestesista acinzentado com um gorro verde
esquisito. "Ah, é você de novo!", eu disse lentamente, com voz arrastada. "Por favor, não
machuque meus dentes". Ele abriu a boca, mas não ouvi sua resposta. Um de nós dois
caiu em uma nuvem branca e macia que abafava tudo, e não recordo mais nada. Depois,
eu estava em meu quarto novamente.
Hudie entrou em foco. "Está tudo acabado", ele disse, e tocou meu rosto. Eu assenti.
Havia incontáveis espacinhos vazios em meu cérebro e eu não tinha certeza se algum dia
seriam preenchidos novamente. Era como se parte das ligações, em meu mecanismo
cerebral, houvesse sido cortada, de modo que eu não conseguia fazer certas conexões ou
dar algumas respostas.
Um amigo me alertara que o membro doador poderia doer mais que o receptor
enxertado, e ele tinha razão. Minha coxa esquerda doía desesperadamente, estava febril,
ardida e sensível. Agora eu sabia, pelo menos em parte, como era ser esfolada viva. Se
uma área relativamente pequena, da qual foi retirada a pele, podia doer deste modo
infernal, como seria um esfolamento maior ?
Perversamente, minha memória me apresentava cada imagem relevante que eu já
vira, principalmente de mártires sagrados esfolados completamente, e de um quadro
particularmente assustador de um pequeno museu belga, de médicos em trajes pretos
esfolando um cadáver esverdeado.
O tormento de ser separada de um pedaço de minha pele era tão profundo que
cheguei a duvidar que um dia voltasse a descascar uma laranja.
Dor, dor. Agora, rainhas duas pernas tinham curativos grossos e apertados, dos
dedos dos pés às virilhas; imaginei que o curativo na perna esquerda era uma precaução
contra a formação de coágulos sanguíneos. Uma estrutura de metal no pé do leito
mantinha as roupas de cama para cima, formando uma tenda quadrada que impedia
qualquer peso sobre minhas pernas machucadas. Eu não conseguia me mover nem virar
de lado.
Certo dia, ao perceber que eu estava deprimida, a enfermeira chinesa deu um
tapinha carinhoso em minha coxa esquerda. Foi o mesmo que derramar óleo fervente
sobre a perna.
A dor foi tão fulminante que explodi em lágrimas. A menina agitou-se e precisei
afastar sua mão, já que ela parecia prestes a dar um tapa ainda mais forte de conforto e
solidariedade. Depois, expliquei-lhe meu gesto brusco.
O dr. Lennox vinha ao meu quarto todos os dias, até duas vezes, em algumas
ocasiões. Suas visitas tinham natureza social, uma vez que, por enquanto, ele não queria
tocar em meus curativos. "Deixemos que a natureza cumpra sua parte", ele disse, "sem que
as mãos contaminadas de cirurgiões e enfermeiras interfiram no processo de cura".
Imaginei por que suas mãos estariam contaminadas.
Será que ele não as lavava antes de examinar um paciente ? Entretanto, não fiz a
pergunta em voz alta. Em retrospectiva, percebo a importância desses encontros bem-
humorados que tivemos. Eu agia como a paciente boazinha e corajosa - pelo menos, na
época eu me via assim -, e o dr. Lennox sem dúvida gostava de me encontrar cooperativa,
sem desespero e, acima de tudo, sem demonstrações emocionais. Eu aceitava seu jogo e
ele me recompensava com comentários encorajadores sobre meu progresso e sobre meu
futuro sem câncer.
No dia vinte e um, passei meu tranquilo período da madrugada contemplando o
solstício de inverno, aquele prelúdio perfeito para o Natal, e, até mesmo, uma possível
alternativa não-consu-mista para este - afinal, ambos dizem respeito ao nascimento da luz
e fim da escuridão.
Naquela madrugada totalmente escura e pesada, fechei meus olhos para
experimentar o negrume, imobilidade, vazio e silêncio da noite e, depois, o momento em
que a lenta ascensão se inicia, simplesmente porque não é possível descer mais ainda.
Pensei na natureza cíclica da vida, que nos aprisiona em uma cela de polaridades -
vida-morte, bom-mau, escuri-dão-luz, alegria-tristeza - e não nos permite qualquer
liberdade, até aprendermos a conciliar os opostos, a nos colocar no centro e encontrar o
equilíbrio.
Eu ainda precisava encontrar um ponto de equilíbrio em minha armadilha atual, a
polaridade da doença saúde, e confiava mais na teoria que na prática.
Contudo, eu sabia que precisava passar pela parte negra deste ciclo, sem fingir que
não havia escuridão, mas sim luz.
Perguntei ao dr. Lennox se precisaria de tratamento adicional. Ele respondeu-me
que não, que havia removido totalmente a área do câncer, que não haveria quimioterapia
ou radioterapia. Porém, eu precisaria ter muito cuidado, até a completa recuperação de
minha perna - o enxerto de pele era tão frágil que a mais leve batida poderia prejudicá-lo.
"Quanto tempo levará, até a cicatrização completa ?"
"Demorará um pouco. No momento, não consigo fazer uma previsão, mas você
precisará ter muita paciência".
Isso me soou agourento. Alguns dias depois, quando ele removeu o pesado curativo
pela primeira vez, para examinar o enxerto, fechei meus olhos. Naquele momento, eu
tinha a impressão de que minha perna direita pertencia ao dr. Lennox e, exceto por mantè-
la dentro dos limites do meu corpo, eu não queria ter nada a ver com aquele membro. A
dor terrível e aparência provavelmente assustadora da perna faziam com que eu me
distanciasse dela o máximo possível.
"É melhor mesmo você não olhar", o dr. Lennox disse, trocando o curativo. "Para
mim, sua perna está muito bem, mas esta não seria sua opinião. Devo dizer que sua
condição geral é excelente e sua recuperação é surpreendente".
Ah, não era à toa que eu consumia meus remédios homeopáticos e de ervas três
vezes por dia, mas não lhe disse isso. Ele poderia ter pedido que eu parasse de usá-los, e
eu não queria enfrentar uma discussão.
Na tarde da véspera do Natal, liguei para minha mãe, na Alemanha. Disse-lhe,
com voz vibrante, que meu telefone de casa estava com algum problema e que eu estava
ligando de um hotel. "Então épor isso que você não atendeu quando liguei!", minha mãe
disse, em voz baixa e entrecortada.
"Tentei ligar para lhe contar que estou com um resfriado enorme". Eu podia
perceber seu esforço para falar, com o tórax congestionado. Ela parecia profundamente
deprimida. "Estou sozinha, aqui", ela continuou.
"Todas as minhas amigas saíram da cidade e até meu médico está longe, esquiando
na Suíça".
Ah, meu Deus. Mamãe estava desolada e eu não podia ajudá-la, não podia pegar
o próximo avião com Hudie para cuidá-la e celebrar o Natal em família sob a árvore da
cidade, apreciando a neve que caía. "Mas o médico deve ter deixando alguém responsável
por seus pacientes! Por que você não ligou para ele ?"
Mamãe provou-me, uma vez mais, que, mesmo em situações extremas, sempre
aderia a seus princípios, ao declarar: "Não serei examinada por um médico jovem e
inexperiente que nem me conhece. Você sabe o quanto detesto mudanças e coisas que não
conheço".
As frustrações de uma vida inteira me irritaram brevemente, enquanto eu colidia -
pela milésima vez - com sua intransigência. Mas, depois, percebi o lado tragicômico da
rigidez invencível de minha mãe: certamente, ela repreenderia Deus, no céu, por ter criado
um universo espantoso e em constante mudança. Por enquanto, contudo, ela ainda
precisava lidar com este mundo. Assim, eu lhe disse: "Querida, por favor, não banque a
boba.
Ligue para o médico já, apenas para ficar tranquila. Você não quer contrair uma
doença longa e sofrida, não é ?"
Depois de mais alguns argumentos e contra-argumentos, súplicas e recusas, eu
desliguei, frustrada. Tudo bem, eu tinha câncer e ela apenas um resfriado, mas mamãe
estava com oitenta e um anos, e morava sozinha.
Então, vi-me envolvida no misto nada abençoado de sentimentos que se formou ao
longo de muitos anos e consistia de amor, ressentimento, carinho, culpa, impaciência e
ternura, além de mais algumas emoções inconfessas, e chorei pelo tempo, muitos anos
atrás, em que eia era jovem, eu era uma criança e éramos ambas saudáveis e na curva
ascendente da vida, distantes da sombra da morte.
Mais tarde, naquela noite, Hudie e eu celebramos o Natal com uma vela decorada
e alguns ramos de pinheiro. Fizemos um brinde, para dar alguma leveza àquela ocasião
obviamente nada festiva. Logo depois, minha perna direita explodiu em dor, especialmente
na área do tornozelo. "Ah, sim, é claro", disse a enfermeira que respondeu ao meu
chamado de pânico, "o álcool dilata seus vasos sanguíneos e isso pode ser bem
desagradável. Não lhe disseram que não deveria beber ?".
Portanto, beber também estava fora de questão. Por todo o hospital pessoas iam e
vinham, eu ouvia vozes e risadas. A enfermeira da ala veio anunciar que no dia de Natal
eu seria levada até o pátio, de cadeira de rodas, para ver a árvore que haviam montado.
No dia seguinte, porém, ela esqueceu-se disso e passei o dia de Natal na cama,
escutando fracamente os cânticos de Natal à distância. Entre os muitos cartões que eu
recebera e que decoravam meu quarto, o que mais se destacava trazia a mensagem: "O
Natal que passei em um hospital foi um dos melhores que já tive". Minha amiga querida e
sensível... Aposto que o hospital não era como este em que eu estava.
O jantar de Natal foi excessivamente tradicional. Hudie, como meu convidado
autorizado, sentou-se com sua bandeja apoiada nos braços de uma cadeira especial para
refeições, semelhante a um cadeirão usado por crianças.
Estávamos ridículos, escondidos atrás de nossas bandejas, que ainda continham um
chapéu comemorativo de papelão e um rojão para estourarmos. Todo aquele arranjo era
absurdo, de modo que demos muitas gargalhadas e deixamos a maior parte do pudim.
Por volta das cinco da tarde, o padre passou por meu quarto para dar-me uma
bênção de Natal. Parecia constrangido e se recusou a ficar mais um pouco. Depois disso,
não nos encontramos mais. De qualquer maneira, nunca nos encontramos em qualquer
nível que realmente importasse.
Finalmente, já bem tarde, para coroar o dia, Catherine e John chegaram, trazendo
presentes e um bar portátil - uísque, água com gás, gelo, copos, nozes e tudo o mais. Em
deferência aos meus vasos sanguíneos sensíveis, recusei as bebidas - e me senti como se
tivesse feito ura enorme sacrifício.
Cada um deles sentou-se em um lado da minha cama, de modo que conversar com
ambos ao mesmo tempo era como assistir ténis pela televisão. Eles já haviam me
visitadoantes, mas uma vez que era dia de Natal e estavam cheios de histórias de
vitalidade e planos para o Ano
Novo, a visita serviu como um tónico poderoso, como um antídoto para a falsa
realidade da vida no hospital. Depois que saíram, eu decidi que, no geral, este havia sido
um Natal bem razoável.
Na manhã seguinte, uma enfermeira muito musculosa chegou para me ajudar a
sair da cama. Eu teria desmoronado no chão, se ela não tivesse me segurado, já que
minhas pernas haviam se transformado em papelão.
A enfermeira ajudou-me a sentar em uma cadeira reclinável junto à janela.
Sentindo-me como um bloco maciço de dor, achei estranho que, embora meu câncer não
me causasse dor ou problemas, o tratamento me infligia ambos, em grande abundância.
Comentei isso com o dr. Lennox, quando este passou por meu quarto em sua ronda
diária. Ele sorriu e me perguntou se eu conhecia a diferença entre um caso médico e um
caso cirúrgico.
Ah, não ? Bem, se você está muito doente ao entrar no hospital e os médicos a
fazem melhorar, então você é um caso médico, mas se chega em bom estado e fica muito
doente, então é um caso cirúrgico. Isso me pareceu incrivelmente correto, e simpatizei com
ele, por me contar uma piada que ia contra sua profissão. Apenas depois eu percebi que
mais um assunto sério fora reduzido a uma piada.
O dr. Lennox me disse que eu teria alta em dois dias, desde que providenciasse
ajuda durante as vinte e quatro horas, em minha casa. Hudie dispôs-se imediatamente a
passar algum tempo comigo. Senti muita gratidão por isso - ir para casa tornara-se algo
urgente, de repente.
O dr. Lennox anunciou suas condições. Eu não sairia nem realizaria tarefas
domésticas até ser liberada para isso. Acima de tudo, eu deveria proteger meu enxerto de
pele contra lesões, como se fosse porcelana frágil. Por algum tempo, eu não poderia
colocar qualquer peso sobre minha perna direita, e a dor continuaria. Contudo, ele me
visitaria regularmente, para ver como eu estava e para trocar meus curativos.
Minha última noite no hospital foi a pior. Além da dor ardida habitual, eu me sentia
como se um torno tivesse sido preso em meu tornozelo direito e, depois, apertado cada vez
mais, fazendo com que eu sentisse vontade de cortar minha perna fora. A enfermeira da
noite era azeda, idosa e fria, a primeira antipática a cruzar meu caminho naquelas três
semanas. Ela tentou ser mandona, mas quando ordenou que eu parasse de fazer 'manha',
minha paciência esgotou-se.
"Se você não percebe a diferença entre manha e sofrimento real, não deveria ser
uma enfermeira", eu lhe disse. "Por favor, afrouxe o curativo em meu tornozelo direito e, se
não tem autoridade para isso, ligue para meu cirurgião e peça instruções. Não suporto
mais a pressão!".
Depois de alguma resistência, ela foi até o telefone, voltou e abriu a borda de baixo
do curativo, dizendo que o dr. Lennox permitira apenas aquilo.
"Mas a pressão ainda é horrível, quase tanto quanto antes!"
"Então não é causada pelo curativo. O que está causando isso é o próprio enxerto, e
é melhor você se acostumar, porque não vai melhorar. Pergunte ao dr. Lennox, se não
acredita em mim".
Mas que droga, eu pensei. Que mulher sádica e desagradável, tentando assustar-
me. Entre períodos de sono leve, olhei para os topos das árvores da Bryanston Square pela
última vez. Eles eram a única coisa que eu lamentava deixar.
Na manhã seguinte, percebi claramente meu total desamparo. Eu ansiava por partir
dali voando, mas meu corpo não conseguia mover-se; precisei de uma cadeira de rodas
para ir até o elevador e, depois, até o carro onde Hudie me aguardava.
Um porteiro e a efervescente enfermeira jamaicana, cuja maior ambição de vida era
ficar presa em um elevador com Robert Redford, conseguiram colocar-me dentro do carro,
meio deitada no banco traseiro.
Meu Deus, como eu iria fazer, longe da proteção do hospital1 Hudie dirigiu devagar
e com grande cuidado, mas ainda assim eu achei o mundo externo ao hospital, que
passava pelas janelas do automóvel, horrivelmente acelerado e agressivo. Em resumo,
senti medo.
Finalmente, estávamos em minha rua, com suas casinhas vitorianas para operários
e três magníficas tílias. Hudie ajudou-me a sair do carro e a entrar em casa. Nunca ansiei
tanto pela capacidade de levitar; nunca fui tão desajeitada, com o apoio apenas de minha
perna esquerda e a bengala de metal cedida pelo hospital.
Meus dois pontos dolorosos - a ardência da carne viva em minha coxa esquerda e a
pressão aguda e excruciante em minha perna direita - deixavam em mim uma onda de
indignação.
Como eles - o dr. Lennox, o hospital e toda a hierarquia médica - esperavam que
eu lidasse com este problema ? Deitei-me no sofá e, apesar da dor e cansaço, tentei
recapturar aquela certeza serena de que tudo estava exatamente como deveria estar.
Mas, agora, eu não conseguia recuperá-la plenamente. Eu sabia que ainda era
válida, mas tal crença tornara-se quase inacessível, como se os acontecimentos
intensamente físicos dos últimos dias tivessem bloqueado a porta para meus recursos
internos.
"Você não vai acreditar nisso", Hudie disse da cozinha, "mas sua margarida dourada
ainda está desabrochando e parece perfeita!".
Assim começou minha convalescença, com total dependência e imobilidade quase
completa. Eu podia subir e descer as escadas apenas sentada, e precisava de toda minha
força de vontade para dar apenas alguns passos. Era como se, de repente, eu tivesse
envelhecido muito, com meu corpo atingido por alguma transformação geriátrica
instantânea, enquanto o resto de mim continuava com minha idade normal, indignado e
perplexo.
Pela primeira vez em minha vida, meu corpo comandava o espetáculo ou, em vez
disso, decaía e o paralisava, com a mente subjugada pela matéria.
Hudie mostrou-se incansavelmente útil e generoso. Ele conseguiu, de algum modo,
conciliar suas tarefas de manutenção da casa e atenção às minhas necessidades com seu
trabalho, e me alimentava e cuidava com zelo comovente.
Ele era o equivalente masculino de uma boa mãe, sem as imensas falhas desta.
Depois de alguns dias, porém, a tensão da situação começou a se mostrar. Minha dor
constante e meu desamparo tornaram-me irritadiça e nervosa. Eu me sentia como um feixe
vivo de terminais nervosos expostos a uma tempestade de areia e cheguei a perder a
capacidade de rir de mim mesma.
Hudie, por outro lado, sofria por me ver tão fraca e desconsolada. Para ele, eu
sempre fora forte, auto-confiante e capaz de resolver problemas, e a mudança patética
que me ocorria ameaçava seu próprio senso de segurança. Assim, tivemos várias noites
tensas e dolorosas, em que eu me ressentia de tudo o que ele dizia e com a maior parte
das coisas que ele fazia.
Eu também sentia gratidão profunda por sua ajuda, mas o amor e apreciação
desapareciam sob nossa tensão e rancor mútuos. Durante o dia, quando eu tinha tempo
para mim mesma entre visitas de amigos, muitas vezes sentia-me perturbada por meu
comportamento com relação a Hudie e, além disso, pelo modo como o sofrimento físico
cancelara minha disciplina interna e regras de conduta.
Eu percebia isto claramente e não gostava do que via. Isso não combinava com
minha auto-imagem como alguém cheia de defeitos, mas também equilibrada, bem-
educa-da e forte frente a dificuldades.
De onde surgira, subitamente, esta criatura intratável, fraca e irracional ? Era como
se meu ser tivesse sido invadido por um alienígena indesejável. Não me ocorreu que,
talvez, minha auto-imagem precisasse de um ajuste.
O dr. Lennox visitava-me uma ou duas vezes por semana, sempre tarde da noite, a
caminho de casa. Ele mudava os curativos em minhas duas pernas, ouvia minhas queixas,
fazia-me caminhar, dava conselhos e partia.
Oficialmente, eu ainda me recusava a ver meu enxerto cutâneo, mas certa vez,
enquanto ele preparava o novo curativo, arrisquei um olhar rápido, com os olhos
parcialmente fechados.
O que vi era uma nojeira em carne viva, horrorosa e cheia de sangue, mais
parecida com alguma coisa tirada de um açougue do que com uma parte de meu corpo.
Meu choque foi tão grande que não consegui pronunciar uma palavra, mas naquele
exato momento o dr. Lennox comentou, em sua dicção lenta e clara: "Isto está realmente
bonito.
Estou muito satisfeito". Muito abaixado e próximo da minha cirurgia pavorosa, ele
não podia ver meu rosto aterrorizado e prosseguiu, com prazer: "Amanhã você pode
começar a sair para a rua. Dê alguns passos lá fora e, depois, vá um pouco mais longe a
cada dia".
"Mas não consigo colocar meu pé direito em nenhum calçado! Por que está tão
inchado ?"
"Porque precisei remover algumas glândulas linfáticas e agora a linfa não consegue
circular. Daqui a alguns meses ela descobrirá outrocaminho, mas, enquanto isso, o pé
ficará inchado. Você não tem calçados velhos que possam esgarçar e acomodar seu pé ?".
Uma coxa esfolada, uma perna que parecia carne moída e um pé inchado - será
que alguém poderia me dizer quantos efeitos horrendos adicionais o tratamento do dr.
Lennox me causaria ?
Ainda assim, eu me senti desarmada por sua dedicação óbvia, ao vir trocar meus
curativos pessoalmente, em vez de enviar uma enfermeira. Assim, não reclamei, mas pedi
emprestado um par de enormes sapatos para neve, do tipo usado por esquimós, cal-cei-os
e lutei para sair à rua. Ah, Deus, minha perna doía! Depois de alguns metros eu voltei,
torturada pela dor e aflição.
No dia seguinte, porém, eu me forcei a cobrir dez metros e, depois, vinte, lenta e
dolorosamente, apoiando-me em minha bengala, temendo uma queda. Vizinhos que me
conheciam de melhores tempos paravam para me incentivar ou demonstrar solidariedade.
Finalmente, consegui chegar à esquina e fui além desta; mais tarde, consegui ir até
o rio, que agora parecia fantasticamente belo - radiante, brilhante, barulhento com suas
gaivotas, patos e um casal de gansos canadenses, eternamente em movimento.
Todos os dias, eu encontrava diversas mulheres que também se moviam lentamente
e carregavam bengalas de metal exatamente como a minha. Elas, porém, eram muito
idosas e gordas, e me olhavam como se eu fosse uma impostora, jovem demais e com
aparência muito saudável para se arrastar por aí de forma tão atormentada. Estava claro
que eu não pertencia à sua comunidade, e os sorrisos que eu lhes dava não eram
retribuídos.
Contudo, esta experiência me ensinou outra coisa.
Durante aquelas semanas pavorosas, quando eu conseguia apenas mancar com o
auxílio da bengala, senti-me perplexa pelo número de pessoas incapacitadas, mancas ou
com outras deficiências, que encontrava diariamente na pequena área que podia cobrir.
Elas provavelmente estavam lá o tempo todo, mas eu nunca as percebera antes.
Depois, recordei do tempo, um ou dois anos antes, em que eu usei um aplique de
cabelos, principalmente por diversão. Na época eu também tomei consciência, de repente,
de inúmeros outros usuários de apliques e perucas, homens e mulheres, que andavam por
todo o centro de Londres com seus substitutos artísticos de cabelos naturais como sempre
haviam feito, sem dúvida, muito antes de minha própria percepção ter-se tornado sensível
a tais artifícios.
Nada como a experiência compartilhada para ampliar nossa percepção. Pensei
que, quando eu chegar um pouquinho mais perto da iluminação total, talvez perceba que
o mundo está cheio de Budas.
Mas, nesse meio-tempo, eu tinha mais o que fazer. Precisava assumir uma parte
maior das tarefas domésticas e liberar Hudie; escrever cartas leves e bem-humoradas para
minha mãe, agora recuperada e contente, como se eu estivesse muito bem e a pleno vapor
no trabalho.
Finalmente, conforme instruções do dr. Lennox, eu precisava começar a usar o
transporte público. Ah, Deus, o horror de subir em um ònibus ou trem com uma perna
frágil como porcelana, que não se dobrava no tornozelo, mas lançava raios furiosos de
dor em todas as direções; de ser mais lenta e desajeitada que todos; de sair do metro na
Leicester Square e parar, paralisada, na parte de baixo das escadas-rolantes que zuniam
para cima em uma velocidade impossível.
Eu entendi como era ser o membro mais fraco e doentio de um rebanho de veados,
ficando sempre para trás e caindo, até ser livrado do sofrimento pela boca de um leão. E
percebi, também, que nunca mais seria impaciente, como costumava ser, com os lentos,
desajeitados e desamparados.
Tive dois sonhos consecutivos que pareciam transmitir a mesma mensagem. Em um
deles, eu tentava cozinhar uma galinha inteira na panela muito pequena que geralmente
uso para ferver um ou dois ovos. O pássaro parecia miseravelmente apertado e não
cozinhava direito.
No segundo sonho, um peixe grande e bonito, uma truta, agitava-se dentro de
minha tigela plástica amarela e, finalmente, saltava para fora dela. Eu o colocava de volta
e o peixe pulava fora novamente.
Percebi que ele tentava cometer suicídio, em vez de ter que suportar o confinamento
raso da tigela. Espaço insuficiente, escassez de liberdade - pensei, concluindo que meus
sonhos eram comentários sobre meu estilo de vida atual.
No dia seguinte, o dr. Lennox declarou que, em meados de fevereiro, eu poderia
voltar ao trabalho.
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CAPÍTULO 3
As semanas seguintes pareceram um anticlímax. Eu me sentia como o estúpido
lenhador que teve três desejos concedidos por uma fada e percebeu, tarde demais, que
pedira as coisas erradas. Se pelo menos eu pudesse andar novamente, voltar a trabalhar e
levar uma vida normal outra vez - esses haviam sido meus desejos, mas, embora tivessem
se concretizado, tudo permanecia envolvido em uma bruma cinzenta, agora.
Nada parecia certo, nada tinha o paladar de antes, nada trazia prazer ou mesmo o
simples contentamento. Minha energia precisava ser juntada com toda a força de vontade,
e se esgotava rapidamente.
A concentração ainda era imperfeita. Com frequência, minha memória agar-rava-se
a uma palavra comum ou eu parava no meio de uma sentença, porque o que planejara
dizer fugira por algum buraco negro.
Queixei-me disso com John, que recordou sua própria experiência com cirurgias e
me aconselhou a não me preocupar, dizendo que os efeitos de duas anestesias gerais em
cinco dias demoravam bastante para passar. Ele garantia que o dano em meu cérebro não
era irreversível.
A dor física estava menor. Minha coxa esquerda, a doadora, agora tinha uma nova
camada de pele hipersensível. Ela continha listras rosadas e vermelhas, como se tivesse
sido marcada com uma escova de aço gigante em brasa. O enxerto em si mesmo ainda
era de um roxo avermelhado e irregular, pontuado por marcas e crostas, tão feio e nojento
que eu sentia náusea sempre que o via.
Contudo, estava praticamente curado e exigia apenas uma faixa elástica para
proteção. Isto já era um progresso. Ainda assim, eu não me sentia confortável com minha
perna esquerda.
Eu nem mesmo a via como se me pertencesse, porque às vezes ela se comportava
de modo estranho, como se fosse independente do resto do meu corpo. Eu podia estar
caminhando normalmente e, subitamente, meu tornozelo era agarrado - ou esta era
minha impressão - e apertado com crueldade, de modo que eu olhava para baixo,
alarmada, para ver o que estava acontecendo.
Esses surtos de pressão terrível eram tão assustadores que, uma ou duas vezes, eu
esperei ver uma mão sinistra de aço apertando meu tornozelo, garras subindo do mundo
inferior ou por entre as tábuas do assoalho, assim como nos pesadelos da infância, para
tomar de volta a perna que não me pertencia mais.
Mencionei esses incidentes - sem a fantasia da mão de aço -ao dr. Lennox, quando
fui vê-lo para um check-up, mas este apenas recomendou que eu tivesse paciência. Ele
também achava que eu deveria usar meias elásticas, e a simples menção dessa peça de
vestuário fez com que eu me encolhesse.
Eu realmente tentei usá-las, mas isso apenas piorou a pressão em minha perna.
Nossos encontros cada vez mais espaçados eram agradáveis e tagarelas. Eu ansiava por
provar-lhe que estava indo bem, progredindo conforme o esperado e obedecendo todas as
regras; o dr. Lennox recompensava-me com doses generosas de aprovação e palavras
confortadoras.
Ele ainda tinha aparência pálida e desnutrida, e ainda usava o mesmo terno
deselegante com o qual me recebera pela primeira vez.
O que mais me surpreendeu, nas ocasiões em que nos vimos, foi a admiração cheia
de carinho com que ele olhava para o enxerto cutâneo. Este olhar parecia-se com o de um
artífice orgulhoso, contemplando uma obra bem acabada que agradava aos olhos e
cumpria uma função.
Minha mãe costumava olhar assim para um abajur recém terminado ou para algum
fino bordado , no auge de sua habilidade com as agulhas, o que era correto e adequado.
Contudo, o que me aborrecia, com relação ao dr. Lennox, era que ele nunca examinava
ou sequer olhava para o resto do meu corpo, como se todo este fosse apenas um apêndice
incidental para seu adorável enxerto de pele. Acontece que eu não o considerava adorável,
e lhe disse isso certo dia, sentada na mesa de exames.
"Meu enxerto é horrível e está inflamado. Quando é que a cicatrização terminará e
ele terá uma aparência mais civilizada ?"
"Ah, a aparência vai melhorar, mas lentamente. Pode levar um ano, ou mais".
"Tanto tempo assim ? Ah, que decepção! E olhe, minha perna direita ainda está
muito mais fina que a esquerda - será que com o tempo isso também vai melhorar ?"
O dr. Lennox fez uma pausa, antes de responder: "Não, temo dizer-lhe que não
será mais como a outra. Não é possível. Eu precisei tirar muita carne da panturrilha e
puxar muito o enxerto até a parte traseira. Assim, como você pode ver, a perna não pode
voltar à sua forma original, infelizmente".
Meus olhos encheram-se de lágrimas. Senti o choque da traição. Ninguém me disse
que, além da monstruosidade do enxerto, haveria também tanta mutilação, sem uma
razão muito boa, no meu entender. Afinal, a parte lateral de minha perna, da qual o dr.
Lennox tirara um pedaço, estava a uma distância considerável da mancha maligna.
Será que ele realmente cortara tanto, e tão profundamente ? Respirei fundo algumas
vezes, para acalmar-me, mas isso não funcionou e as lágrimas rolaram por meu rosto. O
dr. Lennox afastou-se da mesa de exame, como se temesse uma contaminação emocional.
Olhei para minha pobre perna direita, tão fininha e medonha, e fui engolfada pela
autocomiseração.
"Sinto muito por chocá-la assim", o dr. Lennox disse, como se me repreendesse.
"Achei que você havia percebido que uma ex-cisão ampla deixaria marcas". Percebi que
meu pesar por uma questão não-médica o aborrecia, e recordei reações similarmente
insensíveis de médicos masculinos no passado, por problemas muito menores.
Enquanto enxugava meus olhos, refleti que todos aqueles homens eram incapazes
de compreender que uma mulher podia ser quase tão apegada à integridade de seu corpo
quanto à sua sobrevivência, e que esta não era uma questão de vaidade, mas algo muito
mais profundo, ligado à importância de ser, como uma função. Será que ele conseguia
demonstrar mais empatia, eu cogitei, se uma paciente sentia pesar pela perda de um seio
ou pela destruição de seu rosto ?
Eu lhe contei, em voz insegura: "Quando entrei na meia-idade, consolei-me com a
ideia de que, não importando o que viesse, eu ainda teria boas pernas - afinal, pernas
duram muito mais que rostos.
Mas agora, não tenho sequer este conforto. Assim, sabe..."
"Ah, mas você está viva e melhorando. Será que isso não é mais importante ? As
pessoas não perceberão que sua perna direita é um pouco mais fina que a outra. Você
pode usar meias com textura ou botas. Muitas mulheres usam botas na maior parte do
ano, não é ?"
Eu assenti. Uma vez que provavelmente não demonstraria qualquer interesse por
pernas femininas, a menos que por razões profissionais, presumi que o dr. Lennox já tivera
conversas semelhantes com outras pacientes aflitas. Não havia mais nada a dizer. Pelo
menos por enquanto, minha deformação continuava escondida sob a faixa elástica, e eu
não estava preparada para pensar além deste estágio.
No trabalho, eu recebia toda ajuda possível - realizava tarefas leves, tinha
permissão para chegar mais tarde e sair mais cedo para evitar o tráfego mais pesado,
além de receber lembretes constantes para não exagerar. Tanta gentileza e carinho me
comoviam.
Pela primeira vez em minha vida adulta eu estava aprendendo a aceitar ajuda, em
vez de manter presa ao mastro minha bandeira de auto-suficiência. Contudo, em um outro
nível, aquele tédio generalizado se espalhou para meu trabalho, até que tudo começou a
parecer sem vida e fútil.
As palavras não tinham ressonância, pareciam ocas e não deixavam eco. Todos os
assuntos com os quais eu precisava lidar pareciam estranhamente idênticos e
intercambiáveis; e saber que o tédio estava dentro de mim, e não nos temas que eu cobria,
não aliviava tal sensação.
Com Hudie, a situação também não era das melhores. Agora que eu me
recuperara, ele não via razão para não voltarmos a desfrutar nosso tempo livre juntos,
passando fins-de-semana em minha casa, em um estado de pacífica domesticidade.
Contudo, isto era o que eu menos conseguia fazer.
Era como se aquilo que me levava adiante e satisfazia no passado tivesse perdido o
sabor; ainda assim, eu não sabia pelo que ansiava agora. Achei que precisava de ação,
passeios, pessoas, mais estímulos, menos placidez. Uma certa tensão acumulava-se, em
virtude de nossas diferentes necessidades. Talvez devêssemos passar menos tempo juntos.
"Nada está indo bem", queixei-me a Catherine, enquanto jantávamos juntas. "Não
me sinto confortável com minha vida e ela não me serve mais. O que está acontecendo ?
Será que é uma segunda crise da meia-idade ?
Tive uma grande crise aos quarenta anos, com tudo o que alguém que entra na
meia-idade tem direito a sentir, de modo que dificilmente precisaria passar por outra. Mas
estou realmente no meio de uma crise, e não consigo lidar com ela".
"Você passou por momentos muito difíceis e voltou ao seu antigo estilo de vida num
piscar de olhos, sem fazer uma pausa após a convalescença. Como espera sentir-se feliz e
bem disposta ?"
"E verdade. Mas não é apenas isso, é pior. Sabe, quando as coisas estavam
realmente difíceis, o que me segurava era uma imensa sensação subjacente de... suponho
que de amor, confiança e paz. E agora, quando tudo está bem melhor, sinto-me realmente
mal, e não consigo recapturar aquela sensação. E como se alguém tivesse me tirado o
chão. Acho que preciso de ajuda".
"Estive pensando por que você carrega tudo isso sem qualquer ajuda", Catherine
falou, com suavidade. "O que você tem em mente ? Análise ?"
"Ah, não. Algum tipo de terapia. Sei que não posso ser sua cliente, já que somos
íntimas demais para isto, mas estive pensando em John. Você poderia perguntar-lhe se ele
tem horário para mim ?"
John aceitou-me para terapia, e parecia muito satisfeito com isso. Ele era um bom
amigo, mas não íntimo o bastante para evitar o distanciamento necessário, e, em meu
estado, eu não estava disposta a levar meus problemas para um estranho. Além disso,
John era extraordinariamente sensível e intuitivo; eu sabia que ele detectaria qualquer
tentativa minha de fugir de pontos difíceis, muito antes de eu perceber que fazia isso.
Em resumo, John era um amigo em quem eu confiava. Quando liguei para marcar
minha primeira consulta, senti-me como se me livrasse de um fardo; pelo menos, eu pedia
ajuda e apoio psicológico, reconhecia minha necessidade, em vez de fingir auto-
suficiência.
Percebi que, durante toda a minha vida, eu fora alguém 'para cima', capaz de lidar
com tudo, bem organizada e forte, feliz em oferecer, mas incapaz de aceitar ajuda. Eu
pensava, com frequência, que dar era não apenas mais nobre, mas também muito mais
fácil que receber.
Agora, entretanto, esta atitude era tão falsa quanto as demonstrações de força de
um gorila que bate com violência no próprio peito. De qualquer forma, quando cheguei ao
consultório de John, tão amplo e confortável quanto ele mesmo, senti-me como uma
levantadora de pesos exausta, prestes a deixar cair uma tonelada de chumbo.
John, usando um de seus imensos pu-lôveres e de vez em quando espalhando suas
anotações por toda a sua cadeira, era um abrigo seguro, não apenas porque nas oficinas
e em seu curso de meditação eu aprendera sua linguagem, tanto em palavras quanto em
termos de visualização, mas porque ele possuía a capacidade para compreender e sentir
empatia com a dor e sofrimento - e, ao mesmo tempo, para colocá-los em uma outra
perspectiva, mais alta, que mudava com sutileza e rapidez o significado da experiência.
Ainda assim, apesar de toda esta vantagem inerente a ele, senti dificuldade para explicar-
lhc por que estava ali, precisando de ajuda.
"E como afundar lentamente em frustração", eu disse. "Sinto que não estou
ocupando o lugar que me pertence nesta vida. Desculpe-me se isto lhe parece um pouco
arrogante, mas não consigo dizer de outro jeito. E, o lugar que me pertence. Desde que
você não me pergunte que lugar seria esse, porque não tenho ideia, exceto que não é
onde estou agora".
"Tudo bem, E onde você está agora ?". Quando não respondi, ele sorriu e fez uma
careta que sugeria: "Você já sabe o que vou dizer agora" e, então, falou: "Você consegue
visualizar algo, com relação à sua situação atual ?".
O quadro interno apareceu tão logo a pergunta foi formulada. "Ah, sim, é uma
imagem de uma parábola hindu, que li alguns anos atrás. Ela fala sobre um pobre
mendigo, que pede esmolas sentado à beira do caminho, em seu tapete imundo, dia após
dia, ano após ano.
Ele não consegue ganhar muito, mas ainda sonha em enriquecer e levar uma vida
melhor. Depois de algum tempo, ele morre ali, na beira da estrada, tão pobre quanto
sempre foi, e, depois de ser cremado, os aldeões queimam seu tapete e revolvem a terra
onde ele costumava sentar-se.
Alguns centímetros abaixo da terra, eles encontram uma fortuna em ouro, cem vezes
mais do que o mendigo teria precisado para realizar seu sonho".
"E você se identifica com o mendigo ? Neste caso, seria melhor nos aprofundarmos
nesta imagem. Você pode visualizá-la em mais detalhes ?"
Eu podia, de um modo possível apenas para aqueles familiarizados com técnicas de
imagens mentais. A imagem apareceu sobre a tela de minhas pálpebras fechadas, com
rapidez e clareza, mas, ainda assim, diferentemente de uma imagem em uma tela de
televisão, era mais sentida que vista.
O que eu percebi naquele instante foi a imagem de uma estrada poeirenta, em uma
paisagem sem vida e desinteressante, que me lembrava da periferia de Cartum, no Sudão,
para mim um lugar de máxima desolação e tristeza.
Minha escolha inconsciente de local chocou-me. O que eu realmente sentia sobre
minha situação ? Será que era tão mim assim ? O mendigo estava lá, primeiro como um
homem de pele escura e seminu, o arquétipo do mendigo; depois, ele deu lugar a mim
mesma, estendendo minha mão e esperando.
"Quase ninguém passa por aqui", relatei a John.
"E aqueles que vêm me dão apenas as moedas de menor valor".
"Será que o mendigo deveria mudar de lugar ?", ele perguntou-me, baixinho.
Não, não. A questão era - por que mendigar, afinal ? Recordei a imagem do
mendigo com a facilidade com que lembramos de um filme já visto muitas vezes, depois
voltei à minha própria imagem e vi que nem ele nem eu éramos aleijados ou
incapacitados; não havia razão para não me levantar, começar a andar e levar minha vida
adiante, em vez de esperar que meu sustento viesse de fora, na forma de pequenos e
míseros donativos.
Enquanto mantinha a imagem de mim mesma como mendiga, no espaço diminuto,
porém infinito, por trás de minhas pálpebras, eu também podia ver aquela fortuna em
ouro, enterrada a cerca de cinquenta centímetros sob a terra; uma pilha adorável e
reluzente de ouro.
"O tesouro está lá, bem debaixo do tapete", eu informei a John. "Terei que escavar
para encontrá-lo, sob a superfície, em vez de... mendigar na poeira". Cavar fundo - mas
isso era o que o golfinho de meu sonho no hospital tentava ensinar-me a fazer. Talvez eu
tenha passado tempo demais na superfície, limitada demais com minha mente.
"A que profundidade está o ouro ?", John indagou.
"Ah, a cerca de cinquenta centímetros". Eu fiz uma pausa, surpresa com uma
daquelas 'coincidências' estranhamente corre-tas, que tornam tão gratificantes essas
imagens mentais. Falei, atónita: "Sabe John, esta é a mesma distância entre meu cérebro e
meu coração. Será que estive funcionando no nível errado o tempo todo ?"
Voltei à minha cena mental, tomando o lugar do mendigo no tapete. Naquele
instante, uma porta marrom apareceu, com batente e tudo, sustentada por meios invisíveis
alguns centímetros acima do nível do chão, bem na minha frente. Eu a descrevi para John,
comentando - com a parte do observador de minha consciência - que uma porta
simbolizava uma transição de um para outro estado.
"Você gostaria de abrir a porta ?", ele perguntou. "Acho melhor não". "Por quê ?"
"Porque se eu a empurrar com minha testa, ela voltará e me atingirá na cabeça.
Mas espere - isso é loucura. Por que, afinal, eu deveria abri-la com a cabeça ? Será
que estou transformando tudo em um exercício intelectual ? Será por isso que estou
sentada sobre o ouro, sem saber que está lá ?"
"Bem, será que não ?" - e ambos rimos.
Foi assim que tudo começou. Durante as semanas seguintes, compareci
regularmente ao consultório de John. O clima distanciado e investigativo da primeira
sessão não durou muito.
A medida que avançávamos, eu senti muita dor e pesar por meu passado, que
irromperam com força e rancor. Bem, é claro que mergulhar fundo tinha um preço;
provavelmente por isso mesmo eu evitara me aprofundar, com tanta determinação.
John, porém, era receptivo, bem-humorado e muito lúcido, com uma inteligência
tão aguçada que me oferecia o tipo certo de segurança para permitir-me escavar parte
daquele assunto pendente e da dor reprimida do meu passado.
Perdas, desilusões, traições, esperanças frustradas, oportunidades perdidas que na
época eu simplesmente empurrara para baixo do tapete, agora ressurgiam, com mais
vigor ainda, exigindo reconhecimento e vivência emocional - acima de tudo, sentimentos e
experiência.
Depois de tantos anos sem chorar, senti-me perplexa com o volume de lágrimas que
precisavam ser derramadas. John sentava-se junto a mim, ouvindo em silêncio ou fazendo
a pergunta certa no momento certo, oferecendo-me lenços de papel e apoio infinito, e
sempre o amarei por isto.
Aquela decisão que eu tomara aos quatro anos, de não perder a cabeça ou
demonstrar raiva, acabou sendo um boicote a mim mesma, já que levou a um
distanciamento completo de todas as minhas emoções negativas - eu era uma Alice de
meia-idade em um País das Maravilhas sombrio e triste, nadando em um lago de
lágrimas.
"Revolver todos esses assuntos é como descascar uma cebola que, em vez de ficar
menor, cada vez aumenta mais", eu disse a John, certo dia. Era primavera e o aroma dos
arbustos floridos entrava pela janela.
"Será que chegaremos ao centro da cebola ? Durante meus estudos de psicoterapia
eu trabalhei tantas questões que poderia jurar que estava em dia com meu material
inconsciente, mas olhe só o que andamos desencavando - materiais intocados durante
vinte e cinco anos ou mais".
"Acho que não podemos chegar ao centro da cebola", John disse. "No curso normal
dos acontecimentos não podemos fazer isso, mas podemos chegar mais perto. Tudo
depende do quanto você está disposta a explorar".
Eu não tinha certeza. Uma parte de mim queria continuar explorando, queria chorar
até secar as lágrimas, descobrir o que era válido e o que era falso em minha vida e
descartar o que fosse obsoleto e inapropriado.
Uma outra parte, porém, sabia que, ao fazer isso, eu demoliria grande parte do
meu estilo de vida e precisaria fazer mudanças imensas em meu trabalho, valores e
relacionamentos. Será que eu queria isso ? Será que poderia lidar com tamanho tumulto ?
Algo em mim decidiu que era melhor parar de investigar. Esta não foi uma decisão
consciente.
Reconheço isso apenas agora, enquanto contemplo seus efeitos. De qualquer modo,
quando John e Catherine saíram de férias, interrompemos nossas sessões e, depois que
voltaram, nem sei por que - não sei ? - eu não as reiniciei. Convenci-me de que as
revelações que eu já havia obtido pelo trabalho com John precisavam ser assimiladas,
antes de reassumirmos nossos encontros.
Essas descobertas permaneceram comigo; na verdade, elas me permitiram seguir
em frente, adaptar-me e fazer ajustes. E, uma vez que fiz a escolha errada, adaptando-me
e me ajustando, em vez de explodir de uma vez com aquele falso teto, a única coisa que
mudou, gradualmente, foi a qualidade de meu sofrimento - que se tornou mais silencioso e
controlado, quase razoável.
Eu sabia, agora, que tinha imensas ambições não realizadas, que ao deixar de
escrever eu estava bloqueando qualquer criatividade que possuísse, que minha crescente
frustração e letargia haviam sido causadas por mim mesma; que, na verdade, não
importando onde eu tentasse colocar a culpa por não ocupar meu lugar de direito na vida,
não havia culpado, exceto eu mesma.
Agora, eu sabia de tudo isso, o que me causava muito desconforto. Se eu era
realmente responsável por tantos dos meus problemas, será que também poderia ser
responsabilizada por todos eles, direta ou indiretamente e, se assim fosse, será que me
veria forçada a agir ? Talvez, mas ainda não era a hora. Primeiro, eu precisava ficar bem e
voltar com força total.
Em algum momento, nesse período, eu decidi comer peixe e carne vermelha
novamente, depois de oito anos com uma dieta lacto-vegetariana. Imaginei que meu corpo
clamava por algo, e a oferta de proteína animal parecia uma providência razoável. Isso,
porém, não cessou minha ânsia.
Ânsia pelo quê ? Eu não sabia, mas lembrei do campeão de jejum de um dos
contos de Kafka, que quebra todos os recordes e jejua até a morte, não porque deseja,
mas porque ninguém lhe oferece a comida pela qual anseia.
Naquele verão, as dores-de-cabeça horrendas que me perturbavam
intermitentemente ao longo dos anos pioraram e se tornaram mais frequentes, vindo em
surtos semelhantes a enxaqueca, acompanhados por náusea e por uma necessidade
irresistível por dormir.
Eles duravam quase um dia inteiro, impedindo-me de comer. No passado, tais
ataques ocorriam depois de noitadas alegres com Hudie, cuja capacidade para beber era
tão grande quanto sua hospitalidade; uma ou duas vezes as dores foram causadas por
pequenas quantidades de chocolate.
Agora, porém, elas vinham até mesmo depois de algumas taças de vinho tinto
suave, bebidas lentamente com a refeição. "Deve ser um caso de velhice galopante",
queixei-me com Catherine, "ou então me tornei alérgica a vinho; seja o que for, não
suporto mais essas dores-de-cabeça.
Acho que terei que mudar para cerveja ou água mineral". Catherine horrorizou-se
com esta possibilidade. Considerávamos o vinho como parte essencial de um estilo de vida
civilizado; será que eu teria que desistir deste prazer ?
Por enquanto, prometi a mim mesma apenas reduzir ainda mais meu consumo.
Não me ocorreu que meus ataques de mal-estar poderiam ser indicadores de sofrimento
por meu fígado e que deveriam ser investigados. Afinal, exceto pelas dores-de-cabeça, eu
estava bem.
Exceto, também, por uma série de abscessos dentários que me incomodaram
durante todo o verão. Eu já sofria com isso havia alguns anos, mas agora eles também se
tornavam mais frequentes. Meu dentista, que sabia de minha antipatia por antibióticos,
prescrevia-os apenas como último recurso, e falava com pesar sobre os problemas de
gengiva da meia-idade e sobre os sulcos que acumulavam resíduos até a formação de um
abscesso pela infecção. Tudo isso era melancólico e, novamente, não me ocorreu que
tantos episódios de enfermidade, tão próximos uns dos outros, poderiam ser um sinal de
perigo, apontando muito além de dentes e gengivas.
Sendo tão organizada, eu pensava nas partes individuais de meu corpo com rótulos
separados, de modo que dentes, fígado, cabeça e enxerto cutâneo no lado de um câncer
não se coordenavam, exceto por cortesia de minha pele, que cobria tudo isso.
No fim de junho, quando consultei o dr. Lennox para um exame de rotina, este
mostrou-se entusiasmado com o estado da minha perna. "Por favor, continue usando a
faixa elástica, até a cura completa no meio do enxerto e a queda da casca", ele disse. "Esta
é a parte mais vulnerável, e precisa ser protegida. Como está sua saúde geral ?"
"Mais ou menos. As vezes sinto um cansaço enorme, a ponto de me sentir tola por
estar tão exausta. É o pior tipo de fadiga que já senti na vida. Toda minha energia
simplesmente evapora-se".
"Então, você está trabalhando demais, novamente. Por que você não dorme cedo,
pelo menos algumas noites por semana ? Você provavelmente precisa de mais horas de
sono do que pensa. Além disso, seria bom tirar férias - você merece um repouso de
verdade, este ano".
Ah, Deus, parecia que ele não escutava, não entendia que minha queixa era sobre
um tipo incomum de cansaço, que persistia apesar de eu dormir cedo - era inútil tentar
argumentar. Não importando o que eu dissesse, o dr. Lennox continuava convencido de
que eu estava ótima. Ele me disse que não era preciso marcar mais consultas até o fim do
ano.
"Mas ainda faltam cinco meses!"
"Bem, se houver necessidade, você deverá ligar imediatamente. Mas se tudo correr
bem, dezembro será um bom momento para a consulta".
Otimo, eu pensei, marchando animada pela Harley Street. O dr. Lennox era um
homem consciente, extremamente dedicado. Se me dizia que estava tudo bem, não havia
motivo para preocupação.
Em setembro, Hudie e eu fomos à França por duas semanas. Nossas tensões
haviam desaparecido e conseguíamos conviver em harmonia novamente. Agora que eu
me recuperara, ele não precisava se mostrar constantemente alerta, preocupado com
minha sobrevivência, e eu não o atacava mais com meu mau-hu-mor causado pela dor e
desconforto.
Como sempre, optamos pelas estradas tranquilas do interior, enquanto passávamos
pelos vales de Loire e Dordogne até Auvergne, e permanecemos em hotéis remotos, onde
os únicos sons noturnos eram os de corujas ou dos riachos murmurantes. Passamos três
noites em um hotel isolado, que dava para um grande lago cercado por montes
verdejantes, um lugar de grande paz reparadora.
Na primeira manhã, eu fiquei na janela, contemplando a água parada do lago.
Andorinhas voejavam sobre as abas dos telhados, o sol tinha um brilho esbranquiçado por
trás da bruma da manhã e os guizos de vacas invisíveis que pastavam no outro lado do
lago chacoalhavam suavemente.
Naquele momento, meu cansaço permanente subitamente desapareceu, e fui
inundada por um senso de puro prazer, como se saísse de uma profunda depressão e
descobrisse que o mundo era incrivelmente belo e tinha cores vivas como um arco-íris.
Novamente, pela primeira vez em seis meses, a vida pareceu boa, certa e promissora. Eu
tinha a sensação de ter renascido.
Aquele estado de espírito revigorado e renovado continuou, após meu retorno para
casa. Eu via Catherine regularmente e John ocasionalmente, mas não reassumi a terapia
com ele. O status quo parecia suficiente, por enquanto; e, além do mais, parecia bastante
similar ao modo como eu vivia antes da minha doença e isso, eu pensei, era um feito e
tanto.
Naquele outono, descobri o livro recém-lançado de Rosemary e Victor Zorza, A way
to die, sobre sua filha de vinte e cinco anos, Jane, que desenvolveu melanoma e morreu
por causa deste cinco meses depois. Após três cirurgias, quimioterapia e dor aguda e
insuportável, Jane finalmente encontrou a paz e uma morte digna em um hospital para
doentes terminais.
Essas instituições são mais comuns a cada dia, oferecendo equipes altamente
treinadas, que usam técnicas especiais e muito carinho para ajudarem pessoas à beira da
morte. O livro, que considerei muito comovente e angustiante, serviu tanto como uma
homenagem a Jane quanto como um clamor pelo aumento no número de hospitais para
este tipo de paciente.
Eu o li com fascinação horrorizada e compaixão. Eu pensava naquela pobre, pobre
garota, com menos que metade de minha idade ao morrer, após tanto sofrimento físico e
mental. Obviamente, seu melanoma era diferente do meu, mais grave e resistente ao
tratamento.
Além disso, eu sabia que, em uma vítima jovem, o câncer espalha-se com mais
rapidez. A doença de Jane começara com uma verruga negra e feia em seu pé direito,
espalhou-se para sua virilha direita, depois para seu abdómen, daí para a medula óssea,
quando, então, nada mais podia ser feito por ela (não me ocorreu que, mesmo nos
primeiros estágios, quando os médicos decidiram por mais cirurgias e tratamento para
Jane, eles eram incapazes de influenciar o progresso de seu câncer).
Lamentei pela garota como se fosse minha amiga, e achei que, se a primeira
cirurgia em seu pé tivesse sido mais radical, ela poderia ter sobrevivido. Pela primeira vez,
consegui olhar para minha perna mutilada sem a sensação de que o dr. Lennox usara o
bisturi com excessiva paixão.
O que me deprimiu mais foi a sensação que permeava todo o livro, de impotência
da medicina ante o câncer em geral e o melanoma em particular. A sobrevivência parecia
ser uma questão de sorte. E eu me considerava muito sortuda.
Quando um jornal inglês publicou excertos do livro, alguns leitores reclamaram,
argumentando que a trágica história de Jane poderia assustar pessoas que já tinham ou se
recuperavam de melanoma. Bem, sim, eu mesma estava assustada. Se não tivesse certeza
de minha cura, também me sentiria perturbada.
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CAPÍTULO 4
DE REPENTE, ERA DEZEMBRO. QUANTO mais próximo o fim do ano, maior era a
agitação. Eu me sentia à vontade no mundo de novo, capaz de desfrutar de tudo o que
fazia.
Sentia-me renovada, de um modo vago, mais conectada a tudo, livre do senso de
isolamento sombrio que me afetara com frequência nos últimos meses. Minha recém-
descoberta confiança e apetite pela vida cresciam dia após dia. Eu me sentia em forma,
quando visitei minha mãe na Alemanha.
Ela parecia bem, ainda que um pouco mais encolhida, e conversamos muito,
principalmente sobre o passado, sua área favorita, enquanto minhas antenas estavam
voltadas para o futuro. Ainda assim, nosso encontro foi bom e eu a deixei com relutância,
depois de três dias.
De volta a Londres, marquei minha consulta com o dr. Lennox para meu primeiro
exame, desde junho. Este ocorreu na bela manhã de 12 de dezembro, exatamente um ano
após minha cirurgia, e eu quase valsava pela Bond Street, cheia de otimismo. Eu gostava
de olhar as lojas caras daquela rua, cheias de coisas belas e totalmente desnecessárias,
futilidades tolas que, ainda assim, eram uma variação agradável das coisas que eu via nas
manhãs em que ia trabalhar.
Com minha carga de trabalho, eu não podia mais olhar vitrines, nem mesmo na
hora do almoço, a menos que tivesse uma boa desculpa para vagar por Mayfair - e uma
consulta com um cirurgião era boa desculpa. "Meu cirurgião" - isto soava esquisito, como
se nenhum lar organizado estivesse completo sem um.
Ainda assim, parecia correto pensar no dr. Lennox como meu cirurgião. Já
passáramos por muita coisa juntos, ele nunca me decepcionara e, dentro dos limites
rígidos do nosso relacionamento, era quase um amigo. Pensei que talvez agora ele me
desse alta.
"Bem, devo admitir que as coisas estão muito melhores que um ano atrás", ele disse,
com um pequeno sorriso, enquanto eu me deitava na mesa de exame. "Você parece bem,
e aquela aparência cansada desapareceu".
"Sinto-me bem, na maior parte do tempo. E agora posso caminhar rapidamente,
mas não consigo manter o ritmo por muito tempo. Meu pé direito ainda fica inchado
abaixo do enxerto; incha todas as tardes, e depois dói bastante".
"E porque a linfa ainda não encontrou outro caminho, para compensar as glândulas
que precisei remover. Eu lhe disse que levaria muito tempo".
"Um outro problema é que não consigo dirigir. Meu tornozelo direito ainda está muito
rígido e dói, sempre que tento flexioná-lo. Se eu tentasse dirigir, ele provavelmente ficaria
ainda mais dolorido e eu teria que parar".
"Acho que sim. Você terá que ser paciente por mais algum tempo". Ele contemplava
novamente o enxerto de pele, com óbvia satisfação. "Parece muito melhor. Mas esta
grande crosta no meio parece que não quer sair daí, não é ? Ainda assim, ela acabará por
desaparecer, quando a lesão por baixo estiver curada.
O suprimento sanguíneo é fraco ali, bem na tíbia, por isso a recuperação é tão
lenta. Sabe, admiro você por não mexer na crosta. Eu acho que não teria tanto
autocontrole e tentaria arrancá-la".
"Parei de tirar cascas de feridas de minhas pernas quando tinha dezanos".
"Bem, suponho que os meninos amadurecem muito mais tarde. Se é que fazem
isso", ele disse. Enquanto examinava com mais atenção minha perna, voltamos às nossas
conversas brincalhonas ce sempre.
Desta vez, porém, meu bom-humorera verdadeiro e eu não fingia bom ânimo
apenas para agradá-lo. Eleestava dizendo algo lisonjeiro sobre meus próximos vinte e
cinco anos, enquanto examinava minha virilha direita, o que não fizera desde nossa
primeira consulta, treze meses antes, quando parou de falar abruptamente, deixando uma
sentença incompleta. Recordei imediatamente a história de Jane Zorza - do melanoma que
se disseminou do pé para a virilha - e meu coração deu um salto violento.
"Espero que você não tenha descoberto nada assustador", falei, em tom tão
desinteressado quanto possível.
Ele respondeu, depois de uma pausa: "Há um pequeno nódulo em sua virilha. E
bem pequeno, provavelmente apenas uma glândula linfática inflamada, mas precisamos
verificar isso". Para onde havia ido todo o meu sangue ? Senti-me gelada, e tremia desde a
mandíbula inferior até a boca do estômago, envolta em um terror que nunca sentira antes.
O dr. Lennox não oferecia nenhum conforto, uma vez que já se afastava para lavar
as mãos.
"Será que é outro... tumor maligno ?", consegui perguntar, finalmente.
"Não podemos excluir esta possibilidade. Mas, como eu disse, pode ser algo
totalmente inofensivo". Voltou-se para me encarar, dizendo-me em seu tom didático
familiar: "Não quero que você apalpe sua virilha. Deixe-a em paz. Nem mesmo a toque.
Vejamos se desaparece em duas semanas. Quero vê-la assim que passar o Natal -
é melhor marcar uma consulta com minha secretária agora". Ele deu-me um sorriso tenso,
"Acima de tudo, não se preocupe. Aproveite seu Natal".
"Aproveitar ?" Será que este homem era completamente desumano ou totalmente
sem imaginação ? "Como você espera que eu aproveite 0 Natal com esta incerteza ?
Sabendo que posso estar com problemas novamente ? O último Natal já foi ruim o
suficiente, mas pelo menos eu sabia como estava, e agora não sei!".
O dr. Lennox levantou as sobrancelhas e disse, em voz plana. "Não há motivo para
tanto alarde. Você é muito disciplinada -por que não usa sua disciplina para esquecer o
nódulo até voltar para a consulta ? Simplesmente tire isso de sua mente".
Obrigada, dr. Lennox. Feliz Natal, dr. Lennox, desejo-lhe tudo de bom. Vejo-o dia
29. Não, claro que não há motivo para alarde.
Saí outra vez para a Bond Street, mas desta vez eu me movia como um brinquedo
com a bateria no fim. Um grande torpor as-sentara-se, como um manto de neblina,
amortecendo todos os sons e movimentos. Meu corpo funcionava, mas no nível mais
baixo, com respiração superficial, olhos quase sem foco, sensação de circulação sanguínea
lenta e, no meio disso tudo, o tremor incontrolável de medo animal em estado bruto.
Vislumbrei minha imagem na vitrine de uma loja e vi um rosto pálido, com olhos sem
expressão.
Saí da Bond Street e busquei abrigo em um pequeno café. Café, torrada e cigarro:
conforto oral, carinho para o bebé de meia-idade que sofria de choque e exposição.
Exposição ao destino. Meu cérebro, como um esquilo enlouquecido, continuava saltando
de pensamento para imagem e para recordação, e refazendo o círculo. O destino de Jane
Zorza entrava em conflito com as muitas garantias de futuro livre de câncer dadas pelo dr.
Lennox; meu próprio senso de aptidão física e bom-humor, existente apenas uma hora
atrás, agora colidia com o medo escuro de que meu corpo abrigasse algum processo
hostil, que ao final o destruiria.
Aquele momento no café pequeno e sujo foi de solidão desesperadora. Até mesmo
sua atmosfera barulhenta e quente, cheirando a café e cebola frita, fluía à minha volta,
sem tocar aquele gelo e desolação em meu íntimo. Sentir tanto medo era como estar presa
dentro de um enorme cubo de gelo. Eu queria a companhia de Hudie, queria minha mãe,
Catherine e John, além de todas as outras pessoas que eu amava. Desejava tê-los à minha
volta, abraçando-me e me dizendo que tudo ficaria bem, que eles não deixariam que nada
me acontecesse. Paguei e saí do café.
Tão logo cheguei ao escritório, tranquei minha porta e, contrariando as instruções
do dr. Lennox, examinei minha virilha direita. Sim, havia ali um nódulo pequeno e duro,
em um ponto razoavelmente profundo sob a superfície, mais ou menos do tamanho e
formato de uma amêndoa.
Não doía. Se eu não tivesse procurado, jamais saberia que estava ali. Por quanto
tempo aquilo estava em meu corpo ? Há quanto tempo o nódulo estava ali ? O que
aconteceria ? Será que ele me lançaria na mesma jornada inexorável para a morte
enfrentada por Jane Zorza, apenas mais devagar, porque eu tinha o dobro de sua idade ?
Acima de tudo, pelo amor de Deus, como aquilo podia estar em meu corpo,
quando o dr. Lennox cortara um pedaço enorme de minha perna esquerda exatamente
para evitar qualquer dano adicional ?
Consegui recompor-me o suficiente para suportar o resto do dia. Entretanto, quando
encontrei Catherine depois do trabalho, em nosso bar costumeiro, despejei as más notícias
de uma vez só. O lugar estava vazio. Sentamo-nos na grande janela envidraçada, de
frente para a escuridão chuvosa lá fora, e eu podia sentir as lágrimas subindo para meus
olhos, vindo de algum ponto muito profundo dentro de mim. Além de todo o resto que este
câncer causava em mim, ele certamente me ensinara a chorar, depois de uma vida inteira
de olhos secos. Deixei que as lágrimas viessem. A primeira caiu dentro do vinho que eu
tomava. Depois de algum tempo, terminei minha história.
Catherine ficou sentada em silêncio, durante alguns minutos, e depois perguntou:
"Qual é seu maior medo ? Qual é a pior coisa que poderia lhe acontecer nesta
situação ?"
"Não a morte, você sabe disso. A morte seria como voltar para casa, mas ainda não
estou lidando com esta possibilidade. Tenho um medo terrível é de passar pela mesma
tortura vivida por aquela pobre menina Zorza e morrer, de qualquer forma - ser cortada,
remendada e cortada mais um pouco, até que nada mais possa ser removido e eles
coloquem uma cortina em torno de minha cama ou me mandem para casa. Não quero
isso".
"Claro que não. E o que você deseja ?"
Engoli um pouco de vinho para segurar a onda seguinte de lágrimas. O que eu
desejava, além de não ter câncer, uma escolha que não estava no cardápio ? "Se este
nódulo for um câncer secundário", falei lentamente, pensando em voz alta, "não quero
passar por mais nenhuma cirurgia. Eu gostaria de experimentar alguma terapia alternativa
holística, se houver alguma promissora.
E se isso não funcionar e não houver esperança, então quero ser levada para um
hospital para doentes terminais, para ser cuidada com gentileza e dignidade. Como Jane,
mas sem toda aquela tortura inútil à qual ela foi submetida".
"Eu gostaria que você não tivesse lido esse livro triste". Catherine parecia zangada.
"Ele lhe deu as piores expectativas possíveis. O que aconteceu com aquela pobre garota
não precisa acontecer com você - não existem dois casos exatamente iguais, não é ?"
‘"Não, mas mesmo assim estou contente por ter lido o livro. Aprendi muito. Ele me
fez compreender, por exemplo, por que o dermatologista e o dr. Lennox examinaram
minha virilha imediatamente, quando realizei minhas primeiras consultas; o melanoma
tende a sofrer metástase nas glândulas linfáticas, antes de se disseminar ainda mais. De
qualquer modo, estou satisfeita por ter feito meu dever de casa. Talvez, se eu tivesse um
nódulo em minha virilha um ano atrás, o dr. Lennox não tivesse operado minha perna".
"Ou então, teria cortado sua perna e sua virilha". Catherine cobriu minha mão
gelada com a sua, quente. "Olhe, se o nódulo for inofensivo, não haverá problema, e me
aborreço porque você não está considerando esta possibilidade... Você não é o tipo de
pessoa que espera pelo pior. Mas tudo bem, supondo que o nódulo seja maligno e
supondo que não exista uma terapia alternativa eficiente - você consideraria a
possibilidade de se matar ?"
"No momento, acho que eu não faria isso. Ainda sinto medo quando recordo
aquele sonho impressionante que tive, anos atrás - sonhei que havia me matado e
precisava enfrentar meus juízes no outro mundo, um tipo muito egípcio de 'outro mundo'...
e os juízes estavam furiosos, porque eu tentara escapar de alguma situação inacabada, o
que não era permitido - ainda recordo o choque de estar presa no limbo, entre vida e
morte, incapaz de permanecer em qualquer desses estados. E aqueles juízes imensos...
Pareciam com estátuas de arenito, mas falavam e moviam as cabeças. O sonho
afastou a ideia de suicídio de minha mente. Contudo, quando ele aconteceu, eu gozava de
saúde perfeita. Não sei o que diria, se estivesse com uma doença terminal. Talvez eu
suplicasse permissão para me matar".
Catherine pensou por alguns instantes. Esvaziamos nossas taças. O lugar começava
a encher-se. Ela disse, finalmente: "Se eu lhe prometer que, não importando o que
aconteça e o que você decidir, John e eu estaremos ao seu lado de todas as maneiras,
você se sentirá mais tranquila ?
Se eu prometer que não a abandonaremos sob nenhuma circunstância e a
ajudaremos a continuar neste mundo ou a sair dele, dependendo de seus desejos, você se
sentirá melhor ?"
Assenti. As palavras não eram necessárias. Meu desespero já parecia menos sólido
e opressivo. Segurei a mão de minha amiga. Ela era minha aliada fiel e destemida,
companheira de vida que não me abandonaria, assim como eu jamais a deixaria.
Naquele momento, vivenciei a amizade incondicional, ilimitada, o valor que eu mais
prezava há muito tempo, e esta me confortou imensamente.
"Obrigada", eu falei. "Espero jamais ter que lhe pedir para me trazer veneno,
lâminas cortantes ou qualquer coisa semelhante. Espero resistir até o fim, não importando
o que aconteça, mas sou grata por ter a opção de partir, com sua ajuda. Tenho certeza de
que Hudie jamais me ajudaria a acabar com minha vida. Ele faria absolutamente qualquer
coisa por mim, moveria montanhas, mas jamais me ajudaria a cometer suicídio".
"Muita gente concordaria com ele".
"Eu sei, eu sei. Hudie ainda não aceita a morte, nem mesmo em geral, e menos
ainda a minha. Você promete ficar ao lado dele, se eu morrer ? Somos muito chegados, e
ele investiu todos os seus sentimentos em nosso relacionamento. Seria difícil demais para
ele, se eu morresse".
"Bem, então é melhor não morrer. Poupe-nos desse monte de problemas. Mas é
claro que cuidaremos dele. Se Hudie é capaz de aceitar ajuda é outra questão. Você está
disposta a lhe contar tudo isso ?"
"Não por enquanto. Hoje cedo eu lhe disse, por telefone, que o dr. Lennox não
descobriu nada de errado. Se o nódulo for canceroso, podemos pelo menos ter um último
Natal tranquilo, juntos. Se for benigno, jamais lhe contarei sobre meu pânico. Na verdade,
você é a única que sabe sobre isso".
Já nessas alturas eu pensava em pares de alternativas. Se viver, se morrer - um
pesar constante de polaridades, que logo se tornaria um hábito automático.
Estranhamente, isto me reconfortava: pensar em linhas paralelas trazia ordem para
meu caos íntimo. Se eu viver, se eu morrer; era como o equilíbrio correto para patinar, um
pé na vida, um pé na morte, deslizar sobre ambos com total equanimidade, sem dar mais
importância a um ou a outro. Nem mesmo considerei a terceira possibilidade, de invalidez
longa e duradoura. O que eu sabia sobre melanoma tornava improvável qualquer coisa a
longo prazo.
Quando o barman colocou para tocar sua fita mais barulhenta, saímos e fizemos
uma refeição vagamente italiana, com melhora razoável em nosso estado de espírito.
Finalmente, nos separamos na Gloucester Road, como em muitas ocasiões
anteriores, como na noite, mais de um ano atrás, em que a ameaça de câncer me
assombrara pela primeira vez. No trem, eu contemplei o que via como a veia samurai de
Catherine: uma qualidade clara e inabalável de coragem absoluta e serenidade que, de
algum modo, coexistia com seu calor humano e carinho feminino.
Parecia uma mistura estranha, mas apenas à primeira vista e apenas se eu pensasse
em termos de 'ou/ou'. Em termos de 'e/e', que era o único modo como tentávamos viver,
visando cobrir tudo em detalhes, Catherine era simplesmente mais integrada que qualquer
outra pessoa que eu conhecesse, permanecendo no ponto mediano de suas polaridades,
permitindo que essas subissem e descessem, como uma gangorra.
Agora, porém, depois daquele dia angustiante, meditei sobre aquela qualidade de
Catherine que a ligava com os antigos mestres guerreiros do Japão - um misto de
sabedoria, habilidade, coragem destemida e graça. Este simples pensamento já me
ajudava a levantar a cabeça e a mantê-la assim, até minha próxima confrontação com o
dr. Lennox. E ainda faltavam dezes-sete dias para isto.
Consegui lidar com este intervalo de tempo operando apenas no modo 'Como se...',
agindo como se tudo estivesse bem e perfeitamente normal. O truque funcionou. Minha
farsa era ameaçada apenas quando algum amigo ou colega inocente comentava,
contente, sobre minha perceptível melhora desde o ano anterior - nada mais de pudim de
Natal no hospital, nada mais de dor.
Contudo, esses breves abalos passavam rapidamente. O que não passava era o
nódulo em minha virilha, que eu verificava com pavor todos os dias. No mínimo, ele
parecia um pouco maior. Exceto por isso, eu não tinha outros sintomas.
Em minha última manhã antes dos feriados de Natal, eu estava prestes a trancar
meu escritório quando o cartão plástico de identificação, que eu usava em uma corrente
em torno do meu pescoço, quebrou e caiu no chão sem razão aparente. É claro que
plástico pode quebrar-se espontaneamente, eu sabia disso.
Entretanto, a parte mais primitiva do meu ser, aquela que percebe estranhas
coincidências e recolhe informações telepáticas sem realmente tentar fazer isso, respondeu
com um tremor supersticioso.
Será que o plástico quebrado prenunciava o fim de minha identidade profissional ?
Será que eu estava por deixar meu escritório bagunçado e amado, com sua mistura
confusa de objetos junto ao peitoril e decorações altamente pessoais ? Emendei o disco de
plástico com um pedaço de fita adesiva e o coloquei de volta em meu pescoço. Depois,
tirei-o novamente e fui para casa.
O Natal com Hudie foi lindo, visto de fora. Por dentro, minha tensão crescia a cada
dia. Eu precisava de energia cada vez maior para manter a tampa e não gritar sobre meus
medos no máximo de minha voz.
No dia 27, um sábado de temperatura amena atípico do inverno inglês, minha
energia e autocontrole finalmente terminaram, e eu desejei desesperadamente que Hudie
voltasse para seu apartamento, para poder retirar minha máscara, urrar à vontade,
embebedar-me ou ir dormir.
Comecei a andar para cá e para lá, sufocada, imaginando como sair daquele
impasse sem causar mais nenhum dano.
"Já chega disso, querida", Hudie disse, baixinho. "Por que você não se senta e me conta o
que está acontecendo ?"
Foi o que fiz. Não recordo como passamos o resto daquele fim-de-semana, exceto
que ficamos um longo tempo sentados, abraçados e em silêncio, observando enquanto o
crepúsculo precoce invadia a sala.
Na noite de domingo, quando faltavam mais ou menos doze horas para a consulta
com o dr. Lennox, sonhei com ele. No sonho, nós nos encontrávamos em uma misteriosa
cidade deserta, na qual a maioria dos prédios estava destruída ou em ruínas. "Deixe que
eu lhe dê o jantar", ele disse. "Sou bom cozinheiro. Sempre cozinho quando minha esposa
está longe".
Ele chamou-me para seu carro, que caía aos pedaços e fora fabricado claramente
antes da Segunda Guerra Mundial. Para meu desgosto, fez com que eu sentasse no
assento traseiro, de onde podia ver apenas suas costas. Depois de um curto trajeto,
chegamos a uma casa sem telhado, com apenas três paredes e cheia de entulhos. Um
fogão velho destacava-se no meio de todo aquele desolamen-to, e o dr. Lennox começou
a cozinhar, realizando uma série de operações complicadas com grande velocidade,
executando-as com o desembaraço de um mágico - misturando, picando, mexendo e
mergulhando coisas na panela.
Eu o observava com fascinação, sentindo-me mais voraz a cada minuto. Finalmente,
ele me entregou um grande prato, com um punhadinho ínfimo e decepcionante de algo
que não consegui identificar. Olhei para o prato, amargamente desapontada. "Só isso ?",
eu pensei. "Depois de todos aqueles preparativos e exibições de habilidade, é isto o que ele
me oferece como alimento ?". Decidi nem tocar naquela gosma nojenta, e despertei.
Reproduzi prontamente o sonho por trás de minhas pálpebras fechadas. Bem, era
assim que eu realmente me sentia sobre as habilidades e serviços do dr. Lennox - meu
inconsciente parecia ter chegado a uma decisão sobre meu problema médico bem antes
do meu cérebro consciente, e antes até de eu saber oficialmente que tinha um problema.
E, como sempre, eu precisava curvar-me ao inconsciente, pela destreza e exatidão
de sua linguagem simbólica: a cidade arruinada, o carro obsoleto e o fogão em pedaços
atribuídos ao dr. Lennox eram, na verdade, um comentário que minha mente consciente
considerou de uma lucidez impressionante. Assim, recordei o sonho, mas o tirei de minha
mente, pelo menos por enquanto.
Muito antes do Natal, Catherine se oferecera para me acompanhar em minha
consulta, e eu aceitara ("Mulheres lidam melhor com essas situações", eu disse a Hudie,
que também desejava ir comigo). Agora, depois de meu poderoso sonho, eu estava
duplamente satisfeita por tê-la ao meu lado para agir como uma testemunha objetiva e
perceptiva, que me faria ver tudo nas devidas proporções.
Uma parte de mim já via o dr. Lennox como um sutil e magro anjo da morte, ou
pelo menos como o arauto de grandes problemas, c eu não queria deixar-me levar a uma
distorção ainda maior.
Catherine e eu nos encontramos na porta do prédio do dr. Lennox, nos abraçamos
e, depois, sentamos no saguão, praticamente mudas. Eu sabia que ela havia cancelado
suas tarefas para aquele dia, mas, em meu terror paralisante, eu me via incapaz de sentir
culpa.
Sentia-me apenas profundamente grata por tê-la ali, minha samurai secreta em seu
disfarce de mulher elegante em um terninho Rodier.
Meio-dia e trinta. Subi mais uma vez aquela escada antiga em espiral. Apresentações.
Não, é claro que o dr. Lennox não se importava com a presença de minha amiga,
ao contrário. Senta-mo-nos brevemente na sala de espera, ele consultou suas anotações e,
depois, me levou até a sala de exames. Meu estômago parecia conter uma tonelada de
chumbo frio. Eu não teria que esperar por muito tempo. Ele apalpou minha virilha, retirou
sua mão e disse: "Sim, ainda está aí. Você poderia vestir-se ? Quero discutir a próxima
etapa na outra sala".
Raciocinei, com amargura, que este era um modo de me dizer o pior - não aquele
que eu mesma teria escolhido. Voltamos à sala de consultas e nos sentamos. Aquele
tremor horrível e incontrolável rastejava por meu corpo novamente, causando instabilidade
em meu queixo. O dr. Lennox contemplou seus dedos entrelaçados e, depois, olhou para
mim.
"Precisamos descobrir o que é este nódulo", ele disse. "Isto significa uma biópsia,
envolvendo a remoção da glândula linfática. Se o nódulo for maligno, providenciarei uma
tomografia de corpo inteiro, para ver se existem outras metástases. Se não encontrarmos
nada mais, o que é minha esperança, removerei as glândulas linfáticas da área da virilha
direita".
"Meu Deus!", exclamei, recordando a dor intensa em meu pé direito ainda inchado,
onde apenas algumas glândulas linfáticas estavam ausentes. "Se você remover todas as
glândulas, como a linfa circulará ?"
"Infelizmente, não circulará. Sua perna direita ficará permanentemente inchada e
você precisará usar meias elásticas pelo resto da vida".
A raiva subia por minha garganta. Qual era o problema com este homem ? Eu
imaginei: primeiro ele corta parte de minha perna, depois a faz inchar pelo resto da vida.
Que tipo de cura é esta, especialmente se a segunda operação se revelar tão inútil
quanto... ? Não me permiti terminar a pergunta. A enormidade da situação emudeceu
minha raiva. O que eu queria saber era por que dr. Lennox olhava-me de modo tão
sombrio, quase acusatório, como se eu tivesse cometido um crime ou, pelo menos, um
pecado odioso, ao desenvolver um caroço em minha virilha. Será que eu não deveria
gritar e blasfemar com ele, por ter me levado à falsa segurança e, depois, me empurrado
para um leito de bisturis e dor ?
"Sei que você tem convénio de saúde", ele prosseguiu, "mas eu gostaria que você
viesse à ala geral do hospital público onde eu trabalho, não ao hospital particular onde
você esteve internada ano passado".
Olhei-o, pasma. Catherine lhe disse, com calma: "Minha amiga tem grande
necessidade por privacidade, especialmente sob estresse. Acho que ela não suportará um
hospital público".
"Creio que suportará, e lá poderei cuidá-la melhor".
"Você já me ofereceu cuidados excelentes em meu quarto particular", eu disse.
"Francamente, não vejo razão para ir a um hospital geral quando tenho a opção de
um quarto privativo em um hospital particular. Mas deixemos para lá os detalhes. Quero
me orientar, primeiro. Tudo isso é muito difícil e totalmente inesperado. Afinal, durante
todo o ano passado você me disse que eu estava bem, e agora me aparece com esta
notícia!
O que desejo saber é... Se você operar e remover minhas glândulas linfáticas..." Tive
que parar e inspirar profundamente, para controlar minha voz. "Se você operar, quais são
minhas chances de não desenvolver outro tumor, em outra parte de meu corpo ?"
Ele hesitou, mas finalmente disse: "Eu diria que as chances são de sessenta por
cento".
"Isso não é muito melhor que cinquenta por cento", eu disse, sabendo que ele não
falara a verdade. "Não é muito impressionante, concorda ? E o que acontece, se você não
operar e não fizermos nada ?"
"Eu lhe daria entre seis semanas e seis meses". Agora, finalmente, eu recebia o troco
por desejar saber toda a verdade, desde o início. Além disso, tal troco era dado com
brutalidade, mas todo o comportamento do dr. Lennox parecia ter mudado, e até mesmo
seu rosto parecia diferente. Seus olhos pareciam desinteressados e frios e ele se retirara
para sua geleira pessoal. Ele não teve uma palavra ou gesto de conforto ou incentivo para
mim, apenas aquele olhar acusador, que sugeria que eu fizera algo errado e merecia isso,
agora. Todos nos levantamos, como se uma trombeta tivesse soado para finalizar nosso
encontro. Catherine segurou minha mão.
"Há alguma alternativa para a cirurgia ?", ela indagou. "Algum outro tratamento ?"
"Não. Radioterapia e quimioterapia não funcionam, em casos assim. A cirurgia é a
melhor esperança".
Grande esperança, eu pensei. Será que isso é melhor que a esperança que você me
deu antes ? De qualquer forma, pelo amor de Deus, o que estava acontecendo ?! Não
consegui falar nada.
"Quero que você faça a biópsia em uma semana", ele disse. "Quer marcar a
consulta agora ?"
"Não, não agora. Ligarei para sua secretária depois".
Então, partimos. Na rua, no coração do quarteirão médico elegante, senti uma
onda de compaixão profunda pelos milhares que haviam passado por ali antes de mim,
em um estado de choque semelhante ao meu, esmagados pelo peso de um diagnóstico
assustador e nenhuma esperança. Ave Caesar, morituri te saluant.
Fomos ao meu café favorito, na Wigmore Street. Estava lotado - tivemos que dividir
uma mesa com duas garotas fúteis e tagarelas, de modo que comemos rapidamente e
falamos muito pouco. De vez em quando, um soluço subia de meu peito, mas passava
desapercebido, no meio do burburinho geral. Depois da refeição, Catherine chamou um
táxi e a levamos até seu apartamento, em Primhose Hill.
As árvores nuas no alto da colina projetavam-se da bruma fina com a nitidez de um
desenho a nanquim japonês. A visão absor-veu-me de modo quase hipnótico. Da estrada
e, depois, da janela de Catherine, tive que olhar aquela paisagem, mergulhar nela, tornar-
me parte dela à exclusão de todo o resto. Talvez aquelas linhas finas e escuras, separadas
por espaços brancos e largos, servissem como um perfeito amortecedor de choque e breve
refúgio.
Arvores novamente, eu pensei, árvores como salvadoras, assim como aqueles
plátanos que eu via da janela do hospital, ano passado. E, então, até meus pensamentos
cessaram. Fiquei apenas contemplando.
Catherine enfiou-me em um ninho de almofadas, em seu sofá, envolveu-me com
uma manta quente e me estendeu uma xícara de chá de limão misturado com conhaque.
Esperou que eu terminasse de contemplar as árvores e beber meu chá e, então, disse: "Sua
cor está normal de novo. Como você se sente ? Gostaria de descansar um pouco ou quer
conversar ?"
"Não quero descansar, obrigada".
"Tudo bem, então vamos conversar. O que você pretende fazer ?"
"Não sei. Fugir. Não, isso não é verdade. Eu gostaria que tudo isso se desfizesse,
para podermos relaxar e conversar sobre outra coisa. Ah, desculpe, estou dizendo
absurdos. O que farei ? Acho que não quero outras cirurgias. Acho que seriam inúteis".
"Enquanto você estava sendo examinada, dei uma breve olhada nas anotações do
dr. Lennox. Aparentemente, tudo estava bem até seu último exame. Acho que ele se sentiu
tão chocado quanto você, ao descobrir que o nódulo ainda estava ali".
"Chocado ? Você realmente pensa assim ? Tudo o que vi nele foi uma frieza terrível
e desaprovação, como se eu tivesse cometido um crime imperdoável, em vez de ser a
vítima. Uma das razões pelas quais me descontrolei foi exatamente a sensação de
ser completamente rejeitada por ele... costumávamos falar sobre todo o tipo de coisas,
sobre seu filho e sobre minhas várias preocupações e passatempos, e ele chegou a me
visitar no hospital, no dia de Natal... e agora, quando mais preciso de apoio, não percebo
um fiapo de humanidade".
"Porque este é o único modo que ele tem para lidar com uma situação dolorosa",
Catherine disse. "Você deve ter percebido o quanto ele se distancia de suas próprias
emoções. Sem dúvida, se fosse emocional, não poderia ser um bom cirurgião. Ou, em um
nível ainda mais profundo, por que se tornou cirurgião, não simplesmente um médico ?
Entretanto, não estou realmente preocupada com a mente do dr. Lennox. Um dia,
você terá que trabalhar seus sentimentos com relação a ele, mas não agora. Quer dizer
que não quer mais cirurgias ?"
"Pelo menos por enquanto acho que não, a menos que sejam absolutamente
necessárias".
"Então, você precisará experimentar a medicina alternativa. Nenhuma das terapias
alternativas que conheço tem um programa coerente contra o câncer. E o melanoma
espalha-se com tanta rapidez que não há tempo para fazer experiências".
Catherine pegou seu grande caderno de endereços. "Antes de tomar uma decisão,
você precisa ter uma segunda opinião e, talvez, até uma terceira, de médicos de mente
aberta, não de cirurgiões. Precisamos também descobrir se existem terapias alternativas
para câncer e investigá-las. Relaxe, enquanto eu dou alguns telefonemas"
Era como voltar à infância. Eu me via como uma criança enferma bem cuidada,
desfrutando de perfeito conforto e atenção.
Calor, crepúsculo precoce, almofadas macias, bebidas quentes e a presença de
minha amiga deram-me segurança. Eu estava consciente da voz de Catherine ao fundo e
do som de discagens repetidas, mas deixei que minha mente vagasse sem ouvi-la. Apenas
emergi de meus devaneios quando ela sentou-se perto de mim e me estendeu uma lista de
nomes e números de telefones.
"Estamos indo bem", ela disse. "Aqui estão os nomes de dois médicos favoráveis aos
métodos alternativos. Você deveria vê-los assim que possível. Depois, eu falei com Ann
Procter - lembra-se dela ? Foi sua colega nos estudos de psicologia. Ann tem muitos
talentos.
Ela é assistente social, professora de relaxamento, realiza curas e também pilota
aviões planadores, embora esta última habilidade não tenha relevância para nós. Ainda
assim, ela também sabe muito sobre medicina holística, e acha que valeria a pena
examinar a Terapia de Gerson".
"Ah, é ? O que é isso ?"
"Ann disse-me, apenas, que se baseia na dieta. E que você deveria conversar
imediatamente com alguém chamada Margaret Straus, que pode esclarecê-la sobre a
terapia. Ela serve como contato em Londres. Parece-me que o Centro Gerson é nos
Estados Unidos. Todos os nomes e números estão na lista. Será que isso serve, para
começar ?"
"Ah, sim, obrigada!". Passei os olhos pela lista e contei a Catherine: "Anos atrás,
quando destino versus livre-arbítrio era um tema constante entre meus amigos, criei minha
teoria da malha ferroviária, que é mais ou menos assim: em momentos de crise, todos
enfrentamos várias alternativas, que são como trilhos de uma vasta malha ferroviária,
todos agrupados e igualmente disponíveis. Assim, escolhemos um, e isto é livre-arbítrio.
Contudo, depois precisamos seguir o trilho até o fim, e cada um termina em um
ponto diferente. E isto é destino. É uma teoria bem fraca, esta de simplesmente terminar
em pontos diferentes, mas mesmo assim, acho que cheguei a um momento típico de
minha malha ferroviária, e não estou pronta para escolher". "Que rumo você pensa tomar,
no momento ?"
"A Via Número Um é: dr. Lennox, cirurgia, confusão e... por que uma segunda
cirurgia funcionaria, quando a primeira não resolveu o problema, e quando o câncer teve
um ano inteiro para se disseminar e fincar raízes ? A Via Número Dois diz respeito a
recusar o tratamento, resolver meus assuntos pendentes, pedir demissão do trabalho,
viajar e fazer tudo o que sempre desejei".
"Talvez isso até pudesse curá-la, sabe ? E a Via Número Três ?"
"Fazer tratamento alternativo. Experimentar a terapia de Gerson, ou algo assim, e
assumir as consequências".
"Pelo menos, esta é uma alternativa manejável. Assim, o que você pretende fazer a
respeito disso ?"
Tive que rir. "O que você pretende fazer a respeito disso" era uma das grandes
expressões de Catherine, sempre indagada em voz firme, mas gentil, ao longo dos anos,
em resposta a um de meus dilemas periódicos envolvendo algum problema de difícil
solução.
Inicialmente, anos atrás, eu me deixara levar pela enganadora suavidade de sua
voz e lhe explicara, com algum ardor, por que eu era incapaz de fazer algo a respeito
daquilo. Mas então ela voltara com a mesma indagação, na mesma voz clara e gentil,
desta vez perguntando-me o que eu pretendia fazer com minha incapacidade para agir.
Tornar-me capaz de agir ou aceitar o problema sem me queixar mais eram as duas
possibilidades implícitas, embora jamais colocadas em palavras.
"O que farei ? Pedirei que você marque consultas para mim com esses dois médicos.
Sem vê-los, não posso decidir nada. Neste momento eu não consigo falar de modo
coerente com estranhos".
Ambos os médicos concordaram em me atender na véspera do Ano Novo, o que
considerei interessante - consultas de último recurso no último dia de um ano que
começara com doença e dor, e terminava em confusão. Então, liguei para Hudie e lhe pedi
que nos encontrasse em um pub próximo. Catherine e eu fomos até lá a pé, passando por
mas escuras, ambas emocionalmente exaustas. Ainda assim, precisávamos transmitir as
notícias a Hudie, dar-lhe explicações e amortecer o choque. Este foi um momento pesado e
doloroso, facilitado apenas levemente pelo conhaque e pelo desabafo.
Depois, Catherine foi para casa, enquanto nós dois caminhávamos pela St. John's
Wood em busca de algo para comer. Quando passávamos por uma árvore de rua de
galhos pelados, um melro começou a cantar, diretamente acima, e prosseguiu por vários
minutos naquela noite de fim de dezembro.
Tanto quanto eu saiba, melros não entoam sua melhor melodia em dezembro.
Entretanto, o pássaro não conhecia esta regra e trinava, piava e palpitava em êxtase
sonoro. Paramos e escutamos, encantados. Aquela canção era tão fora de época quanto a
margarida solitária em meu jardim, um ano atrás. Ela não resolvia nenhum de meus
problemas, mas oferecia algum consolo.
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CAPÍTULO 5
NA MANHÃ SEGUINTE, SENTINDO-ME UM pouco mais calma, liguei para
Margaret Straus, o contato em Londres para informações sobre a terapia de Gerson. Eu
esperava ser atendida por uma voz imponente e idosa, mas escutei uma voz americana,
jovem e agradável.
Descobri que a sra. Straus era neta do dr. Gerson, que falecera em 1959, em Nova
Iorque. Contei-lhe sobre meu problema. Ela concordou em atender-me, mas apenas
depois de eu ler, ou pelo menos passar os olhos, em dois livros americanos que continham
todas as informações necessárias sobre a terapia. Depois que eu compreendesse os
princípios básicos, ela se disporia a ouvir minhas questões.
Em meu estado de choque e inquietação, eu teria preferido consultá-la
imediatamente, mas compreendi suas razões e fui correndo comprar os dois livros. Um era
A Câncer Therapy - Results ofFifty Cases, escrito pelo dr. Max Gerson, um pesado volume
com capa azul escura brilhante.
As fotografias horríveis e reproduções de raios-X que ilustravam os casos
apresentados deixaram-me nervosa - eu sentia como se estivesse invadindo o território
médico, onde não tinha o direito de estar.
O texto principal parecia bastante técnico, de modo que comecei minhas leituras
pelo outro livro, mais fino, que prometia ser mais acessível. Este era Câncer Victor - How I
Purged Myself of Melanoma, escrito por Jaquie Davison, e, enquanto o livro do dr. Gerson
havia me intimidado com sua solenidade, este parecia leve demais, escrito no estilo rápido,
bem-intencionado, mas ingénuo, das revistas de saúde.
Ainda assim, se a autora havia realmente se curado do que chamava o tempo todo
de melanoma fatal - aborrecia-me uma descrição tão dura -, então eu precisava descobrir
como ela fizera aquilo.
Não havia muito que fazer no trabalho atualmente, de modo que consegui realizar
uma leitura rápida e concentrada. No início, Jaquie Davison parecia uma mulher
agradável, ingénua e sentimental, uma cristã fundamentalista, crente ardorosa do papel
tradicional das mulheres e oponente de destaque da emenda por direitos iguais, nos
Estados Unidos.
Este último fato, em si mesmo, era o bastante para me deixar com um pé atrás, mas
segui lendo e, gradualmente, meu respeito pela coragem da mulher anulou minha
irritação. Ela fora surpreendida pelo melanoma aos trinta e seis anos, com tumores que se
proliferaram por todo o corpo (com o maior alojado em sua virilha direita - meu Deus,
novamente aquela virilha direita!) e impossibilitaram qualquer tratamento convencional.
Além disso, as mortes terríveis por câncer, por alguns de seus parentes, afastaram a
Sra. Davison da medicina ortodoxa. Assim, depois de algumas tentativas e erros, depois de
se preparar para morrer em dois meses, ela decidiu experimentar a terapia de Gerson em
casa, com o auxílio de seu marido dedicado e sua filha de quatorze anos, que parou de
estudar durante um ano para cuidar da mãe.
Descobri, no livro, que a terapia consistia de uma rígida dieta vegetariana, com
imensas quantidades de sucos frescos de frutas e vegetais crus e drástica desintoxicação,
por meio de enemas frequentes com café.
Enemas com café ? Qualquer enema já era pavoroso, como atestavam minhas
recordações da infância, mas enemas com café pareciam particularmente repugnantes.
Por que café ? E por que fazê-los com tanta frequência ? Eu ainda tinha muitas
dúvidas, mas pelo relato altamente subjetivo e extravagante de Jaquie, era difícil discernir
os princípios terapêuticos por trás dos detalhes estranhos.
Contudo, seu progresso era tão dramático, temperado por várias crises quase fatais,
que achei melhor suspender minha descrença e, até mesmo, minhas críticas, para ler até o
fim e poder começar a fazer minhas indagações.
A história de Jaquie, contada de maneira tão simplória, era impressionante. Ela
demonstrara perseverança durante dois anos, indo contra todas as probabilidades, contra
toda a razão e expectativas médicas, sem ajuda capacitada, confiando em Deus e nas
ideias do falecido Dr. Gerson - e vencera.
Obviamente, seu enfoque fundamentalista, de envolvimento total, deu-lhe a força
para continuar. Também está claro que o enfoque tem vantagens sobre minha atitude
crítica e céptica, do tipo "ah, sim, mas...".
Agora, apesar de minha admiração por uma mulher muito corajosa, eu
experimentava uma onda de ceticismo, uma vaga decepção com a própria terapia. Sucos
de vegetais crus e enemas contra câncer pareciam com arco e flecha contra uma ogiva
nuclear.
Sim, eu sabia que algumas pessoas tinham sucesso no tratamento de doenças
crónicas usando apenas a dieta, e conhecia pessoas com artrite grave, enxaqueca, pressão
sanguínea alta ou diabetes que melhoravam imensamente com dietas curativas. Mas,
certamente, o câncer estava em uma classe distinta, e precisava ser combatido com algo
mais potente que os litros e litros de suco de cenoura e maçã que Jaquie Davison parecia
ter bebido noite e dia, por um longo tempo.
Ali, sim, mas Jaquie recuperou-se. Quando terminei seu livro, à noite, senti amizade
por ela, além de uma vaga esperança por mim mesma, já que minha doença parecia
muito menos avançada que a dela já desde o início. Assim, talvez, se eu decidisse seguir a
terapia de Gerson...
Tudo bem. Melhor descobrir mais sobre o assunto.
Servi-me de um drinque, acendi um cigarro e abri o livro do dr. Gerson em um
ponto aleatório. "Proibidos", ele anunciava, em letras maiúsculas grandes, "Nicotina, sal,
álcool" - a isso, se-guia-se uma longa lista de alimentos que deveriam ser banidos,
incluindo carne vermelha, ovos, peixe, queijo, manteiga, leite, todos os alimentos
processados, todas as gorduras e óleos, chás, café, chocolate, creme, oleaginosas,
cogumelos, temperos e, até mesmo, a água normal da torneira.
Acima de tudo, porém, estavam a nicotina, sal e álcool. O sal não é problema, eu
pensei, agitando o uísque em meu copo e olhando para a fumaça azul de meu cigarro
com filtro, baixo teor de alcatrão e baixa quantidade de nicotina.
Não havia problema com o sal, nem mesmo com o espinafre congelado - seria
muito fácil abandonar essas duas coisas. Contudo, eu comecei a ler e fui atraída pela
primeira frase, na introdução: "Este livro foi escrito para indicar que há um tratamento
eficiente para o câncer, mesmo em casos avançados".
Duas horas depois, tive que parar de ler. Meus olhos não conseguiam mais manter
o foco e eu começava a sentir o choque de uma descoberta totalmente nova e
impressionante em sua simplicidade; uma revelação que, se correta, me levaria a revisar
todas as minhas ideias sobre saúde e doença.
Eu precisava de tempo e espaço para digerir todas as novas informações. Ler o livro
era como escutar uma voz, precisa, competente e modesta, explicando o pensamento por
trás do trabalho de uma vida inteira.
Contudo, esta mesma voz modesta também fazia afirmações incríveis, que
aparentemente eram substanciadas pelos casos relatados, que enchiam a segunda metade
do livro.
Eles pareciam provar que o Dr. Gerson, trabalhando por conta própria, realmente
descobrira um tratamento eficiente para o câncer, e escrevera um livro para contar ao
mundo como realizá-lo. Eu estava bastante agitada, mal acreditando no que lia.
Naquele momento, Catherine ligou, querendo saber como eu estava e o que
achava da vida, depois dos acontecimentos do dia anterior.
"Estou bem, só um pouco cansada", eu disse. "Mas não posso ir para a cama,
porque preciso ler o livro do dr. Gerson com a máxima urgência. Margaret Straus só me
atenderá depois que eu fizer isso, e o livro é bem volumoso".
"Mas é interessante ?"
"É estupendo", afirmei. "Totalmente original. Se o dr. Gerson estiver certo, então há
algo errado com muitos dos tratamentos atuais para o câncer. Olhe, eu recém-comecei a
ler, duas horas atrás, mas acho que já consegui perceber o raciocínio principal. E sua
lógica é uma beleza".
"Que bom", Catherine disse. "Estou contente com seu entusiasmo. Você está
pensando em experimentar a terapia ?"
"Ainda não sei. Primeiro, preciso terminar o livro e me encontrar com Margaret
Straus. Não quero fazer nada no impulso. Ainda assim, se as afirmações do dr. Gerson
forem reais, então sua terapia deveria ser o tratamento padrão em qualquer lugar".
Catherine riu. "Ah, espere aí", ela disse.
"Se este tratamento funciona e se é tão original quanto você afirma, então
certamente o 'sistema' não quer nem ouvir falar nele - não é esta a reação clássica ? Ainda
assim, esqueça o sistema. O importante é que a terapia possa ajudá-la".
"Bem, discutirei isso amanhã com os dois médicos com os quais você marcou
consulta para mim. Quero decidir-me por um ou outro método de tratamento, antes do fim
do ano".
"Bem, isto lhe deixa exatamente vinte e seis horas. E melhor deixá-la com sua leitura.
Mas, por favor, ligue-me quando quiser conversar".
Voltei à minha leitura.
O tempo voava. Eu precisava concentrar-me em entender as ideias básicas do dr.
Gerson enquanto emergiam do material rico e complexo de seu livro, de modo que
comecei a anotá-las, como se fizesse pesquisas de último minuto para um roteiro urgente e
com prazo apertado. Minhas anotações foram mais ou menos como abaixo:
"O câncer não é uma doença específica e localizada, mas um mal crónico, geral e
degenerativo. Portanto, é inútil remover tumores ou tentar erradicar outros sintomas. Eles
apenas reaparecerão em um local diferente".
"Além disso, o câncer não é tanto uma doença quanto um sintoma, o sintoma de
um corpo enfermo, com metabolismo danificado e sistema imunológico falho. O
tratamento correto diz respeito a restituir o funcionamento saudável e normal do
organismo, para que este possa destruir e descartar o câncer por si mesmo. Corpos
saudáveis podem evitar que suas células se tornem anormais, isto é, malignas".
"O metabolismo e o sistema imunológico são gradualmente prejudicados, ao longo
de um extenso período de tempo, por nutrição inadequada - por alimentos cultivados em
um solo desgastado e artificialmente fertilizado, que não contém os minerais necessários;
alimentos deficientes em proteína e potássio, tornados tóxicos por substâncias químicas,
processados e refinados até não conterem mais nutrientes vivos e ativos, sem os quais a
saúde não pode ser mantida.
O corpo mal nutrido, então, torna-se mais prejudicado ainda pela poluição
ambiental, pelo ar e água impuros, pelas substâncias químicas que estão por toda parte.
Finalmente, a desnutrição solapadora e o acúmulo de toxinas combinam-se para
causar um colapso no sistema de defesas do organismo, resultando daí um tumor".
"O processo degenerativo que leva ao câncer envolve a maior parte dos órgãos
vitais. Não se pode ter câncer, a não ser que o fígado, pâncreas, rins e sistema biliar
estejam prejudicados. Todos os processos corporais atuam juntos e são prejudicados
juntos, na doença. Portanto, todos os processos precisam ser levados de volta ao normal e
recuperados".
"Para curar-se, o corpo precisa ser desintoxicado e ativado, com minerais ionizados
e alimentos naturais, cultivados organicamente, para que os órgãos vitais possam
funcionar novamente".
Li minhas anotações e, depois, fechei meus olhos para repousá-los. A mensagem
simples do livro enviava ondas de choque poderosas através de minha mente. Além disso,
eu me sentia intrigada e levemente assustada por parte das informações que acabara de
assimilar - por exemplo, as células de câncer eram atávicas, aparições que voltavam de
uma fase mais antiga da evolução, obedecendo a leis sinistras que não se aplicavam às
células normais.
Em primeiro lugar, as células de câncer se multiplicavam tão rapidamente quanto as
células de um embrião, que se desenvolve em um ritmo intenso a partir da fertilização do
óvulo. Contudo, enquanto as células embriónicas sabem quando devem desacelerar seu
crescimento, isso não ocorre com as células de câncer e, assim, acabam por destruir seu
hospedeiro. Além disso, elas são gananciosas, desorganizadas e prosperam na
fermentação, como todas as formas de vida faziam em um estágio inimagi-navelmente
remoto e primitivo da evolução, antes de a Terra ter adquirido sua atmosfera atual.
O olho de minha mente visualizou uma paisagem tristonha no planeta, uma espécie
de pré-Terra, consistindo de lama desolada e parda; e os únicos sinais de vida naquele
amontoado sem ar eram bolhas que subiam do limo primitivo em fermentação.
Fermentação versus oxidação, apodreci-mento versus respiração, células delinquentes,
primitivas e descontroladas surgindo das profundezas para devastar nossos corpos
evoluídos e sofisticados - o processo apresentava um paralelo arrepiante com o que ocorre
quando conteúdos escuros e inconscientes sobrepujam e destroem nossa consciência e
nossa mente racional durante a vigília.
Será por puro acaso que esquizo-frênicos raramente contraem câncer ? Será que
um colapso exclui o outro ? Havia algo profundamente inquietante nesta natureza
regressiva duplamente salientada, das células cancerosas. Uma vez que o desenvolvimento
do embrião repetia as fases evolutivas da raça humana, condensando milhões de anos em
nove meses, a taxa mais primitiva e rápida de divisão celular correspondia a nosso
passado biológico mais remoto, exatamente como a lama em fermentação pertencia ao
passado mais remoto de nosso planeta.
Estranha e ironicamente, o câncer transformara-se em uma epidemia intratável em
nossa parte do mundo, no exato momento em que a tecnologia ocidental bate recordes em
cima de recordes e nosso início como humanos parece suficientemente remoto para ser
negado.
E como se a Natureza estivesse enviando uma mensagem, por meio das células de
nossos corpos, dizendo que algo está errado, que nossas células estão regredindo ao caos
mórbido, porque permitimos que nossa tecnologia crescente interfira com nossos alimentos
e estilo de vida, de um modo intolerável para nossos corpos.
Já era quase meia-noite. O silêncio era tão grande que minha casa bem poderia ser
um barco ancorado em alguma ilha de sonhos deserta, e eu me sentei, imóvel, dentro
daquele grande silêncio, tentando chegar a alguma conclusão. Senti que pisava em uma
fronteira fina como lâmina, entre duas alternativas mutuamente exclusivas, levando minha
doença tanto sobre minhas costas quanto dentro de meu corpo; eu sabia que teria de sair
daquela fronteira perigosa, antes que esta cortasse meus pés.
Se o Dr. Gerson estivesse certo, e eu suspeitava que este era o caso, se realmente
fosse inútil remover tumores, a menos que ameaçassem minha vida, então minha cirurgia
era inútil, toda a dor, sofrimento e mutilação eram totalmente em vão. Cirurgias adicionais
seriam igualmente inúteis, e o dr. Lennox não tinha ideia do que fazia.
Ou talvez tivesse; talvez percebesse que suas habilidades fantásticas não podiam
curar, mas ia em frente ainda assim, porque não tinha alternativa. E, se fosse assim, que
Deus o perdoasse, porque eu não podia fazer isso.
Se o câncer era realmente uma doença que envolvia todo o metabolismo, então o
único modo de atacá-lo era pela cura e restauração deste. Se o dr. Gerson estivesse certo,
então não havia outro modo de sobreviver.
Quanto mais eu ponderava, mais a terapia fazia sentido. Tudo o que eu já ouvira e
vira sobre o tratamento convencional e ortodoxo para câncer passava por minha mente
como um filme acelerado. Amigos, conhecidos e vizinhos que iam da mesa de operação
para o tratamento e repetiam o ciclo, parecendo-se com sobreviventes carecas e sem
sangue de algum campo de extermínio, após os cursos de quimioterapia, transformando-
se em esqueletos, cheirando a morte muito antes de morrerem, morrendo finalmente,
muito tempo depois do fim de todas as esperanças.
A recordação de uma linda coleguinha de escola veio-me como um raio - Alexandra
morreu de câncer de boca aos dez anos, e todos fomos ao seu funeral. Senti-me enferma
por dias, depois disso, incapaz de me livrar do odor pesado e enjoativo que superara o
aroma das flores que cobriam seu caixão.
Pensei em Jane Zorza e em sua morte triste e desoladora. Todas aquelas vítimas
haviam recebido tratamento convencional. Eu não conhecia ninguém que tentara algum
método não-ortodoxo, exceto pelos cinquenta casos do dr. Gerson. Talvez eu devesse
experimentá-lo.
Apenas trinta e seis horas haviam passado, desde minha última consulta com o dr.
Lennox, mas minha sensação era de que nos víramos uma semana antes. Decidi não
decidir nada e fui dormir.
Na manhã seguinte, contei a meus patrões o que estava acontecendo e pedi licença
do trabalho, para minhas consultas médicas. Esta foi uma conversa dolorosa. Meus
sentimentos estavam tão à flor da pele que a gentileza e solidariedade de todos me
levaram às lágrimas. Percebi, também, que o que eu lhes contara levava-os à convicção
imediata de que eu iria morrer, devido à imagem que todos temos do câncer.
De qualquer modo, eles me deram carta branca para poder realizar minhas
consultas e se ofereceram para me tirar do programa antropológico no qual eu trabalhava
naquele momento, o que recusei. Depois, fomos todos à cantina para beber café e comer
algo, porque não conseguíamos pensar em nada mais que pudéssemos fazer.
Depois do almoço, saí do escritório e fui ver o dr. Montague, o primeiro dos dois
médicos receptivos a terapias alternativas recomendados pelos contatos de Catherine. Era
meio arriscado ir à sua casa quando eu me sentia envolvida por um manto de
preocupação.
Quão receptivo ele poderia ser, mesmo que tivesse mente aberta ? Como eu
poderia descobrir onde estão os limites para uma mente aberta ? Contudo, quando
cheguei à sala de espera silenciosa, minha apreensão dissipou-se. A sala tinha um clima
de proteção, e os livros fascinantes na estante traíam um amplo leque de interesses alheios
à medicina. Em um cantinho, havia um ursinho de pelúcia surrado e velho, recostado em
uma almofada esplêndida. Ah, meu Deus, eu sei como você se sente - pensei, imaginando
onde poderia estar o ursinho da minha infância, o gordo e brilhante Shoomie - se é que
ainda estava em algum lugar. Também lutei contra um desejo intenso de pegar a
criaturinha desamparada e lhe dar um abraço. Contudo, sob aquela breve distração, eu
me sentia muito assustada.
O dr. Montague era um homem de fala mansa, gentil e muito sério, a ponto de
parecer quase triste. Tinha ossos finos e constituição leve e era impossível determinar sua
idade. Possuía uma qualidade de gentileza que transparecia de um modo oblíquo, filtrada
por seu retraimento.
Ele tomou minha história médica em detalhes, realizou um exame geral e,
finalmente, concentrou-se na glândula inchada em minha virilha. "Sim, tenho certeza de
que é um crescimento maligno", ele disse, por fim.
"Não faz sentido realizarmos uma biópsia, que muitas vezes causa a disseminação
do câncer". Ele olhou para minha perna direita mutilada, com seu enxerto de pele grande
e permanentemente vermelho, que mesmo um ano depois ainda parecia uma ferida
horrível e inflamada. "Depois desta experiência, você tem todo o direito de se opor a outras
cirurgias".
Sua voz era tão baixa que tive que me esforçar para ouvi-lo. "O que você pretende
fazer com relação à sua doença ?"
Aaah, eu pensei, que maravilha quando nos perguntam, em vez de ditarem ordens.
Respondi: "Estou pensando em experimentar a Terapia de Gerson, porque parece
muito lógica e racional. Você a conhece ?"
Eu estava com sorte. O dr. Montague foi até a estante atrás de sua mesa e puxou o
livro azul, igual ao que eu tinha em casa. "Sim, li o livro de Gerson e o considerei muito
interessante, mas não tenho experiência prática com sua terapia. Confesso que me parece
muito difícil segui-la à risca".
"Ainda não cheguei aos detalhes práticos, mas considero fascinantes suas ideias.
Acho que fazem sentido. Saberei mais quando me encontrar com sua neta, que vive em
Londres. Talvez a veja em um ou dois dias". Fiz uma pausa. "Talvez seja cedo demais para
lhe perguntar isso, mas... se eu decidir seguir a terapia, você estaria disposto a me oferecer
supervisão médica ?"
Ele hesitou. "Bem... sim, desde que fique claro que não tenho experiência prática
com esta terapia".
"Compreendo. Eu achava mesmo que não encontraria muitos médicos experientes
na prática da terapia do dr. Gerson. Olhe, não tenho grandes expectativas, sei que a
escolha desta terapia é um salto no escuro, mas será que existe uma boa alternativa
ortodoxa, que ataque as causas, em vez dos sintomas ? Não ? Foi isto que pensei.
Neste caso, acho que vou experimentar a terapia de Gerson. Pretendo decidir-me
até a meia-noite de hoje sobre uma ou duas coisas - não necessariamente sobre tudo o
que preciso fazer - para não levar problemas demais comigo, na entrada do Ano Novo".
O dr. Montague escutou-me com ar solene, sem tentar acon-selhar-me ou
influenciar-me, e pela qualidade de sua escuta eu sabia que me daria espaço e liberdade
para tomar minha própria decisão em paz.
Também aceitei, de um modo definitivo, que não existiam soluções ortodoxas para
meu caso e que enveredar para uma via não-ortodoxa poderia ser apenas marginalmente
menos solitário que morrer.
"Quando fui a última vez que você fez exames de sangue e urina ?", o dr. Montague
indagou.
"Ah, quase vinte meses atrás, quando tive hipertiroidismo".
"E nunca mais, desde então ? Você quer dizer que não fez exames desde o início do
melanoma ?"
Quando fiz que 'não' com a cabeça, ele não disse nada, mas percebi sua surpresa.
Pensei na dedicação total do dr. Lennox a seu enxerto de pele e em sua indiferença total
ao resto de mim. "Talvez os cirurgiões não acreditem em testes de sangue e urina", eu
disse, fracamente.
"Eu gostaria que você os fizesse imediatamente". Ele marcou os exames pelo telefone
e me disse como chegar ao laboratório. Eu o veria novamente quando os resultados
estivessem prontos.
Eu me sentia mais tranquila ao andar pela ma naquela tarde nevoenta de inverno,
embora o médico não tivesse dito ou feito nada particularmente reconfortante. Pelo
contrário, ele tirara de mim a última esperança de que o caroço em minha virilha pudesse
ser benigno e não oferecera um novo tratamento ortodoxo promissor.
Contudo, apesar de sua grande reserva, consegui manter contato real com ele, e
também senti que esse profissional via seus pacientes como criaturas com corpo, espírito e
mente, não como órgãos defeituosos anexados a alguma entidade sombria e impessoal, e
isto, por si só, já era reconfortante.
Cheguei bem no horário para a consulta com o dr. Andrews, o segundo médico que
eu deveria ver naquela tarde. Ele era efervescente, informal e tão jovem que, quando o vi,
pensei que era o filho do médico.
A primeira coisa que notei sobre sua escrivaninha foi um grosso livro, chamado The
metabolic management of câncer. Pela segunda vez naquela tarde, recitei minha história
médica completa, passei por um exame geral e ouvi o médico dizer que uma biópsia era
supérflua; o nódulo em minha virilha era, indubitavelmente, um tumor secundário e
qualquer cirurgia adicional apenas pioraria tudo.
O dr. Andrews, que praticava medicina tanto alopática quanto homeopática, era
entusiasta da terapia de Gerson. Ele achava que esta apresentava maiores chances de
sucesso, entre todos os enfoques alternativos. Além disso, seria útil se eu pudesse combiná-
la com meditação, que proporcionava relaxamento total e aliviava o estresse.
"Não há por que não tentar", eu disse. "O curioso é que eu meditava regularmente,
mas três semanas atrás, quando mais precisava de tranquilidade e recolhimento, parei
totalmente, quase sem perceber que fazia isso. Suponho que canalizei toda minha energia
para permanecer saudável e tentar compreender minha situação. Como minha professora
costumava dizer, a ioga vai e vem... assim como a meditação, e, no meu caso, só foi, não
voltou".
"Mas sempre é possível reiniciar, não é ? Você precisará de toda a sua força interior
para ingressar na terapia de Gerson. É longa e muito difícil".
Pouco antes do fim da consulta, o dr. Andrews tirou uma fotografia colorida de mim
e outra de minha infeliz perna direita. "Para meus registros", ele disse. "Entenda, se você
ingressar na terapia, depois de algum tempo sua aparência estará tão boa, e sua perna
terá apresentado uma melhora tão impressionante, que ninguém acreditará em como você
era diferente, se não houver uma foto do 'antes'."
Achei que isso era demasiadamente otimista, mas agradeci e fui embora.
Bem, eu pensei, ao tomar o caminho de casa pelos desertos residenciais da parte Oeste de
Londres, os dois médicos não podiam ser mais diferentes. Um está na meia-idade, é
reservado, intuitivo, gentil e, suspeito, extremamente pessimista; o outro é jovem,
espontâneo, um pouquinho atrevido e fortemente otimista.
O dr. Montague tem a foto de um belo e tranquilo Buda na parede oposta à sua
escrivaninha. O dr. Andrews mantém sobre a lareira a fotografia em cores de um guru
atual, de reputação questionável, como se ter a mente aberta sobre a medicina alternativa
andasse lado a lado com algum interesse por filosofia oriental. Eles não poderiam ser mais
diferentes, mas ambos chegaram à mesma conclusão sobre minha condição e perspectivas
para o futuro. Isso por enquanto teria que me bastar.
Hudie chegou mais tarde, naquela noite. Fizemos uma refeição leve, acompanhada
de vinho, e viramos o ano em silêncio e sem muito que celebrar. Exceto que, enquanto eu
terminava de lhe contar sobre minhas consultas com os dois médicos, meu coração
subitamente tornou-se mais leve, minha mente readquiriu o foco e, sem mais dúvidas ou
buscas ao meu íntimo, cheguei a uma decisão final, com a mesma tranquilidade e
facilidade com que um bote desliza para o ancoradouro. Eram vinte e três horas e quinze
minutos.
"Desculpe-me por um instante", eu disse a Hudie. "Preciso anotar uma coisa,
enquanto estou no clima".
Fui ao meu quarto e escrevi um bilhete para o dr. Lennox. "Após refletir muito, decidi
tentar resolver meu problema de saúde por meios não-cirúrgicos. Não espero sua
aprovação, mas talvez você possa me desejar sorte. Obrigada por sua atenção no
passado".
Assinei o bilhete e o mostrei a Hudie. "Por favor, leia e me diga se parece rude ou
algo assim". Ele deu uma rápida olhada e sacudiu a cabeça.
"Não, não está rude. Se o dr. Lennox se sentir ofendido, então o problema é com
ele. Você tem certeza de que não quer mais vê-lo ?"
"Sim, tenho. Não há por que voltar a consultá-lo".
"Tudo bem, então é isto. Eu lhe darei apoio, não importando o que você decida.
Mas, por favor, escolha a terapia certa, para poder ficar bem novamente".
Brindamos a isto. Eu havia tomado pelo menos uma decisão, antes do fim do ano
de 1980.
Enviei meu bilhete para o dr. Lennox logo cedo, em dois de janeiro, enquanto
seguia, faminta e com os olhos ardendo, para meus exames de laboratório. Era
improvável que ele já estivesse no consultório tão cedo, e mais improvável ainda que
estivesse espiando por trás de sua porta da frente. Ainda assim, empurrei meu bilhete pela
abertura para cartas com algum temor, como uma criança que oferece um pedaço de pão
a um cachorro potencialmente perigoso, e quase corri pela rua, depois de fazer isso.
Minha mente racional sabia que o dr. Lennox não era mais assustador agora do
que sempre fora, mas, em um plano menos racional, ele adquirira contornos terríveis - o
Cirurgião, o assustador personagem que corta, pica e amputa. Assim, eu precisava evitá-
lo, antes que ele pudesse infligir mais ferimentos em meu corpo.
Eu achei que nunca mais ouviria falar nele, mas, no dia seguinte, recebi uma
resposta ao meu bilhete. Era duas vezes mais longo que o meu e muito amistoso, e,
enquanto eu o lia, uma sentença destacou-se. Ele escrevera: "Compreendo que o cirurgião
não tem o monopólio sobre o tratamento de seu problema e, assim, não tenho o direito de
exigir, ou mesmo de esperar, que você siga meus conselhos".
Ah ? O quê ? Marchei pela casa, meio perplexa e bastante irritada. A quem ele
tentava enganar ? Nossa última troca de palavras em seu consultório, apenas cinco dias
antes, ainda estava clara em minha mente, e agora isto...
Liguei para Catherine e li o bilhete inteiro para ela, até sua amável conclusão,
"Desejo-lhe sorte em seu tratamento e gostaria de acompanhar seu progresso".
"Bem, bem", Catherine disse. "Talvez ele esteja satisfeito por lavar as mãos quanto
ao seu caso. Mesmo assim, é um bilhete agradável".
"Mas, e quanto ao que diz no meio do bilhete ? Você se lembra do que ele lhe disse:
nenhuma outra terapia era eficiente em um caso como o meu, apenas a cirurgia, e nada
além desta. E agora, de repente, o cirurgião não tem monopólio e oferece sua bênção por
minha iniciativa que não envolve cirurgia. Isso não é esquisito ?"
"Suponho que, quando o vimos, ele falava como profissional, mas, ao responder ao
seu bilhete, escreveu como pessoa e conseguiu admitir que não tinha a resposta".
"Esta explicação é muito generosa. Contudo, eu não vejo desta maneira. O que vejo
é duplicidade, pura e simples, e considero isso profundamente perturbador, porque eu
poderia ter jurado que dr. Lennox era imensamente sincero e honesto".
"Tenho certeza que é, mas os critérios dele provavelmente são muito mais
complicados que os seus. O homem trabalha em uma área incrivelmente delicada e
precisa decidir que tipo de paciente aceita a verdade e quanto da verdade pode contar,
quando é o momento certo para falar - ele precisa fazer esta espécie de julgamento o
tempo inteiro.
Obviamente, eu entendo sua indignação. Se eu estivesse em sua pele, seria ainda
menos compreensiva", Catherine disse.
"Será que ele acha que sou idiota ?". Eu não conseguia conciliar as duas
declarações diametralmente opostas de Lennox. "Disse uma coisa na sua frente e deve ter
percebido que você seria uma testemunha confiável. Agora, afirma exatamente o oposto
por escrito, sem sequer tentar justificar esta contradição".
"Talvez ele não pudesse justificá-la sem prejudicar sua própria autoridade. Ou
mesmo a mística do enfoque cirúrgico. Não se pode esperar que ele faça isso".
"Eu esperava honestidade a qualquer preço. Foi assim que começamos, quando o
conheci. De qualquer modo, quanto de sua autoridade pesa contra minha sobrevivência ?
Ah, tudo bem, não importa. Mas há outra coisa, muito mais alarmante. Se eu não
pudesse tomar minhas próprias decisões, se fosse uma mulherzinha - ou homem - frágil,
que pensa que um cirurgião é o mais próximo que se pode chegar de Deus, faria o que ele
sugerisse, me submeteria à biópsia, teria minhas glândulas linfáticas removidas e, então,
morreria, sem sequer perceber que meu cirurgião nem mesmo está convencido de fazer o
que é certo".
"Eu também. Ouso dizer que isso acontece o tempo todo. Agora, porém, você disse
'não' à cirurgia e provavelmente adota-rá aquela terapia estranha - será que você já
percebeu que, se for em frente, poderá servir como exemplo, para muitas pessoas ?"
"Francamente, não. Ultimamente eu não tenho tipo tempo para pensar além do
próximo passo que preciso dar".
"Está bem", disse Catherine. "Mas, entenda, se você realmente for em frente com a
terapia e se recuperar, então poderá anunciar o que fez em alto e bom som, poderá dizer
o que se recusou a fazer, que há uma escolha, mesmo com câncer que já apresentou
metástase e, se deu certo com você, poderá funcionar com outros.
Isso seria o exemplo máximo de sucesso. Depois de se colocar como prova viva do
sucesso da terapia, muitas pessoas humildes e tímidas terão coragem de enfrentar seus
médicos e fazer perguntas, tomar suas próprias decisões e dizer 'não', se isso lhes parecer
o mais certo".
"Ok, se você coloca as coisas assim... Sim, suponho que a única coisa honesta a
fazer é experimentar a terapia, ser minha própria cobaia e, depois, dizer o que quiser
dizer. Mas não perdoo o dr. Lennox e duvido que um dia o faça".
Mais tarde, naquele dia, o dr. Montague ligou-me para dizer que os resultados dos
exames do dia anterior estavam bons, de um modo geral, exceto por meu nível de glicose
sanguínea em jejum, que estava acima do normal; ele queria que eu voltasse, para
realizar um teste de tolerância à glicose.
Isto significava outro jejum e outra jornada matinal sob clima gélido até o
laboratório, dificultada pela preocupação. O teste consistiu de um ritual horrível com
duração de duas horas, que começou com o consumo de uma grande jarra de um líquido
insuportável e amarelo brilhante, contendo glicose, que revoltou meu estômago vazio;
depois, co-letaram meu sangue e urinei de meia em meia hora, conforme instruções dadas
por um homem lúgubre que vestia terno preto.
A experiência já teria sido suficiente para ativar qualquer fobia latente a Drácula que
eu pudesse ter tido. No dia seguinte, o dr. Montague informou-me que eu sofria de
diabetes leve. Também sofria disto, eu quero dizer.
Recebi a notícia com um choque. Isto também parecia injusto, para alguém que não
comia doces, tão injusto quanto um vegetariano ser atingido por uma carcaça congelada
de gado.
Quando eu era criança, sempre dava os doces e chocolates que recebia de adultos
que não conheciam minha antipatia por doces, um hábito que me dava uma aura gratuita
de menina bem comportada e generosa. A verdade era que eu não suportava aquilo e
teria preferido um pedaço de queijo.
E, agora, eu tinha diabetes. Era decepcionante. Depois, porém, percebi que esta
última virada em minha saga médica confirmava, na verdade, a tese do dr. Gerson - o
câncer não ocorria sem um dano acumulado gradualmente ao sistema de pâncreas e
fígado. Obviamente, meu pâncreas havia se degenerado, e só Deus sabia o que meus
outros órgãos, especialmente meu fígado, estavam fazendo. Fui em frente mesmo assim.
Durante o dia inteiro e em grande parte da noite, passei cada momento livre e
desperto lendo o livro de Gerson, revivendo as maratonas de estudos que realizava em
meus tempos de estudante, pouco antes dos exames. Eu conseguira ler uma boa parte do
livro, quando fui visitar Margaret Straus em um dia de temperatura congelante, no começo
de janeiro.
Ela vivia em um condomínio em Bloomsbury. Enquanto eu me aproximava de seu
apartamento, precisei me desviar de um grande saco de cenouras, para alcançar a
campainha.
Margaret Straus abriu a porta. "Nós praticamos o que pregamos", ela disse,
movendo um pouco o saco de cenouras para que eu entrasse. Ela era alta, magra e
bonita. Também parecia incrivelmente saudável, com pele perfeita e olhos brilhantes e
límpidos.
A simples visão daquela mulher fez com que eu tomasse consciência de minha
aparência acinzentada, cansada e doentia.
Contei-lhe minha história e acrescentei que a teoria de câncer de seu avô me convencera
da futilidade de qualquer outro tratamento ortodoxo. Eu não sabia, porém, qual era o
próximo passo e o que deveria fazer.
"Bem, você pode começar a terapia imediatamente", ela disse. "O tratamento é
descrito em detalhes no livro, como você percebeu. Muitos pacientes, não apenas Jaquie
Davison, seguiram apenas as instruções do livro e se recuperaram. Não sou médica, não
examino nem trato pessoas. Tudo o que posso fazer é lhe dar conselhos práticos sobre a
execução correta. Você precisará de um médico que cuide do lado físico. Você já tem um ?
Excelente! Não existem muitos profissionais receptivos a terapias alternativas. Você também
terá que reorganizar seu estilo de vida e sua cozinha. A execução da terapia causa muitas
mudanças, é difícil e cara, e você precisará praticá-la por dezoito meses, ou até dois anos,
para ficar realmente bem".
"Percebi isso, lendo a história de Jaquie. É muito tempo. Será que posso trabalhar
durante este período ?"
"Só se for em casa. Será preciso beber suco fresco a cada hora, pontualmente, de
modo que você não poderá sair. Ocasionalmente, você também se sentirá fraca demais e
até enferma e não desejará sair da cama, muito menos trabalhar".
"Neste caso, perderei meu emprego. E meus rendimentos".
"Desculpe-me, mas não posso aconselhá-la quanto a isso".
"Não, é claro. Não se preocupe, este é um problema meu. Por favor, me conte
sobre os detalhes práticos do tratamento. Já estudei a dieta e parece bem difícil. Não
duvido que possa consumir apenas os alimentos permitidos, mas seus pacientes não
morrem de frustração gastronómica ? Dezoito meses sem um ovo, ou uma pitada de sal..."
"Ninguém jamais morreu de tédio com a dieta", Margaret disse, "contudo, a maioria
dos pacientes que seguem a terapia de Gerson não sobreviveria muito tempo sem ela. Eu
mesma sigo esta dieta por opção, não por necessidade, e gosto muito".
Ah.
Isto explicava o grande saco de cenouras em sua escada e, provavelmente, também
sua aparência saudável. Porém, eu ainda não podia imaginar como alguém que não tinha
uma doença potencialmente fatal poderia optar por viver com aquele regime ul-tra-
vegetariano rígido.
Entretanto, como me haviam dado apenas seis meses de vida se eu recusasse a
cirurgia, não havia motivo para me preocupar por abandonar pepinos em conserva (muito
salgados) ou abacate (oleoso demais). Margaret deu-me muitas outras coisas com as quais
eu poderia me preocupar.
Enquanto ela explicava a rotina, eu começava a perceber que a terapia reduziria
meu estilo de vida confortável, livre e docemente irregular a uma disciplina que cheirava a
rigor monástico medieval.
Eu não faria mais lanchinhos casuais nem refeições em restaurantes com amigos;
estaria limitada a comer em casa. Toda a minha comida teria que ser orgânica, em parte
para afastar substâncias agroquímicas tóxicas de meu sistema já maciçamente
prejudicado, em parte para a obtenção de todas as vitaminas, enzimas, proteínas,
elementos-traços e equilíbrio correto de sódio e potássio, que apenas alimentos cultivados
organicamente poderiam conter.
Este terreno era conhecido. Havia alguns anos eu começara a cultivar ervas e
vegetais orgânicos em meu pequeno jardim, como uma versão ecológica moderna de
Maria Antonieta fingindo ser uma camponesa e, em geral, com o mesmo impacto, já que
minha produção mal dava para me alimentar por mais de uma semana. Ainda assim, eu
conhecia os princípios.
"Ah, Deus", disse Margaret, "você precisará uma horta muito grande para cultivar
tudo o que precisa para a terapia". Na verdade, as quantidades básicas de alimentos e
sucos para uma semana eram espetacula-res: dezesseis quilos de maçãs e dezesseis quilos
de cenouras, nove quilos de batatas, de aipo, beterraba, erva-doce e cebolas, pimentões,
abobrinhas, milho verde e rabanetes.
E, é claro, quantidades adicionais para servir a meus ajudantes e visitantes.
Margaret falou-me sobre o único verdureiro de Londres que vendia toda a gama de
produtos orgânicos e entregava a domicílio em amplas quantidades. Ela esperava que
minha cozinha fosse grande o bastante para armazenar o suprimento para uma semana.
Tudo o que não entrasse nos sucos deveria ser cozido em água filtrada, assado ou
comido cru. Parecia mortalmente entediante.
Adeus, espinafre congelado picado, misturando-se lentamente em um béchamel
aveludado; adeus, ervilhas verdes-pálidas, tenras e miúdas, que se derramavam das latas
para me alegrarem no mais frio do inverno; adieu, aspargos enlatados ou qualquer coisa
enlatada. Adeus.
Perdão, mas o que era aquilo acerca de água filtrada ? "Agua da torneira é
perigosa demais para beber", Margaret explicou. "Ela contém flúor e cloro, que são
inibidores de enzimas, além de várias outras substâncias perigosas. Você precisa instalar
um purificador de água, grande e caro, ou comprar água filtrada de algum farmacêutico.
Isto também é caro, a longo prazo. Você precisará de 45 a 53 litros de água purificada
por semana".
Ela não me deu tempo para digerir a inconveniência de abandonar a água da
torneira, como se fosse um mau hábito, mas foi direto para a calamidade do fígado, o
único ingrediente não-vege-tariano da terapia na forma de três copos de suco de fígado
cru e cenoura por dia.
O fígado precisava vir de gado muito jovem, que não havia sido exposto a drogas.
Precisava ser fresco, não congelado, e era extraordinariamente difícil de obter - e mesmo
se houvesse um fornecedor confiável, ainda havia a tarefa difícil de transportar o fígado
até a casa do paciente três vezes por semana.''
"Isto parece imensamente complicado e caro", eu protestei. "Preciso mesmo consumir
suco de fígado ? Será que não posso saltar apenas isso ?"
"Temo que não. O suco de fígado é essencial para ajudar a restaurar o fígado
enfermo do paciente e apoiá-lo com as substâncias que ele não pode produzir por si
mesmo naquele momento. Por esta razão, injeções diárias com fígado cru também fazem
parte do programa. Eu gostaria que você compreendesse que, nesta terapia, cada fator é
necessário e nada pode ser descartado".
Enquanto ela prosseguia, revelando os detalhes da terapia, que soava cada vez
mais como algo que eu faria em tempo integral, eu percebi que lera apenas
superficialmente as instruções práticas contidas no livro de Gerson, concentrando-me muito
mais na teoria e filosofia do regime. Bem, isto era bem típico de mim, que me via como
uma das teóricas da natureza. Exceto que, desta vez, conhecer os princípios não era o
bastante.
Felizmente, meus conhecimentos falhos não desanimaram Margaret, que devia estar
acostumada com pessoas interessadas, mas desinformadas. Além disso, ela explicou
pontos que haviam sido mencionados apenas brevemente no livro, de modo que não me
senti constrangida em admitir minha ignorância. Entre esses pontos, estavam as crises de
enfermidade.
4 O suco de fígado foi abolido em 1987, em virtude da impossibilidade de se obter
fígado de gado sem contaminação por Campylobacter. Atualmente, os pacientes tomam
cápsulas líquidas de fígado.
"Essas crises são reações favoráveis ao tratamento", disse. "Elas resultam da
desintoxicação rápida, mas podem ser muito mais desagradáveis do que o livro indica.
Bem ruins, na verdade.
Esta é mais uma razão para a contratação de um auxiliar em tempo integral,
alguém que possa cuidá-la durante uma crise. Além disso, mesmo sem tais reações,
provavelmente você não poderia cozinhar, fazer sucos e lavar frutas e vegetais da manhã à
noite".
"Sou bem eficiente, e tenho uma aptidão física razoável, exceto por este incrível
cansaço".
Ela sorriu de um modo que sugeria que eu não permaneceria em boa forma por
muito tempo; depois, deu-me outra lista de detalhes e privações desagradáveis. Nada de
maquiagem, nem de tingir os cabelos. Nada de perfume, desodorante ou óleos para
banho, nada de detergentes, apenas sabão neutro e sem perfume para mim mesma e
para a lavagem doméstica. Eu não deveria usar quaisquer produtos químicos, panelas de
pressão ou utensílios de alumínio, nenhum processador moderno de sucos, mas em vez
disso, um triturador elétrico pesado, além de um aparelho separado, para espremer o suco
de maçãs e vegetais transformados em polpa.
"Se eu fosse uma militante feminista", falei, "suspeitaria que esta terapia é contra as
mulheres, porque bane todos os elementos que poupam tempo em nossas vidas, de
alimentos rápidos a detergentes. E ter que fazer todos esses sucos em duas etapas difíceis...
é meio assustador".
"Eu sei, e sinto muito. Mas não é possível desintoxicar um sistema intoxicado, a
menos que possamos garantir que não haverá mais nenhum consumo ou uso de
substâncias tóxicas, e todas as coisas que a terapia proíbe contêm algum perigo. Quanto a
centrífugas para os sucos, infelizmente elas produzem uma troca de ele-tricidade positiva e
negativa, que destrói as enzimas oxidantes.
Ainda assim, a única finalidade da terapia com sucos é colocar essas próprias
enzimas no corpo, em grandes quantidades. Alguns pacientes tentaram usar processadores
elétricos para poupar tempo e esforço na preparação dos sucos, mas não se saíram bem".
"Tudo bem... Estou reclamando apenas por ignorância. Mas francamente, sem
maquiagem e cabelos tingidos, me transformarei em uma mulher velha, grisalha e de
aparência doentia. Isso não é grande incentivo, é ?"
Margaret riu. "Ah, mas você não se tornará uma velha, porque à medida que
melhorar, readquirirá a boa aparência e parecerá consideravelmente mais jovem, com
pele saudável e com boa cor natural. Você não precisará de maquiagem".
Encolhi os ombros. Embora gostasse de Margaret, achei-a oti-mista demais. Ainda
assim, exatamente como o dr. Andrews, que me prometera uma regeneração visível, ela
era jovem demais para saber que nada poderia reverter as perdas sutis e estragos nem tão
sutis da meia-idade. "Bem, desculpe-me por dizer isso, mas acho que não vou jogar fora
meu lápis de sobrancelha", eu disse, de modo firme e inconsequente. "Minhas
sobrancelhas não têm contorno firme e todo meu rosto parece sem graça, se não as pinto.
Ah, francamente", acrescentei, "não pareço ridícula, discutindo sobre minhas
sobrancelhas, quando o que conta é minha sobrevivência ? Acho que meus protestos vêm
da fêmea irrecuperável dentro de mim. Apesar disso, gosto dela".
"Acho que não haverá problema, se você quiser manter seu lápis de sobrancelha",
Margaret respondeu, em tom divertido.
Logo depois, levantei-me, pronta para deixá-la e profundamente pessimista. "Acho
que não suportarei a terapia", falei com tristeza. "Estou doente, sinto-me terrivelmente
cansada, passei por alguns choques desgastantes recentemente, minha casa é pequena
demais para a contratação de um ajudante e é difícil e caro manter empregados. Acima de
tudo, porém, toda a terapia parece complicada e difícil demais. Acho que não poderia
assumi-la. Por que não existe uma clínica para a terapia de Gerson, aonde eu pudesse ir
durante algum tempo ?"
"Há uma, sim. No México, perto de Tijuana, na fronteira com os Estados Unidos".
"E mesmo ? Por que você não me disse ?"
"Porque você só me perguntou agora!"
"Mas então, por favor, conte-me mais".
De repente, eu sentia esperança e otimismo outra vez. Se pudesse iniciar a terapia
com o pé direito, com ajuda de especialistas, talvez fosse mais fácil continuá-la em casa.
"O lugar é chamado de Hospital La Gloria, e é muito agradável", Margaret disse. "A
equipe é formada por médicos especializados na terapia de Gerson, e minha mãe atua
como consultora. Se você estiver interessada, pode ligar para a casa dela, na Califórnia,
amanhã, para saber mais detalhes sobre o lugar, se tem vaga para você ou qualquer
outra informação".
"E, se eu for, por quanto tempo deverei ficar lá ?"
"Pelo menos três semanas. Obviamente, quanto mais você puder ficar, melhor,
porque quanto mais aprender sobre a rotina, mais facilidade terá em casa, depois".
"Será que não é muito caro ?"
Era, sim. Na verdade, era tão caro quanto manter um paciente em um bom hospital
inglês. A única diferença era que, diferentemente de uma baixa em um hospital em meu
país, a Terapia de Gerson não seria paga pela previdência social.
"Bem, bem", eu disse a Margaret, "está claro que a clínica não precisa arrebanhar
pacientes com preços baixos. Eu teria que usar minhas economias. Mas, pensando bem, se
eu morrer, não precisarei de nenhum dinheiro e, se me recuperar, poderei ganhá-lo
novamente. É melhor ir embora e pensar sobre isso. Neste momento, estou perplexa com
tantas informações".
Ela assentiu e me deu alguns materiais escritos: um livreto descrevendo a clínica, o
número de telefone de sua mãe, Charlotte Gerson Straus, uma seleção de histórias
recentes de casos de pacientes recém-recuperados de problemas ditos incuráveis com a
terapia de Gerson, e um livreto bem volumoso acerca de como realizar a terapia na
Inglaterra, contendo endereços úteis e receitas especiais.
Agarrei o kit de informações como se esse fosse um fio mágico que me conduziria
até a saída de um labirinto. Minha mente estava pesada com tantos fatos, temores,
dúvidas, esperanças e cansaço esmagador. Agradeci e dei boa-noite a Margaret. Prometi
ligar-Ihe quando me decidisse. Qualquer que fosse minha decisão.
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CAPÍTULO 6
Ao CHEGAR EM CASA, TIREI O TELEFONE DO gancho, deitei-me no sofá e deixei
que minha mente vagasse livremente, em busca de respostas para minhas dúvidas. Era
preciso descobrir o que eu, como um todo e não apenas meu cérebro ou minha vontade
consciente, realmente desejava fazer: concordar em morrer de câncer ou ingressar na
terapia e tentar a recuperação.
Ambas alternativas haviam se tornado tão reais nas últimas horas que eu conseguia
imaginar as duas, com muita clareza. Ao mesmo tempo, meu senso de paz, há muito
perdido, também começava a voltar. Parecia não haver mais motivos para tensão ou
ansiedade.
Eu fizera minha 'pesquisa de mercado', inspecionara tudo que tinha à minha
disposição e afirmara meu direito à livre escolha. Tudo o que precisava fazer era decidir o
que levaria para casa..
A terapia ainda parecia excitante - na teoria. Agora que eu entendia a dificuldade
de sua prática, porém, ela me assustava. Dezoito meses de não-vida, em confinamento,
seguindo um programa de amplas privações - como eu poderia aderir a ele com minha
natureza impaciente e intolerância ao tédio ?
Havia uma sentença agourenta no livro do dr. Gerson, sob o título de "CUIDADO -
Muito Importante", que dizia: "E aconselhável não iniciar o tratamento se, por qualquer
razão, a aderência máxima às suas recomendações não for possível". Eu nunca tivera
aderência máxima a nada que me parecesse difícil ou monótono e via pouca esperança de
mudar agora.
Suponha, porém, que eu conseguisse aderir ao programa e o tratamento ainda
assim não funcionasse, o que era concebível. Será que eu me sentiria furiosa por ter
gastado meus últimos meses de saúde relativamente boa, sem forças para recuperar o
suficiente para me manter e tentar algo que realmente me desse prazer ? Por exemplo,
revisitar alguns de meus lugares favoritos. Viajar agora, morrer depois. Criar meu próprio
roteiro.
Eu escolheria algumas catedrais - Chartres, Lincoln, Laon, Vézélay. Algumas cidades
- Bath, Lucca, Trogir, Toledo. Alguns recantos especiais -Avebury no inverno, Painswick no
começo da primavera e, no alto do verão, um pequeno hotel nos Pirinéus franceses, com
um riacho murmurante e encantador que se vê da janela do quarto.
Ah, pare com isso e se concentre. A terapia. Sim. Se ela não funcionar para mim,
bem, então eu morrerei. Não há nada de errado com isso. Eu concordava com as palavras
do poeta inglês William Blake: "Morrer não é mais que ir de um para outro aposento". A
morte era tão certa e necessária quanto o nascimento. Eu aceitara isso muito tempo atrás e
não a temia.
Por que temeria um plano intermediário entre dois estágios de consciência ? Se eu
precisasse morrer de câncer no futuro próximo, o mais importante seria me libertar, não
me agarrar a esta vida ou lutar, e abandonar meu corpo, indo embora suavemente para a
próxima dimensão, ou para onde quer que fosse. Ah... será ?, uma voz irónica dentro de
minha cabeça indagou; falar é fácil.
Alguns anos antes, quando os livros do autoproclamado lama tibetano Lobsang
Rampa eram a onda do momento, eu tentara seguir com empenho suas instruções para
viagens astrais fora do corpo, durante uma ocasião familiar em que eu preferiria estar em
qualquer outro lugar.
Contudo, a viagem astral não funcionou, minha alma permaneceu firmemente
atada ao meu corpo e a experiência transfor-mou-se em uma piada que não compartilhei
com ninguém. Presumivelmente, eu estava apegada demais à terra para abandonar minha
casca física quando bem entendesse. Ah, mas câncer terminal poderia fazer toda a
diferença.
Estou me perdendo em devaneios novamente. Desculpe-me. Ainda assim, a verdade
é que eu achava mais fácil considerar as vantagens de morrer que reunir entusiasmo para
permanecer viva. Isto tinha algo a ver com o cansaço fenomenal que eu sentia na maior
parte do tempo, um pouquinho menos ao despertar que à hora de ir dormir.
Agora, em particular, depois da agitação e tensão emocional dos últimos dias,
parecia que nada, exceto a morte, poderia curar minha fadiga. Pensei em um velho carro
que vi certa vez, com suas janelas cheias de adesivos berrantes que proclamavam que seus
proprietários haviam estado em tais e tais lugares, por todo o país. O adesivo maior, que
coroava o arranjo todo, era absolutamente categórico: "Estivemos em todos os lugares".
Não era de admirar que o carro tivesse sido abandonado em um estado de fadiga
mortal, sob um salgueiro-chorão, em Chiswick. Eu conseguia identificar-me com ele.
Talvez eu também tivesse estado por toda parte, sem perceber, e agora não houvesse mais
aonde ir.
A morte curaria meu cansaço e também a doença do envelhecimento. Contrariando
a sentença antiga, "Aqueles a quem os deuses amam morrem jovens", eu achava que
aqueles a quem os deuses amam morrem nem tanto na juventude, mas na meia-idade,
com um histórico rico, mas sem sinais visíveis de decadência ou deformidade. A vaidade
manifestava-se novamente.
Eu costumava justificar minha determinação em permanecer jovem citando o
exemplo daqueles japoneses veneráveis que tingem seus cabelos para não deprimir seus
amigos ao lembrá-los da senilidade e mortalidade, mas agora essa desculpa não
funcionaria mais. Meu desejo era não deprimir a mim mesma, não a meus amigos.
A idéia de ficar velha e feia era detestável. Eu não suportava a queda na
temperatura da vida, a perda final de intensidade. Sempre vivera de um modo passional,
totalmente envolvida com o que parecesse importante naquele momento, de modo que
nenhuma experiência, boa ou ruim, era apenas tépida ou indiferente. Agora, porém, dada
a natureza das coisas, eu poderia esperar apenas equanimidade crescente e perda do
fogo vital com a meia-idade, além de embotamento e atrofia. Isso não era grande
motivação para viver.
Talvez eu fosse realmente romântica. Ou seria imatura ?
Como isso não me levava a lugar nenhum, parei de tentar pensar ou decidir. O
epitáfio que uma amiga falecida compusera para si mesma dizia: "Ela amava a vida e
recebeu bem a morte", e descrevia perfeitamente minha situação.
Não havia nada a acrescentar, e isto era tão bom quanto uma decisão. Agora, eu
entrava em uma área na qual precisava permitir a emergência de um objeti-vo, sem caçá-
lo, uma área na qual os extremos de viver e morrer poderiam ser conciliados, se não
reequilibrados.
gora, morrer parecia a melhor opção. Deitada imóvel em meu sofá azul, eu tinha a
impressão de nadar rapidamente em um mar claro e calmo, livre, feliz, inteira e satisfeita,
movendo-me sem esforço cada vez mais para longe da praia. "Oh, morte, onde está teu
aguilhão ?
5 Onde ? Para "morte", leia-se libertação, em meu caso.
quele foi um momento maravilhoso e precioso. Então, algo estranho aconteceu. A
paz hipnótica da experiência estilhaçou-se, assim como meu distanciamento. Senti-me tão
alerta e em choque como se alguém tivesse me lançado brutalmente através de uma vasta
distância, soltando uma faixa elástica, forçando-me a voltar para um tipo denso de
realidade.
evo ter invadido um território proibido e algum guarda invisível daquela fronteira
chutou-me de volta. Mesmo em meu estado de choque, porém, eu sabia que o que havia
sentido sobre morrer e sobre libertação era verdadeiro e válido; apenas o momento era
inapropriado e, por esta razão, eu teria que seguir vivendo.
em feito, eu pensei, por tentar conciliar os opostos com tamanha falta de
habilidade. Ser lançada de um extremo para o outro foi um choque para meu sistema,
mas também estranhamente excitante. Decidi, então, que viveria.
ecidi que finalmente faria algo de minha vida, livre das armadilhas emocionais e
neuroses de minha juventude e de meu estágio de vida atual, não tão jovem. Afinal,
apenas recentemente eu fincara raízes adequadas, encontrara metas, começara a me
descobrir.
E as pessoas a quem eu amava, minha rede preciosa de corações, amor e amizade,
de repente me faziam sentir-me transbordante de amor, por sua singularidade
insubstituível e por sua humanidade terna, simples e comum. Eu sabia que não suportaria
deixá-los.
Eles eram parte de meu padrão, assim como eu era parte dos seus.
Compartilhávamos uma jornada e eu não tinha o direito de abandoná-la unilateralmente.
A decisão é minha, pensei com ardor. Cabe a mim decidir se viverei ou morrerei,
mas preciso decidir-me e deixar a hesitação de lado. Se eu morrer agora, não colherei os
frutos de minha vida, toda ela terá sido uma longa preparação sem um resultado, um
exercício fútil.
Deus, ainda não fiz nada, apenas falei sem parar sobre meus planos, e isso não é o
bastante. Além do mais, seria hipocrisia rejeitar o suicídio simples e direto, mas cometê-lo
de um modo disfarçado, lentamente e por omissão.
Acima de tudo, seria idiotice deixar-me morrer apenas porque um cirurgião
ignorante lidou mal com meu câncer.
Meu choque desapareceu. Agora, eu estava furiosa e combativa. Meu ressentimento
reprimido contra o dr. Lennox e contra a forma como o sistema lidava com o câncer
explodiu em minha consciência. Andei pela casa com energia furiosa e acendi todas as
lâmpadas.
Também abri as janelas e a porta da frente, para deixar entrar o ar noturno e
mordente de janeiro. Respirei profundamente, várias vezes, para encher meus pulmões.
"Alongue-se. Bata o pé. Aja. Vá em frente. Agora mesmo."
Liguei para Hudie e lhe contei sobre minha decisão. "Farei a terapia de Gerson", eu
lhe disse. "Começarei indo à clínica que eles mantêm no México, para aprender como
executá-la do modo certo!"
"Ah, ótimo! Estou muito contente. Fiquei sentado aqui a noite inteira, preocupando-
me e esperando que você ligasse. Quando você pretende viajar ?"
"Assim que for possível. Talvez no começo da próxima semana. Não há por que
esperar enquanto o câncer se espalha ainda mais. Ah, querido, detesto deixá-lo, mas esta
é a melhor alternativa. E quero ficar na clínica o máximo que puder. Ela é bem cara".
"Não se preocupe, eu a ajudarei. Daremos um jeito nas despesas. Você precisa ficar
bem e ficará, tenho certeza".
Querido, querido Hudie, com seu otimismo cego habitual. Mas, desta vez, consegui
evitar a pergunta "Como você sabe ?" e disse, apenas: "Espero que você tenha razão. Se eu
não conseguir, não será por falta de tentativa".
Desligamos. Meu pobre amor, pensei, confrontado novamente com seus piores
medos e, na medida em que estão relacionados a mim, ele não pode nem mesmo dar a
volta e fugir. Como suportaremos os meses intermináveis que virão, se vierem, quando ele
mal conseguiu lidar com aquelas poucas semanas de minha doença, um ano atrás ?
Já era tarde, mas liguei rapidamente para Catherine, para con-tar-lhe sobre minha
deci são, e depois fui para a cama com o livro do dr. Gerson. Desta vez, entretanto, nem
mesmo o capítulo sobre metabolismo dos minerais em doenças degenerativas conseguiu
me manter desperta por muito tempo.
Na confusão de sonhos que se seguiu, apenas um fragmento sobreviveu em minha
consciência. O símbolo zodiacal do escorpião - meu signo - e o símbolo de câncer
executavam uma dança e desafiavam um ao outro em uma praia rochosa e tristonha. Os
dois crustáceos pareciam determinados e impiedosos. Pareciam igualmente poderosos, e
havia no ar a tensão de um duelo cruel de vida ou morte, pelo modo como vigiavam os
movimentos mais leves um do outro, prontos para atacarem, com ferroada venenosa ou
pinças esmagadoras.
Não consigo lembrar como o sonho terminou. Talvez nem tivesse terminado, e a
luta entre as duas criaturas continuasse em algum nível, interminavelmente, até a vitória de
um deles e até que eu me recuperasse ou morresse. Bem, sim, isso fazia sentido. Nos
últimos anos, eu negligenciara as qualidades de determinação, tenacidade e resistência do
meu signo. Talvez, agora, fosse hora de colocá-las em prática.
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CAPÍTULO 7
EM VIRTUDE DA DIFERENÇA DE FUSO HORÁRIO entre Londres e a Califórnia,
precisei esperar até a tarde seguinte para ligar para Charlotte Gerson. Meus dedos
tremiam, quando disquei seu número. Era assustador pensar que eu tentava tomar
providências sobre uma questão de vida e morte por telefone, com uma senhora
desconhecida que estava no outro lado do planeta. A ideia de que ela pudesse estar
ausente ou que não houvesse vaga para mim na clínica para o próximo ano me assustava
ainda mais.
Charlotte respondeu imediatamente. Apresentei-me, mencionei meu encontro com
sua filha Margaret e perguntei se poderia aceitar-me em sua clínica.
"Não sei lhe dizer de imediato, precisarei verificar". Sua voz era clara e nítida. "Mas,
primeiro, diga-me por que você quer vir".
"Sofro de melanoma maligno, com tumor secundário em minha virilha".
"Ah, bem, acho que você gostará de saber que alguns de nossos maiores sucessos
têm sido com melanoma. Uma paciente curada por meu pai, vinte e sete anos atrás, ainda
está viva e saudável. E tivemos muitas outras histórias de sucesso, desde então. Quantas
cirurgias você já fez ?"
"Uma excisão grande, seguida por enxerto de pele".
"Fez radiação ou quimioterapia ?"
"Não".
"Bom. Isso melhora suas chances. Alguns pacientes já sofreram tantos danos pelos
tratamentos ortodoxos quando chegam aqui que não podemos fazer mais nada por eles.
Por acaso você sabe sua contagem atual de linfócitos ?"
"Sim, os resultados laboratoriais estão bem aqui na minha frente. Linfócitos, trinta e
dois", anunciei, imaginando se isso era bom ou ruim.
"Muito bem", Charlotte falou. "A terapia geralmente não funciona quando a
contagem de linfócitos cai abaixo de dez. Quando seu tumor secundário foi descoberto ?"
"Menos de um mês atrás. A única opção que recebi aqui foram mais cirurgias, o que
não desejo".
"Claro que não. Isso não lhe traria benefícios. Se tivermos vaga, quando você
gostaria de vir ?"
"Daqui a dez dias, mais ou menos. Digamos que em dezenove de janeiro".
"Está bem. Tenho certeza de que conseguiremos colocá-la no programa, de algum
modo", ela disse, em tom confiante. "Se você me ligar novamente amanhã a esta hora,
terei algo mais para lhe dizer. Enquanto isso, vá em frente e faça sua reserva. Você terá
que ir até Los Angeles e, depois, seguir para San Diego. Nós a pegaremos no aeroporto de
lá".
Instruções informais ótimas, para quem está no outro lado do oceano, pensei,
divertida - era assim que eu instruía as pessoas que me visitavam pela primeira vez, após
descerem do ônibus. Eu não tinha ideia de como providenciaria tudo, em tão pouco
tempo.
Contudo, daquele momento em diante, como se minha decisão de ir em frente
tivesse removido qualquer obstáculo, tudo seguiu rapidamente e sem empecilhos. Como
em um conto folclórico irlandês, as montanhas metafóricas achatavarn-se e os vales
subiam, permitindo-me seguir veloz em frente. Nem mesmo a descoberta de que meu
passaporte estava quase vencendo perturbou meus planos.
Quando expliquei ao encarregado por que precisava viajar com tanta urgência para
os Estados Unidos, este assentiu e disse que eu poderia pegar meu passaporte dali a dois
dias.
"Você não nos dá muito tempo para providenciarmos isso, não é ?", ele perguntou,
com gentileza.
"Desculpe-me. Eu mesma não tenho muito tempo". Naquelas alturas dos
acontecimentos, eu pensava que nada mais poderia me chocar, mas a fotografia em meu
novo passaporte me fez tremer de susto. Ela mostrava um rosto sem vida, esgotado e
totalmente desolado que não parecia o meu.
Ainda assim, não tirei outra foto - talvez ficasse ainda pior, uma vez que eu me
sentia mais exausta a cada minuto que passava. O nódulo em minha virilha parecia um
pouco maior, sempre que eu o tocava. Havia, também, um senso vago de desconforto em
torno de minha omoplata e axila esquerdas.
No dia seguinte, Charlotte confirmou que haveria um quarto para mim no dia vinte
de janeiro e me disse em que hotel eu deveria me hospedar em San Diego, já que seria
tarde demais para seguir até a clínica naquela noite.
Eu fiz apenas uma pequena pausa para desfrutar as boas notícias, mas não ousei
relaxar. Tudo exigia reservas de energia que se esgotavam rapidamente, e talvez eu não
pudesse dar a partida novamente, se parasse o motorzinho que me movia. Por favor, faça
com que eu suporte esta provação final, pedi a meu corpo.
Por favor, permaneça no curso só mais uma vez e perdoe minhas transgressões,
incluindo este cigarro e também o próximo. Se você aguentar, meu pobre corpo, receberá
absoluta prioridade na clínica. E depois também. Prometo, do fundo do coração.
Não esperei pela resposta do meu corpo, mas ele suportou, o que já era uma
resposta. Assim, completei uma longa lista de tarefas: reservei vôo, desocupei meu
escritório, peguei meu passaporte e vistos, fui ao dentista e à cabeleireira, despedi-me de
alguns amigos, escrevi para outros, providenciei cheques de viagem e garanti ao
preocupado gerente de meu banco que com certeza voltaria do México, mas que merda!
(nessas palavras exatas, o que chocou bastante o pobre homem).
Além de tudo isso, fui tão longe quanto podia com a terapia de Gerson antes da
viagem, o que não foi muito, e consistiu principalmente de cortar aquilo que não poderia
comer depois. A dieta ou a doença fez com que eu perdesse três quilos em uma semana.
Entretanto, uma vez que isto me deixou com meu peso ideal, não me permiti
preocu-par-me com meu emagrecimento.
Lidar com as pessoas que eu mais amava foi a tarefa mais difícil - tentar convencer
minha mãe chorosa, por telefone, de que eu ficaria bem no México, embora ninguém de
nossa família jamais tivesse ido até lá e a terapia de Gerson não fosse algo conhecido
mundialmente.
Tentar explicar aos meus chefes sempre gentis, Victor e Mónica, por que a terapia
iria dar certo (e cogitar, depois, se eu tentava convencer a eles ou a mim mesma). Insistir,
com amigos ansiosos que, sim, eu estava fazendo a coisa certa, sim, tinha certeza; não,
não queria consultar mais nenhum médico.
Felizmente, não houve necessidade de convencer ou confortar Catherine, quando
saímos para nosso jantar de despedida em um restaurante vegetariano. Conversamos e
nos comportamos como se tudo estivesse normal.
Por minha insistência, terminamos nossa noite com uma dose generosa de
conhaque em um barulhento pub perto do restaurante, como uma precaução contra o
excesso de virtude. Naquele estágio, pela primeira vez, Catherine tornou-se estranhamente
protetora e insistiu que eu pegasse um táxi para voltar para casa.
Recusei, mas o espelho do pub mostrou-me por que ela demonstrara preocupação:
com meu rosto pálido e olhos amarelados, eu não parecia capaz sequer de caminhar até a
porta, muito menos de pegar o ônibus para chegar em casa.
Em algum ponto, durante aquele período frenético, percebi subitamente o quanto
Hudie mudara. Ele estava calmo, confiante e prestativo, um homem forte, preparado para
enfrentar qualquer coisa que viesse. Não havia nenhum traço do menininho amedrontado,
tão evidente durante minha doença anterior, que precisava ser protegido da realidade. Ele
assumiu a tarefa dos preparativos para a terapia em minha casa, de deixá-la pronta para
meu regresso e de encontrar alguém para me ajudar.
Ao ouvir seus planos, percebi, com profunda gratidão, que exceto por terremotos ou
por uma peste, tudo estaria organizado quando eu voltasse. Ainda assim, eu não sabia o
que ele realmente pensava sobre minha viagem. Eu mesma sentia uma pontada ocasional
de pânico e imaginava se estaria completamente louca, ao entregar minha vida e a maior
parte de minha poupança de anos, para pessoas desconhecidas no México.
Alguns dias antes de minha partida, liguei para Ann Procter, para lhe agradecer por
me indicar a terapia de Gerson. Não nos víramos desde o término de nosso curso de
psicoterapia, mas eu sabia que ela trabalhava na prática privada como terapeuta e
professora de relaxamento e que alguns de seus clientes tinham câncer.
Lembrei-me também de seu calor humano e generosidade e de quando, durante
uma greve das panificadoras, ela chegou ao curso com um cesto cheio de pães caseiros
esplêndidos para ajudar nossos colegas sem pão.
Agora ela também tinha um alimento especial para me dar - se eu pudesse ir à sua
casa, na periferia de Londres, ela me ensinaria a técnica de visualização de Simonton, que
considerara muito útil para aqueles que sofriam de câncer.
"Pode ser exatamente o que você precisa levar em sua bagagem para o México", ela
acrescentou. "Infelizmente, não há nada na terapia de Gerson para envolver os recursos
psicológicos do paciente no processo de cura. Naturalmente, sei que você poderia criar seu
próprio programa de visualização, mas pode ser que o método de Simonton lhe agrade".
Esta parecia boa ideia. Eu quase não tinha tempo, mas mesmo assim Hudie levou-
me à casa de Ann em Surrey. Não houve tempo nem para inspecionar o lado doméstico e
ligado à terra da vida de Ann - sua colmeia, horta e galinheiro.
Em vez disso, fomos direto a seu estúdio e à técnica de Simonton, que era bem
simples. Duas vezes por dia, o paciente precisava relaxar profundamente e visualizar seu
câncer de um modo simbólico e espontâneo -como um bloco de metal, por exemplo, como
um tubarão, um monstro de ficção científica ou qualquer outra coisa.
A próxima etapa era evocar os leucócitos do corpo, os 'mocinhos' do sistema
imunológico, também em alguma forma simbólica, e imaginá-los atacando e destruindo
as células malignas. O relaxamento inicial ajudava na evocação livre das imagens. Ele
também dissolvia as tensões habituais que, de acordo com alguns estudiosos, eram fa-
tores que promoviam o câncer.
Finalmente, havia também um trabalho de estabelecimento de metas, para
concentrar e reforçar a autoconfiança e fé do paciente em uma plena recuperação - ver a
si mesmo, por exemplo, como uma pessoa forte e saudável, engajada em atividades
agradáveis.
A técnica era sensata e boa, a criação conjunta de um cancero-logista americano e
sua esposa psicoterapeuta, e se baseava na ligação poderosa entre mente e corpo, entre a
vontade de viver e o curso de uma doença. Os Simontons, como descobri, estavam tendo
um sucesso impressionante com pacientes com câncer em seu centro no Texas, apesar dos
tratamentos ortodoxos aos quais seus pacientes haviam se submetido.
Obviamente, uma técnica que ajudava não apenas contra o câncer, mas também
contra os estragos causados pelas terapias convencionais, teria imenso poder.
Graças ao fato de termos estudado juntas o uso de técnicas de imaginação e
visualização, Ann e eu conseguimos ir direto ao exercício, sem preliminares. O símbolo que
escolhi para meu tumor era um obstáculo negro e sólido em uma paisagem corporal
interna brilhante e colorida, onde ele se colocava como um pesado bloco de negatividade.
Os leucócitos eram soldadinhos esforçados e esféricos, que usavam capacetes e
escudos de bronze, parecendo-se com membros do coro de uma ópera cómica. Eles
chegavam em ondas organizadas e atacavam a massa preta com pequenas espadas de
bronze, atacando e cortando, mas sem grandes efeitos. Cest magnifique, eu pensei, mais
ce n'est pas la guerre.
"Não se preocupe", Ann disse, quando lhe relatei minha quase inofensiva cena de
batalha. "Você já deu o primeiro passo. A ideia é aliar e reforçar as defesas do corpo
durante um período de tempo, por meio deste jogo simbólico. Você está completamente
esgotada... não pode esperar uma resposta vigorosa já de imediato!"
"Será que a resposta vem gradualmente ?"
"Sim. As imagens mudam o tempo todo e você notará seu progresso, pelas
mudanças em seu organismo. Por exemplo, se seus leucócitos aparecerem primeiro como
salmões e, depois, como peixes-espada ou piranhas, então você saberá que está indo bem
e que o processo por trás da técnica de visualização está se tornando mais potente".
"Entendo. E se minhas piranhas encolherem e se tornarem peixinhos de aquário,
então será melhor parar e descobrir o que está errado. Acho que percebi a ideia toda.
Sabe, o que me preocupa é o fator 'tédio' - fazer a mesma visualização duas vezes por dia,
todos os dias, além de todos aqueles intermináveis sucos e enemas. Parece monótono".
Ann riu. "E monótono, embora a mudança nos símbolos traga alguma variedade.
Além disso, você é impaciente por natureza, o que contribui para seu senso de tédio. Será
que você já percebeu como geralmente caímos em situações bobas, que nos atacam em
nossos pontos mais fracos e não param, até corrigirmos o que está frágil ? É bem
educativo".
"Ah , sim ! O problema é que não sinto vontade de me educar, atualmente. E meio
como a frase de Jung que sempre me chamou a atenção: "Livre-arbítrio é a capacidade
para fazer com prazer o que precisa ser feito". Jamais a considerei muito reconfortante,
mas talvez tenha que pensar novamente".
Ainda assim, isso teria que esperar, juntamente com qualquer visualização
adicional. A caminho de casa, pensei sobre a técnica. Era boa e lógica, mas, por alguma
razão, não me dizia muita coisa. Eu não duvidava de sua validade, apenas de sua
relevância para mim na fase em que me encontrava.
Eu sabia que meu corpo estava com sérios problemas e precisava de ajuda urgente
no nível físico; tudo o mais, incluindo apoio psicológico, teria que esperar. Não me ocorreu
que os dois processos poderiam ser combinados; eu mal tinha força para lidar com uma
coisa de cada vez.
E, então, já era hora de partir. Hudie não conseguiu ir despe-dir-se de mim naquela
manhã de segunda-feira cinzenta e úmida; minha amiga Pat acompanhou-me até o
aeroporto. Eu estava grata por sua companhia, uma vez que a solidão começava a me
envolver rapidamente e eu precisava sentir-me ligada às pessoas, acima de tudo a meus
amigos mais próximos, mas também a estranhos, com tantos quantos pudesse.
Se tivesse coragem, teria dito às pessoas em geral: "Olhem, estou numa situação
que todos temem. Tenho câncer, mas ainda sou um ser humano normal, nem um pouco
diferente do que se esperaria, pelo modo como minhas células se multiplicam... Será que
vocês poderiam me fazer o favor de conversar comigo e confirmar que ainda estou lúcida,
tenho um lugar no mundo e não preciso ser negada ?"
Não conversei sobre isso com Pat. Não havia necessidade para anunciar o que eu
sentia. Tínhamos uma compreensão mútua bastante confiável sobre os estados íntimos
uma da outra, abastecida pelo afeto e experiências compartilhadas.
Agora, a caminho de Gatwick, conversamos como sempre, rimos menos que o
normal e executamos uma ou duas de nossas brincadeirinhas costumeiras, que
transformáramos em uma arte ao longo de vinte e cinco anos de amizade estreita. Pat é
uma freudiana agnóstica, que gosta de tocar Bach, enquanto eu sou seguidora de Jung,
interesso-me por muitas religiões e aprecio Mozart.
Ainda assim, tudo o que essas diferenças básicas produziram foram momentos
muito divertidos e concessões ocasionais aos pon-tos-de-vista uma da outra. Porém, no
trem para Gatwick, até mesmo nossas brincadeiras eram menos entusiasmadas, e eu sabia
que ela conhecia o peso, o peso mortal daquela manhã, e que o dividia comigo, embora
sua reserva escocesa não lhe permitisse dizer isso.
Como eu poderia expressar minha gratidão a amigos preciosos como Pat ? Talvez
eu devesse fazer-lhes um convite cordial para uma celebração, em alguma data futura - ou
para meu velório, se tudo desse errado.
"Faremos uma festa, quando tudo isso acabar", murmurei, enquanto lhe dava um
abraço de despedida. Não era preciso especificar se minha presença seria em corpo ou
em espírito, naquele momento.
Mais ou menos uma hora após a decolagem, comecei a apreciar o espaço e silêncio
da aeronave meio vazia. Espaço e silêncio eram como um bálsamo. Nas últimas três
semanas, eu mal estivera sozinha e a falta de privacidade começava a me desgastar. De
volta às cinzas, eu pensei; bem, uma espécie de cinza.
A refeição vegetariana que pedi de antemão era um desastre completo, com um
filme para assistir a bordo. Nada importava. Bem abaixo de mim, o mundo parecia vazio e
interminável. Primeiro o oceano vasto e vazio, depois o vazio branco, plano e gigantesco
do Canadá, tão imenso e desolado. Era estranho descobrir que ainda havia tanto espaço
vazio na Terra. Depois, dormir um sono branco e plano.
Quando cheguei a San Diego, pelo diabólico aeroporto de Los Angeles, eram três
da madrugada por meu relógio biológico, mas lá eram oito da noite. O hotel que eu havia
reservado era limpo, barato e totalmente sem serviços de nenhuma espécie. Não havia
comida, nada para beber, nem mesmo alguém para carregar minha bagagem escadas
acima.
Descobri que não tinha força para levá-la, o que me assustou, porque normalmente
eu suportava cargas bem pesadas. Um hóspede gentil levou-a para mim. Eu estava
faminta, mas não conseguia enfrentar a busca por comida. O mais sensato a fazer (vi isto
em um documentário com o explorador Wilfred Thesiger) era deitar-me de barriga para
baixo e esperar que as fisgadas de fome passassem.
Mas, primeiro, era preciso ligar para o Gerson Institute. Um homem respondeu.
Confirmei minha chegada, ele confirmou que me buscariam às dez da manhã. E era isto.
Depois, adormeci.
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CAPÍTULO 8
LEVEI ALGUM TEMPO PARA DESPERTAR totalmente naquele quarto esquisito de
hotel, com seus lembretes metidos a engraçadinhos aos hóspedes (mas sem café da
manhã, sem tampa no ralo da pia - o que não me permitiu enchê-la para lavar meu rosto
- e sem puxadores nas gavetas).
O lugar parecia irreal, assim como eu. Nenhuma das pessoas a quem eu amava
conhecia meu paradeiro exato, e isso me fazia sentir fora de contexto. Toquei minha virilha
hesitantemente - talvez o fato de cruzar um oceano e um continente tivesse feito o caroço
desaparecer.
Mas não, ele estava ali, parecendo ainda maior. Será que crescia um pouco todos
os dias ? Se sim, como terminaria ? Ah, a terapia, é claro - ela daria um jeito nisso, e era
para isso que eu estava aqui. Tudo começava a entrar em foco, após minha mudança de
fuso horário.
Levantei-me e olhei para fora da janela, para o porto azul e nebuloso de San Diego.
Ah, o oceano Pacífico, eu pensei, estupidamente. Contudo, estava faminta demais para
poder apreciar aquela primeira visão.
Vesti-me e fui em busca de algo para comer. O hotel mais próximo estava repleto
de participantes de uma convenção, mas logo entrei na cafeteria e pedi o maior desjejum
do cardápio.
A garçonete trouxe-me uma tigela grande com frutas frescas - abacaxi, fatias de
melão e melancia, uma maçã, uvas, uma laranja, bananas, lichias, uma tangerina, toda a
glória dos pomares califor-nianos. Comi muito, com teimosia e prazer. Depois, vieram
duas xícaras grandes de café e quatro fatias de torrada fina cobertas de manteiga,
marmelada e mel, e cada bocado era saboreado com a paixão de um prisioneiro
condenado desfrutando a última refeição em sua cela.
Quando já não conseguia comer mais nada, acendi um cigarro. A mulher na mesa
próxima franziu o rosto e fez sinal para a fumaça, que, na verdade, seguia a direção
oposta à de sua mesa; ela pretendia dizer-me que eu era uma poluidora anti-social do ar,
mas simplesmente virei o rosto.
Lamento muito, irmãzinha, eu pensei. Desculpe-me por perturbá-la, mas estou
fumando meu último cigarro durante um longo tempo, se não pelo resto da minha vida.
Este é meu único vício e não tenho ideia de como passarei sem ele, tendo fumado
desde os dezenove anos, com interrupções breves, sempre que eu achava que poderia
largá-lo. E, a cada fracasso, a vergonha de mais uma resolução que dera em nada era
cancelada pelo prazer de acender um cigarro e me sentir confortada, como a sensação de
voltar para um namorado ruim que provavelmente me mataria no fim, mas enquanto isso
era indispensável.
E assim (continuando com meu monólogo íntimo), fumarei este aqui até a bagana,
e só Deus sabe como irei lidar com a terapia, a tensão e o estresse de minha difícil
situação sem cigarros. Pelo menos, o dr. Lennox nunca me mandou parar de fumar (e olhe
onde isso a levou - disse-me, cortante, minha voz interna mais sensível).
No caminho de volta ao hotel, abandonei meus cigarros e fósforos em um cesto de
lixo e segui em frente, sentindo-me enlutada e heróica. No hotel, porém, senti-me apenas
estúpida. Eu poderia ter dado mais umas tragadas tranquilizadoras, antes que viessem me
buscar.
Experimentei o pânico familiar de incontáveis noites do passado, em que fumara
meu último cigarro, sabendo que não poderia comprar mais até a manhã seguinte; agora,
porém, era de manhã e não haveria mais nenhum cigarro, amém. Mas meu Deus, que
criatura fraca, patética, apavorada e fissurada eu era! Amém. Amém.
O mini-ônibus da clínica chegou e o jovem motorista acompa-nhou-me até a
recepção. Havia três passageiros no ônibus: um jovem dinamarquês alto, pálido e ossudo,
chamado Mike, que anunciou que tinha melanoma como se fosse parte das informações
que as pessoas normalmente dão ao se apresentarem, e uma mulher elegante de meia-
idade, Becky, de Baltimore, acompanhada de sua filha Sally.
Sentei-me perto de Becky, que tinha um rosto inteligente e vivaz, com olhos
castanhos amistosos. Ela infor-mou-me que também tinha câncer de pulmão, por
metástase, após duas mastectomias. O modo como disse isso, em voz calma de quem
parece desculpar-se, tornou sua declaração ainda mais chocante. Em vista do seu
problema, minha perna massacrada e meu nódulo solitário pareciam quase inofensivos.
Eu lhe disse isso, enquanto me apresentava, mas Mike discordou.
"Não subestime o melanoma", disse. "Ele é traiçoeiro. Pode não parecer tão mau,
mas depois que ganha força, não pode ser contido. Passei por várias clínicas de medicina
não-ortodoxa, depois de descobrir que os médicos não podiam me ajudar. Já estive na
clínica Gerson também, e me saí bastante bem, mas depois não consegui realizar a
terapia no Canadá, onde moro. Não consegui obter vegetais orgânicos, nem o tipo certo
de fígado. Assim, estou de volta, e espero melhorar desta vez, porque não tenho mais para
onde ir".
Não gostei daquilo. Também não gostei de Mike. Ele parecia totalmente negativo.
Seus cabelos não eram tanto loiros quanto desbotados, sua voz era seca e dura e seu rosto
jovem já mostrava rugas de desaprovação habitual. Ainda assim, embora antipatizasse
com ele, eu também desejava sua melhora e cura. Ele foi o primeiro de diversos pacientes
de melanoma que me causaram este sentimento. O fato de termos a mesma doença criava
um vínculo imediato entre nós e, se um de nós melhorava com a terapia, havia esperança
também para os outros.
Passávamos por subúrbios bem cuidados da Califórnia, com muito verde, arbustos
cheios de flores e casas impecáveis e lindíssimas. Tão logo cruzamos a fronteira e
ingressamos no México -os guardas da fronteira não mostravam interesse pelos carros
americanos que passavam por eles -, o verde acabou abruptamente e a poeira e
desordem tomaram seu lugar. Passamos por um gigantesco projeto de construção de uma
estrada e por estruturas de concreto inacabadas de futuros supermercados e escritórios,
mas toda esta mega-atividade ocorria em um deserto bege, sem ligação com nada mais.
"Vocês gostarão de sua estadia na clínica", o motorista disse. "E um lugar diferente,
meio inspirador. Temos pessoas realmente boas lá. Se não falam espanhol, terão alguns
problemas de comunicação... apenas mexicanos podem trabalhar na clínica, de acordo
com a lei, e tanto arrumadeiras quanto enfermeiras falam muito pouco inglês ou apenas
espanhol.
É claro que os médicos falam inglês. Usem mímica com os empregados. Eles são
amistosos e gentis. Se vocês demonstrarem respeito e não tentarem apressá-los, não terão
dificuldades".
A ampla estrada poeirenta era ladeada por lojas de carros usados, garagens,
estacionamentos cheios de carros americanos cha-mativos e muito desgastados com
placas de "À VENDA", mais garagens, oficinas mecânicas, e nada mais. "E o petróleo do
México", o motorista explicou.
"Ele não faz muito bem para os motores, o que explica a alta oferta de carros
usados". Feiúra por toda parte. Meu coração afundou. No outro lado da estrada,
agrupamentos de casebres improvisados penduravam-se na colina, com seus varais
carregados de roupas.
Tudo bem, não estou aqui para apreciar o panorama, mas será que veria apenas
esta face do México ? Eu reconhecia a feiúra típica das fronteiras, piorada, aqui, pelo
contraste de riqueza e pobreza: esses pobres mexicanos em suas casinhas de papelão e
plástico provavelmente tentavam entrar ilegalmente nos Estados Unidos, enquanto o pior
do estilo de vida americano - a mania por carros, desertos de concreto e consumismo - já
invadia o território mexicano.
Triste, muito triste. Abandonei a imagem do México que minha mente pintara - de
hibiscos, casas caiadas de branco, jumentos mansos e montes altos - e decidi suspender
todas as expectativas.
Um vívido conjunto de árvores verdejantes apareceu à direita. O motorista saiu da
estrada, entrando por um portão largo no terreno do La Gloria Hospital, a sede da Gerson
Clinic.
Ele parou junto a dois prédios longos, baixos e térreos, separados por uma estreita
passagem aberta. Além desses, alguns degraus e uma trilha íngreme levavam para o alto
da colina, rumo a uma estrutura maior, com dois andares. A meio caminho desta, onde a
trilha virava para a esquerda, havia uma cabana marrom aconchegante, com um terraço.
E por todo o terreno viam-se palmas, cactos, aga-ves e brilhantes árvores perenes,
todos bem cuidados e cheios de vitalidade. Depois da aridez sem vida lá fora, era bom
saber que meus olhos de jardineira teriam algumas coisas vivas e em franco crescimento
para apreciarem. O lugar parecia agradavelmente informal, diferente de qualquer hospital
que eu conhecesse.
Becky, sua filha Sally, Mike e eu permanecemos à espera com a falta de jeito dos
recém-chegados, até que uma enfermeira gorducha com dentes de ouro levou-nos para
sentar sob o sol leve de janeiro.
O dia estava morno e perfumado, uma estação inteira à frente das cidades das
quais nós quatro vínhamos, e nos sentamos sob a luz brilhante do sol, admirando os
bichinhos coloridos de brinquedo que Sally havia comprado para seus dois filhos
pequenos, no México.
Ela tivera a ideia de trazer Becky, após o diagnóstico de câncer de pulmão da mãe.
Seu irmão, o filho mais velho de Becky, oferecera-se para pagar tratamento ortodoxo para
a mãe, mas Sally, cujo rosto forte e voluntarioso contrastava com o de Becky, humilde e
dócil, rejeitara a oferta e a trouxera até a fronteira. O marido de Becky, um cientista,
mostrara-se abatido demais para participar do debate familiar.
"Na área de Tijuana existem algumas clínicas de medicina alternativa para câncer",
Becky disse. "Chegamos a visitar algumas. Primeiro, queríamos ir à clínica do dr.
Contreras.
Dizem que é um homem maravilhoso e tem tido sucesso no uso de Laetrile. Mas ele
não estava lá, e eu gostei tanto da atmosfera deste lugar que decidi, então, vir para cá".
Ela sentava-se de um modo curiosamente contorcido, abraçando o encosto da
cadeira, com suas pernas cruzadas e passadas por trás da perna do móvel. Era a posição
típica, nada relaxada, de alguém que espera sempre ter que se levantar para servir a
outros, adivinhar necessidades não declaradas e limpar a bagunça de todos.
Um homem jovem com características incas perfeitas apareceu, apresentou-se como
dr. Vic, deu-nos boas-vindas e desapareceu. Enfermeiras iam e vinham; vi também
algumas pessoas usando roupas inconfundivelmente americanas e presumi que eram
parentes dos pacientes ou visitantes (levei um ou dois dias para perceber que a maior parte
era formada de pacientes e que, como regra geral, todos andavam pelo terreno,
caminhavam por ali e faziam as refeições no salão de jantar, sempre que possível). Havia
apenas uma pessoa obviamente doente à vista, um jovem com barba por fazer,
terrivelmente emaciado, que era levado em uma cadeira de rodas por uma garota
bonitinha, mas exageradamente gorda.
Fomos finalmente chamados ao escritório do administrador para nos registrarmos e
recebermos nossas pastas com informações e um exemplar do livro do dr. Gerson - o livro,
como todos o chamávamos -, que era nossa única fonte de informações e, por meio de
seus muitos relatos de casos, de esperança.
Depois, um bonito rapaz mexicano, Marcos Aurelios, levou minha bagagem até
meu quarto. Eu ficaria na cabana marrom, que continha dois apartamentos. O meu era
aquele com o terraço que, como eu percebia agora, tinha no piso um carpete verde de
plástico, imitando grama.
Marcos Aurelios falava um pouco de inglês e com frequência franzia a testa, de um
modo concentrado e masculino, que prometia - falsamente, como descobri depois -
eficiência e pronta atenção.
Depois que ele saiu, sentei-me na cama e olhei à minha volta. A mobília era
modesta, no estilo de um hotel barato, mas felizmente não tinha nada que lembrasse um
hospital. Não havia nada que capturasse o interesse visual, exceto por uma grande foto em
cores de dois gatinhos muito fofos, sobre a cama.
No outro lado do quarto havia um sofá duro, coberto com plástico marrom; em
uma extremidade, um mastro de ferro batido com ganchos encurvados em cada lado
emergia de sua estrutura de madeira. Concluí que este devia ser o sofá para enemas. No
banheiro, um lembrete pedia que economizássemos água, já que estávamos em uma
região de seca.
Aquilo se referia apenas a banhos e ao uso da descarga do vaso sanitário. Para
todos os outros fins, havia uma grande garrafa de água purificada em um canto.
Pensei em Hudie e em minha casa confortável em Londres, e estava quase caindo em
desânimo quando bateram na porta.
Alguém anunciou "Jewsl"',' no lado de fora. Então, uma auxiliar robusta entrou,
carregando uma bandeja cheia de bebidas cor de caqui em copos altos. "Jewsl", ela
repetiu, estendendo-me um copo.
Ah, jews era juice, suco, pensei, identificando a palavra que ouviria treze vezes por
dia, durante os dois meses seguintes. Às vezes, eu ouvia "More Jews", mais suco, dito por
garotas que gostavam de ostentar seu vocabulário. Já era meio-dia, de modo que este
deveria ser o suco verde, apesar de sua coloração bege-oliva.
Tomei um gole. O que atingiu minhas papilas gustativas foi um sabor forte, terroso,
complexo, tanto doce quanto acre; acima de tudo, era estranhamente vivo em seu frescor,
bastante diferente de qualquer suco que eu já houvesse provado.
A lista relevante, dentro de minha pasta de informações, disse-me que eu estava
bebendo uma mescla de maçã, alface romana, pimentão verde, repolho roxo, sementes
brotadas, agrião e wheatgrass. Não era ruim, desde que os outros sucos não fossem
piores.
Examinei as informações nutricionais. Os horários para pacientes de Gerson
pareciam horrendos. Tínhamos deveres das oito da manhã às sete da noite. A primeira
coluna dava a ordem corre-ta dos sucos que vinham de hora em hora. Laranja, verde,
maçã e cenoura, verde, fígado, fígado, maçã e cenoura, maçã e cenoura, verde, maçã e
cenoura.
Cada copo continha 250 ml, somando três litros por dia - um exagero de
quantidade de suco. Depois, vinham sete colunas de medicamentos, que deveriam ser
tomados em vários momentos durante o dia: cápsulas de acidolpepsina, solução de
compostos com potássio, Lugol, em solução de 50%, tiróide, comprimidos de niacina e
pancreatina, injeções de fígado cru e, finalmente, vitamina BI2.
Pelo menos, essas substâncias eram naturais, não drogas sintéticas. Depois vinham
os enemas de café, "a cada quatro horas ou mais, se necessários", eu li, com um arrepio;
mais óleo de castor "de dois em dois dias". Mais um forte arrepio. Ah, bem, era para isso
que eu estava ali. Arrepie-se e saia curada.
A próxima informação, acerca de como injetar fígado cru ou qualquer outra coisa
em si mesmo, parecia estranha: exibia a mão de um homem aberta sobre o quadril nu de
alguém, com o osso do quadril mostrando-se misteriosamente através do corpo e mão.
Tudo bem, isso servia para mostrar o local correio para a agulha, no ponto ventro-
glúteo. Mas, ah, que horror - em outro desenho eu também pude ver como uma pessoa
inexperiente como eu poderia enfiar a agulha, sem nenhuma dificuldade, dire-tamente no
nervo ciático, causando dor intensa e desconforto.
Não me preocupei com esta possibilidade, de modo que voltei minha atenção para
o livreto de receitas. Ali também não havia nada inspirador. Vegetais deveriam ser cozidos
lenta e demoradamente, com o mínimo de água, ou sobre um leito de tomates picados ou
maçãs, para obter-se umidade. Ui. Mas também ninguém me prometera uma dieta
Cordon Bleu. Talvez fosse melhor não ler tantas receitas de uma só vez.
Logo depois de uma da tarde, fui ao salão de jantar, no bloco administrativo. A
decoração era agradável e suave, com uma cornija falsa de lareira rústica e um bar para
coquetéis que ninguém usava. Acima da lareira estava uma fotografia do dr. Gerson.
Estudei-a longamente, percebendo que até aquele momento eu nem ao menos
tentara imaginar sua aparência. Agora eu via um rosto muito inteligente, com testa alta e
olhos vigilantes, o arquétipo do rosto de médico que eu conhecera em minha infância:
gentil, sábio e compreensivo, mas também firme - o rosto de um homem que podia nos
fazer sentir melhor simplesmente ouvindo o que tínhamos a dizer.
"Não seria bom se o dr. Gerson ainda fosse vivo ?", a voz de um homem indagou,
atrás de mim. "Eu pensava que ele ainda vivia, até perceber que, mesmo se este fosse o
caso, estaria com cem anos e teria se aposentado. Acho que teremos de nos virar sem ele.
Meu nome é Carl. Sou de Atlanta, na Geórgia. Quem é você ?"
Seu rico sotaque sulista deixou-me sem ação, por um instante. Entendi seu nome
como "Coral" - assim, isso teria que ser um apelido por conta de sua coloração. Ele tinha
cabelos crespos e ruivos (ou seriam vermelho-coral ?), sobre os quais assentava-se um
boné de jóquei incrivelmente berrante, de um verme-lho-cereja.
Sob sua barba ruiva e crespa, uma camiseta preta proclamava em letras brilhantes:
"GOSTO DE DINHEIRO, CHAMPANHE E CAD1LLACS". O efeito era totalmente irresistível.
Mas, Coral ? Ah, devia ser "Carl", pensei, e então me apresentei.
Carl examinou-me. "Eu a chamarei de Bee", decidiu. "É mais simples. Qual é seu problema
?"
Logo, eu descobriria que aquela pergunta era a primeira fala, nas apresentações
entre os pacientes da clínica. A maior parte das pessoas tinha câncer avançado e a
maioria discutia a doença livremente, sem os eufemismos costumeiros e sem tons abafados
de quem comenta um tabu.
A sinceridade geral tornava a atmosfera tão leve e positiva que pessoas que sofriam
de outras doenças, como esclerose múltipla ou artrite reumatóide deformante tendiam a
explicar, quase que se desculpando, que não tinham câncer. Mas alguns, obviamente,
preferiam não falar sobre seu 'problema', e isto era imediatamente aceito. Com satisfação,
optei por ser franca.
"Meu problema é melanoma maligno, com um tumor secundário em minha virilha
direita. E o seu ?"
Carl deu um amplo sorriso. "O meu é exatamente o mesmo! Bem, bem. Acho que
devemos andar juntos por aí. Conheço bem este lugar e sentirei prazer em acompanhá-la
até você se sentir bem segura. No início, ficamos meio perdidos".
O salão de jantar enchia-se. Uma bela senhora com um exantema horrível em seu
rosto fez uma entrada régia. Ninguém mais tinha marcas visíveis, todos pareciam bem. Um
homem magro e idoso entrou aos tropeços, dobrando-se de rir.
"Este é Ed", Carl explicou. "Ele gosta tanto de suas próprias piadas que todos temos
que rir, embora na metade do tempo nem sejamos capazes de entendê-las". A bela
senhora idosa era Emily, ele acrescentou, em voz baixa.
Tinha mais de oitenta anos e seu exantema era canceroso, mas ela continua
lutando. Naquele momento, Becky e Sally uniram-se a nós e nos sentamos em uma mesa
para quatro, prontos para um genuíno almoço de Gerson.
Havia um recipiente com molho para salada feito com limão e água sobre a mesa,
uma garrafa de óleo de semente linhaça e uma bandeja cheia de dentes de alho sem pele,
flanqueados por uma prensa para esmagá-los.
Alho, recordei, tinha a reputação de ser anticancerígeno e a incidência de câncer
era baixa nas áreas do sul da Europa com altas taxas de consumo. Ainda bem que eu
adorava alho. Claro que não havia sal ou pimenta sobre a mesa.
Uma empregada trouxe uma imensa tigela de salada mista como nosso primeiro
prato. Alface, chicória crocante, tomate, cebolas, rabanete, tudo muito fresco. Outra
garota deu-nos copos grandes com suco, um suco amarelo vivo, de cenoura e maçã.
Provei o meu e o considerei curiosamente espesso e saboroso (desde então, não
experimentei cenouras - inglesas, francesas ou alemãs - nem de longe tão cremosas e
aromáticas quanto aquelas da Califórnia. Na terapia de Gerson, tornamo-nos especialistas
em cenouras).
A seguir, uma caixinha plástica cor-de-rosa contendo seis compartimentos rotulados
foi colocada na minha frente. "Tome o remédio das treze horas", disse a enfermeira que a
trouxe. "Comece com as duas cápsulas e deixe o comprimido cortado por uma linha
transversal para depois da refeição. Por favor, faça o mesmo", ela disse a Becky,
estendendo-lhe um recipiente azul similar.
"Tenho quase certeza de que não conseguirei tomá-los na ordem certa", Becky
admitiu, examinando sua porção de medicamentos para as treze horas, duas cápsulas e
cinco comprimidos, no total. "Este tipo de instrução direta congela meu cérebro
imediatamente".
"Não se preocupe, quando você entender por que a ordem é importante, tudo ficará
mais simples", Carl disse. "As cápsulas vêm primeiro, porque auxiliam na digestão. Os
comprimidos brancos, de tiróide e pancreatina, são tomados durante a refeição. Mas a
niacina ou ácido nicotínico - o comprimido com a linha transversal - vem por último e deve
ser tomado depois da refeição.
Se você o tomar com bebida ou comida, pode ter uma reação violenta, que a torna
muito vermelha e quente, como se estivesse com febre. É inofensiva e não dura muito, mas
é melhor evitá-la".
Becky e eu assentimos, solenemente. Era como aprender as regras em um novo
internato. Para nos alegrar, Carl contou-nos a história de um dos primeiros pacientes com
melanoma do dr. Gerson, que serviu como um alerta para a clínica.
Em 1954, este homem parecia melhorar rapidamente com a terapia, quando
experimentou sua primeira reação de vermelhidão e calor pela niacina. Despreparado
para ela, e com inclinações religiosas, ele tomou-a por um sinal divino que sinalizava sua
recuperação milagrosa.
Ou, mais exatamente, ele pensou que o rubor ardente e calor que inundava sua
face equivaliam à inflamação alérgica que, na visão do Dr. Gerson, era vital no processo
de cura. Assim, abandonou a dieta rígida e, logo depois, apresentou recaída. O dr.
Gerson colocou-o prontamente de volta na terapia, por mais qua-torze meses, após o que
o paciente recuperou-se. "Ele ainda está vivo", Carl concluiu. "É um cara forte e
grandalhão, cheio de energia. Talvez você possa conhecê-lo, pois ele aparece às vezes,
para nos animar".
Comemos grandes porções de salada com o molho de limão, mas sem óleo de
linhaça. Nossa ração diária de óleo era de apenas duas colheres de sopa, e precisaríamos
de toda ela para dar sabor às batatas cozidas sem sal. Observei que as indulgências eram
muito escassas, naquela dieta.
Depois da salada, veio a sopa especial, prescrita por Hipócrates por volta de 550
a.C, como uma substância desintoxicante para pacientes de câncer e redescoberta pelo dr.
Gerson em 1928. Ela era suficientemente espessa para ser comida com garfo e a própria
essência de vegetais simples: cebola, alho-porró, aipo-rábano, batata, raiz de salsa e
tomate, cozidos na água e amassados até formarem um puré bege-rosado. Era
suficientemente saborosa para não exigir sal ou temperos (o fato de batatas e tomates
terem chegado à Europa apenas cerca de 1.000 anos após a era de Hipócrates não me
incomodou nem um pouco). Seguindo a dica de Carl, passei um dente de alho cru pela
prensa e o joguei na sopa. O resultado foi poderoso.
"Gosto disso", Becky disse, depois de algum tempo. "É reconfortante".
"É melhor gostar muito, mesmo", Carl alertou, "porque você terá esta sopa duas vezes por
dia, durante muito tempo. Exceto que, às vezes, o sabor é um pouco diferente".
O prato principal consistia de uma grande batata cozida, que guarnecemos com
óleo frio de linhaça e mais alho cru, com um pouco de brócolis. Finalmente, comemos
frutas frescas. Minhas dúvidas começaram a voltar. Esta era uma boa refeição vegetariana
integral, eu pensei, exceto pela ausência de gordura ou temperos, mas nada de
excepcional.
Será que uma dieta tão básica realmente funcionava contra o câncer ? Eu podia
ouvir as conversas que vinham das outras mesas. Esta era minha chance de estudar
sotaques regionais de várias partes dos Estados Unidos. Consegui compreender facilmente
quase tudo o que Carl dizia, em sua voz arrastada e pesada do sul.
Eu mal tinha entrado em meu quarto para descansar um pouco quando outro
grande copo de suco verde chegou, e precisei dar um jeito de acomodá-lo, após o farto
almoço. Aqueles sucos de hora em hora, cada um com 250 ml de nutrição líquida e
fresca, foram um choque, inicialmente. Recapitulei a teoria por trás deles. O corpo
depletado precisava ser bombardeado em intervalos curtos e regulares com as vitaminas,
minerais e enzimas oxidantes vivas, e isso vinha na forma de sucos; apenas assim as vastas
quantidades necessárias podiam ser consumidas e absorvidas.
Isto já estava claro. Na prática, porém, no fim da primeira tarde, depois de dois
copos de suco de cenoura e fígado, de outro suco verde e mais três de maçãs e cenouras,
meu estômago mostrava-se revoltado. Será que eu estava sendo inundada ou
descarregada, mergulhada ou afogada ? Eu estava à tona ou submersa ? Será que não
acabaria por estourar ?
Entre os dois sucos de fígado e cenoura às três e quatro da tarde (curiosamente, eles
tinham o mesmo gosto levemente peculiar de suco de tomate) deitei-me em minha cama,
esperando que a pior parte da terapia se materializasse. Quando isso aconteceu, tive a
infelicidade adicional de ser presenteada por Marcos Aurelios, que chegou com dois baldes
plásticos para enema em sacos selados, e com uma jarra grande de café.
"Vou lhe mostrar como fazer o enema", ele declarou.
"Ah, não vai não. Quero que uma enfermeira me ensine".
"Sou enfermeiro", declarou, com dignidade ferida.
"Talvez sim, mas quero uma enfermeira, por favor. Uma mulher", acrescentei, para
deixar bem claro. Marcos Aurelios franziu o rosto e sacudiu a cabeça. Sem dúvida, de seu
pon-to-de-vista, do alto de seus dezessete anos, parecia estranho que uma mulher bem
mais velha, como eu, se importasse de ter seu primeiro enema administrado por um
homem ou mulher.
Mesmo magoado, ele deixou-me e, logo depois, uma garota mexicana adorável
chegou, usando roupas de verão totalmente brancas, com uma capa branca
soberbamente bordada em torno de seus ombros. Sua aparência era incrível, virginal e
totalmente incongruente. Suspeitei que Marcos Aurelios a pegara entre dois turnos de
trabalho. Apontei para sua capa e elogiei: "E belíssima".
"Ah! Acapulco", ela respondeu, interpretando meu gesto, uma vez que não falava
inglês. Mas recompensou-me com uma pirueta para exibir a capa e com um grande
sorriso. Depois, ensi-nou-me, com lentidão e cuidado, a preparar o enema de café,
usando linguagem de sinais e demonstrações para especificar a quantidade correta de
café e a temperatura apropriada para a água. Ela também me ajudou em meu primeiro
esforço para a au-to-administração do enema.
Esta foi desajeitada, levemente desagradável e bizarra, e o processo reviveu
recordações da infância, já que quando eu era pequena e meu metabolismo às vezes não
funcionava com a precisão de um relógio suíço, minha mãe carregava-me até o banheiro
e administrava um enema corretivo, que na época era de água com um pouco de sabão,
não de uma parte de café e três de água. A sensação não se tornara mais agradável
desde então, mas agora, como naquela época, eu não tinha escolha.
Tudo isso passou por minha mente enquanto minha instrutora glamurosa e alva
flutuava em torno de mim e do sofá mar-rom-escuro como um anjo luminoso, em
contraste marcante com os sombrios procedimentos. Obviamente, ela considerava tudo
aquilo perfeitamente comum e me deu um tapinha no ombro, ao despedir-se. Também
disse algo em espanhol que interpretei como "Não se preocupe, você se acostumará".
Sim, sem dúvida... Mas a perspectiva de cinco ou até mesmo seis desses rituais
todos os dias, cada um consumindo vinte e cinco minutos, era demais para qualquer um.
Peguei o livro e reli o trecho relevante para convencer-me de que não havia alternativa, e
descobri que as coisas podiam ser ainda piores, ao ler o seguinte: "No começo... fazíamos
enemas com café mais ou menos de quatro em quatro horas, dia e noite, ou com
frequência ainda maior, contra dor intensa, náusea, tensão nervosa geral e depressão".
Espere aí, eu pensei. Eu não sofria de nenhum desses males e, além disso, com todo
o respeito, se minha alma dói, encher meu cólon com café e água não ajuda mu ito. Mas,
então, a palavra 'desintoxicação' saltou da página e entrou diretamente em minha
consciência.
Parei de argumentar. Como uma criança pequena que tenta memorizar materiais
novos e estranhos, eu testei minha memória para ver se sabia por que os enemas de café
eram necessários. Deixe-me ver. A cafeína é absorvida a partir do cólon, passando para as
veias hemorroidal e portal. Ao entrar no fígado, estimula a produção de bile, que
então flui com mais facilidade, acelerando a eliminação de toxinas do fígado. Será que era
isso mesmo ? Sim, de acordo com a página 191.
Li mais um parágrafo: "Casos mais avançados estão gravemente intoxicados e a
absorção das massas de tumor, glândulas etc. intoxica-os ainda mais. Muitos anos atrás,
eu perdi vários pacientes para o coma hepático (coma do fígado), já que ainda não
conhecia, e portanto negligenciava, a importância vital da eliminação frequente e regular
de substâncias venenosas com a ajuda de sucos, enemas, etc".
Homem adorável, o dr. Gerson, eu pensei - admite por escrito que perdeu pacientes
por sua ignorância. Em geral, médicos enterram seus erros discretamente e nunca os
confessam em público, mas ele é - era - diferente. Ele também não oferece instruções sem
explicar o raciocínio por trás delas.
Eu li, na mesma página: "Os pacientes precisam saber que enemas de café não são
dados para o funcionamento dos intestinos, mas para a estimulação do fígado". Sim,
doutor, esta paciente sabe disso.
Ainda assim, com pleno entendimento, era desconfortável ter que confrontar e me
concentrar nos processos desconhecidos que ocorriam dentro de minha barriga e em meus
órgãos digestivos, igualmente desconhecidos e sequer imaginados. Que estranho, vir a
saber que tenho veias portais (e o que elas eram, por falar nisso ?), grandes depósitos de
toxina em meu fígado e metros, ou seriam quilómetros, de tripas retorcidas, tudo isso
pertencendo ao meu mundo digestivo escondido, que parecia tão remoto e misterioso
quanto o Hades grego original." Este era um mundo escondido, também, uma área escura
e negada com suas operações invisíveis e sons estranhos e abafados que não são
discutidos, exceto em brincadeiras ou xingamentos, ambos carregados de emoção e
inexatos.
E mais, este mundo escondido era o equivalente físico do inconsciente, que também
era habitualmente negado e mantido longe das vistas, até se rebelar e iniciar sua
vingança.
De meu baú rico em informações inúteis, saltou o termo 'borborigmo', o termo
médico para o ronco dos intestinos - e também a palavra grega da antiguidade para a
sujeira e lama de Hades.
Havia um paralelo fascinante entre mito e fisiologia, intestinos e psique que eu
desejava discutir urgentemente com Catherine. Contudo, o impulso sumiu, quando lembrei
de onde eu estava e que não haveria qualquer discussão com ela ou com outra pessoa de
Londres por um longo tempo.
Assim, continuei ponderando sozinha sobre algumas questões básicas. Por exemplo,
em nossa sociedade, consumir é algo bom e digno de elogios, mas excretar não, de modo
que a função precisa ser escondida por trás de aparelhos sanitários rigidamente clínicos ou
em banheiros com cores delicadas, com papel higiénico combinando com a decoração e
purificadores de ar em aerossol.
No último caso, a própria excreção torna-se uma forma de consumo. Não há muito
equilíbrio aqui, eu pensei. Nenhum respeito pelo ciclo vital de entrada e saída (que
qualquer jardineiro que produza adubo conhece). Não era de admirar que nos tornamos
uma sociedade tão tóxica, absorvendo venenos de todos os lados, sem pensar em como
nos livrar deles.
Esta especulação foi interrompida por mais um copo de suco e, imediatamente
depois, pela chegada de uma médica mexicana alta e jovem, chamada Elsa, que viera
examinar-me. Ela realizou um exame incrivelmente completo, o mais detalhado ao qual já
me submeti.
No meio deste, eu senti que a maioria de minhas células já deveria ter sido
inspecionada, virada de dentro para fora e verificada, mas ela continuava fazendo
perguntas, mesmo assim. A única que não fez foi aquela que interessara ao dr. Lennox à
exclusão de todas as outras - se eu já vivera em algum lugar de clima tropical. Contudo,
aqui meu melanoma não teria sido atribuído ao excesso de sol ou a outros fatores
externos.
Mais ou menos no fim do exame, perguntei-lhe que tratamento eu receberia para
minha diabetes recém-descoberta.
"Nenhum", ela respondeu. "Você não precisa de tratamento específico. A doença
desaparecerá".
"Quer dizer que desaparecerá espontaneamente ?"
"Ah, sim, a terapia a eliminará, com o passar do tempo. Não se esqueça, esta
terapia não é específica, mas cura o organismo como um todo, de modo que você não
precisa de tratamento especial para sua diabetes".
Ah, sim, é claro. Eu esperava que ela estivesse certa.
"Por favor, não perca um único enema", a dra. Elsa disse. "Esta responsabilidade é
totalmente sua. Ninguém verificará quantos você faz por dia, mas não deixe de fazê-los,
especialmente durante crises. Nesses momentos a desintoxicação é ainda mais
importante".
"Quando os pacientes começam a ter crises ?"
"Isto varia. Alguns começam quase que imediatamente, mas para outros demora
algum tempo. Não há uma regra".
Quando ela saiu, senti vontade de repousar, mas mais um suco chegou, e eu
também percebi que mal tinha tempo para um enema antes do jantar. Tudo isso era
arrasador.
Uma pessoa precisaria estar em plena forma para poder cumprir esses horários. O
dia estava quase terminando e eu nem conseguira desfazer minhas malas, menos ainda
descansar, dormir ou explorar La Gloria. Nem meditar, o que constava como uma de
minhas maiores prioridades.
Minha boca tinha um gosto estranho. Inspecionei minha língua no espelho do
banheiro e descobri que tinha uma espessa camada marrom. Que coisa! Meu corpo já
estava descarregando toxinas, depois de apenas seis horas neste estranho regime.
"É claro que eles a mantêm ocupada aqui", Carl disse durante o jantar, quando
comentei sobre a correria constante. "E você viu apenas metade da correria. Todas as
manhãs temos uma palestra sobre algum aspecto da terapia, que devemos anotar para
referência no futuro. Por esta razão lhe pediram para trazer um gravador.
Também precisamos passar algum tempo na cozinha, para ver como os sucos são
preparados. Também conversamos com Charlotte Gerson todos os sábados à tarde.
Quando saímos daqui, estamos realmente capacitados para realizar a terapia em
casa".
Ele mesmo não tinha planos para sair da clínica. Seu plano de saúde particular
cobriria sua permanência por um longo período, e embora ele admitisse que considerava
monótona e isolada a vida em La Gloria, preferia ficar. "Tentei fazer a terapia na casa dos
meus pais, depois de minha primeira estadia aqui, dois meses atrás", ele disse. "Entretanto,
isso era infernalmente difícil e meu tumor começou a crescer novamente. Assim, voltei e
não irei embora, até terminarem meus dezoito meses. A menos que meu plano de saúde
me expulse antes".
"Dezoito meses!", Becky exclamou. "Posso ficar aqui apenas duas semanas e, mesmo
assim, parece muito tempo!".
"Mas você precisa de pelo menos três semanas aqui, não duas", Carl disse.
"É que preciso cuidar do meu marido", Becky exclamou, com um sorriso miúdo e
nervoso. "E também de minha mãe. Ela mora perto de nós e não consegue fazer suas
compras sozinha. Preciso fazer para ela, de modo que preciso mesmo voltar logo e..."
"Ah, é ?", Carl interrompeu-a. "E se você não se recuperar, quem cuidará deles ? Quem
cuidará de você, quando voltar para casa, hein ?"
"Tratarei disso depois. Sempre há uma solução", Becky disse. Ela estava na defensiva
e continuava sorrindo, temendo incomodar Carl. Será que algum dia ela já incomodara
alguém, ou era uma daquelas boas mulheres que se anulam e mantêm a paz a qualquer
preço, acabando inevitavelmente como vítimas ?
Mas este não era o momento certo para descobrir mais sobre ela. No fim da
refeição, algumas pessoas juntaram-se a nós para saberem mais sobre Becky e eu, e de
onde vínhamos. Becky conseguiu evadir-se facilmente - Baltimore não era suficientemente
exótico para inspirar muitas perguntas. Eu, contudo, precisei descrever a rotina habitual de
Londres e a vida na Inglaterra para aqueles americanos amistosos e curiosos que já
haviam estado em Londres ou planejavam visitar meu país como celebração, quando
completassem a terapia e estivessem bem novamente. Era sempre 'quando', não 'se'.
Naquela primeira noite, captei o humor mais comum entre os pacientes, que
permaneceu mais ou menos igual durante meus dois meses no México - esperança,
otimismo cauteloso e determinação para recuperar a saúde. O pacieente que às vezes se
deprimia ou sentia medo era rapidamente animado ou rejeitado por um companheiro de
sofrimento.
O desânimo não era bem-vindo, como se estivéssemos todos ligados por uma rede
de consciência coletiva por meio da qual o medo ou falta de esperanças de qualquer um
contagiava todos os outros e precisava ser rapidamente dispersado.
Emily, a bela dama com o exantema canceroso em torno de seu nariz e olho,
sentou-se perto de mim. "Quero viver até os cem anos", ela declarou. "Estou com oitenta e
um e ainda preciso fazer muitas coisas nesta vida".
"Se você desejar realmente, conseguirá", Carl disse. "Mas precisará aderir à terapia
de Gerson para sempre".
"Ah, eu sei disso!", a senhora voltou-se para mim. "Minha querida, eu vivi na França.
Agora estou pagando o preço por quarenta anos de rica culinária francesa... era
gloriosa, mas arruinou com minha digestão. Assim, nem posso reclamar desta dieta". Ela
tinha olhos castanhos muito límpidos e um nariz delicado, que parecia ter sido esculpido
com habilidade.
Duas meninas jovens, gémeas idênticas, passaram por nossa mesa com sua mãe.
"Vamos para casa amanhã!", uma das meninas gritou. "Vejo vocês no café da manhã!"
Não, elas não tinham câncer, exatamente, de acordo com Carl, mas sofriam de um
tipo maligno de problema arterial, a chamada "doença sem pulso". Estavam melhorando
rapidamente.
"Será que todo mundo aqui está melhorando rapidamente ?", eu perguntei. "Parece
bom demais".
"Não, alguns apenas estacionam", uma mulher negra e alta, que eu não percebera
antes, falou com calma. "Mas isso é mais do que faríamos em outro lugar". Seu nome era
Dóris. Era enfermeira altamente capacitada, tanto que, ao receber diagnóstico de câncer
de mama, recusou tratamento ortodoxo e veio para o México. Mostrava grande dignidade
e tinha uma voz profunda e divertida.
"Desculpem-me, é hora do meu cafezinho", ela disse, e saiu da salão de jantar.
Descobri que este era um dos eufemismos locais para fazer um enema, juntamente com
"café de baixo para cima" ou, simplesmente, "estar ocupado". Os pacientes engajados
naquela parte vital da terapia trancavam suas portas e baixavam suas cortinas para
indicarem que não deveriam ser perturbados.
Quando calculavam mal seus intervalos para o 'café', de modo que as criadas não
podiam entregar seus sucos, geralmente ouviam-se gritos mútuos através das portas
trancadas - gritos de "Jews ! Jews ! “ que eram respondidos com "Estou fazendo pausa
para o café!" em tons que podiam ser de desculpa ou de sofrimento. Nesses casos, os
copos de suco, cobertos com papel alumínio, eram deixados em nossas janelas e
precisavam ser pegos e bebidos o quanto antes, já que aquelas importantes enzimas de-
terioravam-se rapidamente.
Às nove horas, depois de um aborrecido enema final, fui para a cama sentindo-me
em paz e passiva. Olhar para o teto era bastante satisfatório - eu não queria ler, escrever
ou sequer pensar.
Sim, o quarto precisava de uma camada de tinta e de algo que se parecesse com
um esquema de cor. Além disso, os cobertores eram finos demais e eu me sentia um
milhão de quilómetros distante de meu próprio mundo. Apesar disso tudo, eu sabia que
estava no lugar certo e meu corpo se sentia extraordinariamente relaxado e confortável.
Quando registrei meu senso de bem-estar, já estava a meio caminho do sono.
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CAPÍTULO 9
DURANTE A VIDA INTEIRA, SEMPRE PRECISEI de silêncio e privacidade ao despertar
para suportar melhor a dor de sair da satisfação maravilhosa proporcionada pelo sono.
Na clínica La Gloria, contudo, esta antiga fraqueza foi curada num piscar de olhos, uma
vez que simplesmente não havia tempo para sentir a agonia de levantar das cinzas,
nenhum tempo para meditar, fazer ioga ou admirar a aurora, esperando que meu
biorritmo se ajustasse à luz do dia.
Em vez disso, eu precisava saltar para a vigília ao primeiro bip de meu despertador
- levantar no horário era responsabilidade dos pacientes - e seguir imediatamente para o
sofá de enema; este não era um lugar para devaneios delicados ou contemplação.
Em teoria, esta primeira descida ao inferno deveria ter ocorrido às seis da manhã,
de modo que, repetindo o procedimento a cada quatro horas, os pacientes poderiam
completar sua quota de enemas do dia às dez da noite, à exceção daqueles muito doentes,
que precisariam mais uma aplicação às duas da madrugada.
Na prática, eu só começava às sete da manhã, o que ainda me parecia
absurdamente cedo. Em vez de elevar meu espírito - ou, melhor ainda, deixá-lo
simplesmente como estava -, eu precisava baixar minha atenção para meu espaço íntimo
mais escuro, em meio a grande desconforto e algum ressentimento. Este era, com certeza,
um modo esquisito de começar o dia.
Eu mal tinha me arrastado para fora da cama quando uma jovem enfermeira
mexicana entrou. Era magra, baixa, enérgica e caminhava com a rigidez de uma criada
eficiente. Seu nome, que me disse em um sussurro, era Alberta.
Suas mãos eram pequenas e gentis, e o fato de não falar inglês não era problema,
enquanto tomava minha temperatura, pulso e pressão sanguínea e, depois, preparava-se
para administrar uma injeção de fígado cru. Alberta falou apenas depois de enfiar a
agulha em meu flanco, pronunciando timidamente uma única palavra: "Dor ?".
Ouvi a indagação em sua voz, mas ela precisou repetir a palavra três vezes para
que eu compreendesse que perguntava se eu sentia dor. Nas manhãs seguintes, tentei
ensiná-la a perguntar: "Você está com dor ?", e por algum tempo ela parecia estar
aprendendo, mas depois voltou a indagar apenas "dor ?", e abandonei minhas lições.
Apesar dos obstáculos linguísticos, Alberta e eu mantivemos um bom relacionamento.
O desjejum veio às oito - uma jarra grande de suco de laranja recém-preparado,
uma tigela de mingau de cereais sem sal e sem leite, uma tigela de frutas secas cozidas e
uma banana.
Havia, também, o medicamento que retirei de minha caixinha plástica reabastecida,
que continha trinta comprimidos, cápsulas e pílulas para serem tomados em seis horários
diferentes do dia. Como muitas outras coisas, tomar o medicamento certo, na hora certa,
também era minha responsabilidade. Seguir os horários da dieta de Gerson era como
pegar um trem expresso sem paradas, sendo tanto passageiro quanto condutor.
Ah, bom, deixe-me tentar aproveitar a viagem. Vesti-me e saí para o sol gostoso e
leve brisa da manhã. Esta deveria ser a estação das chuvas, mas a única umidade à vista
vinha da mangueira do jardineiro. A trilha era ladeada por lindas flores amarelas e roxas,
que pareciam margaridas, mas tinham folhas gordas e suculentas. Sentei-me no terraço e
me aqueci sob o brilho da manhã. Repousando, finalmente.
Isso, porém, não durou muito. As nove, recebi meu suco verde, seguido por Becky,
que desejava saber como conseguiríamos engolir o suco vermelho das dez da manhã,
fazer o enema das dez, tomar o óleo de castor das dez e quinze e comparecer à palestra
das onze.
"Não é possível", exclamamos ao mesmo tempo, e caímos na risada, mas Becky
começou a tossir e, depois, lutando para respirar, desculpou-se. "Por favor, não há nada
por que se desculpar", eu lhe disse, preocupada com o ruído seco e profundo que vinha de
seus pulmões.
"Eu é que lhe peço desculpas por causar sua tosse - olhe, acho que um excesso de
boa educação pode prejudicar sua saúde. Você sabe disso, não é ? Aposto que você pede
desculpas até a uma cadeira, quando esbarra em uma".
"Bem, sim, faço isso mesmo", confessou. "E também quando as pessoas esbarram
em mim) Acho que você tem razão. Minha filha quer que eu faça um curso de auto-
asserção, mas nunca me animei a isto. Graças a Deus ela sabe como demonstrar o que
quer. E tarde demais para eu começar a fazer isso agora".
"Não é não, e você sabe disso". Ela boicotava a si mesma, eu pensei; precisava ser
sacudida para sair de sua resignação civilizada; de outro modo, não encontraria forças e
ânimo para recupe-rar-se. "Escute, se você quer ficar bem, precisa reivindicar seu espaço e
declarar suas vontades. Pare de se desculpar por estar viva, por favor".
"É isso o que faço ?", ela sorriu, sacudiu a cabeça e ponderou por um instante.
"Talvez seja mesmo. Falaremos sobre isso mais tarde, mas apenas se você quiser - já tem
problemas demais para ainda preocupar-se com os meus. Ah, aqui estou eu novamente...
Vejo-a na palestra".
Fiquei observando, enquanto ela descia lentamente a trilha -era tão leve, podia ser
facilmente levada com o vento - e me senti desconfortável. Mas, então, olhei para meu
relógio e corri de volta para o sofá marrom em meu quarto. Os procedimentos incessantes
da terapia não toleravam pausas longas.
A atendente que me trouxe óleo de castor, logo depois do primeiro suco vermelho e
do segundo enema da manhã, estendeu-o para mim com um amplo sorriso, que
sinalizava claramente: "Antes você que eu". Tive um calafrio, o que a fez sorrir ainda mais.
O óleo viscoso e sem cor vinha em um copo de papel pequeno, acompanhado de
uma xícara de café preto que, supostamente, ajudaria o óleo a descer até o estômago. Era
o único café que podíamos beber e, talvez para desestimular aqueles que adoravam
cafeína, era terrível - apenas morno e muito doce, o tipo da coisa que evitamos, em vez de
querer mais.
Tudo bem. Um brinde. Engoli rapidamente o óleo e, depois, o café. Um nojo, os
dois. Desde os dez anos ou algo em torno disso eu não engolia óleo de castor, mas, na
época, forçada por mamãe a tomá-lo, a coisa vinha disfarçada, com sabor de xarope de
frutas.
Hoje, eu suspeitei, o xarope enjoativo teria piorado as coisas ainda mais. Como
descobri depois, a rotina de óleo de castor, que cumpríamos de dois em dois dias,
proporcionava um ritmo básico para a vida, na clínica.
Os dias do óleo de castor eram dias ruins, quando não poderíamos tentar nada
muito aventureiro, nem mesmo uma curta caminhada, e até comparecer às palestras era
arriscado. Esses eram dias ruins, porque o óleo coloca-nos inteiramente à mercê de nossos
intestinos.
Uma senhora chegou a afirmar que a experiência era desumanizadora. Em alguns
momentos, cheguei a concordar com ela. Em outros, senti que estávamos fazendo um
escândalo maior por causa de duas colheres de óleo que Sócrates fizera, ao tomar um
copo cheio de cicuta. Por outro lado, Sócrates não tinha que tomar cicuta de dois em dois
dias.
Quando entrei na sala da palestra com meu gravador cassete, encontrei Carl, que
ainda usava seu boné vermelho e conversava com uma mulher jovem, de cabelos escuros.
"Venha conhecer Sarah", ele disse, chamando-me. "Sarah sabe falar espanhol e nos
ajudará na comunicação com a equipe, se a língua de sinais não der certo". Sentei-me ao
lado de Sarah. Ela vinha do Novo México e parecia acentuadamente espanhola, exceto por
seus olhos verdes-claros.
Sarah acompanhava a mãe, que tinha leucemia e estava doente demais até para
levantar-se. Pediu-me que a visitasse e a distraísse um pouco. Perguntou-me se eu estava
gostando da terapia e se achava que daria certo. Bem, sim, respondi, eu certamente
achava que sim, de outro modo não estaria ali também.
Sarah assentiu vigorosamente. Ela parecia atarantada, mas, ainda assim, cheia de
confiança e esperança, sendo tanto uma filha preocupada quanto a mãe competente de
três meninos pequenos.
Enquanto falava sobre sua família, ela transmitia muito amor e coragem. "Se minha
mãe ficar bem", ela disse, "fundarei um pequeno centro de informações sobre a terapia de
Gerson em nossa cidade. Temos muitas pessoas com câncer lá".
A sala de palestras se enchia. Becky entrou e se sentou perto de mim. A quantidade
de rostos novos que se aproximavam, espiavam, conversavam e - principalmente -
demonstravam tensão ou estresse era suficiente para superar além dos limites qualquer
ânsia que se pudesse ter por contato humano ou para nos levar ao cansaço extremo.
Antipatizei à primeira vista com algumas pessoas - um casal de meia-idade, feio e
rabugento, com roupas esportivas absurdamente joviais que lhes dava a aparência de
criancinhas em escala ampliada e uma mulher magricela e ruiva, cujo rosto parecia-se
com as imitações de cabeças encolhidas vendidas em algumas lojas americanas de
lembranças. Decidi que precisaria racionar - e muito - esses momentos de
confraternização.
O conferencista daquela manhã era o dr. Hesse, o administrador médico da clínica,
um homem alto, barbado e gordo, mas de movimentos ágeis. Seu tema era a reação à
terapia, ou 'crises', como a chamávamos.
Como todos já sabíamos, pela leitura do livro de Jaquie Davison, as crises poderiam
ser muito desagradáveis. Naquela manhã, ele nos ofereceria uma perspectiva médica
acerca da reação à terapia e como deveríamos lidar com ela. O dr. Hesse olhou-nos,
esperou enquanto duas atendentes entregavam-nos o suco de fígado das onze horas,
aguardou mais um pouco até aprontarmos nossos gravadores e então começou a falar.
"O programa de Gerson não é necessariamente para qualquer pessoa", ele disse,
"embora, em termos médicos, ele possa curar o paciente. Algumas pessoas simplesmente
não se dispõem a fazer os sacrifícios e as mudanças em seus padrões de vida exigidas pelo
programa. Ele é muito difícil, rígido e complexo. Vocês são chamados a cuidar de seus
próprios cuidados médicos. Quando deixarem La Gloria, estarão por conta própria.
Na verdade, na maioria dos casos, não haverá sequer um médico próximo que possa
orientá-los e se responsabilizar por seus cuidados".
Sussurros subiram da plateia, denunciando arrependimento e decepção. Ainda bem
que eu tinha o dr. Montague, eu pensei. Tomara que ele não tenha mudado de ideia e
ainda possa cuidar de mim.
"Agora, vocês precisarão cuidar de si mesmos", o dr. Hesse prosseguiu, olhando-nos
com muita seriedade. "Vocês precisam combinar um entendimento muito detalhado sobre
o programa com muita dedicação, força de vontade e apoio familiar. Uma forte
experiência religiosa, confiança e fé em Deus também podem ser muito importantes.
Assim, é preciso definir e cumprir suas prioridades.
E, se esses ingredientes não são parte de suas vidas, é melhor não se envolverem
com o que nós consideramos como um empreendimento épico. E realmente épico, na
medida em que vocês têm ao seu alcance um modo de reconquistarem a saúde".
Becky e eu trocamos um olhar de apreensão, mas também de cumplicidade bem-
humorada - que belo momento para ele nos dizer aquilo! Ainda assim, apesar da
apreensão, gostei do que ouvi.
Certamente, transformar o paciente de um objeto passivo em participante ativo era
o melhor modo de mobilizar sua vontade e reservas internas. Além disso, invocar a
dedicação, fé e confiança do paciente parecia complementar a terapia puramente física,
tornando-a mais holística.
E, se a clínica La Gloria, com sua alface de consulta (originalmente da ilha de
Consulta) e com a sopa de Hipócrates em seu cardápio diário, pudesse vir a ser o
equivalente moderno dos santuários gregos de cura, pelos quais eu ansiava ?
O dr. Hesse explicava, agora, a mecânica da crise, salientando que esta consistia de
um esforço vigoroso do corpo para desintoxi-car-se e se curar. A lista de sintomas parecia
assustadora - dores, cefaléia, fraqueza, tonturas, aftas, herpes labial por febre, língua 'suja'
e perda de peso de três a quatro quilos. Também poderíamos esperar espasmos
intestinais, grande irritabilidade ou o oposto, letargia e desânimo.
O local do tumor poderia tornar-se dolorido e inflamado. Antigas cicatrizes e
incisões poderiam tornar-se vermelhas e articulações artríticas poderiam inflamar-se. Ex-
usuários de Valium, Librium, LSD e outras drogas precisavam preparar-se para episódios
ainda piores, porque depósitos da antiga droga, transportados para a corrente sanguínea,
produziam os mesmos efeitos que ocorriam quando a droga era consumida.
"Ah, Deus", um homem gemeu na plateia, "será que isso tudo vale a pena ?"
O dr. Hesse deu um meio-sorriso, como se dissesse: "Sei como você se sente", e
depois continuou, falando pausadamente. O principal, ele salientou, era não entrar em
pânico quando o mundo virasse de cabeça para baixo durante uma crise, não jogar a
toalha e concordar em ser levado para um hospital ou tratado em casa com métodos
convencionais.
O corpo sabia o que estava fazendo e sua autolimpeza e cura não deveriam ser
interrompidas. Dadas as condições certas, e a terapia dedicava-se inteiramente a isso, o
corpo cumpriria sua missão de modo impecável.
Sentamo-nos todos muito quietos, enquanto o dr. Hesse explicava o modo correto
de lidar com aquelas crises da cura. O assunto era muito técnico e eu cogitei, vagamente,
se alguém em meio a uma enorme crise chegaria a lembrar do que fazer e se faria o que
precisava.
Ouvi o ruído suave do mecanismo de todos os gravadores. Algumas pessoas
verificavam seus aparelhos o tempo todo, enquanto anotavam, o que certamente era o
cúmulo da ansiedade. "Os remédios", Sarah sussurrou, durante uma pausa breve,
"parecem tão ruins quanto os sintomas!"
Bem, sim - mingau ralo em cima de sucos, grandes quantidades de chá de horte-lã-
pimenta e enemas a cada duas horas eram algo que ninguém precisava. E, além de todo
o tormento físico, deveríamos dar graças a Deus pelas crises - quanto piores, mais
deveríamos festejá-las -, e nos sentir felizes se tivéssemos febre, porque isso significava que
o sistema imunológico não estava irreversivelmente prejudicado e que o corpo começava a
reativar suas defesas.
Tentei imaginar como o dr. Lennox reagiria a tudo isso, mas não consegui.
Quase no fim da apresentação do dr. Hesse, a maioria dos pacientes parecia esgotada e
preocupada. Era como se o médico nos tivesse passado por um poderoso moedor para
poder eliminar quaisquer ideias incorretas que tivéssemos sobre a gravidade de nossa
situação. Se alguém pensava, antes, que ter câncer e se submeter à terapia de Gerson era
algo simples e fácil, agora era hora de repensar.
Depois da apresentação, segurando nossos sucos verdes recém-entregues, saímos
para o terraço ensolarado que dava toda a volta no segundo andar do prédio. Carl, que já
passara por algumas crises, contou-nos tudo o que sabia sobre o processo, mas, assim
como a dra. Elsa, ele não podia prever quando aquelas reações temíveis, mas ainda assim
vitais, podiam começar - e isso era o que Becky e eu mais queríamos saber.
Teoricamente, ele nos contou, as crises deveriam começar entre o terceiro e o sexto
dia da terapia, mas muitas vezes não acontecia nada por várias semanas. As primeiras
reações podiam ser realmente horríveis, durando três dias ou mais; depois, tornavam-se
mais leves e breves.
"Pessoalmente, eu acho que o tipo de crise que temos depende, em parte, de nossa
dieta anterior", ele comentou.
"O que você quer dizer ?", Sarah indagou.
"Não tenho certeza, mas acho que, quanto mais alimentos não-nutritivos nós
consumimos antes da terapia, mais rapidamente enfrentamos uma 11 ise. I )ê a seu eorpo
um pouquinho de comida orgânica decente e ele começará a eliminar o lixo
imediatamente.
Havia um rapaz aqui, um visitante que nem chegou perto da terapia. Tudo o que ele
fazia era comer a comida obrigatória e beber dois sucos de cenoura por dia. Em três dias,
porém, ele enfrentou uma crise horrorosa e ficou muito mal, durante dois dias. Depois,
disse-nos que normalmente comia apenas grandes bifes, batatas fritas e rosquinhas".
"Sem nada de frutas ou saladas ?", Becky perguntou.
"Claro que não... ele mora no Alasca, e frutas e vegetais são escassos, lá. Ainda
assim, acho que sua crise o fez pensar duas vezes sobre seus hábitos alimentares".
"Minha mãe teve quase todos os sintomas mencionados pelo dr. Hesse", Sarah
comentou. "Desde ontem de manhã ela também não está comendo nem bebendo nada.
No início, senti muito medo, mas acho que ela está em crise e, se for assim, não há
problema. Espero que seja isso - temos apenas uma semana aqui".
"Vocês não podem ficar um pouco mais ?", Becky perguntou.
"Não, não podemos pagar. Nossa família é grande, tenho dez irmãos e irmãs, e os
tempos estão difíceis - só podemos pagar uma semana para mamãe. E melhor ver como
ela está".
Becky e eu acompanhamos Sarah até o prédio mais baixo. Sua mãe, uma mulher
miúda de expressão doce, estava deitada com ar de resignação paciente. Parecia muito
enferma. Seus olhos nos reconheceram, mas ela não falava. Depois, eu soube que ela
entendia apenas espanhol.
O quarto estava uma bagunça, com bagagens, pacotes, garrafas térmicas,
bandejas de frutas, jarras e copos de papel por todo lado. Acima de tudo, porém, sobre a
cómoda, estatuetas de Nossa Senhora e Jesus Cristo remetiam à ordem divina e à
esperança. Claramente, Sarah e sua mãe viviam a forte experiência religiosa recomendada
pelo dr. Hesse.
Saímos para uma caminhada, logo depois. Não havia muito território para cobrir.
Tudo o que podíamos fazer era andar pelo terreno e, depois, voltar para o alto da colina,
onde Becky estava hospedada.
O prédio no alto da colina era muito melhor que aquele lá embaixo, com quartos
maiores, mobília melhore pontinhos dourados e brilhantes na pintura texturizada do teto.
Caminhando pelo amplo corredor, vi pacientes repousando, lendo ou conversando
em seus quartos sem cortinas. A pessoa mais surpreendente era um homem idoso, de pele
amarelada, com olhos escuros e intensos, sentado na cama e cercado por um bando de
mulheres vestidas de preto; um jovem recurvado e com olhos igualmente escuros, sentado
no lado de fora do quarto, parecia uma versão mais jovem do homem no quarto.
Becky sussurrou que eram arménios, antes de se retirar para seu quarto; eles
permaneciam o tempo todo juntos, não conversavam com ninguém e pareciam
determinados a não permitir que o velho morresse. "Pobrezinho", sussurrei, "será que
alguém lhe perguntou se ele quer viver ou morrer ?". Becky sorriu, encolheu os ombros e
foi para seu quarto.
Eu precisava descansar urgentemente. Desde a manhã não houvera sequer um
momento livre. Neste ritmo, eu teria que usar os intervalos para enemas para garantir
alguma tranqúilidade, silêncio e privacidade, pelo menos enquanto eu estivesse desperta.
Julgando pela palestra do dr. Hesse, eu poderia ser tomada por uma crise a qualquer
momento, e então (a criança em mim alegrou-se), eles precisariam me deixar em paz...
afinal, isso era uma clínica ou um curso de resistência ?
Quando chegava à cabana, quase colidi com uma mulher alta e bela, que subia
rapidamente a colina. Era possível perceber que estava na meia-idade, mas sua pele era
como a de uma garota, e a parte branca de seus olhos azuis assombrosamente límpidos
tinha a pureza e clareza que normalmente vemos em crianças pequenas. "Olá, sou
Charlotte Gerson", ela disse. "Qual é seu nome ? Será que essas cartas são para você ?" Eu
não podia acreditar em meus próprios olhos.
As cartas eram todas da Inglaterra e todas endereçadas a mim, mas eu chegara
apenas no dia anterior! "Então, são para você. Que ótimo!", Charlotte disse, enquanto eu
me apresentava. "Bem-vinda a La Gloria. Fico feliz porque você pôde vir... parecia em
dúvida, ao telefone. Olhe, preciso apressar-me, mas voltarei para vê-la às duas da tarde,
está bem ?"
Então, aquela era Charlotte Gerson. Depois de um encontro tão breve, a única coisa
que eu pude registrar conscientemente foi a semelhança facial entre ela e sua filha,
Margaret; mas o que pude sentir em um nível instintivo foi uma qualidade poderosa
naquela mulher - uma mescla de energia e coragem.
Senti que ela seria a pessoa certa ao lado da qual eu ficaria, em uma barricada,
durante uma guerra - este era meu gabarito simbólico, que datava das fantasias
revolucionárias de minha adolescência, para classificar pessoas. Naquelas fantasias, as
barricadas eram campos de batalha a partir dos quais eu atacaria tiranos, de modo que
era preciso escolher com cuidado meus aliados.
Achei que Charlotte saberia exatamente o que fazer em uma barricada; e com
certeza eu teria amplas oportunidades para decidir se minha sensação instintiva tinha
fundamento.
Mas, agora, as cartas que ela me entregara queimavam minhas mãos. Eu
simplesmente precisava abri-las naquele momento. Depois que as li, com alegria e
ansiedade, percebi com emoção que meia dúzia de amigos haviam escrito aquelas cartas
vários dias antes de minha partida de Londres, para que elas pudessem chegar logo
depois de mim à clínica. Tanta sensibilidade cau-sou-me um nó na garganta. Por um
instante, senti-me novamente conectada ao mundo, não mais fora de contexto.
Naquele momento, tornei-me dependente das cartas de amigos, para me sentir
bem. Durante meus dois meses do México, as cartas agiram como minha droga da
felicidade, meu tubo de oxigénio, meu consolo e conforto para minha alma. Para driblar a
lentidão do correio mexicano, nossa correspondência ia para um endereço no sul da
Califórnia e era trazida de lá, diariamente, pelo motorista da clínica, que então levava
nossas cartas ao posto de correio americano mais próximo para postagem.
As vezes, porém, ele não tinha tempo para recolher as cartas que chegavam ou não
havia correspondência para mim e, sempre que isso acontecia, eu era assaltada por uma
desilusão infantil e intensa, e voltava para meu quarto, ressentida e solitária.
Essas ocasiões me fizeram perceber que minha 'criança interna' estava muito mais
próxima à superfície do que eu pensava e que possuía uma capacidade ilimitada para
sentir pesar, apenas um ou dois centímetros debaixo de minha concha de aparente
maturidade e flexibilidade - com 'aparente' sendo a palavra-chave.
Ainda assim, naquele momento, lendo aquelas cartas preciosas, eu não tinha ideia
dos problemas que ainda teria com minha criança interna, desajeitada e inconsolável.
Tão logo veio ao meu quarto, após o almoço, Charlotte quis saber por que eu usava
a faixa elástica em minha perna direita. Instruções do cirurgião, eu respondi, desenrolando
minha perna com o cuidado que teria se esta fosse uma múmia egípcia. Charlotte olhou
para minha patética perna retalhada e disse, com irritação: "Pobrezinha!
E agora, apesar desta... magnífica cirurgia, você está com um tumor secundário em
sua virilha. Pare de usar a faixa elástica. Sua perna precisa de ar para curar-se direito.
Apenas cuide para não bater no enxerto de pele. Vamos recapitular sua história médica,
está bem ?"
Depois que respondi às suas perguntas, comecei a indagar algumas coisas também
e, com a permissão de Charlotte, gravei nossa conversa. "Quero escrever sobre minhas
experiências, se melhorar. Então, é melhor começar a colher materiais!"
Charlotte olhou-me, em dúvida. "Você pode fazer isso, mas é cedo demais para
começar a pensar sobre trabalho. Você provavelmente passará por momentos muito
difíceis, antes de começar a melhorar. Acho que, agora, seus pensamentos devem vol-tar-
se para a terapia. Nossa, você chegou ontem mesmo!"
Ah, mas ontem foi há muito tempo, e eu conhecia minhas necessidades, limitações e
meu limiar lamentavelmente baixo para o tédio. Assim, liguei o gravador e fiz a pergunta
que mais me incomodava: será que a duração excessiva da terapia era realmente
necessária ou a clínica insistia nisso apenas como medida de segurança ?
"Excessiva ? O que há de excessivo, em um ano e meio ou dois anos ? Isso não é
nada, comparado com os vinte ou trinta anos durante os quais o corpo envenena-se
gradualmente!" Ela falava com ardor, o que fazia um contraste interessante com sua
aparência suave e loira; ela poderia ter sido uma versão moderna de alguma Valquíria
invencível.
"A verdade é que, hoje, as pessoas levam mais tempo para responder à terapia que
no tempo de meu pai, simplesmente porque estão mais intoxicadas. Nos últimos trinta
anos, o mundo inteiro tornou-se mais perigoso e poluído, de modo que leva mais tempo e
o trabalho é maior para curar e recuperar a saúde dos pacientes. Precisamos correr cada
vez mais, apenas para não ficarmos para trás".
Concordei. Eu também percebia isto, e era desanimador, não ? Absolutamente não,
ela respondeu, por causa dos resultados maravilhosos que eles obtinham, apesar das
crescentes dificuldades. As pessoas se recuperavam e entre elas havia algumas
desesperadamente enfermas que se recuperavam por conta própria, sem virem à clínica,
apenas seguindo as instruções contidas no livro. Havia muitas pessoas assim, não apenas
Jaquie Davison.
"Deixe-me contar sobre Earl Taylor", Charlote disse. "Earl mora em Illinois. Quinze
anos atrás, quando não havia uma clínica Gerson ou médicos com experiência na terapia,
Earl recebeu alta do hospital para morrer em casa. Ele tinha setenta anos, seu câncer de
próstata se disseminara para os ossos e os médicos diziam que lamentavam, mas não
podiam fazer mais nada por ele".
Neste ponto da história, Charlotte fez um gesto expressivo que, como descobri
depois, era seu sinal para dizer que a medicina ortodoxa novamente chegara a um beco
sem saída; era um gesto de repúdio, rápido e, ainda assim, afetado, uma curva em espiral
para baixo, com ambas as mãos, como se a pessoa representada pelas mãos estivesse
tentando Iivrar-se de água suja ou de alguma outra substância desagradável. Era um gesto
que dizia: "Não nos chame, que nós também não o chamaremos".
Earl era um viúvo de educação limitada, que vivia sozinho, que ouviu falar sobre o
livro do dr. Gerson em uma revista de saúde e o comprou - e depois descobriu que não
poderia realizar a terapia sozinho.
Assim, ele telefonou para a irmã de Charlotte, que o aconselhou a seguir as
instruções práticas e a ignorar o resto. Ele fez exatamente isso e se recuperou. Agora, está
com oitenta e cinco anos.
"E algo interessante aconteceu quatro meses atrás", Charlotte acrescentou. "Earl
estava fazendo algo em casa, caiu e fraturou uma costela. Foi ao hospital porque sentia
muita dor, e os médicos presumiram que seu câncer ósseo reaparecera e causara uma
fratura patológica. Para terem certeza, submeteram-no a uma varredura óssea completa e
não descobriram nenhum traço de câncer. Ele apenas fraturara uma costela. Earl está vivo
e saudável".
"Sim", eu concordei, "isso era maravilhoso". E eu gostava também do clima de
confiança e altas expectativas que via na clínica. Mas, mas... "Sejamos realistas - o que
você me diz sobre os fracassos ?", perguntei, sentindo-me quase rude por inserir uma nota
negativa, já que algo, na essência de Charlotte, não incentivava a contemplação de
derrota. "Certamente vocês também têm fracassos!".
"Claro que sim. Quase todos os pacientes que vêm a nós têm metástases, como
você, que não podem mais ser influenciadas por métodos ortodoxos. Recebemos pacientes
terminais, que têm entre duas semanas e quatro meses de vida. A condição de alguns é
tão terrível que chegam em macas.
Alguns meses atrás, dois pacientes morreram a caminho daqui; nem chegamos a
vê-los. Isto lhe dá alguma ideia do que enfrentamos. Além de certo estágio, o organismo
do paciente degradou-se tanto que não pode ser restaurado, mesmo com esta terapia".
"E o que mais pode dar errado, com pacientes sem tanta gravidade ? Certamente,
existem fracassos entre casos não-terminais também..."
"Ah, sim", ela respondeu, franzindo a testa. "Muita gente não segue a terapia
corretamente quando vai para casa. Ela é difícil, dá muito trabalho, talvez seja cara
demais em alguns casos ou a família não oferece apoio e o paciente acaba desistindo. O
fato é que temos uma taxa de desistência muito alta, causada por problemas práticos; a
terapia não é a culpada.
As pessoas poderiam recupe-rar-se, se pudessem lidar com toda esta complexidade.
Contudo, algumas pessoas acham que a terapia é complicada demais e preferem morrer
que passar por isto. Essas não podem ser ajudadas".
"Talvez a motivação dessas pessoas não seja suficientemente alta", cogitei, "ou não
possam lidar com algum problema psicológico subjacente. E quanto à dimensão
psicológica ou espiritual da cura ? Vocês oferecem algum apoio nesta área ? Interesso-me
por isso por motivos profissionais".
Charlotte sacudiu a cabeça. "O lado psicológico é superestimado", declarou. "Toda
essa conversa de que o câncer é causado por estresse é absurda. O estresse não causa
doença, mas pode ser um fator em sua precipitação, se o corpo está intoxicado e não
funciona bem.
O estresse pode ser a última gota, mas não é a causa básica. Olhe aqui", ela disse,
com paixão, "ninguém neste mundo tem uma vida sem estresse, mas nem todos adquirem
uma doença degenerativa crónica. Por que não ? Porque um corpo saudável consegue
lidar bem com o estresse".
"Entendo". Engoli em seco. "Será que isso significa que você não acredita na
personalidade propensa ao câncer ?"
"Eu não acredito. Não como geralmente a apresentam. Acredito, sim, que, quando
um câncer é diagnosticado, já estava presente no organismo, desenvolvendo-se
lentamente, e durante esse período o corpo tornou-se tóxico e depletado, e seus sistemas
foram perturbados.
Obviamente, nessa condição, o sistema nervoso central é muito afetado, o cérebro
reage, você se torna negativo, abalado emocionalmente, deprimido e sofre muito. Mas
tudo isso é a consequência da condição do corpo, não sua causa!"
Eu não aceitei esta interpretação da ligação entre corpo e mente. Era
demasiadamente estreita e unilateral para acomodar as interações sutis e incessantes de
interno e externo, de físico e intangível.
Mas eu estava ali para aprender, não para discutir. Além disso, uma vez que os
anos durante os quais eu trabalhara com minhas questões internas e com a exploração
psicológica não haviam protegido meu corpo do colapso total conhecido geralmente como
câncer, achei melhor manter minhas objeções para mim mesma. Perguntei a Charlotte,
apenas, se ela não via necessidade de complementar a terapia com psicoterapia ou outro
tipo de apoio psicológico.
"Não há necessidade", foi sua resposta. "Se eu quisesse super-simplificar as coisas,
diria que, depois que o fígado do paciente é restaurado, ele pode lidar com seus
problemas psicológicos ou espirituais".
Ela levantou-se, encaminhando-se para a porta. "Preciso ir. Teremos outras
oportunidades para conversar, mas, agora, tente acomodar-se e aprender a rotina. Isso é
o mais importante a fazer".
"Sim, farei isso. Não é uma pena você não ter se tornado médica ?", acrescentei, em
um impulso.
"Ah, meu Deus, não!", Charlotte disse, sorridente. "Eu já teria perdido minha licença
há muito tempo. Sem ser médica, posso fazer meu trabalho com liberdade, o que não
aconteceria de outro modo". E, com isso, ela foi embora.
Parte de sua energia, porém, permaneceu comigo. Senti-me revigorada e animada,
após nosso encontro. Charlotte, como verdadeira profissional da cura, possuía a
capacidade de encher as pessoas de confiança e espírito de luta.
Agora, eu já podia dizer que ela mesma era uma lutadora e, certamente, valeria a
pena ter sua companhia em uma barricada. Seu desprezo pelo aspecto psicossomático era
lamentável, porque significava que a clínica La Gloria não podia ser um verdadeiro centro
holístico de cura, fiel ao modelo grego.
Porém, não se podia ter tudo e, se eu quisesse, teria de cuidar sozinha da
dimensão que faltava; criar e internali-zar o Esculápio de minhas fantasias. Uma vez que
eu geralmente me sentia mais à vontade com a psique que com o corpo, isso não seria
muito difícil.
O resto da tarde foi recheado de visitas, sucos, enemas e um rápido telefonema de
um dos médicos, dr. Arturo, cujos traços incas eram ainda mais impressionantes do que
aqueles do dr. Vic, que eu apenas vislumbrara.
Eu também sobrevivi ao efeito devastador do óleo de castor e consegui descansar
vinte minutos, entre dois lotes de batidas em minha porta. Eu compreendia a necessidade
por essas intrusões e interrupções constantes, mas isso começava a me irritar. E, à medida
que tal irritação crescia, vi-me, subitamente, frente a frente com um fato incrível:
Fazia mais de um dia que eu não fumava - trinta e três horas, para ser exata. Além
disso, até o momento eu nem mesmo tivera consciência desta grande interrupção em meu
hábito. No passado, nas muitas ocasiões em que eu tentara parar de fumar, depois de
apenas oito horas de abstinência eu ficava irritada e agitada, incapaz de me sentar quieta
ou me concentrar por mais de três minutos. O que estava acontecendo, afinal ?
O próprio pensamento sobre cigarros trouxe uma ânsia leve e imediata e, é claro,
eu não tinha cigarros. Isto, por sua vez, le-vou-me de volta ao antigo reflexo condicionado
de toda a minha vida adulta, a sensação de pânico, de que, a menos que eu pegasse um
cigarro imediatamente, teria um acesso espetacular de loucura.
Ao mesmo tempo, eu sabia que fumar era o tabu número um na terapia de Gerson,
e que, se me pegassem fumando - ou bebendo, mas disso eu não sentia nenhuma falta -,
seria enviada imediatamente para casa. Meus anseios ambivalentes, o intenso desejo de
fumar e o medo de ser expulsa, cercavam-me de um modo desconcertante, de modo que
decidi dar uma caminhada para me acalmar.
Percebi que não sentira sintomas de abstinência ou anseio até momentos atrás,
quando começara a pensar em fumar, mas, agora, todas as minhas células pareciam
gritar por tabaco e eu corri para fora, sem analisar a ligação entre pensamento e fissura
pelo cigarro.
A esquerda do prédio mais baixo, havia um pequeno bosque com uma ponte
japonesa e um veado manso que pastava em um espaço cercado. Enquanto eu caminhada
em sua direção, vi um homem idoso, marido de uma paciente, fumando um cigarro entre
as árvores.
Ah, ali estava minha chance, pensei, com a esperteza vil de um dependente. Se eu
pedir a este homem, ele certamente me oferecerá um cigarro que poderei fumar depois,
em algum lugar seguro, apenas desta vez, antes de parar para sempre. Sim, apenas um
único cigarro, depois do que eu nem mesmo desejarei fumar novamente. Agora, até as
raízes de meus cabelos pareciam retorcer-se e clamar por uma dose confortadora e
calmante de nicotina.
Andei até o homem, adotando modos amistosos. Pobre dele, parecendo tão
solitário e sofredor - provavelmente se sentiria bem por ter a chance de conversar por um
momento e, depois, me ofereceria um cigarro. Por tudo quanto eu soubesse, ele era o
único fumante nas redondezas; por isso mesmo, eu tivera muita sorte de encontrá-lo por
ali, sem ninguém mais à vista.
Eu estava a alguns metros dele quando uma brisa suave trouxe a fumaça de seu
cigarro direto para meu rosto. Ai! Que cheiro horroroso! Um odor pesado, nojento, sujo e
irritante, que tirava toda a vontade de fumar e quase me dava náusea. Minhas células e
raízes capilares nervosas silenciaram, com o choque.
Passei pelo homem, em estado de torpor, e prossegui até o bosque. Minha confusão
era total. Por alguma razão, a fumaça de cigarro, que havia sido um acompanhamento
essencial durante minhas horas de vigília durante tantos anos, tornara-se repulsiva; o que
eu julgara ser pura ânsia por fumar não passara de uma ilusão mental, que não envolvia
meu corpo
Eu não estava tendo sintomas de abstinência, exceto pela sensação de que deveria
tê-los. Não pude acreditar em minha própria sorte.
Virei-me e tomei o caminho de volta. Inalada ao contrário, a fumaça liberada por
aquele cigarro ainda parecia insuportável. Voltei ao meu quarto, sentindo-me excitada e
perplexa. Decidi que trinta e três horas de terapia haviam me curado do vício de uma vida
inteira - uma vez que nada mais poderia explicar uma mudança tão drástica em minha
reação à fumaça de cigarros -, então dezoito meses de terapia deveriam curar
praticamente qualquer coisa.
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CAPÍTULO 10
UMA POSSÍVEL EXPLICAÇÃO PARA MINHA falta de vontade de fumar veio alguns
dias depois, em uma das conversas regulares de Charlotte com os pacientes, nas quais ela
combinava informações claras e encorajamento.
Nessa ocasião, ela afirmou que, por trás da maioria das dependências, há uma
dieta deficiente, na qual faltam nutrientes essenciais. Depois que tal deficiência é corrigida
- por exemplo, mudando para a dieta de Gerson -, a ânsia pela substância diminui
rapidamente ou desaparece. Ela citou o exemplo de uma paciente de câncer que fumava
ininterruptamente, que adiara sua vinda à clínica tanto quanto possível, convencida de que
seria incapaz de sobreviver sem cigarros.
Ainda assim, alguns dias depois de chegar, ela abandonara o hábito, sem
sofrimento. Exatamente como eu, pensei com alegria. Se Charlotte estiver certa, e a
experiência de outros fumantes também apoiar suas declarações, então todos os médicos,
psicoterapeutas, profissionais da hipnose, grupos heróicos de auto-ajuda e fabricantes de
substâncias anti-tabagismo estão na estrada errada e, similarmente, todos os fumantes
viciados, que tentam libertar-se do hábito, fracassam pelas razões erradas. Depois da
palestra, perguntei a Charlotte se alguém já conduzira um experimento controlado em
grande escala para testar sua hipótese sobre a nutrição.
Ela encolheu os ombros, dizendo que, tanto quanto soubesse, não. Ninguém
patrocinaria estudos sobre a terapia nutricional, porque não há grande retorno no uso de
alimentos sadios, integrais e não processados como uma ferramenta terapêutica. "Quem
quer saber sobre um método que beneficiaria apenas aqueles que praticam o cultivo
orgânico ou quitandeiros ?", ela indagou.
Registrei amargura em sua voz, que sempre ocorria quando ela falava sobre a
resistência ferrenha do sistema médico americano a terapias alternativas e à terapia de
Gerson em particular. As vezes, seu ressentimento transformava-se em raiva, quando
discutia sobre os interesses ocultos por trás da gigantesca indústria americana de câncer,
com sua alta rotatividade e lucros ainda maiores - de acordo com algumas estimativas,
vinte milhões de dólares são gastos a cada ano nos Estados Unidos em tratamentos
convencionais para o câncer.
"Mas, entenda, o programa de Gerson não envolve cirurgia, radiação ou
quimioterapia", ela apontava. "Seu uso causaria desemprego maciço entre especialistas,
técnicos, fabricantes de medicamentos e todos que trabalham no ramo. Além disso, nossos
resultados fariam com que os programas oficiais de pesquisas, imensamente caros,
parecessem bastante tolos. Assim, precisamos ser postos de lado".
Isso também acontecia na Califórnia onde, sob a lei estadual, é crime tratar câncer
com qualquer outra coisa que não seja a trindade ortodoxa, descrita com menosprezo
como "cortar, queimar e envenenar" por militantes da medicina alternativa. Ainda assim,
com seu clima ameno e suprimento constante de vegetais e frutas orgânicas, a Califórnia
teria sido um local ideal.
Para contornar os problemas, a clínica de Gerson e alguns outros centros
alternativos para o câncer foram construídos em Tijuana ou próximo dessa cidade, perto
das facilidades da Califórnia, mas com segurança e dentro da lei, no território mexicano.
Charlotte disse que, mesmo assim, as autoridades americanas lançam ataques
regulares contra as terapias não-tóxicas para câncer, acusando-as de charlatanice. "Mas,
pelo que eu sei", ela acrescentou, indignada, "charlatanismo significa que alguém lhe
vende algum remédio caro que sabe ser inócuo - curas como quimioterapia, radiação e
cirurgia. Basta apenas olhar para as taxas de mortalidade por câncer para ver quem são
os charlatões".
Naqueles primeiros dias na clínica, eu às vezes imaginava se Charlotte não
exagerava a estupidez do sistema médico e a hostilidade contra o trabalho de seu falecido
pai. Como descobri depois, ela não exagerava. Contudo, em termos gerais, eu não tinha
nem como pensar em qualquer coisa que não estivesse ligada às exigências da rotina
diária.
Quase sem perceber, eu caíra na rotina da clínica de Gerson, que iniciava de
madrugada e ia até à noite, não tanto seguindo a terapia, mas sendo levada por ela.
Sucos, enemas, visitas dos médicos, medicação, injeções, palestras, óleo de castor,
refeições, exercícios, discussões com Charlotte, conversas com outros pacientes, leituras e
estudo - cada minuto do dia era preenchido, cada minuto era voltado para o objetivo de
ficar boa.
Eu mal conseguia arranjar tempo para a importante tarefa de escrever cartas, de me
manter em contato com meu mundo. Sem uma máquina de escrever, eu conseguia apenas
escrever cartas genéricas e breves, pedindo que os destinatários contassem as notícias aos
amigos mútuos.
Meu crescente envolvimento com a terapia era a versão adulta do zelo com o qual
eu abraçara causas nobres na adolescência e, uma vez que estava cercada por
companheiros de sofrimento, que operavam em níveis similares de envolvimento, não via
nada de incomum em minha dedicação total ao tratamento.
Além disso, eu agora era membro de uma sub-cultura que considerava
razoavelmente semelhante à minha experiência na área de medicina alternativa na
Inglaterra; entretanto, ela também era diferente. Era mais especializada e mais relevante,
já que o que estava em jogo desta vez era a sobrevivência e não, como ocorrera em
Londres, o tratamento de resfriados ou os respectivos méritos da acupuntura e terapia por
zona (reflexologia).
O simples fato de estar na clínica La Gloria identificava-me como membro ou
afiliada de uma sub-cultura, porque para estar ali, em primeiro lugar, eu precisava ter lido
certas revistas obscuras de saúde ou boletins distribuídos em igrejas, conhecer certos
terapeutas nada convencionais ou ter dado atenção aos atendentes em lojas de alimentos
naturais ou, ainda, ter comparecido a convenções de saúde natural, nas quais Charlotte
atuava como conferencista.
Ou, se nada disso se aplicasse, as pessoas chegavam à clínica com o tipo de
propaganda boca-a-boca que funcionara comigo. Os únicos pacientes que chegavam à
clínica La Gloria sem conhecimento prévio do mundo alternativo eram encaminhados por
enfermeiros de hospitais, depois que o tratamento convencional fracassava.
Alguns enfermeiros, com sua ampla experiência em termos do que os tratamentos
ortodoxos para câncer faziam aos pacientes, com frequência aconselhavam os casos
avançados a experimentarem terapias alternativas. Pelo menos, eles tinham liberdade para
fazer isso, diferentemente daqueles médicos americanos que se haviam recuperado pelo
uso da terapia de Gerson, mas estavam proibidos, por lei ou por pressões não-oficiais, a
prescrevê-la para seus pacientes.
Pertencer à sub-cultura de Gerson fazia-me sentir um pouco como os primeiros
cristãos devem ter se sentido, por ser um membro de um pequeno movimento de
resistência, afastado da medicina convencional e, na verdade, nadando contra esta,
arriscando tudo, solitário e sem apoio, mas convencido de uma verdade central e
essencial, que a maioria não conseguia enxergar.
Porém, diferentemente dos primeiros cristãos, eu e meus companheiros
'conspiradores' seguíamos um credo totalmente centrado no corpo, prático e racional, que
prometia recompensa imediata ou punição ainda nesta vida.
Apesar de minha dedicação, eu tinha pouco a relatar, durante as visitas diárias dos
drs. Arturo e Rodgers, que se revezavam nas rondas. Eu ainda estava cansada, mas não
sentia mais a exaustão mortal e patológica de minhas últimas e negras semanas em
Londres.
Exceto pelo cansaço, eu me sentia moderadamente bem, e não estava mais
emagrecendo. Meu rosto parecia menos amarelado, meus olhos menos turvos. Quando
uma estranha marca avermelhada apareceu em meu rosto, o dr. Rodgers viu-a como uma
inflamação saudável, embora minúscula, e sentiu mais alegria ainda quando a metade
inferior de meu enxerto de pele, tristemente insensível, também tornou-se rubra.
Ah, sim, aquilo era ótimo, mas eu desejava algo mais dramático, um sinal claro,
para mostrar que meu corpo estava recebendo a mensagem. Por que, por exemplo, o
nódulo em minha virilha não encolhia ou desaparecia ? Esta questão me incomodava
bastante.
Por pura preocupação, eu devo ter enviado os pensamentos errados para o caroço,
porque alguns dias depois ele tornou-se ainda mais saliente e duro. Eu não precisava mais
procurá-lo com as pontas de meus dedos, já que ele subia em minha virilha como uma
montanha em miniatura.
Agora, era do tamanho de uma noz grande, não mais de uma amêndoa, Eu me
sentia aterrorizada, ao observar aquele nódulo indolor e duro como pedra, que
pressionava de dentro para fora, como um mensageiro sinistro das profundezas. Entrei em
pânico, mas os médicos achavam meus temores infundados. Eles garantiram-me que o
tumor estava simplesmente subindo à superfície, mas não crescia - bem, pelo menos não
de um modo relevante.
Eu também não estava produzindo tumores adicionais, como ocorre com
melanomas, de modo que não havia com que me preocupar. Com uma dificuldade
considerável, aceitei o que me diziam.
O que eu mais desejava era uma crise, com todos os seus acompanhamentos, e isso
era o que eu não tinha. A mãe de Sarah ainda estava confinada ao leito e tão doente que
a família concordou em mantê-la na clínica por mais uma semana, não importando as
dificuldades financeiras que isso acarretasse; Becky começara sua primeira reação de cura.
Por todos os lados, os pacientes subitamente desapareciam do salão de jantar, o
que significava que estavam fazendo o que deviam - tendo crises. Parecia que apenas eu
não tinha uma crise. O que havia de errado comigo ? Será que meus órgãos estavam
além da cura, será que não podiam mais responder ? As ondas de depressão que
começavam a me atingir tinham um sabor conhecido.
Depois de refletir sobre isso, compreendi que eu revivia a perplexidade e as
depressões de minha infância, quando, como filha única, não treinada nas leis tribais de
famílias tradicionais, eu muitas vezes me descobria isolada entre minhas colegas, fora de
compasso, culpada por alguma transgressão involuntária. O que eu fizera agora ? Por que
não estava tendo uma crise, como acontecia com todo mundo ?
Finalmente, no meu décimo dia na clínica La Gloria, acordei com uma sensação
muito esquisita. Sentia tontura, muita fadiga, meu crânio parecia cheio de algodão e preso
de forma instável em meu pescoço, e meu estômago me incomodava. Alberta descobriu
que minha temperatura estava acima do normal e me mostrou o termómetro, com um
grande sorriso. Sorri também.
Minha boca parecia papel-borrão encharcado com cidra estragada, mas fiquei
contente, ansiando para que meu corpo produzisse uma crise das boas - o que significa
um ataque muito, muito mim. Quando dei alguns passos fora da cabana e vi Carl
andando por ali, chamei-o para lhe contar que me sentia muito mal.
"Isso é ótimo! Sua aparência também está péssima! - estou muito contente!", ele
disse, dando a resposta correta na clínica de Gerson, que teria parecido grosseira em
qualquer outro arranjo. "Parece que, finalmente, você está tendo uma crise. Vá para a
cama, que alguém lhe trará todos os seus sucos e refeições".
"Não quero nada", respondi, contente, antes de voltar para a cama. Minha cabeça
doía e eu me sentia levemente nauseada, mas, ainda assim, senti-me satisfeita, enquanto
cochilei entre os sucos que, de algum modo, consegui beber. A tarde, porém, em vez de
afundar nos males variados descritos pelo dr. Hesse, subitamente recuperei-me e me senti
bem normal - e também muito desapontada.
Era um falso alarme e meu corpo não estava respondendo à terapia. Era tarde
demais. Eu bem poderia ir para casa e morrer.
"Que bobagem", disse Carl, quando lhe transmiti minhas dúvidas. "Um absurdo
completo, Bee. Você e eu iremos nos recuperar, sei disso. Então, pare de se queixar".
Parecia que ele acabara de receber dos céus uma garantia confidencial de nossa
recuperação. "Talvez você nem tenha uma crise propriamente dita durante semanas a fio -
e daí ? Você ainda tem quase dois anos à sua frente. Qual é a pressa ?"
Ele tinha razão. Não havia pressa. Senti-me sem graça, embora não mais
desesperada. Voltei minha atenção, então, para a literatura ligada à medicina alternativa.
A clínica não tinha biblioteca, mas alguns pacientes emprestavam seus livros, que também
tratavam dos interesses comuns à nossa sub-cultura, e decidi ler todos que me chegassem
às mãos. O primeiro que tomei emprestado foi Confessions of a medicai heretic, escrito
por um importante médico americano, dr. Robert Mendelsohn.
O livro resumia-se a uma condenação fervorosa e completa à medicina moderna,
como praticada nos Estados Unidos. "Acredito que os tratamentos da medicina moderna
raramente têm eficácia, e que com frequência são mais perigosos que as doenças que
visam tratar", declara o altamente classificado dr. Mendelsohn em seu capítulo de
introdução, e na clínica La Gloria, onde a maior parte dos pacientes tem as marcas da
medicina ortodoxa fracassada para o câncer, suas opiniões imparciais o tornaram um
herói imediatamente cultuado.
Senti-me especialmente interessada por uma sentença em seu capítulo sobre
"Mutilações Rituais", que é seu termo para a cirurgia desnecessária ou realizada por razões
incorretas; uma sentença enregelante, embora curta, que declara: "A cirurgia moderna
para o câncer algum dia será considerada com o mesmo tipo de horror que dedicamos
atualmente ao uso de sanguessugas, no tempo de George Washington. Há trinta e cinco
anos ela já era comprovadamente irracional".
Por estranha coincidência, eu estava lendo esta sentença em meu terraço quando
olhei para cima e vi um homem alto e aparentemente triste, que passava pela colina. Pela
forma assimétrica de sua jaqueta fina, eu podia ver que ele perdera para a cirurgia não
apenas seu braço esquerdo, mas também seu ombro esquerdo e que, a julgar por seu
rosto cinzento e sua própria presença na clínica La Gloria, a amputação radical não
resolvera seu problema.
Observei-o com grande solidariedade, desejando descobrir mais sobre seu caso,
mas ele desapareceu tão silenciosamente quanto aparecera e eu nunca mais o vi.
Outros 'hóspedes' de breve estadia e menos trágicos eram vistos com menosprezo
por nós, que estávamos ali para uma permanência maior. Esses eram os americanos
afluentes, que consideravam a clínica modesta demais, que viam suas regras como
excessivamente rígidas, consideravam sua dieta espartana demais e partiam em um ou
dois dias, espalhando indignação em seu rastro.
Um desses pacientes meteóricos foi uma jornalista nova-ior-quina famosa de meia-
idade, que me fez perguntas detalhadas sobre a terapia, apenas para concluir que, apesar
do mau prognóstico para seu câncer disseminado, ela não suportaria submeter-se ao
programa de Gerson. Ela citou várias razões em apoio à sua decisão, antes de chegar ao
fator crucial e decisivo. "Esta terapia perturbaria meu estilo de vida".
"A morte também", sugeri, com muita honestidade, mas pouca delicadeza.
Ela torceu o nariz, fungou, correu de volta para seu quarto e foi embora no mesmo
dia.
Continuei lendo cada livro e revista que conseguia, até poder compilar para meu
próprio uso um esboço da personalidade e ca-ráter do dr. Gerson. Juntando as
informações de minhas fontes incompletas, ele revelava-se um homem calmo, forte e
gentil, concentrado em seu trabalho, distraído o suficiente para destruir quatro bicicletas
em pequenos acidentes e para cair em uma calha de transporte de carvão. Acima de tudo,
era modesto, despretensioso e persistente. Sem uma força e tenacidade excepcionais, ele
poderia ter abandonado completamente a medicina ou sofrido um colapso no vigor de
seus anos, já que toda sua vida foi pontuada por revezes trágicos e desilusões.
Era como se o destino lhe oferecesse oportunidades maravilhosas com uma mão,
apenas para tomá-las de volta com a outra, exatamente antes de se concretizarem. Ainda
assim, mesmo com este padrão cruel de um passo para frente e dois para trás, o dr.
Gerson conquistou resultados únicos; imagino o que não teria realizado, com um percurso
menos acidentado de vida.
Dois episódios de sua carreira destacaram-se como marcos particularmente difíceis.
Em 1932, quando estava com cinquenta e um anos, ele recebeu plenos poderes de um
hospital de Berlim, para provar que seu tratamento nutricional poderia curar até casos
gravíssimos de tuberculose. Depois de longos e dolorosos esforços, ele deveria demonstrar
seus resultados perante a Associação Médica de Berlim, em uma apresentação que, ele
sabia, tornaria sua terapia amplamente aceita e abriria as portas para outros trabalhos
pioneiros. Porém, cinco semanas antes da data para a demonstração, Hitler subiu ao
poder e o dr. Gerson deixou a Alemanha com sua esposa e três filhas (muitos de seus
parentes, que se recusavam a seguir seu exemplo, morreram em campos de concentração
nazistas).
Outra oportunidade incrível surgiu - e foi embora - em 1946, quando o dr. Gerson,
já recuperado e trabalhando em Nova Iorque, recebeu permissão para apresentar cinco de
seus pacientes recuperados de câncer a um comité do Congresso Norte-Ame-ricano. Ele
era o primeiro médico a fazer isso.
O que estava em jogo era um projeto de lei que, se aprovado, teria gerado verbas
para pesquisas ligadas à sua terapia. A apresentação foi um sucesso estrondoso, mas o
lobby que apoiava terapias convencionais para o câncer derrotou o projeto-de-lei por
quatro votos. E a história acabou aí.
O solitário médico imigrante, com seu inglês com forte sotaque alemão e resultados
impressionantes, foi mais uma vez deixado de fora, em parte ignorado, em parte
perseguido pelas várias organizações médicas, incluindo a American Câncer So-ciety, que
relacionou sua terapia sob o título de "Fraudes e Fábulas".
Ainda assim, ele continuou trabalhando sozinho, em meio a crescentes dificuldades,
e morreu aos setenta e oito anos, em 1959. Como ironia final de seu estranho destino, a
Academia de Ciências de Nova Iorque convidou-o para tornar-se um membro - dois meses
depois de sua morte.
Apenas uma vez este padrão de vida parece ter funcionado ao contrário, quando,
em vez de reduzir uma grande chance a cinzas, ele transformou uma grave deficiência em
uma ferramenta de descoberta. Quando jovem, o dr. Gerson sofria de surtos longos e
incapacitantes de enxaqueca, que não podiam ser curados por seus colegas de profissão.
Assim, ele começou a fazer experiências com várias dietas e logo descobriu que um
regime sem sal, consistindo de vegetais crus ou recém cozidos e frutas, especialmente
maçãs, evitava as enxaquecas. Ele recomendou a mesma dieta a seus pacientes
acometidos de enxaqueca, com excelentes resultados.
Logo, um de seus pacientes relatou que seus ataques intensos de enxaqueca haviam
cessado - e, também, que seu Lúpus vulgaris (tuberculose de pele) estava desaparecendo.
Uma vez que o Lúpus era visto como incurável, o dr. Gerson mal pôde acreditar na
afirmação do homem - ou no que seus próprios olhos constataram. Mas não havia dúvida.
As lesões do Lúpus estavam se curando. Assim, ele foi forçado a concluir que a dieta
não curava apenas uma doença específica, mas restaurava a capacidade do organismo
para curar a si mesmo - de enxaqueca, Lúpus, tuberculose ou qualquer outra coisa que
estivesse errada. Foi assim que seu trabalho revolucionário teve início, levando ao final a
seu sucesso estrondoso com casos de câncer terminal.
Era melancólico pensar sobre os altos e baixos e nas possibilidades frustradas da
carreira do dr. Gerson, quase vinte anos após sua morte, naquele hospital mexicano
pequeno e modesto - o único resquício tangível do trabalho de sua vida inteira. Eu tinha
certeza, assim como outros pacientes, que, se o comité do Congresso norte-americano
tivesse aprovado a verba para a condução de pesquisas sobre os métodos do dr. Gerson
em 1946, a terapia teria sido embutida e simplificada há muito tempo, permitindo que os
pacientes a seguissem sem terem de se retirar da vida normal por quase dois anos.
Mas tudo isso era especulação e teoria. Na prática, tínhamos que seguir
trabalhando, sem lamentações.
Eu, porém, lamentava. A comida começava a me irritar, especialmente a cebola
aferventada afogada em passas que me revoltava, sempre que aparecia no cardápio. Eu
desligara conscientemente o botão de meu apetite normal por refeições saborosas, mas
meus instintos recusavam-se a obedecer e eu começava a ter sonhos vívidos com alimentos
proibidos.
Eu estava na mesma posição que santo Antônio ao ser atormentado por visões
tentadoras no deserto; entretanto, enquanto suas visões envolviam mulheres gordas,
ousadas e nuas que iam e vinham pelo ar, em meu deserto gastronómico eu sonhava com
pratos ou lanches exóticos, salgados, saborosos e suculentos, sempre em um contexto
francês.
Um dos sonhos levou-me de volta a uma boulangerie na me Soufflot, em Paris, que
vendia tranças gorduchas e leves, recheadas com queijo cremoso adocicado; outro,
colocou-me sentada em um restaurante rústico em Auvergne, onde linguiças grelhadas
picantes eram servidas com uma enorme porção de batatas fritas pálidas, fininhas e
douradas.
O mais estranho sobre esses sonhos altamente reais era que, em cada um, eu
conseguia pegar e comer o que bem quisesse, sem ter de pagar. Os sonhos representavam
meu anseio desesperado por romper com a dieta, sem sofrer as consequências por isso.
Mas, se isso era o que meu inconsciente me tentava a fazer, não teve sucesso e,
subitamente, os sonhos cessaram.
Mas eu ainda reclamava - da monótona sopa de Hipócrates, do telefone quebrado
que não me permitia ligar para Hudie, o que eu desejava muito fazer, ou de receber uma
ligação dele, da ineficiência de Marcos Aurelios, que anotava obedientemente minhas
necessidades e solicitações todas as manhãs e, depois, desaparecia pelo resto do dia sem
atendê-las.
Tudo parecia estar errado. Certa manhã, quando eu começava minha sessão de
mau-humor e reclamações, Sarah pegou-me pelo braço. "Venha", ela me disse, "você
precisa mudar de ares - vamos até o mar, em Rosarito. Luís, o cozinheiro, pode levar-nos
até lá e, se sairmos agora, voltaremos a tempo para seu suco de fígado das onze".
Adorei a chance de sair um pouco e, alguns minutos depois, já rodávamos pela
impressionante auto-estrada, deixando a clínica para trás.
O que vi de dentro do carro não me impressionou tanto. O cenário era
dolorosamente feio. Terra estéril e poeirenta, sujeira e desordem, uma mistura caótica de
carros abandonados, pilares, barracos, vegetação esmirrada, estruturas inacabadas de
concreto, uma fileira de tratores amarelos, grandes avisos pedindo CUIDADO, anúncios
mal feitos oferecendo terrenos À VENDA.
Motéis de péssima aparência anunciavam "ALMOÇO JANTAR" e um chegava
mesmo a oferecer BREAKFEST. Diversas lojinhas ao longo da estrada vendiam MUEBLAS
ESTUFAS e presumi que talvez isso significasse "móveis estofados". Perto de Rosarito,
passamos por lojas de lembranças, com variados níveis de feiúra.
As pessoas queimavam lixo com odor intensamente irritante por todos os lados, e
também por toda parte se viam crianças belas, andando por ali em pequenos bandos ou
levadas por mulheres moldadas para, ou por, gestações múltiplas e contínuas.
Chegamos finalmente à humilde e suja cidade litorânea de Rosarito e paramos
numa praia deserta. Saí do carro e corri ao longo da faixa de areia, deixando Sarah e Luís
para trás. Depois de me afogar em feiúra e pobreza na estrada, as ondas crespas e azuis
do Pacífico eram tão magníficas e belas, um contraponto tão majestoso para meu
desespero mesquinho, que tive de experimentar seu impacto sozinha.
Além disso, eu teria tido dificuldade para explicar por que chorava. Eu mesma não
tinha certeza, mas suspeitava que o mar me confrontava com o máximo em termos de
unidade e ligação, o que tornava meu próprio isolamento terrivelmente doloroso. De
qualquer forma, chorei breve e amargamente, de cara para o vento cortante, sentindo
saudade de casa, solidão e um intenso aperto no peito. Depois, assoei meu nariz e voltei
para o carro.
"Você deve estar se sentindo mais forte, para poder reclamar assim", Becky sugeriu,
mais tarde, quando a visitei e, contrariando minha intenção original, apresentei-lhe uma
breve lista de minhas queixas. Becky estava de cama, com uma crise potente, mas seu
espírito elegante e seu humor estavam acima de seu óbvio mal-estar. "A lua-de-mel com a
clínica acabou, não acha ?", ela perguntou. "A terapia a faz sentir-se melhor, de modo que
você começa a perceber as falhas e ineficiências".
"Talvez você tenha razão", comentei. "Há muita ineficiência aqui e eu gostaria muito
que a equipe falasse um pouco de inglês; esta falta de comunicação é irritante. Mas
também estou mais irritável que o normal, não sei por quê. Será que suco de cenoura
baixa nosso limiar para a irritação ? Deveria ser o oposto, eu acho".
"Espere até ter uma crise", Becky disse. "Você descobrirá que isso a torna
maravilhosamente generosa e tolerante".
Ela estava pálida e exausta, depois de dois dias de intensa cefa-léia e náusea, mas
recuperou-se a tempo para a palestra de Charlotte, na tarde de sábado, que era o ponto
máximo da semana na clínica La Gloria. Desta vez, sua plateia consistia não apenas de
pacientes, atendentes e visitantes, mas também de um grande grupo de chefes de
enfermagem e administradores hospitalares, que faziam um tour pelos centros de
tratamento alternativo para câncer da região de Tijuana, como parte do "programa de
educação contínua".
Observei, enquanto entravam no salão de conferência. Quase todos eram gordos,
alguns eram obesos e disformes, sacolejando ao andar, como os muito gordos fazem
quando as pernas não mais se encostam uma na outra. Eles eram testemunhas vivas de
uma dieta realmente detestável. Se profissionais da saúde tinham tal aparência, pensei,
pobrezinhos de seus pacientes!
Charlotte começou sua apresentação com um breve resumo da terapia e, depois,
abordou seu tema principal - citando que, como o tratamento não é específico, depois de
algum tempo ele permite que o corpo conserte todos os seus problemas, não apenas a
doença que mais o ameaça. "O corpo não é seletivo", ela disse, "ele não curará um ou dois
de seus problemas, e negligenciará o resto.
Às vezes, nos surpreendemos por ver como até mesmo alguns problemas muito
antigos e difíceis desaparecem com este tipo de cura total. Por exemplo, nós tínhamos uma
senhora de oitenta anos, aqui, com pressão sanguínea muito alta e catarro brônquico
crónico. Nem sabíamos sobre sua catarata, já que ela não a mencionara, mas, mesmo
assim, o problema foi resolvido. E isso que queremos dizer com 'cura'".
Ela ofereceu outros exemplos, citando os nomes, endereços, idades e histórias
exatas de casos de ex-pacientes que sentiam o maior prazer em servir como testemunhas
vivas do sucesso da terapia. Eric Goodman, por exemplo, já teve câncer de mandíbula e
fibrilação cardíaca grave, enxaqueca, sinusite, artrite, hemor-róida, insónia e falta de
energia.
"Ele ingressou na terapia porque não queria que sua mandíbula fosse removida",
Charlotte explicou. "Era só isso que o médico tinha para oferecer. Eric não apenas curou
seu câncer, mas também perdeu todos seus outros problemas. Os médicos lhe deram seis
meses de vida, e isso foi cinco anos e meio atrás".
Um murmúrio percorreu a plateia. Alguns dos enfermeiros trocaram olhares
perplexos e gestos sutis de concordância, sinalizando interesse e satisfação. O interesse
aumentou quando Charlotte apresentou o caso de Melva Blackburn, que sofrera de doença
renal desde 1940, à qual somaram-se gradualmente doença cardíaca e doença da artéria
coronária, aumento do fígado, uma lesão em chicote que não passava, diabetes,
pneumonia pelo menos duas vezes por ano, artrite por todo o corpo, obesidade, fadiga,
confusão e senilidade precoce.
Desta vez, o grupo de profissionais riu nervosamente, com incredulidade. Minha
própria reação era de que, qualquer um que vivesse, apesar de tantas queixas graves,
deveria ter uma constituição fabulosa - ou um zelo excepcional pela vida.
"Melva começou a terapia em outubro de 1979", Charlotte prosseguiu, "quinze meses
atrás, e agora está boa. Não toma nenhum remédio, incluindo insulina, que começou a
tomar quinze anos atrás.
É uma escala de tempo interessante; quinze meses de terapia fizeram o que não foi
feito por quinze anos de tratamento. Alguns meses atrás, ela voltou a seu médico. Este
demonstrou surpresa por vê-la com tanta saúde - e então quis receitar-lhe remédios de
novo!" A voz de Charlotte subira e ela quase gritava.
Seus olhos brilhavam de raiva. Eu podia imaginá-la confrontando um bando de
médicos ortodoxos e demolindo seus argumentos com fatos frios e raiva fervorosa. Era fácil
perceber também que ela não se impressionava com aqueles profissionais que
demonstravam vaga simpatia por sua causa, mas ainda não estavam convencidos e
provavelmente esperavam argumentos menos fervorosos.
Mas, então, percebi que Charlotte era "La Pasionaria" do movimento de medicina
alternativa, com um papel singular a cumprir - a persuasão paciente e gentil teria de ser
feita por outra pessoa, já que este não era seu estilo.
Depois, ela passou das histórias de casos passados para a apresentação de
pacientes atuais em recuperação, chamando para o púlpito alguns pacientes que estavam
sentados inocentemente no auditório. O primeiro a ser chamado foi Bert Brehaut, um
homem jovem e alegre que se recuperava dos efeitos colaterais destrutivos de drogas
prescritas por seus médicos, ao longo de doze anos.
Sua história era bastante familiar - ele havia começado a tomar um remédio, que
logo exigiu o uso de outro e assim por diante, até que o paciente quase desapareceu, sob
a reação acumulada de substâncias químicas poderosas, com nomes impronunciáveis.
Tudo o que Bert desejara, em primeiro lugar, era alívio da dor causada por um
ferimento. O que obteve, em vez disso, foi alívio apenas parcial - e um emaranhado de
problemas causados por drogas, incluindo poderosas alergias alimentares que, finalmente,
o forçaram a comer apenas batatas. Ao chegar à clínica La Gloria, acompanhando a
esposa Marie, que tinha câncer, Bert sofria de dores constantes, prostatite, artrite, múltiplas
alergias e sério dano hepático. Quando percebeu a extensão de seus problemas, ele
internou-se e iniciou a terapia com sua esposa.
"Consegui cortar todas as drogas", Bert contou-nos, "e a dor está indo embora.
Posso comer tudo o que servem aqui sem efeitos indesejados e consigo dormir
normalmente, deitado em vez de sentado, como fazia antes, por causa da dor. E ótimo
funcionar como deveria", concluiu, com um sorriso tímido. Charlotte deu-lhe um tapinha
no ombro. Aplaudimos vigorosamente.
A seguir, a esposa de Bert, Marie - uma jovem magra, pálida e desgrenhada -
contou sua história bizarra. Desde uma mastectomia, dois anos e meio antes, ela se sentira
fraca e doente, mas os médicos a acusaram de ter "psicose de câncer" e ignoraram seus
sintomas.
"Isso é típico", Charlotte exclamou. "Os médicos tentam culpar os pacientes por seus
fracassos de cura".
Marie assentiu, continuando: "Continuei voltando para os exames de rotina, mas
esses não mostravam nada errado. Cinco meses atrás, depois de um exame especial por
causa de um seguro de vida, disseram-me que eu não tinha nenhum traço de câncer.
Ainda assim, eu sentia uma dor terrível em meu esterno, ela disse, tocando o meio
de seu peito hesitantemente, como se esperasse que o osso se quebrasse. "Finalmente, o
hospital fez uma varredura óssea e descobriram que eu tinha câncer no esterno e costelas,
além de câncer nos pulmões. Os médicos me disseram que eu tinha dois meses de vida.
Isso foi dois meses atrás". Ela sorriu, mas sua voz falhou; seu fôlego acabara.
Charlotte ajudou-a a sair da plataforma e terminou a história.
"Marie chegou aqui com muita dor", ela explicou. "Retiramos as drogas e ela conseguiu
alguma analgesia com enemas de café, mas precisou de três ou quatro dias para ver-se
totalmente livre da dor; então, começou a ter reações de cura imediatas. As coisas estão
difíceis para Marie".
Charlotte levantou sua voz, triunfante, "Mas, apesar de tudo, já engordou seis quilos,
consegue respirar livremente, dorme bem e sua saúde vem melhorando sem parar. Por
favor, observem que ela ainda está muito doente, mas começou a se recuperar do câncer
com metástase, que oficialmente é incurável".
Desta vez, os aplausos foram mais altos e longos. Grande parte deles vinha do
grupo de visitantes médicos, cujos membros devem ter visto muitos pacientes na condição
de Marie rumando para a morte certa.
Havia algo excitante e poderoso, na interação entre Charlotte e os pacientes, de um
lado, e a plateia, de outro. Estávamos vendo um misto equilibrado de informações
rigorosamente corretas - já que todos os pacientes tinham suas histórias médicas
plenamente documentadas - e demonstrações de cura que pareciam milagres - já que, ao
contrário dos prognósticos oficiais, os pacientes haviam se recuperado ou estavam
melhorando.
Pessoalmente, considerei os depoimentos daqueles que ainda lutavam e estavam
longe da cura mais excitantes que as histórias de sucesso de ex-pacientes que há muito
estavam curados, considerados heróis e heroínas da galeria da clínica La Gloria.
A diferença entre os dois grupos era a mesma que aquela existente entre soldados
enlameados e generais condecorados, que já haviam vencido suas guerras. Naquele
momento em que eu também era uma soldada cheia de lama em plena batalha, com um
tumor crescendo em minha virilha e total incerteza quanto ao futuro, descobri que minhas
emoções eram tingidas por algo que se assemelhava a fervor religioso.
Elas continham crescente envolvimento, confiança, fé na terapia, disposição para
mover montanhas ou, pelo menos, para fazer uma bela tentativa.
Charlotte apresentou mais dois pacientes, que melhoravam, mas ainda estavam
longe da cura. Uma jovem mulher que sofria de um tumor no cérebro que não podia ser
operado contou-nos que tinha cada vez menos convulsões, podia ver bem e não sofria
mais com perturbações mentais ou musculares. Ela demonstrava lucidez e entusiasmo. A
outra paciente, uma bela mulher loira, fora pesadamente medicada por seus médicos
desde a infância, devido a um grande número de queixas, até sofrer um grave colapso e
começar a viver em um quarto escurecido, devido a uma grave depressão.
"Foram necessárias onze semanas apenas para descontinuarmos seus
medicamentos", Charlotte explicou. "Nós descobrimos que, muitas vezes, é mais fácil fazer
com que pacientes com câncer se recuperem que devolver a saúde a pacientes
maciçamente medicados que não têm tumores malignos.
Isto lhes dá uma ideia do efeito destrutivo das drogas". A loira etérea sorriu, assentiu
e desceu do púlpito. Ela parecia tão frágil quanto a mais fina porcelana, mas estava
claramente ansiosa para testar seu crescente poder de recuperação. Desta vez, os aplausos
foram suaves, como se temêssemos parti-la em duas com um ruído alto.
As portas abriram-se e três empregadas da clínica apareceram, trazendo copos de
sucos vermelhos em grandes bandejas. Charlotte também pegou um. "O que é essa coisa
?", uma das enfermeiras convidadas perguntou.
"Fígado cru e suco de cenoura", Charlotte respondeu, e riu quando os médicos
convidados tremeram todos ao mesmo tempo. "Não é ruim como vocês estão pensando. E
bem bom".
"Por que você bebe isso ? Está doente ?", outra enfermeira indagou, com certa
agressividade. Eu abri um sorriso. Charlotte parecia quase que indecentemente saudável e
em forma.
"Bebo porque quero continuar bem", ela disse. "Alguns dos pacientes mais velhos de
meu pai, que estão na casa dos oitenta e até noventa anos, ainda estão ativos e
trabalhando, com boa visão e audição, porque seguem certas regras até hoje. Estou
fazendo o mesmo - investindo em um futuro saudável. É por isso que bebo alguns copos
de suco por dia".
"Mas então que regras são essas ?", um dos visitantes mais gordos perguntou.
"Mantenha seu fígado funcionando, seu nível de potássio alto, sua alimentação
saudável e você continuará saudável", Charlotte respondeu. Assim terminou sua
apresentação.
Desliguei meu gravador e observei enquanto o grupo de visitantes saía, com uma
forte sensação de 'eles' e 'nós'; o 'nós' incluía todos na clínica, até mesmo os pacientes dos
quais eu menos gostava.
A palestra de Charlotte enchera-me de um senso temporário de comunhão com
todos que praticavam a terapia. "Esta fita", eu disse a Becky, "e todas as outras que estou
gravando aqui serão muito preciosas quando eu voltar para Londres. Eu as reproduzirei
para me sentir bem, quando estiver desanimada, ou quando sentir solidão, porque
ninguém entende o que estou passando".
Passeamos pelo terreno da clínica, pensativas. "Não consigo evitar a sensação de
que esta terapia é um tipo de bomba-relógio médica, no bom sentido. Está tudo ali,
funcionando em silêncio. Ela poderia acabar com grande parte da prática médica atual e
mudar todo o nosso enfoque à saúde e doença, mas poucas pessoas sabem de sua
existência e ninguém sabe como detoná-la", Becky disse, em sua voz suave, que parecia
estar sempre pedindo desculpas.
"Se minha melhor amiga, Catherine, estivesse aqui", falei, "ela simplesmente
perguntaria o que nós pretendemos fazer a esse respeito. Suspeito que pessoas como nós é
que detonarão a bomba, porque ninguém mais fará isso. É uma razão a mais para nos
recuperarmos, não ?".
"Sim, com certeza". Becky assentiu, com vigor incomum. "E então poderemos
celebrar juntas. Em Londres! Irei com meu marido, encontrarei você e seu namorado e
almoçaremos como reis!"
"Sim, com salada e sopa de Hipócrates e batata ao vapor", eu disse, interrompendo-
a, "e litros e litros de suco fresco de cenoura. Poderei lhe dar todo o suco que você quiser,
porque terei todo o equipamento em casa!"
Abraçamo-nos e rimos, felizes com a ideia de uma celebração conjunta no fim de
uma longa e escura jornada. "Em caso de emergência, eu posso até hospedá-la por alguns
dias, a menos que seu marido seja muito gordo e grande - sabe, eu moro em uma casa
pequenininha!", falei, rindo.
Continuamos planejando e brincando, animadas, abandonadas à nossa fantasia de
liberdade. Subitamente, senti frio na boca de meu estômago e soube, com certeza, que
Becky e eu nunca celebraríamos nossa recuperação em Londres ou em outro lugar
qualquer. Eu só não sabia qual de nós não sobreviveria. Um instante depois, porém, o
calafrio passou e me livrei daquele pressentimento com um encolher de ombros. Che sera,
sera, pensei. Além do mais, meu sofá marrom me esperava.
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CAPÍTULO 11
O SENSO DE COMUNIDADE INSPIRADO PELA palestra de Charlotte e pela
apresentação dos pacientes permaneceu comigo por algum tempo. Isso tornou ainda mais
profundo meu envolvimento com o pessoal da clínica. Todos tínhamos uma história para
contar e, depois que começamos a compartilhar e a contar uns para os outros os motivos
que haviam nos trazido à clínica La Gloria, os relacionamentos formaram-se
automaticamente.
Ter a mesma doença na maioria dos casos, e a mesma terapia em todos eles, era
uma forte ligação, mesmo se, exceto por isso, não houvesse muito em comum entre nós.
Além do mais, o contato uns com os outros era nossa única distração, fora a leitura.
As palestras sohre os vários aspectos da terapia eram repetidas a cada semana, de
modo que, depois de comparecermos a uma série, não havia mais novidade naquilo.
Apenas as apresentações de Charlotte aos sábados eram sempre sobre um tema diferente.
Não tínhamos aparelhos de televisão na clínica, por questões de saúde, já que a
radiação emitida é considerada prejudicial. E não havia nenhum outro entretenimento por
perto - nenhum deste lado de Los Angeles, a centenas de quilómetros de distância. Assim,
precisávamos uns dos outros para conversas e contato humano.
Alguns desses contatos traziam mais ansiedade que prazer. Emily, a dama idosa e
elegante com o exantema maligno em seu rosto, às vezes interrompia sua conversa
animada e declarava que, no silêncio da noite, podia sentir o câncer comendo sua carne,
como se fosse um bicho de verdade.
Sempre que ouvíamos isso, dizíamos que era absurdo, que era bobagem dizer algo
assim. Contudo, além de fazermos muito barulho ao ouvir isso, como primitivos assustados
que tentassem espantar demónios, nós a olhávamos ansiosamente, imaginando se ela não
estaria piorando, em vez de melhorar.
Eu considerava angustiantes essas ocasiões, já que me afeiçoara a Emily, mas meus
momentos mais mins e desanimadores eram causados por Mike, o dinamarquês lúgubre.
Desde que chegáramos juntos a La Gloria, ele se tornara ainda mais desajeitado e
desbotado, e andava por lá com sua mão direita repousando permanentemente em sua
cintura, o que projetava seu cotovelo em um ângulo esquisito. Ele parecia uma cegonha
infeliz, cuidando de uma asa quebrada.
Se alguém lhe perguntava como estava, Mike balançava a cabeça com um meio-
sorriso de lábios apertados e explicava que, por causa de um caroço que crescia
rapidamente em sua axila, não conseguia deixar o braço pender livremente.
Suspeitei que Mike sentia alguma satisfação por não melhorar. De qualquer modo,
ele lançava uma sombra por onde passava. Todos baixávamos a voz e moderávamos as
risadas, quando ele aparecia.
O modo como nos ignorava - jamais começando ou contribuindo para uma
conversa, nunca demonstrando interesse por problemas ou ideias de outras pessoas -
sugeria total frieza e rejeição. Ele parecia rejeitar e menosprezar até mesmo a terapia da
qual dependia nossa sobrevivência.
Sua negatividade geral deprimia-me tanto que, às vezes, eu me descobria
desejando que ele sofresse de algum outro tipo de câncer, não de melanoma, já que me
causava desconforto ter algo em comum com ele - e, depois, me sentia culpada por
abrigar pensamentos tão malvados acerca de um companheiro de sofrimento.
Outras pessoas, porém, compensavam companhias antipáticas ou alarmantes. Uma
dessas pessoas era Guy, um jovem simpático que sofria de esclerose múltipla. Ao chegar
na clínica La Gloria, ele mal podia caminhar, mesmo com a ajuda de duas bengalas e
braços apoiando-o de cada lado.
Ele também perdia constantemente o equilíbrio. Certa vez, no salão de jantar, três
pacientes mal tiveram tempo de evitar que ele caísse de cabeça no chão. Porém, depois de
onze dias na terapia, quatro deles passados em uma crise violenta, com febre alta, Guy
conseguiu caminhar sem auxílio quase que normalmente, carregando uma bengala, mas
sem apoiar-se nela.
"Ei, olhem para mim", ele exclamou, enquanto alguns de nós lhe dávamos
parabéns. "Minha perna esquerda foi inútil durante sete meses. Meu sapato está gasto
apenas no lado onde eu arrastava meu pé - e agora está funcionando de novo!". Se ele
tivesse andado sobre a água azul da piscina, não teríamos ficado tão impressionados.
Ainda assim, lá no fundo, eu tinha certeza de que, se tivesse andado sobre a água,
Charlotte o mandaria parar imediatamente, porque a piscina com cloro era proibida para
nós e andar sobre a água não teria sido desculpa para violar as regras.
Mais tarde, naquele dia, sentei-me no terraço com Guy e sua esposa Bárbara, uma
mulher com senso de humor irónico, e conversamos sobre sua experiência. "Ah, sim, eu sei
que se pode ter remissões temporárias na esclerose múltipla", Guy disse, com
tranquilidade.
"Eu mesmo já tive uma ou duas. O fato é que agora não é apenas mais uma
remissão. A coisa é mais profunda. Parece completamente diferente". Tanto ele quanto
Barbara estavam visivelmente impressionados com sua súbita melhora. Ambos pareciam
jovens e velhos ao mesmo tempo, vulneráveis e endurecidos pela batalha, contemplando
esta última virada na saga de doença auto-infligida de Guy, que começara com o
consumo de drogas aos quatorze anos, levara a duas graves doenças hepáticas aos
dezesseis, à esclerose múltipla sem diagnóstico aos vinte e um, a medicamentos pesados
do tipo errado e, finalmente, ao diagnóstico de esclerose múltipla e à total falta de
esperanças. Agora, ele estava em um bom e forte bote salva-vidas.
Se permaneceria nele era outra questão. Guy confessava que não tinha
autodisciplina e temia voltar ao consumo de drogas e tabagismo pesado. Por enquanto,
porém, ele estava bem e, pela alquimia peculiar da clínica La Gloria, que nos permitia
participar do estado de espírito uns dos outros, a melhora incrível de Guy melhorava muito
o ânimo de todos nós.
Pessoalmente, eu bem precisava de um reforço em meu ânimo. Meu tumor ainda
crescia e as garantias dos médicos não me convenciam de todo. Na verdade, por um ou
dois dias, senti um medo profundo. O caroço deveria ter encolhido ou, pelo menos,
permanecido inalterado.
Eu não conseguia encontrar desculpas ou explicações racionais para seu aumento.
Se eu não estivesse na clínica, no meio da batalha, eternamente ocupada com a terapia,
teria sido bem pior. Naquele momento, exatamente duas semanas após minha chegada,
meu corpo pelo menos produzira duas mudanças encorajadoras. Os nós artríticos e
dolorosos em meus dedos médio e indicador da mão direita, que me incomodavam havia
anos, tornaram-se terrivelmente doídos durante um dia inteiro - e então não me
incomodaram mais.
Eu podia apertar as articulações das extremidades dos meus dedos tanto quanto
quisesse, sem sentir dor. Além disso, os nós estavam encolhendo. Isto me deixou muito
contente. Eu sabia que artrite geralmente piora, nunca melhora, com o passar do tempo,
mas, uma vez que comigo acontecia o oposto, presumi que as afirmações do dr. Gerson
sobre a natureza total da cura eram corretas e que, portanto, a terapia também
funcionaria com meu câncer (infelizmente, as prioridades de cura do meu corpo eram
diferentes das minhas).
Além disso, eu estava feliz por me livrar de uma herança genética ruim. Vinte anos
antes, minha mãe desenvolvera artrite naqueles mesmos dois dedos que, então, haviam se
deformado rapidamente. O processo de deformação cessara apenas depois que ela,
relutantemente e sem fé, comparecera a uma cerimónia de cura espiritual. Os danos
anteriores, porém, ainda existiam.
Que estranho, eu pensei, contemplando meus dedos, que tanto minha mãe quanto
eu tivéssemos artrite no mesmo lugar do corpo e então, mais estranho ainda, que ambas
tivéssemos cessado o processo por dois tipos diferentes de tratamento alternativo. Quem
poderia dizer qual dos dois, cura espiritual ou suco de cenoura, era o mais incomum ?
O outro sinal encorajador chegou com os resultados de um novo conjunto de
exames de sangue e urina - eu estava livre da diabete. "Eu lhe disse", a dra. Elsa comentou
casualmente, quando lhe dei a boa notícia. "Você não acreditou quando eu lhe disse que a
diabete desapareceria sem tratamento específico, mas a prova está aí.
Olhe, com esta terapia, até pessoas com diabete grave geralmente conseguem
abandonar a insulina depois de um mês, de modo que não me surpreende que sua
diabete leve tenha desaparecido em duas semanas. Espero que agora você acredite". Eu
acreditava, com prazer e gratidão. A terapia me liberara de uma segunda herança
genética indesejada, já que minha mãe também era diabética.
Na manhã seguinte. Sarah foi embora, com sua mãe miúda e silenciosa, que não
parecia ter melhorado depois de sua longa crise. Ela deveria ter permanecido sob
supervisão médica constante, mas o dinheiro da família finalmente acabara e Sarah
precisava levá-la de volta para o Novo México.
Lamentei sua partida, com sua montanha de bagagens coroada por um aparelho
novinho para fazer sucos, que deveria ser a peça principal para a continuação do
tratamento em casa. Percebi que Sarah exercera um papel importante entre nós, com sua
alegria inabalável, que nos alegrava e, muitas vezes, dissipava nossa tristeza.
Ela também irradiava confiança, e em um lugar no qual a maior parte das pessoas
tem doenças graves, enquanto os parentes que os cuidam sentem grande preocupação, a
fé descomplicada de Sarah em uma divindade benévola (católica romana), que oferecia
conforto e promessa de que tudo daria certo, agia como um gole de água fresca para os
sedentos.
Eu e outros pacientes nos despedimos dela no lado de fora do prédio administrativo.
"Sentiremos sua falta", Becky falou, alto. Todos nós assentimos com energia. Sarah tentou
responder, mas o carro deu a partida e, então, não nos restou nada a fazer, exceto acenar
adeus, até vê-la desaparecer no tráfego.
Alguns dias depois, Sarah escreveu-me para anunciar o falecimento de sua mãe. "A
terapia chegou tarde demais para ela", dizia a carta. "Pelo menos, morreu em paz e em
casa, cercada e amada por toda a família. Não nos arrependemos por não ter permitido
que os médicos lhe fizessem coisas horríveis no hospital. Foi a vontade de Deus".
Depois de algumas pequenas alegrias, isto me abateu demais. A notícia entristeceu-
me, não apenas por Sarah, mas também porque era difícil aceitar que a terapia não
salvara uma paciente que fizera tudo direitinho. Minha reação perturbada à morte desta
senhora idosa e quase desconhecida fez com que eu percebesse quanta fé eu mesma
investira no programa de Gerson.
Fé e crença incondicional de que a terapia sempre funcionava. Mas acreditar nisso
era absurdo, além de perigoso. Charlotte teria sido a primeira a condenar a fé cega. Além
disso, pacientes de leucemia geralmente chegavam à clínica La Gloria depois de
receberem doses maciças de quimioterapia, que destruía os últimos fiapos de defesas
naturais, sem curar a doença, de modo que suas chances eram mínimas.
Sim, eu sabia de tudo isso e, gradualmente, voltei a ver a situação sob a perspectiva
correta. Contudo, em outro nível, algo irracional em mim precisava continuar acreditando
que, desde que nos mantivéssemos fiéis às regras e mantivéssemos o lado psicológico
razoavelmente equilibrado, teríamos que nos recuperar. Se algo destruísse minha fé nesse
estágio, acho que teria voltado para casa, para morrer.
Como eu ainda não tinha sinal de uma crise e desejava economizar um pouco,
perguntei ao dr. Rodgers se poderia ser transferida para a clínica La Mesa, uma instituição-
irmã da clínica La Gloria, a alguns quilómetros dali. La Mesa era para pacientes que,
como eu, estavam em condição estável e não precisavam de cuidados médicos constantes.
A dieta, oferta de sucos, injeções e medicamentos eram iguais aos de La Gloria,
mas não haviam palestras ou demonstrações, os médicos não vinham diariamente e
Charlotte visitava o local apenas uma vez por semana. Em compensação, os preços eram
mais acessíveis.
"Claro, você pode mudar-se para lá semana que vem", o dr. Rodgers respondeu-
me. Ele era um homem divertido, que lembrava um pouquinho Clark Gable. "Há apenas
uma condição. Se você tiver uma crise grave ou algum outro problema, deverá voltar
imediatamente a La Gloria. Continuarei cuidando de você lá, de qualquer maneira".
Isso me pareceu bom.
Sentindo-me inquieta, providenciei tudo para transferir-me no fim de minha terceira
semana em La Gloria. Sem uma crise, eu começava a ter dificuldade em aceitar o ritmo
lento e constante do tratamento do dr. Gerson. Nada acontecia ali!
Bem, nada importante, de qualquer forma, já que perder a diabete e testemunhar a
cura de minha artrite não poderia ser visto como 'nada'. O fato era que em qualquer outro
lugar esses acontecimentos teriam sido sensacionais, mas não pareciam suficientes em La
Gloria, onde qualquer pessoa adquiria rapidamente as mais altas expectativas.
Por esta razão, não parei para pensar no quanto eu me sentia melhor a cada dia,
ou que minha cor mudara, de um cinza-amarelado doentio, para um tom muito mais claro
e rosado; nem pensei nessas mudanças. O problema era que eu ainda não me habituara
ao ritmo vagaroso da cura natural.
Toda minha experiência anterior com doença e cura havia sido traumática. A
remoção de minhas amígdalas, aos dez anos, e de meu apêndice, aos dezenove, haviam
sido terríveis, assim como minha cirurgia para o câncer, mas, entre essas intervenções
agressivas, eu passara por longos períodos de normalidade, sem consultar médicos.
Agora, contudo, eu estava muito doente e não havia drama nenhum ou qualquer
ação drástica, espetáculo grandioso ou emergência, e eu sabia que, exceto por morrer, eu
não produziria qualquer espetáculo por muito tempo. Apesar disso, eu não podia aceitar
minha cura monótona e viver uma vida normal. Esta era uma fórmula estranha, que
pesava muito sobre minha natureza impaciente.
A mudança para La Mesa seria, pelo menos, uma fuga da rotina. Exceto por Carl e
Becky, eu não sentiria falta de ninguém em La Gloria, e Becky deveria ir para casa logo,
enquanto Carl também planejava transferir-se para La Mesa.
No meio deste período de inquietação, tive um sonho que me sacudiu, como se
uma nota de alerta profunda e gentil tivesse soado por trás da cacofonia de meu estado
mental perturbado. No sonho, eu vi a mim mesma sentada em uma mesa quadrada, com
dois mestres que usavam roupas semelhantes a quimonos e me ensinavam algo muito
importante. Depois, um terceiro, o mestre do espaço pessoal, juntou-se a nós. O curioso é
que eu conseguia ver nossas quatro figuras apenas de costas.
Era o tipo de sonho revelador que deve ser saudado com respeito, antes de se tentar
qualquer interpretação. Os rostos dos mestres majestosos que eu não via indicavam que o
sonho era um relato sobre um processo interno, que ocorria bem abaixo - ou bem acima -
do nível da consciência normal.
A mesa quadrada era um símbolo da integridade terrestre; também poderia
significar estabilidade, os quatro elementos, o corpo e a realidade tangível. Em minha
situação atual, os dois últimos significados pareciam mais relevantes. Tudo bem - então,
embora por fora eu estivesse plenamente ocupada com as demandas incessantes da
terapia, executando a dança de vinte e quatro horas de treze sucos e cinco enemas, lá no
fundo eu aprendia algo importante sobre os aspectos terrenos e físicos há muito
negligenciados, de minha vida.
Quem eram os dois professores não identificados ? Eu não sabia. Apenas o último a
chegar, o terceiro mestre, possuía uma identidade clara: espaço pessoal - e na época, eu
não tinha nem um pouco disso. Toda aquela coisa incessante, ligada ao corpo, invadira
meu espaço pessoal, meu espaço interno, tudo. Talvez eu devesse começar a trabalhar
nisso, a partir daquele momento. Talvez.
O sonho e sua recordação assombrosa fizeram-me perceber que atualmente
recordava muito poucos sonhos. A troca constante entre consciência em vigília e material
inconsciente trazido por sonhos, que fora uma rotina útil e, com frequência, envolvente em
minha vida anterior à terapia, havia se tornado tão escassa que beirava a extinção.
Eu também percebi que não estava mais meditando ou sequer tirando alguns
minutos para ficar em silêncio e recolhimento. Isto era estranho, incomum e certamente
ruim sob as circunstâncias; talvez a principal mensagem do sonho fosse um alerta de que
minha vida interior estava fugindo de mim.
Mas, se fosse assim, será que os mestres teriam sentado comigo à mesa ? Tentei
descobrir a resposta, mas as interrupções constantes - por empregados que traziam
bandejas com frutas, jarras com café fresco ou pilhas de toalhas - fizeram com que eu
desistisse, exasperada. Decidi começar a meditar tão logo me acomodasse em La Mesa.
Pouco antes de me mudar, Charlotte perguntou-me se eu gostaria de conhecer
Karen, recém-chegada de Londres, que tinha um problema grave de saúde. "Ela tem
apenas vinte e um anos", Charlotte explicou-me, "está sozinha e muito longe de casa.
Você é a única pessoa de Londres por aqui e seria muito delicado de sua parte se
pudesse dedicar-lhe alguma atenção". Concordei, contente, e saímos imediatamente à
procura de Karen.
Sua aparência chocou-me. Era uma bela garota, com as características delicadas
das nobres mulheres de miniaturas medievais, mas seu rosto parecia muito pálido, com
olheiras negras e profundas; seus braços e pernas eram como gravetos e seu abdómen
estava inchado, cheio de líquido, dando a impressão de uma gestação de cinco meses.
"Ah, meu Deus", pensei, com uma fisgada de pena, "ela não durará muito tempo e
nem começou a viver ainda". Parecia cruelmente irónico que o câncer lhe houvesse dado a
mesma aparência grotesca das crianças africanas que sofrem de desnutrição. Karen estava
obviamente exausta pela viagem e muito fraca, mas levantou-se para nos cumprimentar e
sorriu, conversando como se estivéssemos em um agradável encontro social. Tanta graça e
coragem tornavam a situação ainda mais triste.
Karen estava tomada pelo câncer, Charlotte contou-me, depois. Ela estava doente
havia um ano, sofrendo de dores intensas nos joelhos, tórax e estômago, e já fora tratada
com várias drogas, incluindo esteróides, quando o último de seus médicos diagnosticou
câncer de mama, estômago e talvez também de outros órgãos.
Nesse ponto, qualquer tratamento ortodoxo tornara-se impossível. "Por isso, ela está
aqui agora", Charlotte disse brevemente, mas, ainda assim, com uma sombra de
resignação em sua voz, "faremos o possível para salvá-la, mas será difícil. Estaremos
lutando não apenas contra o câncer, mas também contra uma carga de drogas venenosas
em seu sistema e, como você já sabe, isto torna a cura duas vezes mais difícil".
Karen aguentou-se em pé durante dois dias, fazendo suas refeições no salão de
jantar e travando conhecimento com todo mundo, antes de cair de cama com surtos
pavorosos de mal-estar, dor e fraqueza. Eu a visitava várias vezes por dia, imaginando se
ela estava tendo uma crise ou um sopro final de vida.
Tudo o que eu podia fazer era suplicar para que bebesse um pouco de suco ou uma
gota de sopa, como se tentasse convencer uma criança pequena a colocar na boca uma
colherada de alguma coisa, "pela mamãe". Ela bem que tentava, mas estava claro que
engolir algo era muito difícil.
Outros pacientes também a viam. A juventude e modos delicados de Karen, que
não se alteravam mesmo sob extremo estresse, comoviam a todos e traziam à tona nossos
instintos de proteção. Marcos Aurelios, o campeão da incompetência, dedicou-se a mantê-
la sob seus olhos vigilantes, sentado em seu quarto, até Karen pedir-lhe para deixá-la
sozinha. Todos temíamos o pior.
Dois dias depois, porém, para meu imenso alívio, Karen chegou para me visitar, de
manhã cedo. Ela ainda parecia uma bela e ténue aparição, alguém não totalmente deste
mundo, mas as olheiras haviam desaparecido, juntamente com sua palidez assustadora e,
mais impressionante ainda, seu estômago não estava mais inchado. "Olhe, minha barriga
voltou a ser plana", ela disse, em sua voz miúda e clara, dando tapinhas em seu abdómen.
"Parece normal agora, não ? Não pensei que sumiria em tão pouco tempo". Girei
em torno dela duas vezes, inspecionando sua nova silhueta e mal ousando acreditar em
meus olhos. A diferença era extraordinária. Eu lhe disse: "Bem, Karen, a única coisa que
posso dizer é 'Uau!' e dançar à sua volta, mas você terá que esperar um pouco mais.
Você conhece aquele ditado chinês que diz que até mesmo a mais longa jornada
começa com o primeiro passo ? Seu primeiro passo já foi dado. Parabéns! Mas não se
esqueça de que a viagem recém-começou".
Ela assentiu, sorrindo. "Ah, eu sei. Por causa de todos aquelas drogas que me deram
em Londres, terei que fazer a terapia durante três anos, em vez de dois, para ficar bem de
verdade. Mas... não tenho escolha", ela disse, com calma e elegância, como se
mencionasse um pequeno aborrecimento, como perder o tíquete de ônibus ou ter de adiar
as férias.
"Admiro sua tranquilidade", comentei. "O bom é que mesmo se você tiver de fazer a
terapia durante três anos, ainda terá apenas vinte e quatro anos quando terminar, e então
ficará saudável por mais uns setenta!".
Ela concordou que este era um investimento que compensava. Uma vez que eu
deveria partir para La Mesa naquele dia, dei-lhe meu endereço e pedi que me procurasse,
quando regressasse a Londres. Quando ou se, eu pensei, vendo-a voltar a seu quarto.
Imaginei a mesma coisa um pouco depois, ao me despedir de Becky. Adeus e au
revoir, até Londres, mantenha o contato, continue com a terapia, quando nos virmos
novamente estaremos fortes, adeus, adeus. Quando e se. Ela usava sua túnica favorita, em
tons suaves de verde, bege e marrom, cores que, em sua opinião, combinavam com as da
salada, da sopa de Hipócrates e com os enemas de café da terapia.
Senti-me como se deixasse uma amiga de muitos anos, embora nos conhecêssemos
há três semanas apenas. Como se lesse meus pensamentos, Becky tocou levemente minha
mão e disse, com um leve sorriso: "Minha mãe acreditava que, depois dos vinte e cinco
anos, ninguém fazia realmente novos amigos - mas ela estava errada! Obrigada por ser
uma influência 'ruim' tão boa para mim.
Sinto-me agradavelmente subvertida e você me salvou do aborrecimento de
comparecer a um curso de auto-asserção. No futuro, apenas direi o que penso, onde quer
que eu vá, e serei bem firme sobre minhas vontades".
Infelizmente, eu achava que aquilo não aconteceria. A ansiedade que senti naquele
momento precisava ser dissipada ou neutralizada, antes que suas antenas sensíveis
pudessem captá-la. Assim, rompi deliberadamente o clima levemente emocional e o levei a
um nível mais prático.
"E melhor praticar enquanto você ainda está aqui", sugeri. "Em casa, será mais
difícil. E é melhor começar logo - você percebe que estará em casa em uma semana, e que
para isto faltam apenas trinta e cinco enemas ?
Terei que me submeter a pelo menos duzentos deles, antes de fazer as malas... e,
depois, nós duas ainda teremos alguns milhares de enemas, antes de nos livrarmos deste
hábito. Sei que não é um modo elegante de medir o tempo, mas atualmente é bem
relevante!"
Rimos e nos abraçamos com cuidado - gestos impulsivos não são boa ideia para
pessoas fracas e frágeis - e, depois, entrei no carro, ao lado do motorista impaciente.
Pouco depois, fomos engolidos pelo tráfego, a caminho de Tijuana. Minha estadia na
clínica La Gloria chegara ao fim.
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CAPÍTULO 12
EM TERMOS DE CONSTRUÇÃO. LA MESA ERA bem agradável - o prédio era
moderno, tinha dois andares e seguia o estilo espanhol. Fora erguido em torno de um
pátio retangular, com as janelas voltadas para dentro e com um alpendre com aberturas
em arco, ligando os quartos no andar superior.
O problema era que este prédio bonito localizava-se no meio de um povoado
poeirento e sujo, entre a auto-estrada de tráfego pesado e algumas colinas peladas, de
modo que, no momento em que saíamos da clínica, tudo o que víamos era uma paisagem
de extrema desolação.
O outro problema era que, diferentemente da clínica La Gloria, esta não tinha
jardim. Além de algumas plantas com flores em vasos e de algumas folhagens suspensas,
o único verde à vista era o do carpete plástico imitando grama, no jardim.
Antipatizei com o arranjo e aridez do lugar. Depois de me acostumar com La Gloria,
eu agora me sentia exilada novamente, deslocada e sem raízes. Alegrei-me um pouco,
porém, quando percebi que me haviam reservado um apartamento completo, com dois
quartos, uma grande sala de estar, banheiro e uma ex-cozinha, transformada em
"cantinho do enema".
"Ah, sim, é ótimo ter espaço", disse Dóris, a ex-enfermeira de aparência muito digna
que eu conhecera na La Gloria e me alegrava por encontrar aqui. "Mas acho melhor avisá-
la que os apartamentos são para duas pessoas e, se for preciso, colocarão outro paciente
com você". Não se eu puder evitar, pensei. Minha necessidade maior e mais urgente era
por privacidade.
Quando Maggie, a gerente, veio cumprimentar-me, senti-me intrigada ao descobrir
que ela tinha apenas vinte e um anos. Tendo ouvido sobre sua eficiência e estilo, eu
esperava alguém mais velho e mais gordo que esta versão mexicana, adorável e graciosa
da irmã mais jovem de qualquer pessoa.
Maggie falava inglês fluentemente. Ela também tinha modos de manequim e um ar
otimista. Quando lhe perguntei como era ser responsável por toda uma clínica com sua
idade, ela afirmou que era assustador -mas disse isso com um amplo sorriso, que
expressava o oposto. Como descobri depois, em momentos de crise ela conseguia parecer
assustadoramente séria, como algum anjo inca antigo, ponderando sobre o colapso
iminente do universo; mas, quando ria e demonstrava sua alegria natural, correndo por
toda parte em seus saltinhos finos de dez centímetros ou dirigindo o furgão da clínica,
Maggie era uma estrela. Depois de conversar alguns minutos com ela, senti-me melhor
sobre minha estadia em La Mesa.
Ela disse que, dali por diante, eu mesma teria que realizar algumas tarefas da
terapia, as mais fáceis - como reabastecer minha caixinha de medicamentos todas as
noites para o dia seguinte, em vez de esperar que me fossem entregues com meu
desjejum, medir minha temperatura de manhã e aprender a injetar minha dose diária de
extrato de fígado e vitamina BI2.
A enfermeira demonstraria como fazer isso. Ela poderia até fazer a injeção, se eu
não conseguisse aprender a rotina, "mas se você não aprender agora", ela alertou,
"precisará de ajuda habilitada também em casa". Descobri que, por esta razão, a clínica La
Mesa era um local de transição, entre os cuidados hospitalares totais da clínica La Gloria e
o futuro totalmente independente em casa.
Pedi que as injeções fossem dadas por outra pessoa durante uma semana, o que
me foi concedido. Maggie entregou-me os frascos cheios de minhas cápsulas e
comprimidos habituais e me indicou uma consulta ao livro, para refrescar minha memória.
Quando voltei ao meu quarto, quase colidi com Mike, o dinamarquês, que estava
no corredor de cima, fitando um vaso com begónias. "Ah, você pegou seus remédios", ele
comentou. "Pelo menos, isso não lhe causará nenhum mal, mesmo se não fizer bem". Mike
contou que chegara de La Gloria dois dias antes.
Achei que ele parecia mais doente e desanimado que nunca. "Não suporto este
lugar", ele gemeu "e estou mais fraco. A única pessoa em estado mais grave que o meu é a
paciente no quarto 7. Vá visitá-la. E o pior melanoma que já vi".
Amaldiçoei-o, enquanto ele voltava a seu quarto, desejando que mantivesse sua
nuvem negra para si mesmo, uma vez que eu já tinha dificuldade para cuidar da minha.
Mesmo naqueles poucos momentos, ele consegue deixar-me tensa e desconfortável
novamente; parecia que, em algum nível profundo, ele incentivava o processo destrutivo
em seu corpo a dar o máximo de si e mostrar ao mundo que, com o melanoma, não havia
como vencer. Achei que aquele pobre homem precisava de um exorcista; ou eu mesma
precisava de um, sempre que nos encontrávamos.
Felizmente, como se por mágica, o antídoto apareceu logo. Ouvi ruídos estranhos e,
ao olhar para o jardim, vi duas mulheres de cabelos brancos, uma miúda e muito magra,
a outra bem rechonchuda, que saltitava por ali com energia e cantava uma versão
desafinada de You must have been a beautiful baby.
Elas pareciam levemente malucas e totalmente cativantes. No andar de baixo,
alguém riu. Uma mulher exclamou, alto: "Mas vocês ainda são bonitas, as duas!". Então,
ouvi o lamento de um acordeão. Senti-me encantada com tanta animação; talvez existisse
vida após o terceiro suco de fígado do dia.
Desci as escadas e me apresentei para as mulheres que dançavam, que então já
estavam atiradas no sofá do jardim. "Ah, Deus, finalmente uma cara nova", disse Phyllis, a
senhora gorda. "Este lugar não tem nem metade da população da clínica La Gloria, de
modo que precisamos de coisas novas para mantermos o ânimo. É por isso que Lettie e eu
às vezes damos uma de malucas e brincamos um pouco para alegrar este lugar.
Qual é seu problema ? Tenho câncer da garganta até meu... bumbum, se você me
perdoa a expressão, mas estou melhorando. Bem, me sinto bem melhor desde que passei
um grande tumor pelos... você sabe, pelos canais normais. Não sei de onde ele veio, mas
fez uma diferença incrível", ela declarou, em sua voz poderosa, e então começou um
monólogo sobre seus netos.
Comparada com sua companheira ruidosa e volumosa, a pequenina Laetitia
parecia quase imaterial e aristocrática. Ela era muito idosa, mas se movia com grande
agilidade e tinha o rosto sereno - se bem que murcho - de uma menininha de antigamente
- incluindo os olhos indagadores e uma faixa de tecido em seus cabelos lisos que
chegavam aos ombros.
"Meu pai era inglês", ela disse, ao ouvir que eu vinha de Londres. "Venha conversar
comigo, uma hora dessas. Estou no quarto do canto, logo ali; chamo-o de minha cela. As
pessoas podem lhe dizer que sou doida - bem, não sou, não. E se lhe disserem que tenho
oitenta e sete anos, isso também não é verdade".
Prometi visitá-la logo e voltei para meu quarto para repousar um pouco. A Bíblia
estava sobre a mesa de café. Abri o livro aleatoriamente e, para minha surpresa, me
descobri lendo este versículo: "... e sofrera muitas coisas por muitos médicos, e gastara
tudo que possuía, e não melhorara; apenas ficara pior".
Ah, sim, o caso da mulher com a hemorragia que durou doze anos, pobre alma,
embora, a julgar pela narrativa, ela pudesse ter sido uma paciente americana moderna
com câncer, em busca de uma cura (eu já escutara histórias suficientes de pacientes, para
fazer esta ligação).
Fechei a Bíblia e, apenas para me divertir, abri ao acaso mais uma vez. Agora, eu
lia o capítulo em são Mateus, que parece o sonho máximo daqueles que trabalham com
curas pela fé - Jesus levantando uma menina morta, curando um homem da paralisia e
permitindo que um homem surdo falasse, enquanto era atacado pelos fariseus.
Imaginei até que ponto era realmente aleatória, minha leitura da 'palavra'; será que
existia algum estranho mecanismo inconsciente pelo qual minha mente, concentrada na
medicina alternativa, dirigia minha mão para abrir a Bíblia em histórias de cura não-
ortodoxa ? Não, não, isso era bobagem.
Assim, tentei obter o mesmo resultado novamente, desta vez indo para a história do
homem cego de nascença que teve a visão restaurada por Jesus. Eu recordava bem esta
passagem, mas agora, sob a perspectiva de Gerson, ela parecia possuir uma importância
nova e estranhamente divertida, especialmente nas conversas do homem que recém-
readquirira a visão com os fariseus que não podiam aceitar o milagre operado por Jesus e
reagiam como um grupo de médicos ortodoxos, interrogando o paciente curado sobre
algum terapeuta que fugia do convencional.
O que mais me divertiu foi como os fariseus, depois de muita celeuma pela
profanação do sábado (já era bem ruim operar um milagre, mas fazê-lo no sábado era
imperdoável), recusaram-se a acreditar que o homem jamais tivesse enxergado. Bem,
bem, eu pensei, nada mudou; o chavão da medicina ortodoxa, hoje, é afirmar que o
diagnóstico original estava errado e que o paciente nunca sofreu de câncer, artrite ou de
qualquer suposta doença incurável curada pela terapia alternativa. Pobre cego de
nascença... tendo sido aviltado pelos fariseus e expulso da sinagoga, deve ter imaginado
se, afinal de contas, ter a visão restaurada era algo tão bom assim.
Naquele momento, outro suco chegou. Deixei a Bíblia e considerei minhas três
passagens apenas como uma coincidência divertida.
Logo depois, a secretária da clínica apareceu. "Recebemos uma carta de seu
cirurgião de Londres, ela disse, mostrando-me uma folha de papel. "Acabou de chegar.
Agora, finalmente temos sua história". E claro. Eu havia assinado um formulário ao
chegar à La Gloria, autorizando a liberação de todas as informações relevantes que o dr.
Lennox possuísse sobre mim para o dr. Hesse.
"Que bom", respondi. "Deixe-me ver, por favor. Sei o que está aí, de qualquer
modo, exceto pelo jargão médico". A garota entregou-me a carta e me deixou sozinha.
A mensagem do dr. Lennox não continha muitas surpresas, até o último parágrafo,
no qual descrevia a descoberta do caroço cm minha virilha. "Quando examinei a paciente
novamente em 29 de dezembro, este nódulo ainda estava presente e, assim, aconselhei
uma dissecação da virilha". Agora eu sabia que isso significava a remoção de todas as
glândulas linfáticas da área.
Meu estômago deu um puxão violento. Então, toda aquela conversa sobre a
necessidade por uma biópsia era pura engana-ção. Ele sabia, o tempo todo, que o caroço
era um tumor secundário e que a biópsia teria se transformado em uma cirurgia radical,
embora já soubesse que não resolveria meu problema.
Deus, eu me sentia enjoada - o choque de nosso último encontro atin-giu-me
novamente, como se a carta do dr. Lennox, datilografada impecavelmente em papel com
relevo, tivesse enchido o ar com alguma ameaça escura, como se o próprio homem
estivesse por se materializar e me pedir para parar de bancar a tola e ir direto para a
mesa de cirurgia, antes que fosse tarde demais.
Tomei consciência de que isso era um absurdo, enquanto tentava estabilizar meu
tremor interno. "Acalme-se", pensei, "tudo isso é passado, você está segura e muito bem.
Sim, bastante bem". Mas eu ainda precisei respirar fundo algumas vezes para voltar ao
normal.
Voltei ao primeiro parágrafo, em que ele descrevia o começo de minha doença. "O
exame histológico revelou que a lesão era um melanoma invasivo maligno", li, sem
surpresa, mas então um alarme soou em minha mente, e recordei como o homem na
passagem bíblica precisou provar aos fariseus que estivera cego, até ser curado por Jesus.
O pensamento seguinte era consequência lógica do primeiro: se eu me recuperasse
com esta terapia louca, do jeito como as coisas estavam, talvez precisasse provar que
realmente tive câncer, e a única prova irrefutável disso estava na minha mão. Este era o
momento certo para agarrar-me a ela.
"É apenas uma idéia", eu disse à secretária, em seu retorno, "mas quando eu voltar
a Londres, meu médico precisará dos primeiros registros sobre minha doença. Será que eu
poderia tirar uma fotocópia desta carta ? Não vejo motivo para incomodar um cirurgião
duas vezes". "Ah, claro", ela disse, "não há problema, deixe comigo".
Alguns dias depois, ela me trouxe uma fotocópia da carta do dr. Lennox. Coloquei-a
no fundo do meu arquivo de informações sobre a terapia e me senti muito melhor, por
saber que estava ali. Não importando o que acontecesse no futuro, pelo menos minha
história estava segura, agora.
Meu breve encontro com a Bíblia poderia ter por objetivo pre-parar-me para alguns
de meus encontros em La Mesa. Durante o dia seguinte, conheci vários fundamentalistas
cristãos entre os pacientes - pessoas que oravam em voz alta antes de abrirem sua
correspondência ou de ligarem a máquina de lavar, na lavanderia, pessoas que
cantarolavam hinos e usavam buttons nos quais letras brilhantes alardeavam "Jesus vem
primeiro", pessoas que aproveitavam qualquer oportunidade para proclamarem sua fé e
alardeá-la, como se fosse uma caixa de chocolates extra-especiais dos quais aqueles que
ainda não haviam descoberto a palavra podiam se servir, pessoas que achavam que
tinham todas as respostas, embora não tivessem aprendido sequer a formular as questões.
Eu considerava embaraçosa essa fé em público, até mesmo irritante, às vezes.
O problema era que, apesar de seu zelo missionário arrogante, as pessoas
envolvidas eram extremamente simpáticas, carinhosas e receptivas, de modo que eu não
podia simplesmente levantar minhas barreiras metafóricas e fingir que não estava ali. Tudo
o que podia fazer era evitar certos assuntos e tomar cuidado para não me expor aos doces
dardos da teologia popular.
Uma das razões para minha antipatia pela fé supersimplifica-da e insensivelmente
prazeirosa dos fundamentalistas era uma espécie de inveja ao contrário. Eu certamente
não queria o que eles tinham, mas ansiava, com crescente ansiedade, para que minha
própria vida interior saísse de sua paralisia, se agitasse, acordasse e se religasse.
Apesar de todos os esforços, eu ainda não conseguia meditar ou mesmo me
recolher no silêncio, e minhas preces favoritas haviam perdido seu significado. O que antes
havia sido um espaço interior ilimitado, agora era escuridão assustadora, que eu não
ousava atravessar.
Parecia que uma impenetrável porta de aço se fechara, separando-me de meus
recursos internos ou, até mesmo, de minha alma - o que quer que minha alma se tenha
tornado, imaginei estupidamente, sem encontrar uma resposta. A sensação de alienação
interna, que no início eu vira como uma dificuldade temporária, causada pelo choque de
minha doença e pelas demandas rígidas da terapia, tornara-se um estado permanente.
Minha vida perdera sua dimensão mais íntima; só me restara a estrutura externa, os
andaimes e a fachada. Além disso, meus sonhos ainda me escapavam. Eu sabia, apenas,
que sonhava muito todas as noites, mas os sonhos em si mesmos, minhas chaves habituais
para o clima e cenário sempre em transformação de meu inconsciente, permaneciam
inacessíveis.
Tudo isso me fazia sentir privada de algo e desorientada. Já era bem difícil passar o
dia inteiro em uma rotina centrada no corpo e órgãos internos; ser banida de outras áreas
da vida até durante a noite era uma punição severa.
Além disso tudo, o desconforto sorrateiro na região de minha omoplata esquerda
estava aumentando. Não era dor, mas um senso de pressão e vago deslocamento, mas
minha consciência constante sobre a área sinalizava que algo estava errado. Em minha
terceira manhã em La Mesa, examinei meu ombro durante o banho e, horrorizada,
descobri um caroço sob meu braço, indolor, mas sem dúvida um nódulo, sem que
houvesse nada parecido no outro lado.
Além disso, o caroço era em meu lado esquerdo, que até aquele momento havia
sido o meu "lado bom", em contraste com meu lado direito prejudicado. Desliguei o
chuveiro e fiquei ali, tremendo, incapaz de me mexer. "Por que me abandonaste ?", algo
em mim indagava. O tremor aumentou. Embru-lhei-me na toalha de banho e me deitei na
cama.
Um caroço na axila, de acordo com tudo o que eu recordava, era o início do
terceiro e último ato neste espetáculo de horror no qual eu estava envolvida; a partir de
agora, eu só iria ladeira abaixo, seguindo o exemplo de Mike. Sem uma crise em quase
quatro semanas e exibindo, agora, um novo caroço na axila, a terapia obviamente não
cessara a disseminação da doença.
Não estava funcionando para mim, como não estava funcionando para Mike e,
presumivelmente, para outros pacientes desconhecidos com melanoma que executavam o
programa de Gerson em casa.
Pela primeira vez, minha confiança na terapia estava seriamente abalada. Eu me
sentia como uma criatura tola, que tentara o destino, apostara no cavalo errado e agora
pagaria o preço por isso. Mas, então, pensei em Charlotte com sua integridade ardente e
atitude firme e clara em relação à terapia.
Ela seria a última pessoa a demonstrar otimismo ou a fazer afirmações infundadas.
Charlotte achava que eu podia ser curada e que estava indo bem. Bem, o que estava
acontecendo, então ? Saí da posição fetal (tão útil dentro do útero, em momentos de
aflição fora deste e, também, para a realização de um enema) e comecei a respirar como
fazia na ioga. Lentamente, meus batimentos cardíacos voltaram ao normal.
Espere e verá, espere e verá. A visita do dr. Arturo deveria ocorrer logo - era melhor
me vestir e me recompor.
"Não, não é outro tumor", o dr. Arturo concluiu, depois de um exame completo. "E
uma glândula inflamada e não representa perigo. Talvez você veja mais glândulas
inchadas nas próximas semanas, mas não deve entrar em pânico, se isso acontecer. Não
cometa o erro de tantos pacientes de câncer que acham que cada mudança física está
ligada ao câncer e, invariavelmente, significa algo terrível. Não é assim. Este tipo de temor
pode causar tanto dano quanto a própria doença".
Ele olhou-me pensativamente, com seus olhos escuros. De todos os médicos na
clínica, ele era a maior autoridade. "Você já teve algum problema na área de sua axila
esquerda ?".
Balancei a cabeça. E, então, com um susto, lembrei-me: nos últimos vinte anos, eu
descobrira uma glândula inflamada mais ou menos no mesmo local pelo menos duas ou
três vezes; em cada uma dessas ocasiões, eu consultara imediatamente meu médico ou
ginecologista, esperando más notícias, mas então soubera que não havia nada com que se
preocupar, que o caroço iria embora e que eu deveria datilografar meus artigos e roteiros
um pouco mais devagar, não importando os prazos. Sentindo-me sem-graça, perguntei ao
dr. Arturo por que, em sua opinião, eu esquecera daquilo.
"É bastante natural esquecer episódios sem importância", ele respondeu, parecendo
cansado. "Se este problema ocorreu várias vezes ao longo dos anos, pode manifestar-se
com toda a potência neste estágio e, então, desaparecer para sempre. Como a artrite em
seus dedos, ou como qualquer lesão ou problema antigo que precise ser curado. Mas você
não deve assustar-se, quando isto acontecer. O pânico é a pior coisa para você, já que
perturba o funcionamento de seu organismo".
"Ah, eu sei disso", respondi. "Pode ser difícil de acreditar, mas eu apresentava
conferências exatamente sobre a influência das emoções sobre o corpo. Acontece que os
nódulos me apavoram. Eles significam que estou piorando. Sabe, ainda não me sinto
muito segura, não estou convencida de que estou melhorando.
Assim, mantenho-me fria no nível intelectual, mas não é preciso muito para
perturbar este equilíbrio".
"Eu compreendo, mas seria bom trabalhar nisto". Ele incli-nou-se e apontou para
minha panturrilha direita, na direção do tornozelo onde o enxerto de pele mostrava-se
permanentemente vermelho e mal curado. "Esta inflamação", ele disse, "significa que o
processo de cura começou, que o corpo está tentando reparar este dano cirúrgico maciço.
Deixe que o corpo prossiga com sua tarefa e não fique imaginando por que ele não
faz outra coisa, em vez do que está fazendo no momento". Ele levantou-se e se
encaminhou para a porta. "Garanto-lhe que, se você estivesse piorando, sua aparência e
sensações seriam bem diferentes. Este é um dos problemas com esta terapia - os pacientes
sentem-se tão bem que se tornam inquietos, impacientes e esperam milagres instantâneos.
Isso nós não podemos fazer. Verei você em breve, a menos que seja a vez do dr. Rodgers".
Ele tinha razão, é claro. Senti-me tola e levemente envergonhada por minha reação
de pavor por aquele caroço. Contudo, meu pânico também tivera sua utilidade. Agora, eu
sabia que não era suficiente seguir a terapia física. Eu também precisaria monitorar meu
estado de espírito e atitudes mentais, em vez de apenas me deixar levar por eles, de modo
que, se algo desse errado, eu teria uma base sólida na qual me apoiar.
Na verdade, eu precisava era de alguém para me ajudar a carregar meu fardo. Eu
teria dado qualquer coisa por uma hora com Catherine ou John, mas esses estavam a
meio mundo de distância e, na clínica, não havia ninguém com quem eu pudesse
conversar.
Estava claro que a manutenção de minha psique era também uma tarefa minha.
Assim, logo comecei a me soltar, tentando encontrar um modo mais tranquilo e confiante
de ser. Decidi alegrar meus dias tanto quanto pudesse -saindo para uma caminhada todas
as tardes, entre o segundo e o terceiro suco de fígado, passar algum tempo com pacientes
alegres, encontrar um modo de ir a Tijuana para arrumar os cabelos, permanecer positiva
e otimista, não importando o que acontecesse.
O que aconteceu naquela mesma noite foi a chegada de um casal idoso da clínica
La Gloria, uma esposa de voz rouca com seu marido calado, que foram colocados em
meu apartamento. Este golpe ia além dos meus maiores temores. Subitamente, senti-me
encurralada por duas pessoas, em vez de uma. E, pior ainda, por duas pessoas que eu
tivera o cuidado de evitar na clínica La Gloria, cujo comportamento agora me levava ao
desespero instantâneo.
Qualquer um teria pensado que Tom, o homem idoso alto, lento e calado, com seus
olhos que pareciam não compreender o que se passava à sua volta, era o paciente,
cuidado por Lily, sua esposa estridente, mas não, era o contrário, o que apenas reforçava
a base de poder de Lily. Esta estava minada por câncer e anunciava isso como anunciava
tudo o mais - em voz alta, zombeteira, que parecia dizer: "E você que ouse me
contradizer!"
Tom, cuja mente não funcionava mais, não era grande problema, exceto por sua
incapacidade para diferenciar entre as portas, de modo que, com frequência, entrava de
repente em meu quarto ou no compartimento para enema, em vez de ir para o banheiro
ou sair do apartamento.
Mas isto era um pequeno incómodo, comparado com o efeito devastador de Lily,
cuja voz penetrava paredes e tampões de ouvidos, que andava por toda parte
praticamente nua, o que - em sua idade e condição - era má ideia, e que, de algum
modo, conseguia não entender nada sobre a terapia - e isso a levava a me fazer as
mesmas perguntas estúpidas repetidas vezes.
Minha irritação aumentava a cada hora. Durante a noite, eu precisava bater na
parede do quarto três vezes para silenciar os monólogos metálicos de Lily, mas então ela e
Tom iniciavam uma série de ruídos ainda mais perturbadores, batendo portas, deixando a
água correr, dando descarga no vaso sanitário vezes sem conta. Era perda de tempo tentar
permanecer positiva e otimista. Eu fumegava por dentro. Era inútil tentar ser otimista,
quando não era possível sequer dormir. Esta perturbação precisava acabar.
"Mas não tenho onde colocá-los!", Maggie suplicou pela manhã, quando protestei
contra aquele arranjo infeliz. "Estamos lotados! Você era a única paciente sozinha
ocupando um apartamento duplo e tive de colocá-los em seu quarto! Desculpe, mas não
posso ajudá-la!".
"Também sinto muito", eu disse, "mas você precisa fazer algo. Diga ao dr. Arturo
que estou sendo difícil ou irracional.
Qualquer coisa, mas não posso continuar com aquela gente em meu apartamento".
Maggie parecia infeliz. "O telefone está quebrado novamente", ela disse "e, mesmo se eu
pudesse ligar para o dr. Arturo, ele não poderia ajudá-la, já que não tem nada a ver com
as acomodações.
Mas escute", ela disse, baixando a voz, "isso ainda não foi anunciado oficialmente,
mas logo nos mudaremos para um prédio muito melhor, junto ao mar, onde todos terão
quartos separados... ninguém está feliz com esses apartamentos conjuntos. Pe-ço-lhe
paciência. Logo nos mudaremos".
Ah, bem, isso é diferente. E quando será este 'logo' ?"
"Talvez em uma semana". Ela parecia hesitante. "E, nesse meio-tempo, se vagar um
apartamento, você poderá mudar-se. Prometo".
Mas nenhum apartamento vagou, os operários que construíam a nova clínica
enfrentavam graves problemas com o encanamento e minha coabitação forçada com Tom
e Lily continuou. As coisas pioravam a cada dia. O casal de velhos tomara conta da sala,
de modo que, na maior parte do tempo, eu permanecia em meu quarto, que era quente
demais durante o dia e não tinha uma mesa sobre a qual eu pudesse escrever. Todas as
tardes, eu subia as colinas, com alguma dificuldade, já que os músculos em minha perna
direita doíam bastante.
Contudo, depois de subir o suficiente para ter uma visão ampla do vale e além
deste, eu me sentia liberada da tensão, deixando que meus pulmões se expandissem
novamente. As colinas eram pobres e peladas, enfrentando seca na estação das chuvas,
mas por todos os lados eu via ervas frágeis e pequenas plantas de beleza estonteante
brotando do solo poeirento.
Havia, também, a sensação intrigante de ouvir alguns pássaros que eu nunca
conseguia ver; seu canto modulado, que parecia uma pergunta insolente, vinha de todas
as direções, mas tudo o que se podia ver dos pássaros eram movimentos alvoroçados
próximo ao chão, obscurecidos por agrupamentos de mato seco.
Apeguei-me àquele lugar humilde e árido. Ele me fazia sentir livre e segura, no
mínimo porque não havia outras pessoas à volta e eu podia desfrutar do céu sem fim em
total privacidade - a única privacidade de meu dia. Apenas sentar na colina era o bastante
para colocar as coisas em perspectiva e me dar algumas ideias novas. Nem todas eram
agradáveis.
Foi lá, por exemplo, que percebi pela primeira vez como a terapia retirava
gradualmente tudo o que tinha importância em minha vida - ou talvez isso ocorresse
devido a uma experiência maior, da qual a terapia era apenas uma parte. Eu já fora
roubada de minha vaidade feminina e seus símbolos - perfume e maquiagem.
O colorido da tintura em meus cabelos estava desbotando, deixando cabelos
grisalhos à mostra em meio ao castanho que restava. Minha aparência estava sendo
alterada e erodida, e eu não podia fazer nada.
Mais importante ainda, eu fora afastada de minha vida profissional, de meu
trabalho, prazeres e alegrias e, acima de tudo, da companhia das pessoas que amava. Eu
sentia uma solidão imensa, vivendo entre estranhos, quando precisava tanto de algum
contato humano significativo.
Contudo, a amiga mais próxima na qual eu podia pensar morava em Dallas, outras
três moravam em Nova Iorque, uma na Austrália e o resto em Londres; isto era a solidão
em escala global. E, como se isso não fosse o bastante, eu também estava privada de
opções, de minha vida interna e de minha privacidade.
Não havia um futuro, planos ou perspectivas garantidas; nada, eu concluí, exceto
um senso instável de identidade e um amor enorme e duradouro por um punhado de
pessoas. Será que isso era o suficiente para me manter ? Tudo o mais ia embora, aos
poucos. Alguns de meus valores e critérios mais profundos se iam, mesmo enquanto eu os
examinava, como louças baratas em um estande de feira. O controle sobre aquilo que me
cercava, um código rígido de conduta, paixão pela perfeição, pelo planejamento prévio e
detalhado, e defesas contra todos os imprevistos possíveis, o que é impossível em si mesmo
- tudo isso, que se somava à estrutura dos meus dias, perdera o significado.
Mas eu ainda não perdera tudo. Havia mais um valor antigo e precioso para mim,
especificamente, o autocontrole quase infalível que me permitira negar e reprimir minha
raiva, desde os quatro anos de idade, permanecendo no controle o tempo todo e apenas
atacando verbalmente, com precisão mortal, quando a provocação passava dos limites.
Este autocontrole aparentemente indestrutível acabou nessa mesma noite, durante o
jantar. Eu não sei por que aconteceu naquele momento. Confesso que a companhia no
salão de jantar era decepcionante: Mike e Tom, sombrios e quietos como túmulos, Lily
fazendo barulho suficiente pelos três, Phyllis discutindo tumores em detalhes escabrosos e
Laetitia discutindo com duas mulheres tagarelas sobre o melhor modo de cozinhar arroz.
Suas vozes rangiram, misturaram-se e colidiram, até eu percebi que não suportaria
nem mais um minuto disso sem gritar ou lançar o óleo de semente de linho no candelabro.
A veemência de minha irritação surpreendeu-me. Saí quase correndo do salão de jantar e
caminhei a esmo pelo jardim, tentando acalmar-me, sufocada e tensa a ponto de sentir
dor.
Meu último pensamento coerente foi de que a conversa idiota em torno da mesa de
jantar não tinha nada a ver com meus sentimentos. Minha sensação de perturbação
tempestuosa e ruína vinha de alguma outra fonte, que eu não podia identificar.
Um segundo depois, fui tomada por fúria, de uma espécie que jamais sentira antes
e, portanto, não sabia como controlar. Ela era escura, assassina e tão incontrolável quanto
uma erupção vulcânica; achei que meu crânio e tórax se abririam e inundariam tudo com
lava espessa e negra.
Corri escadas acima e me escondi em meu quarto. Meu coração disparava. Eu não
conseguia respirar direito. Imaginei se estava sucumbindo a alguma psicose misteriosa,
mas então até mesmo esta questão tornou-se irrelevante, porque minha raiva não deixava
espaço para pensamentos racionais.
Eu era impotente contra aquela raiva que me invadia e ocupava como um exército
poderoso conquistando uma terra pateticamente indefesa. De repente, eu soube, ou achei
que sabia, como seria atacar e lutar com alguém até o fim. Quem, eu ? Sim, eu.
Realmente ? Parecia que sim.
Não gostei disso, já que me assustava, especialmente porque não havia ninguém a
quem atacar ou com quem lutar até o fim; minha agressão e raiva violentas não tinham
um alvo. A pressão dentro de meu crânio tornava-se mais forte.
Puxei meus travesseiros até a borda da cama e comecei a socá-los, mantendo meu
braço reto e o baixando repetidamente, como em um golpe de judo. Socar travesseiros era
um modo clássico de liberar a raiva contida.
Eu mesma chegara a sugerir esta tá-tica muitas vezes a clientes inibidos e agora
estava aqui, esmurrando os travesseiros da clínica até lhes tirar o estofo - e me sentindo
apenas um pouquinho melhor por isso. Minha raiva precisava de algo mais forte para ser
liberada.
Abri meu guarda-roupa e bati sua porta com o máximo de força, mas isso não fez
um ruído suficientemente alto, de modo que comecei a empurrar os móveis, dando
pontapés e jogando tudo, como se tivesse enlouquecido. Também disse palavrões em voz
baixa, com energia mas de um modo monótono, já que meu pequeno estoque de
palavrões era insuficiente e eu precisava repeti-los vezes sem conta, o que diminuía seu
valor.
Durante toda essa estranha função, uma parte muito pequena de mim, que havia
permanecido sã, observava minhas ações e, embora não pudesse deter-me, pelo menos
ligava a parte maior e furiosa de mim com uma realidade que permanecia fora de minha
fúria. Mesmo assim, eu ainda tinha muita energia para canalizar, de modo que peguei o
Los Angeles Times e comecei a rasgar suas incontáveis páginas em tiras longas e finas,
espalhando-as por todo o quarto.
Papel mais forte teria feito um ruído melhor ao rasgar, mas eu precisaria me
contentar com papel-jornal. A capa continha uma entrevista com um renomado
pesquisador de câncer da Califórnia (fiz uma pausa em minha dança destrutiva para ler o
artigo), que dizia: "Até agora, temos enfocado o câncer sob a perspectiva de sua destruição
por cirurgia, radiação ou quimioterapia.
A notícia excitante é que, atualmente, temos provas de que podemos enfocar o
câncer fisiologicamente, pela melhora dos processos naturais". Ah, você acha mesmo ?,
indaguei, furiosa - quais são as outras novidades, seu tolo pomposo, será que você está
descobrindo, em fevereiro de 1981, o que o dr. Gerson já sabia cinquenta anos atrás ?...
mas recortei o artigo, mesmo assim, para guardá-lo em meu arquivo, e depois, continuei
rasgando o resto do jornal.
O esforço bruto de transformar cento e quarenta páginas em espaguete de jornal
conseguiu me acalmar. Senti-me como eu mesma, de novo. Também me senti espantada
pela minha experiência de raiva infantil, porque isso era o que acontecera: a fúria
bárbara, desatinada e irracional de uma criança de três anos, encenada por uma pessoa
adulta.
Sua fedelha horrorosa, eu disse a mim mesma. Senti-me exausta e envergonhada e
fui para a cama, sem nem tentar identificar aquela pestinha irada dentro de mim.
Aquele surto foi o começo de um estado mais ou menos contínuo de ira, que durou dez
dias, com variados níveis de intensidade.
Eu me sentia irritada, nervosa, zangada, impaciente, inquieta, rude, tanto
hipersensível quanto hipercrítica, malvada e agressiva. Parte de mim tinha consciência
deste comportamento horrível e lamentava, mas a maior parte continuava desagradável e
destrutiva. Tentei manter meu veneno para mim mesma, de modo a não incomodar
outros, mas nem sempre tinha sucesso; tentei dissipar minha cólera, em meu quarto ou
durante minhas andanças vespertinas, mas parte dela sempre continuava ali e se soltava
nos momentos menos adequados.
Nem as cartas de meus amigos ajudavam, porque eu sabia que, pelo menos por
algum tempo, eu não era a pessoa para quem eles escreviam. Minha mãe, Hudie,
Catherine e outros amigos mal teriam me reconhecido na pessoa enraivecida e
horrivelmente infantil em que eu me transformara. Embora sentisse saudade deles, era
uma bênção não poderem me ver.
O que mais me envergonhava era a mesquinhez de minha raiva e o modo como eu
menosprezava a fraqueza de outros, sendo eu mesma tão fraca (ah, uma projeção clara
aqui - a pequena voz sensata no fundo de minha cabeça comentou -, que se manifesta
detestando seus próprios defeitos em outros).
Sim, é claro. "Ca-le-se", a voz provocadora respondeu, "com ou sem projeção, tanto
faz". Eu era particularmente desagradável com a enfermeira gorda e lenta que
administrava minhas injeções diárias. Ela revelava o pior em mim, com sua falta de jeito e
estupidez óbvia, e eu era rude com ela, embora - ou talvez porque - ela não falasse inglês.
Eu fazia questão de transmitir minha agressividade no tom de voz que usava. Mas,
tão logo ela deixava meu quarto com sua bandeja arrumadinha e sua expressão perplexa,
eu me arrependia de minha grosseria e sentia vontade de me desculpar.
No nono dia de minha temporada de fúria, meu amigo Carl chegou de La Gloria,
parecendo tão sadio e irónico quanto sempre. A julgar pela quantidade de malas que
retiravam do automóvel da clínica, ele viera para ficar. Senti uma imensa alegria por ver
um rosto conhecido e desci correndo as escadas para cumprimentá-lo no jardim. "Graças
a Deus você está aqui", exclamei. "Preciso desesperadamente de alguém com quem
conversar, e você serve como ninguém!".
Carl abriu um imenso sorriso, deu-me um tapinha nas costas, empurrou seu boné
de jóquei para trás em sua cabeça de cabelos ruivos e anelados e despejou as últimas
notícias sobre nossos conhecidos mútuos. Becky voltara para Baltimore e escreveria logo.
Karen parecia um pouco melhor e recebera a companhia de seu namorado de
Londres, "um rapaz muito simpático, embora eu não entenda metade do que ele diz",
confessou Carl. Guy e Barbara estavam prestes a voltar para a Flórida, junto com sua
máquina de sucos e boas intenções. Quanto a Carl, estava bem, com seu tumor
estacionado, sem crescer ou encolher. "E você, Bee ?", ele perguntou. "Você parece bem,
sua cor melhorou, mas não parece muito feliz. O que a aborrece ?"
"Praticamente tudo... Acho que estou enlouquecendo", respondi, e comecei a
descrever meus estranhos ataques de perda de controle, meio que esperando que Carl
fizesse algum comentário brando e neutro e, depois, me evitasse para sempre. "Já não sou
eu mesma", continuei. "Detesto meu comportamento atual, mas não posso evitar. Cheguei
ao fundo do poço e nem sei como sair dele".
Carl sacudiu a cabeça e sorriu. "Você não precisa fazer nada. Isso passará, assim
como sua diabete, lembra-se ? Por favor, não se preocupe", ele disse, com a calma que eu
poderia esperar se me queixasse sobre uma picada de mosquito e não de um colapso total
de meu sistema normal de valores e auto-imagem. "Você não está ficando louca. Está
apenas se desintoxicando. Será que já esqueceu ?
Ao deixarem seu organismo, as toxinas afetam o cérebro e o sistema nervoso
central, e isso é o bastante para deixá-la maluca. Se você consultar o livro..."
"Já fiz isso", respondi. "Está na página duzentos e dois. O livro menciona mau-
humor e depressão, o que não é o mesmo que fúria assassina e ódio. Além disso, o mau-
humor deveria ser um acompanhamento de uma crise, e não tive crise nenhuma!".
"Não se preocupe", Carl disse. "Não se preocupe. Mante-nha-se calma. Todos temos
dias ruins e ataques de raiva, mais cedo ou mais tarde, com ou sem outros sintomas. Eu
mesmo já passei por isso várias vezes. Isso é parte do processo. Não se preocupe, que
tudo passará".
"Bem, acredito, se você diz".
Maggie saiu de seu escritório, no outro lado do pátio. Sorria amplamente e parecia
dançar, em vez de caminhar, enquanto vinha em nossa direção. "Eu o levarei até seu
quarto", ela disse para Carl, "mas nem se preocupe em desfazer as malas - amanhã nos
mudaremos para a nova clínica, junto ao mar! Mal posso esperar.
Devemos estar prontos para sair após o almoço, para não ocorrer qualquer
interrupção nos sucos. Duas garotas da cozinha irão à frente para prepararem tudo para o
suco de fígado das três horas. Seremos muito mais felizes lá".
Naquela tarde, subi a colina íngreme pela última vez. Sentada imóvel e deixando
que meu olhar absorvesse a ampla paisagem, notei que minha raiva começava a dissipar-
se. Toxinas correndo pelo cérebro e sistema nervoso - sim, sem dúvida, mas será que era
mesmo só isso ? Eu achava que não. Algo mais também estivera em operação: algo antigo
e poderoso começava a libertar-se, vingando-se de mim. Será que a desintoxicação física
tinha um equivalente não-físico e que a limpeza do corpo ativava outro processo menos
óbvio de purificação ?
Os pássaros invisíveis chamavam uns aos outros. Olhei para meu relógio. Era hora
de voltar correndo para La Mesa. Hora de mais um suco. De mais um enema.
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CAPÍTULO 13
COMO UM BANDO DE CIGANOS, MUDAMOS da Clínica La Mesa para a Clínica
Del Sol em um pequeno comboio de carros, caminhonetes e trailers superlotados, com
pacientes, bagagens, cenouras e maçãs, equipamentos, arquivos e tudo o mais,
embolados juntos em um desarranjo organizado. A maioria sentia-se muito animada. O
caos total de mudar de casa servia como uma ruptura estimulante em nossa rotina normal,
regulada e cronometrada.
A pequenina e velha Laetitia dirigia seu próprio carro, o que era bom, já que seu
enorme guarda-roupa não teria cabido em qualquer dos veículos; ela tinha roupas
suficientes para poder viver plenamente muitas ocasiões sociais em várias capitais do
mundo. Embora às vezes chamasse a si mesma de "esta criança aqui", ela parecia
complexa e misteriosa. Os fundamentalistas cristãos recitaram suas preces habituais em
voz alta, antes da partida e a missionária tocou uma canção inspiradora em seu acordeão.
Percebi, surpresa que, para um grupo de pacientes com câncer avançado, éramos
incrivelmente resistentes e móveis.
A Clínica Del Sol era um motel reformado, com frente para o Pacifico, mas
separado deste por uma auto-estrada movimentada e por uma faixa de terra pobre e
estéril. O prédio era semelhante ao de La Mesa, sem jardim, apenas um pátio de fundos
gramado e algumas árvores com flores junto às janelas térreas. Ele localizava-se mais ou
menos no meio de Playas de Tijuana, um subúrbio costeiro longo e estreito sem qualquer
charme ou interesse óbvio. "Estou surpreso por podermos ficar tão perto do oceano", Carl
disse, brincalhão. "Afinal, a água do mar é cheia de sal!".
"Ah, bem", Dóris comentou, "é por isso que não podemos nadar no mar ou ir à
praia - poderíamos inalar muito ar salgado e ter uma recaída".
"Pessoalmente, sofrerei uma recaída se não puder ir até a praia", eu disse, baixinho
demais para ser ouvida. Sob o sol de fevereiro, o Pacífico parecia extremamente azul e
radiante. Eu estava perfeitamente feliz por trocar aquela colina poeirenta sobre La Mesa
pela visão interminável c cintilante do oceano abaixo dc Del Sol, e mal podia esperar para
dar uma escapada até a beira do mar.
A clínica estava pronta para nós, mas os trabalhadores ainda não haviam removido
os sinais de néon chamativos que traíam sua existência anterior como um motel, dc modo
que a frente desta mais recente clínica de Gerson ainda prometia "BAR PIZZAS TV A CORES
E ABERTO PARA TODOS", embora os três primeiros itens não estivessem mais disponíveis e
o quarto não fosse mais verdade.
Meu quarto era pequeno e sem graça, mas pelo menos era só meu. Notei, com
alívio, que Maggie colocara Tom e Lily em um quarto duplo na extremidade oposta do
prédio.
Deitei-me na cama com um suspiro de contentamento. Eu me senti em paz e no
controle, mas, depois daquela confrontação de dez dias com minha raiva c escuridão, eu
agora monitorava meus estados íntimos com cuidado, imaginando se ainda existiam
bestas furiosas escondidas sob a capa de inocência.
Tentei conversar com o dr. Arturo sobre a violência infantil e quase psicopata de
minha cólera, mas, como Carl, ele a considerou um sintoma de desintoxicação e não lhe
deu importância. Ele demonstrou mais interesse quando lhe contei que minha antiga
cicatriz de extração do apêndice estava vermelha, quente c dolorida.
"Veja, sua cicatriz é outra lesão antiga que está sendo consertada por seu corpo", ele
disse. "Não há necessidade de fazer nada, apenas permaneça atenta; a cicatriz voltará ao
normal, quando o reparo estiver completo. Percebi que você tem algumas manchas na
face. Excelente!"
"É mesmo ? Acho essas manchas horríveis. Elas me lembram de minha
adolescência, que consistiu de uma longa erupção cutânea, por tudo que recordo. Mas,
então, pelo menos eu tinha toda a minha vida adulta pela frente. Agora, tenho apenas as
manchas, sem poder esperar pela juventude novamente. E difícil, não acha ?"
Mas o dr. Arturo não era dado a intercâmbios frívolos e me disse: "O aparecimento
das manchas significa que seus órgãos de eliminação estão funcionando bem e que
mesmo assim eles não conseguem lidar com todas as toxinas retiradas de seu corpo pelos
sucos e comida. Por isso, parte dessas toxinas mostra-se na pele. Alegre-se. Isso é um bom
sinal".
"Tudo bem", eu disse, com humildade. "Tentarei me alegrar. Mas, se preciso ter
manchas, gostaria que aparecessem em outro lugar. Em minhas nádegas, por exemplo,
onde ninguém poderia vê-las" (meu desejo foi concedido em quarenta e oito horas.
Infelizmente, as manchas em meu rosto também ficaram onde estavam). "Eu gostaria que
meu tumor não inchasse tanto. Não consigo parar de pensar que ele ainda está
crescendo".
"Não, não está. Por lavor, acredite em mim. Mas o inchaço em torno dele faz com
que pareça maior. Além disso, o caroço tornou-se um pouco móvel, o que é bom". Ele
deu-me um olhar paciente e resignado. "Você está aqui há apenas cinco semanas e não
produziu tumores adicionais, além daquele que já havia quando chegou.
Ainda assim, com melanoma metastásico, você já teria mais alguns nódulos, se a
terapia não tivesse exercido algum controle sobre o processo maligno. Uma paciente com
melanoma, na clínica La Gloria, teve dois tumores secundários removidos de seu pescoço,
antes de vir até nós... e outros dois apareceram antes mesmo da cicatrização da incisão
cirúrgica.
Sei de outra pessoa que produziu um total de cinquenta tumores, em cinco meses.
Este é o ritmo de seu tipo de câncer. Mas você tem apenas um tumor. Preciso repetir: você
está indo bem e poderia estar melhor ainda se parasse de se preocupar".
Assenti. Ele tinha razão. Eu simplesmente precisava adquirir mais confiança e persistência.
Em vista do que estava em risco, meus sintomas atuais - boca seca, tonturas,
palpitações ocasionais - eram quase triviais demais para ser mencionados. Ainda assim,
perguntei quanto tempo eu levaria para tomar óleo de castor apenas de dois em dois dias,
e soube que o período mínimo era de três meses; depois disso, eu teria que tomar o óleo
duas vezes por semana, durante oito meses, e depois apenas uma vez por semana, até
segunda ordem.
Tive uma breve visão de intestinos limpos, puros e claros, tão brilhantes quanto aço
inoxidável. Depois, lembrei-me do óleo de castor pesado e viscoso e do gosto horrível que
deixava na língua. Ai, ai. Mas eu sabia que não deveria me queixar. Além disso, não era
questão de argumentar com uma autoridade de fora.
O dr. Arturo dava instruções, mas cabia a mim decidir se deveria segui-las.
Estranhamente, esta própria liberdade agia sobre mim como uma forte disciplina. Eu sabia
que precisaria continuar tomando o maldito óleo de castor, até em casa, onde não veria
empregadas mexicanas musculosas estendendo-o para mim e observando, com alegria
pura, enquanto eu o engolia.
"Deixe-me ver seu enxerto de pele, por favor", o dr. Arturo pediu. Esta era uma
inspeção de rotina, mas, desta vez, enquanto ele corria os dedos sobre a área feia e
magra, dei um gritinho de surpresa.
"Não, não dói!", eu exclamei, "é só que pude sentir seu toque. Pela primeira vez
desde a cirurgia, o enxerto... respondeu!" Olhamos um para o outro, eu em um estado de
grande excitação, ele com um pequeno sorriso que se espalhava por seu rosto. Expliquei-
lhe: "Até agora, sempre que você tocava o enxerto, eu não sentia absolutamente nada,
estava completamente insensível, como um pedaço de pedra. Mas agora..."
Ele correu as pontas dos dedos lateralmente e além do enxerto, duas ou três vezes.
"Será que a sensação é a mesma que no resto de sua perna ?"
"Ah, isso não", eu disse. "A sensação é muito mais ténue no enxerto, mas pelo
menos há uma resposta. Suponho que os nervos estão começando a se recuperar". Meus
olhos estavam lacri-mejantes. Senti como se meu membro martirizado e estranho tivesse
voltado parcialmente para mim.
"Entendeu agora ?", o dr. Arturo perguntou, com um leve sinal de reprovação.
Assenti, em meio às lágrimas. "Eu não me surpreenderia", ele acrescentou, "se parte
da carne e gordura voltasse, nesta perna. Seria muito incomum e pode nunca acontecer,
mas não é impossível". Ele sorriu e partiu, deixando-me em um estado de perplexa alegria.
E, embora dois dias depois Charlotte tivesse contrariado a previsão do médico, com
pesar mas também com certeza, dizendo que minha perna sofrera um dano grande
demais para poder reconstruir-se, eu não me senti infeliz. O restabelecimento de algum
contato nervoso, entre o trabalho sem sentido do dr. Lennox e o resto de meu corpo,
parecia quase miraculoso, como se um ramo seco e morto subitamente revelasse brotos.
"Bem-vinda de volta", eu disse para a parte antes morta de minha perna direita,
"Você andou longe por muito tempo".
Para celebrar, escapei da clínica, cruzei a estrada barulhenta e andei por uma
estrada sem pavimentação rumo ao mar. O que me atraía era um bosque dc verde vivo,
com árvores e arbustos luxuriantes junto à água, um oásis esmeralda surgindo de um
deserto de terra seca e mato pálido.
Parei de repente, enquanto corria até lá, ao sentir um fedor horrível que subia em
minha frente como uma parede. Percebi que aquela vegetação linda crescia dentro e em
torno de um esgoto construído na praia, mas tão ineficiente que a água suja e fedorenta
vazava deste em todas as direções.
Paraíso encontrado e instantaneamente perdido - pensei, com tristeza. Era irónico
encontrar uma instalação como aquela em minha primeira saída, como se o balde de
enema não fosse o bastante para voltar minha mente para assuntos ligados à eliminação
de resíduos.
Bem, aquele recanto precisava ser evitado. Continuei ao longo da costa, procurando
um ponto apropriado do qual pudesse contemplar o mar. Playas de Tijuana parecia estar
na crista de um estouro imobiliário. Um número incontável de pequenas casas quadradas,
semiconstruídas ou recém-concluídas, situavam-se entre a costa e as colinas, formando
padrões aleatórios, como se tivessem sido espalhadas por um gigante desatento ou por um
arqui-teto louco.
Casas marrons, alaranjadas, cor-de-rosa, verdes, cor-de-vinho e brancas podiam
ser vistas por toda parte, surgindo do solo cinza e compactado, que não parecia capaz de
sustentar nem mesmo algumas plantas raquíticas que lutavam pela vida em minúsculos
jardins nas casinhas.
As ruas sem calçamento eram do tipo que fazem poeira em tempo seco e o
afundam em lama quando chega a chuva. Pósteres rasgados nas paredes e nos postes
anunciavam bandas de música e políticos.
Um punhado de picha-ções celebrava os Punks cie la Costa, provando que pelo
menos um produto britânico chegara a esta praia longínqua. O cenário era monótono e
desapontador, mas ainda assim brilhava, já que havia vidros quebrados por todos os
lados, em pedaços grandes e cheios de pontas ou fragmentos verdes, marrons e brancos,
que pareciam ter sido triturados e faiscavam na terra. O lugar era o pesadelo de um
ambientalista - devastado, explorado e desfigurado; um pedaço de terra que parecia não
ter amigos.
Por um breve e irado momento, suspeitei que metade da população passava parte
do tempo quebrando vidros e os espalhando por ali, enquanto a outra metade enchia os
espaços vazios com latas amassadas de cerveja.
Finalmente, encontrei um lugar deserto, atrás de um grande prédio. Era uma leve
rampa com os restos de degraus de concreto que levavam à praia cheia de pedras. Sentei-
me em um degrau destruído, no meio da rampa, protegido dos olhares de quem passasse
na estrada por um amontoado de ervas, e me entreguei à contemplação.
Thalassa, o mar, lá estava ele novamente, azul e infinito, oscilando, dançando,
balançando, marcando seu ritmo. Acima de tudo, trazendo recordações.
Se minha experiência com o câncer tinha algum significado, pensei, se não havia
mais nesta do que o que havia ali, naquele momento, que pelo menos fosse bem
aproveitado. As ondas compridas avançavam e se retraíam. Eu podia ver, no horizonte,
duas ou três elevações turvas, ilhas que eu nunca visitaria.
A direita, talvez na direção dos Estados Unidos, um helicóptero patrulhava o céu,
em busca de pretendentes à imigração ilegal. O degrau de concreto era um assento
desconfortável, mas decidi ir ali todas as tardes, para repousar minha alma e exercitar
minhas pernas, nesta ordem exata.
Por alguns momentos, tive uma estranha sensação de que o interno e o externo, a
experiência e o significado, os detalhes e o plano mais amplo, se encontravam e se
fundiam comigo, criando um senso de integridade que fazia meu coração vibrar. Então a
sensação se foi e voltei à clínica.
"Leia isto", Carl disse, mais tarde, entregando-me um artigo recortado de um
periódico americano de medicina.
"O melanoma maligno é um dos cânceres mais imprevisíveis", a matéria dizia, e
continuava, afirmando que, se a doença se limitasse ao ponto original, as chances de
sobrevivência em cinco anos após uma cirurgia agressiva era de cerca de setenta por
cento. "Por outro lado", eu li, "se o câncer espalhou-se além do ponto original para as
glândulas linfáticas regionais, tais como sob o braço ou na virilha, a taxa de sobrevivência
em cinco anos cai para cerca de vinte por cento". Trocamos um olhar. Nenhum de nós
parecia perturbado.
"Deprimente", afirmei, "exceto que essas estatísticas refe-rem-se a pacientes tratados
convencionalmente e, assim, não são relevantes para os pacientes de Gerson. Você sabe",
acrescentei, com um ataque súbito de gaiatice, "somos um grupo muito consciente de
pacientes.
Não apenas sabemos o que temos e assumimos responsabilidade por nosso
tratamento, mas ainda consultamos a literatura médica para nos mantermos atualizados
com as descobertas mais sombrias. Pelo menos, encaremos a realidade, quer nos
recuperemos ou não".
O que você quer dizer, com quer nos recuperemos ou não ? Com que frequência
preciso lhe dizer que ficaremos bem, especialmente porque não temos medo ? Enfie isso
em sua cabeça, Bee, ou não lhe emprestarei mais minha literatura deprimente", Carl disse
e voltou ao seu quarto.
Ele mantinha uma grande bandeja de sementes no lado de fora de sua porta, cheia
de wheatgrass fresca, um item altamente valorizado na área de dieta alternativa, já que
suco de wheatgrass fresca tinha a composição mais próxima à do sangue humano
saudável.
Pessoas que visitavam Carl eram convidadas a pegar e mastigar algumas folhas. A
grama cedia um suco doce e poderoso e, depois, precisava ser cuspida, já que a parte
fibrosa não se decompõe, não importando por quanto tempo seja mastigada.
Enquanto Carl cultivava grama de trigo, outros pacientes usavam grandes jarras de
lentilhas brotadas, broto de feijão e sementes de alfafa que acrescentavam às suas saladas
e sopas. Sementes brotadas eram boas fontes de proteína vegetal, enzimas e outras
substâncias vivas.
Já as consumíamos em nossos sucos verdes, mas todo esse cultivo suplementar era
parte das preparações dos pacientes para sobreviverem em casa, onde teriam de cultivar
seus próprios suprimentos, com ajuda da equipe da clínica.
Ah, sim. Ir para casa. Eu decidi fazer isso exatamente dois meses depois de minha
chegada, no dia 20 de março, que coincidiria com o equinócio de primavera e com a lua
cheia - um dia auspicioso, pensei, para iniciar um novo capítulo.
Isso me deixava mais vinte e dois dias na clínica, que, em termos do relógio de
meus intestinos, significariam cento e dez enemas e doze doses de óleo de castor; ou, em
um nível um pouco mais alto, duzentos e oitenta e seis sucos.
Pelo menos, eu podia imaginar e lidar com essas quantidades. Meu senso de
tempo, contudo, comportava-se de modo errático. Por um lado, eu estava muito consciente
de que cada dia me levava mais para perto de casa; por outro lado, o tempo perdera toda
a forma e significado, de modo que, de vez em quando, parecia que minha estadia na
clínica Del Sol poderia durar para sempre. Felizmente, as cartas de Hudie me lembravam
do mundo fora da terapia e isso dava alguma estrutura à minha existência.
Ele escrevia quase todos os dias, o que era uma façanha para alguém como ele,
que não era dado a trocar correspondência. Por suas cartas, depreendi que ele estava
montando gradualmente uma miniclínica de Gerson em minha casa, instalando o
equipamento para sucos, preparando os suprimentos de vegetais orgânicos e fígado,
negociando com uma possível auxiliar doméstica e mantendo meus amigos atualizados
sobre mim.
Com enorme gratidão, pensei em Hudie como o consolo de minha vida para tudo
que dera errado nas últimas décadas. Sem sua ajuda, eu nem teria considerado a
realização da terapia em casa. Eu nem tinha certeza se conseguiria, mesmo com sua
ajuda.
Eu mal havia me recuperado da surpresa de ver meu enxerto de pele respondendo
ao toque, quando meu corpo produziu mais um sinal de regeneração. Este começou de
um modo modesto. Certa manhã, quando a empregada de sempre trouxe meu desjejum,
detectei fracamente sua água de colónia com odor de violeta.
Dois ou três dias depois, surpreendi-me ao notar que ela mudara para uma versão
muito mais forte do mesmo perfume. Depois de mais dois dias, sua aura de violeta tornou-
são quase sufocante, como se ela progredisse, deliberadamente, de uma água de toalete
muito diluída para um perfume concentrado.
Isso não parecia provável, e a escolha do aroma também não era da minha conta,
mas algo no fundo de minha mente continuava remoendo aquele aumento gradual no
perfume. Finalmente, descobri uma resposta provável. A garota usava a mesma colónia o
tempo todo, mas meu olfato se tornava cada vez mais sensível e forte, até que a aura
anteriormente débil foi percebida como um odor poderoso.
Para testar minha hipótese, andei pela clínica cheirando e recolhendo os odores
como um cão de caça que volta à prática após um longo repouso, e descobri que meu
nariz estava inegavelmente mais aguçado, talvez tanto quanto fora na infância. Isto era
excitante.
Fui à cozinha, com a desculpa de observar enquanto faziam os sucos, mas a
verdade era que estava testando meu olfato, naquela atmosfera de muitos aromas. Duas
garotas esfregavam montanhas de cenouras e maçãs, uma mexia um caldeirão da
pungente sopa de Hipócrates, outra cortava cebolas e descascava alho, e eu fiquei ali,
observando-as, perplexa pela pureza e poder daqueles odores, enquanto chegavam,
separadamente e em coro, ao meu nariz.
A experiência foi extraordinária. Esta era a versão olfativa de não ver mais através
de uma lente ruim, mas frente a frente, com perfeição. Recordei as histórias contadas por
Charlotte sobre pacientes que recuperavam a audição ou parte da visão como um efeito
colateral da terapia; obviamente, a desintoxicação também melhorava o olfato. Senti-me
deliciada com esta última reviravolta da terapia, embora percebesse que também
intensificaria o impacto de cheiros ruins.
Logo percebi que meus outros sentidos também estavam funcionando melhor, mas
não havia um gabarito óbvio contra o qual medir as alterações graduais, como ocorrera
com o perfume de violeta da empregada da clínica.
Pelo menos, agora eu entendia que era a melhora em minha audição que fazia a
equipe da cozinha parecer mais barulhenta a cada dia e me permitia ouvir o rádio com o
controle de volume no mínimo.
Percebi, também, porque meu olho esquerdo, que sempre havia sido o mais fraco,
não tinha mais problemas com foco. Tal restauração de meus sentidos era incrível, assim
como sua promessa de implicações mais amplas.
Certamente, se a eliminação das toxinas acumuladas no organismo podia realizar a
tarefa aparentemente impossível de restaurar os órgãos dos sentidos na meia-idade em
um grau de funcionamento semelhante ao da juventude, então talvez outros danos do
processo de envelhecimento também podiam ser consertados.
Talvez a razão para tantos pacientes recuperados com a terapia de Gerson
permanecerem saudáveis e ativos na casa dos oitenta anos fosse a alteração no estilo de
vida, que impedia o acúmulo de substâncias prejudiciais em seus corpos. Será que o
envelhecimento consistia, basicamente, de um lento envenenamento do sistema, no qual os
órgãos entupidos e sobrecarregados finalmente entravam em colapso, de uma ou outra
maneira ?
Lembrei-me do caso do dr. Albert Schweitzer que, aos setenta e cinco anos,
consultou o dr. Gerson em virtude de sua diabete avançada e depressão, foi curado por
este em pouco tempo e continuou trabalhando na Africa até os noventa e poucos anos de
idade.
Eu pensava nesta questão sob um guarda-sol, no terraço - tínhamos instruções
específicas para evitar a luz solar forte -, quando percebi que pelo menos uma resposta
estava ali, bem debaixo do meu nariz. Um casal idoso, que eu observava com frequência,
saía de seu quarto para o pátio ensolarado. Flora, a esposa, sofria de doença de
Alzheimer, uma forma terrível de senilidade, acompanhada por dupla incontinência, perda
da fala, memória e movimentos, assim como de profunda letargia. Flora estava com
setenta e sete anos, tinha cabelos brancos e grandes olhos escuros e infelizes.
Seu marido, Mário, era seis anos mais velho; era um homem possante e vigoroso e
totalmente dedicado à esposa. Ele sempre segurava a mão da mulher, nunca a deixava
longe de suas vistas e garantia que ela fizesse exercícios, caminhando com ela para lá e
para cá, lenta e pacientemente; e Flora arrastava-se ao seu lado, com suas pernas finas e
pés incertos como uma pobre criança idosa com nada a dizer por si mesma.
Exceto que, agora, ela estava começando a falar. Ela melhorara perceptivelmente,
desde que eu começara a observá-la. Seus movimentos estavam mais coordenados e sua
postura, menos inclinada. Sim, ela estava indo bem, disse sua filha, Joy, quando lhe
perguntei sobre a saúde de sua mãe.
Flora fora trazida à clínica em uma maca, catatônica e incapaz de permanecer de
pé e, menos ainda, de andar sozinha. Em um mês, ela readquira muita mobilidade,
controle dos intestinos, parte da fala e até mesmo alguns fiapos de memória. "Ela
demonstra muita energia, durante alguns momentos", Joy acrescentou. "Ontem, ela
provocou meu pai e se irritou comigo - ficamos felizes por vê-la sair de sua letargia. Mas
este tratamento é muito difícil!"
Joy e seu companheiro, Roger, moravam em um trailer, que estacionaram no pátio
dos fundos da clínica. Eles haviam abandonado sua existência nómade habitual por algum
tempo, para ajudar nos cuidados de Flora. "E muito peso para meu pai, mas ele quer que
mamãe melhore", Joy explicou.
"Ele está com oitenta e três anos e também tem seus problemas, mas quer que
mamãe melhore. O tratamento com drogas que ela recebia antes de vir para cá deixou-a
pior, e não há outra alternativa".
Ela percebia que a terapia dava resultados, mas não concordava completamente
com seus métodos. Como vegetariana radical, ela não gostava da ideia de sucos de fígado
e injeções. Como alguém que só comia coisas cruas, achava que os pacientes recebiam
muitos alimentos cozidos.
Acima de tudo, como eu mesma, ela se preocupava com a ausência total de apoio
psicológico na clínica - nada de psicoterapia, ninguém para ensinar relaxamento, ioga,
meditação ou visualização. Como os pacientes readquiririam o equilíbrio em suas vidas
rumo à saúde, se todos os cuidados e esforços eram concentrados em seus corpos ?
Suspirei e lhe contei sobre meu antigo sonho de descobrir o equivalente moderno de
um santuário grego de cura holística e como este sonho fora abafado, sob a pressão de
tarefas físicas e tumultos íntimos. "Se você não consegue encontrar seu santuário, talvez
precise criar um", foi seu comentário. Era um pensamento agradável, mas eu não podia
fazer isso e não levei a ideia a sério.
Joy era delicada, intuitiva e nada convencional, uma rebelde do fim dos anos de
paz e amor, que abandonara a afluência da classe média no começo da meia-idade e,
agora, buscava sua salvação em várias áreas alternativas e esotéricas.
Durante minhas duas últimas semanas na clínica, passei muito tempo com ela e
com Roger, um 'viking' alto e loiro que fazia algumas das empregadas mexicanas morenas
darem risadinhas e suspirarem, às suas costas.
Às vezes, Carl juntava-se a nós; em outras ocasiões, sentávamos com Flora e Mário,
instilando interesse e energia com nossas conversas na velha dama, respondendo às suas
questões incompletas tão bem quanto podíamos. Enquanto Flora saída gradualmente da
senilidade, não pude evitar vê-la como uma cobaia, um exemplo para outras pessoas
idosas, exatamente como via a mim mesma como cobaia para outros pacientes com
câncer. O que não estava claro era como nossas experiências poderiam ser usadas e
colocadas à disposição de outros.
A imagem que ainda carrego comigo, de Joy e Roger, que surgiu durante nosso
breve período de amizade concentrada, é aquela que eu via todas as manhãs, de minha
janela. Lá estava Joy, sentada em um ponto do gramado, nos fundos da clínica,
meditando na posição de lótus, com seu chapéu de palha inclinado para frente para
barrar o mundo, sua nuvem de cabelos escuros cobrindo seus ombros como uma estola de
pele.
Roger sentava-se a alguns metros. As vezes, ele tocava seu instrumento africano em
forma de alaúde, que tinha fios de metal em vez de cordas, e cedia um som suave,
monótono e infinitamente delicado, que em si mesmo era uma espécie de meditação. Os
dois, juntos, produziam uma qualidade de paz e tranquilidade quase tangível. Eu conhecia
tal sensação, embora naquele momento ela não estivesse disponível para mim.
Ainda assim, fui reconfortada por um sonho, um único sonho solitário, que de
algum modo conseguiu chegar à minha consciência. Nele, uma mulher desconhecida
mostrava-me uma vasta espirai de astros brilhantes, ascendendo em círculos sempre
crescentes até o infinito; algumas pessoas, ela disse, confundiam tais astros com a Via
Láctea.
Nada mais foi dito, mas me sentia intensamente atraída pelo poder da imagem.
Mais ou menos nessa época, Mike, o dinamarquês sombrio, começou a passar mais tempo
deitado e plenamente vestido em sua cama, assistindo ao seu televisor portátil e fazendo
suas refeições no quarto.
Laetitia tentou reativá-lo e lhe deu um bom 'sermão' sobre a necessidade de esforço
e envolvimento com a terapia, mas depois nos contou que Mike parecia apático e relutante
em mudar. "Nossa, ele nem está mais tomando o óleo de castor!", ela disse, indignada.
"Ele diz que não gosta - mas meu Deus, será que alguém gosta ? Acho que ele não
entende o que deveria fazer.
Não é de admirar que esteja piorando". Assentimos, ansiosos. Phyllis, nossa
principal fonte de fofocas e rumores, baixou a voz para confidenciar que Mike violara as
regras o tempo todo, mas, não importando o quanto a pressionássemos, ela recusou-se a
dar detalhes.
Finalmente, o irmão mais jovem de Mike chegou para uma visita. Ele era enorme e
taciturno e, embora comesse conosco no salão de jantar, não deu nenhuma pista do que
pensava sobre a clínica ou sobre o tratamento; e depois de dois dias sem se comunicar
conosco, ele simplesmente sumiu, levando Mike consigo.
Partiram em silêncio e discretamente, sem se despedirem de ninguém, sem
deixarem uma mensagem ou endereço e, embora nenhum de nós tivesse qualquer contato
real com Mike, todos nos sentimos tristes e perturbados, como se um de nós tivesse
morrido.
No mesmo dia, após o jantar, a equipe da cozinha convi-dou-nos para um chá de
bebé, para uma empregada que estava no final da gestação e deveria entrar logo em
licença. A futura mamãe sentou-se pesada, mas alegremente, no meio de nós, recebendo
presentinhos úteis de suas colegas, enquanto Luís, o cozinheiro, andava por todos os lados
fotografando-nos de todos os ângulos.
O rádio tocava jazz animado. A equipe dividiu entre si um bolo azul decorado com
bonequinhos representando bebés; nós recebemos grandes porções de salada de frutas.
Esta foi uma ocasião barulhenta e alegre, uma espécie de celebração da fertilidade,
e nós, pacientes, 'grávidos' de nossos cânceres, sentamo-nos ali com boa-vontade, gratos
pela comemoração. De um modo irracional, aquele momento amenizou o choque do
desaparecimento de Mike.
Já que meu período na clínica Del Sol terminava, lancei-me em um surto final de
leitura, tomando emprestados todos os livros disponíveis sobre medicina alternativa e
assuntos afins. Comecei com o Book One of the Essene Gospel of Peace, recomendado por
Charlotte.
Para minha surpresa, a obra era um guia bíblico para uma versão inicial da terapia
de Gerson e relatava como Jesus ensinou a uma multidão de pessoas doentes e deficientes
a se recuperarem, comendo alimentos vegetarianos, evitando toxinas (conhecidas como
"abominações"), limpando seus corpos e até realizando enemas em si mesmos, com a
ajuda de "um grande cabaço em um trilho com o comprimento de um homem" - oco,
obviamente.
Os ensinamentos também continham uma receita para fazer pão de grãos brotados
e para assá-lo ao calor do sol. Interessantemente, o único pão servido na clínica era o pão
de Essene, feito na Califórnia de acordo com a mesma receita (embora suspeitássemos
que era assado em fornos).
O Essene gospel era mais radical que a terapia de Gerson, em sua oposição a
alimentos cozidos: "Não coma nada destruído por fogo, gelo ou água", disse Jesus,
elogiando as virtudes de uma dieta ema.
Exceto por esta única diferença, a similaridade entre a terapia de Essene e a nossa
era impressionante. Porém, quando revelei minha alegria pela descoberta, minhas ilusões
foram derrubadas por um cristão fundamentalista. "Este livro é uma farsa", ele declarou, no
tom de um profeta irado. "Se eu fosse você, deixaria essa leitura de lado, imediatamente".
E quando perguntei por que ele antipatizava tanto com a obra, ele irritou-se ainda
mais e me perguntou: "Você pode imaginar Jesus Cristo discutindo enemas com as
multidões ?" Ora, sim, eu podia e na verdade preferia a ideia de um Jesus prático, holístico
e curandeiro que a de um teórico etéreo, incompletamente incorporado; em minha mente,
a atitude oficial de desconforto e rejeição dos cristãos frente ao corpo era quase uma
blasfémia e uma fonte importante de dor e fracassos entre os fiéis; porém, eu optei por
calar-me.
No outro lado da fronteira, na Califórnia, os evolucionistas e criacionistas já
travavam outra batalha; eu não desejava começar uma discussão teológica no salão de
jantar da clínica Del Sol.
Continuei lendo, de qualquer modo: livros, brochuras e artigos sobre o poder
curativo da lama, de dietas só de frutas, do cultivo doméstico de vegetais e, acima de tudo,
sobre a importância de um cólon saudável, um tema sobre o qual a maior parte das
escolas de pensamento parecia concordar.
"Não existe doença, apenas um corpo poluído", eu li, em um livro obscuro sobre a
cura natural. "A morte é o desconhecido, onde todos nós vivemos antes do nascimento", eu
li, em um livro na linha zen, escrito por Alan Watts.
"A remoção do câncer por cortes, queimaduras, cauterização e outras torturas
terríveis deveria ser proibida e punida com rigor", dizia Paracelsus, o médico do século XVI,
"É da natureza que a doença surge e é dela que vem a cura, não do médico". Li com
avidez, como se tentasse armazenar montanhas de informações para quando viessem
tempos mins. Eu achava que, em casa, poderia não ter tempo para ler.
Carl trouxe seu carro de San Diego e organizou uma expedição até o mercado de
artesanato de Tijuana, aonde uma vasta variedade de recordações medonhas incluía
imagens de Élvis Pres-ley bordadas em prata sobre negro, estatuetas de gesso pintadas a
mão da Vénus de Botticelli e pequenas versões de O beijo em uma pose que ia bem além
dos limites pretendidos pelo escultor.
Ainda assim, vasculhei a feira, determinada a levar para casa alguma lembrança e,
finalmente, comprei um gato de louça e uma coruja feita de juta, que reconheci apenas
muito depois como aqueles eternos amantes, a Coruja e o Gato.
Também cortei meus cabelos em um salão cavernoso de Tijuana, onde imagens de
Nossa Senhora, com seu coração trespassado por sete facas, alternavam-se com grandes
fotografias de seios e coxas nuas, anunciando uma loção corporal francesa. Um modo
original, pensei, de conciliar dois aspectos da feminilidade. Meus cabelos eram, agora,
uma mistura de castanho, bege, cinza e branco, como a lã de tosquia de uma ovelha
multicolor.
Pobre Hudie, pensei, que me terá de volta com o rosto de uma adolescente madura
e manchada, sob uma cobertura multicolorida de cabelos cortados de forma desastrosa -
ele merece algo melhor que isso. Mas pensei, então, que pelo menos ele me receberia com
vida.
Em meu último sábado na clínica, escutei a palestra semanal de Charlotte em um
clima de despedida. Ela parecia lúgubre, ao descrever a crescente degradação da saúde
geral, no Ocidente industrializado, com doenças degenerativas surgindo em uma idade
mais precoce em cada geração sucessiva.
A ligação entre causa e efeito era clara, mas ninguém em cargo de poder tomava
medidas contra isto, de modo que os erros embutidos no estilo de vida ocidental seguiam
sem correção. A diabete infantil aumentava em seis por cento a cada ano nos Estados
Unidos, mas alimentos industrializados para bebés - papinhas -, ainda continham até 20%
de açúcar
O câncer era a segunda causa de morte entre pessoas com menos de dezoito anos,
vindo logo depois de acidentes, mas a profissão médica ainda brincava com seus
aparelhos de alta tecnologia, em vez de denunciar o estilo de vida que produzia câncer.
"Este ano", ela disse, "785.000 norte-americanos contrairão câncer. Estamos
chegando em um estágio em que uma em cada quatro pessoas terá a doença. Em 1936, a
taxa era de uma em cada quatorze.
Ainda assim, cinco anos atrás, em 1976, quando o Comité do Senado Norte-
Americano para necessidades nutricionais e saúde sugeriu um consumo menor de sal,
açúcar, carne vermelha e alimentos processados, a Associação Médica Americana rejeitou
tais recomendações, afirmando que não existiam evidências ligando dieta e doença", ela
continuou, com amargura.
"Assim, não há surpresa nenhuma em ouvir que o livreto contendo os achados do
Comité do Senado não pode mais ser encontrado".
Observei-a com afeto e tristeza. Charlotte era tão corajosa, e parecia travar uma
guerra solitária, combatendo a cada passo, sem esperança de vencer contra os mamutes
da medicina ortodoxa, interesses velados e estruturas de poder entrincheiradas. Mas,
então, ocorreu-me que talvez as mudanças reais pudessem irromper em um nível mais
modesto, individualmente; e se isso ocorresse, eu queria estar lá para ajudar.
"Acho que preciso dizer-lhe adeus", eu lhe disse, depois da palestra. "Irei para casa
em cinco dias, e não a verei de novo antes disso. Obrigada por tudo. Sentirei sua falta - as
coisas serão difíceis em Londres".
"Bem, minha filha, Margaret, está lá e poderá ajudá-la, se você tiver alguma
dificuldade".
"Ah, eu sei disso. Mas não poderei voar para uma clínica, se tiver problemas. Para
ser sincera, sinto medo".
"Isso é bem normal. A maioria dos pacientes sente medo, quando vão para casa. E
como cortar novamente o cordão umbilical. As primeiras semanas serão muito difíceis,
mas depois você descobrirá o melhor jeito de fazer tudo.
De qualquer forma, você percebe a grande melhora em sua saúde, desde que
chegou aqui ? Não há como comparar. Sei que seu tumor não encolheu, mas isso não
importa; ele poderá transformar-se em uma massa morta e inofensiva, sem jamais
diminuir em tamanho. Não há com que se preocupar, desde que ele não aumente ou gere
novos caroços".
Eu assenti. "Está bem. O que me preocupa, ainda assim, é que eu não tive uma
única crise em dois meses, embora tenha passado por praticamente todo o resto".
"Lamento", Charlotte disse. "Alguns pacientes começam tarde, uma minoria pequena
chega a se recuperar sem crises, mas acho que você ainda passará por isso, no momento
certo. Além disso, você já sabe o que precisa fazer quando tiver uma reação, não é ? Claro
que sim. Você ficará bem".
Ela me alertou sobre a inconveniência do longo vôo de retorno a Londres, sem
chance de um enema por quinze ou dezesseis horas, o que poderia ser um choque para o
sistema em rápida desintoxicação, acostumado à limpeza regular, cinco vezes por dia; esse
tempo não era suficiente para causar coma do fígado, mas poderia causar alguns
incômodos.
Ela também me incentivou a não aceitar qualquer bebida no avião. "Você está em
um estágio no qual comida rápida, cheia de sal e substâncias químicas, perturbaria muito
seu organismo", ela explicou.
"Maggie lhe dará alguns alimentos para comer durante o vôo. Se acabarem, jejue,
em vez de comer porcarias".
Despedimo-nos com um aperto de mão. Acompanhei-a até seu carro e abanei,
enquanto ela partia rumo à clínica La Gloria. Pela sensação aguda de perda que senti
naquele momento, percebi o nível em que viera a confiar em Charlotte para apoio e
conforto, quase esperando que ela vencesse minhas batalhas por mim.
Esta era a criança acanhada, dependente e órfã que vinha novamente à superfície,
em busca de um adulto mágico, que assumisse tudo, produzisse uma cura, matasse o
dragão ou, em vez disso, o 'caranguejo' gigante, e fizesse o sol brilhar.
Pobre Charlotte, pensei, que carga de projeções os pacientes devem colocar sobre
ela, como se já não tivesse suas cargas pesadas para levar sobre os ombros. Mas talvez
ela estivesse ocupada demais, em seu trabalho, para perceber como alguns de nós a
transformávamos em uma Grande Mãe universal, que detinha todas as respostas. O
melhor que eu podia fazer por ela era retirar minhas projeções e aprender a andar com
meus próprios pés novamente.
Em minha última noite na Del Sol, sentei-me na cama para examinar minha perna
direita, que parecera alarmantemente esticada nos últimos dias, chegando a doer.
Enquanto eu a olhava, percebi, perplexa, que um pequeno pedaço de carne nova
crescera sob o lado superior direito do enxerto de pele, como uma almofada nova e macia
na borda da área de desastre junto ao osso. Sem acreditar em meus olhos, toquei aquele
ponto da perna muitas vezes, até não ter dúvidas de que, na oitava semana da terapia,
minha perna massacrada começara a se reconstruir.
"Você é muito esperto", eu disse para meu corpo. "Nem Charlotte acreditava nessa
possibilidade. Pessoalmente, eu me sentiria melhor se você começasse a se livrar do tumor,
em vez de consertar a perna, mas é claro que suas prioridades são outras".
Senti-me esfuziante e boquiaberta por este estranho acontecimento. Claramente, meu
corpo tinha poderes autocurativos dos quais eu não suspeitava e uma espécie de sabedoria
independente que o levava à ação, dadas as condições certas.
Esta era a demonstração física do antigo aforismo da raja ioga: "Remova o
obstáculo e o resultado aparecerá". Quem poderia dizer que outros truques e pequenos
milagres este corpo nada estúpido poderia realizar ?"
A hora estava chegando. Minhas valises estavam prontas. Joy apareceu para uma
conversinha de despedida. Fomos até o promontório mais próximo e ouvimos o mar. Este
parecia profundo e rico e, por um momento, lembrou-me da voz do mar noturno em Itaca
ouvido de um bote parado na água. Astuto Odisseus, aqui vamos nós outra vez, em outra
viagem; proteja-me durante o percurso.
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CAPÍTULO 14
EM MINHA ÚLTIMA MANHA NA CLÍNICA DEL SOL, meu termómetro rolou da mesa
para o chão sem razão aparente e se partiu em mil pedacinhos. Este pequeno
acontecimento surpreendeu-me tanto quanto a desintegração espontânea de meu disco de
identidade da BBC, três meses antes.
Eu parecia incapaz de terminar uma fase sem que algum objeto simbólico
cometesse suicídio ritual para marcar a ocasião. Felizmente, eu tinha muitos objetos novos
e não-simbólicos para ingressar na nova fase.
Uma grande caixa, em um canto, continha medicamentos suficientes para seis
meses, incluindo seringas e agulhas para as injeções de fígado (que Maggie me ensinara a
executar], conjuntos de coadores de suco de um tecido de trama apertada, uma caixa de
chá de ervas com uma forte reputação anticâncer e um pacote de lama terapêutica para
cataplasmas. Só Deus sabia o que a Alfândega, no aeroporto de Gatwick, pensaria desse
tipo de bagagem.
Antes de desocupar meu quarto, sentei-me por alguns instantes para avaliar minha
situação. Agora, eu estava aproximadamente três meses afastada do dr. Lennox e da
medicina ortodoxa representada por ele. Isto significava que eu usara três, dos seis meses
que ele me dera como minha expectativa máxima de vida, se eu recusasse a cirurgia (o
mínimo, de seis semanas, já fora deixado para trás).
Eu não apenas estava viva, mas também muito melhor, em todos os sentidos, livre
da diabete, artrite e aparentemente capaz de recuperar pelo menos parte de minha perna
direita mutilada. Acima de tudo, eu ainda tinha apenas o tumor solitário com o qual
chegara, em vez da proliferação pavorosa de caroços, comum com o melanoma. Tudo
isso significava que, até aqui, a terapia funcionara bem, em seu estilo silencioso e sem
estardalhaço.
Até aqui, tudo correra bem, e eu deveria bater na madeira. Contudo, eu disse a
mim mesma que não deveria me sentir excessivamente confiante e cometer o erro fatal de
alguns pacientes de Gerson que, encorajados por sua rápida melhora, afrouxavam sua
rotina diária e pagavam caro por isso.
Não, nada de excesso de confiança. Sem dúvida, minha vida parecia restrita, na
camisa-de-força daquele regime, densamente centrada no corpo e fragmentada, mas este
era um preço razoável a pagar por estar viva. Eu havia me tornado meio 'durona' e
obstinada, ao confrontar a tarefa à minha frente. Pelo menos por enquanto, o balancete
me favorecia.
Minha rodada final de despedidas provou ser estranhamente comovente, mesmo no
caso de pacientes com os quais eu não simpatizava. Uma vez que nossas perspectivas
eram incertas, senti-me desconfortável por romper nosso padrão compartilhado,
distanciando-me dele, e, naturalmente, minha ansiedade da separação somou-se à minha
apreensão.
Subitamente, a clínica parecia ser o único lugar seguro no mundo, onde a
sobrevivência era possível, embora não garantida. Será que eu não estava cometendo um
erro terrível, ao partir ?
Vistos pela última vez pelo filtro daquelas emoções, até os pacientes menos
atraentes pareciam aceitáveis. E quando cheguei àqueles pelos quais sentia afeição,
descobri que não queria deixá-los. Sentei-me um pouco em um quarto semi-escuro com
Dóris, a ex-enfermeira negra que estava acamada havia dias, adoentada. "Obrigada por
estabelecer parâmetros tão altos para mim", eu lhe disse. "Você está sempre lindamente
preparada, com cabelos sempre penteados...
Toda vez que eu sentia vontade de me descuidar da aparência, você me fazia voltar
para os trilhos, por sua simples presença. Isso foi uma grande ajuda".
Dóris abriu muito os olhos. "Ok, gosto de roupas boas", disse, com uma risadinha.
"Mas o que você quer dizer com 'meu cabelo ? Achei que todos sabiam que uso uma
peruca; como eu poderia manter cabelos tão lisos e macios ? Mesmo assim, fico contente
por tê-la ajudado a manter o moral.
O problema é manter meu próprio ânimo". Ainda que à meia-luz, eu podia ver uma
fina linha de cabelos brancos sob os cabelos negros, onde o travesseiro deslocara
levemente sua peruca. A visão me entristeceu, como se uma brecha tivesse se aberto em
suas defesas.
Demo-nos as mãos, em despedida. Sua pele parecia fria e pegajosa. Antes de sair,
ofereci-me para levantar a persiana e deixar entrar a luz suave da primavera, mas ela
declinou, dizendo que seus olhos estavam cansados, como todo o resto de seu corpo.
Laetitia recebeu-me em um estado de mau-humor fenomenal, certamente
inapropriado para algo tão deprimente quanto um adeus. Ela recebeu-me com um ataque
ardente aos médicos ortodoxos, em geral, e aos especialistas em câncer, em particular,
declarou que nossa dieta era alcalina demais e muito ruim para suas unhas, mostrou-me
uma obra exótica de natureza morta em miniatura, que criara com folhas, pedregulhos e
gotas d'água estrategicamente colocadas e, como se pensasse nisso em cima da hora,
pediu-me para enviar lembranças à Europa.
Observei-a, com perplexidade e carinho. Havia um fogo real em seu corpo miúdo e
velho, juntamente com o tipo de coragem extrema que sabe quando deve ignorar coisas
aborrecidas como fragilidade, solidão e um mundo cada vez mais estranho. "Eu deveria
estar pintando na Grécia, neste momento", ela me disse, azeda, "em vez de me sentar
aqui, louca de tédio".
Com um pouquinho de sorte, eu sugeri, logo ela estaria suficientemente bem e
poderia voltar para casa para pintar à vontade. Ah, sim, é claro, ela concordou, com
indiferença nobre, há muito tempo para irà Grécia; e, então, aconselhou-me a cuidar de
meu cólon. Sob as circunstâncias, esta era uma forma tão boa quanto qualquer outra,
para despedir-se de alguém.
Com Carl, a despedida foi breve - ele estava de partida para La Gloria para tratar
de assuntos particulares. Ficamos no pátio, perto de uma das árvores floridas que
recebiam visitas regulares de beija-flores. Dei uma última olhada em sua figura magra e
rosto perspicaz e sarcástico, emoldurado por seus cabelos cor de fogo. Percebi que,
embora tivéssemos passado muitas horas discutindo sobre uma ampla gama de assuntos,
da divindade de Cristo ao melhor modo de fazer iogurte sem gordura, não conhecíamos
nada um do outro.
Eu não sabia nem quantos anos ele tinha - talvez quase quarenta ? - ou qual era
sua profissão, e não conseguia imaginar sua vida fora da clínica, assim como não podia
imaginar a minha. Ainda assim, tínhamos uma camaradagem estreita e boa, cimentada
por nossa doença em comum, e que me fora um presente maravilhoso. Eu lhe disse,
então: "Sei o que você vai me dizer, mas desta vez sou eu quem fala. Nós vamos
conseguir, você e eu. Ficaremos bem, sem dúvida nenhuma".
Ele deu-me um grande sorriso e apertou minha mão. "Absolutamente correto, Bee",
ele disse. "Estou contente porque você finalmente aprendeu - em certo ponto, não pensei
que conseguiria, com todas aquelas dúvidas que tinha. Esforce-se, quando chegar em
casa. Não é fácil, sei por experiência própria. Bem, se você me der licença, preciso ir
agora - não gosto de despedidas". Ele entrou em seu carro e foi embora, levantando uma
nuvem de poeira no lado de fora do portão dos fundos da clínica.
Maggie deu-me minhas provisões: duas garrafas térmicas com suco de maçã e
cenoura, frutas frescas, um pedaço de pão de Essene e algumas batatas cozidas frias.
Parecia muito pouco para um vôo tão longo, mas o motorista da clínica parecia ansioso
por partir e eu não queria causar um atraso.
"Por favor, lembre-se de segurar direito a agulha, quando aplicar a injeção de
fígado", Maggie disse, ao despedir-se; ela me ensinara a arte de aplicar injeção em mim
mesma, mas obviamente não tinha certeza de que eu aprendera mesmo. Outros rostos
familiares iam e vinham, despedindo-se e me desejando boa sorte. "Vamos antes que eu
comece a chorar", eu disse ao motorista.
Adios, fiquem bem, vejo vocês um dia. Partimos, rumo à fronteira com os Estados
Unidos. O oceano Pacífico brilhava como um espelho.
Ninguém se interessou por meu visto na fronteira americana e nem carimbaram
meu passaporte. Ainda assim, os guardas revistaram minha bagagem em busca de
Laetrile, a substância controvertida anti-câncer, que eu não possuía. Depois da atmosfera
tranquila do México, esta burocracia carrancuda parecia particularmente estúpida.
"Não dê importância a ele", o motorista disse, depois que entramos nos Estados
Unidos. "Esses caras me conhecem de vista, sabem que conduzo pacientes para lá e para
cá. O que não sabem é que nossos pacientes raramente tomam Laetrile. Mas também não
conhecem a diferença entre nossa clínica e as outras, aquelas de Kelley, Hoxsey,
Contreras, etc.
Para eles, é tudo parte do cinturão do câncer de Tijuana e tudo o que desejam é
encontrar Laetrile". Assenti. Isso não importava. Depois da poeira e aridez do México, a
Califórnia era o jardim do Éden. Um dia, pensei, eu gostaria de voltar e plantar um
cinturão de árvores em torno de Tijuana.
O peso real de minha solidão atingiu-me somente depois que o motorista me deixou no
aeroporto de San Diego. Não havia mais em quem me agarrar. Eu estava por conta
própria.
Era melhor recomeçar a funcionar como adulta. Afinal, eu havia sido uma adulta,
uma profissional capaz, antes que a terapia me apresentasse certas coisas que me levaram
de volta à infância - mingau de aveia ralo, frutas no vapor, chá de camomila, óleo de
castor, enemas, dormir cedo, regras rígidas, obediência à grande figura do pai ausente do
dr. Gerson e, como critério final da infância, a dependência completa de um sistema que
já existia muito antes de eu chegar lá. Ainda assim, apesar de tudo, eu conseguia
disfarçar-me de adulta.
Sentei-me na sala de espera e observei as pessoas que andavam por ali.
Inicialmente, foi divertido ver tantos estranhos, após o número limitado de rostos familiares
na clínica, mas, quando a novidade passou, senti perplexidade, ao perceber a aparência
doentia da maior parte dessas pessoas. Com algumas exceções, elas tinham excesso de
peso, além de problemas de postura, andavam encurvadas ou eram simplesmente
disformes, com rostos pastosos e olhos sem brilho.
A maquiagem pesada das mulheres e a tensão em muitos dos rostos assustaram-
me. Contudo, o mais estranho era que a maioria dessas pessoas estava ocupada,
consumindo alguma coisa, na maior parte do tempo - amendoins, doces ou chicletes,
como se manter suas mandíbulas desocupadas fosse errado ou perigoso. Eram todos
malucos, pensei.
Alguém deveria dizer-lhes para não se envenenarem com todo aquele lixo, que
bastava olhá-los para perceber o mau estado de sua saúde. Fui vencida, então, pelo
estranho humor daquele momento.
Ali estava eu, recém-saída de uma clínica para câncer, achando que pessoas
oficialmente saudáveis e normais, que habitavam o mundo externo à clínica, pareciam
claramente enfermas, comparadas com os pacientes gravemente enfermos que eu deixara
para trás.
Pode ser que estejamos sempre ocupados, mas pelo menos parecemos
razoavelmente em forma, pensei, saboreando o absurdo de minha observação, e nosso
estilo de vida é cem vezes mais saudável que o de uma pessoa 'normal'. Eu precisava
contar aquilo a Hudie. Ele daria boas risadas.
Hudie agora estava a apenas doze horas de distância, contando a partir do
momento da decolagem em Los Angeles. Ele estaria esperando por mim em Gatwick,
parecendo tão sólido e forte quanto sempre, um homem que sabia como lidar com as
coisas.
Acima de tudo, ele daria um fim à solidão dos últimos dois meses, que eu não
reconhecera plenamente, até agora, assim como não me permitira pensar demais em
meus amigos mais próximos, por medo de me sentir infeliz demais. Mas tudo isso estava
por terminar. Eu podia abandonar minhas defesas e relaxar, em expectativa. Suspirei de
alívio e bebi um pouco de suco de cenoura.
Minha alegria começou a desaparecer no aeroporto de Los Angeles onde, por
razões técnicas, fomos incapazes de decolar no horário marcado. O atraso tornou-se cada
vez maior, até que, finalmente, fomos encaminhados para um hotel, para uma refeição. Já
era noite e eu havia usado todos os meus alimentos, meu estômago roncava por comida e,
assim, desobedecendo as instruções de Charlotte, comi salada mista e batatas no vapor. O
gosto era terrível e me tez sentir culpada.
De volta ao aeroporto, esperando com grande desconforto, sentia ansiedade de
qualquer paciente cuja rotina terapêutica vital é rompida. Subitamente, eu soube como era
ser diabético e estar sem insulina ou ser cardíaco e buscar, em vão, os comprimidos que
salvam a vida. Eu não tinha ideia do tempo que poderia suportar sem sucos, enemas e
medicamentos, antes que meu corpo começasse a reclamar.
Charlotte havia dito que o vôo longo poderia causar problemas; que complicações
adicionais poderiam ocorrer, pelo atraso na partida ? Minha excitação por ir para casa
desaparecera. O que eu realmente desejava era estar novamente na clínica.
Finalmente, depois de vários anúncios que não se realizaram, decolamos, com seis
horas de atraso. Preocupada, eu disse à aeromoça que me sentia doente e precisava
repousar. Ela colocou-me deitada em três assentos vazios e eu dormi imediatamente.
Despertei duas horas depois, sentindo-me mortalmente doente. Minha impressão era de
que havia um machado enfiado na parte posterior de meu crânio.
De vez em quando, a lâmina serrilhada era girada, enviando dores lancinantes por
minha cabeça. A sensação em meu estômago era como se alguém o tivesse virado de
dentro para fora e, então, o enchido de substâncias tóxicas. A náusea era pior que
qualquer coisa que eu já sentira antes - pior que meu mais intenso enjôo do mar, que
ocorrera em uma viagem ao Canadá, muito tempo atrás, pior ainda que o
envenenamento por moluscos quase fatal que eu sofri em Marselha. Ondas de tremores
alternavam-se com calor, até que os tremores cessaram e eu soube que estava com muita
febre.
Fiquei ali, deitada e imóvel, com muito medo, sem forças, tentando entender minha
tempestade interna. O que estava acontecendo ? Será que eu estava morrendo ? Será que
meu câncer iniciara uma ofensiva em todas as frentes, para compensar o tempo perdido ?
Será que eu estava tendo um acidente vascular cerebral - certamente não com
minha pressão sanguínea baixa - ou um ataque cardíaco ? Ou estaria com uma
intoxicação alimentar ?
Considerei com cuidado cada alternativa possível, até que a verdade atingiu-me.
A única coisa errada comigo era que eu começara minha primeira crise, aquela
que, muitas vezes, era a pior. Uma vez que eu não produzira uma crise em dois meses,
enquanto estava cercada de cuidados especializados na clínica, agora eu fora
contemplada, milhares de quilómetros acima das terras geladas do Canadá, presa em um
avião e sem esperança de ajuda, alívio ou fuga.
Honestamente, pensei, de todos os lugares estúpidos e inapropriados no mundo
ocidental, meu corpo escolhera exatamente o pior, para este exercício - não era possível
sair do avião para um rápido enema no Alasca ou em Labrador, mas este seria o único
remédio eficaz; não havia mingau ou Charlotte de hortelã ao alcance, e eu estaria presa
por, no mínimo, mais nove horas, quando nem sabia como sobreviver nos próximos cinco
minutos. Eu conhecia as pequenas ironias da vida, mas isso ia além do risível. Mesmo
assim, eu percebia a ironia.
A virtude, como eu já suspeitara, era a própria punição. Enquanto eu havia seguido
rigorosamente a terapia, aderindo a ela tanto em palavras quanto em ações, a
recompensa pela qual ansiava - a crise - não ocorrera. Mas, agora que as circunstâncias
me forçavam a violar as regras, meu corpo produzira uma reação vigorosa, satisfazendo
meu desejo mais intenso - exceto que eu não estava em condições de me sentir satisfeita.
Enquanto meu mal-estar piorava, perdi totalmente qualquer senso de humor para
apreciar a ironia de minha reação. No espelho do banheiro, meu rosto parecia
horrivelmente amarelado. Bile, pensei. Icterícia instantânea. Meu fígado está com
problemas.
O que me ocorria era o pior de tudo o que haviam mencionado. Voltei cambaleante
ao meu sofá improvisado. Uma comissária de bordo veio apressada ao meu encontro e
perguntou se eu desejava algo. Eu me sentia sedenta, mas não ousava beber chá ou café.
Ela ofereceu-me suco de laranja. Aceitei, mas era suco retirado de uma lata e meu
estômago rejeitou-o prontamente. Com a água aconteceu o mesmo. Tudo bem, eu não
deveria beber. Um torpor lento e estranho espalhava-se por meu cérebro. Será que este
era o temível coma hepático, que matara alguns dos primeiros pacientes do dr. Gerson,
por falta de desintoxicação ? Não, provavelmente apenas toxinas comuns, chegando ao
cérebro. Por favor, Deus, não permita que eu desmaie. Um momento depois eu pensei: e
por que não ? Se eu desmaiasse, não sentiria coisa nenhuma.
Se pelo menos eu pudesse sair de minha pele... Ou do avião. Espiei pela janela
acima de minha cabeça, desejando que ela se abrisse levemente e eu fosse puxada para
fora, no estilo de um antigo filme de James Bond, sem afetar os outros passageiros. Nada
aconteceu. Então, um nevoeiro bem-vindo espalhou-se por dentro de minhas pálpebras e
eu dormi.
Em Gatwick, eu mal tinha consciência de que alguém me ajudava a levantar e me
acompanhava pelo corredor. Sem dúvida, a equipe de bordo sentiria o maior prazer em se
ver livre de mim.
Nem minha mente nem meus olhos tinham muito foco, mas eu sabia que estava
sendo guiada por um homem silencioso em um pequeno carro elétrico, junto com minha
bagagem, caixa de medicamentos e chapéu mexicano de couro multicolorido, por
corredores brilhantes, passando por barreiras e filas.
Pensei, fracamente, que um grande contrabandista daria um braço por uma entrada
fácil assim no país; ou talvez não fizesse isso, se fosse obrigado a se sentir como eu. Então,
vi Hudie. Reconheci apenas seus contornos; meus olhos eram incapazes de perceber os
detalhes.
"Desculpe-me, estou atrasada", murmurei, enquanto ele me tomava em seus braços.
"Desculpe-me por tudo. Não era assim que eu pretendia voltar para casa". Não ouvi o que
ele disse, mas de algum modo, fui levada até seu carro e iniciamos o longo percurso até
minha casa. Eu estava contente por sentar-me ao seu lado.
Além disso, não registrei nada, e não recordava nada das incontáveis coisas que
desejava lhe contar. Muito tempo depois, ele me disse que me reconhecera principalmente
por minhas roupas, não por meu rosto amarelo, e que minha aparência o assustara
demais.
Em casa, minha confusão mental diminuiu um pouco e senti alegria por ver que
Hudie conseguira estabelecer uma versão simplificada da clínica de Gerson em minha
grande cozinha.
As duas máquinas de fazer suco, o triturador potente e a prensa hidráulica simples
estavam colocados lado a lado sobre a principal superfície de trabalho. O resto do
equipamento - prateleira para vegetais, recipientes para saladas, triturador e uma
variedade de raladores, tigelas e outros apetrechos - estava em uma mesa comprida.
Havia dois sacos de cenouras orgânicas, cada um com treze quilos, uma caixa de
maçãs e várias caixas de vegetais, todos orgânicos, em uma área envidraçada externa à
cozinha. Um dos armários de minha despensa estava cheio de alimentos aprovados: aveia
para o mingau, mel puro, ameixas cultivadas em enxofre, passas, figos e tâmaras, lentilha,
feijão para produzir broto e trigo inglês orgânico para o cultivo de grama de trigo.
Todas essas coisas magníficas que Hudie juntara, corn a ajuda da lista feita por
Margaret Straus, formavam um festival da colheita, fora de época. Tudo de que eu
precisava para a terapia estava ali, tudo fora providenciado com habilidade e atenção, e,
mesmo em meu estado de confusão interna, senti imensa gratidão pelo amor e inteligência
usados em todos aqueles preparativos.
Tentei dizer isso, mas ele calou-me, com delicadeza, e prosseguiu explicando a nova
ordem na cozinha e área, dizendo que os produtos orgânicos seriam entregues uma vez
por semana, sagradamente.
Dorothea, minha recém-recrutada auxiliar, que conhecia a terapia, não estava lá, já
que não trabalhava aos sábados. Mas ela havia preparado uma porção generosa de sopa
de Hipócrates (tinha exatamente o mesmo aroma que no México e presumo que também
na ilha de Cos, dois mil e quinhentos anos atrás) e também o mais importante para
minhas necessidades do momento, uma grande jarra de café para enema.
Agarrei a jarra com zelo de um dependente pegando a dose pela qual ansiava.
"Desculpe-me, querido", eu disse a Hudie, com algum embaraço, "Devo subir e fazer
um enema imediatamente; só isso pode me fazer sentir melhor. Sei que parece estranho,
mas não posso explicar no momento".
Ele sacudiu a cabeça: "Não precisa explicar. Já li o livro do dr. Gerson, enquanto
você estava longe, e também o de Jaquie Davison, porque desejava entender tudo sobre
este tratamento. Assim, sei por que você se sente tão mal e por que precisa de um enema.
Ou de dois, até. Vá em frente e grite, se precisar de alguma coisa. No banheiro há
uma garrafa de água purificada e mais onze na área, de modo que não haverá problema,
por um dia ou dois".
Subi, comovida e me sentindo humilde ante a gentileza extraordinária de Hudie e
até por sua aceitação de meu estado atual, com todas as suas estranhezas e necessidades
desagradáveis.
Ele mudara, mas eu estava confusa demais para definir como, exatamente. Seu lado
jovial e tranquilo ainda estava como sempre, o lado que assumia riscos parcialmente
calculados com grande humor e não se preocupava demais se as coisas não corriam como
esperado; mas agora eu sentia um novo tipo de força nele, uma aceitação mais completa
das coisas como eram, sem tentativa para maquiá-las ou evitá-las.
Se nosso relacionamento sobrevivesse às partes menos aceitáveis da terapia, eu
pensei - aos aspectos ligados a intestinos e desintoxicação, à doença e à raiva -, se
sobrevivesse a tudo isso, além de a uma retirada prolongada da vida normal, então
sobreviveria a praticamente qualquer coisa, e eu sobreviveria também, no mínimo para
compensá-lo pelos maus momentos.
Se eu duvidara dos poderes de desintoxicação instantânea dos enemas de café, na
hora seguinte convenci-me pelo resto da vida. Depois do primeiro, eu já me sentia
incrivelmente melhor, mais leve, mais lúcida e sem tanta dor. Com o segundo enema, feito
quase que imediatamente depois, senti-me completamente restaurada. Eu estava de volta
ao normal, exceto pelo cansaço e fraqueza.
A aflição estomacal, a dor de cabeça terrível, a pele amarelada e a visão sem foco
desapareceram, e eu não tinha mais febre ou confusão mental. Minha vitalidade começou
a voltar. Por puro alívio, eu agora desejava fazer tudo de uma vez: falar com Hudie, dar
telefonemas, inspecionar o jardim, abrir minha correspondência, repousar, tomar um
banho, desfazer as malas, dar pulos de alegria por estar em casa novamente, viva e, se
não recuperada, pelo menos muito melhor do que estava ao partir.
Este foi um grande momento, com potencial quase infinito, e eu corria por todos
lados, em meu estilo caótico habitual, quando Hudie olhou o relógio e disse: "Não é hora
de você finalmente tomar um suco ?".
Ah, Deus. Oh, dr. Gerson, perdoe-me, porque pequei! Eu não conseguia imaginar
sequer quando tomara meu último suco e, se Hudie não me tivesse lembrado, eu passaria
muito bem sem um. Esta fuga ao dever precisava parar. Peguei o livreto de instruções de
minha pasta com materiais da terapia, coloquei-o de pé na frente das máquinas e suspirei.
Por onde eu começava ?
"Fiquei observando os empregados muitas vezes, na clínica, enquanto faziam suco
para mais de trinta pessoas de uma só vez, mas nunca cheguei a fazer um e me sinto
muito desajeitada".
"Ah, não pode ser tão difícil assim", ele disse. "Por que não lemos as instruções ?"
Dorothea, a auxiliar ausente, lavara suficientes maçãs e cenouras para os sucos de
um dia. Pesei duzentos e trinta gramas de cada, cortei as maçãs, raspei e cortei as pontas
das cenouras e, hesitantemente, passei-as no triturador. A poderosa máquina americana
começou a roncar e gemer e transformou aquilo em uma polpa rica e úmida.
Lembrando-me do procedimento dos empregados mexicanos, deitei um pano para
coar suco sobre um grande prato, forrei-o com papel-toalha, derramei metade da polpa
no meio e a embrulhei primeiro no papel, depois no tecido, para fazer uma pequena
trouxa que, então, coloquei na bandeja de aço da prensa.
Apertei o parafuso, inseri a alavanca e depois a movimentei para cima e para
baixo, para fazer com que o mecanismo hidráulico exercesse parte de sua pressão, até que
o suco começou a correr da bandeja para um grande copo.
Repeti o processo com a polpa restante. Um copo de suco podia ser feito em duas
vezes. A polpa residual em seu invólucro de papel saiu da prensa tão plana e lisa quanto
um linóleo. Era trabalho pesado e eu não era forte o suficiente para executá-lo, mas re-
cusei-me a passar a tarefa para Hudie, já que parecia importante produzir aquela primeira
porção.
Um pouco de suco respingou da bandeja em meu rosto. "Fui cuidadosa demais", eu
disse, com autocrítica. Finalmente, meu próprio suco, feito pela primeira vez, brilhava no
copo. Depois, vieram os medicamentos. Dissolvi uma jarra de sais de potássio em um litro
de água purificada e mexi com vigor.
A solução de Lugol estava toda pronta em um pequeno frasco. Acrescentei as
quantidades corretas ao suco e o bebi, como se minha vida dependesse do conteúdo
daquele copo. "As cenouras da Califórnia eram mais doces e cremosas", lamentei.
Sentamo-nos à mesa da cozinha, olhando um para o outro. Eu levara trinta minutos para
fazer apenas aquele suco.
"Será muito mais rápido depois que você pegar o jeito", Hudie disse, adivinhando
meus pensamentos.
"Tem de ser", respondi, "porque a cada vez também precisamos desmontar, lavar e
remontar duas máquinas, e isso significa que, tão logo terminamos uma rodada, podemos
começar a próxima, doze vezes por dia. Mesmo se conseguirmos acelerar o processo,
teremos apenas dez ou doze minutos entre cada rodada, e acho que não podemos lidar
com isso".
"Ah, espere aí, você não precisa lidar com nada", ele disse. "Dorothea fará todo o
trabalho e, nos fins-de-semana, eu assumirei. Não se deprima. Daremos um jeito. Você
precisa de seus sucos e os terá".
Assenti, abatida demais para falar. É claro que eu já percebera que realizar a
terapia em casa, mesmo com ajuda quase em tempo integral, seria muito mais difícil que
realizá-la passivamente na clínica, mas eu recém-começava a perceber a natureza
tremendamente árdua da prática e estava assustada.
Falei, finalmente: "Será quase impossível fazer tudo na mais perfeita ordem, da
manhã à noite, sem parar. E, se Dorothea adoecer ou nos deixar, terei de fazer tudo.
Como poderei enfrentar esta missão ?"
Ele pousou sua mão grande e eficiente sobre a minha, mas não tentou fazer pouco
de minhas preocupações. "Daremos um jeito", disse, "porque não temos outra opção. Acho
que é melhor começarmos o outro suco, você está atrasada. O que vem agora, na agenda
?"
"Um suco verde. Muito mais difícil que o de cenoura e maçã. Onde está o livreto ?"
Eu lavei, cortei, pesei e juntei repolho roxo, alface, agrião, pimentão verde e maçã,
e então executei o mesmo procedimento de antes. Este suco levou ainda mais tempo para
fazer. Meu braço estava ficando cansado e decidi deixar o resto dos sucos para Hudie. O
repolho roxo deu ao suco um tom violeta.
"Então, é isso que você chama de suco verde", Hudie disse, preparando-se para
lavar o equipamento. Fez isso com a mesma agilidade e atenção a detalhes que dedicava
a tudo que fazia. O suco, azedinho e doce ao mesmo tempo, era reconfortante. Enquanto
eu observava sua eficiência na pia, tive de rir pelo absurdo da situação.
"Meu pobre amor, você está sendo incrivelmente bom, com toda essa história,
embora rosas vermelhas e bom vinho combinem mais com seu estilo que talos de repolho
e suco de cenoura. Não tenho idéia do que fiz para merecer esta transformação, mas só
posso lhe agradecer por não fugir".
"Não seja tola. Por que eu fugiria, agora que você voltou ? Senti-me tentado, uma
ou duas vezes, a fazer as malas e me mandar enquanto você estava fora e eu não
conseguia falar com você nem pelo telefone.
Tudo o que eu conseguia era uma telefonista mexicana queixando-se do sistema
telefônico ultrapassado. Aí sim, me senti muito frustrado, mas agora ninguém mais vai
fugir, até que você tenha terminado o tratamento. Depois disso, acho que fugiremos os
dois juntos. Agora, por que você não descansa um pouco, antes de começarmos o suco de
fígado ? Imagino que essa é a pior tarefa de todas!".
Eu não sentia vontade de descansar. Em vez disso, dei alguns telefonemas. Minha
mãe, cujas lágrimas de alegria ou pesar sempre vêm com facilidade, chorou muito,
enquanto eu tentava lhe falar, mas finalmente acalmou-se.
O que mais lhe interessava era que eu estava de volta, na Londres segura e
conhecida. Catherine e John deram-me boas-vindas calorosas e me disseram que
passariam em minha casa, no dia seguinte. Disquei mais alguns números. Era como voltar
do mundo dos mortos, poder dizer "Estou aqui!", e quase escutar os minúsculos 'diques'
imaginários ao me conectar novamente com meus amigos.
De volta à cozinha, tentamos e quase fracassamos, ao fazer o suco de fígado com
cenoura. Apesar de nosso esforço conjunto e da sujeira infernal que fizemos, o fígado de
gado jovem que Hudie conseguira de um açougue local (este era do tipo normalmente
comprado por empresas farmacêuticas, insosso demais para ser consumido) cedeu muito
pouco suco, um terço de copo, se chegava a isso. No México, eu havia bebido três copos
cheios por dia.
Hudie culpou meu triturador elétrico ineficiente, eu culpei o fígado e lhe contei sobre
um quase-motim na clínica, quando o suprimento de fígado que vinha da Flórida não
chegou, um dia, deixando vários pacientes enlouquecidos de preocupação.
Expliquei-lhe que isso não tinha nada a ver com o que aprendíamos sobre a terapia,
e que, depois de algum tempo, começávamos a acreditar que o suco de fígado era nossa
principal defesa e ferramenta de recuperação.
Transformávamos o fígado em uma espécie de talismã, de modo que, se por algum
motivo não tínhamos suco de fígado por um dia ou dois, nossa confiança caía por terra e
temíamos o pior. Naquele momento, eu não queria me sentir assim, mas a tentação era
grande.
A lavagem depois do suco de fígado foi uma tarefa longa e bagunçada, que Hudie
insistiu em realizar. Eu andava por ali, tentando preparar uma refeição, tentando recordar
tudo o que precisava fazer, mas quanto mais longa a lista se tornava, mais em pânico eu
me sentia.
Cozinhar, comer, lavar, fazer mais três sucos, fazer mais dois enemas, ensopar
sementes para brotação, fazer dois litros de concentrado de café para amanhã, lavar e
ferver os coadores de suco - as tarefas pareciam numerosas demais para um simples
mortal.
Mas, então, meu pânico passou e pensei que era maravilhoso eu me preocupar com
as demandas e detalhes da terapia, mas nem pensar em minha doença, como se minha
recuperação fosse totalmente certa.
"Você vê ? Fizemos tudo. Até sua fruta no vapor está pronta para o desjejum", Hudie
disse, duas horas depois, examinando a cozinha novamente limpa com o ar de um general
romano vitorioso. O plural era uma gentileza, já que ele fizera quase todo o trabalho.
"Agora, você pode ir dormir para se recuperar da viagem; francamente, estou
surpreso por vê-la ainda acordada. Fique na cama o máximo possível. Farei os sucos
amanhã". Aquele homem era um milagre, ainda calmo e animado depois de um dia
interminável e difícil.
"Não mereço você", falei, e fui direto para a cama.
Agora, era o Tamisa no fim da rua, não o Pacífico, e em vez de cercada por
companheiros da clínica de Gerson, eu estava sozinha e frente-a-frente com a terapia,
embarcando no que o dr. Hesse havia chamado de esforço épico. Ah, sim, eu me sentia
bem época, assustadoramente épica. Fiquei deitada no escuro, contemplando a
perspectiva de dezesseis meses de dedicação árdua e solitária à terapia, à exclusão de
tudo o mais.
Senti-me como se tivesse leito votos e ingressado em uma ordem enclausurada, na
qual eu era a única freira, obrigada à obediência e também encarregada das regras. Já
era loucura suficiente assumir lidar com uma doença ameaçadora à vida em casa, em
uma base de "faça-você-mesmo", com ajuda apenas rudimentar.
Sob a superfície, porém, no nível não-físico, eu podia sentir outro processo estranho
em operação, que parecia tão importante quanto as complexidades da terapia.
O que era aquilo ? Eu passei um longo tempo tentando compreender e definir o
processo, mas, quando o enfoque mental falhou, voltei-me para a antiga técnica de tentar
obter uma imagem para a sensação fugidia. O que me veio prontamente foi um funil
muito largo.
Sua boca grande apresentava-se muito iluminada, contra uma paisagem bela e
onírica, mas sua ponta estreita levava a uma poça de escuridão. Enquanto observava o
funil por trás de meus olhos fechados, tive a sensação de estar em algum ponto, no corpo
do objeto, onde este se estreitava e formava um tubo.
Bem, sim, absolutamente correto, pensei. Quando o pensamento falha, sempre
podemos confiar em imagens. Agora, eu via que o processo interno que eu tentava
compreender existia realmente na forma de um funil, e que ele me forçava a espaços
ainda mais apertados.
A primeira fase de minha doença expulsara-me da área ilimitada e despreocupada
dos fortes e saudáveis, da paisagem iluminada e brilhante da boca do funil e me levara a
uma existência menos certa e mais restrita. A segunda fase, correspondendo ao
estreitamento do funil, retirara-me completamente do meu mundo e me colocara no
microcosmo rígido da clínica; mas mesmo lá eu desfrutara de companhia, de leituras e de
novas experiências.
Agora, era forçada à longa descida final pelo tubo do funil, ingressando em
dezesseis meses de confinamento solitário em casa, aprisionada em uma rotina da manhã
à noite, com muito pouco lazer e espaço, companhia mínima e a sensação de solidão de
uma viagem desacompanhada.
Isto se parecia com uma morte não-física - ser pressionada, despida e levada a
entrar em um espaço minúsculo e solitário, exilada do mundo normal, reduzida aos meus
próprios recursos. Eu não gostava muito da massa negra na outra ponta do funil. Mas a
verdade era que eu escolhera fazer aquela jornada. Assim, seria melhor prosseguir e me
organizar, além de descobrir qual seria meu destino final.
Momentos antes de adormecer, minha memória apresentou-me uma história quase
esquecida, usada na meditação budista, que eu sempre adorara. Ela fala sobre um
príncipe indiano que entregou um anel a seu joalheiro e lhe pediu que gravasse neste uma
sentença que o sustentasse nas adversidades e o contivesse, em períodos de sucesso.
Algum tempo depois, o joalheiro lhe devolveu o anel, no qual estavam gravadas as
palavras: "Tudo passa".
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CAPÍTULO 15
DE ALGUM MODO. PISANDO EM OVOS, HUDIE e eu conseguimos passar pelo
primeiro fim-de-semana sem perdermos uma única parte da terapia e sem brigas que
poderiam vir da pura exasperação causada pelas tarefas monótonas e intermináveis.
Novamente, ele fez a maior parte do trabalho; eu ainda estava cansada após minha
viagem terrível, mas recuperei-me após o jantar, quando Catherine e John chegaram,
carregados de flores primaveris e, no caso de John, com alegria suficiente para acender a
casa. Na verdade, todos dançamos polca e, quando finalmente nos sentamos, Catherine
segurou minha mão por algum tempo, como se houvesse algum risco de eu me
desmaterializar e desaparecer em um container enorme e remoto, tendo "México" como
destino. Eu tinha tanto para lhes dizer que desisti e apenas sentei-me em um silêncio nada
habitual, sorrindo de contentamento. Senti-me reconfortada pela proximidade de meus
amigos e aliados mais queridos, em outro marco de minha peregrinação do câncer, e por
ouvir suas vozes, em vez de apenas ler suas cartas.
"Você está magra", Catherine disse mais tarde, quando subimos para uma conversa
mais íntima e para que ela inspecionasse meu enxerto de pele auto-restaurador.
"Estou quase quatro quilos mais magra do que quando parti".
"Não é apenas isso; com sua dieta, eu esperaria que você estivesse desnutrida. Mas
também está magra em substância, como se sua densidade atómica tivesse caído. Parece
etérea, para falar a verdade".
"Etérea ? Que maravilha - ninguém jamais me chamou disso! Sinto-me bem normal,
seja o que for que isso signifique, de modo que você terá de me monitorar e me dizer
como estou indo, sob seu ponto-de-vista".
"Farei isso com todo prazer", Catherine disse, "mas será que não existem outros
meios mais confiáveis de verificar seu progresso ?"
"Acho que não. Exceto por exames de sangue e urina, e esses não dizem muito.
Pessoalmente, acho que usarei minha perna como gabarito para a cura. Desde que
ela continue se regenerando, não tenho com que me preocupar, porque se meus sistemas
não estivessem em franca recuperação, não haveria reconstrução.
Você não tem ideia do que sinto por saber que minha pobre perna maltratada
começou a se reconstruir. E incrível e também muito engraçado, o mais próximo que já vi
da reconstrução da cauda por uma lagartixa.
Eu gostaria de saber como o corpo faz isto, Como ele sabe, por exemplo, quanta
carne pode produzir e quando cessar, de modo a lhe dar o formato correto ? Sabe, isso é
exatamente o oposto do que as células cancerosas fazem. Elas não sabem quando parar; é
como se tivessem enlouquecido. O que minha perna está fazendo parece classificar-se
como a lucidez celular completa".
"Bem, bem... Já conheci algumas cabeças muito lúcidas em minha vida, mas é a
primeira vez que encontro uma perna lúcida", Catherine disse, contemplando meu membro
heróico. Mesmo naquele pequeno intervalo, desde que eu percebera o processo de
reconstrução, a nova carne por baixo do enxerto de pele se tornara mais espessa e forte.
"Tudo o que posso fazer é me curvar à sua panturrilha miraculosa", ela disse,
finalmente. "Provavelmente você tem aí um caso para os anais da medicina. Pelo amor de
Deus, cuide dela, não caia debaixo de um ônibus.
Depois que ela estiver ainda melhor, organizaremos excursões para que as pessoas
venham admirar sua perna e talvez até tocá-la. É claro que precisaremos cobrar ingresso".
"Como em um prédio histórico ? Que boa ideia! Quando eu terminar essa terapia
danada, provavelmente sairei por aí com um chapéu de pedinte. Uma perna miraculosa
pode ser uma boa fonte de renda".
"Ouso dizer que você descobrirá mais uma fonte de renda, quando chegar a hora",
Catherine disse, calmamente. Ao longo dos anos, tendo testemunhado os altos e baixos
financeiros e as crises aparentemente insolúveis uma da outra, chegáramos à con-que
nossas verdadeiras necessidades são sempre atendidas, muitas vezes de modos
comicamente inesperados, de forma que se preocupar com elas era perda de tempo. "Mas,
me diga, além de sua perna e de suas finanças, como você se sente, agora ?"
Ponderei por alguns instantes. "Sinto-me em uma batalha. Cercada por tarefas
práticas, envolvida totalmente na terapia, quase confinada a ela, como se eu fosse uma
célula. Sei o que estou fazendo e por que faço isso, mas não tenho uma visão geral ou
consciência particular de mim mesma, em termos do que sou além da terapia. A dimensão
interior ainda está ausente. Ver você e John novamente faz com que eu perceba o quanto
me distanciei de tudo. Ontem à noite percebi o encolhimento de meu espaço interno e
externo... é como ser uma planta, forçada a regredir de volta ao estágio de semente. Será
que isso faz sentido ?"
"Para mim, sim, embora eu não saiba como um botânico reagiria. Voltar ao estágio
de semente parece um bom modo de se regenerar; não se pode chegar a um nível mais
básico que este. Ah, minha amiga, acredite em sua capacidade para se reciclar, sem toda
aquela coisa cansativa de ter de morrer, decompor-se e renascer das cinzas.
Você sempre disse que era uma jardineira excêntrica. Agora, está provando isso e
não deveria se preocupar por não ter uma visão geral neste momento".
"Mas não gosto de me sentir exilada neste mundo formado unicamente por meu
corpo!"
"Você não está exilada. Olhe, nós duas sabemos disso - o processo interno continua,
mesmo se durante algum tempo você não tiver consciência dele. Pode ser bom confiar no
processo e não dar importância para o resto".
"Tudo bem, desde que você me pergunte, de vez em quando, como estou. De outro
modo, me sentirei perdida".
"Duvido disso. Mas é claro que perguntarei, e muitas vezes". Descemos e nos
juntamos aos homens.
"Você se importa se bebermos uísque, quando só pode beber suco de cenoura ?",
John perguntou. Não, eu não me importava, já que não sentia vontade de tomar uísque, e,
quando Catherine me convidou para cheirar seu copo, descobri que o aroma do uísque,
que sempre adorei, parecia desagradavelmente áspero e me atraía na mesma medida que
um solvente faria.
"Deus, acho que não terei mais nenhum vício, quando me recuperar", queixei-me.
"Serei saudável e chata... quem desejará se juntar a uma ex-fumante e vegetariana
radical ? Será que existem vícios agradáveis que não corrompam a terapia ?"
Algumas sugestões interessantes foram feitas e a conversa rolava solta quando John
e Catherine levantaram-se para irem embora. Protestei em vão.
"Provavelmente já passou muito de sua hora de dormir", eles disseram, e por um
momento a criança irritada em mim viu-os como um par de adultos queridos e
preocupados, prestes a desaparecerem no mundo, aonde eu não poderia encontrá-los.
Esta primeira visita, com duração cuidadosamente calculada, estabeleceu o padrão
de minha vida social por um longo tempo. Fui forçada a aceitar que os horários rígidos da
terapia e os cuidados e manutenção de minha energia flutuante assumiam precedência
sobre tudo o mais.
Visitas de amigos e até telefonemas precisavam ser encaixados entre os enemas e
outras funções. Depois, quando Hudie começou a levar-me para breves passeios nas
manhãs de domingo, nossas saídas eram limitadas, pelo fato de que o único suco de
maçã e cenoura que eu podia levar em uma garrafa térmica, precisava ser bebido até
duas horas depois de feito, e de que o suco seguinte precisaria ser feito no horário.
Isto era pior que ser Cinderela, cuja única preocupação era com as badaladas da
meia-noite, enquanto eu tinha um compromisso com os sucos a cada sessenta minutos.
Durante a fase inicial do regime, à medida que minha frustração crescia, eu às
vezes via minha rotina diária como uma punição sutil, mas sádica, digna das regiões mais
amenas de algum inferno moderno, a tortura interminável de ser atacada por sucos, em
uma ponta, e enemas na outra, interrompendo tudo o mais, em um arranjo de aparente
facilidade e conforto.
Contudo, essas fantasias exageradas eram raras e cessaram totalmente quando
recebi permissão para reduzir meus cinco enemas diários para quatro e, meses depois,
para três. Depois das amarras rígidas da terapia superintensiva, cada corte, cada redução
nas tarefas parecia uma libertação.
Os amigos perguntavam, nas semanas e meses seguintes, se era preciso mesmo dar
tanta atenção ao programa. Se a rotina de sucos de hora em hora e tomados
pontualmente não era exagerada em sua precisão e excessiva em sua quantidade. Eles
indagavam o que aconteceria, se apenas uma vez eu me rebelasse e bebesse apenas seis
sucos, não treze, e fosse ao teatro ?
Será que a mudança de ares não me faria um bem maior que os sucos ? Tais
indagações eram perfeitamente razoáveis, mas, honestamente, eu não conhecia as
respostas. Tendo me comprometido com o tratamento, eu estava determinada a aderir às
suas regras sem mudanças ou atalhos, porque este era o único modo de ver se daria certo.
De qualquer modo, não fazia parte do esquema de cobaia redesenhar a experiência
na qual eu participava. E, além do nível de cobaia, como paciente que desejava recuperar-
se eu não teria ousado curvar as regras de acordo com meus interesses. As histórias de
casos contadas por Charlotte, narradas como alertas, sobre pacientes negligentes ou que
violavam as regras, haviam causado profunda impressão em mim.
Na primeira segunda-feira após meu retorno, Dorothea, a ajudante doméstica
treinada, chegou cheia de boas intenções. Ela era uma mulher alta, forte e bastante
comum, com o sorriso vago e olhar incerto das pessoas extremamente míopes.
Eu a recebi calorosamente e teria agido assim mesmo se ela medisse um metro,
fosse careca e tivesse olhos roxos; já então eu sabia que, sem ajuda de fora, a terapia logo
ruiria. Dorothea era uma garota do norte da Inglaterra, que já andara por toda parte e
estava profundamente 'metida' na medicina alternativa.
Ela comparecera a um dos seminários de Margaret Straus, lera O livro e trabalhara
durante um breve período com um paciente de Gerson. Acima de tudo, a moça
demonstrava entusiasmo pela terapia e parecia ideal para o emprego, de modo que lhe
entreguei o comando da cozinha, com alívio.
Eu sabia que teríamos problemas. Em uma carta de Baltimore, minha querida e
saudosa Becky falara sobre o incómodo de ter uma estranha no comando de nossa
própria casa. Em seu caso, era uma série de estranhos, fornecidos pela igreja local;
senhoras agradáveis e gentis, de acordo com Becky (mas ela teria tecido elogios a
qualquer um), mas que exerciam, ainda assim, uma "influência perturbadora".
Achei que Dorothea também me daria problemas, mas fiquei contente por tê-la em
minha casa das nove às cinco, de segunda a sexta-feira, até ordem em contrário.
Ela era rápida e enérgica. Também era incrivelmente desorganizada, derramando
líquido e resíduos sólidos em todas as dire-ções. Apesar das lentes poderosas de seus
óculos, ela não percebia a trilha pegajosa que deixava em seu rastro, enquanto se agitava
na cozinha.
Tentei não me importar com isso, ao contemplar a rápida deterioração na
decoração. Ela estava produzindo as refeições e sucos no horário e era simpática, apesar
de muito controladora. Eu não podia me preocupar com superfícies grudentas e copos
cheios de marcas de dedos, não devia me importar se ela deixava o café do enema ferver
demais e inundar o fogão, ou se esquecia de remover os pedacinhos queimados da panela
de sopa.
Hudie, ele mesmo um perfeccionista muito exigente, sentiu minha apreensão e fez o
possível para aliviá-la. "Tente ignorar os problemas, querida", ele insistiu, quando me
queixei dos hábitos relaxados de Dorothea. "Quando a terapia terminar, reformaremos a
cozinha. Essas manchas de beterraba na parede sumirão e as marcas no piso não são tão
ruins. Tudo o que importa é que a garota continue fazendo os sucos. Tire o resto de sua
cabeça".
Sim, é claro. Mas, no fundo, eu me preocupava. O que me intrigava e me fazia
pensar era que, tendo conquistado a capacidade de manter o distanciamento, nas áreas
mais importantes da vida, incluindo minha própria sobrevivência ou morte, agora eu era
incapaz de usar tal capacidade no que se referia ao estado do piso de minha cozinha.
Obviamente, a lacuna antiga e familiar entre teoria e prática continuava sendo imensa.
Logo depois da chegada de Dorothea, Hudie levou-me ao dr. Montague para um
exame geral. Tão logo entrei em sua sala de consulta, senti-me como uma peregrina
voltando ao lar, com histórias de terras remotas. Na verdade, o dr. Montague quis mesmo
saber tudo sobre minha experiência na clínica, antes de dar uma boa olhada em mim.
"Talvez um dia eu visite a clínica de Gerson para vê-la com meus próprios olhos", ele
disse, com um sorriso pequeno e tímido. O homem mostrou-se tão silencioso e retraído
quanto me parecera antes e se animou um pouco apenas à visão da perna que se
regenerava.
"Isso é muito raro", ele murmurou, tocando com delicadeza a carne que crescera ali.
"Espero que você tenha uma foto do 'antes' de sua perna". Bem, sim, eu tinha uma foto e
tentaria fazer uma cópia; o que eu ansiava por saber era quanto da parte mutilada
poderia crescer novamente, no longo prazo.
Ele me respondeu que era difícil prever, e então examinou o tumor, que aumentara
de tamanho desde janeiro, mas também subira para a superfície. Não era possível avaliar
o grau de crescimento. Sua reação controlada e casual ao caroço imensamente maior
tranqúilizou-me um pouco, além do fato de não ter descoberto outros nódulos, ainda que
os procurasse durante um longo tempo. Minha condição geral parecia satisfatória, e ele
esperava que eu pudesse perseverar com a terapia.
Nas consultas posteriores, percebi que, se o dr. Montague chamava minha condição
de 'satisfatória', então eu estava indo realmente bem, uma vez que ele não era dado a
exageros. Contudo, por trás de sua reserva, havia carinho e gentileza, e, durante meus
incontáveis meses de luta com a terapia, senti-me bem por saber que este médico estava
próximo e acessível.
Além dele, meu outro apoio importante era Margaret Straus. Durante minhas
primeiras e confusas semanas em casa, eu ligava para ela sempre que tinha um problema
para o qual não encontrava resposta no Livro ou nas anotações das palestras às quais eu
comparecera na clínica. As respostas de Margaret eram sempre objetivas e, em termos da
terapia, era tão inflexível quanto sua mãe, Charlotte Gerson.
Tal rigidez visava proteger tanto os pacientes quanto a reputação da terapia; o pior
temor de ambas era que as pessoas pudessem assumir o programa de Gerson, dobrar ou
afrouxar suas regras de acordo com suas conveniências e, então, quando a terapia desse
errado, considerá-la uma 'enganação'.
Algumas semanas após meu retorno do México, minha consciência do tempo
mudou drasticamente. O tempo, para mim, tornou-se indiferenciado. Ele rolava em frente
como uma linguiça interminável, com o dia seguindo-se a outro dia, sem marcas distintivas
para romper a monotonia.
O padrão não mudava. Eu estava ocupada com as tarefas da terapia das sete da
manhã até a chegada de Dorothea, às nove, e outra vez depois que ela ia embora, das
dezessete às vinte horas e trinta minutos ou vinte e uma horas; a duração deste meu último
turno dependia do grau de limpeza que eu precisava fazer na bagunça deixada por minha
empregada. Enquanto Dorothea estava em casa, eu podia ler, escrever, receber visitas de
amigos e descansar, tudo sempre sujeito a interrupções; eu também precisava fazer uma
hora de exercícios de qualquer espécie, todos os dias.
Tudo isso me fazia sentir como uma condenada em um navio, só que em uma
versão para inválidos. A única forma de suportar tal provação era vivendo um dia após o
outro e mantendo um horizonte modesto. A rotina repetitiva agia como um sedativo,
suficientemente leve para permitir meu funcionamento e, ainda assim, capaz de bloquear
todo o resplendor e sabor da vida.
Meu conceito de espaço também mudou. Reduzida a caminhadas muito breves nas
proximidades e forçada ao contato estreito com o reino vegetal, tornei-me especialista em
áreas diminutas e detalhes ínfimos. Comecei a conhecer pessoalmente cada pato e ganso
canadense no Tamisa e cada rachadura na calçada à beira deste. Aprendi a ler as
mensagens transmitidas pelos materiais das cortinas dos vizinhos e estudei a condição de
seus jardins frontais, incluindo sua escolha de muros ou grades.
Nas manhãs dos fins-de-semana, lavando montanhas de vegetais na pia, vi-me
sentindo empatia, muitas vezes, pelas hortaliças que manuseava. Minha sensação era a de
vivenciar a essência década beterraba, batata e talo de aipo que passava por minhas
mãos; a coordenação perfeita de qualidades que formava uma cebola na primavera -
forma, cor, aroma, sabor, textura, tudo essencialmente certo.
Vi-me forçada a admitir que uma extrovertida fervorosa como eu precisava do
confinamento rígido de meu estilo de vida atual para descobrir a essência das coisas
humildes, e era excitante tornar-me plenamente consciente da estrutura maravilhosa e
lustro nobre de uma folha de repolho roxo.
Contudo, como todas as experiências místicas, esses momentos também passavam
e, em grande parte do tempo, eu mesma me via como um repolho dos mais simples.
Meu sonho mais vívido nessas primeiras semanas envolveu o dr. Lennox. No sonho,
eu estava sentada do outro lado de sua mesa em seu consultório, nua, mas sem
embaraço: este era o tipo de sonho com nudez que simboliza a sinceridade total, sem
nada a esconder.
Eu queria mostrar-lhe a carne nova em minha perna e lhe contar sobre a terapia de
Gerson, mas ele recusava-se a olhar e ouvir, e cantarolava: "Vamos cortar! Vamos cortar!"
Para minha surpresa - uma vez que um comportamento tão largado era contrário à
sua índole -, ele chegava a batucar na mesa, ao ritmo de sua musiquinha. Quando vi que
não chegaria a lugar nenhum, falei, irritada: "Não vamos cortar coisa nenhuma", e saí
dali. Ele me seguiu, sorrindo e tagarelando, até a Oxford Street, onde me deteve na frente
da extinta loja de departamentos Marshall e Snel-grove, um lugar que recordo apenas por
causa de sua atmosfera de "velho mundo".
"Por favor, entre e conheça o lugar onde trabalho", ele convidou. "Isso aqui ficará
lindo, depois que os operários terminarem o trabalho". Enquanto entrávamos, vi que todo
o piso térreo fora transformado em uma sala de espera luxuosa, com candelabros e
escadas por toda parte.
Ele, então, explicou: "O único problema é que os operários não conseguiram
colocar as escadas. Não sei por que, e tudo está lá em cima". Pude ver que ele dizia a
verdade - uma escadaria elegante de madeira estava posicionada no meio do imenso
saguão, pronta para ser instalada, mas não tinha como, já que ninguém pensara em fazer
uma abertura apropriada no teto de concreto cinza.
"Mas isto é ridículo", eu lhe disse. "Você não entende o que está errado ? Não basta
comprar a escada e seu carpete; é preciso ter acesso ao piso de cima. Neste ritmo, você
jamais passará do térreo". E aí terminou o sonho.
Eu não sabia se meu sonho era uma avaliação justa de como o dr. Lennox
responderia, se eu o visitasse - com todas as minhas roupas, é claro - na vida real. Mas,
ao recordar o modo autoritário como ele me dissera que a dieta não tinha nada a ver com
o câncer, achei que ele não mudaria de ideia nem admitiria que cortar tumores não era
uma resposta para o câncer, a longo prazo.
Sob esta perspectiva, era razoável vê-lo como alguém preso ao térreo, incapaz de
chegar a um entendimento superior e mais holístico da doença. Tudo bem, eu não era
objetiva, já que ainda sentia irritação com ele, por ter danificado inutilmente minha perna,
e meu ressentimento obviamente dera o tom do sonho. Ainda assim, eu não o considerava
muito distanciado da realidade.
Mas e se eu estivesse sendo injusta ? Ainda assim, havia um nível mais profundo de
interpretação, aquele no qual todas as personagens dramáticas do sonho representam
aspectos inconscientes de nós mesmos.
Ah, encare isso de frente, eu disse a mim mesma - de algum modo, também estou
presa no térreo, embora tenha muitos degraus e escadas para subir, mas não as estou
usando. Estou executando a terapia com total submissão e dedicação, em todos os seus
detalhes materiais, mas não faço nada mais para promover a cura.
Não estou trabalhando com minhas emoções mais escondidas ou lidando com
assuntos que não concluí no passado. O pior de tudo é que não estou tentando identificar
os fatores psicológicos que podem ter contribuído para minha doença.
Não havia como fugir - sem o trabalho interno, a terapia de Gerson era tão
incompleta, em seu foco apenas sobre o corpo, quanto os tratamentos ortodoxos. Eu
conhecia apenas uma referência no Livro que apontava além do puramente físico: "Deve
ser lembrado que uma terapia de sucesso exige harmonia das funções tísicas e
psicológicas para a conquista de uma restauração do corpo em toda a sua plenitude".
Sim, isso era verdade, mas não me bastava. Talvez não houvesse necessidade de
pôr ênfase adicional sobre o lado psicológico na época do dr. Gerson, já que ele deve ter
tido o carisma do médico-curandeiro que desperta e alinha o 'eu' total do paciente, sem
conversinhas ou explicações didáticas; contudo, este dom intransferível e não-verbal
morreu com ele e nada o substituiu.
A menos que eu desse um jeito nesta dimensão ausente, permaneceria tão presa ao
térreo quanto o dr. Lennox.
Déjà vu, déjà dit ? Sim, é claro. Tive um momento semelhante de revelação em La
Mesa, e um anseio similar de aprofundar a experiência de cura. Mas nada aconteceu,
porque Lily e Tom invadiram meu espaço e me enlouqueceram. Tudo bem, deixe-me tentar
outra vez. Veremos o que acontece, desta vez.
O que aconteceu foi que eu mal havia iniciado um programa modesto de
relaxamento e meditação, quando Dorothea se tornou insuportável, irritando-me mais a
cada dia. Ela ainda fazia suas tarefas, mas a bagunça crescia de forma intolerável, assim
como sua mania de comandar.
Se eu pegava uma esponja para limpar uma superfície grudenta ou tentava
organizar a confusão na gaveta de talheres, ela me repreendia em voz alta, como se eu
fosse uma invasora em sua cozinha. Nosso conflito ocorria em vários níveis.
Seu desmazelo ativou, em mim, a dona-de-casa obsessivamente limpa, que eu
preferiria ver em coma, se não morta, enquanto sua mania de mandar despertou meus
instintos primitivos de proteção do território. Ela exercia um poder delirante, mas, em meu
estado de debilidade, não consegui colocá-la em seu lugar. Além disso, na sombra de
suas oscilações de humor, eu temia que, ao verbalizar alguma objeção, ela pudesse ir
embora e me deixar no desamparo total.
Apesar de tudo, também tínhamos alguns dias bons, em que ela se mostrava
alegre, charmosa, delicada e muito divertida. Com maior frequência, porém, ela chegava
de mau-humor e taciturna, e permanecia assim o dia inteiro. Sua vida amorosa ia mal, o
que lhe fazia ferver o sangue e perder o controle de seu humor. Percebi muita violência
reprimida por trás de sua conduta.
O estado exato de sua visão também me intrigava. A julgar pela condição de minha
cozinha, ela era cega como um morcego, mas, como eu não tinha certeza, concedi-lhe o
benefício da dúvida.
As coisas chegaram a um ponto sem volta no começo de maio, quando minha
entrega semanal de alfaces tenras e novas, usadas nos sucos verdes, chegou cheia de
lesmas novinhas, uma dúzia ou mais por pé de alface.
Durante o fim-de-semana, removi um grande número delas, sob a água corrente na
pia da cozinha. Este era o preço que se precisava pagar por usar produtos orgânicos e
livres de substâncias químicas. Lembrei-me das criaturas apenas na terça-feira seguinte,
quando então disse a Dorothea: "Essas lesmas nas alfaces da semana passada são um
transtorno - você já deve estar farta delas, a essas alturas". Ela pareceu atónita. "Lesmas ?
Que lesmas ? Não percebi nenhuma. Como elas são ?".
Meu estômago retorceu-se. Peguei uma alface no refrigerador, removi sua proteção
de polietileno e separei as folhas. As lesmas, agora bem resfriadas, estavam encolhidinhas
lá dentro. "Aqui - você não vê ?", perguntei.
Dorothea espiou, parecendo incerta. "Ah, isso aí ?", indagou, em uma voz que em si
mesma continha tácita admissão. Nada mais foi dito. Subi e me deitei, sentindo náusea.
Meu único consolo era que, se as lesmas haviam entrado como ingrediente de meus
sucos verdes, durante dois dias, pelo menos elas eram totalmente orgânicas.
Mas então, à medida que mais e mais coisas davam errado e eu pensava na
variedade de bichos que poderiam estar escondidos em minha comida e bebida, percebi a
necessidade de tomar providências. Coloquei um anúncio classificado e, quando encontrei
alguém razoável, demiti Dorothea. Ela não pareceu surpresa nem perguntou por que eu a
demitia.
Talvez já esperasse por isso. Mas, em nossa despedida, ela deixou cair a máscara
de arrogância do tipo "vamos ver até onde posso ir" e pareceu triste e perplexa. Imaginei se
deveria tentar explicar algo, mas ela me deu as costas e nunca mais a vi.
Assim começou a novela tragicômica de minhas ajudantes domésticas. Além de
Dorothea, admiti um total de cinco empregadas ao longo de dezesseis meses. Todas eram
jovens, entre os dezesseis e os vinte e dois anos, mas só tinham isto em comum, já que
uma era maravilhosa, outra era boa, mas três eram tão horríveis que, às vezes, eu quase
concordava com uma paciente que, na clínica do México, declarara que ajudantes eram
piores que o câncer.
Bem, nem tanto, mas, no geral, chegavam bem perto disso, porque as
preocupações triviais causadas por ajudantes inadequadas tornaram minha vida diária
ainda mais inferior e afundada em detalhes.
A única empregada maravilhosa, Harriet, que assumiu depois de Dorothea,
permaneceu durante três meses e me estragou para o resto da terapia, já que era
excelente como ajudante e, além disso, boa companhia. Ela aprendeu a rotina
rapidamente, era inteligente, divertida e cheia de vitalidade.
Além disso, conhecia e gostava de vegetais frescos, diferente da maioria das outras
meninas que haviam crescido consumindo alimentos não-saudáveis e não sabiam
diferenciar alho-porro de rutabaga, jamais haviam visto um pimentão verde ou ervilhas
frescas.
Eram viciadas em batatas fritas, amendoins e doces horrorosos - e obviamente
achavam minha dieta completamente maluca. A mais inútil de todas as minhas ajudantes,
Cindy, afogava seus almoços orgânicos re-cém-preparados com ketchup ou creme para
saladas, que eu deveria fornecer. Ela não entendia como alguém podia sobreviver sem
esses dois artigos.
Cindy tinha bom temperamento, era plácida e incapaz de aprender. Certa vez,
quando já cometera o mesmo erro tolo pela sexta vez, e eu lhe perguntei se chegara a me
ouvir, ela me deu um sorriso radiante e disse: "Ah, eu ouvi, mas o que você me diz entra
por um ouvido e sai pelo outro".
Cindy existia em uma névoa de música popular, cigarros (que fumava no jardim) e
histórias sensacionalistas dos tablóides mais escandalosos. Sem esses estímulos, ela
afundava imediatamente em um estado de morta-viva.
Ela não durou muito tempo. Nem Pauline, modelo ocasional com trejeitos sexys, que
explodiu em lágrimas e soluços altos em seu quinto dia comigo. Queixou-se de que o
trabalho era muito solitário e minha casa era silenciosa demais.
Disse que simplesmente não suportava isso. Considerando que seu emprego
anterior havia sido em uma boutique que vendia jeans na Oxford Street, seu sofrimento era
compreensível. E o meu também. Eu mal conseguira lhe ensinar a rotina quando ela pediu
demissão.
Depois, veio Moira, uma garota morena sorumbática que abandonara sua
comunidade, no norte de Londres. Moira era 'chegada' em incontáveis teorias e técnicas
esotéricas, sem compreender realmente qualquer delas, mas isso não a impedia de me dar
sermões ignorantes.
Moira era incansavelmente franca e isenta de humor, uma garota potencialmente
bonita, mas pesadamente escondida sob roupas de muitas camadas em tons de castanho
avermelhado e violeta que, segundo ela, tinham as vibrações mais potentes para o
conhecimento.
As únicas vibrações que pude sentir transmitiam uma necessidade urgente de lavar
suas roupas. Moira era infeliz - a rebelde clássica, sem causa, direção ou estrutura. Seu
esforço para descobrir uma identidade era visível, mas as ideias incompletas que
assimilava, oriundas dos falsos Himalaias, em West Kilburn, apenas a confundiam ainda
mais.
Eu entendia sua carência e, às vezes, mantínhamos longas conversas, que pareciam
ajudá-la um pouco. Contudo, após alguns dias de paz e coexistência tranquila, Moira
sempre se tornava novamente desagradável e me tratava com escárnio e hostilidade.
Percebi que ela projetava em mim todas as figuras negativas e representativas de
autoridade que já encontrara e, conhecendo sua história familiar, eu sentia simpatia por
seus conflitos, até que Hudie lembrou-me que a tarefa da moça era cuidar de minhas
necessidades físicas; eu não tinha obrigação de lhe oferecer psicoterapia.
O reinado sombrio de Moira em minha cozinha terminou dramaticamente, quando
ela enfiou uma faca no poderoso triturador americano que estava ligado na velocidade
máxima; posteriormente, ela declarou que queria mudar de lugar um pedaço de
beterraba, trancado no fundo do aparelho.
Ela parou o motor imediatamente, mas a lâmina longa já se enredara no cortador
dentro do aparelho e não podia ser removida. Quando entrei na cozinha, senti o choque
da visão melodramática - o cabo preto da faca projetava-se para fora do triturador.
Parecia que minha preciosa máquina, a peça principal da terapia à base de sucos, havia
sido esfaqueada no coração por Moira. Tentei puxar a faca, mas esta permaneceu
firmemente pesa dentro do triturador assassinado.
Entrei em um estado muito semelhante à histeria, já que estava aterrorizada por ter
de interromper a terapia, não importando por quanto tempo. Moira, porém, não
lamentava nada. "Talvez este seja um sinal de que você deveria parar com a terapia e
experimentar outra coisa", disse, em sua voz cansativa de alto-sacer-dote. "E preciso ler os
sinais e seguir com a torrente".
Controlei a vontade poderosa de espancá-la. "Cale-se", eu gritei. "Já suportei o
bastante de suas bobagens pretensiosas - não piore as coisas, porque já estão bem ruins".
Ela tentou apresen-tar-se novamente como um instrumento do destino, mas eu a
silenciei com um olhar. Finalmente, para meu profundo alívio, meu vizinho gentil e
altamente habilidoso conseguiu retirar a faca arruinada do triturador que, felizmente, não
sofrera dano. No dia seguinte, tomei providências urgentes para substituir Moira.
Minha última ajudante, Colleen, ficou quase até o fim de meu drama de dezoito
meses. Exceto por seu hábito infeliz de tirar folgas não-programadas e de oferecer as
desculpas mais esfarrapadas por suas ausências frequentes, era muito eficiente.
Colleen parecia-se com um pardalzinho robusto, resistente e adorável; sem ter
completado dezessete anos, ainda, já fora maltratada pela vida e, assim, programada
para o desapontamento e fracasso.
Era uma menina limpa, organizada, detalhista e - quando aparecia para trabalhar -
extremamente confiável, permitindo-me passar grande parte do dia sem me preocupar
com as tarefas da terapia.
Quando não aparecia - sempre telefonando no último momento com algum álibi
criativo -, eu precisava fazer sozinha todo o serviço. Ainda bem que esses episódios
ocorreram durante a última fase da terapia intensiva, quando eu já tinha suficiente força e
energia para fazer todas as tarefas por conta própria, sem cair de fadiga, até a noite.
Contudo, na fase inicial, durante a primavera de 1981, a ideia de poder recuperar
toda essa energia parecia absurda. Minha dieta de baixa proteína mal me permitia
funcionar e não me deixava margem para qualquer esforço extra. Uma vez, quando o
suprimento de fígado deixou de vir por quase duas semanas, sofri ataques horríveis de
tonturas, como as heroínas dos romances vitorianos.
No geral, porém, eu me sentia bem, sem dores e esperando por outras crises (já
que não tivera nenhuma desde meu desastrado vôo para casa) e anotando cada semana
que passava em meu diário, para marcar a conquista de ter sobrevivido mais sete dias.
Em um belo dia de primavera, quando minhas pequenas macieiras estavam prestes
a florescer, recebi uma carta de Becky, com um selo dos correios da Califórnia, em vez
daquele de Balti-more, como sempre. "Sei que isso a chocará", ela escreveu. "Voltei à
clínica La Gloria seis semanas depois de tentar a terapia em casa. Tive uma infecção que
exigiu antibióticos fortes. Isto, por sua vez, criou a necessidade de suspender todos os
medicamentos da terapia. Entrei em contato com o dr. Arturo e ele sugeriu que eu voltasse,
para ser estabilizada".
Sua caligrafia parecia fraca e desigual. Meu coração doía, a cada linha. "O vôo até
aqui foi horroroso. Cheguei há duas semanas, estou confinada ao leito e combatendo uma
batalha inglória.
Tiraram raios-X de meus pulmões e, agora, estão esperando o raio-X anterior que
fiz em Balti-more, para compararem o ritmo de crescimento e decidirem o que fazer".
Continuei lendo, com lágrimas rolando por meu rosto, embora eu não estivesse
chorando; era como se eu ouvisse a voz suave de Becky, sempre se desculpando, através
de uma grossa cortina. "Mas estou contente que, no geral, a terapia esteja dando certo
para você", ela dizia, ao encerrar a carta. "De qualquer forma, querida, continue com sua
luta. Deus a proteja".
Respondi imediatamente, endereçando a carta à clínica, pedindo notícias, não
importando quão breves, mas sabia que não receberia nenhuma. Aquele momento
estranho e emocionante na La Gloria, em janeiro, quando eu soube com certeza
assustadora que uma de nós, Becky ou eu, jamais se recuperaria, agora me assombrava.
Tudo o que eu sabia sobre Becky sinalizara, desde o início, que ela era gentil
demais, auto-anuladora demais e delicada demais para lutar por sua vida, mas mesmo
assim eu tivera esperança de que, sob pressão, ela pudesse mudar o suficiente para
reverter ou, pelo menos, estacionar sua doença.
Bem, eu estivera errada e agora me sentia imensamente triste. Depois da partida de
Dorothea, acendi a grande vela azul que John e Catherine me trouxeram de Rocamadour,
o antigo santuário francês da Madonna Negra, e me sentei em silêncio, pensando em
Becky.
Não tive mais notícias dela. Algum tempo depois, em resposta à minha carta,
Charlotte escreveu e confirmou que Becky havia saído da clínica e voltado para casa, em
muito mau estado, e provavelmente já falecera. Quando recebi a carta, porém, eu já havia
trabalhado meu luto.
Logo depois, recebi um telefonema de Karen, a jovem garota que parecia mais
morta que viva, quando a conheci na clínica La Gloria. Ela estava de volta a Londres,
sentindo-se muito melhor, e considerando muito difícil fazer a terapia em casa. Falamos
bastante, comparando anotações e trocando dicas práticas.
Fiquei imensamente feliz por ouvir sua voz animada. Não podíamos visitar uma à
outra - morávamos uma em cada lado da cidade -, mas concordamos em manter contato
por telefone.
Acendi minha vela azul novamente, desta vez para comemorar. Naquele momento,
eu parecia existir em um nível de experiência, no qual um gesto primitivo, como acender
uma vela, podia ter diversos significados.
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CAPÍTULO 16
NÃO CONSIGO RELATAR ADEQUADAMENTE SOBRE A fase final da terapia
intensiva. A verdade é que nem eu mesma sei direito. Tudo o que sei é que esta foi uma
espécie de travessia do deserto, uma longa e lenta jornada por terras estranhas, com
apenas alguns marcos para me orientar, mas abençoada por vários oásis que se tornavam
mais brilhantes, à medida que o tempo passava.
Tudo o que eu menos gostava - confinamento, monotonia, isolamento, passividade
forçada - se tornou parte da minha rotina diária, a tal ponto que até mesmo as queixas
sobre essas coisas teriam sido previsíveis e, portanto, inúteis.
Finalmente, comecei a aceitar minha condição. Tudo bem, este foi um período de
monotonia e encarceramento, de foco centrado no corpo e falta de estímulos, sem que
protestos e indignação pudessem mudar algo; talvez fosse melhor seguir em frente e ver o
processo como um curso extraordinário e altamente irregular na arte da aceitação.
Tendo estudado filosofias orientais durante anos, eu agora tinha a oportunidade, ou
melhor, a tarefa inevitável, de colocá-las em prática. Assim, tentei, falhei e tentei várias
vezes, para praticar a aceitação e obter uma visão fiel da realidade que marchava em
frente com a rotina implacável de dieta, sucos, enemas, medicamentos, óleo de castor,
injeções, exercícios, bons dias, maus dias, crises, ataques de ansiedade e pânico, surtos de
apreensão, cogitações e dúvidas; mas, em um nível mais profundo, eu muitas vezes
capturava uma nota diferente, que me permitia transcender o lado excessivamente tangível
da existência por alguns instantes e também sinalizava que eu me movia na direção certa.
Tal nota era indescritível; por muito tempo, fui incapaz de colocá-la em palavras,
até que, finalmente, o que me veio como a melhor aproximação verbal foi um verso dos
Upanishads ( tratados metafísicos, escritos por sábios hindus, em busca das verdades
fundamentais da existência ) : "Oh, minha alma, Iembre-se das batalhas passadas, lembre-
se ! Oh, minh'alma, lembre-se das batalhas passadas, lembre-se ! ".
Era uma mensagem estranha, chegando em uma realidade imensamente limitada
por pilhas de cenouras cheias de terra e por um senso profundo de exílio, mas parecia
adequada; assim, aceitei-a com alegria.
A rotina diária era frequentemente interrompida por dificuldades práticas. Contudo,
não importando se o problema era a prensa para sucos que quebrara ou minha ajudante
que precisava de uma carona lá no outro lado de Londres, por causa de uma greve dos
ônibus, Hudie sempre dava um jeito, como um anjo da guarda. Nada era demais para
ele, nada perturbava seu otimismo, alegria e carinho dedicado; nem mesmo meus ataques
de comportamento irracional.
"Por que você nunca perde a paciência comigo ?", perguntei-lhe um dia, quando
nem eu mesma suportava mais meu comportamento desagradável, irritável e infantil. "Se
você continuar reprimindo todas essas coisas negativas, elas aparecerão no momento
menos propício. Eu gostaria que você não fosse tão bonzinho!"
Ele encolheu os ombros, despreocupado. "Você tem todo o direito de ficar
impaciente e irritada de vez em quando, vivendo como vive agora. Quando estiver bem,
lhe darei o troco". E, com seu coração generoso, encerrou o assunto.
Eu tive pequenos prazeres, tais como minha primeira porção de queijo sem gordura
e pão sem sal, autorizados por Charlotte no sexto mês da terapia. Ambos pareceram
incrivelmente deliciosos, como alimentos dos deuses. As vezes, eu conseguia uvas sem
defensivos agrícolas ou um melão cultivado organicamente, e esses luxos raros
despertavam minhas papilas gustativas, até que o próximo nabo cozido levava-as ao coma
novamente.
Os alimentos e bebidas proibidas, que eu mantinha para visitantes, me
preocupavam apenas ocasionalmente. Acessíveis, mas banidos pela terapia, eles me
faziam entender o que um eunuco teria sentido em um harém. Apenas uma vez, em
dezesseis meses, senti-me fortemente tentada a trapacear a terapia, livrar-me de todas as
restrições e, como um símbolo de rebeldia, sair e comer uma refeição indiana suntuosa,
mesmo se esta me matasse (o que provavelmente teria ocorrido).
Tendo me deixado envolver pela fantasia até esse ponto, descobri que os sabores
docemente recordados do curry e do molho picante levavam-me a uma agitação
emocional que abastecia a tentação. Na mesma noite, meu inconsciente enviou-me uma
reprimenda vigorosa, na forma de um sonho que mostrava meu signo zodiacal, o
escorpião, agarrando-se a uma rocha durante uma tempestade.
Ele era uma criaturinha marrom, açoitada pelo vento e chuva, mas continuava
agarrado à rocha, parecendo tão indestrutível quanto esta, indiferente à tempestade.
Mensagem recebida, pensei. Aquela imagem insignificante e nada heróica mexeu
mais comigo do que teria ocorrido com a visão de um guerreiro de armadura brilhante.
Meu corpo continuava restaurando-se em um ritmo constante. Depois de seis meses,
o lado direito da enorme excisão em minha perna direita já se refizera totalmente. No lado
esquerdo, mais devastado, o progresso era mais lento.
Outras partes do meu corpo também mostravam sinais de reparo de antigos
ferimentos, como Charlotte previra. Em cada um dos casos, o antigo problema tornava-se
pior, às vezes de um modo alarmante, antes de ser eliminado para sempre. E assim, uma
a uma, minhas partes imperfeitas juntaram-se a esta grande rodada de limpeza primaveril
- meu olho esquerdo, sempre o mais fraco dos dois, minha costela fraturada cinco anos
antes e incompletamente soldada, meu joelho direito machucado na adolescência,
pioraram bastante, antes de serem definitivamente curados.
Dois pequenos exemplos, nesta cadeia de auto-regeneração, tinham natureza
cosmética. Minhas sobrancelhas grisalhas, que precisavam sempre ser retocadas,
tornaram-se escuras novamente, enquanto uma grande mancha marrom em minha
mandíbula, que o dr. Colville, o dermatologista, chamara de mancha irremovível causada
pelo envelhecimento, simplesmente desapareceu.
Esses pequenos sinais de rejuvenescimento agradaram-me imensamente, não
apenas por questões ligadas à vaidade, mas também porque, considerados em conjunto
com as tarefas mais importantes de reparo, eles provavam que o corpo podia restaurar-se
na segunda metade da meia-idade quando o conhecimento convencional dizia que ele
aceleraria rumo ao declínio irreversível.
Mas, então, será que alguém conhece com certeza os feitos de au-to-recuperação
que o corpo pode realizar, sob condições ideais ?
Contemplando as condições ideais criadas por meu regime diabólico, concluí que,
em dezesseis meses, eu consumiria um total de seis mil duzentos e quarentas sucos, o que
equivaleria a seiscentos e treze litros.
As crises eram o único fator imprevisível, em minha existência regulada pelo relógio.
Eu nunca sabia quando teria a próxima. Cada uma começava com fadiga profunda e
fome sobrenatural e continuava com náusea, dor-de-cabeça de rachar, dores vagas e
fraqueza alarmante.
As piores também traziam surtos de vômitos. Enjoo matinal sem gravidez e uma
ressaca horrível, sem os prazeres preliminares do álcool, eram um modo de descrever a
experiência, mas graças ao meu treinamento na clínica La Gloria, eu conseguia sentir
alguma satisfação - bem, pelo menos uma satisfação moderada -, sempre que ocorria
uma crise, já que esta mostrava que eu estava me desintoxicando rapidamente.
Sobrevivi a um total de vinte e seis crises durante este período. Algumas das piores
me atingiram nas noites dos dias-de-semana, quando eu estava sozinha em casa.
Inicialmente, achei isso deprimente, mas depois me acostumei a suportá-las sozinha. Uma
ou duas vezes eu reli o capítulo sobre as crises no Livro, para garantir que meus sintomas
batiam com aqueles da lista oficial.
Mais tarde, tive a ideia de escutar uma das fitas com palestras de Charlotte, e sua
voz clara e segura confortou-me imediatamente. Ela também me lembrou das muitas
vezes, no México, em que eu lhe perguntara, com petulância, por que ainda não tivera
uma crise.
"Ok, agora você tem uma", imaginei-a dizendo, com seu sorriso brilhante e seus
olhos azuis, "vá em frente com ela". Está bem, Charlotte - pensei, enquanto a fita rodava.
A maior parte das minhas crises durava vinte e quatro horas ou menos. Meu peso
estava de volta ao normal e Catherine declarou que eu não parecia mais etérea. Na
verdade, minha aparência era mais saudável que a de alguns de meus visitantes, que
pareciam pálidos, cansados, com olhos sem brilho; cada vez mais, era eu quem se
preocupava com a saúde de meus amigos, em vez do contrário.
A pior parte da travessia do deserto era que eu ainda precisava lidar com períodos
de raiva intensa; nada tão violento quanto meu ataque de dez dias em La Mesa, mas,
ainda assim, eram bem explosivos.
Novamente, reconheci esses surtos de ira barulhenta, resmungona e malvada como
a fúria irracional de uma criancinha, de mim mesma aos três ou quatro anos, furiosa por
ter de usar roupinhas delicadas e luvas brancas e sem jamais poder me sujar, berrar de
raiva ou, simplesmente, ser eu mesma.
Esta negação da raiva infantil, coroada por várias décadas de ira reprimida na
idade adulta, começava a vazar agora, inundando-me de mau-humor, agressividade e
maldade pura, e eu sabia que precisava vivenciar e liberar tudo, antes de recuperar meu
equilíbrio.
Cada ataque de raiva destruía mais um pedaço de minha auto-imagem, até que
descobri, para meu alívio, que não restara nada. Isso era maravilhoso. Minha auto-
imagem antiga e, infelizmente, muito parcial, precisaria ser reciclada; de qualquer modo, e
eu não tinha pressa de substituí-la até ter uma ideia melhor dos monstros ferozes dentro de
mim que esperavam ser liberados.
Entre meus ataques de fúria, porém, eu começava a sentir paz e prazer reais, e uma
nova consciência da justiça de tudo, incluindo minha pequena existência. Esses períodos de
felicidade correspondiam ao bem-estar físico que sentia entre as crises, como se a
desintoxicação drástica do organismo estivesse ligada inseparavelmente a um processo
interno paralelo que lançava para fora, com igual força, todas as minhas emoções antigas
e negativas e outros resíduos tóxicos. Ambos os processos eram dolorosos, mas
necessários; ambos traziam altas recompensas.
Enquanto passava por este duplo castigo, eu também comecei a buscar terapias
adicionais, que pudessem acelerar minha recuperação. Depois de um ou dois fracassos,
por recomendação do médico de uma amiga, ingressei em uma série de tratamentos
semanais com Joe Corvo, curandeiro conhecido que praticava a re-flexologia. Apesar de
seu sobrenome, Joe revelou-se uma pessoa doce e gentil, abençoado com dons
impressionantes; ex-mineiro e ex-estudante de canto lírico, transformou-se em terapeuta
alternativo, atraindo uma grande clientela internacional.
Em nosso primeiro encontro, ele explicou sua filosofia, que me pareceu muito
semelhante aos princípios de Gerson. A doença, segundo ele, era causada pelo acúmulo
de toxinas no corpo; a saúde podia ser restaurada apenas pela remoção de toda
congestão, venenos e bloqueios.
Porém, diferentemente dos profissionais de Gerson, Joe acreditava que as toxinas
cristalizadas eram depositadas em torno dos feixes de terminais nervosos, nos pés (e em
menor grau nas mãos, braços, cabeça e costas) e precisavam ser eliminadas pela
massagem especial na qual se especializara.
Disse-me que, depois que as toxinas fossem eliminadas do corpo, a doença
desapareceria. Ainda segundo ele, a verdadeira cura só viria da "administração superior",
que era seu termo para Deus. Eu não discordava de nenhum de seus princípios e, assim,
pedi-lhe que fosse em frente.
Por várias semanas, o tratamento de Joe foi extremamente doloroso. Até mesmo a
manipulação mais suave dos pontos de pressão nas solas de meus pés, correspondentes
ao fígado, rins, pâncreas e sistema linfático, faziam-me cerrar os dentes, me retorcer e
pedir clemência - mas apenas quando ele trabalhava em meu pé direito. No esquerdo, eu
sentia apenas um leve desconforto.
O contraste entre os dois lados era surpreendente e confirmava a opinião de Joe de
que meu lado esquerdo, razoavelmente saudável, estava mantendo o resto de meu corpo.
Em vista de minha reação de agonia com sua massagem, Joe precisou trabalhar
lenta e pacientemente. Ainca assim, os resultados foram rápidos e miraculosos, nas duas
ocasiões em que eu rompi acidentalmente o ponto central e muito fino de meu enxerto de
pele, causando feridas que, como eu já vira no passado, levariam até seis semanas para
fecharem.
Em ambas ocasiões, Joe fez massagem especial e cuidadosamente localizada e,
para minha perplexidade, ambos os ferimentos curaram-se perfeitamente em quarenta e
oito horas, em vez de ficarem abertos e vazando líquido por semanas, como havia
ocorrido no passado.
Eu estava atónita e muito feliz. Joe não entendeu o motivo para tanta alegria. Para
ser verdadeiramente científica, eu deveria ter prejudicado deliberadamente o enxerto uma
terceira vez e, depois, me afastado de Joe para ver quanto tempo o ferimento levaria para
curar-se, mas nós dois achamos que os problemas já eram suficientes, sem causarmos
mais um.
Finalmente, a dor causada pelos dedos firmes mas cuidadosos de Joe diminuiu
tanto que eu já conseguia manter uma conversa normal durante o tratamento, com apenas
um gritinho ocasional; claramente, as toxinas estavam sendo rompidas e eliminadas. As
vezes, quando eu me sentia abatida, Joe cantava para mim durante toda a sessão; às
vezes, ele trabalhava em silêncio total, perdido em algum devaneio intuitivo.
Cada tratamento me fazia sentir melhor, mais limpa e com mais energia. Durante
aquele longo período, ele foi um grande aliado, ajudando meu corpo a se curar e
melhorando minha confiança, que ameaçava afundar. Eu ainda o consulto para o
tratamento estranho de manutenção e para provocá-lo, quando até mesmo a mais forte
pressão de seu dedo de aço não me faz sequer tremer.
O pior revés em todo aquele período ocorreu, ironicamente, no segundo aniversário
de meu encontro inicial com o dr. Lennox, quando eu descobri uma nova inchação,
próximo ao tumor em minha virilha, um caroço longo, estreito e duro, que me levou ao
pânico completo.
Outro tumor - pensei, com falta de ar pelo choque; o melanoma decolou e se
começar a se espalhar agora, no décimo mês da terapia, nada o deterá. Experimentei o
mesmo medo maciço que sentira quando o dr. Lennox descobriu o nódulo em minha
virilha.
Senti-me presa em uma armadilha e traída, novamente, desta vez pela terapia,
cruelmente retirada de meu senso de segurança e proteção. Ah, não, não, gemi
internamente, não pode ser, não pode ser, obedeci todas as regras e nunca me desviei
delas!
Agora, eu deveria ter pelo menos um fígado meio renovado e órgãos sadios para
me proteger... olhe aqui, dr. Gerson, não é isto o que o senhor afirma em seu livro.
Por algum tempo, até Hudie foi contagiado por meu sofrimento e desolação, mas
então nos acalmamos e eu decidi dar alguns telefonemas rápidos. Charlotte, que consegui
localizar na Califórnia, ordenou que eu voltasse à versão mais intensiva da terapia por três
semanas, no mínimo. Reclamei, mas obedeci, sen-tindo-me como uma prisioneira-modelo
que, subitamente, vê retirados todos os seus privilégios duramente conquistados.
O dr. Montague, que marcou uma consulta imediata, achou que a inchação podia
ser apenas uma glândula linfática inflamada que estava drenando o tumor, mas confessou
que não podia ter certeza, sem uma biópsia, que Charlotte já vetara. Ele concordou com
isto, porque, se a nova inchação fosse cancerosa, cortá-la apenas espalharia o problema.
"O que conta, no final", o dr. Montague disse em sua voz gentil e precisa, "é a
atitude íntima do paciente e seu estado de espírito. Você estava em paz, quando este
inchaço apareceu ?" Assenti. "E sua vida interior... você tem feito meditação ?".
"Não tanto quanto deveria e certamente não com a frequência que deveria", eu
admiti. "Talvez meu erro esteja aí. Muito corpo e ainda não o suficiente em termos de
alma.
Tentar ficar bem, como se minha doença fosse puramente física, quando sei que
não é este o caso. Ah, o senhor sabe há quanto tempo eu venho tentando consertar esta
deficiência, mas agora realmente não posso esperar mais. Se não romper esta... noite
escura da alma, meu corpo estará em maus lençóis novamente". Agradeci aos céus,
intimamente, por ele ser o tipo de médico a quem se pode dizer isso sem medo de rejeição
ou do ridículo.
A caminho de casa, entre a esperança e o desespero, minha mente permaneceu
vazia. Apenas ao fundo eu podia sentir aquele suspiro familiar. Ah, minh alma, lembre-se
das batalhas passadas, lembre-se.
Eu precisava de ajuda para me conectar novamente com meus recursos internos.
Catherine respondeu ao meu chamado de aflição imediatamente, visitando-me e me
ajudando a realizar o relaxamento de Simonton e o exercício de visualização que eu
negligenciara desde que o conhecera, dez meses antes, quando me concentrara apenas na
terapia física. Catherine gravou o exercício em fita de áudio, para que eu pudesse praticá-
lo sem ter de consultar as instruções no livro de Simonton.
Realizei o exercício duas vezes por dia, durante dois meses, visualizando meus
leucócitos em uma variedade de formas - como tubarões assassinos ferozes, como cães
com dentes à mostra, ou operários com furadeiras pneumáticas - atacando e eliminando o
tumor, que também aparecia sob vários disfarces.
Aquele que mais me divertia era uma massa compacta de lesmas negras -
altamente apropriado, já que lesmas eram a perdição da minha vida de jardineira. A
visualização ia muito bem, mas o tumor recusa-va-se a desaparecer ou pelo menos
encolher.
Isso me aborrecia, até que percebi que o oncologista, dr. Carl Simonton, e sua
esposa psicóloga haviam desenvolvido seu sistema para pacientes de terapias ortodoxas
para câncer, pessoas que equacionariam o desaparecimento dos tumores com cura.
Acontece que os seguidores do dr. Gerson, não-ortodoxo, não compartilham desta
visão; na verdade, eu sabia que o corpo com frequência encapsulava o tumor, construindo
uma capa resistente em torno deste, que era à prova de leucócitos; por essas razões, a
visualização provavelmente não funcionava da maneira projetada.
Entretanto, já então eu finalmente me convencera do valor terapêutico da
visualização, do uso da imaginação para reforçar processos orgânicos, e não queria
perdê-la. Assim, modifiquei o exercício, mudando-o de uma expulsão do tumor para algo
que reforçaria o sistema imunológico e os órgãos vitais. Isso funcionou ? Eu não sei.
Porém, o segundo inchaço, que me assustara tanto, não foi seguido por outros
caroços. Depois de dois meses, quando achei que meu trabalho com a visualização
cumprira seus propósitos, deixei-a de lado.
Contudo, no começo do processo, no primeiro dia do ano novo, Catherine também
me auxiliou em duas sessões de visualização orientada. Essas eram maratonas regulares.
Depois que tiramos a tampa de meu material acumulado, não havia fim para as coisas
que buscavam expressão na forma de símbolos vívidos e poderosos, de figuras
arquetípicas, de cenários bizarros e belos e de milhares de imagens variadas que o
inconsciente derrama com tal precisão, maestria e esperteza, se o excitamos com as
técnicas corretas.
"Você criou o hábito de salvar minha vida uma vez por ano, no dia de Ano Novo",
eu disse a Catherine, depois de nossa segunda sessão. "Ano passado, você descobriu a
terapia de Gerson, agora está limpando minha psique. O que posso lhe dizer ? 'Obrigada'
parece totalmente inadequado".
Ela me fez sinal para silenciar e continuou anotando suas observações sobre a
visualização que desejava deixar comigo, para consulta no futuro. Ela parecia-se
totalmente com a terapeuta profissional em pleno trabalho, mas a amiga incrível também
se mostrava, e eu sabia que ela sabia o que eu tentava lhe dizer.
O material que emergira durante aquelas duas sessões me manteve ocupada
durante um longo tempo. O trabalho era árduo, também, um pouco como garimpar no
meio do lixo de um aterro e tentar construir ali um jardim.
À medida que eu avançava, fui levada ao contato com facetas desconhecidas e, em
grande parte, inaceitáveis de mim mesma. Tive de reconhecer atitudes falhas, pecados de
omissão, um grau surpreendente de rigidez, medo do sucesso, expectativas negativas e
camadas profundas de tristeza negada.
O mapa dos fatores psicológicos que provavelmente haviam contribuído para minha
doença começou a tomar forma, apenas para levar-me a áreas ainda mais profundas que
deveriam ser exploradas. No fim, consegui montar o gráfico do padrão de vida que me
levara inevitavelmente à doença, e que me ensinou o suficiente para algumas vidas. Mas
esta é outra história.
As figuras simbólicas, trazidas à consciência por meio da visualização orientada,
permaneceram comigo até a assimilação de seu significado. Uma das lições mais difíceis
deste processo foi reconhecer minha tendência para me agarrar a antigas mágoas,
conflitos do passado distante, recordações dolorosas e outras cargas obsoletas, e
reconhecer que eu me forçava a carregá-las teimosamente, muito depois de terem perdido
toda a relevância.
Agora, eu aprendera a liberar o passado, assim como aprendera, recentemente, a
aceitar o presente com todas as suas limitações. Grande coisa - pensei, azeda -, até que
ponto minhas tarefas podem tornar-se elementares ? Como é que não as dominei muito
tempo atrás, apesar de minha antiga familiaridade com a teoria de uma vida simples ?
Não havia motivo para tentar responder a esta questão.
No curso de abandonar as sombras do passado, tive de reexaminar e descartar
meus antigos ressentimentos, uma necessidade salientada por vários terapeutas
alternativos, que acreditam que guardar velhos ressentimentos é um traço típico da
personalidade propensa ao câncer.
Segundo eles, o ressentimento perpetua as mágoas do passado, juntamente com
sua carga emocional plena, de modo que a dor antiga é revivida várias vezes,
acompanhada por seu complemento original de estresse, tensão e depressão, que agem
como um freio sobre as defesas do corpo.
Sim, isso fazia sentido; embarquei no processo imediatamente. Isto consumiu
tempo e trouxe algumas surpresas, como ter de reconhecer que vários de meus
ressentimentos haviam sido causados por mim mesma. Contudo, perseverei e, no começo
de um belo domingo, completei a tarefa de um modo que julguei satisfatório.
Agora, não havia mais amargura, nem mesmo com relação a dois amigos que
haviam me rejeitado dolorosamente, muitos anos antes; eu liberara a eles e a mim, e me
senti muito melhor por isso.
Naquela manhã, Hudie levou-me a um passeio para aproveitarmos a luz solar
fugaz. Quando ele diminuiu a velocidade para entrar na via principal e depois passou por
um grande hospital na parte central de Londres, eu vi uma figura solitária parada junto à
entrada principal. Era o dr. Lennox.
Mesmo naqueles poucos segundos, pude ver que ele parecia cinzento, cansado e
carrancudo, com o ar abatido de um homem que deixa sua máscara cair quando pensa
que ninguém o observa. Abri a boca, surpresa, e escondi meu rosto entre as mãos. "Sim, é
ele", Hudie disse baixinho. Eu estava chocada demais, para falar.
O que me surpreendeu foi que, em meu anseio determinado por perdoar, aceitar e
liberar, eu havia esquecido - esquecido ? - da única pessoa por quem eu sentia o maior e
mais amargo ressentimento, a quem eu culpava a cada dia de minha vida por ter mutilado
meu corpo, sem curar minha doença e, acima de tudo, por não ter demonstrado nenhuma
solidariedade ou envolvimento, quando mais precisei.
Como pude esquecê-lo ? E se isso acontecera, até que ponto o resto daquele meu
trabalho podia ser considerado honesto ?
O que me chocou ainda mais foi a coincidência esquisita, se é que era coincidência,
que me fizera vê-lo na mesma manhã em que pensei que já havia trabalhado meus
ressentimentos de uma vez por todas.
A coincidência era maior ainda, já que o carro de Hudie passara, em um passeio
sem rumo, por aquele hospital particular em uma manhã de domingo, no exato momento
em que o dr. Lennox saía do prédio, mas ainda não entrara em seu carro.
A velocidade e previsão com a qual minha omissão se mostrou lembrou-me de
minhas fantasias da infância, de retaliação divina instantânea por maus atos, com a mão
majestosa de Deus passando fulminante pelo teto da sala de aula para castigar as
criancinhas pecadoras.
Tudo isso era dramático demais, e me senti em pedaços. "Não chore, querida",
Hudie disse com suavidade, interpretando mal minhas lágrimas. "Você não precisará vê-lo
nunca mais". Eu não podia explicar por que estava chorando e simplesmente aceitei seu
toque gentil em meu braço.
Nas semanas seguintes, porém, precisei de muito tempo e de uma dor considerável
para resolver meu conflito interno com o dr. Lennox e para aceitar, sem rancor, que ele
apenas fizera seu trabalho, o melhor que sabia, e que era inútil culpá-lo por ser quem era,
um produto da universidade que cursara e das limitações de sua profissão.
Quando finalmente consegui sentir pena por sua aparência triste e derrotada,
naquele domingo de manhã - será que ele perdera um paciente ou sofrera algum revés
pessoal ? -, eu soube que, finalmente, completara minha tarefa.
Muitas outras coisas aconteceram no plano interno, durante aqueles meses finais. O
mais importante foi a percepção de que nem o câncer nem minha recuperação eram as
coisas mais importantes de minha vida, que ambos eram partes de meu padrão, mas não
o padrão em si, e que era hora de eu olhar através de janelas mais largas.
Por fora, tudo continuava como antes. Meu corpo não produzira mais caroços e
continuava mais forte e saudável a cada dia. Eu ainda não gostava das restrições da
terapia, que se reduziam gradualmente, ainda praguejava e reclamava quando minha
ajudante faltava ao serviço, quando as cenouras chegavam com um dia de atraso e a
necessidade de fazer mais um suco me enchia de tédio em último grau.
Contudo, a perspectiva e a ressonância haviam mudado e eu saía lentamente das
profundezas escuras, rumo à superfície, outra vez.
Meus contatos com os pacientes americanos que eu conhecera no México eram
escassos e eu suspeitava que logo cessariam completamente; todos eles detestavam
escrever cartas, e manter contato por telefone, que era seu método preferido, era caro
demais.
Ainda assim, recebi uma longa carta de meu amigo Carl, anunciando que seu
tumor havia sido removido em um famoso hospital da Califórnia. Ele anexava uma cópia
do relatório da biópsia, que era uma leitura fascinante para quem já conhecia o jargão da
medicina.
De acordo com o documento, o caroço de Carl continha algumas células mortas de
melanoma; as células vivas restantes, de aparência atípica - afetadas pela terapia ? -
estavam ensanduichadas entre camadas de tecido conjuntivo, e todo o tumor estava
perfeitamente contido em uma cápsula espessa de dois milímetros, produzida pelo corpo
para manter sob controle o crescimento maligno.
"Antes de removê-lo, eu estava convencido de que ele levaria anos para se
dissolver", Carl escreveu. "O encapsulamento provavelmente teria se tornado ainda mais
espesso, e provavelmente meu corpo optou por esta forma de combater o câncer. O
cirurgião realizou um verdadeiro trabalho de cirurgia plástica na cicatriz e o resultado final
me agradou muito", ele acrescentou, em seu estilo lacônico habitual.
Alguns meses mais tarde, ao voltar para sua casa, Carl en-viou-me uma longa
mensagem gravada, com detalhes completos de sua dieta e estilo de vida, adaptados para
o mundo tóxico fora da terapia de Gerson. Ele recuperara-se completamente, como
sempre disse que faria, e celebrei esta vitória em silêncio, mas com o maior prazer.
Outra causa para celebração veio em outubro de 1981, quando cinquenta
pacientes curados, anteriormente considerados como incuráveis, compareceram a uma
convenção em homenagem ao centenário do nascimento do dr. Gerson.
O simples conhecimento de que estavam todos lá, sob o mesmo teto em San Diego,
sãos e salvos e usando suas cicatrizes de batalha em vez de medalhas, melhorou meu
ânimo imensamente.
Também recebi notícias de perdas. Dóris, a ex-enfermeira negra, estava morta.
Flora, a senhora idosa que começava a se recuperar tão bem de suas aflições senis, recaiu
nelas de novo, quando foi para casa, porque sua família achou impossível mantê-la com
aquela terapia terrivelmente exigente.
Um mês alimentando-se de comidas normais compradas em supermercado e sem a
rotina de Gerson foi o suficiente para sua recaída na senilidade. Também havia o caso da
jovem mulher que conheci na clínica La Gloria, quando estava ainda cheia de câncer, mas
começava a melhorar. Ela morreu algum tempo depois, de causas não ligadas ao câncer e
sem esta doença; esta foi uma grande vitória.
Eu mantinha contato regular com Charlotte, enviando-lhe os resultados de meus
exames sanguíneos e lhe fazendo incontáveis perguntas. Próximo ao fim da terapia
intensiva, Charlotte en-viou-me algumas diretrizes nutricionais.
Ela aconselhou-me: "Quando terminarem seus dezoito meses de terapia, não caia
de boca nos bifes e outras comidas comuns. Aja com bom-senso, reduza os sucos
gradualmente, acrescente proteínas com cuidado, observe seu ácido úrico. E nunca, nunca
volte a consumir sal. Você não quer passar por tudo isso novamente". Ela tinha razão: eu
não queria.
Para marcar o fim de meu ano e meio de terapia, dei uma pequena festa para meus
amigos mais íntimos e aliados, que me mantiveram em pé naquele período de batalha.
Aquela ocasião foi cheia de carinho, divertida e colorida, e trouxe vida à minha casa,
depois de um longo isolamento.
Em certo ponto, Catherine e eu nos retiramos para meu quarto, para alguns
instantes de celebração particular. Sentamo-nos, olhamos uma para a outra, abrimos
nossas bocas e as fechamos ao mesmo tempo; pela primeira vez, nenhuma de nós sabia o
que dizer.
Bem, bem", ela disse, quando nos recuperamos daquele momento raro de falta de
palavras. "Quando você voltou do México, prometi monitorar seu progresso e lhe
transmitir, de tempos em tempos, minha opinião sobre seu progresso. Parabéns, querida -
acho que você conseguiu, e está se saindo extremamente bem. Espero que seu prazer com
a recuperação seja tão grande quanto o que eu sinto".
Ah, sim", eu disse. "Estou muito feliz. Ainda assim, tenho esta sensação tola de ter
seguido uma espécie de roteiro confuso. Quer dizer - uma boa história deve sempre ter um
começo agradável e lento, chegando a um meio cheio de ação e excitação e, então, ao
grande final, feliz ou não.
omigo, todo o drama e ação acumula-ram-se nas fases iniciais, e tudo o que veio
depois foi a parte chata e monótona da jornada. Mesmo isso está esquisito agora, sem que
me venha um final adequado".
Entendo", Catherine disse, pensativa. "Suponho que, como escritora, você tivesse
preferido um enredo melhor".
Bem, sim, E especialmente, um final diferente. Estou encantada por estar saudável,
mas teria apreciado algum elemento adicional, algo definitivo e dramático... como
readquirir um dos cinco sentidos depois de tê-lo perdido antes da terapia, ou lançar longe
bengalas ou apoios cirúrgicos, qualquer coisa, apenas para ter um fim apropriado para a
história".
atherine ponderou por um momento. "Suponho que você poderia queimar seu balde
de enema em Piccadilly Circus", ela sugeriu. "De qualquer forma, o que a faz pensar que
sua história precisa de um final convencional ? Tanto quanto eu saiba, sua história está
recém-começando".
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CAPÍTULO 17
ATHERINE TINHA RAZÃO, FINS E COMEÇOS SÃO inseparáveis e o tempo é
contínuo; a única coisa a fazer quando encontramos marcos é saudá-los e seguir em
frente. Nossa breve conversa daquela noite foi um marco em si mesma, bem como uma
celebração de nossa amizade já comprovada ao longo dos anos.
partir de então, progredi firmemente, embora com cautela, rumo a um estilo de
vida mais normal, saindo regularmente sem sentir o puxão daquele cordão invisível que
me atou à máquina de suco, a cada hora, por tanto tempo. Era a hora de agradecer e de
começar a reconstruir minha vida, já que eu tinha certeza de que minha longa jornada de
doença, luta e recuperação finalmente terminara.
uando eu já estava virtualmente fora da terapia, exceto em termos de adotar uma
dieta sensata e beber um grande copo de suco por dia, parei de pensar no tumor que
repousava inalterado e quieto em minha virilha. Ele era tão duro ao toque que o dr.
Montague e eu geralmente o chamávamos de 'pedrinha'. Ele achava que o tumor
provavelmente se tornara encapsulado, talvez até calcificado, e eu concordava com sua
opinião.
m dia, Margaret Straus disse-me que minha história de caso não se qualificava para
inclusão entre aqueles de pacientes de Gerson 'incuráveis' e recuperados recentemente,
porque se me recusava a fazer uma segunda biópsia, não havia como provar que tivera
melanoma secundário. Isso me irritou um pouco.
E claro, eu lhe disse, eu não tinha prova médica aceitável, mas achava que, ainda
assim, meu caso não podia ser descartado, já que ainda tinha o próprio tumor secundário
e este deveria servir como prova.
Ah, sim, Margaret disse, mas eles podiam apresentar apenas casos plenamente
documentados e, no geral, um relatório datilografa-do do patologista era mais fácil de
manejar que um tumor em uma pessoa. Entendi seu argumento. As vezes, eu mesma
imaginava se manter o tumor em minha virilha não era um modo excêntrico e
inapropriado de armazenar minha história médica. Nessas ocasiões eu decidia, sem fixar
data, que algum dia iria removê-lo. Mas, por enquanto, não havia pressa.
E então, em novembro de 1983, meu tumor começou a crescer. Percebi o aumento
em seu tamanho pela primeira vez durante o banho, quando as pessoas geralmente
descobrem mudanças corporais assustadoras. Minha reação foi de confusão total, não de
medo.
Tanto quanto eu podia dizer, não havia razão nutricional, médica ou psicológica
para um descontrole da 'pedrinha'. Além disso, será que estava mesmo crescendo ou eu
estava imaginando coisas ?
Estava crescendo, e não era minha imaginação. Em meados de janeiro, não havia
mais dúvida sobre seu aumento lento, mas constante. Agora, eu estava realmente
intrigada. Eu me sentia tão saudável e forte quanto sempre, parecendo cheia de energia e
vitalidade; certamente, uma pessoa com um câncer recém-ativado não se sentiria assim.
Mas a apreensão começou a crescer. Lembrei-me, então, de como me queixara
com Catherine sobre o final nada dramático para minha saga. Será que o tumor
ofereceria um final dramático e, talvez, devastador, neste último ato ?
Ah, não, isso não. Eu não permitiria. Como um modo de combatê-lo, lancei-me em
visualização concentrada duas vezes por dia, ordenando que o tumor encolhesse. Depois
de três dias, a área da virilha e parte de minha coxa tornaram-se inflamadas e
permaneceram assim por toda a semana.
Isso era muito interessante, porque, nos termos da terapia de Gerson, uma
inflamação é um sinal favorável, que com frequência antecede o amolecimento e
encolhimento de tumores. Além disso, tal fato parecia provar que, pela poderosa
programação mental, eu era capaz de ativar o mecanismo correto de cura em meu corpo.
Isso era esplêndido. O único problema era que a pedrinha permanecia inalterada e
atrevida em seu crescimento.
Como eu não conseguia eliminar sozinha o problema, consultei o dr. Montague.
Após examinar-me, disse que meu estado geral era bom, mas teve que admitir que a
pedrinha estava maior. Tão intrigado quanto eu, sugeriu uma varredura da área pélvica.
Embora alguma radiação estivesse envolvida no processo, este era o único modo de
descobrirmos o que estava acontecendo. Zan-guei-me um pouco. Melanoma, de acordo
com tudo o que eu sabia, era sensível à radiação, mas concordei com a tomografia, já que
não havia alternativa.
Também escrevi para Charlotte, relatando a situação. A única mudança em meu
estilo de vida era que, desde o outono anterior, eu estava tomando comprimidos de cálcio
e magnésio por sugestão de uma amiga para prevenir a osteoporose. Além desse pequeno
extra, eu seguia fielmente suas instruções. Será que ela podia sugerir uma razão para o
aumento no caroço ?
Charlotte respondeu imediatamente, mas sua carta não me trouxe alívio. Em
primeiro lugar, ela me lembrou de uma passagem no livro de seu pai que afirmava
claramente que o cálcio e outros minerais não deveriam ser tomados por pacientes com
câncer, porque, em alguns casos, eles podiam reativar o crescimento de tumores. Além
disso, ela aconselhou-me a voltar à terapia intensiva completa, com treze sucos, cinco
enemas, medicamentos, tudo.
"Você deve fazer isto durante três meses", ela escreveu, "ou até a diminuição ou
amolecimento de seu tumor -ou até seu desaparecimento. Isto seria o que faríamos, se
você voltasse a La Gloria, com o acréscimo de tratamento com ozô-nio". Ela terminou sua
carta em tom esperançoso: "Você ficará bem novamente, não se preocupe".
Naquele momento, nem mesmo um raio enviado por Zeus teria me abalado tanto
quanto a resposta de Charlotte. Estudei O livro, sentindo vontade de bater em mim mesma
por ter esquecido a proibição de suplementos minerais pelo dr. Gerson, joguei todos os
meus comprimidos na lata do lixo e me sentei para pensar seriamente na questão.
A única certeza que eu tinha era que não poderia realizar a terapia completa em
casa nem por uma semana, menos ainda por três meses ou mais, uma vez que não
conseguiria lidar com suas demandas, física ou psicologicamente, e que precisava
encontrar alguma outra solução.
Hudie era a única pessoa que sabia deste último acontecimento, que considerou
com equanimidade, convencido de que não havia realmente nada de errado comigo.
Depois, contei a minha mãe, a Catherine, John e a mais duas amigas íntimas,
pedin-do-lhes para manter a novidade em segredo. Neste estágio, eu desejava esconder
de todas as outras pessoas, especialmente de meus contatos na área da terapia
alternativa, porque suspeitava que eles temeriam o pior e me considerariam como mais
uma vítima de câncer que perdera a batalha. E eu não tinha nenhuma intenção de permitir
que isso acontecesse.
Senti alívio quando o dia da tomografia pélvica chegou. O procedimento levou
quarenta minutos e tudo correu bem. Quando terminou, a radiologista que supervisionara
toda a varredura, na cabine do técnico, veio conversar comigo. "As imagens ainda estão
sendo processadas pelo computador", ela disse, "mas já vi algumas. Seu tumor está
completamente encapsulado - e isto é muito interessante. Não há sinal de anormalidade".
"Você quer dizer que o câncer não se disseminou ?"
"Sim. O tumor está bem definido e isolado".
"Que bom", falei, enviando uma saudação íntima à memória do dr. Gerson. "Você
consegue ver o que há dentro do tumor ?"
Ela sorriu. "Não, isso é impossível. Contudo, será que você se importaria de me
contar sobre esta terapia à qual se submeteu ? Pelo que seu médico falou, ela é bem...
incomum".
Ainda deitada na mesa plástica dura e desconfortável da sala de tomografia, eu lhe
ofereci um breve resumo da terapia. Enquanto eu falava, porém, parte de meu cérebro
dançava pelas boas notícias: a pedrinha estava encapsulada, solitária ebem definida, e
isso tornava seu crescimento inexplicável muito menos perturbador.
Os resultados da tomografia, duas grandes folhas de imagens de raio-X e o
relatório da radiologista, que o dr. Montague me entregou, tranqúilizaram-me ainda mais.
A radiologista dizia que o tumor estava suscetível à remoção cirúrgica. As vinte
imagens mostravam manchas confusas e composições abstratas em preto e cinza que,
como percebi, representavam o conteúdo de meu abdómen e área pélvica. Eram imagens
fascinantes, mas eu não sentia empatia ou sequer um senso de que tinham a ver comigo,
embora soubesse que os dois objetos gémeos que apareciam em várias das fotografias
eram meus rins e que o arco ousado e bonito envolvendo um amontoado de partes nas
sombras era, na verdade, minha pelve.
Tudo isso era muito interessante, mas eu só tinha olhos para o tumor, a 'pedrinha',
finalmente exposta, aninhada em minha virilha direita. O tumor era arredondado, com
mais ou menos cinco centímetros de diâmetro e parecia totalmente isolado. Com dimensão
entre uma bola de golfe e uma outra, de ténis, ele certamente crescera e aparecera, desde
sua descoberta pelo dr. Lennox, três anos antes.
"Até aqui, tudo bem", eu disse para o dr. Montague, "agora pelo menos consigo me
localizar. Mas e daqui por diante ? Será que devo remover essa coisa ?"
Ele examinou seu bloco de anotações e disse: "Não sei se posso responder a esta
questão. No geral, não sou favorável à cirurgia nesses casos, mas, com um tumor
encapsulado como o seu, talvez seja seguro. Eu gostaria de ouvir a opinião do pessoal da
terapia de Gerson".
"Eu também. Tentarei descobrir e lhe direi, depois", prometi.
Por alguns dias, porém, não fiz nada a este respeito e continuei com minha rotina
normal, como se esperasse por algum sinal ou presságio que me levasse à ação. Não tive
sinais.
Pelo menos, no nível consciente, tudo estava silencioso. Certa noite, contudo, senti
subitamente um influxo de energia, por falta de um termo melhor, semelhante a um
choque elétrico, surpreendente mas indolor, e eu soube que não havia mais o que esperar,
que havia chegado o momento de agir. Além do mais, eu também sabia o que precisava
fazer.
Liguei para Charlotte na Califórnia, relatei o resultado da tomografia e lhe
perguntei se deveria remover meu tumor encapsulado. "Sim, acho que é uma boa ideia",
ela respondeu, "desde que, depois, você entre em terapia intensiva por algumas semanas.
E, é claro, você deve escolher seu cirurgião com cuidado. O principal, porém, é a
terapia intensiva depois da operação. Se puder realizá-la em casa novamente..."
"Não, isso não é possível". Respirei profundamente e, então, mergulhei de cabeça:
"Eu gostaria de voltar a La Gloria, remover o tumor com um de seus cirurgiões e, depois,
permanecer na terapia intensiva algumas semanas. Isso é o melhor a fazer, não ?"
"Certamente". Charlotte parecia satisfeita. "Este seria o melhor modo de fazer isso e
terminar com esse assunto de uma vez por todas. Quando você quer vir ? E quanto tempo
planeja ficar ?"
"Duas semanas no máximo. Com o preço da passagem aérea eu não poderia nem
isso, mas darei um jeito". Lá se vão minhas economias, pensei. A 'pedrinha' estava se
tornando tão cara quanto um bom diamante. Fixamos a data de minha chegada e nos
despedimos. Embora relutasse em voltar ao México, gostei da perspectiva de ver Charlotte
novamente.
O dr. Montague, a quem informei imediatamente, expressou sua aprovação, desde
que eu ficasse sob os cuidados de médicos de Gerson e me operasse com um cirurgião
aprovado por eles.
Os preparativos para minha viagem tinham a familiaridade de um filme já visto. Lá
estava eu novamente, do aeroporto de Gatwick para o aeroporto de San Diego, exceto
que, agora, em março de 1984, eu estava em boa forma, robusta e corada, a um mundo
de distância de minha aparência gravemente enferma e pálida de janeiro de 1981. Além
disso, minha bagagem era leve - eu levava minha segunda mala mais leve. Desta vez, eu
dissera a Hudie que logo estaria de volta.
Cheguei à clínica La Gloria na hora da janta. Senti o aroma poderoso e
inconfundível de sopa de Hipócrates, enquanto entrava no conhecido salão de jantar. O
mundo parece dar cambalhotas às vezes, pensei divertida, galáxias podem surgir e
desaparecer, mas, sempre que os pacientes de Gerson se reúnem, a sopa de Hipócrates
borbulha.
Uni-me a um grupo, em uma grande mesa. Minha vizinha pálida e nervosa indagou
a quem eu estava visitando, já que percebia que eu não era uma das pacientes. "Na
verdade, sou ex-paciente", confessei, "mas voltei para matar a saudade". Deixei por isso
mesmo.
Na manhã seguinte, a rotina precisa e incessante da clínica en-volveu-me
novamente, e deixei-me levar por ela, embora me sentisse como uma trapaceira, no meio
de tantos doentes. Charlotte chegou, parecendo jovial e vigorosa como sempre.
Conversamos longamente. Depois, conversei também com o dr. Arturo, que cuidaria de
mim. À tarde, ele trouxe consigo o dr. Ricardo, o cirurgião que escolhera para me operar.
O dr. Ricardo, profundamente interessado pela terapia de Gerson, examinou meu
tumor e, depois, estudou as imagens da tomografia com muita atenção. Disse-me que a
operação ocorreria em seu hospital de Tijuana, não na sala de operações menor da clínica
La Gloria, e ele usaria a técnica de bloqueio nervoso, em vez de anestesia geral que, de
acordo com a crença de Gerson, era altamente nociva ao sistema imunológico.
"Parabéns", o dr. Ricardo disse, no fim de nossa conversa. "Você derrotou as
estatísticas". "O que o senhor quer dizer ?"
"Bem, pacientes com melanoma maligno secundário geralmente vivem apenas de
seis a dezoito meses", ele disse, em tom alegre. "Você está indo muito bem".
Nosso próximo encontro ocorreu na sala de cirurgia de um hospital esplêndido, na
feia cidade de Tijuana. A cirurgia durou noventa minutos e, durante o procedimento, me
senti muito solitária, porque, embora estivesse totalmente consciente, não podia entender
uma palavra da tagarelice em espanhol que fluía entre o dr. Ricardo, o outro cirurgião, o
anestesista e vários enfermeiros. Eles falavam rapidamente, em tons animados e divertidos,
e riam muito, o que me causou uma sensação horrível de exclusão. Ah, espere aí, pensei,
acho que eu também riria de suas piadas e, além disso, por que estão demorando tanto ?
"Como estamos indo ?", eu indagava ao dr. Ricardo, de vez em quando, ansiosa
para ser incluí da naquele processo, mas tudo o que obtinha eram palavras positivas, sem
detalhes. Uma ou duas vezes a anestesista, que tinha belos olhos castanhos, segurou
minha mão para me confortar, e gostei disso. Não senti dor, apenas pressão na área da
virilha.
Subitamente, uma enfermeira apareceu ao meu lado e me mostrou algo em um
prato de metal. Era o tumor, um objeto oval, branco-amarelado, do tamanho do punho de
uma criança, tão luso e inteiro como uma bola nova de borracha. "Então ele é assim...",
falei, estupidamente, para a enfermeira que não falava inglês - mas, de qualquer forma,
será que existe um modo apropriado, em qualquer idioma, para cumprimentar um tumor
re-cém-removido ?
A 'pedrinha' entrou novamente em meu campo de visão, desta vez aprisionada em
uma jarra de vidro, provavelmente a caminho do patologista. Era esquisito vê-la
desaparecer para sempre.
"Este é um caso muito interessante", o dr. Ricardo disse, quando tudo terminou e eu
fui transferida para uma maca. "Seu tumor não estava preso às suas adjacências, como os
tumores normais que aderem a músculos e órgãos e se ligam aos vasos sanguíneos; ele
apenas estava ali, como se esperasse para ser removido.
Havia um único ponto de ligação", ele prosseguiu, em seu inglês americano
levemente hesitante, "com um vaso sanguíneo, com o qual tive de trabalhar. E, é claro,
também precisei religar os gân-glios linfáticos, e tudo isso levou algum tempo. Mas um
tumor tão isolado assim é raro. Além disso, a cápsula é anormalmente espessa e
resistente. Saberemos mais quando chegar o laudo da patologia. Como você está ?"
"Bem, sem problemas", disse, com sinceridade. Se eu não tivesse recebido instruções
para não caminhar por alguns dias, teria levantado da maca, me vestido e pedido para ser
levada de volta à clínica La Gloria. Contudo, precisei passar aquela noite no hospital - e
quase morri de fome, porque a única comida disponível era uma xícara de gelatina roxa e
um copo de leite, que precisei recusar.
Entretanto, isso não importava, assim como também não importava a leve dor pós-
operatória. A principal parte de minha missão havia sido completada. Eu tinha certeza de
que o resto seria fácil.
De volta à clínica La Gloria, o dr. Arturo acrescentou o tratamento com ozônio à
minha agenda já apertada, explicando que este era usado rotineiramente em vários países
europeus e na América do Sul, há muito tempo. A clínica de Gerson introduzira a terapia
em 1983 e, desde então, as chances até mesmo dos casos muito avançado tinham
melhorado.
"O ozônio mata bactérias, vírus e fungos", ele disse. "Ele aumenta a oxigenação do
corpo que, como você sabe, é muito importante para pacientes de câncer e, pela
oxigenação extra, o organismo pode destruir o tecido do tumor".
Comentei, com cautela, que isso era maravilhoso, mas será que ele achava que eu
ainda tinha algum tecido de tumor que precisava ser destruído ? "Claro que não, mas
quero que você se submeta à terapia por uma questão de rotina depois de sua cirurgia,
apenas para garantir que tudo está limpo e para melhorar suas chances de recuperação.
O oxigénio adicional é bom até para pessoas saudáveis - pergunte a Charlotte, que
já o experimentou". As injeções intravenosas de ozônio, duas vezes por dia, realmente
aumentaram meu bem-estar, mas me lançaram em um 'coma' de tédio, pois precisavam
ser administradas com uma lentidão exasperadora para evitar a formação de bolhas na
corrente sanguínea.
E uma vez que as enfermeiras falavam muito pouco inglês, a hora do ozônio
arrastava-se, com imobilidade total e mutismo. Mas isso não importava. Tudo estava bem,
a incisão cura-va-se com rapidez e logo eu iria para casa.
O laudo da patologia chegou quando eu já estava me movimentando plenamente e
me sentia muito bem. Ele descrevia a aparência do tumor em detalhes e prosseguia,
dizendo que este crescimento encapsulado e bem definido continha muito tecido necrosado
- morto - e também agrupamentos de células de melanoma com metástase.
A última linha congelou-me. Enquanto eu fitava aquela frase, um calafrio grande e
ameaçador apoderou-se de mim e me desligou do resto do mundo. Agrupamentos de
células de câncer, pensei, em pânico, células vivas de melanoma, depois de todos aqueles
anos de terapia ?
Meu Deus, neste caso, eu jamais havia me recuperado, jamais derrotara minha
doença - ou não ? Eu não conseguia mais pensar com clareza. Tudo o que sabia era que
acabara de sofrer a maior desilusão de minha vida, uma amarga derrota.
Não conseguira acabar com o problema e não queria mais lutar. Naqueles poucos
minutos de choque, meu futuro pareceu evaporar-se. Tudo o que restava era a certeza da
derrota.
Charlotte entrou naquele momento e me viu no auge do desespero. Joguei-lhe o
laudo, tentando conter minhas lágrimas, mas ela me disse que já o havia lido. "Bem,
então, as notícias são ruins, não é ?", perguntei, rudemente. "E isso. Sou um fracasso da
terapia; é melhor me tirar da sua lista de sucessos. Se depois de todos esses anos eu ainda
tenho células vivas de melanoma..."
"Espere aí", ela falou, cortando-me. "Mas do que é que você está falando ?"
Encolhi os ombros, enquanto assoava o nariz.
"Você não tem células vivas de melanoma", ela disse. "Seu tumor encapsulado
continha algumas. Isso é totalmente diferente. Você é um sucesso da terapia, não um
fracasso".
"Não tive esta impressão", falei, amargurada.
"Espere um pouco. Certamente você conhece a rapidez com que o melanoma se
dissemina, depois de sofrer metástase, não é ?". Eu assenti. "Bem, seu tumor secundário foi
descoberto mais de três anos atrás, você passou pela terapia e não produziu mais caroços,
saiu da terapia algum tempo atrás e não produziu outros caroços, está viva e bem, e seu
tumor estava contido por uma cápsula de quinze milímetros de espessura".
"Quinze ? Isso é quase que uma blindagem!"
"Exatamente. Tudo foi retirado e você agora está em excelente forma. Assim, como
pode dizer que é um fracasso ?"
"Ah, mas e quanto a essas células vivas ? Por que ainda estio vivas ?"
Charlotte suspirou. "Provavelmente porque a cápsula as protegia", explicou, com
paciência. "Para que os elementosde extermínio do tumor, da terapia, não pudessem
chegar ao centro".
Ela desenhou um modelo da 'pedrinha' no ar para salientaro que dizia. "Não se
esqueça, a cápsula consiste de tecido benigno, de composição razoavelmente normal, de
modo que o sistema imunológico não o reconhece como uma matéria estranha que
precisa ser destruída.
Não é por acidente que as células vivas estavam em um ponto profundo dentro da
cápsula, cercadas por todo o tecido morto".
Meu cérebro começou a funcionar de novo. "O que você está dizendo é que a
cápsula funcionava nos dois sentidos", falei, com alguma hesitação. "Ela mantinha o câncer
lá dentro e a terapia no lado de fora, pelo menos até certo ponto. Em outras palavras, não
havia como derrotá-lo".
"Mas nós o derrotamos", Charlotte respondeu. "Seu corpo fez a coisa certa o tempo
todo. Ele defendeu-se da maneira mais eficiente. Por favor, pare com este absurdo de ser
um fracasso. Por que você não celebra seu sucesso, em vez disso ?" Ela sorriu e foi
embora, para continuar sua ronda.
Eu ainda tentava entender minha confusão quando o dr. Arturo entrou, parecendo
contente. Tanto o cirurgião quanto o patologista haviam considerado meu caso
imensamente incomum, disse-me. Ele próprio já havia visto tumores encapsulados, em
pacientes de Gerson, principalmente caroços mortos que podiam ser facilmente retirados,
com incisões mínimas.
"Um deles pertencia a um paciente de melanoma. Talvez você se lembre dele, já
que estavam aqui ao mesmo tempo, em sua primeira internação".
"Ah, o senhor está falando de meu velho amigo Carl", exclamei. "Sim. Eu soube da
cirurgia, ele enviou-me uma cópia do laudo de sua biópsia, na época".
"Ele está muito bem, desde então", o dr. Arturo continuou. "E tivemos outros casos
semelhantes. Se o corpo não consegue destruir e eliminar as células de câncer pelos canais
habituais, então ele as cerca e as isola. O mesmo processo ocorre com as pessoas que têm
uma bala, um prego ou um estilhaço em seus corpos durante vinte anos, sem nem mesmo
saberem, até que, num belo dia, começam a sentir dor e então o objeto é descoberto e
removido. A única diferença é que, o corpo precisa da terapia para cumprir esta função,
no caso do câncer".
Ponderei por um momento. "Sim, isso faz sentido. Mas por que meu nódulo estava
aumentando ?"
"Não sei. Talvez, enquanto morriam no meio, as células malignas se tornavam mais
rígidas e se tornavam parte da cápsula externa. Isso teria aumentado o volume do tumor.
Ou talvez todo o cálcio que você tomou tenha sido usado por seu corpo para tornar
a cápsula ainda mais grossa. Nunca teremos certeza".
"E o que teria acontecido, se eu não tivesse removido o tumor ?"
"Acho que, no fim, todas as células teriam morrido e você ficaria apenas com um
caroço duro e sem vida. Uma vez que seu sistema imunológico está funcionando muito
bem, esta é uma possibilidade muito real. Mas tudo isso é teoria. O caroço se foi, não há
mais nada com que se preocupar".
Ele tinha razão. Recuperei a calma gradualmente, mas levei algum tempo para
entender a importância total de minha experiência e para perceber que saí vitoriosa, não
derrotada.
Aquelas células vivas dentro do tumor reforçaram a validade de minha história, em
vez de arruiná-la. Além disso, eram a prova máxima e a justificativa da terapia.
Agora eu compreendia que o método de Gerson não apenas havia detido meu
câncer altamente maligno e rápido, evitando que causasse danos maiores - e isso é muito
mais que o tratamento ortodoxo pode fazer -, mas também levara meu sistema
imunológico a tal nível de eficiência que eu conseguira levar uma vida ativa e cada vez
mais plena, com essas células potencialmente letais sobrevivendo dentro do tumor,
controladas e tornadas impotentes pelas defesas de meu corpo.
Era como ter assassinos violentos morando em minha casa, aprisionados com
segurança em uma câmara à prova de fuga que os tornava inofensivos e praticamente
invisíveis.
Tanto o processo quanto seu resultado eram tão diferentes dos métodos e resultados
da medicina ortodoxa para câncer que achei difícil pensar nos dois em linhas paralelas. "O
problema", eu disse a Charlotte, pouco antes de meu retorno a Londres, "é que aqui em La
Gloria minha experiência é razoavelmente rotineira, mas, em qualquer outro lugar, soaria
como loucura ou algo inacreditável.
Se eu contasse a um especialista em câncer da medicina ortodoxa que andei por aí
durante três anos e dois meses com células vivas de melanoma em minha virilha e que elas
não me deram absolutamente nenhum problema, ele provavelmente me encaminharia
para o psiquiatra mais próximo".
"Ah", Charlotte falou, com um sorriso de malícia, "mas você teria o laudo do
patologista e fotos de seu tumor para comprovar sua história".
"Isso é verdade". Então, lembrei-me de algo e lhe falei, com urgência: "Escute, agora
que tenho todas essas provas aceitáveis, você me incluiria entre seus pacientes recuperados
com a terapia de Gerson ?"
"Sim, acho que sim", disse Charlotte.
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CAPÍTULO 18
CHARLOTTE HONROU SUA PALAVRA. MEU NOME foi incluído na lista de Gerson
de "incuráveis curados" e, mais ainda, na lista dos vinte "melhores casos" submetidos ao
escrutínio de autoridades médicas independentes dos Estados Unidos. Não importando o
que me aconteça no futuro - e tomarei grande cuidado para não cair debaixo de algum
ônibus -, nada pode tirar-me do registro de Gerson.
Desde que terminei a terapia, o que agora me parece um século atrás, tenho
pensado muito, tentando extrair conclusões gerais de minha experiência particular e, no
processo, minhas ideias passaram por uma mudança drástica.
Em determinado ponto, em meu entusiasmo inicial pela saúde e bem-estar
recuperados, minha preocupação mais urgente era ver a terapia de Gerson oficialmente
aceita, amplamente praticada e tão disponível quanto os tratamentos ortodoxos, na Grã-
Bretanha.
Sempre achei injusto o fato de a terapia de Gerson não poder ser praticada por
aqueles que não podem pagar seus custos. Eu achava que a única tarefa à minha frente
era romper com o preconceito médico e criar as condições ideais para a oferta do
potencial da terapia, sujeitando-a ao exame científico e à avaliação objetiva.
Se o tratamento do câncer e de outras doenças crónicas pela dieta fosse realizado
em grande escala, com esque-mas-pilotos conduzidos de forma impecável, eu achava que
as taxas de recuperação aumentariam muito, que a medicina ingressaria em uma nova era
e que tudo ficaria bem.
Hoje eu vejo as coisas de um modo um pouco diferente.
Meus princípios básicos não mudaram. Sei que a terapia pela dieta funciona.
Acredito que não haverá avanço real no tratamento de doenças assassinas até que os
alimentos sejam reconhecidos como o elemento mais importante para a saúde, o principal
fator determinante de nosso bem-estar, nível de energia, resistência a doenças, estado de
espírito, comportamento, taxa de envelhecimento e duração da vida.
A luz do que já sabemos sobre o impacto da nutrição, parece loucura tentar lidar
com doenças degenerativas crónicas sem uma análise detalhada dos hábitos alimentares
dos pacientes - e sem um conhecimento de como corrigi-los. Ainda assim isso é o que
ocorre hoje. A única desculpa dos médicos é sua ignorância. Praticamente não se fala em
nutrição, nas faculdades de medicina.
Suspeito que a indiferença da medicina à dieta deriva-se da visão machista -
provavelmente velada - de que dieta equivale à cozinha e que esta tem a ver com trabalho
feminino - e isto a torna inferior, por definição, e indigna do interesse científico. Em outras
palavras, a comida ainda é um valor feminino, degradado e banido de seu lugar correto
por nossa ordem essencialmente masculina.
Agora, sua posição de destaque deve ser restaurada. Os médicos terão de aprender
como usar a dieta como uma ferramenta de prevenção e cura, pelo menos para não
ficarem para trás quando atenderem pacientes mais informados e também em relação ao
número crescente de profissionais não-médicos que já usam a terapia nutricional com
sucesso.
Nesta fase inicial, eu acreditava que, uma vez rompida a barreira da indiferença, os
médicos perceberiam que a nutrição é importante demais para ser deixada sob o comando
da indústria de processamento de alimentos, centrada nos lucros, cujos produtos pobres
em nutrientes e ricamente anunciados na s'erdade criam uma população superalimentada,
mas subnutrida.
Eu tinha certeza de que os médicos assumiriam a liderança no questionamento
quanto ao uso de incontáveis aditivos químicos, cujos efeitos acumulados são
desconhecidos, e na denúncia das refeições terríveis servidas em tantos hospitais, escolas e
asilos para idosos.
Eu pensava que alguns médicos poderiam até considerar a possibilidade de tratar
dependências e reabilitar idosos pela alimentação corre-ta, já que os enfoques
convencionais realizam muito pouco, nessas duas áreas tão importantes.
Médicos esclarecidos teriam muito que fazer - pelo menos eu achava que sim. Eles
poderiam até parar de consumir alimentos ruins e melhorar sua própria saúde.
Hoje, posso ver que tal pretensão era tolamente ambiciosa. Não me admiro por não
ter se concretizado. A crescente preocupação pública com aditivos e adulteração de
alimentos foi abastecida não pela profissão médica ( ainda assim, 'doutor' é aquele que
sabe o suficiente para ensinar ), mas pelos grupos ambientalistas e por pequenas
organizações sem fins lucrativos como a Soil Association.
Livros campeões de venda sobre aditivos alimentares, escritos por autores que não
pertencem à área médica, alertaram o público leigo quanto aos truques e meias-verdades
dos rótulos de alimentos, levando ao exame atento das letrinhas miúdas em latas e caixas,
que se tornou rapidamente um dos 'esportes' favoritos em supermercados, entre
consumidores leigos inteligentes.
Um pequeno grupo de escritores radicais na área de alimentos e nutrição,
encabeçado por Geoffrey Cannon, Derek Cooper, James Erlichman, Barbara Griggs, Leslie
Kenton e, finalmente, a falecida Caroline Walker, expôs as meias-verdades, eufemismos e
esforços cínicos da indústria alimentícia a uma ampla audiência.
Apenas um número muito reduzido de médicos e nutricionistas tentou influenciar a
política alimentar do Governo, na maior parte das vezes em vão. A profissão médica,
como um todo, permaneceu indiferente.
Ainda assim, mesmo se tudo isso mudasse amanhã e os médicos se tornassem
campeões da iniciativa por uma nutrição saudável, nossos problemas seriam apenas
diminuídos, não resolvidos, já que ainda precisaríamos enfrentar um ecossistema
envenenado, que por sua vez nos envenena.
A extensão do desastre recém-começa a emergir, na medida em que os muitos
sintomas de doenças aparentemente separadas, no mundo inteiro, se encontram e se
fundem em uma única eco-catástrofe.
E como se muitos incêndios pequenos e não ligados entre si de repente
aumentassem e se unissem, transformando-se em uma imensa fogueira que ameaçasse
queimar a todos nós.
No começo da década de setenta, quando, como um daqueles abençoados
malucos de então, percebi pela primeira vez que estávamos tratando a Terra muito mal,
temi por uma grande retaliação da natureza - ondas gigantescas, inundações, terremotos,
tornados, desastres climáticos - como uma reação à nossa estupidez e ganância. Parte da
retaliação já ocorre, com os perigos da redução na camada de ozônio e com o efeito
estufa, sempre ameaçadores.
Ainda assim, esta é apenas a metade externa da história.
A metade interna é pior e consiste da retaliação natural que já ocorre em nossos
corpos, que adoecem como resultado de nosso auto-envenamento global. A natureza não
precisa liberar alguma praga ultrapassada para nos ensinar uma lição. Já criamos nossas
próprias epidemias de câncer, doenças cardíacas e toda uma gama de outras doenças
degenerativas crónicas. E, é claro, criamos a SIDA.
O significado desta abreviação - síndrome de imunodeficiência adquirida - contém
a chave para outras doenças crónicas, também, A causa principal de todos os nossos
problemas de saúde é a deficiência imunológica auto-infligida que torna o corpo indefeso
contra fatores que causam doenças.
Cientistas que investigam as causas da epidemia que está matando focas no mar do
Norte, além de ameaçar golfinhos, baleias e outras formas de vida marinha, apontam um
vírus que, segundo eles, já estava presente no ambiente havia muito tempo, sem causar
danos. Contudo, agora que as defesas imunológicas das focas estão seriamente
enfraquecidas pelo aumento da poluição no mar do Norte, os animais começam a
sucumbir ao vírus antes inofensivo.
A explicação é tão plausível quanto trágica. Mas, por que pararmos nas criaturas
marinhas ?
Podemos ler "seres humanos", em vez de "focas" e "países ocidentais", em vez de
"mar do Norte", e teremos a explicação para a epidemia violenta de câncer que afeta
grupos etários cada vez mais jovens e atinge, segundo estimativas, uma em cada três
pessoas na população geral.
O sistema imunológico humano, assim como o das focas, desenvolveu-se ao longo
de milhões de anos para lidar com qualquer perigo que surgisse de seu ambiente natural.
Ele não foi criado para lidar com os múltiplos fatores produzidos pelo homem, que
atacam nosso habitat moderno afastado da natureza - fatores que envolvem poluição,
radiação e perturbações eletromagnéticas, substâncias químicas tóxicas, ruído, estresse,
nutrição inadequada, danos causados pelo álcool, tabaco e drogas de rua e pelos
antibióticos exageradamente prescritos, além de por outras drogas médicas que deixam
resíduos tóxicos no organismo.
Debilitado por este ataque sem precedentes e permanente de substâncias nocivas,
nem poderíamos esperar que o sistema imunológico executasse sua tarefa original
adequadamente e lidasse, por exemplo, com o grande número de células malignas que
nossos corpos produzem todos os dias, rotineiramente, sem mencionarmos os muitos
outros inimigos da saúde e sobrevivência.
Por que parar nas focas, não é ?
De um modo assustador, nosso auto-envenenamento global é como o câncer: ele
chegou a um estágio avançado, sem sintomas óbvios e claros, e, agora que finalmente é
diagnosticado, pode ser tarde demais para um tratamento. Assim como o corpo humano,
a Terra é um organismo complexo, consistindo de sistemas finamente coordenados e
interdependentes.
Hoje, assim como qualquer paciente de câncer, ela sofre com a grave poluição e
com os métodos de cultivo destrutivos, que tiram do solo os elementos mais ricos.
Enquanto esta situação continuar, nem mesmo uma reforma fundamental da medicina fará
grande diferença.
Solo enfermo, plantas e animais doentes, pessoas doentes: o ciclo é inescapável. As
observações sóbrias de Max Gerson, sessenta anos atrás, são uma crítica ácida a nosso
estilo de vida de hoje.
Em 1930, ele previu um aumento abrupto no câncer e outras doenças
degenerativas, a menos que a agricultura voltasse aos métodos naturais. "O alimento
orgânico parece ser a resposta ao problema do câncer", ele escreveu, seis décadas atrás.
Não é difícil imaginar o que ele diria hoje, se visse o solo sem vida e devastado dos
países desenvolvidos, onde grande parte dos grãos do mundo é cultivada, e a carga
crescente de substâncias químicas tóxicas às quais as plantas são submetidas e, depois,
passam para nós. E, novamente, nossos médicos não nos deram respostas. Sempre que
agricultores orgânicos e convencionais debatem em público, isso ocorre em termos de suas
respectivas produtividade e custos. A saúde humana, que deveria ser preocupação dos
médicos, mal é mencionada.
Ainda assim, amplas evidências deixaram claro, recentemente, que apenas o solo
trabalhado de forma orgânica contém todos os minerais, elementos em traço, enzimas,
microorganismos e outras substâncias necessárias para a manutenção da saúde.
Para citar apenas um exemplo eloquente, o aminoácido metionina, necessário para
a eliminação de resíduos de metais pesados do corpo, está presente apenas no solo
organicamente tratado. Por esta razão, muitos terapeutas da nutrição precisam prescrevê-
lo na forma de cápsulas para pacientes que precisam desintoxicar-se.
O processo de auto-envenenamento acelera-se e se torna mais grave. Há muito
sabemos que a gordura corporal de muitos animais, dos pinguins da Antártica aos seres
humanos das grandes cidades, contém resíduos de inseticidas, e que alguns herbicidas são
mais prejudiciais para as pessoas que para as plantas.
Agora, também sabemos que nitratos carcinogênicos, derivados de fertilizantes com
nitrogénio, estão infestando nossos rios e cursos d'água, eliminando a vida aquática e
vazando inexoravelmente para nossos suprimentos de água; depois de chegarem lá, nada
pode removê-los.
Terra, ar, água potável ou salgada - tudo está poluído e envenenado.
De que adianta gastarmos somas incríveis em mais e melhores hospitais, equipamentos
caros de diagnóstico precoce, projetos complexos de pesquisas e drogas cada vez mais
poderosas e caras, se ao mesmo tempo acrescentamos cancinógenos à água que
bebemos, substâncias tóxicas a nosso solo e ar e uma rica variedade de lixo aos nossos
alimentos já deficientes ? Será que os legisladores esquece-ram-se completamente da
ligação simples entre causa e efeito ?
Depois que avaliamos com cuidado esta situação enlouquece-dora, é impossível
continuarmos calados.
Ainda assim, este é apenas o lado agrícola-nutricional dessa história de auto-
envenenamento. As dimensões industrial e nuclear são ainda mais sinistras. As autoridades
continuam garantindo ao público que, apesar de Chernobyl e das falhas, acidentes,
ameaças de acidentes e alta ocorrência de câncer que ocorrem regularmente próximo às
instalações nucleares, tudo está bem e não há risco nenhum; contudo, apesar de caras
campanhas publicitárias e de exercícios de relações públicas, uma parcela crescente da
população não acredita em uma só palavra desse discurso. Os protestos de especialistas
são demasiadamente previsíveis e não inspiram credibilidade, já que ninguém neste
planeta pode provar a segurança e ausência de riscos da energia nuclear, no longo prazo.
Além disso, nem o problema do descarte do lixo radioativo foi resolvido.
A mesma técnica de garantias vazias, seguidas por um rápido ajuste para cima nos
limites de segurança, aplica-se aos processos industriais tóxicos. No fim, porém, aqueles
que objetam geralmente conquistam algumas concessões.
Mas por que deveria haver uma espécie de competição bizarra entre aqueles que
poluem -cujo objetivo é ganhar dinheiro - e pessoas comuns, ansiosas por salvar nosso
habitat comum ? E quanto dano ambiental ainda precisaremos ver, até que os legisladores
percebam a ligação entre nosso mundo cada vez mais tóxico e a piora em nossa saúde
coletiva ?
Se a integridade de um habitat é espelhada na saúde de sua população, então o
mundo desenvolvido não se sai muito bem. O aumento na longevidade é uma bênção
dúbia, se as pessoas idosas passam seu tempo extra na Terra deformadas pela artrite,
vitimadas pelo câncer ou reduzidas à senilidade que destrói a lucidez.
De um modo irônico, talvez a ameaça de extinção do animal humano possa valer
para alguma coisa. A ameaça de extinção de outras criaturas já inspirou a coleta de
fundos pela sociedade, mas não levou a uma conexão entre o desaparecimento da vida
selvagem e a debilitação na saúde dos humanos.
Agora que nossa própria saúde e sobrevivência estão em risco, talvez as pessoas se
levantem e comecem a agir.
E melhor fazerem isso, e logo. Atualmente, não podemos esperar muita ajuda dos
guardiões oficiais de nosso bem-estar. O interesse da medicina por nosso ambiente cada
vez mais tóxico é moderado e, em grande parte, apenas teórico.
Na expressão vívida do grande dr. Denis Burkit, já falecido, "Hoje, os médicos
continuam enxugando o chão, em vez de fecharem a torneira que causa a inundação -
mas a verdade é que se ganha mais usando o rodo".
Os governos também não fecharão a torneira. Eles incentivam as próprias práticas -
agricultura à base de produtos químicos e expansão industrial pela energia nuclear - que
causam a maior parte do dano.
Não perturbar os interesses de grupos importantes que criam riqueza e empregos -
produção de alimentos, lobby de pavimentação de estradas, gigantes químicas e
farmacêuticas, etc. - é visto como mais importante que enfrentar os problemas básicos de
saúde nacionais.
Os governos também ignoram ou silenciam a voz ocasional da autoridade que
critica o status quo. Políticos interessam-se pelo custo do atendimento à saúde, mas não
entendem sua economia. E, de qualquer modo, os governos têm vida muito curta para se
comprometerem com o bem-estar do povo no longo prazo.
Se desejamos mudanças, somos nós que devemos fazê-las. Não há razão para
esperarmos que alguma voz oficial paternalista dite nosso estilo de vida. Desde meu
primeiro retorno do México, em 1981, tenho pensado em termos de ação individual, do
esforço dos pequenos, de auto-ajuda e de responsabilidade pessoal - o mesmo tipo de
compromisso que mantém a terapia viva, apenas em uma escala muito maior.
Hoje, mais e mais pessoas descobrem modos de levar um tipo de vida mais sadio e
menos tóxico, e ajudam outros a fazerem o mesmo. Suspeito que, se Max Gerson fosse
vivo, se sentiria mais à vontade entre agricultores que praticam o cultivo orgânico, entre os
ambientalistas, terapeutas alternativos e leigos que buscam a saúde que entre seus colegas
da medicina.
Precisamos introduzir o 'consumidorismo' - com isso quero referir-me à liberdade
para fazer escolhas conscientes, que atendem aos nossos interesses, nas duas áreas que
realmente importam: produção de alimentos e medicina. Estranhamente, essas são as
duas áreas em que nós, consumidores, temos muito pouca escolha. Entretanto, até agora
não havíamos reivindicado este direito.
Ainda assim, os alimentos que consumimos e os cuidados médicos que obtemos são
os dois pilares sobre os quais repousa nossa qualidade de vida. Mudá-los para melhor
seria uma revolução fundamental.
Será que a mudança é possível ? Não sei. Às vezes, a tarefa parece tão difícil
quanto tentar demolir uma montanha com uma lixa de unhas. Contudo, tal impressão é
falsa. O que vejo como mais relevante é que há algo diferente no ar; talvez o prenúncio de
uma ideia cujo momento oportuno chegou.
Não sou ingênua o bastante para superestimar pequenos sinais ou para acreditar
que cem tonéis de adubo orgânico em jardins de subúrbios podem temperar o dano
ambiental causado por um único carregamento de substâncias agrotóxicas; nem posso
imaginar que indivíduos sem poder, mas cheios de disposição, possam ter sucesso contra
grandes organizações - pelo menos não de imediato.
Contudo, creio realmente que a maré está virando e que o todo é maior que a
soma de suas partes. Pretendo viver o suficiente para ver o novo paradigma que emergirá
da confusão triste e doentia de hoje. Nesse meio-tempo, seguirei as regras que aprendi
nos anos dos sucos de cenoura - viva um dia depois do outro, faça o que puder, lembre-se
do que deseja e vá em frente.
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EPÍLOGO PARA A EDIÇÃO BRASILEIRA


Embora uma parte considerável deste livro descreva minhas experiências na clínica
de Gerson do México, deixe-me observar que a terapia de Gerson pode ser realizada em
casa, sem a necessidade de uma jornada até Tijuana.
Obviamente, passar duas semanas ou mais na clínica apresenta vantagens: o
paciente é atendido por um médico treinado na terapia de Gerson, a rotina completa da
terapia é experimentada de uma vez só e o consumo diário de alimentos e sucos orgânicos
com frequência traz melhora imediata à doença e ao bem-estar do paciente.
Entretanto, existem muitos pacientes recuperados com sucesso pela terapia de
Gerson na Grã-Bretanha e em outros lugares que não foram à clínica no México. A maior
parte simplesmente não podia arcar com os custos disso. Outros tinham crianças
pequenas, que não podiam levar consigo ou deixar.
A razão mais importante para não irem à clínica, porém, era o custo. E assim, neste
capítulo final, eu gostaria de descrever a realização da terapia de Gerson em casa, onde
quer que você se encontre, e de contar histórias de alguns pacientes recuperados e em
recuperação, que optaram pela terapia em casa.
Em primeiro lugar, existem algumas exigências indispensáveis para isso. The Gerson
therapy - the atnazing nutritional program for câncer and oíher illnesses, escrito por
Charlotte Gerson e Morton Walker, D.P.M., é o manual 'oficial', publicado recentemente,
que contém um relato completo da teoria e prática do programa de Gerson.
Atualmente, a obra existe apenas em inglês. Como os autores apontam, seu livro
não pretende ser usado como substituto para a consulta com um profissional adequado da
área médica, seja este um oncologista, cardiologista ou qualquer outro especialista (o livro
cobre não apenas câncer, mas também muitas outras doenças degenerativas).
Assim, a próxima exigência para a realização da terapia é encontrar um médico de
mente aberta o suficiente para interes-sar-se pelo imenso potencial da medicina
nutricional. Ele precisará providenciar exames de sangue e urina a cada quatro a seis
semanas, inicialmente, e eom menor frequência depois, monitorar o progresso do paciente
e oferecer prescrições para certos medicamentos.
O apoio de um médico compreensivo é uma grande ajuda, na difícil trilha para a
recuperação. Contudo, também é importante que este médico bem-intencionado não tente
persuadir o paciente a alterar o tratamento, de nenhuma forma; a terapia de Gerson é um
sistema completo, que funciona apenas se nada for acrescentado ou omitido.
Uma fonte confiável e constante de frutas e vegetais orgânicos é uma exigência
absoluta. Produtos não-orgânicos, tratados repetidamente com substâncias agrotóxicas,
devem ser evitados. Uma boa ideia é organizar os suprimentos, antes de começar a
terapia. Depois de iniciado, o programa não deve ser interrompido: qualquer interrupção
na continuidade prejudicará o processo de cura.
O equipamento necessário consiste de duas máquinas para fazer sucos: uma que
tritura os produtos até transformá-los em polpa e outra para extrair cada gota de suco das
frutas ou vegetais.
Não conheço os aparelhos disponíveis no Brasil, mas o princípio para escolher o
aparelho é o seguinte: aparelhos baratos e comuns de centrifugação não servem e, além
disso, a troca de ele-tricidade positiva e negativa elimina as enzimas oxidantes e tiram a
eficiência do suco.
A polpa que permanece depois que o suco é filtrado é muito úmida, de modo que é
possível obter muito mais suco fazendo pressão manualmente. O suco, em si mesmo, é
desbotado e com valor nutritivo muito baixo. Esse tipo de máquina de fazer suco é
inadequado para fins de CURA, e a terapia de Gerson proíbe seu uso.
Sugerimos, como padrão, a máquina de sucos Champion, americana, mas esta
também exige uma prensa separada. Novamente, não sei se esta máquina pode ser
encontrada no Brasil -pode ser necessário importá-la dos Estados Unidos.
Pacientes que sofrem de problemas de saúde que não são câncer podem usar um
bom centifrugador, mas os sucos terão menos poder curativo que aqueles feitos com um
triturador sem centrifugação e prensa. Um filtro de água ou a instalação de um sistema de
osmose invertida também é essencial, para garantir água pura e livre de substâncias
químicas, para cozinhar e para enemas.
A maioria dos medicamentos precisa ser importada do México ou dos Estados
Unidos. Aqui, também, o apoio de um médico ou farmacêutico compreensivo pode ser
muito útil.
Por tudo isso, deve estar claro que, mesmo sem visitar a clínica de Gerson no
México, a terapia é bastante cara, especialmente porque precisa ser seguida por um
mínimo de dois anos. Pelo menos nos seis primeiros meses, ou algo em torno disso, o
paciente não pode trabalhar, o que aumenta o custo financeiro.
Posteriormente, desde que o bom progresso seja mantido, o trabalho em tempo
parcial ou em casa é possível, mas apenas se houver ajuda suficiente. Alguns pacientes
imensamente corajosos e capazes realizaram toda a terapia sem ajuda externa, mas, como
regra, pelo menos alguma ajuda doméstica é essencial.
Parentes, amigos e outros familiares podem ser recrutados para isso ou uma pessoa
deverá ser contratada para ajudá-lo pelo menos durante algumas horas por dia. Além das
dificuldades práticas de manter horários tão rígidos, a monotonia das tarefas da cozinha
pode desanimar um paciente que tente fazer todo o trabalho sem ajuda.
O desânimo e a depressão podem ocorrer naturalmente, durante o tratamento. Eles
devem ser combatidos. Em minha experiência, o apoio psicológico ao paciente é uma
parte importantíssima do 'pacote': a pessoa certa deve estar disponível para ouvi-lo,
demonstrar solidariedade, compartilhar suas emoções e, então, instilar-lhe esperança,
paciência e oferecer incentivo.
Parentes e amigos também devem estar preparados para comportamentos não
característicos do paciente, que pode tornar-se subitamente irritável, zangado ou agressivo,
sem razão óbvia. Essas oscilações de humor geralmente são o resultado do processo de
desintoxicação, que sempre afeta o cérebro e o sistema nervoso, e podem se tornar
bastante poderosas durante uma crise.
A atitude correta é não tomar pessoalmente a agressividade, nem revidar, mas
apenas aceitá-la e recordar que isso também passará.
Agora, deixe-me apresentar-lhe alguns pacientes recuperados de Gerson, que
realizaram a terapia em casa, sem jamais terem visitado o México.
VlCKY é uma professora de cinquenta e três anos, casada e com dois filhos
crescidos. Ela recebeu o diagnóstico de câncer de mama em 1993 e removeu o tumor,
bem como as glândulas linfáticas sob a axila.
Dois anos depois, outro tumor apareceu em sua outra mama, e ela percebeu que
sua doença era muito grave. Com filhos de apenas treze ou quatorze anos de idade na
época, ela tinha todas as razões para querer viver, de modo que, como uma pessoa
profundamente religiosa, ela orou com todo o coração e pediu ajuda.
Dois dias depois, alguém lhe deu meu livro e ela decidiu realizar a terapia de
Gerson. Seu marido ficou horrorizado: como conseguiriam dinheiro para isso ? Vicky orou
novamente e eles conseguiram.
Os amigos lhe doaram maçãs orgânicas que cultivavam em casa, ela aprendeu a
fazer suas próprias injeções e a leitura e compreensão do livro do dr. Gerson permi-tiu-lhe
fazer tudo da maneira certa. Ela também recebeu ajuda do British Gerson Support Group.
Finalmente, o segundo tumor foi removido e a equipe do hospital surpreendeu-se com a
rapidez da recuperação de Vicky.
Ela reduziu gradualmente a terapia, começou a trabalhar em turno parcial em 1998
e em horário integral, um ano depois. Hoje, Vicky ainda alimenta-se de acordo com os
princípios de Gerson, bebe três sucos diariamente e faz um enema com metade da
potência por dia. Ela está em boa forma, saudável e ativa, e continua orando, desta vez
para agradecer.
TESSA, cinquenta e dois anos, é atriz, professora de ioga e mora em Londres. No
começo de 1999, ela descobriu um pequeno caroço sob sua orelha, que logo se tornou
maior. Na verdade, ele era um tumor maligno da parótida, ligado a um nervo; a cirurgia
subsequente, em julho de 1999, consumiu quatro horas e meia e o removeu.
Depois, ela deveria fazer radioterapia, mas os possíveis efeitos colaterais lhe
pareceram tão terríveis que Tessa recusou o tratamento e iniciou a terapia de Gerson. Este
foi um período difícil.
O dinheiro estava escasso, três familiares já haviam morrido de câncer e ela
também precisava lidar com problemas emocionais não resolvidos. Apesar de tudo, ela foi
em frente, monitorada por um médico treinado na terapia de Gerson e com uma ajudante
que trabalhava três horas por dia em sua casa. Gradualmente, sua saúde melhorou, sua
energia voltou e ela conseguiu concluir a terapia na primavera de 2001.
Tessa ainda cuida de sua dieta, come peixe, mas não consome laticínios, bebe dois
sucos por dia e realiza dois enemas por semana. Atualmente, planeja voltar a trabalhar e
levar uma vida plena novamente.
MARY, cinqènta e três anos, teve o primeiro diagnóstico de câncer em 1992,
realizou uma lumpectomia e radioterapia e achou que seus problemas tinham terminado.
Infelizmente, cinco anos depois, o câncer se disseminara para sua outra mama, depois
para o sistema linfático e, finalmente, para o fígado. Ela estava tão doente que seu médico
deu-lhe apenas seis semanas de vida, admitindo que a quimioterapia a manteria viva por
apenas mais três meses. Mary, divorciada, criando sozinha seus dois filhos, recusou o
tratamento convencional e optou pela terapia de Gerson (sobre a qual ouvira falar em um
programa de rádio).
Ir para o México estava fora de questão. Ela abandonou seu emprego, encontrou
duas ajudantes e ingressou em um estilo de vida totalmente novo e estranho que,
inicialmente, apenas piorou seu estado. Dois meses depois, porém, uma ultra-sonografia
no hospital mostrou que os tumores em sua mama haviam desaparecido quase que
completamente e apenas dois eram visíveis em seu fígado.
Outra tomografia, dezoito meses após o início da terapia de Gerson, mostrou que
seus tumores de mama haviam desaparecido e os restantes, no fígado, haviam encolhido
consideravelmente. Depois, desapareceram completamente.
Mary precisa continuar com a dieta, mas ela já consegue ver "a luz no fim do túnel".
Atualmente, sua aparência é tão boa que dificilmente imaginaríamos que já esteve tão
mal, pouco tempo atrás.
JOHN, setenta e três anos, é um professor universitário aposentado. Em maio de
1999, recebeu o diagnóstico de melanoma maligno no fundo de um olho. Operá-lo era
impossível, de modo que ele recebeu tratamento com laser em um famoso hospital de
olhos em Londres, por alguns meses.
Seu tratamento precisou ser terminado, pelo temor de danificar o nervo óptico. No
verão do mesmo ano, John e sua esposa descobriram a terapia de Gerson, pela leitura de
meu livro, e decidiram tentá-la, para evitar problemas futuros.
Eles conheciam vários outros pacientes de câncer que pareciam gozar de boa saúde
depois do tratamento ortodoxo, mas, depois, tinham recaídas e acabavam morrendo. A
esposa de John abandonou sua carreira e ficou em casa para ajudá-lo com a terapia.
Depois de oito meses, o casal contratou uma ajudante para facilitar-lhes o trabalho.
John tem sido examinado regularmente por seu médico, que descobriu que o tamanho do
tumor começou a reduzir e considerou boa sua saúde geral. No momento, John toma seus
sucos e faz dois enemas por dia.
Sua energia está voltando e ele continua mantendo contato com os membros de
nosso grupo de apoio, que sempre se alegra ao ouvir notícias sobre ele.
JOAN, uma senhora dinâmica e ativa de setenta e oito anos, estava com sessenta e
quatro em 1987, quando descobriu um grande caroço em sua axila. Era melanoma
maligno com metástase, que se disseminara de uma verruga em seu braço, removida
quatro anos antes.
O caroço foi removido com cirurgia e Joan começou a investigar maneiras de evitar
uma possível recorrência. Novamente, meu livro levou-a à decisão de tentar a terapia de
Gerson e de fazê-la em casa, uma vez que ir ao México estava além de suas posses.
Ela permaneceu na terapia intensiva por dezoito meses e a reduziu gradualmente,
durante os seis meses seguintes. Felizmente, a ajudante que contratou no início para uma
jornada de trabalho de quatro horas por dia na cozinha permaneceu com ela até o fim - e
se tornou uma boa amiga, nesse tempo.
Em retrospectiva, Joan diz que a parte mais difícil de seus dois anos de autocura foi
a rotina incessante da terapia, que exige que, mal tendo terminado um suco, logo
precisemos começar a preparar o próximo, encaixando nesse meio-tempo as refeições,
enemas e muitas outras coisas. Mas tudo isso valeu a pena, segundo Joan. Ela diz: "E uma
experiência maravilhosa e rara, ser responsável pela própria saúde. Temos que dar o
melhor de nós!".
Eu poderia citar outras histórias, mas esta amostra deve ser suficiente para
comprovar que é possível, embora longe de ser fácil, realizar a terapia de Gerson com
sucesso em casa.
Além das exigências básicas que mencionei no começo do capítulo, os pacientes
precisam ter determinação, forte vontade de viver, flexibilidade suficiente para adotar um
estilo de vida totalmente novo, rígido e incomum, pensamento positivo e confiança no
resultado.
Sim, isso pode ser feito e certamente vale a pena.
Para aqueles que estão saudáveis e desejam permanecer assim, os princípios
básicos da terapia de Gerson formam um excelente programa. E, ao contrário de dez ou
quinze anos atrás, muitos desses princípios têm sido amplamente aceitos pela medicina
convencional e até por organismos governamentais envolvidos com a saúde pública.
Na Europa Ocidental, uma série de escândalos envolvendo alimentos convenceu o
público de que há algo muito errado com os métodos da agricultura e criação de animais,
atualmente.
Salmonela em ovos, doença da vaca louca, que também pode atacar seres
humanos, doenças de patas e boca em gado e ovelhas, níveis inaceitavelmente altos de
agrotóxicos em frutas e vegetais - a lista é deprimente e longa. Por isso mesmo, torna-se
mais importante ainda assumirmos um interesse inteligente pelos alimentos que
consumimos e aceitarmos responsabilidade por nossa própria saúde.
Aqui estão algumas orientações básicas :
MUDE tanto quanto possível para alimentos orgânicos, isto é, produtos sem
agrotóxicos, cultivados em solo saudável. Se você tem espaço, comece a plantar seus
próprios produtos.
Se não tem ou se seu solo é tóxico demais para cultivar alimentos, como ocorre em
muitas cidades grandes, é possível cultivar saladas verdes e ervas em vasos e outros
recipientes, e tentar encontrar uma fonte de produtos orgânicos.
REDUZA seu consumo de gorduras animais, óleos, margarina, carne vermelha,
ovos, sal, açúcar, carboidratos refinados (por ex., farinha branca, açúcar refinado e todos
os alimentos que os contêm), refrigerantes, álcool e todos os tipos de alimentos
processados e com conservantes, ricos em gordura, sal, açúcar e aditivos químicos.
AUMENTE seu consumo de frutas e vegetais frescos, cereais ricos em fibras,
especialmente aveia. Siga a assim chamada Dieta da Idade da Pedra, comendo
principalmente alimentos sem nada acrescentado ou removido, de modo que possam
estragar, se mantidos por um curto período de tempo.
EVITE substâncias químicas sempre que possível. Use água filtrada ou mineral para
cozinhar e beber. Reveja seu uso de substâncias químicas em casa - será que são
realmente necessárias ?
Papel mata-moscas, por exemplo, é menos prejudicial que inseti-cidas em spray.
Não use alumínio ou panelas com anti-aderente. Panelas esmaltadas, de ferro ou de aço
são as melhores. Evite alimentos fritos. Tome banhos de chuveiro, em vez de na banheira,
a menos que sua água não contenha cloro ou outras substâncias químicas e não haja
escassez de água.
INCLUA muitos alimentos crus em seu consumo diário. Bem preparada, a maior
parte dos vegetais pode ser consumida crua. Alimentos frescos e crus têm uma vitalidade
que se perde, no processo de cozimento. Tente começar suas refeições com uma salada
crua, que promove boa digestão, e as termine com frutas frescas, em vez de sobremesas
sem vida e com alto conteúdo de açúcar.
INVISTA em uma máquina barata para sucos e adquira o hábito de beber um suco
fresco de frutas e vegetais todos os dias. Este é o melhor condicionador e rejuvenescedor
natural
APRENDA a ouvir seu corpo. Ele envia mensagens o tempo todo, mas a maioria das
pessoas tende a ignorá-las. A linguagem do corpo consiste de sintomas, que nos dizem
exatamente se ele gosta de como o tratamos ou se é hora de mudar algo. O corpo é um
instrumento de precisão maravilhoso, altamente inteligente -merece respeito e muito
carinho.
A alimentação saudável não é mais cara que seu oposto. Ela pode ser até mais
barata, já que você fará uma economia considerável em termos de alimentos inferiores e
cheios de lixo químico, doces, álcool, etc. Se sua dieta habitual é muito diferente da
recomendada, dê a si mesmo um tempo para fazer a transição. Os hábitos têm a força
que lhes permitimos ter.
Estamos propensos a nos agarrar aos maus hábitos, não o contrário. Além disso, é
preciso algum tempo para que nossas papilas gustativas recupe-rem-se do efeito
amortecedor de alimentos muito salgados, temperados e sintéticos. A motivação é
importantíssima. Se você deseja realmente proteger e melhorar sua saúde e sua resistência
a doenças, não terá muita dificuldade para mudar.
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PÓS-ESCRITO
Minha história, propriamente dita, terminou alguns anos atrás, quando terminei de
escrever este livro. Contudo, a vida não pára e muitos acontecimentos, em muitas áreas,
precisam ser acrescentados para termos um quadro completo.
Para começar em um tom pessoal, às vezes ainda sou abordada por pessoas que
desejam saber se continuo viva, vinte e tantos anos depois de ser atingida por uma doença
muito grave.
A última vez que isso aconteceu foi quando recebi um e-mail da África do Sul, dois
dias atrás, e me senti feliz por responder que estou mesmo viva e bem, a pleno vapor e
desfrutando plenamente a vida.
Outros, querem saber se voltei a viver o que chamam de "uma vida normal" - ou
seja, se voltei a consumir a dieta europeia típica e a beber álcool. Para essas pessoas, a
resposta é "não".
Sigo uma dieta mais tranquila de Gerson, mas ainda totalmente orgânica, evitando
carne vermelha, gordura e sal; bebo um litro de suco fresco de frutas ou vegetais por dia e
faço um enema de café (com metade da quantidade de café que usava durante a terapia
intensiva) duas ou três vezes por semana. Para mim, isso é normal e me mantém saudável.
Diferentemente de 1981, quando eu conhecia apenas um paciente de Gerson em
toda a Grã-Bretanha, hoje existem muitos, em meu país. O grupo de apoio de Gerson
(Gerson Support Group), que ajudei a fundar em 1992, é uma organização pequena, mas
muito ativa, dedicada a ajudar pacientes de câncer que seguem a terapia e a divulgar as
ideias do dr. Gerson.
Administramos treinamento para futuros pacientes e seus ajudantes e publicamos
um boletim trimestral. Hoje, há um centro de Gerson completo em uma clínica próxima a
Londres. Dois médicos e vários nutricionistas com treinamento na terapia cuidam de um
número crescente de pacientes.
Nosso grupo também coopera com organizações afins e participa de suas
conferências. Este é um grande progresso - mas ainda é muito pouco, quando penso em
tudo o que ainda precisamos fazer.
Um grande salto à frente é a grande disponibilidade de produtos orgânicos, pelo
menos nas capitais e em cidades grandes. Meus suprimentos, dos quais eu precisava
desesperadamente anos atrás, eram entregues por um jovem que dirigia um furgão velho.
Eu geralmente orava por sua segurança e bem-estar, não apenas por gentileza, mas
também por interesse próprio, já que sem suas entregas regulares eu não poderia
continuar com a terapia.
E bom saber que, hoje, as vendas de produtos orgânicos aumentam em 40-70% ao
ano e que a parcela esclarecida de consumidores usa seu poder para influenciar a vasta e
poderosa indústria de alimentos, que sempre se interessou mais por lucros que por nossa
saúde.
A terapia de Gerson, em si mesma, não mudou em sua essência, mas ferramentas
adicionais foram acrescentadas aos medicamentos usados, incluindo co-enzima Q10,
enzimas pancreáticas concentradas e cápsulas de fígado líquido. A medida que o mundo
se torna mais poluído e o uso das assim-chamadas 'drogas recreativas' se dissemina, a
dificuldade de curar as pessoas também aumenta; até mesmo as 'drogas leves'
acrescentam urna carga tóxica ao fígado já sobrecarregado. Indivíduos e grupos que
defendem a legalização das 'drogas leves' não percebem as consequências médicas de tal
reivindicação.
O importante papel do apoio psicológico para pacientes com câncer agora é
reconhecido no protocolo de Gerson, juntamente com a observação de que crentes,
pessoas com fé religiosa ou espiritual geral parecem curar-se mais rapidamente que ateus
ou agnósticos (a mesma descoberta foi feita por médicos e pesquisadores, nos Estados
Unidos e em outros lugares).
Essas afirmações fazem sentido, mesmo se as consideramos apenas sob a óptica da
psiconeuroimunologia, que declara que - em termos simples - o bom-humor e perspectiva
positiva reforçam o sistema imunológico, enquanto o pessimismo o deprime. Como um
estudioso declarou, nosso próprio pensamento é um ato bioquímico.
Minha própria experiência com pacientes de câncer, ao longo dos anos, convenceu-
me há muito do poder curativo da fé, preces e confiança no processo - ou seja, a crença
de que tudo no universo é justo, em termos gerais. Aqueles que acreditam em um poder
superior não se sentem abandonados, mesmo em situações críticas.
A clínica de Gerson, no México, agora se localiza em um hospital ultra-moderno em
Tijuana, enquanto o Gerson Institute, na Califórnia, continua agindo como um centro de
informações e educação. Charlotte Gerson, nascida em 1922, ainda está ativa e é uma
senhora muito saudável e atraente, tão inspiradora e dinâmica quanto sempre foi.
Ela viaja muito e administra oficinas e seminários em muitos países, escreve artigos
e livros e continua a promover o trabalho de seu pai, ao qual dedicou sua vida inteira.
Com tudo isso em mente, é oportuno cogitar sobre o futuro da terapia de Gerson.
Nos Estados Unidos, a atitude do sistema médico para com terapias alternativas e
complementares está mudando, gradualmente. Atualmente, profissionais dessas terapias
podem usá-las sem correr o risco de violar a lei.
O próprio Governo Federal gasta somas cada vez maiores - $68,5 milhões em
1999 - em novos centros para medicina complementar e alternativa. Contudo, ao mesmo
tempo, qualquer inovação radical enfrenta oposição de interesses poderosos e velados e
de organizações que perderiam sua razão de existir e seus rendimentos, se aparecesse
uma cura confiável e definitiva para o câncer.
A American Câncer Society, por exemplo, coleta centenas de milhões de dólares por
ano em doações do público; de acordo com sua constituição, ela precisará ser
desmantelada, no dia em que a cura para o câncer for descoberta. Precisamos presumir
que tal regra poderia criar uma tendência a não investigar demais.
Parece possível que uma terapia para o câncer não-tóxica e baseada na nutrição,
com um bom histórico, como o programa de Gerson, tem maior chance de aceitação na
Grã-Bretanha e em alguns países europeus que nos Estados Unidos.
O que me faz pensar assim é que, no passado recente, vários oncologistas
britânicos de renome expressaram publicamente sua insatisfação com o estado atual da
medicina para o câncer.
Vemos, também, a crescente desilusão do público em geral com a falta de
progresso no tratamento do câncer. De vez em quando, pesquisadores de uma das
grandes e ricas instituições de caridade para o câncer anunciam alguma descoberta,
invariavelmente seguida pelo alerta de que serão necessários dez anos, antes que os
pacientes possam beneficiar-se disso.
Na maioria dos casos, nunca mais ouvimos falar de tais descobertas. Os cínicos
afirmam que os anúncios servem apenas para atrair um novo fluxo de doações. O público,
porém, começa a agir com mais cautela.
Quase todo mundo tem parentes, amigos ou colegas que morreram de câncer,
apesar de extensos tratamentos - e milhões não revelados em doações para pesquisas.
Será que mais do mesmo fará alguma diferença ?
As próprias pesquisas parecem cada vez mais abstratas e irrelevantes. Uma
substância que mata células do tumor em um tubo de ensaio pode não fazer o mesmo em
um organismo vivo. A exploração de componentes celulares ainda menores, sem atenção
para suas conexões complexas, merece o veredito do falecido ganhador do prémio Nobel,
professor Szent-Gyoergyi, "Sabemos cada vez mais sobre cada vez menos".
Não é de admirar que tantas pessoas explorem terapias complementares e
alternativas, para mitigarem os efeitos colaterais de tratamentos ortodoxos ou para recusá-
los completamente e encontrarem outro caminho para a recuperação. Ao agirem assim,
elas demonstram sua descrença na medicina ortodoxa. Nem todas encontram o que
procuram, mas, infelizmente, o mesmo aplica-se àqueles que permanecem na trilha
convencional.
De qualquer modo, quanto mais pessoas aprenderem a assumir responsabilidade
por seu estilo de vida e saúde, melhor. Se é verdade que a estatística atual, de que uma
em cada três pessoas desenvolverá câncer, subirá para uma em cada duas pessoas em
quinze anos, e, se uma em duas também envolve médicos, devemos indagar quem irá
tratá-los.
Talvez o mais importante seja que nós, consumidores, precisamos pressionar por
uma mudança de rumo na medicina para o câncer e naquilo que um professor de
medicina chamou de sua "prática moderna de remendos, com alta tecnologia".
O que dá esperança é que pesquisas atuais mais avançadas sobre o poder de
proteção e cura da nutrição continuam surgindo, com resultados fascinantes. A tecnologia
disponível durante a vida do dr. Gerson era inadequada para provar a correção de suas
ideias. Atualmente, tal tecnologia existe. Portanto, muitas descobertas supostamente novas,
relatadas por centros de pesquisas no mundo inteiro, parecem bem familiares para
ouvidos treinados na terapia de Gerson.
Bons resultados na prevenção e tratamento de doenças malignas são relatados com
o uso de betacaroteno, vitaminas C, B3 e BI 2, ácidos graxos essenciais e ácido fólico, que,
cada vez mais, aparecem na forma de nutrição e suplementos de alta qualidade no
consumo diário dos pacientes de Gerson.
E isso não é tudo. O valor curativo de se abster ou reduzir muito o consumo de
proteína animal, sal, açúcar e gordura aparece regulamente nos periódicos científicos. O
mesmo ocorre com os perigos de substâncias agroquímicas, aditivos alimentares e, mais
recentemente, obturações dentárias contendo mercúrio.
Ao ler tais notícias, sinto-me dividida entre o desejo de dar 'vivas' em alto e bom som
e a vontade de indagar, desiludida, qual é a novidade, nisso tudo.
Em vez de fazer uma das duas coisas acima, permita-me dizer, apenas, que é uma
pena todas essas descobertas, feitas a um preço tão alto, emergirem aos pouquinhos, em
laboratórios espalhados pelo mundo inteiro.
E uma pena, porque talvez jamais sejam integradas em uma terapia coerente,
enquanto o único programa já comprovado que contém tudo isso ainda é ignorado pela
medicina convencional e está limitado a realizar seu trabalho extraordinário em um
pequeno hospital no México, uma pequena clínica na Inglaterra e nos consultórios de uns
poucos médicos, em diversos países.
Contudo, nada é mais poderoso que uma ideia cujo momento oportuno chegou.
Acredito que o momento está muito próximo e que curar o 'incurável' finalmente será
possível.
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LEITURAS ADICIONAIS
GERSON, MAX. A câncer theory - results offifty cases. 5a. edição, Gerson Institute,
1990.
HAUGHT, S. J. Censured for curing câncer - lhe american experience of dr. Max
Gerson. Gerson Institute, 1991.
Livros com enfoque psicológico sobre o câncer: SIMONTON, CARL. Getting well
again. Bantam Books, 1993. LESHAN, LAWRENCE. Câncer as a Turning Point, Gateway
Books, 1990.
DOSSEY, LARRY. Healing reakthroughs - how your altitudes and beliefs can affect
your health. Piatkus, 1993. BERNIE, SlEGEL. Love, medicine and miracles. Arrow Books,
1988.
Livros sobre nutrição : GOODMAN, SANDRA, PH.D. Nutrition and câncer - state-of-the-art.
Green Library, 1995 GRIGGS, BARBARA. The food factor. Penguin, 1988. KENTON, LESLIE
& SlISANNAH. Raw energy. Century/Arrow, 1988. WALKER, C. & CANNON, G. The
foodscandal. Century/Arrow Books, 1986.
MlLLSTONE, E. & ABRAHAM, J. Addiclives - a guide foreveryone. Penguin, 1988.
BIRCHER-BENNER, MAX, M.D. Theprevention of incurable disease. Ke-ats, 1978.

BREVE BIBLIOGRAFIA CIENTÍFICA DE SUPORTE À TERAPIA DE GERSON :


BEILSTEIN. Handbuch der Organischen Chemie-Heterozyklische Ver-bindungen.
Berlin. Springer Verlag, 1933 : 2251-2252.
BOYER, T. D. "The Glutathione-S-transferases: An Update." Hepato-logy. 1989, 9
(3): 486-496.
COLES, B. & KETTERER, B. "The Role of Glutathione and Glutathione Transferases in
Chemical Carcinogenesis." Criticai Reviews in Bio-chemistry and Molecular Biology. 1990,
25 (1) : 47-70.
CONDON, R. E. "The effect of whole-gut lavage on cólon motility and gastrocolic
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FERNANDEZ-CHECA, J. C. et al. "Regulation of Hepatic Glutathione." In: Tavoloni N
and Berk PD, eds. Hepatic Transport and Bile Secre-tion: Physiology and Pathophysiology.
NY. Raven Press Ltd., 1993.
GERSON, M. A Câncer Therapy: Results of Fifty Cases. 3rd Ed. Del Mar, CA. Totality
Books, 1958.
GORESKY, C. A., SCHWAB, A. J, & PANG, K. S. "Kinetic Models of Hepatic Transport
at the Organ Levei." In: Tavoloni N and Berk PD, eds. Hepatic Transport and Bile Secretion:
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