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O POETA DO GROTESCO,
VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro
Setembro de 2019
O POETA DO GROTESCO, VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro
Setembro de 2019
2
O POETA DO GROTESCO, VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro
Setembro de 2019
3
Gil, Daniel.
176 f.
4
RESUMO
GIL, Daniel. O poeta do grotesco, Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro, 2019. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
5
ABSTRACT
GIL, Daniel. The poet of the grotesque, Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro, 2019. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
6
A Pedro Rafael, meu filho, que
dividiu minhas atenções com este trabalho
nos primeiros meses de sua vida.
7
AGRADECIMENTOS
8
SUMÁRIO
I. MOTIVOS 11-18
II. DE ROMA A HOLLYWOOD (W. KAYSER) 19-28
III. ARIADNE E OS SOGNI DEI PITTORI 29-39
IV. ZABUMBAS NAS CAVEIRAS (M. BAKHTIN) 40-52
V. O BANQUETE DO OMNÍVORO 53-62
VI. O FEIO ROMÂNTICO 63-77
VII. BAUDELAIRE NO MIRAMAR 78-88
VIII. É BELA A BOMBA? 89-97
IX. DE GREGÓRIO A VINICIUS 98-120
X. BIBLIOGRAFIA 121-132
ANEXO I (TREZE POEMAS) 133-163
ANEXO II (ICONOGRAFIA) 164-176
9
No bilhar de Van Gogh tudo estava imóvel
Mas de repente entrou o jogador bêbado que eles diziam falido na vida
E se pôs a jogar com tanta perfeição que os modelos adormecidos se levantaram
E vieram ver e ficaram com gestos de aprovação na cabeça e se entreolhavam.
Mas o mais belo foi quando ele deu a tacada seiscentos e sessenta e seis.
A luz se apagou e todas as coisas mesmo cadeiras mesas vieram cumprimentá-lo
E ali mesmo ele foi proclamado Diabo, porque, eles diziam
Só mesmo o Diabo era capaz de jogar assim.
(“O bilhar” In: Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p.517-8.)
10
I. MOTIVOS
Victor Hugo
1
HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário, 2000,
p.159.
2
Op. cit., 158-9.
11
oriundos de ambas as perspectivas; o que, de modo geral, não os obsta à filiação
específica a um dos lados e à defesa entusiasmada.
Sem dúvida alguma, Vinicius de Moraes posicionou seu olhar de maneira
contígua ao de criadores como Victor Hugo. Ainda que muito bem operasse aqueles
instrumentos que podem oferecer à poesia um caráter cerebral — a ponto de antecipar,
por exemplo, em “Última elegia”,3 um conjunto de recursos de vanguarda na poesia
brasileira —, essa destreza no emprego de técnicas, na realização diversificada de
formas, esteve sempre submetida a um protagonismo desassombrado de intensas
paixões e perplexidades — como também dos delírios e das fantasias que pudessem
ofertar mais significado aos vãos angustiantes de sua experiência com o real. A mestria
converteu-se com igual relevância no intercâmbio muito característico do poeta entre
componentes contemporâneos e tradicionais, inclusive no que tange à temática, à esfera
semântica, ao plano do imaginário.
A propósito, é preciso dizer que grande parte da melhor poesia brasileira
publicada no século XX não foi exatamente endurecida, contida, antilírica, como faz
parecer uma quantidade considerável de material crítico e teórico produzido ao longo do
período. Bandeira, Cecília, Vinicius são poetas apaixonados, demasiados, melodiosos;
Drummond é também um poeta dos sentimentos, do amor, conquanto sua dicção seja
mais angulosa; restaria em sequência, ainda, o lirismo de um Quintana, de Hilda, de
Adélia. Nem mesmo é cabível afirmar que uma perspectiva “sóbria” tenha sido a
preferida entre os leitores nos círculos intelectuais de amplo espectro.
Acontece que as atenções da teoria e da crítica mais institucionalizada, de fato,
voltaram-se com maior interesse para outros campos de nossa poesia, preferindo a
consciência ostensiva dos artifícios; a experimentação das vanguardas; a apurada
contensão, a concisão de João Cabral; os aspectos mais racionais da poesia de
Drummond. Antonio Candido percebe que o seu tempo “é um tempo que tende à
ruptura, ao triunfo do ritmo e mesmo do ruído sobre a melodia, assim como tende a
suprimir as manifestações de afetividade”; e que “Vinicius é melodioso e não tem medo
de manifestar sentimentos, com uma naturalidade que deve desgostar as poéticas de
choque, geralmente interessadas em suprimir qualquer marca de espontaneidade e em
realçar o cunho de artifício”.4 É necessário registrar que, nesse contexto, as concepções
3
MORAES, Vinicius de. Cinco elegias. Rio de Janeiro: Pongetti, 1943, pp. 37-42.
4
CANDIDO, Antonio. Um poema de Vinicius de Moraes. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e
baladas/ Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 159-62.
12
do poeta — aquelas que destoavam das tendências teóricas — não tinham origem em
qualquer postura reativa ou reacionária, mas o inverso: elas eram inerentes a uma
natureza oposta aos limites; aberta, múltipla, intercambiável. Bandeira foi quem
primeiro percebeu essa inclinação incorrigível de Vinicius à multiplicidade:
Francisco Bosco entende que essa natureza múltipla “foi desconcertante para a
maioria dos críticos, e mesmo decepcionante para quase todo o sistema cultural
brasileiro”.6 O que o ensaísta chama de “sistema cultural” pode ser traduzido pela
tensão entre grupos mais ou menos organizados que concorrem nos espaços de
legitimação. Tanto assim que, em seguida, menciona o apontamento de José Miguel
Wisnik de que as opções estéticas constantemente disruptivas e independentes de
Vinicius conseguiram desagradar católicos, modernistas, defensores da poesia escrita,
músicos etc.; e, nessa trajetória, levaram-no aparentemente a galgar “cada vez um
patamar abaixo do esperado”; no mesmo raciocínio, mais adiante, ele concluiria que,
apesar da importância inegável para a cultura do século XX por engrandecer a poesia, a
arte dramática, a arte de viver, a canção, a erudição e a expressão popular, Vinicius
nunca foi “o cioso administrador de seu capital poético”.7 Essas considerações,
espirituosas, ganham significado ao constatarmos repetidamente, nunca sem algum
espanto, que um dos maiores poetas da língua portuguesa — e um dos mais lidos —
carece ainda hoje de um movimento crítico continuado.
5
BANDEIRA, Manuel. Coisa alóvena, ebaente. In: MORAES, Vinicius de. Obra poética. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1968, pp. 656-8.
6
BOSCO, Francisco. A mulher original. In: MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, pp. 197-204 (grifo do original).
7
WISNIK, José Miguel. A balada do poeta pródigo. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas/
Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 143-50 (grifo do original).
13
Este estudo, em razão do escopo específico, acaba expondo questões como tais
acerca da obra do poeta: o considerável desconcerto com a perspectiva teórica
predominante de seu tempo — o que ajuda a explicar a desatenção das leituras
especializadas a um de seus traços mais profundos; o diálogo com a tradição — que
supera o tão mencionado âmbito formal e, com efeito, passa por um vasto repertório de
elementos do imaginário histórico das literaturas; o caráter múltiplo dessa poética —
inclusive na execução de uma variedade de mecanismos heterogêneos, oriundos de
escolas aparentemente antagônicas. A ideia em desenvolvimento, aqui, é simples na
delimitação, mas pode parecer inesperada: Vinicius de Moraes é um poeta do grotesco.
Veremos que ela não se origina de ocorrências esporádicas do fenômeno estético, mas
do reconhecimento de uma inclinação essencial e profusa do poeta; digamos que seja
“inesperada” uma vez que o enorme êxito de Vinicius com seus poemas amorosos,
junto a um público imensurável, emprestou a ele uma persona literária supostamente
contrária, quanto mais se acrescentarmos aí a consolidação, de tal sorte, de sua poesia
voltada para crianças.8 Entretanto, é necessário dizer que é natural que escritores e
artistas vinculados a uma estética grotesca sejam frequentemente aqueles que muito
exploram as emoções humanas como o amor, a euforia, as paixões, os desequilíbrios —
são os artistas do extremo, como Shakespeare ou Victor Hugo; e também que a
disposição à fantasia e ao nonsense é manancial em comum, seja do grotesco, seja da
imagética romanesca9 ou infantil.
A propensão que têm esses criadores — devotos do abalo afetivo ou moral, da
trepidação dos sentidos, do sentimento — de representarem em suas obras elementos
tanto do sublime quanto do grotesco poderia servir de pista para que os críticos
identificassem o mesmo movimento na poesia de Vinicius de Moraes. No entanto, no
século XX, o que mais se aproximou de uma observação nesse sentido foram estas
linhas abaixo, dispensadas por Ivan Junqueira, reconhecendo que o amor e a morte
figuram ali com igual protagonismo; e que mesmo as substâncias da vida detêm certo
extremo aterrador:
8
Ver estudo (do autor): “Se ‘A casa’ de Vinicius é folclore brasileiro” em Revista 7faces, ano 04, edição 08,
ago-dez, 2013, pp. 147-56 ( https://issuu.com/setefaces/docs/caderno-revista_7faces_8___edi____o/147 ).
9
Fabulosa, utópica, quimérica.
14
que com maior desassombro e autenticidade encarnou o mito de
Orfeu, descendo aos infernos da vida e da morte em busca de sua
Eurídice, que foram muitas e talvez nenhuma.10
10
JUNQUEIRA, Ivan. O signo e a sibila. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, pp. 252-75.
11
FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. Coleção Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2006.
12
Anexo I, pp. 145-7.
13
Op. cit., pp. 24-7.
15
efetivos, essenciais: como as que se restringem à divisão em duas fases, estipulada pelo
próprio poeta em sua “Advertência” à Antologia poética (1954), tão sistematicamente
citada (pensemos, todavia, na variedade de poemas que vieram a público após essa
divisão); as que enxergam a obra com base na separação entre o poeta dos livros e o
letrista das canções populares; as que percebem nos poemas inéditos da Antologia, nos
Novos poemas (II) (1959) e em Para viver um grande amor (1962) uma guinada em
direção aos temas sociais; as que ressaltam a variação de estilo do letrista de acordo
com a alternância de suas parcerias. São observações importantes porque apresentam as
transformações mais patentes ocorridas na obra ao longo do tempo. Em contrapartida,
porém, encontramos às vezes estudos que procuram se aproximar do eixo-motor
criativo, das inquietudes que arrastam desde sempre o poeta à poesia e que funcionam
como agentes de um veio original, único. É o caso de uma tese recente, escrita por
Bruno Cosentino, onde se afirma que Vinicius nunca abandonou certo “sentimento
religioso” a partir da descrença no catolicismo; que esse sentimento foi posteriormente
“embebido por uma intuição ritualística” e passou a buscar, “no reconhecimento de si
no Outro e na fusão com a mulher amada, a restauração de uma unidade primordial
anterior à criação”.14 Cosentino acredita que a vivência católica, pujante, do poeta —
importantíssima na formação de suas concepções estéticas — decorreu-se menos de
uma fé verdadeira que desse sentimento íntimo, particular, externado como atividade
intelectual:
14
COSENTINO, Bruno. O andrógino meigo e violento: amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius
de Moraes (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2019.
15
Nota 80. In: Op. cit., p.35.
16
Essa religiosidade sui generis pode ter sido para Vinicius aquilo que Schlegel
imaginara para os alicerces da poesia de sua época: uma “nova mitologia”. Expoente da
primeira fase do Romantismo germânico, ele avaliou que a grandeza dos poetas da
Antiguidade clássica era resultado de um “centro” do qual podiam se apoiar, o
prodigioso mundo das antigas divindades. E que, para ocupar esse espaço então
desguarnecido, os escritores deveriam agora se atentar, talvez, a algo congênere da
Ideologia, ou àquele produto perceptível na obra dos “modernos mais antigos” — como
Shakespeare — para o qual dá o nome de arabesco. Schlegel o define em sentenças
como “simetria de contradições”, “eterna alternância de entusiasmo e ironia”, “forma
mais antiga e original da fantasia”.16
A dimensão mítica ou religiosa que Vinicius oferece à experiência humana, isto
é, ao amor, à amizade, às mais variadas relações do indivíduo no cotidiano social,
sublinha uma particularidade basilar da perspectiva poética da qual ele se aproxima.
Essa é a primazia dos valores. Do lado oposto, os mais “sóbrios” se preocupariam com
a aproximação que ela pode guardar com o seu parente mais embaraçoso, o moralismo.
No entanto, os valores do poeta, materializados na vida cotidiana ou nas formas
literárias, longe de serem limitantes, reivindicam a exuberância da experiência, a
pluralidade, a intensidade, as contradições — desde que direcionadas ou ainda
submetidas a um reconhecimento de si mesmo por meio do interesse radical pelo Outro.
E são tais os deslimites a serem representados a partir dessa profissão de fé, que sua
poesia precisa conceber e combinar elementos do contraste mais extremo: o bem, o mal,
o belo, o feio, o divino, o infernal, o sublime, o grotesco.
O texto que se inicia opta por não incorporar aquela estrutura mais usual da
exposição de uma tese, que separa os pressupostos teóricos, em uma primeira parte, da
análise do objeto, em outra. No intento de torná-lo menos cansativo para o leitor, a
teoria será entrelaçada à poesia, de modo, também, a privilegiar a argumentação. As
discussões históricas apresentadas a respeito do conceito do grotesco servirão de linha
condutora para a abordagem do fenômeno estético na obra poética de Vinicius de
Moraes. Elas tomam como ponto de partida as pesquisas efetuadas por Wolfgang
Kayser e Mikhail Bakhtin para, logo, estender-se em considerações de outros autores de
grande importância quando tratamos do assunto. Alguns capítulos, na prática, tendem a
imergir-se, ora mais na discussão, ora na análise de poemas. Às vezes, a permanência
16
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e
notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 513-36.
17
do discurso nas questões que buscam explicar esse conceito pode parecer demasiada;
porém, devido à dificuldade da conceituação, e as divergências, e o acúmulo dos
debates, ou ainda a natureza fascinante do fenômeno, tem-se o sentimento de que ela é
oportuna. Dessa maneira, torna-se visível o volume de feições com as quais o grotesco é
capaz de se apresentar; e sua natureza diversa está exposta de modo imperioso na poesia
de Vinicius. Por esse próprio fato, seria imprevidente ocupar-se na distinção de todos os
poemas que interessam em algum grau ao enunciado; mas é possível assinalar uma
porção substantiva e representativa, a qual indique especificidades do poeta e dessa
(des)ordem criadora.
18
II. DE ROMA A HOLLYWOOD (W. KAYSER)
19
E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma
[estranha litania me fascinava.
Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz
Quis avançar sobre os tentáculos das raízes
[que eram meus pés
Mas o vale desceu e eu rolei para o chão (...)
Aqui eu estou parado, preso à terra, escravos dos
[grandes príncipes loucos.
Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu
Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu.
É este o misterioso reino dos ciprestes
Que aprisionaram os cravos lívidos e os
[lírios pálidos dos túmulos
E quietos se reverenciam gravemente como uma
[corte de almas mortas.
Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta
A conversa do meu destino nos gestos lentos dos
[gigantes inconscientes
Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo...18
20
costumam a ornar cemitérios”.19 Vinicius elabora imagens que parecem despidas de
qualquer paradigma no intuito de representar o obscuro e o indizível de sua mente; mas
elas, na verdade, derivam de uma tradição longeva — redescoberta naquelas
manifestações pictóricas.
Eram ornamentos que diferiam dos ideais estéticos predominantes, o que não
impediu que um novo estilo neles inspirado se difundisse. Tornou-se mesmo popular,
além de merecer destaque entre as obras mais famosas e curiosas do Renascimento,
como os grotescos de Rafael Sanzio, que cobriram o forro e os pilares das loggie papais,
as gravuras de Agostino Veneziano ou as cinco cabeças de Leonardo da Vinci. A
preservação de lugares como o “Parque dos Monstros”, na região do Lácio, serve-nos
também para exemplificar a grande influência do estilo ao longo de todo o século
posterior às descobertas. Os artistas da maniera, na transição entre a arte renascentista e
a barroca, entusiasmavam-se igualmente pelos grotescos, pelos sogni dei pittori, como
ensina Anatol Rosenfeld. É o caso de Emanuele Tesauro, que sugeria ao artista e ao
poeta que estabelecessem ligações entre os fenômenos mais desencontrados, como
ocorre no sonho e na loucura, antevendo em alguma medida, inclusive, a teórica
surrealista: “um caranguejo, por exemplo, agarrando uma borboleta ou um escorpião
abraçando a lua”.20
Aquela concepção estética, todavia, é mais antiga que o seu nome. Ela já
ocorrera na arte chinesa, etrusca, asteca, germânica antiga, ou mesmo em manifestações
poéticas gregas. Constatou-se logo que os grotescos não eram autóctones de Roma, e
que lá chegaram relativamente tarde, por volta da época da transição para o império. A
possibilidade mágica de uma arte que pudesse unir conceitos e imagens antagônicas
servira sobretudo de eixo à cosmologia de muitas religiões primitivas, ao imaginário
medieval e ainda de épocas proximamente posteriores. Por sua vez, a palavra grottesco
para denominar o novo estilo ornamental foi aceita em diversos países a partir do século
XVI, inicialmente como substantivo, ou seja, como designação fixa de obras que
emulavam as manifestações que se haviam revelado naquelas grutas. Pouco a pouco,
surge também o adjetivo, que passa a remeter às misturas do humano com o animalesco,
à representação de uma natureza em desordem e, especialmente, à realização do
monstruoso.
19
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
cores, números. Coord. Carlos Sussekind; trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 23ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2009, p.250.
20
ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1985, pp. 64-5.
21
Ao que se sabe, foi Montaigne quem primeiro utilizou o termo de modo a retirá-
lo das artes plásticas, sua circunscrição original, para introduzi-lo no campo da arte
literária. Ele se referiu ao conjunto de seus próprios Ensaios (1580) como algo sem
muita ordem ou lógica:
21
MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984,
p.91. Obs.: No texto em francês, o escritor utiliza os seguintes termos: “...sans crotesques et corps
monstrueux, rappiecez de divers membres, sans certaine figure, n’ayants ordre, suite ny proportion que
fortuite”. Um tanto diferente da tradução de Sérgio Milliet, é a de Júlia da Rosa Simões: “...e o vazio em
volta ele o preenche com grutescos, que são pinturas extravagantes que só têm graça por sua variedade e
estranheza. O que são também estes ensaios, na verdade, senão grutescos e corpos monstruosos,
remendados com diversos membros, sem forma nítida, não tendo ordem, sequência nem proporção que
não fortuitas?” (MONTAIGNE, Michel de. Ensaios: Da amizade e outros textos. Porto Alegre: L&PM , 2017,
p.35). O receio dos tradutores em utilizar o vocábulo português “grotesco” parece resultado tanto da
distância entre o sentido extenso que ele adquiriu com o tempo e o sentido mais estrito aplicado por
Montaigne, bem como a utilização de uma grafia de época do francês, crotesques em vez de grotesques.
22
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 25-6.
22
aproximava do burlesco e do cômico. O grotesco chegou a perder qualquer traço de
temibilidade, de acordo com o Dictionnaire français, de Richelet (Amsterdam, 1680):
“Plaisant, qui a quelque chose de plaisamment ridicule”.23 No entanto, é a partir da
citação a Jacques Callot e da commedia dell’arte no Dictionnaire de 1620, de Philibert
Monet, que uma nova determinação do grotesco, significativa para a história do termo,
veio a se prenunciar. Um posterior ensaio de Denis Diderot fazendo menção aos
“grotescos de Callot” foi traduzido por G. E. Lessing. O ensaio estaria no centro das
discussões artísticas em meados do século XVIII.24
Três questões intrínsecas aos primórdios do Romantismo acabariam então por se
confundir e se complementar. A primeira colocava sob suspeita o princípio de que a arte
deveria representar apenas a beleza, o que fez emergir a ideia do característico ou
mesmo da feiura como objeto de uma nova estética. A segunda procurava os contornos
possíveis de uma definição para o conceito de grotesco. A outra levantava o inquietante
problema das caricaturas, que já não podiam ser consideradas uma brincadeira sem
importância, pelo que demonstravam de significativas e altamente substanciosas, como
a série de gravuras em cobre de Hogarth. O poeta e escritor C. M. Wieland dividiu as
caricaturas em gêneros que variavam de acordo com o seu caráter mais real ou mais
fantástico: “as verdadeiras”, onde o pintor reproduz a natureza disforme; “as
exageradas”, em que aumenta a deformação de seu objeto em razão de algum propósito
especial; e “as grotescas”, inteiramente fantásticas, por meio das quais o pintor procura
despertar “gargalhadas, nojo e surpresa pela audácia de suas criações monstruosas”.
Diderot, pelo contrário, baseado nos grotescos de Callot, pretendia constatar que os
primeiros tipos, ainda enraizados na realidade, serviriam de modelo para uma definição
conceitual do grotesco.25
Ao pensarmos em representação caricatural na obra de Vinicius de Moraes,
vêm-nos de imediato dois poemas: “Carta aos ‘Puros’” e “As mulheres ocas”. Apesar de
figurarem no livro mais bem-humorado do poeta, Para viver um grande amor, eles
evocam, quando muito, um estreito riso de concordância. Há em ambos os textos um
hibridismo que não se dá entre seres de reinos distintos, mas entre a figura humana e os
objetos materiais inanimados, sem vida, isto é, composições que rebaixam um tipo
específico de indivíduo à esfera das coisas, caracterizado por seu estilo de vida e suas
23
“Agradável, que tem algo agradavelmente ridículo”. (Tradução do autor.)
24
KAYSER, Wolfgang Johannes. Op. cit., pp. 26-7.
25
Op. cit., p.30.
23
relações sociais. E então, os homens que se dizem “Puros” são constituídos de nylon, de
sangue incolor, de neon, são extraordinariamente rarefeitos; as “mulheres ocas” são
inorgânicas, estátuas de talco, possuem hálito de champagne, pernas de salto alto, pele
fluorescente, rostos de opala, olhos cromados e uma máscara de cal.
Kayser observa que, desde a descoberta dos ornamentos em Roma, faz parte da
estrutura do que se chama de grotesco esses processos persistentes de dissolução — a
mistura de domínios que para nós estavam separados, a supressão da estática, a perda da
identidade, a distorção das proporções etc. E afirma que, no entanto, nos deparamos
agora com novas dissoluções — como essas acima —, capazes também de quebrar a
ordem lógica de nossa orientação no mundo: “a suspensão da categoria de coisa, a
destruição do conceito de personalidade”.28
Entre os quarenta e um poemas inéditos lançados em sua Antologia poética,29
Vinicius de Moraes nos apresenta uma peça muito peculiar, composta de maneira a
simular um pequeno roteiro de cinema: “História passional, Hollywood, Califórnia”.30
O poema é composto por uma sequência de quartetos, cenas que reúnem os clichês de
um estilo de vida muito representado nas telas, sobretudo em meados do século XX.
Desse modo, um homem de trinta e poucos anos, casado, dentro de um carro
26
Carta aos “Puros”. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 59-61.
27
As mulheres ocas. Op. cit., pp. 102-4.
28
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p.159.
29
Rio de Janeiro: A Noite, 1954.
30
Op. cit., pp. 246-9.
24
conversível em Hollywood, trai a esposa promovendo todos os caprichos de uma loura
de vinte anos. Tudo regado a cigarros, caríssimos passatempos e alguma angústia que
cresce na medida em que todo o esforço do protagonista se demora a reverter-se em
consumação sexual. Até que, depois de um jantar extravagante e um pedido
desesperado de casamento, ele se vê de frente a mais uma negativa e inicia uma
discussão com palavras desconexas. Algo então se lhe apossa de forma que o desvario é
o único e irreprimível resultado:
31
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento : o contexto de François Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.43.
25
instrumento óptico: “o mundo grotesco causava a impressão de ser a imagem do mundo
vista pela loucura”.32
Os primeiros versos de “História passional, Hollywood, Califórnia” podem
induzir o leitor, por um minuto, a acreditar estar à frente de um grande galanteio, de
uma promessa arrebatada — devido à fala diretamente voltada à interlocutora e a uma
utilização copiosa do tempo verbal no futuro. Contudo, partindo de uma descrição
expressiva dos detalhes, até chegarmos ao verso “E há uma cena em que vendes um
maço a George Raft”33, a compreensão dos intentos do poeta, em diálogo permanente
com a arte cinematográfica, faz-se cabal.34 No entanto, é a alternância virtuosa de um
grande número de figuras de linguagem o aspecto formal mais chamativo no poema.
Metonímias de todo o feitio, metáforas, comparações, hipérboles, prosopopeias tornam
sua leitura uma experiência do imprevisível e, muitas vezes, do cômico. É aqui que
reside uma questão de critério da qual não podemos nos eximir quando tratamos do
fenômeno do grotesco especificamente na poesia. Estamos diante de um gênero artístico
de grande teor simbólico, figurativo; o que é dito se refere frequentemente ao que não se
diz, e assim se torna capaz de expressar um campo mais vasto da totalidade do que em
outro nível ou outra modalidade de linguagem. Se considerarmos, pois, toda a figura de
linguagem que ponha paralelo entre o objeto representado e outro de natureza distinta
como uma manifestação do grotesco, estaremos na verdade esgarçando vulgarmente os
limites do conceito em vez de contribuir com ele, bem como obscurecendo os esforços
teóricos já desenvolvidos em seu favor. Não parecem representar estranhos hibridismos
imagens como “tua coxa rija como a madeira”, “teus dois mil dentes de esmalte” ou
“teu seio de arame”, presentes no poema. Tampouco parecem caricaturas, dado que, se
há deformidades, elas transmitem ao leitor mais precisamente a imagem do objeto
original do que a de sua figuração; isto é, transmitem uma constante, sem desordenar
qualquer categoria de seu mundo conhecido. São construções com poder de síntese,
destreza, graça, mas não soam grotescas. Por outro lado, a começar da antepenúltima
estrofe, algum elemento alheio às nossas categorias faz com que a namorada se pareça
uma cabra; toma de assalto o protagonista e o arremessa à loucura. E então um
assassinato se realiza a dentadas e macabros manuseios, de maneira que a vítima
32
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p.159.
33
George Raft (1895-1980) foi um ator americano de grande sucesso; tornou-se um dos astros mais bem
pagos do cinema após o lançamento de Scarface (1932).
34
Destaque-se o profundo envolvimento de Vinicius de Moraes com o cinema.
26
termine desfigurada. Em seguida, o assassino chora arrependido sobre o corpo, ou seja,
a “consciência estranha” já lhe deixa no mundo reconhecível. Sob qualquer aspecto ou
abordagem que se exija, experimentamos aqui a manifestação do grotesco.
Qual seria, portanto, a ideia que nos falta para tentarmos delimitar o fenômeno,
de acordo com os estudos de Kayser? Já mencionamos aqui que o encontro com a
loucura pode transportar a questão: (1) do objeto de arte em si mesmo para (2) o
processo criativo do artista. De mesmo modo, é possível deslocar a questão para a
direção contrária, ou seja, para (3) a recepção deste objeto artístico pelo público. E logo
chegamos aos três domínios para os quais apontariam o grotesco, necessários para uma
noção estética fundamental. É evidente que nuances podem sempre se relativizar em
algum grau, como expõe o próprio teórico:
Quem não está familiarizado com a cultura dos Incas pode tomar por
grotescas certas estátuas desta origem, mas aquilo que nos dá a
impressão de ser uma careta, um demônio sinistro, de uma visão
noturna e, portanto, de ser portador de um conteúdo de horror,
desconcerto e angústia perante o inconcebível, talvez tenha, como
forma familiar, o seu lugar determinado num nexo significativo
perfeitamente compreensível. Mas enquanto nada soubermos a este
respeito, assiste-nos o direito de empregar a palavra “grotesco”.35
27
construída antes que as categorias de nossa orientação comecem a falhar e deixar de nos
servir. Por isso, de acordo com Wolfgang Kayser, os contos de fadas não comporiam
necessariamente um mundo alheado, apesar de representarem universos estranhos e
exóticos: é preciso que se nos revele aquilo que é familiar.
Sua obra O grotesco: configuração na pintura e na literatura (1957) elabora um
panorama extenso em torno das ocorrências do grotesco, tanto na arte como na crítica.
Suas reflexões partem da etimologia do termo e sua ligação com os ornamentos dos
séculos XV e XVI, chegando até a literatura e as artes plásticas contemporâneas,
passando por considerações sobre a pintura de Bosch, Brueghel, as caricaturas de
Callot, a Commedia dell’Arte, o teatro do Sturm und Drang, a ficção romântica e muitos
trabalhos do século XIX e início do século XX. Sua obra tem importância central para a
discussão do conceito. As manifestações reconhecidas pelo teórico apontam para o
aspecto, em algum grau, lúgubre e sinistro. Conquanto sejam cômicas, elas não seriam
observadas com leveza devido à natureza incomum e contraditória; encontra-se nelas
um elemento assustador diante da instabilidade, da falta de fundamento seguro que é
sentida de súbito — o id fantasmal seria uma força manipuladora do homem e do
mundo, uma espécie de titereiro invisível que submete o universo ao desconforto da
desordem.
28
III. ARIADNE E OS SOGNI DEI PITTORI
38
FARIA, Octavio de. A transfiguração da montanha. In: MORAES. Vinicius de. Obra poética. Org. Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968, pp. 635-47.
39
Anexo I, pp. 134-7.
40
COSENTINO, Bruno. O andrógino meigo e violento: amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius
de Moraes (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2019, p.47 (grifo nosso).
29
e, no conjunto de imagens que pode evocar, incluem-se, numerosos, os elementos
dionisíacos — em função de determinados mitos que envolvem a presença da filha de
Minos e que guardam uma relação direta com Dioniso. Ariana, aqui, não é somente a
metonímia de um primordial feminino (“a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem-
amada!”); e, absolutamente, não possui qualquer ligação com a “mulher de Áries, do
planeta Marte”;41 mas é a amante assinalada na mitologia — aquela que passou a
carregar todo o complexo de significados de uma mortal-imortal, após ganhar, nos
percursos do amor, os atributos divinos ofertados pelo companheiro. Sem a consciência
desse dado central, a leitura fatalmente se entrelaça, em algum momento, nos embaraços
dos símbolos e de um aparente despropósito de seus componentes grotescos. A
transformação perceptível na obra poética de Vinicius de Moraes, portanto, passou por
aquela que é um ponto de contato entre os céus e a terra.
Esta aventura onírica, vivenciada por um poeta solitário “na sala deserta daquela
casa cheia da montanha em torno”,42 faz lembrar que, no século XVI, grotescos
ornamentais ganharam a alcunha de sogni dei pittori (sonhos dos pintores) — tendo em
vista as formas de invenção livre, como nos sonhos. A licença para que os artistas
fossem além dos padrões conferidos por postulados clássicos, ultrapassando, por meio
da fantasia e da desordenação do mundo, a mimese do verdadeiro, havia fixado o
vínculo substancial entre o grotesco e o onírico, a subversão das leis naturais e a criação
de monstros.
41
JAFFE, Noemi. Uma poesia subjuntiva. In: MORAES, Vinicius de. Forma e exegese e Ariana, a mulher. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.114.
42
MORAES, Vinicius de. Ariana, a mulher. Rio de Janeiro: Pongetti, 1936.
43
Op. cit., pp. 5-6. Obs.: Algumas pequenas alterações foram efetuadas nas duas edições de Antologia
poética (1954, 60) e, por isso, incorporadas nas citações. MORAES, Vinicius de. Ariana, a mulher. Antologia
poética. Segunda edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960, pp. 65-71.
30
Antes das considerações mais circunscritas ao poema, cabe aqui levantar
algumas histórias sobre a figura mitológica de Ariadne. Seu pai, o poderoso rei de
Creta, submetia os atenienses a tributarem, todos os anos, sete jovens e sete donzelas
para que fossem devorados pelo Minotauro — uma criatura terrível, com corpo de
homem e cabeça de touro, que se abrigava no complexo labirinto construído por
Dédalo.44 Foi então que Teseu — filho de Egeu, rei de Atenas —, um jovem com
espírito de herói e desejoso de se destacar como Hércules, apresentou-se
voluntariamente para ser uma das vítimas do tributo, com o objetivo improvável de
liquidar a criatura. Ao chegar em Creta, os jovens foram exibidos ao rei Minos; sua
filha, Ariadne, que estava presente, acabou se apaixonando por Teseu. “A jovem deu-
lhe, então, uma espada, para enfrentar o Minotauro, e um novelo de linha, graças ao
qual poderia encontrar o caminho. Teseu foi bem-sucedido, matando Minotauro e
saindo do labirinto”.45
O herói parte com a filha de Minos de volta a Atenas, mas ela não chega com
Teseu ao seu destino. O desaparecimento de Ariadne é controverso se compararmos
algumas das distintas versões que nos servem de referência.
Na Biblioteca de (pseudo-) Apolodoro46 consta que, no caminho, ela teria sido
raptada por Dioniso, que a levou a Lemnos, onde tiveram quatro filhos:
44
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2006.
45
Op. cit., p.154.
46
APOLODORO. Biblioteca mitologica. Edición José Calderón Felices. Madrid: Akal, 2013. Obs.: Apolodoro
de Atenas (180a.C.-120a.C.) foi um erudito grego, historiador e gramático. A eminência de seu nome deu
origem a várias imitações ou atribuições errôneas. A Biblioteca era tradicionalmente atribuída a ele, mas
muitos estudiosos contradizem essa autoria.
47
Op. cit., p.114.
31
Vi também Fedra, Prócris e a bela Ariadne, filha do temível Minos;
Teseu levara esta de Creta um dia para o outeiro de Atenas sagrada,
mas não chegou a desfrutar o seu amor, porque Ártemis a matou antes,
em dia em meio às ondas, por denúncia de Dioniso.48
48
HOMERO. Odisseia. Trad. Jaime Bruna. Clássicos Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2010, p.180.
49
Antigo nome da Ilha de Naxos.
50
Divindade arcaica da Itália central que presidia à cultura da vinha e à fertilidade dos campos. Foi
identificada com Baco: deus equivalente, na mitologia romana, a Dioniso, da mitologia grega.
51
OVÍDIO. Metamorfoses. Ed. bilíngue. Trad., intr., notas Domingos Lucas Dias. Apres. João Angelo Oliva
Neto. São Paulo: Editora 34, 2017, p.427.
52
Uma das mais belas esculturas da Itália, a Ariadne deitada do Vaticano, representa esse episódio. (Nota
de Bulfinch.)
53
Deusa equivalente, na mitologia romana, a Afrodite, da mitologia grega.
54
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2006, pp. 154-66.
32
Vecellio, Sebastiano Ricci, Angelika Kauffmann e Eugène Delacroix perpetuaram a
ideia de um casal exitoso e muito peculiar — dado todo o simbolismo dionisíaco,
aparentemente em oposição diametral ao do casamento cristão. Nietzsche menciona
Ariadne e Dioniso muitas vezes ao longo de sua obra, direta ou indiretamente; 55 e
considera o deus grego, sob vários aspectos, uma espécie de modelo filosófico a ser
alcançado pelo indivíduo; grande parte de seus escritos poéticos são realizados
supostamente na forma dos ditirambos, que eram manifestações situadas nos primórdios
da poesia, executadas por um canto coral liderado por um corifeu, sempre em honra e
culto a Dioniso.
Muitos elementos levam a acreditar que, na viagem onírica em busca de Ariana,
a perspectiva do poeta filia-se mais aos domínios de Dioniso do que àqueles do herói
Teseu. A começar que a divindade havia sido originalmente, antes de incorporar a
extensão de significados que lhe são comuns, “o deus da vegetação”; conectado à seiva
da vida que flui nas plantas, nas flores primaveris, Dioniso representava a energia
natural que leva aos frutos a maturidade plena; por outro lado, poderia ele tomar
igualmente as formas dos “demônios da vegetação”, como a do bode, a do touro
selvagem ou mesmo as das desventuras do inverno. É o que nos ensinam as
investigações de Walter Friedrich Otto.56 Por isso, em nome da divindade, o
esquartejamento e a ingesta desses animais deveria cumprir o objetivo de se apropriar
do jogo da vida: aos homens, oferecer a vitalidade e a potência sexual; às mulheres, a
força e as graças da natureza prolífica, ao mesmo tempo em que elas dedicavam essa
mesma força à terra, à natureza capaz de conceber, de dar à luz.57
No poema, os fenômenos que introduzem o personagem na busca por Ariana
passam por quatro recortes oníricos submergidos nessa esfera semântica dionisíaca: 1) a
entrada invisível de uma Natureza morta-viva através das paredes da sala; 2) a
percepção de que o impulso sexual, inerte pelo medo, poderia trazê-la de volta à vida
plena; 3) a penetração “no ventre quente de uma campina de vegetação úmida” — e a
consequente percepção de que a Natureza estava “profundamente viva” e de que a
morte, na verdade, só residia nele próprio; 4) a impotência e a decorrente rejeição —
55
Ver o ensaio “Mistério de Ariadne segundo Nietzsche”, de Gilles Deleuze. Trad. Peter Pál Pelbart. In:
Cadernos de Nietzsche. 20, 2016.
56
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965.
57
Op. cit., pp. 130-1.
33
“traição” — por parte da Natureza, que o envelhece eras — ao menos enquanto ele não
souber encontrar a “Amada salva das águas”:
O poeta parte para a sua longa “peregrinação” e tenta falar com a própria terra,
de joelhos: “Sou eu, Ariana...”. Porém, “eis que um grande pássaro azul” vai até ele e
lhe canta: “Eu sou Ariana!”. Mais que uma procura de algo que vai além das formas
físicas, e que possui um inegável caráter divinal (“Quem és que te devo procurar em
toda a parte e estás em cada uma?”), tratamos de um olhar em busca de algo que ainda
não se conhece, e que, ademais, se entrelaça aos devaneios e delírios do sonho. De
imediato nos ocorre que, ainda nos primeiros anos de sua fase adulta, Dioniso foi
castigado pela rainha dos céus, Hera, que o enlouquece; e fez com que ele passasse a
vagar errante, desvairado e alucinado, por muitas partes do mundo. Filho de uma
relação adúltera entre Zeus e Sêmele, Dioniso havia sido transformado por Zeus em um
cabrito e ofertado às ninfas niseanas, para que ele pudesse se esconder do ciúme furioso
de Hera; mais tarde, ela o reconhece no vinhedo e o acomete com o castigo. 60 Foi
somente na Frígia que a deusa Reia curou a loucura de Dioniso e o instruiu em seus
ritos religiosos; ele então aponta sua peregrinação em direção à Ásia, ensinando os
povos a cultivar a vinha:
58
“Dioniso, o de dourados cabelos, fez da loura Ariadne, filha de Minos, sua florescente esposa. E o filho
de Crono tornou-a imortal e jovem para sempre” (HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Trad. Sueli Maria
de Regino. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2014, p.64).
59
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965, p.181. (Tradução do autor.)
60
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2006, pp. 161-2; e BOTELHO, J. F.; HORTA, M.; NOGUEIRA, S. Mitologia: deuses, heróis,
lendas. São Paulo: Ed. Abril, 2012, pp. 96-7.
34
Dioniso fue el que descubrió la vid y, enloquecido por Hera, se
marchó errante por Egipto y Siria. Primero lo acogió Proteo, rey de
los egipcios; después llegó ante Cibeles, de Frigia, y allí, purificado
por Rea, aprendió los misterios, tomó de aquella un vestido y se fue
deprisa contra los indios a través de Tracia.61
O poeta cruza a campina, galga um monte, passa por muitos lugarejos acessos na
noite. E três aspectos distintos presentes na composição vão se entrecortando, se
mesclando, de maneira a ser cada vez mais difícil separá-los: a narrativa poética (“eu
caminhava cheio do castigo e em busca do martírio de Ariana”), a imagem comparativa
(“era como se eu fosse a alimária de um anjo que me chicoteava”) e o grotesco narrado
(“os milharais descendo os braços trituravam as formigas no solo”). O enredamento
desses aspectos — se é dada a licença para assim distingui-los — é de uma profusão
criadora que acaba oferecendo ao leitor a mesma sensação de estranheza, de
vulnerabilidade, do iminente imprevisível daquelas experiências oníricas como a
representada no poema. A respeito desse tipo de composição, Octavio de Faria, ao
comparar os poemas de O caminho para a distância com os de Forma e exegese,
observou que a poesia anterior se limitava a registrar “os sentimentos que o poeta
conseguia isolar e dar nome”; e que, no entanto, nos poemas mais recentes, os
sentimentos eram traduzidos em “novos termos poéticos”, “tão diferentes, tão pouco
comuns” que a impressão era a de que “o poeta está sendo vítima, senão de alucinações,
pelo menos de uma série de visões — estranhas visões que nos levam com ele a um
mundo desconhecido, absolutamente inesperado”.62
Questionados sobre onde Ariana poderia ser encontrada, os pescadores
mostravam o peixe; os ferreiros, o fogo; as mulheres, o sexo. Aqui o simbolismo pode
caminhar para muitas direções, que vão, desde a possibilidade de um profundo
entendimento dos significados por parte daqueles habitantes do caminho, até a completa
ignorância dos termos — de modo a reduzir a linguagem à tentativa de um gesto
satisfatório. Seriam, pois, o peixe, o fogo, o sexo, metonímias do sentido fundamental
da vida para cada um daqueles indivíduos? As repetidas respostas gestuais a uma
pergunta proferida em voz alta e timbre atormentado intensificam a atmosfera quimérica
61
APOLODORO. Biblioteca mitologica. Edición José Calderón Felices. Madrid: Akal, 2013, p.79.
62
FARIA, Octavio de. Dois poetas: Augusto Frederico Schmidt e Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Ariel,
1935, p.278.
35
da incursão. Porém, respondem bem menos que um só ruído do culto dionisíaco, agora
na savana:
63
Bastões enfeitados com hera e pâmpanos, por vezes dotados de guizos, e rematados em forma de
pinha.
64
HOYO, Javier del. Notas 558-9. In: HIGINO. Fábulas. Trad. Javier del Hoyo, José Miguel García Ruiz.
Madrid: Editorial Gredos, 2009, p.222.
65
FOUCART, Paul. Le culte de Dionysos en Attique. Paris: Imprimerie Nationale, 1904, 23-4.
66
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965, pp. 186-7.
36
deuses seriam responsáveis por leis e costumes, bem como legitimavam as instituições e
os aspectos da vida social e política —, as festas dionisíacas atuavam como um tipo
diferente, oposto. Àqueles que estavam à margem da organização institucional da polis,
como as mulheres e os escravos, o culto a Dioniso ofereceria uma libertação radical
dessa ordem:
67
BOTELHO, J. F.; HORTA, M.; NOGUEIRA, S. Mitologia: deuses, heróis, lendas. São Paulo: Ed. Abril, 2012,
p.95.
68
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 155-62.
69
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965, pp. 185.
37
Os porcos endemoninhados se devoraram, os cisnes
[tombavam cantando nos lagos
E os corvos e abutres caíam feridos por legiões de
[águias precipitadas
E misteriosamente o joio se separava do trigo nos
[campos desertos
E os milharais descendo os braços trituravam as
[formigas no solo
E envenenadas pela terra decomposta as figueiras se
[tornavam profundamente secas.
70
CROWLEY, Aleister. O livro de Thoth. São Paulo: Editora Madras, Anubis Editores, 2000, p.104.
71
BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. Org. e trad. Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2008, pp.
39-41.
38
Cerca de quatro décadas adiante ao lançamento de Ariana, a mulher, Hilda Hilst
apresenta um poema, dividido em uma série de dez partes, cujos eu-lírico e interlocutor
estão em posições trocadas caso façamos o paralelo com os versos de Vinicius: “Ode
descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”, em Júbilo, memória,
noviciado da paixão.72 Tal se introduz do seguinte modo: “É bom que seja assim,
Dionísio, que não venhas./ Voz e vento apenas/ Das coisas do lá fora// E sozinha supor/
Que se estivesses dentro// Essa voz importante e esse vento/ Das ramagens de fora// Eu
jamais ouviria”.73 Por sua vez, a voz no poema de Vinicius de Moraes é cercada de
elementos dionisíacos, embora jamais tenhamos o nome da divindade em letras
explícitas — mesmo porque tratamos da experiência onírica de um poeta em sua “sala
deserta”, o eu-lírico fundamental, quando logo o silêncio faz pulsar uma “ordem de
horror” que dispara a delirante sequência de imagens e símbolos. A figura plenamente
designada, no entanto, é a de Ariana — que, contudo, não se torna suscetível às
delimitações como persona ao longo do texto. Segundo Otto, seu nome vem de uma
variante dialetal de Ariagne, utilizada em ornamentos dos vasos áticos e que se aplica
muitas vezes junto ao predicado ἁγνη, em geral traduzido como “a santíssima”. Mas a
palavra santa pode levar ao erro o leitor imerso na cultura cristã; tampouco é
satisfatório traduzi-la como pura, uma vez que o nosso conceito de pureza dificilmente
pode ser desligado das conotações morais. As palavras intangível e intacta aproximam-
nos mais de seu real significado, mas com elas devemos pensar na intangibilidade de
uma natureza aleijada do homem, tanto de seu aspecto bom como nocivo. O predicado
está próximo do divino e, por isso, o conceito de intacta associa-se também ao que é
digno de veneração.74 A despeito dos significados que lhe acercam, foi a designação, foi
o nome de Ariana que ressoou em alguma medida, ao fim, nos sonhos do poeta — única
substância tangível. E apenas o ressoar de seu nome fez com que a natureza
reestabelecesse a aparência mais propícia às perspectivas e ao contento do poeta; o
mesmo nome que o trouxe de volta à ordem reconhecível, perto dos velhos objetos
amigos.
72
São Paulo: Massao Ohno, 1974.
73
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.256.
74
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965, pp. 182-3.
39
IV. ZABUMBAS NAS CAVEIRAS (M. BAKHTIN)
40
nascimento, e onde tudo cresce profusamente”.75 Bakhtin considera que o expediente
degradante na paródia típica de seus contemporâneos é exclusivamente negativo e
carece dessa ambivalência regeneradora; o riso carnavalesco, por outro lado, seria ao
mesmo tempo burlador e alegre, sarcástico e cheio de alvoroço; é aquele que nega e
afirma, amortalha e ressuscita, simultaneamente; sobretudo, um patrimônio do povo,
universal, capaz de rir de todos e, inclusive, de si mesmo (um riso geral), já que o
mundo inteiro se tornaria cômico, depreendido em seu aspecto jocoso.
Às imagens referentes ao orbe semântico material e corporal, presentes na obra
de Rabelais — herança da cultura cômica popular e de uma concepção estética da vida
prática —, as quais seriam indissociáveis de sua força regeneradora, o teórico dá o
nome de realismo grotesco. Aparentemente um oximoro, a expressão é justificada de
modo complexo por Bakhtin. Em resumo, o termo “realismo” indicaria representações
conotativas dessa constante transformação, desse caráter inacabado, móvel e mutável de
tudo quanto existe, o significante das constantes divisões, interseções e proliferações, do
nascimento e da morte; seria este o arcabouço de todos os grandes escritores que ele
caracteriza como realistas (Stendhal, Balzac, Hugo, Dickens), que teriam sido
influenciados pelas imagens grotescas — diretamente ligadas à cultura carnavalesca —
dos grandes escritores do Renascimento (Rabelais, Cervantes, Sterne); a ausência de
elementos transformadores e regeneradores no realismo teria corrompido o estilo para o
que nomeia pejorativamente de “empirismo naturalista”.76 E, uma vez que o termo
“grotesco” é a designação tardia para um fenômeno estético bem mais antigo do que a
descoberta daqueles motivos ornamentais no século XV, Bakhtin distingue-o desde a
sua presença na mitologia e na arte arcaica de todos os povos, iluminando as superfícies
mais cômicas, e oferta seu intervalo histórico crucial entre manifestações populares da
Idade Média e a literatura do Renascimento:
75
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.19.
76
Op. cit., p.45.
41
versáteis. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base
do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de
significação incondicional e intemporal e liberam a consciência, o
pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para
o desenvolvimento de novas possibilidades.77
77
Op. cit., p.43.
78
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 54-5. Obs.:
A grafia de “cangebrina” (aguardente de cana; cachaça), com g, foi retificada (Anexo I, pp. 155-6).
42
Antes de verificarmos o caráter específico do riso ou do espanto em face do
poema, é preciso dispensar ao menos algumas linhas sobre a figura de Jayme Ovalle e
da curiosa atmosfera evocada pelo seu nome. Além de músico, poeta e amigo querido
de artistas e intelectuais da cena cultural e boêmia da primeira metade do século XX,
tornou-se um personagem de atributos míticos devido a sua personalidade muito
peculiar que, a todo instante, parecia estar sempre submersa em poesia. Ovalle é citado
em poemas e vários escritos de Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, e se torna
inclusive personagem do romance O encontro marcado (1956), de Fernando Sabino. O
crítico Davi Arrigucci Jr. reconhece nele “um elemento de cunho literário” e se lhe
refere como uma “entidade paraficcional”; observa que, conquanto pertença ao mundo
verdadeiro, transmuda-se numa figura recorrente do universo imaginário, “tomando
forma nos textos, onde passa a valer sobretudo pela força simbólica com que atinge o
leitor”.79 Ovalle é autor do que chamava de Nova Gnomonia, um conjunto de arquétipos
que categorizavam os indivíduos em “dantas”, “parás”, “mozarlescos”, “kernianos” e
“onésimos”, o que servia como código bem-humorado entre ele, seus amigos e demais
que o cercavam.80
No poema em questão, essa “força simbólica”, vigorosa, permeada de poesia,
imaginação, amizade etc., contrasta com a figura da Morte em sua conformação
antropomórfica. Em casos distintos, ela ressalta entre os temas mais “nobres”, formais,
elevados, transcendentes e, em maior ou menor medida, sérios e temíveis, tanto em
grande parte das interações cotidianas como da produção filosófica e artística. No
entanto, a Morte é rebaixada e se torna um espantalho cômico — precisamente nos
termos bakhtinianos — ao se interessar pelo alegre relativismo, pela sem-cerimônia e
ausência do senso de hierarquias ou superioridade de Jayme Ovalle. Ela mostrava “a
sério” — a seriedade unilateral — e com “cicerônica prestança” — a dicção elevada —
os cemitérios. Mas ele, então, apontava as crianças. Faz-se aqui uma comunhão entre
alguns dos principais elementos que integrariam o real movimento do mundo; o alto e o
baixo, a morte e o nascimento. A ideia dominante, que neste contexto é o significado da
morte, da perda, precisa ser regenerada. Na direção do que afirma Bakhtin, o
“verdadeiro grotesco” se esforçaria em representar em suas imagens o devir, “o
79
ARRIGUCCI JR, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. 2ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, pp. 50-2.
80
Ver a entrevista de Jayme Ovalle dada ao próprio Vinicius, bem como alguns perfis traçados sobre o
paraense por Humberto Werneck e também por Vinicius de Moraes em “O impossível aconteceu a Ovalle”
(Revista Azougue, nº 8. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003, pp. 56-69).
43
crescimento, o inacabamento perpétuo da existência”, “ao mesmo tempo o que parte e o
que está chegando, o que morre e o que nasce”.81 E o riso se espraia uma vez que Ovalle
quer tomar sua aguardente, depois dos passeios em que a Morte o levou “à forca e à
guilhotina”; pouco adiante o poema conta que estão “ambos de porre”. Além de uma
dessacralização ostensiva, executada por intermédio do cômico e do absurdo — de uma
carnavalização da consciência —, a imagem da alegre bebedeira entre os dois explicita
fundamentos importantes da tese do realismo grotesco. “O comer e o beber são uma das
manifestações mais importantes da vida do corpo grotesco”, expõe o teórico russo. “As
características especiais desse corpo são que ele é aberto, inacabado, em interação com
o mundo”. E observa em cada uma das imagens do beber e do comer apresentadas por
Rabelais, a poderosa “tendência à abundância e à universalidade”, “o seu hiperbolismo
positivo, o seu tom triunfal e alegre”; bem como o modo como se ligam à interação, “à
palavra, à conversação sábia, à verdade alegre”. Segundo Bakhtin, desde os seus
primórdios, o homem “triunfava do mundo”, pois, em vez de ser engolido por ele,
engolia-o: “a fronteira entre o homem e o mundo apagava-se num sentido em que lhe
era favorável”.82 Não é difícil perceber como sua teoria, aos poucos, associa o
hibridismo ao coletivismo, e a imagética das grutas, inerentes ao primeiro significado
do grotesco e próprio das artes ornamentais, à imagética da terra e do corpo. Isso é
possível a partir do resgate de uma “visão carnavalesca do mundo”, emergida na
Antiguidade e cultivada generosamente em manifestações populares da Idade Média e
do Renascimento. Essa visão induziria ao riso coletivo, de tudo e de si mesmo, e faz
zabumbas nas caveiras. Ao final do poema, o guardião do campo santo diz que, já
“noite alta”, “ainda se ouvia/ A voz da Morte, um tanto ou quanto/ Que ria, ria, ria,
ria...”.
A morte é um tema central na poesia de Vinicius de Moraes; suas incidências
são abundantes e parelhas com as do tema amoroso; e, frequentemente, os campos
semânticos dos temas se avizinham, se completam, esteja o motivo com um ou com
outro. Sua conformação antropomórfica é memorável em poemas como “A última
viagem de Jayme Ovalle”, “O haver”, “Romance da Amada e da Morte” 83 e “Tanguinho
macabro”. Este último contém um componente que intensifica a natureza, digamos,
bakhtiniana de sua substância grotesca. O poema estava entre aqueles que fariam parte
81
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.46.
82
Op. cit., p. 243-5.
83
(Anexo I, pp. 159-63)
44
do livro Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro,
onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes, que jamais
foi concretizado pelo poeta; e uma das intenções do projeto era a de que marcas da
cultura popular, por vezes folclóricas, fossem deixadas ao longo de todo o livro,
especialmente das manifestações oriundas do Rio de Janeiro e cercanias. O sujeito lírico
no poema confunde a figura da Morte com sua mulher, Maricota — o ambiente é
chuvoso, ela está de capuz e pede para que a luz não seja acesa. “Maricota” é uma
figuração de domínio circense; loura, alta e decorosa, distribui tapas aos atrevidos; foi
incorporada e consagrada pelo folguedo sulista Boi-de-mamão;84 na cultura popular
carioca, o nome assimilou um significado que compreende mulheres bonitas, bem-
arrumadas e educadas; e encarna geralmente a personagem da esposa em autos e danças
populares.85 Aqui, a semântica folclórica é ainda mais realçada quando na forma dos
estribilhos e da redondilha maior:
84
RIBEIRO, José. Brasil no folclore. Rio de Janeiro: Aurora, 1970, pp. 337-51.
85
Nos anos de 1970, no Rio de Janeiro, a variante “cocota” foi muito comum, e designava mulheres
elegantes de classe média ou alta; já na virada do século, o termo foi associado a mulheres desinibidas ou
de trajes curtos, talvez pela influência do termo francês “cocotte”, de seu significado informal, invertendo
em grande medida a acepção folclórica.
45
— Maricota, a tua boca
Não tem lábios de beijar!
— Maricota, a tua boca
Não tem lábios de beijar!
— Não é boca, meu tesouro
É um sorriso alveolar
São quatro pivôs de ouro
Presos no maxilar.
(...)
E a morte levou o moço
Para o fatal matrimônio
Deu-lhe seu púbis de osso
Sua tíbia e seu perônio
Diz que o corpo descomposto
De manhã foi encontrado
Mas que sorria o seu rosto
Um sorriso enigmático.86
86
MORAES, Vinicius de. Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde
nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes. Org. e apres. Daniel Gil; Ilustr.
Juliana Russo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 60-3.
87
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.277.
88
Op. cit., p.24.
46
cotidiano e do caráter cíclico da natureza. O raciocínio remete imediatamente a um
conhecido poema de Vinicius, lançado em 1938: “Soneto de intimidade” — marco de
um retorno e atualização do soneto na poesia brasileira. Amalgamando a forma
tradicional dodecassílaba e o plano semântico do comum, do corriqueiro, o poeta
expressa um movimento remansoso de conciliação com o mundo natural. E, ao
desfrutar os caminhos na tarde da fazenda, é tomado por um ânimo que acaba por
reorientá-lo em meio a tudo quanto o rodeava:
89
MORAES, Vinicius de. Soneto de intimidade. Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p.15.
47
(Ninguém podia/ Fazer pipi/ Porque penico/ Não tinha ali); e, em seu considerável
espólio de poemas esparsos, “Balada das lavadeiras” (Lava as fezes e a urina/ E o
vômito da bebida/ O sarampo e a escarlatina/ E o rubro plasma da vida); “Estâncias a
minha filha” (Me deixas cheirando a mijo/ Não raro a pior também); “O pranteado”
(Esfreguem extrato/ Por todo o seu corpo/ Porque ele urinou-se/ No último esforço);
“Meu Deus, eu andei com Manuel Bandeira” (E abri na choradeira enquanto depositava
a urina guardada de há muito na latrina branca de minha família feliz).
Numa leitura bastante original, Eucanaã Ferraz considera que “Soneto de
intimidade” é um dos melhores exemplos da transição entre a poesia mais abstrata e
simbolista de Vinicius de Moraes para aquela mais conectada com a realidade material;
seus versos teriam sido retirados do desejo de “abandonar irrestritamente os traços
divinizantes e metafísicos da poesia anterior em favor de um imaginário mais terreno”;
os quais ainda estariam, porém, presentes no soneto, uma vez que o alheamento radical
e a bestialização do humano, em alguma medida, resultariam em “uma atmosfera
idealizada de pureza e isolamento”.90 Eucanaã serve-se de uma datação do poema,
“Campo Belo, 1937” (incluída em 1967, na edição aumentada do Livro de sonetos),
para interpretar o verso “No pijama irreal de há três anos atrás”: o que nos levaria ao
ano intermediário entre os dois primeiros livros do poeta, ou seja, seu momento mais
metafísico. Nessa direção, podemos observar os elementos típicos do realismo grotesco
no “Soneto de intimidade” — a mastigação do capim, o beber e o comer, a deglutição, o
cuspir, a imagem sanguínea, e, finalmente, o estrume e o seu “cheiro”, as “mijadas” (na
variante mais chã), a unidade entre o homem e os animais, que estão “em comum”
representados na mistura dos seus excrementos — e, definidos como instrumentos de
uma ação regeneradora, conectá-los com o movimento de transformação da própria
poética viniciana, em relação metonímica com o poema. Havendo ali, então, uma
substância idealizadora e individualizante, ela é notada porquanto presente em um
processo de rebaixamento e regeneração. De acordo com a teoria bakhtiniana, “a atitude
em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante) indispensável
da imagem grotesca”.91
A tomada de consciência acerca do tempo na perspectiva grotesca teria se
sofisticado desde uma simples justaposição das duas fases do desenvolvimento,
90
FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. Col. Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2006, pp. 32-8.
91
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.21-2.
48
“começo e fim: inverno-primavera, morte-nascimento”, até um “poderoso sentimento da
história e da alternância histórica, que surge com excepcional vigor no Renascimento”.
Mas Rabelais teria conjugado essa percepção histórica conservando seu conteúdo e
matéria tradicional: “o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a
desagregação e o despedaçamento corporal, etc.”. Como exemplo de obras que
simbolizam essa concepção grotesca do corpo, Bakhtin nos fala das estatuetas de
terracota de Kertch que caracterizam velhas grávidas. A velhice e a gravidez estariam
ali grotescamente sublinhadas, e, ademais, “essas velhas grávidas riem”. Nesse sentido,
a imagem grotesca do corpo, além de conservar a tendência fundamental dos dois
corpos em um, teria muitas vezes idades fronteiriças ao nascimento ou à morte: “a
primeira infância e a velhice, com ênfase posta na sua proximidade do ventre ou do
túmulo, o seio que lhe deu a vida ou que o sepultou”.92 Dentro dessa atmosfera,
verificamos um poema tão estranho quanto interessante publicado a primeira vez por
Vinicius em sua Antologia poética (1954): “Desert Hot Springs”. O título se reporta a
uma pequena cidade do estado americano da Califórnia, que se destaca por numerosas
fontes naturais, de águas quentes e frias. Até o início do século XX, o lugar desértico
era ocupado somente por um grupo indígena que por lá acampava durante o inverno;
tornou-se um ponto turístico a partir dos anos de 1950 devido aos spas e hotéis-
butiques; vários imóveis foram construídos e adquiridos por aposentados, e a área foi
incorporada como cidade em 1963. De Desert Hot Springs, o poeta detalha com sinistra
poesia a velhice e as suas marcas mais profundas; isso em contraste com a juventude,
especialmente a de um cuidador, na piscina pública, que “Arrasta pelo ladrilho
deformidades insolúveis”. Os que têm a idade mais avançada não deixam de libertar
alguma alegria, mas notemos como Vinicius prefere a palavra “rictos” à palavra “risos”,
evocando um movimento de mais instabilidade se comparado àquele preestabelecido
como ação ou efeito de rir.
92
Op. cit., p.22-3.
49
Enquanto a infância incendida atira-se contra o azul
Estilhaçando gotas luminosas e libertando rictos
De faces mumificadas em sofrimentos e lembranças.93
93
MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1954, pp. 264-5 (Anexo I, pp. 147-8).
50
carnaval era a segunda vida do povo; baseada no princípio do riso, era a sua vida
festiva. A inversão e o rebaixamento existentes nessas ocasiões específicas, reservadas
na vida do povo, dariam margem à ridicularização das instituições austeras e dos
poderosos; o elevado tornava-se comum e o riso substituía o medo. Ou seja, o grotesco
identificado nos festivais de rua da Idade Média e do Renascimento seria marcadamente
alegre, uma forma de dessacralizar os aspectos graves e opressivos por meio do riso
espontâneo.
Em sua exuberante História do riso e do escárnio (2002), o historiador francês
Georges Minois afirma que as conclusões de Bakhtin se deparam com críticas
numerosas desde a sua elaboração, em especial com as do russo Aaron Gourevitch.94
Minois conta como o medievalista contestou a teoria fundamental por trás da tese sobre
Rabelais: ela teria desconsiderado os elos entre o riso, o medo e a raiva; e estendido à
cultura popular deduções extraídas somente de estudos sobre o Carnaval. Bakhtin teria
projetado para a Idade Média a realidade soviética dos anos de 1960, com uma
sociedade de dois níveis: “o oficial, ideológico, e o da vida real, sob a cobertura fictícia
mantida pelo partido”; Gourevitch, enfim, pede para que desconfiemos das
interpretações da cultura popular dada por intelectuais.95 Ainda segundo o levantamento
de Georges Minois, críticas variadas visam à concepção do grotesco que o reporta
exclusivamente às potências prolíficas do riso. De fato, o grotesco teria mesmo outra
face, resultante de uma desestruturação do mundo conhecido, o qual se dissolve,
fragiliza-se e se faz estranho, estrangeiro — como já afirmara Wolfgang Kayser. O
próprio historiador francês nos assegura que, inclusive, “o bestiário monstruoso da
escultura medieval oscila no diabólico angustiante”, a testemunhar “mais de uma visão
cômica, mais de uma visão trágica e, para dizer tudo, satânica, cujo ápice não será
Rabelais, mas Jerônimo Bosch”. A aproximação dos nomes do escritor e do pintor
demonstraria uma visão maniqueísta de Bakhtin. Ele encerra o raciocínio citando uma
assertiva do estudo de Christian W. Thompsen: “o grotesco provém de um
distanciamento em relação ao mundo, que tanto pode ser fonte de riso quanto de
temor”.96
94
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo:
Editora UNESP, 2003, pp. 156-60.
95
GOUREVITCH, Aaron. Bakhtin and his theory of Carnival. A cultural history of humour. Oxford: ed.
J.Bremmer e H. Roodenburg, 1997, pp. 54-60. In: MINOIS, Georges. Op. cit., pp. 160.
96
THOMPSEN, Christian W. Das groteskeim englischen roman des 18. Jahrhunderts. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974. In: MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria
Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, pp. 160.
51
O conceito de grotesco desenvolvido em A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais é robusto, fascinante e indispensável
para o manuseio do termo; é capaz de preencher praticamente todas as lacunas que
ainda restavam em seu significado após um debate que já atravessa alguns séculos, entre
intelectuais e artistas da maior grandeza. No entanto, o teórico russo optou por excluir
uma parcela basilar de seu conteúdo, talvez em nome da expressividade que um caráter
radicalmente unilateral pudesse oferecer à disseminação de suas perspectivas. Bakhtin,
ao combater a obra de Kayser, chega a colocar em suposta “contradição insuperável” a
liberdade da fantasia característica do grotesco e a imagem do mundo dominado por um
id fantasmal — como se não houvesse no centro da própria teoria kayseriana um
movimento do fenômeno grotesco pelos seus três domínios: o processo criativo, a obra
e a sua recepção (sendo que o grotesco “só é experimentado na recepção”,97 de acordo
com o estudioso de Berlim). Do mesmo modo, ele interpreta o enunciado “no grotesco
não se trata de medo da morte, porém de angústia de viver”, belíssimo, como se, de
acordo com o grotesco kayseriano, a morte fosse uma “negação da vida”, 98 isto é,
elementos imiscíveis do ponto de vista imagético — quando a própria locução “angústia
de viver” expressa evidentemente o contrário: sentimentos paradoxais de vida e morte,
que se integram e se confundem. Por último, conquanto haja uma distância monumental
entre o homem de hoje e aquele do Renascimento, é inverossímil que o mesmo ser
humano capaz de se amedrontar com as sombras arbóreas projetadas em sua janela
esteja sempre pleno de leveza em frente a deformações ou degradações, ou ainda diante
de determinadas figuras híbridas e monstruosas. Podemos sentenciar, contudo, não
obstante a incisiva oposição entre duas teorias gerais do grotesco e o antagonismo de
suas respostas, que tais obras compõem na prática uma inteireza histórica e conceitual, o
que as impele a uma imprescindível associação quando o que importa é a compreensão
ampla e irrestrita do termo.
97
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p.156.
98
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.43.
52
V. O BANQUETE DO OMNÍVORO
53
batismal, e batizado, como é costume dos bons cristãos. E mandaram
vir dezessete mil novecentas e treze vacas de Paultille e de Brehemon,
para aleitá-lo ordinariamente, pois achar-lhe ama de leite suficiente
não era possível em todo o país, considerando a grande quantidade de
leite necessária para alimentá-lo.100
100
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim Júnior. Capa de Cláudio Martins. Col.
Grandes Obras da Cultura Universal, vol. 14. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003, p.48.
101
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 250-3.
102
Op. cit., p.249. Grifo de Bakhtin.
54
Por isso amo o caju, em que resumo
Esse materialismo elementar
Fruto de cica, fruto de manchar
Sempre mordaz, constantemente a prumo.
Restringir o amor àquilo que tem “sumo” e “matéria onde pegar” poderia de fato
ser um materialismo primário, bruto, “elementar”. Mas a adjetivação é ironicamente
realizada em um âmbito cujas substâncias mais díspares se equiparam e se comunicam.
Aqui se tornam matérias palpáveis aquelas que engendram a noite e a música; também
o mar — constituído não apenas do seu tecido fluido e desmesurado, mas também,
simbolicamente, da matéria cósmica que, semelhante à terra, se associa à vida, à
fertilidade e às profundezas. Não há nesse conjunto uma classificação que separe os
elementos quanto à consistência física ou à magnitude: tudo é matéria tátil, matéria de
“pegar”, desde que sejam agentes de comoção ou transição na realidade compreendida
pelo poeta — sobretudo, suponhamos, a mulher. Nessa perspectiva, o caju seria o
alimento síntese, o “resumo” desse constante movimento de contato e de relação entre
as matérias. Antes de tudo, é um fruto “de cica”, “de manchar”, isto é, ele interage,
marca, altera as sensações e a constituição do ambiente que o circunda; seria um objeto
especialmente aberto para com o mundo. A lógica, é claro, depende de um humor
alegre e certo espírito glutão típicos das “conversações à mesa”. Entretanto, a
indubitável atmosfera de simpósio dá-se por meio de uma interação heterogênea, mas
harmoniosa, entre o poeta e tudo aquilo que atravessa o seu “materialismo”. O caju é a
metonímia dessa dinâmica: ele está sempre disposto, “mordaz, constantemente a
prumo”; está à beira-mar (novamente, o mar); e está “agarrado ao cajueiro”, “a copular
103
Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2017, p.547.
55
com o galho”. Sua caracterização notabiliza um espraiar-se para fora de seus limites;
seu comportamento é contrário a um recolhimento ensimesmado.
Se conjugadas ao individualismo, “imagens do grande ventre, da boca
escancarada, do falo enorme e a imagem popular positiva do ‘homem saciado’,
aparentadas à imagem do banquete”, ganhariam contradições internas com sua
específica tendência à abundância, observa Bakhtin.104 Mas o contexto retratado por
Vinicius é de uma celebração entre as matérias; e, quanto mais perto chegamos, mais se
nos desnudam as interações e os seus contornos obscenos. Aos poucos, o cenário se
revela; o “sumo”, a “cica” e os termos que remetem ao vigor e à turgidez ganham
dimensão semântica. É então que se tornam precisas as considerações de Georges
Bataille sobre a obscenidade e sua definição a partir de uma quebra do senso de
individualidade que antes parecia estável e seguro: no poema, são expostos justamente
os exercícios da abertura, do pegar (à prova da “consistência”), do experimentar, da
absorção em amplo sentido e, em última instância, da “fusão”.
Por sua vez, o caju seria um tanto mais que um objeto que se inter-relaciona com
o mundo do poeta: o alimento possui um papel ativo em todo o processo, explicitado
pela própria aparência — ele é um falo “brutal”, sempre ereto. Essa simbologia chega
ao ápice no último terceto. De início, o poeta simula jocosamente o tom de uma
observação importantíssima ao distinguir gêneros: “O único fruto — não fruta”. Esse
104
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 254-5.
105
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.41.
56
tom é fabricado com a ajuda de uma síncope na proparoxítona, que dá brevidade às duas
primeiras sílabas e mais força à terceira (o ún| co| fruto), já na palavra a ser destacada.106
Logo, temos em relevo ambos os gêneros, “fruto” e “fruta”, devido à cesura do verso
heroico (o ún| co| fru| to| não| fruta). Esse ritmo será reiterado até o desfecho do poema,
como anapestos que ecoam a distinção entre dois termos. No segundo verso, a
“consistência” remete imediatamente ao “pegar”, isto é, a ação capital do materialismo
viniciano; e, por influxo do ato, ao “sumo”. O fruto possui “consistência de caralho”: o
léxico se rebaixa em relação àquele anteriormente escolhido para o poema; não mais se
ajusta aos moldes do “copular com o galho” ou da castanha “como que tesa”. Nesse
momento, o soneto ganha com o imprevisto e o risível, e acaba demonstrando na prática
a ideia de que as figuras análogas à do banquete, das conversações à mesa, inclinam-se
de modo natural a uma libertação do vocabulário e de uma verdade alegre, dispensada
de observar as distâncias hierárquicas entre coisas e valores. Segundo as investigações
de Bakhtin, tal inclinação pode ser verificada desde as homilias de Zenão até a Coena
Cypriani, bem como se mostra em sátiras e paródias dos séculos XV e XVI: “A
intrusão, na língua dos clérigos e dos escolares, de uma quantidade inaudita de
transformações verbais coloquiais de textos sagrados relacionados com o beber e o
comer, testemunha a grande faculdade que tinham esses últimos de liberar a palavra”. 107
É o que se confirma também no verso final do poema quando o conceito popular de “ter
colhões”, ligado a uma virilidade destemida, se manifesta no desenho muito peculiar,
nas próprias formas específicas do caju. Toda essa nova morfologia botânica,
obviamente, só encontra algum fundamento na comicidade e na liberdade poética e
criativa de Vinicius de Moraes.108
A datação de “Soneto ao caju” indica o mesmo ano de “Não comerei da alface a
verde pétala...”: 1947. Contudo, o primeiro não chegou a ser publicado, e ganhou livro
apenas em edições póstumas; o segundo veio a público em Para viver um grande amor,
de 1962. É possível que a similitude temática, específica, tenha influído na decisão de se
106
No segundo volume da obra A literatura no Brasil, org. Afrânio Coutinho, o poeta e ensaísta Cassiano
Ricardo menciona síncopes desse tipo na poesia de Gonçalves Dias, afirmando que tal praxe “é hoje usual
nos proparoxítonos em meio do decassílabo” (2ª ed. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1969, p.97). Ver
também o artigo “A síncope das vogais postônicas não-finais: variação na fala popular urbana do Rio de
Janeiro”, de Danielle Kely Gomes, na revista científica Diadorim, Vol. 8, 2011.
107
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 258-9.
108
A rigor, o fruto mesmo é apenas o caroço escuro dentro do qual se faz a castanha; a parte amarelada
que mais salienta o caju, e que guarda o seu sumo, é um pedúnculo floral, um pseudofruto. De certa
forma, uma designação mais técnica poderia evocar uma simbologia diametralmente oposta à elaborada
pelo poeta.
57
optar exclusivamente por um deles, o qual se pôs conjuntamente à “Feijoada à minha
moda” — os dois poemas de caráter... alimentar do volume. “Não comerei da alface a
verde pétala...” é um espirituoso soneto dedicado também à glutonaria, e que, por sua
vez, expressa uma recusa àqueles vegetais geralmente presentes em dietas consideradas
leves e saudáveis. O poema acompanha desde a sua primeira edição a seguinte nota de
rodapé: “Iludia-se o poeta. Num tempo em que as coisas andaram meio pretas, ele teve
que se enquadrar direitinho e andou comendo legumes na água e sal como qualquer
outro”. É uma composição formalmente mais sofisticada que o “Soneto ao caju”; muito
de seu humor vem da combinação de uma determinada estética, uma dicção nobre,
elevada e muito tradicional com uma significação bufona que, de outra forma, seria
comum aos modos de um glutão deselegante:
109
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p.92.
58
leitor contemporâneo, é delineado com a ajuda de hipérbatos, adjetivações, detalhes
lexicais, escolha das imagens etc. E por isso a forma fixa não funciona como único ou
principal meio desse contraste; antes, ela se adequa naturalmente ao que é dito,
conquanto os significados, em última instância, não lhe sejam os mais familiares.
Aquilo que no “Soneto de intimidade” soaria à crítica desatenta como um engano de
forma radicaliza-se, aqui, de modo a atingir praticamente a totalidade dos mecanismos
de expressão. O objetivo de tudo é uma só ironia, mas uma ironia formal: dizer com
decoro e refinamento o que é, por essência do assunto, crasso, deselegante. Em alguma
medida, o soneto joga com o lugar-comum popular que reclama da contradição em um
poeta dizendo tais coisas. Vejamos, a exemplo, como Vinicius constrói uma atmosfera
elevada por meio de um léxico afim à religiosidade — mesmo que, ao final, os
significados sejam típicos de uma ordinária conversação à mesa. Seu elemento mais
visível está, sem disfarce, no terceiro verso, quando “as hóstias desbotadas” servem de
representação para as rodelas da cenoura. Notemos, entretanto, como a negativa que
inicia o soneto, “Não comerei”, alude às formas imperativas negativas dos
mandamentos bíblicos; nessa direção, lembremo-nos também que o pasto (as
“pastagens”) possui um sentido figurado de sustento espiritual, bem como de um estado
de alegria, de regozijo; e que a forma flexionada do verbo aprazer, “aprouver”, ainda
sobrevive, quase somente, na linguagem bacharelesca ou nas traduções do texto bíblico,
como este em Deuteronômio (14:22-9):
... e irás ao lugar que o Senhor teu Deus tiver escolhido; e comprarás
com esse mesmo dinheiro tudo o que te aprouver, ou seja de bois ou
seja de ovelhas, e vinho e licores fermentados, e tudo o que a tua alma
deseja; e comerás diante do Senhor teu Deus, banqueteando-te tu e tua
família;... 110
110
Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966, p.215.
59
muitos nexos ruins podem ser cogitados com a imagem das manadas (tolice, gente
influenciável etc.), as quais, por seu turno, foram postas entre aqueles que fazem dieta.
A atmosfera elevada se transforma uma vez que aceita se comunicar com os elementos
que vieram de um plano mais baixo, como acontece inclusive, por vezes, nas próprias
escrituras. É preciso registrar, a propósito, que a poesia de Vinicius jamais deixou, ao
menos esteticamente, o imaginário cristão — estivesse ela em qualquer fase. Ao se
distanciar da fé católica, o poeta acaba por reformá-lo: esse imaginário muito se desfoca
do papel moral e passa a se ater no arcabouço estético, incorporando a instalação de
cenários os mais variados. Tal movimento, porém, coincide com o distanciar-se de um
verso longo, de natureza bíblica, o que inclina o elemento religioso mais à esfera
semântica. Textos memoráveis como o “Poema de Natal”, “O dia da criação”, “O filho
do homem”, “O operário em construção”, “São Francisco”, “O haver” e “Sob o trópico
do câncer” são apenas alguns exemplos de presença renovada desse imaginário. Em
“Não comerei da alface a verde pétala...”, essas imagens dialogam com a tradição
literária, satírica e paródica, salientada nos estudos de Bakhtin, que envolve os
banquetes e as escrituras sagradas.
Não era improvável que o caju constasse também nesse contexto. O fruto de cica
aparece eventualmente em alguns poemas da obra, além dos dois já citados, e se
encontra inclusive com total favoritismo em “Autorretrato”: “Minhas frutas prediletas/
Por ordem de preferência:/ Caju, manga e abacaxi”.111 O quinto e o sexto verso do
soneto em questão, que o convocam (“Cajus hei de chupar, mangas-espadas/ Talvez
pouco elegantes para um poeta”), acolhem um sentido malicioso, especialmente quando
postos em proximidade com o “Soneto ao caju”. Inicialmente, consideramos que cajus e
mangas-espadas oferecem uma experiência mais sumarenta e passível de deslizes
protocolares do que a conferida por peras e maçãs, e por isso eles seriam “pouco
elegantes para um poeta”. Se levarmos em conta, entretanto, a perspectiva impressa
naquele poema em homenagem ao fruto, em consonância com as possíveis associações
advindas da variedade específica da manga, temos então um bem-humorado viés fálico
que sacramenta o tom libertário e brincalhão de todo o enunciado. Evidentemente, o
jogo está em dar uma elegância kitsch ao inerente caráter chão dos dizeres, e, quanto
111
MORAES, Vinicius de. Obra poética. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968, p.14. Obs.:
“Autorretrato” aparece como preâmbulo desta primeira reunião de sua poesia, com a seguinte nota: “O
poema foi feito, na hora, a pedido de João Condé, para os ‘Arquivos Implacáveis’ de O Cruzeiro, e lançado
no programa do mesmo nome, na TV Tupi, em 1956”. Ele esteve desaparecido das edições de obra
reunida até ser resgatado pela seção “Dispersos” do box Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro
(org. Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p.492-4).
60
mais clássica e suscetível ao gosto mediano for a superfície aparente do grotesco, mais a
brincadeira se sucede — o que Vinicius prepara com notável virtuosismo. Abraham A.
Moles afirma que o kitsch “é a aceitação social do prazer pela comunhão secreta com
um ‘mau gosto’ repousante e moderado”. E se prolonga:
112
Palavra composta que envolve os sentidos de comodidade, conforto, abastança e pachorra. (Nota do
tradutor.)
113
MOLES, Abraham Antoine. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva,
2012, p. 28.
61
reservados então de modo exclusivo à última estrofe, assim realçados, e coordenados
em polissíndeto; “parati”, com a inicial minúscula, é a metonímia da aguardente,
tomando como figura aquela fabricada na cidade de Paraty/RJ — o termo foi utilizado
como sinônimo da bebida destilada até meados do século XX, devido à sua tradicional
produção e qualidade. Tais preferências do poeta resultam numa combinação
tipicamente brasileira, considerando inclusive as frutas salvaguardadas no segundo
quarteto.
Órgãos como boca, dentes, língua, garganta, vinculados às funções inferiores do
corpo humano como a deglutição e a produção de fluidos, são elementos muito
importantes para o realismo grotesco, mormente sob as formas do exagero. Seriam
inclusive profícuos do ponto de vista mítico e telúrico, uma vez que eles remetem ao
ambiente interior, desconhecido, associado ao baixo e ao subterrâneo. Propenso às
cavidades, à analogia entre as aberturas do corpo humano e as grutas que levam às
profundezas, o grotesco tomaria esse universo corporal como representação do universo
total. Logo, os temas mais sérios e elevados, como a morte, são rebaixados para que
possam vir à tona, estranhos e risíveis, um tanto mais diretamente se intrometidos às
ações do comer e do beber. O que é o caso quando morrer “feliz” e morrer “do coração”
aparecem no mesmo verso, sobretudo conjugados pela hipótese da abundância: feliz do
coração. Isso na perspectiva bakhtiniana que faz da ingesta um triunfo vitorioso sobre o
mundo: “Uma refeição não poderia ser triste. Tristeza e comida são incompatíveis
(enquanto que a morte e a comida são perfeitamente compatíveis). O banquete celebra
sempre a vitória, é uma propriedade característica da sua natureza”.114 É importante
notar que o coração se faz aqui como um órgão de dúbio sentido: não somente o lugar-
comum responsável pelos sentimentos abstratos, como a felicidade; mas também a
substância material, a carne oca e perecível, conectada aos padrões alimentares e sujeita
a um infarto fulminante.
114
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.247.
62
VI. O FEIO ROMÂNTICO
115
ECO, Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014, pp. 270-309.
116
LESSING, Gotthold Ephraim. In: Op. cit., p.272.
63
modo atenuadas, podem ser — e são — deliciosas, como nossa
experiência diária nos mostra.117
Em 1797, Friedrich Schlegel (1772-1829) assevera que o belo está longe de ser o
princípio dominante da moderna lírica118 e que “muitas das mais esplêndidas obras
modernas são representações evidentes do feio”.119 No arcabouço estético recomendado
em sua Conversa sobre poesia (1800), constam aquelas obras compostas ao sabor da
imaginação livre, engendradas como forças indômitas da natureza; elas nasceriam do
lúdico, dos contrastes, da ironia e do desarmônico; e, desse modo, aspirariam à
expressão da totalidade e do absoluto. O trabalho constitui “a mais importante
exposição das ideias estéticas do Romantismo inicial”.120 O arabesco seria então a
forma com a qual os artistas conseguem alcançar os elementos românticos, o potencial
definidor da poesia romântica. Conquanto não seja uma forma idealmente bela, é “uma
forma espirituosa, que conquistou sua fantasia, e uma impressão que nos permanece tão
determinada que podemos utilizá-la e configurá-la, seja para o gracejo, seja para a
seriedade”.121 Os arabescos poderiam se apartar das convenções de beleza e dos gêneros
fechados, bem como se manifestar na extravagância e no inverossímil.
Por meio de Ludovico, um dos personagens da Conversa, Schlegel expôs que à
poesia moderna faltava um “centro”, do qual usufruíam os antigos: “nós não temos uma
mitologia”.122 Sentia, entretanto, que uma “nova mitologia” estava se aproximando e
que a colaboração entre os artistas era importante para que fosse instituída. O poeta
percebera que o “Idealismo”, grande fenômeno da época, era indício eloquente de que
algo se engendrava, uma vez que esse fenômeno vinha “da mais íntima profundeza do
ser humano”. Ainda assim, seria apenas uma parte — o efeito de uma luta travada pela
humanidade para encontrar o seu “centro”. Nessa direção, o personagem Antônio
percebe que a poesia antiga “segue integralmente a mitologia e evita até mesmo a
matéria propriamente histórica”; e que, por outro lado, a poesia romântica “se assenta
117
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo.
Trad., apres. e notas Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus; Editora da Universidade de Campinas,
1993, p.48.
118
Os românticos tratavam como arte moderna aquela que vinha desde a ascensão do cristianismo.
119
SCHLEGEL, Friedrich. In: ECO, Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2014, pp. 275.
120
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, 2009, p.53.
121
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e
notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p.530.
122
Op. cit., p.514.
64
totalmente sobre o fundamento histórico, muito mais do que se sabe ou se acredita”. Por
isso os “modernos mais antigos”, como Shakespeare, Cervantes, a poesia italiana, a
época dos cavaleiros, do amor e das fábulas, seriam verdadeiros mananciais do
romântico para os poetas que se estabelecem nessas bases: “só isso pode produzir um
contraponto com a poesia da Antiguidade clássica; somente essas flores eternamente
frescas da fantasia são dignas de cingir as antigas imagens dos deuses”.123 Uma das
sugestões de Ludovico, por sua vez, é a de dar vida nova a mitologias diversas já
existentes, com o objetivo de acelerar o nascimento de outra; e, da mesma forma que o
amigo, ele enxerga no humour de Cervantes e de Shakespeare, edificado no todo de
suas obras, um exemplo de como alcançar a altura de uma poesia que se erguera no
emaranhado mitológico:
123
Op. cit., pp. 535-6.
124
Op. cit., pp. 519-20.
65
escravo”, “O outro” e “A música das almas”. A principal razão pela qual a poesia de
Vinicius de Moraes dialoga frequentemente com parâmetros variados da estética
romântica é quase sempre desmudada, ou mesmo ignorada, o que pede, quando menos,
uma digressão. Apercebamo-nos, antes, do expressionismo hórrido deste trecho de “A
última parábola”, quando uma “história estranha e desconhecida” começa com um
cordeiro de luz pastando num grande espaço aberto:
125
MORAES, Vinicius de. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 83-9 (Anexo I, p. 133).
66
enfurecidos e um lobo feroz. Aqui, tudo parece não apenas seguir em direção às
sugestões de Ludovico, mas desbordá-las.
A partir de meados século XIX, o sensível desgaste das formas e das ideias do
Romantismo deu origem a uma profusão de movimentos artísticos e vanguardas que
motivaram um sem número de manifestos, experimentalismos formais e disputas entre
os grupos que defendiam esta ou aquela alternativa estética. Tratamos, pois, do ponto de
partida do que chamamos hoje, no mundo da arte, de Modernismo. Nas artes plásticas,
podemos destacar movimentos como o impressionismo, o pós-impressionismo, o
fauvismo e o expressionismo. Nas literárias, o decadentismo, o simbolismo e o realismo
foram influentes e fundamentais para o soerguimento da modernidade. Os caminhos
múltiplos, nesse momento histórico, poderiam apontar tanto para uma reação aos
postulados românticos como para uma radicalização; muitas vezes, foram abertas
trilhas heterogêneas, de aspecto composto e inusitado. Na França, escritores como
Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé e Arthur Rimbaud
revolucionaram a poesia a partir da criação e da absorção de tendências, com grande
foco na originalidade e no experimentalismo; são nomes indissociáveis do simbolismo,
os quais, entre outras marcas, trouxeram em medida extrema a tentativa de apreensão do
infinito, do indizível e do absoluto — o que já era praticado desde os primórdios do
Romantismo, sobretudo o germânico, mas que muito se intensifica mediante uma
confiança ainda maior na figura do gênio e na eloquência do misterioso.
A perspectiva mais realista dos poemas parnasianos na virada do século era
proeminente e muito prestigiada no Brasil. Entretanto, à margem, uma poesia de
expressão simbolista começa a circular e a ganhar alguma atenção nos meios literários.
Dentre os seus maiores representantes, o patamar mais alto foi alcançado certamente por
Cruz e Sousa; o catarinense se muda para o Rio de Janeiro, onde, em 1893, tem os seus
livros Missal e Broquéis publicados pela editora Magalhães & Cia. “Cruz e Sousa, sob o
signo do simbolismo, arrisca um retorno aos ideais românticos em uma época dominada
pelo Zeitgeist realista, radicalizando muitas de suas formas de expressão, como o
grotesco, que recebe uma hipérbole em sua poesia”, observou Silva Santos.126 Já em
1912, o paraibano Augusto dos Anjos, poeta de mesma excelência, publica seu único
livro, Eu, também no Rio de Janeiro; Augusto se apropria tanto da estética simbolista
126
SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na
poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p.13. Obs.: Baseado
na Tese de Doutorado do autor, este livro é provavelmente o trabalho mais robusto entre os que
relacionam literatura brasileira e grotesco.
67
como da realista, que se mesclam em meio a uma sintaxe excêntrica inspirada no
materialismo e no evolucionismo. Nenhum dos dois lograria em vida todo o
reconhecimento merecido; mas, desde logo, uma tradição moderna veio a se
desenvolver, com bases semelhantes, mais constantemente na poesia praticada na
capital brasileira de então. A obra poética de Vinicius de Moraes é uma das legatárias
dos postulados românticos que vieram desse modernismo simbolista, duto pelo qual
melhor se observa e se compreende elementos estéticos que são encontrados em grandes
poetas brasileiros do século XX. Não nos ocupamos, portanto, com uma predileção
suspeita ou extemporânea do poeta; pelo contrário, é possível verificar uma consciência
profunda de Vinicius nas suas escolhas, conectada indubitavelmente com o
contemporâneo. A respeito, Antonio Carlos Secchin faz uma observação muito precisa
no posfácio da reedição de O caminho para a distância:
68
“antimodernistas”, a menos que o modernismo seja termo de uso
privativo do grupo de 22; são, antes, outros modernistas. É a essa
tendência que se filia o primeiro Vinicius, em 1933, com O caminho
para a distância.127
127
SECCHIN, Antonio Carlos. Os caminhos de uma estreia. In: MORAES, Vinicius de. O caminho para a
distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 75-6.
128
CANDIDO, Antonio; MELLO E SOUZA, Gilda de. Estrela da vida inteira. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da
vida inteira. Org. André Seffrin. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, pp. 9-25.
69
paulatina no percurso de sua poesia, é surpreendente que mesmo um dos mais lúcidos e
acurados críticos da literatura brasileira desacredite nesses termos parte importante da
obra de um dos poetas mais regulares — constante na excelência — da poesia
brasileira; mais especificamente, o poeta de “Desencanto”, “A Antonio Nobre”, “Cartas
de meu avô”, “A dama branca”, “Madrigal”, dentre outros.
Os versos livres e longos do “primeiro Vinicius”, sobretudo os de Forma e
exegese e Ariana, a mulher, presentes ainda no mesmo feitio em Novos poemas e Cinco
elegias, não lembram aqueles do modernismo paulista; e parecem se aproximar de
versos franceses como o de Paul Claudel ou de uma ascendência que vai da poesia em
prosa de Cruz e Sousa aos versos de Schmidt em Canto da noite (1934).129 Ao se
conciliar, adiante, com uma esfera semântica mais vinculada ao cotidiano e, logo, com
uma linguagem mais aberta ao coloquial — substâncias caras ao movimento de 22 —, o
poeta viria, por outro lado, a exercer e revigorar as formas fixas tradicionais e
modalidades diversas do ritmo regular. Em qualquer desses momentos da obra, certa
inquietação com a ideia da totalidade e do absoluto atravessam a elaboração das
imagens, conquanto ela seja apontada em geral como característica daquela fase mais
submersa no simbolismo. Vejamos, por exemplo, o desfecho da “Balada do enterrado
vivo”, em Poemas, sonetos e baladas (1946):
129
Sob o heterônimo de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa praticou um verso longo de ritmo
razoavelmente assemelhado nas décadas de 1920 e 1930. Pouco se sabe, porém, de possíveis
aproximações entre o poeta português e os brasileiros (ressalvada conhecida exceção de apreço por
parte de Cecília Meireles).
70
Não te restassem por cima
Setecentos de amplidão!130
130
MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta,
1946, pp. 74-6 (Anexo I, pp. 139-41).
131
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Trad. e notas Célia
Berrettini. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.26.
71
homem, eis o primeiro poeta. É jovem, é lírico. A prece é toda a sua religião: a ode é
toda sua poesia”. Na Antiguidade, “a família se torna tribo, a tribo se faz nação”. Há
choque de impérios, guerra: “A poesia reflete esses grandes acontecimentos; das ideias
ela passa às coisas. Torna-se épica, gera Homero”.132 Somente a partir do cristianismo,
de acordo com o escritor, a partir do drama, a poesia almejada como verdade e ideal
estético teria sido possível; os temas e as formas da tragédia e da comédia comportariam
a completude do homem, o elevado e o baixo, o sagrado e o profano, o divino e o
terreno. A “musa moderna”, desse modo, com olhar mais elevado e amplo, sentiria “que
o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do
sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”. Hugo concede que algo de grotesco e
cômico já se encontrara na literatura da Antiguidade, como Polifemo ou Sileno, como
ciclopes, tritões, sátiros, sereias, fúrias, parcas, harpias; entretanto, seriam sempre
formas com certo grau de engrandecimento ou beleza, ou de timidez, haja vista seu
dissimulado caráter grotesco. Muito distintamente do que teria emergido na terceira
idade do gênero humano:
132
Op. cit., pp. 16-8.
133
Op. cit., p.26-31.
72
poeta, como também de sua poesia tal ferramenta reformadora. Vitor Hugo observa em
seu ensaio sobre Shakespeare que esse espírito que “flui rumo ao terrível” é inexorável:
“O poeta só se limita pelo seu objetivo; só considera o pensamento a realizar; não
reconhece outra soberania e outra necessidade que não seja a ideia; pois, emanando a
arte do absoluto, na arte como no absoluto, o fim justifica os meios”. 134 Aqui, os versos
ainda não se conformam à típica balada viniciana135 e se abrem a uma imaginação
indômita, suntuosa e terrível; são repletos de melodia e assonâncias de toda sorte, que
embalam o leitor em respiração tão mais árdua quanto insalubre:
134
HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário,
2000, p.152.
135
Destacada por conta de poemas antológicos da lírica brasileira, como “Balada do Mangue” e “Balada
das meninas de bicicleta”, possui como propriedades fundamentais, além do acento musical, o sempre
uso de redondilhas maiores, a presença de rimas dispostas em intervalos variáveis e o espírito de crônica.
136
MORAES, Vinicius de. Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, pp. 25-8. Obs.: Algumas
pequenas alterações foram efetuadas nas duas edições de Antologia poética (1954, 60) e, por isso,
incorporadas na citação. MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Segunda edição revista e aumentada. Rio
de Janeiro: Editora do Autor, 1960, pp. 47-9 (Anexo I, pp. 138-9).
73
ROMANTISMO REALÍSTICO
137
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e
notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 516-7.
74
chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”.138 Todavia, as substâncias não-ideais, às
vezes, ultrapassam os limites do senso poético mediano, e podem incomodar as
sensibilidades mais desapercebidas. É o caso de “O amor dos homens”.139 O início
desse poema, que é o mais longo de Para viver um grande amor, faz lembrar a
definição que foi dada ao conteúdo romântico por Antônio, um dos personagens de
Schlegel: “romântico é precisamente o que nos expõe uma matéria sentimental numa
forma fantástica”;140 advertindo em seguida que “sentimental” é palavra a ser disposta
de maneira a aludir à essência de um Petrarca, um Tasso, e nunca pejorativamente,
como na língua comum.
Na árvore em frente
Eu terei mandado instalar um
[alto-falante com que os passarinhos
Amplifiquem seus alegres
[cantos para o teu lânguido despertar.
Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo
Com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios
E me darás a boca em flor; minhas mãos amantes
Te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga
Do fundo do teu ser de sono e plumas
Para me receber; (...)
138
MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta,
1946, p.7.
139
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 212-7.
140
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e
notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p.533.
75
Silencias. Odeio o teu silêncio
Que não me pertence, que não é
De ninguém: teu silêncio
Povoado de memórias. Esbofeteio-te
E vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue
Flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura
E coses com linha amarela o meu pulso
[abandonado, que é para
Combinar bem as cores; em seguida
Fazes-me sugar tua carótida, numa longa, lenta
Transfusão. (...)
Tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza
Corrói minha carne como um ácido! Teu signo
É o da destruição! Nada resta
Depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento
De todo o meu inútil, a causa
De minha intolerável permanência!
76
recursos poéticos que dão nova potência à tradição. Se Vinicius de Moraes tivesse dado
ouvidos ao canto da sugestão restritiva, sobretudo daqueles que seguem cegos de
ideologia ou dos que são poeticamente insensíveis, não teria contribuído de maneira
cabal, como contribuiu, com a literatura de língua portuguesa; muito menos penetrado
de igual forma na cultura popular — para onde sua poesia estendeu as mãos inventivas.
77
VII. BAUDELAIRE NO MIRAMAR
141
SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na
poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, pp. 420-30.
142
CAROLLO, Cassiana Lacerda. Decadismo e simbolismo no Brasil: crítica e poética. Vol. 1. Brasília: Livros
Técnicos e Científicos; INL; MEC, 1980, pp. 142-3.
78
obras do passado. Como podemos perceber em sua teoria sobre a modernidade,143
elementos que remetem ao eterno e que se insinuam nas impressões cotidianas seriam
cruciais à beleza moderna.
Nos quartetos de “Une charogne”, Baudelaire apresenta um espetáculo natural
que ultrapassa a mera simpatia pelo horror. A carcaça em putrefação compreende uma
beleza desconfortável e expõe um encadeamento de substâncias comuns à fruição do
sublime. Absortas naquela carniça, as imagens carregam algo novo quanto à
representação do grotesco na literatura, mais precisamente o reconhecimento das
conotações telúricas de ampla abrangência no processo de decomposição: a
transcendência do abjeto à esfera do cósmico; a interação do elevado com o baixo; o
ciclo natural; a finitude da beleza como elemento de transição. Ali, um erotismo
violento atira vigor vital e moral na carne morta:
A ação do sol sobre a carcaça, bem como o testemunho do céu, eleva o patamar
imagético do repulsivo, dá-lhe um caráter cósmico e o reorienta como substância de um
ciclo eterno; o sublime e o grotesco, desde logo, se misturam:
143
Le Peintre de la vie moderne. Em edição brasileira: BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o
pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
144
“As pernas para cima, qual mulher lasciva,/ A transpirar miasmas e humores,/ Eis que as abria
desleixada e repulsiva,/ O ventre prenhe de livores.” In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. intr.
e notas Ivan Junqueira. Bilíngue. Ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, pp. 158-9.
145
“Ardia o sol naquela pútrida torpeza,/ Como a cozê-la em rubra pira/ E para ao cêntuplo volver à
Natureza/ Tudo o que ali ela reunira.// E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça” In: Op. cit., pp. 158-9.
79
Larvas e moscas movimentam em ondas a carniça e, de tal forma, vida e morte
se desapertam nas mesmas imagens — e se confundem. Aqui, a matéria física do objeto
passa por um processo de sublimação: primeiramente se liquefazendo para que depois
se converta em ar ou, ainda, em música. Isso por meio de cenas incisivas como “Tout
cela descendait, montait comme une vague,/ Ou s’elançait en pétillant”, até “Et ce
monde rendait une étrange musique,/ Comme l’eau courante et le vent”.146 O ponto
mais elevado dessa escalada a uma rarefação é tornar-se apenas um sonho, ou, talvez, o
devir de um esboço, cujo artista só poderia enxergá-lo mentalmente. Entretanto, o
poema desce de forma brusca aos pormenores cotidianos ao fazer menção a uma cadela
que aguarda a passagem do casal para retomar seu bocado; a realidade concreta recobra
assim seu espaço. A carniça que, a priori, é objeto repugnante e desprezível comporta
poeticamente, portanto, um cosmo de imenso domínio e tenciona a plenitude.
A apóstrofe do primeiro verso reaparece com toda a relevância nas últimas três
estrofes, quando o poeta não apenas dirige seu discurso mais diretamente, mas compara
o interlocutor, sua amada, com aqueles despojos apodrecidos. E então contrastes
incômodos se alvoroçam: o amor e o asco, o sublime e o grotesco, a linguagem amorosa
e os signos do hediondo e do macabro. A ironia é levada a um extremo de pouca ou
nenhuma precedência ao mesmo tempo em que há gravidade e seriedade nas
considerações sobre a finitude da beleza e do amor.
146
“E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,/ Ou esguichava a borbulhar”/ (...); “E esse mundo emitia
uma bulha esquisita,/ Como vento ou água corrente” In: Op. cit., pp. 158-61.
147
“— Pois hás de ser como essa coisa apodrecida,/Essa medonha corrupção,/ Estrela de meus olhos, sol
da minha vida,/ Tu, meu anjo e minha paixão!”// (...); “Então, querida, dize à carne que se arruína,/ Ao
verme que te beija o rosto,/ Que eu preservarei a forma e a substância divina/ De meu amor já
decomposto!” In: Op. cit., 160-1.
80
No ensaio “A rainha das faculdades”, Baudelaire questiona se aqueles que
içavam a natureza como o belo ideal e que defendiam sua cópia como um ideal para a
arte estariam seguros de conhecer “toda a natureza, tudo o que lhe está contido”.
Segundo o poeta, o “homem imaginativo” teria razão ao pensar que a natureza é feia; e
preferir os monstros de sua fantasia em vez da “trivialidade positiva”. 148 No “Elogio da
maquilagem”, o francês chega a um entendimento idêntico ao analisar o objetivo e o
resultado do uso cosmético, costumeiro, do “pó-de-arroz”; pergunta se alguém não
percebeu que o propósito é fazer com que desapareçam da tez “todas as manchas que a
natureza nela [na mulher] injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata na
textura e na cor da pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima
imediatamente o ser humano da estátua, isto é, de um ser divino superior”. 149 O
raciocínio de Baudelaire, evidenciado em diversas passagens de sua produção teórico-
filosófica, desvia-se assim de um fundamento marcadamente rousseauniano em que o
natural seria sinonímia do bom e do belo — enxerga ali, em verdade, uma larga
jurisdição da feiura. Aposta, em contrapartida, no artificial, no novo, naquilo que não
existe — na imaginação como conceito específico, menos contíguo da fantasia que de
uma inteligência possível, um tanto visionária, do indivíduo.
Ao criticar o modo como a feiura se estabelece em parte importante da arte
contemporânea, o filósofo Roger Scruton (1944-) argumenta que o rude e o sórdido
caracterizado pela cultura do fin-de-siècle trespassava necessariamente os anseios do
artista pelo belo; uma tradição teria se principiado por Baudelaire, com Fleurs du Mal
(1857) e Flaubert, com Madame Bovary (1857) — culminando nos romances de Émile
Zola, Henry James, nas óperas de Alban Berg e na poesia de T. S. Eliot. “Zola e Berg
nos recordam de que a verdadeira beleza pode ser encontrada até mesmo naquilo que é
rude, doloroso, decadente”, observa o filósofo inglês. Essa concepção resultaria num
tipo de “redenção pela arte”, oriunda de um fecundo paradoxo: uma cultura que
“continuou a acreditar na beleza ao mesmo tempo em que se concentrou em todas as
razões que a levavam a duvidar de que a beleza poderia ser alcançada fora da esfera
artística”. Por outro lado, muitas obras mais recentes teriam se vinculado apenas à feiura
por si só, apoiadas teoricamente na rejeição da beleza em sentido estrito:
148
BAUDELAIRE, Charles. A rainha das faculdades. Caderno de leituras, nº 84. Trad. Lívia Cristina Gomes.
São Paulo: Chão da Feira, dezembro de 2018.
149
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.59.
81
Na tradição de Baudelaire, a arte paira como um anjo sobre o mundo
que se encontra sob sua atenção. Ela não evita o espetáculo da
loucura, da malícia e da decadência humana, mas convida-nos a outra
parte, afirmando que “là tout n’est qu’ordre et beauté:/ Luxe, calme et
volupté”.150 A arte mais recente, por sua vez, cultiva uma postura
transgressora, igualando a feiura daquilo que retrata com uma feiura
própria. A beleza é rebaixada a algo demasiadamente doce e escapista,
distanciando-se demais das realidades para merecer uma atenção
desenganada.151
Silêncio da madrugada
No Edifício Miramar...
Sentada em frente à janela
150
Na trad. de Ivan Junqueira: “Lá, tudo é paz e rigor,/ Luxo, beleza e langor”. Op. cit., pp. 208-11.
151
SCRUTON, Roger. Beleza. Trad. Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2017, pp. 177-86.
152
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: metade do século XIX a meados do século XX. Trad.
Marise M. Curioni (texto) e Dora F. da Silva (poesias). São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 42.
82
Nua, morta, deslumbrada
Uma moça mira o mar.
83
imitativas é uma hipótese nula para um cadáver, embora esteja ele perfeitamente parado
como quem está sujeito a uma foto ou pintura — ou à poesia. Necrofilia lunar, violação
solar; os signos mais elevados podem se refletir nessa feroz materialidade; vida e morte
vêm e vão como substâncias imiscíveis ou como mistura homogênea enquanto os ossos
atravessam a pele da moça. “Balada da moça do Miramar” é uma das mais belas baladas
vinicianas e dialoga com uma tradição em que o grotesco sai das margens e se torna
protagonista.
A descrição de uma jovem à janela ou em uma sacada traz consigo relevante
conotação amorosa, herdeira do imaginário histórico das literaturas cuja cena mais
memorável, podemos afirmar, foi aquela de Romeu e Julieta em seu segundo ato. Essa
conotação amplifica o desconforto e o fascínio desempenhados pela imagem daquele
corpo em decomposição. E, portanto, o deslumbrar-se da moça ganha significado mais
uma vez: por hipótese, um episódio de amor pode se encadear aos fatos. A referência a
um “fétido mel” que sai da “flor do seu corpo” corrobora sugestivamente, além de
introduzir um tipo estranho de erotismo que se sucederá ao longo do poema. Tal
dispositivo erótico se disfarça de maneira simbólica e grotesca em algumas passagens,
aproveitando-se das ocorrências que envolvem a putrefação e os seus menores
desdobramentos; sobrevém a partir da interação íntima com o heterogêneo e só se revela
de modo peculiar e macabro: “formigas pretas/ Que lhe entram pelos ouvidos/ Se
escapem por umas gretas/ Do lado do coração”. A respeito de certos bichos, Kayser
menciona algumas espécies preferidas do grotesco: insetos, sevandijas (nome comum a
parasitas e vermes imundos), serpentes, corujas, sapos, aranhas, cigarras, escaravelhos,
mariposas e, especialmente, o morcego.154 Aqui, as formigas ampliam sua dimensão
telúrica; insetos já naturalmente apensos ao subterrâneo e às profundezas, elas ganham
acolhida no interior das grutas e cavidades daquela mulher. As interações heterogêneas
se manifestam igualmente, entretanto, com o reino vegetal: “Seus ambos joelhos de
âmbar/ Furam-lhe o branco da pele” (destaque-se a harmonia ambos- âmbar); isto é, já
com a cor e a luz acrílica da resina fóssil, as pontas agudas de seu esqueleto atravessam
— defloram — o tecido fragilizado da moça do Miramar. A flor de seu corpo, com seu
mel nauseante, colabora de imediato com essa figuração.
A unidade semântica de “móveis/ Imóveis” é caso insólito em que efeitos
concomitantes de antítese e pleonasmo se manifestam no mesmo simples arranjo. O
154
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 157-8.
84
substantivo “móvel” designa, como se sabe, determinadas peças de uma residência que
podem ser movidas, transportadas, e opõe-se ao substantivo “imóvel”, o qual se refere à
residência em si mesma, que, por suposto, não pode se mover; as duas palavras opõem-
se de modo diametral, o que justifica o prefixo distintivo no mesmo signo. A palavra
“imóveis”, por outro lado, aplicada nesse âmbito como adjetivo, aparece à primeira
vista como um adjunto desnecessário, ao se dirigir a objetos inanimados que não podem
se mover (“Madeira, matéria morta”, em outro poema155). Em verdade, o arranjo
expressa em grande medida o motivo essencial da terceira estrofe: a solidão e o silêncio
— sintetizados no signo do “segredo” — estabelecidos em profundidade longínqua,
onde tudo permanece absolutamente parado e alheio ao restante do mundo. E, tão
estática quanto as coisas que a circundam, a moça mantém-se, ademais, “extática” (com
xis) — em êxtase, ou, em outras palavras, “deslumbrada”. Em contraste, somente a
movimentação dos pequeninos seres em seu corpo interessados no apodrecimento; e,
acima, o trabalho celeste naquele fim de madrugada; e a “necrose/ Que lhe corrói o
nariz”. Tal falecimento das células ou do tecido orgânico pode ser encontrada também
em “Balada dos mortos dos campos de concentração” (Cadáveres necrosados/
Amontoados no chão/ Em beijos estupefatos/ Como ascetas siderados/ Em presença da
visão); em “Romance da amada e da morte” (Enche-lhe bem a caveira/ Sai dançando
um rock-and-roll/ Retorcendo-se do cóccix/ E trescalando a necrose); ou em “Sob o
trópico do câncer” (Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo/ Que empesteias as
brancas madrugadas/ Com teu suave mau cheiro de necrose). Aqui, a mazela se dá
concatenada a uma feliz ilusão.
A quarta estrofe possui um léxico iluminado apesar do horrendo sobre o qual o
poema se debruça; e aborda de maneira aberta o belo possível que há em certos aspectos
do cadáver.156 Retornemo-nos, pois, a Baudelaire. O poeta procura estabelecer uma
“teoria racional e histórica do belo” a partir do princípio da dimensão dupla de
impressão única da beleza. Seu elemento absoluto seria apenas uma de suas faces:
155
MORAES, Vinicius de. A porta. A arca de Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970, p.35.
156
Na 2ª ed., revista e aumentada, da Antologia poética (Editora do Autor, 1960), a terceira e a quarta
estrofe aparecem juntas, i.e., perfazem uma só estrofe. Apesar de se tratar de um volume de alto valor
para fixação de texto, visto que foi expressamente revisado, as demais edições nos levam a acreditar que
esse formato não passa de um erro despercebido: na edição de origem (Rio de Janeiro: A Noite, 1954), as
duas partes estão divididas por um salto de página; em Obra poética (Rio de Janeiro: Aguilar, 1968), as
partes reaparecem separadas em duas estrofes distintas; e, nas inúmeras edições da Antologia poética
publicadas posteriormente pela José Olympio, é também desta forma que o poema se repete.
85
O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja
quantidade é excessivamente difícil de determinar, e de um elemento
relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou
combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse
segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante,
aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível,
inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana.
Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que
não contenha esses dois elementos.157
157
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 10-1.
86
O tempo começa a correr acelerado nas últimas estrofes, de modo que se
compreendam os gestos siderais: a interação do elevado com o baixo. A noite logo
retorna ao cenário. E então a lua é quem ama aquela moça: duas figuras de gênero
feminino se unem num conúbio necrofílico e astral cuja “trama” é tecida pelo mar, que
as acompanha. Significados possíveis da palavra exercem efeitos na passagem: “trama”
é sinônimo de enredo, de uma sucessão de acontecimentos — supostamente
engendrados pelo mar; mas também é o conjunto de fios que se tecem — o que faculta à
lembrança tecidos de casamento análogos à espuma marítima. Ainda sobre o termo,
agora em nexo mais negativo: o verbo tramar é fazer maquinação, conspirar; e, sob uma
acepção antiga, o substantivo evoca a peste, o mal contagioso, a doença, a enfermidade.
O cenário se reveza com o “sol violento”. As ações do astro, que estimulam a
putrefação do cadáver, são representadas pela ideia do estupro — esse “violentar”
submergido na contextura sexual. As ações do vento, a seu turno, são indissociáveis
daquelas do sol: o forte movimento do ar é enunciado como um atributo do astro (“O
sol batido de vento”); e percebido sugestivamente nas reverberações (violento- furor
violeta- violentar). Nessa alternância contínua entre a noite e o dia, ícones celestes,
vultosos e sublimes como a lua, o sol, os ventos comunicam-se de maneira íntima com
os elementos mais ínfimos, terrenos e grotescos. Apesar de inerente à evolução e à
manifestação do disforme e do repulsivo, essa dinâmica do tempo não deixa de ser
cantada com modos populares, típicos da balada viniciana: “Muitos dias se passaram/
Muitos dias passarão/ À noite segue-se o dia/ E assim os dias se vão”. Ali, permanecem
“mortas de paixão” a mulher e a lua. Se a última se deleita com a morte, com tal
alegoria, a outra é matéria de um desastre — seu amor era “amor do mundo”,
constituído da vida. Essa matéria se desagrega devagar para que possa viver novamente.
O poeta medita, pois, a respeito de um ciclo natural que alcança não apenas a
concretude desse mundo, mas os sonhos, as paixões, a entrega, o desespero. Sua
consciência a respeito do tempo é o que insere no poema os aspectos mais
desconcertantes, materialistas, que vão ao encontro de definições bakhtinianas do
grotesco: “um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda
incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução”.158 A
dimensão temporal é traduzida também formalmente, por meio de ativos literários
tradicionais em sua construção. Ela se expressa não somente no inconfundível
158
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 21-2.
87
aproveitamento das baladas por Vinicius: como qual no emprego de um cenário
característico do imaginário amoroso, aqui subvertido; no diálogo com a estética
grotesca, especialmente a transfigurada por Baudelaire; no proveito da porção trágica
presente no próprio nome do edifício, depois que Giosuè Carducci escreve sobre o
Castello di Miramare e o fim de Maximiliano do México em Odi Barbare (1877). A
expressão da vida que sempre morre; da morte vivendo nas pequenas palpitações
invertebradas; do renascimento; da perplexidade e do amor humanos em qualquer das
épocas: é a metonímia totalizante nos despojos daquela jovem.
88
VIII. É BELA A BOMBA?
159
ECO, Umberto. História da beleza. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2013, p.394.
160
Com a pronúncia de “D.S.”, no francês , faz-se Déesse (Deusa).
161
BARTHES, ROLAND. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. 4ª ed. Rio
de Janeiro: DIFEL, 2009, pp. 152-4.
89
ou se exercitam em exaltações desmedidas da nova beleza, a beleza da
técnica, a beleza da velocidade e do automóvel!162
90
não nota por fora nenhuma diferença nas punições. O rastelo parece trabalhar de
maneira uniforme”.165 Por sua vez, o eu-lírico viniciano quer conquistar amorosamente
o objeto de destruição — para que ele não mais se opere:
165
Essencial Franz Kafka. Sel., intr., e trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics; Companhia
das Letras, 2011, p.74.
91
atônita’”.166 Esse acordo inseparável entre forma e conteúdo trabalha na expressão de
uma heterogeneidade ostensiva. Além de constituir por meio de isomorfias e de recursos
multifacetados uma bela representação do feio, “A bomba atômica” conduz à pergunta
sobre a beleza em si mesma do objeto em questão; se ela poderia dissociar-se
inteiramente da monstruosidade por ele concebida. E são as elaborações heterogêneas e
as manifestações isomórficas que fazem o instrumento de morticínio se apresentar
algumas vezes por meio de formas híbridas. Uma variedade imagética que se refere à
bomba nuclear como estatuária, anjo ou arcanjo, estrela, troço de coluna, flor ou pomba
acaba inevitavelmente em “novas dissoluções”, para utilizar a locução de Wolfgang
Kayser,167 como um dispositivo explosivo descendo pelo espaço com os cabelos ao
vento. Nesse âmbito, um tipo exótico de vegetal-mineral, carnívoro, combina espécies e
pertence a reinos distintos, bem como possui o condão da radioatividade:
Kayser observa que, se o elemento humano faz-se estranho ao perder a vida, seja
por meio da expressão cadavérica, seja por meio de autômatos, bonecas, marionetes ou
máscaras, “o elemento mecânico se faz estranho ao ganhar vida”. O estudioso alemão
fala de utensílios perigosos, os quais fariam parte dos motivos característicos do
grotesco; e estende seu raciocínio para uma expressividade grotesca mais recente, de
origem técnica, que compreenderia desde o mundo orgânico oculto revelado pelos
microscópios até os maiores produtos da modernidade:
166
FERRAZ, Eucanaã. Um poeta entre a luz e a sombra. In: Revista Língua Portuguesa, nº 26. São Paulo:
dezembro de 2007, pp. 38-44.
167
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, 2009, p.159.
92
Semelhante enfoque da técnica é tão familiar ao homem de hoje, que
lhe é fácil traçar um grotesco “técnico”. A ferramenta se tornaria,
neste caso, portadora de um impulso diabólico de destruição e senhora
do seu criador.168
Fria e corrupta
Do longo sêmen
Da Via Láctea
Deusa impoluta
O sexo abrupto
Cubo de prata
Mulher ao cubo
Caindo aos súcubos
Intemerata
Carne tão rija
168
Op. cit., p.158.
169
POMORSKA, Krystyna. Formalismo e futurismo. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Org. Boris Schnaiderman;
Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.107.
93
De hormônios vivos
Exacerbada
Que o simples toque
Pode rompê-la
Numa explosão
Milhões de vezes
Maior que a força
Contida no ato
Ou que a energia
Que expulsa o feto
Na hora do parto.
Note-se que há nessas imagens uma série de elementos seriamente estimados por
Mikhail Bakhtin, aqueles que se percebem nos alicerces de sua teoria sobre o realismo
grotesco: o plano material e corporal do erotismo, os fluidos corporais, o feto e o parto.
No exercício sexual, o corpo se abre ao mundo exterior deixando de ser criatura isolada,
acabada; o mesmo acontece significativamente com a gravidez e o nascimento, a
revelação dos dois corpos em um — por isso a hiperbolização positiva, na tradição
grotesca, dos órgãos e das partes do corpo que servem de estada ou comunicação com
outros corpos, que atravessam limites individuais ou que se deixam atravessar. O
teórico russo ainda trata da associação entre os abalos cósmicos e os abalos corpóreos: a
ideia de microcosmos muito explorada por Rabelais. O escritor valia-se da propensão
das pessoas a assimilar e sentir em si mesmas “o cosmo material, com seus elementos
naturais, nos atos e funções eminentemente materiais do corpo: alimentação,
excrementos, atos sexuais”. Em vista de tal associação, as imagens relativas ao baixo
corporal teriam adquirido ao longo dos tempos um valor cósmico essencial.170
Obviamente, a explosão de que trata Vinicius não se coloca exatamente entre as
perturbações cósmicas e as calamidades naturais aludidas por Bakhtin, mas guarda
amplitude e efeitos calamitosos inclusive superiores. No campo conceitual, percebe-se
que a analogia entre a reação nuclear da bomba e o clímax sexual vai ao encontro do
170
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 293-5.
94
que Marinetti definiu como uma “psicologia intuitiva da matéria” no manifesto técnico
de 1912.171
O poema se desdobra de maneira que sua estética endurecida, congênere dos
pressupostos futuristas, aos poucos se transforma; seus versos ganham cada vez mais
musicalidade e lirismo; o caráter métrico é primeiramente o aspecto mais visível de uma
íntima conversão. A segunda parte se enuncia no ritmo da redondilha maior, com o
talhe melodioso e popular que lhe é afeito: “A bomba atômica é triste/ Coisa mais triste
não há”. Ali se encontra uma das imagens mais precisas e delicadas já compostas em
concerto com a bomba: “Vem caindo devagar/ Tão devagar vem caindo/ Que dá tempo
a um passarinho/ De pousar nela e voar”. Vida e genocídio, leveza e gravidade, natural
e artificial; variados contrastes e contradições podem ser retirados da mesma cena.
Alguns anos depois, nos instantes finais da película Dr. Strangelove (1964), de Stanley
Kubrick, baseado no livro Two Hours to Doom (1958), de Peter Bryant George, sucede
também um arranjo em que a criatura se acomoda numa bomba nuclear caindo, desta
vez um ser humano. É importante destacar como que o modo vagaroso de cair tem
menos a ver com o tempo real, absoluto, que com o tempo relativo. A apreensão gerada
pelo arremesso de um equipamento de efeitos tão devastadores faz com que se
prolongue aparentemente a duração dessa queda; a demora sugere também a leveza
relativa do objeto frente ao peso, à gravidade, das consequências — e daí muito se
compreende da intensidade simbólica da ave pousada.
Ainda na parte II, a ideia da bomba como um “anjo/ Tutelar” reaparece na
medida em que o dispositivo “também mata a guerra” — “Guarda de uma nova era/
Arcanjo insigne da paz!”. Ela se refere à doutrina de estratégia militar e política
denominada M.A.D. — mutual assured destruction, ou destruição mútua assegurada (a
sigla traduz-se também como “louco”) —, isto é, com base na premissa de que o uso em
larga escala de armas nucleares por dois ou mais lados opostos leva necessariamente à
aniquilação de todos os envolvidos, fabricam-se arsenais capazes de dissuadir as
lideranças adversárias de iniciarem uma ofensiva. A matéria, que perpassa todo o
poema, produz um paradoxo importante na história recente do mundo, o da paz
decorrente da proliferação do mais brutal artefato de guerra. A respeito, o dramaturgo
suíço Friedrich Dürrenmatt chega mesmo a pôr em paralelo a bomba atômica e o
grotesco moderno por conta de tal paradoxo:
171
MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto técnico da literatura futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça.
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 6ª ed. revista e ampliada. Petrópolis: Vozes, 1982, pp. 95-9.
95
Nosso mundo levou simultaneamente ao grotesco e à bomba atômica,
do mesmo modo como são igualmente grotescos os quadros
apocalípticos de Hieronymus Bosch. Mas o grotesco é apenas uma
expressão sensível, um paradoxo sensível, ou seja, a figura de uma
não-figura, o rosto de um mundo sem rosto. E tal como o nosso
pensamento parece não prescindir do paradoxo, o mesmo ocorre com
a arte e com o nosso mundo, que só existe porque existe a bomba, isto
é, pelo medo que se tem dela.172
172
DÜRRENMATT, Friedrich. In: KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na
literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.9.
173
MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto técnico da literatura futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça.
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 6ª ed. revista e ampliada. Petrópolis: Vozes, 1982, p.97.
174
O futurismo. In: Op. cit., p.92.
96
espaciais harmoniza-se com o céu, o mar, estrelas vespertinas e matutinas, um sorriso
gracioso da própria bomba atômica; o discurso ganha amabilidade com os artifícios
rítmicos e melódicos. Tais variações e isomorfias por que passam os versos no decorrer
de todo o poema contribuem na expressão de um movimento de aproximação do poeta
com essa musa estapafúrdia e temerária; o movimento atravessa a estranheza, a
contemplação, a imaginação e atinge o intimismo. E o poeta permanece como sempre
aberto às experiências semânticas e formais, conquanto nunca abdique das concepções
que o alimentam e que nele despertam o anseio pela palavra.
97
IX. DE GREGÓRIO A VINICIUS
Victor Hugo
Nariz de embono
com tal sacada,
que entra na escada
duas horas primeiro
que seu dono.
Nariz que fala
longe do rosto,
pois na Sé posto
175
HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário,
2000, p.76.
98
na Praça manda por
a guarda em ala.
Membro de olfatos,
mas tão quadrado
que um rei coroado
o pode ter por copa
de cem pratos.
Tão temerário
é o tal nariz,
que por um triz
não ficou Cantareira
de um armário.
Você perdoe
Nariz nefando,
que eu vou cortando
e ainda fica nariz
em que se assoe.176
Verá na realidade
aquilo, que já se entende
de uma puta que se rende
às porcarias de um Frade:
mas se não vê de verdade
tão lascivo exercício,
é, porque cego no vício
não lhe entre no oculorum
o secula seculorum
de uma puta de ab initio.177
99
entre as décadas de 1840 e 1860, ela pertence a um romantismo paulistano “marcado
pelo satanismo, o humor e a obscenidade”, observa Antonio Candido. O que dela
sobrou é muito pouco, uma vez que seus próprios praticantes não lhe davam
importância e, quando entravam em suas vidas práticas e respeitáveis, os poetas
pantagruélicos “punham de lado as provas de loucura da mocidade e com certeza as
destruíam”.178 O mal que deitava suas sombras sobre Álvares de Azevedo, Aureliano
Lessa e, mais especialmente, BERNARDO GUIMARÃES, ainda não era inspirado por
Baudelaire, mas por Byron, Shelley, Musset e Heine, como ensina Silva Santos.179
Bernardo explorou praticamente todos os gêneros desviantes ou baixos e
modalidades do grotesco romântico em poemas como “A orgia dos duendes”, “O elixir
do pajé”, “Soneto”, “O nariz perante os poetas”, “Origem do mênstruo” ou “Parecer da
Comissão de Estatística a respeito da freguesia de Madre-Deus-do-Angu”. Aquele
primeiro trabalha com um grande número de personagens horríveis que vão desde os
mais amplamente conhecidos, como o lobisomem — aqui, “lobisome” — até criaturas
das lendas populares brasileiras, como a “mula-sem-cabeça”. Combinados amiúde com
o vocabulário e a pronúncia popularescos, típicos, ajudam a compor uma noção
inovadora dentre as expressões nacionalistas da poesia romântica brasileira; seu
satanismo e seu erotismo sádico tampouco encontravam precedentes. Vejamos o trecho
inicial da segunda parte:
178
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993, pp. 230-1.
179
SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na
poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p.28.
100
Que no meio da selva agoureira
Vai fazendo medonho sussurro.
180
GUIMARÃES, Bernardo. Elixir do pajé: poemas de humor, sátira e escatologia. São Paulo: Hedra, 2011,
pp. 81-2.
181
Op. cit., p.63.
101
Na última década do século XIX, CRUZ E SOUSA publicou seus primeiros poemas
e prosas poéticas. Sua literatura filiava-se ao simbolismo, estilo estranho à literatura
nacional e que nem mesmo na França, país de origem do movimento, alcançara inteira
aceitação. O poeta oriundo da província do Desterro assume um caráter cosmogônico,
faz de sua poesia um ambiente análogo a um cosmo encerrado em si mesmo que o
arrasta para o inferno das experiências sensíveis, ao paraíso de suas aspirações
transcendentais, às grutas da angústia íntima e ao infinito das instâncias inteligíveis.
Suas elaborações grotescas flertam com o sublime; o mal aparece como única e
desesperada saída para a concretização das abstrações — sua busca primordial — que
somente se daria com o amálgama entre os opostos. Seus versos são sonoros,
performáticos; contam com elementos românticos, nevroses decadentistas, mundos
invisíveis, abismos e pesadelos, como esses que buscam delinear suas impressões sobre
o “Tédio”:
102
No silamento e no mover lascivo
Das caudas e dos dentes.// (...)182
182
CRUZ E SOUSA. Poesias completas. 2ª ed. reform. Intr. Tasso da Silveira. São Paulo: Ediouro, 2002, pp.
64-7.
183
Op. cit., p.12.
103
último, a menção explícita à ironia, bem como a supressão das hierarquias sociais — a
Danse macabre do folclore europeu medieval — e o seco materialismo:
184
Op. cit., pp. 121-3.
104
Trôpega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.
Sua expressão literária não busca escapar à experiência real, como analisa
Ferreira Gullar: “ao contrário, procura concretizá-la, dar-lhe o peso e a contundência da
vida”; suas ruínas seriam “a imagem do abandono e da morte”. Augusto não exprime o
passar do tempo, a decrepitude e a solidão por meio de “conceitos ou imagens histórico-
literárias”, e sim com os próprios elementos “dessa ruína anônima e vulgar”. E então as
lagartixas nos muros velhos do Nordeste são transformadas em “testemunhas da
história, do trabalho destruidor do tempo”.186 Em “Budismo moderno”, a exemplo dessa
contundência, o poeta opta por falar da eternidade de sua poesia em vez da eternidade
de um espírito possível; e elabora analogamente a irrelevância de seu corpo material
mediante a imagem de uma criptógama desprendida ou de um óvulo infecundo —
sínteses de uma constante basilar em sua obra: a ideia de algo que não vinga, que não
chega a ser.187 Observemos, no quinto verso, um indício de como o exotismo de sua
obra não impediu que ela chegasse a um grande público, uma vez que a frase alcançaria
a condição de dito popular.
185
ANJOS, Anjos dos. Gemidos de arte. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp.113.
186
GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina. In: ANJOS, Augusto dos. Op. cit., p.23.
187
A respeito, uma boa explanação é dada por Ivan Cavalcanti Proença em O poeta do eu. (3ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1980).
105
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
188
ANJOS, Anjos dos. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p.86.
106
Depois passem creme
Depois passem talco
Esfreguem extrato
Por todo o seu corpo
Porque ele urinou-se
No último esforço.
Penteiem direito
Os cabelos do morto
E ajeitem-lhe o olho
Que está meio torto
Estiquem-lhe a pele
Com fita colante
Para que ele fique
Mais moço que antes.
(...)
E pensem, e cogitem
E matem-se aos poucos
E chorem e se agitem
Até ficar loucos
Que dentro do túmulo
Feito em escuridão
Já se ouvem uns sons ocos
Vindos do caixão
189
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 523-5 (Anexo I, pp. 157-9).
107
O poema é composto por sete oitavas sempre seguidas de um dístico que serve
de refrão ou coro. Se, de um lado, a voz nas oitavas é de um sarcasmo artificioso, do
outro, nos dísticos, ela possui uma índole aberta, direta e disposta a ajuizar o defunto. O
olho “meio torto” do cadáver, que precisa ser ajeitado, é exemplo da atrapalhação
mórbida, dessa cáustica comicidade elaborada por Vinicius.
Dentre as marcas contínuas reconhecíveis ao longo da obra, é importante
verificar que o poeta concebe um tipo de mitologia pessoal a partir de registros do
cristianismo. O expediente pode atravessar momentos vários de sua poesia, como se
comprova com “A Legião dos Úrias”, poema lançado em 1935 no livro Forma e
Exegese, e “Balada de Santa Luzia”, poema esparso publicado em 1972 no “Suplemento
Literário” do jornal O Estado de São Paulo. Nestes dois casos, o grotesco se faz
presente e possui em comum o horror das mutilações.
Úrias Heteu era um dos guerreiros mais importantes do reino de Davi. De acordo
com o texto bíblico (Segundo livro dos reis, 11 e 12), sua mulher, Betsabéia, comete
adultério com o rei depois que ele a observa, um dia, se banhando no terraço do palácio
real; como consequência, engravida; e manda avisar a Davi. Após tentar sem sucesso
que Úrias deixasse a guerra e voltasse para casa — de modo que o fizesse acreditar,
mais à frente, que o filho fosse dele —, o rei pede que o seu comandante o ponha na
linha de combate mais árdua, e que o desampare. Tal plano é bem sucedido e Urias
morre no enfrentamento; passado os dias de luto, Davi toma sua viúva como esposa. Em
seguida, porém, o Senhor lhe envia o profeta Natan para avisar-lhe de que ainda pagará
um alto preço por todo o ocorrido.190 Dessa história, Vinicius extrai os seus horríveis
“Cavaleiros Úrias”, espectros violentos, castradores das mulheres e de qualquer fêmea
úbere encontrada pelos caminhos. Em noites enluaradas — essas figuras
fantasmagóricas são escravos da Lua, a “grande princesa”, a “louca estéril” (para além,
o nome Úrias tem origem no nome hebraico Uryyah []הירוא, a junção dos elementos ur,
luz, e Yah, Senhor, Javé) —, a região amaldiçoada é sadicamente acometida. O astro da
noite revela aqui seus significados mais adversos: é a “luz na intensidade tenebrosa”;191
é a Lua do Arcano XVIII que avisa da exposição ao perigo, do erro, dos motivos
ulteriores, do inimigo desconhecido:
190
Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966, pp.
348-50.
191
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
cores, números. Coord. Carlos Sussekind; trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 23ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2009, pp. 561-6.
108
E desde então nas noites claras eles aparecem
Sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e
[das mães sozinhas
E das éguas e das vacas que dormem afastadas dos
[machos fortes.
192
MORAES, Vinicius de. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 77-83.
109
As histórias de milagre que envolvem Santa Luzia, ou Lúcia, são entre si um
pouco distintas. Segundo a Legenda Áurea,193 referência católica, sua mãe, com
hemorragias, é por ela encaminhada ao túmulo de Santa Águeda. Luzia acaba
adormecendo de frente ao túmulo e passa a sonhar com a santa; ao acordar, percebe que
sua mãe está curada. Luzia começa desde então uma trajetória de devoção e beatitude;
oferece muito de seus bens aos pobres, levando seu noivo a denunciá-la e entregá-la ao
governo anticristão de Pascácio; o governador ordena que ela seja conduzida à
perversão, mas seu corpo adquire tal peso, que homens em grande número não são
capazes de demovê-lo; por isso, torturam-na e matam-na ali mesmo. Ainda no livro de
Jacopo de Varazze, Santa Lúcia é a protetora dos olhos já que seu nome remete à luz,
que é fundamento da visão e que remete à via lucis: o caminho reto, imaculável e
propenso a imensas extensões. A tradição oral, contudo, conta que, ao ser torturada,
Luzia teve seus olhos arrancados e, como por dádiva divina, eles se refizeram em sua
face — e por isso ela seria a protetora. Outra história é a de que Luzia teria perguntado a
Pascácio qual o motivo da destemperada paixão de seu noivo e, ao responder-lhe que
era a beleza de seus olhos, Luzia mesma os arranca e os serve em um pequeno prato. É
esta a versão que embasa inúmeros quadros, de incontáveis pintores, como aquele de
Alfredo Volpi, de onde Vinicius retira inspiração para “Balada de Santa Luzia” —
conforme dedicatória no poema; a notabilidade talvez se deva à interação com
passagens bíblicas como a de Mateus (5:29-30) ou a de Marcos (9:42-47): “se o teu olho
te escandaliza, lança-o fora; melhor te é entrar no reino de Deus sem um olho, do que,
tendo dois, ser lançado no fogo do inferno, onde o seu verme não morre, e o fogo não se
apaga”.194 A partir daí, o poeta engendra a sua própria versão: uma história de amor,
trágica e grotesca;195 Luzia faz da paixão pelo Senhor — aqui, paixão também no
sentido de martírio — uma “paixão desfigurada”, uma vez que atenta contra os próprios
olhos e corrompe a sua própria imagem, tornando-a repulsiva, medonha. Sóror Luzia
serve os seus olhos ao jovem que a espiava apaixonado por entre as fendas do muro do
convento, o qual teve de galgar para tentar expor o que sentia: ele se declarava
desesperadamente, como também declarava “O seu intento sombrio/ De ali mesmo
193
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Aurea. Trad., apres., notas e sel. iconográfica de Hilário Franco Júnior.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 77-80.
194
Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966,
p.1231.
195
Estas histórias podem ser encontradas também na análise (do autor) de “Balada de Santa Luzia” em A
poesia esparsa de Vinicius de Moraes: uma leitura de inéditos de (des)conhecidos. São Paulo: Todas as
Musas, 2018, pp. 100-11 ( http://www.posvernaculas.letras.ufrj.br/images/Posvernaculas/10-publicacoes/2018/A-
Poesia-Esparsa/Ebook-A-Poesia-Esparsa-de-Vinicius-de-Daniel-Gil.pdf ).
110
apunhalar-se/ Caso Luzia não desse/ O que ele mais desejava:/ Os olhos que via em
prece”; mas, sem demora, ela se desfaz do que é motivo de escândalo:
O cavalheiro recua
Ao ver no rosto da amada
Em vez de seus olhos, duas
Crateras ensanguentadas.
196
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 496-9.
111
curiosamente heterodoxo desse tipo de imaginário nas composições. Em “Sob o trópico
do câncer”, observamos um longo poema seriado, polifônico, heterogêneo, onde são
mencionados tipos humanos os mais diversos: atriz, rei, papa, governador, general, pai,
mãe, menino, marido, avó — todos com câncer —, até Deus! Dentre as vozes que
atuam no poema, há aquela do vendedor cheio de “sotaque”, expondo variedades do
câncer e patologias; e, na parte III, surgem as vozes de uma ladainha que, em vez de
invocar a Deus ou pedir a interseção de Maria ou dos santos, opta por clamar às
enfermidades. Vinicius, ali, se aproveita dos nomes científicos dados sempre em latim,
língua empregada tradicionalmente em certas liturgias (ainda hoje nas igrejas mais
ortodoxas), para compor uma prece disparatada:
(...)
Cholera morbus
— Ora pro nobis
Vomitus cruentus
— Ora pro nobis
Empresma carditis
— Ora pro nobis
Fellis suffusio
— Ora pro nobis
Phallorrhoea virulenta
— Ora pro nobis
Gutta serena
— Ora pro nobis
Angina canina
— Ora pro nobis
Lepra leontina
— Ora pro nobis
Lupus vorax
— Ora pro nobis
Tonus trismus
— Ora pro nobis
Angina pectoris
— Ora pro nobis
Et libera nobis omnia Cancer
112
— Amen.197
Antonio Candido se refere à “Balada do Mangue” como “um dos poemas mais
belos da literatura brasileira”. E ressalta a maestria com que Vinicius dominou o verso e
suas técnicas de modo a “atualizar a tradição”; o crítico observa também que o poema é
exemplo de uma modernização que lhe permitia “tratar com um toque de
intemporalidade os temas aparentemente menos poéticos”.198 A balada retrata as
mulheres da mais conhecida zona de prostituição do Rio de Janeiro à época, cortada
pelo Canal do Mangue. “Enclausuradas sem fé”, elas eram muitas vezes vítimas do
aliciamento e da exploração sexual. Por isso, a clausura que, entre outras acepções, é o
mesmo que convento (vida religiosa em retiro religioso), no lugar de traduzir a
recolhida voluntária, espiritualizante, remete à perniciosa condição social, impingida,
objetificante, a qual se pôde definir como um claustro de sujeição e enfermidades. Não
é aleatória, entretanto, a escolha desses signos marcados pela transcendência, uma vez
que, na perspectiva do poeta, o resignado sofrimento dessas mulheres as projeta a
patamares elevados: “Como sofreis, que silêncio/ Não deve gritar em vós/ Esse imenso,
atroz silêncio/ Dos santos e dos heróis”. É invulgar tal aproximação, que aqui parece
muito genuína, entre elementos aparentemente opostos, como prostíbulo e clausura,
santos e prostitutas.
Vinicius inicia a “Balada do Mangue” fazendo uso das proparoxítonas como
recurso de realce às estranhezas. Aliadas a um vocabulário ao mesmo tempo baixo e
biológico, podemos ouvir ecos da poética de Augusto dos Anjos — onde muito se
encontra, igualmente, o mesmo artifício prosódico:
197
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 541-6.
198
CANDIDO, Antonio. Um poema de Vinicius de Moraes. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e
baladas/ Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 159-62.
199
MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta,
1946, pp. 87-89 (Anexo I, pp. 141-3).
113
gramatical sinônimo de proparoxítono. O poeta lançaria mão do recurso outras vezes,
como em “Sob o trópico do câncer” (“tarântula”, “fétida anêmona”, “homúnculo” etc.).
Mas o principal fator de desconforto ao longo do poema, com efeito, está
associado a algo que é muito presente nos grotescos ornamentais: o hibridismo. Aqui, o
arranjo se dá mais constantemente por meio de imagens florais que representam aquelas
mulheres, isto é, da combinação entre o humano e o vegetal — elas são orquídeas (lælia
tenebrosa, vanda tricolor), dálias, corolas e, indiretamente, lilases e jasmins. Isso não
explica, por si, o estranhamento; o que é mesmo inquietante emerge do fato de tais
“flores” amargarem mazelas peculiares. Afora os estados adversos que se associam
comumente ao ser humano — a pobreza, a fragilidade, a doença —, aquelas mulheres
sofrem a má sorte e os maus aspectos representativos desses vegetais: estão pensas,
murchas, cortadas, descoloridas; são tóxicas, do pólen envenenado, de “venenos
putrefatos” etc. Esse desdobramento imagético, reiterado, faz com que a equiparação
metafórica atinja uma força diferente, capaz de levar o leitor a experimentar figuras
verdadeiramente híbridas, e não meras aproximações. E o poeta complementa o painel
incluindo algumas formas animalescas, em que genitálias à mostra fazem a vez de
presas famintas em meio aos ostensivos apelos do meretrício. Apesar do marcado
expressionismo, é necessário observar a naturalidade e certa suavidade características,
apreciáveis em muito da poesia de Vinicius, que, a seu turno, jamais diminuem a
contundência do que é transmitido:
114
O poeta procura uma possível razão para a vida dessas jovens, “Vestidas de
carnaval”; e, ao fim, sugere outro tipo de transmutação, uma que pudesse aniquilar a si
mesmas e aqueles que são o motivo de tamanho infortúnio:
200
Inclusive, incorporou-se pela primeira vez a uma edição de obra reunida muito recentemente, no box
Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro (org. Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2017, pp. 457-76).
201
MORAES, Vinicius de. História natural de Pablo Neruda — A elegia que vem de longe. Xilogravuras de
Calasans Neto. Salvador: Macunaíma, 1974, p.33.
115
A descrição superlativa e o materialismo mórbido (“enormes e largadas/ E roxas
da gangrena subjacente”) se juntam ao signo da mutilação (“Ó não a amputeis, homens
de branco”) e causam uma impressão um tanto incômoda para um poema de caráter
afetuoso — que já no título mostra uma curiosa ambiguidade: a oração não é pelas
pernas, mas “para as pernas de Neruda”, emprestando uma opção de leitura em que os
membros inferiores do poeta de Canto General pudessem desfrutar talvez de algum
atributo divino. Mais à frente, o paralelo implícito entre a circulação sanguínea e o
alegre ato de beber corrobora a maneira insólita de capturar a poesia em meio ao revés
ou, ainda, às enfermidades.
São de tal forma reconhecíveis as áreas de interseção entre o grotesco e o
chamado nonsense, que seria inadvertido não observar aqui este modo de concepção,
um espírito específico tão estimado por Vinicius. Aspectos absurdos, risíveis, lúdicos,
incômodos são recorrentes nas duas esferas e, não raro, elementos mais típicos de uma
estão presentes na outra. O poeta fala sobre esse humour na crônica “O não-senso e a
falta de critério”,202 em que revela a admiração pelo poeta e artista inglês Edward Lear,
destacando a importância de seu Complete book of nonsense, onde reconhece “uma
liberdade poucas vezes encontrável no que é criação do homem”. Vinicius então
apresenta um pequeno exercício feito a quatro mãos com Maria Ethel (filha de Aníbal
Machado), emulando formalmente as composições de Lear:
Não foi à toa a percepção do poeta de que as crianças “são seres nonsensical, e
tudo o que delas se aproxima”. O poeta empregaria, anos mais tarde, essa graciosa
ilogicidade em poemas como “A casa”: “Era uma casa/ Muito engraçada/ Não tinha
teto/ Não tinha nada/ Ninguém podia/ Entrar nela não/ Porque na casa/ Não tinha chão/
Ninguém podia/ Dormir na rede/ Porque na casa/ Não tinha parede/ (...)”.203 Ou na letra
202
MORAES, Vinicius de. O cinema de meus olhos. Org., intr., e notas Carlos Augusto Calil. São Paulo:
Companhia das Letras: Cinemateca Brasileira, 1991, pp. 215-6. Obs.: Segundo o organizador, o texto foi
escrito em outubro de 1945, para o periódico Diretrizes.
203
MORAES, Vinicius de. A arca de Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970, p.74.
116
de “O pintinho”, exclusivamente do cancioneiro: “Pintinho raro/ Pintinho novo/ Tá tudo
caro/ Volta pro ovo/ (...)”.204 Não obstante, é possível verificar a fuga repentina do
senso racional também na poesia de público amplo, como, por exemplo, em “Trecho”
ou no estranhíssimo “Sombra e luz”. Este segundo é tomado de signos tradicionalmente
grotescos: morcegos, ratos; túmulos, caveira; vômito de bile, cocô; “Os mortos mortos
de frio”, “o vampiro Nosferatu etc. E parece partir da face inesperada ou mesmo
perversa do destino, dos acontecimentos; da dinâmica sentenciosa da Fortuna; da
“dança” de Deus, que por vezes é “Dança de horror”; para que então passe a explorar de
alguma forma o turbilhão de indizíveis — incompreensíveis — sensações e percepções
do poeta frente a esse contínuo de luz e sombra. Eucanaã Ferraz apresenta esse poema
como amostra de uma série de estratégias de reinvenção da língua ao longo da obra de
Vinicius, que teria a ver “com uma vasta consciência dos códigos linguísticos e com sua
exploração”. E não deixa de observar seus aspectos mais absurdos:
117
resignamo-nos e deixamos de lado nosso impulso racional. A escrita
mergulha na “sombra” absoluta: no “sem-sentido” da linguagem.205
205
FERRAZ, Eucanaã. Um poeta entre a luz e a sombra. In: Revista Língua Portuguesa, nº 26. São Paulo:
dezembro de 2007, pp. 38-44.
206
MORAES, Vinicius de. O cinema de meus olhos. Org., intr., e notas Carlos Augusto Calil. São Paulo:
Companhia das Letras: Cinemateca Brasileira, 1991, p.215.
118
quais proeminentes artistas, poetas, pensadores e escritores. As poucas considerações
que se seguem, portanto, já não ousam significados originais para o termo; por outro
lado, pretendem distribuir as noções mais consolidadas em duas categorias, ainda
inauditas, que podem contribuir na compreensão das formas com as quais se apresentam
esse fenômeno artístico: 1) a metafísica ou dionisíaca; 2) e a materialista. Nos dois
casos, consideramos que o resultado é o riso ou a repulsa, quando riso e repulsa não
surgem tipicamente combinados.
A categoria metafísica ou dionisíaca é representada sobretudo pelos ornamentos
descobertos no final do século XV (que deram nome ao conceito) e caracteriza-se pelo
viés fantástico, pela imaginação desordenada, pelo hibridismo, pelas forças
desconhecidas. Ela é dionisíaca, tendo em vista o número de elementos que se ligam à
divindade naquelas manifestações pictóricas: Dioniso é o deus da vegetação — expressa
nos arabescos —, da colheita, da vida e da fertilidade na natureza; ao mesmo tempo,
faz-se presente nos demônios da vegetação — não somente no mal tempo, mas no bode
(ou cabra) ou no touro selvagem; para além, o culto dionisíaco remete ao rompimento
dos limites entre o homem e o divino — à possessão, à fusão —, entre o natural e o
sobrenatural, o humano e o animal; como também ao delírio e à loucura.
Como se sabe, sincretismos generosos podem ser identificados entre as figuras
de Dioniso, Cernuno e Lupércio. Georges Minois trata do riso romano das lupercais e
menciona a perplexidade de Plutarco ao buscar uma razão para aqueles estranhos ritos,
comuns a esses festejos:
207
PLUTARCO. In: MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção.
São Paulo: Editora UNESP, 2003, p.99.
119
Nada pode ser mais emblemático do riso perturbador do que esse riso,
engendrado na essência do grotesco. Nesta categoria, metafísica ou dionisíaca,
acomodam-se também as manifestações conectadas com os seres lendários, o
fantasmagórico, o diabólico, o incompreensível; mas aqui se encontram igualmente o
grotesco percebido nas máscaras, na estranha dissimulação, na ilogicidade, na zombaria,
na ironia incômoda ou na linguagem absurda.
A categoria materialista, por sua vez, faz lembrar que o ser humano é um ser
biológico; explicita seu funcionamento, mas, também, os danos físicos, as degradações,
a morte — e a continuidade da matéria transformada; e faz lembrar que ele é um animal
como outros; e que tem funções fisiológicas, necessidades e desejos como esses outros.
Daqui saem muitas vezes composições em contraste com os valores transcendentais, de
modo a amplificar a contundência de sua expressão.
Os grotescos desenvolvidos a partir de feridas abertas, despedaçamentos,
vísceras, esqueletos e caveiras convocam as nossas atenções para o corpo físico,
especialmente para a frágil resistência de sua individualidade bem acabada — o
principal motivo de nosso desconforto; o mesmo acontece na representação das
doenças, dos constituintes patológicos e patologizantes. A explicitação do saudável
funcionamento de nosso aparato biológico, porém, pode causar igualmente certo
incômodo, objeção ou riso, uma vez que exponha de maneira crua a nossa afiliação ao
reino animal: despidos dos disfarces moderadores, culturais, os atos de beber e comer,
as funções digestivas, o sexo, a gravidez, o parto, os líquidos seminais, as excreções etc.
são capazes de compor centralmente imagéticas grotescas — inclusive o baixo
palavreado procedente desses elementos. E, enfim, as formas humanas, por si próprias,
quando representadas no absurdo do hiperbolismo e da caricatura, servem do mesmo
modo ao fenômeno estético. Bakhtin percebeu a existência deste viés materialista nas
manifestações grotescas ao elaborar sua análise sobre a obra de Rabelais. Entretanto, o
materialismo era um conceito demasiadamente caro ao teórico russo — adepto da
filosofia e do ideário marxista; e, por isso, a concepção da ideia de um “realismo
grotesco” acabaria optando por uma perspectiva necessariamente positiva, unilateral,
desse materialismo, o que, por conseguinte, levou-lhe a uma significação também
necessariamente positiva do próprio grotesco.
120
X. BIBLIOGRAFIA
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132
ANEXO I (TREZE POEMAS)
A ÚLTIMA PARÁBOLA
133
ARIANA, A MULHER
Quando, aquela noite, na sala deserta daquela casa cheia da montanha em torno
O tempo convergiu para a morte e houve uma cessação estranha seguida de um
[debruçar do instante para o outro instante
Ante o meu olhar absorto o relógio avançou e foi como se eu tivesse me
[identificado a ele e estivesse batendo soturnamente a Meia-Noite
E na ordem de horror que o silêncio fazia pulsar como um coração dentro do ar despojado
Senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das paredes e se plantara
[aos meus olhos em toda a sua fixidez noturna
E que eu estava no meio dela e à minha volta havia árvores dormindo e flores
[desacordadas pela treva.
Como que a solidão traz a presença invisível de um cadáver — e para mim era como
[se a Natureza estivesse morta
Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua deglutição monstruosa mas
[para mim era como se ela estivesse morta
Paralisada e fria, imensamente erguida em sua sombra imóvel para o céu alto e sem lua
E nenhum grito, nenhum sussurro de água nos rios correndo, nenhum eco nas quebradas ermas
Nenhum desespero nas lianas pendidas, nenhuma fome no muco aflorado das plantas carnívoras
Nenhuma voz, nenhum apelo da terra, nenhuma lamentação de folhas, nada.
Em vão eu atirava os braços para as orquídeas insensíveis junto aos lírios inermes
[como velhos falos
Inutilmente corria cego por entre os troncos cujas parasitas eram como a miséria da
[vaidade senil dos homens
Nada se movia como se o medo tivesse matado em mim a mocidade e gelado o
[sangue capaz de acordá-los
E já o suor corria do meu corpo e as lágrimas dos meus olhos ao contato dos cactos
[esbarrados na alucinação da fuga
E a loucura dos pés parecia galgar lentamente os membros em busca do pensamento
Quando caí no ventre quente de uma campina de vegetação úmida e sobre a qual
[afundei minha carne.
134
Foi então que eu compreendi que só em mim havia morte e que tudo estava profundamente vivo
Só então vi as folhas caindo, os rios correndo, os troncos pulsando, as flores se erguendo
E ouvi os gemidos dos galhos tremendo, dos gineceus se abrindo, das borboletas
[noivas se finando
E tão grande foi a minha dor que angustiosamente abracei a terra como se quisesse fecundá-la
Mas ela me lançou fora como se não houvesse força em mim e como se ela não me desejasse
E eu me vi só, nu e só, e era como se a traição tivesse me envelhecido eras.
Baixei à terra de joelhos e a boca colada ao seu seio disse muito docemente — Sou eu, Ariana...
Mas eis que um grande pássaro azul desce e canta aos meus ouvidos — Eu sou Ariana!
E em todo o céu ficou vibrando como um hino o muito amado nome de Ariana.
Desesperado me ergui e bradei: Quem és que te devo procurar em toda a parte e
[estás em cada uma?
Espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte, por que não serias uma?
Por que me persegues e me foges e por que me cegas se me dás uma luz e restas longe?
E eis que galgando um monte surgiram luzes e após janelas iluminadas e após
[cabanas iluminadas
E após ruas iluminadas e após lugarejos iluminados como fogos no mato noturno
E grandes redes de pescar secavam às portas e se ouvia o bater das forjas.
E perguntei: Pescadores, onde está Ariana? — e eles me mostravam o peixe
Ferreiros, onde está Ariana? — e eles me mostravam o fogo
Mulheres, onde está Ariana? — e elas me mostravam o sexo.
135
Mas logo se ouviam gritos e danças, e gaitas tocavam e guizos batiam
Eu caminhava, e aos poucos o ruído ia se alongando à medida que eu penetrava na savana
No entanto era como se o canto que me chegava entoasse — Ariana!
E pensei: Talvez eu encontre Ariana na Cidade de Ouro! — por que não seria Ariana
[a mulher perdida?
Por que não seria Ariana a moeda em que o obreiro gravou a efígie de César?
Por que não seria Ariana a mercadoria do Templo ou a púrpura bordada do altar do Templo?
E mergulhei nos subterrâneos e nas torres da Cidade de Ouro mas não encontrei Ariana
Às vezes indagava — e um poderoso fariseu me disse irado: — Cão de Deus, tu és Ariana!
E talvez porque eu fosse realmente o Cão de Deus não compreendi a palavra do homem rico
Mas Ariana não era a mulher, nem a moeda, nem a mercadoria, nem a púrpura
E eu disse comigo: Em todo lugar menos que aqui estará Ariana
E compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana.
Então cantei: Ariana, chicote de Deus castigando Ariana! e disse muitas palavras inexistentes
E imitei a voz dos pássaros e espezinhei sobre a urtiga mas não espezinhei sobre a cicuta santa
Era como se um raio tivesse me ferido e corresse desatinado dentro de minhas entranhas
As mãos em concha, no alto dos morros ou nos vales eu gritava — Ariana!
E muitas vezes o eco ajuntava: Ariana... ana...
E os trovões desdobravam no céu a palavra — Ariana.
E como a uma ordem estranha, as serpentes saíam das tocas e comiam os ratos
Os porcos endemoninhados se devoravam, os cisnes tombavam cantando nos lagos
E os corvos e abutres caíam feridos por legiões de águias precipitadas
E misteriosamente o joio se separava do trigo nos campos desertos
E os milharais descendo os braços trituravam as formigas no solo
E envenenadas pela terra descomposta as figueiras se tornavam profundamente secas.
136
Mas como quisessem me correr eu falava olhando a dor e a maceração dos corpos
Não temas, povo escravo! A mim me morreu a alma mais do que o filho e me
[assaltou a indiferença mais do que a lepra
A mim se fez pó a carne mais do que o trigo e se sufocou a poesia mais do que a vaca magra
Mas é preciso! para que surja a Exaltada, a branca e sereníssima Ariana
A que é a lepra e a saúde, o pó e o trigo, a poesia e a vaca magra
Ariana, a mulher — a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem-amada!
E à medida que o nome de Ariana ressoava como um grito de clarim nas faces paradas
As crianças se erguiam, os cegos olhavam, os paralíticos andavam medrosamente
E nos campos dourados ondulando ao vento, as vacas mugiam para o céu claro
E um só clamor saía de todos os peitos e vibrava em todos os lábios — Ariana!
E uma só música se estendia sobre as terras e sobre os rios — Ariana!
E um só entendimento iluminava o pensamento dos poetas — Ariana!
137
BALADA FEROZ
Arranca do mais fundo a tua pureza e lança-a sobre o corpo felpudo das aranhas
Ri dos touros selvagens, carregando nos chifres virgens nuas para o estupro nas montanhas
Pula sobre o leito cru dos sádicos, dos histéricos, dos masturbados e dança!
Dança para a lua que está escorrendo lentamente pelo ventre das menstruadas.
Dança, ó desvairado! Dança pelos campos aos rinchos dolorosos das éguas parindo
Mergulha a algidez deste lago onde os nenúfares apodrecem e onde a água floresce em miasmas
Fende o fundo viscoso e espreme com tuas fortes mãos a carne flácida das medusas
E com teu sorriso inexcedível surge como um deus amarelo da imunda pomada.
Salta como um fauno puro ou como um sapo de ouro por entre os raios do sol frenético
Faz rugir com o teu calão o eco dos vales e das montanhas
Mija sobre o lugar dos mendigos nas escadarias sórdidas dos templos
E escarra sobre todos os que se proclamarem miseráveis.
138
Canta! canta demais! Nada há como o amor para matar a vida
Amor que é bem o amor da inocência primeira!
Canta! — o coração da Donzela ficará queimando eternamente a cinza morta
Para o horror dos monges, dos cortesãos, das prostitutas e dos pederastas.
139
Em breve estará perdida
Quando eu quiser respirar.
140
Não há como desmanchar
O laço que os pés me prende!
BALADA DO MANGUE
141
Não sois Lælia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilinguidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé.
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
142
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto-morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!
Silêncio da madrugada
No Edifício Miramar...
Sentada em frente à janela
Nua, morta, deslumbrada
Uma moça mira o mar.
143
Ninguém sabe quem é ela
Nem ninguém há de saber
Deixou a porta trancada
Faz bem uns dois cinco dias
Já começa a apodrecer
Seus ambos joelhos de âmbar
Furam-lhe o branco da pele
E a grande flor do seu corpo
Destila um fétido mel.
144
Enquanto o mar tece a trama
Desse conúbio lunar
Depois é o sol violento
O sol batido de vento
Que vem com furor violeta
A moça violentar.
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Ocos, flácidos cadáveres
145
Como espantalhos, largados
Na sementeira espectral
Dos ermos campos estéreis
De Buchenwald e Dachau.
Cadáveres necrosados
Amontoados no chão
Esquálidos enlaçados
Em beijos estupefatos
Como ascetas siderados
Em presença da visão.
Cadáveres putrefatos
Os magros braços em cruz
Em vossas faces hediondas
Há sorrisos de giocondas
E em vossos corpos, a luz
Que da treva cria a aurora.
Cadáveres fluorescentes
Desenraizados do pó
Que emoção não dá-me o ver-vos
Em vosso êxtase sem nervos
Em vossa prece tão só
Grandes, góticos cadáveres!
Ah, doces mortos atônitos
Quebrados a torniquete
Vossas louras manicuras
Arrancaram-vos as unhas
No requinte de tortura
Da última toalete...
A vós vos tiraram a casa
A vós vos tiraram o nome
Fostes marcados a brasa
E vos mataram de fome!
Vossa peles afrouxadas
Sobre os esqueletos dão-me
A impressão que éreis tambores —
Os instrumentos do Monstro —
Desfibrados a pancada:
146
Ó mortos de percussão!
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Vós sois o húmus da terra
De onde a árvore do castigo
Dará madeira ao patíbulo
E de onde os frutos da paz
Tombarão no chão da guerra!
147
Mas que conseguiu despertar o interesse do Reumatismo Deformante.
Deitado num banco de pedra, a cabeça no colo de sua mãe, o olhar infinitamente ausente
Um blue boy extingue em longas espirais invisíveis
A cera triste de sua matéria inacabada — a culpa hereditária
Transformou a moça numa boneca sem cabimento.
O banhista, atlético e saudável
Recolhe periodicamente nos braços os despojos daquelas vidas
Coloca-os em suas cadeiras de rodas, devolve-os a guardiães expectantes
E lá se vão eles a enfrentar o que resta de mais um dia
E dos abismos da memória, sentados contra o deserto
O grande deserto nu e só, coberto de calcificações anômalas
E arbustos ensimesmados; o grande deserto antigo e áspero
Testemunha das origens; o grande deserto em luta permanente contra a morte
Habitado por plantas e bichos que ninguém sabe como vivem
Varado por ventos que vêm ninguém sabe donde.
A BOMBA ATÔMICA
e = mc2
Einstein
I
Dos céus descendo
Meu Deus eu vejo
De paraquedas?
Uma coisa branca
Como uma forma
De estatuária
Talvez a fôrma
Do homem primitivo
A costela branca!
148
Talvez um seio
Despregado à lua
Talvez o anjo
Tutelar cadente
Talvez a Vênus
Nua, de clâmide
Talvez a inversa
Branca pirâmide
Do pensamento
Talvez o troço
De uma coluna
Da eternidade
Apaixonado
Não sei, indago
Dizem-me todos
É a BOMBA ATÔMICA
Quisera tanto
Por um momento
Tê-la em meus braços
A coma ao vento
Descendo nua
Pelos espaços
Descendo branca
Branca e serena
Como um espasmo
Fria e corrupta
Do longo sêmen
Da Via Láctea
Deusa impoluta
O sexo abrupto
Cubo de prata
Mulher ao cubo
Caindo aos súcubos
Intemerata
149
Carne tão rija
De hormônios vivos
Exacerbada
Que o simples toque
Pode rompê-la
Em cada átomo
Numa explosão
Milhões de vezes
Maior que a força
Contida no ato
Ou que a energia
Que expulsa o feto
Na hora do parto.
II
A bomba atômica é triste
Coisa mais triste não há
Quando cai, cai sem vontade
Vem caindo devagar
Tão devagar vem caindo
Que dá tempo a um passarinho
De pousar nela e voar...
Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar!
150
Flor puríssima do urânio
Desabrochada no chão
Da cor pálida do helium
E odor de radium fatal
Lælia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.
III
Bomba atômica, eu te amo! és pequenina
E branca como a estrela vespertina
E por branca eu te amo, e por donzela
De dois milhões mais bélica e mais bela
Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa
Atroz, visão dos céus que me domina
Da cabeleira loura de platina
E das formas aerodivinais
— Que és mulher, que és mulher e nada mais!
Eu te amo, bomba atômica, que trazes
Numa dança de fogo, envolta em gazes
A desagregação tremenda que espedaça
A matéria em energias materiais!
Oh energia, eu te amo, igual à massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! alta e violenta potestade
Serena! Meu amor… desce do espaço
Vem dormir, vem dormir no meu regaço
Para te proteger eu me encouraço
151
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? Tua enérgica poesia
Fora preciso, oh deslembrada e fria
Para a paz? Tua fragílima epiderme
Em cromáticas brancas de cristais
Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe
Da união que liberta da miséria!
Oh vida palpitando na matéria
Oh energia que és o que não eras
Quando o primeiro átomo incriado
Fecundou o silêncio das Esferas:
Um olhar de perdão para o passado
Uma anunciação de primaveras!
BALADA NEGRA
152
Ao negro corpo paterno
Eu vinha muito abraçado
Enquanto o cavalo lerdo
Negramente caminhava.
Meus olhos escancarados
De medo e negra friagem
Eram buracos na treva
Totalmente impenetrável.
Às vezes sem dizer nada
O grupo equestre estacava
E havia um negro silêncio
Seguido de outros mais vastos.
O animal apavorado
Fremia as ancas molhadas
Do negro orvalho pendente
De negras, negras ramadas.
Eu ausente de mim mesmo
Pelo negrume em que estava
Recitava padre-nossos
Exorcizando os fantasmas.
As mãos da brisa silvestre
Vinham de luto enluvadas
Acarinhar-me os cabelos
Que se me punham eriçados.
As estrelas nessa noite
Dormiam num negro claustro
E a lua morta jazia
Envolta em negra mortalha.
Os pássaros da desgraça
Negros no escuro piavam
E a floresta crepitava
De um negror irremediável.
As vozes que me falavam
Eram vozes sepulcrais
E o corpo a que eu me abraçava
Era o de um morto a cavalo.
O cavalo era um fantasma
153
Condenado a caminhar
No negro bojo da noite
Sem destino e a nunca mais.
Era eu o negro infante
Condenado ao eterno báratro
Para expiar por todo o sempre
Os meus pecados da carne.
Uma coorte de padres
Para a treva me apontava
Murmurando vade-retros
Soletrando breviários.
Ah, que pavor negregado
Ah, que angústia desvairada
Naquele túnel sem termo
Cavalgando sem cavalo!
154
Eu na garupa enganchado!
Apertei-o fortemente
Cheio de amor e cansaço
Enquanto o bosque se abria
Sobre o luminoso vale...
E assim fui-me ao sono, certo
De que meu pai estava perto
E a manhã se anunciava.
155
Foram por montes e por vales
E tanto a Morte se aprazia
Que fosse o mundo só de Ovalles
E nunca mais ninguém morria.
156
O PRANTEADO
Penteiem direito
Os cabelos do morto
E ajeitem-lhe o olho
Que está meio torto
Estiquem-lhe a pele
Com fita colante
Para que ele fique
Mais moço que antes.
157
— Que morto mais brando!
— Que morto mais morto!
E façam-lhe as unhas
Com um tom de bom gosto
Cueca, camisa
E gravata fosca
Enfiem-lhe o colete
E o que de mais resta
E o seu terno escuro
Da última festa.
E ponham o morto
Dentro de um caixão
E preguem-no a prego
Pelo sim e pelo não
E desçam o caixão
A uma sepultura
Escavada em sete
Metros de fundura.
E deitem-lhe cal
E joguem-lhe terra
Que morto não fala
Que morto não berra
E ponham depois
Uma pedra em cima
E vão falar quietos
No café da esquina.
158
— Que o morto está quieto!
— Que o morto está firme!
E pensem, e cogitem
E matem-se aos poucos
E chorem e se agitem
Até ficar loucos
Que dentro do túmulo
Feito em escuridão
Já se ouvem uns sons ocos
Vindos do caixão
159
O gosto de tudo é pobre.
Liga o rádio, lava o rosto
Põe um disco na vitrola
Os amigos telefonam
O poeta nem dá bola
O simpatil não o relaxa
O violão não o consola.
O poeta sozinho acha
A vida sem sua Amada
Uma grandíssima bosta.
E é então que de repente
Soa a campainha da porta.
O poeta não compreende
Quem pode ser a essas horas...
E abre; e se surpreende
Ao ver surgir dos batentes
Sua velha amiga, a Morte
Usando um negro trapézio
E sombra verde nas órbitas.
Ao redor das omoplatas
Um colar de quatro voltas
E as falangetas pintadas
Com um esmalte de tom sóbrio.
O poeta acha-a mais mundana
No auge da última moda
Com a maquilagem romana
E os quatro metros de roda.
A Morte lânguida o enlaça
Com todo o amor de seus ossos
Insinuando no poeta
Sua bacia e sua rótula.
Ao poeta, de tão sozinho
Tudo pouco se lhe importa
E por muito delicado
Faz um carinho na Morte.
A Morte gruda-se a ele
Beija-o num louco transporte
160
O poeta serve-lhe um uísque
Muda o disco na vitrola.
A Morte sorri feliz
Como quem canta vitória
Ao ver o poeta tão triste
Tão fraco, tão provisório.
Enche-lhe bem a caveira
Sai dançando um rock-and-roll
Retorcendo-se do cóccix
E trescalando a necrose.
Depois senta-se ao seu lado
Faz-lhe uma porção de histórias...
O poeta deixa, infeliz
Sentindo o seu organismo
Ir aderindo ao da Morte.
Começa a inchar o seu fígado
Seu coração bate forte
Seu ventre tem borborigmos
Sente espasmos pelo cólon.
O poeta fuma que fuma
O poeta sofre que sofre
Sai-lhe o canino do alvéolo
Sua pele se descolore.
A Morte toma-lhe o pulso
Ausculta-o de estetoscópio
Apalpa a sua vesícula
Olha-lhe o branco dos olhos.
Nas suas artérias duras
Há sintomas de esclerose
Seu fígado está perfeito
Para uma boa cirrose.
Quem sabe câncer do sangue
Quem sabe arteriosclerose...
A Morte está satisfeita
Ao lado do poeta deita
E dorme um sono de morte.
161
E é então que de repente
Soa a campainha de fora.
O poeta não compreende
Quem pode ser a essas horas...
A Morte se deixa à espreita
Envolta no seu lençol
Enquanto gira o poeta
A maçaneta da porta.
A Amada entra como o sol
Como a chuva, como o mar
Envolve o poeta em seus braços
Seus belos braços de carne
Beija o poeta com sua boca
Com sua boca de lábios
Olha o poeta com seus olhos
Com seus olhos de luar
Banha-o todo de ternura
De uma ternura de água.
Não veste a Amada trapézio
Nem outra linha qualquer
Não está de cal maquilada
Nem usa sombra sequer.
A Amada é a coisa mais linda
A Amada é a coisa mais forte
A Amada é a coisa mulher.
A Morte, desesperada
Num transporte de ciúme
Atira-se contra a Amada.
A Amada luta com a Morte
Da meia-noite à alvorada
Morde a Morte, mata a Morte
Joga a Morte pela escada
Depois vem e se repousa
Tendo o poeta ao seu lado
E sorri, conta-lhe coisas
Para alegrar seu estado
162
E entreabre seu corpo moço
Para acolher seu amado.
O poeta sente seu sangue
Circular desafogado
Sua pressão baixa a 12
Seu pulso bate normal
De seu fígado a cirrose
Faz a pista apavorada
A matéria esclerosante
Fica desesclerosada
Desaparece a extrassístole
Seu cólon cala os espasmos
Equilibra-se de súbito.
Todo o seu vagossimpático
Corre-lhe o plasma contente
Cheio de rubras hemátias
O dente ajusta-se ao alvéolo
Fica-lhe a pele rosada.
Tudo isso porque o poeta
Não é poeta, não é nada
Quando a sua bem-amada
Larga-o à Morte, se ausente
De sua luz e do seu ar
Por isso que a ausência é a morte
É a morte mais tristemente
É a morte mais devagar.
163
ANEXO II (ICONOGRAFIA)
GROTESCOS DA ANTIGUIDADE
164
Roma, Domus Augusti
165
Roma, Domus Aurea
166
GROTESCOS DA IDADE MÉDIA
167
DOMUS AUREA REDESCOBERTA (SÉC. XV e XVI)
168
Parma, Mosteiro de San Paolo (Alessandro Araldi)
169
Catedral de Orvieto, Capela San Brizio (Luca Signorelli)
170
Padova, complexo arquitetônico Loggia e Odeon Cornaro
171
Detalhe do “Tríptico das delícias” (pintura à óleo), de Hieronymus Bosch
172
GROTESCOS HOJE
173
Detalhe das esquadrias de uma creche — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ
174
Detalhe das esquadrias
175
Loja de produtos para crianças em um shopping — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ
http://www.danielgil.com.br
e-mail: danielgil@danielgil.com.br
176