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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

KEDSON SILVA DE JESUS

ESTRATÉGIAS ORQUESTRAIS NAS OBRAS SINFÔNICAS

DE MARIO FICARELLI

Salvador
2018
KEDSON SILVA DE JESUS

ESTRATÉGIAS ORQUESTRAIS NAS OBRAS SINFÔNICAS

DE MARIO FICARELLI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em


música, Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Música.
Área de concentração: Composição

Orientador: Prof. Dr. Wellington Gomes da Silva

Salvador
2018
KEDSON SILVA DE JESUS

ESTRATÉGIAS ORQUESTRAIS NAS OBRAS SINFÔNICAS

DE MARIO FICARELLI

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em


Composição, Escola de Música, Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em XXXX de 2018.

Prof. XXXX – Orientador ______________________________________________


XXXX
XXXX
Universidade Federal da Bahia

Prof. XXXX _____________________________________________________


XXXX
XXXX
XXXX

[DEMAIS PROFESSORES DA BANCA XXXX]


A meus pais,
Juscelino Batista e Maria Salomé (In Memorian),
por concederem a minha existência, e por se manterem
próximos a mim, através das belas memórias
que deixaram por aqui.
AGRADECIMENTOS

A Deus, mantenedor de todas coisas, por me conceder as faculdades cognitivas necessárias para
desenvolver este trabalho, e por sempre guiar os meus passos.

À minha amada Angelica Lopes, que se tornou minha esposa durante o processo desta pesquisa,
por me apoiar em tempo integral, por estar comigo nos momentos alegres e por me dar a chance
de compartilhar os meus anseios — amo-te.

À minha família, em especial meus tios e também pais, Reginaldo Nemézio, Maria Celsa, e
Marta Matos, por apoiarem e incentivarem a minha carreira musical, desde os meus seis anos
de idade até o presente momento. Sem vocês, eu não chegaria até aqui, minha eterna gratidão.

A Wellington Gomes, meu orientador, que com muita propriedade e paciência me ensinou os
caminhos teóricos e práticos para a realização desta pesquisa.

À querida Silvia de Lucca, viúva do compositor Mario Ficarelli, que gentilmente nos apoiou,
cedendo materiais e informações preciosíssimas para a realização desta dissertação.

À Academia Brasileira de Música (ABM), especialmente ao assessor Alessandro de Morais


pela disponibilização das partituras orquestrais de Mario Ficarelli.

Ao amigo e compositor Marcos de Paula, que gentilmente me auxiliou na obtenção de algumas


partituras.

Ao maestro Roberto Duarte, amigo pessoal de Mario Ficarelli, pelas valiosas informações a
respeito da obra orquestral do compositor.

Aos professores Guilherme Bertissolo, Paulo Costa Lima, Diana Santiago e Conceição Perrone,
pelos ensinamentos dados nos seminários ao longo desta pesquisa.

Aos professores Pedro Kroger, Flávio de Queiroz e Marcos Sampaio, pelos incentivos de
sempre.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela viabilização


financeira deste trabalho.

À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS) – UFBA, pelo estímulo


proporcionado pela seleção do meu projeto.

Muito obrigado por possibilitarem esta experiência enriquecedora e gratificante, da maior


importância para meu crescimento como ser humano e profissional.
Só se pode alcançar um grande êxito quando nos mantemos

fiéis a nós mesmos.

Friedrich Nietzsche
JESUS, Kedson Silva de. Estratégias orquestrais nas obras sinfônicas de Mario Ficarelli.
XXXX fl. 2018. Dissertação (Mestrado) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2018.

RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar a relação entre estratégias orquestrais e processos
composicionais em obras de Mario Ficarelli, entre os anos de 1976 e 2012, sob uma perspectiva
analítica em torno da manipulação timbrístico-orquestral. Dividimos esta abordagem em duas
estratégias gerais: a manipulação do contraste timbrístico e a sua relação com a compreensão
formal das obras; e combinações timbrísticas — procedimentos de homogeneidade,
heterogeneidade e combinação de sons emergentes — relacionadas à ideia composicional
dessas obras. A partir desta pesquisa, uma obra orquestral intitulada Spero foi composta com
base nos resultados obtidos, aplicando novas diretrizes a partir de nossas perspectivas
composicionais aqui expostas.

Palavras-chave: Orquestração, Mario Ficarelli, Composição Musical, Análise Composicional.


JESUS, Kedson Silva de. Orchestral strategies in symphonic works by Mario Ficarelli. XXXX
pp. 2018. Master Dissertation – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2018.

ABSTRACT

This study aims to analyze the relationship between orchestral strategies and compositional
processes in works by Mario Ficarelli, between the years of 1976 and 2012, from an analytical
perspective around the orchestral-timbre manipulation. We divided this approach into two
general strategies: the manipulation of the timbre contrast and its relation with the formal
understanding of the works; and timbre combinations — procedures of homogeneity,
heterogeneity, and combination of emerging sounds — related to the compositional idea of
these works. From this research, an orchestral work entitled Spero, have been composed based
on the results obtained, applying new guidelines from our compositional perspectives to be
exposed.

Keywords: Orchestration, Mario Ficarelli, Musical Composition, Compositional Analysis.


LISTA DE EXEMPLOS

Exemplo 1 Zyklus II (c. 32–34) – Três blocos orquestrais contrastantes ................... 45

Exemplo 2 Transfigurationis (c. 1–8) – Três blocos orquestrais contrastantes ......... 47

Exemplo 3 Transfigurationis (c. 47–56) – Dois blocos orquestrais contrastantes ..... 50

Exemplo 4a Transfigurationis (c. 48) – Redução orquestral motívica ........................ 51

Exemplo 4b Transfigurationis (c.55) – Redução orquestral motívica ......................... 51

Exemplo 5 Epigraphe 1990 (c. 48–54) – Contraste entre 2 blocos orquestrais ......... 53

Exemplo 6 Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 81–84) – Contraste entre 2 blocos

orquestrais ................................................................................................ 57

Exemplo 7 Parasinfonia (c. 1–12) – Contraste entre 2 blocos orquestrais ................ 59

Exemplo 8a Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 35–43) – Análise formal e motívica feita

por Ficarelli .............................................................................................. 67

Exemplo 8b Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 67–73) – Análise formal e motívica feita

por Ficarelli .............................................................................................. 68

Exemplo 9 Parasinfonia (c. 88–101) – Relação entre contraste orquestral e estruturas

formais ..................................................................................................... 69

Exemplo 10 Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 35–43) – Timbragem homogênea ........ 73

Exemplo 11 Zyklus II (p. 23) – Combinações timbrísticas homogêneas ..................... 75

Exemplo 12 Sinfonia No. 3 (c. 73–77) – Timbragens heterogêneas ............................ 77

Exemplo 13 Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 155–164) – Timbragens heterogêneas . 78

Exemplo 14 Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 106–109) – Sons emergentes ............... 81

Exemplo 15 Parasinfonia (c. 131–139) – Sons emergentes ........................................ 83

Exemplo 16 Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 99–105) – Sons emergentes ................. 84

Exemplo 17 Spero (c. 91–111) – Contraste entre três blocos orquestrais .................... 88
Exemplo 18 Spero (c. 119–129) – Sobreposição de blocos timbrísticos contrastantes

................................................................................................................... 90

Exemplo 19 Spero (c. 1–35) – Densificação e meta orquestral ................................... 92

Exemplo 20 Spero (c. 49–65) – Contraste máximo entre três blocos orquestrais......... 94

Exemplo 21 Spero (c. 57–68) – Combinações timbrísticas homogêneas e heterogêneas

................................................................................................................... 97

Exemplo 22 Spero (c. 91–101) – Combinação timbrística homogênea ........................ 97

Exemplo 23 Spero (c. 54) – Combinações timbrísticas ................................................ 98

Exemplo 24 Spero (c. 96) – Combinação timbrística heterogênea ............................... 99

Exemplo 25 Spero (c. 127–134) – Combinações timbrísticas homogêneas e

heterogêneas ............................................................................................. 101

Exemplo 26 Spero (c. 142–153) – Sons emergentes .................................................... 103

Exemplo 27 Spero (c. 86–101) – Sons emergentes ...................................................... 104


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Instrumentação dos blocos contrastantes em Zyklus II (c. 32–34)............ 46

Tabela 2 Famílias da orquestra utilizadas nos blocos contrastantes em Zyklus II

(c. 32–34) ................................................................................................. 46

Tabela 3 Instrumentação dos blocos contrastantes em Transfigurationis (c. 1–8) . 48

Tabela 4 Famílias da orquestra utilizadas nos blocos contrastantes em

Transfigurationis (c. 1–8) ........................................................................ 49

Tabela 5 Classificação organológica dos instrumentos musicais ........................... 72

Tabela 6 Agrupamentos instrumentais utilizados nos blocos contrastantes em Spero

(c. 91–111) ............................................................................................... 87

Tabela 7 Agrupamentos instrumentais utilizados em contraste máximo em Spero (c.

49–65) ...................................................................................................... 93

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 8 –90) – estudo quantitativo do fluxo

instrumental............................................................................................... 63

Gráfico 2 Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 62 –73) – estudo quantitativo do fluxo

instrumental............................................................................................... 65
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 14

2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ..................................................................... 18

2.1 ORQUESTRAÇÃO E ANÁLISE ................................................................... 18

2.2 VIDA E OBRA ORQUESTRAL DE MARIO FICARELLI .......................... 29

2.2.1 Aspectos biográficos ...................................................................................... 29

2.2.2 Obras orquestrais .......................................................................................... 33

3 ANÁLISES DE OBRAS DE MARIO FICARELLI ................................... 39

3.1 RELAÇÕES ENTRE CONTRASTE ORQUESTRAL E ESTRUTURAS

FORMAIS ....................................................................................................... 41

3.1.1 Contraste orquestral na obra de Mario Ficarelli ....................................... 41

3.1.2 Aspectos formais em perspectiva do contraste timbrístico ........................ 61

3.2 ESTRATÉGIAS ORQUESTRAIS EM TORNO DE COMBINAÇÕES

TIMBRÍSTICAS ............................................................................................. 70

3.2.1 Combinações timbrísticas homogêneas e heterogêneas ............................. 71

3.2.2 Combinações timbrísticas que resultam em sons emergentes ................... 79

3.3 BREVES COMENTRÁRIOS CONCLUSIVOS SOBRE AS ANÁLISES .... 85

4 MEMORIAL ANALÍTICO DA OBRA SPERO ........................................ 86

4.1 RELAÇÕES ENTRE CONTRASTE ORQUESTRAL E FORMA ................ 86

4.1.1 Contraste orquestral na obra Spero ............................................................. 87

4.1.2 Relações entre contraste orquestral e estruturas formais ......................... 91

4.2 ESTRATÉGIAS DE COMBINAÇÃO TIMBRÍSTICA ................................. 95

4.2.1 Combinações timbrísticas homogêneas e heterogêneas ............................. 95

4.2.2 Combinações timbrísticas que resultam em sons emergentes ................... 101

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 105

REFERÊNCIAS ............................................................................................ 107

APÊNDICE A – PARTITURA COMPLETA DE SPERO ........................ 111


14

1 INTRODUÇÃO

A composição de música orquestral está entre as atividades mais complexas na carreira

de um compositor. As grandes orquestras sinfônicas do mundo têm se mantido em

funcionamento ao longo dos últimos séculos, e a sonoridade timbrístico-orquestral tem sofrido

constantes mudanças, em adaptação ao tempo e aos fenômenos culturais. Entender como e para

que motivo essas mudanças acontecem não é uma tarefa simples, principalmente se levarmos

em consideração o repertório dos séculos XX e XXI e sua enorme diversidade. O autor

Wellington Gomes (2002) escreve sobre o desafio de estudar a arte da orquestração moderna:

Não são muitas as obras que tratam do estudo específico da orquestração com uma
visão mais atualizada. As que se dedicaram à realização desta tarefa ainda estão longe
de realizá-la de forma significativa, tendo em vista um número considerável de
problemas a serem enfrentados. Um deles é a diversidade de obras escritas no século
XX, que refletem uma enorme quantidade de procedimentos orquestrais, sem falar
que, basicamente cada obra possui seu universo sonoro próprio, dificultando em
grande parte as comparações analíticas. A área ainda é muito carente de fontes
específicas que tratem do contexto orquestral de forma mais abrangente, através de
uma farta exemplificação e uma visão mais atualizada da arte de orquestrar (GOMES,
2002, p. 12).

Muitos campos teóricos da composição estão fundamentados sobre a estruturação da

obra, levando em consideração a classificação dos seus diferentes níveis, como as análises

motívicas, harmônicas, formais, temporais, e ainda outras baseadas em lógicas analíticas afins.

Desta forma, o estabelecimento de análises voltadas para um certo estruturalismo da

obra se tornou fundamental para a compreensão de procedimentos composicionais utilizados

pelos compositores. Todavia, nota-se uma ausência, nestas abordagens, de um conteúdo ligado

diretamente à arte da orquestração.

Os avanços tecnológicos dos séculos XX e XXI proporcionaram ao homem moderno

novas formas de enxergar o mundo e, consequentemente, de entender e criar arte. As


15

diversificadas formas de expressão, representadas pelas correntes composicionais destes

séculos, revelaram a necessidade de expandir os campos teóricos da composição musical. Nos

dias de hoje, temos conhecimento de diversas abordagens teóricas para compreensão dessas

variadas formas de compor. No entanto, poucas têm enfoque no desvelamento de processos

ligados diretamente à manipulação timbrístico-orquestral.

Nossa pesquisa se inicia pela assertiva de que a compreensão das estratégias

composicionais, em relação à manipulação da massa sonoro-orquestral é muito importante para

que haja avanços teóricos e práticos no campo da orquestração. Não mais nem menos

importante que qualquer outra abordagem teórica da composição musical, o estudo da

orquestração se debruça sobre questões subjetivas e de pouco suporte teórico, visto que são

escassas as fontes relevantes sobre o assunto.

Para o desenvolvimento desse contexto, escolhemos o compositor Mario Ficarelli, por

acreditarmos que sua obra sinfônica é construída não só por procedimentos estruturalistas

tradicionais, mas também pela minuciosa manipulação timbrístico-orquestral. Escolhemo-lo

também por considerarmos sua importante trajetória e influência no movimento da música de

concerto entre os séculos XX e XXI.

Mario Ficarelli foi um compositor e educador musical paulista, nascido em 4 de julho

de 1935. Destacou-se no cenário musical brasileiro, sobretudo por sua proficiência em compor

musica orquestral. Autodidata, Ficarelli compunha através de caminhos intuitivos, como deixa

claro:

Nosso procedimento composicional fundamenta-se no aspecto intuitivo apoiado


evidentemente no conhecimento técnico. Acreditamos poder aplicar os resultados
satisfatórios obtidos, a partir do intenso trabalho realizado anteriormente com a
análise cuidadosa de partituras dos grandes mestres quando no exercício diário como
autodidata ao longo de vários anos e posteriormente como docente. (FICARELLI
1995, p. 28)
16

Ficarelli (1995) aponta para o exercício de análise anterior à criação de suas obras. Esse

exercício pode se tornar muito subjetivo, se o analista não dispor de experiência prévia, suporte

teórico, ou simplesmente não ter sensibilidade suficiente para aprender diretamente com

análises da partituras orquestrais. Ficarelli certamente possuía tal sensibilidade e obtinha as

ferramentas necessárias para compor suas obras orquestrais, visto que as compunha

basicamente de forma intuitiva. Este trabalho terá como foco central compreender essas

ferramentas, as quais chamaremos de estratégias orquestrais.

As questões que nos motivaram para o desenvolvimento desta pesquisa foram: quais

são as principais estratégias orquestrais utilizadas pelo compositor Mario Ficarelli? E de que

maneira elas estão interligadas com o fazer compositivo estrutural? Essas estratégias são

recorrentes em suas obras? Existe suporte teórico que contemple esse conjunto de estratégias?

É possível criar uma obra original onde essas estratégias se apliquem?

No primeiro e no segundo capítulos desta pesquisa, realizamos uma revisão

bibliográfica sobre o campo teórico da orquestração, onde criamos paralelos com outras

propostas analíticas elaboradas por teóricos da área. Em seguida fizemos uma revisão

bibliográfica sobre a vida e a obra sinfônica do compositor Mario Ficarelli. Essas duas revisões

bibliográficas são destinadas à contextualização denossa dissertação. O terceiro capítulo foi

destinado à apresentação das análises, metodologias e constatações feitas a partir de um

conjunto de obras sinfônicas de Ficarelli. E o quarto capítulo foi composto pelo memorial

analítico da obra Spero, obra criada durante o desenvolvimento desta pesquisa. Esse memorial,

finalmente, propôs um paralelo analítico entre a obra Spero e as obras sinfônicas de Ficarelli.

Assim como Ficarelli relata ter desenvolvido sua técnica composicional a partir da

análise de obras primas de grandes mestres da história da música, esta pesquisa surge, também,

pelo interesse em aprofundarmos o nosso conhecimento prático e aprimorar nossas técnicas

composicionais, a partir da análise das obras de Ficarelli, considerando tais análises como um

ponto de partida para novas diretrizes composicionais, assumindo que “A verdadeira arte da
17

orquestração é inseparável do ato criativo de compor música” (PISTON, 1988, p.7, tradução

nossa)1. Para tanto, obtivemos melhores resultados dos fenômenos composicionais a partir das

análises realizadas. Deixando de lado a separação entre os termos “processos composicionais”

e “orquestração”, buscamos o entendimento da integração entre essas duas vertentes.

1
no original: “The true art of orchestration is inseparable from the creative act of composing music.”
18

2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Neste capítulo apresentaremos um panorama geral do campo teórico da orquestração,

levando em consideração os escritos de diversos autores influentes no ramo. Por entendermos

que o estudo da orquestração está em constante construção, abordaremos diversos pontos de

vista, com a intenção de mostrar os caminhos que o campo teórico da orquestração tem tomado,

principalmente entre a segunda metade do século XX e os dias atuais.

2.1 ORQUESTRAÇÃO E ANÁLISE

É certo que o corpo sonoro orquestral passou por constantes modificações, até que

chegasse à sonoridade moderna que apreciamos nos dias de hoje. Tais modificações não se

deram apenas por razões peculiares e claras, mas também por motivações subjetivas e pouco

discutidas entre os teóricos da composição musical em geral.

O autor Adam Carse (1964) demarca fatos históricos importantes, para a compreensão

da evolução sonoro-orquestral. Em seu livro The history of orchestration, o autor propõe uma

divisão em dois períodos da história, como citado:

A evolução se divide amplamente em dois períodos, o primeiro terminando após a


metade do século XVIII com a morte dos dois grandes mestres da harmonia
polifônica, Bach e Handel; a segunda iniciando com a ascensão da orquestração
moderna através das mãos de Haydn e Mozart. A transição é abrangida
cronologicamente pelo trabalho de Gluck e um grupo de compositores secundários,
dentre os quais provavelmente os mais notáveis sejam Philipp Emanuel Bach e Hasse.
(CARSE, 1964, p. 1, tradução nossa). 2

2
No original: “The evolution divides itself broadly into two periods, the first ending soon after the middle of the
eighteenth century with the death of the two great masters of harmonic polyphony, Bach and Handel; the second
beginning with the rise of modern orchestration in the hands of Haydn and Mozart. The transition is
chronologically spanned by the work of Gluck and a group of secondary composers of which perhaps the best
remembered are Philipp Emanuel Bach and Hasse.”
19

Ao propor esses períodos históricos da orquestração, Carse nos leva a pensar sobre as

estratégias composicionais de dois períodos: o barroco e o clássico. Apesar de terem várias

similaridades composicionais — por estarem incluídos no período da prática comum, ou

período tonal —, a música dos períodos barroco e clássico são inconfundíveis em sua

sonoridade geral. Não nos resta dúvidas de que, além dos diferentes procedimentos

composicionais e formas, o que diferencia esses dois períodos está também no domínio do

timbre, da manipulação sonoro-orquestral. Os períodos barroco e clássico são comumente

estudados em nível de graduação e pós-graduação, para melhor compreensão das estratégias

composicionais criadas pelos mestres da composição musical. No entanto, apesar de existirem

muitas correntes analíticas voltadas para o repertório tonal, poucas são especificamente

relacionadas à arte da orquestração de forma aprofundada.

Sabemos nos dias de hoje que a prática do compor está diretamente ligada aos campos

de análise e pesquisa. No entanto, é intrigante perceber que a prática e a pesquisa da

orquestração não se desenvolvem com a mesma intensidade. Sobre a relação entre orquestração

e pesquisa, Gomes afirma:

Ao longo de mais de 24 anos trabalhando na área da Composição Musical em nível


superior [ensino (graduação e posteriormente pós-graduação), pesquisa e extensão], o
que eu tenho observado tanto nos discursos escritos quanto nos orais é que há uma
valorização predominante dos procedimentos estruturantes da composição sempre
deixando de lado, ou passando de raspão, o campo da orquestração. Provavelmente
estejamos pisando no campo menos teorizado e analisado da composição musical,
onde as experiências e procedimentos técnicos tenham se formado quase que
exclusivamente da prática em si (mesmo com o que já foi escrito sobre o assunto até
o final do século XX...). (GOMES, 2018, p. 112)

Gomes retrata, nesse trecho, um parecer geral sobre pesquisa e orquestração, e continua

o seu texto em um trabalho de meta-análise, na tentativa de tornar clara a deficiência teórica

que o campo apresenta nos dias atuais. Este tipo de exercício é de extrema importância, uma

vez que sentimos falta de visões teóricas esclarecedoras sobre o tema. Muitos trabalhos
20

existentes voltados para a orquestração quase nunca propõem uma metodologia específica para

análises orquestrais que tenham utilidade ao repertório moderno e contemporâneo.

A partir da citação de Gomes, podemos refletir sobre a hierarquização de campos

teóricos, pois o autor relata ter observado uma supervalorização de análises relacionadas aos

procedimentos estruturantes da composição. Não é estranho que se observe maior quantidade

de trabalhos ligados à análise de estruturas organicistas, uma vez que décadas de pesquisa e

análise foram dedicadas a esses tipos de enfoques teóricos, tornando-os efetivos para o

repertório tonal. Como exemplo, podemos citar as análises criadas por Schenker, além das

análises motívicas e formais.

Não há dúvidas quanto à relevância das teorias existentes que se relacionam à estrutura

organicista da obra. Porém, o modernismo e o pós-modernismo levaram os compositores e

teóricos a assumir novos discursos expressivos. Griffths (1978) compara o panorama da

composição musical do século XX com o século anterior, e sua perspectiva nos proporciona o

entendimento de quão variadas são essas correntes composicionais:

Pode-se argumentar que a atividade artística parece sempre incoerente e multiforme


aos olhos dos contemporâneos, e que os traços comuns definem-se apenas mais tarde,
como se deu em Stravinsky e Schoenberg, que nos anos 20 pareciam ser os pólos
opostos da música. Ainda assim, é difícil fugir à conclusão de que o período moderno
assistiu a uma inédita diversificação dos estilos musicais, de que os compositores de
hoje não se apresentarão à posteridade tão identificados entre si quanto seus
antecessores do século anterior: Wagner, Brahms, Liszt, Dvořák, Bizet, Verdi,
Mussorgsky, Grieg. Por diversificada que fosse a música destes, todos respeitavam os
mesmos princípios fundamentais, em especial os da harmonia diatônica. Na década
de 1970, já não existem verdades comuns. (GRIFFTHS, 1978, p. 183)

Com a implementação de novos discursos poético-musicais, a partir do início do século

XX, a composição musical e os campos analíticos se expandiram em busca de novos horizontes.

Essas diversas perspectivas analíticas estão situadas em locais cada vez mais específicos e
21

parecem seguir uma direção contrária à monocultura organicista estabelecida há anos nos

campos teóricos tradicionais, segundo afirma Lima:

Sabemos muito bem do incrível processo de diversificação de enfoques analíticos


construídos nas últimas décadas, afastando-nos da monocultura do paradigma
estrutural-organicista. Diversificação tão ampla que nos põe a refletir sobre o futuro
desse universo, continuará se expandindo em campos e campos de literatura analítica?
Mais importante ainda: a que forças (políticas) responde? Estamos em transição de
paradigma, em plena emergência de uma nova episteme? Dará origem a sínteses
capazes de ancorar a diversidade recém-produzida?... (LIMA, 2015, p. 141)

Considerando que existe um afastamento notório dos enfoques analíticos tradicionais,

conforme propõe Lima, existirá também uma síntese capaz de ancorar a teoria da orquestração?

Os questionamentos que nos movem são: como chegamos à diversa realidade sonoro-

orquestral do século XXI? Quais atitudes composicionais diferenciam o repertório orquestral

moderno do repertório clássico? Que visões de mundo levaram os compositores a seguir por

caminhos tão distintos? Como construir teorias que possam sintetizar as estratégias orquestrais

modernas?

A metodologia mais usada pelos teóricos da área da orquestração, é explicar as

mudanças do timbre orquestral, a partir dos avanços tecnológico-instrumentais, entre o século

XV e os dias atuais. Sabemos que com os avanços tecnológicos, os instrumentos musicais

passaram a ter maior quantidade de recursos, e melhor qualidade de timbre como afirma Aaron

Copland:

Como os instrumentos são, afinal, máquinas, sujeitas a melhoria como qualquer outra
máquina, qualquer compositor contemporâneo está mais bem situado do que
Beethoven no que se refere ao colorido tonal. O compositor de hoje tem novos
recursos para o seu trabalho, além de que dispõe da experiência dos que o precederam.
Isso é especialmente verdadeiro na utilização da orquestra. Não é de admirar que
alguns críticos que são extremamente severos diante da música contemporânea
admitam, não obstante, que o compositor moderno maneja a orquestra com
brilhantismo e imaginação. (COPLAND 2011, p.70)
22

Temos consciência de que o mundo artístico moderno proporciona liberdade expressiva

e recursos técnicos que os mestres da orquestração tradicional não podiam sequer imaginar. No

entanto, é relevante a reflexão sobre a real importância dessas inovações tecnológicas frente à

grandiosa obra dos orquestradores antigos e em relação às tendências tomadas pelos

compositores nas últimas décadas de produção. Será que a arte da orquestração se resume

apenas à utilização dos recursos que os instrumentos possuem? Existem atitudes que possam

garantir a proficiência da obra em relação à sua sonoridade orquestral? Na busca por encontrar

tais respostas, fez-se necessária uma revisão bibliográfica dos manuais de orquestração

tradicionais, bem como dos mais atuais. Em grande maioria, o que percebemos é a preocupação

primordial dos autores em mostrar os recursos instrumentais de forma detalhada, o que revela

o fato de que o estudo da instrumentação é muito mais tangível e simples do que os estudos da

orquestração propriamente dita e de forma mais aprofundada.

Autores como Clarke (1888), Widor (1906), Forsyth (1914; 1982), Casella (1950),

Adler (1989), Berlioz (1991), Blatter, (1997)3, entre outros, desenvolveram seus manuais de

orquestração a partir da descrição técnica dos instrumentos usados na orquestra, até o período

em que viveram, classificando-os sempre por famílias orquestrais e pela forma de produção do

som. O enfoque desses autores geralmente é a observação da diferenciação de timbre em cada

região da tessitura, efeitos, combinações usuais e atípicas, técnicas expandidas, dentre outros.

É de grande importância que um compositor saiba lidar, de forma prática e fluente, com as

questões abordadas por esses autores, uma vez que terá de lidar com as particularidades de cada

instrumento em seu dia a dia.

Casella afirma que os manuais podem ajudar bastante no aprendizado da orquestração.

No entanto tal prática não é o suficiente para a formação de um bom orquestrador:

3
A maioria destes autores usaram exemplos musicais de orquestradores tradicionais renomados como Mozart,
Haydn, Beethoven, Berlioz e Korsakov em seus livros.
23

Nós tentamos oferecer o máximo de idéias práticas dadas por quem consultamos para
o compositor jovem que inicia o difícil estudo da orquestração. No entanto isso pode
não ser o suficiente. É necessário manter contato com os professores mais
conhecedores da orquestra, tirar dúvidas, aprender com suas práticas, com suas
competências específicas e com suas habilidades. (CASELLA, 1950, p. 265)

Relacionando a afirmação de Casella com a carência de teorias voltadas especificamente

para processos orquestrais, podemos vislumbrar de forma crítica um pouco do pensamento

sobre o aprendizado da orquestração arraigado na mente de grande parte dos teóricos da música

e, consequentemente, no sistema de ensino de composição musical em geral. Isso se dá pois seu

manual de orquestração, apesar de muito útil para questões referentes à instrumentação, não se

aprofunda na análise de processos orquestrais. O autor está preocupado com o a técnica que o

compositor precisa ter ao compor para os instrumentos específicos, e em como o combinar

estrategicamente com outros a fim de garantir boa sonoridade. No entanto, os questionamentos

de padrões estéticos pré-estabelecidos, por parte dos compositores modernos, fizeram com que

a ideia de “boa sonoridade” se tornasse muito relativa. Por isso, muitas vezes as estratégias

abordadas por esses manuais de orquestração mais antigos não são tão úteis para o repertório

dos séculos XX e XXI.

Nosso trabalho leva em consideração os ensinamentos dos manuais tradicionais, por

entender que estes autores tem conhecimento específico de alto nível sobre o assunto. No

entanto, como Casella (1950, p. 265) afirma, o estudo da orquestração por meio de um manual

pode não ser suficiente para o “compositor jovem que inicia o difícil estudo da orquestração”,

e sim a aproximação com professores que tenham maior conhecimento sobre a orquestra,

podendo assim obter conhecimento através de suas práticas.

Não é nosso objetivo menosprezar a importância do processo de aprendizado

acompanhado por um mestre da orquestração, seja ele por meio acadêmico ou informal. No

entanto, esse tipo de afirmação pode distanciar ainda mais o jovem compositor aprendiz de seu
24

êxito na composição orquestral, uma vez que assumamos a assertiva de que a única forma de

aprender a arte de orquestrar é tendo vivência prática com compositores já experientes.

Esta problemática nos remete à famosa afirmativa feita por Korsakov, um dos mais

reconhecidos orquestradores da história:

Um tratado de orquestração pode demonstrar como se produz um acorde de boa


sonoridade com uma certa qualidade tímbrica, uniformemente distribuído, como
destacar uma melodia de seu composto harmônico, progressão correta das partes,
além de resolver todos os problemas semelhantes, mas nunca será capaz de ensinar a
arte da poética orquestral. Orquestrar é criar, e esta é uma coisa que não pode ser
ensinada. (KORSAKOV, 1964, p. 1-2)

Se Korsakov, compositor memorável por dominar a arte de orquestrar, pôde

compartilhar este pensamento em seu tratado de orquestração, como se portar diante de tal

afirmativa?

Nos dias atuais, temos o privilégio de ter conhecimento dos fatos histórico-musicais

subsequentes aos que os românticos puderam presenciar, e podemos levantar uma reflexão

acerca do peso que essas palavras puderam ter sobre os compositores e teóricos, os quais

produziram aproximadamente nesse período. Sobre isso, Gomes afirma:

É possível que as palavras de Rimsky-Korsakov, autor tão respeitado nesse campo,


possam ter reverberado por muito tempo, pelo menos no âmbito do desenvolvimento
de abordagens desta natureza, pois é notável no panorama dos manuais subsequentes
a carência de aprofundamento reflexivo no nível da orquestração propriamente dita.
(GOMES 2017, p. 115)

O tratado de orquestração de Rimsky Korsakov, é um dos recursos bibliográficos mais

recorridos pelos estudiosos da arte da orquestração em todo mundo. Reconhecemos sua

importância para o ensino e para a prática de compor música orquestral. No entanto, assumir

que esta afirmação de Korsakov está correta seria o mesmo que negar a importância não só

desta pesquisa, como também de várias outras existentes, ou que estão em pleno
25

desenvolvimento. Poderíamos, a partir disso, sugerir algumas reflexões: o que então estariam

fazendo as universidades e os professores que se propõem a ensinar composição musical? O

que seria do campo teórico que investiga a manipulação do timbre orquestral? Como a prática

de orquestrar progrediria sem a pesquisa, a análise, e a crítica? A afirmação de que o

conhecimento em torno da arte de orquestrar não pode ser transmitido através de uma boa

metodologia não nos satisfaz e parece ultrapassada aos dias de hoje.

O autor Walter Piston (1955) estruturou seu conhecido tratado de orquestração sob duas

perspectivas. A primeira parte trata do estudo da instrumentação como estamos habituados a

encontrar nos manuais tradicionais, enquanto que a segunda parte traz análises de texturas

orquestrais, dividindo-as em sete maneiras: uníssono orquestral, melodia acompanhada,

melodia secundária, condução de vozes, textura contrapontística, acordes e textura complexa.

O estudo das texturas orquestrais é deveras importante para qualquer orquestrador, uma

vez que, ao compor musica orquestral, escolhemos o tempo todo quais texturas usar ou quais

reservar para outro momento; a textura nos auxilia também no entendimento da forma musical

por conter níveis de contraste entre elas, conforme veremos mais adiante no capítulo destinado

a contraste orquestral e forma.

O entendimento da textura musical pode nos auxiliar na compreensão cronológica da

história da música, uma vez que os compositores de uma mesma época tendem a utilizar

texturas semelhantes para compor. Isso acaba por caracterizar, juntamente a outros fatores, as

marcas de um estilo ou estética musical. Um exemplo disso é o canto gregoriano, o organum

paralelo e o coral de uma missa renascentista, os quais são marcados não apenas pelos avanços

rítmicos, textuais e harmônicos, mas também pelas diferenças de texturas contidas em grande

parte das obras.

Visto que a compreensão das texturas orquestrais é de extrema importância para o

desenvolvimento de uma metodologia eficaz, nosso trabalho se fundamenta também no

trabalho de Piston (1955). Vale ressaltar que a metodologia de Piston não se fez suficiente para
26

esta pesquisa, pois sentimos carência de aprofundamento em questões não inerentes ao estudo

da textura. Entenda-se ainda que este trabalho não se concentra apenas na compreensão textural

de uma determinada obra, e sim de processos orquestrais que possam nos revelar estratégias

voltadas à manipulação do timbre orquestral, sendo a construção textural uma dessas

estratégias.

Na busca de suportes teóricos mais abrangentes e mais aprofundados no nosso campo,

encontramos o autor Wellington Gomes, que tem realizado pesquisa sobre processos

orquestrais e sobre o ensino da orquestração, nas últimas décadas. Em 2001, o autor publicou

um importante trabalho, como tese de doutorado, sobre as correlações entre estratégias

orquestrais e processos composicionais em obras criadas pelo grupo de compositores da Bahia.

Sendo trabalho de grande importância para a pesquisa em orquestração, sobretudo para a

realidade musical brasileira, a tese foi posteriormente editado como livro (GOMES, 2002).

Tendo como objeto de estudo principal, o grupo de compositores da Bahia, Gomes

certamente se deparou com problemáticas novas dentro do campo, já que o grupo, atuante entre

o final da década de 60 e o início da década de 70, tinha como premissa ideológica a fuga de

estilos de compor já sistematizados. A autora Ilza Nogueira utiliza as palavras de um dos

fundadores do grupo para expor tal premissa:

Uma premissa paradoxal serviu de lema ao grupo: “Principalmente estamos contra


todo e qualquer princípio declarado.” Com sentido “aparentemente sem rumo”, como
dizia Widmer, o lema definia um firme propósito de não defender “escolas” ou
tendência musical específica; revelava um esforço consciente de assumir uma postura
não-dogmática valorizando a diversidade idiossincrática, e de evitar tolhimento
oriundo de técnicas e estilos já sistematizados. (WIDMER, 1985:69).” (NOGUEIRA
1999, p. 28-35)

A partir da compreensão desse pensamento ideológico, podemos refletir sobre as

dificuldades analíticas e metodológicas que Gomes encontrou, já que a literatura de suporte

teórico é escassa, até mesmo para os estilos já sistematizados. Podemos afirmar que, quanto
27

mais distante estilisticamente do repertório tonal a obra estiver situada, mais diversas e

subjetivas as estratégias orquestrais parecem ser, considerando que se adotem os métodos

tradicionais de análise orquestral, como por exemplo os de Walter Piston, anteriormente

explanados.

Gomes parte da assertiva de que a arte da orquestração não está ligada apenas a aspectos

de natureza técnico-instrumental, mas a concepções artísticas determinantes no processo

composicional da obra:

Limitar a linguagem orquestral a aspectos de natureza técnico-instrumental ou de


equilíbrio orquestral, puro e simplesmente, ou até mesmo à simples escolha de uma
instrumentação, é como guilhotinar parte da concepção musical desenvolvida pelo
compositor. É possível que possamos até nos confrontar com situações onde existam
estas limitações, pela intenção proposital do compositor ou pela ausência de uma
realização orquestral, que transcenda meras possibilidades de preestabelecer uma
instrumentação, decorrente de uma imaturidade ou até mesmo da falta de capacidade
técnica e criativa do compositor. (GOMES, 2002, p. 8)

Sob a perspectiva do espírito inovador do grupo de compositores da Bahia e da assertiva

de que as estratégias orquestrais se relacionam diretamente com os processos composicionais

de uma obra, Gomes (2002) estrutura seu trabalho em cinco partes de grande importância para

a análise do repertório proposto, respectivamente: Considerações a respeito de orquestração e

previsibilidade; Aspectos de distribuição e combinação: Estratégias ambíguas; Aspectos de

distribuição e combinação: Estratégias transcendentais; Aspectos de distribuição e combinação:

Estratégias transcendentais; Aspectos da organização das distintas seções instrumentais no

corpo orquestral; e Aspectos de natureza instrumental.

Publicou no ano de 2015 um capítulo no primeiro livro da série Paralaxe (GOMES,

2015). No livro, o autor aponta para possíveis problemáticas que criaram uma enorme lacuna

entre a orquestração e a pesquisa (análise). Uma das problemáticas levantadas pelo autor é a de

que a orquestração é uma prática de múltiplas tarefas, consequentemente um exercício que


28

requer do praticante boa compreensão de um conjunto de códigos (símbolos e significados;

recursos e efeitos decorrentes) e de uma série de pré-requisitos básicos (estudos preliminares

de harmonia, contraponto e forma) para que exista a orquestração propriamente dita. A partir

dessa perspectiva, Gomes (2015) formula um conjunto de sínteses baseado em opções ou

escolhas inerentes às múltiplas tarefas da arte de orquestrar. São elas:

• Linhas horizontais: linhas melódicas horizontais, linhas melódicas diagonais ou

coloridas e capacidades horizontais de equilíbrio e ressonância;

• Compostos verticais: dobramentos, superposições, hierarquia orquestral, equilíbrio

orquestral, texturas cordais, homofônicas e polifônicas, e densidade sonora;

• Elementos de natureza instrumental: natureza técnica dos instrumentos, possibilidades

e potenciais específicos de cada instrumento, capacidades técnico-fraseológicas,

relações de registro e ressonância;

• Elementos de natureza multi-instrumental: diálogos entre instrumentos ou entre

famílias, procedimentos de homogeneidade, heterogeneidade e sons emergentes,

capacidades acústicas e de ressonâncias, e transparência orquestral;

• Recursos timbrísticos e efeitos idiossincráticos: artefatos instrumentais, contrastes e

fusões tímbricas, idiossincrasias étnicas ou culturais e possibilidades tímbricas não

ortodoxas;

• Procedimentos estruturais formais: blocos orquestrais, módulos orquestrais, partes

estruturais e estruturas gestuais: todos delineados por procedimentos timbrísticos e

graus de contrastes;

• Elementos estilísticos e de conteúdos conceituais: caráter, escolas, tendências,

características estilísticas de época e gênero, conceitos filosóficos e poéticos musicais.


29

As sínteses criadas por Gomes nos ajudaram a nortear nossas análises e,

consequentemente, a nossa forma de compor o produto deste trabalho, visto que a metodologia

proposta pelo autor contempla o nosso objeto de estudo, por ser atual e suficientemente ampla.

O campo teórico da orquestração necessita de aprofundamento para que, assim, haja estímulos

para a produção orquestral consciente e progressiva; os enfoques precisam cada vez mais

contemplar as propostas criativas musicais dos séculos XX e XXI. Este trabalho se desenvolve

a partir de tal necessidade, visto que temos como enfoque central as estratégias orquestrais do

compositor Mario Ficarelli, sobre quem dissertaremos a partir do próximo tópico deste trabalho.

2.2 VIDA E OBRA ORQUESTRAL DE MARIO FICARELLI

A obra de Mario Ficarelli é reconhecida nacionalmente e internacionalmente, tendo o

ganhado diversos prêmios durante sua carreira como compositor de música de concerto. Neste

capítulo abordaremos a trajetória composicional de Ficarelli, levando em consideração fatos

biográficos e profissionais que possam não apenas contextualizar a criação de sua obra,

sobretudo as suas obras orquestrais sinfônicas, mas também ajudar no entendimento da escolha

deste compositor como protagonista do nosso trabalho de pesquisa.

2.2.1 Aspectos biográficos

Paulista, nascido em 4 de julho de 1935, Mario Ficarelli iniciou seus estudos musicais

ao piano, com a professora Maria de Freitas Moraes, entre seus 16 e 19 anos de idade. Assim

que pôde dominar alguns recursos técnicos, gostava de improvisar nos estilos dos grandes

mestres da composição. Aos 18 anos, começou a se interessar pela composição musical e

escrever suas primeiras peças. No entanto, suas necessidades financeiras o afastaram do âmbito

profissional da música por um tempo, levando-o a trabalhar em diversas funções não musicais

(ZANDONADE, 2011, p. 62).


30

Ficarelli teve a primeira orientação formal com um professor de composição aos 33

anos de idade, Olivier Toni, o qual foi seu mentor por 14 meses intensivos de estudos em

composição. Anteriormente, Ficarelli tinha hábito de estudar por conta própria as obras primas

dos grandes mestres da composição musical europeia. Sobre os anos de composição como

autodidata, Ficarelli relata:

Eu ainda não tinha nenhum orientador de composição...


Então, quando muitas vezes me perguntam: quem foram os seus grandes mestres? Eu
respondo: foram e continuam sendo Beethoven, Wagner, Bach, Vivaldi,
Shostakovich, Stravinsky. Foram eles que me deram a grande base, a música coerente,
a música com lógica.(RYDLEWSKY, 2007, p. 156-157)

É provável que todo compositor se depare com essa realidade criativa em um momento

de sua carreira: seguir os procedimentos composicionais dos compositores com os quais se

identifique. Visto que a orientação em composição oferecida por Olivier Toni se deu de forma

tardia em sua carreira, podemos afirmar que Ficarelli deu seus primeiros passos na composição

de forma intuitiva, a partir das análises por ele realizadas anteriormente.

Por volta do final dos anos 60 e início dos anos 70, o panorama brasileiro de música de

concerto tinha dois grandes nomes em vigência: Camargo Guarnieri e H. J. Koellreutter. Os

divergiam em suas ideologias musicais, representando duas correntes estéticas muito

diferenciadas: o Nacionalismo e o Serialismo Dodecafônico, este último proposto pela segunda

escola de Viena. Justamente neste período, Ficarelli sente a necessidade de buscar orientação

em sua carreira como compositor.

Era o momento de buscar conselhos para a composição. Já havia alguns anos, parte
dos compositores brasileiros insistia na estética proposta pela escola de Viena e outra,
mais conservadora, firmava-se, principalmente em São Paulo, ao fazer uma música
voltada ao nacionalismo. (FICARELLI, 1997, p. 9-10)
31

Ao buscar orientação composicional, Ficarelli evitou qualquer tipo de direcionamento

estético-musical que pudesse influenciar estilisticamente a sua obra, evitando assim orientação

de compositores como Guarnieri e Koellreutter, conhecidos por direcionarem estilisticamente

a produção de seus alunos. Sobre a polarização da música de concerto brasileira no fim dos

anos 60 e sobre a busca de um orientador imparcial, Zandonadi afirma:

Vivendo em um tempo de grande polarização na música brasileira de concerto, em


que Guarnieri e Koellrreuter eram os principais líderes, Ficarelli buscou preservar
suas convicções criativas: “Eu tinha a possibilidade de estudar tanto com Koellrreuter
quanto com Guarnieri, mas não quis estudar com nenhum dos dois por que ambos
direcionavam estilisticamente.” Ao buscar uma terceira via em Oliver Toni, Ficarelli
permitiu-se trilhar um caminho particular e criterioso, em que o rigor da orientação e
a liberdade artística foram igualmente considerados. (ZANDONADE, 2011, p. 65-
66)

Olivier Toni desempenhou grande importância na vida e obra de Ficarelli, pois sua

“sensibilidade em não interferir, e sim orientar, preservou e incentivou uma das características

mais importantes de seu discípulo: a liberdade” (RYDLEWSKI, 2007, p. 10). O

posicionamento de Ficarelli, alheio aos movimentos da música contemporânea brasileira, é de

certa forma curioso. Apesar de não adentrarmos em discussões políticas ou filosóficas sobre

tal atitude, podemos mencionar que Ficarelli foi reconhecido tanto por críticos como por autores

como “o mais independente dos compositores brasileiros... não aceita rótulos, nem se julga

filiado a nenhuma corrente estética... quando Ficarelli se atém à matéria sonora tradicional,

realiza com ela coisas mais avançadas do que muita pretensa música de vanguarda” (MARIZ,

1981, p. 313-314).

A difícil padronização analítica da obra de Ficarelli, frente aos movimentos de

nacionalistas e de vanguarda vigentes na época, o fez ser conhecido como um compositor

pluralista, uma vez que sua obra se relaciona com diversas correntes estéticas da composição
32

musical. “Em recentes abordagens, Mario Ficarelli é apontado frequentemente como um

compositor pluralista ou pós-moderno” (ZANDONADE, 2011, p.70).

O pluralismo é compreendido como uma característica da criação musical pós-moderna,

onde um mesmo compositor pode optar, em sua obra, pela utilização de processos bastante

diversificados. O uso mutualístico de dois ou mais estilos em uma mesma obra, já não parece

ser novidade nos dias atuais. Muitas obras criadas nas últimas décadas parecem estar em

completude com elas mesmas, e não com um movimento ideológico, ou até mesmo com a obra

inteira do compositor. Essas são características do que conhecemos como forma-processo.

Apesar desses traços pós-modernistas estarem presentes na obra de Ficarelli,

Rydlewsky escreve que “Não podemos fazer qualquer afirmação no sentido de haver elementos

suficientes que possam qualificá-la como tal. Pelos mesmos motivos também não há como

negar que não possa haver” (RYDLEWSKY 2007, p. 144-145). É certo que a obra de Ficarelli

está construída sobre fortes pilares da tradição musical europeia. Provavelmente Rydlewsky

não considere a obra de Ficarelli como sendo pós-moderna em sua totalidade, justamente por

essa forte herança tradicionalista que a remete ao neoclassicismo, mas podemos afirmar que

sua obra é tão inventiva e inovadora quanto as demais correntes estéticas de sua época,

sobretudo quando a analisamos sob perspectiva da manipulação do timbre orquestral.

É notório que a partir do momento da orientação dada por Olivier Toni, Ficarelli passou

a produzir cada vez mais, além de ser reconhecido como compositor e ganhar vários prêmios

nacionais e internacionais de destaque, principalmente entre as décadas de 70, 80 e 90, como

menciona o próprio:

Incentivado e apoiado pelo mestre, inscrevi uma destas obras, “Cinco Retratos de Um
Tema” para orquestra de cordas (escrita em fins de 1969 e início de início de 1970),
no II Festival da Guanabara, Concurso Interamericano de Composição (1970- RJ). A
obra foi classificada como uma das vinte e quatro semifinalistas entre as cento e
oitenta concorrentes das Américas que se inscreveram. Isto significou o real início da
minha carreira como compositor, pois, a partir daí, dada a grande divulgação do
33

evento, tive meu nome conhecido nos centros musicais do país. (FICARELLI 1997,
p. 11)

Ficarelli dedicou 38 anos de sua vida ao ensino de composição, análise e outras matérias

no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

(RYDLEWSKY, 2007, p. 11). Além de orientar vários compositores, regentes e intérpretes,

Ficarelli elaborou sua tese de doutorado sobre as sete sinfonias de J. Sibelius, além de sua tese

para livre docência, sobre a sua Sinfonia no 2, ‘Mhatuhabh’, onde descreve os processos

composicionais elaborados por ele para a construção da obra. Por isso, esta tese se tornou de

grande importância para o desenvolvimento do nosso trabalho, uma vez que assumimos essa

sinfonia como a obra mais relevante e de maior expressão na carreira de Ficarelli.

Este trabalho tem foco na análise das estratégias orquestrais presentes num seleto grupo

de obras sinfônicas de Mario Ficarelli: Zyklus II (1976), Transfigurationis (1981), Epigraphe

(1990), Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (1991), Sinfonia No. 3 (1993), e Parasinfonia (2012).

Escolhemos estas obras para objeto de estudo por entendermos sua relevância técnico-

orquestral e histórica, além de que o período delimitado pela criação dessas obras representa

praticamente todo o período de composição sinfônica do compositor.

2.2.2 Obras orquestrais

Mario Ficarelli compôs para diversas formações durante sua carreira, deixando uma

variada obra, diversa e independente como afirma Martins (2014): “O catálogo de Mario

Ficarelli é extenso, a abranger mais de 150 obras para formações instrumentais as mais diversas,

como sinfônica, cênica, vocal, coral e camerística. Sua obra deverá permanecer pela qualidade

e independência.” Como já dito anteriormente, foi a partir do reconhecimento crítico de uma

obra orquestral que Ficarelli iniciou de fato sua carreira como compositor, com a classificação

de sua obra Cinco Retratos de Um Tema (1969–1970) para as finais do II Festival Guanabara.
34

Apesar de ter ganhado vários prêmios em composição, com obras de diversas formações

instrumentais, Ficarelli se destacou na composição de musica orquestral sinfônica, tendo

composto obras que revelam muito de sua identidade musical e qualidade técnica como

orquestrador.

No ano de 1976, compôs a obra Zyklus II, para orquestra sinfônica, estreada dois anos

mais tarde pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), sob a regência do

maestro Eleazar de Carvalho. Em 1979 compôs a Abertura para Orquestra, que foi estreada no

mesmo ano, pelo mesmo maestro. Em 1981 recebeu um encomenda para compor para a OSESP,

e para tal ocasião compôs a obra Transfigurationis, para grande orquestra, que viria a ser

premiada como a melhor obra de 1981 no gênero sinfônico, pela Associação Paulista de Críticos

de Arte (APCA). Sete anos mais tarde, em junho de 1988, teria a oportunidade de presenciar a

estréia de sua obra, Transfigurationis, executada pela Orquestra Sinfônica Tonhalle de Zurique,

Suíça, sob regência do maestro Roberto Duarte. As manifestações do público e da crítica foram

positivas e animaram Ficarelli a continuar se dedicando a composição de novas obras. Ao

retornar para o Brasil, compôs Epigraphe, para orquestra sinfônica e Sinfonia No. 1, para

instrumentos de sopro, ambas sob encomenda da Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo.

No início dos anos 90, Ficarelli recebeu talvez a mais importante encomenda de sua

carreira, o que resultaria na criação de sua obra sinfônica mais relevante, a Sinfonia No.2,

‘Mhatuhabh’.

Em fins de 1990 um fato que se sobressai em minha carreira: a Orquestra Sinfônica


Tonhalle de Zurique envia-me um comunicado encomendando-me uma obra com
duração em torno de trinta minutos, para ser estreada em junho de 1992... Era o
resultado da apresentação de “Transfigurationis”, executada por aquela orquestra em
1988. O trabalho a realizar apresentava-se como gigantesco, em virtude da
responsabilidade do pedido aceito... Lembraria que, desde os dezesseis anos, sonhara
em ser um compositor sinfônico e a Sinfonia parecia-me algo paradigmático. Agora
o futuro tornara-se presente. Em Dezembro de 1991 assinava a partitura
encomendada... (FICARELLI, 1997, p. 17)
35

A segunda sinfonia de Ficarelli foi estreada em junho de 1992 sob regência do maestro

Roberto Duarte, a quem dedicou a obra. A sinfonia, de 42 minutos de duração, teve tão boa

aceitação que o último movimento precisou ser bisado. A obra recebeu bons elogios, pela crítica

local:

O sucesso de Ficarelli — precisa-se acentuar em se tratando de um compositor


brasileiro não é alicerçado na tão popular integração de citações folclóricas.
Outrossim, o sugestivo e programático esoterismo da Sinfonia não facilita o acesso à
música, pelo contrário, o texto sobre a destruição do distante planeta “Mhatuhabh” e
a fuga de alguns seres para a Terra, inspirado pelo capítulo “II Trattato de Ithacar” do
“I Nostri Amici Extraterrestri” de Germana Grosso e Ugo Sartorio, levou Ficarelli a
nomear os movimentos que, no entanto, mais distrai em vista da própria autonomia
musical, pois o desenvolvimento musical interno não necessita de nenhum indício,
logo se emancipa do espírito sonoro neo-romântico da Introdução, para encontrar o
equilíbrio em cinco movimentos com o campo de tensão da tonalidade e (agressiva)
atonalidade dentro dos limites eruptivos da massa sonora, compacta delineação e
vibrante plano sonoro. (FICARELLI, 1995, p. 46)

A temática da Sinfonia No.2, ‘Mhatuhabh’, é baseada no primeiro capítulo do livro I

Nostri Amici Extraterrestri de Germana Grosso e Ugo Sartorio, o qual chamou a atenção de

Ficarelli por conter “fluência e naturalidade da narrativa e da sequência das partes que

apresentava, bem como pelo tema tratado, tendo-se em vista seu ponto central que condena as

experiências atômicas, a escolha deu-se imediatamente dada a afinidade” (FICARELLI, 1995,

p. 6 e 7). Ficarelli simplifica o texto escolhido com a finalidade de sintetizar a temática

escolhida para a obra:

O texto simplificado sobre o qual a Sinfonia está fundamentada, diz-nos o seguinte:


“O planeta Mhatuhabh, de um sistema solar distante, é destruído em virtude de
explosões atômicas levadas a efeito por seus habitantes. Os remanescentes são salvos
e transportados para um novo mundo — o planeta Terra, há milhares de anos, para aí
reconstruírem sua civilização” (FICARELLI, 1995, p. 7)
36

A escolha desta temática é certamente um posicionamento crítico aos avanços e testes

de tecnologias bélicas nucleares. O compositor dividiu a segunda sinfonia em uma introdução

e cinco movimentos: Introdução — O Paraíso; 1o Movimento — O uso negativo do átomo e a

destruição; 2o Movimento — O Salvamento; 3o Movimento — O Novo Mundo — A Terra; 4o

Movimento — O Arrependimento e a Prece; 5o Movimento — A Reconstrução.

Mhatuhabh está em conexão com outras duas obras importantes de Ficarelli, Zyklus II

(1976) e Transfigurationis (1981), tanto por estarem compostas a partir de uma proposta

descritiva cósmica-espiritual, como por seguirem uma linha técnico-orquestral de bastante

coerência4. Podemos ainda especular que Zyklus II serviu de base para a criação de

Transfigurationis, que por sua vez, serviu de base para a criação da Sinfonia No.2,

‘Mhatuhabh’5. Além da já citada conexão entre as obras, podemos relacionar Transfigurationis

a Mhatuhabh pela coexistência de outra proposta temática cósmica. Sobre essa temática de

Transfigurationis, Rydlewsky afirma:

Transfigurationis — do latim transfiguratione – transfiguração, transformação —


significa: “mudança radical na aparência, no caráter, na forma”. Baseada nas teorias
do astrônomo Johann Kepler (1571-1630), que em sua terceira lei determina que os
planetas produziriam determinados sons quando de seus movimentos no espaço,
Ficarelli construiu como motivo-base de toda a obra uma segunda menor (fá-mi). As
notas correspondem às duas frequências que caracterizam a terra segundo a teoria
kepleriana. O primeiro movimento sugere a terra em transformação, pessimista,
decadente, contraditória, e o segundo, a terra em ascensão, otimista, em busca de
unidade. (RYDLEWSKY, 2007, p. 60)

Ficarelli optou também pelo uso do motivo-base (fá-mi) na Sinfonia No.2, fato que

proporciona força e coerência ao seu discurso temático.

4
As estratégias orquestrais que relacionam as três obras serão abordadas no próximo capitulo, onde as
analisaremos.
5
Esta relação entre as obras Zyklus II (1976), Transfigurationis (1981) e a Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (1991) foi
sugerida por Silvia de Lucca, compositora e viúva do compositor Mario Ficarelli, em conversa informal via email
em 12/03/2017.
37

A segunda sinfonia foi executada pela primeira vez no Brasil, em maio de 1994,

novamente regida pelo maestro Roberto Duarte. Em 1995 recebeu o prêmio de “Melhor Obra

Experimental” pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).

Em 1992 Ficarelli recebeu convite da Escola de Música de Wattwil (Suíça), para

ministrar uma série de seminários sobre música brasileira e orientar os alunos que passassem

pelos seminários. Enquanto trabalhava na Europa, compôs a Sinfonia No.3 com recurso

financeiro da Bolsa Vitae de Artes, que obtivera mediante submissão em concurso de projetos.

Ficarelli seguiu compondo inúmeras obras para diversas formações, enquanto

desempenhava função de professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São

Paulo (ECA – USP). Em 2012 compôs sua última obra sinfônica, a Parasinfonia, atendendo ao

Prêmio de Encomendas de Obras, realizado pela FUNARTE:

...considerando o tempo máximo determinado pela FUNARTE, optou em compor


uma sinfonia “extraordinária”, ou seja, de duração mais curta do que as sinfonias
convencionais. Ainda para justificar a excepcionalidade da forma da obra em relação
ao seu título, depois de concluída o compositor percebeu que suas características
gerais compreendiam na verdade um Concerto para Orquestra e não exatamente uma
Sinfonia, daí a idéia jocosa de ter escrito uma “Parasinfonia”. Como o gênero
sinfônico sempre o atraiu em especial, acabou por transformar o título sugestivo em
uma homenagem indireta: Para Sinfonia.6

A Parasinfonia foi estreada pela Orquestra Petrobras Sinfônica, sob regência do

maestro Roberto Duarte em 2012, obra de sonoridade riquíssima. Como em suas outras obras,

podemos notar grande relevância do naipe de percussão. Apesar da curta duração, a obra tem

energia e pungência de uma grande sinfonia. Por questões de saúde, Ficarelli não pôde

presenciar a estreia dessa obra, mas se agradou ao assistir ao vídeo-gravação.7

6
O texto antecede a partitura da obra Parasinfonia, editada pela FUNARTE.
7
Curiosidade revelada pelo maestro Roberto Duarte em conversa informal via Skype no mês de Abril de 2018.
A gravação está disponível no link: <https://www.youtube.com/watch?v=Gbx03jC97Fs>.
38

Através desses fatos biográficos e profissionais, compreendemos a importância, a

qualidade e o tamanho da obra de Ficarelli, não nos restando dúvidas sobre a relevância de

análises aprofundadas e moldadas para a sua obra, sobretudo a de cunho sinfônico — objeto de

análise desta pesquisa. O próximo capítulo deste trabalho se propõe ao reconhecimento

analítico das estratégias orquestrais criadas por Ficarelli, bem como dos processos

metodológicos que formulamos para a obtenção dos resultados que iremos expor.
39

3 ANÁLISES DE OBRAS DE MARIO FICARELLI

Como visto no capítulo anterior, Mario Ficarelli foi um proficiente compositor do

gênero orquestral, tendo sido reconhecido ainda em vida no Brasil e na Europa. Apesar desse

grande reconhecimento — que se mantém até os dias atuais —, percebemos a existência de

pouquíssimos trabalhos relacionados à sua vida e obra. Dessa forma, seus trabalhos sinfônicos,

em grande maioria, ainda não se encontram analisados, e os poucos trabalhos já redigidos que

pudemos encontrar não contemplam de forma aprofundada o campo da orquestração.

Dentre os autores que publicaram trabalhos diretamente ligados a Ficarelli, podemos

citar Rydlewsky (2007) e Zandonade (2011). O primeiro aborda o processo composicional de

Ficarelli a partir da análise da obra Concertante para sax alto e orquestra, enquanto que o

segundo aborda a relação entre Mario Ficarelli e a música de concerto brasileira, além de

realizar um estudo analítico sobre o Concerto para viola e orquestra.

Dos dois autores, o primeiro se dedica com mais profundidade sobre questões

orquestrais. Ele emprega cinco termos inerentes à orquestração de Ficarelli: Instrumentação,

Caráter e tratamento orquestral, Recursos sonoros (técnica empregada), Equilíbrio, e Relação

com a forma musical. Não mais importante que os outros termos supracitados, a afirmação de

que a orquestração de Ficarelli influi diretamente na concepção formal da obra nos é de grande

relevância, uma vez que nossas análises perpassam diretamente por esse pensamento, isto é, o

de que o autor realiza “A divisão da obra em seções orquestrais diversas, de acordo com seu

objetivo musical e expressivo, utilizando-se para isso principalmente de dois elementos

musicais: textura e densidade.” (RYDLEWSKY 2007, p. 135)

Rydlewsky traça também algumas características que se justapõem às nossas análises

orquestrais:

A técnica de instrumentação e orquestração de Ficarelli utiliza-se de muitos dos


recursos modernos no tratamento orquestral, como: blocos dinâmicos e estáticos,
40

jogos de timbre, grandes massas e contraste sonoro entre seções, efeitos instrumentais
variados e um naipe ampliado de percussão. (RYDLEWSKY, 2007, p.133)

Não nos resta dúvidas de que o autor foi muito feliz em sua conclusão a respeito da

orquestração de Ficarelli. Apesar de analisar apenas duas obras (Concertante para sax alto e

orquestra e Transfigurationis), é claramente perceptível, ao analisarmos outras obras sinfônicas

de Ficarelli, que esses recursos da orquestração moderna citados são recorrentes e podem nos

ajudar a delinear um perfil estratégico para a criação de músicas orquestrais.

O segundo autor parece se preocupar primariamente com questões inerentes à

performance da obra. Apesar de tratar de algumas questões ligadas à orquestração, não

percebemos, em seu trabalho, aprofundamento ou aplicações metodológicas que pudessem

elucidar sobre os processos orquestrais presentes na obra. No entanto, Zandonade faz algumas

afirmações interessantes sobre a orquestração da obra por ele analisada, como a ideia de que a

orquestração pode gerar expectativa (2011, p. 118), e de que a orquestração da obra é leve

quando em sua função de acompanhamento (2011, p. 81).

Obviamente esses trabalhos sobre os quais discorremos não estão fundamentados

primariamente sobre perspectivas do nosso campo teórico, e sim sobre outros enfoques

analíticos, também de grande relevância para a compreensão de uma obra sinfônica. Dessa

forma, somos pioneiros no exercício de analisar a obra de Mario Ficarelli sob perspectiva das

estratégias orquestrais, visto que o repertório moderno e pós-moderno não é de forma alguma

contemplado por uma teoria que fundamente de forma ampla a prática da composição de música

orquestral.

Esta empreitada é deveras desafiadora pela falta de suporte técnico e estudos anteriores

que possam se justapor ou contrapor às nossas convicções analíticas. A partir desta necessidade,

fez-se necessário identificar, de forma intuitiva, atitudes em relação à manipulação sonoro-

orquestral que fossem recorrentes e que estivessem atreladas de alguma forma à poética da obra.
41

Neste capítulo analisaremos as estratégias orquestrais presentes na obra de Mario

Ficarelli. Para tanto, selecionamos um conjunto de obras sinfônicas, sem solistas, de grande

relevância na carreira do compositor. São elas: Zyklus II (1976), Transfigurationis (1981),

Epigraphe (1990), Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (1991), Sinfonia No. 3 (1993) e Parasinfonia

(2012). Apesar de essa amostragem não contemplar a obra de Ficarelli em sua totalidade,

entendemos que esse conjunto de obras é suficiente para tomarmos os caminhos analítico que

se seguirão, uma vez que nesse grupo estão contidas obras que representam quatro décadas de

produção ativa do compositor.

Para melhor compreensão e organização das análises, propusemos a divisão deste

capítulo em subtópicos, estando presente em cada um deles uma estratégia orquestral

diferenciada, as quais podem ser encontradas em uma ou mais obras dentre as selecionadas.

Poderíamos também subdividir este capítulo a partir da análise de cada música de forma

isolada; no entanto, essa subdivisão não proporcionaria uma conexão coerente entre as obras.

Em resumo iremos analisar trechos das obras em função da estratégia orquestral em questão.

3.1 RELAÇÕES ENTRE CONTRASTE ORQUESTRAL E ESTRUTURAS FORMAIS.

3.1.1 Contraste orquestral na obra de Mario Ficarelli

O termo contraste está associado à diferenciação ou oposição de graus marcantes entre

coisas da mesma natureza, suscetíveis de comparação. Não diferente do cotidiano, o emprego

desse termo é deveras comum no campo da análise musical, e não temos dúvida quanto à

importância da existência de contraste no processo criativo musical, “não só por ser um

caminho para adicionar interesse à obra, mas por ser essencial para a ilusão estética da resolução

do conflito dramático” (LANEY; SAMUELS; CAPULET, 2015, p. 1).

É enorme a variedade de maneiras com as quais os compositores de música se

expressam. Consequentemente, procedimentos composicionais dos mais variados tipos


42

possíveis se encontram em suas obras, não sendo diferente quando analisamos os tipos de

contraste musical existentes. Apesar da possível subjetividade implícita a cada obra, é possível

encontrar similaridades técnicas e expressivas até mesmo entre peças de correntes estéticas

diferentes. Um exemplo disso é o contraste temático usado na forma sonata do período clássico,

na qual o primeiro tema, geralmente com caráter mais imponente e heroico, exposto sempre no

I grau do campo harmônico, contrastava com o segundo tema, que em geral se apresentava de

forma mais dolce e cantabile, exposto através de uma modulação para o V ou III grau a

depender da tonalidade original8. Esse contraste harmônico-temático caracterizou, sem sombra

de dúvidas, um procedimento composicional e uma clara tendência estética inerente à poética

musical vigente, de forma tal que esse mesmo procedimento seguiu se desenvolvendo ao longo

das décadas através de Concertos e Sinfonias.9

É comum que encontremos não apenas contraste harmônico-temático, mas também

outros tipos, como o contraste rítmico, melódico, de dinâmica e de articulação em uma obra,

entre outros. O contraste entre materiais musicais induz o ouvinte a perceber e compreender

novas informações que estão se colocando à disposição. Sob perspectiva do compositor,

podemos afirmar que compor uma obra musical significa também dominar e manipular

estrategicamente essas formas de contraste, entendendo seus diferentes níveis e variantes.

Outras estratégias estão relacionadas aos níveis de contraste, como a estratificação,

justaposição e a interpolação. Também é comum encontrarmos processos composicionais com

o objetivo de conectar materiais musicais, dentre os quais podemos citar a gradação e a

8
Em geral, na exposição do segundo tema da Sonata Clássica, os compositores faziam modulações para o V grau
do campo harmônico quando a tonalidade original da peça era do modo maior, e modulações para o III grau quando
a tonalidade original da peça era do modo menor.
9
Concertos e Sinfonias são gêneros musicais que, ao longo dos períodos Clássico e Romântico, preservaram as
características harmônico-temáticas da sonata tradicional, acompanhando obviamente os avanços estilísticos
inerentes à época.
43

dissolução, termos que estarão associados e exemplificados em nossas análises.10

Dentre os variados tipos de contraste, um se tornou muito relevante para o nosso

trabalho: o contraste timbrístico. Entendemos como timbre a peculiaridade física do som que

garante, por exemplo, a diferenciação auditiva de alturas de uma mesma frequência, executada

por instrumentos diferentes. Uma das primeiras preocupações entre as multitarefas inerentes à

arte de orquestrar é a de lidar com a enorme diversidade timbrística que uma orquestra sinfônica

dispõe. Como combinar os instrumentos? Como obter a sonoridade desejada? Como contrastar

sonoridades? Estas questões permeiam, com constância, o ato de orquestrar.

É possível perceber que a obra Mario Ficarelli é rica em contraste orquestral. Esta parte

do trabalho destina-se à análise de passagens musicais que demonstrem diferentes tipos de

contraste timbrístico-orquestral, buscando sempre compreender como diferentes níveis de

contraste podem influenciar na criação de estruturas formais da sua obra. Vale salientar que

pequenas mudanças de timbre podem ser pouco perceptíveis quando o contexto sonoro é

sinfônico, mas uma mudança mais abrupta pode se tornar tão impactante quanto o fim de um

movimento, ou até mesmo o término de uma obra. Entendemos que o contraste orquestral

acontece a partir da manipulação do corpo sonoro, através da combinação dos instrumentos

usados em cada passagem, bem como as mudanças desses agrupamentos, sejam elas mais ou

menos abruptas.

A partir das análises das seis obras já mencionadas, pudemos cheagr a um parecer mais

amplo sobre as estratégias orquestrais de Ficarelli. Desta forma, podemos afirmar que a

recorrência de certos tipos de contraste orquestral encontram-se em todas as obras analisadas,

tornando-se imprescindíveis para a coerência e a identidade da obra sinfônica do compositor.

Apesar de Zyklus II ser uma de suas primeiras obras sinfônicas de destaque, Mario

Ficarelli, parece se preocupar bastante com os efeitos gerados pelo contraste timbrístico-

10
Os termos, estratificação, justaposição, interpolação, gradação e dissolução foram sugeridos em um verbete
sobre contraste musical encontrado no link: <https://en.wikipedia.org/wiki/Contrast_(music)>.
44

orquestral. No Exemplo 1, demonstramos um trecho que está situado no início do segundo

movimento da obra. Nesse trecho podemos observar a sucessão de três blocos orquestrais

contrastantes: o primeiro demarcado pela cor vermelha, o segundo pela cor azul e o terceiro

pela cor verde. Integrando o primeiro bloco, temos os instrumentos: flauta, clarinete baixo,

trombone baixo, tuba, cellos e contrabaixos; o segundo bloco é um tutti, integrado por

praticamente todos os instrumentos da orquestra, exceto pelos trompetes, que estão reservados

para integrar o terceiro bloco, juntamente com os tímpanos, como mostra a Tabela 3. A Tabela

4 complementa a 3, sintetizando a instrumentação em famílias orquestrais.

Podemos afirmar que esse pequeno exemplo, apesar de conter apenas três compassos,

possui grande variedade de contraste orquestral, por encontrarmos agrupamentos instrumentais

distintos, colocados em sucessão pelo compositor.

Podemos perceber que o contraste entre os blocos 1 e 2 se dá de forma um pouco mais

abrupta do que entre os blocos 2 e 3. É perceptível ainda uma estratégia em torno da

continuidade dos materiais, visto que, apesar do contraste acentuado de timbre entre os blocos,

Ficarelli usa alguns instrumentos para dar continuidade e fluidez ao trecho, por exemplo na

antecipação do material dos tímpanos no bloco três. Nesse trecho o tímpano funciona como

timbre de ligação entre dois blocos. Podemos ver essa estratégia como um atenuante de

contraste.

É importante mencionar que os materiais musicais estão expostos por meio de

timbragens heterogêneas, misturando instrumentos de sonoridades díspares, as quais

dissertaremos nos próximos tópicos desta dissertação. Diferentemente das outras passagens que

analisaremos, o compositor reserva os trompetes a uma função especial, que é a exposição do

material motívico em desenvolvimento ao longo da peça. Esse tipo de contraste contido no

Exemplo 1 acontece com certa recorrência na obra, o que nos leva a acreditar que essa é uma

das estratégias responsáveis pela unificação coerente da obra. A recorrência dessa estratégia

remente a um certo delineamento formal, sobre o qual dissertaremos no próximo tópico.


45

Exemplo 1 – Zyklus II (c.32–34) – Três blocos orquestrais contrastantes.

Fonte: Ficarelli (1976), com destaques nossos.


46

Tabela 1 – Instrumentação dos blocos contrastantes em Zyklus II (c. 32–34)

BLOCO 1 BLOCO 2 BLOCO 3


Piccolo Piccolo Trompetes (Bb) 1,2,3 e 4
Clarinete Baixo Flautas 1 e 2 Tímpanos
Trombone Oboés 1 e 2
Tuba Clarinetes (Bb) 1 e 2
Violoncelos Clarinete Baixo
Contrabaixos Fagotes 1 e 2
Trompas 1,2,3 e 4
Trombones 1 e 2
Trombone baixo
Violinos 1 e 2
Violas
Violoncelos
Contrabaixo

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Tabela 2 – Famílias da orquestra utilizadas nos blocos contrastantes em Zyklus II (c. 32–34)

BLOCO 1 BLOCO 2 BLOCO 3

Madeiras Madeiras
Metais
Metais Metais
Percussão
Cordas Cordas

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

A obra Transfigurationis foi composta sob encomenda e estreada pela Orquestra

Sinfônica de São Paulo em 1981. Como já dito anteriormente, Transfigurationis tem relação

direta com Zyklus II e Sinfonia No. 2 não só pela temática, mas também por ser possível

encontrar estratégias recorrentes nessas três obras, tais como motivos, procedimentos de

desenvolvimento, texturas similares, além das mesmas estratégias em torno do contraste

orquestral. Transfigurationis se inicia com grande grau de contraste orquestral, embora os

primeiros gestos musicais sejam muito curtos em duração, o que demonstra o quão cuidadoso

foi o compositor ao manipular o timbre. Vejamos no Exemplo 2 como esse processo acontece.11

11
A análise do Exemplo 2, assim como no Exemplo 1, foi feita a partir da visualização de três blocos contrastantes.
O primeiro está demarcado pela cor vermelha, o segundo pela cor azul e o terceiro pela cor verde. Seguiremos
analisando blocos contrastantes dessa mesma forma, não se fazendo necessárias novas notas explicativas.
47

Exemplo 2 – Transfigurationis (c. 1–8) – Três blocos orquestrais contrastantes

Fonte: Ficarelli (2003), com destaques nossos.


48

A partir do conteúdo analítico do Exemplo 2, percebemos a recorrência da estratégia

contida no Exemplo 1, o contraste timbrístico-orquestral, exposto de forma sucessiva. No

entanto, no Exemplo 2 esses blocos são ainda menores em duração, sendo necessário apenas o

espaço de um compasso ternário para a exposição desses três blocos contrastantes. Os três

blocos orquestrais desse trecho são, quase que em sua totalidade, formados por agrupamentos

de instrumentos diferentes, exceto o xilophone e o vibraphone, que integram os blocos 1 e 3, o

que nos permite afirmar a intenção por parte do compositor em criar agrupamentos timbrísticos

heterogêneos, como mostra a Tabela 3:

Tabela 3 – Instrumentação dos blocos contrastantes em Transfigurationis (c. 1–8)

BLOCO 1 BLOCO 2 BLOCO 3

Flautas 1 e 2 Clarinete Baixo Trompas (F) 1,2,3 e 4


Oboés 1 e 2 Fagotes 1 e 2 Trombones 1 e 2
Corne Inglês Contrafagote Xilophone
Clarinetes (Bb) 1 e 2 Trombone baixo Vibraphone
Trompetes (Bb) 1,2 e 3 Tuba
Slapstick Violoncelo
Prato suspenso Contrabaixo
Xilophone
Vibraphone
Violinos 1 e 2
Violas

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Outra estratégia que podemos observar nesse trecho é a direcionalidade do gesto em

questão. Ficarelli utiliza esses três blocos timbrísticos-orquestrais com a intenção não apenas

de contrastar o timbre, mas também de contrastar registros orquestrais, visto que o bloco 1 está

situado no registro agudo e o bloco 2 no registro mais grave da orquestra sinfônica. A forma

rápida com que esses blocos se sucedem acentuam mais ainda o contraste a que estamos nos

referindo.

O entendimento do timbre orquestral a partir da síntese em famílias é muito útil para a

compreensão do contraste empregado entre os blocos. A Tabela 4 mostra que, em cada bloco,
49

o compositor utiliza agrupamentos diferentes. Além disso, pode-se perceber também o

esvaziamento gradativo da massa sonoro-orquestral, atrelado ao contraste de timbre:

Tabela 4 – Famílias da orquestra utilizadas nos blocos contrastantes em Transfigurationis (c. 1–8)

BLOCO 1 BLOCO 2 BLOCO 3

Madeiras Madeiras Metais


Metais Metais Percussão
Percussão Cordas
Cordas

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Podemos a partir daqui fazer um paralelo entre as estratégias supracitadas tanto em

Zyklus II quanto em Transfigurationis. Uma das marcas que nos chamaram atenção foi

justamente o fato de que o compositor tende a reservar instrumentos para gerar contraste, com

a chegada de novos blocos sonoros. Nos dois casos, percebemos o uso de instrumentos das

família dos metais e percussão, em contraste ao tutti. É um pouco cedo para afirmar, mas

historicamente sabemos que essas duas famílias foram as últimas a serem exploradas em sua

plenitude, enquanto famílias, de forma efetiva pelos mestres da composição de música

orquestral, quando considerados até o classicismo.

O uso estratégico de contraste orquestral é recorrente durante toda a obra, algumas vezes

de forma mais abrupta do que em outras. O Exemplo 3 demonstra mais uma passagem em que

a mudança abrupta do timbre orquestral é empregada pelo compositor. Devemos levar em

consideração a mudança do timbre, a partir da sucessão dos agrupamentos no primeiro

momento em uma seção mais vazia (c. 48–53) e, posteriormente, o agrupamento de sonoridade

mais densa (c. 54–56), como podemos visualizar em destaque no Exemplo 3.


50

Exemplo 3 – Transfigurationis (c. 47–56) – Dois blocos orquestrais contrastantes

Fonte: Ficarelli (2003), com destaques nossos.


51

O contraste timbrístico causado pela chegada do segundo bloco é inesperado, por não

haver elementos que possam oferecer prenúncio dos eventos musicais seguintes. Mesmo com

o desaparecimento do material melódico do corne inglês, percebemos que os materiais musicais

não mudam completamente com a chegada do segundo bloco timbrístico, visto que o motivo

apresentado no primeiro bloco segue exposto no segundo bloco, com as mesmas características

intervalares, mas com timbragem diferente. Isso aponta para o desenvolvimento timbrístico

como processo composicional no trecho, conforme mostra a redução contida nos Exemplos 4a

e 4b:
Exemplo 4a – Transfigurationis (c. 48) – Redução Exemplo 4b – Transfigurationis (c. 55) – Redução
orquestral motívica orquestral motívica

Fonte: Elaborado pelo autor (2018). Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

É notório que o compositor mantém o controle dos dobramentos usando instrumentos

que soam nos registros médios e graves. Além disso, mesmo dentro desses registros, o

compositor consegue criar grande diferenciação timbrística no trecho. O Exemplo 4b mostra

que o motivo exposto no compasso 55 é muito mais colorido do que quando exposto no

compasso 48.

Além das questões inerentes ao equilíbrio sonoro, podemos afirmar que o maior número

de dobramentos do motivo em questão tende a ressignificá-lo em relação à sua importância no

trecho, tendo em vista que uma maior quantidade de dobramentos de um mesmo material lhe

proporciona maior volume sonoro. Esse é um dos princípios físicos básicos da orquestração.
52

Sendo assim, como o compositor usa esses dobramentos na estruturação da passagem

musical? Para entender completamente a estratégia por trás desse contraste timbrístico,

precisamos entender os elementos acompanhantes, visto que o contraste acentuado não se deu

apenas pelo maior dobramento do motivo principal mas sim da mudança de todo o plano sonoro

em forma dos blocos. Além do motivo principal, podemos constatar que o material

acompanhante muda de timbre de forma acentuada na passagem (ver Exemplo 3).

A obra Epigraphe 1990 tem muito em comum com as outras obras analisadas em

relação ao contraste orquestral. O agrupamento dos instrumentos da família dos metais, em

oposição ao agrupamento das cordas e madeiras, é uma estratégia recorrente nessa e nas outras

obras analisadas de Ficarelli. Isso diz respeito a uma intenção estratégica em torno da

homogeneidade, mesmo que usando misturas de famílias instrumentais, diferentemente de

outros trechos analisados onde o contraste não se dá basicamente pela alternância entre famílias.

Esta troca de sonoridade, quando exposta de forma abrupta, traz grandes níveis de contraste à

obra. O Exemplo 5 mostra uma passagem de Epigraphe que exemplifica bem o contraste

através do agrupamento das famílias orquestrais.

Mais uma vez podemos observar a reserva dos metais, com a finalidade de criar

contraste timbrístico. A sonoridade dos metais conciliada à dinâmica em fortissimo acentua o

contraste do trecho, e o timbre predominante do bloco 2 pertence à família dos metais, uma vez

que esses instrumentos possuem um poder sonoro superior ao das cordas, que os acompanham

na passagem. O compositor está claramente criando sonoridades contrastantes de forma

elaborada. O uso dessa estratégia permitiu a Ficarelli manipular o corpo sonoro orquestral de

forma organizada, coerente e criativa, além de gerar expectativa pela mudança do material.
53

Exemplo 5 – Epigraphe 1990 (c. 48–54) – Contraste entre 2 blocos orquestrais

Fonte: Ficarelli (2009), com destaques nossos.

O estudo do movimento, ou de como os fenômenos musicais se movem em música,

pode ser uma alternativa para a compreensão das estratégias em torno do contraste timbrístico-

orquestral. Sobre isso, Bertissolo (2013) levanta um questionamento pertinente:

Não há música sem movimento. Ouvimos o movimento na música e imaginamos a


música no movimento. Essas duas noções estão de tal forma imbricadas que é até
difícil imaginar uma destituindo-a do poder significante da outra. Na música ouvimos
o movimento. Movimento que se desdobra no tempo. Diversos aspectos dinâmicos
são experienciados no fazer e no pensar musicais hodiernos por diversos
54

compositores, intérpretes e pesquisadores da música em diversas áreas. A música se


move? Como ela se move? Existe movimento em música? O que é movimento em
música? Essas questões têm sido importantes fontes para investigações em diversos
discursos sobre música. (BERTISSOLO, 2013, p.1)

Por estar em constante mudança, temos a percepção de que música se move também,

por contraste timbrístico, como um impulso que leva o ouvinte a se concentrar e compreender

um novo ambiente sonoro. Dessa forma, a música guia o ouvido por sucessivas variações e

transformações estruturantes.

O que seria da análise musical sem a autoridade da percepção? Vários campos teóricos

da composição têm reconhecido a importância da compreensão cognitiva do ouvinte. Um

exemplo disso está em compreender a maneira com que o espectador recebe, processa, e

relaciona os sons musicais. Podemos imaginar que, de forma comum, o contraste é um dos

fenômenos mais atraentes ao ouvido humano. Podemos comparar o contraste musical ao

contraste causado de uma buzina em meio ao trânsito, ou à percepção do silêncio, provocado

pelo desligamento de um refrigerador de ar de uma sala de aula, após várias horas de

funcionamento contínuo. Esses são exemplos do cotidiano que podem nos levar a uma reflexão

sobre como ouvimos e percebemos variações de timbre.

Em música, podemos afirmar que o ouvinte se acostuma com uma sonoridade estática

e tende a projetar a sua continuidade, como uma forma de previsão do que acontecerá em

seguida. A quebra desse sistema resulta na surpresa e, consequentemente, em um maior nível

de atenção por parte do ouvinte com a finalidade de fazê-lo compreender a nova sonoridade e

conectá-la de forma lógica com a sonoridade anterior .

David Huron afirma em seu livro Sweet antecipation que “as propriedades estatísticas

da sequência são aprendidas como um subproduto da exposição simples, sem qualquer

percepção consciente pelo ouvinte.” (HURON, 2006, p.71).12 A partir dessas reflexões,

12
No original: “The statistical properties of the sequence are learned as a by-product of simple exposure without
55

podemos propor um paralelo entre a ideia de Huron, Bertissolo e o processo contrastante de

Ficarelli. A maneira como os blocos se contrastam contribui para a efetiva movimentação da

sonoridade da obra, e isso faz com que o ouvinte se torne ativo e busque uma nova compreensão

a cada mudança.

A Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’, é provavelmente a obra de maior relevância composta

por Mario Ficarelli, e nossa pesquisa se delongará na análise dessa obra por termos notado nela

grande recorrência dos processos orquestrais encontrados nas obras analisadas até então. Além

disso, tivemos conhecimento do trabalho escrito por Ficarelli em 1995, uma tese13 em formato

de memorial descritivo da sinfonia em questão. Nesse trabalho, Ficarelli expõe análises da obra,

feitas por ele, complementando-as com comentários particulares, o que nos proporcionou o

conhecimento de vários dos seus processos criativos, além da estruturação da obra. De forma

clara e direta, Ficarelli organiza suas análises em cinco tópicos de perspectivas diferentes,

porém complementares, são elas: Proposta artístico-ideológica, Linguagem, Temática,

Aspectos Formais e Orquestração.

Continuaremos analisando os níveis de contraste orquestral da obra, relacionando-os

com os escritos do compositor em sua tese de 1995. Visto que nosso trabalho se atém a questões

timbrísticas, levamos em consideração, primariamente, o que Ficarelli escreve sobre a

orquestração de sua obra. Abaixo temos uma citação, onde o compositor descreve um pouco

do ambiente sonoro do primeiro movimento:

Na Introdução e I. Movimento, as cordas participam com evidência em vários


momentos de contraponto, cabendo aos metais os destaques sonoros característicos
deste naipe. As madeiras oferecem apoio às cordas para ganho de volume e
brilhantismo destas. Os Fagotes têm importante papel na primeira exposição da Seção

any conscious awareness by the listener.”


13
Esta tese foi destinada ao departamento de música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São
Paulo.
56

A, quando dobram os contrabaixos num contraponto em divisi a dois a descoberto.


Ficarelli (1995, p. 43).

A recorrente estratégia de reservar os metais para os destaques sonoros se confirma com

esse escrito, sendo Mhatuhabh a quarta obra analisada neste trabalho em que encontramos tal

estratégia. Até então temos a diferença de 15 anos entre a criação das obras Zyklus II e a Sinfonia

No 2, ‘Mhatuhabh’, o que nos leva a acreditar que essas estratégias são imprescindíveis para a

obra sinfônica de Ficarelli.

A partir da análise contida no Exemplo 6, percebe-se mais uma vez a intenção do

compositor em contrastar blocos de timbres diferenciados, sendo o primeiro integrado por

cordas, madeiras, e tímpanos, e o segundo bloco por metais combinados com percussão e cordas

graves. Os metais até então estavam reservados, processo esse que se repete na obra de diversas

maneiras. Podemos, portanto, afirmar que essa estratégia orquestral está diretamente ligada aos

processos composicionais desse compositor.

É provável que, dentre os exemplos analisados até o momento, o contraste timbrístico

orquestral em blocos contido no Exemplo 6 seja o mais impactante, visto que, além da mudança

abrupta do timbre orquestral, o material musical também muda drasticamente, sendo o primeiro

bloco mais movimentado, com sonoridade mais delicada (cordas em pizzicato + madeiras em

staccato), e o segundo bloco com a estaticidade das notas longas, aliada ao poderoso e brilhante

timbre predominante da família dos metais.

Após nos debruçarmos analiticamente sobre a Segunda Sinfonia de Ficarelli, podemos

afirmar que os comentário encontrados em sua tese, sobre os processos orquestrais, são de

grande importância, mas não suficientes para demonstrar a relevância da orquestração da obra,

tendo em vista que o seu objetivo era analisar a obra de maneira mais geral. A partir desta

assertiva, nos sentimos confortáveis em acrescentar informações analíticas às que Ficarelli nos
57

deixou em sua tese.14

Exemplo 6 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 81–84) – Contraste entre 2 blocos orquestrais

Fonte: Elaborado pelo autor (2018) a partir de Ficarelli (1991).

14
As análises da Sinfonia No. 2, Mhatuhabh, não estão dispostas em um único tópico, mas em todos os tópicos
deste capítulo.
58

Parasinfonia é a ultima obra sinfônica composta por Mario Ficarelli em 2012, sob

encomenda da FUNARTE, para integrar a tradicional Bienal da Música Contemporânea. O

Exemplo 7 mostra o início da obra, onde dois blocos timbrísticos se contrastam. Vale a pena

ressaltar novamente a reserva de vários instrumentos para a chegada do segundo bloco. Além

do contraste de timbre, a passagem contém grande contraste no direcionalidade das alturas,

sendo o primeiro bloco construído na região super aguda dos instrumentos usados, e o segundo

bloco atingindo subitamente a região grave e subgrave. Nesse trecho, Ficarelli opta por agrupar

os instrumentos dos blocos 1 e 2 não apenas por suas características organológicas e

timbrísticas, mas separando-os também entre agudos e graves, inclusive entre os instrumentos

de percussão, o que aponta para uma provável intenção em criar combinações timbrísticas

heterogêneas.

É importante observar o cuidado que o compositor tem ao usar os instrumentos da

família da percussão não como instrumentos de adereço, mas como instrumentos

imprescindíveis para a integração e caracterização dos blocos sonoros em questão. É

interessante perceber que o contraste dessa passagem não se dá apenas pela reserva de

instrumentos de uma mesma família orquestral, visto que o objetivo de contrastar blocos

sonoros parece ter sido alcançado da mesma maneira.

Outra estratégia importantíssima que podemos destacar a partir da análise do bloco 2 é

a degradação ou esvaziamento do timbre orquestral. O compositor vai reservando alguns

instrumentos no decorrer dos compassos, restando apenas alguns que serão responsáveis por

executar a transição para o próximo gesto orquestral, contido nos Exemplo 8a e 8b (vistos mais

à frente). Podemos ainda destacar que Ficarelli opta por utilizar o processo inverso, ao

densificar a textura de forma gradual, para preparar a chegada do clímax da passagem no

compasso 17. A fluidez com que o compositor conecta os instrumentos é impressionante,

principalmente pelo efeito construído no compasso 16.


59

Exemplo 7 – Parasinfonia (c. 1–12) – Contraste entre 2 blocos orquestrais


60

(continuação do Exemplo 7)

Fonte: Ficarelli (2012), com destaques nossos.


61

A partir das análises expostas podemos concluir que, a obra de Mario Ficarelli é rica em

contraste timbrístico-orquestral, sendo tal recurso uma estratégia recorrente em suas obras

sinfônicas, não apenas em relação ao simples colorido orquestral, mas também como atitudes

estruturantes da ideia musical. Entendemos que o estudo do timbre de uma obra sinfônica é

uma atividade importantíssima, não só para a compreensão do próprio timbre, mas para a

compreensão geral da obra, visto que os processos composicionais que envolvem contraste

orquestral tendem a mover a obra para novos planos sonoros.

Talvez seja muito óbvio afirmar que contrastes timbrísticos possam ser notados mais

facilmente do que contrastes harmônicos ou melódicos. Apesar de a escuta ser muito particular

e subjetiva, é mais comum encontrar pessoas que confundam mudanças harmônicas do que

timbres de instrumentos diferentes, a exemplos de piano e violino, ou flauta e harpa. Se o timbre

pode proporcionar essa forte relação com os ouvintes, de forma geral, por que esse tipo de

abordagem teórica ainda é carente na literatura?15

Independentemente das possíveis respostas e indagações que esse questionamento possa

nos proporcionar, temos a convicção de que os grandes compositores do gênero orquestral

compreenderam e compreendem muito bem a relação entre o timbre e a percepção auditiva.

Suas obras são compostas, portanto, com relevantes estratégias timbrísticas criativas, as quais

lhe reforçam a poética sonora.

O próximo tópico deste trabalho relaciona os diferentes níveis de contraste orquestral

encontrados na obra de Ficarelli às suas estruturas formais.

3.1.2 Aspectos formais em perspectiva do contraste timbrístico

Muitas são as possibilidades de contraste timbrístico em uma orquestra sinfônica.

Imaginamos que, ao se escolher essa formação para iniciar a composição de uma obra, o

15
Este assunto já foi anteriormente dissertado, mas sentimos que a reflexão reiterada se fez necessária.
62

compositor já tenha em vista essas inúmeras possibilidades instrumentais e de recursos do

próprio instrumental. É fácil compreender que o repertório orquestral vem se expandindo

timbristicamente desde o período barroco, visto que os instrumentos musicais têm passado por

constantes evoluções mecânicas ao longo do tempo. Dito isso, podemos imaginar que a arte da

orquestração está em pleno desenvolvimento técnico e poético.

Visto que nosso trabalho é fundamentado na análise de estratégias orquestrais na obra

sinfônica de Mario Ficarelli, chegamos naturalmente até as análises de contraste timbrístico,

relacionando-as à compreensão formal das obras. Já no tópico anterior pudemos notar indícios

de que os blocos sonoros são delineados por graus de contraste timbrístico-orquestral.

Wennerstron (1975) afirma que o entendimento do timbre pode contribuir para a compreensão

formal na música do século XX:

O entendimento da música do século XX requer primeiramente um entendimento do


material que está sendo empregado. O ouvinte deve iniciar com a idéia de que
qualquer evento, em qualquer parâmetro (altura, duração, timbre, dinâmica) pode ter
uma função formativa na música e pode contribuir para a forma resultante da peça.
(WENNERSTRON, 1975, p.2, tradução nossa)16

Wennerstron teoriza um conceito muito importante para o desenvolvimento do nosso

trabalho, visto que não encontramos muitas fontes referenciais que demonstrem uma

metodologia efetiva para o tipo de investigação que estamos realizando. Faz-se necessária,

portanto, a aplicação de métodos experimentais para a exemplificação das análises. Como

exemplo, a análise de estruturas formais da obra em perspectiva da manipulação do timbre pode

ser viabilizada pela criação de gráficos que contenham o estudo quantitativo do uso dos

instrumentos na obra.

16
No original: “The understanding of twentieth-century music requires first an understanding of the materials
which are being employed. The listener must start with the ideia that any event in any parameter (pitch, duration,
timbre, dynamics) can have a formative function in the music and can contribute to the resultant shape of the
piece.”
63

O Gráfico 1 a seguir demonstra o nível acentuado de contraste timbrístico criado por

Ficarelli no primeiro movimento da Sinfonia No. 2, bem como sua influência na percepção

formal. Esse trecho representa uma estratégia recorrente na obra, e até mesmo em outras obras

do compositor. A estrutura do gráfico é organizada na mesma ordem que uma partitura

orquestral, onde cada linha horizontal representa um instrumento e as cores17 representam as

famílias da orquestra.

Gráfico 1 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 8 –90) – estudo quantitativo do fluxo instrumental

c. 82 c.84 c.86 c.88 c.90

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Através da visualização desse gráfico, podemos ter ideia do controle que o compositor

tem sobre o corpo sonoro-orquestral, visto que o contraste causado pela reserva e uso dos metais

com percussão, entre os blocos orquestrais, recorre em espaços equidistantes durante o trecho,

de maneira abrupta, sendo o primeiro contraste (c. 84) muito mais abrupto que os outros (c. 86

e 90), uma vez que os dois últimos contrastes são atenuados pela diminuição da quantidade de

metais e pela continuidade dos instrumentos de cordas, o que aponta para uma gradual transição

17
O Gráfico 1 foi elaborado a partir da análise do fluxo instrumental dos compassos 82–90 do primeiro
movimento. As madeiras foram representadas pela cor verde, os metais em amarelo, percussão em preto e cordas
em marrom.
64

de textura nos compassos conseguintes. A manipulação da densidade sonoro-orquestral está

presente nas estratégias orquestrais relacionadas ao delineamento estrutural da obra, não só

através da sucessão abrupta de blocos sonoros mas na gradual densificação e esvaziamento do

timbre orquestral.

As análises de contraste orquestral nos proporcionaram visualizar duas estratégias

básicas quanto à estruturação formal das obras. Apesar de as maneiras existentes de contraste

timbrístico na obra de Ficarelli serem muitas, pudemos traçar essas estratégias e sintetizá-las

em dois caminhos gerais. O primeiro abrange os procedimentos de contraste abrupto como

representado pelo Gráfico 1. Esse tipo de tratamento do timbre orquestral está relacionado a um

processo de ruptura e reiteração em curta escala. Já o segundo caminho sugere o alongamento

da estrutura formal do trecho, através da densificação ou esvaziamento gradual da massa sonora

orquestral. Esse caminho pode funcionar em grande escala, visto que existe a possibilidade do

compositor adicionar instrumentos pouco a pouco até a chegada a uma meta orquestral onde a

densificação máxima seja um tutti orquestral. O mesmo pode ocorrer em uma sonoridade cujo

esvaziamento aconteça de forma gradual, saindo de um tutti até a chegada a uma meta onde o

esvaziamento máximo seja a sonoridade de um instrumento solo.

As estratégias em torno do agrupamento instrumental e do contraste timbrístico-

orquestral têm o poder de gerar grande relevância a materiais temáticos singelos. Como

exemplo podemos citar o famoso Boléro, de Maurice Ravel. Na obra, o processo composicional

não se dá por desenvolvimento motívico ou por variação temática, mas por um impulso

orquestral, que se torna o processo mais importante da obra, gerando expectativa ao conduzir

pouco a pouco a sonoridade de um instrumento solista até um grande aglomerado sonoro que

resulta no tutti final da peça. Essa simples estratégia garante que o ouvinte se mantenha atento

ao “mantra” que se desenvolve através de modulações timbrísticas ao longo de seus

aproximadamente 15 minutos de duração. A questão é de que esse simples exemplo pode nos
65

dar a ideia de quão efetiva uma estratégia de densificação gradual da textura pode ser efetiva e

influenciar na compreensão formal da obra.

Afirmamos que a densificação sonora está ligada à expansão da forma, por percebermos

que as passagens onde identificamos este tipo de estratégia estão alongados. Todo o primeiro

movimento da Sinfonia No.2, ‘Mhatuhabh’, apresenta essa estratégia, com exceção da segunda

parte (c.75–103), onde a sonoridade orquestral se desenvolve em blocos contrastantes.

Lembremos que estamos abordando dois tipos diferenciados de manipulação do timbre

orquestral: a densificação gradual gerada pelo agrupamento dos instrumentos e o contraste

gerado pela sucessão de blocos orquestrais contrastantes. A análise contida no Gráfico 218,

demonstra o processo de densificação gradual criado pelo compositor.

Gráfico 2 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 62 –73) – estudo quantitativo do fluxo instrumental

c. 62 c. 63 c. 64 c. 65 c. 66 c. 67 c. 68 c. 69 c. 70 c. 71 c. 72 c. 73

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Após compararmos os dois gráficos, podemos concluir que ambos representam

estratégias comuns na obra de Mario Ficarelli. Apesar de essas estratégias estarem ligadas ao

18
O Gráfico 2 foi elaborado a partir da análise do fluxo instrumental dos compassos 62–73 do primeiro movimento
da Sinfonia No.2, ‘Mhatuhabh’. As madeiras foram representadas pela cor verde, os metais de amarelo, percussão
de preto e cordas de marrom.
66

agrupamento de instrumentos, podemos afirmar que cada uma desenvolve uma função diferente

nos trechos analisados.

Na análise formal da Sinfonia No. 2, feita pelo próprio autor em sua tese de livre-

docência, podemos perceber a importância que Ficarelli dava ao desenvolvimento motívico.

Ele demarca a primeira sessão do primeiro movimento e a analisa sob perspectiva das operações

motívicas presentes no trecho. Acreditamos que, apesar de o compositor não ter esclarecido as

estratégias orquestrais desse trecho, a densificação orquestral que representamos no Gráfico 2

se inicia desde o primeiro compasso do movimento (c. 35), e termina onde o compositor indica

ter finalizado a primeira sessão do movimento (c.73), conforme mostram os Exemplos 8a e 8b.

Nota-se nos Exemplos 8a e 8b a presença de uma grande letra A circulada, que

representa o início da sessão (Exemplo 8a), e a chegada à meta orquestral (Exemplo 8b). Pode-

se perceber uma grande diferença na densidade sonora entre o início e o final desse gesto. A

partir disso, podemos afirmar que o compositor é detalhista em criar uma grande meta

orquestral a partir da densificação gradual, iniciando-a com uma timbragem mais rarefeita, até

a chegada à sua meta, onde se encontra maior densidade sonora, representada por um grande

tutti. Embora os desenvolvimentos motívico e fraseológico tendam a garantir a coerência de

alturas ou temática da obra, podemos também afirmar que sua compreensão formal passa por

essa estratégia de manipulação do timbre orquestral. A partir dessas análises, entendemos que

esse grande gesto orquestral é o principal delineador formal da passagem em questão.

O Exemplo 9 contém um trecho que representa o final de uma sessão e o início de uma

outra, na Parasinfonia. Além de os materiais musicais serem diferentes entre si, a textura e a

densidade sonoro-orquestral esvaziam-se completamente com a chegada da nova sessão.

Podemos notar a preocupação do compositor em criar um ponto estratégico de elisão entre as

duas partes. Esse ponto está em destaque na cor preta, no Exemplo 9, onde podemos notar que

a última nota do tutti se torna a primeira nota da nova sessão, que por sua vez tem caráter mais

camerístico.
67

Exemplo 8a – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 35–43) – Análise formal e motívica feita por Ficarelli

Fonte: Ficarelli (1995).


68

Exemplo 8b – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 67–73) – Análise formal e motívica feita por Ficarelli

Fonte: Ficarelli (1995).


69

Exemplo 9 – Parasinfonia (c. 88–101) – Relação entre contraste orquestral e estruturas formais

Fonte: Ficarelli (2012), com destaques nossos.


70

O Exemplo 9 mostra mais uma passagem musical, onde a manipulação do timbre

orquestral influencia diretamente na compreensão formal do trecho. Podemos ressaltar que esse

contraste não se deu pela reserva dos instrumentos usados no segundo bloco, pois o contraste

acontece entre um tutti e um trecho camerístico, onde os fagotes e os contrabaixos são

responsáveis por dar seguimento ao segundo trecho do fragmento, e estes vinham sendo

utilizados desde o bloco sonoro anterior.

Após análise dos trechos escolhidos nas obras de Mario Ficarelli, com a finalidade de

observar possíveis implicações entre manipulação timbrístico-orquestral e estrutura formal,

pudemos observar que essas atitudes corroboram o trabalho de desenvolvimento motívico e

fraseológico que ele emprega em suas obras. Novamente, essas atitudes não estão apenas

localizadas nos trechos escolhidos, mas pudemos observar que, evitando demais

exemplificações, essa correlação é significativamente recorrente no restante das obras.

Entendemos também que o contraste orquestral é fundamental na obra de Ficarelli, pois

o seu uso em vários níveis e de forma sistemática emula a ideia de movimento do timbre

orquestral, estratégia que pode ser vista como fundamental para gerar expectativa e interesse

na ideia musical.

A partir desta parte da pesquisa, seguiremos com o estudo em torno das combinações

sonoras feitas por Ficarelli em sua obra, por entendermos que essa é outra estratégia

fundamental para a consistência de sua obra e para a complementação das análises e

constatações feitas até aqui.

3.2 ESTRATÉGIAS ORQUESTRAIS EM TORNO DAS COMBINAÇÕES

TIMBRÍSTICAS

A tarefa de compor obras destinadas à formações sinfônicas pode ser desafiadora, visto

que, entre as múltiplas tarefas do compor, o autor também terá de lidar rotineiramente com

escolhas de natureza instrumental. Compreender o timbre orquestral a partir do entendimento


71

das peculiaridades e idiossincrasias dos instrumentos, sozinhos ou agrupados, se faz necessário

para extrair o máximo do potencial sonoro da orquestra. Não é coincidência que a maioria dos

manuais e tratados de orquestração lidem com esse tema, exclusivamente por essa perspectiva.

Existem incontáveis maneiras de combinar os timbres de uma orquestra sinfônica. Em

geral, entendemos que o agrupamento de dois ou mais instrumentos gera um timbre composto.

A partir do estudo das obras analisadas19, pudemos perceber o uso de três estratégias orquestrais

em torno da fusão timbrística-orquestral. São elas: combinações homogêneas, combinações

heterogêneas e sons emergentes. Exemplificaremos essas três estratégias ao longo deste tópico,

na tentativa de tornar claras suas diferenciações. Podemos salientar que a subjetividade desses

termos é enorme, assim como suas variantes, além de que suas análises tendem a gerar opiniões

contrárias. Justamente por isso, em vários momentos demos relevância à nossa percepção

auditiva-analítica, deixando as nossas constatações sempre abertas a novas perspectivas de

análise.

3.2.1 Combinações timbrísticas homogêneas e heterogêneas

Para classificarmos as combinações timbrísticas, precisamos visitar a conceituação do

termo contraste novamente20. Podemos propor a comparação entre pares de instrumentos

musicais, de forma aleatória, e, sem muita dificuldade, perceberemos que existem níveis de

contraste sonoro entre eles. Um ponto de partida para essa compreensão é o estudo da

organologia, a qual nos sugere uma classificação para os instrumentos musicais a partir do

princípio físico-acústico que garante a sua produção sonora, conforme exemplificado a seguir

na Tabela 5.

19
As obras analisadas para a construção deste tópico são as mesmas do tópico anterior: Zyklus II,
Transfigurationis, Epigraphe 1990, Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’, e Parasinfonia.
20
O termo contraste pode ser definido como o “Diferença ou oposição fortes, marcantes, entre coisas análogas
ou que se apresentam no mesmo contexto de percepção.” (AULETE; VALENTE, 2017).
72

Tabela 5 – Classificação organológica dos instrumentos musicais

Famílias Descrição
Aerofones Instrumentos que soam através da vibração de uma coluna de ar
Cordofones Instrumentos que soam através da vibração de uma corda
Membranofones Instrumentos que soam através de vibração de uma membrana
Idiofones Instrumentos que soam através da vibração do seu próprio corpo
Eletrofones Instrumentos que soam através de impulsos elétricos

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

É bastante claro que dois instrumentos de uma mesma família organológica possuam

timbragem mais homogênea do que dois instrumentos de famílias diferentes. No entanto,

existem controvérsias acerca desta afirmação. Podemos propor a timbragem de dois

instrumentos, um violoncelu e um berimbau, por exemplo. Apesar de sabermos que esses dois

instrumentos estão classificados na família dos cordofones, sabemos que os eles não apresentam

uma timbragem que possa ser classificada como homogênea. Um outro caso semelhante é a

timbragem de um acordeão e uma flauta; apesar de serem aerofones, esses dois instrumentos

não possuem sonoridade homogênea. Poderíamos seguir dando vários exemplos, mas

entendemos que tal atitude não nos é pertinente.

Um eficaz ponto de partida para a compreensão de homogeneidade e heterogeneidade

timbrística é a comparação de instrumentos de um mesmo espectro de alturas. Como exemplo

podemos mencionar a timbragem entre um clarinete baixo e uma tuba. Os dois instrumentos

são aerofones, porém pertencem a famílias orquestrais diferentes, sendo o primeiro pertencente

à família das madeiras e o segundo, à família dos metais. Mesmo assim, consideramos a

timbragem entre esses dois instrumentos subgraves como sendo homogêneas.

Em resumo, temos pontos norteadores para a análise de timbragens homogêneas e

heterogêneas, mas elas não são absolutas, pois entendemos que os instrumentos são muito

diversos. Isso é notório principalmente na família da percussão, que contém instrumentos de

praticamente todas as classificações organológicas.


73

A partir desta compreensão, seguiremos com nossas análises, a começar pelo Exemplo

10, que contém um trecho de Mhatuhabh. Nele, podemos visualizar o cuidado que o compositor

demonstra ter ao timbrar homogeneamente o tema exposto.

Exemplo 10 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 35–43) – Timbragem homogênea

Fonte: Elaborado pelo autor (2018) a partir de Ficarelli (1991)


74

É interessante visualizar a passagem do Exemplo 10 sob a perspectiva de que, apesar da

enorme quantidade de combinações timbrísticas que uma grande orquestra sinfônica oferece,

o compositor opta por começar seu gesto musical de forma camerística e com uma timbragem

homogênea. O compositor demonstra a consistência de sua estratégia quando, no compasso 40,

opta pelo uso de mais uma linha melódica, tocada por mais um fagote, e reforça essa linha

através de divisi nos contrabaixos.

Por que não usar outro instrumento para o novo material que surge no compasso 40?

Por que não usar os violoncelos no lugar do divisi de contrabaixos? Imaginamos que uma das

razões pela qual o compositor opta por essas escolhas reside em manter o controle e a

continuidade da combinação homogênea por todo o trecho. Se seguirmos analisando os

compassos subsequentes, veremos que Ficarelli utiliza essa estratégia para adicionar novos

timbres ao trecho, o que aponta para a valorização do controle entre homogeneidade e

heterogeneidade, visto que o compositor se concentra em tornar as combinações timbrísticas

cada vez mais heterogêneas e densas.

Apesar da segunda sinfonia de Ficarelli ter sido escrita quinze anos após a criação de

Zyklus II, podemos observar no Exemplo 11 o emprego da mesma estratégia orquestral. O

primeiro destaque, em cor preta, aponta para uma timbragem semelhante da analisada no

Exemplo 10, onde o compositor opta pelo timbre opaco, escuro e grave dos fagotes reforçados

pelos contrabaixos. Sabiamente, o compositor escolhe dois dos instrumentos de percussão mais

graves da orquestra para fazer os dobramentos. O detalhamento da “baqueta dura” a ser usada

pelo percussionista, ao tocar os tímpanos, é de extrema importância para a timbragem dessa

passagem.

O segundo destaque, em cor azul, do Exemplo 11 mostra a estratégia aplicada a maiores

proporções, visto que, apesar de não configurar um tutti orquestral, a passagem inclui um

numero bem maior de instrumentos do que nos exemplos até agora mencionados. As

timbragens destacadas pela cor azul, demonstram também o cuidado que o compositor tem em
75

definir articulações para melhor fusão da sonoridade, visto que os violinos e as violas articulam

sons basicamente com a fricção do arco em suas cordas, enquanto as madeiras articulam o sopro

com golpes de língua. A escolha da articulação em staccato ajuda esses dois grupos

instrumentais distintos a se conectar e formar uma sonoridade homogênea.

Exemplo 11 – Zyklus II (p. 23) – Combinações timbrísticas homogêneas

Fonte: Ficarelli (1976), com destaques nossos.


76

Percebemos que, além das combinações timbrísticas homogêneas, o compositor opta

por usar combinações heterogêneas em muitos momentos de suas obras, ou seja, dobramentos

que utilizam instrumentos com timbres em evidente disparidade, como nos exemplos dados no

inicio deste tópico. Seguiremos exemplificando como estas combinações timbrísticas

heterogêneas se formam, e em que contexto elas aparecem na obra.

O Exemplo 12 mostra uma passagem da Sinfonia No. 3, onde os agrupamentos são feitos

de forma camerística. É possível notar algumas combinações entre sonoridades díspares no

trecho, principalmente no compasso 76 e 77, onde o compositor opta por combinar o piccolo

com 2 ou 3 violinos, destacados na cor preta, e o grupo formado por trombone, viola e

violoncelo, destacados na cor vermelha. Podemos notar também a combinação de clarinete com

fagote, os quais não se classificam como díspares por serem da mesma família orquestral, mas

possuem uma certa diferenciação timbrística por conta do tipo de embocadura.21 Apesar dessas

três combinações estarem em um mesmo registro sonoro, podemos afirmar que elas têm

diferentes potenciais de timbragem. Ainda, apesar de entendermos no tópico anterior que as

articulações em staccato ajudam o agrupamento a parecer mais homogêneo, constatamos

também que a timbragem entre trombone e viola é muito mais heterogênea que a timbragem

entre piccolo e violinos.

A família das madeiras é subdividida em três: os instrumentos de embocadura livre,

representados pelas flautas; os instrumentos de palheta simples, representados pelos clarinetes;

e os instrumentos de palheta dupla, representados pelos oboés, fagotes e seus auxiliares. Essas

subfamílias do naipe das madeiras possuem sonoridade muito peculiar pela tipo de embocadura,

sendo esses instrumentos muito mais homogêneos quando timbrados entre si do que quando

timbrados com instrumentos de uma subfamília diferente. Visto isso, podemos considerar o

dobramento entre clarinete e fagote no Exemplo 12 como heterogêneo, visto que o compositor

21
O clarinete possui palheta simples, enquanto o fagote possui palheta dupla, fato que diversifica bastante o timbre
dos dois instrumentos.
77

poderia ter escolhido combinações mais homogêneas, como oboé e fagote, ou clarinete e flauta,

ou ainda oboé e corne inglês.

Exemplo 12 – Sinfonia No. 3 (c. 73–77) – Timbragens heterogêneas

Fonte: Ficarelli (2000), com destaques nossos


78

Podemos notar, ainda no Exemplo 12, que o compositor opta por gerar um contraste

timbrístico através da valorização entre combinações homogêneas (c. 74–75) e heterogêneas

(c. 76–77). O Exemplo 13 demonstra um outro tipo de agrupamento timbrístico heterogêneo,

onde o compositor usa instrumentos de todas as famílias de uma forma muito peculiar.

Exemplo 13 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 155–164) – Timbragens heterogêneas

Fonte: Ficarelli (1991), com destaques nossos.


79

Podemos afirmar que o agrupamento sonoro feito pelo compositor entre os compassos

160 e 164 é uma combinação heterogênea, visto que as três flautas tocando notas longas em

flurato dificilmente se fundirão completamente às notas longas dos clarinetes, trompetes,

trompas e cordas, além do rufo contínuo nos tímpanos que contribuem ainda mais para a

heterogeneidade dessa passagem. Não esqueçamos, ainda, do contraste criado pelo uso da

bigorna na passagem, que tem grande importância temática,22 e que, em oposição aos outros

instrumentos que se encontram amalgamados pela estaticidade rítmica, executa um padrão

rítmico. Tanto esse padrão rítmico quanto o seu timbre atípico, pelo menos em um contexto

orquestral, trazem ao trecho uma sonoridade ainda mais exótica e heterogêne. Esta sonoridade

se torna importante por estar situada na coda e representar uma transição temática e timbrística

para o segundo movimento.

Vistas essas combinações timbrísticas homogêneas e heterogêneas, seguiremos ao

próximo tópico, no qual dissertaremos sobre os sons emergentes encontrados na obra de Mario

Ficarelli.

3.2.2 Combinações timbrísticas que resultam em sons emergentes

A riqueza timbrística que uma orquestra sinfônica dispõe a transforma em uma

complexa rede de interação musical. Ao analisarmos a obra de Mario Ficarelli, percebemos

que, além da presença de combinações timbrísticas de sonoridade homogênea e heterogênea, o

compositor utiliza s estratégia de gerar combinações atípicas em vários trechos de sua obra.

Classificamos como sons emergentes o resultado sonoro de agrupamentos entre dois ou mais

instrumentos, que geram sonoridades não convencionais, muitas vezes resultantes do choque

entre harmônicos ou parciais dos timbres agrupados. Esses sons emergentes são comumente

confundidos com instrumentos que não estão sendo utilizados na passagem. Os sons emergentes

22
A bigorna é usada na obra como referencial sonoro para simbolizar a reconstrução do planeta, pelos
sobreviventes de Mhatuhabh.
80

são importantes na obra de Ficarelli, visto que ele os utiliza em momentos estratégicos, criando

sonoridades que se diferenciam timbristicamente do restante da obra.

No Exemplo 14, está contida a redução de um trecho, onde o compositor opta por fazer

agrupamentos timbrísticos atípicos. Direcionemos nossa atenção analítica para os compassos

107 a 109, onde o compositor timbra as notas longas do prato suspenso, bombo e tam-tam à

técnica expandida de soprar dentro do tubo nas flautas, oboés, clarinete, trompete e trombone,

além da harmonia quartal no registro grave da orquestra. O compositor opta também por usar

apenas instrumentos de percussão de altura indefinida — entre estes, o prato suspenso e o tam-

tam, instrumentos ricos em harmônicos.

Tamanha combinação timbrística resulta em sonoridades emergentes que tendem a estar

em evidência no trecho. Esses sons emergentes são de difícil compreensão quando não

experienciados em contexto presencial acústico. Por isso, sugerimos aos leitores deste trabalho

que tentem ouvir esses efeitos orquestrais que estamos analisando, para uma melhor

compreensão.

É possível notar, pelas escolhas das sonoridades, que o compositor se debruça sobre os

avanços técnicos e instrumentais outrora advindos da expansão sonora do século XX. O

indeterminismo contido na técnica expandida de soprar dentro do tubo do instrumento pode

reforçar a sonoridade modernista presente no trecho. Vale ainda ressaltar a importância temática

e sonora que a bigorna exerce nessa obra, pois ela remete à reconstrução do planeta pelos

sobreviventes da destruição de Mhatuhabh. O uso desse instrumento traz à passagem, uma

conotação ainda mais exótica, por ser pouco usado em contexto sinfônico.

Os trompetes na região aguda e em staccato exercem função de disparidade em meio a

esse agrupamento atípico, uma vez que os eles não irão se agrupar a nenhum dos instrumentos

da passagem. Parece-nos que o compositor procura, em meio a esses efeitos, criar uma

paisagem sonora de timbre destoante do restante da obra, apesar de reconhecermos a

recorrência de alguns desses materiais expostos na passagem.


81

Exemplo 14 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 106–109) – Sons emergentes

Fonte: Elaborado pelo autor (2018) a partir de Ficarelli (1991).

Podemos afirmar que combinações contendo técnicas instrumentais expandidas não são

recorrentes entre as obras analisadas de Mario Ficarelli, sendo essa uma passagem entre as mais

importantes deste trabalho.

O Exemplo 15 demonstra outra passagem em que Ficarelli cria sonoridades emergentes

a partir de efeitos timbrístico-orquestrais. O trecho contém glissandos que, quando combinados

estrategicamente, proporcionam uma sonoridade ímpar ao trecho, visto que glissandos tendem

a ser ricos em harmônicos e representam uma certa aleatoriedade, tornando-se um recurso

moderno muito usado entre os orquestradores dos séculos XX e XXI. É muito interessante

analisar a direcionalidade dos glissandos do trecho e perceber que, enquanto alguns

instrumentos têm direção ao registro grave, outros se direcionam ao registro agudo

simultaneamente, o que gera um efeito diferente do que haveria se todos os instrumentos

estivessem escritos com a mesma direção. Combinado a isso, as madeiras e o piano reforçam o

efeito do glissando, por meio de figuração rítmica movimentada e com direcionalidade voltada

ao registro médio-agudo. Ficarelli parece aproveitar este efeito timbrístico-orquestral para


82

desenvolver o trecho de forma coerente, visto que os glissandos se tornam recorrentes durante

a passagem.

A passagem musical contida no Exemplo 16 contém agrupamentos timbrísticos, que

resultam na criação de sonoridades emergentes em grande escala, por estarem dispostas em

tutti. Os agrupamentos timbrísticos do trecho estão sobrepostos formando uma textura mais

complexa que as contidas nos exemplos anteriores. Os dobramentos em destaque, nas cores

vermelha e azul, estão todos combinados com a intenção de criar efeitos timbrísticos

orquestrais. Em vermelho estão destacados: contrabaixos, violoncelos, tímpanos, bombo e

trombone. Por outro lado, a timbragem destacada em azul mostra o dobramento entre 4 trompas,

vibraphone, violinos e violas.

Além da instrumentação atípica e bastante heterogênea, salientamos que os materiais

musicais reforçam as sonoridades emergentes na passagem, visto que o agrupamento em

vermelho combina diversos glissandos simultâneos, enquanto o agrupamento azul é construído

com trêmolos em todos os instrumentos. O uso dessas técnicas peculiares confere ao trecho

uma certa plasticidade sonora. As combinações timbrísticas desse trecho nos proporcionam a

compreensão de que o compositor evoca uma sonoridade diferenciada, visto que, em sua maior

parte, as combinações timbrísticas da obra resultam em sonoridades homogêneas e

heterogêneas. Os sons emergentes são utilizados em outros momentos da obra, apontando

sempre para uma atitude em torno do contraste timbrístico.


83

Exemplo 15 – Parasinfonia (c. 131–139) – Sons emergentes

Fonte: Ficarelli (2012), com destaques nossos.


84

Exemplo 16 – Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’ (c. 99–105) – Sons emergentes

Fonte: Ficarelli (1991), com destaques nossos.


85

3.3 BREVES COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS A RESPEITO DAS ANÁLISES

As análises de combinações timbrísticas, puderam nos revelar o cuidado que o

compositor demonstra ter ao agrupar os instrumentos da orquestra em suas obras. Desta forma,

pudemos entender que existem claras estratégias orquestrais em torno da formação de timbres

compostos. Entendemos também que a obra sinfônica de Mario Ficarelli é expressiva e revela

grande qualidade técnica de escrita por parte do compositor, estando claros os objetivos em

torno da criação de timbres compostos, sejam eles homogêneos, heterogêneos ou que resultem

em sons emergentes.

Podemos afirmar, após esse trabalho analítico, que as estratégias aqui constatadas estão

integradas, e não isoladas como ferramentas absolutas do compor. A maneira técnico-musical

com que Mario Ficarelli delimita e integra essas atitudes orquestrais torna sua obra fluida e

coerente, além de apontar para um certo domínio das possibilidades orquestrais existentes, pois

são muitas as atitudes estratégicas presentes na arte da orquestração, como propõe Gomes

(2015).

As análises de contraste timbrístico-orquestral, relações entre contraste timbrístico-

orquestral e forma, combinações homogêneas, heterogêneas e combinações que resultam em

sons emergentes, tudo isso nos fiz enxergar tanto a obra de Ficarelli quanto outras obras

sinfônicas sob uma outra perspectiva criativa. Isso nos motiva e nos impulsiona a elaborar de

maneira mais aprofundada as nossas obras orquestrais, levando em consideração e

aperfeiçoando o controle consciente de uma técnica mais apurada da arte da orquestração.

O próximo capítulo é integrado pelo memorial analítico da obra Spero, composta

durante o processo de análise e escrita deste trabalho.


86

4 MEMORIAL ANALÍTICO DA OBRA SPERO

A partir das análises feitas no capítulo anterior, pudemos constatar uma série de

estratégias criativas em relação à manipulação do timbre orquestral. Foi possível perceber que

essas estratégias estão, quase sempre, atreladas ao discurso poético da obra, bem como às

estruturas formais das obras analisadas.

A obra Spero, composta em 2018 para orquestra sinfônica, integra esta dissertação de

forma prática a partir da aplicação das estratégias orquestrais inspiradas no nosso trabalho

analítico desenvolvido sobre as obras sinfônicas de Mario Ficarelli. Spero foi criada a partir da

manipulação timbrístico-orquestral, na tentativa de valorizar, em primeiro grau, procedimentos

inerentes à arte de orquestrar. Para a formulação de seu memorial, apresentaremos análises da

obra, relacionando-as ao capítulo anterior, onde estão expostas as análises de contraste

orquestral e combinações timbrísticas.

O termo em latim spero quer dizer “esperança” e é uma resposta direta à temática

exposta por Ficarelli em suas obras Zyklus II, Transfigurationis e Sinfonia No. 2, ‘Mhatuhabh’.

O intervalo de segunda menor — oriundo das notas Fá e Mi que, segundo a teoria kepleriana,

correspondem às duas frequências que caracterizam a terra —, está presente também ao longo

da obra Spero. Assim como em Transfigurationis, quando apresentado em direção descendente,

esse intervalo representa o estado decadente do ser humano, salvo pela ultima aparição do

motivo (c. 165), onde a nota Mi é harmonizada com a expansão de um acorde de Mi maior, este

último representando a esperança e a salvação da humanidade.

4.1 RELAÇÕES ENTRE CONTRASTE ORQUESTRAL E FORMA

Traçamos o planejamento da obra Spero a partir da assertiva de que a manipulação do

contraste timbrístico-orquestral pode influenciar na percepção da estrutura formal da obra. Tal

estratégia foi usada diretamente no planejamento formal da obra, na construção dos tuttis e na
87

delimitação das sessões, através de metas orquestrais. Pudemos constatar, nas análises do

capítulo anterior, que a mudança abrupta do timbre orquestral está atrelada à formação e

sucessão de blocos contrastantes entre si, gerados por diferentes agrupamentos instrumentais,

enquanto as mudanças mais brandas e progressivas do timbre orquestral estão quase sempre em

função do alongamento do gesto musical, geralmente atreladas aos processos de densificação e

esvaziamento sonoro-orquestral.

Seguiremos com a exemplificação de trechos onde essas estratégias foram aplicadas e

subdividiremos nosso memorial em tópicos que irão nos remeter às análises anteriores.

4.1.1 Contraste orquestral na obra Spero

O Exemplo 17 contém um trecho da obra que composto a partir da interpolação entre

blocos orquestrais contrastantes, como podemos notar nos blocos 1, 2 e 3, evidenciados pelas

cores vermelha, azul, e verde respectivamente. O contraste timbrístico do trecho acontece

através da abrupta mudança de agrupamentos instrumentais, conforme mostra a Tabela 6.

Tabela 6 – Agrupamentos instrumentais utilizados nos blocos contrastantes em Spero (c. 91–111)

BLOCO 1 BLOCO 2 BLOCO 3


Trompas em Fá 1, 2, 3 e 4 Triângulo Piccolo
Trombones 1 e 2 Violinos 1e 2 Flautas 1, 2 e 3
Violas Oboés 1, 2 e 3
Violoncelos Corne Inglês
Contrabaixos Clarinetes em Sib 1, 2 e 3
Clarinete baixo
Fagotes 1, 2 e 3
Contrafagote
Tímpano
Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

É possível constatar, através da Tabela 6 e do Exemplo 17, que os blocos possuem

contraste timbrístico total entre eles, no diálogo sucessivo entre metais, cordas e madeiras, não

havendo uma repetição de instrumento sequer entre os agrupamentos da passagem analisada.23

23
Salientamos que as análises desta obra não estão dispostas linearmente, motivo pelo qual começamos nossas
análises a partir do compasso 91.
88

Exemplo 17 – Spero (c. 91–111) – Contraste entre três blocos orquestrais

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).


89

A partir da construção timbrística deste trecho, pudemos experimentar um alto grau de

contraste, visto que os agrupamentos foram feitos respeitando-se também as famílias

orquestrais: o bloco 1, agrupado em sua totalidade com instrumentos da família dos metais, o

bloco 2, agrupado predominantemente por instrumentos da família das cordas, e o bloco 3,

agrupado predominantemente por instrumentos da família das madeiras, na busca de um

diálogo enfatizado por camadas sonoras homogêneas. Outra estratégia sutil, porém

importantíssima para o trecho, se encontra representada no vibrafone que, por sua vez, não está

agrupado a nenhum dos três blocos, mas desempenha função de ligação entre os dois primeiros

blocos, atenuando de forma branda o contraste, em toda sua plenitude, entre os blocos.

O Exemplo 18 mostra um trecho em que a aplicação de contraste não foi feita apenas

por blocos em sucessão, como no exemplo anterior, mas também em blocos expostos em

sobreposição. Os blocos timbrísticos destacados pelas cores, vermelha, azul, verde e amarela

se encontram em contraste harmônico, uma vez que todos soam ao mesmo tempo. Esses blocos

são recorrentes na obra, fato que pode proporcionar ao ouvinte a experiência de um déjà vu, já

que eles não estão sendo repetidos em um mesmo contexto timbrístico. Vale ainda salientar que

o contraste entre os blocos harmônicos do Exemplo 18 são potencializados pelas diferenciações

de articulação, dinâmica e registro de alturas.

Ainda no trecho do Exemplo 18, podemos notar o contraste timbrístico em blocos,

quando no compasso 127 o compositor muda quase que completamente os instrumentos usados

na passagem. Destacamos a continuidade do material musical e a importância que o contraste

timbrístico exerce no trecho, onde o bloco vermelho segue reduzido ao vibrafone, o bloco azul

é direcionado para as cordas em pizzicato e região aguda da marimba, e o bloco verde, que

mantém o contrabaixo, trocando apenas os tímpanos e a tuba pela região grave da marimba.

Esse câmbio de agrupamentos timbrísticos, aliados à continuidade dos motivos rítmicos e

melódicos, garante a fluidez musical do trecho analisado. A nossa intenção maior foi a de criar

um “contraponto sonoro orquestral” que, por sua vez, se sobrepõe à ideia de contraponto
90

motívico ou de alturas, levando em consideração o planejamento inicial de valorizar, sobretudo,

os procedimentos inerentes à arte da orquestração.

Exemplo 18 – Spero (c. 119–129) – Sobreposição de blocos timbrísticos contrastantes

Fonte: Elaborado pelo autor.

Vistos esses exemplos de contraste orquestral, continuaremos com a exposição das

análises seguintes, onde relacionaremos estratégias de contraste timbrístico à concepção das

estruturas formais da obra Spero.


91

4.1.2 Relação entre contraste orquestral e estruturas formais

As estruturas formais da obra Spero foram construídas a partir da aplicação de

estratégias que envolvem não apenas a manipulação do contraste timbrístico-orquestral, mas

também o controle da densidade sonora da orquestra. Como já discorrido anteriormente, as

estratégias que envolvem a manipulação do contraste timbrístico-orquestral são responsáveis

pela formação de blocos timbrísticos em sucessão, oriundos de agrupamentos instrumentais

diferenciados. Já as estratégias que envolvem o controle da densidade sonoro-orquestral estão

atreladas ao alongamento das estruturas formais da obra, através dos processos de densificação

e esvaziamento da massa sonora da orquestra.

Está representado no Exemplo 19 o primeiro grande gesto orquestral da obra (c.1–35),

onde é encontrada a estratégia de densificação do corpo sonoro-orquestral. Podemos notar que

o gesto se inicia apenas com um rufo de tímpano e, pouco a pouco, vai ganhando proporções

mais significativas em relação ao uso quantitativo dos instrumentos da orquestra, até a chegada

do clímax da meta orquestral24 no compasso 35, onde a textura musical se apresenta de forma

muito mais densa. Além da densificação gradual constatada, pudemos também analisar a

aplicação da direcionalidade de alturas no trecho, visto que o compositor controla o caminho

que se inicia no espectro grave da orquestra, até a chegada ao espectro médio-agudo de forma

gradual.

O planejamento formal prévio de uma obra é uma boa forma de garantir o controle e a

consistência das estratégias a serem trabalhadas. No caso do Exemplo 19, podemos afirmar que

todo este trecho foi idealizado e arquitetado anteriormente à escrita de qualquer nota musical

no pentagrama, através da aplicação consciente de uma estratégia orquestral baseada no

controle da densidade sonora da orquestra.

24
O clímax da meta orquestral a que nos referimos se encontra em destacado em preto, no Exemplo 19.
92

Exemplo 19 – Spero (c. 1–35) – Densificação e meta orquestral

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Mais uma vez tentamos aqui o processo de valorização da massa sonoro-orquestral em

primeiro grau, na ideia composicional.


93

O Exemplo 20 contém uma passagem musical, estruturada a partir da construção linear

de três blocos timbrísticos-orquestrais, destacados nas cores vermelha, azul e verde,

respectivamente. Estes se sucedem de forma abrupta e caracterizam o que classificamos em

nossa pesquisa como contraste máximo, com a mínima excessão dos tímpanos que pertencem

aos blocos 1 e 2. O contraste timbrístico máximo acontece quando um bloco sonoro é sucedido

com total mudança de timbre, ou seja, sem a continuidade de nenhum dos instrumentos que

estavam sendo utilizados no bloco anterior, como podemos notar na Tabela 7. Vale ressaltar

que o fato de os fagotes estarem presentes nos blocos 1 e 3 não atenua as relações de contraste

desse exemplo, visto que esses blocos não se sucedem diretamente.

Tabela 7 – Agrupamentos instrumentais utilizados em contraste máximo em Spero (c. 49–65)

BLOCO 1 BLOCO 2 BLOCO 3


Fagotes 1,2 e 3 Piccolo Oboés 1, 2 e 3
Contrafagote Flautas 1, 2 e 3 Corne Inglês
Trompas 1, 2, 3 e 4 Clarinetes em Sib 1, 2 e 3 Clarinete Baixo
Trompetes 1, 2 e 3 Tímpano Fagotes
Trombones 1 e 2 Violinos 1 e 2 Tuba
Trombone Baixo Violoncelos Violas
Tímpano Contrabaixos
Woodblock
Tom-tom

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

O contraste entre os blocos contidos no trecho do Exemplo 20 é ainda mais

potencializado pela mudança radical dos materiais musicais, sendo esta a passagem de maior

contraste na obra Spero. Ela também representa o processo de interpolação de blocos sonoros,

presente em vários trechos da obra. Podemos também constatar com este exemplo que a

direcionalidade de alturas deste trecho é construída de forma consciente, a partir da distribuição

sonora do espectro orquestral, visto que o primeiro bloco está predominantemente situado na

região média, o segundo bloco predominantemente na região aguda, e o terceiro bloco está

predominantemente na região grave.


94

Exemplo 20 – Spero (c. 49–65) – Contraste máximo entre três blocos orquestrais

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Com a composição da música Spero, pudemos confirmar a aplicabilidade do estudo do

contraste orquestral em relação à concepção de estruturas formais, estratégia que se tornou

fundamental e recorrente na obra. A compreensão dessa estratégia só foi possível, pelas diversas

análises realizadas no repertório sinfônico do compositor Mario Ficarelli. Podemos afirmar que
95

muitas obras orquestrais, clássicas ou modernas, possuem as estratégias sobre as quais

discorremos neste capítulo. No entanto, a possibilidade de criar música, assumindo como

perspectiva primária essas estratégias orquestrais, é algo muito pouco teorizado e exemplificado

entre os campos teóricos da composição musical.

Seguiremos aos próximos tópicos, nos quais dissertaremos sobre as combinações

timbrísticas presentes na obra Spero, tendo em vista a integração delas com as estratégias de

combinação timbrística.

4.2 ESTRATÉGIAS DE COMBINAÇÃO TIMBRÍSTICA

Este tópico aborda a aplicação das estratégias orquestrais ligadas diretamente às

combinações timbrísticas. São elas: combinações homogêneas, combinações heterogêneas e

combinações que resultam em sons emergentes. Como já dissertado em nosso terceiro capítulo,

essas diferentes classificações se tornaram viáveis através da análise de agrupamentos

instrumentais, com base na classificação organológica dos instrumentos25 e na classificação dos

instrumentos em famílias e subfamílias orquestrais. Portanto, seguiremos com a exemplificação

analítica dessas três espécies de combinações timbrísticas.

4.2.1 Combinações timbrísticas homogêneas e heterogêneas

Na obra Spero, há uma variedade de procedimentos relacionados às combinações

timbrísticas, baseados nos dois seguintes tipos de combinações: as que resultam em timbragens

homogêneas, e as que resultam em timbragens heterogêneas, ficando para o próximo tópico

apenas as combinações timbrísticas que resultam em sons emergentes.26

25
A classificação organológica pode ser consultada na Tabela 5 (p. 72) do capítulo anterior.
26
Esta última é oriunda do Capítulo 3, onde analisamos uma obra de Ficarelli de mesma organização.
96

O Exemplo 21 contém duas combinações timbrísticas. A primeira está destacada pela

cor vermelha, onde podemos observar o motivo melódico exposto em uníssono pelo clarinete

baixo, agrupado ao fagote. Podemos afirmar que essa timbragem tem um certo nível de

heterogeneidade, visto que os dois instrumentos usados, apesar de pertencerem à família das

madeiras, não pertencem à mesma subfamília.27 Essa combinação é sucedida por uma

combinação homogênea, destacada pela cor azul. O agrupamento oitavado, formado pelo corne

inglês e pelo oboé, tende a soar de forma equilibrada em relação ao timbre, visto que esses

instrumentos, além de fazerem parte da família orquestral das madeiras, fazem parte também

da mesma subfamília, no caso, dos instrumentos de palheta dupla. Ainda, esses instrumentos

têm característica muito peculiar e bastante diferenciada em relação às outras subfamílias das

madeiras.

Vale ainda ressaltar que, ainda no Exemplo 21, é possível observar a integração dessas

duas combinações timbrísticas, no compasso 65, onde os agrupamentos se sobrepõem,

formando um novo timbre composto um pouco mais heterogêneo que os primeiros, visto que a

diversidade de timbres agrupados é ainda maior que os anteriores. Em todo caso, aqui o

compositor optou por um grau de heterogeneidade mais discreto, de maneira consciente,

almejando aplicar contrastes timbrísticos entre uma única família orquestral — no caso, as

madeiras.

Está contido no Exemplo 22 um trecho onde o agrupamento timbrístico foi pensado de

forma mais homogênea possível, uma vez que os instrumentos usados fazem parte da mesma

família e estão escritos em um mesmo registro de alturas. O quarteto de trompas tem fácil

timbragem com os trombones e essa homogeneidade é reforçada pela textura coral do trecho.

É certo que o timbre predominante, neste trecho, será o das trompas, visto que elas estão em

maior quantidade e possuem poder sonoro similar ao dos trombones. Podemos afirmar que o

27
A família das madeiras é subdividida em três subfamílias: instrumentos com embocadura livre, instrumentos
com palheta simples e instrumentos com palheta dupla.
97

trombone desempenha uma função timbrística de complementação ao timbre das trompas, no

trecho, como se fosse uma “quinta trompa”, na tentativa de alargar o ambiente sonoro via uma

fusão alcançada pelo tipo de registro.28

Exemplo 21 – Spero (c. 57–68) – Combinações timbrísticas homogêneas e heterogêneas

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Exemplo 22 – Spero (c. 91–101) – Combinação timbrística homogênea

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

28
É comum nos manuais de orquestração, a abordagem de mudanças de perspectiva sonora mediante registros,
até mesmo de instrumentos da mesma família, para obter maior ou menor grau de diferenciação sonora.
98

Os Exemplos 21 e 22 demonstram estratégias de combinação timbrística entre

instrumentos de uma mesma família orquestral — madeiras e metais, respectivamente. Já na

redução do Exemplo 23 apresentamos combinações timbrísticas homogêneas entre

instrumentos de famílias diferentes.

Exemplo 23 – Spero (c. 54) – Combinações timbrísticas

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

Nesse exemplo, podemos visualizar três combinações timbrísticas entre instrumentos

de famílias diferentes: flauta e violinos 1; clarinete (Bb) e violinos 2; contrabaixo, violoncelos

e tímpano. As combinações timbrísticas supracitadas soam de forma homogênea por conta de

algumas características básicas. A primeira delas é o registro de alturas nos quais os

dobramentos se encontram dispostos.29 Outra característica que garante a homogeneidade

dessas timbragens é a aplicação do mesmo tipo de articulação entre os instrumentos. Além

dessas timbragens já analisadas, podemos constatar que piccolo, flauta, violinos 1 e 2, clarinete

(Bb), todos se encontram dispostos em oitavas, fato esse que torna a timbragem geral do trecho

com um grau acentuado de homogeneidade (mesmo sendo esses instrumentos pertencentes a

famílias orquestrais diferentes), visto que as oitavas tendem a soar como timbres compostos em

um contexto orquestral. Além da compreensão dessas timbragens, podemos mudar a

29
Os três agrupamentos timbrísticos estão dispostos em uníssono.
99

perspectiva de análise ainda mais, a fim de compreender o timbre geral do trecho, visto que

existe um grande vazio no espectro sonoro-orquestral médio. Este, por sua vez, desempenha a

função de contrapor a ideia da timbragem homogênea, visto que esse vazio entre os

instrumentos graves e agudos fará com que as duas sonoridades sejam ouvidas de forma

heterogênea. Podemos, a partir desta compreensão, afirmar que existem planos de combinações

timbrísticas dessa natureza tanto no Exemplo 23, como em outros trechos da obra Spero.

A combinação entre cordas e triângulo, mostrada no Exemplo 24, é delicada o suficiente

para que a consideremos como heterogênea. Com sonoridade frágil e opaca, os harmônicos

artificiais das cordas dificilmente irão se misturar ao brilho timbrístico do triângulo.

Exemplo 24 – Spero (c. 96) – Combinação timbrística heterogênea

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

No entanto, a combinação entre cordas e triângulo não se deu de forma a contemplar o

agrupamento por famílias orquestrais, e sim pelo uso de duas sonoridades díspares que
100

pudessem ser complementares. O triângulo tem o ataque sonoro muito mais presente e veloz

que as cordas em harmônicos. Estas, por sua vez, terão muito mais release que o triângulo, fato

que garantirá a diversidade timbrística nessa combinação heterogênea, com a finalidade de

contrastar a sonoridade dos compassos anteriores (c. 91–95) e dos posteriores (c. 97–101), onde

o timbre é predominantemente dos instrumentos de metais.

O Exemplo 25 destaca duas combinações timbrísticas: a primeira representada pela

combinação de marimba e violinos 1 e 2, e a segunda por woodblock, violas e violoncelos.

Podemos perceber, ao analisarmos essa passagem, que existem níveis referentes à

homogeneidade do agrupamento desses instrumentos, visto que a combinação entre marimba e

cordas em pizzicato, destacada em vermelho, soará de forma homogênea, pela semelhança que

existe entre esses dois timbres. A opção por escrever esses instrumentos em uníssono e com o

mesmo ritmo surge, nesse contexto, como uma estratégia para reforçar ainda mais a

homogeneidade do timbre composto, levando também em consideração a técnica e a articulação

dispostas nos violinos 1 e 2, já que, se estes estivessem tocando em detaché,30 a timbragem não

aconteceria de forma homogênea.

A segunda combinação, entre woodblock, violas e violoncelos (em azul), se apresentará

de forma mais heterogênea que o primeiro agrupamento do Exemplo 25, uma vez que, por não

ter alturas definidas, o woodblock não poderá ser executado nas mesmas frequências que as

violas e os violoncelos. Além disso, podemos notar que os acentos adotados no ostinato rítmico

contido no instrumento percussivo não está em combinação com as cordas que desempenham

função de dobramento, fato que irá destacar a sonoridade deste instrumento.

30
Detaché é a técnica mais convencional entre os instrumentos de cordas da orquestra, com a qual estes são
tocados com a fricção do arco, de forma alternada, sem acentuar as notas e de maneira “lisa".
101

Exemplo 25 – Spero (c. 127–134) – Combinações timbrísticas homogêneas e heterogêneas

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).

A partir destas análises, pudemos perceber que apenas o dobramento em uníssono ou

oitava não é suficiente para garantir uma sonoridade homogênea, mas sim o cuidado e o

controle de outros fatores, tais como a dinâmica, a articulação, o registro sonoro-orquestral, a

natureza do instrumento, a técnica a ser usada, dentre outros. Seguiremos, no próximo tópico,

com as análises de combinações timbrísticas que resultam em sonoridades emergentes.

4.2.2 Combinações timbrísticas que resultam em sons emergentes

Esta parte do memorial é destinada à compreensão de procedimentos práticos de

combinação timbrística, que resultam em sonoridades atípicas. Essas combinações de timbre

têm a interessante capacidade de projetar novas sonoridades a partir do choque entre suas séries
102

harmônicas e parciais, as quais classificamos como sons emergentes.31 Os sons emergentes

estão dispostos de forma sutil na obra Spero, quase sempre sobrepostos por combinações

timbrísticas mais comuns, como as já analisadas nos dois tópicos anteriores.

Podemos constatar, através do Exemplo 26, que a sonoridade progride de duas maneiras.

Na primeira, destacada na cor vermelha, podemos ver os glissandos entre as notas fá e mi.32 Já

a segunda, destacada na cor azul, progride a partir da densificação sonora causada pela

sobreposição de quintas justas. Os glissandos, por si só, garantem um efeito orquestral que se

diferencia da sonoridade comum ao trecho e à obra de forma geral.

Quando combinadas, essas duas maneiras de progressão sonora causam um choque

dinâmico entre seus parciais, visto que a estabilidade proporcionada pelas quintas justas em

sobreposição será abalada pela instabilidade trazida pelos glissandos. Esta justaposição entre

parciais estáveis e instáveis33 proporciona o surgimento de sonoridades emergentes.

O Exemplo 27 contém outro trecho onde a combinação timbrística, demarcada em

vermelho, acontece de forma atípica, visto que o efeito orquestral criado a partir da técnica

estendida nos metais não é convencional, apesar de já utilizada por alguns compositores

modernos. A ideia de combinar essa sonoridade ao rufo do vibrafone, surge como uma maneira

de trazer a sonoridade um exotismo timbrístico ainda maior, uma vez que esse instrumento tem

um timbre riquíssimo e conta ainda com o efeito de trêmolo, efeito que não é encontrado, de

forma natural, em nenhum outro instrumento da orquestra sinfônica tradicional.

31
A concepção de que o som possui elementos integradores além de sua série harmônica é oriunda das pesquisas
sobre o espectro sonoro de Grisey, Murail e outros compositores espectrais. Para maior aprofundamento
bibliográfico recomendamos a leitura de Humięcka, (2009), Drott (2005), Griffiths (2011), Slonimsky (2004) e
Taruskin (2005).
32
Motivo principal da obra que remete à teoria kepleriana, conforme abordado no capítulo anterior.
33
Entendemos que os parciais provenientes de notas longas estáticas são estáveis, enquanto que os parciais
oriundos das notas em glissando são instáveis e representam certa plasticidade sonora no trecho.
103

Exemplo 26 – Spero (c. 142–153) – Sons emergentes

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).


104

Exemplo 27 – Spero (c. 86–101) – Sons emergentes

Fonte: Elaborado pelo autor (2018).


105

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender a orquestração de uma obra não é um exercício simples, principalmente

quando a ela integra o diversificado repertório de atitudes compositivas dos séculos XX e XXI.

Na busca dessa compreensão, pudemos perceber, através de uma revisão bibliográfica, que as

fontes teóricas sobre o assunto são escassas, e as poucas existentes não contemplam essa parte

do repertório musical. Além disso, não há muitas linhas de pesquisa em desenvolvimento no

campo da orquestração, em se tratando do nível de pós-graduação no Brasil. No entanto,

encontramos os trabalhos de Gomes (2001, 2015), a partir dos quais pudemos compreender que

compor música orquestral é saber lidar com uma atividade que envolve múltiplas tarefas.

Essas duas referências se tornaram, sem dúvidas, um alento em meio ao mar de

carências teóricas sobre esse assunto. A partir das múltiplas tarefas sugeridas por Gomes (2001,

2015), pudemos concentrar nossa atenção analítica nos procedimentos orquestrais que

envolvem contraste timbrístico, densidade sonora, procedimentos estruturais delineados por

procedimentos timbrísticos e graus de contraste, bem como procedimentos de homogeneidade,

heterogeneidade e sonoridades emergentes.

Ter escolhido o repertório sinfônico de Mario Ficarelli como objeto de análise — tendo

em vista a manipulação timbrística sonoro-orquestral, bem como através de uma revisão

bibliográfica sobre sua vida e obra —, foi, sem dúvida, um dos fatores que nos estimularam a

realizar esta pesquisa. Dessa forma, traçamos um perfil analítico para a compreensão dessas

estratégias, na busca de uma proposta metodológica que norteasse a nossa pesquisa.

As análises nos levaram a constatar que a obra de Mario Ficarelli é baseada não apenas

em desenvolvimentos motívicos ou fraseológicos, mas também na manipulação estratégica do

timbre orquestral. Constatamos que o contraste timbrístico-orquestral abrupto está ligado à

formação de blocos sonoros, enquanto que os procedimentos de densificação sonoro-orquestral

estão diretamente ligados ao alongamento de gestos orquestrais, dentro de um pensamento mais

estruturante da ideia musical. Pudemos então afirmar que tanto a sucessão de blocos sonoros
106

quanto o alongamento dos gestos orquestrais são de extrema importância para a compreensão

das estruturas formais dos trechos analisados, ou até mesmo da forma geral das obras. Pudemos

também constatar que as combinações timbrísticas seguem três linhas básicas na obra de

Ficarelli — combinações homogêneas, combinações heterogêneas e combinações que resultam

em sons emergentes —, como fontes e capacidades sonoras à disposição do compositor.

Com esta pesquisa, pudemos também compor a obra Spero, para orquestra sinfônica.

Através dela, foi possível testar e aplicar as estratégias de forma prática, inspirando-nos nas

análises das obras sinfônicas de Mario Ficarelli. Spero não é a nossa primeira obra orquestral,

por isso pudemos compará-la às demais e notar um grande avanço em direção à consciência e

à exploração dos recursos timbrísticos da orquestra, de forma que, sem as constatações

provenientes das análises feitas, esta obra não teria tanta relevância, em relação às suas

estratégias orquestrais. Isso se daria mesmo que estivesse abordando o assunto, na criação dessa

obra com uma certa simplicidade textural, propositadamente enfatizando em primeiro grau

estratégias inerentes à arte da orquestração.

Esperamos que, com esta dissertação, novas perspectivas analíticas sejam discutidas e

implementadas em pesquisas posteriores, como também surjam métodos didáticos que possam

reforçar ou contrapor o nosso discurso. A partir disto, esperamos ainda que se desdobrem novas

aplicações práticas, as quais garantam a criação de novas obras. Esperamos também que esta

pesquisa desperte o interesse de compositores, para que eles possam formular propostas teóricas

baseadas na concepção cognitiva do ouvinte em relação à manipulação do timbre orquestral,

pois consideramos esse tipo de abordagem indispensável para a compreensão das estratégias

orquestrais de uma obra.


107

REFERÊNCIAS

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