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Ficha Técnica

Título: Parábola do Cágado Velho


Autor: Pepetela
Design de capa: Atelier Henrique Cayatte
com Rita M úrias
Ilustração da capa: M iguel Imbirimba
Revisão: Susana Baeta
ISBN: 9789722042468
Publicações Dom Quixote
[Uma chancela do grupo Leya]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
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Para a Mena,
que me revelou Munakazi,
numa noite de muito segredo.
INVOCAÇÃO
Suku-Nzambi criou aquele mundo. Aquele e outros, todos os mundos.
Suku-Nzambi, cansado, se pôs a dormir. E os homens saíram da Grande Mãe Serpente, a que engole a própria cauda.
Feti, o primeiro, no Centro foi gerado pela serpente de água e da água saiu. Nambalisita, no Sul, do ovo saiu, partindo a
própria casca. Namutu e Samutu, os dois gémeos de sexo diferente, pais dos homens do país lunda, da serpente mãe
directamente saíram.
A obra de Suku-Nzambi estava completa. Mas nunca se interessou por ela. E a obra de Suku-Nzambi parecia esquecida
de viver.
Até hoje os homens, parados, atónitos, estão à espera de Suku-Nzambi. Aprenderão um dia a viver? Ou aquilo que vão
fazendo, gerar filhos e mais filhos, produzir comida para outros, se matarem por desígnios insondáveis, sempre à espera da
palavra salvadora de Suku-Nzambi, aquilo mesmo é a vida?
1
Ulume, o homem, olha o seu mundo.
Por vezes a terra lhe parece estranha. Fica num planalto sem fim, embora se saiba que tudo acaba no mar. Chanas e cursos
de água por toda a parte. Junto dos rios tem florestas, nalguns pontos apenas muxitos, aquelas matitas em baixas húmidas. As
elevações são pequenas, excepto a Munda que corta a terra no sentido norte-sul. Nunca se vê o cume da Munda, sempre
encoberto por espessos nevoeiros. O seu kimbo fica colado ao pé da Munda, outra forma de dizer montanha, na base de um
morro encimado por grandes rochedos cinzentos, por vezes azuis. De cima do morro sai um regato que acaba por se acoitar,
muito à frente, num rio largo, o Kuanza de todas forças e maravilhas, quase fora do seu mundo. Desse regato tiram a água
para as nakas, onde verdejam os legumes e o milho de bandeiras brancas. Nele também bebe o gado. Mesmo no tempo das
piores secas a água do regato nunca falhou. No alto do morro ainda, existe a gruta de onde todos os dias sai um enorme
cágado para ir beber a água da fonte. Palmeiras de folhas irrequietas rodeiam o kimbo, casando com mangueiras e
bananeiras, pintando de verde-escuro os amarelos e verdes esbatidos do capim e do milho.
Neste quadro familiar, algo faz a terra se afigurar de repente estranha. É um momento especial a meio da tarde em que
tudo parece parar. O vento não agita as palmas, as aves suspendem seus cantos, o sol brilha num azul profundo sem
fulgurações. Até o restolhar dos insectos deixa de ser ouvido. Como se a vida ficasse em suspenso, só, na luminosidade dum
céu enxuto. Um instante apenas. E nem sempre acontece. O tempo precisa de estar limpo, de preferência depois de uma
chuvada, a Lua tem de aparecer apesar do Sol, e no peito deve ter a angústia da espera.
Todos os dias sobe ao morro mais próximo, senta nas pedras a fumar o cachimbo que ele próprio talhou em madeira dura,
e espera. A passagem do cágado velho, mais velho que ele pois já lá estava quando nasceu, e o momento da paragem do
tempo. É um momento doloroso, pelo medo do estranho. Apesar das décadas passadas desde a primeira vez. Mas também é
um instante de beleza, pois vê o mundo parado a seus pés. Como se um gesto fosse importante, essencial, mudando a ordem
das coisas. Odeia e ama esse instante e dele não pode escapar.
Quando ainda muito jovem, falou disso aos outros. Ninguém notara, imaginação só dele. Também era o único que ia para
o cimo do morro observar o vale e o mundo. Os amigos conheciam a existência do cágado velho, mas preferiam as
cercanias do kimbo, onde brincavam e tentavam namorar as raparigas que iam ao regato. Assim, o cume do Mundo ficava só
para ele. Nunca mais falou desse estranho instante, nem a Munakazi. Ela perguntou no princípio da vida comum, mas que
hábito é esse de ires todos os dias para cima do morro à tarde? E ele respondeu é só um hábito desde criança. Tentou ligar
essa sensação a coisas que lhe sucediam depois, como predição do que vai vir. Mas nada. Não havia ligação possível de
adivinhar. As coisas iam e vinham, boas ou más, quer chegasse o instante quer não.
Acontecia apenas. No seu rabo não parecia trazer o bem ou o mal, o desejado ou o temido.
E continua a acontecer, de vez em quando. Talvez mais frequentemente agora. E Ulume fica apenas vazio, numa grande
paz intranquila.
2
Houve um tempo anterior a tudo, há sempre, não é mesmo?
Munakazi era dum kimbo próximo, a duas horas de marcha na chana para ocidente. Era um kimbo mais pequeno e mais
pobre, retirado dos caminhos principais que cruzavam a Munda. Ulume reparou nela em noite de festa. A rapariga estava
sentada com outras à volta da fogueira, esperando o aquecer dos tambores para o rítimo se soltar das peles dos ngomas e
entrar nas pernas e mãos que não mais parariam. Os pés dela o atraíram. Ela sentava de joelhos unidos, mas um pé olhando
o outro, os dedos grandes levantados. Dos pés subiu para os olhos iluminados pelo clarão da fogueira, grandes olhos
melancólicos de antílope. As maçãs do rosto ligeiramente salientes, os lábios carnudos bem desenhados. Era bela,
Munakazi. No próprio riso, na ansiedade da dança iminente, uma ponta de melancolia. Não pôde mais separar Munakazi e a
melancolia. Ela falava, ria com as outras, mas uma parte estava dentro dela própria, sempre.
Ulume era bem mais velho, casado com a Muari e tendo filhos já grandes, talvez mais velhos que a rapariga. A partir da
noite em que seus olhos caíram sobre os pés convergentes de Munakazi, se encontraram mais vezes nas festas ou cerimónias
rituais e ele a fitava com agrado. Apenas.
Mas sucedeu a cena da granada, como um aviso dos antepassados. A granada vinha no ar e ele deitado no meio do talude.
A granada caiu a dois metros. Placado ao solo, encostou a cabeça na terra e pensou vou morrer. Não havia tempo para o
medo. Olhou o céu azul pela última vez e então a imagem de Munakazi se recortou, nítida, na luminosidade do dia. Uma
saudade imensa, saudade do que não acontecera. Ouviu a explosão, mais nada, mas continuou a ver Munakazi sorrindo para
ele e lhe segredando porque não me procuraste, seria tua. E sofreu a perda definitiva de Munakazi. Nada sentia no corpo,
não tinha sensações, só a saudade era dolorosa.
O sentimento de perda acompanhou-o, mesmo quando se apercebeu de continuar vivo. Difícil foi passar o atordoamento
pela explosão tão próxima, recuperar o domínio dos sentidos, difícil foi compreender como não morrera. Mas o
atordoamento e a perplexidade não tinham peso em face do peso de mil mundas da saudade de Munakazi.
Decidiu ali, sem ainda saber quanto estava ferido, Munakazi tem de ser minha. Não fazia senão seguir a sabedoria vinda
de muito atrás, pois se alguém que pensa morrer tem saudade de uma mulher, então é inútil lutar contra esse amor
avassalador, o mais sensato é conviver com ele. Sabedorias antigas trazidas por todos os cágados do mundo. E Ulume
respeitava os ensinamentos dos antepassados, resguardados nas mahambas que se enterram à entrada dos kimbos ou nas
encruzilhadas dos caminhos, como respeitava os desejos dos espíritos que se manifestavam no sangue dos galos, nas
entranhas dos cabritos ou na forma como a areia se espalhava pelo chão e na ordem com que os objectos se posicionavam
no cesto de adivinhação do tahi da Lunda. Nunca os seus lábios proferiram qualquer blasfémia contra os antepassados, ou
contra o espírito que agitava o vento. Como podia então desprezar ou mesmo só ignorar o sinal evidente que a granada lhe
deu? A sua decisão de ter Munakazi era irrevogável, ele sabia, e nós a partir de agora como vamos esquecer?
3
Os mais velhos do kimbo contavam, ainda Ulume era pequeno.
Nesta terra sempre passaram guerras. Um soba grande queria anexar uma chana boa para a caça? Mandava tocar os
ngomas, tambores de guerra, reunia o exército de camponeses, ocupava o território. O soba espoliado mandava por sua vez
tocar os ngomas, reunia um exército, aqueles comedores de gente invadiram a terra dos nossos antepassados, temos de os
expulsar. E combatiam nas chanas, nas florestas, na Munda central. Os exércitos lutavam mas também os espíritos,
convocados pelos kimbandas dos dois lados. Ganhava um ou outro, o certo é que muita gente morria. Durante o tempo da
guerra não se podia cultivar. Os celeiros ficavam vazios, a fome vinha.
Tempos depois, o soba local cobiçava novos territórios. Os espíritos dos antepassados, incomodados na prisão das suas
mahambas, limitados nas copas das árvores em que se abrigavam, exigiam espaço. Os ngomas de guerra soavam, jovens
eram apanhados nos kimbos, lá ia o soba com seu exército ocupar a curva do rio ou a colina de mel apetecida. Regressava
depois com os pobres despojos ou apenas os farrapos. E a fome, sempre à espreita, voltava.
Sempre foi assim, desde os avós dos avós. Mais tarde vieram os brancos. Exércitos de negros de outras regiões,
comandados por brancos, vinham ocupar terras e apanhar escravos em guerras de kuata-kuata. As aldeias ficavam quase
desertas, só velhos e crianças sobravam. Para morrer de fome e desespero pouco depois. O povo no entanto teimosamente
continuava a existir, graças aos poucos casais que conseguiam se esconder na Munda central, de difícil acesso. Se
reproduziam e iam povoando os antigos sítios. Até vir nova guerra para colheita de escravos.
E depois acabaram as guerras de kuata-kuata. Os brancos se fixaram em povoações, fundaram Calpe, a cidade do sonho.
De Calpe vinha tudo, o bom e o mau. Para Calpe fugiam os jovens, à procura do sonho. Aqui perto, a dois dias de marcha,
do outro lado da montanha. Mas as guerras não pararam totalmente. Por vezes havia revoltas e os brancos vinham com seus
sipaios arrasar tudo. De novo, do mais profundo das Mundas, o povo renascia.
Agora sim, acabaram as guerras e as revoltas. Mas não há paz. A fome sempre persiste, pois a abundância que a terra
produz só chega para pagar os impostos, nunca para saciar a nossa fome. E se protestamos, a palmatória e o chicote aí estão
para nos calar. Por isso, ainda vai haver uma grande revolta.
Falavam assim os sekulos, os kotas, os makulundus do kimbo, nomes de línguas diferentes para designar os mais velhos,
os mais sábios. Quando Ulume era pequeno.
E já Ulume estava casado e tinha filhos pequenos, estoirou mesmo a grande revolta. Em alguns sítios, das aldeias se
levantou gente com as armas possíveis e os brancos fugiram para a segurança de Calpe. Com os brancos foram os sipaios e
os criados. Os kimbos daquele lado estavam muito isolados, por isso ele e os amigos não participaram. Mas sofreram as
consequências como os outros.
A guerra voltou. Aviões e canhões destruíram os kimbos e as gentes tornaram a se entranhar nas profundezas das Mundas
para sobreviver e lutar. Anos e anos. E a fome sempre presente, pois é difícil cultivar ou tratar do gado se vivemos
escondidos em fuga. Ulume entendeu as razões desta dura guerra contra a fome, o imposto e a palmatória. Diferente
daquelas guerras anteriores, de sobas ou de kuata-kuata, que o povo não compreendia nem queria.
Um dia aconteceu como aquele instante da tarde. A guerra acabou e tudo ficou estranhamente parado e silencioso, só o
mujimbo corria. Eles se olhavam, nas Mundas, sem acreditar nas palavras: a paz era definitiva? Muitos brancos
abandonaram as terras, mesmo de Calpe partiram.
Na região, as lojas e fazendas ficaram vazias. Da presença dos brancos só sobraram alguns mulatos esquecidos pelos pais
na fuga, e a menina Maria, branca que abandonou a família para se integrar na de Gonga. E muitas palavras que aprenderam
a pronunciar com os comerciantes e os padres. Os miúdos, alguns, aprenderam mais porque andaram nas escolas.
Foram os tempos anteriores a tudo isto que passa hoje. Os tempos anteriores a Munakazi. Há sempre um tempo antes do
tempo, não é? Como a fome, sempre anterior a si própria.
4
Ulume aproveitou bem aquele tempo de paz. Com a Muari, a primeira mulher, e mais os dois filhos, alargou as
plantações. A lavra de mandioca foi limpa, a naka recebeu milho e batata e legumes, o gado se multiplicou. As tradições
foram deitadas para trás e também ele trabalhava nos campos, como as mulheres. A guerra tinha feito esquecer os orgulhos
de macho, já não era vergonha capinar e colher. O filho mais velho em breve ia arranjar companheira e podiam produzir
mais, para as crianças que nasceriam. As vitelas cresciam, em breve dariam carne e leite. Agora não havia impostos a
pagar, ninguém que vinha lhes cobrar um cabrito, todos os produtos da terra eram para eles. Sim, a paz era boa e parecia
definitiva.
Ulume ia a meio da tarde para o cimo do morro contemplar o seu mundo e pensar, enquanto se não dava o instante da
paragem súbita do tempo. Pensava no que fora e no agora, nas coisas que tinham mudado. Não havia mais sobas, os brancos
tinham acabado com eles. E, sem os brancos, ninguém que mandava agora naqueles kimbos. Tinham ouvido falar dum
governo que vivia em Calpe e na capital, lá tão longe, mas nunca tinham visto a cara desse senhor nem ouvido a fala dele.
Muitos jovens tinham ido à procura de Calpe, nisso pressentia um perigo escondido. Também os seus filhos? Eles tinham
estudado, primeiro numa escola perto do kimbo, depois numa outra, mais avançada e bem mais distante, tinham de andar
horas na ida e no regresso. Luzolo, o mais velho, cansou depressa. Kanda, o mais novo, continuou nos estudos muito tempo.
Também um dia ouviriam o chamado e partiriam para Calpe?
Vinha a angústia da espera e tudo parava. Mais angustiado ficava, temor indefinido. O seu filho Luzolo não ia casar no
kimbo por preferir Calpe? Muita gente estranha aparecia, falava com os jovens, depois desaparecia. Que queriam eles? Da
única vez que lhes ouviu a voz, foi quando lhe gritaram empurra aí, o carro ficou enterrado na lama. Não pediram nem por
favor, deram ordem, malcriados da cidade. Tinha de ter uma conversa com a Muari ou mesmo com o filho mais velho. Esses
homens de fora também falavam com ele de outros assuntos, não para empurrar o carro? Diziam segredos que escondiam
dos mais velhos ou eram só conversas sobre raparigas?
Ulume só falava o que era preciso. Por isso, mesmo no njango, ao fim da tarde, onde os homens maduros se reuniam para
fumar e conversar, ouvia os mais velhos, mas raramente dizia uma palavra. Um dia, a angústia era grande demais e não se
conteve, mas que vêm esses estranhos falar com os jovens?
O sekulo Mona respondeu, cuspindo os restos de tabaco:
— Segredo deles. Bem guardado. Mas coisa boa não deve ser. Esta calma é falsa, o perigo está no ar.
Isso também Ulume sentia. E os outros. Os tempos tinham mudado e os mais velhos já não controlavam os pensamentos e
os sonhos dos jovens. Alguma coisa boa podia sair dali, daquelas cabeças desmioladas? Alguns tinham andado na escola
dos brancos, mas que soubesse, não era o estudo que lhes dava juízo. Decidiu falar com o filho mais velho. Foi à noite,
quando estavam sentados à volta da fogueira, depois do pirão. Fez a pergunta.
— Não é nada, pai, são as nossas conversas.
— Mas conversas sobre quê? perguntou a Muari.
— Só conversas, mãe.
— E donde vêm esses que nos visitam? De Calpe?
— De Calpe e de outros sítios.
O filho mais velho sorria, encolhia os ombros, calmo e reservado, não ia falar mais. Luzolo era como o pai, pouco
expansivo.
— Devem ser conversas muito importantes, se vêm de tão longe a partir carros só para falarem com vocês insistiu Ulume.
O filho mais velho voltou a sorrir aquele sorriso calmo dele, voltou a encolher os ombros. O segundo filho era muito
diferente, mais magro, impaciente, sempre pronto para lutar. Esperou que o irmão falasse, olhando-o intensamente. Ao fim
do longo silêncio, se mexeu, levantou, proferiu com raiva mal dissimulada:
— Conversas sobre política, pai.
— Cala a boca — ordenou o irmão mais velho.
— É isso, pai — continuou Kanda, o mais novo. — Comigo não falam, pois eu logo percebi que são aldrabões.
— Há outros que vêm também falar contigo e os teus amigos — replicou Luzolo. — Porquê que estás a esconder? Esses
não são aldrabões?
A Muari acabou com a tensão, mandando toda a gente dormir. Só Ulume não pegou no sono. Se antes estava preocupado,
agora se aproximava da aflição, não só porque os filhos falavam de coisas que ele desconhecia por completo, mas por se
enfrentarem nitidamente. E com raiva inequívoca. Que conversas terríveis eram essas que podiam levar os dois irmãos,
antes sempre amigos, irmãos de sangue e de mukanda, a se olharem de maneira tão raivosa?
Havia mais festas nas diferentes aldeias, pois o milho em fartura dava para fazer muita quissangua, bebida de que se
alimentam os dançarinos. E eles não perdiam agora nenhuma festa, para se desforrarem dos anos da guerra. Numa dessas
noites reparou em Munakazi. Ou antes, nos pés dela que se olhavam, os dedos grandes para cima. E na sua ligeira
melancolia.
5
Ulume, no cimo do morro da sua infância, pensava na insânia dos jovens, opostos em brigas que ninguém entendia. Cada
vez mais frequentes. Mas nem sempre os jovens eram desmiolados, às vezes davam lição aos mais velhos. Como quando
destronaram o soba-cazumbi.
Era no tempo do pai do seu pai. O soba era um homem belo, diziam as mulheres nas rodas de kuribotice e risinhos
descarados. Mas era tão frio que nenhum músculo da cara mexia, mesmo quando ria. Era fraco e parecia bom, no princípio.
Depois começou a fazer negócios com os brancos, a lhes vender homens que iam para as terras de café. Foi ficando mau à
medida que o tempo passava e o corpo envelhecia. A cara porém permanecia na mesma, de pele muito lisa, sem nenhum
esgar de riso ou raiva.
E o Bruco voltou a ser utilizado como castigo. Buraco enorme, parecia chegar ao princípio do mundo. Dele se dizia que
podia tragar todos os rochedos da Munda central. De facto, pedra que se atirasse para dentro dele levava muito tempo a
cair, produzindo ruídos de choques e também outros ruídos, estes muito mais estranhos, de prolongados lamentos. Nunca
ninguém desceu com vida ao Bruco. Se dizia tinha monstros omakisi, comedores de homens, plantas que engoliam animais
inteiros, e sobretudo espíritos. Os que gemiam eram espíritos de falecidos recentes. Os mais antigos se tinham libertado do
buraco, pois é bem conhecido que o espírito vai ganhando altura à medida do tempo que passa, como o de Feti, o primeiro
homem, nascido das águas, e que agora paira lá bem para cima das nuvens, impossibilitado pela distância de fazer o bem e
o mal. Os mortos mais recentes ainda estavam no Bruco, alguns já perto da borda, e eram esses que mais se lamentavam
com as pedradas. De um espírito tudo pode sair, benefícios inesperados ou as piores desgraças, por isso ninguém se
aproximava do buraco sem um aperto no coração. E muito mais quando o soba voltou a utilizar o Bruco para nele precipitar
os seus opositores, reais ou supostos.
Nessa altura alguém lhe deu o nome de soba-cazumbi, pois só um cazumbi ri sem que as bochechas estremeçam. E só um
cazumbi empedernido se alimenta das vidas dos outros homens. Segredavam o nome a medo, acompanhado de batimentos de
palmas com certo rítimo e exclamações veladas, mistura de pavor e gozo, se é possível tal combinação. O soba acabou por
ser informado do nome infamante e mais uns tantos populares foram parar ao fundo do Bruco. Ninguém ousava pronunciar a
alcunha, batiam só as palmas com o tal rítimo particular. Mesmo assim, alguns foram precipitados no buraco. Nem palmas
tinham batido, nem já mesmo para cumprimentar um mais velho, mas serviam de exemplo. O terror passou a reinar solto nas
aldeias. Foi dessa época que se perdeu o costume de cumprimentar batendo palmas e inclinando a cabeça, como se faz ainda
em outros sítios.
Mas os jovens são atrevidos. E os que fizeram a mukanda juntamente com o pai do seu pai formavam um grupo unido e se
tratavam por irmãos, como mandava a tradição. Decidiram infernizar a vida do soba-cazumbi. Fizeram uma jura de sangue
sobre o que se propunham e os meios a usar. O segredo foi conservado por fortes ameaças de feitiço. Ali não havia outra
possibilidade senão irem todos juntos e sem traições até ao fim. Nenhum mais velho sequer desconfiou do pacto feito pelo
grupo de mukanda.
No silêncio da noite, com mil cautelas, os jovens rodeavam a ombala real e zumbiam soba-cazumbi, cazumbi, cazumbi,
zumbi, zumbi, zumbidos que enchiam a escuridão de estremecimentos. Raivoso, o soba mandava os guardas procurar as
cigarras hereges. Mas nada. As marcas deixadas pelos pés se perdiam no meio das outras e davam para todos os kimbos.
Nenhum podia ser incriminado. De desespero, o soba deu para emagrecer, nem dormia à espera dos zumbidos, mesmo
quando os vingadores passavam noites sem aparecer. A ombala do rei ficava no centro das aldeias e por vezes os outros
habitantes ouviam os zumbidos, percebiam a ofensa mortal. Mais apavorados se apertavam contra as esteiras, julgando que
os zumbidos eram avisos de males maiores, provocados por espíritos injustiçados. O pânico aumentava, cada vez mais
individualizado, pois nenhum ousava comentar com o vizinho, por medo de denúncia. Quem conhecia quem no reino de
soba-cazumbi? Os mais afoitos ou descuidados, que levianamente se tinham referido ao nome da infâmia, estavam no Bruco,
penando. Nem marido tratava o soba pela alcunha ao falar com a mulher, nas noites ciciadas de cacimbo. E ninguém ousava
perguntar aos adivinhos que zumbidos eram aqueles trazidos por vezes pelo vento, logo seguidos pelas pancadas dos
guardas nas portas, invadindo os lares, sem mesmo saberem o que procurar. Mas os guardas procuravam, partindo tudo. O
curioso é todas as pessoas pensarem, sem que isso nunca tivesse sido sequer sugerido, que os zumbidos vinham dos
verdadeiros cazumbis, os espíritos dos infelizes atirados para o Bruco pela loucura do soba. A sua vingança seria essa, de
aterrorizarem o soba chamando-lhe o nome que mais se ajustaria a eles próprios. Mas esta unanimidade de pensamento só
foi conhecida mais tarde, quando as línguas se soltaram.
Uma noite o Yelali, deitado no mato com mulher casada cujo marido viajara, não escapou a tempo quando os zumbidos
começaram. Deixou fugir a mulher, treinada em esconder adultérios. Yelali ficou, ou petrificado pelo medo, ou mordido por
curiosidade fatal, procurando talvez interpretar os ruídos, na densa escuridão, perto da ombala real. Ainda o pénis estava
teso, pelo amor inacabado, quando foi rodeado pelos guardas. Levaram logo o infeliz à presença do soba-cazumbi. Talvez
foi o medo descomunal, mas o falo de Yelali não se encolheu para dentro da tanga, o que ainda mais irritou o soba. É este o
feiticeiro e ainda fica teso em desafio? Para o Bruco. O pobre Yelali foi atirado, mas antes lhe cortaram a ponta do pénis.
Aí o povo foi informado pelos arautos do rei, Yelali zumbia à noite o nome infamante do soba e dele só restou a ponta da
kinhunga. Estava pois finalmente encontrado o feiticeiro.
As pessoas respiraram mais aliviadas, embora lamentassem a sorte de Yelali. Acabados os zumbidos, sempre haveria
mais tranquilidade à noite. Só que o jogo continuou, nas noites seguintes. E os guardas desconseguiam apanhar outros
perdidos pelo mato, em amores clandestinos. O soba se enfurecia e emagrecia, os olhos cada vez mais cavados na pele lisa.
A estória chegou finalmente aos ouvidos do velho Caxinde, soba que reinava para lá do rio. Veio um mensageiro de
Caxinde, oferecendo a arte do kimbanda Tati para acabar com os zumbidos. Em vez de ficar agradecido e mandar o
mensageiro de volta com presentes, soba-cazumbi só viu o lado negativo. Então nas terras do Caxinde, esse velho nojento,
já chegou o mujimbo? E gozam com ele? Mandou matar o mensageiro e reunir as gentes para a guerra de limpar o nome.
Lá foi o povo acompanhar o soba enlouquecido. Mas ninguém refilava, com medo de ir parar no Bruco. O grupo da
mukanda do pai do seu pai também foi, claro. E não deixou o soba descansar. No kilombo de guerra, à noite, os zumbidos
persistiam, agora ouvidos por toda a gente. No dia seguinte avançava o exército, cada vez mais cansado. Montavam novo
kilombo e a noite era cruzada pelo uivar das hienas, que sempre acompanham os exércitos à cata de pitéu humano, e pelos
zumbidos de soba-cazumbi, cazumbi, zumbi, zumbi... Até que chegaram às terras de Caxinde, trôpegos de medo e sono,
vencidos antecipadamente por tanto odiarem e temerem o seu comandante. Que Ulume se lembre, foi a batalha mais breve e
de menos mortos. Bastou aparecer a guarda avançada de Caxinde para o exército desmoralizado de soba-cazumbi começar a
correr em direcção às terras onde ficaram as famílias. O soba permaneceu apenas com a sua guarda próxima e foi justiçado.
Caxinde foi entretanto informado pelos jovens da mukanda sobre a origem dos zumbidos. Velho sabido, não aproveitou
avançar para as terras indefesas do rival abatido. E deixou levarem o corpo decepado de soba-cazumbi para ser atirado no
Bruco. Merecia outra sepultura?
Então o branco veio e nomeou um regedor para chefiar o povo e apanhar as palmatoadas no Posto se os kimbos não
pagassem o imposto. Aí acabaram os verdadeiros sobas naquela terra, embora de vez em quando um regedor ambicioso
queira se locupletar com o título honroso.
Talvez sejam de soba-cazumbi os lamentos mais desesperados que saem do buraco, gelando o coração dos que os ouvem.
Se é dele o espírito ululante, já está muito perto da saída. Que sucederá quando puder pairar à superfície? Haka, já pouca
coisa. Os rapazes do grupo de mukanda morreram todos e os seus filhos também. Poderia o espírito de soba-cazumbi,
cazumbi real agora, reconhecer os netos deles? Nada menos certo. No entanto, alguma prudência ainda se impõe, já que o
recordar reaviva a força dos espíritos. E essa estória de soba-cazumbi é sempre contada e recontada no njango ou nos
serões à volta da fogueira. Quem sabe o cazumbi dele sai do Bruco cheio de vigor e espírito de vingança?
As conversas escondidas dos jovens de agora têm alguma relação com os tempos do terror passado? Crianças
estouvadas, não sabem os efeitos de brincar com os espíritos.
6
Das guerras e fomes anteriores ainda trazia as cicatrizes. Sobretudo das duas filhas que tinham morrido de doença. Ou
fome, quem sabe? A Muari nunca mais tinha engravidado. Ulume chegou a talhar uma serpente num retorcido tronco de
árvore, para, como manda a tradição, pôr embaixo do catre onde dorme a Muari e assim levá-la a engravidar. Nem esse
remédio, o mais forte que se conhece para mulheres estéreis, resultou. Devia ser mesmo a vontade da Muari a resistir a
tudo. Recusa de parir para alimentar a morte? Só lhe restavam assim os dois filhos. E perdeu um, naquele dia que vieram os
carros e Luzolo se meteu num deles, juntamente com outros jovens. A mãe chorava, queria segurar no filho, ele disse deixe
mãe, depois volto. Nunca mais voltou. Kanda resmungava pelos cantos, um dia o ouviu dizer a um amigo, esse meu irmão
Luzolo sempre foi parvo e teimoso.
No princípio pensou que era apenas um passeio, todos os jovens queriam conhecer Calpe, íman que os atraía mais que um
dourado favo de mel. Passou tempo e Luzolo nunca mais apareceu. Notícias chegaram dizendo que agora era soldado.
Kanda barafustou, burro, estúpido, falava pelos cantos como se um cazumbi tivesse entrado nele, dava murros na parede,
vejam o que fez o vosso primogénito, o preferido. Injusto como todos os jovens. Luzolo não era o preferido, naquela casa
não havia preferidos. Quis dizer isso a Kanda, mas depois achou, deixa ficar, aquele rebelde não merecia resposta.
Perdeu o segundo filho, da mesma maneira que o primeiro. Kanda entrou no carro, adeus gente, levou apenas um saquito
com as suas coisas. Chegou mais tarde o mujimbo anunciando que se tornara soldado. Porque ficara Kanda tão zangado ao
saber que Luzolo entrara num exército, se agora fazia o mesmo? Ulume decididamente não entendia os jovens. No njango os
mais velhos lhe explicaram, Kanda e Luzolo eram soldados, só que não estavam no mesmo exército, eram adversários,
talvez inimigos.
A meio da tarde, no cimo do morro, esperando a paragem do tempo, com mais angústia que o habitual, percebeu. Há
muito se anunciavam maus presságios, ele não os soubera ler, apenas pressentir. Daí esse arfar no peito espantado. Olhou na
direcção de Calpe. Sabia, ela estava lá, a cidade que para muitos era de sonho e a ele trazia apenas temor. A distância era
grande, nem um ruído nem uma ténue coluna de fumo a indicavam. Mas ela estava lá, a dois ou três dias de marcha, ele
sabia. Nunca tivera curiosidade de a conhecer, sempre a sentira como um perigo longínquo. Agora o perigo estava mais
perto, cada vez mais perto.
Não o perigo anunciado pelo cágado velho que saiu da gruta e para ele caminhava, nos seus passos incertos. Os cágados
não trazem perigos e esse era seu conhecido desde sempre. Habitava na gruta perto do sítio onde Ulume todas as tardes se
sentava. Passava perto dele para ir beber água onde nascia o regato que dessedentava as suas plantações e os gados e as
gentes. Era sempre o primeiro a beber daquela água, a água da criação. Ulume deixava-o beber e voltar para perto da gruta,
onde ficava a comer capim tenrinho. Depois Ulume se levantava e ia também beber água. Estavam estreitamente unidos
nesse ritual de serem os primeiros a beber daquele regato. Mas sempre Ulume deixava as primícias para o cágado, nunca se
perguntara porquê. Como se cumprisse um cerimonial desconhecido mas eterno.
Desta vez, porém, o homem não deixou o cágado prosseguir o seu caminho, como desde há décadas. Tão desesperado
estava que falou para ele, quebrando a tradição que tinham mudamente estabelecido:
— Dizem, os cágados são os mais sábios. Não me queres então explicar o que passa nesta terra? Deves saber, tu sabes
tudo.
O animal continuou a caminho do regato, poisando timidamente uma pata antes de levantar a outra. Não ergueu a cabeça,
como desentendido.
— Sei que me estás a ouvir, cágado velho. Não te incomodaria se não precisasse. Anos e anos passaram e sempre te
deixei sossegado, ruminando os teus silêncios. Mas hoje preciso da tua sabedoria. Ou será falso aquilo que os mais velhos
dizem e afinal és apenas um animal ignorante como os outros?
O cágado hesitou mais tempo a dar nova passada. Estava mesmo à frente de Ulume. Pareceu levantar a cabeça para ele,
mas depois prosseguiu caminho. Como se nada tivesse acontecido. Mas tinha hesitado, disso Ulume estava certo. Ou seria
tão forte o desejo dele que até já via hesitações onde só a determinação habitava? Calou e o cágado passou. Calado ficou, a
vê-lo beber lentamente, levantando a cabeça para cada gole. Quando, muito tempo depois, o cágado voltou a passar por ele,
a caminho da gruta, não lhe dirigiu palavra. Tinha aprendido que se não devia forçar os cágados a nada, eram animais de
respeito. Por isso tinha ficado muito chocado, um dia, ao saber que em certas zonas os homens os comiam. Estremeceu ao
lembrar os pormenores. Cortavam as patas e a cabeça, viravam os bichos de barriga para o ar e assim os assavam na
fogueira. A carapaça era a frigideira. Bárbaros! Nem nas maiores fomes tinha sequer pensado em o apanhar e o assar,
quando o cágado velho por ele passava todas as tardes. Por causa de heresias dessas estava o mundo desde sempre de patas
para o ar, como o cágado na fogueira, a carapaça para baixo, a terra em cima do firmamento.
Aconteceu então. A Lua estava em oposição ao Sol. Primeiro foi a contracção na barriga, vontade de se meter dentro da
terra. Pôde apenas apertar mais fortemente os braços em torno dos joelhos. O azul se tornou mais azul, sólido. Os rumores
vindos da aldeia se aquietaram, nada de risos ou gritos de crianças, nem ladrar de cães. Os pássaros desapareceram do céu
e cessaram os pipilares. Uma nuvem inexistente lhe toldou os olhos e só a angústia imperava. Ao mesmo tempo, a sensação
de rasgar caminhos rumo ao mar. No meio da desorientação, lembrou o cágado velho. Por um instante pensou voltar a
cabeça para o observar. Sentiria ele o mesmo? Mas não tinha forças, era apenas capaz de pensar na angústia e na abertura
de caminhos desconhecidos. Uma voz interior lhe dizia vai passar, nunca dura muito, vai passar.
E passou. Olhou para o lado da gruta e viu o animal, mas não a sua cabeça, tapada pelo capim. Estaria também o cágado a
olhar para o mesmo sítio de onde ele conseguira tirar os olhos? Nunca o saberia. E, no entanto, naquele momento achou que
isso era inevitável. Quem sabe até era o cágado a causa do estranho fenómeno? Não são eles o alicerce do mundo, as bases
de todos os tronos, a forma de Mussuma, a capital lunda? Sabedorias antigas, hoje desprezadas pelos jovens que correm
atrás de carros e modas, na busca ansiosa de Calpe e dos prazeres.
Levantou, voltou para a aldeia. À noite havia festa pelo nascimento do filho de Humbi. Nessa festa haveria de novo de
cruzar os olhos com os de Munakazi. Como das outras vezes, ela sorriu para Ulume. Um sorriso melancólico que não mais o
largou. Lá estava ela, no meio das amigas, sentada com um pé a beijar o outro, os dedos gadugas no ar, sorrindo para ele. E
Ulume esquecia os filhos agora adversários, os maus presságios, o difícil instante do meio da tarde. Na noite só os olhos de
Munakazi brilhavam, mortiços, reflectindo os fulgores laranjas vermelhos da fogueira.
7
Começaram então as confusões. Todos nelas falavam, contavam pormenores, vaticínios eram feitos. E ninguém
compreendia nada do que passava. Pelo menos os velhos. Talvez os jovens pudessem explicar, mas há muito eles tinham
abandonado o kimbo, deixando-o para as crianças, mulheres e velhos.
Um dia chegou um homem à aldeia, ferido, com a roupa em farrapos sanguinolentos. Suplicou para o esconderem. Eles
nem tiveram tempo para pensar no que fazer. Apareceram soldados, quatro ao todo, pegaram no homem, empurraram-no
para uma árvore, uma rajada atordoou os pássaros e as gentes. Enterrem-no, mandaram. E foram embora pelo caminho de
onde vieram, sem mesmo beberem água. Enterraram o homem, iam fazer mais como então? Durante dias lamentaram o
morto, enterrado sem xinguilamento nem choro de familiares, sem bebida deitada nos caminhos para orientar o espírito.
Muitas teorias foram criadas sobre a origem do finado e as causas da sua morte, todas sem comprovação. E temiam que o
espírito injustiçado rondasse perto e eles pagassem pelo que não fizeram. Tantas outras coisas sucederam entretanto que
foram esquecendo, mesmo o local da sepultura. A Muari não esqueceu, por vezes murmurava, podia ter sido um dos meus
filhos. Ele sabia, ao ouvi-la falar sozinha, a que se referia. Mas nunca respondeu.
De outra vez, chegaram soldados à aldeia. Eram muitos, mais que dez. Sentaram no njango, pediram comida. As mulheres
foram preparar o cabrito que Ulume ofereceu, pois disseram conhecer Luzolo. Às perguntas postas pelos velhos, respeitosos
perante jovens que tinham armas e estavam vestidos de verde, respondiam amavelmente. Luzolo conheciam, mas mais
ninguém dos nomes citados. Mas este e aquele foram com Luzolo no mesmo carro, insistiam os velhos. Fulano é meu filho,
outro é meu neto. Muita pena, os nomes não diziam nada, alguns até mudavam de nome ao entrar no exército, Luzolo
mantivera o seu e falava desse kimbo, desse morro, desse regato, por isso sabiam que era a mesma pessoa a que se
referiam. Eram muitos, andavam espalhados por todo o lado, não se podiam conhecer todos. Beberam maluvo das
palmeiras, acabado de ser recolhido, comeram funje com o cabrito, agradeceram, foram. Atrás deixaram os comentários, os
sonhos e olhares malandros das raparigas. Tinham dado explicações sobre a guerra que travavam, mas ninguém percebera
bem.
Outra vez apareceu um grupo de oito. Não conheciam Luzolo, nem outro nome da aldeia. Galinhas foram mortas, porque o
exigiram, tinham fome e o povo devia participar da guerra, alimentando os soldados. Explicaram e ninguém percebeu. E
outro grupo. E outro. Até que um dia chegou o mais numeroso de todos e trazia um recado de Kanda, que estava bem e pedia
que os alimentassem durante dois dias. A Muari não os largava, perguntando por Kanda. Foi preciso matar um bezerro para
alimentar tanta gente durante dois dias. Os celeiros ficaram quase vazios de farinha. Toda a aldeia participou, mas já não
com a boa vontade anterior. Ulume ouviu mesmo Mande refilar, se não estivéssemos perto das colheitas íamos passar fome.
E podia ser apenas impressão, mas lhe pareceu ler nos olhos dos amigos veladas recriminações. Por só os seus filhos serem
conhecidos? Nunca nenhum grupo conhecia os outros rapazes que também tinham ido para os exércitos. Estranha coisa. Ou
apenas coincidência? O exército foi embora, com muitas recomendações da Muari para Kanda. Levaram Dominga, que se
apaixonou por um dos soldados, com grande mágoa dos pais. Duas outras raparigas ficaram grávidas, como a aldeia veio a
saber tempos depois.
Passou o tempo da colheita do milho, sem mais visitas. Mas logo em seguida, apareceram oito soldados, trazendo um
ferido. E um recado do filho do próprio Mande, Zacaria, pedindo ao pai para o esconder até o amigo ficar bom. O ferimento
fora ali perto e Zacaria tinha medo que o soldado não aguentasse a viagem a pé até Calpe. O grupo comeu e bebeu durante
uma semana, até ter a certeza de que o soldado, Ufolo, estava bem. Só então foram embora, com muitas recomendações para
o filho de Mande. Enquanto estiveram na aldeia, ninguém podia sair do kimbo, havia o perigo de chamarem o inimigo. Mas
quem era o inimigo? As mulheres iam às lavras acompanhadas de dois deles, os apanhadores de maluvo também iam
vigiados, ninguém podia caçar. E Ulume foi proibido de subir ao morro à tarde, onde um dos oito ficava sempre de
sentinela. Pela primeira vez na sua vida alguém o despojara do cume do morro. Ainda tentou protestar junto do que parecia
ser o chefe. Este olhou-o com desprezo e o que vais fazer lá acima? Nem foi capaz de dizer era um hábito, uma necessidade
imperiosa. Pelos olhos do rapaz percebeu que ele nunca entenderia. Nós fazemos guarda à aldeia, está descansado, foi a
única resposta que obteve. Por isso, todos se sentiram aliviados quando o grupo foi embora. Sobretudo os pais das
raparigas, pois as cenas com estas tinham sido uma vergonha. Ainda bem que não temos filhas, disse uma noite Ulume para a
mulher, à frente da fogueira. Logo se arrependeu, por causa da tristeza que passou na cara dela. Lembrava as filhas mortas.
Ele apertou os lábios, envergonhado, mas apagou a fogueira para disfarçar a perturbação e foi se deitar.
O ferido já estava bom, começou a ajudar Mande nos trabalhos. À tarde ia para o njango conversar com os homens, de
dia conversava com as raparigas. Chegava a brincar com as crianças. Falou muitas vezes da guerra, primeiro com calor e
entusiasmo. Mas os camponeses notavam que esse entusiasmo ia esmorecendo. Ufolo parecia bom rapaz, respeitador,
opinião unânime de homens e mulheres. Ninguém que lhe tinha apanhado em situações mais comprometedoras com uma
rapariga, nunca uma palavra sua feria os outros. Parecia mesmo um dos filhos do kimbo, antes de aparecerem os homens que
com eles iniciaram as conversas. Centro de todas as atenções femininas quando havia festa, dançava e bebia mas sem se
embebedar nem provocar maka. Por vezes os amigos perguntavam a Mande, mas ele não vai mais embora? Ainda não está
bem forte, era a resposta. Todos percebiam, Mande queria conservá-lo em substituição do filho perdido, grande amigo de
Ufolo, conforme o próprio dizia.
Mas o grupo voltou uma tarde. Explicaram, Ufolo há muito devia ter se apresentado na unidade militar, agora vinham
buscá-lo para ser castigado como desertor. Mande foi procurar Ulume na maior aflição, encontrou-o no cimo do morro.
Nem cumprimentou, entrou logo no assunto:
— Eles vieram buscar Ufolo. E ele foi à caça, não está no kimbo. Mas deve estar a voltar. Temos de o avisar e o
esconder. Como ninguém te viu, vai lá avisá-lo.
Ulume não entendeu porquê. Ufolo até ia ficar satisfeito por reencontrar os amigos, voltar para a guerra de que tanto
gostava. Nada, afinal queria fugir dela, por isso foi ficando pela aldeia, na esperança de que o esquecessem, explicou
Mande. O problema era complicado. Impossível esconder Ufolo por muito tempo. E os outros saberiam imediatamente que
o estavam a esconder, nunca mais saíam do kimbo e a vida ia se tornar num inferno. Talvez se vingassem neles.
— Olha, Mande, deixa Ufolo chegar e ele decide se vai com eles, ou se lhes diz que não quer ir.
— Vieram buscá-lo para o castigo.
— Então não podemos fazer nada.
— Dizes isso porque não é teu filho. Temos de o ajudar.
Ia replicar, também não é teu. Mas a angústia escrita nos olhos de Mande era tão grande que não teve coragem.
— Está bem, eu vou avisá-lo. Mas também lhe vou dizer que tem de se entregar aos amigos, arranjar uma desculpa para o
atraso. Depois fuja se quiser. Mas a aldeia não pode pagar pela decisão dele. Isto é o mais sensato.
Mande regressou ao kimbo e Ulume foi à procura de Ufolo. Não o encontrou nos habituais sítios de caça. Quando voltou
para casa, no fim da tarde, encontrou as mulheres da aldeia em choro silencioso e os homens reunidos no njango, rodeados
pelos soldados. Ulume entrou no njango, analisado com desconfiança pelos militares, embora não lhe tivessem dito nada.
Viu então Ufolo amarrado a uma árvore no centro da aldeia, dois soldados de guarda. Tinha chegado da caça, nem teve
tempo de assobiar. Foi logo amarrado, tratado de traidor. Ele bem que tentou explicar ainda não estou completamente bom,
mas disseram que pelos vistos para caçar estava. Partiam no dia seguinte, com ele amarrado. Comeram, se deitaram com
umas raparigas, dormiram, levaram um cabrito de Mande como multa de qualquer falta incompreensível, e arrastaram
também o pobre Ufolo nas cordas.
Nunca mais se ouviu falar do rapaz. Ficou no kimbo a recordação de uma boa pessoa e a estranha ideia que ele transmitia
sempre nas conversas, as mulheres devem ser iguais aos homens. Ideia que chegou a Munakazi, como Ulume haveria de
descobrir mais tarde.
8
Aconteceu então o episódio da granada. Foi assim.
Um grupo de soldados chegou e pediu comida. Pareciam fugir de qualquer coisa terrível, se podia ler nos olhos que
vasculhavam insistentemente os caminhos de entrada na aldeia. Dois já lá tinham estado em ocasiões diferentes, um levara
Dominga com ele. A comida demorou a chegar. Já rareava e não havia boa vontade, então eles só nos conhecem quando têm
fome? Nem deu tempo para comerem.
Outro grupo entrou pela aldeia aos tiros. Os que chegaram primeiro ripostaram. Mas eram poucos e se esconderam nas
nakas à beira do riacho. Ulume e a Muari se meteram em casa, mas não oferecia protecção, as balas atravessavam-na,
silvando. Era uma confusão de tiros, gritos e explosões. Ulume disse, temos de fugir daqui, vamos para o palmar. Correram,
cada um para seu lado. Tropeçou em corpos, sentiu zunir balas nas suas orelhas, mas conseguiu atingir o palmar. Ficou à
espera que a Muari aparecesse. O tiroteio se aproximava e ela não vinha. Percebeu que mais uma vez estava no meio da
tempestade, pois disparavam de todos os lados e as balas se incrustavam nos rugosos troncos das palmeiras. Correu para a
direita, se enfiou numa vala.
Esta vala tinha sido cavada pela chuva de muitos anos e a altura era de uns quatro metros. Tinha palmeiras e bananeiras,
aqui estava protegido. Se enroscou no meio das folhas das bananeiras, era invisível do alto. Pensava ele. Em breve um
grupo apareceu em cima à sua frente. E depois ouviu vozes atrás, do outro lado da vala. Recomeçaram os tiros, mas estava
protegido em baixo, a guerra cruzava sobre ele. Podia andar entre as bananeiras, seguindo o fundo da vala, para escapar do
fogo cruzado. Porém era perigoso demais, alguém ia notar. Melhor ficar mesmo quietinho até passar a fuzilaria.
Foi então que viu aquele bocado de pau com um ferro na ponta rodopiar no ar e começar a descrever o movimento de
descida. Tinha aprendido com os visitantes anteriores, era uma granada chinesa. Caiu a dois metros dele. Ele sabia, aquilo
ia explodir em segundos. Se colou mais à terra, olhou o céu azul, vou morrer, e o rosto de Munakazi se recortou nítido no
azul intenso, porque não me tiveste? A explosão fez toldar o azul do céu, mas o rosto melancólico de Munakazi ficou
pregado nele. Morri e vejo o céu e vejo Munakazi. Estranha morte. Não ouvia tiros, nem gritos, nem explosões, então a
morte é isso, esse silêncio num céu brilhante, esse parar da vida como naquele instante da tarde, como agora que era meio
da tarde, em que tudo fica extático e ele em cima do morro olhando o seu mundo. O silêncio persistia, o rosto de Munakazi
se apagou, ficou apenas o céu azul. Mas havia uma coisa na morte que era diferente dos outros meios de tarde, não sentia
angústia.
Foi quando percebeu que tremia de medo. Afinal não estava morto. Impossível parar o tremor, ficou muito tempo na
mesma posição, placado no solo, de olhos abertos, vivendo o seu medo e a frustração de com o medo estar vivo. Então
decidiu, Munakazi tem de ser minha.
Os sons voltavam aos ouvidos, passada a surdez da explosão tão próxima. Havia um ou outro tiro, gritos, muitos gritos,
uns de comando, outros de lamento. O tremor foi parando, mas a angústia que o substituiu ainda era pior. Voltar para a
aldeia? O que ia lá encontrar? Ficar aqui, no meio das bananeiras arrancadas pela raiz, as folhas rasgadas por toda a parte?
E a Muari, onde estava? E os cabritos e as galinhas? E a vitela que criava com tanto carinho?
O tempo passou e só o notou porque o frio da noite nele entrou. Os gritos tinham esmorecido e já não havia tiros. Os
ouvidos atentos conseguiam captar um gemido aqui, um lamento lá mais longe. Da aldeia não chegavam os ruídos de pilão a
esmagar o milho ou conversas ciciadas. Não ousava mudar de posição, podia atrair as atenções. O que tinha a fazer era isso
mesmo, fingir de morto, horas e horas de frio, até que as estrelas completassem o seu ciclo gelado.
Mesmo o amanhecer foi diferente, pois os galos estranhamente não cantaram. Mas a vida retomou os seus direitos, com os
insectos escarafunchando entre as folhas, os pássaros esvoaçando ainda sonolentos, o sol se erguendo timidamente entre
nuvens. Todo o corpo doía pela imobilidade e o frio. Experimentou mexer ligeiramente uma perna, depois a outra. Pareciam
pernas de velho, tão rijas estavam. Depois sentou e esfregou o corpo com as mãos geladas. Eram vozes e lamentos que
vinham do kimbo? Sim, mas não havia tiros.
Ficou sentado muito tempo, ganhando coragem. Tinha de ir saber, procurar a Muari. Resolveu primeiro subir ao morro do
cágado e daí olhar a aldeia. Levantou, trôpego, ensaiou alguns passos. Os primeiros foram difíceis, depois conseguiu
endireitar as costas. Deu uma volta, pela parte mais afastada do kimbo, e subiu o morro por trás. O cágado devia dormir na
sua gruta, não apareceu. Com mil precauções, se aproximou da parte da frente do morro, tentando uma camuflagem no capim
baixo. Arriscou um olhar. Não havia restos de fogueiras fumegantes e uma ou outra pessoa se mexia, deitando os braços ao
céu. Não se viam fardas nem armas. Mas os soldados podiam estar a dormir nas cubatas. A distância era grande demais, no
entanto um vulto que de súbito apareceu na esquerda da aldeia tinha o andar inconfundível da Muari. Sim, só podia ser ela.
Ulume viu a mulher se dirigir para o conjunto de três cubatas que constituíam a sua casa. Não tinha dúvida, a Muari estava
viva. Desapareceu por momentos e depois regressou ao ângulo de visão. Agora também ela levantava os braços para o céu.
Pronto, está a chorar a minha morte. Resolveu, tenho de ir lá.
Desceu o morro, agora pela parte que dava directamente para a aldeia. À medida que descia, ia ouvindo os lamentos e
gritos a chamarem por nomes de pessoas desaparecidas. Os soldados já lá não estavam, era evidente.
Foi recebido por muitas exclamações de alegria, era mais um que tinha escapado. A Muari tinha tido um percurso
semelhante ao seu, mas fugira pela esquerda e não tivera nenhuma granada a lhe cair ao lado. Também passou a noite
escondida. E quase todos os outros que estavam agora na aldeia. Porque faltavam dois homens e três mulheres. Mande e
Abílio foram vistos a ajudar os soldados no transporte de todas as galinhas e cabritos que puderam. Ana e Chisole também.
Mas faltava Catarina, uma jovem filha de Epole. Não tinha participado no transporte, devia andar perdida por aí. Ou morta.
Foram vasculhando nos seus haveres, fazendo as contas. E esperando pelos que faltavam. Se os outros quatro foram com
os soldados, ainda podiam demorar. Dependia da distância. E também podiam ficar prisioneiros e nunca mais voltarem. O
marido de Chisole só abanava a cabeça, sem dizer palavra. Quem ia tomar conta das duas crianças que tinham se escondido
com ele? Ana e Mande eram casados, foram juntos. Abílio deixava a mulher e duas filhas pequenas. Ele vai voltar breve,
consolavam, mas a mulher estava desesperada. Constataram também que poucos animais tinham sobrado na aldeia. Ulume
ficou com uma galinha, a de pescoço pelado. E a vitela. Os cabritos foram levados, quase toda a sua riqueza se esfumara. O
mesmo acontecia com os outros. Havia mesmo quem tivesse perdido absolutamente todos os animais. Os soldados deixaram
o milho, não tinham braços que chegassem para carregar tudo e por isso escolheram o mais precioso.
Durante o dia encontraram o corpo de Catarina, atravessado pelas balas, e com sinais de ter sido violada. E no dia
seguinte apareceu Abílio, cansado e esfarrapado. Tinha aproveitado um momento de desatenção dos soldados e fugiu. Agora
ia pegar na mulher e nas filhas e se embrenhar pela Munda central. Disse aqui não podemos ficar, eles vão voltar. Temos de
retomar a vida errante dos nossos antepassados, no meio das montanhas, mudando de sítio todos os anos. Explicou ainda
que os soldados levaram os animais como castigo porque tínhamos ajudado o inimigo. Mas afinal quem é o inimigo? Os que
entraram primeiro na aldeia e foram atacados, esses são o inimigo, explicou Abílio.
Discutiram no njango durante muito tempo se deviam mudar a aldeia. Alguns achavam sim, vamos mais para dentro, onde
haja água. Este é um lugar de passagem, com muitos caminhos, até os carros podem chegar, vêm sempre nos incomodar. Ou
o inimigo ou o não inimigo. Outros, como Ulume, queriam ficar. E a Muari disse daqui não saio, os meus filhos podem
aparecer e depois não me encontram. Ulume tinha outras razões que não mencionou. O marido de Chisole também ficava,
como ia avançar pelas montanhas com duas crianças? E se Chisole voltasse? Alguns mais não abandonavam o kimbo. No
entanto, a maioria decidiu ir embora.
Foi um grupo à frente fazer exploração. Encontraram um bom sítio a um dia de marcha, era bem no meio da Munda, ali
ninguém que chegava. Carregaram toda a comida que puderam, foram com as famílias. Enquanto preparassem as novas
lavras, se alimentariam das que deixavam para trás. De vez em quando viriam elementos colher a comida para uns dias.
Indicaram o sítio novo, vão lá nos visitar. Ou para ficar definitivamente, se a situação aqui piorar, pois lá tem terras para
todos.
Foi nessa altura que Ulume aproveitou contar à Muari o seu desejo de casar com Munakazi. Ela não o contrariou. Disse
apenas esse é o teu direito, eu aceito, mas talvez não seja a melhor altura. Não tinham cabritos para oferecer à família de
Munakazi, muito menos cobertores ou vinho Como pagar o alembamento? Mas Ulume já encontrara a resposta, então não
tinham a vitela? Nos tempos que corriam era um bem precioso, compensava tudo o resto. E os dois braços de Munakazi,
rapariga forte, seriam importantes para trabalhar a terra das nakas agora abandonadas, boa terra tinham demais. Mas o
motivo principal deixou ele para o fim. Contou então a cena da granada e o rosto de Munakazi recortado contra o céu azul.
Muari concordou, razão forte demais. Versada nos conhecimentos antigos, o olhar perdido nas chamas da fogueira, ela disse
cumpre o teu destino, o sinal é demasiado evidente para o ignorares, algum antepassado falou através da granada. E
Munakazi vai nos dar muitos filhos.
9
O kimbo de Munakazi ficava mais afastado dos caminhos, por isso recebia muito menos visitantes incómodos. Os
residentes ouviram as notícias trazidas por Ulume com inquietação. Depois de passar o mujimbo completo dos últimos
acontecimentos, Ulume combinou uma conversa com o pai de Munakazi a sós, na sua residência. Este recebeu o pedido de
casamento com benevolência, se conheciam há muitos anos. E uma vitela era um bom alembamento, nos tempos de miséria e
insegurança que corriam. Sobretudo se acompanhada por cinco cabritos, a pagar quando o pretendente reconstituísse o
rebanho. Também o maluvo que Ulume levara tinha muito boa qualidade, aquecia os corações e tornava-os mais receptivos
a pedidos do género. Em breve riam e batiam mãos nos joelhos um do outro, sinal de grande cumplicidade.
Chamada a dar a sua opinião, a mãe torceu o rosto, mesmo depois de beber dois copos de maluvo. E disse na cara de
Ulume porque não ficara entusiasmada, ele já tinha mulher e filhos grandes, enquanto Munakazi era um ufeko, rapariga
virgem, podia garantir. Mas o pai estava rendido e insistiu. Com essa guerra que nunca mais termina, onde vai a nossa filha
arranjar um jovem para casar? Ou queres que seja levada por um dos exércitos e se perca definitivamente? É mesmo uma
grande sorte que Ulume, um homem sério, meu amigo, esteja interessado nela. A mãe fez uma concessão apenas, não me
oponho, mas a minha filha é que tem de decidir. Aí saiu grande discussão entre os dois, que Ulume ouvia, incomodado e sem
intervir. Quem devia decidir, o pai ou a filha? Aquele defendia os direitos tradicionais, a mãe reivindicava novos costumes,
trazidos não se sabia de onde nem por quem. Por fim o casal discutia em altos gritos, animado pelo maluvo que ia
consumindo rapidamente. E todos sabemos que o maluvo tem duplo efeito, dependendo das circunstâncias. Se torna as
pessoas alegres, também as pode levar à agressividade. Até que Ulume teve mesmo de se meter, dizendo só caso se ela
quiser, não vou obrigar ninguém. A mãe ficou satisfeita, era uma vitória contra o casmurro do marido. Este teve de se
conformar.
Munakazi foi então convocada à presença dos pais. Ulume não queria que as coisas passassem assim, seria melhor ter
uma conversa a sós com a jovem, ou mandar mais tarde alguém fazer a proposta em seu nome. Mas o pai dela insistiu, a
bebida já lhe toldava as ideias e queria resolver tudo de repente. Ulume conhecia o temperamento do futuro sogro, chegava
ao ponto de ficar agressivo se muito contrariado. Então o melhor era mesmo deixar andar, senão voltavam ao princípio de
tudo.
Ao ver Munakazi de pé, as mãos se agarrando, sinal de fragilidade, Ulume sentiu na barriga a mesma sensação de quando
se achara no meio duma batalha indesejada. Mal podia respirar, o coração atabalhoado e um bicho nas tripas a segredar
sustos. Só que desta vez havia um desejo quente a comandar.
— O meu amigo Ulume veio falar connosco. Tu conheces, é uma pessoa de muito respeito. Como o assunto se refere a ti,
quer que sejas tu a decidir. Muito bem, se ele assim quer... Vou te perguntar.
A rapariga olhava para o pai, que falava, tentando entender o objectivo da conversa. Lançou uma mirada rápida a Ulume
e nos olhos dele leu imediatamente a resposta à sua dúvida. Os olhos não eram dum velho debochado desejando uma
virgem. Nos olhos dele apenas havia um grande amor. A mãe estava agora calada, sentada no chão, sorvendo a bebida. Os
irmãos fingiam brincar no pátio, atentos ao que se passava, pois não era normal a irmã mais velha ser chamada à roda dos
adultos. Mas era muito longe para poderem perceber o assunto.
— Portanto me dás uma grande satisfação se aceitares casar com o meu amigo. Com ele sei que ficas bem.
E cuspiu para o chão o resto de tabaco, indicando quanto lhe desagradava pedir à filha o que estava em direito de exigir.
Munakazi lançou uma breve mirada a Ulume e logo baixou os olhos. Ficou calada, sem responder, claramente
envergonhada. Um pé coçava o outro. Uma filha seguindo a tradição diria apenas e em voz muito baixa, o pai é que sabe,
pensou Ulume. E foi então que o silêncio lhe pesou na cabeça e ele sentiu o dever de quebrá-lo. Disse:
— Não precisas dar já uma resposta. Dentro de dias volto para saber.
A mãe assentiu com a cabeça. Não havia dúvidas, o futuro genro era um homem compreensivo e ponderado. Pena os
filhos já grandes, senão tomaria o seu partido junto de Munakazi. Só o pai parecia impaciente. Bebeu mais maluvo, limpou
os beiços com as costas da mão, insistiu:
— Não precisa nada pensar muito. Está tudo claro, nunca vai arranjar melhor marido. Diz então, Munakazi.
Ulume ainda tentou protestar, dizer para o amigo deixa a rapariga pensar calmamente, as precipitações são perigosas,
homem prudente dá uma volta ao rochedo antes de urinar nele, mas ela antecipou qualquer gesto. Falou baixo, timidamente,
mas de forma suficientemente clara:
— Não quero casar ainda.
E correu para o pátio, sem despedir. O pai se levantou num repente, fez menção de correr atrás dela. A mãe ficou parada,
olhando para o garrafão quase vazio. O marido, no entanto, não avançou. Voltou a sentar, resmungando miúda estúpida, mas
isto não fica assim. Ulume estava de cabeça baixa, assimilando vagarosamente a recusa. Foi a mãe quem encerrou o assunto:
— Eu vou falar com ela. Estas coisas não se resolvem assim de repente.
O marido não pareceu perceber a crítica velada. Estava envergonhado por causa do seu amigo. Nunca um homem podia
ouvir uma recusa directa daquelas, assim no cara a cara, diminuía a dignidade, por isso as conversas se passavam sempre
com intermediários, nunca eram os próprios a tratar estes assuntos. Em vez de reconhecer que afinal tinha conduzido mal as
coisas, como Ulume percebera logo, atirou toda a culpa para cima da filha.
— Estas crianças de agora são mesmo disparatadas, onde é que já se viu? Por mim casa e casa mesmo, acabou. Quem
manda aqui então? Não quero casar agora, não quero casar agora. Não tem nada que querer ou não querer, eu é que sei.
Vamos mas é marcar a data.
— Não foi isso que combinámos — disse a mulher.
— Só caso se ela quiser — disse Ulume. — Não adianta forçar. Posso falar eu próprio com ela? Quem sabe ela vai
compreender.
— Se quiser, pode ir — avançou a mãe, sem esperar pelo marido. — Talvez fosse melhor falar eu primeiro...
— Pode conversar com ela disse o pai. Mas vai se sujeitar a receber segunda negativa na cara? É uma grande vergonha,
nenhum homem aceita.
— Arrisco — disse Ulume, confiado na profecia da granada.
E andou até perto de Munakazi. A rapariga estava encostada a uma árvore, de cabeça baixa, pensando certamente na fúria
adiada do pai e na difícil situação em que se encontrava. Não era difícil de prever que as makas iam começar agora, o velho
era irascível, nunca lhe perdoaria ter recusado a proposta do amigo. E este agora vinha para falar com ela. Que mais tinham
para falar? Se fosse o Kanda... Ou até mesmo o Luzolo. Mas o pai deles? Era comum, sabia, mas não para ela. Tinha outros
planos, outras ideias. Foi pois com admiração que ouviu Ulume dizer:
— Voltei a repetir ao teu pai que só caso contigo se tu quiseres. Ele tem poder para te obrigar, mas eu não aceito isso.
Podes estar descansada.
Ela não resistiu e levantou os olhos para ele. E leu pela segunda vez o grande e evidente amor. Não como nos olhos
malandros dos jovens, animados pela excitação da dança de roda. Sobretudo não como nos olhos de Kanda, quando a
convidava mudamente para ir no capim. Era diferente, seguro, repousante.
— Só queria saber qual é a verdadeira razão da tua recusa. Por isso vim falar contigo, contra todos os costumes.
Munakazi sentiu que não podia ser tão seca como há pouco. Este homem não merecia uma resposta a despachar. Foi com
delicadeza que disse:
— Sabe, eu sempre pensei casar com alguém da minha idade. O senhor tem filhos homens, tem uma esposa. E não posso
aceitar ser segunda mulher. São outros tempos, aprendemos ideias novas. O meu pai não aceita, mas acho que o senhor
compreende.
— Sim, compreendo. Mas não sou velho, ainda posso fazer filhos. E a Muari não te vai receber como uma concorrente.
Para ela até é bom, terá alguém com quem dividir o trabalho e com quem conversar. Será a tua segunda mãe. Por esse lado
nada tens a temer. Ela já não pode ter mais filhos e quer que tu os tenhas para ela.
Munakazi abanou a cabeça. Falou suavemente:
— Não está a entender. Não tenho medo da Muari, não é isso. Só que o meu homem só me vai ter a mim e eu a ele, é isso.
Aprendi, a mulher deve ter os mesmos direitos do homem.
— Mas tens menos trabalho, pois todas as tarefas de casa são divididas com a Muari. Um dia cozinha uma, outro dia
cozinha outra. Um dia uma vai apanhar lenha, no dia seguinte é a outra. Então não é melhor que ser a única mulher duma
casa? Sempre ouvi dizer isso. Claro, há problemas se a primeira é ciumenta. Mas não é o caso da Muari. E ela está muito
cansada e triste pelas duas filhas que morreram e os dois filhos que foram embora. Te vai tratar como a uma filha. E os
direitos são os mesmos. Eu é que perco direitos, pois tenho de os dividir com mais uma pessoa. Já viste o que é ter sempre
vocês as duas a se unirem para me contrariar?
Ela riu, só podia. A mãe ouviu a gargalhada e espreitou para ver que cena insólita acontecia, no que foi imitada pelos
filhos mais pequenos, todos espantados com os conciliábulos misteriosos. Ulume apreciou o riso dela, o relacionamento se
tornava diferente. E no silêncio cúmplice que se seguiu, ele se apercebeu que fazia naturalmente uma coisa que nunca
imaginara vir a acontecer: estar a conversar e até a rir com uma rapariga que queria para mulher. Se os mais velhos do
kimbo soubessem... Porque mulher é para receber ordens. Se for velha pode discutir, depois de muitos anos de casamento.
Mas não logo na primeira conversa. Durou pouco tempo esse silêncio, porque Munakazi, agora mais à vontade, voltou à
realidade.
— Está a ver que não entende? Não é isso que conta, mas o facto de ser a segunda mulher.
— Queres então que eu mande embora a Muari? Para tu seres a única?
— Não, não quero nada.
— Então?
— Não dá para explicar muito bem. Mas os soldados dizem que isso de um homem ter várias mulheres acabou. Agora
somos iguais aos homens. Por isso eu só aceito um marido que não tenha mais ninguém. E não quero que mande embora a
Muari, coitada, ela ia viver como? Não seria correcto. Nem o senhor mandaria, pois não?
Ulume se perguntou, mas tenho de responder a esta pergunta absurda? Porque nunca tinha pensado no assunto. E ela,
malandra, olhava para ele, à espera da resposta. Ele sentiu que não tinha fuga possível, uma rapariga quase acabada de
nascer encurralava-o e obrigava-o a responder a questões impossíveis.
— Bem, me custava, coitada da Muari, mas se fosse preciso...
Munakazi ficou perturbada, não pelas palavras mas pela forma e o calor com que eram ditas. Que feiticeiro tinha à sua
frente? Que coisa era essa que sentia, a dizer ele está a ser sincero? E porquê não ficava incomodada ao falar com um
homem estranho, que só apercebera superficialmente nas festas, sempre no seu papel de pai de filhos grandes? Tinha de
cortar e era já.
— Nunca aceitaria que mandasse a Muari embora. Eu, hein? Ia fazer a desgraça da mãe do meu amigo Kanda? Nem
morta. Por isso é melhor arranjar outra para sua mulher.
— Mas não pode ser outra.
Foi quase um grito de desespero, ela assim o entendeu. Perante o seu ar desorientado, Ulume se sentiu na obrigação de
contar tudo. E falou, falou, explicando a cena da granada. Munakazi ouviu em silêncio, cada vez mais angustiada. Porque
uma estranha rede se tecia à volta dela e lhe chupava as forças, uma rede nascida nas palavras dele mas que as ultrapassava.
Ela queria fugir do pressentimento, mas era atraída pela voragem da aranha que tecia pacientemente à roda dela um sonho
mais lindo que o de Calpe. Quando ele terminou, ela ficou de olhos no chão, com um só pensamento de defesa, as mulheres
são iguais aos homens, mas só que agora esse pensamento já não servia de fortaleza, acabava por ser apenas um conjunto de
palavras impotentes contra a força da teia que saíra das palavras dele. Não era feitiço, era pior.
Ulume respeitou o silêncio perturbado dela. Os costumes ensinavam como tratar casos semelhantes. E nesta estória não se
seguiam os costumes, desde o princípio. Estava tudo a seguir ao contrário, como o namorar uma rapariga, coisa que ele
nunca fizera com a Muari. Por isso achou que devia parar ali, deixar o assunto em suspenso. Semeara, ele sabia. Só mais
tarde voltaria para colher o fruto, se por acaso a árvore o desse. Agia por puro instinto, inovando perante as lacunas da
tradição. Disse apenas para ela pensar com calma em tudo o que fora falado, que não tinha pressa numa resposta, e que não
temesse o pai, pois ele iria lhe falar de novo para a deixar meditar tranquila. Dali foi relatar aos pais de Munakazi que
conversaram muito bem, até riram, o que foi inútil dizer pois eles tinham ouvido, e mais tarde ele viria para a resposta. Que
a mãe falasse com ela se achasse bem, mas que o pai, por favor, deixe a sua filha em paz, tudo se há de resolver da melhor
maneira. Em tempos novos, temos de esquecer muitas coisas e fechar os olhos para saltar sobre os obstáculos sem pensar
que vamos partir a perna.
10
Os dias foram passando, iguais. Os que abandonaram o kimbo para criarem um novo a um dia de marcha, bem no meio da
Munda, mandaram informações de que já estavam instalados, com cubatas novas. Tinha muita água, um regato ao lado, uma
mata à volta, terras boas para o milho. E um recado, porque não vêm também para a tranquilidade? A Muari respondeu,
tenho de ficar num sítio onde os meus filhos possam me encontrar, quando decidirem procurar. Ulume respondeu para si
próprio apenas, como vou deixar o cágado velho sozinho? Outros dos que ficaram também deram as suas razões para se
conservarem ali num lugar tão exposto, tão mal frequentado.
Ulume pensou já ter dado tempo suficiente para Munakazi se decidir. Mas Muari não o deixou voltar para a resposta. Sou
eu que vou, estas coisas devem ser tratadas entre mulheres. E não é apenas por tradição, não só por Feti, o primeiro homem,
o que saiu das águas, ter sido infeliz por não ter tido mãe ou tia para negociar o seu casamento. Também porque as mulheres
sabem se falar, encontram argumentos onde os homens menos suspeitam. Ulume reconheceu as razões de Muari e lá foi ela
parlamentar com a pretendida. Saiu de manhã cedo, levando um pouco de kitaba para oferecer a Munakazi.
Ulume ficou em aflição, sem ter vontade de trabalhar, sem vontade de conversar no njango. Resolveu subir ao morro,
embora não fosse a hora, espiando a gruta do cágado velho. Este não aparecia, só à tarde ia beber água no regato. Ulume
olhava o seu mundo, tão pacífico na aparência, com as falas das mulheres em trabalho nas nakas, um ou outro movimento
dum homem entrando ou saindo da aldeia, mas que se tornara num mundo cruel, cheio de surpresas desagradáveis. Ao ver lá
de cima a ordem e a tranquilidade do verde casando com o amarelo, não podia crer que de repente tudo podia se
transformar em fogo e gritos. Mas era assim agora e ele não podia fazer nada. Talvez o cágado pudesse explicar, se algum
dia rompesse o mutismo da sua couraça. Mas o animal não saía da gruta. E mesmo então nada mudaria. Afinal não lhe
perguntara ele já várias vezes sem sucesso? Fora outro tempo, muito antes destas guerras incompreensíveis. Um tempo em
que os cágados resolviam as makas entre os outros animais, como lhe contavam à volta da fogueira quando ele era miúdo.
Não lhe constava que os cágados se intrometessem nos conflitos dos humanos, provavelmente eram lendas de antes de Feti
sair das águas ou de Nambalisita romper o ovo. Mas nessa altura o mundo tinha leis claras. Neste caos de hoje, bem podia
um cágado se arvorar em conselheiro, porque não? Se não fosse ele, então quem seria? Suku-Nzambi bocejava,
desinteressado dos problemas terrenos. Estranhos pensamentos que nem à Muari ousava segredar.
Ficou no cimo do morro, fazendo tempo, se consumindo em inquietações. A Muari só voltaria a meio da tarde, a tempo de
fazer a comida para a noite, a outra aldeia não era assim tão perto e essas conversas levam tempo. Ficou surpreendido pois
ao ver a mulher avançar pelo caminho da direita em direcção ao kimbo, antes do meio da tarde. Deitou uma última mirada à
gruta e desceu para a aldeia.
Já encontrou a Muari acendendo o fogo atrás de casa. Ele sentou numa pedra ao lado. Ajudou a ajeitar a lenha entre as
três pedras onde iria pousar a panela com água e esperou que ela falasse.
— Conversámos muito, também com a mãe dela. Não quer. O problema é tu seres casado. Os jovens agora têm outras
ideias, ideias da cidade, também não podemos censurar. Se não tivesses outra mulher, ela aceitaria, ficou com boa
lembrança da vossa conversa. Eu disse que tu estás muito aflito, a ver os dias passar sem nenhuma resposta. Que se a maka
sou eu, então se resolve, porque eu não quero estragar a vossa vida.
— Ela disse que ou tu ou ela? Disse isso Munakazi?
— Não. Fui eu que disse. Mas ela não aceitou. Ela disse se tu me mandas embora, então ela também não casa contigo.
— Já me tinha dito.
— Boa miúda. Ela te merece.
Ficaram calados, olhando para a fogueira, esperando a água ferver. A Muari já tinha ao lado a kinda com fuba. Cortou
pedaços de carne seca para fazer o conduto. E preparou lateralmente o súmate. Ulume ia observando os gestos seculares,
calmos e seguros como é tudo que vem da tradição. Essa era a sua tranquilidade, como romper com ela? Nunca que
mandaria Muari embora, quisesse ou não Munakazi. O que lhes restava na vida senão esses gestos confiantes, que se
repetiam no tempo certo e com o rítimo certo, tudo previsível? Ele aprendera que toda a aventura era dolorosa e inútil.
Estava disposto a renunciar à promessa da granada, nunca teria Munakazi. Mas a Muari não pensava da mesma maneira, a
granada falara também para ela e esses sinais não podem ser desprezados. Pôs os pedaços de carne e o molho de tomate
numa frigideira, e depois a frigideira em cima do fogo. Falou com voz cansada.
— Eu vou procurar os meus filhos. Assim podes casar com ela.
Ulume não entendeu imediatamente. Esboçou um movimento, como a acomodar-se melhor em cima da pedra, lisa pelo
uso. Depois percebeu.
— Nunca que vou te deixar partir. Que estória é essa?
— Não voltaram mais. Nem sei se estão vivos. Vou sim à procura deles. E fico lá, onde algum estiver. É melhor para
todos.
— Estás maluca. Nem pensar.
Se levantou num rompante, pegou no machado para cortar lenha, descarregando os nervos na madeira seca. Esta soltava
aparas por todos os lados, mas Ulume nem reparava, castigando com raiva o tronco.
Foi nessa altura que chegaram Mande e Ana, desaparecidos há meses. Vinham mais velhos e magros, com as roupas em
farrapos. Mas contentes por regressarem. A aldeia se juntou para lhes ouvir as aventuras, enquanto a comida e a bebida se
aglomeravam no njango, onde todos comeram juntos como nas festas. Porque era uma festa o regresso do casal.
Eles contaram como ajudaram os soldados a levar os cabritos e os bens do kimbo até uma base distante, camuflada na
mata por causa dos bombardeamentos. Trabalharam nas lavras, carregaram munições por diversas vezes para os lugares
mais longínquos, chegaram a construir a sua cubata para se fixarem na base, que remédio. Um dia vieram aviões,
bombardearam a base. Vocês não sabem o que é bombardeamento aéreo, aqui nunca tivemos. É fogo, fogo, barulho, fumo,
cheiros, terror, fogo, fogo, haka! No meio da confusão, eles perceberam que estavam fora do perímetro. Era a oportunidade
para voltarem no kimbo. Se orientaram durante dias pela Munda central e cá tinham chegado. Havia muito mais gente a fugir
por todos os lados, por isso esperavam que não os castigassem um dia se os encontrassem de novo. Que ali na base nunca
viram o filho, Zacaria, nem os filhos de Ulume, nem qualquer rapaz conhecido. Havia muita gente, de todos os lados. Não
ousaram perguntar por Ufolo, o rapaz que vivera na casa deles e que um dia vieram buscar para ser castigado. Até porque
nem sabiam se Ufolo era deste exército, o nosso, como eles diziam, ou se do inimigo. E os aldeões perguntaram, agora já
sabem quem é o inimigo? Mande coçou a cabeça, meteu uma bola de funje na boca, engoliu-a para ganhar tempo.
— O inimigo são os outros, percebem? Estes, os nossos, têm fardas e armas parecidas, mas não são exactamente iguais.
Eles sabem distinguir. Mas eu não aprendi, porque há fardas diferentes, embora todas parecidas e são todas parecidas com
as do inimigo. Uma grande confusão. Mas os outros, os que não são os nossos, são o inimigo.
Passaram uma grande parte da noite a trocar informações com Mande e Ana. Estes decidiram não mudar de kimbo, pela
mesma razão da Muari: se o filho os fosse procurar, onde os encontraria? No dia seguinte reparariam as cubatas, com ajuda
de todos, e voltariam a trabalhar nas nakas agora abandonadas. Nos primeiros tempos, colheriam a comida das lavras e
viveriam da ajuda da comunidade, como mandava a tradição. Voltando para casa, Ulume tinha uma questão a lhe atormentar
a cabeça, mas afinal a granada que lhe revelou o desejo de Munakazi era dos nossos ou do inimigo? De uma coisa estava
certo e não lhe agradava: se o seu filho Luzolo estivesse com os nossos, então Kanda estaria com o inimigo; ou vice-versa,
o que ia dar exactamente no mesmo.
11
De repente, Ulume descobriu que todo o kimbo estava ao corrente das suas dificuldades. Mande tinha chegado na véspera
e já lhe perguntava, cúmplice, então queres casar outra vez e a rapariga não te atende. Ulume procurou logo o culpado e
encontrou, só podia ser o pai de Munakazi, o homem era um destemperado além de egoísta e não tinha resistido a se queixar
no njango, vejam lá o meu azar que a minha filha não respeita a minha vontade, humilhou o meu amigo Ulume e eu perco uma
vitela e cinco cabritos. Daí partiu o mujimbo, como um fogo que se assopra e corre pelo capim seco. A dizer verdade, pode
ter partido da mãe, zongolando com as amigas, então já viram aquele homem com filhos grandes a querer o ufeko que guardo
lá em casa? Ou até, quem sabe, da própria Munakazi, sentindo necessidade de conselho ou desabafo, esquecendo que a irmã
ou amiga não resistiria ao saboroso passatempo de lançar ao vento o mujimbo. Seja como for, já estava lançado e neste
momento até os seus filhos, na guerra onde parassem, podiam estar ao corrente das desventuras paternas, pois é por todos
conhecido que o mujimbo chega onde desconseguem as pessoas.
Entendia agora os risinhos abafados das mulheres e as conversas interrompidas dos homens quando chegava ao njango. E
deu consigo a imaginar as opiniões que poderia suscitar. Os amigos consideravam a sua atitude como um libidinoso e
indigno desejo de velho, ou como uma pretensão natural? Normal nunca seria, pois nesses tempos difíceis, poucos são os
homens que casam e muito menos em segundas núpcias. O que também não podia ser considerado como verdade absoluta.
Ele e a Muari tinham demonstrado um ao outro que todos ficavam a ganhar com aquele casamento. Excepto Munakazi, por
não ser essa a sua vontade. Pela primeira vez sentiu curiosidade em saber a opinião alheia sobre o assunto.
— Achas que faço bem ou também achas que devia ter mais juízo?
Seguiam os dois, ele e Mande, no caminho que ligava à aldeia de Munakazi. Mande tinha lá familiares e ia lhes dar a
notícia do regresso e de tudo o que passara. Pediu a Ulume para o acompanhar, o que era natural, pois se tratava de um dos
seus melhores amigos. Mande ia à frente, Ulume atrás, pelo estreito carreiro. Já tinha sido um caminho razoavelmente largo,
antes das guerras. Depois foram rareando as pessoas que faziam a viagem, ou por medo de encontros desagradáveis ou
porque havia cada vez menos habitantes nos kimbos. E o capim foi recuperando o que os pés dos homens tinham
conquistado. Lá no nosso kimbo vão pensar que vim com o Mande apenas para ver a Munakazi, talvez usando o pretexto
para pressionar uma decisão dela. E neste kimbo vão me receber também com risinhos e frases interrompidas? Haka, tenho
de manter só a calma, fingir não estou a perceber nada.
— Se queres casar, tens todo o direito. Qual é o problema?
— Porque há gente que está a criticar, por eu já ter filhos grandes.
Tinha atirado no escuro, pois, como sabemos, só agora se apercebera que o assunto já era público. Mas Mande iria
confirmar de forma indirecta.
— E depois, tu ligas? Ouvi comentários lá no kimbo, as pessoas falam sempre, mas nem deves te importar. É certo que só
os sobas o faziam antes, porque mais ninguém tinha terras suficientes para pôr duas famílias a trabalhar nelas. Não é o caso
agora, as terras estão aí abandonadas.
— Achas que as pessoas estão de acordo comigo ou estão para aí a gozar?
— A gozar só porque ela não quis casar. Se ela tivesse aceitado, as pessoas estavam era com uma grande inveja. Até eu...
E deu uma gargalhada que lavou todas as preocupações de Ulume. Em breve entraram no kimbo de Munakazi.
Vieram primeiro as mulheres a correr e a gritar de alegria, acompanhadas pelas crianças. Depois chegaram os homens,
mais circunspectos, e todos se juntaram à sombra dum enorme jacarandá que imperava no largo. O njango ficava protegido
dos raios de sol pela árvore gigantesca e só era utilizado quando chovia. Entre as mulheres, ao lado da mãe, sentada no chão
como as outras, Munakazi. Mande ia repetindo o que na véspera contara na aldeia deles, enquanto Ulume conservava os
olhos no chão, sem ousar mirar a rapariga. Talvez houvesse sorrisos e curiosidades pela banda das mulheres, talvez os
homens o fitassem com súbitas desconfianças, mas isso não o preocupava. Como se na praça sombreada pelo majestoso
jacarandá só estivessem ela e ele. A presença de Munakazi era demasiado forte, como se soltasse cheiros, inundava tudo,
mesmo as flores rosa-violeta do jacarandá empalideciam. E ele não tinha coragem de enfrentar presença tão imponente. O
Mundo, esse, tinha parado há muito.
Mande se calou, um falou a manifestar a satisfação de todos por o terem ali, outro se seguiu, acusando a situação
insustentável em que se encontravam, sem jovens nos kimbos, apenas algumas raparigas ainda, porque a maior parte ia
sendo raptada uma a uma, os velhos já sem forças para trabalhar e as crianças a ficarem órfãs ou abandonadas pelos pais, o
que aumentava as responsabilidades e os encargos dos outros familiares. Todos insistiam muito no facto de com a guerra os
jovens estarem nos exércitos e os campos se despovoarem. Mudar as aldeias, como tinham feito no kimbo de Mande,
acabava por não resultar, pois hoje não é como nos outros tempos, os exércitos têm meios de detectar as populações, pode
demorar mas a guerra acabará por chegar também no coração da Munda central, o que nunca tinha acontecido em conflitos
anteriores.
As pessoas se seguiam no uso da fala e Ulume calado e de olhos baixos. Não falaria em nenhuma circunstância, pois
todos estavam a repetir o que ele conhecia, embora também soubesse que o importante da fala não era dar a conhecer a
alguém algo de novo, mas apenas falar para estar junto com pessoas que têm os mesmos problemas e as mesmas
inquietações. E porque se está ali, e se fala, os problemas parecem menores. Os problemas parecem menores mas é só
depois, porque na altura de falar não há nada mais dramático e atemorizador do que aquilo nesse momento descrito e por
isso os inevitáveis gritos e lamentos a pontuarem as falas, a lhes darem credibilidade. Ulume calado e cego, mas
embrenhado nestes pensamentos, e Munakazi a olhar para ele, pensando também ela. As pessoas falavam e era o horror das
suas vidas futuras que descreviam. O mundo era de fogo e ódio. As palavras eram balas disparadas ao futuro de cada um.
Felizes dos que tinham vivido muito, esses ao menos teriam um passado, que é a única coisa segura nos tempos que correm.
As crianças são imprevidentes, pois se o não fossem, se punham a gritar queremos um passado, queremos rapidamente um
passado. E Ulume, no meio de todas as desgraças presentes e vindouras narradas pelos falantes, era uma ilha de paz.
Munakazi não podia desprender os olhos da figura angulosa, ao mesmo tempo arredondada pela posição de segurar os
joelhos com os braços e a cabeça para o interior dos ombros, como a estátua tchokue do pensador. E olhar para ele
temperava imediatamente a angústia transmitida pelas palavras que se libertavam da boca das pessoas, apenas livres as
palavras depois de se soltarem. Olhar para ele lhe transmitia a calma e no entanto, por mais absurdo que possa parecer, um
aviso de perigo a pairar. Não o perigo do futuro, esse estava nas palavras. O de agora, o do laço a que não se pode escapar,
o da boca da jibóia para que se caminha sabendo que é o fim. Impreterivelmente.
Munakazi estremeceu, como se todos os frios do planalto se tivessem concentrado nela. Suspirou, como rendida.
Segredou para a mãe:
— Depois pode ir falar com Ulume. Eu aceito casar com ele.
A mãe deu um gritinho de admiração e as mulheres à volta olharam para ela. Mas logo se desinteressaram, pois Mande
retomara a palavra para contar detalhes da sua vida entre os soldados.
— Estás a falar sério?
— Estou, mãe. Não ia brincar com isso.
— Porquê? Porquê aceitas?
— Não sei explicar. Mas não posso não aceitar.
— Depois falamos. Não é urgente.
Munakazi sentiu a mãe estava errada, mas calou. Era urgente que ele soubesse, que deixasse aquela posição abatida e lhe
fizesse rir outra vez. Tinha vontade de gritar por cima das pessoas ali reunidas, de forma a que ele ganhasse vida e para ela
olhasse. Pelo menos isso. Seria amor, se perguntou. Claro que não. Amor sentira por Kanda, talvez ainda hoje o sentisse.
Com Kanda gostava de cair no meio do capim e por ele rebolar até ser penetrada. Muito enganada estava a mãe, ao
considerá-la ufeko. No fundo, tornara-se apenas uma maneira de dizer que era uma jovem, pois a tradição não dava muita
importância à virgindade. Grave era o adultério. Por isso ela não se fazia rogar quando Kanda lhe fazia gestos a combinar
encontros. E agora queria casar com o pai do amigo. Também a ela parecia estranho o impulso nascido na reunião debaixo
do jacarandá. No entanto o impulso era verdadeiro. Já o tinha adivinhado há muito, contra ele combatera, por parecer a
armadilha em que se põe o pé mesmo sabendo que ela está lá e é isso mesmo, uma armadilha. Suspeitou estar enfeitiçada.
Ulume não tinha fama de feiticeiro, mas os mais hábeis sempre estão escondidos e só são apanhados se cometem crime de
sangue. Estivesse ou não enfeitiçada, já pouco importava. Era irresistível a vontade de tocar naquele homem maduro e
tranquilo, ficar ao pé dele junto da fogueira, ouvir a voz grave e carinhosa, gozar um amor que antes ninguém lhe dera.
A conversa terminou. Apesar de ser muito cedo, alguém deu ordens e mulheres foram buscar bebidas e comida. Não eram
para as pessoas do kimbo, apenas para as visitas. Se fosse ao fim da tarde haveria razão para se juntar os bens e se
organizar uma festa em que todos participariam. Com a inevitável dança depois. Mas os visitantes tinham vindo a desoras,
se contentariam com uma refeição ligeira. A menos que se dispusessem a passar a noite no kimbo, o que daria o desejável
pretexto para se ir vasculhar nas reservas e melhorar a dieta colectiva. No entanto, Mande comeu rapidamente o que lhe
puseram à frente, bebeu o maluvo, lavou as mãos na bacia de esmalte e se levantou. Ulume tinha imitado todos os gestos do
amigo, sempre de cabeça baixa e com pouco apetite. E também imitou o levantar. Foi então que viu o sorriso de Munakazi
colado nos seus olhos. O coração apertou, pois imaginou ser sorriso zombeteiro. Mas não, se acalmou logo em seguida. Era
indubitavelmente um sorriso de ternura. Viu também a mãe dela a fitá-lo e viu Munakazi a bater no braço da mais velha,
como a dizer vá lá, faça o que pedi. Não resistiu mais tempo e desviou a vista, parecia mal ficar assim de olhar fixo como
uma cobra. Por isso não viu a mãe e Munakazi discutirem, pareciam duas raparigas da mesma idade.
Depois das despedidas, as pessoas se afastavam para os seus afazeres. Em breve o largo tinha pouca gente e Ulume
voltou a olhar na direcção de Munakazi. Só viu as costas. Ela caminhava para casa, com a mãe ao lado. A mãe parecia
zangada, pois fazia grandes gestos. Mas falava em voz baixa. A tia Nzuzi se juntou a elas e perguntou o que passava, mas
Ulume não ouvia nada, só via as três mulheres a se afastarem e discutirem.
— A Munakazi há dois dias disse à Muari que nem morta, nunca ia casar com Ulume. E agora, de repente, ali no meio das
falas, disse-me vai lá falar com ele, diz eu aceito casar. Alguém está maluco nesta família, mas não sou eu.
— A mãe disse eu é que decidia. E decidi. Qual é o mal?
— Também não estou a ver qual é o mal — disse Nzuzi, irmã mais nova da mãe de Munakazi e já viúva.
— O mal é que foi decidido de repente.
— De repente? tornou Munakazi. — Há tanto tempo que Ulume está à espera, até mandou a primeira mulher vir saber a
resposta. Custou foi a decidir.
— Não, foi mesmo de repente. Não estavas a decidir estes dias todos. Estavas sempre a negar. Ainda há dois dias negaste
à frente da mulher dele. De repente, ali com toda a gente à volta, tcháá, mudaste de opinião.
— Sim. Vi que não podia recusar o pedido dele.
— Essas coisas são assim mesmo — disse a tia Nzuzi. — Uma pessoa anda assim sem saber o que fazer, anda só assim,
de repente, tcháá, tem uma ideia. Como um relâmpago. E não pode voltar mais atrás. Não foi assim, Munakazi?
— Foi assim, tia.
— Pois é — disse Nzuzi para a irmã. — Não podes fazer nada. E é melhor falar com Ulume enquanto ele está cá no
kimbo, senão tens a maçada de ir ao kimbo dele e ainda é longe.
— Primeiro vou falar com o meu marido.
A irmã encolheu os ombros e olhou para trás na direcção do largo, onde se via Mande e Ulume a partirem na direcção
oposta. Disse:
— Se fosse para contrariar o teu marido, devias falar antes com ele. Mas vai ficar todo satisfeito com a decisão da
Munakazi, por vontade dele até já tinham casado. Portanto, só estás a perder tempo e a causar canseiras escusadas. Corre
masé até ao njango e diz a Ulume o que a tua filha pede.
Munakazi compreendia agora que a mãe estava contra aquele casamento desde o princípio. Mas nunca lhe dera a
entender, para não influenciar a decisão. Exactamente o contrário do pai, que quase a obrigara a aceitar o compromisso logo
à frente de Ulume. Por isso contentou a mãe.
— Está bem, fale primeiro com o pai.
O qual saltou de alegria. Foi difícil convencê-lo a esperar pelo dia seguinte para levar a boa nova ao kimbo de Ulume. O
único argumento que o convenceu foi de não poder ir de mãos a abanar, pelo menos tinha de levar uma cabaça de hidromel,
para o que precisava de ir buscar o mel à colmeia mais próxima e preparar a bebida. Ficou portanto decidido que ainda
antes do jantar apanhava o mel e a bebida seria preparada logo que nascesse o sol. Ulume podia dormir uma noite mais na
sua tristeza, não era isso que ia mudar o mundo.
12
Depois de saber da novidade e de marcar a data e as modalidades do casamento com o pai de Munakazi, para o que foi
muito ajudado pela Muari, Ulume disse para esta, vês, a granada tinha mesmo razão. Mas chegaste a duvidar, retorquiu a
mulher. Sim, acabara por duvidar, tão peremptória parecia Munakazi. E mudou repentinamente, quando ele já perdia a
esperança. O que fazia prever dificuldades no relacionamento futuro, pois a rapariga era imprevisível. Talvez fruto da
época, estes últimos anos tinham sido de convulsões muito grandes, as ideias corriam como o vento e os da geração dele
tinham dificuldade em seguir as novas modas sopradas de Calpe.
Foi tudo muito rápido. O pagamento da vitela, o casamento, a festa. Para esta vieram os convidados da aldeia nova, a que
se cindira do kimbo de Ulume. E de outros kimbos à volta. A carne é que foi pouca, pois os bois e porcos tinham sido
completamente erradicados da zona pelos exércitos, apenas sobrara aquela vitela que entregara ao pai de Munakazi, e os
cabritos e galinhas eram muito poucos para alimentar tanta gente. Foi o casamento mais pobre de que se lembra Ulume. Mas
foi o seu, por isso estava satisfeito.
Na primeira noite se apercebeu que Munakazi não era de facto ufeko, pois a penetração foi fácil. Pouco se importou que
ela já tivesse conhecido homem, nem a interrogou sobre o assunto. E não se importou também que ela mostrasse o gozo que
sentia no acto do amor, atitude contrária à tradição. Antes o encheu de vaidade, pois pela primeira vez sentia o prazer de
dar prazer a uma rapariga.
Pena mesmo a falta dos filhos, que ou não souberam do acontecimento ou não quiseram estar presentes numa cerimónia
que era provavelmente contra as suas ideias. Munakazi tinha a certeza, pelo menos em relação a Kanda, pois disse a Ulume
o teu filho mais novo é contra a poligamia, várias vezes falámos disso, e é também contra o alembamento, que ele chama a
compra da noiva. Costumes que segundo Kanda tinham de ser abolidos, mesmo à força.
Ulume já se tinha preocupado mais com essas ideias. Quando os brancos foram embora e os jovens gritavam palavras
dessas, acreditou mesmo não iam escapar a profundas mudanças. Pelo menos os mais velhos estavam desesperados, davam
murros no peito, dizendo vão acabar com todas as tradições, que será de nós? Mas parece que apenas em Calpe e nas outras
cidades foram aplicadas novas leis. Pelo menos no kimbo ficou tudo na mesma. E com o tempo as pessoas esqueceram as
ameaças de transformações radicais. Kanda falava nisso a Munakazi? Muito bem. Uma coisa é o que se diz e o que se sonha,
outra é o que se cumpre. O vento que uiva muito não é perigoso, diria o cágado velho se falasse. Ulume se deteve neste
pensamento. Estava a improvisar provérbios, o que poderia ser maléfico. Até porque o vento que uiva pode arrancar uma
chapa do telhado duma casa e cortar o pescoço a alguém, já tinha acontecido.
O curioso é que Munakazi perfilhava inteiramente as ideias de Kanda. Também ela era contra a poligamia e o
alembamento, sintomas da escravidão da mulher que se queria livre e igual ao homem. No entanto, tinha aceitado constituir
uma família polígama. Porquê, perguntava Ulume. E a rapariga tinha dificuldade em explicar.
Grandes conversas tiveram nos primeiros tempos de casados, naquela cubata separada por uma vedação que ele fez para
a segunda mulher, com a ajuda dos homens do kimbo. Por vezes a Muari também entrava nessas conversas animadas,
embora a mais velha se retraísse, como a deixar o casal em paz nas suas primeiras disputas de amor. Foi por essa altura que
Munakazi perguntou porquê o marido ia sempre a meio da tarde para o morro e ele respondeu é só um hábito, ocultando o
seu trato com o cágado.
Um dia ela foi atrás dele e ficou escondida a observar mesmo no alto do morro. Viu o cágado atravessar à frente do
marido, beber água no nascimento do regato, atravessar de novo à frente de Ulume para regressar à gruta. Viu Ulume se
levantar para ir beber água no regato e depois ficar estranhamente parado. Daquele sítio não dava para ver a cara dele, mas
a rigidez do tronco e do pescoço lhe fez adivinhar que algo anormal passava. Só não percebeu que o mundo tinha parado
nesse momento.
Foram bons tempos para os dois. Os tempos da descoberta. Discreta, indispensável, Muari se apagava, mas a sua mão
estava sempre presente para que nada lhes faltasse. E ria muito com Munakazi, quando as duas iam lavar roupa ao regato e
confidenciavam as bizarrias de Ulume. Também a guerra tinha deixado que eles gozassem esses tempos em paz. Nenhum
grupo apareceu durante largo espaço, o que permitiu terem alguma abundância nas nakas e fazerem alguma reprodução de
galinhas.
A grande preocupação de Ulume era a dívida dos cabritos em relação aos pais de Munakazi. Seria difícil cumprir,
partindo do zero. A única solução era ter o máximo possível de galinhas para as trocar por um casal, ou pelo menos uma
cabra. Com muita sorte, ao fim de dois ou três anos teriam os cinco cabritos. Mas isso significava que não podiam comer
nenhuma galinha nem sequer um ovo durante muito tempo. Munakazi dizia, isso não é urgente, um dia pagas. Mas Ulume não
concordava com ela, a sua honra estava em jogo e nunca se consideraria um homem livre sem ter saldado a dívida.
Felizmente o galo que entretanto arranjara era um bom reprodutor e as galinhas estavam a cumprir a sua missão. Um dia
teria de se pôr a caminho, procurar nos kimbos quem estivesse disposto a trocar galinhas por uma cabra. E depois encontrar
um chibo disponível para a cobrir por empréstimo. Ou mesmo, quem sabe, conseguir trocar um casal por galinhas. A tarefa
não ia ser fácil, pois nos kimbos à volta não tinha sobrado nenhum cabrito. A sua esperança era a nova aldeia que o amigo
Abílio e os outros tinham formado no coração da Munda central. Talvez já tivessem rebanhos ou pelo menos soubessem de
outros kimbos mais afastados onde os encontraria.
Munakazi era boa trabalhadora e colhiam bastante milho e legumes. As mulheres deviam se revezar a preparar a comida
dele. Um dia ele ia comer à frente da casa duma, no dia seguinte a casa da outra. Mas, ao fim de certo tempo e por sugestão
da Muari, passaram a comer os três juntos e as mulheres acabavam também por cozinhar juntas. Derrubaram a cerca que
separava as duas casas e no meio fizeram o pátio comum. Não era bem o que mandava a tradição, mas estava mais de
acordo com as boas relações tecidas entre os três. O resto do kimbo ia se apercebendo das mudanças e espantava. Mas não
murmurava. Ulume definitivamente se tornara excêntrico por amor a Munakazi e os outros acabavam por respeitar.
Só uma sombra na felicidade dos três, Munakazi não engravidava. Era uma rapariga sã, Ulume ainda estava na força da
idade, não havia razão. Ulume já nem experimentou a serpente de madeira debaixo do catre. Se não tinha funcionado para a
Muari, também não funcionaria com Munakazi. Esta começou a tomar uns chás de folhas que a Muari procurava no mato.
Nada. A tristeza da Muari era muito maior que a de Munakazi. Ela dizia os filhos vêm quando querem, temos tempo.
Realmente não se sentia muito maternal e a ocasião não era a melhor para parir. Fazer filhos para morrerem na guerra, quem
quer? E essa guerra, embora não estivesse ultimamente presente, como se os soldados soubessem que iam encontrar pouca
comida, existia lá mais longe, por vezes chegavam os ecos abafados.
Um dia a Muari disse vou ficar ausente durante uns dias. Ulume admirou, nunca tinha acontecido, mas esperou que
estivessem sozinhos para perguntar onde ia. Era conhecido que numa aldeia distante, a dois dias de marcha, havia um
kimbanda poderoso que resolvia a maior parte dos casos de esterilidade. Ainda por cima era parente da família materna da
Muari. Ela ia buscá-lo.
— E como vamos lhe pagar? — perguntou Ulume.
— Temos galinhas.
— Estão reservadas para com elas arranjar os cabritos que devo ao pai de Munakazi.
— Isso pode esperar. Os filhos é que não. Ele vai ficar tão contente com o neto que até te perdoa a dívida.
— Não o conheces como eu. É muito agarrado às coisas, um cotótó. E para mim é uma questão de palavra.
Foi inútil protestar, porque quando a Muari metia uma coisa na cabeça, levava-a até ao fim. E sem mais explicações para
Munakazi, abalou numa madrugada com duas galinhas para pagamento antecipado ao kimbanda. Voltou quatro dias depois,
mais magra e cansada, mas satisfeita com a companhia do primo Kandala, um homem alto e magro, com indesmentível ar de
dignidade, uma barbicha branca e muitos colares de conchas ao pescoço. Este sentou logo num banquinho que instalaram no
pátio, foi bebendo o maluvo e comendo a kitaba e outras doçarias que
Munakazi tinha antecipadamente preparado, a pedido da Muari antes da partida. Silencioso como um príncipe. Ulume nem
ousava se aproximar, ficava só a olhar de longe, intimidado pela imponência.
A notícia correu pelo kimbo que o famoso Kandala estava em casa de Ulume. E todos perceberam porquê. A curiosidade
levava as pessoas a virem cumprimentar Ulume ou a Muari, não precisam de ajuda? Só para espreitarem para o pátio e se
impressionarem com a aparência do curandeiro, silencioso e estático, como deve ficar quem tem muitos pensamentos. O
kimbanda não trabalhou no resto do dia, nem quis sequer conhecer Munakazi. Esperava a comida, a qual veio no fim da
tarde. Ulume, a fazer as contas à vida, se desesperava ao ver aquele funji com galinha (mais uma). E ainda ficou mais
inquieto quando, à noite, a Muari lhe segredou que Kandala exigia mais quatro galinhas como pagamento. E que para o dia
seguinte queria novo funji com galinha, era o seu prato preferido para convocar melhor os espíritos que curavam a
esterilidade. Que primeiro exigira dois cabritos, mas ela tanto chorou a sua miséria, provocada pelas constantes limpezas
feitas pelos militares, que acabou por se contentar com as seis galinhas, contando as duas que levara de avanço e boa
alimentação enquanto trabalhasse. E era um favor feito a uma parente, pois estava velho e não se deslocava para junto dos
pacientes, estes é que deviam procurá-lo no seu kimbo.
Kandala dormiu na cubata que antes era de Luzolo e Kanda, a qual foi arranjada para a ocasião. Mas não abriu a boca
depois de comer, nem mesmo à frente da fogueira onde os quatro se acocoraram à espera da hora do sono. O que Ulume
considerou uma pena, teria muita coisa a aprender com aquela sumidade que tanto do mundo e da tradição sabia. Mas ou não
gostou da comida ou da viagem, ou a disposição das árvores no pátio o incomodavam, o certo é que alguma contrariedade
não expressa o manteve absolutamente calado até dizer onde vou dormir e a Muari o levar à cubata dos rapazes. Mais tarde
a Muari contou que durante a viagem de dois dias ele também não abrira a boca. Tem muitos pensamentos, concluiu. O que
era um evidente sinal de respeito.
No dia seguinte, Kandala sentou numa esteira no pátio, com Munakazi sentada à sua frente, mexeu no cesto de adivinhação
que trazia sempre com ele e onde se juntavam figurinhas, pedrinhas, conchas, pedaços de pau, missangas, ossos pequenos,
pedacinhos de pano, olhou para dentro do cesto, mexeu de novo, voltou a olhar, começou a dizer coisas incompreensíveis
para Munakazi, mexeu e remexeu o cesto, olhou, pegou numa figura, mexeu ainda, tirou outra figura, fez hum, hum, sorriu
pela primeira vez, poisou o cesto no chão e lá dentro colocou as figuras, disse tem uma pessoa muito invejosa que está a te
impedir de alcançares, pode não ser a inveja no sentido que nós julgamos, pode ser ciúme por te ter amor, é uma pessoa
nova que está longe, o que Munakazi associou logo a Kanda, era Kanda que não deixava que ela gerasse irmãos dele pois
queria que ela gerasse filhos dele, isso foi o que ela entendeu, não o que disse Kandala que esse se calou em expectativa e a
rapariga estava muito confusa e desconseguia articular uma pergunta, embora soubesse que devia perguntar e agora o que
faço, mas nada lhe saía perante a ideia de Kanda sofrer ciúme por ela ter casado com o próprio pai dele, significando então
que ele a amava e não a queria apenas para ir no capim, o que pela primeira vez lhe trouxe uma enorme tristeza e o
arrependimento pela decisão que tomara ao ver Ulume dobrado como o pensador tchokue, mas agora o mal estava feito e
talvez nem Kandala lhe valesse, mas a Muari, que também assistia à sessão e nunca que podia adivinhar se tratar de Kanda,
o seu filho, perguntou então, parente, que fazemos para neutralizar esse invejoso, o que levou o kimbanda a apontar para a
segunda figura que tinha retirado do cesto, é um homem vigoroso e não acredita nestas coisas, nem sequer sabe que está a
impedir a barriga de crescer, mal não se poderá fazer a tal pessoa nem talvez vocês o desejem, apenas podemos impedir a
sua interferência, o que já nos satisfaz, e receitou uns chás que Muari até conhecia e depois traçou com pemba, outra forma
de dizer o caulino branco, uns riscos na barriga delgada de Munakazi, acompanhados de algumas palavras de forte efeito,
terminando com a ritual frase daqui a nove meses vais parir uma menina, o que levou as lágrimas aos olhos da Muari, pois o
que ela queria mesmo e nem ousava confessar era uma menina, rapazes já os tinha e lhe davam demasiadas arrelias, como é
próprio de homens saudáveis, precisava de uma filha, outra, pois também já tinha Munakazi que considerava como tal, a
qual estranhamente não mostrou entusiasmo, estava abatida como se alguma culpa secreta a consumisse.
Kandala comeu a refeição de despedida, segurou nas quatro galinhas e partiu para outros kimbos. Tinha recebido recados
durante a viagem e aproveitava para visitar várias aldeias, onde podia exercer a sua arte e ser bem alimentado e até receber
presentes que melhorariam a sua pobre dieta de velho solitário, cheio de pensamentos superiores. E a Muari embrenhou-se
pelos matos, para ir colher as plantas recomendadas por Kandala. Haveria de encher Munakazi de infusões até ela ter a
menina anunciada.
O problema é que os meses iam passando e, apesar das infusões e dos encorajamentos constantes de Muari para que
Ulume cumprisse as suas tarefas de macho, a barriga de Munakazi estava tão lisa como antes. E a melancolia tinha
aumentado nos seus olhos. Por mais brincadeiras que Ulume ou a Muari fizessem, ela já não ria aquelas gargalhadas dos
primeiros tempos, apenas sorrisos tristes. E falava cada vez menos. Os outros pensavam a tristeza vir da ausência de
gravidez, mas a razão era outra. Um ano passou e Ulume protestou:
— Gastámos só oito galinhas à toa. Neste momento já podíamos ter um par de cabras que iam produzir os cabritos da
dívida. O teu primo Kandala é um...
— Xê! — interrompeu a Muari, impedindo-lhe a blasfémia. — Foi qualquer coisa que fizemos mal, não devemos ter
cumprido os preceitos a rigor. Talvez alguma folha ou erva imprópria se tenha misturado na bebida, ou não foi tomada uma
vez na hora devida, ou um pensamento inconveniente tivemos, qualquer erro cometemos. Porque Kandala, esse, nunca falha.
Apesar da tristeza de Munakazi não ter engravidado, o ano lhes correu bem. Nenhum exército se aproximou da zona,
parecia até a guerra tinha se esquecido definitivamente deles, o que restou das galinhas deu muitos ovos e a capoeira tinha
agora vinte bichos. Ulume podia visitar o kimbo novo e combinar uma troca de galinhas por cabritos, um macho e uma
fêmea, ou pelo menos uma fêmea. As lavras e as nakas produziram bem, a chuva tinha caído nos momentos e nas
quantidades certas, havia cereais nos celeiros e legumes e frutos com fartura. Como nos bons tempos, em que a aldeia era
auto-suficiente. Para tanto bastava que ninguém se lembrasse da existência dela.
13
Ulume e Munakazi partiram para o kimbo novo, na procura de cabritos. Estava para ir só ele, mas a segunda mulher pediu
e implorou, me deixa ir contigo. Se aborrecia na aldeia, raras vezes fora visitar os pais. Era uma forma de conhecer coisas
novas. A Muari intercedeu, a viagem é longa e ela vai te fazer companhia. Bom para ti, bom para ela. Ulume também não
tinha muita razão para contrariar a vontade de Munakazi, a qual bateu palmas quando ele disse está bem, partimos amanhã
cedo. Há muito tempo a rapariga não mostrava tanta alegria. A Muari olhou para Ulume com ternura, em sinal de
reconhecimento.
Foi uma fatigante viagem, pois o terreno era quase sempre a subir. A Munda era uma serra alta e não se entra facilmente
no seu coração. O carreiro muitas vezes desaparecia por correr sobre rochedos, mas os do kimbo novo tinham tantas vezes
explicado todos os acidentes, que eles acabavam sempre por encontrar o caminho mais à frente. Água não lhes faltou
durante o percurso, pois a Munda estava juncada de regatos que nela nasciam e depois iam engrossar todos os Kuanzas do
mundo. Atingiram ao fim da tarde o vale de vegetação luxuriante, no fundo do qual se erguia o kimbo novo. De longe se
notava o fumo a sair das muitas fogueiras, onde as mulheres preparavam a comida.
Abílio e os outros receberam-nos com grandes provas de amizade. Todos queriam que comessem das suas panelas e eles
tiveram de se dividir, para não criarem ressentimentos. E não foi preciso discutir muito para combinarem negócios. O
próprio Abílio tinha uma cabrinha para trocar e Mukuaxi tinha um macho jovem que cedia com agrado. Os rebanhos se
davam muito bem no kimbo novo, pois as cabras gostam de pedras e capim de montanha. E quase não eram utilizados na
alimentação, porque havia muita caça. Portanto se outros quisessem trocar cabritos por galinhas podiam vir também, era o
recado que levariam para o kimbo velho. O problema foi a insistência de Abílio e Mukuaxi para que levassem já os bichos
e depois trouxessem as galinhas. Ulume não aceitou. Voltaria com as galinhas e só então levaria o casal. Bem bastavam as
dores de barriga que lhe dava a dívida em relação ao pai de Munakazi.
Conversaram até muito tarde, trocando os mujimbos dum lado e do outro. Recusaram ficar uns dias, Ulume não queria
deixar a Muari muito tempo sozinha, por isso partiriam no dia seguinte, mesmo um pouco cansados, e voltariam com as
galinhas na outra semana. Os do kimbo novo não paravam de gabar o sítio, vocês deviam vir para aqui, a terra é melhor, os
animais crescem mais depressa, ninguém vem nos chatear. Ulume concordava, de facto o sítio era muito bonito e
evidentemente próspero. Raridade em todo o planalto, o solo era negro ali, promessa de colheitas abundantes. Mas não
podiam deixar o kimbo velho, confluência de vários caminhos e por isso tão exposto. Ele até nem se importaria muito, os
filhos já eram grandes e escolheram as suas vidas, mas a Muari? Vivia sempre na esperança de algum deles aparecer.
— Se estiverem vivos concluiu Ulume.
Os outros ficaram silenciosos, pois todos tinham algum familiar nos exércitos ou pelo menos desaparecido nesses matos.
À socapa, todos olhavam para Munakazi, pois ela era a novidade. Tinha passado tanto tempo depois do casamento que já
não se lembravam de como comentaram o assunto quando o mujimbo chegou. Entretanto, um ou outro teve ocasião de ir à
aldeia velha e conhecer a rapariga. Mas ela estava ali e era a mulher mais nova, ao pé dela todas as outras pareciam avós.
Os homens invejavam Ulume. No kimbo novo, as crianças ainda eram muito novinhas, não havia nenhuma rapariga em idade
de fazer sonhar um homem maduro.
Durante os primeiros tempos, como lhes contaram, tinham feito incursões à volta do kimbo novo, para ver se havia outras
aldeias. E de facto encontraram algumas famílias dispersas, vivendo sobretudo de rebanhos. Mas aldeia que merecesse o
nome, a única perto era o kimbo velho. Aldeias mesmo só a dois dias de marcha, para o norte e o leste. E ali perto não
passava nenhum caminho importante, daqueles que podem trazer tropa. Por isso a zona era de tranquilidade total e a guerra
nunca lá chegaria. Ulume não quis abalar a confiança deles, era grande falta de respeito para quem os recebeu tão bem.
Concordou com a cabeça e disse:
— Por acaso lá nos nossos lados tem estado tudo calmo. Nunca mais apareceram soldados, nem se ouvem aviões. Até
parece que a guerra acabou, só falta os rapazes voltarem. Mas todos sabemos que não acabou, por vezes chegam notícias...
E como a confirmar que a guerra não tinha acabado, sentiram a presença dela quando se aproximavam do kimbo velho, no
dia seguinte. Quase esbarraram numa volta do caminho com o corpo de Mungongo, atravessado por duas balas. Ficaram
estarrecidos, a olhar para o cadáver, sem saber o que fazer. Munakazi acabou por reagir primeiro:
— Vamos sair do caminho. Do morro vemos o que passa no kimbo.
Subiram no morro onde morava o cágado velho, ficaram lá em cima deitados, se camuflando no capim. Ouviram primeiro
os choros e lamentos. Depois viram pessoas andando dum lado para o outro, duas cubatas calcinadas. O vulto da Muari
acocorada à frente da casa, as mãos na cabeça. Não se viam fardas, nem havia tiros. Os soldados já tinham retirado.
Munakazi tomou a dianteira, entraram no kimbo.
A gritaria aumentou quando os viram. Todos queriam contar o que acontecera e foi naquela confusão de várias mulheres a
gritarem as dores e de homens a tentarem explicar que perceberam, os soldados tinham vindo, não se sabia se os nossos se o
inimigo, era tudo muito parecido, nem Mande conseguia distinguir, disseram há muito tempo já não davam comida para a
luta e por isso vinham cobrar, começaram a disparar para o ar, pegaram fogo a duas cubatas, gritaram que não tinham muito
tempo, trouxessem já os cabritos e a comida. Como não havia cabritos, assaltaram as capoeiras, levaram galinhas e patos,
todo o milho existente nos celeiros e que era muito, e tudo o que desse para trincar. Isto fora na véspera de manhã, poucas
horas depois de eles partirem para o kimbo novo. Os soldados ficaram a comer e beber maluvo todo o dia, à noite partiram.
O Mungongo tinha desaparecido, era o único que faltava.
— O corpo dele está ali no caminho para o kimbo novo. Está morto.
A informação de Ulume fez aumentar a gritaria. As mulheres agarravam os cabelos, corriam em todas as direcções. Três
homens foram recolher o corpo. Ulume aproveitou para aproximar da Muari, alheia a tudo, acocorada à frente da sua casa.
Se agachou à frente dela, sentindo que Munakazi o seguia.
— Vocês já vieram — disse a Muari, sem emoção.
Parecia tinha envelhecido. A voz era mais fraca, cansada.
— Ainda bem vocês não estavam. Senão eles tinham levado a Munakazi. Só falavam disso, então aqui não tem mulheres
novas?
— Que se passou?
— Consegui esconder duas galinhas e o galo. O resto eles comeram ou levaram.
Ulume olhou para a capoeira. Parte da cerca estava derrubada. Roubam e nem têm cuidado, estragam tudo. Ao menos
podiam deixar as coisas direitas, não sabem que dá trabalho arranjar?
— Não fizeram nada ao Mande e à Ana?
— Eles se esconderam nas bananeiras, mas antes tiveram tempo de os ver. Ou não são dos nossos ou já os esqueceram...
São do exército do Luzolo.
— Como sabes?
— Um que veio apanhar as galinhas conhecia o Luzolo. Já tinha estado aqui das primeiras vezes que apareceram. Disse
chefe Luzolo. O teu filho é chefe agora. Falou um nome, não percebi, parece é feres...
— Alferes — corrigiu Munakazi. — É um posto militar importante.
— Eu disse para dizer ao Luzolo que afinal os dele vieram roubar tudo o que nós tínhamos, agora estamos na miséria e
nem podemos pagar a dívida. Gritei para ele vai dizer no meu filho, que agora é chefe, para ele saber como são os soldados
que ele tem que nem respeitam a mãe do chefe deles.
— E ele que fez? — perguntou Ulume.
— Me deu com a arma aqui — e apontou as costas. — Um miúdo, um amigo do meu filho Luzolo me bateu.
As lágrimas corriam pelas faces enrugadas da Muari. Num dia tinha mudado, parecia mãe não de Luzolo, mas de Ulume.
Munakazi também se agachou e começou a dispor a lenha para acender a fogueira. Tinha de ir procurar no celeiro as sobras
de comida para a refeição de fim de tarde, Muari hoje não tinha cabeça para nada. Nas nakas sempre havia legumes e
folhas, de fome também não morreriam. E no dia seguinte Ulume ia pescar ou caçar, nem que fosse um puku, o rato do mato.
— Ainda bem que não aceitei trazer os cabritos, tinha de os devolver — disse Ulume. — Não temos galinhas para a
troca.
— Um amigo do meu filho Luzolo nos fez isto — repetiu a Muari.
— Os amigos de Kanda não o fariam — disse Munakazi.
— Como sabes ? — perguntaram os outros dois em uníssono.
A rapariga se arrependeu logo de ter falado. Nunca mostrara tantas intimidades com Kanda, eles não precisavam de o
saber. Mas de facto tinham conversado muito antes de ele apanhar aquela camioneta que o levou para Calpe. Tinham
conversado mais do que ela lhes tinha contado.
— Como sabes? — insistiu Ulume. — Que é que tu sabes disto?
Ela tinha de falar, até porque a desconfiança pairava na voz do marido. Como a culpá-la do que tinha acontecido? Não
seria isso, mas havia desconfiança nos olhos dele que sempre a contemplavam com ternura. A ternura tinha sido substituída
por um brilho frio, que a incomodava. Também havia dor nos olhos dele, um mar de dor, isso ela entendia facilmente.
— Eu era amiga do vosso filho Kanda, como sabem, e ele sempre dizia que ia lutar para defender o povo. Que os outros,
os que levaram Luzolo, eram bandidos que iam fazer mal ao povo, a nós. Por isso Kanda ia para defender o povo. Portanto,
se fossem os amigos dele, não teriam feito isto.
— Mas então o Kanda é dos nossos e o Luzolo do inimigo?
— Penso que sim. Pelo menos o Kanda é dos meus nossos, não sei quais são os nossos dos outros.
Ulume abanou a cabeça e olhou para as chamas que começavam a aparecer, porque Munakazi falava mas também ia
soprando nas brasas, como se fossem as palavras dela que avivavam o vermelho da fogueira. Continuou:
— Não vêem que uns soldados pedem comida e outros tiram logo? Há uma diferença entre eles.
A Muari saiu do mutismo para perguntar:
— De facto, por vezes uns pedem. Mas serão os mesmos que pedem sempre e serão os mesmos que roubam sempre? Ou
depende?
Pergunta sem resposta possível. Ficaram os três calados, a olhar o fogo, até que Munakazi se levantou e foi tratar da
comida. Enquanto esperavam, Ulume aproveitou para animar um pouco a Muari, falando do que viram no kimbo novo.
Contou como era bonito o sítio, a quantidade de água e de boa terra negra que lá havia, como os cabritos engordavam
depressa, a caça abundante existente nos penhascos, até macacos que lhes faziam caretas das penedias. Macacos, se admirou
a Muari, pois era animal que tinha abandonado há muito os arredores das aldeias próximas. Sim, macacos, como antílopes
de todas as raças, desde as elegantes impalas às trôpegas tavas, passando por songues e onjiris. A cada curva do caminho
quase se chocava com um bicho. E onça? Sim, também haveria, onde há antílopes tem onça e leão, mas os riscos eram
mínimos, cada homem tem o seu punhal e a sua moca à cintura, dá para impor respeito.
Ulume foi contando os mujimbos e a maneira boa como dormiram na cubata que lhes puseram à disposição, onde foi
preciso cobertor além do braseiro, pois as noites são bem mais frias por causa da altitude e as estrelas brilham mais, talvez
por causa do frio. Entretanto chegou Munakazi com farinha para o funji, tomate e cebola para o súmate. Não sobrara nem
uma espinha de peixe seco, nem um restinho de carne fumada, os soldados tinham comido tudo. Haviam de se contentar com
isso.
Entretanto, Ana e Mande se aproximaram silenciosamente, não temos nada para comer, até nos incendiaram as casas.
Foram obviamente convidados para partilhar o pouco que encontraram.
— Mas como é que eles puderam carregar todo o milho? Havia muito guardado, estes dois anos foram bons e sem visitas
destas...
Foi Mande que respondeu a Ulume :
— Nós estávamos escondidos nas bananeiras, com medo que descobrissem que tínhamos fugido da base. E vimos eles
irem e virem, sempre com sacos. Deviam ter um carro perto, senão era impossível carregar tudo. Ou então esconderam em
algum lugar e vêm depois buscar aos poucos.
— Temos de ir para o coração da Munda — disse Ana.
— Sim, nós vamos para o kimbo novo — rematou Mande. — Não podemos viver sempre nesta angústia. E recomeçar de
cada vez tudo de novo. Chega, estou cansado.
— O kimbo novo é bom sítio — disse Ulume. — Mas se vão para lá, como vão encontrar o vosso filho?
— Quando a guerra acabar, voltamos para aqui. Ele aparecerá então. Não vale a pena ficar à espera, enquanto houver
guerra. Se ele aparecer agora, o que adianta? Fica um dia e depois vai embora. Então é melhor esperarmos no kimbo novo.
— Um dia a guerra também chega lá — disse Ulume.
— Pode ser. E vamos para outro sítio. Um dia a guerra acaba.
— Acaba mesmo?
Quem sabia responder a essa pergunta de Ulume? Munakazi batia o funji, segurando a panela com os pés. A Muari estava
como alheada, no entanto ouvia tudo com atenção pois disse para o marido:
— Eles têm razão. E nós também devemos ir para o kimbo novo, aqui já não dá mais para viver.
Munakazi parou de bater o funji, ficou com o pau no ar e de boca aberta. O mesmo espanto se desenhava na cara de
Ulume. A Muari prosseguiu:
— Os que estão lá vão nos ajudar nos primeiros tempos. E podemos vir aqui buscar os produtos das nakas de vez em
quando, como eles fizeram. Para quê ficar? Para acontecer o mesmo que ao Mungongo? Porque o mataram? Porque teve
medo e fugiu. Logo foram dois a correr atrás dele, eu vi. Ele talvez queria fugir para o kimbo novo, ou só correr à toa para
deitar o medo para fora dele. Dispararam, ouvi os tiros. Depois vocês vieram dizer que encontraram o corpo dele no
caminho do kimbo novo. Mungongo estava certo, aquele é o caminho que nos resta a todos. Mas é preciso saber escolher o
momento de ir, sem inimigos que possam disparar. E o momento é agora, é amanhã. Ficar já não adianta. Os filhos
aparecerão quando a guerra acabar.
Ulume não falou, pois estava surpreso pela reacção da mulher, a qual sempre dissera deste sítio não saio. Tinha entendido
a razão dela na altura, embora achasse ser uma teimosia perigosa. Ele também não queria sair, para não abandonar o cágado
velho. Mas sabia, não era argumento suficiente. Por isso apenas abanou a cabeça de cima para baixo, em silêncio.
Munakazi recomeçou a bater furiosamente o funji, todos notaram. Ela terminou e quase atirou a panela para o meio deles.
Cortou o tomate e a cebola com modos bruscos, também atirou a vasilha para o meio deles. O silêncio dos outros
acompanhava a ira adivinhada na rapariga. Mas ninguém perguntou o que passava com ela, preferiram meter a mão na
panela para colher uma bola de funji, molhar a bola no molho formado pela água do tomate e comer com contenção.
Nenhuma palavra foi proferida até a comida ter terminado, como se de ritual religioso se tratasse. Havia a fome que era
muita e podia explicar o ocorrido. Mas a principal razão era essa raiva inexplicável de Munakazi, como os culpando de
qualquer crime desconhecido.
— Onde vão dormir esta noite, se vos queimaram a casa? — perguntou Ulume.
— Ao ar livre — disse Mande. — Já estamos habituados.
— Tem aí a casa dos rapazes — disse a Muari. — Fiquem aqui, é melhor.
Não havia contestação possível e o casal aceitou a hospitalidade. Munakazi esperou que os convidados se retirassem
para a casa dos rapazes. Falou, com aquele ar de determinação contida que Ulume conhecera quando ela lhe dizia não:
— Se vocês vão para o kimbo novo, eu volto para casa dos meus pais. Fica um pouco à margem, só uma vez os soldados
lá foram.
— A mulher vive no kimbo do marido — cortou a Muari, ríspida.
Munakazi levantou para ela os olhos e pela primeira vez as duas mulheres se defrontaram. A rapariga não baixou os
olhos, em desafio. Ulume sentiu, Munakazi estava a ultrapassar todos os limites, tinha de ser corrigida. Mas sentia uma
enorme lassidão, também lhe doía deixar aquele sítio tão belo onde nasceram os seus pais e os pais deles. Por isso não teve
a firmeza que deveria.
— Munakazi, tu e a Muari sempre foram amigas, como mãe e filha. Não estragues tudo agora. Já não podemos viver mais
aqui, tu sabes. Se cá estivéssemos, tinham te levado. A Muari está a fazer um grande sacrifício, pois perde a esperança de
encontrar os filhos agora. Está a fazer esse sacrifício também por ti.
— Daqui só saio para ir para Calpe.
A frase da segunda mulher bateu em cheio na cabeça de Ulume, como quando a granada rebentou perto dele. Um
atordoamento. Podia esperar muita resposta, menos aquela absurda. Então era verdade quando ela dizia que gostava de
conhecer Calpe? Sim, era o sonho de todos os jovens e havia adultos que de vez em quando tinham essa curiosidade. Quem
sabe, um dia poderia até ir para ver. Quando houvesse paz. Embora para Ulume nada de bom podia vir de Calpe e ele
sempre tivesse evitado qualquer aproximação. Admitia fazer uma excepção para contentar Munakazi. Mas nunca tinha
percebido que para ela fosse assim tão importante. Era quase uma exigência.
— Primeiro ias para o kimbo dos pais, agora é Calpe — disse a Muari. — Estás só a falar à toa. Se o teu marido decidir
que vamos para o kimbo novo, tu vais e acabou. Onde já se viu mulher recusar acompanhar o marido?
— Se nunca se viu, vai se ver — resmungou a rapariga.
— A Muari tem razão. Ainda não decidi. Mas tu vais onde nós formos, ou ficas onde nós ficarmos.
— A Muari tem sempre razão — escarneceu Munakazi. — Fica então com a Muari.
— Chega, vamos dormir — cortou a primeira mulher. — Amanhã falamos.
Ulume levantou em silêncio e se dirigiu para a casa da Muari. Passaria a noite lá. Que Munakazi ficasse sozinha a
reflectir no seu absurdo comportamento. A primeira mulher deitou depois dele, virou para o outro lado e disse:
— Não leves muito a sério. A guerra lhe deve ter posto nervosa. Esteve a falar sem pensar. Ela não é assim.
Mas Ulume não ficou tranquilo. Munakazi mostrara uma faceta desconhecida e grave. Sabia, ela era de rompantes e
amuos, já tivera outros. Mas sempre fora cordial para a Muari, que a tratava como mãe. De onde estava a sair aquela
revolta toda e porquê? Tinha razão para ciúmes? Era a preferida e a Muari até condescendia nisso, embora tivesse todos os
direitos de primeira mulher. Ele dormia quase sempre na cubata dela, deixando a pobre da Muari dormindo no frio e na
solidão. Qualquer desejo de Munakazi era uma ordem para ele ou para a Muari. Mas agora até parecia que tinha ciúmes.
Voltava àquela posição antiga, o homem é só para mim e não o divido? Mais de dois anos de vida comum pareciam ter
afastado para sempre esses problemas. Afinal não, estavam apenas escondidos. E o mais grave é que aparecia aos olhos de
Ulume claramente a sua incompetência para gerir estes conflitos. A noite inteira foi pouca para percorrer a sua vida e
decidir sobre o melhor. Fazer a vontade a Munakazi e permanecer no kimbo, vivendo todos os dias com o medo duma visita
indesejada? Trabalhando para ser espoliado? Ficando toda a vida a dever o alembamento prometido, pois sempre que dava
um passo para cumprir o dever vinham pilhar os tesouros? Ou obrigá-la a ir para a tranquilidade do kimbo novo, lá
refazerem a vida e esperar o fim da guerra? Porque estava absolutamente fora de questão ir agora a Calpe. Se debateu
durante toda a noite, sem dormir, apesar do cansaço das viagens e das frustrações.
14
Mande e Ana partiram logo de manhã. Também a família de Mungongo, depois do funeral, que consistiu em embrulhar o
corpo numa esteira e enterrá-lo. Os tempos não permitiam grandes festividades. Restavam quatro famílias, as quais
partiriam nos dias seguintes. Só Ulume não se decidira. No njango tinham conversado e ficara assente que não se iam juntar
ao kimbo novo, pois isso acabaria por acarretar problemas de terras. No mesmo vale, mas do outro lado, havia um sítio tão
bom como o da aldeia já formada. Aí Mande e Ana, os primeiros a chegar, ergueriam a sua cubata. Ulume concordou, pois
notara o sítio, com muitos terrenos irrigados para fazer as nakas. Ficava a meia hora de marcha do kimbo novo, andando em
rítimo de passeio. Suficientemente perto para estarem sempre em contacto, e suficientemente longe para poderem utilizar as
terras que fossem capazes de trabalhar sem provocar conflitos com os primeiros donos da terra.
— E nós quando vamos? — perguntou a Muari à noite, quando os três estavam à volta da fogueira, depois de comerem.
— Amanhã partem os outros. Ficamos os três aqui sozinhos?
— Primeiro tenho de ir explicar o caso ao pai da Munakazi — disse Ulume. Virando-se para a segunda mulher: —
Queres ir também ver os teus pais?
Munakazi fez um muxoxo breve e quase inaudível. Não respondeu. Pelo menos já não repetiu a conversa de ontem, pensou
Ulume. Havia progressos, apesar da má educação manifestada pelo muxoxo, gesto que não era permitido a uma jovem
falando com mais velhos. Mas Munakazi muitas vezes ofendia a tradição e Ulume atribuía isso à marca dos novos tempos.
Nessa noite foi se deitar com Munakazi. Ela aceitou as carícias e o amor que ele lhe fez com ímpeto, mas não respondeu
às suas perguntas. Gozou com o amor e não o escondeu, com os habituais gemidos que tanto envaideciam o marido, apesar
de ser uma entorse nas tradições. Mas se recusava a falar, mesmo quando ele lhe pediu para o acompanhar ao kimbo dos
pais. No entanto, de manhã, quando Ulume se aprestava a partir, ela se pôs atrás no caminho.
Foram muitos os choros da mãe de Munakazi e as lamentações do pai, com os azares seguidos do casal. Compreendiam o
atraso do pagamento do alembamento. Mas não se conformavam com a ideia de a filha ficar tão longe deles, quase
impossível de visitar. E outra coisa atormentava o pai: até então o kimbo deles tinha ficado resguardado, pois todos os
soldados iam ao de Ulume, mais à beira das estradas. Desaparecendo este kimbo, os soldados iam avançar um pouco mais,
como uma vez tinham feito. A sua aldeia ficava a partir de agora muito mais exposta. Se eles começarem a chatear, façam
como nós, embrenhem-se na Munda central, disse Ulume, lá tem terras para todos e bem melhores do que estas. E Ulume
explicou o caminho para o Vale da Paz, como lhe começavam a chamar. Mas cuidado, não passem o mujimbo aos soldados,
se perguntarem onde fomos, vocês não sabem, só que a aldeia ficou de repente abandonada. Esse segredo decide da nossa
tranquilidade e até mesmo da nossa vida. E da vossa, um dia, quando precisarem de recuar. Nenhum soldado deve conhecer
a existência do Vale da Paz. Se despediram com muita pena, Munakazi muda como quando viera, mas levando agora uma
galinha e uma cabaça de mel que a mãe oferecera para a viagem. A galinha vinha mesmo a calhar, pensava Ulume no
caminho do regresso, era mais uma para a reprodução. A criação se tornara a obsessão dele.
No dia seguinte se meteram a caminho do Vale da Paz. Munakazi continuava sem falar, mas obedecia. Iam
carregadíssimos, com trouxas enormes à cabeça, talvez não conseguissem chegar nessa tarde. Levaram as esteiras e os
cobertores, as galinhas e o galo, as enxadas e os machados e a catana, as panelas, outros utensílios de cozinha, e ainda
alguma comida para os primeiros dias. Muito peso para quem tinha de subir tanto. Na véspera, enquanto as mulheres
amarravam as imbambas, para poderem sair antes do nascer do sol, Ulume foi ao morro se despedir do cágado velho e
esperar a paragem do tempo. Quando o cágado se deslocou para beber água e passava à sua frente, o homem perguntou mas
cágado velho, podia fazer outra coisa senão te abandonar? E aconteceu mesmo, não foi produto da imaginação, o cágado
ficou de perna no ar sem dar o passo seguinte e virou a cabeça para ele. Ficou muito tempo a contemplar Ulume, depois
voltou a poisar o pé no chão e continuou o seu caminho para a fonte. Era uma mensagem que o homem não sabia interpretar.
No regresso, Ulume lhe disse prometo, cágado velho, de vez em quando vou vir aqui te visitar, até um dia te dignares falar
comigo. Pouco depois lhe deu aquela sensação de que algo ia acontecer, pois reparou na Lua em pleno dia, o silêncio
absoluto se impôs, o ar perfeitamente azul parou, o Sol dardejou mais forte os seus tons de lilás e à angústia de outros
momentos se juntava agora a antecipada saudade de deixar aquele lugar bendito.
Sofreram, sobretudo a Muari, mas chegaram ao Vale da Paz antes do pôr do Sol. Quando subiram a última ladeira e de
repente a toalha verde se estendeu a seus pés, a Muari lançou exclamações de encantamento. Uma parte do vale já se
encontrava na sombra, enquanto a outra ainda era iluminada pelo Sol. E esse contraste fazia realçar a pujança do verde
saído dos caniços da borda do rio e das palmeiras que brotavam por todo o lado. As encostas do vale estavam cobertas de
florestas, as quais significavam, quase à porta das cubatas, caça, lenha e remédios, além de frutos e tubérculos comestíveis.
Tudo isso a Muari percebeu num relance e se apaixonou.
Foram recebidos como reis, por terem sido os últimos a chegar. Só as duas casas de Mande estavam prontas, as dos
outros ainda não tinham tecto. Todos dormiam ao relento, mas era só por mais uma noite. E as fogueiras bem abastecidas de
lenha atiravam para longe aquele frio das montanhas. Os do kimbo novo também vieram saudá-los e trazer carne fumada
para todos. Abílio e Mukuaxi se apressaram a dizer a Ulume, já sabemos o que sucedeu, mas se quiseres mantemos o
negócio, ficas com os cabritos e pagas quando tiveres galinhas suficientes. Que não, primeiro haveria de fazer uma boa
capoeira, pôr aquele galo velho e as três galinhas que trouxera a se reproduzirem, só depois poderia falar de trocas.
Os primeiros tempos foram difíceis. Foi preciso edificar as duas cubatas, uma para cada mulher. Depois demarcar com os
outros os terrenos para as nakas perto do rio e para as lavras nas encostas. Desmataram os terrenos, à força de machado,
acumulando ao mesmo tempo muita lenha que alimentaria as fogueiras. Desmatar era trabalho dos homens. As mulheres se
ocuparam imediatamente dos terrenos junto do rio, onde iam semeando os legumes, o feijão e o milho. Eram os terrenos
mais ricos, de maior produtividade. Todas as semanas, Ulume e Munakazi iam ao kimbo velho, para colher a comida que
estava nas lavras; parte para comerem, parte para semente. E só depois de ter desmatado o suficiente, foi Ulume buscar ao
kimbo velho as estacas de mandioca para plantar nas novas terras. De cada vez que faziam a viagem, tinham de dormir no
caminho, pois não dava para ir e vir no mesmo dia. Ulume pôs armadilhas no mato e de vez em quando encontrava lá um
coelho. Mas o trabalho era demais e a comida rareava, apesar da ajuda dos que tinham se mudado antes. A Muari só tinha
pele e ossos. E Munakazi, que antes era toda redonda de carnes, agora estava magra como ele sempre fora. Faltava ainda
muito até o milho e a mandioca produzirem, sobretudo esta última. E não dava tempo, com a instalação do kimbo e a
preparação dos terrenos, para caçar e pescar. Até lá, muito padecimento haveriam de sofrer e mais magros haveriam de
ficar. Antes da fome, só mesmo a fome, como diziam os antigos.
Chegou um dia em que os trabalhos principais estavam feitos. O kimbo ostentava uma grande praça com um njango onde
os homens conversavam ao fim do dia e onde as mulheres também iam quando era preciso discutir assuntos de interesse
colectivo. As casas se espalhavam à volta da praça, com distâncias suficientes entre elas para que nenhum vizinho ouvisse
as discussões que se passavam nas cubatas ou nos serões familiares à frente das fogueiras. Podia se dizer que o kimbo
estava construído e lhe deram o nome de Olongo, porque Mande e Ana, ao escolherem o sítio, encontraram no lugar onde
hoje se ergue o njango os imponentes chifres do animal de mesmo nome. Mande e Ana tinham cortado um pau largo,
cravaram-no bem na terra e em cima espetaram os chifres do olongo, como uma mahamba a afastar os maus espíritos e a
convocar os benfazejos. Todos concordaram que, à falta dum chefe emprestando o nome à aldeia, devia ficar o do antílope
elegante e de muita carne cujos longos chifres indicavam o njango. Mais cerimónias deviam ser feitas para que os espíritos
protegessem a aldeia. Mas não tinham nenhum especialista de cultos, nem o havia no kimbo novo. Se limitaram a deitar
vinho de palma nos dois caminhos de saída do kimbo e a marcar aí os sítios onde haveriam de pôr mahambas, quando
matassem antílopes ou arranjassem bois, cujos chifres poderiam ser espetados para guarda. Mas a aldeia estava pronta e
convidaram todos os amigos do kimbo novo para a festa da fundação. Maluvo houve muito, pois as palmeiras abundavam. A
comida é que foi pouca, sobretudo carne e funji. No entanto os tambores estavam bem aquecidos, tocaram com força e
rítimo e a dança furou a noite. Munakazi só achava a festa não tinha nada a ver com as da sua juventude, faltavam os jovens
para a animar de risos e malandrices. Mas dançou com as outras mulheres.
O trabalho principal fora da aldeia também estava feito. As terras tinham sido desmatadas, a mandioca plantada e o milho
semeado. As nakas também estavam prontas, com as plantas a crescer. Agora era só trabalho de arrancar o capim que
teimava em nascer entre as plantas e regar as nakas. Trabalho de mulheres. Por isso Ulume e os outros homens se dedicavam
mais à caça e à pesca no rio. Começou a haver mais carne para comer. O peixe é que não era abundante. Talvez porque o
rio viesse da direcção do kimbo novo e eles lá apanhassem mais peixe. Talvez porque simplesmente não havia muito, o
mais lógico, pois os do kimbo novo também se queixavam. Esses rios pequenos, de montanha, não se comparavam aos de
chana, onde os bagres chegavam a ter o tamanho dum homem.
E o milho criou bandeiras. Todos se admiravam com o tamanho e a grossura delas. E o milho deu maçarocas, enormes. E
as primeiras maçarocas foram colhidas e pela primeira vez se ouviram os pilões a trabalhar, naquele rítimo batucado
sempre igual, de redenção. E para se comemorar o primeiro milho colhido no Vale da Paz se fez uma festa, com muito funji
que outros chamam pirão e muita carne, pois um songue foi caçado pelo Armando, o mais hábil dos atiradores da aldeia. E
dessa vez os batuques tocaram mais forte, se comeu e se bebeu com alegria, e se dançou toda a noite, mesmo os velhos de
corpos entorpecidos.
A fome, aquela fome, estava mais uma vez derrotada.
Só a tristeza de Munakazi não desaparecia. A zanga tinha passado, já falava com os outros e até dançara nas festas. Mas a
melancolia que tanto prendera Ulume nos primeiros tempos tinha dado lugar a uma tristeza inquieta. Por vezes a surpreendia
a olhar para todos os lados, como em vigília. Que poderia estar ela a vigiar, ali, naquele ermo protegido e sem surpresas?
Era qualquer inquietação que escondia, qualquer dor que não revelava nem à Muari, tornada de novo sua mãe e confidente.
A Muari tinha suportado a fase de mutismo de Munakazi com naturalidade. Pouco a pouco, foi lhe dizendo frases, uma
observação, um conselho, sem esperar respostas. Falava para ela, apenas. Até que um dia, junto do rio, enquanto capinavam
na naka, Munakazi retribuiu uma piada da Muari sobre Mário, o gago. E a Muari não mostrou qualquer espanto, replicou
simplesmente. E a conversa se ligou e nunca mais parou. Não houve uma explicação, para quê? A primeira mulher
compreendia que ela não queria vir para o Vale da Paz, pois isso a tinha afastado muito de Calpe. O sonho dela e de todos
os jovens era conhecer Calpe. A mudança tinha sido uma machadada muito forte nesse sonho. E haveria outras razões,
próprias de rapariga. A Muari não sabia, nem lhe interessava, tanta gente tinha tantas razões que ficavam escondidas como
um tesouro. O importante era ter terminado a fase difícil de Munakazi. O tempo faria o resto. Mas não fez. Nunca mais a
alegria pura, mesmo se ria. O riso trazia uma ponta de tristeza. Sempre.
Foi então que Ulume resolveu visitar o cágado. Levou um farnel para a viagem, preparado pela Muari, e um saquito
camuflado com fuba de milho. Saiu de madrugada. Chegou ao kimbo velho a meio da tarde, pouco antes do momento em que
o cágado aparecia para beber. Se sentou no lugar habitual e ficou a ver o kimbo velho, agora abandonado. Parecia que tinha
passado uma tempestade. Nenhuma cubata estava de pé e a maior parte carbonizada. O tempo passado era pouco demais
para provocar tais estragos. Só podiam ter sido homens.
O cágado saiu da gruta, ia a passar por ele quando Ulume o cumprimentou, vês que vim te visitar como prometi? E trouxe
fuba de milho, a primeira feita no kimbo, que vou deixar à entrada da tua gruta, espero que gostes. Esse primeiro milho é a
prova do meu respeito por ti, mais velho. Gostaria de falar mais contigo, mas não dá jeito porque não respondes. E tens
tanta coisa para me ensinar. O tempo que Ulume levou a exprimir estes pensamentos em voz alta foi também o da perna no
ar, pois o cágado velho só poisou o pé quando o homem acabou de falar. E olhava para ele, como escutando as suas
palavras. Depois foi beber água no regato, tempo que Ulume aproveitou para despejar a fuba à entrada da gruta, como uma
primícia dada aos deuses ou aos espíritos dos anciãos. O cágado voltou a passar por ele e ficou a comer a fuba, o que seria
bom presságio se tratasse com espíritos. Ulume bebeu água e desceu o morro, para o sítio das bananeiras e das antigas
nakas, onde de vez em quando ainda vinham buscar comida, sobretudo cachos de bananas.
Ao se aproximar do vale arborizado, sentiu um cheiro nauseabundo. De carne em putrefacção. Algum animal tinha
morrido ali. Avançou no sentido do cheiro e deparou com um corpo de mulher, já em estado muito avançado de
decomposição. Faltava uma perna. Parado, sem avançar nem mais um passo, procurou a perna. E viu lá mais à frente um pé
e mais à frente um bocado de osso. Notou então o buraco, ali ao lado. O coração começou a bater muito depressa e o pânico
se apoderou de Ulume. Porque a causa da morte da mulher tinha sido uma mina, tinha ouvido falar dos efeitos, sobretudo por
Mande que tinha ganho experiência dessas coisas quando andou raptado.
No meio do pânico, olhou atentamente para a cara da mulher mas poderia jurar que nunca a tinha visto. Não era de
nenhuma das aldeias da zona, pois ele conhecia toda a gente. Alguma desgraçada, fugida da guerra, sabe-se lá de onde, que
encontrou ali comida, foi colher talvez um cacho de bananas ou um pouco de jimboa para fazer uma sopa e pisou uma mina.
Mas porque haveria de estar ali uma mina?
Ele tinha de ir embora. Mas como? Se tinha rebentado uma, podia haver mais. Só havia uma maneira, seguir os
ensinamentos de Mande. Se controlou, posso ter medo mas não demais, senão é pior. Foi aqui perto que aquela granada me
ia matando e afinal me safei, calma. Resolveu retroceder pelos seus passos e pisar exactamente onde pisara antes para
chegar até ali. Felizmente o terreno estava mole por uma chuvada recente e as suas pegadas eram nítidas. Vagarosamente,
suando a cada passada, foi voltando até ao morro do cágado, onde era muito pouco provável que tivessem plantado minas.
Tornou a sentar no sítio onde estivera antes, mas não aconteceu o parar do tempo, embora só se ouvisse o pipilar das aves e
o serrar dos insectos. Mas não aconteceu o silêncio total, o azul se azular ainda mais e o mundo se entregar aos seus pés.
Quem sabe por causa do muito medo. Ou porque a Lua não estava visível.
Resolveu voltar imediatamente para o Vale da Paz, onde não havia minas. Por enquanto. E enquanto andava, todos os
terrores lhe passavam pela cabeça. Os soldados vieram, encontraram o kimbo vazio, se zangaram, sacanas dos aldeões
fugiram, mas isto não vai ficar assim, destruíram o que puderam, levaram a comida que cabia nas mochilas, depois
pensaram esses camponeses deixaram aqui plantas que dão fruta e grãos e tubérculos e folhas, não vão deixar tudo
apodrecer, de vez em quando vêm aqui se abastecer, então vamos nos vingar da deserção e pronto, puseram minas. Foi isso,
só pode ser. E talvez tenham andado a explorar para onde poderiam ter fugido e talvez tenham minado os caminhos antigos.
E o kimbo da família de Munakazi? Pode ter sofrido as consequências dessa raiva dos soldados. Sentiu a obrigação de lá
ir saber o que passava e prevenir da sua descoberta. Pelo menos avisá-los para não se aproximarem da zona das nakas, que
estava minada. E do antigo kimbo, pois era muito provável que os soldados também tivessem deixado ali algumas
lembranças entre os escombros que provocaram. Mas se fosse ao kimbo dos pais de Munakazi agora, tinha de dar uma volta
para evitar o caminho directo que podia estar minado e isso queria dizer que lá chegaria de noite. Era perigoso.
Era perigoso mas tinha de ir. Não podia chegar a casa sem notícias para Munakazi, depois da fatídica descoberta.
Desviou do caminho, foi cortando pelo mato, se orientando pelo morro atrás do qual ficava o kimbo. A noite caiu e ainda
faltava um pouco para chegar. Parou para reflectir, pois no escuro tinha dificuldade em fazer aquele corta-mato. Resolveu
flectir para a esquerda, onde deveria estar o caminho que tantas vezes utilizava. Não poria o pé nele, com medo das minas,
mas serviria para se orientar. Nem precisou, pois viu luzes ao longe, eram as fogueiras do antigo kimbo de Munakazi. Foi
avançando com cautelas, tentando perceber as vozes. Até que lhe pareceu tudo normal, com os habituais gritos das crianças,
os risos das mulheres e as falas abafadas dos homens. Entrou no kimbo e assustou toda a gente.
Devem tê-lo tomado por um soldado que guiava os outros, pois se estabeleceu a confusão na aldeia, com gritos e
correrias. Ele gritou sou eu, Ulume, e então as pessoas acalmaram e veio a mãe de Munakazi aos gritos, mas o que
aconteceu à minha filha, o que era normal pois se ele aparecia àquela hora é porque trazia más notícias, ao que ele teve de
responder a sua filha está bem, vim só saber como vocês estão pois amanhã vou regressar ao kimbo e queria levar notícias
vossas. Sentou ao fogo da casa familiar e os mujimbos foram trocados.
Primeiro os pais de Munakazi, ansiosos por contarem as suas desgraças, porque disso se tratava, se soubermos que no
mês passado vieram os soldados, primeiro perguntaram onde estão as pessoas do vosso kimbo velho, ao que dissemos não
sabemos, depois ficaram aí, comeram a nossa comida, levaram algumas galinhas e cabritos e o nosso filho Elavoko, veja lá,
aquela criança ainda tão pequena, que se não dava para combater já podia ao menos carregar as munições, foi o que eles
disseram, aiué o meu filho ué. A irmã mais nova de Munakazi se safou porque ainda não tinha chegado dum kimbo onde fora
visitar o tio. Senão lhe tinham levado, já está em idade de casar, com as maminhas assim espetadas, lhe levavam mesmo ou
a violavam aí no capim. Os outros irmãos eram miúdos demais, lhes deixaram. Essas são as novidades da nossa desgraça.
Foi então a vez de Ulume contar o que vira no kimbo, provavelmente foram os mesmos soldados que puseram as minas,
por isso ele vinha avisar para evitarem a antiga aldeia dele, podia ser uma armadilha fatal. E voltava a fazer o convite, era
melhor recuarem para o Vale da Paz, eles agora já estavam estabelecidos, podiam apoiá-los nos primeiros tempos.
Sofreram nestes meses porque muitos mudaram ao mesmo tempo, o que era uma carga demasiado pesada para os que se
tinham estabelecido lá primeiro. Mas agora já estavam em medida de apoiar. E dormiu ali, para partir antes do nascer do
dia, pois a distância do regresso se tornara maior.
Munakazi chorou muito com a perda do irmão e com a miséria que se abatera sobre a família. Ulume teve de lhe prometer
que em breve iriam lá fazer uma visita. Quem sabe, Munakazi podia convencer a mãe a recuar para o Vale da Paz e se tornar
mais alegre com a presença dela e sobretudo da irmã mais nova. Logo que nascessem os pintainhos que estavam para
romper os ovos, preocupação maior de Ulume neste momento. Eram esses pintainhos, tornados galinhas, que seriam
trocados por cabritos. Porque hoje ainda era mais urgente pagar a dívida aos pais de Munakazi, tinham sido despojados de
uma parte importante dos seus bens e ele bem notara a miséria. Curioso, lembrou então, não me falaram da vitela que lhes
paguei de alembamento e que agora já era uma vaca. Se os soldados a tivessem levado, não podiam ter deixado de a referir,
uma vaca naquela miséria é fortuna que nunca se esquece. Concluiu daí que escapara ao saque. Por milagre, certamente.
15
Os tempos foram passando. Uma vez e outra visitaram os pais de Munakazi e eles recusaram abandonar a sua aldeia. De
novo foram assaltados por uma tropa e mais comida foi roubada. E a irmã mais nova de Munakazi foi com os soldados, a
mãe dizia que fora raptada, o pai, furioso, dizia ela até foi a rir, era mesmo o que queria. Também dessa vez não quiseram
retirar para o Vale da Paz. Mas outros refugiados apareciam de vez em quando. Os kimbos do vale iam crescendo com esse
fluxo regular de famílias procurando tranquilidade e comida. Os caminhos eram cada vez mais vincados no alto das
encostas, pois as pessoas andavam de um lado para o outro, para apanhar lenha, para caçar, para ir visitar parentes. Ulume
sentia algum perigo nisso, os caminhos muito nítidos guiavam facilmente os inimigos. E para ele, agora, inimigo era quem
tinha arma, deixara de utilizar o conceito abstracto e perfeitamente inútil de os «nossos» e o «inimigo» que os outros ainda
usavam por rotina.
E um dia Munakazi desapareceu. Foi assim. Ulume dormiu na cubata da Muari. De manhã, ao esfregar os dentes, não
sentiu a presença da segunda mulher. Ele e a Muari procuraram na capoeira, não estava.
— Deve ter ido ao rio — disse a Muari.
Não estava nos hábitos de Munakazi ir logo ao rio, mas uma noite mal dormida podia levá-la a mudar os hábitos. Ulume
tinha intenção de ir ver as armadilhas que deixara implantadas num novo sítio e a Muari devia trabalhar na naka. Esperaram
que a segunda mulher aparecesse. Quando já o sol estava alto, uns vizinhos lhes disseram não, Munakazi não está no rio.
Resolveram ir à naka procurar e lá também não estava. Voltaram ao kimbo e Ulume entrou na cubata de Munakazi.
Constatou só então que estava praticamente vazia. A esteira, os utensílios, o cobertor, tudo desaparecera. A Muari veio
confirmar a falta e disse:
— Foi embora, levou as coisas dela.
Os outros vieram saber dos casos, era uma vergonha, uma humilhação, mas não dava para esconder. A Muari repetiu foi
embora, acrescentando pode ter decidido de repente visitar os pais. Mas não tinha avisado nada. O que era evidentemente
estranho e ninguém acreditou. Nem ela acreditava, mas sentia dever dizer isso, para que Ulume se fosse preparando para o
choque que lhe parecia inevitável. O mujimbo chegou ao kimbo novo, em breve apareceram os amigos, vamos fazer uma
batida, pode estar por aí perto. Algo dizia a Ulume que era inútil, ela se mandou mesmo, aqueles olhos tristes estavam há
muito a anunciar. Mas aceitou e lá foi com os outros e todo o dia bateram o alto dos morros à volta do vale, procurando
indícios. Voltaram no princípio da noite, se concentraram à frente da casa de Ulume, apenas para constatar que as buscas
eram inúteis.
— Amanhã vou ver se está na casa dos pais — disse Ulume.
Foi uma maneira de agradecer a todos pelo interesse e pelos trabalhos que passaram. E não havia uma gota de hidromel
ou maluvo para retribuir a atenção. Mas os amigos compreendiam, nessa aflição não há cabeça para pensar em
hospitalidades. Ficaram os dois sentados à frente da fogueira, comendo tristemente os restos da véspera. Ao fim de muito
tempo, Ulume perguntou:
— Sou um mau marido? Não era novo como ela, mas...
— Amanhã vais a casa dos pais — atalhou a Muari. — Pode ser ela está lá.
Mas não estava. Nem tinham nenhuma notícia. E começaram as lamentações, o que aconteceu à minha filha? A mãe era a
mais efusiva e passou logo ao ataque:
— O que é que lhe fizeste? Dizes que fugiu, que levou as coisas dela, então é porque lhe fizeste algum mal.
Ulume abanou a cabeça.
— Não sei se fiz. Nunca lhe tratei mal, quando faltou comida era para todos que faltava, sempre que ela quis vir aqui eu a
trouxe, nunca lhe bati nem falei mal, até suportei coisas que talvez outro não aceitasse. Agora, se fiz alguma coisa sem saber
e que a magoou, isso não posso dizer. Mas não era razão para ir embora, sem avisar. Nem a vocês veio queixar. Não o
devia pelo menos fazer, se a magoei muito?
Era tão clara a falta de Munakazi que a mãe teve de calar. A recriminação estava terminada, não tinha consistência.
Mesmo que o marido lhe batesse, o lugar dela era ao seu lado e a apanhar. Podia vir queixar aos pais, os quais fariam toda a
pressão para acabarem os espancamentos. Mas mulher alembada não pode abandonar o marido, assim é a tradição. E era
nisso, no alembamento, que estava a pensar o pai de Munakazi, muito caladinho no seu sítio. Deu um berro à mulher:
— Em vez de estares a acusar o nosso genro à toa, devias era trazer comida e bebida para ele. Caminhou todo o dia para
nos informar da falta da tua filha.
A mulher recuou humildemente, foi tratar da comida para o genro. E o pai de Munakazi começou devagarinho a abordar o
problema que mais o preocupava. Perguntou:
— O que pensas fazer?
— Que posso mais fazer? Vim avisar-vos. Na esperança que ela aqui estivesse. Agora não sei o que fazer, não tenho
mesmo mais nada que fazer. Não posso andar por aí à toa a procurá-la.
— Desapareceu mais alguém?
— Não, só ela.
— E não passou nenhum homem estranho lá? Porque às vezes há uns homens que passam pelos kimbos, ninguém os
conhece, ninguém sabe de onde vêm, para onde vão, e as mulheres novas... Estás a perceber?
Ulume abriu muito os olhos quando percebeu a alusão. Nem tinha pensado nisso. Aconteciam, essas coisas aconteciam.
Mas ali era difícil, muito difícil, porque havia muito pouca gente, todos se conheciam e viam os gestos de todos.
— Não há outro homem, não pode. De vez em quando chegam pessoas, mas ficam lá a viver. São os que andam a fugir da
guerra. Se fosse caso de outro homem, a Muari tinha notado logo. Não pode.
O sogro lançou um suspiro. De alívio, era evidente. A questão seria muito mais complicada se metesse adultério. Embora
fosse difícil haver questão mais complicada que esta. Porque, se a mulher abandona o marido, a família tem de devolver
tudo o que recebeu de alembamento. Este era o problema mais grave que se punha ao pai de Munakazi. E não via maneira
como o abordar, nem lhe parecia que Ulume estivesse com vontade de se referir ao caso. De qualquer modo, ele já tinha
dado a deixa. O genro não pegou nela, não era ele que ia falar claro agora. Mais cedo ou mais tarde Ulume ia tocar no
assunto e aí sim, iam começar os mambos. Tinha pois que o tratar muito cerimoniosamente, para abrandar um pouco a
indisposição que ele fatalmente sentia neste momento contra a família da mulher desertora.
O cobertor e o vinho pagos por Ulume não constituíam um problema insuperável. A maka estava na vitela. Como poderia
restituir a vitela ou o correspondente? O grande defeito do pai de Munakazi era ser um grande apreciador de vinho de
palma. Ora, um habitante do kimbo que queria se mudar para outras paragens tinha um pequeno palmar de onde extraía o
maluvo para seu consumo e dos amigos. Se podemos chamar palmar a um terrenozito com meia dúzia de palmeiras. Queria
ir embora e não podia obviamente levar o palmar. Por isso trocou o palmar pela vitela, ainda ela não era vaca. Os amigos
avisaram o pai de Munakazi, fazes um tremendo disparate. A mulher, essa então xingou-o com todos os nomes, de bêbedo
para cima. Ele teve de arrumar a questão com algumas bofetadas na mulher e assim se tornou feliz proprietário da fonte do
seu vinho. As bebedeiras se tornaram mais frequentes e essa era a principal razão porque não queria sair daquele kimbo,
como levar as palmeiras? E era claro que Ulume nunca ia aceitar ficar em troca com um palmar que não lhe servia para
nada, tão longe do sitio em que vivia. Além disso por Munakazi tinha sido informado que no Vale da Paz havia palmeiras
que chegavam para embebedar uma manada de elefantes e não tinham dono. Estava pois agora numa tremenda enrascada.
Tudo por culpa daquela filha que sonhava com Calpe. Como a outra mais nova. Ele bem ouvia as conversas delas sempre
sobre Calpe, ainda eram miúdas. Munakazi tinha ido para a cidade, com homem ou sem homem. E ele agora tinha de
inventar uma vitela para restituir. De credor de cinco cabritos, o que lhe dava uma posição de superioridade enorme em
relação ao genro, passava a devedor absolutamente incapaz de saldar a dívida. Só mesmo com muito maluvo podia superar
a vergonha e foi mesmo disso que se lembrou. Mandou vir todas as reservas existentes no kimbo para consumir com Ulume
nessa noite. E amaciá-lo.
— A Munakazi deve ter ido para Calpe — disse o pai, já depois de terem bebido um bom bocado.
— Quando discutimos a mudança para o Vale da Paz, ela disse que do kimbo só saía para ir para Calpe. Acabou por ir
connosco, mas durante muito tempo não falava, nem com a Muari. Agora parecia que se tinha conformado, estava menos
triste... Sim, tens razão, deve ter ido para Calpe.
— Ela e a irmã estavam sempre a falar nisso, antes do casamento. E depois da irmã ter ido com os soldados, com certeza
ela se decidiu a procurá-la.
— Mas os soldados que a levaram eram de Calpe? — perguntou Ulume.
— Sim, eles disseram que vinham de Calpe e voltavam para lá. Só faziam elogios à grande cidade e à boa vida que
levavam. Por isso a minha filha ia toda contente com eles. A ingrata! A mãe disse ela estava a chorar mas é mentira, nem
queria se despedir com as pressas de ver a grande cidade.
Ulume dormiu na casa dos sogros. Percebeu que o pai de Munakazi estava preocupado com a questão do alembamento e
que por vezes tentava abordar o assunto, sobretudo depois de muito terem bebido. Mas Ulume não estava interessado em
falar nisso. Se exigisse alguma restituição, ou pelo menos se trocasse opiniões sobre o assunto, estaria a sugerir o
casamento terminado. E ele ainda tinha esperança de o salvar. Esperança acompanhada de muita dor.
Se despediu, mal os primeiros alvores apareceram. Recebeu muitas promessas dos pais de Munakazi que o avisariam
sobre a primeira notícia que recebessem, fosse ela boa ou má. E engoliu caminho para chegar rapidamente ao Vale da Paz.
Enquanto nas suas costas o sogro quase fugia para não ter de ouvir as recriminações da mulher, bêbado ordinário, trocaste a
vitela por um terreno sem valor, agora como vais restituir o alembamento? Ele podia replicar a culpa é tua que educaste mal
a tua filha, se ela não fugisse nunca seria preciso retribuir nada, Ulume é que nos ficava a dever os cinco cabritos, mas nem
queria discutir nem lhe dar duas bofetadas para a calar, pois a ressaca de maluvo dá dores de cabeça muito fortes e o pai de
Munakazi só queria fugir para um sítio silencioso. Não tinha melhor, foi para o palmar.
A ressaca também fazia doer a cabeça de Ulume, mas ele nem notava. Caminhava maquinalmente, quase correndo para a
fidelidade da Muari e a tranquilidade do Vale da Paz, todo concentrado na outra dor, a profunda, a que não mais o
abandonaria, a dor da perda de Munakazi, aquela saudade tão antecipada que tinha começado quando a granada ainda vinha
no ar.
16
Passaram anos como se de meses se tratassem. Não acontecia nada. Só eles iam envelhecendo. A guerra não chegava ali,
embora muitos sinais a anunciassem cada vez mais perto. Ulume tinha um rebanho de sete cabras e um bode, conseguido
pacientemente, primeiro por troca com galinhas, depois pela reprodução sem nenhum bicho ter sido abatido. Podia a
qualquer momento acabar de pagar a dívida do casamento, se Munakazi voltasse. Mas nem à Muari confidenciava tais
pensamentos, pois tinha a noção do ridículo. Nunca mais viu os pais de Munakazi, e nunca se lembrou de lhes ir reclamar o
alembamento já pago. Até que soube da morte deles num ataque. Preferiram ficar no kimbo quando quase todos já tinham
procurado o Vale da Paz. As pessoas diziam que o sogro de Ulume nunca se afastaria do seu palmar. Por isso morreram.
Estupidez, pensou Ulume, aqui há tantas palmeiras que ninguém precisa de ter um palmar privado.
As lavras e as nakas tinham alastrado, todo o vale era aproveitado para alimentar uma população cada vez mais
numerosa. Havia quatro kimbos, muito próximos uns dos outros. Isso atrai o inimigo, se dizia Ulume quando contemplava o
vale lá de cima. Tinha conservado o hábito de subir a alguma ladeira, se alcandorar no alto dum penhasco e olhar para o
vale a seus pés. E por vezes encetava a viagem, cada vez mais arriscada e mais pesada para os seus anos, até ao morro do
cágado velho, a fim de visitar o amigo. E continuava a pressentir a paragem do tempo, o que, aqui, no Vale da Paz, nunca lhe
acontecera. Por causa do morro, do cágado velho, ou dele próprio? As vidas muitas vezes são feitas de interrogações que
nos acompanham e que nunca ousamos revelar. Provavelmente cada pessoa tinha destes segredos, se perguntava Ulume. Um
dia haveria de conversar sobre este e outros assuntos com o cágado velho. Quando o animal escolhesse o momento.
A vida deles perdeu muito sentido ou pelo menos a alegria. A Muari sentira a falta de Munakazi como ele. Não da mesma
maneira, é claro, mas com igual intensidade. Nunca mais as gargalhadas fustigaram os ares tranquilos das noites à roda da
fogueira. Nunca mais se atreveram a dançar nas festas, preferindo ficar a beber e a olhar para as faúlhas que se soltavam do
fogo. Nem a contemplação das cabras ou das inúmeras galinhas que possuíam lhes dava qualquer sensação de orgulho.
Riqueza para quê, se não tinham com quem repartir?
Até que um dia uma novidade agitou o vale inteiro. O filho de Mande, chamado Zacaria, tinha regressado. Vinha passar
uns dias com os pais. Enquanto ele não deu todas as informações, o njango do kimbo Olongo era o mais movimentado do
vale, pois toda a gente vinha visitar Zacaria e perguntar notícias sobre a guerra, o resto do mundo e sobretudo saber dos
familiares que tinham desaparecido. Ulume foi logo informado que Kanda se encontrava em Calpe, agora era um oficial
importante e mandava um recado que algum dia também apareceria. De Luzolo, como era óbvio, Zacaria não sabia nada,
esse fazia parte do outro exército. Durante dois dias, o recém-chegado foi submetido a interrogatórios intensos que o
deixavam esgotado, pois muitos anos tinham passado e não possuía memória para tanta gente de que lhe pediam notícias.
Foi no terceiro dia da sua estadia que Zacaria procurou Ulume, acompanhado pelo pai. Estava ele com a Muari à frente
da fogueira, depois de terem comido. A conversa começou com as trivialidades do costume e depois Zacaria explicou que
deixara o exército já há tempos, mas nunca tinha vindo antes pois era perigoso, porque se os do outro exército o apanhassem
podiam matá-lo. Mesmo agora ainda era perigoso, mas um pouco menos, pois o outro exército, o que ele chamava
«inimigo», se tinha afastado momentaneamente da zona. Deixou o exército e trabalhava em Calpe como mecânico. Só há
meses Kanda foi transferido para Calpe, durante muito tempo não se viram. Agora se encontravam sempre, na casa dum ou
na de outro. Que Kanda tinha casado, já com dois filhos, um menino e uma menina. Que ele próprio Zacaria tinha três filhos,
sendo dois rapazes. Estas eram notícias que Ulume e a Muari já conheciam, por terem ouvido as conversas no njango, mas
tinham outro sabor porque contadas só para eles. E havia informações a aprofundar. A Muari não resistiu a repetir uma
observação que já tinha feito para Ulume:
— Casou e nem nos procurou. Para quê ter filhos então?
— Não, mamã, não podia — Zacaria vinha em defesa de Kanda. — Esta era uma zona muito complicada, levámos muita
pancada. Por isso até agora ele não veio. Eu arrisquei porque sou civil, mas mesmo assim... Não, Kanda não podia vir. E
tem mais. Quem sabia onde vocês estavam? Quem conhecia este vale? Nenhum de nós. Foi por acaso que eu soube que
tinham saído lá do kimbo, encontrei uma pessoa e outra, anos e anos, até que disse, deve ser naquele sítio. E tentei vir.
Quantos dias demorei até chegar aqui, a andar às voltas, às voltas? Cinco dias. Não viu como apareci todo sujo e magrinho?
Kanda, que está só há meses em Calpe, como podia chegar aqui? Ele, hum, só mesmo quando a guerra acabar.
— Mas não disseste que está a acabar? — disse Ulume.
Zacaria sorriu. Ajeitou melhor uma lenha na fogueira e logo as chamas lhe lamberam o rosto, iluminando o ar de menino
que cresceu.
— Está e não está. Às vezes parece vai acabar, rebenta ainda com mais força. O que eu disse foi que nesta zona agora
está um pouco mais calmo, é só o que disse. Mas pode aumentar de repente, nunca se sabe.
Ulume lhe segurou no braço. Apontou com a cabeça para Mande e disse:
— O teu pai está aí, tens de prometer uma coisa à frente dele. Descobriste este sítio onde nos escondemos, muito bem,
vieste sem arma. Mas promete, não dizes a ninguém que tenha arma como se chega até aqui. Ninguém que tenha arma pode
saber. Senão é a nossa morte. Ou pelo menos a miséria de ter de fugir outra vez.
— Mas nem o Kanda pode saber? — perguntou Zacaria.
— Não, ele tem arma.
A Muari olhou estranhamente para Ulume, mas ficou calada. Mande concordou com a cabeça. Disse para o filho:
— Ulume tem razão. Se vem um, outro virá. E pronto, começamos de novo com os roubos e as fugas. E as mortes.
— Kanda vem só quando acabar a guerra — disse Ulume. — E Luzolo também.
Zacaria começou um movimento, mas interrompeu. E Ulume não percebeu o que ele queria expressar. Provavelmente
estava relacionado com Luzolo, pois mais tarde resmungou Luzolo é bandido. Ulume preferiu não prestar atenção ao
resmungo. Foi nessa altura que Mande resolveu mudar de conversa.
— Fala então, Zacaria, o que me contaste da conversa com o Kanda.
— Pai, não sei se devo...
— Sim, deves — disse Mande. — Ulume deve saber.
Zacaria hesitava e Ulume percebeu que o assunto era delicado. Se tratava duma conversa com Kanda. Seria algo que
respeitasse a Luzolo? Olhou para a Muari e ela tinha a vista fixa em Zacaria, como se o quisesse hipnotizar.
— Bem, mais velho, me desculpe, eu falei ao meu pai, mas... Quem tem de dizer isto é o Kanda, não sou eu, por isso peço
muita desculpa. Mas o seu filho mandou também um recado. Ele soube do casamento com a Munakazi e não ficou nada
contente. Poligamia é muito feio, já não se faz. Poligamia é isso de casar duas vezes, ter duas mulheres ao mesmo tempo,
sabe, não é? E depois, casar com uma miúda que era mais nova que os próprios filhos, isso nunca dá bom resultado. Foi o
que Kanda me mandou dizer. Que foi bom que ela tivesse arranjado juízo. Soube há pouco tempo da fuga da sua segunda
mulher, mais velho, ele não sabia, só tinha informação anterior do casamento. Agora ficou contente quando soube do
desaparecimento de Munakazi. É esse o recado e peço desculpa de o transmitir.
— Como soube? — perguntou a Muari.
Zacaria fez um gesto de ignorância. Depois acrescentou:
— Não sabemos onde ela está, nem se ainda vive. Kanda só soube que ela tinha ido embora. Também não procurou,
talvez tenha meios de saber mas não quer.
Ulume ficou alguns instantes calado, depois falou com voz rouca:
— O meu filho estava contra o casamento. Que é que ele sabe das coisas? Qual o direito que ele tem de dizer que errei,
se não conhece o que passou?
— Os rapazes novos têm sempre opinião sobre tudo, mesmo se são opiniões disparatadas — disse a Muari. — Não dês
demasiada importância.
— Mas dou. O meu filho não tem o direito de me julgar. E ainda menos se não conhece o que passa na minha cabeça.
Julga o quê, que foi um capricho de velho? Tu sabes, Muari, por isso também não lhe deves desculpar assim tão
ligeiramente.
Zacaria estava incomodado com a cena. Tinha-a previsto, por isso dissera a Kanda, não, esse recado não dou. Mas Kanda
era impulsivo, sempre fora desde miúdo, se lembra muito bem das surras que apanhou dele apesar de ser um ano mais
velho. Kanda disse vais dar esse recado e assim, assim... Era muito pior, ele arredondou arestas, trocou palavras, tentou ser
o mais brando possível. Pediu opinião ao pai. Mande achava ele devia dar o recado, o problema era entre Ulume e o filho.
No entanto estava de acordo em amortecer os tons, claro não vais dizer que era por causa da velhice que Ulume tinha
querido Munakazi, que até namorava com o filho. Essa parte vais esquecer, disse Mande, Ulume não sabe nem tem que
saber desse namoro antigo, talvez seja por isso que Kanda está tão furioso. Que nada, lhe dissera Zacaria, Kanda não ligava
nenhuma para Munakazi, a zanga não era por isso mas sim por o pai casar com rapariga nova, fosse Munakazi ou outra
qualquer. E casar tendo a primeira mulher viva. Que, ainda por cima, era sua mãe. Bem, o recado estava dado, mais uma vez
cumprira a vontade de Kanda, nunca soubera escapar a ela.
Zacaria fez um gesto ao pai e Mande assentiu com a cabeça. Se despediram, já era hora de dormirem. A caminho de casa,
o filho queixou:
— Esse Kanda me obriga a fazer cada uma... Como da vez do Ufolo...
— É verdade, o Ufolo. Que é feito? Nem eu nem ninguém teve coragem de te perguntar por ele.
— Não sei o que é feito, deve estar ainda na tropa. Ficou na cadeia uns tempos como desertor, depois foi transferido para
outra região militar, nunca mais soube dele. Se não morreu na guerra, ainda por lá anda, porque depois do que ele fez nunca
mais o libertam do exército.
— Mas que fez Kanda dessa vez?
— Na altura, o Kanda já era meu chefe, ele se destacou muito depressa por ser decidido nos combates. Quando o Ufolo
foi apanhado e se soube que ele tinha estado escondido pelo pai...
— Não é verdade, não o escondi nada. Ele estava lá em casa, toda a gente sabia, ninguém que lhe escondeu.
— Está bem, mas o Kanda achava que o pai tinha culpa. Então propôs que eu fosse castigado...
— Ele fez isso? Ele te castigou?
— Espere, pai. Não foi um castigo muito duro, embora me doesse. Tive de fazer autocrítica em nome do pai.
— Que é isso?
— Assim como pedir desculpa. Na formatura, à frente de toda a gente.
— E tu fizeste?
— Claro, como ia escapar? Também era só isso. Eu disse que as pessoas que esconderam o Ufolo fizeram mal e eu pedia
desculpa por isso. Se acontecesse de novo, o castigo deveria ser muito maior, pois um desertor é um traidor, mesmo se é
nosso amigo. Foi só o que eu disse, mas custou.
— Ele te fez pedir desculpa por uma coisa que não fizeste? Se alguém tinha culpa era eu, tu não tens que pagar...
— Eu sei. Mas era uma maneira de Kanda mostrar que era um duro. Por isso se tornou oficial. E continua a subir. É
preciso compreender o Kanda. Ele acreditou que estava a ser justo. Se fosse outro, podia vir com um grupo e castigar a
aldeia inteira. Ele se limitou a me castigar. E Ufolo apanhou a cadeia que merecia, de facto ele queria desertar. Mas não foi
Kanda que o castigou, ainda não era tão importante na altura. E em relação a mim, ele só propôs a autocrítica ao capitão da
nossa unidade. Também não mandava tanto assim. Mas primeiro falou comigo, não me fez isso nas costas, disse que ia
propor o castigo, pois alguém tinha de ser castigado.
— E continuas amigo dele?
— Claro. O pai não o conhece bem. É um chefe admirável. Pode ser duro, mas porque acredita no que está a fazer.
Tinham chegado a casa. Por isso Zacaria não precisou de responder à última réplica do pai, realmente, meu filho, não
entendo nada dessas modas de agora nem da vossa maneira de pensar.
Quando Zacaria se foi despedir de Ulume, porque ia voltar para Calpe, perguntou tem algum recado para Kanda? Que não
venha aqui enquanto não acabar a guerra, repetiu Ulume, que ninguém que use arma venha aqui. Quanto ao resto, Ulume
preferiu ignorar. Zacaria estava à espera que lhe falasse de Munakazi, que mandasse repreensões para o filho e não sabia
como ia aguentar a raiva de Kanda ao ouvir a resposta do pai. Imaginou que Ulume ia dizer, ele não tem nada que me julgar,
continua a ser o mesmo miúdo atrevido. Ou coisa parecida. Kanda ia rebentar de raiva e era ele, Zacaria, que ia ouvir o que
Ulume não ouviria. Felizmente o mais velho preferiu ignorar as opiniões do filho. Já a Muari mandou outros recados, disse
que era por estar muito velha, senão ia com ele até Calpe para conhecer a nora e os netos. Diz isso ao meu filho, está bem?
E que ficámos muito contentes sabendo que tudo lhe corre como ele quer.
17
Depois houve de novo um período com o vazio da rotina. Meses ou anos. Quem sabe, quem os media?
E mujimbos contraditórios começaram a chegar. Geralmente era gente que vinha de passagem de uns lados para outros e
descobria o Vale da Paz. Ficava uns dias a recuperar das marchas e da fome e contava parece vai acabar a guerra. Outros
vinham e diziam já se anda melhor de um lado para o outro, é a paz. Cada vez aparecia mais gente e já não era como antes.
Antes, as pessoas vinham e ficavam, não arriscavam ir mais longe. Agora continuavam.
Mas também vinham outros a referir encontros com soldados ali perto. E um dia o Abílio, quando estava na caça, chocou
com um grupo de guerreiros. Não sabia se eram nossos ou inimigo, se pôs a fugir. Teve sangue-frio suficiente para correr na
direcção contrária à do vale e só muito à frente flectiu para voltar à sua aldeia. Os soldados, se tentaram a perseguição,
perderam o rasto.
Houve outros encontros. E começaram a discutir entre si no njango ou nas rodas à volta das fogueiras, muita gente agora
conhece este vale e os soldados estão cada vez mais próximo. E decidiram ir caçar cada vez mais longe, para explorar
outros lugares, mais para o coração da Munda, no sentido contrário ao do kimbo velho e ao de Calpe. Assim, Ulume e
Mande iam em grandes reconhecimentos por territórios desconhecidos, de penhascos e encostas ventosas, a pretexto de
apanhar um animal, o que de facto acontecia por vezes. Para aquelas paragens não havia rastos de gente, nenhuma suspeita
de caminho. Também não havia rios e o verde era apenas o efémero do capim rasteiro que bebe do orvalho. Cada dia os
grupos iam mais longe e diziam uns aos outros, nos aproximamos do cume do mundo, da montanha mãe. Não encontravam
nenhum vale, nenhum sítio aprazível onde apetecia parar, fosse apenas para respirar melhor.
E o que temiam um dia aconteceu. Homens de verde e arma na mão desceram a encosta ocidental, com todos os cuidados
da desconfiança. Revistaram os quatro kimbos do vale, não encontraram inimigos, nem uma pistola, reuniram a população,
falaram eram amigos, os nossos, queriam apenas comida e saber se não tinham visto movimentações de outros soldados, o
inimigo, e as pessoas disseram que ultimamente havia indícios de que grupos armados andavam ali perto, mas talvez fossem
eles que tinham chegado, os nossos, não sabiam distinguir. A população também falou de mujimbos que chegavam e
declaravam acabada a guerra, as pessoas podiam andar dum lado para o outro, mas os soldados disseram não é bem assim,
ainda não há paz, só se anda à procura dela, mas é difícil de encontrar nestes caminhos e descaminhos das montanhas e
Ulume achou eles tinham razão, a paz era uma pomba branca como lhe tinham explicado de outra vez e como seria possível
encontrar uma pomba naquele matagal todo que ficava para leste e para oeste da Munda central, sem já falar nas savanas do
norte e nas chanas do sul, se ainda fosse um rinoceronte, agora uma pomba, sim, de facto ia levar tempo até se encontrar a
paz e por isso era melhor recuarem, procurarem outro poiso mais no coração da Munda, não na direcção que tinham
procurado, mas para a direita, haveria de existir um vale como este, definitivamente proibido agora, conspurcado pela
presença de homens de verde e de arma na mão.
Os soldados falaram bem, não fizeram muita confusão, comeram sem grandes exigências. Também é verdade que lhes
deram o melhor que tinham, era inútil esconder a riqueza do vale e falta de hospitalidade só gera invejas e rancores. Se
despediram com muitos agradecimentos e gestos de amizade, prometeram voltar em breve, pois iam montar uma base ali
perto. Eram mesmo essas promessas dos soldados que os habitantes gostariam de não ter ouvido. Ulume tomou logo a
decisão, apoiada por Mande e outros, nem vamos esperar pelos próximos, procuramos outro sítio e nos mudamos.
Mais frenéticas se tornaram as buscas. Passavam dias fora do kimbo, noites mal dormidas nas gélidas agulhas das
montanhas, mas era difícil encontrar outro Vale da Paz. Se convenceram, como este só há um. E se contentaram com um lago
de uns cem metros de diâmetro, à volta do qual podiam fazer nakas. Não havia regatos que partiam dele ou nele
desaguavam. Era alimentado apenas pelas águas que escorriam das montanhas. Três únicas árvores de pequeno porte e
plantas de papiro constituíam a vegetação. Lhe chamaram o Lago da Última Esperança, agora que se tinham habituado a dar
nomes às coisas. O sítio servia para albergar uma dúzia de famílias e ficava a meio dia de marcha do Vale da Paz.
Mas a Muari não se entusiasmou. Que estavam velhos, já não tinham forças para limpar o terreno, cavar solos virgens,
cortar troncos para fazer casas e capoeira e curral para o rebanho, era trabalho demais que fora possível antes porque eram
mais novos e tinham Munakazi. Melhor mesmo era arriscar, estes soldados até que nem levaram muito, podia ser um milagre
ocorresse, a tal pombinha branca fosse encontrada na gruta mais profunda da Munda.
— Já esqueceste? — lhe disse Ulume. — Eles primeiro vêm com boas falas, pedem pouco. Depois voltam e pedem mais.
Depois voltam e de voz grossa exigem mais. E depois levam tudo o que temos. Se não se puserem a dar tiros uns aos outros
e a nos acertar à toa. Já esqueceste?
— Não, não esqueci. Mas já não tenho forças. Nem coragem.
Ulume não falou. Durante todo esse tempo que ele procurara um sítio, sabia ser difícil convencer a Muari a sair dali. Ela
não usou o argumento, mas o facto de Kanda saber onde eles estavam já a fazia ter pouca vontade de recuar. Mas também
tinha razão noutro ponto. Era preciso ter coragem para fugir, antes de o fazer por desespero. E ela tinha perdido a coragem.
Quanto a isso ele não podia fazer nada. Quando viesse o desespero, o recuo seria muito pior. Ele sabia, a Muari também
sabia. Mas aceitaram o facto como inevitável. E sem mais palavras.
Mande mudou para o novo sítio. Mais sete famílias. Ulume ajudou nas mudanças, pois não era fácil pastorear um rebanho
de cabras como tinha Mande numa distância tão grande. A criação do novo kimbo foi feita com calma, as viagens eram
frequentes dum lado para o outro. Quando o curral e as outras instalações estavam prontas, Mande indicou um sítio ao lado.
Disse a Ulume:
— Não vou deixar ninguém construir ali. É o teu sítio. Quando tiveres de vir.
Mas Ulume não se mudaria. Os mujimbos eram contraditórios, porém num ponto coincidiam, tinha de facto acabado a
guerra. Gente e mais gente passava pelo Vale da Paz. Quando conheciam o nome perguntavam logo, então foi aqui que ela
foi encontrada, e como os habitantes não percebiam, as pessoas insistiam, então não foi aqui que encontraram a pomba
branca, não é por isso que este vale se chama assim? Os passantes ficavam desiludidos com a resposta, pois os camponeses
do vale não encontraram nem viram encontrar a dita pomba, só coelhos e gazelas e onças, mas esses eram bichos comuns,
não tinham a força mágica duma pomba branca.
Com a paz, aumentaram as visitas de soldados. De cada vez tinham de matar uma cabra para alimentar o grupo. E veio um
destacamento que quis levar umas galinhas. Pouco a pouco, com tantas visitas, os bichos iam diminuindo nas capoeiras e
nos cercados. Todos queriam festejar o fim da guerra, para festejar era preciso muita comida e muita bebida. A bebida era
relativamente fácil de obter, o maluvo nunca faltava com tanta palmeira que havia no vale. A comida é que podia esgotar, os
riscos já se adivinhavam.
O pior aconteceu quando um civil saltou com uma mina num dos carreiros que passavam pelos morros. Um grupo de
soldados acusou o outro de ter posto a mina. Não se entenderam nas culpas. Os tiros voltaram. Um destacamento, que afinal
tinha montado quartel camuflado a sul do Vale, avançou e se estabeleceu no kimbo do Olongo. O outro grupo, que tinha uma
base escondida mais para norte, desceu as encostas e tomou o kimbo novo. E começaram a disparar uns contra os outros,
primeiro com espingardas, depois com morteiros e canhões. O combate durou um dia inteiro. Os habitantes fugiram para as
encostas, se enrodilharam atrás dos rochedos, ou se meteram no rio, tentando chegar ao outro lado. Ulume e a Muari
tomaram o caminho do Lago da Última Esperança antes mesmo de começar o fogo a sério, pois viram os primeiros soldados
tomar posição no kimbo do Olongo e adivinharam as cenas seguintes. Mas só subiram as ladeiras para os morros, pararam
lá em cima, a Muari não aguentava mais. Ficaram o dia todo atrás dos penhascos, a ver as explosões matar as pessoas e os
animais, a destruir as casas, a cavar buracos enormes nas nakas. O Vale da Paz estava cheio de fumo, das explosões e dos
incêndios, e cheirava a pólvora e a queimado. Ulume acreditou ver, por volta do meio-dia, um pássaro escuro sair lá de
baixo e voar por cima deles em direcção ao sol. Seria a tal pomba mágica? Se fosse, deixara de ser branca, toda
chamuscada.
Ao fim da tarde se ouviram muitos gritos e os tiros foram progressivamente diminuindo. Os gritos eram de cessar fogo,
cessar fogo. Ulume soube mais tarde, quando tudo acalmou, que houve negociações e os combatentes descobriram não haver
razão para andarem aos tiros, pois a mina fora colocada por um soldado que enlouquecera e tinha já sido internado para
tratamento. Um caso isolado, um acidente portanto, indigno de ser registado, apesar de ter servido de pretexto para arrasar o
Vale da Paz. Cada exército voltou para a sua base à noite, carregando o que podia. Mas Ulume ainda não sabia nada disso e
dormiram mesmo lá nos penhascos, quase morrendo de frio, pois nem fogueira podiam acender e nas pressas do recuo não
trouxeram cobertor.
Passaram a manhã seguinte a tentar se aquecer ao sol e a estudar aquele estranho silêncio que subia do vale. Outros o
faziam, pois começaram a ver corpos se movendo lentamente para baixo, enquanto outros pontos pareciam mexer perto dos
kimbos. E como em outras ocasiões, voltaram a fazer as prudentes aproximações depois dos combates. A longa experiência
de Ulume indicava que os soldados tinham partido todos e que havia pela frente mais um ciclo de reconstrução. Não tinham
feito outra coisa durante toda a vida, por isso custava cada vez mais.
De facto, já não havia exércitos, apenas os seus rastos. Foram encontrando corpos de camponeses aqui e ali e nos kimbos
poucas casas estavam intactas. As duas cubatas de Ulume e a capoeira e o celeiro tinham sido queimados, o njango e todas
as cubatas à volta do largo também se incendiaram. A primeira preocupação da Muari não foi procurar a criação, como o
marido fez, mas rebuscar nas cinzas do celeiro os restos de enxadas e machados. Teve sorte, o metal resistiu ao calor, os
instrumentos podiam ser recuperados. Já Ulume teve menos sorte. Encontrou uma cabra e duas galinhas, mais uma pata.
Talvez ainda recuperasse algum bicho, mas o seu orgulho de criador tinha sido mais uma vez abalado.
Levaram dias a descobrir corpos e a enterrá-los. O kimbo do Olongo estava reduzido a dois casais de velhos, o de Ulume
e o de Mário, o gago. Várias pessoas morreram nas cubatas, ou de bala ou do incêndio. Imprudência, pensava Ulume, como
se uma cubata protegesse da guerra. Mas era a tendência do medo, se enroscar na esteira, bem encostado à parede, tapar a
cabeça com o cobertor e tremer, até acabar a razão do medo. Que geralmente vinha com a morte. Os outros kimbos não
estavam em muito melhores condições. Algumas famílias recuaram para o Lago da Última Esperança. O vale tinha se
despovoado, pois não foi só para o lago que muitos fugiram, mas para pontos à toa. Famílias se deslocavam pela Munda
central, sem encontrar sítio favorável para se fixarem, vivendo da caça eventual e de raízes. Algumas até encontravam
lugares calmos onde dava para viver, mas pensavam, me fixo aqui, construo e lavro, e depois tudo é destruído. Então, antes
andar, andar, caçando, colhendo ou roubando.
Ulume e a Muari falavam destas coisas à frente da fogueira, quando o dia tinha terminado. Havia muita comida nas lavras
e nas nakas. A maior parte das plantações estava abandonada, pois parecia que desta vez as pessoas tinham mudado de sítio
e romperam para sempre com o Vale da Paz, não voltavam nem para aproveitar a mandioca ou o milho que deixaram. Eles
nem precisavam de utilizar as lavras abandonadas, a sua comida até sobrava. O mesmo acontecia com o Mário Gago e a
mulher, que se chegavam à fogueira deles para não ficarem sozinhos num kimbo quase fantasma, cheio de paus enegrecidos
e de espíritos injustiçados a rondar. A conversa não aumentava nada com o segundo casal, pois o Mário tinha consciência
da dificuldade que causava aos outros com a sua gaguez e pouco falava. Dizia só mesmo o necessário. E não fora por acaso
que tinha escolhido esta mulher. Se ele era gago, ela era muda. Quando jovem, tinha ficado muito marcado com as raparigas
que interrompiam constantemente alguma frase que laboriosamente construía. As raparigas pareciam sempre impacientes
quando conversavam com ele. E escondiam a cara nas mãos para rir. Jurou que haveria de procurar alguém que tivesse
ainda maior dificuldade que ele para falar. Quando encontrou a muda, decidiu casar com ela, ao menos ele estava em
superioridade. Mas cedo se cansou de exercer essa superioridade, que afinal não tinha tanta importância. A maior parte das
vezes se comunicavam por gestos, era mais prático. Entretanto, ficavam a ouvir os comentários de Ulume e da Muari, sem
quase nunca acrescentarem dados à conversa, a qual se alimentava de si própria. Mas a presença deles era importante,
quebrava a solidão.
A maior tirada que Ulume ouviu de Mário foi quando ele contou, numa dessas noites, as suas aventuras como trabalhador
no norte. Tinha sido pouco depois de casar, quando havia ainda os brancos e trabalhadores contratados.
— Andei dois anos no norte daqui, numa terra perto de Luanda, terra sem árvores, só com arbustos que dão algodão. Era
contratado no algodão. Terra seca, seca. Terra tão desgraçada, tão sem árvores, que os espíritos até em mamoeiros habitam.
Tinha um vizinho, muito meu amigo. Mas uma noite o vizinho veio com catana para me matar. Escapei. Um kimbanda
explicou, era um espírito que habitava um mamoeiro e que, desesperado por viver tão perto do chão, tão perto das pessoas,
descia do mamoeiro e vinha perturbar o vizinho. Por isso ele quis me matar. Cortei o mamoeiro do quintal do vizinho e os
do meu quintal. O espírito fugiu para outro lugar e o vizinho ficou sossegado, nunca mais tentou me atacar. Terra desgraçada
essa. Vim embora logo que acabou o contrato.
O esforço feito por Mário para gaguejar a estória parecia ter aniquilado para sempre a sua vontade de contar qualquer
coisa.
Terminou sem interrupção dos outros e, esgotado, olhou agra decido para os companheiros. A partir de então se limitava
a responder por monossílabos. Como se tivesse passado anos a ganhar coragem para contar aquela estória desconhecida que
lhe estava atravessada na garganta.
Muitas vezes Ulume se interrogava nessas ocasiões, mas que sentido tem isto tudo? Sabia ninguém ia responder, o Mário
pela sua limitação que o impedia de grandes explicações ou discussões, a mulher muda por estado natural, e a Muari porque
há muito deixara de procurar um sentido ao sofrimento. Ulume ia falando, falando, muitas vezes interrogando, sabendo
perfeitamente que era o cágado que devia ser questionado, mas substituía o cágado velho pelo círculo de fantasmas com
quem convivia. Uma vez a Muari lhe dissera, pouco depois da última batalha, mas para que queres saber? Depois nunca
mais respondeu à pergunta que ela sabia não lhe ser dirigida. i8
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Nesse tempo todo em que o calcinado do kimbo foi sendo comido pelo verde que rompia da terra e se enroscava nos
troncos enegrecidos, em que os buracos revolvidos pelos obuses se cobriram novamente de capim, parecia que nada
acontecia. O que sucedia era a rotina das esperas. E tudo deixara de ser importante para Ulume e a Muari. Mas houve um
acontecimento que os trouxe para a vida. E não se anunciou. Foi uma figura esgalgada que se interpôs entre o sol e eles e
que no princípio desconseguiram de visualizar. Se tratava dum homem, era tudo o que podiam perceber. E foi o coração da
Muari que primeiro reagiu, apesar de olhar na contraluz, Luzolo, Luzolo.
Era de facto o filho mais velho. Ulume bateu palmas de felicidade, levantou num salto para apertar as costas de Luzolo. A
Muari já não tinha tanta agilidade, gritou um pouco de alegria, ensaiou apenas dois perros passos de dança. O Mário e a
muda vieram saber a novidade, dançaram batendo com os pés no chão e as mãos marcando o rítimo. E Luzolo permanecia
com o mesmo ar que levara para o desaparecimento, tímido e calmo, sorrindo agora de felicidade, vendo se tornarem
pessoas reais os fantasmas que desde a véspera espiava.
Pois estava desde ontem escondido no vale, oculto por entre os penhascos, procurando caras conhecidas e foi
encontrando uma aqui, outra ali, nos kimbos destruídos. Até que se aproximou do Olongo, mas já estava a ficar escuro e um
vulto de sombras parecia a mãe, mas não tinha a certeza, por isso ficou espiando as quatro figuras à volta da fogueira,
dormiu no posto de observação, e de manhã voltou à vigilância, até que se convenceu que o homem era o pai, reconheceu o
gesto de sentar para pegar na caneca com água quente, folhas de caxinde e mel, até podia recordar o perfume de tão longe.
Tranquilizado, foi ter com eles.
Tranquilizado? Mas porquê? De que tinha medo? E porque não perguntara por eles, logo no princípio do vale, porque se
escondia? Então não havia paz? Luzolo tentava explicar, mas ele próprio sabia que não se faria entender completamente, por
isso até parecia Mário a gaguejar. Que havia paz, sim, mas tudo podia acontecer e até quando havia paz? Melhor seria dizer
não havia guerra. Mas o que lhe parecia ser difícil eles entenderem era o mais simples, claro, isso já percebemos, falou a
Muari, mas então ainda tens de te esconder se vens sem armas? Luzolo penetrou na grande dificuldade de explicar os
hábitos adquiridos durante tantos anos de camuflagem e aproximação aos círculos, explicou que abandonara as armas já
havia meses, mas certos reflexos não o abandonariam tão cedo, explicou que só há pouco lhe deixaram partir para procurar
a família. Fui andando por aí durante duas semanas, demorei duas semanas até chegar a este vale, vocês estão bem
escondidos.
Ulume contestou logo, então não vês os kimbos destruídos, os paus queimados, como estamos bem escondidos se os
homens com armas nos encontraram e fizeram estes estragos? Homens como tu eras há pouco tempo, ficamos contentes por
saber que já não és. Será para sempre? Que sim, tinha sido definitivamente desmobilizado. Agora que os encontrara, ia
descansar uns dias junto deles e encetar a viagem de regresso para ir buscar a mulher e os três filhos, queria viver ali
naquele vale tão lindo e trabalhar a terra como eles, estava cansado das canseiras das viagens constantes e das guerras. A
Muari disse não podia acreditar em tudo o que ele contava, especialmente essa última parte, porque não era possível o vale
voltar a ouvir risos de crianças, isso tinha acabado há muito, se é que houvera alguma vez. E ria, a Muari. Ulume não se
lembrava de a ver rir desde que Munakazi fora embora.
Mas Luzolo cumpriu o prometido. Descansou uns dias, depois partiu. Quando já não acreditavam que voltasse, tanto fora
o tempo decorrido, eis que apareceu com a mulher e os filhos, pequenos mas carregados de imbambas. De todos os sítios
veio gente conhecer as primeiras crianças que soltavam risos naqueles ares frios do vale. Até do Lago da Última Esperança
veio gente, pois os mujimbos corriam rápido, muito mais que as pessoas, vá-se lá entender porquê. Tão rápido corriam que
tempos depois da chegada de Luzolo com a família, veio um recado de Kanda para o pai. Lhe pedia que se encontrassem
num quartel ali perto onde ele, Kanda, iria daí a dois dias. Mas o pai tinha de comparecer sozinho. Ulume ficou contente por
receber a missiva. Apesar do ressentimento provocado pelo recado transmitido por Zacaria, disse logo vou sim, mas não
descobriu que a causa principal era Luzolo, só quando se encontrou com o filho mais novo entendeu.
Na véspera da partida para o quartel, quando estavam todos reunidos à volta da fogueira e as crianças tinham ido dormir,
Ulume perguntou para Luzolo:
— Queres que leve um recado para o teu irmão?
— Não.
A resposta foi seca e Ulume já a esperava, por conversas anteriores de Luzolo. Mas ficou surpreendido pelo silêncio
zangado que lhe seguiu. Não merecia uma explicação? Por isso insistiu:
— É teu irmão e a guerra acabou.
— Não sei se a guerra acabou para ele. Para mim, sim. Ele e os seus fizeram muito mal, continuam a fazer. Não tenho
recado para lhe dar. Ou antes... Pode lhe dizer. Se ele lembra, logo no começo da guerra, quando eles queimaram o kimbo
do Ngueve, ele ia num grupo a subir um carreiro estreito num morro e de repente se atiraram para o chão, porque viram um
vulto que lhes apontava uma arma. Ele tem de se lembrar disso, há cenas que nunca esquecem. Todos se atiraram, mas o
vulto que eles viam protegido por um rochedo não disparou. É verdade, podia tê-lo matado e aos seus, mas não disparei,
porque reconheci o meu irmão Kanda. Diga, pai, que mais tarde me arrependi de não ter disparado. Até hoje me arrependo
disso. Esse é o único recado que tenho para o meu irmão Kanda, a quem já não considero irmão, porque ele não merece, nos
fez muito mal por pura crueldade, ele e os seus.
Luzolo não voltou a falar do assunto, por mais que Ulume insistisse. Pura e simplesmente ele não respondia ao pai, dizia
só, dê o meu recado. Até que a mulher dele, Luzia, mudou a conversa com uma pergunta dirigida à Muari, como sinal de
respeito, mas que de facto era para todos, Mário e muda incluídos:
— Mas se acabar mesmo a guerra, não acha que é melhor mudarmos para o kimbo antigo, onde Luzolo nasceu? Aqui é
mais tranquilo, mas muito isolado. O outro é mais perto de Calpe, tem outras possibilidades, sobretudo para as crianças.
O que provocou resposta imediata da Muari que agora não queria sair do vale, nem mesmo de carro para evitar cansaço.
— O antigo kimbo já não tem nada, só minas. Mesmo os espíritos dos mais velhos devem ter fugido.
Ulume aproveitou contar a Luzolo e a Luzia a cena que tinha visto da última vez que foi no kimbo, o corpo feminino
despedaçado por uma mina. Tinha sido há muito tempo. Claro que depois disso já estivera várias vezes no morro do cágado
velho, mas só no morro, nunca ousara descer ao esqueleto da aldeia.
— Eu andei lá por todo o lado — disse Luzolo. — Andei pelos sítios onde há ainda restos de cubatas, quase nada, nos
sítios das lavras e das nakas. Só tem palmeiras, bananeiras e outras árvores de fruta. Mas não pisei nenhuma mina. O que
não quer dizer que não haja. Tive sorte. O mais certo é ter sido o inimigo que pôs essa mina.
Ulume não entendeu porque havia de ser o inimigo e não os nossos, usando a terminologia de Luzolo. Mas tinha decidido
não tentar perceber, era quase um ponto de princípio. E deixou Luzolo continuar o raciocínio:
— Mas o lugar pode ser desminado e depois voltarmos para lá. É melhor sítio que este. Aqui faz muito frio. E nunca vai
haver escola para as crianças, é tudo muito isolado. Este vale é bom, mas para tempo de guerra, não de paz.
— Lhe chamávamos o Vale da Paz, no entanto — disse Ulume. — Agora devia se chamar o Vale da Paz Queimada.
— Daqui não saio mais — repetiu a Muari.
Ulume não deu a sua opinião sobre o eventual abandono do lugar, mas nesse tipo de assuntos geralmente seguia a vontade
da Muari. Se preocupou com o que Luzolo contara, o encontro de guerra que tinha tido com Kanda. Ia dar esse recado ao
irmão mais novo? Dependia da conversa de Kanda. Pelo menos a primeira parte do recado daria certamente. A segunda
parte, a do arrependimento de Luzolo por não ter disparado, essa parte dependia da conversa.
Não deu recado nenhum, pois não conseguiu descobrir o que era melhor. Andou a manhã toda desde que o sol nasceu,
carregado com o peso da saudade maternal da Muari e de todas as recomendações dela para o filho. Chegou a meio do dia
ao quartel, lhe deixaram entrar logo que revelou a sua identidade, e lá estava o filho Kanda, todo bem fardado, com
símbolos de comando a brilhar nos ombros e nos olhos, aqueles olhos que desde pequeno entravam nas pessoas e as
incomodavam porque nunca se baixavam. Kanda o cumprimentou com todo o respeito, o levou para uma casa de pau a
pique, onde estavam outros fardados. Fez um gesto e todos saíram. Kanda indicou uma poltrona e sentou na outra. Ulume
passou a mão pela cadeira, hesitando se haveria de imitar o filho ou se sentava no chão. Nunca vira um banco daqueles, não
podia ser confortável. Mas se vergou ao sorriso convidativo de Kanda, que era um sorriso gentil e não de gozo. Sentou,
continuando a passar a mão pelo cabedal da poltrona. Até era cómoda, se admirou. E deu o mujimbo da Muari, do kimbo, de
tudo o que passara desde a visita de Zacaria. Contou do último combate que destruíra os kimbos, mas Kanda estava
informado, disse logo foi uma estupidez mas que quer, o inimigo é assim, utiliza todos os pretextos para sabotar a paz, os
nossos bem tentaram evitar o combate pois havia as pessoas lá, mas eles começaram. E quando um começa, o outro tem de
responder, o pai sabe como é.
Ulume não sabia, mas preferiu não contrariar o filho logo no começo. E de facto ignorava totalmente as artes e as
necessidades da guerra. Kanda disse logo a seguir:
— Está a ver, aceitei o seu conselho. Não fui ao vale para vos visitar, pois uso ainda armas. E vou continuar a usar, pois
não conto abandonar a vida militar. De facto era bom que naquele vale não entrassem fardas nem armas. Mas está a ver, pai,
eu não fui lá por cumprir o seu pedido, mas o inimigo foi com todas as armas que tinha e arrasou aquilo.
Ulume ia a dizer não foi só o inimigo, qualquer que ele fosse, a arrasar o vale, para haver guerra é preciso ter dois
exércitos. Mas para quê entrar nesse tipo de discussão? Lhe entregou a xikuanga e a galinha e o massango que carregara,
mimos da mãe, para ouvir não era preciso, pai, a comida vos faz mais falta a vocês que a mim, agradeço muito mas da
próxima vez eu é que vos levo comida, tenho demais, ao que Ulume contrapôs o seu orgulho, as nossas provisões chegam a
estragar, não temos bocas para comer todas as que existem no vale, agora que as pessoas foram embora ou morreram,
deixaram lavras e nakas abandonadas que nem precisamos de colher.
— Mesmo com a família do Luzolo lá?
— Sim, dá para todos e ainda sobra muito.
Mas o ar de Kanda, ao introduzir a palavra Luzolo na conversa, deu a entender a Ulume que tinham chegado à parte que
mais interessava o filho.
— A propósito, o que ele disse que ia fazer lá no vale?
— O teu irmão já não é militar, lhe desmobilizaram. Veio uma vez nos visitar e contar isso. Foi buscar a família e agora
estamos a construir as casas e os cercados para se instalarem bem.
— E ele deixou o exército dele definitivamente? É isso que diz?
— Veio sem farda nem arma. Da primeira vez e desta também. Por enquanto se instalam connosco. Mas quando a guerra
acabar mesmo, então está a pensar voltar para o nosso kimbo, onde vocês nasceram. Como sabes, está abandonado.
Kanda abanou a cabeça, confirmando. Ficou calado, só a olhar para Ulume. Depois foi à porta dar um grito de comando.
Apareceu um soldado que ele mandou ir chamar o Zacaria e trazer bebidas. O soldado foi à casa ao lado, pelo que Ulume
percebeu. O quartel eram duas filas de casas de pau a pique, com guaritas nos cantos. Trincheiras a toda a volta. Perguntou:
— Zacaria está aqui?
— Sim, eu trouxe-o. Ele quer visitar a família dele, por isso depois vai consigo, o pai sabe com certeza onde eles estão.
— Sim, no lago.
Zacaria entrou na sala e cumprimentou Ulume com deferência. Entretanto, o soldado depositou em cima da mesa uma
garrafa de uísque e copos. Foi o próprio Kanda que verteu um bocado da bebida num copo e o entregou ao pai, experimente
beber isso, é como o nosso kaporroto, muito forte. Enquanto os outros se serviam, Ulume levou o copo aos lábios e provou.
Não gostou do sabor, mas aquecia por dentro. Zacaria aproveitou para pedir que Ulume lhe indicasse o sítio onde estava
Mande. Combinaram ir juntos até ao kimbo do Olongo, Zacaria dormiria lá e no dia seguinte Ulume lhe indicava o caminho
ou ia mesmo com ele até ao Lago da Última Esperança, que ele nunca mais visitara, para não deixar a Muari sozinha. Mas
agora podia, pois Luzolo e a família faziam companhia à mulher na sua ausência. Depois Kanda interrompeu as combinas e
entrou na conversa que lhe interessava:
— Imagina, Zacaria, o Luzolo abandonou mesmo a farda e a arma. Diz que depois vai se instalar no kimbo onde
nascemos, mas por enquanto fica lá no vale com o pai. Tu acreditas?
Zacaria olhou para Ulume. Este confirmou com a cabeça, assim era. Kanda retomou a palavra:
— Não acredito. Há aí um plano qualquer escondido. Nunca que ele ia abandonar o exército dele, onde era oficial
superior, para voltar a ser camponês. Mesmo se quisesse, os dele não o deixavam.
— Foi mesmo o que Luzolo — disse insistiu Ulume, desgastado por o filho não estar a acreditar na palavra dele.
— Ele disse e o pai acreditou, está bem, compreendo perfeitamente. Mas eu não acredito. Conheço essa gente, dizem hoje
uma coisa e amanhã fazem outra. Sempre. São bandidos, pai, não deixaram de ser bandidos. Começam a falar mansinho para
nós acreditarmos e adormecermos. Quando estamos a dormir, nos espetam o punhal nas costas. Sempre foi assim.
— O teu irmão é bom, sempre foi calmo e bom.
— Aprendeu na mesma escola dos outros, pai, está igual aos outros. Eu sei muita coisa do que andou a fazer, ele e os
seus. E agora está a tentar nos enganar a todos. E usa a própria mulher e filhos para nos convencer. Porque nós pensamos, se
ele tivesse um plano escondido, não ia trazer a família, se ele veio com a família é porque quer mesmo ficar aí tranquilo.
Mentira, está só a utilizar os próprios filhos para nos enganar.
— Mas enganar como? — perguntou Ulume, já desesperado com a luz que brilhava nos olhos de Kanda.
— Não sei, isso não sei. E tenho de descobrir.
O soldado trouxe comida já servida em pratos. Era carne com arroz. Comeram em silêncio. Kanda e Zacaria
acompanhavam a comida com o uísque, hábito estranho. Ulume gostava de beber, mas era ao fim da tarde ou à noite, não
assim de dia. E quando se bebe, não se come ao mesmo tempo, só se for kitaba ou cola. Essa juventude de agora não tinha
só ideias diferentes, também os costumes. Quando acabaram a refeição, Kanda e Zacaria continuaram a beber. E insistiram
com Ulume para que o fizesse também. Resistiu, até porque a tal bebida não tinha bom gosto, preferia o sabor a queimado
do kaporroto, que em outros sítios chamam caxipembe. Estava mais interessado em procurar uma ponte entre os dois irmãos
desavindos.
— Porquê não vens lá ao kimbo falar com o teu irmão? Assim ficas a saber o que te preocupa, ele próprio te diz o que
pensa fazer.
— O pai está a me convidar para o kimbo? Eu tenho farda e arma, já esqueceu?
— Isso era então. Agora todos os soldados já descobriram o caminho do vale, também tu podes entrar.
Kanda abanou a cabeça. Acendeu um cigarro, fez sinal ao soldado para levar os pratos embora.
— Não, pai, eu não quero falar com o Luzolo. Nem quero ver a cara dele. O que eles fizeram, não vou esquecer assim tão
facilmente. Primeiro têm de mostrar mesmo que estão arrependidos e isso vai demorar.
— Mas arrependido de quê? — perguntou Ulume. — Luzolo não está arrependido, nunca me disse que estava.
— O problema é exactamente esse, pai, eles não estão arrependidos, até acham que fizeram muito bem e nós é que somos
os bandidos.
Ulume percebeu, as palavras não valiam nada naquele momento e para aquele caso. Os antigos diziam as palavras eram
tudo, eram força. Pode ser, no passado. Quando se usavam as palavras exactamente para se dizer o que se pensava e não
como armas para confundir os outros. Para criar uma ponte entre Luzolo e Kanda não bastavam palavras, tinham mesmo de
ser barrotes, troncos fortes e largos como os da mulemba ou mafumeira. E bem amarrados por cordas de mateba ou lianas.
Aquela raiva toda ia alguma vez passar? Além dos troncos e das lianas, era preciso tempo, muito tempo. Mas havia uma
pergunta que há muito lhe perfurava a cabeça e resolveu fazê-la a Kanda:
— Tu sempre foste esperto, por isso podes me explicar. Quem ganhou com esta guerra? Tu talvez tenhas ganho, pelo
menos parece pelo aspecto. O teu irmão não tem nada. Quem ganhou, eu não sei. Quem perdeu, isso eu sei, fomos nós todos.
Kanda baixou pela primeira vez os olhos. O osso da garganta mexeu, como se tentasse engolir qualquer coisa.
Embaraçado, sem resposta, o seu Kanda? Claro que haveria de encontrar qualquer coisa para responder, mas precisaria de
tempo.
Tempo já ele tinha pouco, se queria chegar ainda de dia ao kimbo. Por isso recusou beber, se despediu de Kanda sem o
deixar responder à sua pergunta que não tinha sido feita para receber uma resposta, pressionou Zacaria para se apressar.
Kanda ia voltar para Calpe e um dia voltariam a se encontrar, ninguém podia dizer quando. E encetou a viagem de regresso,
tendo aceitado uma garrafa nova daquela bebida que, pelos vistos, os rapazes preferiam ao maluvo e ao caxipembe.
Andaram rápido, Ulume sempre à frente, num carreiro que estreitava à medida que se aproximavam do vale, porque, a
partir de certa altura, já há muito tempo deixara de ser utilizado. O estado do carreiro mostrava que o vale perdera a
importância para os soldados. Até quando? Chegaram aos morros. Só lhes restava descer as escarpadas ladeiras para
atingirem o vale. Foi então que Zacaria disse:
— Mais velho, explica então o caminho para o lago onde está o meu pai. Não precisa vir comigo amanhã.
— Te explico lá no kimbo. Primeiro vamos comer e dormir.
— Vou dormir no kimbo novo. Ainda lá mora o mais velho Abílio, não? Fico na casa dele, se não se importa.
Era diferente do combinado no quartel e Ulume não compreendeu a súbita mudança de Zacaria. Manifestou a sua
estranheza. Zacaria baixou a cabeça, em atitude de contrição e depois disse, com voz suave:
— Desculpe, mas não posso ir consigo. Porque lá está Luzolo. E vamos gritar um com o outro, talvez até fazer pior. Seria
grave desrespeito para consigo e para com a Muari. Por isso é melhor eu ir dormir no kimbo novo.
Ulume não insistiu. Eram as tais forças que não conseguia dominar, nem sequer muito bem entender, as quais há muito
tempo tinham sido anunciadas em cochichos e discussões entre os jovens. Antes de Munakazi. Perguntara ao cágado velho o
que passava, pois pressentia maus indícios. E os indícios que corriam à frente dos acontecimentos lhe deram razão. Só
vieram guerras e mortes. E desavenças que permaneciam, mesmo entre Luzolo e Zacaria, que já nem armas usavam.
Explicou o caminho que ele deveria tomar no dia seguinte, não havia erro possível, o lago seria fácil de encontrar. E pediu a
Zacaria para os avisar quando estivesse para partir de novo, pois certamente a Muari quereria mandar alguma
recomendação para Kanda.
Mergulhado em soturnos pensamentos, ao descer a encosta, não reparou na sombra difusa que se ocultava por trás do
último penhasco a receber os moribundos raios solares.
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Luzolo conhecia aquela bebida que vinha na garrafa oferecida por Kanda. Mas não aceitou beber à noite, quando a
abriram junto da fogueira, para a Muari e Mário provarem. Quem mais gostou foi a muda, que bebia e dançava, toda
animada. Era a primeira prenda que a Muari recebia do seu filho Kanda, por isso fez questão em beber, mas se via que não
apreciou, embora não pronunciasse nenhum juízo. Ulume ainda insistiu com Luzolo, mas depois percebeu, o filho nunca
aceitaria coisa vinda das mãos do irmão.
Ulume contou o mujimbo da sua viagem e do regresso com Zacaria, não ocultou que este recusou dormir no kimbo para
não se encontrar com Luzolo, o qual disse fez muito bem, porque esse Zacaria é igual aos outros, mesmo se já não usa arma
continua a ser um inimigo e eu nunca ia aceitar que ele ficasse aqui. Ulume esteve para dizer, tu não tinhas que aceitar nada,
ele era meu convidado, que mania vocês têm, lá porque pegaram em armas, já dão ordens até na casa dos pais, mas preferiu
calar. Sobre a conversa com Kanda Ulume não omitiu nada, nem mesmo a dúvida sobre as intenções de Luzolo. Mas se é
verdade, cortou Luzia, porque não acredita ele, como sabe o que passa na cabeça dos outros? Kanda sempre sabia tudo,
sempre fora o mais esperto e o mais convencido, na opinião de Luzolo, para quem o que antes era uma grande qualidade do
irmão mais novo a partir de certa altura se tornara defeito imperdoável, o que levava a Muari a dizer que não entendia,
vocês eram tão ligados, sempre um com o outro, sempre um a defender o outro, porquê agora assim, se nem aceitas beber
isso só porque foi o teu irmão que mandou, e ele não acredita que queres viver aqui connosco só porque o disseste, porquê
essa desconfiança, essa raiva que destrói a minha alegria de saber os meus filhos vivos e perto um do outro? Kanda é um
militarista, afirmou Luzolo para a incompreensão dos outros que desconheciam tal palavra, por isso nunca vai mudar e vê
sempre planos diabólicos na cabeça alheia, sobre o que não quero mais falar, me dá vontade de vomitar e por isso vou
dormir.
Se retirou o raivoso Luzolo, se retirou Luzia. Ulume tampou a garrafa, para tristeza da muda. Mário pegou num braço da
mulher e a levou para a sua cubata. A Muari tinha a cabeça entre as mãos, toda enrodilhada sobre as nádegas magras, e de
vez em quando se balançava para um lado e para o outro, como num óbito. Ulume estalou a língua e a mandou se deitar,
dizendo amanhã vai nascer de novo o sol.
E esse sol que nasceu voltou a bater no rochedo em cima do kimbo, transformando a sombra da véspera num vulto de
mulher. Esse vulto se colara atrás de Ulume e com ele descera a encosta, mas parara no último rochedo da entrada do
kimbo. Aí se ensarilhara para passar a noite, ouvindo as vozes distantes à volta da fogueira, sem ousar aproximar. Mas
agora era dia, os galos cantaram num kimbo e depois noutro, o vale despertava quase em sobressalto, como sempre tinha
sucedido depois do último combate que o despovoara, e o vulto de mulher abandonou para sempre a forma de sombra,
permanecendo no entanto atrás do rochedo cinzento escuro que, ao receber as primeiras fulgurações do sol, se tingia de azul.
As pessoas acordaram, primeiro a muda que se espreguiçou fora da cubata, depois Luzolo na cubata do fundo que tirou a
cabeça para espiar o dia, logo seguido por choros de criança e resmungos de quem ainda tinha sono. O choro de criança
entrou na cabeça do vulto e lhe fez recordar outra criança que ficara pelo mundo e ainda outra que fora coberta por terra. Os
vultos não choram, privilégio dos humanos, e por isso os olhos ficaram secos. A Muari se levantou, apareceu fora, começou
a varrer à frente da cubata. O raspar da vassoura de piaçaba evocou outras lembranças no vulto e só então apareceu Ulume,
também esfregando os olhos, procurando a cabaça com água e a tina onde ia lavar a cara. Luzia surgiu, logo seguida por um
menino pequeno, os dois com o pau de esfregar os dentes, cuspindo para o chão a saliva amarelada pelo pau. O vulto tudo
via, pois tinha a posição ideal para o espia, debruçado no rochedo em cima do kimbo.
No momento em que Ulume acabara de deitar a água por cima da cabeça e se arrepiava com o frio, o vulto se descolou do
rochedo, ensaiou dois passos trémulos para baixo. A Muari parou de varrer, para contemplar aquela suspeita de mulher que
tomou o carreiro de entrada do kimbo. Um esqueleto desgrenhado e andrajoso, um cazumbi sem dúvida. A Muari estava
velha e muito já tinha visto, por isso não deu o grito histérico que muito homem e mulher dariam ao serem confrontados com
um espírito descarnado como aquele. Ficou calada, com a vassoura fortemente apertada na mão. Ulume se sacudiu todo e
esfregou a cara nas mãos para a secar, quando viu o vulto avançando pelo carreiro da entrada. Tiritou, mas podia ser por
causa do frio daquela manhã de planalto. Também podia ser por outra coisa, pois o vulto ouviu perfeitamente o queixume
incontrolável solto pela boca dele, Munakazi.
A Muari deu razão ao marido, era de facto uma Munakazi envelhecida e miserável que parou à frente deles, os seios
ressequidos a fugirem do quimono em frangalhos, as pernas ossudas a furarem os restos de saia sem cor. Munakazi tinha os
olhos no chão, e para lá também apontou as mãos quando disse:
— Voltei.
Ulume saiu disparado para o rio, um soluço atravessado na garganta, e a dor sempre presente mas escondida a explodir
dentro de si. O passado voltava em borbotões e ele correu como quando era homem apenas maduro e corria os caminhos em
volta do vale à procura de Munakazi.
Luzolo, que não reconheceu Munakazi, mas ouviu o pai pronunciar o nome, embora estivesse um pouco afastado, deu
umas passadas irritadas para se aproximar da cubata da mãe. As duas mulheres estavam paradas, à frente uma da outra, a
velha olhando a mais nova, esta olhando o chão. O homem cuspiu com raiva para o chão, falou com voz forte de comando :
— Que vieste cá fazer? Some daqui, xô, xô. Quem deserta não tem o direito de voltar. Que mais queres?
Luzia também se aproximou para ver. E as duas crianças já levantadas. E a muda. Mário se apercebeu da situação e
sentou em cima dum tronco cortado, perto da sua cubata, evitando se meter numa estória de outrem. Munakazi não mexeu,
nem olhou para Luzolo que crescia na sua frente.
— Não ouviste? Vai embora daqui. E rápido, antes que leves porrada.
Nada aconteceu. Como se Munakazi estivesse mesmo à espera que alguém lhe batesse. Pelo seu aspecto já estava
habituada às pancadas da vida. Por isso não encetou a mínima tentativa de defesa quando Luzolo levantou o pesado braço
em ameaça? Braço que foi travado pela Muari, não lhe toques.
Foi precisa a ameaça de Luzolo para a Muari despertar do sonho. Sonho para que foi empurrada pela presença de
Munakazi. Disse para a mais nova, vem comigo e despediu os outros, vão fazer qualquer coisa. Luzolo não queria obedecer,
olhando com ódio para a recém-chegada, foi preciso a mãe gritar lhe deixa em paz. Se sentaram as duas no chão, encostadas
à cubata principal, nesse momento ainda à sombra, e a Muari, numa voz sem sentimento aparente, mandou a outra contar a
sua estória.
A estória de Munakazi era fácil de contar, embora provocasse muitos soluços contidos e muitas hesitações, pois era a
estória deles todos desde o momento em que Munakazi nela entrou, uma estória de tropeços e desesperos, só diferente por
Munakazi ter tido também um sonho, diferente dos deles, o sonho de conhecer Calpe, a cidade de sonho, mas que afinal não
era nada, dizia ela agora, sonho talvez fosse aquele vale, sonho talvez fosse viver sempre ali e longe do mundo, onde só
conhecera homens que quiseram aproveitar o corpo dela, a juventude dela, e lhe fizeram dois filhos, um que morreu de
doença e fome, e outro que perdeu num combate, fugindo cada um para seu lado, filho até hoje órfão de pais vivos se vivo
estiver, mas ela era nova demais, não compreendia que nem sempre os sonhos correspondem à realidade que se vai
encontrar e desesperava ali, a vida sempre igual das lavras e das nakas, das noites repartidas entre a noite da presença e a
noite da ausência do marido, a mesma pobreza e o mesmo terror dum ataque brusco e ter de recomeçar tudo de novo, até os
ataques entravam na rotina, não havia surpresa nem descoberta, e ela queria descobrir a cidade, o mundo e as pessoas, e se
arrependera de largar a juventude para casar com Ulume, o qual, pensava ela na altura, não lhe dava nada, só o seu
incontestável amor mas que sabia a pouco, não lhe chegava para compensar o sacrifício da juventude, tendo pois decidido
procurar a juventude onde ela devia estar, em Calpe, nos sonhos de coisas novas e atraentes que conhecera de ouvir contar
ou numa página rasgada de jornal, mas que em breve lhe pareceram banais, jogada de um lado para o outro, sem descobrir
gente que com ela se preocupasse, até se juntar a um homem que percorreu cidades à procura de emprego e a fugir da guerra
que andava sempre no seu rasto, até ter um filho que morreu de fome, embora lhe tenham dito ser de doença e era verdade,
só que doença da fome, e ter mudado de cidade e de homem, pois o anterior desaparecera numa noite de dúvidas e medo,
tendo ela aceitado este novo homem apesar de bêbedo porque não tinha onde ficar, o que a levou a aguentar calada muito
murro e pontapé e mais uma vez a barriga a crescer, facto que levou o homem a expulsá-la pois não tenho dinheiro para
alimentar duas bocas e foi por este menino que se entregou a outros homens a troco de dinheiro e de comida, nunca mais de
um tecto que esse lhe parecia interdito naquela terra, até se ter decidido a pôr de novo pé nas estradas do mundo,
percorrendo do mar às montanhas, largas avenidas e caminhos do mato, sempre procurando a Calpe dos seus sonhos, uma
outra que correspondesse ao imaginado, a tal Calpe que fora construída de areia no deserto, tendo num desses caminhos
perdido o filho de oito anos, quando o camião em que iam caiu numa emboscada, tiros por todos os lados, corrida
desesperada pelo mato, primeiro de mãos dadas, depois sozinha, cada um para seu sítio, perda que se tornou definitiva pois
voltou ao mesmo local e andou dias e dias à volta do camião incendiado e cheirando a cadáveres insepultos, até desistir da
busca do filho e de si própria, tornada em cazumbi descarnado como os que subiam das profundezas do Bruco, voltando a
calcorrear os caminhos do mundo, indiferente ao que pudesse acontecer, comendo raízes se as encontrava, dormindo ao
relento dos cacimbos, sem destino nem finalidade, andando apenas, procurando o filho num mundo cada vez mais vasto,
passando por combates e períodos de paz, até se convencer de que o único sítio onde encontrara alguma tranquilidade e
carinho tinha sido naquele vale, com Ulume e a Muari, e começar a lamentar a falta deles, ao mesmo tempo que
inconscientemente se dirigia para os sítios da sua meninice, num círculo largo que se ia estreitando à volta da Munda
central, pois já não havia guerra embora gente morresse ainda de tiros e rebentamentos, mas tinha pouca noção disso,
porque agora só se debatia entre o desejo do regresso e o medo de ser mal recebida, dilema que a levava cada vez mais a se
ligar ao passado com Ulume, o único homem que a tinha verdadeiramente amado e que ela tinha tão cruelmente ofendido na
sua inconsciência de rapariga, e foi nessa busca inconsciente que finalmente descobriu o caminho para o vale e nele se fixou
entre as penedias, de onde podia observar os kimbos semiqueimados e os fantasmas rondando entre cubatas, mas sem
coragem de descer excepto à noite, ocasião em que se aproximava das lavras para comer fruta e tubérculos crus de
mandioca e ir beber água no rio, mas tão envergonhada do seu passado e transformada em bicho do mato que se escondia
logo que pressentia presença humana, dias e dias, noites e noites, até que ontem viu Ulume a descer a encosta, um desejo
irresistível de o seguir empurrou-a atrás dele e só parou no último rochedo, hesitando ainda em se apresentar, mas não
podia mais aguentar aquela solidão, sabia da morte dos pais e da desagregação da família, não tinha mãe nem irmãos, a mãe
e o pai e os irmãos dela eram Ulume e a Muari e mais os outros que viviam no vale, a matassem se quisessem, ou então a
deixassem ficar ali perto, a sentir apenas a presença deles que era reconforto, o único colo quente onde podia chorar,
chupar o dedo e finalmente dormir.
Assim contou Munakazi e as lágrimas corriam pelos olhos fechados da Muari.
O silêncio se instalou entre as duas mulheres, até que a mais velha foi dentro da cubata e trouxe mel e pirão de massango
da véspera. A Muari cortou o pirão em fatias, barrou-as com mel e entregou as fatias a Munakazi que comeu sofregamente.
Era a guloseima preferida de Munakazi, sempre fora, a Muari não tinha esquecido. Como numa premonição, ontem ela não
tinha deitado embora o pirão que sobrara, como sempre fazia. Hoje percebia porquê.
— Vou procurar Ulume.
A mais velha partiu na direcção do rio, enquanto Munakazi recebia os raios de sol, agora incidindo directamente na
direcção da cubata, que aqueciam em carícia o corpo esquálido e gelado.
Não foi assim tão fácil encontrar Ulume. No rio não estava, nem nas nakas. Mas a Muari conhecia os hábitos do marido e
suspeitou que estivesse sentado em cima de algum rochedo, olhando o vale a seus pés. Atravessou o rio pelas pedras que
tinham sido colocadas para servir de ponte. Andou um pouco, olhando para cima, até que o descobriu a meio da encosta,
como tinha previsto. Lhe fez sinal para descer, ela estava velha demais para subir. Ulume veio ter com ela. Se sentaram e a
Muari contou tudo o que ouvira de Munakazi. Ele ficou em silêncio. De olhos secos, mas uma lágrima teimando em brilhar
lá atrás.
— Que vais fazer? — perguntou ela.
— Então há muito tempo ela ronda por aí? Era afinal esse vulto que por vezes víamos lá em cima.
Tinham comentado o assunto, mesmo com pessoas dos outros kimbos. Com tantos mortos insepultos, pensaram se tratar de
algum cazumbi desesperado. E as marcas que por vezes viam nas lavras foram atribuídas a um animal esfomeado. Em terra
de tantos mistérios, ninguém ousara investigar de muito perto. Afinal, até nem estavam longe da verdade. Que era Munakazi
senão um cazumbi ou um animal esfomeado?
— Que vais fazer? — repetiu a Muari.
— Te perguntei muitas vezes. Sou assim tão mau marido para ela me abandonar sem uma palavra? É a mesma pergunta
agora.
— Voltou. Aprendeu. Se esquecer não podemos, nunca pudemos, será tão difícil perdoar a quem tanto sofreu?
— Que diz Luzolo?
— Lhe enxotou, quis mesmo bater. Eu não deixei. Esse nosso filho só tem ódio no coração, era tão diferente antes.
Ulume começou a caminhar lentamente para o kimbo. A Muari veio atrás, tropeçando nas pedras. Ele disse :
— Fizeste bem em não deixar Luzolo lhe bater. Mas eu ainda não pensei o suficiente, só agora me passou a tremura do
susto.
Por isso Ulume não respondeu à mesma pergunta, agora feita por Luzolo. Luzia foi mais clara, comentou é uma vergonha
para a família aceitá-la de volta, mas Ulume achou uma impertinência, que tinha uma nora de se meter em assuntos de mais
velhos? Só a ele cabia julgar e mesmo a Muari podia sugerir uma solução, mas com toda a delicadeza e isso apenas por ser
a primeira mulher e o assunto a tocar directamente. Por incumprimentos da tradição é que se passavam coisas tão más
naquela terra. No entanto, Ulume não disse nada a Luzia, porque acabava por não estar tão seguro do argumento. Neste caso,
era Luzia que expressava a voz da tradição, onde já se viu marido ofendido perdoar a fuga duma mulher alembada, mesmo
se não completamente, pois ficara a dever os cabritos? O argumento da tradição não era bom para explicar os males todos
que se abateram sobre eles. Foi a Muari que cortou a conversa da nora, Ulume ainda não decidiu e só o vai fazer conforme o
seu coração mandar.
Calhou entretanto Abílio aparecer, pois queria comentar a visita de Zacaria e o encontro de Kanda com o pai. Explicou
que acompanhara o filho de Mande um bocado do caminho para o Lago da Última Esperança, voltava agora. E ficou
espantado quando lhe disseram que aquele fantasma descarnado que tinham pressentido nas cercanias era afinal Munakazi.
Abílio puxou Ulume para o lado e lhe segredou:
— É mesmo um cazumbi que veio te desinquietar. Livra-te dela já hoje, se me permites um conselho. Se for de facto
Munakazi e não um cazumbi, então as pessoas vão considerar uma fraqueza humilhante que a aceites de novo. Se a mulher
foge e volta pouco depois, tudo bem, com um macoji apropriado se resolve a questão. Mas neste caso ela desapareceu há
anos e anos. Até te nasceram os cabelos brancos. Ninguém compreende que lhe possas perdoar. Mas é mesmo cazumbi sem
forças, por isso enxota-a, nós ajudamos todos atrás de ti, anda.
Ulume abanou a cabeça, não respondeu. Passou o dia todo evitando olhar a figura de Munakazi, que ficara imóvel ao sol
no sítio onde falara com a Muari. Mas era impossível evitar completamente e, de vez em quando, notava os pés virados um
para o outro e os dedos grandes levantados. Bastaria isso para reconhecer Munakazi em qualquer situação. Já não se notava
melancolia na figura encostada à cubata, pois o que dela se desprendia era desinteresse, morte. Só saiu desse sítio quando o
sol se punha e a Luzia trouxe comida para todos. Mas Munakazi se moveu para mais longe, não para perto deles e da
comida. Ficou encostada a uma árvore e foi a Muari que lhe levou um prato com funji, enquanto os outros comiam à roda da
fogueira. Luzolo resmungou, a mãe está a desperdiçar comida, ela não merece nem uma escama de peixe, mas refilou só
baixo, para a Muari não ouvir. O gago e a muda nessa noite não se tinham aproximado e fizeram a sua própria fogueira.
Ulume não soube como interpretar essa atitude. Podia ser de reprovação, por ele não ter mandado Luzolo enxotar logo a
regressada. Podia apenas ser uma maneira de dizer o assunto não é nosso e não nos metemos. Provavelmente nunca saberia
qual a verdadeira versão e nesse momento lhe parecia importante conhecê-la. Mas era evidente, nunca iria perguntar. E o
gago nunca se ia confessar.
Depois de comerem, a Muari levou um dos cobertores que tinham recuperado nos kimbos abandonados e indicou a
Munakazi uma cubata em bom estado que escapara das chamas e cujos donos tinham desaparecido, dorme aí até Ulume
decidir.
Mas Ulume não podia decidir assim e à noite disse para a primeira mulher, amanhã vou ao antigo kimbo, só volto no dia
seguinte. A Muari disse está bem, ele precisava de voltar ao seu morro para pensar, talvez conversar com o cágado velho.
Embora o marido nunca tivesse confessado, a Muari há muito adivinhara a ligação dele com o morro e o cágado. Pôs alguns
mantimentos e uma manta num saquito. A viagem era longa e ele tinha de se alimentar, além de se defender do frio nocturno.
Foi de facto uma longa viagem. As pernas já não tinham a mesma força de anos anteriores e ia carregado com um fardo
pesado. Não é fácil decidir sobre a vida duma pessoa. E ainda mais difícil se tratando de Munakazi. Por isso as costas iam
dobradas e a respiração não saía como antes. Tinha, no entanto, que chegar antes da hora da paragem do tempo, se queria
apanhar o cágado fora da gruta. Não interrompeu a marcha nem para comer, faria isso depois.
Estava ainda um pouco ofegante, sentado no sítio de sempre, quando o cágado se aproximou a caminho da nascente.
Ulume sabia, tinha de falar, por isso tossiu para aclarar a voz, nervoso, suspenso do que ia passar. O cágado foi se
aproximando, no seu passo vagaroso e prudente, próprio de quem domina o tempo. Quando chegou muito perto do homem,
este falou cágado velho, tu sabes muita coisa e venho te pedir conselho, desta vez tens de me responder pois é caso de vida
ou de morte e Ulume foi contando o caso, desde que conheceu Munakazi e a cena da granada, as hesitações dela e depois o
casamento, os momentos bons e os momentos maus, o recuo para o Vale da Paz e a ameaça dela, finalmente a fuga sem uma
explicação nem aviso prévio. Era talvez sua impressão, mas o cágado mexia muito mais lentamente as pernas, como se a dar
tempo para ele contar tudo antes que chegasse verdadeiramente à sua frente. Pois é, se perguntou Ulume, sem mesmo reparar
quanto era estranho estar a contar uma coisa e se fazer perguntas sobre outra, mas como ele sabe o tempo do relato? Sabia
ou adivinhava, pois ao terminar a estória de Munakazi, o cágado estava à frente dele.
— E o problema é agora eu saber se a devo aceitar, não como mulher, porque estou velho demais para me interessar por
certas coisas, mas como um membro da família, uma filha, sei lá o que possa ser. O importante não é isso, nem eu dormir
com ela. O importante é saber se tem a Muari razão, que quer que eu a deixe ficar connosco a nos aquecer o fim gelado das
nossas vidas, ou se têm razão Luzolo e Kanda e os outros do vale, que me querem ver expulsá-la. A Muari disse responde
com o coração, mas ele está dividido entre a raiva ainda presente por me ter ferido e a dor que sinto da saudade dela. A
culpa não foi só sua, se a teve. Eu não devia ter dado importância à cena da granada, nunca devia querer uma outra mulher e
tão nova, esses costumes já não funcionam bem, como dizem os jovens, são costumes de outro tempo. Também tenho culpa,
porque persegui um sonho irreal. Quem o não fez? Quem pode pois culpar só o outro? Fui arrogante porque achava que para
mim os espíritos falavam e no caso da granada falaram da maneira que interpretei. Não podia ser interpretado de outra
maneira? As crenças que eu tinha parecem hoje tão ridículas na loucura deste mundo... Ajuda-me, cágado velho, pois não
sei o que fazer.
O cágado estava parado à frente de Ulume, uma pata no ar, a cabeça virada para ele. O homem percebeu.
— Estás a olhar para mim, cágado velho. Nos conhecemos desde que nasci. Mas é a primeira vez que olhas para mim.
Sempre passavas com a cabeça na direcção da água. Diz-me então, devo fazer o que quero, aceitar Munakazi? Perdoar toda
a tristeza que ela provocou com a sua traição? Aguentar o desprezo dos amigos e dos meus próprios filhos, que me
considerarão um fraco? E com essa decisão indicar aos meus filhos que têm também de ganhar a coragem de se entenderem
um com o outro?
O animal continuava parado, olhando para ele, enquanto lá fora, lá à volta deles, o Sol dardejou amarelo-violetas de
maneira especial para a Lua e o silêncio absoluto se instalou. Ulume sentiu a angústia muito menor que das outras vezes,
mas ela existia para ele perceber que se tratava mesmo do fim do tempo. E tudo parou, os ruídos, o mundo, havendo só a luz
do azul. E o cágado velho à sua frente, que baixou e levantou a cabeça três vezes, num sinal inconfundível de afirmação. De
repente, tudo voltou ao normal e o cágado recomeçou a sua marcha a caminho da fonte. O tempo retomara o seu poder.
Ulume deixou o animal beber e foi à entrada da gruta depositar Riba de milho. Depois foi ele próprio beber a água da sua
infância. E uma alegria muito calma começou a preencher todos os seus vazios, com a pureza da água, com a mensagem do
cágado, com o mundo voltado ao normal. Lá em baixo ondulava o verde das palmas e gemiam as folhas das bananeiras,
roçando umas nas outras. Uma ave branca saiu do verde e voou a caminho do sol poente. Seria uma pomba? Abriu o saco e
comeu tudo o que a Muari lá tinha posto, devagar, saboreando, como deve ser feito ao bom da vida. Voltou a beber a água
do regato nascente. Esperou o escurecer e desceu para a base do morro, ficando num sítio bem abrigado dos ventos. Se
enrolou no cobertor e sentiu com agrado o fresco da noite recente.
Olhou para o céu e viu as estrelas aparecer. Tinha também Muiza, a Vénus dos brancos, a mais linda de todas as estrelas.
E Ulume, o homem, sorriu para ela.

Luanda 1990-Lisboa 1996.


GLOSSÁRIO
Alembamento — Pagamento feito aos pais da noiva (em língua Kimbundu).
Bruco — Profundo precipício existente na Serra da Chela (Huila)
Caporroto — Aguardente caseira. Chamada caxipembe no Leste.
Cazumbi — Espírito, fantasma (em várias culturas).
Féti — O primeiro homem, nascido das águas, na cultura Umbundu.
Funji — Massa de fuba de mandioca ou milho cozida (Kimbundu)
Haka — Interjeição de admiração (Umbundu).
Kilombo — Acampamento guerreiro (Umbundu, Kimbundu e outras).
Kimbanda — Curandeiro, adivinho (Kimbundu e outras).
Kimbo — Aldeia (Kimbundu e outras).
Kinda — Cesto raso (Kimbundu e outras).
Kinhunga — Pénis (Kimbundu).
Kibata — Massa de amendoim pisado com picante.
Kuata-Kuata — (Em várias línguas) Agarra-Agarra. Assim ficaram conhecidas as guerras para a captura de escravos.
Kuribotice — Mexericos (calão urbano).
Macoji — Multa de adultério descoberto (Mbunda e Tchokue)
Mahamba — Estrado encimado por chifres para protecção das aldeias (cultura Tchokue).
Maka — Conflito, discussão (Kimbundu).
Maluvo ou Maruvo — Bebida fermentada extraída da palmeira (Kimbundu).
Mambos — Problemas, casos (calão de Luanda).
Muari — A primeira mulher (Kimbundu e outras línguas).
Mujimbo — Notícia (em Tchokue); ultimamente ganha a conotação de boato.
Mukanda — Rituais de iniciação (cultura Tchokue).
Munakazi — A mulher (em Mbunda).
Munda — Assim chamam os Cuvale (Sul de Angola) à montanha principal do seu território.
Mussuma — Capital do antigo Império Lunda, que tinha a forma dum cágado.
Muxoxo — Ruído feito com a boca, em gesto de desdém.
Naka — Horta.
Nambalisita — Da cultura Humbe e Ambo: o primeiro homem, saído dum ovo.
Njango — Construção circular, aberta, onde se realizam reuniões (Umbundu e outras).
Nzambi — Deus criador na maior parte das culturas de Angola.
Omakisi — Monstros nas culturas do Sul.
Ombala — Residência do chefe na cultura Umbundu.
Suku — Deus criador na tradição dos povos que falam Umbundu.
Súmate — Da cultura umbundu: Pedaços de tomate e cebola crus que se juntam ao peixe seco ou carne para acompanhar
o pirão (Funji).
Ulumbe — O homem (em Umbundu).
Xikuanga — Pasta fermentada de mandioca (Cabinda).
Xinguilamento — Ritual em que o corpo treme, particularmente os ombros.
Zongolar — Bisbilhotar (calão de Luanda).

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