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Os Puritanos e a Lei Moral: uma resposta ao antinomianismo

Copyright © 2019 EDITORA OS PURITANOS


Palestras proferidas por ocasião do 28.º Simpósio Reformado Os Puritanos 2019, cedidas
e adaptadas pelo autor.
1.a edição em português: 2019
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora OS PURITANOS.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios sem
permissão por escrito dos editores, salvo em breves citações, com indicação de fonte.
Produção Editorial
Editor: Manoel Canuto
Revisora: Anna Maria Barros de Azevedo
Designer: Heraldo Almeida
www.editoraclire.com.br
SUMÁRIO

Capa
Sumário
Introdução
O Antinomianismo na História
A Doutrina Antinomiana
Os Puritanos e seu Entendimento da Lei Moral
Conclusão
A Lei de Deus: uma perfeita regra de justiça
A Perfeição da Lei Moral
Conclusão
Nossos livro
Mídias
SUMÁRIO

Capa
Sumário
Introdução
O Antinomianismo na História
A Doutrina Antinomiana
Os Puritanos e seu Entendimento da Lei Moral
Conclusão
A Lei de Deus: uma perfeita regra de justiça
A Perfeição da Lei Moral
Conclusão
Nossos livro
Mídias
INTRODUÇÃO

Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim
para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem,
nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele,
pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim
ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele,
porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos
céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos
escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. (Mateus 5.17-20)

Se há uma acusação que frequentemente cai sobre os reformados


confessionais é a de legalismo. Há uma tendência de, sempre que
enfatizamos a obediência à Palavra de Deus e, de uma forma,
normatizada, aos nossos padrões doutrinários, sermos rotulados
como legalistas farisaicos e até mesmo neonomistas.
Inegavelmente, o legalismo é um pecado a respeito do qual nós
precisamos estar atentos. É verdade que no nosso coração há
combustível suficiente para nos colocarmos em oposição à graça de
Deus em Jesus Cristo, e confiarmos em nossa própria justiça, em
nossas boas obras tanto para sermos aceitos por Deus e perdoados
dos nossos pecados, como também para podermos continuar
desfrutando do seu amor.
Exatamente por essa razão é relativamente fácil encontrarmos
publicações a respeito do perigo do legalismo, enquanto não
encontramos quase nada sobre o antinomianismo. Alguns livros
foram publicados recentemente em inglês, mas não temos nada em
português, com exceção de um livro publicado recentemente, de
autoria do Pr. Sinclair Ferguson.
Mas algo que tem chamado a atenção é de quem, normalmente
vêm essas acusações. Quem é que faz esse tipo de acusação?
Normalmente elas partem de pessoas que acreditam firmemente
que, em virtude da obra redentiva de Jesus, os cristãos não
possuem mais qualquer obrigação em relação à lei moral.
Normalmente a acusação de legalismo flui de lábios e corações
antinomianos. Também é interessante que tais queixas são feitas
sempre no contexto da discussão e da afirmação da perpetuidade
do dever de guardarmos o dia do Senhor como o nosso sábado
cristão, como um santo repouso.
Com muita frequência, os acusadores acabam por incidir no erro
reverso ao cometido por um dos grandes nomes do puritanismo.
Richard Baxter é amplamente conhecido pelo seu ministério
abençoado na cidade de Kidderminster, na Inglaterra. Seus escritos
práticos e pastorais são apreciados e amados por todos aqueles
que os leem. Não obstante, Richard Baxter esteve no centro de uma
grande controvérsia a respeito da doutrina da justificação pela fé
somente, batendo de frente com ninguém menos que outro gigante
puritano: John Owen.1 Baxter acreditava que tinha sido chamado
por Deus para livrar o mundo reformado do antinomianismo
teológico encontrado em muitas publicações e púlpitos na sua
época. Ele enxergava que o antinomianismo levaria as pessoas a
uma vida de libertinagem, e ele temia que a pregação da justificação
somente pela graça mediante a fé na obra de Jesus Cristo
conduzisse as pessoas a um completo descuido com a piedade
pessoal.
O problema foi que o remédio oferecido por Baxter foi tão ruim
quanto a doença antinomiana. Sua visão da justificação ficou
conhecida como teonomismo, por ensinar que a morte de Jesus nos
habilitou a cumprirmos a lei para a nossa própria justificação. Por
ser esse o seu posicionamento, isso também é conhecido como
baxterianismo. Consequentemente, a justificação não podia ser
entendida como um ato completado na presente vida. Baxter
afirmou: “Nem perdão nem justificação são perfeitos antes da
morte”.2
É inútil combater um erro com outro: antinomianismo com o
legalismo. Eles não são opostos entre si, mas estão unidos contra
um correto entendimento de como a lei do Senhor deve ser usada
pelos cristãos. Sua oposição está quanto a lei e a graça de Deus.
Portanto, é inútil combater o legalismo adotando uma postura de
repúdio à lei moral, como se a morte de Jesus Cristo pusesse fim a
qualquer tipo de relacionamento entre o crente e a lei moral.
Não obstante, vivemos um período no qual boa parte da igreja
evangélica no Btasil enxerga uma completa descontinuidade entre o
cristão e seu relacionamento com a lei moral. Há algum tempo
houve uma discussão interessante numa rede social. Uma moça
deixou uma pergunta no sentido de se ainda devemos guardar o dia
de descanso, uma vez que Jesus é o nosso descanso. A resposta
oferecida por um teólogo e pastor, foi: “Podemos”. Percebam: não
se trata de um dever do cristão, ainda que motivado pelo amor e
pela gratidão a Deus. Trata-se de algo opcional. Podcasts afirmando
essa descontinuidade têm sido produzidos e, como consequência,
nossa própria juventude, tem tido semeadas em seu coração as
sementes da dúvida e da infidelidade confessional.
O Pr. Kevin DeYoung chegou a afirmar que o antinomianismo
“não é um fantasma, um espantalho ou um erro inexistente nos
nossos dias”.3 Em nosso meio é possível encontrarmos ministros e
presbíteros com grandes escrúpulos a respeito de como
compreender nosso relacionamento com a lei de Deus. E isto, em
muitas ocasiões, se deve a uma forma de antinomianismo
tacitamente abrigada no coração.
Nesta obra, procuraremos conhecer um pouco mais a respeito
do que é o antinomianismo, como ele se apresenta na igreja
evangélica e a maneira como os puritanos, em seu entendimento do
terceiro uso da lei moral, podem nos ajudar contra essa heresia tão
perniciosa quanto o legalismo. Observaremos, em primeiro lugar,
um pouco do desenvolvimento histórico do antinomianismo e alguns
movimentos associados, como o dispensacionalismo e a teologia da
nova aliança, para, em segundo lugar, observarmos a preciosa
contribuição dos nossos irmãos puritanos.

1 Joel Beeke e Mark Jones afirmam que Richard Baxter foi o mais famoso adversário
teológico de John Owen. Cf. Teologia Puritana. São Paulo: Vida Nova, 2016. p. 713.
2 Richard Baxter. An End of Doctrinal Controversies which have Lately Troubled the
Churches by Reconciling Explication without much Disputing. Londres, 1691. p. 255.
3 Kevin DeYoung. “Antinomianism: It’s Bigger than You Think”. Disponível em:
<https://www.thegospelcoalition.org/blogs/kevin-deyoung/antinomianism-its-bigger-than-
you-think/>.
O ANTINOMIANISMO NA HISTÓRIA

Quando surgiu o antinomianismo? Apresentar uma definição e


traçar o desenvolvimento histórico do antinomianismo são tarefas
complicadas. No que diz respeito à definição, a dificuldade reside
em diversas peculiaridades e nuances existentes no
antinomianismo, pois não se trata de um movimento unificado.
Especialmente durante o século XVII, Joel Beeke e Mark Jones
destacam que “às vezes os adversários do antinomianismo
empregavam o termo sem muito cuidado”.4 Apesar da dificuldade
envolvida, Beeke e Jones afirmam que o antinomianismo possui
uma característica essencial que nos permite traçar a linha divisória
entre ele e a ortodoxia reformada: “a linha divisória óbvia girava em
torno de a pessoa rejeitar ou não a lei moral como regra de vida
para os crentes”.5 Um teólogo escocês do século XIX, chamado
John Duncan, conhecido como “Rabbi Duncan”, afirmou que existe
uma única heresia no mundo, sendo esta o antinomianismo, já que
todo pecado, incluindo a heresia, é contra a lei de Deus.
Na sua obra dedicada inteiramente ao assunto, Mark Jones
afirma que Adão e Eva foram os primeiros antinomianos da história:
“No jardim, ele foi contra (anti) a lei de Deus (nomos) quando
transgrediu por falhar em guardar o jardim e proibir a sua esposa de
comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. O próprio
antinomianismo [teológico] de Eva (Gn 3.2-3) levou ao
antinomianismo prático (3.6)”.6 Por essa perspectiva, o
antinomianismo teve a sua origem nos nossos primeiros pais. Jones
também chama a nossa atenção para o fato de que o
antinomianismo de nossos pais originais teria sido uma resposta ao
legalismo de Satanás, “que, intencionalmente, atribuiu um sentido
mau à graciosa benevolência de Deus para com Adão e Eva e fez
de Deus um legalista, refletindo o seu próprio coração”.7 O Pr.
Sinclair Ferguson, de maneira bastante perspicaz, afirma que
legalismo e antinomianismo são irmãos gêmeos não idênticos,
gerados no mesmo ventre, a saber, a mentira de Satanás no jardim
do Éden.
Quando avançamos nas Escrituras podemos perceber uma
forma de antinomianismo sendo combatida também pelo apóstolo
Paulo, em Romanos 6.1-2: “Que diremos, pois? Permaneceremos
no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo
nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele
morremos?”.
Ao longo da história, diversos personagens e movimentos
apresentaram traços antinomianos. Todavia, de maneira formal, o
antinomianismo surge durante o período da Reforma Protestante,
com um dos discípulos de Martinho Lutero e líder ativo da reforma
luterana, Johannes Agricola (1492-1566). O grande desejo de
Agricola era combater, de modo eficaz, a doutrina semipelagiana do
Catolicismo Romano8 e defender a doutrina da justificação pela fé
somente. Dessa forma, ele acabou negando “que o crente é, de
algum modo, obrigado a guardar a lei moral”.9 Por volta de 1520,
Agricola começou uma disputa com Philip Melanchthon (1497-
1560), a respeito do relacionamento entre a lei e o evangelho. O
ponto de discórdia entre os dois, inicialmente, era se a lei também
deveria ser anunciada na pregação. Agricola acreditava que apenas
o evangelho deveria ser pregado, pois apenas o evangelho produz o
arrependimento. Por essa razão, ele atacou a famosa obra de
Melanchthon, Loci Communes, na qual os três usos da lei eram
ensinados e a pregação dos dez mandamentos era vigorosamente
recomendada.
Posteriormente, no ano de 1537, Agricola travou uma disputa
com o próprio Lutero, em Wittenberg, na qual afirmou que o “homem
era salvo pela fé somente, sem levar em conta o seu caráter
moral”.10 É no contexto dessa disputa que o termo “antinomianismo”
vai ser usado pela primeira vez, justamente por Lutero, que
escreveu uma obra, no ano de 1539, intitulada Contra os
Antinomianos, na qual denuncia com uma retórica inflamada os
ensinamentos de Agricola. Lutero, com postura que lhe era peculiar,
referiu-se a Agricola e a todos aqueles que o seguiram como “falsos
irmãos”.
O que é irônico nisso tudo é que, de acordo com Mark Jones, o
grande herói dos teólogos antinomianos ingleses do século XVII não
era João Calvino. Era Lutero.11 Frequentemente os teólogos
antinomianos fizeram apelos às obras de Lutero, especificamente à
distinção entre Lei e Evangelho feita pelo reformador alemão. Mas é
preciso ser justo com Lutero e entender que sua linguagem é
apenas ambígua. Ele não defendeu que a lei moral não possui mais
qualquer utilidade para a vida cristã. Um estudioso chamado David
Como fez um estudo nesse sentido, e fez uma afirmação bem
interessante:

Lutero confessou que em alguns dos seus escritos mais antigos


tinha, de fato, afirmado a noção de que os crentes estavam
livres da Lei, mas alegou que essa retórica excessiva tinha sido
necessária para livrar os homens da escravidão das obras de
justiça da teologia papal. “Agora, entretanto, quando os tempos
são mais diferentes daqueles sob o Papa”, tal retórica não era
mais necessária, e se mal compreendida, poderia levar os
homens a uma segurança amoral, carnal, que ameaçaria... a
ordem moral e social.12

Os catecismos de Lutero são suficientes para provar isso, pois


ambos iniciam com a exposição dos dez mandamentos e sua
aplicabilidade para a vida cristã. Além disso, em sua obra Contra os
Antinomianos, Lutero fala da necessidade da lei para os crentes “em
virtude das reminiscências do pecado. Pois assim como o pecado e
a morte jamais se calam, mas continuam perturbando e contristando
os piedosos enquanto aqui vivem, assim a lei continua a retornar e
aterrorizar as consciências dos piedosos”.13 Por esta razão, diz
Lutero, a lei “deve ser conservada e fielmente inculcada” na igreja.14
Lutero fez uma afirmação impressionante sobre a sua objeção aos
pregadores antinomianos, afirmando que eles eram “bons
pregadores da Páscoa, mas infames pregadores do Pentecostes,
pois ensinavam apenas a redenção através de Cristo, mas não a
santificação através do Espírito Santo”.15
Na Inglaterra, no período do puritanismo, para usar as palavras
de Richard Baxter: “O antinomianismo surgiu entre nós da nossa
obscura pregação da graça evangélica”.16 Algo que precisamos ter
bem fixado em nossas mentes é que o antinomianismo na Inglaterra
do século XVII foi, de maneira específica, uma reação à piedade
puritana. E aquilo que aconteceu no século XVII é a mesma coisa
que acontece nos dias de hoje, pois como coloca Mark Jones,
aqueles, hoje, que acusam os puritanos de legalismo “estão
simplesmente ecoando um padrão bem estabelecido no século XVII
pelos teólogos antinomianos, que arremessaram o epíteto ‘legalista’
[...] contra aqueles que eram profundamente reformados em sua
teologia”.17
O primeiro antinomiano nesse período foi um homem chamado
John Eaton (1574/5-1630/31), que escreveu uma obra intitulada,
numa tradução livre, O Favo de Mel da Livre Justificação por Cristo
Somente, cuja principal tese era que “Deus não vai, não irá, não
pode ver qualquer pecado em qualquer dos seus filhos
justificados”.18 E a ideia de Eaton não era que Deus vê os seus
filhos vestidos com o manto da justiça perfeita do Senhor Jesus.
Antes, a ideia é que Deus não mais reage a qualquer pecado
cometido pelos seus filhos. Em outros momentos, Eaton não hesitou
em afirmar que “os crentes estavam livres da natureza
pecaminosa”19, bem como negar o aspecto diplêurico ou condicional
do Pacto da Graça, em sua administração.
Um dos principais antinomianos, senão o principal, daquele
período foi Tobias Crisp (1600-1643). Algumas vezes o
antinomianismo é chamado de “Crispianismo”, tamanha a sua
influência. No início do seu ministério, Crisp era conhecido por ser
um fervoroso pregador da lei. Alguns biógrafos afirmam que,
incialmente, sua visão acerca da graça de Cristo era
excessivamente baixa e embebida de sentimentos que o
encharcaram de uma sensação de justiça própria. Posteriormente,
ao tomar conhecimento das doutrinas da graça, Crisp ficou chocado
com seus próprios posicionamentos legalistas. Sua reação? Foi
para o extremo oposto.20 Tão oposto foi esse extremo, que ele
chegou ao ponto de defender a doutrina da justificação desde a
eternidade, afirmando, por exemplo, “que os eleitos que são
justificados por Deus são justificados e reconciliados com Deus
antes de crer”.21 Seu nome entrou para o rol como um dos
campeões do antinomianismo.
Eu gostaria apenas de mencionar que o antinomianismo foi o
objeto de uma controvérsia ocorrida no seio da Igreja da Escócia, no
início do século XVIII, por volta de 1717 e 1726. O gatilho para essa
controvérsia foi a republicação de uma obra escrita por um puritano
chamado Edward Fisher, intitulada The Marrow of Modern Divinity,
razão pela qual ficou conhecida como The Marrow Controversy. “A
raiz da polêmica era a dificuldade perene de estabelecer uma
relação adequada entre obras e graça, lei e evangelho, não apenas
em nossa teologia sistemática, mas também em nossa pregação, no
ministério pastoral e, acima de tudo, em nosso coração”.22 Trata-se
de um episódio que vale a pena conhecer, posteriormente, uma vez
que envolveu puritanos renomados como Thomas Boston e os
irmãos Erskine.
Quais as afirmações teólogicas do antinomianismo? É o que
veremos a seguir.

4 Joel R. Beeke e Mark Jones. Teologia Puritana: Doutrina para a Vida. São Paulo: Vida
Nova, 2016. p. 473.
5 Ibid.
6 Mark Jones. Antinomianism: Reformed Theology’s Unwelcome Guest? Phillipsburg, NJ:
Presbyterian and Reformed Publishing, 2013. p. 1.
7 Ibid.
8 O grande lema do semipelagianismo medieval era: “Àquele que faz o seu melhor, Deus
não negará a sua graça”. Tudo começa com o esforço próprio do indivíduo. Deus, então, vê
o esforço e a sinceridade, e recompensa-o.
9 Ernest Kevan. The Grace of Law: A Study in Puritan Theology. Grand Rapids, MI: Soli
Deo Gloria Publications, 2011. p. 23.
10 Ibid.
11 Mark Jones. Antinomianism. p. 4.
12 David Como. Blown by the Spirit: Puritanism and the Emergence of na Antinomian
Underground in Pre-Civil-War England. Stanford: Stanford University Press, 2004. p. 113.
Apud in Mark Jones. Antinomianism. pp. 4-5.
13 Martinho Lutero. Obras Selecionadas: Debates e Controvérsias II. Vol. 4. São Leopoldo,
RS: Comissão Interluterana de Literatura, 1993. p. 402.
14 Ibid.
15 Mark Jones. Antinomianism. p. 5.
16 Apud in Ernest Kevan. The Grace of Law. p. 23.
17 Mark Jones. Antinomianism. p. 7.
18 Ernest Kevan. The Grace of Law. p. 26.
19 Joel Beeke e Mark Jones. Teologia Puritana. p. 473.
20 Ernest Kevan. The Grace of Law. p. 27.
21 Joel Beeke e Mark Jones. Teologia Puritana. p. 475.
22 No prefácio de Sinclair Ferguson. Somente Cristo: Legalismo, Antinomianismo e a
Certeza do Evangelho. São Paulo: Vida Nova, 2019. p. 13.
A DOUTRINA ANTINOMIANA

Não é tarefa simples apresentar, de modo sucinto o ensinamento do


antinomianismo, visto que, como muitos estudiosos destacam, o
movimento é multifacetado. Também é preciso destacar que um
teólogo antinomiano não é alguém que, necessariamente, leva uma
vida imoral e dissoluta.
Os puritanos que se opuseram ao antinomianismo
testemunharam que, a despeito dos seus escritos e pregações, os
antinomianos ingleses eram caracterizados por uma vida piedosa.
Tobias Crisp chegou a ser defendido por John Gill, dada a sua
seriedade e piedade. Somente na Nova Inglaterra é que o
antinomianismo teológico desembocou, de fato, no antinomianismo
prático. Não obstante, é possível observarmos alguns pontos claros
em tudo aquilo que teólogos antinomianos produziram ao longo do
tempo, bem como influências de outros movimentos.
No ano de 1637, não mais na Inglaterra, mas agora na Nova
Inglaterra, o antinomianismo também gerou uma grande
controvérsia, levando o Sínodo dos Anciãos a declarar algumas
afirmações teológicas como “perigosas”, “pouco seguras”.
Destacamos algumas:

1. Dizer que somos justificados pela fé é um discurso perigoso.


Devemos dizer que somos justificados por Cristo. Percebese
aqui uma falha em distinguir a fé como instrumento, não como
causa eficiente da justificação.

2. Procurar pela graça ao olhar para o coração apenas causa


agitação. É preciso olhar para Cristo. Não devemos procurar
pela graça, mas por Cristo. Não procuremos por santificação,
mas por Cristo. Não precisamos de deveres e meditação, mas
de Cristo somente. Não precisamos de autoexame, mas de
Cristo. Em qualquer dúvida, lembre apenas de Cristo.

3. Eu posso saber que pertenço a Cristo não porque crucifico as


concupiscências da carne, mas porque, apesar de não as
crucificar, creio que foi Cristo quem crucificou as minhas
concupiscências em meu favor.23

Essas e outras declarações foram consideradas pelo Sínodo


como estando fora dos limites confessionais da fé reformada. Elas
revelam o cerne da preocupação da teologia antinomiana.
Normalmente tratamos o antinomianismo como apenas a afirmação
de que a lei não possui mais nenhuma função na vida da pessoa
que foi alcançada pela graça de Deus em Cristo, o que é uma
definição correta do que é essa doutrina. Não obstante, o
antinomianismo, conquanto revele uma compreensão acertada das
implicações da justificação, demonstra um entendimento
completamente equivocado de como a obra da santificação ocorre
na vida da pessoa justificada.
O Dr. J. I. Packer analisa muito bem a questão quando afirma:
“Com respeito à justificação, os antinomianos afirmam que Deus
nunca vê pecado nos crentes. Uma vez que estamos em Cristo,
quaisquer que sejam os nossos lapsos, ele vê apenas a justiça
impecável da vida terrena do Salvador, agora reconhecida como
nossa”.24 A isso nós respondemos com um “Amém!” É isto mesmo!
No entanto, quando o assunto é a santificação, a situação se torna
completamente embaçada:

Então, com respeito à santificação, têm existido antinomianos


místicos que afirmam que o Cristo que habita em nós é o sujeito
pessoal que obedece à lei em nossa identidade, uma vez que
invocamos a sua ajuda em situações de obediência. Também
têm existido antinomianos pneumáticos que afirmam que o
Espírito Santo dentro de nós nos induz diretamente a discernir e
fazer a vontade de Deus, sem que precisemos olhar para a lei
seja para que ela prescreva ou monitore o nosso desempenho.25
De acordo com ele, esses dois tipos de antinomianismo
caracterizaram os primeiros 150 anos da Reforma Protestante, o
que engloba tanto o período de Johannes Agricola quanto as
discussões na Inglaterra puritana. Além desses dois, em sua
conhecida obra Teologia Concisa, Packer faz algumas distinções
muito interessantes em sua tentativa de catalogar a teologia
antinomiana. Mencionamos apenas mais duas:

1. O antinomianismo dispensacional, que ensina que “não é


necessário em nível algum que os crentes guardem a lei moral,
considerando que já vivemos sob a dispensação da graça, não
da lei”.26 Ernest Kevan afirma que “a questão levantada pelo
antinomianismo teve a sua origem na ampla separação que eles
fizeram entre o Antigo e o Novo Testamentos. Eles eram
incapazes de ver o Antigo Testamento como um Pacto da Graça,
embora apresentado de modo diferente do Novo Pacto, e que a
posição dos crentes no Antigo e no Novo Pacto era a mesma”.27
A fé reformada ortodoxa confessa que no Antigo Testamento nós
encontramos o mesmo Pacto da Graça. Qualquer diferença que
exista com o Novo Testamento diz respeito apenas ao modo
como o Pacto da Graça era administrado no Antigo Testamento.
Os antinomianos não conseguem enxergar essa verdade.
Quando eu mencionei movimentos relacionados ao
antinomianismo, eu tinha em mente justamente o
dispensacionalismo, seja ele em sua forma mais antiga, seja
agora o chamado dispensacionalismo progressivo, além da
Teologia da Nova Aliança. A noção de descontinuidade entre o
Antigo e o Novo Testamentos bem como a antítese entre lei e
evangelho acabam tendo por consequência lógica alguma forma
de antinomianismo. Por exemplo, Douglas J. Moo, teólogo
identificado com a Teologia da Nova Aliança, mas cuja exegese
frequentemente é utilizada pelos dispensacionalistas
progressivos, vai afirmar uma distinção entre a Lei Moral e a lei
de Cristo. De acordo com ele, não temos nenhuma obrigação
em relação à Lei Moral. Vivemos apenas pela lei de Cristo: “O
cristão não está mais obrigado à lei mosaica; Cristo realizou seu
cumprimento. Mas o cristão está obrigado à ‘lei de Deus’ [...] ‘Lei
de Deus’ não é, entretanto, a lei mosaica, mas a lei de Cristo
[...], porque é a Cristo, o cumpridor, o télos da lei [...], que o
cristão está obrigado”.28 Essa citação de alguém comprometido
com a Teologia da Nova Aliança é importante para a discussão
sobre o antinomianismo dispensacional, porque uma das
características do entendimento dispensacionalista a respeito da
lei, é a rejeição da tríplice partição da lei, característica da
teologia reformada. Num podcast de um famoso canal no
YouTube, o apresentador já inicia jurando que não é um
“antinomista”. Mas, logo depois afirma que acredita que não
estamos seguindo a lei, que o Antigo Testamento possui uma
função meramente didática, mas nenhuma função normativa.
Outro participante, afirma explicitamente a rejeição da tripartição
da lei conforme a teologia reformada clássica e admite que, por
trás disso está um entendimento distinto de aliança, de maneira
que a lei mosaica era apenas para a nação de Israel, não para a
igreja. Lembre que, tanto teólogos da nova aliança como
dispensacionalistas sustentam a distinção entre Israel e a igreja.
Pouco depois, o apresentador defende o entendimento seu e
dos seus colegas, afirmando que se trata de algo
completamente diferente da teologia liberal e do antinomianismo,
mas como ele define antinomianismo? Como a ideia de que
“Cristo veio para nos libertar do Deus do Antigo Testamento”.29
Antinomianismo não é isso. Antinomianismo não é, em si,
marcionismo. Antinomianismo é a oposição ao uso da lei moral
para a vida cristã.

2. O antinomianismo situacionista, que afirma que “um motivo e


intenção do amor é tudo o que Deus requer agora dos cristãos, e
os mandamentos do Decálogo e outras partes éticas da
Escritura, por mais que sejam atribuídas diretamente a Deus,
são meras regras e métodos de amar, regras que o amor pode a
qualquer momento rejeitar”.30 Você tem liberdade para
desobedecer a algum dos mandamentos da lei moral, caso o
amor esteja em jogo. Esta é uma posição muito perigosa, pois
abre a porta para muitas práticas ruins.

Sinclair Ferguson, por sua vez, faz uma distinção mais simples
entre as faces do antinomianismo, destacando o que ele chama de
“antinomianismo dogmático” e o “antinomianismo exegético”. De
acordo com ele, na corrente dogmática estão aqueles “que afirmam
que a lei de Deus foi completamente revogada para os que
creem”.31 Nessa corrente estão enquadrados os antigos
antinomianos, como John Eaton, Tobias Crisp e John Saltmarsh.
Ainda de acordo com Sinclair Ferguson, a corrente dogmática
também estava geralmente associada ao hipercalvinismo, afirmando
que os indicativos do evangelho superam completamente os
imperativos divinos, provocando um desequilíbrio bíblico, ou seja, o
que Deus já fez em Cristo torna qualquer dever nosso irrelevante
para a nossa salvação. A habitação do Espírito é suficiente para
reger a nossa vida. A lei é completamente desnecessária.32
Já a corrente exegética, intimamente relacionada à dogmática,
se caracteriza pela vigorosa oposição à tripartição da lei, e ao
entendimento de uma dessas partições — a lei moral — continua
vigente para o cristão.33 Grande parte dos teólogos bíblicos dos
nossos dias rejeita essa tríplice divisão por considerá-la uma
imposição ao texto da Escritura. A lei mosaica, de acordo com eles,
é um todo unificado. A tripartição da lei, portanto, seria uma
imposição exegética, não uma conclusão exegética. A mesma ideia
que encontramos no que J. I. Packer chama de “antinomianismo
dispensacional”.
Uma crítica que precisa ser feita especificamente a essa objeção
da corrente exegética é a ideia, pressuposta, mas não provada — e
impossível de provar — de que essa tripartição não reflete o que
pode ser encontrado nos textos do Antigo Testamento. O grande
problema com esse tipo de pensamento é o tratamento dispensado
ao texto bíblico como se devêssemos tratá-lo como uma espécie de
enciclopédia, que nos oferece já todos os dados devidamente
organizados e categorizados em verbetes, tabelas comparativas, e
assim por diante. É como se não pudéssemos chegar a
determinados entendimentos e a determinadas doutrinas através de
deduções lógicas necessárias, como ensina a nossa Confissão de
Fé de Westminster. É como se a igreja cristã, ao longo dos séculos
não tivesse feito isso com doutrinas fundamentais, como a doutrina
da Trindade, por exemplo. Ninguém nega que as Escrituras falam da
lei mosaica, em diversas passagens, como um todo. Mas também é
verdade que esse todo pode ser dividido em porções que refletem
aspectos cerimoniais, civis e morais. Não importa se a tripartição da
lei não é explicitamente afirmada, ela está lá. E tudo o que fazemos
é extraí-la das Escrituras. Nesse sentido, há uma declaração
excelente de Herman Bavinck: “A Escritura não é dogmática. Ela
contém todo o conhecimento de Deus de que precisamos, mas não
na forma de formulações dogmáticas [...] A Escritura é uma mina de
ouro: é a igreja que extrai o ouro, põe sua estampa sobre ele e o
converte em dinheiro circulante”.34
Em suma, o fundamento comum a todas as correntes
antinomianas é que aqueles que vivem em Cristo estão
completamente separados, livres de todo e qualquer aspecto da
pedagogia da lei.
Uma das grandes preocupações dos puritanos em relação ao
antinomianismo era que ele desembocasse em libertinagem, em
licenciosidade. Thomas Shepard, um ministro na Nova Inglaterra,
afirmou: “Aqueles que negam a utilidade da lei a qualquer um que
esteja em Cristo tornam-se patronos da licenciosidade livre sob a
máscara da graça livre”.35 Em sua epístola, Judas, o irmão do
Senhor Jesus, já advertira os seus leitores a respeito de homens
que estavam no seio da igreja, mas que transformavam “em
libertinagem a graça de nosso Deus” (v. 4). De fato, uma vida
licenciosa e libertina é a consequência da crença no
antinomianismo. Ora, se você crê que não tem mais nenhuma
obrigação em relação à santa lei de Deus, que pode viver agora
com a certeza de que Deus não leva em consideração qualquer
pecado que você venha a cometer, nada impede que você viva
segundo o modo daquelas pessoas que distorcem a doutrina da
perseverança dos santos: “se uma vez salvo, salvo para sempre,
não importa a maneira como eu vivo”.
Nos nossos dias o antinomianismo tem assumido algumas
formas levemente diferentes. Tem se tornado cada vez mais comum
o chamado “evangelho da autoaceitação”, afirmando que “Deus te
aceita da forma como você é. Ele te ama como você é, com todos
os teus defeitos e pecados”. “A lei não será nenhuma barreira entre
você e Deus, pois tudo o que ele deseja é sinceridade, que você
seja verdadeiro, que você seja você mesmo na presença dele”. Daí
nós vemos igrejas, denominações, ecoando esse tipo de pregação e
o resultado é um número crescente de pessoas que dizem: “É assim
que eu sou. Deus é gracioso e me aceita do jeito que eu sou. Posso
continuar sendo assim. Ninguém vai me dizer o que fazer ou como
eu devo viver”.
Os puritanos responderiam a esse tipo de raciocínio afirmando
que tais pessoas não apenas estão rejeitando a lei de Deus, mas
também que esta rejeição tem sua origem numa compreensão
completamente equivocada da natureza e da ação da graça de
Deus na vida do indivíduo. Para eles, a graça pressupõe um papel
específico da lei moral na vida do cristão.

23 Mark Jones. Antinomianism. p. 11.


24 No Prefácio de Mark Jones. Antinomianism. p. x.
25 Ibid. O antinomianismo místico é aquele que mais tende a resultar em antinomianismo
prático. Ora, se Jesus é quem obedece à lei para a minha santificação, não importa o que
eu faço, não importa como eu vivo. A obediência de Cristo me santificará. Já o
antinomianismo pneumático anda de mãos dadas com o carismatismo ou continuísmo.
Você pode contar com a direção imediata, extraordinária do Espírito Santo, a fim viver de
agradar a Deus.
26 J. I. Packer. Teologia Concisa: Síntese dos Fundamentos Históricos da Fé Cristã. São
Paulo: Cultura Cristã, 1999. p. 169.
27 Ernest Kevan. The Grace of Law. p. 24.
28 Douglas J. Moo. “A Lei de Moisés ou a Lei de Cristo”. In: John S. Feinberg (Ed.).
Continuidade e Descontinuidade: Perspectivas sobre o Relacionamento entre o Antigo e o
Novo Testamentos. São Paulo: Hagnos, 2013. p. 265.
29 Podcast Dois Dedos de Teologia. “Ainda Devemos Seguir o Antigo Testamento?”
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aJdXYcDMbBQ>.
30 J. I. Packer. Teologia Concisa. p. 169.
31 Sinclair Ferguson. Somente Cristo. p. 167.
32 Ibid. p. 168.
33 Ibid. p. 170.
34 Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. São Paulo: Cultura
Cristã, 2012. p. 116.
35 Ibid. p. 183.
OS PURITANOS E SEU ENTENDIMENTO DA
LEI MORAL

Os puritanos reagiram ao antinomianismo de maneira bastante


enérgica, veemente. Para eles, o antinomianismo era um
ensinamento pernicioso, que necessitava ser combatido de maneira
categórica. Uma heresia que demandava oposição firme, pois
subvertia completamente o evangelho de Jesus Cristo.
De modo geral, ao responderem ao desafio antinomiano, os
puritanos destacavam o fato de não contarmos com um senso
imediato e perceptível da presença de Deus. Por essa razão, ações
corretas, santas e piedosas eram os mais seguros sinais de que
alguém tinha recebido a justificação de Deus. A santificação era
entendida como uma evidência segura da justificação e como o lado
visível da eleição divina. Nesse sentido, um esforço consciente para
obedecer à lei moral de Deus era um sinal seguro de que a vontade
de uma pessoa tinha sido transformada verdadeiramente pela graça
de Deus.36
No pensamento puritano, a lei moral, diferentemente das leis
cerimonial e civil, continuava em pleno vigor para os cristãos.
Enraizado na teologia do pacto estava o seu entendimento de que a
lei moral era o padrão divino adequado para regular a vida cristã. E,
aqui, permitam-nos uma pequena digressão, a respeito da acusação
feita por aqueles que nos acusam de impormos algo ao texto
sagrado, quando trabalhamos com a tripartição da lei. Essa
acusação também respinga sobre os puritanos, que também são
acusados de chegar às suas conclusões teológicas com base
apenas na colagem de alguns textos-prova, textos de comprovação
fora do seu contexto. Muitas pessoas imaginam que aquelas
passagens que fundamentam cada uma das afirmações da nossa
Confissão de Fé foram colocadas ali de maneira quase arbitrária.
Não obstante, os puritanos eram excelentes exegetas. É arrogância
alguém imaginar que a Teologia Bíblica surgiu apenas quando a
expressão foi usada pela primeira vez, em 1787, por Johann Philipp
Gabler. Muito pelo contrário, os puritanos eram exegetas capazes e
excelentes teólogos bíblicos.
Mencionamos isto porque para cada afirmação dos puritanos
sobre o lugar da lei moral na vida cristã se encontrava uma exegese
séria e uma profunda teologia bíblica, que entendia a lei de Deus da
perspectiva de três épocas, como destaca Sinclair Ferguson: 1.
Criação; 2. Moisés; e 3. Cristo. Destacamos o primeiro desses
momentos, pois os puritanos entendiam que, na criação, o homem
deveria obedecer a Deus e, apesar de os dez mandamentos só
terem sido entregues através de Moisés, eles já se encontravam
gravados no coração do homem (Romanos 2.15). Além disso,
alguns puritanos entendiam que a ordem dada ao homem, em
Gênesis 2.16-17 continha, em si mesma, toda a substância dos Dez
Mandamentos. No primeiro capítulo da sua obra The Marrow of
Modern Divinity, Edward Fisher apresenta um diálogo entre dois
personagens, Evangelista e Nomista, no qual o primeiro explica
como Adão teria quebrado os Dez Mandamentos ao desobedecer a
ordem dada por Deus, em Gênesis 2.16-17:

1. Ele escolheu a si mesmo como outro deus quando seguiu o


demônio. 2. Ele idolatrou e deificou o seu próprio ventre, como
disse o apóstolo: “o deus deles é o ventre”. 3. Ele tomou o nome
de Deus em vão, quando não acreditou nEle. 4. Ele não guardou
o descanso e o estado em que Deus o colocou. 5. Ele desonrou
seu Pai que estava no céu; e, portanto, seus dias não foram
prolongados na terra que o Senhor Deus lhe havia dado. 6. Ele
massacrou a si mesmo e a toda a sua posteridade. 7. De Eva,
ele era virgem, mas com seus olhos e sua mente ele cometeu
fornicação espiritual. 8. Como Acã, ele roubou o que Deus
ordenara que fosse deixado de lado, e este roubo é a razão dos
problemas de todo o Israel e de todo o mundo. 9. Ele deu um
falso testemunho contra Deus, quando acreditou no testemunho
que o diabo deu diante dele. 10. Como Amnom, ele cobiçou um
mal, que cobiçado, custou-lhe a vida e a toda a sua
descendência. Agora, quem considera que um ninho de males
foi aqui cometido com um só golpe deve, necessariamente,
como Musculus, ver o nosso caso como tal, que somos
compelidos de todas as formas a bendizer a justiça de Deus, e
condenar o pecado dos nossos primeiros pais, dizendo a
respeito de toda a humanidade, como o profeta Oseias disse a
respeito de Israel: “A tua ruína, ó Israel, vem de ti” (13.9).37

Na essência do pensamento puritano a respeito do uso da lei


moral, está a convicção de que ela não foi dada ao homem com o
propósito primário de servir-lhe como um caminho de salvação, mas
como um instrumento para regular a sua comunhão com o Senhor
Deus. O puritano John Barret afirmou: “A obrigação de obedecer ao
nosso Criador é uma consequência da nossa condição como suas
criaturas [...] se os mandamentos de Deus, como seus
mandamentos, não constituem e determinam o dever do homem,
colocando-o sob o dever da obediência, Deus perdeu a sua
autoridade sobre o homem”.38 Edward Reynolds afirmou que o
homem está sujeito à lei “por natureza”.39 David Clarkson, por sua
vez, afirmou que o dever que o homem possui de obedecer à lei
moral é baseado “na relação entre Deus e o homem [...] Negar que
a perfeita obediência é um dever do homem é negar que ele seja
homem”.40
A Confissão de Fé de Westminster parece reconhecer isto, no
capítulo 7, tratando do Pacto de Deus com o homem, quando no
parágrafo 1º ela afirma que, em razão da distância entre Deus e a
criatura, as criaturas racionais já devem obediência a Deus como
seu Criador. O que Deus vai fazer no Pacto das Obras é apenas
prometer recompensar a obediência já devida em virtude da criação.
A vida em comunhão e a glória de Deus já estavam em vista quando
da gravação da norma da lei no coração do homem. Assim sendo, o
antinomianismo labora em erro quando afirma que, em virtude da
redenção em Cristo, a lei já não possui nenhuma importância para o
cristão. Muito pelo contrário, a redenção aplicada capacita o homem
a retomar o propósito primeiro da lei: a glória de Deus e o fruir, o
desfrutar dessa deliciosa comunhão.
Vários puritanos escreveram obras contra o antinomianismo,
como John Flavel, Anthony Burgess, Samuel Bolton e Samuel
Rutherford. Não obstante, mencionaremos um pouco a respeito da
obra de um deles, apenas: Samuel Bolton, um dos delegados à
Assembleia de Westminster e, na Assembleia, membro da comissão
que elaborou as questões sobre a lei moral e o seu uso tanto no
Breve Catecismo quanto no Catecismo de Westminster. Samuel
Bolton afirma a perpetuidade da lei moral como uma regra de vida,
ou uma regra de caminhada para o cristão, argumentando a partir
de diversas confissões reformadas, bem como a partir do próprio
Novo Testamento. Sua conclusão é a de que é preciso mostrar
claramente, a partir das Escrituras, o momento em que a lei moral,
como uma regra de caminhada, foi ab-rogada, o que é impossível
de ser feito. Ele nega, com veemência, que Jesus Cristo e seus
apóstolos tenham feito isso. Citando a passagem de Mateus 5.19,
onde Jesus diz que “aquele que violar um destes mandamentos,
posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será
considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os
observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos
céus”, Bolton afirma que interpretações considerando que, aqui,
Jesus ensina que a lei não seria abolida até que ele a cumprisse,
são “leituras corruptas dessas palavras, e também interpretações
sinistras”.41 Para Bolton, quando o apóstolo Paulo diz em Romanos
10.4, que “o fim da lei é Cristo”, deve-se entender “‘o fim
aperfeiçoador e consumador’, não ‘o fim destruidor e abolidor’ da
lei”.42 Isso fica claro quando observamos que na sua exposição da
lei, no Sermão do Monte, o Senhor Jesus Cristo apresenta a
verdadeira interpretação da lei, corrigindo as distorções e
deturpações dos líderes religiosos de Israel. Essa exposição
acurada do sentido da lei, seu alcance das nossas motivações do
coração, evidencia, na realidade, a continuação da lei, não a sua ab-
rogação.
Bolton afirma que isso também está em perfeita concordância
com a declaração de Paulo, em Romanos 3.31: “Anulamos, pois, a
lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei”.
Bolton afirma que isso não deve ser entendido em relação à
justificação, “mas como uma regra de obediência, e, nesse sentido,
a fé a estabelece”.43
Bolton vai adiante, em sua obra, apresentando cinco provas de
que a lei moral ainda possui uma relação vinculante com o crente: 1.
A maneira como a nossa consciência nos defende quando
obedecemos e como ela nos acusa quando desobedecemos à lei
moral. Isto prova que a lei de Deus está vinculada à consciência do
cristão; 2. Aquilo que tem poder para dizer à consciência do
regenerado: “Isto deve ser feito, e aquilo deve ser evitado”, está
vinculado à consciência, não com um sentido meritório, como um
caminho para a justificação, mas como algo bom e agradável a
Deus; 3. A autoridade pela qual os apóstolos exortaram os cristãos
ao dever vincula a consciência à obediência. E uma vez que os
apóstolos fizeram isso usando a lei moral prova que ela é a regra
pela qual os cristãos devem andar; 4. Se a lei de Deus não vincula a
consciência de um homem regenerado à obediência, então qualquer
coisa que ele faça na lei, ele faz mais do que é seu dever. Dessa
forma, tenha méritos ou pecados, ele se torna culpado de praticar
“culto de si mesmo”. Todavia, em obediência à lei, ele nem se torna
culpado de “culto de si mesmo” nem obtém méritos. Ele tão somente
deve ter a consciência de que fez o que lhe era ordenado e, assim,
se considerar um servo inútil; e 5. Ou a lei vincula a consciência dos
cristãos ou eles não pecam quando quebram a lei. Mas 1 João 3.4
afirma que “o pecado é a transgressão da lei”. Portanto, se os
cristãos desejam evitar o pecado, devem obedecer a lei.
Bolton faz, então, algumas aplicações, sendo uma delas dirigida
especificamente aos antinomianos. Ele afirma: “Assim como os
papistas estabeleceram a lei para a justificação, assim também os
antinomianos condenam a lei para a santificação”.44 Bolton
estabelece a distinção entre a teologia reformada e os
antinomianos, dizendo:
Nós reivindicamos estar livres das maldições da lei; eles, que
estamos livres da direção, do comando da lei. Nós dizemos que
estamos livres das penalidades, mas eles querem abolir os
preceitos da lei. Eles nos acusam de fazermos uma falsa mistura
de Cristo e Moisés, e que misturamos a lei e o evangelho. Quão
injustamente eles fazem essa acusação contra nós [...] Nós
rejeitamos a lei no que diz respeito à justificação, mas a
estabelecemos como uma regra da santificação. A lei nos envia
ao evangelho, para que possamos ser justificados, e o
evangelho nos envia de volta à lei para inquirir qual é o nosso
dever como aqueles que foram justificados. Qualquer coisa que
digam a respeito da lei, lançam desprezo e desgraça sobre ela e
sobre aqueles que a pregam. Contudo, sabemos que, em sua
substância, ela é a imagem de Deus, um raio da sua
santidade.45

Irmãos, aqui Bolton nos dá um precioso auxílio para


entendermos como a lei permanece em vigor como uma perfeita
regra de justiça para nós, pois ela nada mais é do que o reflexo da
vontade moral de Deus, a expressão da sua santidade e justiça,
mostrando aquilo que é bom e o que é mau. E, como Bolton volta a
afirmar, “tais coisas são, moral e eternamente, boas e más”.46

36 Jeffrey M. Kahl. “The Antinomian Controversy and the Puritan Vision: A Historical
Perspective on Christian Leadership”. In: Ashland Theological Journal. Nº 35. 2003. p. 59.
37 Edward Fisher. The Marrow of Modern Divinity. p. 35.
38 Apud in Ernest Kevan. The Grace of Law. p. 172.
39 Ibid.
40 David Clarkson. “Justification”. In: Works. Vol. 1. Edinburgh, UK: The Banner of Truth
Trust, 1999. p. 297.
41 Samuel Bolton. The True Bounds of Christian Freedom. Edinburgh, UK: The Banner of
Truth Trust, 1994. p. 61.
42 Ibid.
43 Ibid.
44 Ibid. p. 71.
45 Ibid.
46 Ibid.
CONCLUSÃO

Vimos que o grande puritano Richard Baxter tinha uma grande


preocupação com o antinomianismo. Mas precisamos compreender
que a resposta necessária ao antinomianismo não é o legalismo.
Ambos são contrários a Deus e distorcem o caráter de Deus e a
obra salvífica de Cristo. São posições antibíblicas a respeito da lei.
A resposta para o antinomianismo é a afirmação da lei moral de
Deus, não como um caminho para a salvação, para a justificação,
mas como a reação amorosa e inevitável de um coração que muito
ama a Deus porque foi primeiramente amado pelo Senhor.
Devemos buscar compreender cada vez mais a natureza da obra
graciosa do nosso amado Redentor. Nós podemos ter nossas
mentes iluminadas pelo Espírito Santo, a fim de compreendermos
cada vez mais e experimentar, de modo intenso, os efeitos de nossa
união com o Salvador. O resultado inevitável será uma nova
compreensão da lei, um novo amor pela lei e uma nova obediência
à lei, mediada pelo evangelho. Recebemos a lei, não das mãos de
Moisés, mas das mãos de nosso Senhor Jesus Cristo.
A lei de Deus, nos diz o apóstolo Paulo, “é santa; e o
mandamento, santo, justo, e bom” (Romanos 7.12). Por isso,
certamente, tudo o que é ordenado pela lei é bom. E o evangelho
nos capacita, nos habilita para obedecermos à lei, para cumprirmos
os seus preceitos, a fim de glorificarmos ao nosso Senhor e sermos
treinados no caminho da piedade: “Nossa obediência à lei não é
nada senão a expressão da nossa gratidão a Deus, que livremente
nos justificou [...] Embora o nosso serviço não seja o motivo ou a
causa que impeliu Deus a nos redimir, é o propósito da nossa
redenção”.47 Nossa Confissão afirma que este uso da lei não é
contrário à graça do evangelho, mas suavemente se harmoniza com
ela, “pois o Espírito de Cristo submete e capacita a vontade do
homem a fazer livre e alegremente aquilo que a vontade de Deus,
revelada na lei, exige que se faça” (19.7).
Como uma perfeita regra de justiça e uma regra de vida, a lei
nos

informa da vontade de Deus e do dever que temos; nos dirige e


nos obriga a andar conforme essa vontade; descobre-nos
também as pecaminosas poluções de nossa natureza, de
nossos corações e de nossas vidas, de maneira que,
examinando-nos por meio dela, alcançamos mais profunda
convicção de pecado, maior humilhação por causa dele e maior
aversão a ele, ao mesmo tempo nos dá mais clara visão da
necessidade que temos de Cristo e da perfeita obediência a ele
devida. Ela é também de utilidade [...] a fim de conter a nossa
corrupção, pois proíbe o pecado; e quais as aflições que por
causa dele devemos esperar nesta vida, ainda que estejamos
livres da maldição ameaçada na lei. Do mesmo modo, as suas
promessas mostram que Deus aprova a nossa obediência, e que
bênçãos podemos esperar dessa obediência, ainda que essas
bênçãos não nos sejam devidas (Confissão de Fé de
Westminster 19.6, adaptado).

Resistamos, portanto, a todo e qualquer ensinamento


antinomiano — disseminado em alguns púlpitos e também pela
internet — que deprecie a boa, perfeita e santa lei de Deus. Que a
lei nos mostre como podemos, amparados pela graça divina,
glorificar a Deus, dignificar o evangelho, declarar a nossa
sinceridade, expressar a nossa gratidão. O Senhor Deus nos amou
primeiro e, por essa razão, nós também o amamos (1João 4.19).
Obedeçamos à lei por amor a Deus. Jesus deixou isso bem claro:
“Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que
me ama” (João 14.21). Por outro lado, “quem não me ama não
guarda as minhas palavras” (v. 24).
Que o Senhor nos abençoe!

47 Ibid. p. 72.
A LEI DE DEUS: UMA PERFEITA REGRA DE
JUSTIÇA

7. A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do Senhor é fiel


e dá sabedoria aos símplices. 8. Os preceitos do Senhor são retos e alegram
o coração; o mandamento do Senhor é puro e ilumina os olhos. 9. O temor do
Senhor é límpido e permanece para sempre; os juízos do Senhor são
verdadeiros e todos igualmente, justos. 10. São mais desejáveis do que ouro,
mais do que muito ouro depurado; e são mais doces do que o mel e o destilar
dos favos. 11. Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar,
há grande recompensa.

Considerando a Lei de Deus como uma perfeita regra de justiça. A


intenção é fazer isto a partir da exposição do Salmo 19.7-11.
É a Confissão de Fé de Westminster quem se refere à lei do
Senhor dessa maneira. No capítulo 19.2, tratando da continuidade
da lei após a queda dos nossos primeiros pais, Adão e Eva, a
Confissão afirma: “Essa lei, depois da queda do homem, continua a
ser uma perfeita regra de justiça. Como tal, foi por Deus entregue no
monte Sinai em dez mandamentos e escrita em duas tábuas”.
Embora a Confissão faça referência direta ao decálogo, devemos
manter em mente que ele nada mais é do que o resumo de toda a
vontade moral de Deus. E uma vez que essa vontade se encontra
expressa em toda a Sagrada Escritura, podemos, com segurança,
entender que o que é afirmado tanto na Confissão de Westminster
quanto no Salmo 19, não se limita apenas ao decálogo em si, mas
estende-se a toda a lei moral e, por conseguinte, a toda a Escritura,
aquela que é a constituição dos discípulos de Jesus Cristo e do
reino dos céus.
A Confissão fala de uma continuidade após a queda. A lei
continua como uma perfeita regra de justiça. Ainda que tenham
passado a existir algumas mudanças na criação; ainda que tenha
ocorrido uma mudança tanto no status do homem diante de Deus,
quanto em seu coração, ou seja, o homem agora, em virtude do
pecado é tanto culpado quanto corrompido, a lei permaneceu como
uma perfeita regra daquilo que Deus, em sua justiça, exige do
homem. Uma vez que, em Deus, não há variação ou sombra de
mudança (Tiago 1.17), sua vontade moral também permanece
exatamente a mesma. E algo que também devemos ter em mente
logo de início é que, exatamente por permanecer uma perfeita
norma de justiça, a lei continua a obrigar “todas as consciências
humanas como norma de vida”1, como nos diz o Dr. Alexander
Archibald Hodge.
Na verdade, até se pode falar de uma mudança, não na lei em si,
mas no seu propósito, uma vez que, com a queda, o Pacto das
Obras foi ab-rogado, não nos sendo mais o caminho para a
salvação e a vida eterna. Assim, uma vez que, por causa do
pecado, “ninguém será justificado diante dele por obras da lei”
(Romanos 3.20), a lei mantém o propósito de ser para o homem
uma perfeita norma acerca de como ele deve ordenar a sua vida
diante de Deus. Nesse aspecto, ela “é imutável, sem qualquer
abrandamento, e inalienável em suas relações pessoais”.2
Salvaguardada a discussão sobre a distinção entre lei/evangelho
no que diz respeito à nossa justificação, a lei sempre teve o seu
lugar devidamente assegurado e afirmado na tradição reformada.
Seguindo a distinção feita por Phillip Melanchthon, em sua edição
de 1535/36 das Loci Communes, João Calvino também falou de três
usos da lei, sendo que o terceiro uso diz respeito àqueles que são
justificados pela graça mediante a fé, para que pratiquem boas
obras agradáveis a Deus. Logo na primeira edição das Institutas, de
1536, Calvino falava da lei como possuindo o propósito de nos
ensinar o que “é a perfeita justiça e como deve ser guardada”.3
Além dele, Heinrich Bullinger (1504-1575), o teólogo reformado
holandês Jeremias Bastingius (1551-1595), afirmaram a
perpetuidade do valor e da utilidade da lei para o povo de Deus.
Na teologia dos puritanos isso também é afirmado com grande
ênfase. Por exemplo, Samuel Bolton, um dos teólogos da
Assembleia de Westminster, em seu clássico The True Bounds of
Christian Freedom, faz a distinção entre a lei como um pacto e como
uma regra. De acordo com ele, os “crentes estão livres de serem
justificados pela obediência à lei como um pacto, mas a lei continua
como uma regra para a vida cristã”.4 Ele diz: “A lei pode ser
considerada como uma regra e como um pacto. Quando lemos que
a lei continua em vigor, devemos entender a lei como uma regra,
não como um pacto. Mas, quando lemos que a lei foi ab-rogada, ela
deve ser entendida como um pacto, não como uma regra”.5 Ele diz
mais: “Até que a lei esteja morta para você, e você para ela, você
buscará justiça e vida através da obediência a ela. Porém, uma vez
que a lei tenha matado você, e mostrado que está morto e que não
pode fazer nenhum bem, de maneira que não espere nada vindo
dela, então você olhará para Cristo somente em busca de vida”.6 É
esta a ideia de lei como um pacto. E é nesse sentido que ela não
mais nos vincula. Este é um dos sentidos em que não estamos mais
debaixo da lei. Mas ela permanece em plena força como uma regra
para o caminhar do povo de Deus.
O mesmo tipo de raciocínio pode ser encontrado numa obra que
desempenhou um importante papel naquela que ficou conhecida
como a Marrow Controversy. Edward Fisher, um puritano que viveu
entre 1627 e 1655, na sua obra The Marrow of Modern Divinity,
afirmou: “Acredite, como a lei é o pacto das obras, todos os
verdadeiros crentes estão mortos para ela, e ela para eles; pois eles
sendo incorporados a Cristo, o que a lei ou pacto das obras fez com
ele, fez o mesmo com eles [os crentes]; de maneira que quando
Cristo foi pendurado na cruz, todos os crentes foram ali pendurados
com ele”.7 Mais à frente, porém, ele afirma que a lei, apesar de não
se constituir num pacto de obras para nós, continua como uma regra
de vida e assim será até o fim do mundo, uma vez que nós a
recebemos agora das mãos de Cristo, não das mãos de Moisés.8
Então, percebam: a lei de Deus continua para nós como uma
perfeita regra de vida. Ela continua a gozar na igreja de um lugar de
grande importância, até porque, como Ernest Kevan deixa claro,
cada departamento da teologia, especialmente da teologia puritana,
possui um estreito relacionamento com a lei: “Pecado é a
transgressão da lei, a morte de Cristo é a satisfação da lei,
justificação é o veredito da lei, e santificação é o cumprimento da lei
pelo crente”.9 E é justamente quanto à santificação que as
convicções dos puritanos sobre a lei assumiram importância
especial. E o trecho do Salmo 19 pode ajudar a compreender como
a lei mantém o papel de ser, para nós, uma perfeita regra de vida.

1 A. A. Hodge. Confissão de Fé Westminster Comentada. Recife, PE: Os Puritanos, 2010.


p. 338.
2 Ibid. p. 341.
3 João Calvino. Institutas da Religião Cristã. 1.4. São José dos Campos: Fiel, 2018. p. 56.
4 J. V. Fesko. The Theology of the Westminster Standards: Historical Context & Theological
Insights. Wheaton, IL: Crossway, 2014. p. 273.
5 Samuel Bolton. The True Bounds of the Christian Freedom. Edinburgh, UK: The Banner
of truth Trust, 1994. p. 28.
6 Ibid. p. 29.
7 Edward Fisher. The Marrow of Modern Divinity. Scotland, UK: Christian Focus, 2009. p.
121.
8 Ibid. p. 186.
9 Ernest F. Kevan. The Grace of Law: A Study in Puritan Theology. Grand Rapids, MI: Soli
Deo Gloria, 2011. p. 21.
A PERFEIÇÃO DA LEI MORAL

É muito frequente o Salmo 19 ser utilizado como um texto-prova da


teologia da revelação. Sempre que se está tratando de como Deus
se revela à humanidade, seja através daquilo que chamamos de
“revelação geral” ou da “revelação especial”, evocamos o Salmo 19.
E, de fato, o Salmo pode ser usado como fundamento da teologia da
revelação. Por exemplo, todos nós conhecemos que no trecho vv. 1-
6, o salmista Davi discorre sobre como Deus se revela através das
suas magníficas obras da criação. No Salmo 8.1, Davi afirmou que o
Senhor expôs nos céus a sua majestade. Agora, aqui no Salmo
19.1, ele afirma que os céus proclamam, anunciam, pregam a glória
de Deus. Já no trecho que vai do versículo 7 até o verso 11, Davi
fala a respeito da revelação especial, de como Deus se revela
através da sua Palavra, do evangelho, com uma oração do versículo
12 ao 14.
Não temos informação acerca do momento quando Davi
escreveu o Salmo 19. O título inspirado nos informa apenas que ele
foi escrito por Davi e foi entregue ao músico-chefe do tabernáculo,
para o uso no culto ao Senhor. Apesar disso, não é impossível
imaginarmos que ao longo da sua vida, principalmente durante os
anos nos quais pastoreou o rebanho de seu pai, Davi tenha
constantemente refletido a respeito “dos dois grandes livros de Deus
— a natureza e a Bíblia”.10 Ele investira muito do seu tempo em
ponderação para que, no final, estivesse mais e mais encantado
com o Senhor, o autor desses dois livros revelacionais.
O Salmo 19 possui duas características bem interessantes. Por
exemplo, na primeira parte, o nome utilizado para se referir a Deus é
‫אֵ ל‬, um termo genérico traduzido como “Deus”. Já na segunda parte,
quando Davi fala da lei, ele faz uso do nome pactual de Deus, ‫יהוה‬
sete vezes. Davi intenta lembrar os seus leitores do contexto em
que a lei foi entregue por Deus ao seu povo. A lei referida é a lei do
Pacto. Yahweh é o gracioso SENHOR da aliança. A lei de Yahweh é a
graciosa lei do Pacto. Podemos entender isso também observando
que a criação revela a existência de um Criador, de uma divindade
que trouxe todas as coisas à existência e que em tudo o que existe,
esse Deus imprimiu a sua glória. Mas é a lei, a Escritura, a Palavra
de Deus, o evangelho, quem revela a identidade desse Deus. É a
Palavra quem mostra exatamente quem trouxe todas as coisas à
existência. Além disso, há uma diferença no estilo de escrita entre
as duas seções do Salmo. Na primeira parte (vv. 1-6), as frases são
mais longas, ao passo que do versículo 7 ao 14, são bem mais
curtas.
Nesta ocasião, vamos considerar a segunda parte do salmo, que
tem início no versículo 7, quando o salmista Davi fala a respeito das
maravilhas da lei do Senhor. A partir desse versículo, Davi vai fazer
uma série de seis declarações a respeito da maravilha da Palavra
de Deus, sua lei, seus mandamentos, estatutos e juízos.
Observemos, então, como ela, de fato, é uma perfeita regra de
justiça para o crente em Jesus Cristo.

“A lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma; o testemunho do


SENHOR é fiel e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do
SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do
SENHOR é puro e ilumina os olhos. 9. O temor do SENHOR é
límpido e permanece para sempre; os juízos do SENHOR são
verdadeiros e todos igualmente, justos”. (Salmo 19.7-9)

Um esclarecimento que precisa ser feito é sobre o uso da


ָ
palavra “lei” (‫)תּוֹרה‬ no versículo 7. No nosso texto, essa palavra não
está sendo usada para fazer referência específica à “lei de Moisés”
ou ao decálogo. É praticamente um consenso que o termo é usado
como sinônimo de “as Escrituras”, a Palavra de Deus em toda a sua
inteireza. De acordo com Charles Spurgeon, Davi usa o termo para
se referir à completa “doutrina de Deus, a série de regras e ordens
do Espírito Sagrado”.11 O puritano Matthew Poole, comentando
versículo 7 afirma que “lei” aqui significa “a doutrina entregue por
Deus à sua igreja, seja por meio de Moisés ou pelos outros profetas
e homens santos que vieram depois de Moisés”.12 Nenhum dos
efeitos mencionados na passagem, de acordo com Poole, é
produzido pela lei em seu sentido estrito, mas sim, “de todas as
partes [da Palavra], preceitos, conselhos, ameaças, promessas, e
do gracioso pacto de Deus feito com o homem”.13
Semelhantemente, Samuel Bolton lista sete usos para o termo “lei”
nas Escrituras, destacando que, aqui, no Salmo 19, a palavra não
faz referência apenas ao Pentateuco ou à lei moral, conforme
resumida no decálogo. De acordo com ele, lei aqui significa “a
completa Palavra de Deus, suas promessas e preceitos”.14
Não obstante, se aqui, no versículo 7, “lei” quer dizer a Palavra
de Deus em toda a sua completude, em todas as suas partes,
obviamente, aquilo que, de modo estrito, é entendido como “a Lei”
está incluído. Como destacado por Allan Harman, o salmista usa
aqui seis expressões paralelas para descrever as Escrituras: lei,
testemunho, preceitos, mandamento, temor e juízos. Por esta razão,
“embora cada nome acrescente algo mais à descrição, juntos
formam um quadro multifacetado da palavra de Deus”.15 A grande
questão, então, torna-se compreender de que forma a “lei” pode
restaurar ou refrigerar a alma de alguém. A Palavra de Deus deixa
claro que, em relação a um descrente, a lei apenas revela o seu
pecado: “visto que ninguém será justificado diante dele por obras da
lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado”
(Romanos 3.20). A lei aponta, revela o pecado, condena o homem
como seu transgressor. A lei não traz alívio ao coração do homem.
Samuel Bolton diz: “A lei ordena, mas não concede graça”.16 O Dr.
Joel Beeke faz uma citação em seu livro Lutando contra Satanás,
que capta muito bem a ideia do que a lei faz em relação a um
homem não convertido:

Eu pensava que tinha de obedecer a lei, e fui a Moisés para


resolver a questão, e ele imediatamente me derrubou. Eu sabia
que merecia isso e não reclamei. Preparei-me, e novamente fui
a ele; com um baque ainda mais severo, segunda vez ele me
derrubou ao chão. Fiquei surpreso e implorei que ele me
escutasse. Mas ele me expulsou do Sinai, e não me deu
nenhuma satisfação.17

Acontece que devemos lembrar que o homem que escreveu as


palavras do Salmo 19 era alguém que amava profundamente o
Senhor, que já tinha depositado inteiramente nele a sua esperança.
Não é um descrente que fala aqui. Não se trata de alguém para
quem a lei é uma letra morta e que mata. Quem fala aqui no Salmo
19 é alguém que, por já ter sido alcançado pela graça de Cristo,
recebeu um novo coração, um coração vivificado e, por essa razão,
é capaz de se alegrar também com a lei de Deus. Este homem é o
mesmo que afirmou no Salmo 119.97: “Quanto amo a tua lei! É a
minha meditação, todo o dia!” Não apenas Davi se comporta assim
em relação à lei do Senhor. Na verdade, este é o sentimento padrão
daqueles que foram redimidos. O apóstolo João, por exemplo, em
sua primeira carta, foi capaz de afirmar: “Porque este é o amor de
Deus: que guardemos os seus mandamentos; ora, os seus
mandamentos não são penosos” (5.3). Os mandamentos do Senhor
são um deleite para a alma piedosa. A lei do Senhor é um precioso
refrigério para o homem que ama a Jesus Cristo. O puritano
Thomas Manton diz algo muito interessante a este respeito: “Como
algo tomado sozinho [a lei], seria venenosa e mortal em si mesma,
mas quando está misturada com outros medicamentos saudáveis, é
de grande serventia, sendo excelente ingrediente físico”.18
Misturada com o evangelho, a lei é preciosa para o crente.
Como o salmista denomina a lei do Senhor? Ele diz: “A lei do
SENHOR é perfeita”. O sentido aqui é de completude, integridade. A
ideia, aqui, conforme o reformador João Calvino arrazoa, é: “que, se
uma pessoa é devidamente instruída na lei de Deus, ela não carece
de nada que seja indispensável à perfeita sabedoria”.19 O que a lei
provoca na alma do crente? Davi diz: “A lei do SENHOR é perfeita e
restaura a alma”. O termo usado pelo salmista dá a ideia de “fazer
voltar atrás”, “converter”. Há quem afirme que a ideia é a de
“provocar arrependimento”.20 E o que podemos dizer, senão que,
ainda possuindo o pecado habitando os nossos corações e sujeitos
ao pecado, necessitamos, constantemente, ser lembrados pela lei
da natureza vil, maligna e demoníaca do pecado? E que o Senhor,
nosso bondoso e amoroso Deus, nos agracia com a sua santa,
preciosa e perfeita lei, a fim de nos dar um choque de realidade e
nos ajudar na nossa luta contra o pecado? John Boys faz uma
declaração a respeito da perfeição da lei que é maravilhosa. Ele a
compara ao tanque de Betesda. Ele faz uma relação interessante
entre a pessoa entrar no tanque após o Espírito Santo agitar as
águas, e a pessoa mergulhar na lei após o Espírito Santo agitar as
águas do seu coração:

Aquele que tem o furor da raiva, sendo tão furioso quanto o leão,
entrando no tanque, ficará tão manso quanto um cordeiro.
Aquele que tem a cegueira da intemperança, lavando-se neste
tanque, perceberá a própria loucura. Aquele que tem o mofo da
inveja, a lepra da avareza, a paralisia da concupiscência, terá
meios e medicamentos para sarar dessas doenças.21

Na segunda parte do versículo 7, Davi diz: “o testemunho do


SENHOR é fiel e dá sabedoria aos símplices”. Em Êxodo 31.18,
32.15 e 34.29, o termo traduzido como “testemunhos” é usado para
falar especificamente dos Dez Mandamentos escritos nas “duas
tábuas do Testemunho”. A lei nada mais é do que um claro e límpido
testemunho do Senhor contra o pecado. Nos Dez Mandamentos,
por exemplo, o Senhor se coloca contrário à idolatria, ao falso culto,
à irreverência, ao desprezo pelo seu santo dia, à insubmissão a
todas as pessoas dotadas de autoridade, a tudo que prejudique a
nossa vida e a do nosso próximo, a tudo aquilo que seja impuro e
que ameace o leito conjugal, à preguiça, à desonestidade, à
violência, ao roubo, à mentira, ao falso testemunho e à cobiça. O
testemunho do Senhor contra todos esses pecados é fiel, claro,
resoluto, infalível e irretorquível. Não há quem seja capaz de
retrucar, de responder ao que diz a lei.
O efeito do testemunho do Senhor sobre o coração do seu servo
é a sabedoria: “e dá sabedoria aos símplices” (v. 7). Quem são os
símplices? Não se trata aqui de um pequeno grupo dentre aqueles
que amam o Senhor. Todos nós somos esses símplices. Quando
Tiago (1.5), na sua epístola, diz: “Se, porém, algum de vós necessita
de sabedoria, peça-a a Deus”, ele não tem o propósito de fazer com
que seus leitores raciocinem, dizendo: “Bem, eu já tenho sabedoria
suficiente para viver. Então, ele não está falando comigo”. Não!
Tiago deseja que todos os seus leitores se reconheçam como
grandemente necessitados de sabedoria. Também deve ser assim
ao lermos a declaração do salmista Davi. Quem são os símplices?
Somos nós! Todos nós necessitamos de sabedoria.
O mais sábio dentre nós sempre necessitará da sabedoria vinda
da parte de Deus! E onde a sabedoria divina pode ser encontrada?
No testemunho fiel do Senhor! Pense, por exemplo, nas muitas
ocasiões, em que você fez algo e, posteriormente, lendo a Palavra
de Deus, a lei do Senhor, você tomou conhecimento de que pecou
contra aquele que tanto te amou e isso compungiu teu coração e
levou você a resolver firmemente em teu coração a não mais
cometer tal loucura! A lei do Senhor, nas mãos do Espírito Santo,
levantou teus olhos e fez você contemplar aquele a quem
traspassou, e por ele você pranteou como se pranteia por um
unigênito e você chorou por ele como quem chora amargamente
pelo primogênito. A lei do Senhor pode levar você a declarar com
Davi: “Os teus mandamentos me fazem mais sábio que os meus
inimigos; porque, aqueles, eu os tenho sempre comigo” (Salmo
119.128). Na lei do Senhor, o cristão pode encontrar a sabedoria.
No versículo 8, Davi faz mais duas declarações a respeito da lei
do Senhor: “Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração;
o mandamento do SENHOR é puro e ilumina os olhos”. O termo
traduzido como “preceitos” fala de todas as responsabilidades
atribuídas pelo SENHOR ao seu povo, todos os mandamentos dados
ao povo da aliança. Esses preceitos são caracterizados pela retidão.
Compare o que o salmista Davi declara aqui a respeito da lei do
Senhor com as cavilações e imaginações do nosso próprio coração.
As sugestões do nosso coração são corruptas, desvirtuadas. O
nosso coração nos faz pensar que determinados caminhos
terminarão em vida e em felicidade, quando na verdade, o fim será a
morte (Provérbios 16.25). Salomão também fala daqueles “que
deixam as veredas da retidão, para andarem pelos caminhos das
trevas” (Provérbios 2.13). O Senhor nos diz no segundo
mandamento, por exemplo, que não podemos e não devemos
adorá-lo fazendo uso de nenhuma representação, nenhuma imagem
dele. Nosso Catecismo Maior de Westminster, levando em
consideração a unidade da essência divina e a pessoa teantrópica
do Senhor Jesus Cristo, nos ensina na exposição do segundo
mandamento, na resposta à pergunta 109, que não nos é permitido
“fazer qualquer imagem de Deus, de todas ou de qualquer das três
Pessoas, quer interiormente no espírito, quer exteriormente, em
qualquer forma ou semelhança de alguma criatura; toda adoração
dela, ou de Deus nela ou por meio dela”. Mas, o que muitos têm
feito nos últimos tempos? O coração humano tem buscado formas,
tem cavado, engendrado, elaborado meios sutis, distinções
semânticas sutis entre “adoração” e “uso didático”, com o objetivo
de fazer imagens da pessoa de Jesus e, assim, ensinar às nossas
crianças por meio dessas imagens. Mas, qual o fim, o objetivo desse
ensino, senão levar nossos pequeninos à adoração? Foi por essa
razão que Calvino afirmou: “Sabemos o quanto cada um é devotado
a si próprio e quão difícil é erradicar de nossa mente a vã confiança
em nossa própria sabedoria”.22 E mais: “a vida de um homem não
pode ser corretamente ordenada a menos que ela seja moldada
segundo a lei de Deus, e que sem isso ele não pode fazer outra
coisa senão vaguear por labirintos e por trilhos tortuosos”.23
Mas, quando a pessoa aquiesce aos preceitos do Senhor,
iluminada pelo Espírito do Senhor, reconhece a retidão dos
preceitos do Senhor e os segue. O resultado é a alegria invadindo o
coração, um enorme regozijo tomando conta do seu interior. A lei do
Senhor é uma perfeita regra de justiça para nós, porque ela nos faz
enxergar as nossas mazelas, e, assim, ela sempre nos conduz a
Cristo, a fim de recebermos o perdão dos nossos pecados, e
redunda em alegria no coração, na paz de uma boa consciência. “A
verdade que torna o coração reto em seguida dá alegria ao
coração”, afirmou Spurgeon.24 Matthew Henry afirmou: “A lei, como
nós a vemos nas mãos de Cristo, dá razão para a alegria, e quando
ela é escrita nos nossos corações, ela constrói uma base para a
alegria eterna”.25
Na segunda parte do versículo 8, ele afirma: “o mandamento do
SENHOR é puro e ilumina os olhos”. Por se encontrar no singular, o
substantivo “mandamento” é uma referência a todos os
mandamentos que o Senhor deixou registrados em sua santa
Palavra. Os mandamentos do Senhor possuem como característica
distintiva a pureza. O adjetivo “puro” traz o sentido de algo
imaculado, sem qualquer mistura, purgado de qualquer impureza,
sem nenhum traço de imperfeição. Provérbios 30.5 declara que
“toda palavra de Deus é pura”. A lei do Senhor está livre de qualquer
mistura das invenções dos homens, da escória da doutrina
corrompida, de toda palha e impureza. E por essa razão, ela é
usada pelo Senhor para promover na vida do seu povo a pureza no
coração, na conversação e em toda a vida. Há um princípio
interessante afirmado por Salomão, em Eclesiastes 10.1: “Qual a
mosca morta faz o unguento do perfumador exalar mau cheiro,
assim é para a sabedoria e a honra um pouco de estultícia”. Da
mesma forma, o menor traço de qualquer pensamento meramente
humano, desassistido e desassociado da inspiração divina, seria
suficiente para tornar impura não apenas a lei, mas toda a Palavra
de Deus, uma vez que, como afirma Calvino, “tudo quanto o homem
engendra para si não passa de mera imundícia e refugo,
corrompendo a pureza da vida”.26 Na ode que escreveu à lei do
Senhor no Salmo 119, o salmista volta a afirmar esta verdade, ao
declarar que a única forma de um jovem guardar puro o seu
caminho é observando-o segundo a santa Palavra de Deus (v. 9).
No mesmo Salmo, Davi compara a Palavra do Senhor, em sua
inteireza, a uma luz, a uma lâmpada que ilumina nosso caminho.
Fora da Palavra, fora da lei do Senhor só existem trevas. É por isso
que o mandamento do Senhor “ilumina os nossos olhos”. Esta
Palavra puríssima, em todas as suas partes, está plenamente
confirmada, e fazemos bem em atender ao que ela diz, “como a
uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie, e
a estrela da alva” nasça em nosso coração (2 Pedro 1.19).
Ah, como necessitamos da lei do Senhor! Sim, fomos salvos.
Sim, fomos justificados gratuitamente com base no sangue
puríssimo de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, ah, como pecamos!
Quantas vezes deixamos de olhar para a luz e preferimos nos
embrenhar nas trevas! O pecado é comparado na Palavra de Deus
às trevas. Paulo se refere aos diversos tipos de pecado como “as
obras infrutíferas das trevas” (Efésios 5.11). Ele também exorta os
cristãos romanos a deixarem as obras das trevas e a se revestirem
das armas da luz (Romanos 13.12). Fugir de coisas como orgias e
embriaguez, impudicícias e dissoluções, contendas e ciúmes é, de
acordo com o apóstolo, andar dignamente, como em pleno dia
(Romanos 13.13). O evangelista João diz que os homens amaram
mais as trevas do que a luz (João 3.19). A lei do Senhor, sem
qualquer compromisso com a nossa loucura, mas toda ela pura,
declara a maldade de nossas obras, adverte-nos acerca das
desastrosas consequências da desobediência, mostra-nos aquele a
quem traspassamos, e nos faz correr para ele, a fim de termos os
nossos olhos iluminados. Quão perfeita, então, é a lei do Senhor! E
como ela deve ser estimada por nós!
O último par de declarações que Davi faz sobre a lei do Senhor
está no versículo 9: “O temor do SENHOR é límpido e permanece para
sempre; os juízos do SENHOR são verdadeiros e todos igualmente,
justos”. Davi fala agora do “temor de Yahweh”. A referência agora é
ao efeito pretendido pela lei do Senhor no coração do crente, ou, de
modo mais simples, ao modo como devemos nos colocar diante de
Deus para servi-lo. Davi faz uso de um adjetivo raro para descrever
o temor do Senhor como “eticamente puro”.27 A ideia é que o que
Deus nos diz na sua lei é tão claro, tão límpido, tão brilhante, que
não há lugar para qualquer indiferença frente àquilo que a santa lei
de Deus coloca diante de nós. O objetivo é que temamos a Deus,
que nos aproximemos dele com intrepidez, é verdade, mas também
com um santo temor. E este ponto é muito interessante, pois
frequentemente o temor está associado ao culto prestado a Deus.
John Gill deixa isso claro quando diz que a lei “nos dá um relato
completo do culto a Deus [...] instrui na matéria e na maneira de
cultuar”.28 Qual a origem de todo culto falso e distorcido que,
atrevidamente, é oferecido ao Senhor, senão a irreverência, a falta
de temor reinante em muitos corações? O que leva alguém a
introduzir no culto divino abominações, como teatros, danças,
canções cujas letras são antropocêntricas e até mesmo blasfemas?
O que leva alguém a substituir o pregador, o arauto comissionado
pelo Rei, por uma pregadora? O que está por trás do argumento que
diz que “debaixo da autoridade do pastor uma mulher pode pregar”,
senão a falta de temor? Calvino diz que “a forma na qual geralmente
os homens manifestam seu temor a Deus consiste em inventar
falsas religiões e um culto pervertido; e, ao proceder assim, eles
ainda mais provocam a sua ira”.29
Como a lei do Senhor se mantém para nós uma perfeita regra de
justiça nessa área? Tudo o que o Senhor nos ensina em sua
Palavra, desde o Antigo Testamento, a respeito da maneira como
devemos nos aproximar dele no culto, permanece para sempre. A
vinda de Cristo e a escrita do Novo Testamento não se constituem
em eventos que nos permitam abandonar um culto simples,
espiritual, regulado pelas Escrituras. Tudo o que o Senhor nos
ordenou a respeito do modo como adorá-lo permanece e não temos
a permissão de acrescentar nada e de retirar nada. Não podemos,
portanto, adorar a Deus sob nenhuma imagem visível, não podemos
substituir a pregação por formas dramatizadas, não podemos
colocar a pregação nas mãos de pessoas que não foram
comissionadas pelo grande Rei para fazer isso, não podemos
apresentar diante dele fogo estranho, o que ele não nos ordenou. É
preciso temer a Deus, e isso significa atarmos o nosso coração aos
seus mandamentos e deles jamais nos apartarmos.
Davi afirma ainda: “os juízos do SENHOR são verdadeiros e todos
igualmente, justos”. O sexto termo usado por Davi para descrever a
lei do Senhor, “juízos”, enfatiza o exercício do governo do Senhor
sobre todas as coisas, o modo como o Senhor ministra a justiça em
todas as coisas. O Senhor declara na sua Palavra o que é justo. A
justiça é definida nos termos de Deus, não nos termos do homem.
No livro do profeta Miquéias, o Senhor afirma que ele nos declara o
que é justo. Seu governo é exercido em perfeita harmonia com
aquilo que ele declara na sua santa lei.
Há no coração idólatra do homem uma perpétua inclinação para
se voltar contra aquilo que o Senhor declara na sua santa lei, e
declarar que o seu governo é injusto, que Deus é injusto naquilo que
faz. É perpétua a tolice humana de desejar rebaixar Deus aos seus
próprios padrões, uma vez que são as leis humanas, em muitas
ocasiões, que são caracterizadas por aquilo que é injusto. A lei do
Senhor, portanto, se coloca em franca distinção das leis humanas.
Ela é verdadeira e justa em tudo o que diz. Em todos os seus pontos
ela é absolutamente perfeita. Charles Spurgeon afirma:

Os juízos de Deus, todos eles juntos ou cada um deles em


particular, são manifestadamente justos e não precisam de
desculpa laboriosa para justificá-los. As decisões judiciais do
Senhor, conforme estão reveladas na Lei ou ilustradas na
história da providência, são verdadeiras em essência e
recomendam-se a toda pessoa verdadeira. Não só o seu poder é
invencível, mas a sua justiça é irrepreensível.30

10 Charles Spurgeon. Os Tesouros de Davi. Vol. 1. Rio de Janeiro: CPAD, 2017. p. 355.
11 Ibid. p. 359.
12 Matthew Poole. A Commentary on the Holy Bible: Psalms-Malachi. Vol. 2. Peabody, MA:
Hendrickson Publishers, 2010. p. 29.
13 Ibid.
14 Samuel Bolton. The True Bounds of the Christian Freedom. p. 55.
15 Allan Harman. Comentários do Antigo Testamento: Salmos. São Paulo: Cultura Cristã,
2011. p. 122.
16 Ibid.
17 Joel R. Beeke. Lutando Contra Satanás: Conhecendo suas Estratégias, Fraquezas e
Derrota. Campina Grande, PB: Visão Cristã, 2018. p. 118.
18 Apud in Charles Spurgeon. Os Tesouros de Davi. Vol. 1. p. 374.
19 João Calvino. Salmos. Vol. 1. Santa Bárbara d’Oeste, SP: Edições Paracletos, 1999. p.
424.
20 Christopher Ash. Teaching Psalms: From Text to Message. Vol. 2. Scotland, UK:
Christian Focus, 2018. p. 62.
21 Apud in Charles Spurgeon. Os Tesouros de Davi. Vol. 1. pp. 375-376.
22 João Calvino. Salmos. Vol. 1. p. 426.
23 Ibid.
24 Charles Spurgeon. Os Tesouros de Davi. Vol. 1. p. 360.
25 Matthew Henry. Comentário Bíblico Antigo Testamento: Jó a Cantares de Salomão. Rio
de Janeiro: CPAD, 2010. p. 273.
26 João Calvino. Salmos. Vol. 1. p. 427.
27 Sheri L. Kouda. “The Dialectical Interplay of Seeing and Hearing in Psalm 19 and Its
Connection to Wisdom”. In: Bulletin for Biblical Research. 10.2, 2000. p. 188.
28 John Gill. Commentary on Book of Psalms. p. 218.
29 João Calvino. Salmos. Vol. 1. p. 428.
30 Charles Spurgeon. Os Tesouros de Davi. Vol. 1. p. 361.
CONCLUSÃO

Por aquilo que é, por todas as suas qualidades intrínsecas e por


todos os seus efeitos na alma e no coração daquele que foi redimido
pelo sangue de Jesus, o Cordeiro de Deus, a nossa reação à lei do
Senhor não pode ser outra senão declarar junto do salmista Davi:
[Os juízos do Senhor] “São mais desejáveis do que ouro, mais do
que muito ouro depurado; e são mais doces do que o mel e o
destilar dos favos” (v. 10). Jesus falou no Sermão do Monte a
respeito daqueles que têm os seus corações nos tesouros terrenos,
que vivem para acumular tesouros aqui na terra. Para essas
pessoas não há nada mais precioso, valioso do que dinheiro e ouro.
Mas, o julgamento daquele que tem fé em Jesus Cristo é diferente.
Para ele, a lei do Senhor é mais desejável do que muito ouro,
mesmo o puro. Não há nada que seja tão palatável, tão delicioso ao
paladar do crente do que obedecer aos santos preceitos do Senhor.
O discípulo é como o seu Mestre, que declarou: “A minha comida
consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua
obra” (João 4.34). Não pode ser diferente conosco. Enquanto as
pessoas sem Jesus brigam por riqueza e obtêm força e sustento a
partir da comida, os discípulos de Jesus Cristo valorizam acima de
toda medida a lei do Senhor. Não pode ser diferente! Como
devemos reputar aquilo que é perfeito e restaura a alma, que é fiel e
dá sabedoria, que é reto e alegra o coração, que é puro e ilumina
nossa visão, que é límpido e eterno, que é verdadeiro e justo?
Como, senão como algo valiosíssimo e de uma doçura inigualável?
Além de todos efeitos da lei mencionados por Davi nos
versículos anteriores, ele termina o versículo 11 afirmando que, “em
os guardar, há grande recompensa”. Que recompensa podemos
esperar receber ao valorizarmos esta perfeita regra de justiça? A
primeira recompensa pode ser percebida no próprio Salmo 19, nos
versículos finais, quando Davi ora ao Senhor suplicando por ajuda
em relação aos pecados ocultos e à soberba. No versículo 6,
falando a respeito da revelação de Deus na natureza, Davi diz: “e
nada refoge ao seu calor”. A palavra traduzida como “refoge” é a
mesma palavra para “ocultas” no versículo 12. Nada se esconde do
calor do sol. Da mesma forma, não há nenhum pecado nosso que
se esconda de Deus. Davi parece ter escolhido deliberadamente
essa palavra. Se nada pode se esconder do calor do sol, muito
menos algo pode se esconder do brilho da Lei ou dos olhos de
Yahweh. Assim como Davi, podemos ser incapazes de ver os
nossos próprios pecados, mas o Senhor não possui esse
impedimento e, além de tudo, ele nos capacita com a sua santa lei,
que nos dá o conhecimento do pecado, que é como um espelho que
mostra exatamente quem somos e o que ainda há no nosso
coração, a fim de avançarmos no caminho da santificação.
Além disso, nos beneficiamos da perfeita regra de justiça, a lei
do Senhor, porque mesmo já tendo sido alcançados pela graça
salvífica do Senhor, ela continua a nos remeter àquele que é perfeito
e todo suficiente para todas as nossas necessidades e mortificação
de todas as nossas mazelas. A lei revela o pecado no nosso
coração. Ela nos leva a lamentar como Paulo: “Desventurado
homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”
(Romanos 7.24), para logo em seguida nos regozijarmos como
Paulo: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor” (Romanos
7.25). Os puritanos entenderam isso muito bem. Em seus escritos e
pregações os vemos constantemente falando a respeito da lei e do
pecado. Mas eles faziam isso com o propósito específico de
imediatamente remeterem os seus ouvintes e leitores a Jesus
Cristo. Anteriormente trouxemos uma citação do Dr. Joel Beeke.
Retomando-a, agora de modo completo, para que percebamos
como a lei nos conduz constantemente a Cristo:

Eu pensava que tinha de obedecer a lei, e fui a Moisés para


resolver a questão, e ele imediatamente me derrubou. Eu sabia
que merecia isso e não reclamei. Preparei-me, e novamente fui
a ele; com um baque ainda mais severo, segunda vez ele me
derrubou ao chão. Fiquei surpreso e implorei que ele me
escutasse. Mas ele me expulsou do Sinai, e não me deu
nenhuma satisfação. No meu desespero, fui ao Calvário. Ali,
encontrei quem teve piedade de mim, perdoou meus pecados, e
encheu meu coração do seu amor. Eu olhei para ele, e sua
misericórdia curadora penetrou todo meu ser, e curou minha
moléstia interna. Agora, voltei para Moisés para lhe contar o que
acontecera. Ele sorriu para mim, cumprimentou-me e me
recebeu com grande amor; desde então ele nunca mais me
derrubou. Fui por meio do Calvário até o Sinai, e todos os seus
trovões estão silenciosos.31

Louvado seja o Senhor, por sua santa e perfeita regra de justiça!


Que ele nos auxilie em nosso santo dever de obediência!

31 Joel R. Beeke. Lutando Contra Satanás. p. 118.


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• Quando o Dia Nasceu (Pieter Jongeling)

• Que é um Culto Reformado (Daniel Hyde)

• Reforma Ontem, Hoje e Amanhã (Carl Trueman)

• Todo o Conselho de Deus... (Ryan McGraw)

• Um Trabalho de Amor: Prioridades pastorais de um puritano (J. Stephen


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