Sei sulla pagina 1di 68

Lógicas do Reconhecimento

Lógicas do reconhecimento
Aula 1

No ano de 2011, os países árabes conheceram grandes manifestações populares


pela primeira vez em décadas. Estas manifestações contra governos autoritários
foram catalizadores de descontentamento social, sentimento de injustiça
econômica e invisibilidade política. Dentre várias palavras de ordem utilizadas
Curso Ministrado no em vista à mobilização e à consolidação da revolta, uma foi ouvida de forma mais
insistente. Ela tinha a peculiaridade de ser uma palavra que está entre o
Departamento de Filosofia sentimento moral e a demanda política, a saber, “Respeito”.
Este dado aparentemente anódino merece ser salientado. As pessoas não
Universidade de São Paulo se deixaram mobilizar imediatamente por um projeto de modificação da
estrutura econômica ou de demandas pontuais sobre direitos e benefícios. Elas
Primeiro semestre de 2017 foram às ruas por se sentirem “desrespeitadas”, desprezadas, ou seja, por
entenderem que havia um nível elementar da vida social que lhes faltava, algo
que poderíamos chamar de “fundamento” da vida social. Fundamento no qual
encontramos práticas que explicitam como instituições e estruturas de poder
devem me reconhecer como sujeito político dotado de visibilidade, de voz. Há de
se levar em conta este fato: para além do que poderíamos definir como
motivações latentes, a mais importantes sequências de insurreições populares
do século XXI foi feita em nome de um sentimento profundo de desrespeito.
Há ainda um outro fato que gostaria de trazer a vocês. No ano de 2002,
Kamla Abu Said e sua irmã Amna foram mortas em meio ao conflito Israel-
Professor Vladimir Safatle Palestina enquanto trabalhavam em um fazendo em Gaza. Dias antes, Fatima
Zakarna e seus dois filhos, Bassen e Suhair também haviam sido mortos
enquanto colhiam folhas de uvas nos campos de Kabatyia. Tempos depois, um
palestino cidadão norte-americano que conhecia as vítimas quis publicar um
obituário no jornal San Francisco Chronicle. No entanto, o jornal recusou a
publicação afirmando que “não gostaria de ofender ninguém”. Diante da
repercussão da história, Judith Butler perguntou: é aceitável que a experiência
pública do luto seja vista por alguém como uma ofensa?1. A pergunta era, de fato,
necessária. Pois afirmar que há vidas que não podem ser objeto público de luto,
cujas mortes não podem ser objetos de um trabalho de memória é, sob quaisquer
circunstâncias, moralmente aceitável? Notem que se tratava neste caso de retirar
da vida sua dimensão de experiência que se transmuta em memória, ou seja,
tratava-se de reduzi-la à condição de uma vida sem a possibilidade de habitar o
tempo dos traços que resistem ao esquecimento, dos arquivos que desafiam a
contração do presente, dos corpos que se transformam em virtualidades a
construir outras formas de presença.
A questão que talvez devamos fazer é: não se trataria aqui de anular uma
dimensão (mais uma vez) fundamental do que chamamos de “vida social”?

1
BUTLER, Judith; Precarious life, Verso, p. 32
Desde os gregos, desde Antígona, nos perguntamos se um Estado que impede o situações que poderíamos chamar de “invisibilidade social”. Invisibilidade esta
luto público de qualquer um (é há de se insistir aqui neste dimensão de que se traduz no sentimento de simplesmente não existir ou de ter uma
“qualquer um”), jogando-o em uma nudez da vida sem atributos e sem existência profundamente mutilada, como alguém preso entre a vida e a morte.
virtualidade, tem ainda o direito de existir. Esta pergunta poderia ser mais uma Ou seja, há em todos esses casos, de formas múltiplas, com intensidades
vez posta, como precisou ser várias vezes postas na história. O que acontece variáveis, a experiência de que a possibilidade de existência está inviabilizada. O
quando há vidas impedidas de habitar o tempo do luto? que nos coloca uma questão da maior importância e que certamente não será de
Mas eu gostaria ainda de trazer um terceiro fato. Na década de cinquenta, fácil resposta, uma questão que cada uma dessas situações nos coloca, a saber: o
o psicanalista Donald Winnicott recebeu uma paciente em seu consultório. que fenômenos como estes podem nos dizer a respeito do que entendemos por
Tratava-se de uma mulher, por volta dos cinqüenta anos, que descobriu ter “existência”?
construído uma vida na qual: “nada do que se passava realmente era Claro, há sempre aqueles que darão de ombros a questões como esta
verdadeiramente importante para ela”2. Winnicott fala de um sentimento de não dizendo que a determinação das condições de existência é um problema trivial
“existir de fato”. Pois ela vive em um estado de dissociação no qual a parte “mais que se reduz a verificação de enunciados constatativos. Eles dirão então que algo
importante dela mesma” encontra espaço em uma outra vida: uma vida existe na medida que pode ser verificado pela percepção em condições normais.
fantasmática. No entanto, nesta vida fantasmática onde ela pode conservar si A percepção constataria o que está lá, pronto para ser desvelado. E poderíamos
mesmo no interior da ilusão de onipotência própria ao que não precisaria se ainda naturalizar tais “condições normais” afirmando que elas corresponderiam
confrontar com situações concretas para existir, ela descobre que fantasia como a padrões normativos gerais dos órgãos humanos. Padrões estes que, por sua
um Outro. Winnicott remete tal alienação a situações infantis nas quais a vez, poderiam ser potencializados a partir de instrumentos e condições de
paciente, filha mais nova de um casal com várias crianças, relaciona-se com laboratório.
outros internalizando um mundo já organizado. Assim, por exemplo, ela joga Mas poderíamos também dizer que a determinação das condições de
com as crianças um “jogo dos outros”. Atividade que ela associa ao fantasiar. existência não é dependente de enunciados constatativos. Nós não apenas
Desta forma, ela podia: “observar-se jogando o jogo das outras crianças como se constatamos algo quando dizemos que algo existe. Nós produzimos algo, ou seja,
ela observasse alguém outro no grupo do jardim de infância”3. Maneira de tratam-se de enunciados performativos. Muitas vezes, dizer que algo existe é
afirmar que a paciente se sentia, na dimensão da fantasia, presa ao olhar do inclui-lo em um horizonte de experiência do qual ele não fazia parte, modificar
Outro, jogando um jogo cujas regras não lhe parecem expressar algo que, de fato, não apenas o estatuto de algo, mas a própria estrutura de tal horizonte. Dizer
lhe concerne. que algo existe é inseri-lo em outra rede de efeitos. Pois a existência não é apenas
No entanto, a paciente produz um sonho importante para a sequência da um fato, ela é um valor. Isto implicaria, entre outras coisas, colocar em questão
análise. Neste sonho, ela se debatia furiosamente com um tecido que deveria ser uma das mais fundamentais crenças do senso comum, a saber, a crença em uma
cortado para produzir um vestido. Ela o cortava e recortava, fazia e desfazia, o natureza meramente especular da percepção. Como se nossa percepção fosse
que lhe deixava exasperada. A interpretação de Winnicott girará em torno da apenas um espelho do mundo, que pode ficar opaco às vezes, mas que também
noção de “informidade” (formlessness). Tudo se passa como se o sonho mostrasse pode ser polido até um grau elevado de translucidez.
como: “o meio ambiente tinha sido incapaz de lhe permitir, durante sua infância, Contra tal crença na especularidade da percepção poderíamos insistir
ser informe ‘recortando-lhe’ a partir de um padrão cujas formas tinham sido como o mundo humano estabelece uma relação profunda entre existência e algo
concebidas por outros”4. A partir de tal interpretação, a paciente sente um que devemos chamar aqui, algo que será o verdadeiro objeto de nosso curso e,
profundo sentimento de que, desde sua infância, ninguém havia reconhecido que por isto, exigirá um movimento lento e detalhado de definição, de
ela devia começar por ser informe. “reconhecimento”. Se a existência não é um fato, mas um valor é porque toda
O que estas situações tão distintas entre si tem em comum? Em que existência deve ser, necessariamente, existência reconhecida.
experiência sociais como: manifestações de massa contra o sentimento de Neste sentido, poderemos dizer que aquilo em comum nos casos que
desrespeito, vidas que não podem receber o luto público e uma mulher que se trouxe a vocês é: todos eles explicitam um sofrimento de inexistência devido à
sente jogando o jogo dos outros e que luta em seus sonhos contra um vestido impossibilidade de realização de exigências de reconhecimento. Ao sair às ruas
potencial por não saber o que fazer com sua informidade diriam respeito a um exigindo “respeito” é como se falássemos que até agora não existimos como
problema simétrico? Haveria algo a unificar esses campos dispersos da política, sujeitos políticos, não fomos reconhecidos no interior das dinâmicas sociais de
da moral e da clínica? poder. Ao não admitir que certas vidas não possam ser objetos de luto, estamos a
Creio que esta é talvez a melhor maneira de começarmos nosso curso dizer ser inaceitável que elas passem à invisibilidade, que lhes sejam negadas as
porque, de fato, ao menos para uma certa tradição filosófica, a resposta a darmos condições de reconhecimento. Ao dizer que para existir, ela precisava ser
a tais perguntas deveria ser necessariamente positiva. Nesses três casos, há um reconhecida como informe, ser reconhecida para além da figura de uma boa
nível fundamental da vida comum que foi bloqueado, produzindo com isto jogadora que joga o jogo dos outros, a paciente de Winnicott adoece por viver em
um mundo no qual as condições de reconhecimento de uma dimensão
2
WINNICOTT, Donald; Jeu et réalité: l’espace potential, Paris: Gallimard, 1987, p. 44 fundamental de seu desejo foi negada.
3
Idem
4
Idem, p. 50
Que este sentimento de reconhecimento negado perpasse a história de encontramos o sentido de uma identificação que assimila o não conhecido ao
nosso desejo, assim como nossa existência política e as possibilidades de conhecido, o não visto ao já visto. Vejo alguém ao longe e reconheço se tratar de
nomeação no interior da linguagem, isto apenas demonstra como não estamos um velho conhecido. Nada ocorreu, a não ser a adequação da representação ao
diante de dimensões de experiência completamente autônomas entre si e que objeto representado. Como nada afinal ocorre quando Sócrates mostra, em
cabe à filosofia reconstruir o sistema de implicação entre campos que nossa Menon, que o escravo sabe operar a duplicação da área do quadrado através da
época gostaria de nos fazer acreditar que são radicalmente distintos. O que já dedução da diagonal, mesmo que não se dê conta disto. Sócrates apenas
pode servir como uma primeira razão para analisarmos conceitos atualizou o que já estava lá como reminiscência, o escravo apenas, como dirá
aparentemente genéricos como “reconhecimento”. Pois talvez sua genericidade Platão, “recuperou a ciência”5. Por isto, não podemos dizer se tratar de
tenha de fato uma função. reconhecimento, o escravo não permite emergir algo que lhe modifica e que
modificaria também Sócrates. Sócrates continua mestre, o escravo continua
Existir é ser reconhecido escravo, mesmo que saiba agora duplicar quadrados. Ele apenas operou uma
recognição.
Mas voltemos por um instante a ideia de que reconhecimento seria, No entanto, é verdade que este parece o sentido mais imediato do termo
principalmente, um modo de determinação de existência. Ao invés de começar por “reconhecimento”, ou seja, confirmar o que já sei, assegurar-me da existência de
fornecer a vocês aquela que seria a definição atualmente hegemônica de algo que já espero. Mas gostaria de insistir que esta identificação de
reconhecimento, a saber, a relação mútua e simétrica entre indivíduos autônomos acontecimentos no interior de um sistema prévio de expectativas não saberia ter
em sua existência social, relação que exige uma mutualidade cooperativa entre força implicativa alguma. Pois implicar-me com algo é integrar ao meu horizonte
indivíduos, assim como a possibilidade de expressão e realização de seus de experiência aquilo que até então dele não fazia parte. Implicação é uma
interesses autônomos e da consciência de suas auto-limitações recíprocas, eu operação de assimilação do que não aparecia como meu, que pressupõe por isto
gostaria de construir com vocês uma outra compreensão do que está em jogo na formas de transformação. Por isto, reconhecer é indissociável da compreensão
maneira que certa tradição filosófica trouxe à reflexão o problema do da existência como processo.
reconhecimento. Eu gostaria de mostrar a vocês durante este curso que tal A importância histórica da noção de reconhecimento, fato que como
definição de reconhecimento, tão presente atualmente na filosofia social, na veremos ocorre a partir do início do século XIX no interior do idealismo alemão
reflexão moral, na teoria política, na clínica do sofrimento psíquico, definição através de Fichte e, principalmente, Hegel, só poderia ocorrer em uma era
para a qual convergem conceitos como intersubjetividade, ação comunicativa e histórica na qual a existência não será determinada como expressão de uma
cooperação é insuficiente e irredutivelmente normativa. substância, mas como desenvolvimento de um processo de alterações contínuas
Para tanto, seria o caso de começar com uma pergunta que se mostrará desdobrando-se em um tempo prenhe de contingências. Desenvolvimento
simples apenas em aparência, a saber, o que significa dizer que só o que é processual que aparece nesta forma de associar, na mesma época que o
reconhecido existe? Que tipo de existência é esta que emerge a partir da reconhecimento se consolidar como problema filosófico central, determinação
realização de dinâmicas de reconhecimento? Eu gostaria de insistir em três do ser e historicidade, desenvolvimento processual no interior do tempo. Pois se
consequências que definirão o horizonte a partir do qual o problema do reconhecer não é apenas produzir a recognição de algo é porque se trata de
reconhecimento se desenvolverá a partir do século XIX. permitir que algo implique minha própria existência, abrindo-lhe a um
A primeira consequência de uma afirmação que vincula reconhecimento e movimento que não lhe era imanente, ou que só lhe é imanente de forma
existência é insistir que a existência é indissociável de algo que poderíamos retroativa, após o reconhecimento de algo que me aparece como outro.
chamar de “estrutura implicativa”. Existir é produzir implicações, é estabelecer Neste sentido, a segunda consequência de vincular reconhecimento e
relações implicativas, pois relações que transformam ambos os termos em existência é assumir uma tese forte a respeito da relação entre ser e pensar. Pois
relação. Reconhecer seu desejo é, por exemplo, faze-lo, ao mesmo tempo, existir afirmar que só aquilo que é reconhecido existe é uma das formas possíveis de
e modificar meu próprio desejo. Esta implicação pode ser restrita, quando o dizer que ser e pensar são pois o mesmo. O que não significa dizer que só o que é
reconhecimento modificar apenas um conjunto de relações locais e atualmente pensado existe, tese que nos levaria a elevação da gramática atual do
contextualmente determinada, ou genérica, quando modificar estruturas gerais pensamento a condição intransponível de determinação de existência. Na
válidas em todo e qualquer contexto. verdade, temos a proposição de que o que é próprio ao que entendemos por
Neste sentido, devemos inicialmente distinguir “reconhecimento” e “ser” é indissociável de formas específicas de reflexividade. Há uma reflexividade
“recognição”. Várias são as línguas que operam tal distinção: Anerkennung e imanente ao ser. Ao pensar, não produzo necessariamente uma clivagem entre as
Rekognition, recognition e aknowledge, reconnaissance e recognition. Que nos coisas tal como elas aparecem para mim e as coisas tais como seriam por si
aproveitemos da força especulativa da linguagem ordinária. Pois esta distinção mesmas. Ao pensar, eu permito que as coisas emerjam em sua existência.
permite a operacionalização de uma diferença filosoficamente relevante. Isto, como vocês podem imaginar exige muito a se dizer a respeito do que
Reconhecer não deve ser entendido simplesmente como confirmar o que já pode significar “pensar” neste contexto. Afinal, poderíamos nos perguntar se
conheço, ver de novo, encontrar algo uma segunda vez, como se fosse questão de
re-conhecer, de re-apresentar, de re-presentar. Em todas essas situações, 5
PLATÃO; Menon, 85d
penso quando represento algo, quando disponho algo diante de mim [como exista uma gramática social de conflitos partilhada potencialmente por todos.
vemos no sentido da palavra vor-stellen] fazendo do sujeito um fundamento Assim, fica claro que posso ter um conflito sob regras e um conflito sobre regras e
normativo para toda e qualquer existência? Ou penso quando consigo me este segundo caso é certamente o mais complexo. Pois este conflito colocará uma
aproximar do que me despossui das minhas condições iniciais de representação questão fundamental a respeito dos modos de reconhecimento. Como
e de apreensão? reconhecer o que nega a própria existência de uma gramática atual de condições
A este respeito, lembremos como todo reconhecimento é uma operação de reconhecimento? O que gostaria de mostrar é que, longe de uma simples
reflexiva. Retomemos o sentido originário da noção de reflexão, este que aparece aporia, temos aqui uma dinâmica estruturante de algumas de nossas
pela primeira vez com John Locke e que se define como: “a observação que a experiências fundamentais.
mente tem de suas próprias operações”6. Há uma experiência de auto-apreensão
do pensamento em toda reflexão, uma capacidade do pensamento inspecionar Um retorno a Hegel
seu próprio modo de apreensão. Neste sentido, a reflexividade imanente ao
reconhecimento tenta descrever estruturas de correlação fundamental entre Recapitulando. Temos então na temática do reconhecimento um modo de
auto-referecialidade e referência a outro, entre relação a si e relação a outro. Esta determinação de existência que é, ao mesmo tempo, implicativo, reflexivo e
é uma das tensões fundamentais a sustentar os processos de reconhecimento e conflitual, com níveis diversos de conflitualidade. O que gostaria de fazer neste
ela nos leva a uma questão maior: em que condições a auto-referencia é, ao curso é não apenas descrever a emergência histórica deste conceito de
mesmo tempo, uma referência a outro? Que tipo de autonomia podemos derivar reconhecimento implicativo, reflexivo e conflitual, mas também expor sua
de uma operação na qual, de forma inesperada, a referência a si e a referência a presença no pensamento contemporâneo, sua capacidade de tensionamento das
outro se confundem? Seria ainda possível falar em identidade no interior das reflexões políticas, morais e clínica da vida contemporânea. Neste sentido, o
operações de reconhecimento? Reconhecer algo que é, ao mesmo tempo, curso tem uma função dupla.
referência a si e referência a outro é ainda reconhecer uma identidade ou Em um primeiro momento, será questão de descrever como o problema
precisaremos de um conceito mais preciso? do reconhecimento aparece no interior do idealismo alemão. Veremos como é
Como derivação direita deste ponto, teríamos a última consequência da através do problema do reconhecimento que se inicia o que poderíamos chamar
afirmação do vínculo entre reconhecimento e existência. Pois a noção de de “guinada materialista do idealismo”. Pois o reconhecimento nos abre para a
reconhecimento, e ninguém melhor do que Hegel compreendeu isto, é tematização da gênese das estruturas da consciência através das relações
indissociável de uma compreensão da natureza conflitual da existência. Existir é concretas de trabalho, desejo e linguagem. Se a consciência só é enquanto
estar sob conflito. Proposição necessária se assumirmos que reconhecer é fazer reconhecida, então serão os campos concretos de reconhecimento que
existir o que até agora não foi contado como existente, é reconfigurar os modos determinarão sua estrutura, seus modos de apreensão e pensamento. A filosofia
atuais de existência. Pois esta exclusão não foi fruto de um acaso. Toda existência deverá assim se direcionar à compreensão das modalidades concretas de
está submetida a um jogo de forças, à perpetuação de uma configuração trabalho, de desejo e de linguagem enquanto expressões de uma gênese social da
específica de forças. Por outro lado, todo reconhecimento efetivo implica consciência. Gênese esta que demonstra como toda proposição de validade
modificações no jogo atual de forças, o que não pode ocorrer sem que emerja a deverá ser historicamente situada.
ordem do conflito. O que não produz conflitos não existe, existir é produzir Mesmo que a emergência do conceito, em sua forma explícita, deva ser
conflitos e este talvez seja um dos fundamentos de toda teoria do remetida a Fichte e seus Fundamentos do direito natural, é com Hegel que
reconhecimento digna deste nome. encontramos o pleno desenvolvimento do problema do reconhecimento, isto em
No entanto, há de se lembrar que conflitos podem assumir, grosso modo, um movimento que perpassa seus textos de juventude (em especial o
duas formas fundamentais. Posso entrar em conflito por exigir um lugar no manuscrito intitulado Sistema da eticidade) até alcançar a Fenomenologia do
interior do campo atual de visibilidade. Exijo a partilha de certos atributos, o Espírito, para ser retomado na Enciclopédia e nos Princípios da Filosofia do
exercício de certos direitos que não me foram até agora conferidos. Neste caso, Direito. Nós faremos este trajeto procurando mostrar como ele explicita as fontes
notem como aceito a existência de algo como uma “gramática social de conflitos”. de uma dialética materialista. Ou seja, a tese a ser defendida aqui é: o problema
Há uma gramática pressuposta que traduz os conflitos às determinações do reconhecimento é a maneira hegeliana de retirar a filosofia de uma orientação
possíveis e internas a um campo comum de regulação atualmente em operação. transcendental, integrando uma perspectiva genética das estruturas da
Eu não coloco em questão o exercício de direitos e a determinação de atributos, consciência que nos permite a tematização do caráter formador da história e dos
eu apenas exijo que eles também sejam aplicados a mim. Como se diz, eu peço o processos materiais de organização do trabalho, de determinação do desejo e
que é meu. realização social da linguagem.
Mas há situações nas quais posso entrar em conflito a respeito da Em Hegel, a temática do reconhecimento será ainda uma maneira
existência ou não de uma gramática comum de regulação. Posso dizer que o inovadora de compreender a natureza dos conflitos sociais. No entanto, aqui
conflito é a respeito da existência da própria gramática. Posso questionar que veremos uma segunda hipótese. Pois há de se perguntar o que teria de realmente
inovador na maneira compreender conflitos sociais não apenas como conflitos
6
de redistribuição de riquezas, de revolta contra a espoliação e contra a ausência
LOCKE, John; Essay concerning the human understanding, Livro II, Capítulo I, parágrafo 4
de diretos dados a certas classes privilegiadas, mas como lutas por um fundamento normativo pré-político para as dinâmicas sociais de
reconhecimento. Pois a questão fundamental só pode aparecer com a pergunta: reconhecimento, ou seja, como horizonte valorativo de função transcendental
mas, afinal, o que Hegel tem em vista quando insiste em uma dimensão que funciona como um princípio formal de regulação das expectativas sociais de
estruturante da luta por reconhecimento na determinação de todo e qualquer emancipação. Algo que deve ser politicamente confirmado, e não politicamente
sujeito? desconstruído.
Como veremos, esta pergunta é mais complicada do que poderia Neste ponto faz sentido retornar a Hegel. De fato, é isto que gostaria de
inicialmente parecer. No entanto, ela é decisiva se não quisermos entrar na propor a vocês na primeira parte de nosso curso, a saber, um retorno a Hegel.
ilusão retroativa que consiste a encontrar em toda filosofia sensível à Gostaria de mostrar como toda sua teoria do reconhecimento é construída como
importância das relações intersubjetivas (como Rousseau, Hobbes, Locke ou até uma crítica exatamente ao caráter regulador da individualidade moderna e seus
mesmo Pascal e os moralistas franceses com sua consciência do caráter conceitos de pessoa, identidade e personalidade. Talvez vocês já devam ter
constitutivo do amor-próprio e da estima na determinação social dos sujeitos) a tomado conhecimento da tese de que a filosofia hegeliana seria a elaboração
presença implícita do problema do reconhecimento. Hegel está a pensar em uma filosófica de três acontecimentos maiores para a formação da individualidade
dificuldade bastante específica vinculada a emergência de um conceito de sujeito moderna e seu princípio de subjetividade, a saber, a reforma protestante e sua
cujas determinações ontológicas será necessário precisar. Pois veremos como noção de interioridade, a revolução francesa e seu sujeito universal de direitos, a
Hegel lembra que há vários níveis de reconhecimento, mas há um nível ascensão do livre-mercado e seus indivíduos que são proprietários de si, que
fundamental cuja falta implicará necessariamente uma alienação social definem sua liberdade sobretudo como auto-pertencimento (self-ownership).
determinante. Sem desconsiderar a relação da filosofia hegeliana à elaboração
Neste sentido, lembremos como, por exemplo, a propriedade é uma forma especulativa de tais acontecimentos históricos, gostaria de mostrar como há
de reconhecimento. Ter uma propriedade é exigir que outros reconheçam minha outra leitura possível. Digamos que Hegel elabora filosoficamente a reforma
posse, é levar outros a verem, em minhas propriedades, uma determinação protestante, mas a partir de sua noção de conflito e resistência. Da mesma forma,
fundamental de minha pessoa. Da mesma forma, o contrato é um regime de a revolução francesa, mas sua noção de “revolução” que abala o enraizamento
reconhecimento, pois ele implica meu reconhecimento como sujeito provido de das práticas e modos de julgamentos em costumes, tradições e transmissões. Por
certos direitos de gozo de bens, de usufruto. A pessoa é, por sua vez, outro fim, Hegel leva em conta a ascensão do livre-mercado, mas a partir de sua
regime de reconhecimento que me define como objeto de normatividades dinâmica paradoxal de produção de riqueza e aumento da espoliação, ou seja, de
jurídicas específicas. A identidade social é, por fim, também uma forma de sua regulação social imperfeita. Isto cria uma dupla tarefa de, ao mesmo tempo,
reconhecimento. Mas será algo parecido a tais determinações que Hegel tem em saber dar visibilidade a uma subjetividade capaz de colocar em questão tudo o
vista? As lutas por reconhecimento das quais fala Hegel seriam lutas sociais que aparecia arraigado em hábitos e tradições, abrindo espaço a uma potência de
levadas a cabo por sujeitos que querem ser reconhecidos como pessoas, como negação até então nunca vista, e produzir institucionalidades que não repitam a
proprietários, como portadores de direitos assegurados por relações contratuais, estrutura paradoxal do livre-mercado.
como identidade sociais? Ou Hegel está a dizer que há uma dimensão de Tal situação produzirá a emergência de um conceito de sujeito
reconhecimento para além de tais determinações e é ela que nos coloca absolutamente singular que será recuperado em momentos maiores do
problemas reais, é ela que, para nós, é difícil a pensar. pensamento dos séculos XIX e XX. Neste sentido, gostaria de aproximar tais
Notem como esta questão nos é contemporânea. Pois uma corrente questões que veremos em Hegel do horizonte de constituição da crítica de Marx
fundamental das discussões contemporâneas de reconhecimento, esta que à alienação. Ou seja, trata-se de afirmar que há uma teoria do reconhecimento na
apareceu no interior da Terceira geração da Escola de Frankfurt (em especial base da crítica marxista das sociedades capitalistas e de seus mecanismos de
Axel Honneth) dirá ainda hoje, entre outras coisas, que: “sujeitos esperam da alienação no trabalho. Teoria que só pode ser legível na linha direta das relações
sociedade, acima de tudo, reconhecimento de suas demandas de identidade”7. O entre Hegel e Marx. A crítica social de Marx não é apenas uma crítica da
que não poderia ser diferente para alguém que afirmará: “sujeitos percebem espoliação econômica, sua critica da propriedade não é apenas uma crítica
procedimentos institucionais como injustiça social quando veem aspectos de sua econômica. Ela é a reflexão sobre um regime de sofrimento social, a saber, a
personalidade, que acreditam ter direito ao reconhecimento, serem alienação, resultante de bloqueios em processos de reconhecimento. Por isto, ela
desrespeitados”8. não é apenas uma crítica econômica, mas também uma crítica política e mesmo
Afirmações como estas colocam no horizonte regulador dos processos de moral.
reconhecimento um conceito de “integridade pessoal” cujo pressuposto
fundamental é a naturalização de facto das estruturas das noções psicológicas de Dois modos de reconhecimento
“indivíduo”, “identidade” e “personalidade”. A consequência maior desta
pressuposição será definir a própria gênese da individualidade moderna como Feito isto, eu gostaria de apresentar a vocês dois modelos de recuperação
da temática do reconhecimento no século XX. Um estará ligado à filosofia
7
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition: a response to Nancy Fraser” in: HONNETH, Axel francesa contemporânea e seus desdobramentos. Ele se inicia com um
and FRASER, Nancy; Redistribution or recognition, Nova York: Verso, 2003, p. 131 comentário da Fenomenologia do Espírito, feito por Alexandre Kojève e se
8
Idem, p. 132
desdobrará de forma hegemônica até os anos cinquenta. O outro estará ligado a emergência de novos campos de conflitos sociais ligados ao sentimento de
segunda e terceira geração da Escola de Frankfurt, assim como a certos setores desprezo social por grupos mais vulneráveis. Neste contexto, a noção de políticas
da filosofia anglo-saxã sensíveis ao pensamento hegeliano, e se desdobrará, de reconhecimento retorna inicialmente sob a forma de reflexões sobre as
principalmente, do início dos anos noventa até hoje. potencialidades imanentes a sociedades multiculturais (Charles Taylor) para se
O primeiro modelo aparece nos anos trinta através da elevação da luta transformar, ao final, no eixo de uma reconstrução sistêmica dos potenciais
por reconhecimento a eixo central de uma interpretação de Hegel produzida na normativos de uma sociedade capaz de preencher exigências de estima recíproca
França. Tal interpretação articulava temáticas de Heidegger a Hegel e Marx, e respeito mútuo de indivíduos (Axel Honneth).
estava fundada na elevação do desejo a eixo fundamental de análise dos Eu gostaria de mostrar como esses dois modelos representam uma
processos sociais de reconhecimento. Sartre, Merleau-Ponty, Lacan, Bataille, espécie de embate a respeito das potencialidades imanentes a uma teoria do
Blanchot, Eric Wail, Raymond Aron. Todos eles foram, de uma forma ou outra, reconhecimento, como eles exploram tendências diversas internas às estratégias
influenciados pela construção do campo de problemas propostos por Kojève. hegelianas. Ao final, eu gostaria de propor a vocês um eixo de desdobramento
Poderíamos começar por nos perguntar por que foi apenas nos anos contemporâneo da temática do reconhecimento que dê conta de uma teoria da
trinta que a tematização específica do problema do reconhecimento emergiu emancipação adaptada à nossa era histórica. Tal teoria procurará deslocar a
novamente. Qual é a configuração histórica que produz esta emergência discussões sobre liberdade para fora das estratégias próprias à afirmação da
conceitual filosófica? A hipótese que gostaria de trabalhar com vocês é: foi a autonomia, isto em uma tentativa de recuperar potencialidades próprias ao
constituição de um horizonte revolucionário nos anos vinte (Revolução Russa, primeiro modelo de reconhecimento proposto no interior da filosofia
Revolução alemã abortada etc.) que fará a problemática do reconhecimento contemporânea francesa. Ela procurará pensar determinações sociais para além
emergir outra vez, da mesma forma como foi o horizonte de Revolução Francesa da estruturação social da identidade, recuperando com isto um elemento a meu
que levou Hegel a tematizar as dinâmicas de reconhecimento a partir da ver fundamental para a formação de sujeitos em Hegel e Marx.
desestabilização das relações de dominação e servidão, da emancipação em
relação à servidão (lembraria aqui de intepretações, como a de Susan Buck-
Morss, que verão na revolução dos escravos no Haiti uma das referências
importantes da dialética hegeliana do senhor e do escravo9). A presença de um
horizonte revolucionário efetivo leva a filosofia a tematizar reversões de poder
em relações de dominação e servidão que abrem a possibilidade de uma
existência emancipada a partir do reconhecimento do desejo. Ou seja, é neste
momento que o desejo aparecerá como categoria política pela primeira vez de
forma clara no século XX. Como se as possibilidades abertas pelas reversões das
relações de poder nos levassem necessariamente à tematização da natureza
política do desejo, à tematização dos regimes de sua alienação como condição
fundamental de emancipação social.
Esta perspectiva será desdobrada e ganhará novas inflexões nos trabalhos
de dois dos mais atentos alunos de Kojève, a saber, Jacques Lacan e Georges
Bataille. Por isto, gostaria de mostrar a vocês como a temática do
reconhecimento do desejo se desdobrará nos dois casos, seja através de uma
teoria do desejo que visa abrir a uma existência capaz de se afirmar contra os
mecanismos de alienação e suas formas de sofrimento psíquico (Lacan), seja
através de uma teoria da soberania que se colocará como contraposição à
reprodução material da sociedade do trabalho (Bataille). Lacan será responsável
por compreender sintomas, inibições e angústias que produzem o sofrimento
psíquico como déficits de reconhecimento a serem tratados por uma clínica
desmedicalizada, baseada na reorientação da palavra do analisando. Veremos os
detalhes deste modelos, assim como sua vinculação a um horizonte mais amplo
de recuperação da temática do reconhecimento.
No entanto, haverá um segundo modelo de recuperação da temática do
reconhecimento. Este não será solidário de um horizonte revolucionário, mas de
uma certa retração das potencialidades de transformação social global, com a

9
Ver BUCK-MORSS, Susan; Hegel, Haiti and universal history, University of Pittsburgh Press, 2009
Lógicas do reconhecimento mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”11. Esta definição determina
Aula 2 uma das condições centrais do estado de natureza, a saber, a insegurança e a
guerra iminente. Uma guerra que não é apenas o tempo da batalha, mas a
disposição contínua à violência contra o outro. É uma reflexão sobre a guerra que
funda a reflexão política moderna. Ou seja, o problema político fundamental em
Eu gostaria de começar nosso curso a partir de uma reflexão sobre a emergência Hobbes estará ligado ao destino da destrutividade. A saída do estado de natureza
do pensamento do conflito social no interior da filosofia moderna. Ou seja, para e de sua guerra de todos contra todos, estado este resultante de uma igualdade
entender o que estava em jogo na constituição do problema do reconhecimento natural que não implica consolidação da experiência do bem comum mas conflito
no início do século XIX, precisamos começar por nos perguntar em que condições perpétuo entre interesses concorrenciais, se faria pelas vias da internalização de
a ideia de conflito aparece como o fundamento para a caracterização da natureza um “temor respeitoso” constantemente reiterado e produzido pela força de lei de
dos laços sociais no século XVII, como ela aparece e que tipo de questões tal um poder soberano. Pois:
emergência produz. Neste sentido, é inegável que a referência central é a teoria
social de Thomas Hobbes. Não que Hobbes tenha uma teoria do reconhecimento. se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverá de brotar
Na verdade, com Hobbes a filosofia moderna apresenta a matriz de uma teoria controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais
do conflito social claramente fundada em uma antropologia e capaz de produzir controvérsias inevitavelmente se seguirá o tipo de calamidades, as quais,
uma reflexão sobre a constituição das instituições e do Estado. No entanto, a pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar12.
dimensão do conflito social não será inscrita no interior de dinâmicas de
reconhecimento. Ela não poderá ser inscrita, já que o conflito será expressão, na Proposição que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
verdade, de uma antropologia da dominação, de uma antropologia que visa uma força de impulso dirigido ao excesso. Não pode haver bens comuns porque
mostrar como laços sociais só podem ser, inicialmente, relações de dominação e há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
servidão. Ou seja, a sociedade instaura-se a partir de relações tendencialmente ter dado a cada um direito a tudo”13 sem que ninguém esteja assentado em
assimétricas. alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
Como estas relações assimétricas não podem, para Hobbes, desembocar Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 14 . Tal excesso
em dinâmicas de reconhecimento, elas servirão para a constituição daquilo que aparece, necessariamente para Hobbes, não apenas através do egoísmo
poderíamos chamar de fundamento fantasmático para a legitimação do poder ilimitado, mas também através da cobiça em relação ao que faz o outro gozar, da
soberano. Pois como não é possível passar do conflito ao reconhecimento, o ambição por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente
conflito fica reduzido à condição de horizonte latente de destruição potencial do como concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só
laço social. Um horizonte que será continuamente mobilizado pelo poder pode acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite
soberano como sua estratégia de legitimação e de paralisia das transformações pelas mesmas coisas”15. A guerra será inevitável se lembrarmos que o direito
na estrutura de poder da vida social. Neste sentido, podemos dizer que a reflexão natural (jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha própria
de Thomas Hobbes tem o interesse de mostrar o tipo de relação de poder que natureza, ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis)
emerge quando a vida social é incapaz de abrir espaço a dinâmicas de prescreve a proibição de fazer e aceitar aquilo que è destrutivo à minha vida.
reconhecimento. Hobbes coloca, a sua maneira, o problema que as teorias do Assim, Hobbes descreve como o aparecimento histórico de uma sociedade de
reconhecimento de Hegel e teóricos posteriores tentarão resolver. indivíduos liberados de toda forma de lugar natural ou de regulação coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
O fantasma da guerra total da insegurança total”16.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
Partamos da definição célebre de Hobbes: necessária da expressão da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexão
sobre o desejo como disposição humana fundamental que inaugura uma das
Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
de mantê-los todos em temor respeitoso eles se encontram naquela modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos
condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens são miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para
contra todos os homens10.
11
Daí porque: “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28
12
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
provém da boa vontade recíproca que os homens teriam uns para com os outros, 13
Idem, p. 30
14
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
15
HOBBES, Do cidadão, p. 30
10 16
HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109. CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
saber como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência Ninguém melhor que Carl Schmitt descreve os pressupostos desta passagem
entre os seres humanos, mas esta racionalidade mimética não se traduz em hobbesiana do estado de natureza ao contrato fundador da vida em sociedade:
empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em rivalidade e violência
direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de Este contrato é concebido de maneira perfeitamente individualista. Todos
vida ou morte. No entanto, esta luta não pode ser regulada pelos próprios os vínculos e todas as comunidades são dissolvidos. Indivíduos
contendores. Dela, não emerge nada a não ser um impasse, já que todos os atomizados se encontram no medo, até que brilhe a luz do entendimento
indivíduos são portadores de força relativamente igual. A força maior de um não criando um consenso dirigido à submissão geral e incondicional à
irá muito mais além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser potência suprema17.
superada então através da introdução de um terceiro elemento, que neutraliza a
rivalidade da relação dual, a saber, através da instauração do direito e do Estado. Notemos o sentido da elevação do medo como afeto político instaurador
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele de laços sociais. Esse medo teria a força de estabilizar a sociedade, paralisar o
expressão da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituições? Ou movimento e bloquear o excesso das paixões, viabilizando assim a perpetuação
é o Estado a expressão de uma coerção consentida, de uma restrição legítima de nossas formas sociais. Isto leva comentadores, como Remo Bodei, a insistir
como condição para a não desagregação do laço social? Qual a natureza do pacto em uma “cumplicidade entre razão e medo”, não apenas porque a razão seria
que produz o advento do Estado? impotente sem o medo, mas principalmente porque o medo seria, em Hobbes,
A fim de responder tal questão percebamos que é contra a destrutividade uma espécie de “paixão universal calculadora” por permitir o cálculo das
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento, consequências possíveis a partir da memória dos danos, fundamento para a
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte deliberação racional e a previsibilidade da ação18. Ou ainda, como dirá Esposito,
violenta, que se faz necessário o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto em Hobbes, o medo “não determina apenas fuga e isolamento, mas também
imanente entre indivíduos é possível, como a própria figura do indivíduo relação e união. Não se limita a bloquear e imobilizar, mas ao contrário, leva a
portador de interesses já é a consolidação da inevitabilidade do conflito, já que refletir e neutralizar o perigo: não tem parte com o irracional, mas com a razão. É
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, não haverá outra uma potência produtiva. Politicamente produtiva: produtiva de política”19. Por
saída para a regulação social que o aparecimento de uma força externa chamada isto, o medo ligado à força coercitiva da soberania, ou seja, o medo que tenho do
de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restrição mútua e da soberano, deve ser visto apenas como certa astúcia para defender a vida social
limitação de si. de medo maior:
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes ambição, a natureza, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se
dirá que os três principais motivos de conflito são: a concorrência, a não houver o medo de algum poder coercitivo – coisa impossível de supor
desconfiança e a glória. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por na condição de simples natureza, em que os homens são todos iguais, e
Macpherson no clássico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como juízes do acerto dos seus próprios temores (2003, p. 119).
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situação de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses, É verdade que Hobbes também afirma: “As paixões que fazem os homens
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são
sem ser exatamente um teórico liberal, já que Hobbes submete o direito da necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do
propriedade individual às condições de sobrevivência do Estado, vemos trabalho”20. Ou seja, parece não haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalização esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
antropológica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal. fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá-la: o medo ou ainda o orgulho e a glória por não precisar faltar com a
O medo como afeto que funda o laço social palavra. Tais considerações parecem abrir espaço à circulação de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-próprio ligado ao
Neste sentido, há de se estar atento para o circuito de afetos que reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
constituirá o fundamento possível desta forma de vida social. Pois a insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixões: medo e
possibilidade mesma da existência do governo e, por consequência, ao menos
neste contexto, a possibilidade de estabelecer relações através de contratos que 17
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
determinem lugares, obrigações, previsões de comportamento, fornecendo à symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
sociedade sua racionalidade, estaria vinculada à circulação do medo como afeto 18
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
instaurador e conservador de relações de autoridade. A emergência do indivíduo Feltrinelli, 2003, p. 86.
19
moderno é indissociável da elevação do medo à condição de afeto social central. ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
20
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsão e atração. Mas não é Estado construído a partir da dessocialização de todo vínculo comunitário,
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem constituindo-se como o espaço de uma “relação de não-relações”27.
o contraponto da esperança”21. Não é por acaso que este Estado será comparado a um Leviatã. A metáfora
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem não poderia ser mais adequada. O Leviatã é um monstro aquático dotado de
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmações como: “de força descomunal que aparece no Livro de Jó. O contexto de sua aparição é
todas as paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo. sintomático. Sem entender os desígnios divinos, enfermo e despossuido de tudo
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a única coisa que leva os o que tinha, Jó expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que
homens a respeitá-las”22. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se sofre tanto? Jeová então lhe aparece não para lhe responder a apazigua-lo, mas
afastar da força incendiária das paixões e atingir esta situação de esfriamento na para mostrar a desmedida entre a ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele
qual o vínculo político não precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao está diante de Jó para dizer : quem es tu que questiona meus desígnios? Neste
amor (que, enquanto modelo para a relação com o Estado, acaba por construir a contexto, Jeová apresenta a figura de duas forças descomunais: uma aquática (o
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família23). Ou Leviatã) e outra terrestre (Behemooth). “Não há nada mais tremendo sobre a
seja, o esfriamento das paixões aparece como função da autoridade soberana e terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Ou seja, fazer do Estado um
condição para a perpetuação do campo político, mesmo que tal esfriamento se Leviatã é inscrever-lhe a força de uma imagem teológica que visa anular o
pague com a moeda da circulação perpétua de outras paixões que parecem nos sofrimento e a restrição como disposição de revolta.
sujeitar à contínua dependência. A única limitação que Hobbes reconhece ao poder do Estado é o direito
Por isto, mais do que expressão de uma compreensão antropológica dos indivíduos à auto-defesa quando a vida está ameaçada pelo poder soberano,
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da o que decorre do respeito ao primeiro direito natural. Se o soberano atenta
observação desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como contra minha vida, tenho o direito de a ele me contrapor, pois o que me liga a ele
horizonte uma lógica do poder pensada a partir de uma limitação política, no é um pacto de proteção que não existe mais. No entanto, o soberano guarda o
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que direito de continuar sua ação contra mim já que pode tudo fazer para garantir a
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto proteção social e a permanência do Estado.
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito Por isto, não é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma
ergo sum do Estado”24. Difícil não chegar em uma situação na qual esperamos lógica do reconhecimento. Ele opera, ao contrário, através da impossibilidade de
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual não exista realmente reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor”25. O que fica claro em violência elevada à condição de determinação metafísica do humano. Violência
afirmações como: que só pode aparecer como desagregação de todo e qualquer laço social. Notem
que há uma decisão, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do
entre os homens são muitos os que se julgam mais sábios e mais caráter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessão
capacitados do que os outros para o exercício do poder público. E esses do outro, de sua vida e de seus bens.
esforçam-se por empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitação de seus
outros doutra, acabando assim por levar o país à perturbação e à guerra desejos e a restrição de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim
civil26. uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que são cidadãos e
cidadãs de tal Estado. Como cidadão e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz
As reformas e inovações são um convite à perturbação e à guerra civil. de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal
Pois o estado hobbesiano é, acima de tudo, um Estado de proteção social, ou seja, personalidade é um afeto responsável pela restrição e repressão de meus reais
Estado baseado na promessa de amparo, que se serve de todo poder possível, impulsos. Por isto, a própria noção de personalidade será comparada por Hobbes
instaurando um domínio de legalidade própria neutro em relação a valores e a uma máscara, recobrando o sentido originário do termo persona entre os
verdade. Estado que precisa realizar sua tarefa sem constrangimento externo gregos. Máscara que não reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para
algum, ou seja, como uma máquina administrativa que desconhece coerções em que o laço social possa existir. Como se vê, não é possível dizer que lá onde o
sua função de assegurar a existência física daqueles que domina e protege. Um medo aparece como afeto político central o reconhecimento pode se realizar.
Medo social e reconhecimento são processos contrários, como vemos facilmente
em situações atuais concretas.
21
RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora A função do amparo
UFMG, 2004, p. 23
22
HOBBES, Leviatã, p. 253
23
Ver, por exemplo, RIBEIRO, op. cit., p. 53
24
SCHMITT, Carl; O conceito do político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56
25
BALIBAR, Etienne; Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p. 56
26 27
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 146 ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. 12
Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz seria: “a abstração lógica esboçada do comportamento dos homens na sociedade
respeito ao modelo geral de gestão social quando as exigências de civilizada” 31.
reconhecimento são bloqueadas. Pois o Estado não será apenas a instância que Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em
opera a repressão. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens
reprimir. Ele não será apenas o bombeiro da vida social, mas também o próprio armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilância”.
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relação de não-relações é Lembra ainda como os “particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado,
a necessidade que a legitimação da soberania pela capacidade de amparo e para se defenderem, nem dormem sem fecharem – não só as portas, para
segurança tem da perpetuação contínua da imagem da violência desagregadora à proteção de seus concidadãos – mas até seus cofres e baús, por temor aos
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado domésticos”32. Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do na minha porta e em meus baús, os muros da cidade na qual habito são índices
Estado é a perpetuação da iminência da guerra de todos contra todos. O não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são índices indiretos do
fundamento fantasmático deste Estado será a figura do conflito social reduzida à excesso do meu próprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas
condição de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusão importante de trancas e você verá não apenas seu medo em relação ao outro, mas o excesso de
Agamben: “A fundação não é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo seu próprio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situações nas quais
tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão imperam a violência e o descontrole da força”. A retórica apela aqui a uma
soberana”28. Este mecanismo de fundação que necessita ser continuamente universalidade implicativa.
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteração De toda forma, como não se trata de permitir que configurações atuais
da relação do Estado ao seu fundamento. sejam, de maneira indevida, elevadas à condição de invariante ontológica, faz-se
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida absolutamente necessário também a produção contínua dessas construções
através de uma força insuperável”29, ele precisa provocar continuamente o antropológicas do exterior caótico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo não
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o sendo uma hipótese histórica, não há como deixar de recorrer à antropologia
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construções como esta que
como força de amparo fundada na perpetuação de nossa dependência. Na leva Hobbes a acreditar que:
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada não apenas por instaurar uma relação baseada no os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do
medo para com o próprio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência
do distanciamento possível em relação a uma fantasia social de desagregação natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia dias daquela maneira brutal que antes referi33.
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da
perpetuação da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra Ou seja, sociedades sem Estado como nós, os povos de muitos lugares da
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade América, são mobilizadas continuamente para lembrar à sociedade europeia
do “poder pacificador” da representação política, ou seja, do abrir mão de meu porque a soberania é legítima. No interior desta lógica de legitimação, esta é
direito natural em prol da constituição de um representante cujas ações nossa função. Ou ainda:
soberanas serão a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá
“conformar as vontades de todos”30 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que
escultor da vida social. existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
fundamentação. Por um lado, ela apela à condição presente dos homens. Não encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
sendo uma hipótese histórica, o estado de natureza é uma inferência feita a comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
partir da análise das paixões atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a paz e pela sociedade34.
afirmar que, longe de ser uma descrição do ser humano primitivo, ou do ser
humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza Sociedades da violência e sociedades da penúria estão à nossa espreita seja em
uma diferença geográfica, seja em uma diferença histórica. Na verdade, sempre
deverá haver um “povo selvagem da América” à mão, o Estado sempre deverá

31
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
28
AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115. University Press, 1962, p. 26.
29 32
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
33
symbole politique, op. cit., p. 86 Idem, p. 110.
30 34
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147 HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
criar um risco de contaminação da vida social pela violência exterior, Lógicas do reconhecimento
independente de onde esse exterior esteja, seja geograficamente no Novo Mundo Aula 3
ou no Oriente Médio, seja historicamente em uma cena originária da violência.
Ao menos neste ponto, Carl Schmitt é o mais consequente dos hobbesianos
quando afirma que: Na aula passada, vimos a emergência de uma teoria dos laços sociais fundada na
irredutibilidade da noção de conflito, mas que não dava espaço ao aparecimento
Palavras como Estado, república, sociedade, classe e ademais soberania, de uma dinâmica de desdobramentos de tais conflitos no interior de processos
Estado de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc. de reconhecimento. Tratava-se da teoria política de Thomas Hobbes. Insisti com
são incompreensíveis quando não se sabe quem deve ser, in concreto, vocês que Hobbes partia da defesa de uma violência imanente à relação entre
atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra35. indivíduos no estado de natureza. Violência esta responsável pelo horizonte de
uma guerra de todos contra todos que nos levaria tendencialmente à
despossessão generalizada, à morte violenta e a relações sempre concorrenciais.
Já temos aqui os problemas que uma teoria do reconhecimento deverá
Vimos como Hobbes mobilizava uma verdadeira psicologia do desejo e dos
lidar. Ela deve, inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e
afetos como fundamento de suas reflexões políticas. Diante desta violência
legitimação do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria
imanente, o estado e o poder soberano apareciam como garantes de uma relação
fornecer uma outra imagem antropológica, insistindo, por exemplo, na
de termos (os indivíduos) sem-relação entre si. Sua legitimidade estaria fundada
imanência de relações de empatia a fundar campos intersubjetivos cuja primeira
em um pacto social de proteção e de amparo que, ao mesmo tempo, era uma
expressão é não-conflitual. Retira-se assim o conflito da posição de fundamento
forma de gestão e incitação do medo como afeto político central. No interior
da existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado devido à
deste pacto, a natureza humana deveria ser reprimida, sua agressividade e
presença de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta empatia
violência ontológicas deveriam ser excluída do horizonte de reconhecimento
pode estar presente na vida social, sendo necessária apenas reconstruir as bases
social. Assim, consolidava-se uma clivagem entre minha persona como cidadã e
normativas de nossa sociedade a partir do que está presente em vários campos
cidadão do estado e minha psicologia, sempre prestes a fazer reemergir as
da vida social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada pelos
condições próprias ao estado de natureza.
processos de modernização social, sendo necessário recuperar a força de coesão
Como havia dito na aula passada, Hobbes nos era importante por fornecer
do que foi reprimido em sua origem. Esta é, por exemplo, a estratégia de
o quadro de problemas que uma teoria do reconhecimento deverá lidar. Pois ela
Rousseau e de sua outra imagem do estado de natureza baseado na compaixão,
deverá, inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e
na expressão e na cooperação.
legitimação do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria
Haverá, no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a
fornecer uma outra imagem antropológica, uma outra psicologia, insistindo, por
compreensão da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços
exemplo, na imanência de relações de empatia a fundar campos intersubjetivos
sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja
cuja primeira expressão é não-conflitual. Retira-se assim o conflito da posição de
expressão não se reduza à despossessão dos bens e à morte violenta. Para tanto
fundamento da existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado
será necessário, por exemplo, retomar a teoria do desejo que serve de base a
devido à presença de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta
Hobbes e inseri-la no interior de uma noção mais ampla de “negatividade” cuja
empatia pode estar presente na vida social, sendo necessária apenas reconstruir
satisfação e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará
as bases normativas de nossa sociedade a partir do que está presente em vários
fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base
campos da vida social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada
antropológica da política, mas sem recusar a centralidade ontológica da noção de
pelos processos de modernização social, sendo necessário, de alguma forma,
conflito. Dentro desta dinâmica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior
recuperar a força de coesão do que foi reprimido em sua origem. Esta é, por
de uma lógica na qual a célula elementar não são as auto-afirmações individuais,
exemplo, a estratégia de Rousseau e de sua outra imagem do estado de natureza
mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever
baseado na compaixão e na expressão.
a noção da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepção reguladora
Haverá, no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a
de luta de classes, e não mais a partir da noção de guerra de todos contra todos.
compreensão da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços
Veremos cada um destes casos no decorrer de nosso curso.
sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja
expressão não se reduza à despossessão dos bens e à morte violenta. Para tanto
será necessário, por exemplo, recusar o ponto de partida individualista que
vemos em Hobbes, insistindo na anterioridade das relações a desapeito de seus
termos e, ao mesmo tempo, retomando a teoria do desejo que serve de base a
Hobbes a fim de inseri-la no interior de uma noção mais ampla de “negatividade”
cuja satisfação e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará
35
fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
antropológica da política, mas sem recusar a centralidade ontológica da noção de Não é uma grande infelicidade a estes primeiros homens, nem mesmo um
conflito. Dentro desta dinâmica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior grande obstáculo à conservação, a nudez, a falta de habitação e a privação
de uma lógica na qual a célula elementar não são as auto-afirmações individuais, de todas essas inutilidades que cremos necessárias. Se eles não tem a pele
mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever aveludada, não tem por outro lado nenhuma necessidade disto em países
a noção da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepção reguladora quentes, além de saberem muito bem, em países frios, apropriar-se desta
de luta de classes, e não mais a partir da noção de guerra de todos contra todos. das bestas que venceram37.
Ao final de nossa última aula eu dissera que vamos analisar cada uma
dessas alternativas. Neste sentido, gostaria de utilizar a aula de hoje para falar da De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e
ausência de uma lógica do reconhecimento em Jean-Jacques Rousseau. Mesmo estes que fazem parte da vida social, um traço de explica em larga medida como é
sendo o teórico que primeiro descreverá a natureza do sofrimento social que possível que a falta não seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se o
mobiliza sujeitos em direção ao reconhecimento, a saber, a alienação, a teoria humano pode ser “só, despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem
política de Rousseau não será uma teoria configurada a partir de problemas que isto seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza não se conhece a
ligados às lutas por reconhecimento. Mesmo intervendo a imagem antropológica propriedade. Não temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos
fornecida por Hobbes no estado de natureza, insistindo na importância da vinculados a necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas
compaixão e da empatia, seu contratualismo, assim como a centralidade de sua propriedades. Os humanos são sós, seus encontros são intermitentes, suas
noção de “vontade geral”, exigirão um certo esquecimento da natureza humana preocupações se vinculam a auto-conservação em um espaço natural vasto no
que encontrará expressão apenas, de forma compensatória, no campo das artes interior do qual eles estão em contínua mobilidade. Mas para tanto eles podem
(em especial na música), e não no campo da política. Por isto, não haverá contar com sua força e habilidade. Por isto, os humanos aparecem inicialmente
dinâmicas de reconhecimento no campo social. Gostaria de expor de maneira como nômades solitários.
sistemática alguns pontos centrais da teoria de Rousseau importantes para Notem que, se em Hobbes, o estado de natureza era composto de
nosso debate. indivíduos em relação de concorrência e violência, era porque os desejos eram
compreendidos inicialmente como miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro,
Isolamento e compaixão no estado de natureza vejo como o outro deseja para saber como desejar, ou seja, há desde o início uma
certa forma de dependência entre os seres humanos, mas esta racionalidade
Guardemos de confundir o homem selvagem como os homens que temos mimética não se traduz em empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em
diante de nossas olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a rivalidade e violência direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na
seus cuidados com uma predileção tal que parece assim mostrar como ela rota de uma luta de vida ou morte. Se este mimetismo próprio ao desejo se
é ciumenta deste direito36. traduz em rivalidade e não em empatia é porque Hobbes naturaliza um modo de
relação às coisas e a si mesmo que se expressa na forma de relações de
Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo propriedade. Não há uma história da emergência das relações de propriedade
Rousseau, a saber, a ausência de falta. Rousseau não partilha a visão do estado de em Hobbes porque elas são naturais, elas estão lá desde o início da existência
natureza como estado de penúria no interior do qual seria necessário lutar para histórica dos seres humanos.
sobreviver, pois estaríamos sempre as voltas com a experiência da finitude da Não há esta dimensão originariamente mimética do desejo em Rousseau,
vida. De certa maneira, não seria errado dizer que a experiência da falta é uma assim como não há uma naturalidade das relações de propriedade. Os humanos
criação da vida social. Se a natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos não conservam, eles consomem. Eles não se territorializam, mas estão em
animais e aos humanos o espaço potencial de realização de seus desejos e nomadismo. Estes indivíduos isolados não conhecem a desigualdade, a não ser
necessidades, então a falta não pode ser uma condição contínua de um desejo esta produzida pela diferença de idade, de saúde, de força do corpo e de
que está sempre a procura de novos objetos. qualidade da alma, a saber, isto que Rousseau chama de “desigualdade física”.
Rousseau traz algo do cinismo grego em sua descrição do estado de Mas esta desigualdade física não se traduz em “desigualdade política ou moral”.
natureza. Pois eram o cínicos que definiam a liberdade como uma liberação em No entanto, mesmo estando em nomadismo, os humanos tem um sentimento que
relação às necessidades socialmente produzidas, a liberdade como uma os vincula, a saber, a piedade ou a compaixão. Esta piedade é, principalmente, a
restrição, pois quanto menos preciso mais livre sou, menos dependente sou de impossibilidade de sustentar uma posição de indiferença em relação ao
artifícios e engenhos para encontrar a satisfação. Retornar a uma certa condição sofrimento do outro. Ela não é uma forma de prática cooperativa, mas regime de
de animalidade é, de certa forma, o horizonte da realização da liberdade. Assim: implicação afetiva a partir da identificação do sofrimento, mesmo que seja uma
implicação intermitente. Mesmo sendo isolados, os humanos em estado de
natureza não são indiferentes a sorte de outros humanos.

36
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade,
37
p. 139 Idem, p. 140
História da queda um comércio independente. Mas desde que um homem teve necessidade
do socorro de outro, desde que se percebeu que seria útil a um de ter
Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do provisões para dois, e igualdade desapareceu, a propriedade foi
estado de natureza, o que significa a instauração da vida social. Rousseau se introduzida, o trabalho adveio necessário e as vastas florestas se
serve de dois fenômenos para descrever a emergência da vida social e da transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor
corrupção desta relação imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão
de “faculdade de aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que germinar e crescer como musgos41.
nos empurra a um aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se
desenvolveriam apenas até os limites de seus próprios instintos. No entanto, se A indústria e o trabalho impõem um regime de atividade baseado na
na aurora do iluminismo a perfectibilidade era vista como a fonte da criação e cooperação dos esforços, na previsão e calculo, no acúmulo tendo em vista a luta
felicidade humana, em Rousseau ela é a causa de todos seus males: prévia contra situações desfavoráveis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra
a imanência à natureza, impondo uma atividade que não é mais atividade
Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do imediata. Por outro lado, o estabelecimento de relações de trabalho e produção
homem. É ela que o tira, à força do tempo, desta condição originária na se funda em tendência imanentes de exploração e dominação. Pois, com as
qual corriam dias tranquilos e inocentes. É ela que, fazendo eclodir com relações de produção, não estamos apenas a falar do advento da propriedade,
os séculos suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o transforma ao fim e mas principalmente do reconhecimento da importância da sanção do outro, a
ao cabo em tirano de si mesmo e da natureza38. necessidade de reconhecimento do outro como condição para a justificação de
minha atividade. Isto é indissociável, para Rousseau, do avento de um ser-para-
Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de forma
progresso, pois seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “história profunda problema moral e problema econômico.
da civilização como progresso da negação do dado natural”39. O primeiro destes Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda
temas consiste em dizer que o desenvolvimento não era apenas uma forma de de si já que o advento da vida social é a alienação da potência normativa da
conhecimento da natureza e de si, mas de uma dominação técnica de si e do origem, isto devido à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida
mundo que nos distancia, que marca com um véu, esta condição originária que social implica dependência e esta dependência leva os homens a garantir a
seria o espaço de afirmação da emergência do sentido. O advento da vida social é estima dos outros, a cultivar a aparência e a sempre preocupar-se com ela. Eles
algo como uma queda: “Porque o homem é perfectível, não cessou de acrescentar se tornam então: “enganadores e artificiais”42 ao submeterem seus desejos a
suas invenções aos dons da natureza. E desde então s história universal, demandas de reconhecimento. Notemos como Rousseau descreve a emergência
embaraçada pelo peso continuamente crescente de nossos artifícios e de nosso do desejo de reconhecimento:
orgulho, adquire o andamento de uma queda acelerada na corrupção: abrimos os
olhos com horror para um mundo de máscaras e de ilusões mortais, e nada Nós nos acostumamos a nos juntar diante de cabanas ou em volta de uma
assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele próprio seja poupado pela grande árvore. O canto e a dança, verdadeiras crianças do amor e do lazer,
doença universal”40. Isto faz da história da técnica a história do afastamento do transformaram-se no divertimento ou ainda na ocupação dos homens e
sentido, uma história da alienação no sentido mais forte do termo, a saber, mulheres despreocupados e congregados. Cada um começou a olhar os
tomar-se por um outro, estar preso ao olhar de um outro. outros e a querer ser olhado por eles, e a estima pública teve um preço.
Neste ponto, lembremos de outro fenômeno responsável pela saída do Este que cantava ou dançava melhor, o mais bonito, o mais forte, o mais
estado de natureza, um fenômeno ligado ao exercício da faculdade de eloquente se transformou no mais considerado e este foi o primeiro passo
perfectibilidade, a saber, a emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o para a desigualdade e, ao mesmo tempo, o primeiro passo em direção ao
trabalho cooperativo não é fonte de emancipação, mas uma das principais fontes vício43.
de alienação. Pois o trabalho cooperativo é expressão de relações de
dependência e com tais relações de dependência aparecem a necessidade do Fica claro assim como Rousseau não distingue demandas de
artifício, da conquista do olhar e da estima do outro: reconhecimento e processos de alienação. Pois o estabelecimento de relações
sociais não é compreendido como constituição de um campo móvel de
Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser incorporação das singularidades. As relações sociais são solidárias de dinâmicas
realizadas por um e a artes que não necessitavam do concurso de várias de alienação e contra tal sofrimento social haveria de se retornar à
mãos eles viveram livres, saudáveis, bons e felizes tanto quanto podia ser normatividade natural, se isto fosse possível. As modificações implicativas
por sua própria natureza e continuaram a gozar entre eles das doçuras de produzidas pelas demandas de reconhecimento são sempre compreendidas por

38 41
Idem, p. 142 ROUSSEAU, Idem, p. 171
39 42
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36 Idem, p.173
40 43
Idem, p. 23 Idem, p. 169
Rousseau como alienação na dimensão da aparência, o olhar do outro não é a homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado
confirmação de si, mas uma forma de aprisionamento. Pois não é através do a tudo o que lhe tenta e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil
reconhecimento que o humano realizaria sua essência, mas através do retorno à e a propriedade de tudo o que ele possui”44. Notemos a estrutura da retórica de
voz da natureza, o que só é possível ainda na dimensão da experiência estética e, Rousseau. Sabendo que não mais é possível fazer apelo a uma relação à physis
em especial, da expressão musical. soterrada pelo processo civilizacional, Rousseau que realizar uma liberdade que
Isto é resultado direto do ponto de partida de Rousseau. Da mesma ainda signifique pertencimento de si apelando a uma lógica própria às
maneira que Hobbes, Rousseau aceita que a celular elementar da vida social são individualidades proprietárias: veja quanto se perde e quanto se ganha;
os indivíduos, no seu caso, indivíduos em relação de imanência à natureza. Ou deixamos o caráter ilimitado do desejo, mas ganhamos a segurança da
seja, temos primeiros indivíduos isolados e, em um segundo momento, o artifício propriedade. Daí porque Hegel dirá, a respeito de Rousseau:
da criação de relações. Neste sentido, a liberdade natural implica certo modo de
relação a si que podemos descrever como “relações de auto-pertencimento”, No entanto, como ele apreendeu a vontade em sua forma determinada
relações nas quais afirmamos o fato de se pertencer apenas a si mesmo, o que a como vontade singular (como fez posteriormente Fichte) e como ele
vida social não pode realizar. No máximo, a vida social pode construir uma forma apreendeu a vontade geral não como o que a vontade tem de racional em
compensatória de autonomia baseada na emergência de uma vontade geral. É si e para si, mas apenas como o elemento comum que surge desta vontade
desta forma compensatória que fala O contrato social. singular enquanto consciente, a reunião dos indivíduos singulares no
Estado se transforma em um contrato45.
Um corpo político
Hegel critica Rousseau por pensar a vontade a partir da noção de vontade
Tal como Hobbes, Rousseau fala da emergência de um corpo político, mas de um
individual, vontade que, ao menos em sua perspectiva, não advém exatamente
corpo que não tem a configuração de um Leviatã no qual o poder soberano se
vontade geral, mas vontade comum, ou seja, associação de diversas vontades que
concentra, de maneira indivisível, nas mãos do detentor do poder executivo. Há
não desejam um objeto universal, mas que desejam as condições para a
uma soberania a animar o corpo político de Rousseau, mas se trata de uma
afirmação de seus sistemas particulares de interesses46. De fato, como nos
soberania popular que tem no espaço da assembleia popular sua expressão
lembra Gérard Lebrun ao insistir na “raiz ultra-individualista do contrato”, no
máxima. Esta assembleia é expressão de um princípio de igualdade moral ou
momento do Contrato social, o homem é ainda “aquele que olha para si mesmo”.
política fundamental. Desta forma, Rousseau espera poder instaurar uma
Seu desejo de adquirir a liberdade civil provém de uma reivindicação que nasce
totalidade social baseada na igualdade como virtude que modera os apetites e
no nível da sua independência natural. Sua entrada na união civil é feita
nos afasta do caráter egoísta dos interesses. Como vimos, este corpo político é
unicamente em nome de seu amor por si mesmo. Ou seja, as condições de
uma espécie de suplemento de um outro corpo perdido, a saber, a natureza como
estabelecimento do contrato social não são recuperações da natureza reprimida,
uma espécie de corpo nômade no qual os indivíduos podiam circular em
mas regulação da vida social a partir da realidade de uma alienação de base.
imanência.
Notemos ainda que este desejo de liberdade civil é também desejo de liberdade
Lembremos inicialmente como a condição fundamental para o advento de
moral, de auto-legislação, já que vem de Rousseau a ideia de que liberdade é dar
um corpo político soberano é a emergência da vontade geral. A vontade geral não
para si mesmo sua própria lei.
é a somatória de vontades particulares, ou seja, uma vontade de todos. Ela é a
Estes pontos podem explicar porque, para fazer emergir um corpo
expressão de um desejo de liberdade baseado, inicialmente, na ideia de auto-
político, é necessário um legislador. Este legislador é a figura instauradora de um
legislação. A alienação dos interesses particulares na vontade geral permite a
povo, como Licurgo, Moisés. Diz Rousseau:
constituição de um Eu comum, de um corpo político unitário capaz de defender e
proteger a pessoa e seus bens. Defender não apenas do outro, como vemos em
Este que ousa empreender a instituição de um povo deve se sentir em
Hobbes, mas principalmente defender-se do próprio poder, defender-se dos
estado de mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar
efeitos de usurpação do poder quando alienamos a soberania popular a um
cada individuo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário em parte
outro, seja ele um príncipe, seja qualquer forma de representante. Por isto,
Rousseau dirá que o povo não obedece a um soberano, ele não passa alguma
espécie de contrato com ele. Na verdade, o povo se manifesta através do 44
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, p. 364
exercício da soberania. Ele pode derrubar governos, ele deve ratificar leis, ele se 45
Idem,
reúne em assembleia, ele não tem representantes. Nenhum deputado ou príncipe 46
Isto talvez nos explique porque, na justificação do contrato social: “a linguagem de Rousseau com
representa o povo, pois a soberania não é algo que possa ser representado sem freqüência é tão abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas avalie, em
compensação, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negócio de otário?” In: A
ser perdido. Neste sentido, deputados e príncipes são apenas “comissários” do filosofia e sua história, São Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos entrar no
povo. contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que compõem a “pessoa
O verdadeiro soberano é assim o corpo composto pelos particulares que pública” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas continuam portanto a desfrutar um
lhe formam e que se associam a fim de garantir a liberdade civil. Pois: “o que o direito natural enquanto homens e que “o Soberano não pode infligir aos súditos nenhuma que seja
inútil à comunidade” (idem, p. 230).
de um todo maior do qual os indivíduos receberão de certa maneira sua veículo de formação moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura.
vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que Lembremos do que diz Rousseau :
todos nós recebemos da natureza por uma existência parcial e moral47.
Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
Como lembrará bem Bento Prado Júnior, é necessário uma relação à música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia,
exterioridade para que a vida social possa ser instituída em sua proximidade à acordes, achando esta mistura agradável ; quando pensamento que o
natureza: “apenas o estrangeiro que não partilha dos preconceitos e dos modo durou tantos séculos sem que, em todas as nações que cultivaram
interesses dessa humanidade local, pode aproximar-se da condição as belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum
extraordinária que é a do legislador48. animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o
Mas o que acontece como esta natureza humana deixada para trás? Ela uníssono ou outra músical que a melodia ; que as línguas orientais, tão
ainda terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes
podemos nos perguntar se esta transformação produzida pelo legislador, se esta povos voluptosos e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem
mudança da própria natureza humana não seria sem produzir uma certa ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa
nostalgia social. A vida política não parece não pode dar conta desta nostalgia. No tenha efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte,
máximo, ela transmutar a experiência de auto-pertencimento própria ao estado cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões
de natureza em desejo de igualdade (forma única de impedir a servidão) e de de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões,
autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras
marcados pela experiência do individualidade possessivo da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em considerações, é muito
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz difícil não desconfiar que toda nossa harmonia é uma invenção gótica e
da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma bárbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais
linguagem de pura presença. Este ponto se dá através da música e do uso da sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural 50.
música como paradigma para a reinstauração da ordem social.
A discussão de Rousseau vincula a expressão musical à “voz da natureza” que se
Música e reconhecimento expressa sem afetação através da objetividade própria à entonação e aos acentos
da fala comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda
A fim de compreender a configuração do paradigma musical em fala) como fundamento da expressão musical. Esta expressão musical próxima da
Rousseau, lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das fala instaura, por sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um
quais ele participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata- fundamento ancorado no seio da natureza, pensada aqui como polo positivo
se de uma contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical doador de sentido, como transparência e proximidade.
vinculada ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um
harmônica derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas espaço político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitação da
para uma polifonia contrapontística controlada pelo centro harmônico e para disseminação da representação devido ao ideal estético de clareza e
uma definição de estruturação da forma musical absolutamente autônoma em comunicação (o que explica boa parte da luta de Rousseau contra uma música na
relação a tudo o que seria extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma qual a expressão melódica estaria submetida aos jogos e modulações
reação que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofônica harmônicas). Esse naturalismo musical, que submete a música ao “prazer moral
inspirada no canto. Posição rousseauista que Dahlhaus caracterizou bem: “Um da imitação”51 enquanto sonha com o advento de uma comunidade política por
sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um racionalismo que vir (ou seja, há uma submissão completa entre música e moral em Rousseau, tal
quer programas, uma pintura musical na música instrumental e a nostalgia de como houvera antes em Platão), faz da expressão do compositor o uso consciente
uma antiguidade que opõe, à polifonia moderna, confusa e savant, uma de efeitos objetivamente determinados. Ou seja, faz da expressão do compositor
simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical a mera imitação dos afetos objetivamente dispostos. Daí porque o compositor
de Rousseau”49. deve: “conhecer ou sentir o efeito de todos os caráteres a fim de levar
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da exatamente este que ele escolheu ao grau que lhe convém”52. Da mesma forma,
melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo os instrumentos terão sua expressão própria: a flauta é tenra, o trompete é
entre música e a expressão natural da linguagem com suas entonações e acentos. guerreiro, a trompa é majestosa, etc. Ou seja, aqui também trata-se muito mais
Isto o permitia vincular a música à uma pedagogia da arte capaz de servir de de representação de regimes gerais e estáveis de afecção do espírito, de uso
objetivo de uma paleta de efeitos disponíveis, do que propriamente de expressão.

47 50
Idem, p. 381 ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
48 51
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 103 ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
49 52
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49 Idem, p. 207
Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música Lógicas do reconhecimento
como horizonte de reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e Aula 4
recuperação de dimensões sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de
que a alienação social é indissociável da degradação da linguagem no espaço
político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas: Na aula de hoje, começaremos a discutir o conceito de reconhecimento, tal como
“toda língua com a qual não nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma aparece na filosofia hegeliana. A insistência na centralidade dos processos de
língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas”53. Uma reconhecimento é uma inovação filosófica fundamental produzida por Hegel,
língua que o povo em assembleia não escuta é aquela desprovida de eloquência, mesmo que o conceito apareça pela primeira vez com Fichte. Tal centralidade
afastada da persuasão por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome dos processos de reconhecimento indicará um regime de saída do idealismo que
próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de interesses. “A será explorado em toda sua extensão principalmente, como veremos, por setores
primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem maiores do pensamento do século XX. Isto implicará não apenas assumir a
permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e gênese social da consciência cognitiva, ou seja, a maneira com que ela submete
comunicacional que os separa. A língua do povo em assembleia, ao contrário, é processos de conhecimento a estruturas sociais de reconhecimento. Pois, como
aquela mais próxima do canto e da música. De certa forma, para Rousseau, não disse em outra aula, o reconhecimento nos abre para a tematização da gênese
há assembleia sem música. das estruturas da consciência através das relações concretas de trabalho, desejo
No entanto, a força política da música exige a recusa de sua autonomia, a e linguagem. Se a consciência só é enquanto reconhecida, então serão os campos
recusa do desenvolvimento imanente de seus materiais. Para preencher sua concretos de reconhecimento que determinarão sua estrutura, seus modos de
força política própria, a música deve se submeter a uma moral, ela não deve criar apreensão e pensamento. A filosofia deverá assim se direcionar à compreensão
um ethos a partir do desenvolvimento imanente de seus materiais. Por isto, das modalidades concretas de trabalho, de desejo e de linguagem enquanto
trata-se de exigir a fundamentação dos modos de expressão em um solo natural e expressões de uma gênese social da consciência. Gênese esta que demonstra
originário pensado como horizonte normativo estrito. Este solo natural não é um como toda proposição de validade deverá ser historicamente situada. Posição
campo de singularidades em produção, mas um campo de visibilidade da voz da cujas consequências estão muito bem expressas em afirmações como esta de
natureza. Pois: “a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens Robert Brandom: “Toda determinação transcendental é uma instituição social”.
das coisas, mas no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa Por isto, havia dito a vocês que a temática do reconhecimento representava o
disposição que torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza eixo de uma guinada materialista no interior do idealismo alemão, um
quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a materialismo que não é simplesmente a expressão do empirismo e de seus sense
ordem que seu nascimento tinha contribuído para apagar”54. data, mas de um materialismo histórico que a partir de então paulatinamente irá
se configurar.
No entanto, a defesa hegeliana das dinâmicas de reconhecimento trará
consequências maiores também para a compreensão de conceitos reguladores
centrais de nossas formas de vida, como liberdade, identidade, individualidade,
autonomia e emancipação. O reconhecimento é uma peça fundamental de todo
pensamento dialético, não apenas por enraizar nossas proposições sobre estado
de coisas em gêneses sociais, mas também por expor modalidades de
determinação de si que passam pela desarticulação das distinções estritas entre
identidade e diferença, entre referência-a-si e referência-a-outro, o que implica
uma verdadeira “metamorfose categorial” a respeito do que devemos
compreender por “si mesmo”. É a natureza desta desarticulação, sua extensão e
radicalidade, que colocará problemas para vários setores do pensamento do
século XX. É esta sua força de descentramento que, a meu ver, ainda está sub-
explorada. Por isto, parece-me que uma maneira privilegiada para entrar em
dimensões importantes de nosso debate filosófico contemporâneo seja propondo
um certo retorno a Hegel, um retorno às tensões próprias a seu texto.
Notemos ainda que vimos em nosso trajeto como a filosofia social do
século XVII e XVIII, em especial Hobbes e Rousseau, não tinham a sua disposição
um conceito de reconhecimento enquanto horizonte regulador de dinâmicas de
conflito social. Isto produzia, no caso de Hobbes, uma filosofia que pensava a
emergência de corpos políticos baseados na gestão social de uma psicologia que
53
Idem, Essai sur l’origine des langues, visava a naturalização de relações concorrenciais, belicistas e possessivas. Uma
54
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
psicologia que visava fornecer as bases para a naturalização do conceito
moderno de indivíduo, transforma-lo em um conceito pré-político e ligado a um Fenomenologia do Espírito e reconhecimento
processo de determinação meramente psicológica. Neste sentido, a instauração
do estado de sociedade só era possível através da repressão contínua do que O texto mais importante sobre a teoria do reconhecimento de Hegel é, sem
aparecia como natureza humana, obrigando com isto a mobilização contínua do dúvida, sua Fenomenologia do Espírito, de 1806. Nela, encontramos a primeira
medo como afeto social. Este circuito de afetos baseado no medo, fruto da formulação acabada do problema do reconhecimento através de várias figuras da
aceitação da fantasia social da guerra de todos contra todos, aparecia como a consciência (como a dialética do senhor e do escravo, o mal e seu perdão, entre
mais profunda contradição em relação a práticas de reconhecimento. Não pode outras). Elas serão retomadas e desenvolvidas principalmente em duas obras
haver reconhecimento lá onde há medo social. posteriores: a Enciclopédia das ciências filosóficas e os Fundamentos da Filosofia
No caso de Rousseau, vimos como a liberdade civil pressupunha uma do direito.
autonomia que representava, a sua maneira, um esquecimento da natureza De certa forma, o movimento que anima a Fenomenologia do Espírito está
humana em sua relação de imanência ao corpo da natureza. De onde se seguia o sintetizado na afirmação, presente em sua Introdução: “o caminho do erro é o
fato das demandas de reconhecimento serem compreendidas, em larga medida, caminho da verdade”. Em Hegel, “fenomenologia” significa o estudo da maneira
de maneira negativa, como processos de alienação e dependência da estima do com que a consciência erra, a maneira com que ela aliena-se na dimensão do que
outro. Dependência esta que criava o cultivo da aparência e a perda da lhe aparece. No entanto, este sistema de erros é um caminho em direção ao
transparência. Aqui também a emergência de um corpo político, sob as formas saber, pois algo acumula-se às costas da consciência, mesmo que ela não perceba.
do contrato social e da vontade geral, tinha que lidar com as limitações Isto a ponto do saber aparecer como indissociável da compreensão deste
existenciais próprias da elevação da individualidade moderna à célula elementar processo em sua direção. O verdadeiro objeto do saber é a compreensão do
da vida social. A vontade geral nascia da possibilidade de motivações para a ação sentido do caminho em sua direção.
que não se resumiam a emulação dos interesses individuais. No entanto, ela Assim, em um movimento contínuo, veremos a consciência procurar
implicava a instauração de uma segunda natureza na qual a independência era adequar sua certeza à verdade, e para tanto ela partira da certeza mais
transmutada em coesão social no interior de um “Eu comum”. Neste processo, a elementar, a saber, a certeza da objetividade dos dados imediatos do sentido.
soberania popular não implica lidar com uma primeira natureza perdida e sua Desde o início, ela se verá enredada em contradições a partir do momento em
nostalgia. Esta nostalgia continuará a assombrar os laços sociais, mas mesmo que tentará exteriorizar sua certeza, falar sobre ela, expressa-la em um espaço
esta primeira natureza não será objeto de reconhecimento, no que o termo tem intersubjetivo. Ela descobrirá que não há relação imediata entre a consciência e
de determinação de singularidades. Sua emergência será a marca do retorno a seu objeto, que todas essas relações são mediadas pela estrutura de uma
uma origem na qual a generalidade da voz da natureza fala através dos humanos. linguagem que não é simplesmente “minha”, mas que é fruto de uma experiência
De toda forma, tanto a filosofia de Hobbes quanto a de Rousseau tinham social. Neste caminho, ela descobrirá como a estrutura do objeto tem a estrutura
ao menos um ponto em comum: parte-se dos indivíduos isolados em estado de do Eu. O que a princípio para uma proposição idealista típica que reduz o objeto
natureza para alcançarmos as condições possíveis de emergência de um corpo à projeção da estrutura de categorização do sujeito. No entanto, Hegel quer
político. Em Hegel, veremos estratégias completamente distintas. Ao insistir na mostrar que é o Eu que irá se modificar a partir de seus fracassos em adequar
centralidade dos processos de reconhecimento, Hegel lembra que a célula seu conceito ao objeto, a certeza à verdade. Neste momento, a consciência deixa
elementar da vida social não são indivíduos atomizados, mas relações. Ou seja, é de ser “consciência de objeto” e passa a ser “consciência-de-si”. Pois
certo afirmarmos que, no seu caso, as relações vem antes de seus termos. Ou compreende-se a emergência de um “Eu que é Nós, de um Nós que é Eu”. Ou seja,
seja, o que temos inicialmente são relações, os indivíduos são abstrações, e não o não é o Eu isolado como subjetividade constituinte que se confronta aos objetos.
contrário (os indivíduos seriam “reais” e as relações seriam “abstrações”). Hegel São as estruturas sociais de relações que determinam as formas gerais da
age como quem diz: a consciência não é prévia às relações intersubjetivas. Na experiência.
verdade, ela é seu produto. O que há de concreto no mundo são as relações e sua No entanto, dizer isto é ainda dizer pouco. Pois há de se entender como
força produtiva, não as disposições individuais de conduta. No entanto, a analisar tais estruturas sociais. No caso de Hegel, podemos dizer que o problema
consciência não é um mero produto, um simples suporte de relações central consiste em entender o que as move. Qual é o motor do movimento das
intersubjetivas. Ela é também o que força as estruturas intersubjetivas a estruturas sociais e de suas modificações históricas. É para responder esta
operarem a partir de conflitos que não são apenas conflitos a respeito da melhor questão que Hegel mobilizará o tema do reconhecimento. É através de lutas por
aplicação de normas sociais intersubjetivamente partilhadas, mas são conflitos a reconhecimento que as estruturas se movem e se modificam. É forçando
respeito da legitimidade de tais normas. Esta tensão de difícil manejo é possível processos incompletos e parciais de reconhecimento que elas se transformam.
para Hegel, sem necessariamente substancializar a consciência porque, como Ou seja, a história na Fenomenologia do Espírito é uma história de lutas por
veremos, ele tem à sua disposição o conceito de “negatividade”, que se mostrará reconhecimento.
central em toda nossa discussão. Mas antes de entrar na exposição da estrutura Quando for capaz de apreender tal história, quando se ver como sujeito
conceitual hegeliana, há de entender as matizes de sua trajetória até a transindividual que atualiza tal história e age no presente a partir dela, a
tematização do problema do reconhecimento. consciência-de-si não será mais consciência-de-si. Ela será Espírito. Neste
sentido, Espírito não é uma espécie de entidade metafísica superior que teria Hegel partilha com pós-kantianos, como Fichte e Schelling, o diagnóstico
parte com a secularização de um conceito divino de providência. de que viveríamos em um momento histórico de cisão resultante da elevação do
Quando Hegel fala em Espírito, podemos compreender isto, a princípio, de princípio de subjetividade a condição de fundamento da razão moderna, assim
uma maneira não-metafísica. Atualmente, quando falamos sobre sujeitos como de seus modos de racionalização social. Este princípio de subjetividade,
socializados que procuram julgar, orientar racionalmente suas ações e usos da com sua condição de fundamento, exige que tudo aquilo que aspira validade seja
linguagem, lembramos inevitavelmente da necessidade de um background submetido à força da reflexão. Ele faz com que ser e reflexão seja pois o mesmo.
pensado um “sistema de expectativas” fundamentado na existência de um saber No entanto, isto parece inicialmente submeter o ser à dimensão estrita daquilo
prático cultural e de um conjunto de pressupostos que define, de modo pré- que é ser-para-o-sujeito, e não ser em-si. Daí diagnósticos como este que
intencional, o contexto de significação. Este background indica que toda ação e encontramos no prefácio da Fenomenologia:
todo julgamento pressupõem um “espaço social partilhado” capaz de garantir a
significação da ação, do julgamento e, principalmente, de nossos modos de Tomando a manifestação dessa exigência [do Absoluto] em seu contexto
estruturar relações. mais geral e no nível em que presentemente se encontra o espírito
Como disse, este background é, em larga medida, pré-intencional e pré- consciente-de-si [ou seja, trata-se de compreender o que o presente
reflexivo. Não colocamos normalmente a questão sobre a gênese deste saber coloca como exigência do espírito], vemos que esse foi além da vida
prático cultural que fundamenta nossos espaços sociais. Sua validade não substancial que antes levava no elemento do pensamento; além desta
aparece como objeto de problematização. No entanto, podemos imaginar uma imediatez de sua fé, além da satisfação e segurança da certeza que a
situação na qual os sujeitos socializados irão procurar apreender de maneira consciência possuía devido à sua reconciliação com a essência e a
reflexiva aquilo que aparece a eles como fundamento para suas práticas e presença universal dela – interior e exterior. O espírito não só foi além –
julgamentos racionais, podemos pensar uma situação na qual eles procurem passando ao outro extremo da reflexão, carente-de-substância, de si sobre
compreender o processo de formação cultural que os levou a tais modos de si mesmo – mas ultrapassou também isso. Não somente está perdida para
orientação da conduta. Podemos ainda achar que tais modos de orientação não ele sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude
devem ter apenas uma validade historicamente determinada e restrita a espaços que é seu conteúdo. [Como o filho pródigo], rejeitando os restos da
sociais particulares, mas só podem ser válidos se puderem ser defendidos comida, confessando sua abjeção e maldizendo-a, o espírito agora exige da
enquanto universais. Neste momento, estaremos muito próximos daquilo que filosofia não tanto o saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela,
Hegel compreende por Espírito. Devemos, neste ponto, seguir a definição de um aquela substancialidade e densidade do ser [que tinha perdido]”56.
comentador de Hegel que viu claramente isto: “Espírito é uma forma de vida
autoconsciente, ou seja, uma forma de vida que desenvolveu várias práticas Como vemos, Hegel compreende claramente a modernidade como um
sociais a fim de refletir a respeito do que ela toma por legítimo/válido momento de cisão. O espírito teria perdido a imediatez da sua vida substancial,
(authoritative) para si mesma no sentido de saber se estas práticas podem dar ou seja, nada lhe apareçeria mais como substancialmente fundamentado em um
conta de suas próprias aspirações e realizar os objetivos que elas colocaram para poder capaz de unificar as várias esferas de valores sociais. Não haveria mais
si mesmas (...) Espírito não denota, para Hegel, uma entidade metafísica, mas recurso à autoridade da tradição ou à certeza da imediatez. Ao contrário, a
uma relação fundamental entre pessoas que medeia suas consciências-de-si, um modernidade pode ser compreendida como este momento que está
meio através do qual pessoas refletem sobre o que elas tomaram por válidos necessariamente às voltas com o problema da sua auto-certificação. Isto
para si mesmas”55. É a este horizonte que as prática de reconhecimento em Hegel significa: ela não pode mais procurar em outras épocas os critérios para a
procuram nos levar. Mas para compreendê-lo de maneira mais efetiva, teremos racionalização e para a produção do sentido de suas esferas de valores. Ela deve
que passar da Fenomenologia do Espírito à Filosofia do direito. Pois é lá que este criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a
horizonte normativo do Espírito estará mais claramente posto. substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais
aparentemente não-problemáticos está fundamentalmente perdida. Como dirá,
Os primeiros passos em direção ao reconhecimento cem anos depois, Max Weber: “O destino de nossos tempos é caracterizado pela
racionalização e intelectualização e, acima de tudo, pelo desencantamento do
No entanto, as primeira formulações sobre o problema do reconhecimento em mundo. Precisamente, os valores últimos e mais sublimes retiraram-se da vida
Hegel devem ser creditadas a seus manuscritos de juventude, em especial o pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade
chamado Sistema da eticidade e o curso sobre a Filosofia do Espírito, de 1805. das relações humanas e pessoais”57. Ou seja, aquilo que fornecia o enraizamento
Neles, encontramos de forma clara a maneira com que a tarefa filosófica de Hegel dos sujeitos através da fundamentação das práticas e critérios da vida social não
se vincula a um diagnóstico de época que é, ao mesmo tempo, socio-histórico e é mais substancialmente assegurado.
filosófico.

56
HEGEL, Fenomenologia I, p. 24
55 57
PINKARD, Terry; The sociality of reason, p. 9 WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182
Em uma análise hoje clássica, Hegel indica três acontecimentos que foram remotos que a história da razão pode alcançar no admirável povo grego, a
paulatinamente moldando a modernidade em suas exigências: a reforma matemática entrou na via segura de uma ciência59.
protestante [com sua confrontação direta entre o crente e Deus através da
subjetividade da fé], a revolução francesa [que colocava o problema do Estado Estas afirmações de Kant no segundo prefácio à Crítica da razão pura sintetizam
Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspirações de universalidade da Lei e admiravelmente tudo contra o qual Hegel luta em sua filosofia. Não é por outra
exigências dos indivíduos] e o Iluminismo [que, segundo Hegel, terá em Kant sua razão que a primeira frase da Ciência da Lógica é exatamente uma lamentação:
realização mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece
impulsiona-los é o aparecimento do que poderíamos chamar de “subjetividade”. A modificação completa que afetou o modo de pensar filosófico desde
É a gênese desta subjetividade que deverá ser objeto da filosofia e de seus mais ou menos vinte cinco anos entre nós, a perspectiva mais elevada que
processos de fundamentação. a auto-consciência do Espírito alcançou a respeito de si mesmo neste
Hegel poderia, no entanto, apelar a uma saída transcendental que visaria período de tempo teve, até agora, pouca influência na forma (Gestalt) da
definir o sujeito como mera condição formal de toda experiência possível. Isto lógica60.
daria ao sujeito a universalidade necessária para não sermos empurrado a um
psicologismo subjetivista. Mas a saída transcendental de moldes kantianos era A confrontação não poderia ser mais clara. Hegel vê como bloqueio
insatisfatória para Hegel e para os pós-kantianos. Pois, primeiramente, ela criaria fundamental o fato da lógica “não ter até hoje progredido” e ter pago, como preço
sua universalidade através da supressão de todo processo histórico de gênese e desta estaticidade, a impossibilidade de tematizar a Coisa mesma (die Sache
metamorfose das categorias do pensamento. As categorias do pensamento selbst). Isto nos leva ao segundo problema com uma estratégia transcendental, a
aparecem assim como entidades estáticas e, por isto, indiferente ao mundo tal saber, a universalidade de categorias estáticas nos obriga a constituir uma
como seria em-si. No entanto, dirá Hegel: espécie de “objetividade para nós” que, para Hegel, equivale a estar a um passo
de uma profissão de fé cética. Pois não há modificação de categorias porque as
Todas as revoluções, nas ciências não menos que na história mundial, coisas em-si e os processos concretos não afetam nossas formas de apreendê-los.
provêm (kommen) somente de que o Espírito agora, para entender e Nada que ocorre no tempo será capaz de modificar a forma pura do tempo. Nada
perceber a si, para tomar posse de si, modificou (geändert hat) suas que ocorre no espaço será capaz de modificar as condições de uma estética
categorias, apreendendo-se (sich erfassend) mais verdadeira e transcendental do espaço.
profundamente, mais intimamente e com mais coesão (einiger)”58. Contra isto, o jovem Hegel irá procurar submeter as estruturas do
conhecimento às dinâmicas de reconhecimento. Isto significará não só se
Ou seja, para Hegel, ao procurar apreender-se verdadeira e perguntar pelas condições sociais do conhecimento, ou seja, pela maneira com
profundamente, o Espírito produz necessariamente uma “modificação de que processos históricos coletivos determinam a forma do pensar. Isto
categorias”, um movimento no interior da própria significação destas significará também se perguntar como a consciência emerge, quais são as
determinações universais do pensar. Tais modificações não são apenas condições materiais de sua emergência e de suas modificações, como estas
acompanhadas por aquilo que o século XX chamará de “mudança de paradigma condições determinarão as potencialidades práticas de suas ações em suas
científico” e que Hegel descreve como “revolução” na ciência. Elas são expectativas de racionalidade.
necessariamente acompanhadas por amplas mutações em nossas formas de vida Pois há de se entender que, quando Hegel fala em razão, ele não está a
às quais Hegel alude ao falar de revoluções na história mundial. Por isto, sua pensar apenas na capacidade de se orientar no julgamento e de deliberar através
Ciência da lógica será, primeiramente, uma crítica a ideias como esta: da procura pelo melhor argumento no interior de um processo marcado pelo ato
de dar e compreender razões. Processo este que pressupõe a existência de um
Pode-se reconhecer que a lógica, desde remotos tempos, seguiu a via fundamento comum de avaliação de enunciados a partir de uma espécie de
segura, pelo fato de desde Aristóteles, não ter dado um passo atrás, a não gramática geral partilhada por todos os atores. Razão é, para Hegel, uma forma
ser que se leve à conta de aperfeiçoamento a abolição de algumas de vida que se incarna em instituições e práticas sociais tendo em vista a
sutilezas desnecessárias ou a determinação mais nítida de seu conteúdo. efetivação das condições de liberdade. Forma marcada pela reflexividade e pela
Também é digno de nota que não tenha até hoje progredido, parecendo, capacidade que tenho de me ver como agente das instituições e práticas que me
por conseguinte, acabada e perfeita, tanto quanto se nos pode afigurar (...) determinam, isto no sentido de ver minha vontade como atuante no interior das
Que a lógica tenha sido tão bem sucedida deve-se ao seu caráter limitado, determinações fundamentais da vida social. Esta razão, como fica claro, é
que a autoriza e mesmo a obriga a abstrair de todos os objetos do indissociável da capacidade humana de constituir relações capazes de garantir e
conhecimento e suas diferenças, tendo nela o entendimento que se ocupar
apenas consigo próprio o com sua forma (...) Desde os tempos mais 59
KANT, Crítica da razão pura, B VIII/B XI
60
HEGEL, Idem, p. 13. Lembrando, é claro, que a afirmação de Kant não é totalmente correta, já que:
‘a doutrina que ele vê como descoberta completa e perfeita de Aristóteles foi, de fato, uma confusa
versão peculiar da mistura tradicional entre elementos aristotélicos e estóicos” (KNEALE e KNEALE,
58
HEGEL, Enciclopédia, par. 246 The development of logic, Oxford University Press)
reconhecer nossas demandas de liberdade. Ou seja, a razão não é só a tiveram que passar pelo cultivo severo da submissão a um senhor61.
característica da estrutura cognitiva da consciência. Ela é sua força de
instauração de formas sociais. Esta heteronomia ganhará múltiplas figuras, mas será o início de uma
Isto explica porque o jovem Hegel tentará uma saída ao princípio de estrutura descentrada fundamental para o advento da noção de Espírito. A
subjetividade constituinte em Kant fazendo apelo à recuperação de laços sociais consciência verá esta heteronomia, por exemplo, em chave teológica, como o
pretensamente marcados pelo reconhecimento mútuo e pela garantia de uma culto a um Deus cuja vontade ela não compreende e cuja língua ela não entende.
ação social orientada para a emancipação, como seria o caso da polis grega e das Figura esta tematizada através do que Hegel chama de “consciência infeliz”. Ou
primeiras comunidades cristãs baseadas no amor. Este modelo, no entanto, será seja, Hegel mostra como as dinâmicas do trabalho estão no fundamento das
paulatinamente abandonado por Hegel quando compreender que as sociedades forma de relação ao Outro que comporão as relações sociais em seu sentido mais
modernas de livre-mercado levaram a individualidade a um desenvolvimento tal, amplo.
assim como levaram processos de trabalho a um ponto tal de degradação, que Neste sentido, há de se lembrar como em seus escritos de juventude,
não seria mais possível apelar a modelos baseados em vínculos comunitários Hegel submete até mesmo o amor como estrutura de reconhecimento às
substanciais. dinâmicas do trabalho. Por exemplo, no curso sobre a Filosofia do Espírito, ele
Em seu lugar, o jovem Hegel construirá uma descrição fenomenológica de dirá que o amor é uma forma de: “supressão em si-mesmo dos dois [opostos];
etapas sociais de reconhecimento. Elas começam pelas exigências de satisfação cada um é igual ao outro justamente nisto que lhe é oposto; ou o outro, este que o
do desejo. Neste sentido, nos encontramos mais uma vez no ponto de partida de outro é para si, é ele mesmo. Exatamente porque cada um se sabe no outro, cada
Thomas Hobbes e de seu estado de natureza. No entanto, simplesmente não há um renunciou a si mesmo”62. No entanto, esta intuição de si no outro aparece
estado de natureza em Hegel. Comparemos, por exemplo, o movimento textual depois que o trabalho foi apresentado como um ato de se fazer outro, de tomar a
do Leviatã e o movimento textual da Fenomenologia do Espírito. No primeiro forma de um objeto. Isto a ponto de Hegel afirmar que o amor se realiza na
caso, temos um movimento sempre ascendente. Começa-se da descrição da família, principalmente através da concepção da criança “produto do trabalho”
estrutura do desejo individual, expõe-se seus conflitos, evidencia-se seus do amor.
impasses e chega-se ao estado social. Em Hegel, temos uma espécie de dinâmica No entanto, se Hegel oferece uma versão de uma filosofia da praxis
de aprofundamento, no qual a consciência desvela a natureza mediada daquilo através desta centralidade do trabalho, seu conceito de trabalho não é
que ela julgava imediato, desvela a natureza socialmente constituída daquilo que simplesmente fenomenológico. Os escritos de juventude mostram como ele lida
lhe aparecia como natural. Por isto, perde o sentido em falar em algo como um com uma compreensão historicamente precisa da emergência da sociedade do
“estado de natureza”. Saí de cena as discussões sobre a natureza humana, mesmo trabalho. Por exemplo, no Sistema da eticidade, Hegel insiste que a circulação dos
que a filosofia de Hegel procure compreender uma espécie de emergência do objetos trabalhados pressupõe o valor como abstração capaz de viabilizar a
social a partir da natureza, ou seja, a partir do movimento da vida, o que explica troca. Tais processos de abstração impedem toda forma efetiva de
porque a vida aparece como primeira figura do desejo no capítulo IV da reconhecimento. Ele compreende que o advento do trabalho cooperativo
Fenomenologia do Espirito. inaugura um processo de “trabalho mecânico” no qual não é mais o gozo singular
Mas tentemos dar o sentido do movimento geral desta dinâmica hegeliana que conta, mas a produção do excedente. Ou seja, em todas as situações nos
de aprofundamento. No caso de Hegel, e isto já está presente nos escritos de deparamos com formas de alienação vinculadas a configurações precisas dos
juventude, o processo do desejo nos leva a uma dinâmica de conflitos que fará processos materiais de produção.
emergir o trabalho em sua forma de trabalho alienado, trabalho feito no interior No entanto, é próprio de Hegel um movimento singular no qual a
de uma relação de submissão e de medo da morte. Daí porque a primeira figura alienação é superada pelo próprio processo que ela coloca em marcha. Há um
da consciência que trabalho é o servo. No entanto, pelas vias do trabalho as movimento dialético que tem como objeto a própria alienação. O que não poderia
relações de dependência levarão a uma modificação da consciência individual. ser diferente, já que para Hegel toda forma de exteriorização (Entausserung) é
Ao trabalhar para um Outro, a consciência descobrirá habitada por uma uma forma de alienação (Entfremdung). Não há exteriorização que não sejam, em
perspectiva que não é apenas sua, mas também de Outro. Daí o sentido de seu primeiro momento, modalidade de alienação. Ou seja, de certa forma, tudo se
afirmações surpreendentes como: passa como se a alienação fosse necessária para que os processos de
reconhecimento pudessem ocorrer, tudo se passa como se elas fossem
A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da paradoxalmente não apenas uma perda de si, mas uma formação de si. Pois a
verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da experiência da alienação será também a experiência da inefetividade e da
vontade, o sentimento de nulidade do egoísmo, o hábito da obediência irrealidade das relações imediatas e imanentes. Ela será a condição para a
(Gehorsams) é um momento necessário da formação de todo homem. Sem emergência de uma consciência do caráter constitutivo das estruturas
ter a experiência deste cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria relacionais, mesmo que tal consciência seja produzida à condição da consciência
(Eigenwillen), ninguém advém livre, racional e apto a comandar. E para
advir livre, para adquirir a aptidão de se auto-governar, todos os povos
61
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia, par. 435
62
HEGEL, G.W.F.; Filosofia do Espírito, p. 36
ter que continuamente perder a si mesma, até chegar o momento em que ela Lógicas dos reconhecimento
perceba que perdeu o que, de certa forma, ela nunca teve. Aula 5

Na aula de hoje, começaremos a leitura do capítulo IV da Fenomenologia do Espírito,


privilegiando a emergência do problema do reconhecimento no interior do texto.
Antes de começar nossa leitura, gostaria de lembrar como esta é uma das páginas
mais comentadas da história da filosofia contemporânea. Por isto, nosso exercício de
leitura não poderá ser feito desconhecendo quão polêmicas são essas páginas. O que
não poderia ser diferente para um dispositivo filosófico que procura articular, em um
mesmo movimento, reflexão sobre a gênese da consciência cognitiva, uma descrição
fenomenológica da natureza das relações sociais, a emergência dos impasses nos
processos de auto-determinação e auto-identidade, além de uma teoria filosófica do
desejo e do trabalho.
Lembremos, inicialmente, como o jovem Marx verá neste trecho um dos eixos
da filosofia hegeliana por compreender, através da tópica da luta de dominação e
servidão, além da centralidade dada aos processos de reconhecimento mediados pelo
trabalho, a possibilidade de uma guinada materialista no interior do idealismo alemão.
O texto fundamental a este respeito é o capítulo dos Manuscritos econômico-
filosóficos intitulado “Crítica da dialética e da filosofia hegeliana em geral”. Dentro
da tradição marxista, Lukacs voltará à centralidade.
Nos século XX, a partir dos anos 30, será a leitura de Alexandre Kojève que
dará a essas páginas a posição de chave-mestra para abrir o pensamento hegeliano.
Será o primeiro momento que o problema do reconhecimento será explicitamente
tematizado enquanto tal. Kojève chega a começar sua leitura da Fenomenologia do
Espírito a partir do capítulo IV, isto a fim de deixar evidente o caráter inaugural do
advento da consciência-de-si. Sua leitura será influente no cenário francês, seja para
desdobra-la, como será o caso de Georges Bataille, Eric Weil, Maurice Blanchot e
Jacques Lacan, seja para recusá-la, como será o caso de Jean-Paul Sartre e mesmo de
Gilles Deleuze, que irá contrapor o escravo hegeliano ao senhor nietzscheano em
Nietzsche e a filosofia.
Quando a temática do reconhecimento retornar à filosofia alemã, agora dentro
das gerações posteriores da Escola de Frankfurt, o recurso ao pensamento hegeliano
passará preferencialmente pela Filosofia do direito, e não exatamente pela
Fenomenologia do Espírito. Dois exemplos privilegiados das leituras feitas da
dialética do senhor e do escravo nesta seara será “Caminhos da
destranscendentalização”, de Jürgen Habermas e “Do desejo ao reconhecimento:
fundamentos hegelianos da consciência-de-si”, de Axel Honneth.
Já no interior do recente hegelianismo norte-americano, teremos um debate
constante a respeito da dialética do senhor e do escravo feito por Robert Pippin
(“Hegel sobre consciência-de-si: desejo e morte na Fenomenologia do Espírito”),
John McDowell (“O Eu perceptivo e o self empírico: em direção a uma leitura
heterodoxa da Dialética do senhor e do escravo na Fenomenologia de Hegel”) e o
texto de Robert Brandom: “A estrutura do desejo e do reconhecimento”.
Lembremos ainda de dois trabalhos singulares que trazem novas dimensões
relevantes de leitura. Primeiro, um trabalho na confluência entre estas três tradições, a
saber, Seja meu corpo: dominação e servidão na filosofia hegeliana, de Judith Butler
e Catherine Malabou. Segundo, a interpretação de Susan Buck-Morss a respeito da
ligação entre a elaboração da dialética do senhor e do escravo e a revolta dos escravos
no Haiti (Hegel e Haiti).
Esta pluralidade de estratégias de leituras nos coloca um problema importante estrutura e unidade do conceito [descrição de estados do mundo] é idêntica a estrutura
de interpretação. Por isto, sugiro em um primeiro momento retornar ao texto de Hegel e unidade do eu”64. Assim, o questionamento sobre a verdade da certeza de si será,
a fim de propor uma leitura que tentará ser imanente aos dispositivos colocados em necessariamente, questionamento a respeito da verdade sobre o saber dos objetos. É
circulação por Hegel. Isto nos permitirá, em um segundo momento, medir melhor o tendo tais questões em vista que devemos ler o primeiro parágrafo do nosso trecho:
impacto das leituras posteriores em sua capacidade de explorar dimensões esquecidas
do texto. Nos modos precedentes da certeza, o verdadeiro é para a consciência algo
outro que ela mesma. Mas o conceito deste verdadeiro desaparece
Eu e objeto como duplos (verschwindet) na experiência que a consciência faz dele. O objeto se mostra,
antes, não ser em verdade com era imediatamente em si: o ente da certeza
Talvez a maneira mais adequada de ler esse trecho da Fenomenologia do sensível, a coisa concreta da percepção, a força do entendimento, pois esse
Espírito seja lembrando desta afirmação de Lukacs: “na época da redação da Em-si resulta ser uma maneira, como o objeto é somente para um outro. O
Fenomenologia, Hegel concebe sua filosofia como a forma intelectual de uma nova conceito de objeto se supera no objeto efetivo, a primeira representação
forma da história universal”63. De fato, Hegel escreve a Fenomenologia no momento imediata se supera na experiência e a certeza vem a perder-se na verdade.
da invasão das tropas francesas na Alemanha. Fato que ele compreende como a Surgiu porém agora o que não emerge nas relações anteriores, a saber, uma
oportunidade da Alemanha romper o atraso e abrir suas portas para um tempo certeza [subjetiva] igual à sua verdade [objetiva], já que a certeza é para si
reinstaurado. Sua filosofia será assim a expressão de uma época pós-revolucionária mesma seu objeto, e a consciência é para si mesma a verdade. Sem dúvida, a
que faz emergir uma nova figura do tempo histórico e da consciência. Hegel quer consciência é também nisso um ser-outro, isto é, a consciência diferencia
produzir a escrita deste tempo, daí a forma completamente singular e inovadora com (unterscheidet) [algo de si mesmo] mas de tal forma que ela é, ao mesmo
que a Fenomenologia do Espírito será escrita. Ela é uma espécie de romance de tempo, um não-diferenciar (nicht Unterschiedenes) [já que este algo diferente
formação que descreve o despertar da consciência em direção à apreensão reflexiva ainda é ela mesma]65.
de sua própria essência. E no interior deste movimento, o primeiro momento
fundamental de ruptura ocorre quando a consciência rompe a ilusão de uma apreensão Encontramos aqui um resumo que visa mostrar o que realmente estava em jogo na
imediata do mundo enquanto objeto da experiência dotado de estruturas e seção precedente. Enquanto consciência, a medida da verdade era fornecida pela
determinações naturalizadas. Ela havia se confrontado ao mundo a partir das adequação entre representações mentais e objetos. No entanto, o objeto da experiência
estruturas da sensibilidade, da percepção e do entendimento. Em todos esses casos, sempre ultrapassava (ou melhor, sempre invertia) as representações naturais do
seu objeto parecia fruto de categorias naturalizadas. Por isto, a primeira ruptura pensar. Em cada um destes momentos, a consciência parecia perder a objetividade da
fundamental dirá respeito a descoberta de que a essência do mundo humano é o sua certeza, ou seja, a crença de que seu saber era capaz de descrever estados de
próprio ser humano. coisas independentes e dotados de autonomia metafísica.
É tendo tal reversão em vista que devemos abordar o capítulo IV da No entanto, Hegel afirma que surgiu agora aquilo que, na Introdução, ele havia
Fenomenologia. Lembremos inicialmente de seu título: “B. Consciência de si: a chamado de meta: ‘onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde o conceito
verdade da certeza de si mesmo”. Este era o título original da nossa seção. Neste corresponde ao objeto e o objeto ao conceito”66, ou seja, surgiu uma certeza igual à
sentido, ele se diferencia da seção precedente: “A. Consciência”, com seus três verdade. Este surgir eclode quando o saber compreende que seu objeto é a própria
capítulos dedicados à certeza sensível, à percepção e ao entendimento. O subtítulo da consciência e que lá onde ele acreditava estar lidando com objetos autônomos, ele
seção é, na verdade, um comentário do seu sentido. Hegel usará expediente estava lidando com a própria estrutura do saber enquanto o que determina a
semelhante apenas em outra seção: “C. (AA) Razão: certeza e verdade da razão”. configuração do que pode aparecer no interior do campo da experiência. “É para a
No caso da consciência de si, o subtítulo não poderia ser mais apropriado. consciência que o Em-si do objeto e seu ser-para-um-Outro são o mesmo” 67 . Daí
Com a consciência de si, entramos naquilo que Hegel chama de “terra pátria da porque não se trata mais de tematizar a consciência como consciência de objeto, mas
verdade”. Ou seja, a verdade encontra enfim seu fundamento. Ao contrário, na seção como consciência de consciência, consciência das estruturas do pensar da
“Consciência”, a verdade encontrava-se alienada em solo estranho, já que ela sempre consciência, ou ainda, consciência de si (Selbstbewustssein).
era pensada como adequação a um objeto independente que trazia, em si mesmo, a Hegel afirma então que, enquanto consciência de si:
verdadeira medida do saber.
Mas vemos que, inicialmente, esta verdade não é apresentada como “a verdade O Eu é o conteúdo da relação e a relação mesma, defronta um Outro [pois
do objeto”, mas “a verdade da certeza de si mesmo”; quer dizer, a consciência de si toma a si mesmo como objeto] e ao mesmo tempo o ultrapassa; e esse Outro,
apresenta a natureza verdadeira da certeza subjetiva de si, da certeza subjetiva da para o Eu, é apenas ele próprio [já que ele toma a si mesmo como objeto]68.
minha própria auto-identidade e auto-constituição. Neste sentido, podemos dizer que
nossa seção visa mostrar como o desvelamento da verdadeira natureza da certeza
subjetiva de si será o fundamento para a re-orientação do saber verdadeiro sobre os 64
BRANDOM, Some pragmatist themes in Hegel´s idealism, pag. 210
objetos do mundo. Operação possível devido ao postulado idealista de que “a 65
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
66
HEGEL, Fenomenologia, par. 80
67
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
63 68
LUKACS, Gyorg; El joven Hegel, p. 442 HEGEL, idem
Afirmações desta natureza podem se prestar a vários mal-entendidos. Pode afirmar que: “Toda constituição transcendental é uma instituição social”71, no sentido
parecer que Hegel afirma, em uma bela demonstração de idealismo absoluto, que o Eu de que tudo o que tem status normativo é uma realização social.
não é apenas o que fornece a forma do que aparece (como em Kant ao insistir que o Esta dupla articulação só será possível se mostrarmos que a estrutura do Eu já
objeto qualquer das categorias do entendimento era o correlato do Eu penso ou da é, desde o início, uma estrutura social e que a idéia do Eu como individualidade
unidade da consciência), mas também o conteúdo, a matéria do que aparece. Só assim simplesmente constraposta à universalidade da estrutura social é rapidamente posta
Hegel poderia afirmar que o Eu é, ao mesmo tempo, o conteúdo da relação (entre em cheque a partir do momento em que compreendemos, de maneira correta, o que
saber e objeto) e a própria relação (a forma através da qual o saber dispõe o que está em jogo na gênese do processo de individualização de Eus socializados. Hegel,
aparece). de fato, quer levar às últimas conseqüências esta idéia de que o Eu já é desde o início
No entanto, lembremos como Hegel retomará colocações desta natureza no uma estrutura social mostrando as conseqüências desta proposição para a
parágrafo 167, ao lembrar que a consciência-de-si não e apenas a “tautologia sem compreensão do sujeito do conhecimento, do sujeito da experiência moral, o sujeito
movimento do ‘Eu sou Eu’” pois “enquanto para ela a diferença não tem a figura do do vínculo político e o sujeito da fruição estética. O Eu nunca é uma pura
ser, ela não é consciência-de-si”. A partir daí, Hegel pode então fornecer sua individualidade, mas: “os indivíduos são eles mesmos de natureza espiritual e contém
definição de consciência-de-si: neles estes dois momentos: o extremo da singularidade que conhece e quer para si e o
extremo da universalidade que conhece e quer o que é substancial”72.
A consciência-de-si é a reflexão, a partir do ser do mundo sensível e No entanto, nada disto nos foi apresentado até agora no interior do texto da
percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser-Outro (die Rückkehr als Fenomenologia do Espírito. Novamente, os primeiros passos desta operação
dem Anderssein)69. complexa será apresentado de maneira abrupta. No parágrafo 167, ao lembrar que a
noção de “fenômeno”, enquanto “diferença que não tem em si nenhum ser” (já que é
Ou seja, a consciência-de-si é este movimento de refletir-se no ser do mundo sensível apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da unidade da consciência-de-si
e percebido e retornar a si desta alienação no que tem valor de um Outro, de um consigo mesma mas, ao contrário, era a própria clivagem (já que a essencialidade está
oposto à consciência. Ou seja, o Outro que o Eu traz consigo não é apenas uma outra sempre em um Outro inacessível ao saber: a coisa-em-si), Hegel afirma: “Essa
consciência, mas um outra consciência que porta um outra perspectiva de apreensão unidade [da consciência-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a
do mundo, uma perspectiva que, de uma certa forma, me descentra. Nem toda outra consciência-de-si é desejo em geral (Begierde überhaupt)”73.
consciência é um Outro para mim, mas apenas aquela que traz uma perspectiva que O que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de “desejo em
entra em conflito com minha perspectiva. Neste sentido, o Outro pode ser não apenas geral”, ou seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido
uma outra consciência, mas também aquilo que resiste a meu modo de apreensão do geral, como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos
mundo. Esta definição de consciência-de-si é idêntica à definição hegeliana de compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se alojado no
“experiência”: “Experiência é justamente o nome desse movimento em que o “interior das Coisas” como essência para além dos fenômenos, unidade entre o saber e
imediato, o não-experimentado, ou seja, o abstrato – quer do ser sensível, quer do a determinação essencial dos objetos só será possível a partir do momento em que
Simples apenas pensado – se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso – compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas como relações de
como é também propriedade da consciência – somente então é exposto em sua conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e satisfação. Percebemos
efetividade e verdade”70. Isto apenas demonstra como a experiência fenomenológica é agora o tamanho da inflexão em jogo na passagem da consciência à consciência-de-si.
necessariamente experiência de constituição reflexiva da consciência-de-si. A princípio, uma afirmação desta natureza pareceria algo totalmente
temerário. Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo
Desejo, interação social e a terra pátria da verdade selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou
estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche
No entanto, há ainda uma segunda razão para a passagem da consciência à e Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é
consciência-de-si. Não se trata apenas de dizer que, em um dado momento do trajeto racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos,
fenomenológico, a consciência descobre que o objeto tem a mesma estrutura do Eu interesses que nos leva a recuperar a dignidade filosófica da categoria de “desejo”?
(sendo que este “mesmo” implica em uma igualdade especulativa, igualdade que De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso. Neste sentido, podemos
internaliza a diferença). Como eu dissera anteriormente, a grosso modo, a consciência seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin: “Hegel parece estar
compreende que sua expectativas cognitivo-instrumentais são dependentes de modos dizendo que o problema da objetividade, do que estamos dispostos a contar como uma
de interação social e de práticas sociais. Em última análise, toda operação de reivindicação objetiva é o problema de satisfação do desejo, que a ‘verdade’ é
conhecimento depende de uma configuração prévia de um “background” normativo totalmente relativizada por fins pragmáticos (...) Tudo se passa como se Hegel
socialmente partilhado, no qual todas as práticas sociais aceitas como racionais estão estivesse reivindicando, como muitos fizeram nos séculos XIX e XX, que o que conta
enraizadas, e aparentemente não-problemático que orienta as aspirações da razão em
dimensões amplas. Esta idéia foi posta de maneira elegante por Robert Brandom ao
71
BRANDOM, idem
72
Ver a este respeito SOUCHE-DAGUES, Négation et individualitá dans la pensée polítique
69
HEGEL, Fenomenologia, par. 167 hégélienne
70 73
HEGEL, Fenomenologia, par. 36 HEGEL, Fenomenologia, par. 167
como explicações bem-sucedidas dependem de quais problemas práticos queremos percepção, mas é também ser refletido sobre si; o objeto do desejo imediato é
resolver (...) que o conhecimento é uma função de interesses humanos”74. um ser vivo75.
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em
alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade a Dito pois que o desejo forneceria a nova perspectiva de estruturação das
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não ser relações entre consciência e objeto, agora sob o primado da consciência-de-si, Hegel
que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses práticos não são guiados pelo procura determinar qual é a primeira forma de aparição do objeto do desejo. Esta
particularismo de apetites e inclinações mas que, ao se engajar na dimensão prática primeira forma de aparição não é um objeto autônomo ou uma outra consciência-de-
tendo em vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as si. Na verdade, o primeiro objeto do desejo é a vida.
aspirações universalizantes da razão. Mas como defender tal posição partindo da Neste ponto, Hegel retorna a antigas colocações que animaram seus escritos de
centralidade do desejo na constituição da consciência-de-si? juventude. Na sua juventude, Hegel já tinha para si alguns traços gerais da tarefa
Claro está que precisaríamos aqui adentrar na especificação do conceito filosófica que irá anima-lo a partir da Fenomenologia do Espírito. Hegel compreendia
hegeliano de desejo. Devemos mostrar como o desejo naturalmente abole sua que a tarefa filosófica fundamental do seu tempo era fornecer uma saída para as
perspectiva particularista para se reconciliar com a universalidade de uma espécie de dicotomias nas quais a razão moderna havia se enredado. Lembremos como Hegel
interesse geral. No entanto, Hegel não faz exatamente isto nos parágrafos seguintes. definia os tempos modernos, ou seja, seu próprio tempo, como este tempo no qual o
Só teremos uma descrição mais adequada do processo do desejo entre os parágrafos espírito perdeu sua vida essencial e está consciente desta perda e da finitude de seu
174 e 177. Neste trecho, teremos mais indicações a respeito deste modo de relação conteúdo.
entre sujeito e seu-Outro (no caso, o objeto) que Hegel já havia tematizado no Vimos até agora como a Fenomenologia do Espírito apresentava algumas
capítulo precedente ao falar da infinitude. A sua maneira, o desejo em Hegel será a destas dicotomia. O saber pensado como representação, ou seja, enquanto disposição
posição desta infinitude tematizada no final do capítulo sobre o entendimento. Mas posicional dos entes diante de um sujeito, não podia deixar de operar dicotomias e
Hegel será agora obrigado a, de uma certa forma, distinguir duas modalidades de divisões no interior do que se oferece como objeto da experiência entre aquilo que é
desejo (o desejo vinculado à consumação do Outro e o desejo que forma – ou seja, o para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se dá através da receptividade da
trabalho), da mesma forma com que ele terá de distinguir duas modalidade de intuição e aquilo que é ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas
infinitude: uma verdadeira e outra ruim. estruturas reflexivas de representação, entre o que é da ordem do espírito e o que é da
ordem da natureza, entre o que é acessível à linguagem e o que é pura particularidade
O ciclo da vida inefável.
Para a geração de Hegel, a filosofia moderna deve ultrapassar um sistema de
Mas antes de entrarmos nestas considerações sobre a noção hegeliana de dicotomias que encontrou sua figura mais bem acabada na maneira kantiana de
desejo, devemos seguir o texto da Fenomenologia a fim de dar conta do que está definição do primado da faculdade do entendimento na orientação da capacidade
posto em seguida, nos parágrafos 168 a 172. Ao apresentar a noção de que a cognitiva da consciência. Hegel partilha o diagnóstico de pós-kantianos como Fichte e
consciência-de-si é desejo em geral, Hegel afirma que a consciência tem pois diante Schelling de que, na filosofia kantiana, o primado da reflexão e do entendimento,
de si um duplo objeto: um é ela mesma (já que ela é consciência-de-si), o outro é o produziu cisões irreparáveis. Daí porque “o único interesse da razão é o de suspender
objeto da certeza sensível e da percepção, ou seja, este objeto tal como aparece antíteses rígidas”76.
imediatamente à consciência. No entanto, este objeto está “marcado com o sinal do Em Hegel, uma das primeiras formas de definição do modo de anulação de
negativo”: ele foi negado enquanto objeto autônomo. tais dicotomias foi a tematização de uma espécie de solo comum, de fundamento
Mas, para nós, ou seja, para aquele que avalia o trajeto fenomenológico da primeiro, a partir do qual sujeito e objeto se extrairiam, isto na mais clara tradição
consciência na posteridade, esta negação não era uma negação simples (o que nos schellinguiana. Este fundamento primeiro era a vida. Daí porque Hegel poderá
levaria a uma anulação simples de toda independência do objeto), ela era uma afirmar, na juventude: “Pensar a pura vida, eis a tarefa”, já que “A consciência desta
negação dialética. Ao negar a pura particularidade da certeza sensível, ao ter a pura vida seria a consciência do que o homem é”. Como bem viu Hyppolite: “a pura
experiência da clivagem do objeto em unidade e multiplicidade, a consciência não vida supera essa separação [produzida pelo primado do entendimento] ou tal
estava apenas tendo a experiência da inadequação do seu saber sobre as coisas. Ela aparência de separação; é a unidade concreta que o Hegel dos trabalhos de juventude
estava tendo a experiência da manifestação da vida. Por isto, Hegel pode afirmar: ainda não consegue exprimir sob forma dialética”77 . A vida supera esta separação
porque ela forneceria o solo comum no qual sujeito e objeto se encontram: todos eles
Para nós, ou em si, o objeto que para a consciência-de-si é o negativo retornou estariam substancialmente enraizados no ciclo da vida que, por sua vez, forneceria,
sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a consciência também fez o uma perspectiva privilegiada de compreensão racional do que se apresenta. Ter a vida
mesmo. Mediante esta reflexão sobre si (Reflexion in sich), o objeto veio-a-ser por objeto do desejo é reconhecer, no próprio objeto, a substância que forma
(geworden) vida. O que a consciência-de-si diferencia de si como ente não tem consciências-de-si.
apenas, enquanto é posto como ente, o modo da certeza sensível e da
75
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
76
HEGEL, Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 38
74 77
PIPPIN, The satisfaction of self-consciousness, p. 148 HYPPOLITE, Gênese e estrutura, p. 162
Neste sentido, não é por outra razão que Hegel apresenta a vida logo na indivíduo separado e reencontrar nela esta totalidade da vida”82. Daí porque Hegel
entrada da seção dedicada à consciência-de-si. Enquanto consciência que reconhece poderá afirmar, ao final, que a vida: “é o todo que se desenvolve, que dissolve seu
as dicotomias nas quais uma razão compreendida a partir da confrontação entre desenvolvimento e que se conserva simples nesse movimento”83.
sujeito e objeto se enredara, a consciência-de-si procura um background normativo Mas, como vimos, a vida só é esta infinitude para a consciência-de-si, ela não
intersubjetivamente partilhado a partir do qual todos os modos de interação entre para-si. Neste sentido, a infinitude presente na vida deve se manifestar à consciência-
sujeito e objeto se extraem. A vida aparece inicialmente como este background. O que de-si. Como a vida é o próprio meio do qual a consciência-de-si faz parte, ela deve
Habermas vira muito bem ao afirmar: “Contra a encarnação autoritária da razão descobrir inicialmente em si mesma tal infinitude. E a primeira manifestação de tal
centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que infinitude se dará através do desejo. Uma manifestação ainda imperfeita pois solidária
se manifesta sob o título de amor e vida”78. do aparecimento de um infinito ruim. Mas como pode uma infinitude ser ruim?
No entanto, a vida é ainda uma figura incompleta porque seu movimento não
é para-si, ou seja, não é reflexivamente posto e apreendido. Mas não se trata, por Hegel e o desejo
outro lado, de simplesmente negar, através de uma negação simples, o que a reflexão
sobre a vida traz. De fato, há uma certa continuidade entre a vida e a consciência-de-si Para Hegel, o desejo (Begierde) é a maneira através da qual a consciência-de-
claramente posta por Hegel nos seguintes termos: “A consciência-de-si é a unidade si aparece em seu primeiro grau de desenvolvimento. Neste sentido, ele é, ao mesmo
para a qual é a infinita unidade das diferenças, mas a vida é apenas essa unidade tempo, modo de interação social e modo de relação ao objeto. Além do desejo, Hegel
mesma, de tal forma que não é ao mesmo tempo para si mesma”79. apresenta, ao menos, outros dois operadores reflexivos de determinação da
Mas antes de avançarmos, devemos nos perguntar: como Hegel compreende a consciência-de-si: o trabalho e a linguagem.
vida e seu movimento, seu ciclo? De maneira esquemática, podemos dizer que a vida Na aula passada, insisti que Hegel vinculava-se a uma longa tradição que
é fundamentalmente compreendida a partir da tensão entre a universalidade da remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação da falta. Isto fica muito
unidade da vida e a particularidade do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora claro em um trecho da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel afirma:
das formas viventes. Por isto, ela pode aparecer como figura da infinitude, já que cada
um é encarnação da contradição entre unidade e indivíduo [lembrar dos estudos O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
posteriores de biologia, em especial os de Weismann, sobre soma – substância mortal- – ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
e plasma – substância imortal]. Isto nos explica porque Hegel havia dito, ao lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um
apresentar o conceito de infinitude no capítulo sobre o entendimento: “Essa infinitude ser, mas uma atividade absoluta84.
simples – ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a lama
do mundo, o sangue universal”80. No nosso trecho, Hegel descreve o ciclo da vida do A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
parágrafo 169: aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um Outro (o objeto) é
Seu ciclo se encerra nos momentos seguintes. A essência é a infinitude, como uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas
ser-suprimido de todas as diferenças [a vida é o que retorna sempre a si na uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si
multiplicidade de diferenças do vivente], o puro movimento de rotação, a mesma por objeto.
quietude de si mesma como infinitude absolutamente inquieta, a Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
independência mesma em que se dissolvem as diferenças do movimento; a aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
essência simples do tempo que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
sólida do espaço. Porém, nesse meio simples e universal, as diferenças que ocorre:
também estão como diferenças, pois essa universal fluidez [da vida como
unidade] só possui sua natureza negativa enquanto é um suprimir das mesmas, O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfação do desejo [notemos
mas não pode suprimir as diferenças se essas não têm um subsistir81. esta articulação fundamental: a certeza de si mesmo é estritamente vinculada
aos modos de satisfação do desejo] são condicionados pelo objeto, pois a
Todo o desenvolvimento do parágrafo 170 até o parágrafo 172 é uma longa descrição satisfação ocorre através do suprimir desse Outro, para que haja suprimir, esse
sobre este processo de afirmação das diferenças contra o fundo de unidade da vida e Outro deve ser. A consciência-de-si não pode assim suprimir o objeto através
de dissolução, ou o perecimento, das mesmas diferenças através da afirmação do de sua relação negativa para com ele, pois essa relação antes reproduz o
fluxo contínuo da vida enquanto fluxo de multiplicidade de figuras que não subsistem. objeto, assim como o desejo85.
Como bem lembra Hyppolite: “Pode-se partir da vida como todo (natura naturans) e
chegar aos indivíduos separados (natura naturata) e pode-se igualmente partir do

78 82
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 39 in HEGEL, Phénoménologie de l´Esprit, p. 148, nota 9
79 83
HEGEL, Fenomenologia, par. 168 HEGEL, Fenomenologia, par. 171
80 84
HEGEL, Fenomenologia, par. 162 HEGEL, Enciclopédia, par. 427 - adendo
81 85
HEGEL, Fenomenologia, par. 169 HEGEL, Fenomenologia, par. 175
A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas uma contradição e é pleno do sentimento de sua identidade sendo-em-si com si
uma função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta mesmo, assim como do sentimento oposto de sua contradição interna [vinda do
fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de auto-posição vínculo ao objeto], já surge necessariamente o impulso (Trieb) em suprimir tal
da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no objeto, tomar a si contradição. O [ser] não-vivo não tem impulso algum, pois ele não pode suportar a
mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na contradição, mas perece quando o Outro de si irrompe em si"89. [lembrar como Hegel
verdade, a consciência procura a si mesma. Daí porque Hegel pode afirmar que, nunca operou com distinções estritas entre impulso e vontade livre - entre desejo
inicialmente, o desejo aparece em seu caráter egoísta. Já na Filosofia do espírito, de patológico por objetos e vontade ligada à pura forma de uma lei que a consciência
1805, Hegel oferece a estrutura lógica deste movimento que serve de motor para a erige para si mesma].
figura do desejo: "O desejante quer, ou seja, ele quer se pôr (es will sich setzen), se Mas voltemos à noção de que a satisfação do desejo é a reflexão da
fazer objeto (Gegenstande machen)"86. Isto implica inicialmente em tentar destruir o consciência de si sobre si mesma, ou ainda, reflexão redobrada. Hegel procurava com
Outro (o objeto) enquanto essência autônoma. No entanto, satisfazer-se com um isto fornecer uma saída para o problema da consciência-de-si, ou seja, da consciência
Outro aferrado à positividade de uma condição de mero objeto (no sentido que toma a si mesma como objeto, que não fosse tributária da clivagem entre eu
representacional) significa não realizar a auto-posição da consciência enquanto empírico (objeto para a consciência) e eu transcendental. De fato: “quando a
consciência. A consciência só poderá se pôr se ela desejar um objeto que duplica a consciência-de-si é o objeto, é tanto Eu como objeto”, mas como operar tal dualidade
própria estrutura da consciência. Ela só poderá se satisfazer ao desejar uma outra sem cair na dicotomia entre empírico e transcendental?
consciência, ao intuir a si mesmo em uma outra consciência. “A consciência-de-si só Inicialmente, Hegel apresentou, através da vida, a idéia de um fundamento
alcança satisfação em uma outra consciência-de-si”. Daí porque: comum a partir do qual sujeito e objeto se extraem. Ou seja, ao invés da
fundamentação das operações de auto-determinação através da posição de estruturas
A satisfação do desejo é a reflexão da consciência de si sobre si mesma, ou a transcendentais, Hegel apresentou um solo comum que se expressa tanto no sujeito
certeza que veio a ser verdade. Mas a verdade dessa certeza é antes a reflexão quanto no objeto. No entanto, a vida é um fundamento imperfeito, pois não é
redobrada (gedoppelte Reflexion), a duplicação da consciência-de-si87. reflexivo, não pode ser posto reflexivamente, já que a vida não é para si.
Hegel apresenta então a noção, mais completa, de “reflexão redobrada”, ou
Podemos entender melhor este ponto se levarmos a sério a relação necessária seja, a noção de que a consciência só pode se pôr em um objeto que não seja
entre desejo e impulso (Trieb – termo de difícil tradução que atualmente, devido à exatamente um objeto, mas que seja por sua vez uma reflexão, um movimento de
influência psicanalítica, é normalmente traduzido por “pulsão”). Tanto na Filosofia do passar ao outro e de retornar a si desta alienação. Daí porque a consciência só pode
Espírito de 1805 quanto no livro da Enciclopédia dedicado à Filosofia do Espírito, ser consciência-de-si ao se pôr em uma outra consciência-de-si. O objeto deve se
Hegel insiste na distinção entre desejo e impulso. Distinção que visa apenas mostrar mostrar como “em si mesmo negação”, no sentido de portar esta falta que o leva a
como o segundo é a verdade do primeiro. O primeiro ainda estaria aferrado a uma procurar sua essência no seu ser-Outro. Sobre a noção de ‘reflexão redobrada’
dicotomia não superada entre o subjetivo e o objetivo. Daí porque a objetividade podemos especificá-la mais afirmando se tratar de um movimento que é, ao mesmo
aparece como o que deve ser destruído para que a subjetividade possa se pôr. Neste tempo, reflexão-em-si e reflexão-no-Outro. A reflexão-em-si, Hegel a define na
sentido, sob o império do desejo, a subjetividade é exatamente “o que é privado de Enciclopédia, é a própria identidade, quer dizer, esta referência-a-si que subsiste
outro, privado de conteúdo e ela sente esta falta”88. Ou seja, a falta enquanto desejo é através do excluir de toda a diferença. Já a reflexão-no-Outro é o momento mesmo da
a primeira manifestação de uma subjetividade que já não se reconhece mais no que é diferença ou do ser-fora-de-si. Logo, a reflexão duplicada nada mais é do que esta
posto como determinidade, ou que já não se confunde como o fluxo simples e referência-a-si que é, ao mesmo tempo, referência-a-Outro. Uma espécie de jogo de
contínuo da vida. A subjetividade que é desejo aparece então como abstração de toda espelhos duplicado. Toda vez que a consciência tenta fazer referência a si ela acaba
determinidade, mas uma abstração que, por ser desejo, procura se intuir no objeto e fazendo referência a um Outro e vice-versa.
esta é a contradição que anima a consciência-de-si entre ser algo que é puramente Neste sentido, o problema do fundamento da consciência-de-si só pode ser
para-si e algo que é também em-si. resolvido através de um recurso à dinâmica de reconhecimento entre desejos.
Por outro lado, o impulso é, ao mesmo tempo, o fundamento e a superação do Dinâmica de reconhecimento que nos levará a um “Eu que é nós e um nós que é eu”.
desejo. Em 1805, Hegel afirmava que o desejo tinha ainda algo de animal por cair na Por trás deste eu que é nós e de um nós que é eu, há a certeza de que a consciência só
ilusão de que sua satisfação estava em um objeto externo e particular (daí a pode ser reconhecida quando seu desejo não for mais desejo por um objeto do mundo,
contradição na qual ele necessariamente se enredava). Já o impulso procede da mas desejo de outro desejo, ou antes, desejo de reconhecimento. Assim, entramos no
oposição suprimida entre subjetivo e objetivo, o que significa, entre outras coisas, que dia espiritual da presença. A experiência fenomenológica do advento deste dia
sua satisfação não é mais marcada exclusivamente pela particularidade do objeto, mas espiritual da presença é o tema do que ficou conhecido como “a dialética do Senhor e
se revela como portando “algo de universal”. Ou seja, o impulso implica em uma do Escravo”.
tentativa de reconciliação com o objeto através da realização desta intuição da falta no
objeto. Daí porque: "Lá onde um [ser] idêntico a si mesmo comporta em si mesmo
86
HEGEL, Jenaer Realphilosophie, Hamburg: Felix Meiner, 1969, p. 194
87
HEGEL, Fenomenologia, par. 176
88 89
HEGEL, Filosofia do Espírito, HEGEL, Enciclopedia, Add, par.426
Lógicas do reconhecimento si. Daí porque Hegel pode dizer, a respeito das interações elementares entre
Aula 6 consciências-de-si:

Para a consciência-de-si, há uma outra consciência-de-si, ou seja, ela veio


Na aula passada, iniciamos as considerações sobre o capítulo dedicado á para fora de si [ela se vê como algo que vem da exterioridade, Hegel chega
consciência-de-si. Terminamos na discussão sobre a estrutura do conceito a falar em ser-fora-de-si - Aussersichsein]. Isso tem dupla significação:
hegeliano de desejo, assim como na submissão das dinâmicas do desejo a primeiro, ela se perdeu a si mesma, pois se acha em uma outra essência
processos de reconhecimento. Comecemos hoje então pelo comentário desta [ou seja, ela se alienou a ver que ela é primeiramente para uma outra
frase na abertura da seção sobre a “Dependência e Independência da consciência]. Segundo, com isso ela suprimiu o Outro, pois não vê o Outro
consciência-de-si: dominação e servidão”: como essência, mas é a si mesma que vê no Outro [ela só vê, no outro, a
projeção de si]92.
A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si
para uma Outra, quer dizer, só é como algo reconhecido90. Ou seja, a primeira manifestação do Outro é como aquele que me leva à
perda de mim mesmo por me fazer defrontar com algo de mim que se dá na
Esta afirmação sintetiza todo o processo que se desdobrará através da minha exterioridade. O Outro não é aquele que me confirma em minhas certezas.
figura da consciência-de-si. A consciência-de-si só é na medida em que se põe Ele é aquele que me destitui, que me despossui de minhas ilusões de
para um Outro e como um Outro. Ela é, neste sentido, a realização da noção de independência. Vejo no Outro apenas a imagem de mim mesmo, ou apenas a
infinitude (enquanto o ter em si a negação de si sem, com isto, produzir um imagem de mim como um outro. Já vimos esta dinâmica quando falamos do
objeto desprovido de conceito). Esta dinâmica da infinitude, ou ainda, esta desejo. Agora, Hegel lembra que a perda de si é também perda do Outro [já que o
unidade na duplicação, se dará através de operações simétricas de Outro também só é enquanto reconhecido]. “A consciência-de-si deve superar
reconhecimento. No entanto, elas não estão disponíveis à consciência-de-si. esse seu-ser-Outro”. Esta superação ou des-alienação da consciência é
Neste sentido, é extremamente sintomático que Hegel não faça preceder a necessariamente retorno a si através da construção de um conceito renovado de
dinâmica do reconhecimento de considerações sobre o amor, tal como acontece auto-identidade (não mais a auto-identidade enquanto experiência imediata de
na Filosofia do Espírito de 1805. Pois o amor seria esta posição de si a si, mas a identidade enquanto o que é reconhecido pelo Outro). No mesmo
reconhecimento mútuo na qual “cada um se sabe no outro e cada um renunciou a movimento, ela é reconhecimento da sua diferença para com o Outro. Diferença
si mesmo”91. Ele poderia fornecer uma base de socialização humana que nos que poderá ser então reconhecida porque a consciência sabe que ela traz e si
permitiria pensar processos sociais mais amplos de reconhecimento. mesma a diferença em relação a si mesma, ou seja, ela verá no Outro a mesma
Ao contrário, Hegel não dará lugar algum para o amor nas suas diferença que ela encontra nas suas relações à si. Daí porque Hegel precisa dizer:
considerações fenomenológicas sobre a dinâmica do reconhecimento.
Atualmente, conhecemos projetos filosóficos (Habermas, Honneth) que vêem Mas esse movimento da consciência-de-si em relação a uma outra
nisto o sinal do abandono de um conceito forte de intersubjetividade primitiva consciência-de-si se representa, desse modo, como o agir (Tun) de uma
da vida humana em prol de uma perspectiva centrada nos processos de auto- delas. Porém esse agir de uma tem o duplo sentido (gedoppelte Bedeutung
mediação da consciência individual. No entanto, podemos partir de outra – um sentido/referência redobrado) de ser tanto o seu agir como o agir da
perspectiva. Podemos dizer que Hegel age como quem acredita agora que os outra; pois a outra é também independente, encerrada em si mesma, nada
processos mais elementares de interação social só são legíveis no interior de há nela que não mediante ela mesma93.
dinâmicas de conflito (o que não é estranho a um Thomas Hobbes, por exemplo).
Ou seja, o conflito é o primeiro dado na constituição dos processos de interação O processo de reconhecimento passará então por uma certa pragmática pois é o
social. E mesmo a “vida” enquanto fundamento de onde se extraem sujeito e agir que realiza a posição da consciência. Hegel apenas lembra aqui que o
objeto foi pensada a partir do conflito entre a universalidade simples da vida e a problema da reconhecimento deve ser necessariamente um problema de como
multiplicidade de suas figurações diferenciadoras. práticas sociais são constituídas. Podemos falar aqui em práticas sociais porque
Hegel pode dizer que os processos mais elementares de interação social Hegel nos lembra, com propriedade, que todo agir tem um sentido redobrado:
são necessariamente conflituais porque, para ele, tudo se passa como se toda ele é, ao mesmo tempo agir do sujeito e agir do Outro. Todo agir pressupõe um
individuação fosse necessariamente uma alienação. Conseqüência simples do fato campo partilhado de significação no qual o agir se inscreve. Pois todo agir
de que toda exteriorização é necessariamente alienação. A consciência-de-si só pressupõe destinatários, é agir feito para um Outro e inscrito em um campo que
pode ser reconhecida enquanto consciência-de-si se se submeter à alienação de não é só meu, mas é também campo de um Outro. A significação do ato não é

90 92
HEGEL, Fenomenologia, par. 178 HEGEL, Fenomenologia, par. 179
91 93
HEGEL, Filosofia do Espírito HEGEL, Fenomenologia, par. 182
assim resultado da intencionalidade dos agentes, mas determinação que só se figuras, mas sim em conceitos, o que significa: em um ser-em-si diferente, que
define na exterioridade da intenção. imediatamente para a consciência não é nada diferente dela”96. Se não levamos
em conta este primado, a via se abre para a antropologização excessiva do
Por conseguinte, o agir tem duplo sentido (doppelsinnig), não só enquanto discurso hegeliano em detrimento de considerações sobre sua articulação lógica.
é agir quer sobre si mesmo, quer sobre o Outro, mas também enquanto Vejamos, por exemplo, como Hegel inicia a descrição deste movimento
indivisamente é o agir tanto de um quanto do Outro94. dialético:

Hegel não teme pensar a anatomia do ato através da dinâmica de ação e De início, a consciência-de-si é ser-para-si simples, igual a si mesma
reação própria ao jogo de forças, na qual a posição da força solicitada mediante o excluir de si de todo o outro. Para ela, sua essência e objeto
expressava-se necessariamente na posição da força solicitante e na qual um pólo absoluto é o Eu, e nessa imediatez ou nesse ser de seu ser-para-si é um
servia de determinação essencial ao outro pólo. Este movimento duplicado singular. O que é Outro para ela, está como objeto inessencial, marcado
demonstrava como a realização da força era necessariamente o desaparecer do com o sinal do negativo97.
seu conceito simples inicial, ou ainda como o desaparecer da força era a
realização do seu conceito. No caso da interação entre consciências, veremos Se analisarmos a dialética do Senhor e do Escravo com cuidado, veremos
como a alienação de cada consciência no Outro já é a realização da consciência- que seu problema fenomenológico consiste na possibilidade de apresentação
de-si. Isto apenas demonstra como: (Darstellung – o termo é várias vezes utilizado por Hegel no texto) da consciência
como pura abstração, como puro Eu. Hegel é muito claro no que diz respeito à
Cada extremo é para o Outro o meio termo, mediante o qual é consigo importância deste movimento de: “apresentar-se a si mesmo como pura
mesmo mediatizado e concluído, cada um é para si e para o Outro, abstração”98 que é o motor da ação da consciência.
essência imediata sendo para si, que ao mesmo tempo só é para si através Notemos o ponto de partida. Hegel não diz algo como: “de início, a
dessa mediação. Eles se reconhecem como reconhecendo-se consciência-de-si é animada pela realização de suas necessidades, pela afirmação
reciprocamente95. de suas propriedades”, como seria em um estado de natureza hobbesiano. Ele
diz: “de início, a consciência-de-si é puro para-si”, ou seja, ela é independência
Introduzindo a dialética do Senhor e do Escravo absoluta, afirmação de sua transcendência em relação a tudo o que é para-Outro.
Tal apresentação como pura abstração é, na verdade, o fundamento da auto-
A partir do parágrafo 185, Hegel propõe-se analisar o processo de determinação da subjetividade. A subjetividade só aparece como movimento
manifestação, para a consciência-de-si, deste puro conceito de reconhecimento, absoluto de abstração (é por vincular o ser do sujeito ao ponto vazio de toda
desta duplicação da consciência-de-si em sua unidade. É a partir de agora que aderência imediata à empiria que Hegel continua vinculado à noção moderna de
teremos uma descrição fenomenológica da experiência de reconhecimento da sujeito). O primeiro movimento de auto-determinação da subjetividade consiste
consciência-de-si. Tal descrição visa fornecer algo como a “forma geral dos pois em negar toda sua aderência com a determinação empírica, consiste em
processos de reconhecimento e de interação social”. Não se trata exatamente de transcender o que a enraíza em contextos e situações determinadas “para ser
uma antropogênese, como encontraremos na leitura de Alexandre Kojève, sem apenas o puro ser negativo da consciência igual-a-si-mesma”. Para Hegel, a
dúvida, uma das mais célebres a respeito deste trecho da Fenomenologia do individualidade (Individualität) aparece sempre, em um primeiro momento,
Espírito. Não se trata de uma antropogênese, mas da exposição de uma lógica do como negação que recusa toda co-naturalidade imediata com a exterioridade
reconhecimento que será retomada em vários momentos da Fenomenologia do empírica. Por isto, Hegel deve afirmar:
Espírito, como nas figuras da consciência infeliz, na confrontação entre a
consciência vil e a consciência que julga, entre outros. A apresentação de si como pura abstração da consciência-de-si consiste
Por outro lado, uma leitura atenta do nosso trecho demonstra como o em mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva, ou em
verdadeiro alvo de Hegel encontra-se na crítica ao pensamento representativo e mostrar que não está vinculado a nenhum ser-aí (Dasein) determinado,
na meditação sobre as condições lógicas de passagem do pensamento nem à singularidade universal do ser-ai em geral, nem à vida99.
representativo ao pensamento especulativo através de considerações sobre o
lugar lógico do reconhecimento. O que nos explica por que, na perspectiva do
para nós (für uns), a DSE nos leva em direção ao advento de uma nova figura da
consciência, uma consciência que pensa e, neste momento, Hegel faz uma 96
HEGEL, Fenomenologia I, p. 134. "Dem Denken sich des Gegenstand nicht in Vorstellungen, oder
distinção importante entre objeto do pensamento (especulativo) e
Gestalten, sondern in Begriffen, das heit in einem unterschiednen Ansichsein, welches unmittelbar für
representação: “Para o pensar, o objeto não se move em representações ou em das Be wutsein kein unterschiednes von ihm ist" (HEGEL, PhG, p. 137)
97
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
98
HEGEL, Fenomenologia do espírito I, p. 159 - Die Darstellung seiner aber als der reinen
94
HEGEL, Fenomenologia, par. 183 Abstraction ...
95 99
HEGEL, Fenomenologia, par. 184 HEGEL, Fenomenologia, par. 187
Para Hegel, o sujeito moderno não era simplesmente fundamento certo do para a consciência que não seja para ela momento evanescente
saber, mas também entidade que marcado pela indeterminação substancial. Ele é (verschwindendes Moment); que ela é somente puro ser-para-si. O
aquilo que nasce através da transcendência em relação a toda e qualquer indivíduo que não arriscou a vida pode ser bem reconhecido como pessoa
naturalidade com atributos físicos, psicológicos ou substanciais. Como dirá [ou seja, como membro do vínculo social], mas não alcançou a verdade
várias vezes Hegel, o sujeito é aquilo que aparece como negatividade que cinde o desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente [o que
campo da experiência e faz com que nenhuma determinação subsista. Na demonstra que não se trata de descrever simplesmente o advento dos
Filosofia do Espírito, de 1805, ele não deixará de encontrar metáforas para falar modos de sociabilidade, mas de compreender como a consciência pode
deste sujeito que aparece como o que é desprovido de substancialidade e de ter a experiência da sua estrutura]102.
determinação fixa:
Esta distinção é fundamental. Hegel afirma que ser reconhecido como pessoa não
O homem é esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade é o mesmo que ser reconhecido como uma consciência-de-si independente. Ou
desta noite, uma riqueza de representações, de imagens infinitamente seja, o horizonte normativo dos processos de reconhecimento em Hegel não se
múltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que reduzem ao reconhecimento da minha individualidade como própria de uma
não existem como efetivamente presentes (...) É esta noite que “pessoa em geral” que tem certos direitos positivos e obrigações sociais
descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se intersubjetivamente asseguradas. O que não poderia ser diferente se
torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante de nós100. lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética, “pessoa” é uma
categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade (dominus),
Para além da ressonância poética do trecho, devemos simplesmente lembrar uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista por
como Hegel insistia que a própria constituição do sujeito enquanto pura Hegel como “expressão de desprezo”103 devido à sua natureza meramente
condição formal de um saber que seria eminentemente representativo (como o abstrata e formal advinda da absolutização das relações de propriedade. Tal
saber na modernidade) exigia uma operação de “negatividade”. Podemos articulação entre “pessoa” e “propriedade” servirá de fundamento para uma
inicialmente compreender tal “negatividade” como a posição da inadequação larga tradição de reflexão que chegará até as discussões recentes sobre a “self-
entre as expectativas de reconhecimento do sujeito e o campo de determinações ownership” como atributo fundamental da pessoa 104.
fenomenais. Neste sentido, Hegel poderia simplesmente compreender esta Na verdade, Hegel procura mostrar como a verdadeira autonomia da
negatividade que “supera a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que é consciência-de-si só pode ser posta em um terreno para além (ou mesmo para
apenas ente em geral”101 como “transcendentalidade”, tal como fizera, antes dele, aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de diretos positivos e
Kant ao insistir, por exemplo, na clivagem necessária entre “eu empírico” e “eu determinações individualizadoras. Por isto, tudo nos leva a crer que Hegel insiste
transcendental”. Mas a negatividade hegeliana não é a transcendentalidade que se trata de mostrar como a constituição dos sujeitos é solidária da
kantiana. Ela é manifestação, na empiria, daquilo que fundamenta a posição dos confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-
sujeitos. enraizamento que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos
Por isto, a apresentação de si deve aparecer inicialmente como um ato/um contextos particulares e nossas visões determinadas de mundo, ou seja, que se
agir que tende à morte do Outro, isto no sentido de ato que tende à negação assemelha à morte. A astúcia de Hegel consistirá em mostrar como o demorar-se
completa da essencialidade da perspectiva do Outro. Ela inclui o arriscar a diante desta negatividade é condição para a constituição de um pensamento do
própria vida, já que é afirmação de si através da negação de existência natural. que pode ter validade universal para os sujeitos.
Na Filosofia do Espírito, Hegel chega a falar: “é um suicídio na medida em que a Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento
consciência se expõe ao perigo”. Há uma espécie de prova aqui. A consciência também não podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por
inicialmente não foge da morte a fim de defender sua integridade de indivíduo. Habermas ao afirmar:
De certa forma, ela a procura a fim de provar para si mesmo sua liberdade e
independência. Eu me compreendo como ‘pessoa em geral’ e como ‘indivíduo
Esta luta de vida e morte entre as consciências é assim fundamentalmente inconfundível’ que não se deixa substituir por ninguém em sua biografia.
um problema de auto-determinação de uma subjetividade cujo fundamento é Sou pessoa em geral na medida em que tenho em comum com todas as
pensado enquanto negação. Hegel é bastante claro neste sentido ao afirmar: outras pessoas as propriedades pessoais essenciais de um sujeito que
conhece, fala e age. Sou ao mesmo tempo um indivíduo inconfundível, que
Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade se conquista e se prova que
a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como
ela surge, nem o seu submergir na expansão da vida, mas que nada há
102
HEGEL, Fenomenologia, par. 187
103
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
100 104
HEGEL, Filosofia do espírito, p. 13 Ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, Cambridge University
101
HEGEL, Fenomenologia I, par. 32 Press, 1995.
responde, de maneira insubstituível, por uma biografia tão formadora uma negação imediata que não implica em conservação] justamente a verdade
quanto singular105. que dela deveria resultar”. O puro aniquilamento de si através da morte bloqueia
a auto-posição de si como fundamento. A pura morte do outro anula a
possibilidade do reconhecimento de tal processo de auto-posição e, por
Interpretações desta natureza entificam uma noção personalista de
conseqüência, do reconhecimento da liberdade implicada neste processo de
individualidade, noção ligada ao Eu como figura de uma determinação completa.
auto-posição. Daí porque Hegel afirma que a consciência faz a experiência de que
Isto nos impede de pensar a fluidez de um conceito de individualidade onde toda
“a vida é a posição natural da consciência, a independência sem a negatividade
determinação seria corroída por um fundo de indeterminação que fragiliza sua
absoluta” e que a morte é apenas uma “negação natural”.
identidade e sua fixidez. Por outro lado, tais interpretações tendem a constituir a
Através da luta de vida e morte, a consciência procura suprimir o que lhe
universalidade como conceito normativo e essencialista ao demarcá-la a partir
aparece como essencialidade alheia. Hegel joga com um duplo movimento de
de um conjunto determinado de “propriedades pessoais essenciais” que não são
supressão que é necessariamente convergente. Por um lado, a consciência
objetos de questionamento ou conflito, mas motor de toda demanda presente em
procura suprimir seu vínculo essencial à vida como Dasein natural, ela procura
conflitos sociais. Esta é uma via que nos leva, necessariamente, à
afirmar-se através da distância em relação a tudo o que está preso ao ciclo
substancialização de um conceito antropológico de sujeito. É exatamente para
irreflexivo da vida. Por outro lado, a consciência-de-si procura suprimir seu
impedir derivas desta natureza que Hegel insiste tanto na necessidade do trajeto
vínculo essencial à outra consciência-de-si a fim de afirmar-se em sua pura
em direção à universalidade passar pelo “trabalho do negativo” e pelo “caminho
imediatez idêntica a si mesma. A convergência destes dois movimentos fica
do desespero”. Mas para tanto faz-se necessário entender melhor a função
explícita se lembrarmos que a vida fornece a determinação empírica da
fenomenológica da confrontação com a morte em Hegel.
consciência-de-si, ela fornece o em-si cuja objetividade implica necessariamente
na presença do Outro. Assim, negar a vida para se pôr como pura abstração é,
O senhor absoluto
necessariamente, um movimento que envolve o negar da essencialidade do
Outro.
Em termos lógicos e estritamente hegelianos, o que aconteceu aqui foi que, ao
No entanto, o contrário também é verdadeiro. Como vimos no parágrafo
deter-se diante da Morte, a consciência chegou ao fundamento da existência
186, a imersão integral da consciência no elemento da vida implicava na
mesma. Não é a toa que Hegel joga, deliberadamente, com os termos
impossibilidade do reconhecimento do Outro como consciência-de-si
zugrundgeher (aniquilar-se) e zu Grund geher (chegar ao fundamento). O
independente. “Surgindo assim imediatamente, os indivíduos são um para outro
fundamento é, na filosofia hegeliana, esta determinação da reflexão que: “(...) não
à maneira de objetos comuns, figuras independentes, consciências imersas no
tem nenhum conteúdo determinado em si e para si; também não é fim, por
ser da vida”107. Isto apenas nos lembra como a confrontação com a negatividade
conseguinte não é ativo nem produtivo”106. Ou seja, trata-se da pura forma,
da morte tem um caráter formador para a consciência-de-si; fato que ficará ainda
preexistente a qualquer conteúdo que venha preenchê-la. O que a consciência
mais evidente no desdobrar da dialética do Senhor e do Escravo.
experimentou ao chegar ao fundamento é que apreender esta pura forma é,
Podemos mesmo dizer que o reconhecimento não implica exatamente no
invariavelmente, aniquilar-se enquanto aderência ao ser-aí natural e se
afastar-se da morte, até porque a vida do espírito é: “a vida que suporta a morte
descobrir como negação de si em si mesmo. O problema, aqui, é como elevar o
e nela se conserva”108. O que ele implica é, na verdade, a compreensão de que o
fundamento à existência.
que está em jogo na experiência fenomenológica da confrontação com a morte
Lembremos como Hegel usa de maneira bastante precisa esta experiência
não é uma “negação abstrata”: termo central que indica uma compreensão não-
da negação absoluta que é a morte. Quando, neste contexto, Hegel fala em
especulativa de relações de oposição. A negação abstrata da vida produz uma
“morte”, ele pensa na manifestação fenomenológica própria à indeterminação
situação na qual os opostos (vida e morte): “não se dão nem se recebem de volta,
fenomenal do que nunca é apenas um simples ente. Ou seja, a morte indica
um ao outro reciprocamente, através da consciência, mas deixam um ao outro
uma experiência do que não se submete aos contornos auto-idênticos da
indiferentemente livres, como coisas (Dinge)”109. Ou seja, a significação dos
representação, a morte como aquilo que não se submete à determinação do
termos opostos não passa uma na outra. Esta operação não é aquilo que Hegel
Eu. Este fundamento que não tem nenhum conteúdo determinado em si e para
chama aqui de “negação da consciência (Negation des Bewustssein)”, ou seja, esta
si, ao se manifestar, toca o próprio modo de enraizamento do sujeito naquilo
negação determinada que “supera de tal modo que guarda e mantém o superado
que aparece a ele como mundo. A morte é a experiência da fragilidade das
e, com isto, sobrevive a seu vir-a-ser superado”110. A consciência deve pois negar
imagens do mundo e dos sistemas substancialmente enraizados de práticas
a vida de maneira determinada, o que implica em compreender a vida como
sociais de ação e justificação. Ela é assim um movimento fundamental para a
espaço no qual o negativo pode ser convertido em ser. A vida deve ser
constituição da estrutura moderna da subejtividade.
inicialmente negada para ser recuperada não mais como pólo positividade de
No entanto, “essa comprovação por meio da morte suprime [erheben –
termo não totalmente convergente com aufheben. Hegel usa o termo para indicar 107
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
108
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
105 109
HABERMAS, Jürgen; Verdade e Justificação, Belo Horizonte: Loyola, 2004, p. 195 HEGEL, Fenomenologia, par. 188
106 110
HEGEL, G.W.F., Enciclopédia, pag. 161 HEGEL, Fenomenologia, par. 188
doação imanente de sentido, como fundamento originário, mas como locus de problemas políticos e legais, mas eles só podem ser compreendidos de maneira
manifestação da negatividade do sujeito, como “vida do espírito”. correta (e reconfigurados em sua extensão) se apresentarmos primeiro os problemas
centrais que determinarão as bases mais amplas dos processos de reconhecimento:
eles tocam a questão do desejo, da relação à vida e à morte e do trabalho.
Dominação e servidão
Os próximos seis parágrafos são extremamente condensados e tentam
dar conta dos desdobramentos da dissolução da unidade inicial do Eu simples.
Mas esta realização ainda está longe. De fato: “nessa experiência, vem a ser para
Eles são organizados em duas perspectivas distintas. Entre os parágrafos 190 e
a consciência que a vida lhe é tão essencial quanto a pura consciência-de-si”111.
193, Hegel expõe os impasses do reconhecimento do ponto de vista do Senhor.
Isto implica em uma clivagem: a conscîência reconhece a essencialidade tanto da
Dos parágrafos 194 a 196, Hegel expõe como o conceito de reconhecimento
vida quanto da pura abstração em relação ao Dasein natural. Por isto, Hegel fala
poderá ser realizado através do Escravo.
da dissolução da unidade do Eu como Eu simples que aparecia enquanto objeto
O Senhor é logo apresentado como uma consciência que vive algo como
absoluto da consciência. Eu simples representado pela tautologia do “Eu=Eu”
um impasse existencial ligado ao caráter parcial do seu reconhecimento.
[lembra da estrutura proposicional da igualdade/ a determinação particular é
Enquanto consciência que ainda procura realizar a noção de auto-identidade
idêntica à representação universal]. Esse Eu simples se dissolve em dois
como pura abstração de si, consciência que procura sustentar uma relação
momentos: uma pura consciência-de-si, independente e para quem o ser para-si
imediata de si a si, o Senhor é certo de si através da afirmação da
é a essência e uma consciência para-um-outro, consciência aferrada à coisidade
inessencialidade de toda alteridade. No entanto, esta certeza é dependente da
(Dingheit) e para quem o essencial é a vida ou o ser-para-um-outro. Esses dois
negação reiterada da inessencialidade do Outro. Uma negação que não é a
momentos “são como duas figuras opostas da consicência (...) Uma é o Senhor,
destruição pura e simples do Outro, mas a sua dominação enquanto desprezo
outra é o Escravo”112.
pela sua essencialidade independente. Como sabemos, a necessidade desta
Mas, antes de continuarmos, notemos a ambigüidade deste “como se”.
dominação contradiz a aspiração do Senhor em ser reconhecido como pura
Hegel joga, em vários momentos do texto, com uma dupla acepção do
identidade de si a si, já que ele é reconhecido como Senhor apenas por uma
antagonismo figurado na dialética do Senhor e do Escravo. Por um lado, ele
consciência inessencial. Este conceito de reconhecimento não pode aspirar
parece ser a exteriorização de uma clivagem interna à consciência na sua divisão
validade universal. Vejamos como Hegel nos apresenta tal impasse.
entre o reconhecimento da essencialidade tanto da vida quanto da posição de
Hegel primeiro lembra que o Senhor precisa afirmar sua independência
pura abstração. Por outro lado, ele aparece como o resultado de uma
e sua dominação no interior de dois processos: na confrontação com outra
confrontação entre duas consciências-de-si independentes em um movimento
consciência-de-si e na confrontação com o objeto (que, no interior da seção
fundador dos processos de interação social. Esta duplicidade indica, na verdade,
“consciência-de-si” aparece necessariamente como tendo sua verdade enquanto
que estamos diante de um modo de interação social que é, ao mesmo tempo,
objeto do desejo). Tais processos de dominação são organizados como
processo de formação da consciência-de-si. Como dissera anteriormente,
silogismos. O primeiro é enunciado da seguinte forma:
estruturação de modos de socialização e processos de constituição do Eu
convergem necessariamente em Hegel, já que este não reconhece nenhuma
O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do ser
unidade originária da consciência-de-si.
independente, pois justamente ali o escravo está retido; essa é sua cadeia,
Por outro lado, vale a pena contextualizar leituras que procuram encontrar,
neste momento da Fenomenologia do Espírito, as bases normativas de uma teoria da da qual não podia abstrair-se na luta, e por isto se mostrou dependente,
gênese do social. Não como deixar de notar diferenças profundas de inflexão entre por ter sua independência na coisidade114.
esta versão do problema do reconhecimento apresentada na Fenomenologia e aquela
apresentada tanto na Filosofia do Espírito, de 1805, e na Enciclopédia em sua versão Ou seja, o Senhor domina o Escravo através da negação daquilo que lhe é
de 1830. Por exemplo, na Filosofia do Espírito, de 1805, o problema do essencial (ao escravo): a coisa enquanto Dasein natural. A dominação é, na
reconhecimento é apresentado de maneira explícita em termos legais e políticos, já verdade, negação daquilo que, para o Outro, tem valor essencial, é se mostrar
que a luta por reconhecimento se organiza a partir de conceitos como: crime, lei, bens como “potência que está por cima desse ser”. Este “silogismo da dominação” tem
e constituição. Nada disto desempenha papel central na apresentação própria à a estrutura que pode ser descrita da seguinte forma: a) O senhor nega/domina a
Fenomenologia do Espírito. Podemos mesmo falar que: “Nesta versão do problema coisa ao negar sua essencialidade independente (a coisa é apenas objeto da
do reconhecimento, Hegel está primariamente interessado no problema da particularidade do meu desejo), b) O escravo vê sua essência na coisa, c) O
universalidade, a maneira através da qual a atividade determinada introduzida na senhor nega/domina o escravo ao negar/dominar aquilo que, para o escravo,
seção precedente, ainda que mediada através formas de interação social, pode ser bem tem valor essencial.
sucedida em sua determinação apenas se o que Hegel chama de “vontade particular” Mas a primeira proposição deste silogismo pede um desdobramento
se transforme em “vontade universal e essencial” 113 . É claro que isto não exclui importante. Como sabemos, a coisa aparece aqui como objeto do desejo do
Senhor. Negá-la e domina-la significa, na verdade, consumi-la, tal como vimos
111
HEGEL, Fenomenologia,par. 189
112
HEGEL, Fenomenologia, par. 189
113 114
PIPPIN, He satisfaction of self-consciousness, p. 155 HEGEL, Fenomenologia,par. 190
anteriormente no momento de apresentação da satisfação do desejo como Para o reconhecimento propriamente dito, falta o momento em que o
consumação. Hegel demonstra continuar neste registro ao lembrar que a relação senhor opera sobre o outro o que o outro opera sobre si mesmo; e o
imediata de si a si do senhor deve ser posta como: “pura negação da coisa, ou escravo faz sobre si o que também faz o sobre outro. Portanto, o que se
como gozo (Genuss)”. O gozo aparece como satisfação posta na identidade efetuou foi um reconhecimento unilateral e desigual118.
imediata de si a si, retorno à indiferenciação generalizada entre sujeito e objeto
através da destruição do objeto. A dominação mostra-se assim ser o inverso do que parecia ser, já que a
No entanto, o Senhor pode gozar da coisa e realizar a certeza de si mesmo completa autonomia se confunde com a completa dependência. Podemos
ligada à satisfação do desejo somente se esta coisa duplicar a estrutura da sintetizar este ponto afirmando que, através da figura do Senhor, Hegel está a
consciência-de-si (já que o desejo é, na verdade, um modo de auto-posição do criticar uma noção de liberdade vinculada à ideia de propriedade de si. O senhor
sujeito). A astúcia do Senhor consiste pois em interpor o escravo entre ele e a é aquele cuja independência e liberdade está baseado na ilusão do
coisa. Desta forma, o Escravo trabalha a coisa e oferece, ao gozo do Senhor, uma pertencimento de si mesmo. Mas este pertencimento de si só pode se realizar em
coisa trabalhada: “o senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se uma situação na qual eu não me vejo como consciência que trabalha, como
conclui somente com a dependência da coisa, e puramente a goza: enquanto o consciência imersa nas sendas do trabalho social. Eu devo ser uma consciência
lado da independência deixa-o ao escravo, que a trabalha”115. Só uma coisa que goza um gozo que é a afirmação de meu poder sobre mim mesmo e sobre os
trabalhada pode satisfazer um desejo compreendido fundamentalmente como objetos de meu desejo. No entanto, esse poder sobre os objetos do meu desejo
modo de auto-posição (até porque: “o trabalho é o ato de se fazer coisa”116). Isto equivale a compreender tais objetos como minha propriedade, um pouco como o
demonstra como o Senhor só pode negar/dominar a coisa, isto no sentido de escravo não é nada mais do que minha propriedade.
intuir no objeto sua própria falta, através do trabalho do Escravo. O gozo do Mas ninguém melhor que Hegel em sua dialética do senhor e do escravo
Senhor, enquanto posição imediata de si na coisa, é pois, em última instância, demonstrou como havia uma reversibilidade contínua na relação aparentemente
impossível. Gozo impossível porque ele só pode ser alcançado através da dissimétrica entre propriedade e proprietário. Pois Hegel lembrará que o uso da
mediação resultante do trabalho do Escravo que, como veremos, se põe na coisa propriedade implica, necessariamente, transformação do próprio proprietário,
[é esta consciência posta que o senhor deseja]. dependência do próprio proprietário (senhor) em relação à propriedade
O impasse existencial do Senhor demonstra-se então nesta posição que (escravo), em relação ao modo de existência da propriedade. Como o gozo do
consiste em depender da mediação do Outro para realizar uma satisfação que se sujeito proprietário depende da propriedade e de seu modo de existência, é
quer imediata. A consciência inessencial fornece a verdade da certeza de si impossível que esse modo de existência não passe necessariamente no sujeito.
mesmo do Senhor. A verdade da sua independência é pois dependência, a Hegel pode lembrar desta reversibilidade porque, ao menos em sua
verdade de sua imediatez é pois mediação. Daí porque Hegel pode falar: “é claro Fenomenologia do Espírito, as relações de propriedade não aparecem apenas
que ali onde o senhor se realizou plenamente ele encontra algo totalmente como relações de uso, mas como relações de desejo. Eu não apenas uso
diverso de uma consciência independente, o que é para ele não é uma propriedades, eu desejo o que se reduz à condição de propriedade e esta é a base
consciência independente, mas uma consciência dependente”117. do processo de alienação inerente a toda noção de propriedade de si. Meu desejo
Hegel então lembra que estamos aí diante de um processo parcial de se submete à forma da propriedade, meu ser se determina no interior de um
reconhecimento. O reconhecimento é uma reflexão duplicada que comporta campo de propriedades. Eu me determino a partir daquilo que se conforma à
quatro momentos: a reflexão do ser para-si no ser em-si da primeira consciência, condição de propriedade. Desta forma, desejar como um senhor de escravo é
a reflexão do ser para-si no ser em-si da segunda consciência, a reflexão do ser definir o escravo como o modo de existência do meu desejo, é vincular minha
em-si da primeira consciência no ser para-si da segunda consciência e a reflexão expressão ao que se dispõe integralmente, ao que se define de forma
do ser em-si da segunda consciência no ser para-si da primeira consciência. Estes unidimensional, ao que não pode escapar de minha possessão, mas que apenas
dois últimos movimentos são resultantes da compreensão de que a dimensão do confirma meu domínio, minha narrativa sobre mim mesmo. Por isto, tal posição
em-si, enquanto espaço do que se põe como objetividade, é um espaço de só pode ser um impasse existencial.
interação social suportado pela presença reguladora da alteridade. Neste
sentido, temos aqui apenas a realização de dois processos: a reflexão do ser para-
si no ser em-si da segunda consciência (o Escravo através do trabalho) e a
reflexão do ser em-si da segunda consciência no ser para-si da primeira
consciência (o Senhor através da consumação e do gozo da coisa trabalhada pelo
Escravo). Daí porque Hegel afirma:

115
HEGEL, Fenomenologia, par. 190
116
HEGEL, Filosofia do Espírito, de 1805
117 118
HEGEL, Fenomenologia, par. 192 HEGEL, Fenomenologia, par. 191
Lógicas do reconhecimento fundamental da crença de ser puramente para-si. Mas este pertencimento de si
Aula 7 só pode se realizar em uma situação na qual eu me vejo como consciência que
goza um gozo que é a afirmação de meu poder sobre mim mesmo e sobre os
objetos de meu desejo. Esse poder sobre os objetos do meu desejo equivale a
Nesta aula, iremos terminar o comentário sobre a Dialética do Senhor e do compreender tais objetos como minha propriedade, um pouco como o escravo
Escravo, tal como ela aparece na Fenomenologia do Espírito. Na aula passada, não é nada mais do que minha propriedade.
terminamos na descrição dos impasses existenciais próprios à posição do Mas ninguém melhor que Hegel em sua dialética do senhor e do escravo
Senhor. Eu havia insistido com vocês que uma forma privilegiada de demonstrou como havia uma reversibilidade contínua na relação aparentemente
compreender a luta por reconhecimento apresentada por Hegel passa pela dissimétrica entre propriedade e proprietário. Pois Hegel lembrará que o uso da
compreensão de como estamos aqui diante de um problema referente à propriedade implica, necessariamente, transformação do próprio proprietário,
estrutura da liberdade. O processo fundamental que anima a Dialética do Senhor dependência do próprio proprietário (senhor) em relação à propriedade
e do Escravo é a afirmação da liberdade. Ou seja, Hegel age como quem lembra: (escravo), em relação ao modo de existência da propriedade. Como o gozo do
seres humanos não entram em conflito apenas para garantir a realização de suas sujeito proprietário depende da propriedade e de seu modo de existência, é
necessidades, a defesa de seus bens, a afirmação de seus interesses. Eles entram impossível que esse modo de existência não passe necessariamente no sujeito.
em conflito para realizarem o conceito de liberdade que se coloca de maneira Hegel pode lembrar desta reversibilidade porque, ao menos em sua
normativa no horizonte de suas ações. Seres humanos não lutam por sua Fenomenologia do Espírito, as relações de propriedade não aparecem apenas
sobrevivência, eles lutam inicialmente para serem vistos como seres livres, como relações de uso, mas como relações de desejo. Eu não apenas uso
mesmo que no interior destas lutas eles verão o conceito inicial de liberdade propriedades, eu desejo o que se reduz à condição de propriedade e esta é a base
entre em movimento e transformação. do processo de alienação inerente a toda noção de propriedade de si. Meu desejo
Nese sentido, todo o movimento começa com a consciência procurando se submete à forma da propriedade, meu ser se determina no interior de um
afirmar sua completa independência em relação a toda determinidade exterior, campo de propriedades. Eu me determino a partir daquilo que se conforma à
como se a liberdade fosse vinculada à capacidade de se por como ser para-si, o condição de propriedade. Desta forma, desejar como um senhor de escravo é
que é uma versão singular da ideia de liberdade negativa. Mas esta liberdade definir o escravo como o modo de existência do meu desejo, é vincular minha
como puro ser para-si é, na verdade, dirá Hegel, uma forma de alienação. Pois ser expressão ao que se dispõe integralmente, ao que se define de forma
puro ser para-si só é possível à condição de não trabalhar, de não ter que me unidimensional, ao que não pode escapar de minha possessão, mas que apenas
confrontar com a exteriorização de si que o trabalho implica no seu contato com confirma meu domínio, minha narrativa sobre mim mesmo. Por isto, tal posição
o objeto. Daí a transformação da consciência-de-si na figura de uma consciência só pode ser um impasse existencial.
que não trabalha, a saber, o Senhor. Na verdade, se quisermos ser mais precisos,
diremos que o Senhor é uma consciência que ignora como a estrutura do Trabalho, essência e angústia
trabalho social a determina.
Mas poderíamos mesmo dizer que, em seu sentido mais profundo, só É neste ponto que Hegel deixa o Senhor em seu impasse e passa à análise do
posso ser puro ser para-si à condição não apenas de não trabalhar, mas movimento dialético a partir da perspectiva do Escravo. “Sem dúvida, este aparece de
principalmente de não desejar, pois a dinâmica do desejo que me leva início fora de si, e não como a verdade da consciência-de-si”. Mas ele “entrará em si
necessariamente a descobrir que o objeto que desejo não é apenas algo que se como consciência retornando sobre si mesma e se converterá em verdadeira
submete a mim como minha posse, como mera propriedade. O objeto que desejo independência” 119 . Ou seja, pelas vias da servidão, a consciência irá realizar a
é outro desejo. Preciso que o outro que desejo não seja algo que desprezo e reconciliação com a objetividade necessária para a realização do conceito de
desejar o que se submete à condição de mera propriedade é desejar o que não consciência-de-si em sua estrutura de reconhecimento.
pode me reconhecer como sujeito. Mesmo quando eu submeto o outro à Hegel começa lembrando que a essencialidade do escravo parece estar
condição de propriedade, eu o faço tendo em vista um terceiro outro que poderia depositada no Senhor. É ele quem domina o seu fazer e consome o objeto de seu
efetivamente me reconhecer, e que se colocaria sob a posição do verdadeiro fazer. Quer dizer, seu fazer lhe é estranho, assim como o objeto com o qual ela
Senhor. Por isto, o desejo necessariamente leva o Senhor a se despossuir de sua confronta lhe é estranho. Há no entanto um conteúdo positivo neste estranhamento.
ilusão de independência, a sua liberdade como puro para-si. Pois isto implica que o escravo se elevou para além de sua singularidade, já que:
Mas sendo a afirmação do puro ser para-si um impasse que só se “Enquanto o escravo trabalha para o senhor, ou seja, não no interesse exclusivo da sua
realizaria à condição de não trabalhar e não desejar (ou seja, que só se realizaria própria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude consistindo em não ser apenas
na morte), é a definição da liberdade como independência, como puro pertencer o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um outro”120. No entanto, ter seu
a si mesmo que está em questão. Por isto que terminei a última aula afirmando desejo vinculado ao desejo de um outro ainda não nos fornece a universalidade do
que, através da figura do Senhor, Hegel está a criticar uma noção de liberdade reconhecimento almejado pela consciência. o conflito produzido pelo desejo, conflito
vinculada à ideia de propriedade de si. O senhor é aquele cuja independência e
119
liberdade está baseado na ilusão do pertencimento de si mesmo, esta é a ilusão HEGEL, Fenomenologia, par. 193
120
HEGEL, Enciclopédia, par. 433 - adendo
que aparece enquanto motor da DSE, não pode ser a mera colisão entre sistemas sentimento do nulidade do egoísmo, o hábito da obediência (Gehorsams) é um
particulares de interesses de duas consciências distintas, como quer comentadores momento necessário da formação de todo homem. Sem ter a experiência deste
como Terry Pinkard e Jurgen Habermas 121 . Conflito através do qual Eu procuro cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria (Eigenwillen), ninguém advém
dominar o outro através da submissão do seu sistema de valoração e interesse à livre, racional e apto a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão de
perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu procuro submeter o desejo do outro ao se auto-governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da
meu desejo. Faz-se necessário que este outro não seja apenas um outro desejo submissão a um senhor124.
particular, mas que ele tenha algo da universalidade incondicional do que é essencial.
Hegel então se serve de um certo deslizamento que consiste em dizer que, no Afirmações desta natureza servem a vários mal entendidos. Hegel não está
interior desta experiência particular, já há algo da ordem de uma necessidade dizendo que a liberdade é apenas o nome que damos para um vontade
universal que toca o modo de manifestação do que é essencial. Isto lhe permite operar construída a partir da internalização de “dispositivos disciplinares” travestidos
um certo giro de perspectiva que consiste em dizer: lá onde a consciência encontra-se de práticas de auto-controle. Não é qualquer submissão a um senhor que produz
totalmente alienada, é lá que ela pode encontrar-se a si mesma, já que: “o espírito só a liberdade, mas apenas a um senhor que seja capaz de realizar exigências
alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento incondicionais de universalidade, que tenha algo deste “senhor absoluto” que é a
absoluto”122. Esta idéia de que a consciência deve se perder para poder se encontrar morte. Isto nos explica porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes
está intimamente vinculada à maneira com que Hegel compreende a noção central de de submeter um povo produzem, necessariamente, o sentimento de que o
“essência”. O parágrafo 194 é muito ilustrativo neste sentido. Hegel começa trabalho do Espírito é sem medida comum com toda e qualquer política finita,
lembrando que, para a consciência escrava, a essência está fora dela mesma, está com todo cálculo utilitarista baseado em “meu” sistema de interesses egoístas.
neste Senhor que encarna o puro para-si e que despreza o agir da consciência escrava Por sinal, a maior de todas as ilusões consiste exatamente em ver na crítica
que aparece, para ela mesma, como algo de puramente estranho e oposto. Ela traz hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de esvaziamento do particular.
assim a oposição dentro de si e não se reconhece mais em seu agir, que lhe aparece Hegel pode criticar o egoísmo porque não há nenhuma individualidade neste
como agir-para-um-Outro. Contudo, Hegel afirma que esta é condição necessária para “ego”, já que não há nada de individual no interior de um sistema de interesses
que ela experimente a essência e tenha nela mesma “essa verdade da pura construído, na verdade, a partir de identificações e internalização de princípios
negatividade e do ser-para-si”. Logo em seguida, complementa: de conduta vindos de uma outra consciência determinada 125. Por isto, a
“dissolução da singularidade da vontade” pode aparecer como “liberação”.
Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou
aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da Lebrun serve-se destas características da filosofia hegeliana para afirmar
morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente, em si mesma tremeu que a formação da consciência-de-si é apenas a dissolução de um indivíduo
em sua totalidade e tudo o que havia de fixo, nela vacilou. Entretanto, esse definido como o que se anula, renúncia incessante de si, ascese permanente.
movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo subsistir é a Pois: “ganhar uma determinação acaba sempre por ser renúncia a uma diferença
essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser- que me individualizava, advir um pouco mais meu ser verdade na medida em
para-si que assim é nessa consciência123. que sou um pouco menos meu ego”126. Neste sentido, tremer diante do mestre
absoluto seria tomar consciência da impotência de princípio que representa a
Notemos inicialmente esta posição peculiar da morte como “senhor singularidade natural. Como se a liberação hegeliana fosse um passe de mágica
absoluto” capaz de fazer com que tudo o que fixo, vacile, tudo o que é sólido, no qual o sentimento de fraqueza se transforma em legitimação da incapacidade
desmanche-se no ar. Há um certo paradoxo na dialética hegeliana. O Senhor, por de resistir. Assim: “em troca de seus sofrimentos, é o gozo do universal que se
não temer a morte, não a conhece, ele não a experimenta. Já o escravo, ao temer a oferece à consciência – belo presente ...”127. Não estamos muito longe de Deleuze
morte, permite que ela lhe faça tremer em toda sua totalidade. Pois, se a vendo a dialética hegeliana como “idéia do valor do sofrimento e da tristeza,
confrontação com a morte é condição para a conquista da liberdade, é porque a valorização das ‘paixões tristes’ como princípio prático que se manifesta na
morte é figura privilegiada desta universalidade incondicional e absoluta que, cisão, no dilasceramento”128.
por ser incondicional e absoluta, manifesta-se como negação de tudo o que é Mas este trecho talvez desvele seu real foco se lembrarmos que, para Hegel, a
condicionado e finito. Devemos levar isto em conta quando encontramos Hegel essência não é uma substância auto-idêntica que determina as possibilidades dos
dizendo: modos de ser. A essência é a realização de um movimento de reflexão. Neste sentido,

124
A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da HEGEL, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 435
125
Esta intuição hegeliana recebeu uma confirmação material através da psicanálise lacaniana e sua
verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da vontade, o descrição da gênese do Eu através a internalização da imagem de um outro que tem a função de tipo
ideal de conduta e de orientação do desejo. A este respeito, remeto ao capítulo “Desejo sem imagens”
121
Ver PINKARD, Hegel´s phenomenology: The sociality of reason, op. cit. e HABERMAS, In: SAFATLE, Lacan, São Paulo, Publifolha, 2007.
126
Caminhos da destranscendentalização In: Verdade e Justificação, op. cit. LEBRUN, L’envers de la dialectique, op. cit., p. 100
122 127
HEGEL, Fenomenologia, par. 32 idem, p. 211
123 128
HEGEL, Fenomenologia, par. 194 DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 224
contrariamente ao ser que procurava sua fundamentação em determinações fixas, a a superação (Aufheben) de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu
essência se põe como determinação reflexiva e relacional. Em outras palavras, a determinar”132. O que pode ser entendido da seguinte maneira: a indeterminação
essência é a unificação deste movimento reflexivo de pôr seu ser em um outro, cindir- do fundamento vem do fato dele servir de substrato comum entre determinações
se e retornar a si desta posição. Daí porque Hegel pode afirmar que, quando o ser opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o fundamento implica a identidade
encontra-se determinado como essência, ele aparece como: “um ser que em si está entre a identidade e a diferença (die Einheit der Identität und des Unterschiedes).
negado todo determinado e todo finito”129, ou ainda, como “ser que pela negatividade Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o fundamento da experiência,
de si mesmo se mediatiza consigo” 130 . Neste sentido, Hegel insiste que a assim como o princípio de ligação e unidade que determina o modo de
internalização da negação de si própria à configuração da essência deve se manifestar articulação entre o fundamento e aquilo que ele funda, então pensar a verdadeira
inicialmente como negatividade absoluta diante da permanência de toda essência do fundamento como o que tem seu ser em um outro (sein Sein in einen
determinidade. Anderen hat) exige a confrontação com um estado de diferenças não submetidas
É neste sentido que a angústia deve ser compreendida como a à forma do Eu133.
manifestação fenomenológica inicial desta essência que só pode se pôr através
do “fluidificar absoluto de todo subsistir”, ou seja, do negar a essencialidade de Demoremos um pouco mais neste ponto. Sabemos que fundar é
toda determinidade aferrada em identidades opositivas. Manifestação inicial, daí determinar o existente através da sua relação a um padrão que me permite
porque Hegel fala de “essência simples”, mas manifestação absolutamente orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas categoriais como
necessária. A angústia pode aqui ter esta função porque não se trata de um a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos fenômenos,
tremor por isto ou aquilo, por este ou aquele instante, mas se trata aqui de uma determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como
fragilização completa de seus vínculos ao mundo e à imagem de si mesmo. É esta fundamento posso garantir o critério do verdadeiro e do falso, do correto e do
fragilização que traduz de maneira mais perfeita o que está em jogo neste “medo incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas
diante da morte, do senhor absoluto”. O termo “angústia” tem aqui um uso feliz estruturas aos fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre
porque ele indica exatamente esta posição existencial na qual o sujeito parece princípios lógicos gerais de ligação e unidade capazes de constituir objetos da
perder todo vínculo do desejo em relação a um objeto, como se estivéssemos experiência e fundar proposições de identidade e diferença. Estes princípios de
diante de um desejo não mais desprovido de forma. No entanto, se a consciência ligação (Verbindung) e unidade são derivados do Eu como unidade sintética de
for capaz de compreender a angústia que ela sentiu ao ver a fragilização de seu apercepções, que aparece assim como o verdadeiro fundamento das
mundo e de sua linguagem como primeira manifestação do Espírito, deste determinações. No entanto, a problematização de tais princípios é o verdadeiro
espírito que só se manifesta destruindo toda determinidade fixa, então a objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um witz ao dizer que,
consciência poderá compreender que este “caminho do desespero” é, no fundo, para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die Bedeutung das
internalização do negativo como determinação essencial do ser. Daí porque: “o Seinen hat)134, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência
temor do senhor é o início [mas apenas o início] da sabedoria”131. Neste sentido, significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e unidade que
podemos mesmo dizer que, para Hegel, só é possível se desesperar na é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de
modernidade, já que ele é a experiência fenomenológica central de uma sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções kantianas
modernidade disposta a problematizar tudo o que se põe na posição de entre receptividade e espontaneidade.
fundamento para os critérios de orientação do julgar e do agir. A dialética precisa pois aceder a um fundamento não mais dependente da
forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superação dos modos
Ir ao fundamento naturalizados de determinação, através a fragilização das imagens de mundo que
orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências. Tal fragilização
A este respeito, tentemos entender o que acontece, em termos lógicos, é descrita fenomenologicamente por Hegel através da angústia e da confrontação
com este movimento fenomenológico de se descobrir diante de um agir que me com a morte.
despossui completamente. Estejamos atentos ao sentido que Hegel dá a esta
Vemos assim como a confrontação com a morte permite à consciência-de-
despossessão de si produzida pela internalização da morte como senhor
si compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
absoluto. Neste contexto, a morte não é destruição simples da consciência, não é
determinações fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma
um simples despedaçar-se (zugrunde gehen), mas é modo de ir ao fundamento
potencia do pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive,
(zu Grund gehen). Pois a confrontação com a morte é experiência fenomenológica
recompreender o que vem a ser a diferença. A diferença em Hegel é esta potência
que visa exprimir o acesso ao caráter inicialmente indeterminado do
interna da in-diferença que corrói toda determinação. Ela será esta expressão do
fundamento, que visa exprimir como: “A essência, enquanto se determina como
fundamento, determina-se como o não-determinado (Nichtbestimmte) e é apenas 132
HEGEL, Wissenschaft der Logik II, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 81
133
Longuenesse compreendeu isto bem ao afirmar que, para Hegel : “O fundamento é o herdeiro da
129
HEGEL, Ciência da lógica – doutrina da essência unidade de apercepção da Crítica da razáo pura” (LONGUENESSE, Hege let la critique de la
130
HEGEL, Enciclopédia, par. 112 métaphysique, Paris: Vrin, 1981, p. 111).
131 134
HEGEL, Fenomenologia, par. 195 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 159
ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que: “toda vida é um processo de mesma (...) no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua própria
demolição”. Demolição que ocorre quando desvelamos esta “franja de negatividade137.
indeterminação da qual goza todo indivíduo”135. Não se trata exatamente de um
ganho de determinação e positividade, mas da assunção de um risco vinculado à Nota-se claramente aqui o papel de síntese que o trabalho desempenha, já que
confrontação com aquilo que se coloca enquanto puramente indeterminado. ele permite a intuição de si através da intuição do objeto, ou ainda, “a intuição do ser
Nestas condições, submeter-se a um Senhor absoluto que dissolve tudo aquilo independente como intuição de si mesmo”. Por refrear o impulso destrutivo do desejo
que parecia fixo e determinado nada tem a ver com uma a dinâmica psicológica em seu consumo do objeto, o trabalho forma, isto no sentido de permitir a auto-
da resignação, do ressentimento ou da necessidade da repressão. objetivação da estrutura da consciência-de-si em um objeto que é sua duplicação. Sua
função será pois realizar, ainda que de maneira imperfeita, o que o desejo não era
capaz de fazer, ou seja, permitir a auto-posição da consciência-de-si em suas
O trabalho exigências de universalidade, já que o trabalho está organicamente vinculado a modos
de interação social e de reconhecimento. Esta saída das dicotomias da consciência-de-
No entanto, ainda não tocamos em um ponto essencial que irá estabilizar esta si através da configuração de uma síntese materialista devido à recuperação da
dialética. Pois a angústia sentida pela consciência escrava não fica apenas em uma: centralidade da categoria do trabalho será de suma importância para os passos
posteriores da filosofia alemã, em especial aqueles que nos conduzem a Marx.
universal dissolução em geral, mas ela se implementa efetivamente no servir O giro dialético consiste em que dizer que a alienação no trabalho, a
(Dienen). Servindo, suprime (aufhebt) em todos os momentos tal aderência ao confrontação tanto com o agir enquanto uma essência estranha, enquanto agir para-
Dasein natural e trabalhando-o, o elimina. Mas o sentimento da potência um-Outro absoluto, quanto com o objeto enquanto aquilo que resiste ao meu projeto
absoluta em geral, e em particular o do serviço, é apenas a dissolução em si e tem caráter formador por abrir a consciência à experiência de uma alteridade interna
embora o temor do senhor seja , sem dúvida, o início da sabedoria, a como momento fundamental para a posição da identidade. Daí porque Hegel afirma
consciência aí é para ela mesma, mas não é ainda o ser para-si; ela porém que tanto o medo quanto o formar são dois momentos necessários para este modo de
encontra-se a si mesma por meio do trabalho136. reflexão que é o trabalho. Hegel não teme em afirmar que o formar sem o medo
absoluto fornece apenas um sentido vazio, pois sua forma ou negatividade não é “a
Hegel fará então uma gradação extremamente significativa que diz respeito ao negatividade em si” (Negativität an sich). Daí porque Hegel pode dizer:
agir da consciência nas suas potencialidades expressivas. Hegel fala do serviço
(Dienen), do trabalho (Arbeiten) e do formar (Formieren). Esta tríade marca uma Se não suportou o medo absoluto, mas somente alguma angústia, a essência
realização progressiva das possibilidades de auto-posição da consciência no objeto do negativa ficou sendo para ela algo exterior, sua subsistência não foi
seu agir. O serviço é apenas a dissolução em si (Auflösung an sich) no sentido da integralmente contaminada por ela. Enquanto todos os conteúdos de sua
completa alienação de si no interior do agir, que aparece como puro agir-para-um- consciência natural não forem abalados, essa consciência pertence ainda, em
outro e como-um-outro. O trabalho implica em uma auto-posição reflexiva de si. No si, ao ser determinado138.
entanto, Hegel não opera com uma noção expressivista de trabalho que veria sua
realização mais perfeita em uma certa compreensão do fazer estético como Assim, através do trabalho, o lugar do sujeito como fundamento pode ser
manifestação das capacidades expressivas dos sujeitos. A consciência que trabalha compreendido como negação em si: conseqüência necessária de uma filosofia do
não expressa a positividade de seus afetos em um objeto que circulará no tecido sujeito onde “sujeito” não é mais do que o nome do caráter negativo do
social. O trabalho não é a simples tradução da interioridade na exterioridade. De uma
fundamento. Afirmar que há um caráter negativo do fundamento significa, entre
certa forma, a categoria hegeliana de trabalho é inicialmente uma defesa contra a
outras coisas, que a relação ao existente não é a repetição do que está
angústia diante da negatividade da morte ou, ainda, uma superação dialética da
potencialmente posto no fundamento, mas que a própria determinação do
angústia, já que ele é auto-posição de uma subjetividade que sentiu o desaparecer de
existente não pode mais ser pensada a partir do paradigma da subsunção
todo vínculo imediato ao Dasein natural, que sentiu o tremor da dissolução de si.
simples do caso à norma. Ela exige compreender que não há determinação
Lembremos desta afirmação central de Hegel:
completa no sentido de identidade completa entre a determinação e o fundamento.
É isto que a consciência-de-si descobrirá pelas vias do trabalho.
O trabalho é desejo refreado (gehemmte Begierde), um desvanecer contido, ou
Notemos, por fim, que temos uma explicação para o fato de, na
seja, o trabalho forma. A relação negativa para com o objeto toma a forma do
Fenomenologia do Espírito, o trabalho não nos colocar no caminho da
objeto e permanence, porque justamente o objeto tem independência para o
“institucionalização da identidade do Eu”139. Ou seja, contrariando o que poderíamos
trabalhador. Esse meio-termo negativo ou agir formativo é, ao mesmo tempo,
esperar, o trabalho não abre uma dinâmica de reconhecimento que se realizará na
a singularidade, ou o puro-ser-para-si da consciência que agora no trabalho se
regulação jurídica das minhas relações com o outro através da assunção de meus
transfere para fora de si no elemento do permanecer; a consciência
trabalhadora chega assim à intuição do ser independente como intuição de si 137
idem, p. 132
138
HEGEL, Fenomenologia, par. 196
135 139
DELEUZE, Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331 HABERMAS, Trabalho e interação In: Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70,
136
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 132 2007, p. 196
direitos como sujeito que colabora com a riqueza (Vermögen) social. Ou ainda, ele faz que, através de uma compreensão especulativa do trabalho, temos a
isto, mas à condição de recomprendermos completamente o que entendíamos por apresentação deste movimento do conceito. Isto a ponto de podermos seguir
“identidade”, “direitos”, “sujeito”. Isto porque Hegel está mais interessado no fato do Hyppolite e dizer que: “O conceito é o trabalho do pensamento”. Como podemos
trabalho aparecer como modo de posição de uma negatividade com a qual o sujeito se compreender estes pontos?
confrontou ao ir em direção à uma potência de indeterminação cuja assunção é Já sabemos que, através do trabalho, a consciência não agiu de acordo
condição para a consciência-de-si “viver no universal”. Daí podemos derivar o com aquilo que os pragmáticos chamam de “princípio de expressibilidade”. Ela
problema maior da modernidade, ao menos segundo Hegel; problema este que está na não realizou de maneira performativa o que estava em sua intenção (a auto-
base da sua filosofia do direito, a saber, como viabilizar o reconhecimento posição de si). Do objeto trabalhado, veio uma experiência de independência, de
institucional de sujeitos pensados enquanto modos singulares de confrontação com o resistência ao conceito simples do Eu: o objeto era como um Outro. No entanto,
que se oferece como indeterminado? Pois não é a indeterminação que produz este Outro é a negação determinada do Eu, através do formar, percebo este Outro
sofrimento social, mas a incapacidade das estruturas institucionais e dos processos de diante do meu agir, ele me nega (é Outro) e me conserva (é interno a mim, está
interação social reconhecerem sua realidade fundadora da condição existencial de no meu agir, por isto, é eu mesmo). Através do trabalho, posso refletir-me em
todo e qualquer sujeito. meu ser-Outro [que é tanto a resistência do sensível quanto a presença de uma
outras consciências que descentram o significado da minha ação pois a coloca no
Estoicismo e a inessencialidade da efetividade interior de relações sociais – os dois níveis devem se articular]. Desta forma, o
trabalho nos mostra como o conceito pode estabelecer relações de negação
Ao finalizar a dialética do Senhor e do Escravo, Hegel introduz novamente determinada com os objetos aos quais ele se refere.
a perspectiva do para nós a fim de fornecer uma avaliação do que estava No entanto, a consciência pode operar algo como uma reconciliação
realmente em jogo no interior do processo dialético que analisamos: formal e abstrata, tal como dirá mais tarde Marx. Esta é a dimensão da alienação
que permanece em tal figura da consciência. Os processos de reconhecimento
Surgiu, assim, para nós, uma nova figura da consciência-de-si: uma não podem se aquietar no reconhecimento da autonomia do pensamento. Ao
consciência que é para si mesma a essência como infinitude ou puro pensar nisto, Hegel fala em uma consciência pensante em geral (abstrata) cujo
movimento da consciência, uma consciência que pensa, ou uma objeto é apenas a unidade imediata entre ser em-si e ser para-si. Esta consciência
consciência-de-si livre. Pois é isto o que pensar significa: não ser objeto é, para Hegel, o estoicismo. Mais do que uma escola de pensamento, Hegel vê, no
para si como Eu abstrato, mas como Eu que tem ao mesmo tempo o estoicismo, uma posição geral do pensamento em relação ao problema da
significado de ser em-si ou que se relaciona com a essência objetiva de efetivação da liberdade.
modo que ela tenha o significado do ser para-si da consciência. Para o Hegel compreende o estoicismo de Zenão de Cício, Crísipo, Epíteto e de
pensar, o objeto não se move em representações ou figuras, mas sim em Marco Aurélio como, no fundo, uma filosofia da resignação. Grosso modo, o
conceitos, o que significa: num ser em-si diferente que imediatamente estoicismo compreende a razão (logos) como princípio que rege uma Natureza
para a consciência não é nada diferente dela140. identificada com a divindade. O curso do mundo obedece assim um
determinismo racional. A virtude consiste em viver de acordo com a natureza
Aparece aqui uma figura da liberdade ligada à auto-determinação do racional aceitando o curso do mundo, ou seja, aceitando o destino despojando-se
pensamento. Haverá um ganho em relação à figura anterior, mas haverá de suas paixões a fim de alcançar a apatia e a ataraxia. A autarkeia estóica
também uma nova forma de alienação. Pois através do pensar, a consciência põe (influenciada pelos cínicos e pela sua concepção de auto-determinação como
uma relação ao ser em-si, ao objeto, o que não ocorria no momento em que ela afastamento do nomos e dos prazeres) aparece assim como: “liberdade, este
procurava afirmar sua liberdade como puro para-si. Este pensar a respeito do momento negativo de abstração da existência”141. Mesmo que a liberdade
qual fala Hegel não é o pensar representativo com sua perspectiva de adequação apareça definida como “a possibilidade de agir a partir de sua vontade”142, a
entre representações mentais de um “Eu abstrato” e estados fenomênicos de vontade virtuosa é aquela que se reconcilia com o determinismo racional do
coisas, mas pensar especulativo que realiza uma unidade que permite a Hegel curso do mundo. O que explica como é indiferente para o estóico ser Escravo
dizer: “no pensamento, sou livre porque não estou em um outro”. É o trabalho (Epíteto) ou Senhor (Marco Aurélio). Seu agir é livre “no trono como nas cadeias
compreendido como auto-posição na qual a relação negativa para com o objeto e em toda forma de dependência do Dasein singular”. Uma indiferença não pode
torna-se a forma do objeto que fornece as bases da tal experiência do conceito. levar a outra coisa que uma “independência e liberdade interiores”143 que, para
Para compreendermos este ponto, lembremos desta noção hegeliana do Hegel, é sinal do aparecimento do princípio de subjetividade.
conceito como uma estrutura de relações entre objetos articuladas a partir de Hegel compreende o estoicismo a partir de duas determinações
negações determinadas que se dão no desdobramento de processos da complementares. Primeiro:
experiência. Lembremos também da proposição sobre o holismo semântico de
Hegel, proposição segundo a qual a compreensão das relações já é condição
suficiente para a compreensão do conteúdo da experiência. Agora Hegel afirma 141
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
142
Diógenes LAÉRCIO, Vida e lenda de filósofos ilustres- Zenão
140 143
HEGEL, Fenomenologia, par. 197 HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Seu princípio é que a consciência é essência pensante e que uma coisa só
tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela à medida que a Lógicas do reconhecimento
consciência ai se comporta como essência pensante144. Aula 8

Nota-se como esta afirmação parece corroborar a exigência hegeliana de que a


consciência-de-si seja posta como essência da verdade. Ainda mais se
lembrarmos da afirmação hegeliana segundo a qual a elevação estóica ao plano
do pensamento: “consiste em que não seja a natureza imediata o conteúdo nem a Na aula de hoje, gostaria de seguir nossa discussão sobre as dinâmicas de
forma do verdadeiro ser da consciência, mas que a racionalidade da natureza reconhecimento em Hegel a partir de um comentário da Filosofia do Direito. A
seja aceita pelo pensamento de tal modo que tudo seja verdadeiro e bom na passagem da Fenomenologia do Espírito à Filosofia do direito implica um
simplicidade do pensamento”145. Com isto, o estoicismo apreende a diferença desenvolvimento do pensamento hegeliano em direção àquilo que poderíamos
constante entre o pensar e o que se dá na efetivação fenomenal. Nisto, ele é a chamar de “condições para a institucionalização da liberdade”. Vimos na
primeira posição afirmativa da abstração. Fenomenologia como o problema do reconhecimento estava vinculado às
No entanto, Hegel está mais interessado, ao menos nesta parte da dinâmicas sociais de afirmação da liberdade. No entanto, nada foi dito a respeito
Fenomenologia, nos impasses estóicos a respeito da determinação da da gênese das estruturas institucionais responsáveis por tais demandas
racionalidade em sua dimensão prática. Sobre a autarkeia estóica de uma aparecerem como fundamento dos processos de racionalização social. De fato,
consciência que se compreende como essencialidade, Hegel dirá: “Seu agir é este trabalho será feito pela filosofia do direito. Isto nos explica uma definição
conservar-se na impassibilidade que continuamente se retira do movimento do importante como:
Dasein, do atuar como do padecer, para a essencialidade simples do
pensamento”146. A este respeito, Hegel chegar a afirmar que: “ a grandeza da O terreno do direito é de maneira geral o espiritual e sua situação e ponto
filosofia estóica consiste que nada pode quebrar a vontade se esta se mantém de partida preciso é a vontade que é livre; na medida em que a liberdade
firme (...) e que sequer o afastamento da dor pode ser considerado um fim”147. constitui sua substância e determinação, o sistema do direito é a liberdade
Mas Hegel não deixa de lembrar que uma des-alienação que se realiza efetivada que o mundo do espírito produz a partir de si próprio, como
apenas através do formalismo de um pensar que se retira do movimento do segunda natureza150.
Dasein só pode aparecer como conformação àquilo que não pode, por mim, ser
modificado. Hegel apresenta assim uma crítica que será, em várias situações, Tal definição nos permite dizer que os conceitos decisivos na filosofia hegeliana
dirigida contra ele próprio: “A liberdade da consciência é indiferente quanto ao do direito são “liberdade” e “vontade livre”, já que definem o campo da
Dasein natural; por isto igualmente o deixou livre e a reflexão é a reflexão racionalidade do direito. Trata-se, então, de demonstrar que a perspectiva
duplicada. A liberdade do pensamento tem somente o puro pensamento por sua hegeliana nos traz elaborações importantes a respeito da relação necessária
verdade, e verdade sem a implementação da vida”148. Apenas como exemplo entre reconhecimento da vontade livre e constituição moderna das instituições.
desta mesma crítica contra Hegel, lembremos do final de La patience du concept, Como devem ser pensadas as instituições para que elas sejam capazes de dar
de Gerard Lebrun: “Enquanto a lógica designava até agora a instância que havia conta de demandas de reconhecimento depositadas no conceito de “liberdade”?
transformado o desdobramento do logos em um discurso predicativo sobre o É possível pensar a liberdade fora de alguma garantia de reconhecimento
entes, a Lógica nova não julga mais os entes nos quais se investirão as categorias. institucional?
Ela cessa de relacionar estas a objetos e de formar a trama de uma consciência- Antes de entrarmos diretamente nestas discussões, notemos a
de-coisas”. Ou ainda. Sobre a Fenomenologia: “ o que tomávamos por uma peculiaridade da compreensão do sentido da noção de “direito” para Hegel. Por
narrativa de viagem não nos leva a nada, como se, ao final da Odisséia, Ítaca fosse “direito”, Hegel entende algo a mais do que o ordenamento estatal de regulação
fosse um nome, ao invés de uma ilha. As coisas mesmas a respeito das quais da vida social. “Direito” são: “Todos aqueles pressupostos sociais que se
esperávamos uma revelação, ei-las transmutadas em linguagem”149. mostraram necessários para a realização da ‘vontade livre’ de cada sujeito
individual”151. Tais pressupostos sociais englobam o ordenamento jurídico
atualmente existente com sua dinâmica conflitual interna, as instituições
políticas que compõe o Estado moderno, as relações intersubjetivas de amor que
se dão no interior da família, a disposição subjetiva formada a partir da
internalização de preceitos morais, a dinâmica do livre-mercado, entre outros.
144
Eles ainda devem estar, de uma certa forma, assegurados (ou em processo de
HEGEL, Fenomenologia, par. 198
145
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo garantia) no interior dos quadros atuais do Estado moderno.
146
HEGEL, Fenomenologia, par. 199
147 150
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, par. 4. As
148
HEGEL, Fenomenologia, par. 200 traduções aqui apresentadas vem, em grande parte, do trabalho de tradução de Marcos Müller.
149 151
LEBRUN, La patience du concept, p. 408 HONNETH, Axel; Sofrimento de indeterminacao, São Paulo : Esfera Pública, 2006, p. 64
De fato, aí está boa parte da complexidade da aposta hegeliana: este ser um elemento do direito positivo lhe é contingente e não concerne à
Estado não pode ser apenas um ideal, um dever ser. Se a função da filosofia do sua natureza153.
direito é: “apresentar e conceitualizar o Estado como em si racional”152 é porque
ela deve ser capaz de apresentar, a partir de sua necessidade racional, o Estado Tal frase é decisiva. Hegel está a lembrar, entre outras coisas, que a liberdade
que está em vias de se realizar como resultado do projeto moderno. Ou seja, não não pode ser confundida com a presumida autenticidade da espontaneidade
se trata nem do Estado atualmente realizado, nem de um Estado ideal, simples imediata dos sentimentos. Uma autenticidade que veria, nas leis, apenas a
ideia sem relação alguma com a efetividade atual. Trata-se de um Estado que coerção e a violência institucionalizada sob a forma do direito positivo, já que as
pode potencialmente se realizar, isto no sentido de algo que explora os conflitos leis nunca seriam condizentes com aquilo que Hegel chamou, na Fenomenologia
sociais atuais para se realizar. do Espírito, de “as leis do coração”. Leis estas para as quais o curso do mundo é
Esta é uma maneira de lembrar que, afinal, um ordenamento jurídico necessariamente pervertido. Contra tal hipóstase da autenticidade, para a qual
estatal está longe de ser algo monolítico e organicamente coeso. Antes, ele é o todo direito é apenas uma forma velada de violência, Hegel quer defender
resultado heteróclito da sedimentação de lutas sociais entre várias disposições afirmações como: “A liberdade é apenas isto, conhecer e querer tais objetos
contrárias e mesmo contraditórias no interior da sociedade. O ordenamento substanciais universais como o direito e a Lei e produzir uma realidade
jurídico traz as marcas destas lutas e conflitos. Neste sentido, cabe à filosofia do (Wirklichkeit) que lhes é conforme : o Estado”154.
direito apresentar quais lutas e conflitos definiram a tendência de racionalidade Uma afirmação desta natureza é facilmente objeto das piores confusões.
do ordenamento jurídico. Talvez seja por isto que Hegel precise terminar seu “Livre é a vontade que deseja a Lei”: não é difícil ouvir, nesta frase orwelliana, a
prefácio à Filosofia do direito com a bela metáfora da filosofia como a coruja de confissão de uma filosofia que parece não compreender o sentido de
Minerva que levanta vôo apenas com a irrupção do crepúsculo. Pois a filosofia experiências, tão comuns em nossas sociedades, de dissociação entre direito e
procura mostrar como os conflitos sociais que dão forma ao direito, que justiça. Pois o que dizer quando estamos diante de leis injustas? E,
imprimem tendências no interior do direito, são mobilizações do Espírito na sua principalmente, por que falar isto em um momento no qual o estado prussiano
procura em realizar o conceito de liberdade no interior da vida social. Uma estava animado pelo ímpeto do Congresso de Viena (1814-1815) e pela
realização que nunca é linear, que nunca deixa de levar em conta dimensões Restauração anti-liberal que visava aplacar de vez a influência dos ideais da
táticas e estratégicas do pensamento, assim como a configuração de situações Revolução Francesa? No entanto, devemos salientar um ponto fundamental:
locais. Mas uma realização que, ao menos segundo Hegel, já teria sido capaz de “Não existe revolução na história da humanidade que não tenha sido apoiada e
deixar marcas irreversíveis em nosso ordenamento jurídico, principalmente celebrada por esse filósofo que também tem fama de ser um incurável homem da
depois do Código napoleônico e do impacto da Revolução Francesa. ordem”155, seja a revolução americana, seja a revolução haitiana de Toussaint
Desta forma, por insistir que a vontade livre só pode ser pensada como L’ouverture, as revoltas da plebe contra os patrícios, a rebelião dos escravos sob
efetivação de pressupostos que devem estar em processo de institucionalização o comando de Spartacus, a revolta camponesa na época da reforma ou ainda a
na vida social, Hegel precisa fazer a crítica de dois modelos hegemônicos de revolução francesa.
liberdade: um baseado na hipóstase das exigências de autenticidade e outro Mas Hegel saberá ter palavras duras contra o jacobinismo e o terror
baseado na hipóstase das exigências de autonomia. A hipóstase destes dois revolucionário. Hegel sabe que o terror é o resultado desastroso da primeira
modelos nos leva à perpetuação da contradição entre liberdade e instituição, manifestação de um conceito de liberdade que tem no seu bojo o momento da
contradição inaceitável para Hegel. Pois a autenticidade, quando hipostasiada, só liberdade negativa enunciada em nome da autenticidade entusiasmada do
poderia produzir uma noção de liberdade negativa que, quando utilizada como sentimento. Ele é a “liberdade absoluta” transformada em fúria da destruição,
guia para a ação política, nos leva diretamente ao terror. Já a autonomia, quando pois liberdade que não reconhece nenhuma possibilidade de sua
hipostasiada, produz uma noção de livre-arbítrio que, ao servir de guia para a institucionalização, que vê todo direito como perda da espontaneidade livre do
ação política, acaba por levar a uma profunda atomização social produzida pela entusiasmo revolucionário e que, por isto, se volta contra tudo que procura
elevação da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social. Vejamos determiná-la, contra todo governo. Como Hegel dirá na Fenomenologia do
cada uma destas distorções do conceito de liberdade, que não deixam de tecer Espírito, para esta liberdade absoluta: “O que se chama governo é apenas a facção
relações entre si. Ao fim, poderemos compreender melhor qual é a especificidade vitoriosa, e no fato mesmo de ser facção, reside a necessidade de sua queda, ou
do conceito hegeliano. inversamente, o fato de ser governo o torna facção e culpado”156. Afinal, o terror
jacobino nada tem a ver com a simples violência totalitária do Estado contra
Da liberdade negativa ao terror setores descontentes da sociedade civil. Na verdade, ele foi o movimento
autofágico de destruição da sociedade e de auto-destruição do Estado, isto até o
Se se contrapõe ao direito positivo e às leis o sentimento do coração, a
inclinação e o arbítrio (Willkür), não pode ser a Filosofia, pelo menos, que
reconhece tais autoridades. – O fato de que a violência e a tirania possam 153
Idem, par. 3
154
HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, p. 82
155
LOSURDO, Domenico, Hegel, Marx e a tradição liberal, São Paulo : Unesp, 1997, p. 155
152 156
HEGEL, ibidem, p. 26 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, vol II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 97.
momento em que os próprios líderes jacobinos terminaram na guilhotina. O De fato, Hegel reconhece que a pura indeterminação da vontade só pode
jacobinismo é a figura reflexiva do terror que se volta contra si mesmo. nos levar a um impasse tanto existencial quanto político. Podemos dizer que nos
No entanto, e isto se esquece muitas vezes, Hegel não deixa de salientar dois casos, não se vai além de uma “estetização da violência”, seja da violência
que tal momento negativo da liberdade é um momento necessário da história do contra si que se realiza na insatisfação absoluta, na inadequação recorrente de
Espírito. Para compreender isto, devemos definir melhor o que Hegel entende todo agir e julgar, seja da violência política contra toda e qualquer instituição. No
por “liberdade negativa”. No parágrafo 5 da sua Filosofia do direito, Hegel faz a entanto, um dos problemas maiores da modernidade, ao menos segundo Hegel,
seguinte afirmação: problema este que está na base da sua filosofia do direito, pode ser
compreendido da seguinte forma: como viabilizar o reconhecimento
A vontade contém ) o elemento da pura indeterminidade ou da pura institucional de sujeitos pensados enquanto modos singulares de confrontação
reflexão do eu dentro de si, na qual estão dissolvidas toda restrição, todo com o que se oferece como indeterminado e negativo? Sendo assim, tudo se
conteúdo imediatamente aí-presente pela natureza, pelas carências, pelos passa como se fosse questão de pensar a política e a continuidade dos ideais da
desejos e impulsos, ou dados e determinados pelo que quer que seja; a Revolução Francesa após o impasse jacobino.
infinitude irrestrita da abstração absoluta ou universalidade, o puro Como veremos, esta é questão de difícil equação. Toda a complexidade
pensamento de si mesmo157. vem do fato da liberdade dever ser capaz de determinar seus objetos no interior
da vida social, de fazê-los reconhecer, mas sem simplesmente anular o momento
A noção de “liberdade negativa”, enquanto primeiro momento da vontade, negativo que é imanente ao conceito moderno de liberdade e que encontrou sua
aparece pois como possibilidade de me liberar de toda determinidade, ser expressão inicial deformada no terror jacobino. Assim, de uma maneira bastante
absolutamente para si, como vemos no famoso início da dialética do Senhor e do peculiar, o Estado que Hegel procura pensar é o Estado pós-revolucionário
Escravo. Daí a noção de “abstração absoluta”, noção que indica a posição de uma constitucional, Estado capaz de levar em conta as exigências de reconhecimento e
incondicionalidade que aparece como a primeira manifestação da de universalidade postas em circulação pela Revolução Francesa.
universalidade. Incondicionalidade que, por sua vez, procura a todo momento
reafirmar sua inadequação às determinações postas. Um pouco como se o O formalismo do livre-arbítrio
jacobinismo fosse a realização política de um desejo pensado como pura
negatividade. Por isto, a hipóstase desse momento negativo da liberdade é Mas, por enquanto, voltemos às críticas feitas por Hegel a modelos
descrito por Hegel em termos bastantes duros: hegemônicos de liberdade. Como foi dito anteriormente, Hegel também critica
um modelo de liberdade que hipostasia a noção de autonomia. Quando
É a liberdade do vazio, que, erigida em figura efetiva ou em paixão, e hipostasiada, tal noção produz uma idéia de livre-arbítrio que, ao servir de guia
permanecendo meramente teórica, torna-se, no domínio religioso, o para a ação política, acaba por levar a uma profunda atomização social resultante
fanatismo da contemplação pura dos hindus, mas, volvendo-se para a da elevação da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social.
efetividade, torna-se, no domínio político, assim como no religioso, o Tentemos entender melhor este ponto.
fanatismo do destroçamento de toda ordem social subsistente, e a Sabemos como a noção moderna de autonomia nos aparece,
eliminação dos indivíduos suspeitos a uma determinada ordem, assim normalmente, como a capacidade dos sujeitos porem para si mesmos a sua
como, o aniquilamento de toda organização que queira novamente vir à própria Lei moral, transformando-se assim em agentes morais capazes de se
tona. Somente quando ela destrói algo é que esta vontade negativa tem o auto-governar. Esta lei que os sujeitos prescrevem para si mesmos a fim de se
sentimento de sua existência. afirmarem como autônomos não é, como sabemos, uma lei particular, ligada aos
interesses egoístas da pessoa privada. Antes, ela é incondicional, categórica e
No entanto, e este ponto deve ser salientado, Hegel lembra que é exclusivo do universal. Lei capaz de abrir as portas para o reconhecimento de um campo
querer humano esta capacidade de abstrair-se de tudo, de transcender toda intersubjetivo de validação da conduta racional e que levaria o sujeito a guiar
determinação posta. Por isto, ele deve insistir que : suas ações em direção à realização de uma ligação sistemática dos diversos seres
racionais por leis comuns. Para que ela tenha realidade, faz-se necessário então
Esta liberdade negativa ou esta liberdade do entendimento é unilateral, que os sujeitos tenham algo mais do que desejos particulares e “patológicos”.
mas esta unilateralidade sempre contém em si uma determinação Eles precisam ter uma vontade pura que age por amor à universalidade da Lei.
essencial: portanto, não é de se rejeitá-la, mas a deficiência do Vontade que se coloca como dever. Pois, através do dever, a consciência pode dar
entendimento está em que ele ergue uma determinação unilateral à para si mesma sua própria lei, julgar sua própria ação como quem se cinde entre
condição de única e suprema. uma consciência que age e uma consciência que julga. No entanto, lembrará
Hegel, a perpetuação da moralidade sob a forma do dever só pode produzir um
impasse. Pois: “A ‘moral’ não é uma confrontação perpétua entre o homem tal

157
HEGEL, Grundlilien ..., par. 5
como ele ‘é’ e este mesmo homem tal qual ele ‘deve ser’”158. Tal confrontação, se o próximo com inteligência; um amor não inteligente talvez lhe faria mais danos
perpetuada, só poderá nos levar à completa desarticulação da capacidade de que o ódio”. Esta cláusula de relativização pode parecer anódina, mas ela acaba
agir. por introduzir um princípio de fragmentação ligado à individualidade e aos
Hegel insiste, em vários momentos, que a desarticulação da capacidade de motivos psicológicos que interferem na aplicação da máxima. Pois o que pode ser
agir presente em tal concepção de autonomia tem um nome: “formalismo”. Neste um “amor inteligente” a não ser aquele que me parece como tal a partir das
contexto, formalismo significa que a fundamentação da ação moral através da experiências afetivas que tive e do modelo de amor que recebi? Se esse for o
pura forma do dever não é capaz de fornecer um procedimento seguro de caso, posso ter convicção de agir de forma correta, mas tal convicção não é
decisão a respeito do conteúdo moral de minhas ações. “Fundamentação através expressão de segurança ontológica alguma. Mesmo que a máxima em questão
da pura forma do dever” significa definir a natureza moral de minha ação seja universal, seu modo de aplicação passará sempre por inflexões individuais, o
basicamente através de sua conformidade a certos procedimentos formais que nos explica, neste caso, porque experiências afetivas na qual amo o outro
enunciados em um imperativo categórico (procedimentos de universalização como a mim mesmo são tão prenhes de mal-entendidos. Nada impede o que
sem contradição, de incondicionalidade e de categoricidade). Hegel não acredita aparece a mim como “amor inteligente” ser sentido pelo outro como algo
que a fundamentação transcendental de um princípio moral possa garantir a profundamente danoso, isto devido à natureza diversa de suas experiências
clarificação de seus modos de aplicação. Ao contrário, ele insiste a todo momento afetivas.
que uma definição meramente formal do dever cai, necessariamente, em uma A única maneira de não cair em alguma forma de relativismo profundo
tautologia, em uma “identidade sem conteúdo”. aqui seria apelar a uma dimensão institucional que, por ser intersubjetivamente
Podemos compreender este ponto da seguinte maneira: na verdade, o partilhada e por estar na base da formação de todas as individualidades,
dever, embora sendo aparentemente formal, tem um “conteúdo”, que é, no fundo, forneceria a coesão social necessária para práticas serem avaliadas de maneira
o nome hegeliano para “particularização de contextos de ação”. Maneira de relativamente segura. O que explica porque Hegel faz um comentário
lembrar que a determinação do sentido da ação moral não é fruto exclusivo de aparentemente temerário como: “Mas o bem fazer essencial e inteligente é, em
considerações procedurais. Ela exige uma articulação complexa referente à sua figura mais rica e mais importante, o agir inteligente universal do Estado.
atualização de contextos particulares de ação. Pois o dever aparece no interior de Comparado com esse agir, o agir do indivíduo como indivíduo é, em geral, algo
situações particulares de ação, situações nas quais tenho um conteúdo definido tão insignificante que quase não vale a pena falar dele”160.
(“devo ou não roubar esta mercadoria se tenho fome e não tenho dinheiro”, Essa é a maneira hegeliana de dizer que não há ação moral sem a
“devo ou não largar minha mulher por um outro amor”). Isto demonstra como o referência a normas institucionais que reconheço como justas e legítimas por já
dever é atividade tendo em vista sua realização na exterioridade. Ele se curva ao se demonstrarem capazes de garantir as condições sociais para a realização da
cálculo de uma pragmática contextualizada e intersubjetivamente estruturada. Só liberdade. Podemos criticar a crença hegeliana de que tais normas encontrariam
a partir daí a atividade pode ser capaz de por para si mesma um fim. Isto explica sua figura exemplar no Estado moderno, podemos também relativizar o
a definição dada por Hegel de moralidade: “princípio de jurisprudência” que me leva a projetar ações futuras a partir das
consequências realizadas por ações semelhantes no passado, mas isto não
O conceito de moralidade é o relacionar-se interior da vontade a si invalida a compreensão hegeliana de que, ao invés de nos referirmos a
mesma. Mas, aqui, não há somente uma vontade, senão que a objetivação normatividades transcendentais, devemos procurar a fundamentação de
tem simultaneamente dentro de si a determinação de que a vontade julgamentos morais a partir da racionalidade de instituições sociais.
singular se supera na objetivação, e, portanto, precisamente com isso, ao Este é o pano de fundo para compreender porque Hegel insiste várias
eliminar-se a determinação da unilateralidade, são postas duas vontades vezes que a vontade livre que delibera, não delibera sob a forma do arbítrio. Pois
e uma relação positiva das mesmas uma à outra159. quem diz arbítrio, diz escolha como se não houvesse nenhuma determinação
causal exterior à própria espontaneidade da decisão individual. Mas Hegel insiste
Ou seja, a moralidade só encontra seu fundamento quando é capaz de se que uma escolha feita nestas circunstâncias é uma abstração em relação aos
colocar não como vontade individual, mas como vontade que traz em si mesmo a processos efetivos de determinação do sentido da ação. Ela não perceberá quão
referencia à “vontade dos outros” (termo muito menos claro do que possa pouco há a escolher quando a situação na qual a ação se insere não é
inicialmente parecer). Por isto, Hegel deve dizer que: “A ação contém as reflexivamente apreendida. Por isto, ele deve dizer : “visto que somente o
determinações indicadas: a) de ser sabida por mim na sua exterioridade como elemento formal da autodeterminação livre é imanente ao arbítrio, e o outro
minha, b) de ser a relação essencial ao conceito como a um dever-ser e c) de ser a elemento, em contrapartida, lhe é algo dado, o arbítrio, se é que ele deve ser a
relação essencial à vontade dos outros”. liberdade, pode com certeza ser chamado uma ilusão”. Em certo sentido, a ação
Por exemplo, Hegel lembra da máxima com aspirações universais : “Ama moral é aquela que permite a realização do Estado justo.
ao próximo como a ti mesmo”. No fundo, ela só pode significar, dirá: “Devo amar

158 160
FLEISCHMANN, Eugène; La philosophie politique de Hegel, Paris : Gallimard, 1992, p. 118 HEGEL, Georg F. W. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1991,
159
Idem, par. 112 parágrafo 425
O risco da atomização social A tendência a buscar dentro de si, voltando-se para o interior, o que é justo
e bom, e a sabê-lo e determiná-lo a partir de si, aparece, enquanto
Caso não ocorra a revelação de uma verdadeira intencionalidade coletiva, configuração mais geral na História (em Sócrates, nos Estóicos, etc.), em
a constituição da autonomia levará à generalização de uma forma de ação épocas em que aquilo que vige na efetividade e nos costumes como justo e
incapaz de compreender sistemas de motivações para além do quadro das como bom não pode satisfazer a uma vontade melhor; quando o mundo
vontades individuais. Por ter uma compreensão da significação da ação ligada à existente da liberdade tornou-se infiel a essa vontade, ela não se encontra
dinâmica de auto-certificação de uma consciência solipsista, tal autonomia, para mais a si mesma nos deveres vigentes e deve procurar obter a harmonia,
Hegel, é uma autonomia de indivíduos isolados. Desta forma, as exigências de perdida na efetividade, somente na interioridade ideal161.
autonomia se realizam politicamente como valor mobilizado para a justificativa
da constituição de uma sociedade de indivíduos onde todas as relações sociais Hegel sabe que sua época também conhece tal “crise de legitimidade”. Sua
são pensadas sob a forma do contrato: figura maior do acordo negativo (e único descrença em relação ao fortalecimento do indivíduo como elemento de
acordo possível) entre vontades individuais. Para Hegel, isto significa uma contraposição a tal tendência vem, entre outras coisas, da consciência das suas
sociedade assombrada por um irreversível processo de atomização social e de conseqüências catastróficas no plano sócio-econômico. Pois a atomização social
desagregação. não implica apenas transferência do pólo de decisão sobre a orientação da
Hegel vê como sintomático que autores para os quais a autonomia conduta para os ombros dos indivíduos. Ela implica também um modo atomizado
individual é a pedra de toque da razão prática só sejam capazes de pensar a de compreensão da dinâmica da vida social, compreensão da vida social como
natureza das relações sócio-políticas a partir da forma do contrato. Ele justaposição de vontades individuais. Fato que não deve nos surpreender já que
compreende que a tendência contratualista parte da situação social atomizada de modelos de reflexão sobre a estrutura do sujeito moral servem, normalmente,
indivíduos portadores de interesses que devem ser restringidos pelos interesses como modelos gerais para a compreensão dos modos de ação social a partir de
de outros indivíduos. Restrição que, normalmente, legitima-se através da ficção valores e normas. Agimos moralmente da mesma forma que agimos socialmente,
jurídica de um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de ou seja, utilizando a mesma estrutura de julgamento e orientação.
serem socialmente realizados e abro mão daqueles que não se submetem a esta Sendo assim, podemos dizer que os modelos da autonomia individual e do
condição. livre-arbítrio acabam por produzir uma imagem da sociedade como conjunto de
Por outro lado, se o contrato é um momento importante da efetivação da normas, instituições e regras capazes de garantir a plena realização dos sistemas
liberdade, já que a propriedade privada é, por sua vez, um momento necessário particulares de interesses que se orientam a partir de sua própria visão sobre a
da vontade que se exterioriza e quer se fazer reconhecer em sua particularidade, realização do bem e das riquezas. Hegel é um dos primeiros a compreender que,
a generalização da figura do contrato para a totalidade da vida social é uma quando transplantado para a esfera das relações econômicas tal processo
distorção e uma patologia. Longe de ser um modelo de coesão social, a metáfora produz, necessariamente, pauperização e alienação social. Neste ponto,
do contrato é a evidência de que estamos diante de uma sociedade em processo podemos sentir a importância da leitura hegeliana dos economistas britânicos.
de desagregação. O casamento, a relação ao Estado, a relação do pai aos filhos Tal leitura fora fundamental para a compreensão hegeliana da complexidade
não são contratos. Elas são relações de outra natureza, algo muito diferente do funcional das sociedades modernas.
tipo de relação que posso estabelecer com coisas a respeito das quais sou Esta passagem em direção à economia política é justificada. Como Hegel
proprietário (como é o caso das relações contratuais). Quando elas são pensadas opera com um conceito de liberdade para o qual a definição das condições
sob a forma do contrato, é porque perderam completamente sua sociais de sua efetivação é um problema interno à própria definição do conceito,
substancialidade. Por não saberem se portar no interior da ação social, por terem ele deve poder descrever as situações nas quais o funcionamento da vida social
perdido a coesão social que permite relações concretas de reconhecimento, os não fornece mais os pressupostos para a realização as aspirações, entre outras,
sujeitos se apegam à compreensão reificada do comportamento de outros da autonomia individual. Um pressuposto fundamental está relacionado ao
sujeitos como se tratassem de coisas que podem ser postas em cláusulas de um funcionamento da esfera econômica, base da constituição daquilo que Hegel
contrato. entende por sociedade civil. Podemos dizer isto porque, para Hegel, problemas
Hegel deve fazer esta leitura porque compreende o advento das de redistribuição e de alienação na esfera econômica do trabalho são um setor
sociedades modernas de livre-mercado como movimento preso a tal modo de decisivo de problemas mais gerais de reconhecimento social.
definir as relações sociais. Por isto, tratam-se de sociedades assombradas pelo Neste sentido, por exemplo, processos de pauperização não serão vistos
risco de atomização social. Por “atomização social” devemos entender um por Hegel apenas como problemas de “justiça social”, mas sim como problemas
processo interno às sociedades civis capitalistas de enfraquecimento da força de condições de efetivação da liberdade. Pois não é possível ser livre sendo
normativa do vínculo social e de fortalecimento das demandas de decisão em miserável. Livres escolhas são radicalmente limitadas na pobreza e, por
direção aos indivíduos. Hegel descreve uma das facetas deste processo da conseqüência, na subserviência social. Posso ter a ilusão de que, mesmo com
seguinte forma: restrições, continuo a pensar livremente, a deliberar a partir de meu livre-

161
HEGEL, ibidem, par. 138
arbítrio individual. Um pouco como o estóico Epiteto, que dizia ser livre mesmo sentimento e ao gozo de outras faculdades da sociedade civil, em especial
sendo escravo. No entanto, uma liberdade que se reduziu à condição de puro dos proveitos espirituais163.
pensamento é simplesmente inefetiva, isto no sentido dela determinar em muito
pouco as motivações para o nosso agir. O modo de inserção no universo do trabalho depende, segundo Hegel, de
Já o jovem Hegel afirmava que, ao procurar a realização do bem e das uma relação entre capital e talentos que tenho e que sou capaz de desenvolver.
riquezas através da referência a seu próprio sistema particular de interesses, a Isto implica não apenas entrada desigual no universo do trabalho, mas também
sociedade conhece um processo de multiplicação de necessidades e afirmação tendência à concentração da circulação de riquezas nas mãos dos que já dispõem
dos interesses. Da mesma forma que as necessidades se desdobram, os meios de riquezas, assim como o consequente aumento da fratura social e da
para satisfazê-las se multiplicam e se complexificam, criando assim tanto a desvalorização cada vez maior do trabalho submetido à divisão do trabalho. É
riqueza, o refinamento, quanto o desenvolvimento e, principalmente, o neste contexto que aparece a ralé (Pöbel):
aprofundando a dependência entre os homens. O que leva Hegel a afirmar:
“Enquanto existência real, as necessidades e os meios advém ser para outro A queda de uma grande massa de indivíduos abaixo do nível de um certo
através dos quais as necessidades e o trabalho de cada um é reciprocamente modo de subsistência necessário a um membro da sociedade, queda que
condicionado”162. Pois meu trabalho advém um meio para a satisfação dos conduz à perda do sentimento do direito, de retidão e honra que se tem
outros, assim como minha satisfação depende do trabalho dos outros. É a isto quando se vive através de sua própria atividade e trabalho, produz a ralé
que Hegel chama de “sistema de necessidades”. e, ao mesmo tempo, a facilidade de concentrar fortunas desproporcionais
No entanto, Hegel insiste que este sistema de necessidades construído em poucas mãos164.
através da múltipla dependência dos trabalhos tem como conseqüência
inelutável a divisão do trabalho. Desde sua juventude, Hegel percebe que o O advento da ralé é um problema central por mostrar os limites das
desenvolvimento das sociedades modernas de livre mercado exige uma possibilidades de reconhecimento no interior da sociedade civil. Hegel chega a
especialização cada vez maior dos trabalhos, fruto da complexificação dos afirmar que por mais que a sociedade civil seja rica, ela nunca é suficientemente
objetos produzidos e da ampliação da produção em larga escala. Hegel sabe que rica para eliminar a pobreza, já que a integração desta massa via assistência
tal processo leva necessariamente à simplificação e à abstração mecânica na filantrópica implica quebrar a autonomia de quem garante sua subsistência
esfera do trabalho que, por fim, produz a substituição do homem pela máquina, através do próprio trabalho, mas o trabalho de todos produzirá necessariamente
como vemos no parágrafo 198 dos Princípios da filosofia do direito. Neste sentido, crises de sobreprodução e desvalorização do trabalho. Este problema, cuja única
ele é talvez o primeiro a compreender que a mecanização e a automatização são saída será o imperialismo e o colonialismo e a consequente perpetuação de
conseqüências inelutáveis das sociedades modernas. Conseqüências que relações de dominação e servidão, tem a força de bloquear a possibilidade da
produzem um sofrimento social de alienação devido à dependência dos sujeitos a efetivação de uma forma de vida regulada pelo conceito de liberdade, o que
um modo de exteriorização que os mortificam. Ou seja, ao procurar a realização mostra como problemas de reconhecimento e de redistribuição estão vinculados
do bem e das riquezas através da referência a seu próprio sistema particular de e, para Hegel, não podem ser solucionados no interior da estrutura de
interesses, ocorre uma modificação fundamental na estrutura do trabalho como reprodução social das sociedades liberais. É por isto que Hegel apela ao Estado.
espaço de reconhecimento.
No entanto, Hegel reconhece outro problema social grave devido ao modo A eticidade e a dupla função do Estado
de organização do trabalho nas sociedades liberais. Ele está indicado no seguinte
trecho dos Princípios da filosofia do direito: A resposta que Hegel dará contra estes dois riscos de desagregação da vida social
impulsionados pela hipóstase de modelos de liberdade baseados na autonomia e
Quando a sociedade civil não se encontra impedida em sua eficácia, então a autenticidade passará pelo fortalecimento do Estado. Para que este
em si mesma ela realiza uma progressão de sua população e indústria. fortalecimento seja possível sem que ele implique mera violência, algo destes
Através da universalização das conexões entre os homens devido a suas dois modelos deve ser conservado.
necessidades e ao crescimento dos meios de elaboração e transporte Por um lado, o Estado deverá dar um objeto à liberdade negativa, dar uma
destinados a satisfazê-las, cresce, de um lado, a acumulação de fortunas – forma institucional à negação impedindo que os indivíduos se petrifiquem em
porque se tira o maior proveito desta dupla universalidade. Da mesma determinações sociais estanques (como “membro de um estamento”,
forma, do outro lado, cresce o isolamento e a limitação do trabalho “representante de um interesse de classe”). Isto será apresentado através das
particular e, com isto, a dependência e a extrema necessidade (Not) da considerações hegelianas sobre a guerra. Através da guerra, o Estado completará
classe (Klasse) ligada a este trabalho, a qual se vincula a incapacidade ao um intrincado processo de formação das individualidades através da
internalização do caráter formador da experiência da negatividade da morte.
Este é um tema recorrente em Hegel e podemos encontrá-lo, por exemplo, na
163
HEGEL, ibidem, par. 243
162 164
Idem, Grundlinien ..., op. cit., par. 192 Idem, par. 244
Fenomenologia do Espírito, à ocasião da compreensão do confrontar-se com a Há várias formas de se pensar tal processo sem precisar passar por esta apologia
morte como ir em direção ao fundamento da existência165. Se voltarmos à outro hegeliana da guerra, certamente questionável e dificilmente defensável, não
momento da Fenomenologia, este dedicado à seção “Espírito”, encontraremos apenas nas condições atuais, mas já em sua época. Por isto, para além da
colocações como: enunciação literal, devemos saber como recuperar tal motivo que, no fundo,
expõe a relação necessária entre negatividade e Estado.
Para não deixar que os indivíduos se enraízem e endureçam nesse isolar- Se o problema das exigências de autenticidade pode ser regulado desta
se e que, desta forma, o todo se desagregue e o espírito se evapore, o forma, o problema da autonomia exigirá, por sua vez, um Estado que forneça as
governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu íntimo pelas condições sociais para a autonomia reencontrar-se nos sistemas sociais de
guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito à julgamento. Isto nós vemos no interior das considerações hegelianas sobre a
independência. Quanto aos indivíduos, que afundados nessa rotina e eticidade. Ela deve fornecer a estrutura institucional para que as aspirações
direito se desprendem do todo aspiram ao ser para-si inviolável e à individuais de autonomia sejam efetivadas. Tal estrutura engloba, inclusive, a
segurança da pessoa, o governo, no trabalho que lhes impõe, deve dar- obrigação estatal de lutar contra a fratura social inerente ao funcionamento da
lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissolução da forma da sociedade civil no interior da dinâmica capitalista de desenvolvimento. A vida
subsistência, o espírito impede o soçobrar do Dasein ético no natural, ética não é indiferente à questão social, à obrigação de institucionalização de
preserva o Si de sua consciência e o eleva à liberdade e à força. A essência políticas de combate à pauperização (consequência que podemos derivar da
negativa se mostra como a potência peculiar da comunidade e como a Filosofia do direito, mesmo que ela não esteja descrita na obra). No entanto,
força de sua autoconservação166. devemos analisar melhor o tipo de consolidação de costumes e modos de
julgamento que a noção de “eticidade” aplicada à vida moderna pode ser capaz
Podemos afirmar que, se o governo não repousa sobre uma promessa de de garantir.
paz, é porque o processo de formação, que se iniciou na família, deve animar os Notemos apenas que o Estado moderno tem uma dupla função
processos de interação social enquanto meios para a realização da subjetividade aparentemente contraditória. Ele deve acolher a experiência de indeterminação
como universalidade desprovida de toda aderência ao Dasein natural, enquanto o que habita as individualidades e ele deve fornecer as determinações necessárias
que se realiza através de um trabalho que é confrontação com a fragilização das para a efetivação da autonomia através da constituição de um conjunto de leis
imagens estáticas do mundo. positivas universalizáveis. Ele fornece um conjunto de regras sociais, assim como
Notemos que esta guerra da qual fala Hegel não é a explosão de ódio fornece o modo de expressão daquilo que, nos sujeitos, é refratário à
resultante da lesão da propriedade particular ou do dano a mim enquanto determinação no interior de regras sociais. Ele, ao mesmo tempo, cria instituições
indivíduo particular. A guerra é campo de “sacrifício do singular ao universal e gere a indeterminação. Para ser mais claro, para Hegel, o Estado é uma
enquanto risco aceito”167. Se na Grécia, tal guerra era, de fato, movimento instituição capaz de gerir a indeterminação, de superá-la sem simplesmente
presente na vida ética do povo, já que o fazer a guerra era condição exigida de negá-la. O Estado deve realizar o que a sociedade civil não é capaz de realizar
todo cidadão, não deixa de ser verdade que Hegel concebe aqui o estado como o (como políticas de redistribuição que permitam dar realidade às demandas
que dissolve a segurança e a fixidez das determinações finitas. A guerra é o nome sócias de reconhecimento) e, principalmente, deve retirar os sujeitos de sua
do processo que demonstra como a aniquilação do finito é modo de manifestação completa imersão na mera condição de indivíduos providos de sistemas
de sua essência. particulares de interesses. De uma certa forma, o Estado des-individualiza os
Não se trata aqui de fazer a apologia do estado belicista, mas de procurar, sujeitos. No entanto, esta des-individualizacao é condição para a liberdade, pois é
para além de sua enunciação literal, a função efetiva de tais colocações. De fato, a possibilidade de abertura do sujeito para algo mais do que a forma isolada e
hipótese que gostaria de defender consiste em afirmar que tais colocações sobre atomizada do indivíduo. Pois Hegel sabe que podemos sofrer por não sermos um
a guerra dizem muito a respeito da configuração necessária de instituições e indivíduo, ou seja, por não termos conseguido nos realizado como
práticas sociais que queiram estar à altura das exigências da modernidade. O que individualidade capaz de se fazer reconhecer no interior da vida social. No
é importante nesta reflexão sobre a guerra é a compreensão de que instituições entanto, podemos sofrer também por ser apenas um indivíduo, um sofrimento
que queiram ser capazes de reconhecer sujeitos não substanciais devem fundar- que ganha a forma do isolamento, do esvaziamento e incapacidade de se orientar
se em práticas sociais pensadas a partir de um trabalho que é reconhecimento da no interior da ação social.
soberania de uma figura da negação cuja manifestação fenomenológica pode ser
uma certa morte simbólica. Trata-se da figura de instituições sociais que não
tenham mais por função identificar sujeitos em identidades e determinações fixas.

165
Discuti este ponto em SAFATLE, Vladimir; O amor é mais frio que a morte : negatividade,
infinitude e indeterminação na teoria hegeliana do desejo, op. cit.
166
HEGEL, ibidem, p. 455
167
SOUCHE-DAGUES, Liberté et négativité dans la pensée politique de Hegel, Paris : Vrin, 1997, p.
26.
Lógicas do reconhecimento desregulação das normas sociais, como se em algum momento a normas sociais
Aula 9 não conseguiriam realizar mais a reprodução material da vida social em suas
condições normais. Na verdade, Marx vincula o sofrimento social ao caráter
paradoxal do próprio funcionamento normal da normatividade imanente às
A aula de hoje será dedicada ao conceito de reconhecimento a partir da filosofia sociedades capitalistas. Lembremos como, em Marx, a alienação não está ligada
de Marx. A princípio, esta colocação parece inadequada, pois não há, de forma apenas à espoliação econômica na esfera do trabalho devido a alguma forma de
explícita, uma teoria do reconhecimento em Marx. Ou seja, Marx não fala troca injusta na qual não receberia o valor justo pelo meu trabalho. Primeiro,
claramente sobre o problema, como vemos em Hegel. No entanto, como gostaria Marx lembra, a partir de sua teoria da mais valia, que a espoliação é condição do
de defender, o problema do reconhecimento é o horizonte normativo funcionamento “justo” ligado ao valor da força de trabalho. Até porque, a mais
fundamental da crítica marxista. Podemos fazer uma afirmação desta natureza valia é fruto da defasagem entre o valor da força de trabalho e do valor
porque a reflexão crítica de Marx tem por horizonte a realização concreta de produzido pelo consumo da força de trabalho no interior do processo de
exigências de emancipação social. Neste sentido, a filosofia social de Marx exige produção de mercadorias.
um esclarecimento a respeito do potencial normativo do conceito de liberdade, Segundo, Marx lembrará que, devido à divisão do trabalho e à
assim como a respeito de suas formas de atualização. predominância de uma apropriação de si reduzida à condição da possessão, o
No entanto, sabemos que Marx, ao invés de começar a pensar o problema sofrimento de alienação estará ligado ao caráter restritivo das identidades
a partir de uma reflexão moral a respeito da liberdade, como faz por exemplo sociais, com a assunção de si enquanto pessoa funcionalizada e submetida à
Kant em sua Crítica da razão prática, parte de um diagnóstico de sofrimento lógica da determinação por propriedades. Ou seja, não se trata apenas de um
social. Esta noção de diagnóstico de sofrimento social é importante aqui, pois a problema de espoliação, mas de reconhecimento. Neste sentido, é claro que a
filosofia enquanto discurso deverá se transmutar em Marx a fim de receber a normalidade em Marx não está presente em uma média aritmética que expressa
forma de uma mobilização discursiva tendo em vista garantir as condições para a funcionalidade do sistema. Mas há de se insistir também que ela só pode
uma prática de luta efetiva contra o sofrimento social. Podemos falar em aparecer através de uma reconciliação que não é apenas aperfeiçoamento de um
“sofrimento social” porque o fenômeno descrito por Marx bloqueia as condições progresso histórico, mas que está posta radicalmente fora do ordenamento
de realização dos sujeitos enquanto sujeitos livres, produzindo não apenas social atual. Ou seja, ela está em uma situação fora do tempo presente com suas
situações de injustiça social, mas situações de limitações para aspirações de figuras de subjetividade, o que explica porque a temática da revolução é tão
auto-realização. Tais limitações se expressam em formas variadas de patologias, central no pensamento de Marx.
como a funcionalização da personalidade, o esvaziamento, o estranhamento em
relação à própria atividade, entre tantos outros. Uma teoria da alienação
Sabemos como Marx dá um nome a tal fenômeno de sofrimento social, a
saber, alienação. Há autores que gostariam de restringir as discussões de Marx Proponho então analisar a emergência da teoria da alienação no jovem Marx. Isto
sobre alienação a primeira fase de seu pensamento, esta que vai até A ideologia implica inicialmente lembrar como o problema da alienação em Marx está
alemã. Tal leitura, no entanto, é equivocada por não levar em conta os sistemas vinculado de forma privilegiada à categoria do trabalho. Tal vínculo se justifica
motivacionais que levam à ação política, mesmo no Marx de maturidade. porque Marx acredita não apenas que o trabalho social é forma de criação de
A respeito do conceito de alienação, lembremos inicialmente como ele vínculos de mutualismo e solidariedade. Na verdade, o trabalho é forma de uma
está presente em Rousseau, isto a partir de um apelo a um fundamento certa indução material da sensibilidade. Através dos regimes e modos de
antropológico esquecido na origem. A temática do estado de natureza serve para trabalho, as formas da sensibilidade são constituídas, assim como a forma do
fornecer uma “etiologia” do sofrimento social e do sentimento de perda de si que espaço, do tempo, das intensidades e dos ritmos da percepção. A repetição
a vida em sociedade implica. Quando a temática da alienação aparecer em Hegel, material destas formas, produzida por injunções de sobrevivência social, tem a
ela não precisará mais fazer apelo a um fundamento antropológico bloqueado força de bloquear os efeitos de qualquer reconfiguração conceitual do campo de
pelos processos de desenvolvimento social, como seria o caso em Rousseau. O experiências. Por isto, para Marx, toda transformação que não passar pela
fundamento da crítica não seria mais dado por um antropologia filosófica, mas transformação das condições de trabalho será meramente abstrata, inefetiva. No
por uma filosofia da história. Trata-se, na verdade, de denunciar esta perda da entanto, tal transformação, como gostaria de mostrar não está vinculada
força reguladora do vínculo social em direção à progressão histórica capaz de exclusivamente a um problema de redistribuição de bens e riquezas.
assegurar a institucionalização de vínculos sociais racionais com força para Comecemos então pelo jovem Marx e suas elaborações presentes nos
instaurar processos de institucionalização da liberdade. Manuscritos econômico-filosóficos. Marx parte da centralidade do paradigma do
Este vínculo entre teoria da alienação e filosofia da história estará trabalho para perguntar se suas condições sociais atuais concretas podem
presente em Marx. Haverá um processo de desenvolvimento social que será permitir que ele realize seu próprio conceito, a saber, ser a exteriorização
responsável pelo bloqueio nas possibilidade de auto-realização dos sujeitos. (Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto capaz de circular
Haverá um sofrimento produzido por impossibilidades de reconhecimento socialmente. Isto lhe levará a uma crítica não apenas do trabalho alienado, mas
social. Este processo, no entanto, não será resultante de alguma forma de do que entendemos até agora por trabalho em seu sentido geral. Pois temos três
níveis da crítica em Marx que não devemos confundir: a) a espoliação do objeto
trabalhado, b) a espoliação do valor do trabalho e c) a alienação da atividade com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção a
humana sob a forma do trabalho que visa a produção do valor168. Os dois desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente
primeiros níveis nos levam a uma defesa da redistribuição igualitária de bens e mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
rendimentos e a um enquadre do problema da alienação no interior de uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em
teoria da miséria operária. No entanto, o terceiro nível nos coloca em outro eixo geral170.
de discussões. Marx não se contenta em dizer que o objeto trabalhado, o
resultado do trabalho está espoliado do sujeito. Ele lembra que o próprio ato da A crítica ao trabalho assalariado terá pois dois momentos distintos,
produção, a estrutura teleológica do trabalho é um forma de alienação por exigir porém complementares. Primeiro, ela é crítica da espoliação econômica através
uma compreensão do que podemos chamar de matriz disciplinar do trabalho do salário. Tal crítica está presente principalmente no primeiro capítulo do
com sua relação à propriedade privada e à elevação das “relações por possessão” Primeiro Caderno. Segundo, ela é crítica da alienação através da submissão do
à condição de modelo fundamental de determinação social. Os dois primeiros trabalho à condição de processo de produção do valor. Por sua vez, esta crítica
níveis são mais classicamente absorvidos pela crítica social que vê em Marx, está presente principalmente no quarto capítulo do Primeiro Caderno.
sobretudo, uma teoria da justiça social. No entanto, o terceiro nível é
seguramente o mais polêmico e original. Espoliação e monopólio
Ao começar pela crítica do trabalho assalariado, Marx procura mostrar
como a dissociação desta unidade ainda fundamental na realidade medieval De fato, que o salário seja expressão da espoliação econômica, eis algo que
entre capital, propriedade da terra e trabalho, com a consequente transformação Marx defende ao lembrar como o processo de valorização do Capital pressupõe
dos trabalhadores em assalariados, representava um modelo novo de salários habituais compatíveis com uma mera existência animal, como cavalos
subserviência, e não uma liberação em relação ao sistema de dependências entre que recebem apenas o suficiente para poder trabalhar. A produção da riqueza
o servo e o senhor da terra. A constituição do trabalhador como sujeito de direito econômica não se traduz em aumento paulatino e constante dos salários. Marx
que pode vender sua força de trabalho no mercado pelo melhor salário é, para compreende este aparente paradoxo a partir da dinâmica monopolista inerente
Marx, o fundamento de uma espoliação naturalizada pela racionalidade da ao desenvolvimento do capitalismo:
economia política. Ele pressupõe o processo histórico de dissociar o trabalhador
do capital e da renda da terra, levando-o à obrigação de viver puramente do Numa sociedade que se encontra em crescente prosperidade, apenas os
trabalho. mais ricos entre todos podem viver do juro sobre o dinheiro. Todos os
No Primeiro Caderno dos Manuscritos, Marx descreve este processo outros obrigam-se, com seu capital, a montar um negócio ou lançá-lo no
através do qual o capital, cujo processo de valorização é a produção efetiva da comércio. Desta maneira, a concorrência entre os capitais torna-se,
riqueza nas sociedades capitalistas, sobrepõe-se à propriedade fundiária, portanto, maior, a concentração dos capitais torna-se maior, os grandes
transformando-a em uma mercadoria como as outras Assim: “a terra como terra, capitalistas levam à ruína os pequenos, e uma parte dos capitalistas de
a renda da terra como renda da terra perderam sua qualidade social, distintiva, e outrora baixa à classe dos trabalhadores, a qual, com esta entrada, sofre,
converteram-se em capital e juro que nada dizem, ou antes, que apenas sugam em parte, novamente uma redução do salário e cai numa dependência
dinheiro” 169 . Ao submeter a propriedade fundiária à mera condição de ainda maior dos poucos grandes capitalistas171.
mercadoria inserida em um processo de valorização, o capital pode se colocar
como poder de governo sobre o trabalho e seus produtos. Daí esta definição do Ou seja, o enriquecimento implica concentração de capitais, com o
capital como trabalho armazenado. fortalecimento dos monopólios e a consequente ruínas dos pequenos
O capital governa através da redução de toda qualidade social da terra e capitalistas, que caem à condição de assalariados. Marx não se ilude a respeito da
do trabalho à condição de uma abstração geral representada pela forma- solidariedade profunda entre concorrência e monopólio. Por isto, mesmo em
mercadoria. Este mesmo processo de abstração será imposto a um trabalho cada situação de enriquecimento social, devido à pressão social produzida pelos
vez mais maquínico, dissociado e submetido à divisão do trabalho. Por isto, processos monopolistas, os salários não acompanham o crescimento. Na melhor
trabalho produtor de sofrimento social e de bloqueios de reconhecimento. das hipóteses, diz Marx, eles estacionam. Daí porque ele poderá afirmar que: “a
Trabalho submetido à condição de ser mero processo de produção do valor. Daí infelicidade da sociedade é a finalidade da economia nacional”172 e que a situação
uma afirmação maior como: mais rica da sociedade é miséria estacionária para os trabalhadores.
Para entender o raciocínio marxista do enriquecimento da sociedade
168
como miséria estacionária para os trabalhadores, devemos lembrar da diferença
Tópico muito bem desenvolvido por Moishe Postone ao afirmar: “O trabalho social não é somente o
objeto da exploração e dominação, mas é, ele próprio, o terreno da dominação. A forma não pessoal, entre pobreza absoluta e pobreza relativa. Quando a produção total se eleva,
abstrata, ‘objetiva’ de dominação carcterística do capitalismo está aparentemente relacionada à
170
dominação dos indivíduos por seu trabalho social” (POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação Idem, p. 80
171
social, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 150) MARX, Karl; Manuscritos…, pp. 26-27
169 172
MARX, Karl; Manuscritos. …, p. 94 Idem, p. 28
aumentam também as necessidades, demandas e exigências, o que significa que a verdadeira essência. Neste sentido, é difícil não aceitar que “o sujeito histórico
pobreza absoluta pode diminuir enquanto a relativa aumentar: seria nesse caso uma versão coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e
constituindo o mundo por meio do ‘trabalho’”177. Por isto, ao menos dentro de tal
O samoiedo, com seu óleo de fígado de bacalhau e peixes rançosos, não é perspectiva, não faria sentido falar do trabalho como categoria de contraposição
pobre porque na sua sociedade fechada todos tem as mesmas ao capitalismo, já que ele estaria organicamente vinculado às estruturas
necessidades. Mas num Estado que avança, que no decorrer de mais ou disciplinares de formação da natureza utilitária das relações próprias à
menos uma década aumenta a sua produção total relativamente à individualidade liberal e seus direitos de propriedade, expressando apenas
sociedade em um terço, o trabalhador que antes ou depois destes dez amplos processos de reificação.
anos ganha a mesma quantia, não ficou tão abastado quanto antes, mas
tornou-se um terço mais carente173. Gattungsleben

Isto explica porque, quanto mais o trabalhador produz, menos tem para É neste contexto que devemos tentar compreender melhor o sentido de
consumir. A pobreza relativa implica diminuição gradativa do que consigo um conceito central para o jovem Marx, a saber, a noção de “vida do gênero”
consumir em relação às exigências renovadas do meu sistema de interesse. Desta (Gattungsleben). Este é um conceito maior para compreendermos o sentido do
forma, fica claro como Marx compreende a figura do trabalho assalariado como a que Marx entende por emancipação e alienação. A própria estrutura do trabalho
perpetuação de uma forma de espoliação e sofrimento. Neste sentido, poderia como processo de produção do valor implica impossibilidade da atividade
parecer que uma saída consistiria na adoção de políticas de aumento substancial humana se colocar como exteriorização de sua Gattungswesen, de sua essência
dos salários, como queria Proudhom com sua tentativa de organizar as lutas enquanto gênero ou de seu ser do gênero. Neste contexto, a reflexividade da
sociais a partir da pauta do aumento ou mesmo da igualdade dos salários. Para consciência-de-si dá lugar ao tema da objetivação da vida do gênero. O eixo da
Marx, o problema central não é apenas os baixos salários, mas a redução do definição do conceito de alienação no jovem Marx encontra-se no bloqueio das
trabalho à forma da mercadoria que se vende, de qualidade que se abstrai. Ou possibilidades de exteriorização e objetivação da essência do gênero ou, ainda,
seja, sua crítica não é apenas à espoliação econômica, mas é uma crítica do da vida do gênero. Vamos ver este ponto como mais calma. Lembremos do
trabalho assalariado enquanto tal, ou seja, uma crítica à ideia de trabalho em seguinte trecho dos Manuscritos econômico-filosóficos:
vigor nas sociedades modernas. Isto fica claro quando Marx disser, em uma
afirmação de grande importância: “o trabalho – não apenas nas condições atuais, O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da
mas também na medida em que, em geral, sua finalidade é a mera ampliação da espécie a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a
riqueza – é pernicioso, funesto”174. medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida
Esta colocação é importante por nos lembrar que a dominação no inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da
trabalho não está ligada apenas à impossibilidade dos produtores imediatos beleza178.
disporem de sua própria produção e dos produtos por eles gerados. Não se trata
apenas de uma questão de apropriação e dominação consciente, através da Esta caracterização do homem como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida
“cooperação histórico-universal dos indivíduos”; apropriação destes “poderes adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a medida de
que, nascidos da ação de alguns homens sobre os outros, até agora se impunham qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica em relação
sobre eles, e os dominavam na condição de potências absolutamente à determinação própria a toda espécie nas suas relações de transformação do
estranhas”175. Pois, se não nos perguntarmos sobre a extensão real de tal meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente ao próprio
domínio, correremos o risco de deixar dois problemas intocados, a saber, o fato objeto179. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro, o objeto
da produção do valor (a “mera ampliação da riqueza”), como forma de riqueza e pode ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser para-
de determinação de objetos, permanecer no centro das estruturas de dominação um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo,
abstrata176 e, principalmente, o fato da relação sujeito/objeto continuar a ser superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz a tal condição de
pensada sob a forma do próprio (como expressão da consciência, seja ela falsa ou ser para-um-outro, é o que nele não se configura sob a forma de espécie alguma,
histórico-universal) e da propriedade (seja ela individual ou comunal, injusta ou não tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben)
justamente distribuída). que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de Feuerbach que, ao
O problema relativo à reflexão do trabalho acaba por definir-se como um procurar estabelecer distinções entre humanidade e animalidade, dirá que:
problema de “redistribuição de propriedade”, redistribuição do que se dispõe
diante de mim como aquilo que tem, na sua identidade para comigo, sua 177
Idem, p. 99
178
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
173 179
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 31 Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
174
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 30 espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
175
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 61 ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
176
Cf. POSTONE, idem, p. 151 como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
não reconhece sua própria imagem por não ter uma forma essencial que lhe seja
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem própria? O que dizer se aceitarmos que a experiência do espelho é confrontação
sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a consciência, com algo do qual não nos apropriamos por completo, mas que nos atravessa
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a produzindo o sentimento de uma profunda impropriedade?
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida, Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade que
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser passa à existência não pode existir como mais uma espécie, não pode se
para o qual seu próprio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter determinar tal como se determinam espécies particulares, como se disséssemos
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial algo como: “existem cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois não estamos diante
deles 180 de uma universalidade por partilha de atribuição. De certa forma, “animais” só
podem vir à existência através da desarticulação do campo de determinações
No entanto, diferente do que encontramos em Aristóteles, o gênero do que permite a organização das diferenças predicáveis responsáveis pela
qual o homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto, ele não particularização dos existentes. Neste sentido, estamos diante de uma
pode constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a definir a universalidade por excesso em relação ao espaço de manifestação de
orientação da praxis. Um gênero desprovido de archai, sem origem nem destino. particularidades. Esta é outra maneira de dizer que a universalidade a ser
Mas, e há de se salientar isto com toda força, esta monstruosidade de um gênero reconhecida não deve ser compreendida como determinação normativa capaz de
que se objetifica sem ser espécie alguma definida, gênero que imediatamente se definir, por si só, o sentido daquilo que ela subsume, mas como a força de
determina e que prenuncia a produção própria aos “indivíduos histórico- descentramento da identidade autárquica dos particulares182. A universalidade é,
universais” de A ideologia alemã, não é simplesmente a afirmação de que o neste contexto, apenas a generalização da impossibilidade do particular ser
homem só age de maneira não alienada apenas quando age conscientemente idêntico a si mesmo e a transformação desta impossibilidade em processo de
como “ser social”, ou seja, reconhecendo que sua essência, por não ser essência constituição de relações. Aceitando tal conceito de universalidade, deveremos
natural alguma, só poderia ser sua própria auto-produção, ou seja, seu “ser dizer que o trabalho que expressa a “vida do gênero” deve ser compreendido
social” genérico e historicamente determinado. Se assim fosse, a afirmação da como a fonte inesgotável dos possíveis que passa à existência, mas sem nunca
vida do gênero não seria nada mais que uma apropriação reflexiva da determinar-se por completo em um valor particular de uso totalmente
universalidade situada de minhas condições históricas, assim como da funcionalizado. Por isto, ela pode impulsionar os objetos trabalhados a uma
substância comum às relações intersubjetivas que me constituíram e que se processualidade sempre aberta sob a forma de devir contínuo.
expressa silenciosamente nos objetos que trabalho. O que nos levaria a uma Neste sentido, a expressão laboral de uma vida que é vida do gênero,
especularidade muito bem descrita involuntariamente por Feuerbach ao falar, Gattungsleben, só poderia se dar como problematização do objeto trabalhado
não por acaso, da especificidade da Gattungsleben humana: enquanto propriedade especular das determinações formais da consciência,
enquanto aquilo do qual a consciência se apropria por completo no interior de
“A bela imagem é contente de si mesma, tem necessariamente alegria de um plano construtivo. A vida que se expressa como vida do gênero é o que nos
si mesma, reflete-se necessariamente em si mesma. Vaidade é apenas libera das amarras das formas de determinação atual da consciência, de seus
quando o homem namora sua própria forma individual, mas não quando modos de apropriação, sem nos levar a uma universalidade que é apenas a figura
ele admira a forma humana. Ele deve admirá-la; não pode conceber da individualidade universalizada. Pois há de se aceitar a noção de que “o comum
nenhuma forma mais bela, mais sublime que a humana. Certamente, todo não é característica do próprio, mas do impróprio ou, mais drasticamente, do
ser ama a si mesmo, a sua essência, e deve amá-la”181. outro; de um esvaziamento – parcial ou integral – da propriedade em seu
negativo; de uma desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário,
A vida do gênero é, nesta leitura, o que permitiria ao homem olhar-se no espelho forçando-o a sair de si mesmo”183. Por isto, a vida que se expressa como vida do
e não ver sua forma individual, mas descobrir a beleza universal da forma gênero é o que há de impróprio em nós e o que permite ao trabalho aparecer
humana, a substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e dificilmente não como expressão do estranhamento enquanto afeto de relação do sujeito a si.
seria atualmente completada com a pergunta: mas o que dizer se insistíssemos
que, ao contrário, o homem é exatamente este ser que se perde ao olhar-se no Propriedade privada e comunismo
espelho, que estranha sua imagem como quem vê algo prestes a se deformar, que
A este respeito lembremos de uma distinção importante do jovem Marx sobre
duas formas de comunismo. O primeiro é o comunismo primitivo, que Marx
180
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35 chama de “comunismo rude” e se aproxima das estruturas arcaicas de
181
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido, devemos assumir
a crítica de Zizek, para quem “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da substância a separação
182
da substância de si mesmo. Essa sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente ativo que pôs o que “Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Slavoj; Menos de que nada, op. cit., p. 2013
183
101). ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
propriedade comunal. O segundo é: “a figuração necessária e o princípio submissão da esfera das paixões à forma do que pode ser calculado, do que pode
enérgico do futuro próximo”184 capaz de fornecer aquilo que Marx chama de uma ser pensado sob o prisma utilitário.
superação positiva da propriedade privada. Ao falar desta apropriação que não é possessão, que não é submissão aos
Sobre o primeiro, Marx o descreve como uma generalização de todas as princípios utilitários, Marx afirma:
relações sociais sob a forma das relações de propriedade: “o domínio da
propriedade material é tão grande frente a ele que ele quer aniquilar tudo que A apropriação sensível da essência e da vida humanas, do ser humano
não é capaz de ser possuído por todos como propriedade privada”185. Na objetivo, da obra humana para e pelo homem, não pode se apreendida
verdade, a relação por propriedade permanece sendo a relação da comunidade apenas no sentido da fruição imediata, unilateral, não somente no sentido
com o mundo das coisas, mesmo que no lugar da propriedade privada tenhamos da posse, no sentido do ter. O homem se apropria da sua essência
agora a propriedade comunal. Uma propriedade comunal que pressupõe um multilateral de uma maneira multilateral, portanto como um homem
certo retorno à simplicidade que é, para Marx, apenas expressão da negação total. Cada uma de suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir,
abstrata do mundo inteiro da cultura. cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar,
Marx chega a afirmar que a comunidade das mulheres, no qual a mulher enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que
advém uma propriedade comunitária e comum, seria o segredo deste são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu
comunismo rude: comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a
apropriação do mesmo, a apropriação da realidade humana; seu
Da mesma forma que a mulher sai do casamento [uma forma de comportamento para com o objeto é o acionamento da realidade humana
propriedade privada exclusiva] e entra na prostituição universal, também (por isso ela é precisamente tão múltipla quanto múltiplos são as
o mundo inteiro da riqueza, isto é, da essência objetiva do homem, determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e
caminha da relação de casamento exclusivo com o proprietário privado sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente, apreendido, é uma
em direção à relação de prostituição universal com a comunidade. Este auto-fruição do ser humano188.
comunismo – que por toda a parte nega a personalidade do homem – é
precisamente apenas a expressão consequente da propriedade privada, Ou seja, esta apropriação não é submissão do objeto à unilateralidade da
que por sua vez é esta negação186. função, da utilidade e da posse. Ele é a compreensão do objeto como parte da
realidade humana. Ele não é desvelamento de que o objeto nada mais é do que
Desta forma, fica claro como, para Marx, não se trata de passar da produção humana. Ele é, na verdade, alargamento, do horizonte humano em
propriedade privada à propriedade comunal, mas de abandonar os modelos de direção ao que antes era compreendido como não humano, como mera
relação (intersubjetiva, entre sujeito e objeto) sob a forma da possessão. Assim, determinação objetiva funcional. Vigora aqui este processo, tão claramente
aparece uma distinção importante entre apropriação (Aneigung) e possessão presente na dialética do Senhor e do Escravo, de Hegel, de transformação da
(besitzen) que abre à compreensão para a verdadeira superação da propriedade relação entre sujeito/objeto em uma relação entre duas consciências. No
produzida pelo comunismo. No comunismo, as apropriações não são possessões entanto, este processo só é possível se o objeto não for reduzido à condição de
e creio que este é um ponto fundamental, a saber, compreender o que são sujeito, mas se o sujeito se permitir compreender-se internamente mediado pelo
apropriações que não se deixam pensar como possessões, ou seja, objeto. Neste sentido, quando Marx afirma que o objeto deve se revelar como
estabelecimento de afinidades miméticas com o que não se determina como “objeto social”, isto implica não apenas que o objeto demonstre as relações
minha possessão. sociais e históricas que o constituíram, mas que as relações sociais e históricas se
Assim, se no comunismo é possível falar de uma “verdadeira ressurreição ampliem para abarcar aquilo que, até então, parecia exterior à reflexividade
da natureza, do naturalismo realizado do homem e do humanismo da natureza própria à sociedade. Há uma dupla direção no processo que quebra a
levado a efeito”187 é porque, no comunismo de Marx, a natureza não é mais possibilidade da apropriação da natureza histórico-social do objeto ser uma
compreendida como o que se submete à relações de posse, nem mesmo de posse figura materialista da subsunção idealista do objeto pelo sujeito.
coletiva. No comunismo, circulam objetos que não são a confirmação do
individualismo possessivo, objetos são produzidos que não são resultantes do
interesse individual, que não são marcados pelo sentido do ter e pela submissão
do objeto à funcionalidade da utilidade. Lembremos a este respeito como
“interesse” é a realização de uma síntese entre as paixões e o cálculo, é a

184
MARX, Karl; Manuscritos…, p. 114
185
Idem, p. 103
186
MARX, Karl; Manuscrito …, p. 104
187 188
Idem, p, 107 MARX, Karl; idem, p. 108
destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas, do outro, pela
Lógicas do reconhecimento conquista de novos mercados e pela intensa exploração dos antigos. Portanto,
Aula 10 prepara crises mais extensas e mais destrutivas, diminuindo os meios de evita-
las189.

Neste extenso trecho, encontramos sintetizado vários tópicos maiores da teoria


Na aula passada, introduzi a discussão a respeito da existência de uma teoria do da relação entre crise e revolução em Marx. Primeiro, a ideia de que o
reconhecimento em Marx. Vimos como a problemática do reconhecimento é desenvolvimento da burguesia é impulsionado por um ritmo constante de crises cada
fundamental para Marx na medida em que sua filosofia é uma filosofia da vez mais extensas. Como um feiticeiro que não controla os poderes infernais que
emancipação e de uma análise do sofrimento social produzido pelos bloqueios na invocou, a burguesia amplia sua capacidade produtiva de forma tal a colocar em
realização das demandas de emancipação. A aula passada foi dedicada à compreensão contradição contínua as forças produtivas e as relações sociais de produção, ou seja,
da relação entre trabalho e reconhecimento. Defendi com vocês a ideia de que Marx as relações de propriedade dominadas pela burguesia. Essa é outra forma de dizer que
aponta para uma superação da sociedade do trabalho como condição para a realização o processo de valorização do Capital é marcado por um excesso, o fundamento do
de expectativas de reconhecimento e liberdade social. Isto nos levava necessariamente sistema de produção de valor é expressão de uma dissolução contínua de si. Há uma
a uma teoria da superação das relações de trabalho através de uma filosofia da história certa auto-dissolução do fundamento no próprio movimento de valorização do
vinculada à centralidade do conceito de revolução. Ou seja, a teoria do Capital, ou seja, há uma auto-dissolução do fundamento no próprio movimento de sua
reconhecimento que podemos derivar de Marx é uma reflexão sobre a revolução dos atualização. A atualização do fundamento de produção próprio ao capitalismo produz
processos de produção na sociedade do trabalho como condição para a realização de demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria. Mas
expectativas de reconhecimento. Revolução que, por sua vez, só pode ser realizada quanto mais produtividade, menos vale o trabalho, mais necessário é aumentar o
por sujeitos emergentes que Marx chamará de “proletariado”. Pois é o tempo de trabalho, maior a intensificação dos regimes de trabalho e a pobreza
reconhecimento de nossa condição de proletariado que poderá realizar a emancipação relativa. Daí porque a sociedade burguesa é muito estreita para conter suas próprias
social almejada para a institucionalização de nossas demandas de liberdade. Neste riquezas. Só lhe resta então dois caminhos ou a produção contínua das catástrofes,
sentido, a teoria do reconhecimento em Marx é, imediatamente, uma teoria da com a consequente destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas
revolução. Na aula de hoje, eu gostaria de discutir melhor este aspecto pouco através das guerras, das crises ou o imperialismo com seu avanço da lógica
explorado do pensamento de Marx. monopolista. O capitalismo aparece assim, para Marx e Engels, como um sistema
cujas crises lhe são inerentes, levando-lhe a ser um gestor contínuo de catástrofes e
Crise e revolução dominações imperiais. Isto até o momento em que o processo de espoliação chegar a
um nível tal que, mundialmente, aparecer a classe do proletariado em um processo de
A moderna sociedade burguesa, com suas relações de produção, troca e interação contínua e de consolidação de prática revolucionária. O advento da figura
propriedade, sociedade que deu surgimento a gigantescos meios de produção e “vazia” do proletariado será o correlato da “dissolução” de um mundo190. Ou seja, o
troca, assemelha-se ao feiticeiro que perdeu o controle dos poderes infernais proletariado é o termo médio que permite a unificação entre crise e revolução. Ele é o
que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há mais de uma década a nome da transformação subjetiva necessária para que, de uma crise, saia uma
história da indústria e do comércio é simplesmente a história da revolta das revolução.
forças produtivas modernas contra as condições modernas de produção, contra A teoria da revolução assim é um setor de uma teoria mais ampla das crises
as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu imanentes ao capitalismo. Por outro lado, ela é a expressão de uma concepção de
domínio. Basta lembrar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, filosofia da história para a qual a história é expressão de uma sequencia de momentos
ameaçam cada vez mais a sociedade burguesa. Nestas crises, destrói-se grande típicos nos quais ela se universaliza, transformando-se em história mundial. De fato,
parte dos produtos existentes e das forças produtivas desenvolvidas. Irrompe Marx e Engels partilham esta característica da filosofia hegeliana da história, para
uma epidemia que, em épocas precedentes, pareceria um absurdo – a epidemia quem a história de universalização que caminha através da realização do conceito de
da superprodução. Repentinamente, a sociedade vê-se momentaneamente de liberdade. É este caminho da liberdade que estabelece a diferença entre a história
volta a um estado de barbarismo; é como se a fome ou uma guerra universal positiva e a história tal como é objeto da filosofia da história. No entanto, há uma
de devastação houvesse suprimido todos os meios de subsistência; o comércio diferença maior entre Marx e Hegel neste ponto, Para Marx, o caminho da liberdade
e a indústria parecem aniquilados. E por que? Porque há demasiada não segue em direção à realização do Estado moderno como forma institucional da
civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, vida racional mas, ao contrário, caminha em direção à desconstituição do Estado
demasiado comércio. As forças produtivas disponíveis já não mais favorecem moderno em prol de uma associação entre indivíduos histórico-universais livres que
as condições da propriedade burguesa; ao contrário, tornaram-se poderosas apareceram inicialmente sob a forma de proletários.
demais para essas condições que as entravam; e quando suprimem esses
entraves, desorganizam toda a sociedade, ameaçando a existência da
propriedade burguesa. A sociedade burguesa é muito estreita para conter suas
189
próprias riquezas. E como a burguesia vence essas crises? De um lado, pela MARX e ENGELS, Manifesto Comunista, p. 39
190
Ver BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, p. 364
Para tanto, faz-se necessário que o advento do proletariado impulsione um burguesia entre a aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França
processo de luta de classe que exigirá a organização da massa de despossuídos em entre 1830 e 1848, e a burguesia industrial, que sofrerá diretamente com a crise e
classe e sua união em partido comunista. Este processo chegaria a uma “hora encontra-se distante do centro de decisões do poder. Por isto, entre fevereiro e junho
decisiva” na qual mesmo o setor dos ideólogos burgueses compreenderiam de 1848, mês das revoltas populares e das barricadas em Paris, o movimento ocorreu
teoricamente o momento histórico em geral. Uma hora decisiva na qual a guerra civil de forma retroativa. Tudo se passa como se as condições necessárias para a revolução
implícita na sociedade se transformaria em guerra aberta e declarada com a derrubada proletária fossem se desenvolver depois da queda da monarquia. Este processo
violenta da burguesia. Assim: “a passagem ao comunismo seria pois iminente desde retroativo não é, no entanto, a fonte do fracasso da revolução. A respeito das causas
que as formas e contradições da sociedade civil burguesa fossem completamente do fracasso, lembremos das palavras de Marx:
desenvolvidas”191.
Por outro lado, Marx e Engels rejeitam a tese, muito difundida no movimento O proletariado se lançou em parte, a experimentos doutrinários, bancos de
operário da época, de uma transformação pela educação. Neste sentido, as Teses sobre câmbio e associações de trabalhadores, ou seja, a um movimento em que abriu
Feuerbach são exemplares na sua pergunta: “quem afinal irá educar os educadores?” mão de revolucionar o velho mundo com o seu grande cabedal de recursos
e na sua confrontação entre a mudança pela educação e a prática revolucionária. Por próprios; ele tentou, antes, consumar a sua redenção pelas costas da sociedade,
isto, esta fração comunista não “educa” a massa proletária. A princípio, ela expressa de modo privado, no âmbito de suas condições restritas de existência, e por
“o movimento histórico que se desenvolve diante dos nossos olhos”, ela nomeia o que isso, necessariamente fracassou193.
ocorre através de um nome próprio. Tal colocação é, mais uma vez, fruto da crença de
Marx e Engels em uma expressão imanente do real que não pode se reduzir a um Ou seja, o fracasso vem do fato do proletariado não assumir sua situação de
discurso ideológico. Expressão imanente baseada nas noções de contradição, de sujeito revolucionário, não estar em condições de consumar sua tarefa histórica,
antagonismo, assim como de um diagnóstico que eleva a alienação a condição de preferindo acreditar em promessas de recondução de um lugar social no interior da
sofrimento social fundamental nas sociedades modernas ocidentais e a exteriorização ordem existente. Neste ponto, devemos compreender melhor o que Marx entende por
do ser do gênero a condição de seu horizonte de superação. “proletário”, quais suas características e porque, para Marx, demandas de
emancipação só podem se realizar sob a forma do reconhecimento de si enquanto
O fracasso da revolução proletariado.

No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que ele não Genealogia do proletariado
esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução que parecia tão
iminente, com a consequente adesão de uma parte do socialismo francês ao Façamos inicialmente um recuo no tempo. Conforme definido da Constituição
bonapartismo, com a passividade operária diante do golpe de Estado de Luís Romana, proletário é a última das seis classes censitárias, classe composta por aqueles
Bonaparte. Esta experiência histórica é tão importante que, a partir de 1852, Marx só caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade alguma ou por não
voltará a publicar um livro em 1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a terem propriedades suficientes para serem contado como cidadão com direito a voto e
partir do fracasso da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de procriar e ter filhos.
crítica da economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à condição de reprodutor da
racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução material da vida, população, os proletários representam o que não se conta. Daí uma colocação
as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do proletariado a condição de importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa “pessoa prolífica” –
sujeito revolucionário. pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem nome, sem ser contada
Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução? Qual a como fazendo parte da ordem simbólica da cidade” 194. Até o final do século XVIII,
operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de transformação, a proletário designa o que é “mal, vil” ou, em francês, como sinônimo de “nômade”, de
uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é fundamental por nos sem lugar.
mostrar como, no interior da teoria política de Marx, haverá a distinção entre uma É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de
verdadeira revolução e uma transformação meramente aparente. Isto a ponto de 1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para
podermos dizer que o capitalismo será então um espaço de produção contínua de descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade
transformações aparentes que visam evitar uma transformação real. básica de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos
Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de fevereiro de de ações políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não
1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo demais”. Ou seja, não são ainda o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de
havia um processo proletário amadurecido. A revolução foi impulsionada pela crise sofrimento social intolerável, um “significante central do espetáculo passivo da
econômica com sua “devastação do comércio e da indústria”192 que tornou a tirania da
aristocracia financeira ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da
193
MARX, Karl; O 18 do brumário, p. 35
191 194
BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79 RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
192
MARX, Karl; As lutas de classe na França, p. 42 identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
pobreza”195. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É burguesia é o local no qual se realiza uma impressionante operação de auto-negação
entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita que não é apenas a auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da
pela primeira vez, ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses. própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entre
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo.
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou, Como vimos, tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A
antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil burguesia produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que destroem
mais ou menos oculta na sociedade existente”196. Daí porque Marx falará, a respeito grande parte das forças produtivas já criadas. No entanto, tal desordem produzida pela
dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses burguesia e sua escalada global não é apenas o anúncio da destruição. Ela é a
sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos produção involuntária de novas relações que tem em seu germe a forma de outro
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no mundo:
proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja
peculiar”197. Apenas esse desenvolvimento universal das forças de produção traz consigo
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como um intercâmbio universal dos homens em virtude do qual, por um lado, o
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para fenômeno da massa “despossuída” se produz simultaneamente em todos os
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais202.
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que A desordem produz um fenômeno universal de despossessão e de intercâmbio. Mas
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio tal despossessão universal não é apenas um fenômeno negativo, pois ele produz novas
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental formas de interdependência e de simultaneidade. A burguesia abre o espaço para o
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro: advento de indivíduos histórico-universais caracterizados pela despossessão comum e
pela simultaneidade de tempos até então completamente dispersos. Ela produz as
A revolução comunista se dirige contra o tipo anterior de atividade, elimina o condições para o advento de uma universalidade concreta que suspenderá e superará o
trabalho e suspende a dominação de todas as classes, ao acabar com as estado de coisas atual. É assim que ela produz seus próprios coveiros.
próprias classes já que essa revolução é levada a cabo pela classe a qual a
sociedade não considera como tal, não reconhece como classe e que expressa, A indeterminação social do proletariado
de per se, a dissolução de todas as classes, nacionalidades etc. dentro da
sociedade atual198. Isto demonstra como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos
despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe
Teremos de entender melhor o que significa dizer que o proletariado expressa formada por “indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de
a dissolução de todas as classes, a dissolução do que constitui classes. Inicialmente, indivíduos locais” 203 . Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se
lembremos como tal guerra civil entre proletários e burguesia que leva à revolução é necessário uma certa experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a
fruto de uma contradição cujo motor é a própria burguesia. Marx não cansará de fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre
afirmar que a burguesia é uma classe revolucionária: “A burguesia não pode existir através da despossessão completa de si descrita por Marx em termos como:
sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as
relações de produção e, com isso, todas as relações sociais”199. É ela que mostrará O proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua relação com
como tudo o que é solido se desmancha no ar. No entanto, a burguesia é uma espécie mulher e crianças não tem mais nada a ver com as relações da família
de agente involuntário da história. Ela: “assemelha-se ao feiticeiro que já não pode burguesa; o trabalho industrial moderno, a moderna subsunção ao capital,
controlar os poderes infernais que invocou”200, ela “produz seus próprios coveiros”201. tanto na Inglaterra quanto na França, na América quanto na Alemanha,
Ou seja, sua ação é contraditória porque, no processo de auto-realização de si, a retiraram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião são para ele
burguesia produz uma figura que lhe será oposta e que lhe destruirá. Assim, a preconceitos burgueses que encobrem vários interesses burgueses204.

Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema,


195
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In: mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos
Representations, vol 0, n. 31, p. 84
196 não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, p. 50
197
Idem, p. 66
198 202
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98 Idem, A ideologia alemã, p. 58
199 203
Idem, Manifesto Comunista, p. 43 MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58
200 204
Idem, p. 45 MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
201
Idem, p. 51 http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
entanto, tal negação não leva o proletariado a aparecer como “essa massa indefinida, heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
bohème”205 e que Marx define como “lumpemproletariado”206. Vale a pena discutir crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma. Na
melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin, verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
revolucionária207. conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário: estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, negatividade em uma espécie de cinismo social.
rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni, batedores de carteira, integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos de bordel, carregadores, Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de
literatos, tocadores de realejo, trapaceiros, amoladores de tesouras, funileiros, vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
um lado para outro, que os franceses denominam la bohème208. vida. Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se
confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura desrespeitadas, claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este descritos da seguinte forma em A ideologia alemã:
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos Na sociedade comunista, onde cada indivíduo não tem para si um círculo
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato exclusivo de atividades, mas pode desenvolver suas aptidões no ramo que
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria melhor lhe aprouver, a sociedade encarrega de regular a produção universal,
funcional do capitalismo financeiro. com o que ela torna possível, justamente através disso, que eu possa me
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que possa caçar pela parte da manhã,
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação pescar pela parte da tarde e a noite apascentar o gado, e depois de comer,
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o criticar, se for o caso conforme meu desejo, sem a necessidade de por isto me
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca tornar caçador, pescador, pastor ou crítico algum dia209.
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de Notemos aqui a natureza anti-predicativa do reconhecimento proposto por
uma massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um Marx. Não me defino como caçador, pescador, pastor ou crítico, embora possa caçar,
termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente. pescar ou criticar. Não estou completamente vinculado nem ao tempo originário da
Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do caça, pesca e pastoreio, nem ao tempo de apreensão reflexiva da crítica, embora possa
lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a habitar as temporalidades distintas em uma simultaneidade temporal de várias
história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder camadas. Não limito minha ação nem ao trabalho manual, nem ao trabalho intelectual.
se manter. Todas essas negações demonstram como, por não passar completamente nos
predicados historicamente disponíveis, o sujeito preserva algo da dimensão negativa
da essência, quebrando assim a natureza funcionalizada do corpo social.
205
No entanto, poderíamos complexificar o diagnóstico de época e nos perguntar
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
206 sobre a diferença estrutural entre tal descrição da sociedade comunista e aquele
Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460 diagnóstico a respeito, por exemplo, do desenvolvimento do capitalismo nos EUA
207
Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the presente nos Grundrisse:
lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84 e LACLAU, Ernesto; La razón populista,
op. cit.
208 209
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91 MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
hegeliana do sujeito (embora Marx desqualificasse tal assimilação por ver, em Hegel,
A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma uma elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua
de sociedade em que os indivíduos passam (übergehen) com facilidade de um alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do
trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles fundamento e conservar algo desta indeterminação 213 . Seu papel de redenção
contingente e por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não (Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação de dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do proletário como sujeito
riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos político é o aparecimento de um “sujeito como vazio” 214 que não é, em absoluto,
em sua particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau privado de determinações práticas. Essa manifestação de um vazio em relação às
de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si
burguesa – os Estados Unidos210. só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar
identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.
Em que pese a mais moderna forma de existência da sociedade burguesa não Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
ser exatamente uma “sociedade encarregada de regular a produção universal”, assim simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
como em que pese o primeiro trecho dizer respeito à crítica da divisão do trabalho estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da
enquanto o segundo versa sobre o conceito de trabalho abstrato, a indiferença em perspectiva da integralidade de suas personalidades, como quer alguns como Axel
relação ao trabalho determinado parece a mesma tal como descrita na futura Honneth. A abolição da propriedade privada deve acompanhar necessariamente a
sociedade comunista. A contingência em relação ao tipo determinado de trabalho, a abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como
flexibilidade das atividades concebidas na indiferença da abstração parece, à primeira categoria identitária. Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do
vista, algo próximo dos comunistas que caçam, pescam, pastoreiam e fazem crítica Manifesto Comunista:
literária, mesmo que ela seja muito mais uma construção ideológica do que uma
realidade efetiva em solo norte-americano. Mas, se for o caso, então será difícil não Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão
dizer que a sociedade comunista apenas realizaria o que as sociedades burguesas mais abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por conseguinte, o
avançadas prometem sem, no entanto, serem capazes de cumprir. Como se as modo de apropriação existente até hoje. Os proletários nada tem de seu a
promessas da sociedade burguesa fossem o fundamento normativo da crítica; salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da
fundamento que enfím poderia ser realizado no momento em que a falsa totalidade do propriedade privada até aqui existentes215.
“corpo social de trabalho” fosse abandonada em direção à verdadeira totalidade
produzida pela regulação racional da produção universal. Percebamos o caráter paradoxal deste trecho. Os proletários só podem
Mas insistamos em um ponto: o que está em questão no processo histórico apoderar-se das forças produtivas abolindo todo modo de apropriação até hoje
pensado por Marx não é apenas a superação da divisão social do trabalho, nem a existente (lembremos, neste ponto, da discussão sobre a ideia de uma “apropriação
defesa de uma “regulação social da produção”. Mesmo tal divisão pode mostrar-se sem possessão” que vimos na aula passada). O modo de apropriação dos proletários é
obsoleta para o capitalismo, ao menos em suas sociedades mais avançadas; mesmo tal um modo que não existe até o momento, impensável até agora pois não é simples
regulação pode ser feita através de fortes intervenções estatais, como no modelo da passagem da propriedade privada à propriedade coletiva. Ele é apropriação de quem
social-democracia escandinava em seu auge. O que está em questão é, como vimos na não tem nada de seu a salvaguardar, de quem não tem nem terá nada que lhe seja
aula passada, a liberação do trabalho em relação à produção do valor, em relação à próprio. Tal apropriação não é apenas a destruição da propriedade, mas também a
produção de objetos que sejam apenas o suporte próprio de determinações do valor e destruição do próprio. Por esta razão, a luta de classes em Marx não pode ser
em relação à submisão do tempo ao tempo de produção do valor. Não somente o compreendida como mera expressão de formas de luta contra a injustiça econômica,
vínculo à identidade social produzida pelo trabalho deve absorver uma certa potência já que ela é também modelo de crítica à tentativa de transformar a individualidade em
da indeterminação, mas também o objeto produzido, a ação realizada. horizonte final para todo e qualquer processo de reconhecimento social. O que não
poderia ser diferente se lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética,
Apropriar-se “pessoa” é uma categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade
(dominus), uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista já
Insistamos na relação entre novas formas de apropriação e a configuração do por filósofos como Hegel como “expressão de desprezo” 216 devido à sua natureza
proletariado como essa classe “que expressa, de per si, a dissolução de todas as meramente abstrata e formal advinda da absolutização das relações de propriedade.
classes dentro da sociedade atual”211. A classe do que dissolve todas as classes por
representar “a perda total da humanidade” 212 , o que não encontra mais figura na 213
Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE, Vladimir;
imagem atual do homem. Neste sentido, podemos dizer que, tal como na teoria
Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo: Martins
Fontes, 2012.
210 214
MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 58 BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF,
211
MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98 2011, p. 260.
212 215
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo: Boitempo, 2005, p. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50
216
156 HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
Encontramos claramente em Marx esta crítica já presente em Hegel. Lembremos mais
uma vez como Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em larga Lógicas do reconhecimento
medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma colocação como: Aula 11

“o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não


prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre Na aula de hoje, gostaria de apresentar o que poderíamos chamar de “a matriz
dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do francesa” dos debates sobre reconhecimento. Isto implica começar por recuperar
homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma (…) A aplicação aquele que será o responsável pela introdução do tema do reconhecimento no
prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à interior do pensamento francês, a saber, Alexandre Kojève. Esta introdução será
propriedade privada”217. marcada pela centralidade do desejo enquanto categoria fundamental de
reconhecimento. Kojève foi, junto com Jean Wahl e Alexandre Koyrè, um dos
A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de responsáveis - no caso, o principal - pela segunda introdução do hegelianismo na
indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo França, desenrolada na década de trinta. A primeira introdução se deu ainda no
poste da cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que, século passado graças ao esforço de Victor Cousin e Augusto Vera. De qualquer
através da luta de classes, uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar. forma, o hegelianismo não se impôs no círculo universitário francês, que preferia
Podemos mesmo dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de as vias de um neo-kantismo defensor do primado da filosofia da representação
desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo ou, ainda, o bergsonismo. Como dizia Sartre, em Questão de método, a respeito da
sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade. Por situação da filosofia universitária francesa em 1925: “O horror à dialética era tal
esta razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a categoria de que mesmo Hegel nos era desconhecido”219.
povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e limitadora que Foi necessário que o problema da alteridade e a crítica da noção de vida
define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma espécie de anti-povo,
interior tomassem corpo no campo literário-filosófico, principalmente após a
isto no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a
Primeira Grande Guerra e a Revolução soviética, para que Hegel viesse
provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação constante
novamente a tona, agora com a Fenomenologia do Espírito na proa. Alexandre
de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-contada. Esta é uma
Koyré 220 e Jean Wahl foram os dois pioneiros, o segundo colocando em
maneira de aceitar proposições como:
circulação uma versão trágico-existencialista de Hegel, através de uma análise da
figura da consciência infeliz, em 1929221. Mas o verdadeiro catalisador da
A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
explosão hegeliana à francesa foi Kojève.
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a Durante os anos 1933-1939 Kojève foi responsável por um seminário na
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma École Pratique des Hautes Etudes que marcou intelectualmente toda uma nova
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não geração de pensadores franceses. Bataille, Merleau-Ponty, Raymond Queneau,
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a Lacan, Raymond Aron. Maurice Blanchot e Pierre Klossowsky foram alguns dos
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a seus atentos alunos. André Breton também seguia, esporadicamente os
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmos a união seminários e, assim como Sartre, foi por eles influenciado. Creio podemos mesmo
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é afirmar que: “a época de Lacan (a época de muitos outros: Bataille, Blanchot,
realmente comum218. Sartre) foi um tempo kojéveano, quer dizer, uma época hegeliana-
heideggeriana”222. A compreensão dialética da relação tensional entre ‘eu’ e
Neste sentido, a felicidade do conceito forjado por Marx residia em sua ‘outro’ que vinha na contramão da certeza solipsista do cogito, a palavra como
capacidade de sobrepor lógica política e descrição sociológica, permitindo a criação assassinato da coisa, o desejo enquanto pura negatividade ... todos estes foram
de uma relação profunda entre trabalhadores realmente existentes (que constituíam temas colocados em circulação por Kojève, através das suas leituras de Hegel.
uma importante maioria social) e proletários. No entanto, sustentar tal relação não é A leitura kojèveana de Hegel pode ser dividida em dois grandes motivos.
condição necessária para que o conceito marxista de “proletariado” continue a mostrar Primeiro, a descrição antropológica das figuras da Fenomenologia do Espírito, em
sua operatividade. Na situação histórica atual de reconfiguração da sociedade do especial das figuras do Senhor e do Escravo - cuja dialética será elevada à
trabalho, podemos repensar tal relação a fim de encontrar espaços outros para a
manifestação de exigências próprias a uma certa ontologia do sujeito pressuposta pela
construção marxista. 219
SARTRE, Question de méthode, pag. 22.
220
Ver textos sobre Hegel em KOYRÈ, Alexandre; Estudos sobre a história do pensamento filosófico
Forense Universitária: Rio de Janeiro.
217 221
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49. WAHL, Jean; Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel
218 222
RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée, 1995, p. 34 BORCH-JACOBSEN; Mikkel, Lacan: the absolute master, pag. 4.
condição de chave para a compreensão do livro. Segundo, a construção de uma reconheça meu valor, aquilo que sou, como o que ele deseja. De onde percebemos
espécie de teoria hegeliana da linguagem inspirada na dialética do Conceito. que este desejo de reconhecimento só pode engendrar uma luta, chamada por
Kojève transformou a Fenomenologia do Espírito em uma antropologia Kojève, de puro prestígio. Luta através da qual a consciência arrisca sua vida
filosófica, vendo na Dialética do Senhor e do Escravo seu momento fundamental. para ser reconhecida enquanto pura negatividade livre de qualquer aderência à
Segundo Kojève, encontramos, primeiro, a quietude passiva da consciência determinidade. Em outras palavras, o sujeito arriscará sua vida biológica a fim
solitária absorvida pela contemplação do objeto. Neste momento, a consciência de satisfazer seu desejo não-biológico.
não se diferencia do puro Sentimento de si do animal. Absorvida nesta Sabemos que esta luta deve acabar na servidão de uma das consciências e
contemplação de um ser exterior e objetivo chamada de connaissance223, a não na sua morte. Afinal, com a morte de uma das consciências não há
consciência se esquece. Quanto mais ela é consciência da coisa menos ela é reconhecimento. É preciso, então, que uma ceda, ou seja, que reconheça sem ser
consciência de si. É, pois, necessário que este mundo sem fissuras seja quebrado reconhecida. De fato, uma cederá por temer a morte e se aferrar à vida. Assim,
e a consciência, chamada a si, seja impelida a deixar de falar da coisa e falar dela efetiva-se uma dissimetria na relação entre as duas consciências. Uma reconhece,
mesma. Quer dizer, seja impelida a dizer: ‘Eu’, acedendo à condição de outra é reconhecida228.
consciência-de-si. “Compreender o homem pela compreensão de sua origem, Aquela que é reconhecida sem reconhecer será chamada de Senhor: o ser
dirá Kojève, é compreender a origem do Eu revelado pela palavra”224. que é somente para-si. Sua relação com o outro é de pura negatividade. Para ele,
Em Kojève, o que impele a consciência a dizer ‘Eu’ é a temporalidade o outro não tem essência alguma. O Senhor representa o momento da reflexão-
originária: vir-a-ser que engendra a negatividade do Desejo. Quando o homem em-si, o momento do Gozo da identidade imediata consigo mesmo. Aquela
prova um desejo ele toma, necessariamente, consciência de si. “O desejo revela- consciência que reconhece sem ser reconhecida é o Escravo: o ser em-si, ou seja,
se sempre como meu desejo, e por revelar o desejo, é necessário se servir da o lado da objetividade que encontra sua determinidade no outro. O Escravo está
palavra ‘Eu’”225. Aqui, Desejo: “com efeito é apenas uma nada revelado, um vazio retido na coisidade, na vida, no ser-para-um-outro. Logo, sua essência lhe
irreal”226 e, como tal, é o ser do sujeito. Não se trata do Desejo de um objeto aparece como estando em um mais-além de si mesmo. Ele não tem
específico mas, antes, pura Ação transformadora que nega o dado criando um ser essencialidade nenhuma e, por isto, representa o momento da reflexão-no-Outro.
novo. A este respeito, Kojève gostava de dar o exemplo da fome. A fome é o O fim desta dialética nós conhecemos. Por um lado, o Senhor vive em um
desejo de transformar, através de uma ação (o ato de comer), a coisa impasse existencial pois só é reconhecido por uma consciência desprovida de
contemplada, negando-a em sua realidade independente e assimilando seu ser à essencialidade. Seu reconhecimento é uma ilusão e sua liberdade é fundada em
mim. um impasse229. Mas por outro lado, ao temer a morte submetendo-se ao Senhor,
A compreensão do Desejo como ser do sujeito impede que o homem seja o Escravo provou a angústia do Nada. “Ele se viu como nada, ele compreendeu
pensado enquanto Ser que é eternamente idêntico a si mesmo. O homem deve que toda a sua existência era apenas uma morte ‘superada’, ‘suprimida’
ser pensado como um nada, um vazio, ação negadora que nadifica o Ser para (aufgehoben)”230. Só ele chegou à verdade do Ser ao compreender que o desejo
transformá-lo e, neste mesmo movimento, se transformar. Seu verdadeiro Ser de ser pura negatividade, pura abstração de si, só se realiza na morte. Ele
(Sein) é vir-a-ser (Werden) chamado Tempo e História. desvelou a essência do ser como ser-para-a-morte. Pois: “‘o ser verdadeiro do
O Desejo, definido como pura negatividade, como desejo de nada que Homem é, em última análise, sua morte enquanto fenômeno consciente”231.
possa ser nomeado, ou, ainda, como falta-a-ser, só pode encontrar satisfação em No caso de Kojève o problema é como satisfazer este Desejo que só se
outro Desejo. É só em outro Desejo, em um não-ser, que a pura negatividade realiza na morte sem apelar para o suicídio (que não seria uma forma de
pode satisfazer-se. Isto marca a diferença irredutível entre o Desejo humano e satisfação). Como o infinito da absoluta liberdade que nega toda determinidade
seu congênere animal. O animal deseja o ser e se satisfaz com esta coisa pode reconciliar-se com o finito e, enfim, aparecer? Em termos kojèveanos: como
naturalmente dada. Ele não transcende a Natureza abstratamente negada. Já o o homem pode tornar-se Deus e, assim, ser Sábio alcançando o Saber Absoluto? A
homem não deseja uma coisa mas, sim, outro Desejo. O homem é aquele que se resposta deve ser procurada do lado do Escravo. Através das vias do Trabalho, o
alimenta de Desejos. Daí advém o adágio: “O desejo do homem é o desejo do Escravo alcança a verdadeira liberdade. É verdade que só o Trabalho não liberta
outro (ainda com a minúscula)” e, consequentemente, a necessidade do mas, transformando o Mundo, negando a coisa dada: “o Escravo se transforma e
reconhecimento do Desejo de um pelo outro. cria assim as condições objetivas novas que lhe permitirão retomar a Luta
A versão antropológica da lógica hegeliana do reconhecimento foi levada a
cabo por Kojève nos termos que se seguem. Desejar um desejo é: “querer 228
Descombes têm uma boa ilustração do impasse lógico originado pela introdução do problema da
substituir a si mesmo pelo valor desejado por este Desejo”227. Eu quero que o alteridade na filosofia francesa contemporânea: “Nova versão da narrativa do encontro de Sexta-Feira
valor desejado pelo outro seja o valor que represento. Eu quero que o outro por Robinson Crusoé, a fenomenologia do outro não cessa de apresentar as múltiplas faces da
contradição: o outro é para mim um fenômeno, mas eu sou também um fenômeno para ele.
Manifestamente, um de nós está sobrando no papel de sujeito e deverá se contentar em ser, para si-
223
Em contraposição ao savoir que é o saber de si que, ao mesmo tempo, é saber do objeto. mesmo, o que ele é para o outro” DESCOMBES, Vincent; Le même et l’autre, pag. 33.
224 229
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 11 Não é por outra razão que a dialética do reconhecimento deve terminar em uma sociedade sem
225
KOJÈVE, Alexandre; op. cit. pag.166. Senhores e Escravos. O que significa dizer: em uma sociedade situada no fim da História.
226 230
idém, pag. 12 KOJÈVE,Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 175
227 231
KOJÈVE, Alexandre; pag. 14 idém, pag. 566.
libertadora pelo reconhecimento que ele, em um primeiro momento, recusou por discurso da história oferece duas vias, japonisar o Ocidente ou americanisar o
medo da morte” 232 . Trabalhando, o Escravo dá forma objetiva à pura Japão, quer dizer, fazer amor de uma forma natural ou à maneira de macacos”236.
negatividade que se manifestou nele através do medo da morte. Por isto, em
Hegel o trabalho é desejo refreado, desejo que forma.
Como assassinar coisas com palavras
Se concordarmos com Kojève a respeito da similitude estrutural entre
Trabalho e Discurso podemos chegar à conclusão final. A astúcia da Razão abre
A leitura kojèveana da lógica do conceito é uma das partes mais
as portas para que a consciência seja consciência-de-si capaz de unificar saber de
engenhosas da sua interpretação de Hegel. Kojève, ao se perguntar sobre em que
si e saber do mundo através de um Discurso que é a própria revelação-do-ser-
consistiria o Saber Absoluto, havia concluído: o Saber Absoluto coincide com a
pela-palavra de forma completa e adequada. Uma revelação que é a apresentação
revelação positiva e completa do Ser e do Real pelo Discurso. Uma revelação que
do homem como ser-para-a-morte233. Em Kojève a idéia de ser-para-a-morte está
é a apresentação do homem como ser-para-a-morte. Dirá Kojève: “É em se
profundamente ligada à noção do homem enquanto vir-a-ser. Para o ser-
resignando à morte, em revelando-a por seu discurso, que o Homem advém,
natural, idêntico a si mesmo e estático, toda mudança radical é sempre imposta
finalmente, ao Saber Absoluto, ou à Sabedoria, fechando, assim, a História”237.
de fora e significa sua aniquilação. O ser humano, ao contrário, pode transcender
Mas tal Discurso capaz de revelar o Ser é engendrado através da negação do
a si mesmo e vir a ser um ser-Outro sem, com isto, deixar de ser o que é, ou seja,
mundo naturalmente dado; pois: “quando se cria o conceito de uma entidade
ser humano. Por isto, Kojève pode afirmar que, enquanto para o animal, a causa
real, nós a arrancamos de seu hic e nunc [aqui e agora]. O conceito de uma coisa
de sua morte é externa, para o homem ela lhe é interna. Ele mesmo é a causa de
é essa coisa mesma arrancada de seu aqui e agora dados”238. É ao negar este
sua morte por ser vir-a-ser e aniquilação de sua natureza dada. Conclusão: o
dado particular que se acede à universalidade do conceito, única dimensão
homem é a doença mortal do animal.
portadora de sentido. Pois o universal é a negação do particular enquanto
No momento em que o homem se conscientiza de sua finitude absoluta,
particular. Como nos lembra Kojève: “Se quisermos transformar uma entidade
abandonando a ideia de um mais-além e tomando a palavra de um Discurso que
concreta ( = particular) em conceito ( = universal) , em ‘noção geral’, é necessário
é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se conserva”, ele pode
arrancá-la do hic e nunc de sua existência empírica (este cão está aqui e agora,
satisfazer-se. Ele pode enfim alcançar a condição de Sábio portador do Saber
mas o conceito ‘este cão’ está ‘em todo o lugar’ e ‘sempre’)239. Por isto: “a
Absoluto, Sábio consciente de si por ser capaz de “encarar o negativo e demorar-
compreensão conceitual da realidade empírica equivale a um assassinato”240.
se junto dele”234. A luta entre Senhor e Escravo cessa e a História, então,
O conceito constrói uma identidade na diferença na medida em que nega
encontra seu fim: “Assim, Saber Absoluto ou Sabedoria e aceitação consciente da
a imediaticidade da coisa mostrando como ela é, desde sempre, pura mediação.
morte, compreendida como nadificação completa e definitiva, são a mesma
Daí a conclusão: “o conceito é em si mesmo esta morte que é vida, já que ele é
coisa”235.
essencialmente vir-a-ser-outro, quer dizer, assassinar-se a si-mesmo em sua
O fim da História e das lutas de dominação e servidão marcaria o advento
imediaticidade, de forma que ele acede por aí à sua expressão verdadeira, à sua
do Estado Universal homogêneo do qual o Sábio seria cidadão. Como o Discurso
universalidade” 241.
pode enunciar a última palavra e revelar o Ser não há mais necessidade da ação
Mas o conceito só é morte que é vida porque o homem nada mais é do que
negadora do homem. O Sábio pode, então, dedicar-se ao cultivo do snobismo
negatividade destruidora encarnada. É ele que arranca a coisa de seu aqui e
através da arte, do jogo, do amor etc. Aqui, para além dos enganos da satisfação
agora, negando sua faticidade, e criando o conceito. Desta forma, a palavra
animal do desejo ilustrada na destruição infinita ruim do consumo, a verdadeira
lembra ao homem que ele é pura negatividade. A palavra plena, reveladora do
negatividade encontra satisfação nas representações formalizadas e
Ser, é aquela que confessa, ao mesmo tempo, ser a assassina da coisa e o álibi da
teatralizadas do sujeito. Ela deleita-se na artificialidade leve das ações gratuitas e
nadificação do homem. A conclusão de Kojève não podia ser diferente: “O
sem finalidade. Se a História não fala mais, então o Sábio fabrica, ele mesmo, a
homem de Hegel é o Nada (Nicht) que nadifica o Ser-dado existente como
negatividade gratuita.
Mundo, e que nadifica a si mesmo (enquanto tempo histórico ou História)
Anos depois de ministrar seus seminários, já como membro do alto
através da nadificação do dado”242.
escalão do corpo diplomático francês, Kojève encontrará a melhor configuração
desta subjetividade pós-histórica no modo de vida japonês. A estilização
presente na vida cotidiana japonesa através das figuras da cerimônia do chá, do
ikebana, dos bonsaïs, das gueixas era, aos olhos de Kojève, a própria 236
KOJÈVE, Alexandre; Entrevista para Quinzaine littéraire 01/07/68 in LABARRIÈRE, Pierre-Jean
democratização do snobismo. “O Japão é um país com oitenta milhões de snobs”. et JARCZYK,Gwendoline; De Kojève à Hegel, pag. 100.
Daí, a conclusão inevitável: “se o humano se funda sobre a negatividade, o fim do 237
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 540)
238
KOJÈVE, Alexandre; ILH, pag. 452
239
idém, pag. 564
240
idém, pag. 373.
232 241
idém; pag. 32 LABARRIÈRE, Pierre-Jean et JARCZYK, Gwedoline: Hegeliana, pag. 55. Esta citação é
233
Cf. KOJÈVE, Alexandre. Idém, pag. 553. interessante por vir de autores de uma tradição totalmente anti-kojèveana e, mesmo assim, convergir
234
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, pag. 38. com as proposições deste.
235 242
idém, pg. 540. KOJÈVE, Alexandre; ILH, pag. 574.
Neste ponto, faz-se necessário levantar uma distinção importante. Não se Lógicas do reconhecimento
trata de afirmar que a nomeação anula uma pretensa riqueza concreta do Aula 12
particular em prol da sua transformação em um universal abstrato. Se assim
fosse, tudo se passaria como se existisse uma espécie de domínio do inefável
depositado em um para-além da nossa linguagem cotidiana. Nesta perspectiva de Na aula de hoje, gostaria de introduzir a teoria do reconhecimento de Jacques
interpretação, a universalidade abstrata da palavra seria sempre ultrapassada Lacan. Esta teoria, desenvolvida no interior de uma reflexão clínica a respeito
pela riqueza das determinações particulares da Coisa mesma. O advento da das modalidades de tratamento do sofrimento psíquico, baseia-se na
linguagem inauguraria a perda intransponível da imanência. Daí a conclusão: no compreensão das formas clínicas da neurose, da psicose e da perversão como
domínio da linguagem cotidiana, é o ser que se esvairia, recusando qualquer deficits de reconhecimento do desejo. Por isto, a racionalidade da praxis clínica
tentativa de nomeação. É o ser que pediria silêncio. É a Verdade que recusar-se- será reconstruída a partir de uma dialética do reconhecimento. Tentemos,
ia a subjugar-se à palavra; da mesma forma como o desejo é aquilo que se recusa inicialmente, compreender como se configura tal dialética.
a ser nomeado. Estaríamos condenados a viver em um mundo sustentado por
palavras vazias. Palavras que não revelam a luminosidade do ser. Estaríamos Psicanálise como dialética
condenados ao silêncio.
Como vimos, esta não é exatamente a conclusão de Kojève. A palavra que “A psicanálise é uma experiência dialética” 244 . Enunciada em 1953, esta
revela o Ser chega no momento em que o homem se conscientiza de sua finitude proposição resumia o programa de racionalidade analítica que sustentava a
absoluta, abandonando a ideia de um mais-além, de um inefável, e toma a letra de experiência lacaniana. Sabemos que, nesta mesma época, Lacan procurava
um Discurso que é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se fundar a racionalidade da praxis analítica através do paradigma da
conserva”. É neste momento que a infinitude pode ser revelada. Em Hegel, a intersubjetividade. Tal decisão era o motor do projeto lacaniano de retorno a
infinitude verdadeira é caracterizada por ser a negação absoluta de toda Freud. Assim, em 1953, a ocasião do início de tal retorno, Lacan enuncia as
determinidade finita. Kojève deu, à esta infinitude, a figura de um Desejo que é condições necessárias para a fundamentação da objetividade analítica. Ele dirá:
pura negatividade capaz de negar toda determinidade.
Todo o problema consiste em como Gozar a satisfação de um Desejo que A psicanálise só fornecerá os fundamentos científicos à sua teoria e à sua
só se realiza na morte. Como perpetuar a pura abstração de si sem aniquilar-se técnica ao formalizar de maneira adequada essas dimensões essenciais de
definitivamente? No fundo, trata-se de uma espécie de versão antropogênica para sua experiência que são, com a teoria histórica do símbolo, a lógica
o clássico problema do modo de aparecimento da infinitude, sendo que aparecer intersubjetiva e a temporalidade do sujeito.245
só pode significar ‘ser representada em uma determinação finita’243. A solução
kojèveana para o problema da apresentação do infinito será encontrada no Estamos diante do resultado de uma longa trajetória de refundação da
momento em que o sujeito abrir mão desse Gozo, que é em si impossível já que metapsicologia e da praxis analítica. Resultado que indicava um duplo programa
só se realiza na aniquilação absoluta da morte, para alcançá-lo na forma latente: o desenvolvimento das conseqüências da articulação estrutural do
invertida de uma espécie de morte simbolizada e sempre presentificada. universo simbólico e a formalização da reflexividade intersubjetiva. Eis o ponto
Lembremo-nos da afirmação de Alexandre, o ser verdadeiro do homem só pode de chegada de um amplo projeto de determinação dos pressupostos gerais da
ser sua morte enquanto fenômeno consciente. objetividade própria aos fenômenos subjetivos no qual Lacan se engajara durante
vinte anos. Projeto já presenta na sua tese de doutorado, de 1932, sob a forma da
enunciação de uma ciência da personalidade de matriz inicialmente politzeriana
cujas aspirações serão transferidas para a reformulação lacaniana da psicanálise.
A utilização clínica do campo intersubjetivo podia aparecer como espaço
privilegiado de determinação do regime de objetividade próprio à subjetividade
porque ela impediria a psicanálise de adotar uma perspectiva materialista
reducionista e de coisificar os fenômenos subjetivos. Como Lacan dirá várias
vezes, a psicanálise marca o retorno do sujeito no interior do discurso da ciência.
Mas: “Só há sujeito para um outro sujeito”246 e tratava-se de pensar a
243
Vale a pena notar que se trata de um problema estruturalmente muito semelhante àquele que anima racionalidade analítica a partir de tal reflexividade. Assim, ao mesmo tempo em
a luta de vida ou morte na Dialética do Senhor e do Escravo tal como Hegel a descreve. Tanto é assim que via na psicanálise uma experiência dialética, Lacan podia afirmar que ele era
que o encontramos a afirmar que: “Porém a apresentação de si como pura abstração da consciência-de- também : “a experiência intersubjetiva onde o desejo se faz reconhecer”247.
si consiste em mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar que não
está vinculado a nenhum ser-aí determinado, nem à singularidade universal do ser-aí em geral, nem à
244
vida”(Cf. HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do espírito, pag. 128). O problema aqui consiste em saber LACAN, E., p. 216
245
como a pura negatividade pode encarnar-se na determinidade, ou seja, como a consciência pode ter a LACAN, E, p. 289
246
experiência do estar-aí do puro Eu. Problema similar àquele apresentado por Lacan através da noção de LACAN, S VI, sessão do 13/05/59
247
palavra plena.. LACAN, E. p. 279
A realização intersubjetiva do desejo, ou seja, a reflexividade própria ao estabelece a comunicação entre os diversos eu, ela é o instrumento universal de
reconhecimento do desejo do sujeito pelo Outro apresentava-se como a essência reconhecimento mútuo”254.
da cura analítica. Tratava-se da possibilidade de assunção do desejo do sujeito na Esta compreensão da dialética como diálogo capaz de dissolver a
primeira pessoa do singular no interior de um campo lingüístico opacidade do particular através do reconhecimento intersubjetivo era a chave
intersubjetivamente partilhado. De onde se seguia a afirmação: “O sujeito que Hyppolite usava para aproximar psicanálise e fenomenologia hegeliana.
começa a análise falando de si sem falar a você, ou falando a você sem falar de si. Assim, ele falará de uma função de inconsciência da consciência que aproximaria
Quando ele for capaz de falar de si a você, a análise estará terminada”248. o inconsciente freudiano e a estrutura de desconhecimentos, fundamento do
Percebemos aqui que, para Lacan nos anos cinquenta, dialética, diálogo, movimento próprio a Verneinung. Com tal estratégia, ele podia afirmar que :
intersubjetividade e reconhecimento eram termos convergentes. Na verdade, a “desconhecer não é não conhecer. Desconhecer é conhecer para poder
dialética nomearia a estrutura lógica do diálogo intersubjetivo que opera na reconhecer e para poder dizer um dia : eu sempre soube”255. A opacidade do
análise. Um diálogo particular já que seria capaz de produzir o reconhecimento inconsciente seria anulada através de uma palavra que reconhece um saber
do desejo. A lógica dialética ficava assim reduzida a formalização de relações recalcado e esquecido. A dialética aqui é convergente por não reconhecer
intersubjetivas próprias a uma modalidade muito específica de diálogo chamada nenhum limite a operações de conceitualização e de simbolização próprias ao
às vezes por Lacan de : “maiêutica analítica”249. saber da consciência. Aqui, como será posteriormente o caso em Habermas e em
Esta maneira de articular dialética e intersubjetividade levou Lacan a Ricoeur, a interpretação analítica aparece como uma auto-reflexão que opera
aproximar dialética hegeliana e dialética platônica a fim de falar da “dialética da através de processos de rememoração256.
consciência de si, tal como ela se realiza de Sócrates até Hegel”, isto contra a
opinião do próprio Hegel250. É claro que tal operação levanta várias questões, Dora e suas inversões

sendo que a maior delas é: estaríamos diante de um retorno da dialética a sua


matriz dialógica ? De fato, Lacan não parece temer tal retorno já que afirma : Um exemplo privilegiado da maneira com que Lacan pensa os usos clínicos da dialética do reconhecimento é dado neste
momento pela sua leitura do caso Dora, de Freud.
O motor da interpretação é dado por inversões da palavra do paciente. O analista procura mostrar o que o
A psicanálise é uma dialética, aquilo que Montaigne, em seu livro III, paciente desconhece, ou seja, o que ele pressupõe sem poder pôr. Neste sentido, a interlocução analítica pode permitir ao
capítulo VIII, chama de ‘arte de conferir’. A arte de conferir de Sócrates no sujeito receber sua própria mensagem de uma maneira invertida. O que não é outra coisa que a utilização clínica da
fórmula : "na linguagem, nossa mensagem nos vem do Outro sob uma forma invertida"257.
Menão consiste em ensinar o escravo a dar o verdadeiro sentido à sua
própria palavra. Esta arte é a mesma em Hegel251. Esse processo aparece no caso Dora sob a forma de uma sucessão de três inversões dialéticas mas cuja última
não teria sido elaborada por Freud devido à ausência de uma interpretação capaz de levar Dora a reconhecer o valor do
que lhe aparecia como objeto de seu desejo. Vejamos de perto em que consistiam tais inversões e até onde elas podem
Neste sentido, Lacan não fazia outra coisa que seguir a perspectiva de nos levar.

leitura do hegelianismo francês de sua época. Pois era Hyppolite que perguntava Dora era uma histérica levada a Freud devido a uma intenção de suicídio seguida de um desmaio. Ela
apresentava também sintomas de depressão e alguns sintomas de "conversão" motivados pelo desgosto do gozo sexual.
: “O que significa, originariamente, o termo ‘dialética’ a não ser a arte da Um desgosto resultante do que Freud chamava de inversão do afeto (Affektverkehrung).
discussão e do diálogo?”252. Sua análise se coloca inicialmente sob o signo da reivindicação dirigida ao pai. Ela reclama que o amor de seu
Lembremos que o hegelianismo francês da primeira metade do século XX pai lhe fora roubado pela ligação deste com uma amante, a Sra. K. Como em uma espécie de troca, ele a ofereceu às
assiduidades do marido da amante, o Sr. K. A primeira inversão consistirá em mostrar como o sujeito desconhece (no
– meio do qual Lacan saiu – procurou colocar em evidência a estrutura sentido de denegar) que esta configuração do estado do mundo dos objetos de seu desejo é suportada e pressuposta por
linguística intersubjetiva que estaria na base da formação do caráter relacional seu próprio desejo. O sujeito coloca como limite uma diferença exterior que, na verdade, é : "a manifestação mesma de
seu ser atual"258. Dora deve pois se reconhecer naquilo que ela nega como absolutamente estrangeiro e fora de seu desejo.
da consciência-de-si. Até um certo ponto para Kojève, mas principalmente para Neste sentido, o primeiro papel da interpretação analítica consistiria em permitir ao sujeito internalizar de maneira
Hyppolite, a dialética da identidade e da diferença se desenvolverá no campo reflexiva uma diferença interna que lhe apareceu inicialmente como um limite externo. E aqui Lacan pensa sobretudo em
afirmações freudianas como : "Ela tinha razão : seu pai não queria levar em conta o comportamento do Sr. K em relação à
lingüístico do reconhecimento intersubjetivo : “A única possibilidade de resolver sua filha, isto a fim de não ser incomodado na sua relação com a Sra. K. Mas ela havia feito exatamente a mesma coisa. Ela
a determinação opaca na transparência do universal, de desatar o nó”, dirá havia sido cúmplice desta relação e tinha descartado todos os índices que testemunhavam sua verdadeira natureza"259.
Hyppolite, “é de comunicar através da linguagem, de aceitar o diálogo”253; até Tal relação de cumplicidade a respeito de um estado de coisas cujo motor primeiro é o desejo do pai revela
como o desejo de Dora estaria vinculado, de maneira constitutiva, ao desejo do Outro paterno. É em torno deste desejo
porque : “A linguagem diz as coisas, mas ela diz também o eu que fala e que gira todo o drama. A primeira inversão leva pois ao desvelamento de uma relação edípica constituída pela
identificação paterna.

248
254 ibidem, p.11.
LACAN; E, p. 373 255
HYPPOLITE, Figures de la pensée philosophique, Paris: PUF, 1971, p.215
249 LACAN, E, p. 109. 256
Ver a este respeito o clássico artigo Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito: Habermas
250
LACAN, E., p. 292. Lacan faz tal aproximação sem levar em conta a afirmação de Hegel sobre a intérprete de Freud in PRADO JR., Alguns ensaios, São Paulo: Paz e Terra, 2000, assim como meu
maiêutica socrática: "A dialética que visa dissolver (aufzulösen) o particular para produzir o universal comentário em SAFATLE, Auto-reflexão e repetição : Bento Prado Jr. e a crítica ao recurso
não é ainda a verdadeira dialética" (HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, 19/64). frankfurtiano à psicanálise in Agora: Estudos em teoria psicanalítica, 2004
251 257
LACAN, S I, p. 317. LACAN, E., p. 7
252 258
HYPPOLITE, Logique et existence, Paris: PUF, p. 12 LACAN, E, p. 172
253 259
HYPPOLITE, idem, p. 23 FREUD, GW vol. V, p. 210
Tal desvelamento permitirá a dissolução de uma parte significativa dos sintomas ditos de conversão. Sintomas
ligados à oralidade (acesso de tosse, dipnéia, asma nervosa, afonia) que revelam a inscrição, no corpo sexuado, de um
profundo" e a reconhecer o amor de Dora à Sra. K como elemento central da
modo de identificação e de demanda em relação ao pai. Lacan lembrará da importância do papel do pai na história da história do desejo da paciente. Mas este dado continuará marginal no conjunto
formação do corpo erógeno de sua filha. Importância legível na maneira com que a erogenidade do corpo de Dora é da economia da interpretação freudiana. Ao contrário, Freud prefere ver aí
deslocada em direção à oralidade - o que não deixa de indicar a representação oral da relação sexual (felação) prevalente
devido à impotência do pai, assim como os prazeres de chupeteadora na sua primeira infância que estabelecem o gozo em uma identificação ao lugar do sujeito-rival enquanto lugar da escolha paterna
uma área de cumplicidade com o pai. de objeto. O que lhe permite compreender o comportamento de Dora como o
A segunda inversão é uma espécie de desdobramento deste reconhecimento da identificação ao pai em direção comportamento de uma mulher ciumenta em relação ao amor do pai. A
à identificação às escolhas de objeto do pai. Freud se pergunta de onde vem o caráter prevalente (überwertiger) da
repetição dos pensamentos de Dora a respeito da relação entre seu pai e a Sra. K. Sua análise demonstra que o ciúme em questão central para Freud será pois: "por que o amor edípico foi reavivado
relação à Sra. K é um pensamento reativo (Reaktionsgedanke) que esconde um pensamento inconsciente oposto neste momento da história do desejo do sujeito?". Sua resposta é
(Gegensatz). A análise deve pois permitir novamente uma inversão no oposto: “Tornar consciente o recalcado oposto é o
caminho para retirar, de um pensamento prevalente, sua amplificação”260. Trata-se de um trabalho que permite à análise programática: trata-se de um sintoma que visa exprimir aquilo que está
mostrar como o ciúme era apenas um modo de manifestação da identificação ao lugar do sujeito-rival. Lugar ocupado por presente no inconsciente: o amor pelo Sr. K. Resultado incontornável se
estas duas mulheres amadas pelo seu pai, uma antes e outra agora; ou seja, a mãe e, principalmente, Sra. K. O ódio pode
pois se inverter no seu oposto: o amor. Um movimento pulsional que Freud chamará mais tarde de inversão no oposto seguirmos os postulados de uma hermenêutica edípica.
(Verkehrung ins Gegenteil). Inversão que Lacan sublinha ao falar desta inclinação homossexual fundada sobre a: "ligação
fascinada de Dora pela Sra. K"261. Pois: "toda a situação se instaura como se Dora tivesse posto para si a questão - O que Lacan, por sua vez, prefere levar o final de análise em direção ao
meu pai ama na Sra. K?"262. desvelamento daquilo que ele chama de "valor real" do objeto que a Sra. K
Mas, antes de continuar a análise lacaniana, coloquemos uma questão de método. Até aqui, nada nos impede de representa para Dora: "ou seja, não um indivíduo, mas um mistério, o mistério
pensar a interpretação analítica como auto-reflexão da consciência que permite ao sujeito inverter seus
desconhecimentos em rememoração capaz de historicizar os nós traumáticos. Até aqui, as intervenções do analista de sua própria feminilidade; nós queremos dizer, de sua feminilidade
procuraram abrir ao sujeito as vias para que ele possa pôr aquilo que desconhece. Não estamos muito distantes de uma corporal"264.A fascinação de Dora pela Sra. K encontraria sua raiz na questão
teoria do fim de análise como historicização dos conteúdos recalcados e dos núcleos traumáticos que se desdobra a partir do
horizonte convergente dos processos de simbolização. O que nos explicaria afirmações como: "A reconstituição completa maior para uma histérica: "O que é uma mulher?". Questão que toca a
da história do sujeito é o elemento essencial, constitutivo, estrutural, do progresso analítico"263. estrutura de sua posição subjetiva através da sexuação de seu corpo. Mas não
O que vimos até agora com Dora foi a assunção pelo sujeito de sua história se trata aqui de ver na imagem da Sra. K uma resposta capaz de saturar a
através de procedimentos de construção e de interpretação analítica de forte questão sobre o mistério do feminino. Se este fosse o caso, a análise
tendência hermenêutica. O inconsciente aparece como algo que, graças ao terminaria na assunção da identificação narcísica com uma imagem na
progresso da simbolização na análise, teria sido: enfim, algo que será realizado posição de eu ideal.
no simbólico. O que permitirá a integração exaustiva das determinações Na verdade, a terceira inversão traz uma inversão interna no valor da
opacas que davam corpo aos conteúdos recalcados. imagem do feminino representada pela Sra. K. Ao invés da simples imagem da
No entanto, notemos como a interpretação de Lacan terminará. Tomemos, por fascinação narcísica, ela deve ser desvelada como imagem de um mistério, no
exemplo, o segundo sonho trazido por Dora e no qual o dado principal é a sentido de algo fundamentalmente desprovido de determinação objetiva e de
morte do pai. Uma morte anunciada através de uma carta da mãe na qual se representação consciente adequada.
lê: "Agora ele está morto e, se você quiser (?), pode vir". Freud associa tal carta Neste sentido, Lacan tenta desdobrar as conseqüências clínicas do fato de
à carta deixada por Dora na qual ela ameaçava suicidar-se a fim de que: "não há simbolização do sexo da mulher enquanto tal"265. Tal ausência de
amedrontar o pai levando-o a deixar a Sra. K. Isto permite a Freud determinação significante do sexo feminino permite a Lacan afirmar que: "o sexo
compreender a morte do pai como manifestação de um desejo de vingança de feminino tem um caráter de ausência, de vazio, de buraco que faz com que ele
Dora devido a um amor edípico traído. Por outro lado, com a morte do pai, as seja menos desejável que o sexo masculino no que ele tem de provocante"266.
interdições sobre o saber da sexualidade seriam levantadas, o que o sonho Afirmação aparentemente "falocêntrica", mas apenas aparente.
figura através da leitura que Dora faz de um dicionário. Para Freud, isto De qualquer forma, para Dora, da imagem da Sra. K poderia advir
significa reconhecer o desejo inconsciente de substituir o amor ao pai pelo exatamente esta imagem "de ausência, de vazio, de buraco" que aparece como
investimento libidinal no Sr. K. Mas Freud não desenvolve o fato de que Dora abertura em direção ao reconhecimento da inadequação fundamental do sujeito
associa o "se você quiser" aos termos de uma carta da Sra. K que a convidava à às representações imaginárias do sexual. Neste sentido, podemos dizer que a
casa do lago. Tal associação poderia revelar o valor da identificação identificação de Dora à Sra. K poderia ser equivalente a uma dissolução do eu
homossexual de Dora à Sra. K permitindo, com isto, a consolidação de uma enquanto totalidade de um corpo sem falhas, já que seria reconhecimento de si
outra via de interpretação. naquilo que é desprovido de determinação objetiva.
Notemos que a terceira inversão é estruturalmente distinta das outras
É neste sentido que Lacan criticará o final de análise proposto por Freud. Nós duas. Enquanto que as duas primeiras eram passagens no oposto, este é o
vimos como Freud e Lacan reconheciam a importância da identificação de desvelamento de uma contradição interna à própria determinação da imagem da
Dora à Sra. K. Freud chega a falar de um "amor inconsciente no sentido mais Sra. K. Uma contradição entre sua posição de imagem fantasmática que sustenta
260
o pensamento identificador do eu de Dora e seu valor de negação de toda
FREUD, GW vol. V, p. 214 « Das Bewutmachen des vardrängten Gegensatzes ist dann der Weg,
um dem überstarken Gedanken seine Verstärkung ze entziehen »
261 264
LACAN, E., p. 220 LACAN, E., p. 220
262 265
LACAN, S IV, p. 141 LACAN, S III, p. 198.
263 266
LACAN, S I, p. 18 (citação modificada) LACAN, S III, p. 199.
determinidade. Ela indica a tentativa de inscrição do valor do sexual como “Os antigos colocavam o acento sobre a tendência, enquanto que nós, nós o
negação irredutível. colocamos sobre o objeto (...) nós reduzimos o valor da manifestação da
Tal maneira de compreender o valor da imagem da Sra. K inscreve-se em tendência, e nós exigimos o suporte do objeto pelos traços prevalentes do
um movimento geral que concerne a reformulação lacaniana do pensamento do objeto”269.
sexual. Se a psicanálise vê a realidade sexual como lugar de verdade, como locus
originário do sentido da linguagem dos sintomas, então a melhor estratégia para Tal proposição lacaniana, feita com uma ponta de nostalgia a respeito da vida
impedir que dela advenha uma hermenêutica sexual é transformar o sentido do amorosa dos antigos, é, na verdade, a exposição de todo um programa analítico de
sexual em pura opacidade. O sexual será assim presença do negativo e do não- cura. Enunciada em 1960, ela trazia atrás de si uma longa reflexão a respeito do
idêntico no sujeito. O advento do sexual será sempre ligado ao trauma vindo da: destino do desejo no final de análise. Colocar o acento sobre a tendência desprovida
"inadequação radical do pensamento à realidade do sexo"267. Inadequação que de objeto aparece aqui como uma solução possível para romper um certo ciclo
indica como: "o sexual se mostra por negatividades de estrutura"268. Tal sexual alienante do desejo preso às amarras do Imaginário; ruptura fundamental como
traumático está vinculado ao real da pulsão que foi forcluído, de onde vem sua indicação da proximidade do final de análise.
resistência aos procedimentos simbólicos de nomeação. A este respeito, vale a pena relembrar alguns princípios básicos que serviram
Vemos assim se desenhar um polo de tensão que deixa a metapsicologia de guia para as primeiras reflexões lacanianas. Até o final dos anos cinqüenta, há um
lacaniana necessariamente instável e móvel. Trata-se de uma tensão entre conceito central na metapsicologia lacaniana: o desejo puro.
imperativos de reconhecimento mútuo e a irreflexividade de um conceito de A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a característica
sujeito pensado a partir da negatividade do desejo em seu vínculo ao sexual. principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural de objetificação.
Como reconhecer um desejo que é presença do sexual como pura opacidade Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de nomeável" 270 . Aqui,
vinda de uma negatividade sem inversões? Como produzir o reconhecimento do escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que tentava costurar o ser-
real do sexo, que é definido exatamente como aquilo que permanece fora dos para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de afirmar que a verdade do
processos de simbolização? Em suma, nesta tensão entre o sexual e os desejo era ser “revelação de um vazio”271, ou seja, pura negatividade que transcendia
imperativos de reconhecimento aloja-se uma tensão entre subjetividade e toda aderência natural e imaginária. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com
intersubjetividade que será marca constitutiva do pensamento lacaniano. O motor objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal.
do progresso da praxis lacaniana estará pois na tentativa de encontrar o ponto Mas por que esta pura tendência que insiste para além de toda relação de objeto
que impede tal tensão de anular um dos polos, o que, em um caso, poderia transformou-se em algo absolutamente incontornável para Lacan? Nós podemos
produzir a redução do sujeito à dimensão de um gozo mudo próximo da psicose fornecer aqui uma explicação geral.
(irreflexividade do sujeito sem imperativos de reconhecimento) e, no outro, a Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir sobretudo
alienação absoluta do particular no genérico da estrutura (imperativos de de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento lacaniano, tanto
passagem ao Simbólico sem irreflexividade do sujeito). Um motor como o os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre projeções narcísicas do
verdadeiro solo dialético da psicanálise lacaniana só pode ser encontrado em eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos do mundo empírico. De
suas considerações sobre a pulsão e o gozo. Assim, o conceito lacaniano de onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas as relações de objeto, assim
intersubjetividade era desde sempre marcado por esta tensão entre a negatividade como a necessidade de atravessar este regime narcísico de relação através de uma
do que se aloja na subjetividade e a dialética do reconhecimento. crítica ao primado do objeto na determinação do desejo. Lacan é claro a respeito deste
narcisismo fundamental. Ele dirá, por exemplo, que: “A relação objetal deve sempre
Reconhecer um desejo puro submeter-se à estrutura narcísica e aí se inscrever” 272 . E ele dará um caráter
epistemológico a sua crítica do primado do objeto ao afirmar que : “todo progresso
científico [e todo progresso analítico] consiste em dissolver o objeto enquanto tal"273.
Falamos até aqui da noção de cura analítica como reconhecimento do desejo Este motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan
por si mesmo e pelo Outro. Cura como índice da nomeação de um desejo que, principalmente através da crítica às relações reduzidas a dimensão do Imaginário, já
até então, só podia aparecer sob a forma de sintomas. Mas, no interior desta que o Imaginário lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera das relações que
coreografia, esquecemos constantemente do teor da reposta lacaniana a compõem a lógica do narcisismo com suas projeções e introjeções274. Aqui, faz-se
questões como: 'qual desejo espera insistentemente por reconhecimento?', 'O necessário salientar um ponto importante: o objeto empírico aparece necessariamente
que significa exatamente dar nome ao desejo?'. Tais questões podem começar como objeto submetido à engenharia do Imaginário e à lógica do fantasma. A
a ser respondidas se levarmos em conta afirmações como:
269
LACAN, S VII, p. 117
270
LACAN, S II, p. 261
271
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12
272
LACAN, S I, p. 197
273
LACAN, S II, p. 130
267 274
LACAN, S XIV, sessão do 18/01/67 "Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana "
268
LACAN, AE, p. 380 (LACAN, S III, p. 107)
possibilidade de fixação libidinal a um objeto empírico não-narcísico ainda não é pela interdição vinda da Lei do incesto. É verdade que Lacan afirmará: "o objeto
posta. Assim, a fim de livrar o sujeito da fascinação por objetos que são, no fundo, da psicanálise não é o homem, mas o que lhe falta - não uma falta absoluta, mas
produções narcísicas, restava à psicanálise “purificar o desejo” de todo e qualquer falta de um objeto "278. No entanto, devemos sublinhar que tal objeto que lhe
conteúdo empírico. Subjetivar o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento. Haveria falta não é exatamente um objeto empírico.
uma outra possibilidade através da tentativa de determinar as modalidades possíveis
de uma experiência de objeto que não estivesse inscrita a priori em uma lógica Um sujeito transcendental para a psicanálise?
narcísica. De fato, tal hipótese ganhará relevância na segunda metade da trajetória
intelectual lacaniana, o que pode nos explicar as estratégias posteriores de pensar o Devemos então nos perguntar se o sujeito lacaniano do desejo não seria
final de análise através da identificação do sujeito com o objeto desprovido de uma versão psicanalítica do sujeito transcendental. É neste ponto que podemos
estrutura de apreensão, ou seja, com o objeto como resto opaco, como dejeto. O que medir a particularidade da filiação lacaniana ao discurso filosófico da
nos permitirá repensar a questão do destino da categoria de objeto na clínica analítica. modernidade. Se o desejo é condição a priori para a constituição dos objetos do
Mas, por enquanto, insistamos na via da purificação do desejo. Lacan mundo, não se trata de um desejo cujo sentido se desvelaria através da auto-
percebeu claramente que a psicanálise nascera em uma situação histórica na qual o intuição imediata de um eu. Ou seja, o desejo não exige um conceito de ego
sujeito era compreendido como entidade não-substancial, desnaturada e marcada pelo transcendental capaz de aparecer como destino privilegiado dos processos de
selo de uma "liberdade negativa" que lhe permitia nunca ser totalmente idêntica a suas reflexão. Ao contrário, como o desejo é determinado de maneira inconsciente
representações e identificações. A operação de 'purificação do desejo' escondia assim pela estrutura sócio-lingüística externa que constitui a priori as coordenadas de
uma estratégia maior. No fundo, tudo se passava como se Lacan projetasse a função toda experiência possível (isto segundo sentido da fórmula estruturalista: o
transcendental própria ao conceito moderno de sujeito em uma teoria do desejo (o que desejo do homem e o desejo do Outro - onde o Outro aparece como estrutura
nos explica como foi possível à psicanálise desenvolver uma teoria não-psicológica sócio-lingüística transcendental na qual o sujeito deve surgir), então o sujeito
do desejo). A aproximação lacaniana entre, por exemplo, o sujeito do inconsciente e a será necessariamente determinado empiricamente pela estrutura.
estruitura do cogito cartesiano era uma das conseqüências de tal estratégia. O que Sublinhemos aqui a importância deste motivo estruturalista maior: as
Badiou sublinhou bem ao lembrar que: "o que ainda vincula Lacan (mas este ainda é
condições a priori da experiência já estão dadas antes da constituição do sujeito e
a perpetuação moderna do sentido) à época cartesiana da ciência é pensar que seja
graças à anterioridade do significante. No caso lacaniano, isto significa dizer que
necessário sustentar o sujeito no puro vazio da substração se quiseremos salvar a
o desejo do Outro já está constituído antes da subjetivação do desejo pelo sujeito.
verdade [do regime fantasmático de apresentação de objetos]"275.
Lembremos, por exemplo, que o lugar da criança já está constituído no interior
Isto permitiu a Lacan concluir que, para além das realizações fenomenais,
da constelação familiar através das convenções de estruturas de parentesco, do
haveria uma "permanência transcendental do desejo"276. O que nos envia à
nome que às vezes o identifica a um ancestral e à linhagem do desejo presente no
definição canônica do sujeito como falta-a-ser, já que:
Ideal do eu dos pais. Mas tal anterioridade temporal é sobretudo anterioridade
lógica, já que não é possível ao sujeito desenvolver procedimentos de auto-
O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
referência e de auto-reflexão antes da estruturação prévia do campo de
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual o
experiências e de socialização por um sistema sócio-lingüístico de regras, de
ser existe277.
normas e posições. Daí afirmações como: "o sujeito só é sujeito ao assujeitar-se
ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a este
Neste caso, esta estranha falta que não é disto ou daquilo é o próprio regime de
campo do Outro" 279.
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
Isto significaria que o sujeito lacaniano é apenas o suporte inconsciente
porque a falta-a-ser é uma condição a priori de constituição do mundo dos
de processos estruturais de determinação de sentido - tal como encontraríamos
objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta não
em uma perspectiva estruturalista clássica? É a temática da intersubjetividade,
seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, não há nada parecido a
com seu motivo de reconhecimento do sujeito pelo Outro enquanto estrutura
uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer
transcendental, que nos demonstra o contrário. Se há reconhecimento
uma verdadeira ' dedução transcendental' do desejo puro. Contrariamente a
intersubjetivo do desejo (mesmo entre dois polos situados em posições não-
Freud, ele não identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida
recíprocas, já que o Outro determina de maneira não-recíproca o sujeito), então
devemos pensar em um sujeito que não é simplesmente suporte mas que, em
275
BADIOU, L'être et l'événement, Paris: Seuil, 1988, p. 472. É tal articulação entre certas condições, pode se transformar em agente. É claro, muito haverá a se dizer
transcendentalidade e negatividade na função do sujeito que permitirá a comentadores como Slavoj a respeito da especificidade desta agência do sujeito lacaniano; uma agência que
Zizek ler Kant de maneira 'lacaniana', como vemos em afirmações coimo: "o ensinamento maior da não se submete a nenhum princípio de expressividade dependente de um
consciência de si transcendental é totalmente oposto à transparência de si absoluta e à presença a si.
Sou consciente de mim mesmo, eu me volto de maneira reflexiva em direção a mim mesmo porque
nunca posso 'encontra mim mesmo' na dimensão numenal, como a Coisa que sou atualmente" (ZIZEK,
Slavoj, The ticklish subject, London: Verso, 2000, p. 304)
276 278
LACAN, S VIII, p.. LACAN, AE, p. 211
277 279
LACAN, SII, p. 261. LACAN, S XI, p. 172
conceito positivo de intencionalidade. Mas, de qualquer forma, ela disponibiliza Lógicas do reconhecimento
um contrapeso ao problema da heteronomia completa do sujeito. Aula 14
Por enquanto, podemos fornecer aqui uma hipótese capaz de nos guiar na
compreensão desta posição paradoxal do sujeito lacaniano. Lacan guarda um
elemento próprio à função transcendental presente no conceito moderno de Na aula de hoje, gostaria de apresentar a recuperação do problema do
sujeito, mas não se trata do poder transcendental de constituição das reconhecimento feita por Axel Honneth. Tal recuperação aparece atualmente
coordenadas da 'realidade objetiva'. Neste sentido, o sujeito lacaniano não pode como um dos eixos centrais de articulação dos debates no interior da filosofia
ser um puro sujeito transcendental, já que tal poder não lhe pertence nem de fato política. De fato, o conceito de reconhecimento ganhará, graças principalmente a
(ele não é um ego transcendental), nem de direito (sua função lógica não consiste Honneth, uma importância que até então nunca teve no interior da filosofia
na faculdade de síntese própria a uma unidade sintética de percepções). política. Como vimos nas últimas aulas, a recuperação francesa do problema do
Parece-me que, ao articular seu conceito de sujeito através de figuras da reconhecimento permitiu desdobramentos substanciais no interior dos campos
subjetividade moderna tão distantes umas das outras quanto podem ser o cogito da clínica e da ética, mas não diretamente no campo político. Cabe
cartesiano, o sujeito da vontade livre kantiana e a consciência desejante de Hegel, principalmente a Honneth e Charles Taylor esta tarefa. No entanto, trata-se aqui
Lacan procura um certo caráter de transcendência ligado, na modernidade, à de lembrar que não devemos refletir sobre os usos políticos contemporâneos do
articulação do conceito de função transcendental do sujeito. conceito de reconhecimento sem levar em conta a avaliação de seu contexto
Não se trata aqui de compreender a transcendência simplesmente como sócio-histórico de recuperação, no início dos anos noventa. Contexto
esta ilusão própria ao uso da razão e sempre presente quando ela procura extremamente sugestivo pois indissociável da perda, nas últimas décadas, da
aplicar um princípio efetivo para-além dos limites da experiência possível - centralidade do discurso das lutas de classe enquanto chave de leitura para os
noção de transcendência que só pode ser antinômica ao questionamento conflitos sociais. Haverá de fato um novo enquadre nos modos de reflexão sobre
transcendental, como bem demonstrou Kant. Lacan é marcado por um os conflitos sociais a partir do momento em que a temática do reconhecimento
pensamento da transcendência no qual se cruzam as reflexões vindas da ganhar centralidade.
fenomenologia alemã (a transcendência do Dasein) e do hegelianismo (a A luta de classes foi acusada de limitar os conflitos sociais a problemas
negatividade da Begierde). Neste sentido, basta lembrarmos de Kojève falando da gerais de redistribuição igualitária de riquezas (que não são meramente
negatividade do desejo como: "o ato de transcender o dado que lhe é dado e que expressões de uma teoria da justiça redistributiva), ignorando com isto
é em si mesmo"280. "O ato de transcender" deve ser compreendido aqui como dimensões morais e culturais que não poderiam ser compreendidas como meros
negação que põe a não-adequação entre o ser do sujeito e os objetos da reflexos de estruturas de classe. Sendo assim, uma leitura possível consistiria em
dimensão do empírico, como apresentação de uma não-saturação do ser do dizer que certo acúmulo de modificações teria fornecido as condições para a
sujeito no interior do campo fenomenal. Tal transcendência não põe princípio elevação do reconhecimento a problema político central. Dentre tais
efetivo algum para além da experiência possível. O que nos explica porque modificações três seriam fundamentais.
devemos compreendê-la como transcendência negativa. Podemos assim dizer Primeiramente, teríamos o esvaziamento do proletariado enquanto ator
que o sujeito para Lacan é uma transcendência sem transcendentalidade, ao histórico de transformação social revolucionária: tema presente na Escola de
menos sem o caráter constitutivo da objetividade próprio ao sujeito Frankfurt ao menos desde os anos 30 através de suas pesquisas sobre as
transcendental. A hipótese aqui consiste em dizer que, com Lacan, a regressões políticas da classe operária em direção à sustentação do nazismo281.
subjetividade está inicialmente ligada aos modos de manifestação desta Certamente, muito contribuiu para a consolidação de tal diagnóstico a forte
transcendência negativa e a intersubjetividade é o espaço possível de auto- integração do operariado aos sistemas de seguridade e às políticas corretivas dos
apresentação da subjetividade. ditos Estados do bem estar social a partir dos anos 50. Note-se como Habermas,
olhando para a ausência de candidatos a ocuparem a vaga de atores globais de
transformação revolucionária depois dessa integração da classe operária e do
posterior enfraquecimento do próprio Estado do bem estar social, insistirá em
ler tal situação como expressão de esgotamento de “uma determinada utopia
que, no passado, cristalizou-se em torno do potencial de uma sociedade do
trabalho”282. Esgotamento que levará alguém como Axel Honneth a afirmar,
recentemente, que a própria crença no papel privilegiado do proletariado no
interior de uma política revolucionária não passava de um “dogma histórico-

281
Ver, por exemplo, FROMM, Erich; Arbeiter und Angestellte am Vorabend des Dritten Reiches: eine
sozialpsychologische Untersuchung, Stuttgart: Deutsche Verlags- Anstalt, 1980
282
HABERMAS, Jurgen: A nova intransparência: a crise do Estado de bem estar social e o
280
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, op.cit, p. 13 esgotamento das energias utópicas, Novos estudos Cebrap, n. 18, setembro de 1987, p. 105
filosófico”283. Aceito que o pretenso papel privilegiado do proletariado não comprometido com a perpetuação de normas e formas de vida próprias a grupos
passava de um “dogma”, o investimento no discurso da luta de classes como eixo culturalmente hegemônicos. Muito colaborou para isto o desenvolvimento das
central de organização e constituição das identidades no interior dos embates temáticas ligadas ao multiculturalismo.
políticos perde necessariamente sua força para abrir espaço a outros candidatos. Desde 1957, o termo aparecera a fim de descrever a realidade multi-
Mas para a consolidação da centralidade atual do conceito de linguística da Federação Suíça. No entanto, foi no Canadá que o
reconhecimento, foi necessário que tal perda na crença revolucionária do multiculturalismo chegou a ser implementado, pela primeira vez, como política
proletariado fosse acompanhada de um fenômeno suplementar vinculado à de Estado. Marcado tanto pelo conflito entre as comunidades anglófonas e
mutação do sistema de expectativas ligado a um dos eixos centrais do francófonas quanto por uma elevada taxa de imigração, o Canadá adotou, em
desenvolvimento das lutas políticas, a saber, o universo do trabalho. Tal mutação 1971, sob o governo social-democrata de Pierre Elliot Trudeau, o Announcement
pode ser compreendida se seguirmos Luc Boltanski e Eve Chiapello a fim de of Implementation of Policy of Multiculturalism within Bilingual Framework.
afirmar que, desde as revoltas de maio de 68, um novo “ethos” do capitalismo Através dele, o país se auto-definia como uma sociedade multicultural que
começou a ser formado. reconhecia, inclusive, a necessidade de políticas específicas financiadas pelo
A crítica social que se desenvolve a partir de maio de 1968 visava, Estado visando a preservação de tal multiplicidade. Em 1988, estas políticas
principalmente, o trabalho e sua incapacidade em dar conta de exigências de foram reforçadas através da implementação do Canadian Multiculturalism Act.
autenticidade. Visto como o espaço da rigidez do tempo controlado, dos horários Vários outros países, majoritariamente anglo-saxões (além dos Países Baixos),
impostos, da alienação taylorista e da estereotipia de empresas fortemente seguiram o quadro canadense de constituição de políticas multiculturais de
hierarquizadas, o trabalho fora fortemente desvalorizado pelos jovens de 68. Estado. Não é de se estranhar ter sido um filósofo canadense, Charles Taylor, um
Vários estudos do início dos anos setenta demonstram consciência dos riscos de dos primeiros a recuperar o conceito de reconhecimento exatamente no interior
uma profunda desmotivação dos jovens em relação aos valores presentes no de um debate sobre o multiculturalismo.
mundo do trabalho, preferindo atividades flexíveis, mesmo que menos Esta tendência multicultural foi uma peça hegemônica na orientação
renumeradas. política de esquerda a partir dos anos oitenta devido, principalmente, ao seu
O resultado de tal crítica teria sido a reconfiguração do núcleo ideológico potencial de defesa de minorias étnico-culturais e à possibilidade de ser
da sociedade capitalista e a consequente modificação do ethos do trabalho. acoplada a práticas de institucionalização da diversidade de orientações sexuais.
Valores como: segurança, estabilidade, respeito à hierarquia funcional e à Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma reflexão filosófica sensível à
especialização, valores estes que faziam do mundo do trabalho um setor natureza disciplinar de estruturas de poder que visavam impor normatividades
fundamental de imposição de identidades fixas e rígidas, deram lugar a outro no campo da sexualidade, do desejo, da normalidade psíquica, da estrutura da
conjunto de valores vindos diretamente do universo de crítica do trabalho. família, da constituição dos papeis sociais, forneceu o quadro conceitual para
Capacidade de enfrentar riscos, flexibilização, maleabilidade, desterritorialização desdobrar o impacto de tais lutas. Mesmo que autores como Michel Foucault,
resultante de processos infinitos de re-engenharia compõem atualmente um Gilles Deleuze e Jacques Derrida não tenham sido responsáveis pela recuperação
novo núcleo ideológico. Com esta modificação, o universo do trabalho nas da teoria do reconhecimento - o que não poderia ser diferente devido ao anti-
sociedades capitalistas estaria mais apto a aceitar demandas de reconhecimento hegelianismo explícito dos dois primeiros e mitigado no caso do terceiro - é
da individualidade e a modificar a matriz da experiência de alienação, retirando inegável que sua forma de crítica à compreensão marxista tradicional dos
tal matriz da temática da espoliação econômica a fim de deslocá-la em direção à embates políticos, assim como sua defesa ética do primado da diferença em
temática da imposição de uma vida inautêntica, ou seja, vida desprovida do muito colaboraram para a consolidação de um quadro filosófico mais propício à
espaço de desenvolvimento de exigências individuais de auto-realização. Com recuperação da centralidade do problema do reconhecimento da alteridade
este deslocamento da espoliação à inautenticidade no interior da crítica do como problema político central. Desta forma, estavam dadas as condições gerais
trabalho, abria-se mais uma porta para secundarizar o conceito de luta de classes para que a compreensão filosófica das lutas políticas passasse necessariamente
e elevar o problema do reconhecimento a dispositivo político central. de uma abordagem centrada no conflito de classe a uma abordagem centrada em
Por fim, devemos lembrar como esta mutação acaba por se encontrar com múltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida sexual, das
outra série de modificações ligadas, por sua vez, à compreensão, ocorrida a etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais da pessoa. Uma
partir dos anos setenta, das lutas de grupos historicamente vulneráveis e multiplicidade de campos que teriam sido levados ao centro da cena política
espoliados de direitos (como negros, gays, mulheres) enquanto lutas de depois da aceitação tácita da impossibilidade de uma política revolucionária
afirmação cultural das diferenças. Isto significa afirmar que elas não foram baseada na instrumentalização da luta de classes.
apenas compreendidas como setores de uma luta mais ampla de ampliação de Sendo assim, ao menos no interior desta leitura, teríamos de admitir que
direitos universais a grupos até então excluídos, mas como processos de o conceito de reconhecimento estaria limitado geograficamente à descrição de
afirmação das diferenças diante de um quadro universalista pretensamente lutas sociais em países do chamado primeiro mundo, que já teriam realizado a
integração do proletariado à classe média, assim como já teriam aceito a
necessidade do descentramento de suas matrizes culturais através da abertura à
283
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, In: FRASER e HONNETH; Redistribution or afirmação tolerante de formas de vida em contínua variação. Não por outra
recognition, Verso: New York, 2003, p. 116
razão, volto a insistir, um dos primeiros usos da segunda recuperação do reconhecimento para suas tradições e formas de vida no interior de um
conceito de reconhecimento esteve exatamente vinculado à reflexão sobre a horizonte capitalista de valor”285.
dinâmica social das sociedades multiculturais, como podemos ver no texto A estratégia de Honneth baseava-se em uma assimilação do problema da
supracitado de Charles Taylor. redistribuição de riquezas a um quadro mais amplo de discussões referentes ao
Mas esta leitura não condiz com a realidade histórica do re-aparecimento reconhecimento. Para tanto, foi necessário compreender o sentimento social de
do conceito no interior da filosofia social. Como sabemos, em 1992 ele foi injustiça econômica como expressão possível das “fontes motivacionais do
retomado. Ou seja, exatamente no momento em que se inicia a lenta descontentamento social e da resistência”286. Abria-se assim a possibilidade, ao
desintegração das conquistas econômicas dos ditos Estados do Bem estar social, menos para Honneth, de criar um quadro motivacional unitário centrado na
com o desmantelamento dos direitos trabalhistas, a privatização (gradual ou ideia de que “sujeitos esperam da sociedade, acima de tudo, reconhecimento de
total) da previdência e o sucateamento da educação, da saúde e de outros suas demandas de identidade”287. O que não poderia ser diferente para alguém
serviços públicos. Uma desintegração que ocorreu no momento em que vários que afirma que “sujeitos percebem procedimentos institucionais como injustiça
teóricos afirmavam entrarmos em uma era “pós-ideológica”, ou seja, marcada social quando veem aspectos de sua personalidade, que acreditam ter direito ao
pelo fim da crença em transformações sociais revolucionárias com a reconhecimento, serem desrespeitados”288. Isto já estava presente em seu
consequente aceitação do horizonte normativo das democracias liberais como primeiro livro sobre o assunto, Luta por reconhecimento:
estágio final das lutas sociais.
Isto talvez explique porque críticos - principalmente de matriz marxista, É a reivindicação de reconhecimento intersubjetivo da identidade
mas não apenas eles - desta importância dada ao conceito de reconhecimento individual que introduz uma tensão moral na vida social, é ela que leva
insistiram estarmos aqui diante de uma espécie de conceito meramente sem cessar o progresso social para além do último grau institucionalizado
compensatório. Pois tudo se passaria como se, dada a impossibilidade de e pela via negativa de um conflito reconduzido passo a passo, leva
implementar políticas efetivas de transformação dos modos de produção e luta progressivamente a um estado de liberdade vivido no elemento da
radical contra a desigualdade, nos restasse apenas discutir políticas comunicação.
compensatórias de reconhecimento. Da mesma forma, dado o fato do Capital
aparecer, de maneira agora inquestionável, como única instância capaz de A afirmação é clara: os processos de reconhecimento seriam regulados
ocupar o espaço da universalidade no interior do liberalismo das sociedades pelas exigências da identidade individual. Exigências estas que introduziriam
multiculturais, nos restaria simplesmente reinventar demandas de conflitos sociais visando ampliar os processos de institucionalização da
reconhecimento de identidades comunitárias, em suas múltiplas formas, liberdade. O que coloca no horizonte regulador dos processos de
tentando dar à comunidade um sentido que não se reduzisse a um mero espaço reconhecimento um conceito de “integridade pessoal” cujo pressuposto
de restrição. Por fim, dada a impossibilidade de transformações sociais de larga fundamental é a naturalização de facto das estruturas dos conceitos psicológicos
escala, nos restaria discutir a natureza moral de nossas demandas sociais. de “indivíduo” e “personalidade”. Segundo Honneth, as lutas políticas, mesmo
aquelas organizadas a partir de demandas de redistribuição econômica visam, no
A economia da identidade individual limite, garantir as condições concretas para a “formação da identidade
pessoal”289. Ou seja, a própria gênese da individualidade moderna aparece como
Mostrar que não estávamos diante de um mero dispositivo um fundamento pré-político para o campo político. Algo que deve ser
compensatório, mas provido de importante força de transformação das politicamente confirmado, e não politicamente desconstruído. Daí uma
estruturas sociais, foi uma tarefa que engajou vários defensores do uso político afirmação decisiva, segundo a qual “admito a premissa de que o propósito da
do conceito de reconhecimento nos últimos vinte anos. Ela consistiu em igualdade social é permitir o desenvolvimento da formação da identidade
evidenciar como a força emancipatória do reconhecimento no interior de pessoal de todos os membros da sociedade”290.
processos políticos concretos não se dava à margem da discussão sobre Feita tal naturalização, Honneth pode servir-se, entre outros, dos estudos
problemas de redistribuição igualitária das riquezas. Isto significou, neste de historiadores como E.P. Thompson e Barrington Moore a fim de afirmar que a
contexto, lembrar como as discussões sobre diferenças culturais e identidades estrutura motivacional das lutas da classe operária baseou-se, principalmente,
sociais não mascaram necessariamente problemas estruturais ligados a lutas de “na experiência da violação de exigências localmente transmitidas de honra”291,
redistribuição de riquezas entre classes. Tendo tal projeto em mente, autores
como Axel Honneth foram levados a sustentar que “mesmo injustiças ligadas à 285
HONNETH; idem, p. 123
distribuição devem ser entendidas como a expressão institucional de desrespeito 286
Idem, p. 125
287
social ou, melhor dizendo, de relações não justificadas de reconhecimento”284. O Idem, p. 131
288
Idem, p. 132
que o leva a defender, entre outras coisas, proposições como a de que mesmo o 289
Idem, p. 176
movimento operário “procurava em uma dimensão essencial encontrar 290
Idem, p. 177
291
Idem, p. 131. Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth pode afirmar que, em
Marx “a luta de classes não significa, primeiramente, um afrontamento estratégico visando a aquisição
284
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, op. cit., p. 114 de bens ou de instrumentos de poder. Ela constitui um conflito moral cuja questão é a ‘emancipação’
já que, mais importante do que demandas materiais teria sido o sentimento de existência de uma tendência fortemente cooperativa e comunicacional no
desrespeito em relação a formas de vida que clamam por reconhecimento. Ao interior das primeiras experiências de interação social. Por esta razão, ela é
insistir na centralidade da experiência moral do sentimento de “desrespeito” fundamental para o projeto de Honneth, assim como para sua critica de modelos,
como motor das lutas políticas, elevando-o a condição de base motivacional para a seu ver, insuficientes. O filósofo alemão deriva a tese da intersubjetividade
todo e qualquer conflito, Honneth pode inscrever problemas de redistribuição no primária da teoria das relações de objeto de Donald Winnicott e sua forma de
interior do quadro geral de demandas morais. Assim, sendo a vulnerabilidade compreender as relações de amor e de dependência mútua entre mãe e bebê.
social ligada à pauperização compreendida, principalmente, como expressão Tais relações de amor constituiriam uma base sólida para o desenvolvimento da
material da impossibilidade da realização de exigências morais de respeito, abre- capacidade de ser si mesmo em um outro. Desta forma:
se as portas para afirmar que “a distinção entre empobrecimento econômico e
degradação cultural é fenomenologicamente secundária”292, já que conflitos por a experiência intersubjetiva do amor abre o indivíduo a este estrato
redistribuição não poderiam ser compreendidos como independentes de toda e fundamental de segurança emocional (emotionalen Sichereit) que lhe
qualquer experiência de desrespeito social. permite não apenas experimentar, mas também exteriorizar (Äusserung)
Notem como Honneth aceita a premissa hegeliana de que a existência de suas próprias necessidades e sentimentos, assegurando assim a condição
“obrigações intersubjetivas” seria uma “condição quase natural de todo processo psíquica do desenvolvimento de todas as outras atitudes de respeito de
de socialização humana”. Mas tais obrigações intersubjetivas teriam uma si293.
dinâmica de desenvolvimento caracterizada pela progressão em direção a
formas cada vez mais exigentes de individualidade. Progressão que faz das lutas Ou seja, segundo tal perspectiva, levamos para esferas mais amplas da vida social
e conflitos sociais conflitos éticos marcados pela expectativa de reciprocidade e e para relações afetivas em idade madura a crença na exteriorização tranquila de
estima. No entanto, ele acredita que o Hegel da Fenomenologia do Espírito necessidades e sentimentos, uma crença que seria resultado da experiência
reenquadra o problema do reconhecimento em uma teoria da consciência em intersubjetiva de amor e de afirmação de si presente inicialmente na relação
seus processos progressivos de automediação. Esta é uma interpretação de entre mãe e bebê. Tal relação poderia ser chamada de “intersubjetiva” por ela
Habermas que consiste a afirmar que o Hegel de maturidade teria perdido o ser, ao menos segundo Honneth, simétrica. Como se o bebê dependesse da mãe
potencial de uma intersubjetividade primeira, isto em prol do recentramento da da mesma forma que a mãe dependeria do bebê, isto no interior de uma relação
filosofia a partir do sujeito. Isto traria consequências para a filosofia política, de “identificação emocional” onde a criança aprende a adotar a perspectiva de
como a tendência a pensar as relações sociais a partir do modelo da relação entre uma segunda pessoa. Tal mútua dependência poderia resolver-se através da
a consciência e as instâncias de poder. Assim, ao invés da análise dos processos consolidação de uma posição de cooperação e de segurança emocional que
de mutualidade e dependência intersubjetiva, teríamos um “desenvolvimento permitiria, à criança, desenvolver sua “consciência individual de si”. Posição na
monológico” que explicaria a importância dada às relações individualizadas com qual o amor aparecia como uma “simbiose refratada pelo reconhecimento” e pelo
o Estado. respeito à autonomia.
Neste sentido, o reconhecimento jurídico como sujeito do direito
Relações materiais forneceria a universalidade de relações que o amor desconhece. Tal
reconhecimento se constitui através de um alargamento histórico progressivo no
A fim de retomar o projeto do jovem Hegel em outras bases, Honneth qual o sistema jurídico deve ser a expressão de interesses universalizáveis de
propõe reatualizar a ideia de obrigações intersubjetivas como condição quase todos os membros da sociedade. O que exige a compreensão recíprocas dos
natural de todo processo de socialização humana. Para tanto, trata-se de membros da sociedade como livres e iguais. No entanto, o reconhecimento
constituir uma teoria baseada em diferentes níveis de reconhecimento recíproco. jurídico diz respeito a qualidades universais que me fazem como pessoa em
Níveis que se organizam através de uma dinâmica de progressão. Eles começam geral. Faz-se ainda necessário um nível de reconhecimento que assegure a
pelo amor e sua possibilidade de consolidação de graus de segurança emocional, posição social de qualidades características que me diferenciam dos demais, sem
passando depois pelas relações jurídicas de direitos e, por fim, às relações que isto implique necessariamente em quebra do princípio formal de igualdade.
comunitárias de solidariedade. Amor, direito e solidariedade garantirão três Este terceiro nível nos abre ao problema da estima social e se funda na existência
níveis de relação prática a si, a saber, a autoconfiança, o autorespeito e a de uma comunidade de valores culturalmente definidos pela coletividade.
autoestima.
O amor será pensado principalmente a partir das relações de Lutas sem risco
intersubjetividade primária no interior da família, em especial, entre o bebê e a
mãe. A tese da intersubjetividade primária serve para Honneth defender a Mesmo assim, para fundamentar sua filosofia política, Honneth precisa
criar a imagem de um processo de reconhecimento que se realiza na confirmação
do trabalho, condição essencial de que depende, ao mesmo tempo, a estima simétrica entre sujeitos e a
consciência individual de si” (HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: Zu moralischen Grammatik
293
sozialer Konflikte, Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 233) HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: zu moralischen Grammatik sozialer Konflikte.
292
Idem, p. 171 Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 171
de si pelo outro. Pois a segurança emocional gerada pelo caráter bem sucedido políticos de Marx, contrariamente a suas análises do capitalismo, interpretam as
das demandas de amor no interior do núcleo familiar estaria na base das lutas de classe a partir da noção de uma ruptura ética.
demandas sociais de reconhecimento da autonomia individual e da afirmação de No entanto, há uma dificuldade importante a ser salientada nesta
seus sistemas particulares de interesse. Elas estariam também na base da estratégia. Vimos até agora como Honneth funda o sofrimento de injustiça e
profunda sensibilidade dos sujeitos para experiências de desprezo e de injustiça. desprezo, que nos levam à ação política, em um terreno pré-político, marcado
Desta forma, Honneth constrói uma antropologia psicanalítica para orientar por questões constitucionais normalmente ligadas à discussão sobre a gênese da
processos de interação social onde não há lugar para antagonismos insuperáveis. individualidade moderna, da “consciência individual de si”. Ou seja, a própria
Antropologia profundamente familiarista capaz de fornecer os fundamentos gênese da individualidade moderna aparece como um fenômeno pré-político.
morais dos conflitos sociais. Algo que deve ser politicamente confirmado, e não politicamente desconstruído.
Honneth espera que tal antropologia psicanalítica seja compatível com Desta forma, os sentimentos de injustiça e desprezo são normalmente
aspectos da reflexão sobre conflitos sociais no interior da tradição dialética de compreendidos como resultantes do bloqueio da possibilidade de afirmação
Hegel e Marx. Para ele, a ideia fundamental de Hegel seria que “a luta pelo social e de reconhecimento jurídico de traços da identidade individual. Ou seja,
reconhecimento constitui a força moral que impulsiona a realidade vital social ao menos neste caso, reconhecimento e identidade caminham necessariamente
humana em direção ao desenvolvimento e o progresso” (HONNETH, 1992, p. juntos.
227). Pois a experiência moral de desprezo de minha dignidade de sujeito agente Isto talvez explique porque os exemplos privilegiados de lutas de
e desejante estaria na origem dos movimentos de resistência social e de reconhecimento para Honneth sejam as lutas pela afirmação das “diferenças
sublevação coletiva. Sendo assim, o progresso histórico em direção à liberdade antropológicas” 295 próprias às lutas feministas, assim como aquelas pelos
seria a história da realização, cada vez mais universal, de uma antropologia direitos dos negros e homossexuais. Elas seriam exemplos deste “processo
psicanaliticamente orientada. Mas para Hegel entrar neste horizonte serão prático no interior do qual experiências individuais de desprezo são
necessários alguns ajustes. interpretadas como vivências típicas de todo um grupo, de forma a motivar a
O principal deles está na maneira com a qual Honneth lê a dialética reivindicação coletiva de ampliação de relações de reconhecimento” (HONNETH,
hegeliana do senhor e do escravo. Honneth reconhece na referida dialética um 1992, p. 260). Ou seja, experiências de desprezo ligadas a atributos de indivíduos
“fato transcendental” que aparece como prerrequisito para toda a sociabilidade em afirmação de suas diferenças culturais são interpretadas como violência que
humana. Mas, em suas mãos, tal dialética será o movimento de conquista não afetam apenas o Eu individual. No entanto, ainda não saímos da esfera da
paulatina de uma capacidade de “auto-restrição” através da qual aprendo a afirmação de atributos individuais da pessoa e da construção social de
limitar as ilusões de onipotência de meu desejo ao entrar em contato com a identidades.
irredutibilidade do desejo do outro. Desta forma “ego e alter ego reagem um ao Isto explica, por exemplo, porque sua recuperação do conceito de
outro restringindo ou negando seus respectivos desejos egoístas” (HONNETH, “patologias sociais” será, em larga medida, ligada às discussões sobre o bloqueio
2010, p. 30). nas “condições sociais de auto-realização individual” (HONNETH, 2006, p. 35).
Por projetar o conflito de interesses individuais como base da luta Como se a realização de si devesse, naturalmente, ser pensada respeitando as
hegeliana de reconhecimento,294 Honneth poderá compreender até mesmo a luta estruturas do indivíduo ou, segundo Honneth leitor de Freud, as estruturas do
de classes marxista dentro de um quadro de exigências morais de “ego racional”. Por outro lado, isto nos explica porque os modelos de sofrimento
autorrealização individual e de estima simétrica entre sujeito. Ele se apoia em privilegiados por Honneth sejam a anomia social e o sofrimento de
certas tendência detectadas nos escritos político-históricos e nos escritos de indeterminação identitária.296
juventude de Marx para afirmar que
Modelos de patologias sociais
[...] a luta de classes não significa para ele, primeiramente, um
afrontamento estratégico visando a aquisição de bens ou de instrumentos Aqui, devemos tornar mais preciso um ponto. Normalmente, as discussões
de poder. Ela constitui um conflito moral cuja questão é a “emancipação” sobre anomia insistem no enfraquecimento da normatividade social devido ao
do trabalho, condição essencial de que depende, ao mesmo tempo, a desenvolvimento exponencial das demandas individuais. Como se as demandas
estima simétrica entre sujeitos e a consciência individual de si de liberdade individual explodissem o quadro de regulação das normatividades
(HONNETH, 1992, p. 233). sociais. Daí porque Durkheim (2005, p. 224) teria de constantemente insistir que
“o indivíduo, por si mesmo, não é um fim suficiente à sua atividade. Ele é muito
A realização pelo trabalho não pode ser compreendida apenas a partir da pouco. Não apenas limitado no espaço, ele é estreitamente limitado no tempo”.
dimensão da satisfação das necessidades materiais, nem as lutas sociais a partir Mas, na verdade, temos anomia não porque a individualidade levanta
da dimensão única do antagonismo econômico. Honneth acredita que os escritos demandas particulares e identitárias específicas que não poderiam ser realizadas

295
Sobre o conceito de “diferença antropológica” ver, sobretudo, Balibar, 2011.
294 296
Como fizeram também Pinkard, 1994 e Habermas, 2004 Como podemos ver em Honneth, 2005a
pela ordem social. Uma situação como esta não gera anomia, mas, se quisermos da liberdade tornam-se agora ideologias da desinstitucionalização, é a
utilizar um termo proposto por Durkheim, “egoísmo” ou, ainda, revoltas políticas emergência de vários sintomas individuais de vazio interior, de
direcionadas ao reconhecimento de particularidades ou à ampliação do direito sentimento de ser supérfluo e desprovido de determinação (HONNETH,
de escolha e decisão. Temos anomia, ao contrário, quando as demandas deixam 2010, p. 207-208).
de ser determináveis, deixam de ter forma específica devido a um
enfraquecimento das normas com sua capacidade de individualização e de Como podemos perceber, o diagnóstico não poderia ser mais próximo do quadro
limitação das paixões. Por isto, ao falar das causas sociais do suicídio, Durkheim fornecido por Durkheim. Exigências de autorrealização individual se
deve lembrar que os suicídios motivados pela anomia se distinguem tanto transformaram em “ideologias da desinstitucionalização”, ou seja, em processo
daqueles motivados por uma individualização excessiva (os suicídios egoístas) de enfraquecimento da capacidade de coesão e organização das normas sociais.
quanto dos motivados por uma individualização insuficiente (suicídios Com isto, produz-se uma desregulação das normas sociais paga com patologias
altruístas). Neste contexto de anomia entra-se em um “estado de ligadas ao sentimento depressivo de esvaziamento e à incapacidade de ação.
indeterminação” (DURKHEIM, 2005, p. 275) (ou, se quisermos utilizar um Assim como teóricos sociais como Luc Boltanski e Eve Chiapello (1999),
vocabulário de Honneth, em um “sofrimento de indeterminação”) no qual Honneth compreende claramente como tal anomia virou uma “força produtiva”
nenhuma individualização é possível devido ao fato da sociedade estar, entre da economia capitalista em era de flexibilização e desregulação contínuas. Ele
outras coisas, submetida à “inorganização característica de nosso estado compreende também, tal como vimos no capítulo anterior, como essa gestão
econômico” (p. 286) com sua “sede de coisas novas, de gozos ignorados, de social da anomia é paga com o desenvolvimento exponencial de patologias
sensações inominadas, mas que perdem todo seu sabor desde que são ligadas à desregulação da capacidade de constituir identidades, como a
conhecidas” (p. 285). Diante de promessas constantes de gozo, produzidas pela depressão e seu “cansaço de ser si mesmo”,298 a insegurança narcísica e os
sociedade capitalista em ascensão, toda satisfação limitada é insuportável transtornos de personalidade borderline. Mas, como gostaria de insistir, sua
exatamente por ser uma limitação, toda escolha identitária é sem sentido resposta não parece escapar da procura em reconstruir as bases normativas para
exatamente por ser uma multidão de recusas. Daí as reprimendas de Durkheim institucionalidades capazes de garantir o desenvolvimento bem sucedido de
contra “este mal do infinito, que a anomia aporta sempre consigo” (p. 304) e que indivíduos. Ela ignora que o problema não se encontra nos processos de
só pode produzir cólera, decepção e lassidão exasperada por uma sensibilidade desinstitucionalização, mas no impacto de outra forma de regulação social ligada
superexcitada. à expropriação psíquica do estranhamento.
Como Durkheim opera com um conceito quantitativo de diferença entre
normal e patológico,297 reconhecerá que um certo grau de anomia é necessário.
Assim, para ele, “toda moral do progresso e do aperfeiçoamento é inseparável de
um certo grau de anomia” (p. 417). No entanto, algo nas condições particulares
do progresso em nossa sociedade produz uma situação anormal e patológica de
anomia. Contra isto, Durkheim sugere um reforço das estruturas institucionais
que passe, sobretudo, pela consolidação de vínculos comunitários ligados aos
agrupamentos profissionais.
Quando recuperar o conceito de patologia social, Honneth irá à sua
maneira partir deste diagnóstico de Durkheim, mas acrescentando um elemento.
Trata-se da compreensão de como, nos últimos trinta ou quarenta anos, esta
situação de anomia social foi institucionalizada, transformando-se em um modo
de gestão do sofrimento social e uma mola propulsora da ideologia neoliberal do
estágio atual do capitalismo. Lembremos aqui de afirmações como:

expectativas de auto-realização individual, que cresceram rapidamente


devido a uma combinação historicamente única de vários processos
distintos de individualização nas sociedades ocidentais dos últimos trinta,
quarenta anos e que, neste tempo, tornaram-se tão claramente um padrão
institucionalizado de expectativas da reprodução social, perderam seu
propósito (Zweckbestimmung) interno e, mesmo assim, tornaram-se a
base de fundamentação do sistema. O resultado desta inversão paradoxal,
na qual processos que outrora prometeram um crescimento qualitativo

297 298
Como fica claro em: DURKHEIM, 2004. Ver, a este respeito, o influente livro de Ehrenberg, 2000.

Potrebbero piacerti anche