Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
DE MARIO FICARELLI
Salvador
2018
KEDSON SILVA DE JESUS
DE MARIO FICARELLI
Salvador
2018
KEDSON SILVA DE JESUS
DE MARIO FICARELLI
A Deus, mantenedor de todas coisas, por me conceder as faculdades cognitivas necessárias para
desenvolver este trabalho, e por sempre guiar os meus passos.
À minha amada Angelica Lopes, que se tornou minha esposa durante o processo desta pesquisa,
por me apoiar em tempo integral, por estar comigo nos momentos alegres e por me dar a chance
de compartilhar os meus anseios — amo-te.
À minha família, em especial meus tios e também pais, Reginaldo Nemézio, Maria Celsa, e
Marta Matos, por apoiarem e incentivarem a minha carreira musical, desde os meus seis anos
de idade até o presente momento. Sem vocês, eu não chegaria até aqui, minha eterna gratidão.
A Wellington Gomes, meu orientador, que com muita propriedade e paciência me ensinou os
caminhos teóricos e práticos para a realização desta pesquisa.
À querida Silvia de Lucca, viúva do compositor Mario Ficarelli, que gentilmente nos apoiou,
cedendo materiais e informações preciosíssimas para a realização desta dissertação.
Ao maestro Roberto Duarte, amigo pessoal de Mario Ficarelli, pelas valiosas informações a
respeito da obra orquestral do compositor.
Aos professores Guilherme Bertissolo, Paulo Costa Lima, Diana Santiago e Conceição Perrone,
pelos ensinamentos dados nos seminários ao longo desta pesquisa.
Aos professores Pedro Kroger, Flávio de Queiroz e Marcos Sampaio, pelos incentivos de
sempre.
Friedrich Nietzsche
JESUS, Kedson Silva de. Estratégias orquestrais nas obras sinfônicas de Mario Ficarelli.
XXXX fl. 2018. Dissertação (Mestrado) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2018.
RESUMO
Este estudo tem como objetivo analisar a relação entre estratégias orquestrais e processos
composicionais em obras de Mario Ficarelli, entre os anos de 1976 e 2012, sob uma perspectiva
analítica em torno da manipulação timbrístico-orquestral. Dividimos esta abordagem em duas
estratégias gerais: a manipulação do contraste timbrístico e a sua relação com a compreensão
formal das obras; e combinações timbrísticas — procedimentos de homogeneidade,
heterogeneidade e combinação de sons emergentes — relacionadas à ideia composicional
dessas obras. A partir desta pesquisa, uma obra orquestral intitulada Spero foi composta com
base nos resultados obtidos, aplicando novas diretrizes a partir de nossas perspectivas
composicionais aqui expostas.
ABSTRACT
This study aims to analyze the relationship between orchestral strategies and compositional
processes in works by Mario Ficarelli, between the years of 1976 and 2012, from an analytical
perspective around the orchestral-timbre manipulation. We divided this approach into two
general strategies: the manipulation of the timbre contrast and its relation with the formal
understanding of the works; and timbre combinations — procedures of homogeneity,
heterogeneity, and combination of emerging sounds — related to the compositional idea of
these works. From this research, an orchestral work entitled Spero, have been composed based
on the results obtained, applying new guidelines from our compositional perspectives to be
exposed.
Exemplo 5 Epigraphe 1990 (c. 48–54) – Contraste entre 2 blocos orquestrais ......... 53
orquestrais ................................................................................................ 57
Exemplo 8a Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 35–43) – Análise formal e motívica feita
Exemplo 8b Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 67–73) – Análise formal e motívica feita
formais ..................................................................................................... 69
Exemplo 17 Spero (c. 91–111) – Contraste entre três blocos orquestrais .................... 88
Exemplo 18 Spero (c. 119–129) – Sobreposição de blocos timbrísticos contrastantes
................................................................................................................... 90
Exemplo 20 Spero (c. 49–65) – Contraste máximo entre três blocos orquestrais......... 94
................................................................................................................... 97
49–65) ...................................................................................................... 93
LISTA DE GRÁFICOS
instrumental............................................................................................... 63
instrumental............................................................................................... 65
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 14
FORMAIS ....................................................................................................... 41
TIMBRÍSTICAS ............................................................................................. 70
1 INTRODUÇÃO
constantes mudanças, em adaptação ao tempo e aos fenômenos culturais. Entender como e para
que motivo essas mudanças acontecem não é uma tarefa simples, principalmente se levarmos
Wellington Gomes (2002) escreve sobre o desafio de estudar a arte da orquestração moderna:
Não são muitas as obras que tratam do estudo específico da orquestração com uma
visão mais atualizada. As que se dedicaram à realização desta tarefa ainda estão longe
de realizá-la de forma significativa, tendo em vista um número considerável de
problemas a serem enfrentados. Um deles é a diversidade de obras escritas no século
XX, que refletem uma enorme quantidade de procedimentos orquestrais, sem falar
que, basicamente cada obra possui seu universo sonoro próprio, dificultando em
grande parte as comparações analíticas. A área ainda é muito carente de fontes
específicas que tratem do contexto orquestral de forma mais abrangente, através de
uma farta exemplificação e uma visão mais atualizada da arte de orquestrar (GOMES,
2002, p. 12).
obra, levando em consideração a classificação dos seus diferentes níveis, como as análises
motívicas, harmônicas, formais, temporais, e ainda outras baseadas em lógicas analíticas afins.
pelos compositores. Todavia, nota-se uma ausência, nestas abordagens, de um conteúdo ligado
dias de hoje, temos conhecimento de diversas abordagens teóricas para compreensão dessas
que haja avanços teóricos e práticos no campo da orquestração. Não mais nem menos
orquestração se debruça sobre questões subjetivas e de pouco suporte teórico, visto que são
acreditarmos que sua obra sinfônica é construída não só por procedimentos estruturalistas
de 1935. Destacou-se no cenário musical brasileiro, sobretudo por sua proficiência em compor
musica orquestral. Autodidata, Ficarelli compunha através de caminhos intuitivos, como deixa
claro:
Ficarelli (1995) aponta para o exercício de análise anterior à criação de suas obras. Esse
exercício pode se tornar muito subjetivo, se o analista não dispor de experiência prévia, suporte
teórico, ou simplesmente não ter sensibilidade suficiente para aprender diretamente com
ferramentas necessárias para compor suas obras orquestrais, visto que as compunha
basicamente de forma intuitiva. Este trabalho terá como foco central compreender essas
As questões que nos motivaram para o desenvolvimento desta pesquisa foram: quais
são as principais estratégias orquestrais utilizadas pelo compositor Mario Ficarelli? E de que
maneira elas estão interligadas com o fazer compositivo estrutural? Essas estratégias são
recorrentes em suas obras? Existe suporte teórico que contemple esse conjunto de estratégias?
bibliográfica sobre o campo teórico da orquestração, onde criamos paralelos com outras
propostas analíticas elaboradas por teóricos da área. Em seguida fizemos uma revisão
bibliográfica sobre a vida e a obra sinfônica do compositor Mario Ficarelli. Essas duas revisões
conjunto de obras sinfônicas de Ficarelli. E o quarto capítulo foi composto pelo memorial
analítico da obra Spero, obra criada durante o desenvolvimento desta pesquisa. Esse memorial,
finalmente, propôs um paralelo analítico entre a obra Spero e as obras sinfônicas de Ficarelli.
Assim como Ficarelli relata ter desenvolvido sua técnica composicional a partir da
análise de obras primas de grandes mestres da história da música, esta pesquisa surge, também,
composicionais, a partir da análise das obras de Ficarelli, considerando tais análises como um
ponto de partida para novas diretrizes composicionais, assumindo que “A verdadeira arte da
17
orquestração é inseparável do ato criativo de compor música” (PISTON, 1988, p.7, tradução
nossa)1. Para tanto, obtivemos melhores resultados dos fenômenos composicionais a partir das
1
no original: “The true art of orchestration is inseparable from the creative act of composing music.”
18
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
vista, com a intenção de mostrar os caminhos que o campo teórico da orquestração tem tomado,
É certo que o corpo sonoro orquestral passou por constantes modificações, até que
chegasse à sonoridade moderna que apreciamos nos dias de hoje. Tais modificações não se
deram apenas por razões peculiares e claras, mas também por motivações subjetivas e pouco
O autor Adam Carse (1964) demarca fatos históricos importantes, para a compreensão
da evolução sonoro-orquestral. Em seu livro The history of orchestration, o autor propõe uma
2
No original: “The evolution divides itself broadly into two periods, the first ending soon after the middle of the
eighteenth century with the death of the two great masters of harmonic polyphony, Bach and Handel; the second
beginning with the rise of modern orchestration in the hands of Haydn and Mozart. The transition is
chronologically spanned by the work of Gluck and a group of secondary composers of which perhaps the best
remembered are Philipp Emanuel Bach and Hasse.”
19
Ao propor esses períodos históricos da orquestração, Carse nos leva a pensar sobre as
período tonal —, a música dos períodos barroco e clássico são inconfundíveis em sua
sonoridade geral. Não nos resta dúvidas de que, além dos diferentes procedimentos
composicionais e formas, o que diferencia esses dois períodos está também no domínio do
muitas correntes analíticas voltadas para o repertório tonal, poucas são especificamente
Sabemos nos dias de hoje que a prática do compor está diretamente ligada aos campos
orquestração não se desenvolvem com a mesma intensidade. Sobre a relação entre orquestração
Gomes retrata, nesse trecho, um parecer geral sobre pesquisa e orquestração, e continua
que o campo apresenta nos dias atuais. Este tipo de exercício é de extrema importância, uma
vez que sentimos falta de visões teóricas esclarecedoras sobre o tema. Muitos trabalhos
20
existentes voltados para a orquestração quase nunca propõem uma metodologia específica para
teóricos, pois o autor relata ter observado uma supervalorização de análises relacionadas aos
de trabalhos ligados à análise de estruturas organicistas, uma vez que décadas de pesquisa e
análise foram dedicadas a esses tipos de enfoques teóricos, tornando-os efetivos para o
repertório tonal. Como exemplo, podemos citar as análises criadas por Schenker, além das
Não há dúvidas quanto à relevância das teorias existentes que se relacionam à estrutura
composição musical do século XX com o século anterior, e sua perspectiva nos proporciona o
Essas diversas perspectivas analíticas estão situadas em locais cada vez mais específicos e
21
parecem seguir uma direção contrária à monocultura organicista estabelecida há anos nos
conforme propõe Lima, existirá também uma síntese capaz de ancorar a teoria da orquestração?
Os questionamentos que nos movem são: como chegamos à diversa realidade sonoro-
moderno do repertório clássico? Que visões de mundo levaram os compositores a seguir por
caminhos tão distintos? Como construir teorias que possam sintetizar as estratégias orquestrais
modernas?
passaram a ter maior quantidade de recursos, e melhor qualidade de timbre como afirma Aaron
Copland:
Como os instrumentos são, afinal, máquinas, sujeitas a melhoria como qualquer outra
máquina, qualquer compositor contemporâneo está mais bem situado do que
Beethoven no que se refere ao colorido tonal. O compositor de hoje tem novos
recursos para o seu trabalho, além de que dispõe da experiência dos que o precederam.
Isso é especialmente verdadeiro na utilização da orquestra. Não é de admirar que
alguns críticos que são extremamente severos diante da música contemporânea
admitam, não obstante, que o compositor moderno maneja a orquestra com
brilhantismo e imaginação. (COPLAND 2011, p.70)
22
e recursos técnicos que os mestres da orquestração tradicional não podiam sequer imaginar. No
entanto, é relevante a reflexão sobre a real importância dessas inovações tecnológicas frente à
compositores nas últimas décadas de produção. Será que a arte da orquestração se resume
apenas à utilização dos recursos que os instrumentos possuem? Existem atitudes que possam
garantir a proficiência da obra em relação à sua sonoridade orquestral? Na busca por encontrar
tais respostas, fez-se necessária uma revisão bibliográfica dos manuais de orquestração
tradicionais, bem como dos mais atuais. Em grande maioria, o que percebemos é a preocupação
primordial dos autores em mostrar os recursos instrumentais de forma detalhada, o que revela
o fato de que o estudo da instrumentação é muito mais tangível e simples do que os estudos da
Autores como Clarke (1888), Widor (1906), Forsyth (1914; 1982), Casella (1950),
Adler (1989), Berlioz (1991), Blatter, (1997)3, entre outros, desenvolveram seus manuais de
orquestração a partir da descrição técnica dos instrumentos usados na orquestra, até o período
em que viveram, classificando-os sempre por famílias orquestrais e pela forma de produção do
região da tessitura, efeitos, combinações usuais e atípicas, técnicas expandidas, dentre outros.
É de grande importância que um compositor saiba lidar, de forma prática e fluente, com as
questões abordadas por esses autores, uma vez que terá de lidar com as particularidades de cada
3
A maioria destes autores usaram exemplos musicais de orquestradores tradicionais renomados como Mozart,
Haydn, Beethoven, Berlioz e Korsakov em seus livros.
23
Nós tentamos oferecer o máximo de idéias práticas dadas por quem consultamos para
o compositor jovem que inicia o difícil estudo da orquestração. No entanto isso pode
não ser o suficiente. É necessário manter contato com os professores mais
conhecedores da orquestra, tirar dúvidas, aprender com suas práticas, com suas
competências específicas e com suas habilidades. (CASELLA, 1950, p. 265)
sobre o aprendizado da orquestração arraigado na mente de grande parte dos teóricos da música
manual de orquestração, apesar de muito útil para questões referentes à instrumentação, não se
aprofunda na análise de processos orquestrais. O autor está preocupado com o a técnica que o
de padrões estéticos pré-estabelecidos, por parte dos compositores modernos, fizeram com que
a ideia de “boa sonoridade” se tornasse muito relativa. Por isso, muitas vezes as estratégias
abordadas por esses manuais de orquestração mais antigos não são tão úteis para o repertório
entender que estes autores tem conhecimento específico de alto nível sobre o assunto. No
entanto, como Casella (1950, p. 265) afirma, o estudo da orquestração por meio de um manual
pode não ser suficiente para o “compositor jovem que inicia o difícil estudo da orquestração”,
e sim a aproximação com professores que tenham maior conhecimento sobre a orquestra,
acompanhado por um mestre da orquestração, seja ele por meio acadêmico ou informal. No
entanto, esse tipo de afirmação pode distanciar ainda mais o jovem compositor aprendiz de seu
24
êxito na composição orquestral, uma vez que assumamos a assertiva de que a única forma de
Esta problemática nos remete à famosa afirmativa feita por Korsakov, um dos mais
compartilhar este pensamento em seu tratado de orquestração, como se portar diante de tal
afirmativa?
Nos dias atuais, temos o privilégio de ter conhecimento dos fatos histórico-musicais
subsequentes aos que os românticos puderam presenciar, e podemos levantar uma reflexão
acerca do peso que essas palavras puderam ter sobre os compositores e teóricos, os quais
importância para o ensino e para a prática de compor música orquestral. No entanto, assumir
que esta afirmação de Korsakov está correta seria o mesmo que negar a importância não só
desta pesquisa, como também de várias outras existentes, ou que estão em pleno
25
desenvolvimento. Poderíamos, a partir disso, sugerir algumas reflexões: o que então estariam
que seria do campo teórico que investiga a manipulação do timbre orquestral? Como a prática
conhecimento em torno da arte de orquestrar não pode ser transmitido através de uma boa
O autor Walter Piston (1955) estruturou seu conhecido tratado de orquestração sob duas
encontrar nos manuais tradicionais, enquanto que a segunda parte traz análises de texturas
O estudo das texturas orquestrais é deveras importante para qualquer orquestrador, uma
vez que, ao compor musica orquestral, escolhemos o tempo todo quais texturas usar ou quais
reservar para outro momento; a textura nos auxilia também no entendimento da forma musical
por conter níveis de contraste entre elas, conforme veremos mais adiante no capítulo destinado
história da música, uma vez que os compositores de uma mesma época tendem a utilizar
texturas semelhantes para compor. Isso acaba por caracterizar, juntamente a outros fatores, as
paralelo e o coral de uma missa renascentista, os quais são marcados não apenas pelos avanços
rítmicos, textuais e harmônicos, mas também pelas diferenças de texturas contidas em grande
trabalho de Piston (1955). Vale ressaltar que a metodologia de Piston não se fez suficiente para
26
esta pesquisa, pois sentimos carência de aprofundamento em questões não inerentes ao estudo
da textura. Entenda-se ainda que este trabalho não se concentra apenas na compreensão textural
de uma determinada obra, e sim de processos orquestrais que possam nos revelar estratégias
estratégias.
encontramos o autor Wellington Gomes, que tem realizado pesquisa sobre processos
orquestrais e sobre o ensino da orquestração, nas últimas décadas. Em 2001, o autor publicou
realidade musical brasileira, a tese foi posteriormente editado como livro (GOMES, 2002).
certamente se deparou com problemáticas novas dentro do campo, já que o grupo, atuante entre
o final da década de 60 e o início da década de 70, tinha como premissa ideológica a fuga de
teórico é escassa, até mesmo para os estilos já sistematizados. Podemos afirmar que, quanto
27
mais distante estilisticamente do repertório tonal a obra estiver situada, mais diversas e
explanados.
Gomes parte da assertiva de que a arte da orquestração não está ligada apenas a aspectos
composicional da obra:
de uma obra, Gomes (2002) estrutura seu trabalho em cinco partes de grande importância para
2015). No livro, o autor aponta para possíveis problemáticas que criaram uma enorme lacuna
entre a orquestração e a pesquisa (análise). Uma das problemáticas levantadas pelo autor é a de
de harmonia, contraponto e forma) para que exista a orquestração propriamente dita. A partir
ortodoxas;
graus de contrastes;
consequentemente, a nossa forma de compor o produto deste trabalho, visto que a metodologia
proposta pelo autor contempla o nosso objeto de estudo, por ser atual e suficientemente ampla.
O campo teórico da orquestração necessita de aprofundamento para que, assim, haja estímulos
para a produção orquestral consciente e progressiva; os enfoques precisam cada vez mais
contemplar as propostas criativas musicais dos séculos XX e XXI. Este trabalho se desenvolve
a partir de tal necessidade, visto que temos como enfoque central as estratégias orquestrais do
compositor Mario Ficarelli, sobre quem dissertaremos a partir do próximo tópico deste trabalho.
ganhado diversos prêmios durante sua carreira como compositor de música de concerto. Neste
biográficos e profissionais que possam não apenas contextualizar a criação de sua obra,
sobretudo as suas obras orquestrais sinfônicas, mas também ajudar no entendimento da escolha
Paulista, nascido em 4 de julho de 1935, Mario Ficarelli iniciou seus estudos musicais
ao piano, com a professora Maria de Freitas Moraes, entre seus 16 e 19 anos de idade. Assim
que pôde dominar alguns recursos técnicos, gostava de improvisar nos estilos dos grandes
escrever suas primeiras peças. No entanto, suas necessidades financeiras o afastaram do âmbito
profissional da música por um tempo, levando-o a trabalhar em diversas funções não musicais
anos de idade, Olivier Toni, o qual foi seu mentor por 14 meses intensivos de estudos em
composição. Anteriormente, Ficarelli tinha hábito de estudar por conta própria as obras primas
dos grandes mestres da composição musical europeia. Sobre os anos de composição como
É provável que todo compositor se depare com essa realidade criativa em um momento
identifique. Visto que a orientação em composição oferecida por Olivier Toni se deu de forma
tardia em sua carreira, podemos afirmar que Ficarelli deu seus primeiros passos na composição
Por volta do final dos anos 60 e início dos anos 70, o panorama brasileiro de música de
escola de Viena. Justamente neste período, Ficarelli sente a necessidade de buscar orientação
Era o momento de buscar conselhos para a composição. Já havia alguns anos, parte
dos compositores brasileiros insistia na estética proposta pela escola de Viena e outra,
mais conservadora, firmava-se, principalmente em São Paulo, ao fazer uma música
voltada ao nacionalismo. (FICARELLI, 1997, p. 9-10)
31
estético-musical que pudesse influenciar estilisticamente a sua obra, evitando assim orientação
a produção de seus alunos. Sobre a polarização da música de concerto brasileira no fim dos
Olivier Toni desempenhou grande importância na vida e obra de Ficarelli, pois sua
“sensibilidade em não interferir, e sim orientar, preservou e incentivou uma das características
certa forma curioso. Apesar de não adentrarmos em discussões políticas ou filosóficas sobre
tal atitude, podemos mencionar que Ficarelli foi reconhecido tanto por críticos como por autores
como “o mais independente dos compositores brasileiros... não aceita rótulos, nem se julga
filiado a nenhuma corrente estética... quando Ficarelli se atém à matéria sonora tradicional,
realiza com ela coisas mais avançadas do que muita pretensa música de vanguarda” (MARIZ,
1981, p. 313-314).
pluralista, uma vez que sua obra se relaciona com diversas correntes estéticas da composição
32
onde um mesmo compositor pode optar, em sua obra, pela utilização de processos bastante
diversificados. O uso mutualístico de dois ou mais estilos em uma mesma obra, já não parece
ser novidade nos dias atuais. Muitas obras criadas nas últimas décadas parecem estar em
completude com elas mesmas, e não com um movimento ideológico, ou até mesmo com a obra
Rydlewsky escreve que “Não podemos fazer qualquer afirmação no sentido de haver elementos
suficientes que possam qualificá-la como tal. Pelos mesmos motivos também não há como
negar que não possa haver” (RYDLEWSKY 2007, p. 144-145). É certo que a obra de Ficarelli
está construída sobre fortes pilares da tradição musical europeia. Provavelmente Rydlewsky
não considere a obra de Ficarelli como sendo pós-moderna em sua totalidade, justamente por
essa forte herança tradicionalista que a remete ao neoclassicismo, mas podemos afirmar que
sua obra é tão inventiva e inovadora quanto as demais correntes estéticas de sua época,
É notório que a partir do momento da orientação dada por Olivier Toni, Ficarelli passou
a produzir cada vez mais, além de ser reconhecido como compositor e ganhar vários prêmios
menciona o próprio:
Incentivado e apoiado pelo mestre, inscrevi uma destas obras, “Cinco Retratos de Um
Tema” para orquestra de cordas (escrita em fins de 1969 e início de início de 1970),
no II Festival da Guanabara, Concurso Interamericano de Composição (1970- RJ). A
obra foi classificada como uma das vinte e quatro semifinalistas entre as cento e
oitenta concorrentes das Américas que se inscreveram. Isto significou o real início da
minha carreira como compositor, pois, a partir daí, dada a grande divulgação do
33
evento, tive meu nome conhecido nos centros musicais do país. (FICARELLI 1997,
p. 11)
Ficarelli dedicou 38 anos de sua vida ao ensino de composição, análise e outras matérias
Ficarelli elaborou sua tese de doutorado sobre as sete sinfonias de J. Sibelius, além de sua tese
para livre docência, sobre a sua Sinfonia no 2, ‘Mhatuhabh’, onde descreve os processos
composicionais elaborados por ele para a construção da obra. Por isso, esta tese se tornou de
grande importância para o desenvolvimento do nosso trabalho, uma vez que assumimos essa
Este trabalho tem foco na análise das estratégias orquestrais presentes num seleto grupo
(1990), Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (1991), Sinfonia No. 3 (1993), e Parasinfonia (2012).
Escolhemos estas obras para objeto de estudo por entendermos sua relevância técnico-
orquestral e histórica, além de que o período delimitado pela criação dessas obras representa
Mario Ficarelli compôs para diversas formações durante sua carreira, deixando uma
variada obra, diversa e independente como afirma Martins (2014): “O catálogo de Mario
Ficarelli é extenso, a abranger mais de 150 obras para formações instrumentais as mais diversas,
como sinfônica, cênica, vocal, coral e camerística. Sua obra deverá permanecer pela qualidade
obra orquestral que Ficarelli iniciou de fato sua carreira como compositor, com a classificação
de sua obra Cinco Retratos de Um Tema (1969–1970) para as finais do II Festival Guanabara.
34
Apesar de ter ganhado vários prêmios em composição, com obras de diversas formações
composto obras que revelam muito de sua identidade musical e qualidade técnica como
orquestrador.
No ano de 1976, compôs a obra Zyklus II, para orquestra sinfônica, estreada dois anos
mais tarde pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), sob a regência do
maestro Eleazar de Carvalho. Em 1979 compôs a Abertura para Orquestra, que foi estreada no
mesmo ano, pelo mesmo maestro. Em 1981 recebeu um encomenda para compor para a OSESP,
e para tal ocasião compôs a obra Transfigurationis, para grande orquestra, que viria a ser
premiada como a melhor obra de 1981 no gênero sinfônico, pela Associação Paulista de Críticos
de Arte (APCA). Sete anos mais tarde, em junho de 1988, teria a oportunidade de presenciar a
estréia de sua obra, Transfigurationis, executada pela Orquestra Sinfônica Tonhalle de Zurique,
Suíça, sob regência do maestro Roberto Duarte. As manifestações do público e da crítica foram
retornar para o Brasil, compôs Epigraphe, para orquestra sinfônica e Sinfonia No. 1, para
instrumentos de sopro, ambas sob encomenda da Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo.
No início dos anos 90, Ficarelli recebeu talvez a mais importante encomenda de sua
carreira, o que resultaria na criação de sua obra sinfônica mais relevante, a Sinfonia No.2,
‘Mhatuhabh’.
A segunda sinfonia de Ficarelli foi estreada em junho de 1992 sob regência do maestro
Roberto Duarte, a quem dedicou a obra. A sinfonia, de 42 minutos de duração, teve tão boa
aceitação que o último movimento precisou ser bisado. A obra recebeu bons elogios, pela crítica
local:
Nostri Amici Extraterrestri de Germana Grosso e Ugo Sartorio, o qual chamou a atenção de
Ficarelli por conter “fluência e naturalidade da narrativa e da sequência das partes que
apresentava, bem como pelo tema tratado, tendo-se em vista seu ponto central que condena as
Mhatuhabh está em conexão com outras duas obras importantes de Ficarelli, Zyklus II
(1976) e Transfigurationis (1981), tanto por estarem compostas a partir de uma proposta
coerência4. Podemos ainda especular que Zyklus II serviu de base para a criação de
Transfigurationis, que por sua vez, serviu de base para a criação da Sinfonia No.2,
a Mhatuhabh pela coexistência de outra proposta temática cósmica. Sobre essa temática de
Ficarelli optou também pelo uso do motivo-base (fá-mi) na Sinfonia No.2, fato que
4
As estratégias orquestrais que relacionam as três obras serão abordadas no próximo capitulo, onde as
analisaremos.
5
Esta relação entre as obras Zyklus II (1976), Transfigurationis (1981) e a Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (1991) foi
sugerida por Silvia de Lucca, compositora e viúva do compositor Mario Ficarelli, em conversa informal via email
em 12/03/2017.
37
A segunda sinfonia foi executada pela primeira vez no Brasil, em maio de 1994,
novamente regida pelo maestro Roberto Duarte. Em 1995 recebeu o prêmio de “Melhor Obra
ministrar uma série de seminários sobre música brasileira e orientar os alunos que passassem
pelos seminários. Enquanto trabalhava na Europa, compôs a Sinfonia No.3 com recurso
financeiro da Bolsa Vitae de Artes, que obtivera mediante submissão em concurso de projetos.
Paulo (ECA – USP). Em 2012 compôs sua última obra sinfônica, a Parasinfonia, atendendo ao
maestro Roberto Duarte em 2012, obra de sonoridade riquíssima. Como em suas outras obras,
podemos notar grande relevância do naipe de percussão. Apesar da curta duração, a obra tem
energia e pungência de uma grande sinfonia. Por questões de saúde, Ficarelli não pôde
6
O texto antecede a partitura da obra Parasinfonia, editada pela FUNARTE.
7
Curiosidade revelada pelo maestro Roberto Duarte em conversa informal via Skype no mês de Abril de 2018.
A gravação está disponível no link: <https://www.youtube.com/watch?v=Gbx03jC97Fs>.
38
qualidade e o tamanho da obra de Ficarelli, não nos restando dúvidas sobre a relevância de
análises aprofundadas e moldadas para a sua obra, sobretudo a de cunho sinfônico — objeto de
analítico das estratégias orquestrais criadas por Ficarelli, bem como dos processos
metodológicos que formulamos para a obtenção dos resultados que iremos expor.
39
gênero orquestral, tendo sido reconhecido ainda em vida no Brasil e na Europa. Apesar desse
pouquíssimos trabalhos relacionados à sua vida e obra. Dessa forma, seus trabalhos sinfônicos,
em grande maioria, ainda não se encontram analisados, e os poucos trabalhos já redigidos que
Ficarelli a partir da análise da obra Concertante para sax alto e orquestra, enquanto que o
segundo aborda a relação entre Mario Ficarelli e a música de concerto brasileira, além de
Dos dois autores, o primeiro se dedica com mais profundidade sobre questões
com a forma musical. Não mais importante que os outros termos supracitados, a afirmação de
que a orquestração de Ficarelli influi diretamente na concepção formal da obra nos é de grande
relevância, uma vez que nossas análises perpassam diretamente por esse pensamento, isto é, o
de que o autor realiza “A divisão da obra em seções orquestrais diversas, de acordo com seu
orquestrais:
jogos de timbre, grandes massas e contraste sonoro entre seções, efeitos instrumentais
variados e um naipe ampliado de percussão. (RYDLEWSKY, 2007, p.133)
Não nos resta dúvidas de que o autor foi muito feliz em sua conclusão a respeito da
orquestração de Ficarelli. Apesar de analisar apenas duas obras (Concertante para sax alto e
de Ficarelli, que esses recursos da orquestração moderna citados são recorrentes e podem nos
elucidar sobre os processos orquestrais presentes na obra. No entanto, Zandonade faz algumas
afirmações interessantes sobre a orquestração da obra por ele analisada, como a ideia de que a
orquestração pode gerar expectativa (2011, p. 118), e de que a orquestração da obra é leve
primariamente sobre perspectivas do nosso campo teórico, e sim sobre outros enfoques
analíticos, também de grande relevância para a compreensão de uma obra sinfônica. Dessa
forma, somos pioneiros no exercício de analisar a obra de Mario Ficarelli sob perspectiva das
estratégias orquestrais, visto que o repertório moderno e pós-moderno não é de forma alguma
contemplado por uma teoria que fundamente de forma ampla a prática da composição de música
orquestral.
Esta empreitada é deveras desafiadora pela falta de suporte técnico e estudos anteriores
que possam se justapor ou contrapor às nossas convicções analíticas. A partir desta necessidade,
orquestral que fossem recorrentes e que estivessem atreladas de alguma forma à poética da obra.
41
Ficarelli. Para tanto, selecionamos um conjunto de obras sinfônicas, sem solistas, de grande
Epigraphe (1990), Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (1991), Sinfonia No. 3 (1993) e Parasinfonia
(2012). Apesar de essa amostragem não contemplar a obra de Ficarelli em sua totalidade,
entendemos que esse conjunto de obras é suficiente para tomarmos os caminhos analítico que
se seguirão, uma vez que nesse grupo estão contidas obras que representam quatro décadas de
diferenciada, as quais podem ser encontradas em uma ou mais obras dentre as selecionadas.
Poderíamos também subdividir este capítulo a partir da análise de cada música de forma
isolada; no entanto, essa subdivisão não proporcionaria uma conexão coerente entre as obras.
Em resumo iremos analisar trechos das obras em função da estratégia orquestral em questão.
desse termo é deveras comum no campo da análise musical, e não temos dúvida quanto à
caminho para adicionar interesse à obra, mas por ser essencial para a ilusão estética da resolução
possíveis se encontram em suas obras, não sendo diferente quando analisamos os tipos de
contraste musical existentes. Apesar da possível subjetividade implícita a cada obra, é possível
encontrar similaridades técnicas e expressivas até mesmo entre peças de correntes estéticas
diferentes. Um exemplo disso é o contraste temático usado na forma sonata do período clássico,
na qual o primeiro tema, geralmente com caráter mais imponente e heroico, exposto sempre no
I grau do campo harmônico, contrastava com o segundo tema, que em geral se apresentava de
forma mais dolce e cantabile, exposto através de uma modulação para o V ou III grau a
musical vigente, de forma tal que esse mesmo procedimento seguiu se desenvolvendo ao longo
outros tipos, como o contraste rítmico, melódico, de dinâmica e de articulação em uma obra,
entre outros. O contraste entre materiais musicais induz o ouvinte a perceber e compreender
podemos afirmar que compor uma obra musical significa também dominar e manipular
8
Em geral, na exposição do segundo tema da Sonata Clássica, os compositores faziam modulações para o V grau
do campo harmônico quando a tonalidade original da peça era do modo maior, e modulações para o III grau quando
a tonalidade original da peça era do modo menor.
9
Concertos e Sinfonias são gêneros musicais que, ao longo dos períodos Clássico e Romântico, preservaram as
características harmônico-temáticas da sonata tradicional, acompanhando obviamente os avanços estilísticos
inerentes à época.
43
trabalho: o contraste timbrístico. Entendemos como timbre a peculiaridade física do som que
garante, por exemplo, a diferenciação auditiva de alturas de uma mesma frequência, executada
por instrumentos diferentes. Uma das primeiras preocupações entre as multitarefas inerentes à
arte de orquestrar é a de lidar com a enorme diversidade timbrística que uma orquestra sinfônica
dispõe. Como combinar os instrumentos? Como obter a sonoridade desejada? Como contrastar
É possível perceber que a obra Mario Ficarelli é rica em contraste orquestral. Esta parte
contraste podem influenciar na criação de estruturas formais da sua obra. Vale salientar que
pequenas mudanças de timbre podem ser pouco perceptíveis quando o contexto sonoro é
sinfônico, mas uma mudança mais abrupta pode se tornar tão impactante quanto o fim de um
movimento, ou até mesmo o término de uma obra. Entendemos que o contraste orquestral
usados em cada passagem, bem como as mudanças desses agrupamentos, sejam elas mais ou
menos abruptas.
A partir das análises das seis obras já mencionadas, pudemos cheagr a um parecer mais
amplo sobre as estratégias orquestrais de Ficarelli. Desta forma, podemos afirmar que a
Apesar de Zyklus II ser uma de suas primeiras obras sinfônicas de destaque, Mario
Ficarelli, parece se preocupar bastante com os efeitos gerados pelo contraste timbrístico-
10
Os termos, estratificação, justaposição, interpolação, gradação e dissolução foram sugeridos em um verbete
sobre contraste musical encontrado no link: <https://en.wikipedia.org/wiki/Contrast_(music)>.
44
movimento da obra. Nesse trecho podemos observar a sucessão de três blocos orquestrais
contrastantes: o primeiro demarcado pela cor vermelha, o segundo pela cor azul e o terceiro
pela cor verde. Integrando o primeiro bloco, temos os instrumentos: flauta, clarinete baixo,
trombone baixo, tuba, cellos e contrabaixos; o segundo bloco é um tutti, integrado por
praticamente todos os instrumentos da orquestra, exceto pelos trompetes, que estão reservados
para integrar o terceiro bloco, juntamente com os tímpanos, como mostra a Tabela 3. A Tabela
Podemos afirmar que esse pequeno exemplo, apesar de conter apenas três compassos,
continuidade dos materiais, visto que, apesar do contraste acentuado de timbre entre os blocos,
Ficarelli usa alguns instrumentos para dar continuidade e fluidez ao trecho, por exemplo na
antecipação do material dos tímpanos no bloco três. Nesse trecho o tímpano funciona como
timbre de ligação entre dois blocos. Podemos ver essa estratégia como um atenuante de
contraste.
dissertaremos nos próximos tópicos desta dissertação. Diferentemente das outras passagens que
Exemplo 1 acontece com certa recorrência na obra, o que nos leva a acreditar que essa é uma
das estratégias responsáveis pela unificação coerente da obra. A recorrência dessa estratégia
Tabela 2 – Famílias da orquestra utilizadas nos blocos contrastantes em Zyklus II (c. 32–34)
Madeiras Madeiras
Metais
Metais Metais
Percussão
Cordas Cordas
Sinfônica de São Paulo em 1981. Como já dito anteriormente, Transfigurationis tem relação
direta com Zyklus II e Sinfonia No. 2 não só pela temática, mas também por ser possível
encontrar estratégias recorrentes nessas três obras, tais como motivos, procedimentos de
primeiros gestos musicais sejam muito curtos em duração, o que demonstra o quão cuidadoso
foi o compositor ao manipular o timbre. Vejamos no Exemplo 2 como esse processo acontece.11
11
A análise do Exemplo 2, assim como no Exemplo 1, foi feita a partir da visualização de três blocos contrastantes.
O primeiro está demarcado pela cor vermelha, o segundo pela cor azul e o terceiro pela cor verde. Seguiremos
analisando blocos contrastantes dessa mesma forma, não se fazendo necessárias novas notas explicativas.
47
entanto, no Exemplo 2 esses blocos são ainda menores em duração, sendo necessário apenas o
espaço de um compasso ternário para a exposição desses três blocos contrastantes. Os três
blocos orquestrais desse trecho são, quase que em sua totalidade, formados por agrupamentos
que nos permite afirmar a intenção por parte do compositor em criar agrupamentos timbrísticos
questão. Ficarelli utiliza esses três blocos timbrísticos-orquestrais com a intenção não apenas
de contrastar o timbre, mas também de contrastar registros orquestrais, visto que o bloco 1 está
situado no registro agudo e o bloco 2 no registro mais grave da orquestra sinfônica. A forma
rápida com que esses blocos se sucedem acentuam mais ainda o contraste a que estamos nos
referindo.
compreensão do contraste empregado entre os blocos. A Tabela 4 mostra que, em cada bloco,
49
Tabela 4 – Famílias da orquestra utilizadas nos blocos contrastantes em Transfigurationis (c. 1–8)
Zyklus II quanto em Transfigurationis. Uma das marcas que nos chamaram atenção foi
justamente o fato de que o compositor tende a reservar instrumentos para gerar contraste, com
a chegada de novos blocos sonoros. Nos dois casos, percebemos o uso de instrumentos das
família dos metais e percussão, em contraste ao tutti. É um pouco cedo para afirmar, mas
historicamente sabemos que essas duas famílias foram as últimas a serem exploradas em sua
O uso estratégico de contraste orquestral é recorrente durante toda a obra, algumas vezes
de forma mais abrupta do que em outras. O Exemplo 3 demonstra mais uma passagem em que
momento em uma seção mais vazia (c. 48–53) e, posteriormente, o agrupamento de sonoridade
O contraste timbrístico causado pela chegada do segundo bloco é inesperado, por não
haver elementos que possam oferecer prenúncio dos eventos musicais seguintes. Mesmo com
não mudam completamente com a chegada do segundo bloco timbrístico, visto que o motivo
apresentado no primeiro bloco segue exposto no segundo bloco, com as mesmas características
intervalares, mas com timbragem diferente. Isso aponta para o desenvolvimento timbrístico
como processo composicional no trecho, conforme mostra a redução contida nos Exemplos 4a
e 4b:
Exemplo 4a – Transfigurationis (c. 48) – Redução Exemplo 4b – Transfigurationis (c. 55) – Redução
orquestral motívica orquestral motívica
Fonte: Elaborado pelo autor (2018). Fonte: Elaborado pelo autor (2018).
que soam nos registros médios e graves. Além disso, mesmo dentro desses registros, o
que o motivo exposto no compasso 55 é muito mais colorido do que quando exposto no
compasso 48.
Além das questões inerentes ao equilíbrio sonoro, podemos afirmar que o maior número
trecho, tendo em vista que uma maior quantidade de dobramentos de um mesmo material lhe
proporciona maior volume sonoro. Esse é um dos princípios físicos básicos da orquestração.
52
musical? Para entender completamente a estratégia por trás desse contraste timbrístico,
precisamos entender os elementos acompanhantes, visto que o contraste acentuado não se deu
apenas pelo maior dobramento do motivo principal mas sim da mudança de todo o plano sonoro
em forma dos blocos. Além do motivo principal, podemos constatar que o material
A obra Epigraphe 1990 tem muito em comum com as outras obras analisadas em
oposição ao agrupamento das cordas e madeiras, é uma estratégia recorrente nessa e nas outras
obras analisadas de Ficarelli. Isso diz respeito a uma intenção estratégica em torno da
outros trechos analisados onde o contraste não se dá basicamente pela alternância entre famílias.
Esta troca de sonoridade, quando exposta de forma abrupta, traz grandes níveis de contraste à
obra. O Exemplo 5 mostra uma passagem de Epigraphe que exemplifica bem o contraste
Mais uma vez podemos observar a reserva dos metais, com a finalidade de criar
contraste do trecho, e o timbre predominante do bloco 2 pertence à família dos metais, uma vez
que esses instrumentos possuem um poder sonoro superior ao das cordas, que os acompanham
elaborada. O uso dessa estratégia permitiu a Ficarelli manipular o corpo sonoro orquestral de
forma organizada, coerente e criativa, além de gerar expectativa pela mudança do material.
53
pode ser uma alternativa para a compreensão das estratégias em torno do contraste timbrístico-
Por estar em constante mudança, temos a percepção de que música se move também,
por contraste timbrístico, como um impulso que leva o ouvinte a se concentrar e compreender
um novo ambiente sonoro. Dessa forma, a música guia o ouvido por sucessivas variações e
transformações estruturantes.
O que seria da análise musical sem a autoridade da percepção? Vários campos teóricos
exemplo disso está em compreender a maneira com que o espectador recebe, processa, e
relaciona os sons musicais. Podemos imaginar que, de forma comum, o contraste é um dos
funcionamento contínuo. Esses são exemplos do cotidiano que podem nos levar a uma reflexão
Em música, podemos afirmar que o ouvinte se acostuma com uma sonoridade estática
e tende a projetar a sua continuidade, como uma forma de previsão do que acontecerá em
de atenção por parte do ouvinte com a finalidade de fazê-lo compreender a nova sonoridade e
David Huron afirma em seu livro Sweet antecipation que “as propriedades estatísticas
percepção consciente pelo ouvinte.” (HURON, 2006, p.71).12 A partir dessas reflexões,
12
No original: “The statistical properties of the sequence are learned as a by-product of simple exposure without
55
sonoridade da obra, e isso faz com que o ouvinte se torne ativo e busque uma nova compreensão
a cada mudança.
por Mario Ficarelli, e nossa pesquisa se delongará na análise dessa obra por termos notado nela
grande recorrência dos processos orquestrais encontrados nas obras analisadas até então. Além
disso, tivemos conhecimento do trabalho escrito por Ficarelli em 1995, uma tese13 em formato
de memorial descritivo da sinfonia em questão. Nesse trabalho, Ficarelli expõe análises da obra,
feitas por ele, complementando-as com comentários particulares, o que nos proporcionou o
conhecimento de vários dos seus processos criativos, além da estruturação da obra. De forma
clara e direta, Ficarelli organiza suas análises em cinco tópicos de perspectivas diferentes,
com os escritos do compositor em sua tese de 1995. Visto que nosso trabalho se atém a questões
orquestração de sua obra. Abaixo temos uma citação, onde o compositor descreve um pouco
esse escrito, sendo Mhatuhabh a quarta obra analisada neste trabalho em que encontramos tal
estratégia. Até então temos a diferença de 15 anos entre a criação das obras Zyklus II e a Sinfonia
No 2, ‘Mhatuhabh’, o que nos leva a acreditar que essas estratégias são imprescindíveis para a
cordas, madeiras, e tímpanos, e o segundo bloco por metais combinados com percussão e cordas
graves. Os metais até então estavam reservados, processo esse que se repete na obra de diversas
maneiras. Podemos, portanto, afirmar que essa estratégia orquestral está diretamente ligada aos
orquestral em blocos contido no Exemplo 6 seja o mais impactante, visto que, além da mudança
abrupta do timbre orquestral, o material musical também muda drasticamente, sendo o primeiro
bloco mais movimentado, com sonoridade mais delicada (cordas em pizzicato + madeiras em
staccato), e o segundo bloco com a estaticidade das notas longas, aliada ao poderoso e brilhante
afirmar que os comentário encontrados em sua tese, sobre os processos orquestrais, são de
grande importância, mas não suficientes para demonstrar a relevância da orquestração da obra,
tendo em vista que o seu objetivo era analisar a obra de maneira mais geral. A partir desta
assertiva, nos sentimos confortáveis em acrescentar informações analíticas às que Ficarelli nos
57
Exemplo 6 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 81–84) – Contraste entre 2 blocos orquestrais
14
As análises da Sinfonia No. 2, Mhatuhabh, não estão dispostas em um único tópico, mas em todos os tópicos
deste capítulo.
58
Parasinfonia é a ultima obra sinfônica composta por Mario Ficarelli em 2012, sob
Exemplo 7 mostra o início da obra, onde dois blocos timbrísticos se contrastam. Vale a pena
ressaltar novamente a reserva de vários instrumentos para a chegada do segundo bloco. Além
sendo o primeiro bloco construído na região super aguda dos instrumentos usados, e o segundo
bloco atingindo subitamente a região grave e subgrave. Nesse trecho, Ficarelli opta por agrupar
timbrísticas, mas separando-os também entre agudos e graves, inclusive entre os instrumentos
de percussão, o que aponta para uma provável intenção em criar combinações timbrísticas
heterogêneas.
interessante perceber que o contraste dessa passagem não se dá apenas pela reserva de
instrumentos de uma mesma família orquestral, visto que o objetivo de contrastar blocos
instrumentos no decorrer dos compassos, restando apenas alguns que serão responsáveis por
executar a transição para o próximo gesto orquestral, contido nos Exemplo 8a e 8b (vistos mais
à frente). Podemos ainda destacar que Ficarelli opta por utilizar o processo inverso, ao
(continuação do Exemplo 7)
A partir das análises expostas podemos concluir que, a obra de Mario Ficarelli é rica em
contraste timbrístico-orquestral, sendo tal recurso uma estratégia recorrente em suas obras
sinfônicas, não apenas em relação ao simples colorido orquestral, mas também como atitudes
estruturantes da ideia musical. Entendemos que o estudo do timbre de uma obra sinfônica é
uma atividade importantíssima, não só para a compreensão do próprio timbre, mas para a
compreensão geral da obra, visto que os processos composicionais que envolvem contraste
Talvez seja muito óbvio afirmar que contrastes timbrísticos possam ser notados mais
facilmente do que contrastes harmônicos ou melódicos. Apesar de a escuta ser muito particular
e subjetiva, é mais comum encontrar pessoas que confundam mudanças harmônicas do que
pode proporcionar essa forte relação com os ouvintes, de forma geral, por que esse tipo de
Suas obras são compostas, portanto, com relevantes estratégias timbrísticas criativas, as quais
Imaginamos que, ao se escolher essa formação para iniciar a composição de uma obra, o
15
Este assunto já foi anteriormente dissertado, mas sentimos que a reflexão reiterada se fez necessária.
62
timbristicamente desde o período barroco, visto que os instrumentos musicais têm passado por
constantes evoluções mecânicas ao longo do tempo. Dito isso, podemos imaginar que a arte da
relacionando-as à compreensão formal das obras. Já no tópico anterior pudemos notar indícios
Wennerstron (1975) afirma que o entendimento do timbre pode contribuir para a compreensão
trabalho, visto que não encontramos muitas fontes referenciais que demonstrem uma
metodologia efetiva para o tipo de investigação que estamos realizando. Faz-se necessária,
ser viabilizada pela criação de gráficos que contenham o estudo quantitativo do uso dos
instrumentos na obra.
16
No original: “The understanding of twentieth-century music requires first an understanding of the materials
which are being employed. The listener must start with the ideia that any event in any parameter (pitch, duration,
timbre, dynamics) can have a formative function in the music and can contribute to the resultant shape of the
piece.”
63
Ficarelli no primeiro movimento da Sinfonia No. 2, bem como sua influência na percepção
formal. Esse trecho representa uma estratégia recorrente na obra, e até mesmo em outras obras
famílias da orquestra.
Gráfico 1 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 8 –90) – estudo quantitativo do fluxo instrumental
Através da visualização desse gráfico, podemos ter ideia do controle que o compositor
tem sobre o corpo sonoro-orquestral, visto que o contraste causado pela reserva e uso dos metais
com percussão, entre os blocos orquestrais, recorre em espaços equidistantes durante o trecho,
de maneira abrupta, sendo o primeiro contraste (c. 84) muito mais abrupto que os outros (c. 86
e 90), uma vez que os dois últimos contrastes são atenuados pela diminuição da quantidade de
metais e pela continuidade dos instrumentos de cordas, o que aponta para uma gradual transição
17
O Gráfico 1 foi elaborado a partir da análise do fluxo instrumental dos compassos 82–90 do primeiro
movimento. As madeiras foram representadas pela cor verde, os metais em amarelo, percussão em preto e cordas
em marrom.
64
timbre orquestral.
básicas quanto à estruturação formal das obras. Apesar de as maneiras existentes de contraste
timbrístico na obra de Ficarelli serem muitas, pudemos traçar essas estratégias e sintetizá-las
representado pelo Gráfico 1. Esse tipo de tratamento do timbre orquestral está relacionado a um
orquestral. Esse caminho pode funcionar em grande escala, visto que existe a possibilidade do
compositor adicionar instrumentos pouco a pouco até a chegada a uma meta orquestral onde a
densificação máxima seja um tutti orquestral. O mesmo pode ocorrer em uma sonoridade cujo
esvaziamento aconteça de forma gradual, saindo de um tutti até a chegada a uma meta onde o
orquestral têm o poder de gerar grande relevância a materiais temáticos singelos. Como
exemplo podemos citar o famoso Boléro, de Maurice Ravel. Na obra, o processo composicional
não se dá por desenvolvimento motívico ou por variação temática, mas por um impulso
orquestral, que se torna o processo mais importante da obra, gerando expectativa ao conduzir
pouco a pouco a sonoridade de um instrumento solista até um grande aglomerado sonoro que
resulta no tutti final da peça. Essa simples estratégia garante que o ouvinte se mantenha atento
aproximadamente 15 minutos de duração. A questão é de que esse simples exemplo pode nos
65
dar a ideia de quão efetiva uma estratégia de densificação gradual da textura pode ser efetiva e
Afirmamos que a densificação sonora está ligada à expansão da forma, por percebermos
que as passagens onde identificamos este tipo de estratégia estão alongados. Todo o primeiro
movimento da Sinfonia No.2, ‘Mhatuhabh’, apresenta essa estratégia, com exceção da segunda
gerado pela sucessão de blocos orquestrais contrastantes. A análise contida no Gráfico 218,
Gráfico 2 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 62 –73) – estudo quantitativo do fluxo instrumental
c. 62 c. 63 c. 64 c. 65 c. 66 c. 67 c. 68 c. 69 c. 70 c. 71 c. 72 c. 73
estratégias comuns na obra de Mario Ficarelli. Apesar de essas estratégias estarem ligadas ao
18
O Gráfico 2 foi elaborado a partir da análise do fluxo instrumental dos compassos 62–73 do primeiro movimento
da Sinfonia No.2, ‘Mhatuhabh’. As madeiras foram representadas pela cor verde, os metais de amarelo, percussão
de preto e cordas de marrom.
66
agrupamento de instrumentos, podemos afirmar que cada uma desenvolve uma função diferente
Na análise formal da Sinfonia No. 2, feita pelo próprio autor em sua tese de livre-
Ele demarca a primeira sessão do primeiro movimento e a analisa sob perspectiva das operações
motívicas presentes no trecho. Acreditamos que, apesar de o compositor não ter esclarecido as
se inicia desde o primeiro compasso do movimento (c. 35), e termina onde o compositor indica
ter finalizado a primeira sessão do movimento (c.73), conforme mostram os Exemplos 8a e 8b.
representa o início da sessão (Exemplo 8a), e a chegada à meta orquestral (Exemplo 8b). Pode-
se perceber uma grande diferença na densidade sonora entre o início e o final desse gesto. A
partir disso, podemos afirmar que o compositor é detalhista em criar uma grande meta
orquestral a partir da densificação gradual, iniciando-a com uma timbragem mais rarefeita, até
a chegada à sua meta, onde se encontra maior densidade sonora, representada por um grande
alturas ou temática da obra, podemos também afirmar que sua compreensão formal passa por
essa estratégia de manipulação do timbre orquestral. A partir dessas análises, entendemos que
O Exemplo 9 contém um trecho que representa o final de uma sessão e o início de uma
outra, na Parasinfonia. Além de os materiais musicais serem diferentes entre si, a textura e a
duas partes. Esse ponto está em destaque na cor preta, no Exemplo 9, onde podemos notar que
a última nota do tutti se torna a primeira nota da nova sessão, que por sua vez tem caráter mais
camerístico.
67
Exemplo 8a – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 35–43) – Análise formal e motívica feita por Ficarelli
Exemplo 8b – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 67–73) – Análise formal e motívica feita por Ficarelli
Exemplo 9 – Parasinfonia (c. 88–101) – Relação entre contraste orquestral e estruturas formais
orquestral influencia diretamente na compreensão formal do trecho. Podemos ressaltar que esse
contraste não se deu pela reserva dos instrumentos usados no segundo bloco, pois o contraste
responsáveis por dar seguimento ao segundo trecho do fragmento, e estes vinham sendo
Após análise dos trechos escolhidos nas obras de Mario Ficarelli, com a finalidade de
fraseológico que ele emprega em suas obras. Novamente, essas atitudes não estão apenas
localizadas nos trechos escolhidos, mas pudemos observar que, evitando demais
o seu uso em vários níveis e de forma sistemática emula a ideia de movimento do timbre
orquestral, estratégia que pode ser vista como fundamental para gerar expectativa e interesse
na ideia musical.
A partir desta parte da pesquisa, seguiremos com o estudo em torno das combinações
sonoras feitas por Ficarelli em sua obra, por entendermos que essa é outra estratégia
TIMBRÍSTICAS
A tarefa de compor obras destinadas à formações sinfônicas pode ser desafiadora, visto
que, entre as múltiplas tarefas do compor, o autor também terá de lidar rotineiramente com
para extrair o máximo do potencial sonoro da orquestra. Não é coincidência que a maioria dos
manuais e tratados de orquestração lidem com esse tema, exclusivamente por essa perspectiva.
geral, entendemos que o agrupamento de dois ou mais instrumentos gera um timbre composto.
A partir do estudo das obras analisadas19, pudemos perceber o uso de três estratégias orquestrais
heterogêneas e sons emergentes. Exemplificaremos essas três estratégias ao longo deste tópico,
na tentativa de tornar claras suas diferenciações. Podemos salientar que a subjetividade desses
termos é enorme, assim como suas variantes, além de que suas análises tendem a gerar opiniões
contrárias. Justamente por isso, em vários momentos demos relevância à nossa percepção
análise.
musicais, de forma aleatória, e, sem muita dificuldade, perceberemos que existem níveis de
contraste sonoro entre eles. Um ponto de partida para essa compreensão é o estudo da
organologia, a qual nos sugere uma classificação para os instrumentos musicais a partir do
princípio físico-acústico que garante a sua produção sonora, conforme exemplificado a seguir
na Tabela 5.
19
As obras analisadas para a construção deste tópico são as mesmas do tópico anterior: Zyklus II,
Transfigurationis, Epigraphe 1990, Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’, e Parasinfonia.
20
O termo contraste pode ser definido como o “Diferença ou oposição fortes, marcantes, entre coisas análogas
ou que se apresentam no mesmo contexto de percepção.” (AULETE; VALENTE, 2017).
72
Famílias Descrição
Aerofones Instrumentos que soam através da vibração de uma coluna de ar
Cordofones Instrumentos que soam através da vibração de uma corda
Membranofones Instrumentos que soam através de vibração de uma membrana
Idiofones Instrumentos que soam através da vibração do seu próprio corpo
Eletrofones Instrumentos que soam através de impulsos elétricos
É bastante claro que dois instrumentos de uma mesma família organológica possuam
instrumentos, um violoncelu e um berimbau, por exemplo. Apesar de sabermos que esses dois
instrumentos estão classificados na família dos cordofones, sabemos que os eles não apresentam
uma timbragem que possa ser classificada como homogênea. Um outro caso semelhante é a
timbragem de um acordeão e uma flauta; apesar de serem aerofones, esses dois instrumentos
não possuem sonoridade homogênea. Poderíamos seguir dando vários exemplos, mas
podemos mencionar a timbragem entre um clarinete baixo e uma tuba. Os dois instrumentos
são aerofones, porém pertencem a famílias orquestrais diferentes, sendo o primeiro pertencente
à família das madeiras e o segundo, à família dos metais. Mesmo assim, consideramos a
heterogêneas, mas elas não são absolutas, pois entendemos que os instrumentos são muito
A partir desta compreensão, seguiremos com nossas análises, a começar pelo Exemplo
10, que contém um trecho de Mhatuhabh. Nele, podemos visualizar o cuidado que o compositor
enorme quantidade de combinações timbrísticas que uma grande orquestra sinfônica oferece,
o compositor opta por começar seu gesto musical de forma camerística e com uma timbragem
opta pelo uso de mais uma linha melódica, tocada por mais um fagote, e reforça essa linha
Por que não usar outro instrumento para o novo material que surge no compasso 40?
Por que não usar os violoncelos no lugar do divisi de contrabaixos? Imaginamos que uma das
razões pela qual o compositor opta por essas escolhas reside em manter o controle e a
compassos subsequentes, veremos que Ficarelli utiliza essa estratégia para adicionar novos
Apesar da segunda sinfonia de Ficarelli ter sido escrita quinze anos após a criação de
primeiro destaque, em cor preta, aponta para uma timbragem semelhante da analisada no
Exemplo 10, onde o compositor opta pelo timbre opaco, escuro e grave dos fagotes reforçados
pelos contrabaixos. Sabiamente, o compositor escolhe dois dos instrumentos de percussão mais
graves da orquestra para fazer os dobramentos. O detalhamento da “baqueta dura” a ser usada
passagem.
proporções, visto que, apesar de não configurar um tutti orquestral, a passagem inclui um
numero bem maior de instrumentos do que nos exemplos até agora mencionados. As
timbragens destacadas pela cor azul, demonstram também o cuidado que o compositor tem em
75
definir articulações para melhor fusão da sonoridade, visto que os violinos e as violas articulam
sons basicamente com a fricção do arco em suas cordas, enquanto as madeiras articulam o sopro
com golpes de língua. A escolha da articulação em staccato ajuda esses dois grupos
por usar combinações heterogêneas em muitos momentos de suas obras, ou seja, dobramentos
que utilizam instrumentos com timbres em evidente disparidade, como nos exemplos dados no
O Exemplo 12 mostra uma passagem da Sinfonia No. 3, onde os agrupamentos são feitos
trecho, principalmente no compasso 76 e 77, onde o compositor opta por combinar o piccolo
com 2 ou 3 violinos, destacados na cor preta, e o grupo formado por trombone, viola e
violoncelo, destacados na cor vermelha. Podemos notar também a combinação de clarinete com
fagote, os quais não se classificam como díspares por serem da mesma família orquestral, mas
possuem uma certa diferenciação timbrística por conta do tipo de embocadura.21 Apesar dessas
três combinações estarem em um mesmo registro sonoro, podemos afirmar que elas têm
também que a timbragem entre trombone e viola é muito mais heterogênea que a timbragem
e os instrumentos de palheta dupla, representados pelos oboés, fagotes e seus auxiliares. Essas
subfamílias do naipe das madeiras possuem sonoridade muito peculiar pela tipo de embocadura,
sendo esses instrumentos muito mais homogêneos quando timbrados entre si do que quando
timbrados com instrumentos de uma subfamília diferente. Visto isso, podemos considerar o
dobramento entre clarinete e fagote no Exemplo 12 como heterogêneo, visto que o compositor
21
O clarinete possui palheta simples, enquanto o fagote possui palheta dupla, fato que diversifica bastante o timbre
dos dois instrumentos.
77
poderia ter escolhido combinações mais homogêneas, como oboé e fagote, ou clarinete e flauta,
Podemos notar, ainda no Exemplo 12, que o compositor opta por gerar um contraste
onde o compositor usa instrumentos de todas as famílias de uma forma muito peculiar.
Podemos afirmar que o agrupamento sonoro feito pelo compositor entre os compassos
160 e 164 é uma combinação heterogênea, visto que as três flautas tocando notas longas em
trompas e cordas, além do rufo contínuo nos tímpanos que contribuem ainda mais para a
heterogeneidade dessa passagem. Não esqueçamos, ainda, do contraste criado pelo uso da
bigorna na passagem, que tem grande importância temática,22 e que, em oposição aos outros
rítmico. Tanto esse padrão rítmico quanto o seu timbre atípico, pelo menos em um contexto
orquestral, trazem ao trecho uma sonoridade ainda mais exótica e heterogêne. Esta sonoridade
se torna importante por estar situada na coda e representar uma transição temática e timbrística
próximo tópico, no qual dissertaremos sobre os sons emergentes encontrados na obra de Mario
Ficarelli.
compositor utiliza s estratégia de gerar combinações atípicas em vários trechos de sua obra.
Classificamos como sons emergentes o resultado sonoro de agrupamentos entre dois ou mais
instrumentos, que geram sonoridades não convencionais, muitas vezes resultantes do choque
entre harmônicos ou parciais dos timbres agrupados. Esses sons emergentes são comumente
confundidos com instrumentos que não estão sendo utilizados na passagem. Os sons emergentes
22
A bigorna é usada na obra como referencial sonoro para simbolizar a reconstrução do planeta, pelos
sobreviventes de Mhatuhabh.
80
são importantes na obra de Ficarelli, visto que ele os utiliza em momentos estratégicos, criando
No Exemplo 14, está contida a redução de um trecho, onde o compositor opta por fazer
107 a 109, onde o compositor timbra as notas longas do prato suspenso, bombo e tam-tam à
técnica expandida de soprar dentro do tubo nas flautas, oboés, clarinete, trompete e trombone,
além da harmonia quartal no registro grave da orquestra. O compositor opta também por usar
apenas instrumentos de percussão de altura indefinida — entre estes, o prato suspenso e o tam-
em evidência no trecho. Esses sons emergentes são de difícil compreensão quando não
experienciados em contexto presencial acústico. Por isso, sugerimos aos leitores deste trabalho
que tentem ouvir esses efeitos orquestrais que estamos analisando, para uma melhor
compreensão.
É possível notar, pelas escolhas das sonoridades, que o compositor se debruça sobre os
reforçar a sonoridade modernista presente no trecho. Vale ainda ressaltar a importância temática
e sonora que a bigorna exerce nessa obra, pois ela remete à reconstrução do planeta pelos
conotação ainda mais exótica, por ser pouco usado em contexto sinfônico.
esse agrupamento atípico, uma vez que os eles não irão se agrupar a nenhum dos instrumentos
da passagem. Parece-nos que o compositor procura, em meio a esses efeitos, criar uma
Podemos afirmar que combinações contendo técnicas instrumentais expandidas não são
recorrentes entre as obras analisadas de Mario Ficarelli, sendo essa uma passagem entre as mais
estrategicamente, proporcionam uma sonoridade ímpar ao trecho, visto que glissandos tendem
moderno muito usado entre os orquestradores dos séculos XX e XXI. É muito interessante
estivessem escritos com a mesma direção. Combinado a isso, as madeiras e o piano reforçam o
efeito do glissando, por meio de figuração rítmica movimentada e com direcionalidade voltada
desenvolver o trecho de forma coerente, visto que os glissandos se tornam recorrentes durante
a passagem.
tutti. Os agrupamentos timbrísticos do trecho estão sobrepostos formando uma textura mais
complexa que as contidas nos exemplos anteriores. Os dobramentos em destaque, nas cores
vermelha e azul, estão todos combinados com a intenção de criar efeitos timbrísticos
trombone. Por outro lado, a timbragem destacada em azul mostra o dobramento entre 4 trompas,
com trêmolos em todos os instrumentos. O uso dessas técnicas peculiares confere ao trecho
uma certa plasticidade sonora. As combinações timbrísticas desse trecho nos proporcionam a
compreensão de que o compositor evoca uma sonoridade diferenciada, visto que, em sua maior
compositor demonstra ter ao agrupar os instrumentos da orquestra em suas obras. Desta forma,
pudemos entender que existem claras estratégias orquestrais em torno da formação de timbres
compostos. Entendemos também que a obra sinfônica de Mario Ficarelli é expressiva e revela
grande qualidade técnica de escrita por parte do compositor, estando claros os objetivos em
torno da criação de timbres compostos, sejam eles homogêneos, heterogêneos ou que resultem
em sons emergentes.
Podemos afirmar, após esse trabalho analítico, que as estratégias aqui constatadas estão
com que Mario Ficarelli delimita e integra essas atitudes orquestrais torna sua obra fluida e
coerente, além de apontar para um certo domínio das possibilidades orquestrais existentes, pois
são muitas as atitudes estratégicas presentes na arte da orquestração, como propõe Gomes
(2015).
sons emergentes, tudo isso nos fiz enxergar tanto a obra de Ficarelli quanto outras obras
sinfônicas sob uma outra perspectiva criativa. Isso nos motiva e nos impulsiona a elaborar de
A partir das análises feitas no capítulo anterior, pudemos constatar uma série de
estratégias criativas em relação à manipulação do timbre orquestral. Foi possível perceber que
essas estratégias estão, quase sempre, atreladas ao discurso poético da obra, bem como às
A obra Spero, composta em 2018 para orquestra sinfônica, integra esta dissertação de
forma prática a partir da aplicação das estratégias orquestrais inspiradas no nosso trabalho
analítico desenvolvido sobre as obras sinfônicas de Mario Ficarelli. Spero foi criada a partir da
O termo em latim spero quer dizer “esperança” e é uma resposta direta à temática
exposta por Ficarelli em suas obras Zyklus II, Transfigurationis e Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’.
O intervalo de segunda menor — oriundo das notas Fá e Mi que, segundo a teoria kepleriana,
correspondem às duas frequências que caracterizam a terra —, está presente também ao longo
esse intervalo representa o estado decadente do ser humano, salvo pela ultima aparição do
motivo (c. 165), onde a nota Mi é harmonizada com a expansão de um acorde de Mi maior, este
estratégia foi usada diretamente no planejamento formal da obra, na construção dos tuttis e na
87
delimitação das sessões, através de metas orquestrais. Pudemos constatar, nas análises do
capítulo anterior, que a mudança abrupta do timbre orquestral está atrelada à formação e
sucessão de blocos contrastantes entre si, gerados por diferentes agrupamentos instrumentais,
enquanto as mudanças mais brandas e progressivas do timbre orquestral estão quase sempre em
esvaziamento sonoro-orquestral.
subdividiremos nosso memorial em tópicos que irão nos remeter às análises anteriores.
blocos orquestrais contrastantes, como podemos notar nos blocos 1, 2 e 3, evidenciados pelas
Tabela 6 – Agrupamentos instrumentais utilizados nos blocos contrastantes em Spero (c. 91–111)
contraste timbrístico total entre eles, no diálogo sucessivo entre metais, cordas e madeiras, não
23
Salientamos que as análises desta obra não estão dispostas linearmente, motivo pelo qual começamos nossas
análises a partir do compasso 91.
88
orquestrais: o bloco 1, agrupado em sua totalidade com instrumentos da família dos metais, o
diálogo enfatizado por camadas sonoras homogêneas. Outra estratégia sutil, porém
importantíssima para o trecho, se encontra representada no vibrafone que, por sua vez, não está
agrupado a nenhum dos três blocos, mas desempenha função de ligação entre os dois primeiros
blocos, atenuando de forma branda o contraste, em toda sua plenitude, entre os blocos.
O Exemplo 18 mostra um trecho em que a aplicação de contraste não foi feita apenas
por blocos em sucessão, como no exemplo anterior, mas também em blocos expostos em
sobreposição. Os blocos timbrísticos destacados pelas cores, vermelha, azul, verde e amarela
se encontram em contraste harmônico, uma vez que todos soam ao mesmo tempo. Esses blocos
são recorrentes na obra, fato que pode proporcionar ao ouvinte a experiência de um déjà vu, já
que eles não estão sendo repetidos em um mesmo contexto timbrístico. Vale ainda salientar que
quando no compasso 127 o compositor muda quase que completamente os instrumentos usados
timbrístico exerce no trecho, onde o bloco vermelho segue reduzido ao vibrafone, o bloco azul
é direcionado para as cordas em pizzicato e região aguda da marimba, e o bloco verde, que
mantém o contrabaixo, trocando apenas os tímpanos e a tuba pela região grave da marimba.
melódicos, garante a fluidez musical do trecho analisado. A nossa intenção maior foi a de criar
um “contraponto sonoro orquestral” que, por sua vez, se sobrepõe à ideia de contraponto
90
atreladas ao alongamento das estruturas formais da obra, através dos processos de densificação
o gesto se inicia apenas com um rufo de tímpano e, pouco a pouco, vai ganhando proporções
mais significativas em relação ao uso quantitativo dos instrumentos da orquestra, até a chegada
do clímax da meta orquestral24 no compasso 35, onde a textura musical se apresenta de forma
muito mais densa. Além da densificação gradual constatada, pudemos também analisar a
que se inicia no espectro grave da orquestra, até a chegada ao espectro médio-agudo de forma
gradual.
O planejamento formal prévio de uma obra é uma boa forma de garantir o controle e a
consistência das estratégias a serem trabalhadas. No caso do Exemplo 19, podemos afirmar que
todo este trecho foi idealizado e arquitetado anteriormente à escrita de qualquer nota musical
24
O clímax da meta orquestral a que nos referimos se encontra em destacado em preto, no Exemplo 19.
92
nossa pesquisa como contraste máximo, com a mínima excessão dos tímpanos que pertencem
aos blocos 1 e 2. O contraste timbrístico máximo acontece quando um bloco sonoro é sucedido
com total mudança de timbre, ou seja, sem a continuidade de nenhum dos instrumentos que
estavam sendo utilizados no bloco anterior, como podemos notar na Tabela 7. Vale ressaltar
que o fato de os fagotes estarem presentes nos blocos 1 e 3 não atenua as relações de contraste
potencializado pela mudança radical dos materiais musicais, sendo esta a passagem de maior
contraste na obra Spero. Ela também representa o processo de interpolação de blocos sonoros,
presente em vários trechos da obra. Podemos também constatar com este exemplo que a
sonora do espectro orquestral, visto que o primeiro bloco está predominantemente situado na
região média, o segundo bloco predominantemente na região aguda, e o terceiro bloco está
Exemplo 20 – Spero (c. 49–65) – Contraste máximo entre três blocos orquestrais
fundamental e recorrente na obra. A compreensão dessa estratégia só foi possível, pelas diversas
análises realizadas no repertório sinfônico do compositor Mario Ficarelli. Podemos afirmar que
95
perspectiva primária essas estratégias orquestrais, é algo muito pouco teorizado e exemplificado
timbrísticas presentes na obra Spero, tendo em vista a integração delas com as estratégias de
combinação timbrística.
combinações que resultam em sons emergentes. Como já dissertado em nosso terceiro capítulo,
timbrísticas, baseados nos dois seguintes tipos de combinações: as que resultam em timbragens
25
A classificação organológica pode ser consultada na Tabela 5 (p. 72) do capítulo anterior.
26
Esta última é oriunda do Capítulo 3, onde analisamos uma obra de Ficarelli de mesma organização.
96
cor vermelha, onde podemos observar o motivo melódico exposto em uníssono pelo clarinete
baixo, agrupado ao fagote. Podemos afirmar que essa timbragem tem um certo nível de
heterogeneidade, visto que os dois instrumentos usados, apesar de pertencerem à família das
madeiras, não pertencem à mesma subfamília.27 Essa combinação é sucedida por uma
combinação homogênea, destacada pela cor azul. O agrupamento oitavado, formado pelo corne
inglês e pelo oboé, tende a soar de forma equilibrada em relação ao timbre, visto que esses
instrumentos, além de fazerem parte da família orquestral das madeiras, fazem parte também
da mesma subfamília, no caso, dos instrumentos de palheta dupla. Ainda, esses instrumentos
têm característica muito peculiar e bastante diferenciada em relação às outras subfamílias das
madeiras.
Vale ainda ressaltar que, ainda no Exemplo 21, é possível observar a integração dessas
formando um novo timbre composto um pouco mais heterogêneo que os primeiros, visto que a
diversidade de timbres agrupados é ainda maior que os anteriores. Em todo caso, aqui o
almejando aplicar contrastes timbrísticos entre uma única família orquestral — no caso, as
madeiras.
forma mais homogênea possível, uma vez que os instrumentos usados fazem parte da mesma
família e estão escritos em um mesmo registro de alturas. O quarteto de trompas tem fácil
timbragem com os trombones e essa homogeneidade é reforçada pela textura coral do trecho.
É certo que o timbre predominante, neste trecho, será o das trompas, visto que elas estão em
maior quantidade e possuem poder sonoro similar ao dos trombones. Podemos afirmar que o
27
A família das madeiras é subdividida em três subfamílias: instrumentos com embocadura livre, instrumentos
com palheta simples e instrumentos com palheta dupla.
97
trecho, como se fosse uma “quinta trompa”, na tentativa de alargar o ambiente sonoro via uma
28
É comum nos manuais de orquestração, a abordagem de mudanças de perspectiva sonora mediante registros,
até mesmo de instrumentos da mesma família, para obter maior ou menor grau de diferenciação sonora.
98
dessas timbragens já analisadas, podemos constatar que piccolo, flauta, violinos 1 e 2, clarinete
(Bb), todos se encontram dispostos em oitavas, fato esse que torna a timbragem geral do trecho
famílias orquestrais diferentes), visto que as oitavas tendem a soar como timbres compostos em
29
Os três agrupamentos timbrísticos estão dispostos em uníssono.
99
perspectiva de análise ainda mais, a fim de compreender o timbre geral do trecho, visto que
existe um grande vazio no espectro sonoro-orquestral médio. Este, por sua vez, desempenha a
função de contrapor a ideia da timbragem homogênea, visto que esse vazio entre os
instrumentos graves e agudos fará com que as duas sonoridades sejam ouvidas de forma
heterogênea. Podemos, a partir desta compreensão, afirmar que existem planos de combinações
timbrísticas dessa natureza tanto no Exemplo 23, como em outros trechos da obra Spero.
para que a consideremos como heterogênea. Com sonoridade frágil e opaca, os harmônicos
agrupamento por famílias orquestrais, e sim pelo uso de duas sonoridades díspares que
100
pudessem ser complementares. O triângulo tem o ataque sonoro muito mais presente e veloz
que as cordas em harmônicos. Estas, por sua vez, terão muito mais release que o triângulo, fato
contrastar a sonoridade dos compassos anteriores (c. 91–95) e dos posteriores (c. 97–101), onde
cordas em pizzicato, destacada em vermelho, soará de forma homogênea, pela semelhança que
existe entre esses dois timbres. A opção por escrever esses instrumentos em uníssono e com o
mesmo ritmo surge, nesse contexto, como uma estratégia para reforçar ainda mais a
dispostas nos violinos 1 e 2, já que, se estes estivessem tocando em detaché,30 a timbragem não
de forma mais heterogênea que o primeiro agrupamento do Exemplo 25, uma vez que, por não
ter alturas definidas, o woodblock não poderá ser executado nas mesmas frequências que as
violas e os violoncelos. Além disso, podemos notar que os acentos adotados no ostinato rítmico
contido no instrumento percussivo não está em combinação com as cordas que desempenham
30
Detaché é a técnica mais convencional entre os instrumentos de cordas da orquestra, com a qual estes são
tocados com a fricção do arco, de forma alternada, sem acentuar as notas e de maneira “lisa".
101
oitava não é suficiente para garantir uma sonoridade homogênea, mas sim o cuidado e o
natureza do instrumento, a técnica a ser usada, dentre outros. Seguiremos, no próximo tópico,
têm a interessante capacidade de projetar novas sonoridades a partir do choque entre suas séries
102
estão dispostos de forma sutil na obra Spero, quase sempre sobrepostos por combinações
Podemos constatar, através do Exemplo 26, que a sonoridade progride de duas maneiras.
Na primeira, destacada na cor vermelha, podemos ver os glissandos entre as notas fá e mi.32 Já
a segunda, destacada na cor azul, progride a partir da densificação sonora causada pela
sobreposição de quintas justas. Os glissandos, por si só, garantem um efeito orquestral que se
dinâmico entre seus parciais, visto que a estabilidade proporcionada pelas quintas justas em
sobreposição será abalada pela instabilidade trazida pelos glissandos. Esta justaposição entre
vermelho, acontece de forma atípica, visto que o efeito orquestral criado a partir da técnica
estendida nos metais não é convencional, apesar de já utilizada por alguns compositores
modernos. A ideia de combinar essa sonoridade ao rufo do vibrafone, surge como uma maneira
de trazer a sonoridade um exotismo timbrístico ainda maior, uma vez que esse instrumento tem
um timbre riquíssimo e conta ainda com o efeito de trêmolo, efeito que não é encontrado, de
31
A concepção de que o som possui elementos integradores além de sua série harmônica é oriunda das pesquisas
sobre o espectro sonoro de Grisey, Murail e outros compositores espectrais. Para maior aprofundamento
bibliográfico recomendamos a leitura de Humięcka, (2009), Drott (2005), Griffiths (2011), Slonimsky (2004) e
Taruskin (2005).
32
Motivo principal da obra que remete à teoria kepleriana, conforme abordado no capítulo anterior.
33
Entendemos que os parciais provenientes de notas longas estáticas são estáveis, enquanto que os parciais
oriundos das notas em glissando são instáveis e representam certa plasticidade sonora no trecho.
103
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
quando a ela integra o diversificado repertório de atitudes compositivas dos séculos XX e XXI.
Na busca dessa compreensão, pudemos perceber, através de uma revisão bibliográfica, que as
fontes teóricas sobre o assunto são escassas, e as poucas existentes não contemplam essa parte
encontramos os trabalhos de Gomes (2001, 2015), a partir dos quais pudemos compreender que
compor música orquestral é saber lidar com uma atividade que envolve múltiplas tarefas.
carências teóricas sobre esse assunto. A partir das múltiplas tarefas sugeridas por Gomes (2001,
2015), pudemos concentrar nossa atenção analítica nos procedimentos orquestrais que
Ter escolhido o repertório sinfônico de Mario Ficarelli como objeto de análise — tendo
bibliográfica sobre sua vida e obra —, foi, sem dúvida, um dos fatores que nos estimularam a
realizar esta pesquisa. Dessa forma, traçamos um perfil analítico para a compreensão dessas
As análises nos levaram a constatar que a obra de Mario Ficarelli é baseada não apenas
estruturante da ideia musical. Pudemos então afirmar que tanto a sucessão de blocos sonoros
106
quanto o alongamento dos gestos orquestrais são de extrema importância para a compreensão
das estruturas formais dos trechos analisados, ou até mesmo da forma geral das obras. Pudemos
também constatar que as combinações timbrísticas seguem três linhas básicas na obra de
Com esta pesquisa, pudemos também compor a obra Spero, para orquestra sinfônica.
Através dela, foi possível testar e aplicar as estratégias de forma prática, inspirando-nos nas
análises das obras sinfônicas de Mario Ficarelli. Spero não é a nossa primeira obra orquestral,
por isso pudemos compará-la às demais e notar um grande avanço em direção à consciência e
provenientes das análises feitas, esta obra não teria tanta relevância, em relação às suas
estratégias orquestrais. Isso se daria mesmo que estivesse abordando o assunto, na criação dessa
obra com uma certa simplicidade textural, propositadamente enfatizando em primeiro grau
Esperamos que, com esta dissertação, novas perspectivas analíticas sejam discutidas e
implementadas em pesquisas posteriores, como também surjam métodos didáticos que possam
reforçar ou contrapor o nosso discurso. A partir disto, esperamos ainda que se desdobrem novas
aplicações práticas, as quais garantam a criação de novas obras. Esperamos também que esta
pesquisa desperte o interesse de compositores, para que eles possam formular propostas teóricas
pois consideramos esse tipo de abordagem indispensável para a compreensão das estratégias
REFERÊNCIAS
ADLER, Samuel. The Study of Orchestration. 2. ed. New York: Norton. 1989.
AULETE, Francisco J. Caldas; VALENTE, Antonio Lopes dos Santos. Dicionário Aulete
Digital. [s/l]: Lexikon Editora Digital, 2017. s.v. “contraste”. Disponível em:
<http://www.aulete.com.br/>. Acesso em: 19 mar. 2017.
BLATTER, Alfred. Instrumentation and Orchestration. 2nd ed. New York: Schirmer
Books, 1997.
BURKHOLDER, Peter J. The twentieth Century and the Orchestra as Museum. In: PEYSER,
Joan (ed.) The Orchestra: origins and transformations. New York: Charles Scribner’s Sons,
1986. p. 409-433
CLARK, Hamilton. Manual of Orchestration. London: J. Curwen & Sons, 8 & 9 Warwick
Lane, E.C., 1888.
COPLAND, Aaron. Como ouvir e entender música. Tradução Luiz Paulo Horta. São Paulo:
Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda., 2011.
DROTT, E. Timbre and the Cultural Politics of French Spectralism. In: Proceedings of the
Conference on interdisciplinary Musicology. Montreal. 2005.
FICARELLI, Mario. Zyklus II. Rio de Janeiro: [s.n.], 1976. Orquestra sinfônica.
______. Sinfonia No. 2: mhatuhabh. Rio de Janeiro: [s.n.], 1991. Orquestra sinfônica.
108
______. Modern Music and After. New York: Oxford University Press, 2010.
GROUT, Donald Jay. A History Of Western Music. Shorter Edition, Rev. New York:
Norton, 1973
HUMIĘ CKA-JAKUBOWSKA, J. The spectralism of Gérard Grisey: from the nature of the
sound to the nature of listening. In: Interdisciplinary studies in Musicology, 8. Tradução
John Comber. Poznan: 2009. p. 227-225
HURON, David. Sweet Antecipation: music and the psychology of expectation. Cambridge:
The MIT Press, 2006
______. Crítica e criatividade a partir de uma imagem criada por Ernst Widmer. In:______. O
Pensamento Musical Criativo: Teoria, análise e os desafios interpretativos da atualidade.
Salvador: UFBA, 2015. Cap. 7.
MEYER, L. Emotion and Meaning in Music. Chicago: Chicago University Press, 1956.
PAHLEN, Kurt. História universal da música. Tradução A. Della Nina. São Paulo : Edição
Melhoramentos, 1965
RAUSCHER, Donald J. Orchestration: Scores and Scoring. New York: The Free Press of
Glencoe, 1963.
SLONIMSKY, N.; YOURKE, E. Music of the modern era. New York: Routledge, 2005.
SNYDER, Bob. Music and Memory: an introduction. Cambridge/London: The MIT Press,
2000.
110
TARUSKIN, R. The Oxford history of western music. Vol. 3. New York: Oxford
University Press, 2005.
WENNERSTROM, Mary. Form in Twentieth Century Music. New Jersey: Prentice Hall,
1975.