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Textualidades

em
Aula

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Priscila Bezerra de Menezes
Luiz Guilherme Barbosa
(Organizadores)

Textualidades
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Aula

R io d e J a n e ir o | 2 016

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© Priscila Bezerra de Menezes e Luiz Guilherme Barbosa (orgs.), 2016
© Oficina Raquel, 2016

EDITORES
Raquel Menezes e Luis Maffei

REVISÃO
Amanda Damasceno

CAPA
Thiago Antônio Pereira

projeto gráfico e diagramação


Julio Baptista (jcbaptista@gmail.com)

Av. Presidente Vargas, 542 • Sala 1610


Rio de Janeiro • RJ • Tel.: 2253-8921
www.oficinaraquel.com
oficina@oficinaraquel.com
facebook.com/Editora-Oficina-Raquel

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Sumário

Aprfesentação: De sonhos e de realidades — um projeto


de pesquisa, um livro, muitos planos..................................... 7
Priscila Bezerra de Menezes
Luiz Guilherme Barbosa

Formação do sujeito crítico letrado: da palavramundo


a palavras outras....................................................................... 13
Jéssica do Nascimento Rodrigues
Maria Cecília Sousa de Moraes

Notas sobre o silêncio: reflexões sobre o poético


no espaço da sala...................................................................... 47
Ana Lucia Soutto Mayor

Argumentação: ideologias e propostas para uma


abordagem escolar.................................................................... 60
Fabiana dos Anjos Pinto
Renata Calheiros Alves

A argumentação no terceiro ciclo do ensino


fundamental: desafios e perspectivas..................................... 92
Marcos Rogério Ribeiro Ponciano
Raquel Cristina de Souza e Souza

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Construções de tópico marcado em textos de escritores
brasileiros e o ensino de língua portuguesa.......................... 120
Priscila Bezerra de Menezes
Antonio José dos Santos Junior

O direito, a força e o currículo: literatura na escola............. 149


Luiz Guilherme Barbosa

O poema como um inutensílio, a sala de aula


como um lugar de ser inútil.................................................... 170
André Luís Mourão de Uzêda

Sobre os autores........................................................................ 191

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De sonhos e de realidades — um projeto de
pesquisa, um livro, muitos planos

Um sonho que se sonha só, é só um sonho que se so-


nha só, mas sonho que se sonha junto é realidade.
Raul Seixas

Este livro é fruto de um sonho. Um sonho que alguns profes-


sores sonharam juntos e, por isso, como afirma Raul, se trans-
forma, agora, em realidade. Vale a pena pensar, retrospectiva-
mente, em como tudo começou.
Nós, professores do Colégio Pedro II, campus Realengo II,
como trabalhamos em regime de dedicação exclusiva, precisá-
vamos, segundo as regras da instituição, ter um projeto de pes-
quisa que justificasse esse regime de trabalho. Pensamos, en-
tão, em criar um projeto coletivo: um grupo de estudos voltado
para a pesquisa em língua e literatura que estivesse intima-
mente ligada à prática de sala de aula, de forma que a teoria e
a práxis travassem constante diálogo, a serviço de um pensar e
um repensar constante do que se faz em sala de aula. Nesse
sentido, surgiu o Grupo de Estudos em Ensino de Português e
Literaturas (GEEPOL), abrigando professores que atuam nos
Ensinos Fundamental e Médio, com experiências de pesquisa

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Textualidades em Aula

em diversas áreas: língua portuguesa, literatura, educação. A


obrigatoriedade de um projeto de dedicação exclusiva termi-
nou, porém nosso desejo de estudar permaneceu.
Nossa ideia era a de abrirmos o diálogo entre nós, na cons-
trução coletiva de um discurso polifônico, ao qual tanto se re-
feriu Bakhtin — algumas vezes citado nos artigos que com-
põem esse livro — nem sempre convergente, porém sempre
enriquecedor, pois é a soma de vozes que falam de diferentes
perspectivas, lançando olhares distintos sobre um mesmo ob-
jeto que, somados, nos ajudam a compor um todo multifaceta-
do, plural.
Na esteira do desejo de continuar a pesquisa e trocar expe-
riências e conhecimentos, organizamos, como culminância
dos trabalhos do GEEPOL, um evento no qual pudéssemos
também ouvir colegas de outras instituições e ampliar o diálo-
go. Mais um sonho se realizou: em outubro de 2015 realizamos
o I Textualidades em Aula e a II Oficinada Literária do Colégio
Pedro II, quando contamos com as presenças ilustres de pes-
quisadores como José Carlos Azeredo, Helena Hawad, Gusta-
vo Bernardo, Marcos Scheffel, André Uzêda, Ana Lúcia Soutto
Mayor, Jorge Marques, os quais, compartilhando suas pesqui-
sas sobre concepção e ensino de língua e literatura, muito ma-
terial trouxeram para as reflexões de nossa prática pedagógica.
Foi o segundo sonho tornado realidade.
O terceiro sonho que se sonhou junto e, portanto, também
se realizou, foi o presente livro, uma coletânea de artigos dos
membros do GEEPOL — Antonio José dos Santos Junior, Fa-
biana dos Anjos Pinto, Jéssica Rodrigues, Luiz Guilherme Bar-
bosa, Marcos Ponciano, Maria Cecília Sousa, Priscila Menezes,
Raquel Cristina Souza e Renata Calheiros Alves — e de alguns
dos palestrantes que estiveram presentes no Textualidades em

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De sonhos e de realidades — um projeto de pesquisa, um livro, muitos planos

Aula. Os artigos são bastante variados e refletem os interesses,


os pontos de vista e a linha de pesquisa que cada professor-
-pesquisador elegeu para si em seu histórico de formação aca-
dêmica. O que os une, entretanto, é o objeto de ensino: o texto
e, por conseguinte, o trabalho com o texto em sala de aula.
A leitura de cada texto aqui presente testemunha parte de
um processo que parece absolutamente novo no contexto de
pesquisa da educação brasileira: professores da escola básica,
após constituírem um grupo de pesquisa dedicado ao ensino
do texto (literário ou não) em língua portuguesa, reúnem pes-
quisadores, também eles professores da escola básica, para re-
fletir teoricamente as suas práticas. De alguma maneira, qual-
quer discurso que defenda a falência da educação brasileira
enquanto projeto institucional de Estado se justifica pela mu-
dez dos professores da educação básica, decorrente sobretudo
da precarização de suas condições de trabalho.
Lutando constantemente para garantir o básico, como, por
exemplo, o tempo de trabalho necessário à pesquisa e à prepa-
ração das aulas, mal há tempo ou mesmo desejo para o profes-
sor refletir teoricamente e dialogar com o campo de estudos da
educação básica sobre o trabalho que ele cotidianamente reali-
za. Poder não apenas relatar a sua experiência pedagógica mas,
saindo desse lugar de narrador de experiências para o de for-
mulador de práticas, produzir uma proposta pedagógica é um
salto necessário a um projeto institucional de educação en-
quanto política pública. É isso que cada professor-autor dos
artigos deste Textualidades em aula se propõe a fazer.
Maria Cecília Souza e Jéssica Rodrigues, em Formação do
sujeito crítico letrado: da palavramundo a palavras outras,
discorrem sobre os limites e as possibilidades da formação do
sujeito crítico letrado no Brasil, retomando as pesquisas e os

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Textualidades em Aula

trabalhos de Paulo Freire, Mikhail Bakhtin e Magda Soares,


dentre outros, trazendo à baila os conceitos de alfabetização,
letramento, palavramundo e suas relações com os conceitos de
democracia e democratização.
Ana Lúcia Soutto Mayor, no âmbito do ensino de literatu-
ra, defende a sala de aula como espaço de experiências com o
literário, um espaço não só de falas, mas de silêncios que tam-
bém significam. É o que encontramos em Notas sobre o silên-
cio: reflexões sobre o poético no espaço da sala. A autora
defende a experiência com o literário longe das amarras do
currículo, do conteúdo, uma suspensão do controle, do espe-
rado, um espaço aberto a riscos e experimentações.
Fabiana dos Anjos Pinto e Renata Calheiros Alves, em Ar-
gumentação: ideologias e propostas para uma abordagem
escolar, se propõem a fazer um breve histórico sobre o surgi-
mento do interesse pelo estudo da argumentação, ainda na
Antiguidade Clássica, de como o estudo desse tema foi sofren-
do modificações e perdendo prestígio ao longo dos séculos e
de sua retomada e revitalização nos anos 50 do século XX. As
autoras também defendem o ensino da argumentação nas au-
las de Português, por excelência, e trazem sugestões de ativida-
des sobre o tema, partindo de textos de gêneros variados para
o ensino médio.
Raquel Souza e Marcos Ponciano também se debruçam so-
bre o tema da argumentação, agora, porém, defendendo seu
ensino no terceiro ciclo do fundamental. Em A argumentação
no terceiro ciclo do ensino fundamental: desafios e perspec-
tivas, os autores, através de relatos de experiências de ativida-
des realizadas no 7º ano do Ensino Fundamental do Colégio
Pedro II (campus Realengo II), demonstram como o ensino de
certos gêneros textuais argumentativos pode ser altamente

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De sonhos e de realidades — um projeto de pesquisa, um livro, muitos planos

produtivo nessa série, não precisando estar relegado às três sé-


ries do Ensino Médio.
Pensando agora em um ensino de Língua em uma pers-
pectiva funcional, Priscila Menezes e Antonio José dos San-
tos, em Construções de tópico marcado em textos de escri-
tores brasileiros e o ensino de língua Portuguesa, analisam
construções sentenciais do tipo tópico-comentário em textos
literários e não literários de autores brasileiros, procurando
evidenciar a produtividade do ensino dessa estrutura na edu-
cação básica, uma vez que, mais do ser um recurso estilístico,
está a serviço de uma intenção pragmático-discursiva bem
definida, criando efeitos de sentido que orientam o leitor a
chegar a uma interpretação mais próxima possível da inten-
ção do escritor e é mais uma ferramenta que enriquece a
competência comunicativa (textual e linguística) do usuário
da língua.
Se até então, com a exceção de Ana Lúcia Soutto Mayor, os
artigos pensavam o texto e a língua como um instrumento que
auxilia “na luta em busca da necessária reinvenção do mundo”
ou como atividade, lugar de ação e interação social, como pro-
dução de sentidos, como um objeto que serve a propósitos
pragmático-discursivos definidos, Luiz Guilherme Barbosa,
por sua vez, se dedica a pensar, ora na teoria, ora na prática, os
modos pelos quais a literatura é compreendida na escola. Em
diálogo com as ideias de Tzvetan Todorov e Antonio Candido
acerca dos perigos que a literatura corre hoje na escola france-
sa ou do direito à literatura, o autor termina por relatar sua
experiência com a Oficina Literária Ato Zero, desenvolvida
com estudantes do Colégio Pedro II, na qual a produção da li-
teratura se quer resposta ao lugar titubeante que muitas vezes
ela ocupa nos currículos escolares.

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André Uzêda, em belo relato de sua experiência de traba-


lho em turmas do 7º ano do Colégio de Aplicação da UFRJ
com a poesia de Manuel de Barros, defende a poesia como um
“inutensílio” e a sala de aula como um “espaço de ser inútil” em
O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lu-
gar de ser inútil. Defende a poesia que não está a serviço de
nada, a aula de literatura como uma experiência com o literá-
rio, privilegiando os afetos e as sensações que a poesia desper-
ta no leitor e incentivando a produção de textos poéticos auto-
rais por parte dos estudantes.
Os textos aqui reunidos procuram responder às inquieta-
ções que nós, professores pesquisadores da Educação Básica,
temos diante de nosso ofício — o ensino de língua e literatura.
Nosso compromisso é com a educação Básica e com a pesqui-
sa, e com entender de que forma a pesquisa e o conhecimento
científico podem nos abrir caminhos para pensar, repensar,
formular e reformular nosso fazer pedagógico. Cada um a seu
modo, dentro de sua perspectiva, apreendendo a seu modo o
objeto de estudo, porém caminhando juntos, a fim de continu-
ar a realizar nosso sonho, sonhado junto: contribuir para re-
pensar a educação brasileira. Que esse seja o primeiro de mui-
tos livros. Há ainda muitos sonhos a se sonhar e realizar.
Os organizadores

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Formação do sujeito crítico letrado: da
palavramundo a palavras outras1

Jéssica do Nascimento Rodrigues


Maria Cecília Sousa de Moraes

Para iniciar o debate

Recentemente, Paulo Freire (1921-1997) foi condecorado com


o título de Patrono da Educação Brasileira pela Lei no 12.612
(BRASIL, 2012), assinada pela presidenta Dilma Rousseff.
Também foi homenageado mediante criação da Escola de For-
mação do Professor Carioca Paulo Freire, que recebe seu
nome, prédio incorporado ao Centro de Referência da Educa-
ção Pública da Cidade do Rio de Janeiro Anísio Teixeira, e re-
cebeu preitos na 35a Reunião da Associação Nacional de Pós-
-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), realizada em
outubro de 2012 em Pernambuco, sua terra natal. Ademais, é
um dos autores mais lidos não só no Brasil, mas nas universi-
dades de países de língua inglesa, como Estados Unidos, Reino
1
Este artigo é fruto da articulação entre os trabalhos desenvolvidos por Ro-
drigues (2014) e Moraes (2015).

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Unido, Austrália e Nova Zelândia, investigadas pelo projeto


Open Syllabus (G1, 2016).
Não faltam exemplos de reconhecimento à contribuição de
Paulo Freire para a construção do campo educacional no Bra-
sil e, sobremaneira, no mundo. Todavia, é inevitável que, para
além desse reconhecimento, como é comum a toda produção
que ganha notoriedade, haja críticas, por exemplo no que toca
a afiliação desse autor ao catolicismo. Não obstante tornado
quase grife, citado a torto e a direito, reduzido a apropriações
incoerentes (no campo acadêmico, sobretudo), vale frisar que
Paulo Freire reforçou a necessidade da coerência, embora não
absoluta, no agir-pensar, no escrever-falar, na teoria-prática.
Nesse sentido, a autonomia teórica lhe confere um fértil atri-
buto, ainda que na mescla de religiosidade, marxismo e exis-
tencialismo, o que não torna sua produção uma miscelânea
desmedida.
Nesse campo teórico, os escritos e a militância de Paulo
Freire focalizaram a educação de jovens e adultos, a educação
popular, e não propriamente a escola pública, bandeira de in-
signes educadores brasileiros, como Anísio Teixeira (1900-
1971) e Florestan Fernandes (1920-1995). Entretanto, enten-
dendo a educação como busca pela emancipação humana, esse
autor, sem excetuar a escola por completo, açambarcou aspec-
tos que atravessam todo o espaço ocupado pelo campo educa-
cional, como a democracia e a linguagem.
Indubitavelmente, Freire (2011b) atribuiu um papel quase
redentor à educação (até porque se tratava de seu campo de
ação/reflexão), mote para críticas, mas não deixou de salientar
os cuidados tanto com o voluntarismo, que atribui à educação
um poder que ela não tem, quanto com o objetivismo mecani-
cista, que nega por completo o seu poder. Reforça que “[...]

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Formação do sujeito crítico letrado

enquanto prática desveladora, gnosiológica, a educação sozi-


nha, porém, não faz a transformação do mundo, mas esta a
implica” (FREIRE, 2011b, p. 45).
Neste artigo, por conseguinte, na busca sim da coerência
não só argumentativa, mas também teórico-metodológica, e
na busca da recuperação da relevância da educação para a
transformação das relações materiais e não materiais postas,
procura-se destrinçar algumas contribuições do pensamento
freireano em três aspectos — longe de pretender enaltecer esse
educador ou, na contracorrente, de torná-lo objeto de crítica
comezinha: o primeiro aspecto se reporta à temática da demo-
cracia, da democratização e das práticas democráticas; o se-
gundo se refere à formação para e nas práticas sociais letradas
dada no desenvolvimento da transitividade ingênua à transiti-
vidade crítica; o terceiro analisa os eixos leitura e escrita, como
elementos constituidores da linguagem e desenvolvidos no
âmbito da educação, especialmente no ensino de Língua Por-
tuguesa (LP).
A partir desses eixos norteadores, intenciona-se, portanto:
(a) entender democracia, democratização e práticas democráti-
cas, segundo os apontamentos do educador em questão; (b)
debater a transição da ingenuidade para a criticidade humana,
como condição para a participação dos sujeitos nas práticas
sociais democráticas; e (c) compreender a visão freireana sobre
a leitura e a escrita, processos formativos imbricados, salien-
tando a linguagem como uma das esferas da produção do refe-
rido autor e o ensino de Língua Portuguesa como um caminho
imprescindível para a realização dessa formação.
Longe de uma meta-análise, de Freire por Freire, o que di-
ficultaria um estudo mais fino, e longe de uma análise limitada
a Freire por outrem, ancora-se no próprio autor (FREIRE,

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1996, 2005a, 2005b, 2005c, 2006, 2011a, 2011b, 2012) e em au-


tores do campo da linguagem (BRITTO, 2003, 2012; SOARES,
1989, 2003, 2004, 2012; TRAVAGLIA, 2011, dentre outros) e
da educação (GIROUX, 1997; SAVIANI, 2002, 2008, dentre
outros). E acentua-se uma reflexão: “[...] não se critica um au-
tor ou autora pelo que dele ou dela se diz, mas pela leitura sé-
ria, dedicada, competente que fazemos dela ou dele. Sem que
isso signifique que não devemos ler o que dele ou dela se disse
ou se diz também” (FREIRE, 2011b, p. 106).

Educação democrática e crítica na escola

Como tantos outros termos, democracia é um conceito em


disputa, polissêmico e, sobremodo, vulnerável. No entanto,
considerados tais fatores, neste subitem, tenciona-se entender
o termo situado no pensamento de Freire (1996, 2005a, 2005b,
2005c, 2006, 2011a, 2011b, 2012), em consonância também
com Coutinho (1979, p. 37, grifo nosso), para quem democra-
cia é “[...] um valor estratégico permanente na medida em que
é condição tanto para a conquista quanto para a consolidação e
aprofundamento dessa nova sociedade”, a qual não se restringe
à distribuição da riqueza nos moldes liberais, mas avança para
a distribuição dos meios de produção e dos modos de governo
às massas.
Para Freire (2005a), nesse viés, a experiência democrática
foi negada ao Brasil pelo poder e pela vida colonial, tendo em
vista a colonização predatória e a exploração econômica des-
mesurada. Não obstante tais peculiaridades do contexto brasi-
leiro, tocada na referência à Sociedade Fechada e à Sociedade
em Trânsito, a democracia é afunilada ao que se entende como

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Formação do sujeito crítico letrado

democratização, processo histórico, ou como “democratização


fundamental” (MANNHEIM apud FREIRE, 2005a), de parti-
cipação popular. Assim, utiliza-se o termo democratização,
porquanto a democracia não está dada, sobretudo se se trata
da socialista.
Com base no sonho democrático, tenta-se combater idea-
listas e mecanicistas, negadores da tensão dialética consciên-
cia-mundo, e critica-se a morte da História, da utopia, das
classes sociais e dos discursos que, em geral, negam a possibi-
lidade da educação crítica. Freire (2012), longe da negação da
materialidade das relações materiais e não materiais, aponta
que o sonho democrático, a utopia da recriação ou da transfor-
mação da realidade, está arraigado na realidade concreta. As
ideias de que a História é possibilidade e não determinismo e
de que estar no mundo implica estar com o mundo e com os
outros são vieses que passam pelo entendimento do que Freire
(1996, 2011b, 2012) considera como educação crítica e demo-
crática. Se se trata de um ser humano situado no tempo que,
não reduzido ao presente, pode incorporá-lo e/ou modificá-lo,
para o educador, a concepção democrática de educação é a pe-
dagogia para os homens livres. Essa democracia desenvolvida,
então, nas relações concretas, embora nesta sociedade de desi-
gualdade, de consumo e de exploração, aqui é entendida, por-
tanto, como prática democrática.

Por tudo isso, não há outra posição para o educador ou


educadora progressista em face da questão dos conteú-
dos senão empenhar-se na luta incessante em favor da
democratização da sociedade, que implica a democrati-
zação da escola como necessariamente a democratiza-
ção, de um lado, da programação dos conteúdos, de

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outro, da de seu ensino. Mas, sublinhe-se, não temos


que esperar que a sociedade se democratize, se transfor-
me radicalmente, para começarmos a democratização
da escolha e do ensino dos conteúdos. [...] a democra-
tização da escola não é puro epifenômeno, resultado
mecânico da transformação da sociedade global, mas
fator também de mudança. (FREIRE, 2011b, p. 156-
157, grifo nosso)

Fica claro que, para Freire (2011b), as práticas democráti-


cas são possíveis em uma sociedade não democratizada, que
inclusive não teve a experiência democrática, como o caso bra-
sileiro. Educadores e educadoras podem ser caracterizados
como democráticos no ato de ensinar, outrossim no de apren-
der, um que fazer sério, coerente. Se se aprende democracia,
fazendo democracia — no nível micro da democratização —,
no contexto brasileiro, urge a necessidade das práticas demo-
cráticas na escola como brechas à transformação — no nível
macro dessa democratização (FREIRE, 2012). A democratiza-
ção da escola e da sociedade é, afinal, um instrumental para a
realização do “inédito viável” (FREIRE, 2011b), tarefa da edu-
cação democrática e popular.
À luz da pedagogia crítica, Freire (1979) entende ser possí-
vel transpor o habitual engessamento da educação formal para
uma aprendizagem de fato significativa, que leve o aluno a re-
fletir sobre a sua própria realidade. Não se trata, todavia, de
rechaçar os conhecimentos advindos daquela educação. Coim-
bra (2008, p. 52-58), ao investigar a trajetória da pedagogia
crítica, reconhece que Paulo Freire é um legítimo representan-
te brasileiro dessa linha, pois, sem deixar de ensinar o conteú-
do formal, foi capaz de ressignificá-lo nas questões cotidianas

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Formação do sujeito crítico letrado

dos educandos, promovendo, assim, práticas escolares que


oportunizaram uma reflexão sobre as questões sociais. A pro-
posta da pedagogia crítica, nesse sentido, “[...] inclui o desen-
volvimento da capacidade crítica dos agentes sociais de forma
a capacitá-los a reconhecer e combater, de algum modo, os
efeitos das relações assimétricas de poder” (COIMBRA, 2008,
p.53).
Vê-se, na obra de Freire, a relação dialética entre escola e
sociedade. Não se enxerga um vetor abreviado ao idealismo
nisso e, mesmo que o educador não se tenha voltado propria-
mente para a escola pública, não se reconhece o distanciamen-
to entre sua produção e a escola, como se estivesse limitado ao
“extraescolar”. É possível perceber o potencial revolucionário
da escola pública na voz de Freire (2006), não como um dis-
curso esvaziado e/ou desatrelado do todo de sua obra:

Situando-me entre os educadores e as educadoras pro-


gressistas do Brasil, hoje, diria que nos assumir assim
significa, por exemplo, trabalhar lucidamente em favor
da escola pública, em favor da melhoria de seus padrões
de ensino, em defesa da dignidade dos docentes, de sua
formação permanente. [...] Significa incentivar a mobi-
lização e a organização não apenas de sua própria cate-
goria mas dos trabalhadores em geral como condição
fundamental da luta democrática com vistas à transfor-
mação necessária e urgente da sociedade brasileira.
(FREIRE, 2006, p. 50, grifos do autor)

A luta democrática pela transformação é dada também na


escola e, em especial, no campo educacional como um todo, a
despeito de não se realizar somente nesse espaço. No âmbito

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da escola, Giroux (1997), educador norte-americano que esta-


beleceu forte vínculo com Paulo Freire, enfatiza a junção da
linguagem de possibilidade e da linguagem de crítica para o de-
senvolvimento das relações democráticas em sala de aula ao
encontro de uma pedagogia da esperança, esperança que, ne-
cessidade ontológica, deve ser crítica e abraçar a prática para
se concretizar historicamente (FREIRE, 2011b, 2012), afinal
“[...] uma educação sem esperança não é educação” (FREIRE,
2005b, p. 30).
Para Saviani (2002), a passagem da desigualdade para a
igualdade se dará pelo processo educativo democrático: a de-
mocracia como possibilidade tanto no ponto de partida quan-
to no ponto de chegada. Esse autor entende a democracia
como um estado a ser conquistado, num processo de demo-
cratização, pois não é um dado. E finaliza: “[...] não se trata de
optar entre relações autoritárias ou democráticas no interior
da sala de aula, mas de articular o trabalho desenvolvido nas
escolas com o processo de democratização da sociedade” (SA-
VIANI, 2002, p. 78-79). Discutindo tal temática, tanto Freire
(em toda a sua obra) quanto Saviani (2002, 2008) não se ren-
dem ao binarismo que separa escola e sociedade, como se a
transformação fosse feita de fora para dentro ou de dentro para
fora, ou ainda como se a escola, por um lado, fosse apenas pas-
sível de reprodução social ou como se dela, por si só, por outro
lado, partisse todo o processo de transformação social inde-
pendente do contexto social. Na verdade, escola e sociedade
estão em relação dialética, contínua, num todo que se articula,
que precisa se articular no processo de democratização.
Possibilitar às classes populares, na escola ou fora dela, o
desenvolvimento de sua linguagem, calcada na realidade con-
creta, é possibilitar a antecipação do mundo. Para Freire

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Formação do sujeito crítico letrado

(2005a), por exemplo, a superação do analfabetismo, mor-


mente entre a população adulta, tema de sua produção e de sua
luta, no rompimento com o pensamento liberal, interliga-se à
superação da inexperiência democrática brasileira. Alfabetis-
mo e democracia estão imbricados, pois não se trata de alfabe-
tização mecânica (o que não levaria à transformação). Além
disso, alfabetizar, como resolução do problema estrutural do
analfabetismo, não é a solução aos males da sociedade capita-
lista. Alfabetizar, para Freire (2005a), é um ato de criação liga-
do à democratização da cultura, como introdução à democra-
tização.

Alfabetização e letramento na formação do sujeito crítico

Freire (2005a) propõe uma gradação não linear ao desenvolvi-


mento crítico da consciência — da intransitividade da consci-
ência à transitividade ingênua e da transitividade ingênua à
transitividade crítica — ápice a que só se chegaria com uma
educação dialogal e ativa a partir de uma interpretação crítica
dos problemas. Para Freire (2005c), a essência do diálogo é a
palavra enquanto práxis, “[...] reflexão e ação verdadeiramente
transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexi-
vo e criação” (FREIRE, 2005c, p. 106).
Freire (2005c), ao contrapor a sectarização reacionária à
radicalização necessária ao comprometimento com a liberta-
ção, destaca o papel da conscientização por uma educação li-
bertadora que desenvolva essa consciência crítica, posto que
esse processo específico possibilita aos sujeitos a inserção no
processo histórico. “Educador e educandos (liderança e mas-
sas), cointencionados à realidade, se encontram numa tarefa

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Textualidades em Aula

em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, as-


sim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este
conhecimento” (FREIRE, 2005c, p. 64). Em outras palavras, a
transformação se dará a partir das massas no sentido de desve-
lamento da realidade objetiva e inserção crítica para a ação
transformadora, não num viés restrito ao idealismo, mas na
relação dialética entre esse desenvolvimento da consciência
histórico-crítica com a realidade concreta. Conforme a abor-
dagem de Freire (2005b), quando o homem é ingênuo, limita-
do à intransitividade ou à transitividade ingênua, não há com-
promisso real com a realidade e com os homens concretos:

É por isso que, do ponto de vista dos interesses das


classes dominantes, quanto menos as dominadas so-
nharem o sonho de que falo e da forma confiante como
falo, quanto menos exercitarem a aprendizagem políti-
ca de comprometer-se com uma utopia, quanto mais
se tornarem abertas aos discursos “pragmáticos”, tanto
melhor dormirão as classes dominantes. (FREIRE,
2011b, p. 127)

A prática educativa que se põe a serviço da dominação não


estimula o pensamento crítico, mas sim a forma ingênua de pen-
sar e compreender o mundo (FREIRE, 2012). À ampliação da
transitividade ingênua para a crítica, soma-se a construção da
consciência histórica, desembrulhada no desnudamento da ide-
ologia dominante, estado do que Freire (1996) chama de “buro-
cratização da mente”. Nesse contexto, uma das principais dife-
renças entre a consciência ingênua e a consciência crítica, para
Freire (2005b), é que esta reconhece que a realidade é mutável, já
aquela entende a realidade como algo estático, não mutável.

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Formação do sujeito crítico letrado

Saviani (2002), enquadrando tal proposta no que chamou


de Escola Nova Popular, defende que Paulo Freire criou um
método de alfabetização ativo, dialogal e crítico com o objeti-
vo de tornar a educação um instrumento de promoção da
consciência transitivo-ingênua à transitivo-crítica. O mesmo
autor, mais tarde, explica que sua crítica não fora negativa:
“[...] mais do que classificá-lo como escolanovista, destaca-se
aí o seu empenho de colocar os avanços pedagógicos preconi-
zados pelos movimentos progressistas a serviço da educação
dos trabalhadores e não apenas de reduzidos grupos de elite”
(SAVIANI, 2008, p. 223).
Com efeito, já que a forma como se atua no mundo depen-
de do modo como se o percebe, como dele se tem consciência,
a educação libertadora — que é práxis, superação da contradi-
ção educador-educando a partir de uma educação problemati-
zadora, de mudança, no enfrentamento da concepção bancá-
ria, de permanência — é ineludível. Para essa educação
profundamente crítica, que objetiva a libertação, Freire (2005c)
define o ato de ensinar, contraposto à concepção bancária de
educação, como educação crítica:

[...] o processo de ensinar, um processo crítico em que


o ensinante desafia o educando a apreender o objeto
ou conteúdo para apreendê-lo em suas relações com
outros objetos, ensinar conteúdos implica o exercício
da percepção crítica, de sua ou de suas razões de ser.
[...] Não devo deixar para um amanhã aleatório algo
que faz parte agora, enquanto ensino, de minha tarefa
de educador progressista: a leitura crítica do mundo ao
lado da leitura crítica da palavra. (FREIRE, 2012, p. 94-
95, grifos do autor)

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Textualidades em Aula

Neste ponto, começa-se o debate acerca da leitura crítica


da palavra e do mundo desenvolvida a partir do que Freire
(1996) denomina curiosidade epistemológica contra o erro epis-
temológico do bancarismo, no movimento do pensar certo e
não do pensar ingênuo. Dessarte, Freire (2005c) defende um
permanente esforço de reflexão dos oprimidos com as suas
condições concretas, convencido de que a reflexão, se real-
mente reflexão, conduz à prática. A classe trabalhadora, classe
popular, não é inculta e incapaz e não será, portanto, libertada
de cima para baixo, num processo enviesado de democratiza-
ção, questão enfatizada por Coutinho (1979); sua libertação se
dará por suas próprias mãos no movimento pela democracia
socialista (FREIRE, 2011a). Para Freire (2011b), para a liberta-
ção, não basta conhecer criticamente a situação de opressão
vivenciada, há a necessidade subjacente de engajamento na
luta política pela transformação de suas condições concretas.
Assim, a alfabetização, embora o analfabeto da palavra não
seja analfabeto do mundo, é instrumento dessa luta política
(FREIRE, 2011a).
Consciência-mundo e leitura da palavra-leitura do mun-
do, desse modo, são indicotomizáveis. Em razão disso, Freire
(2005a) frisa, todo o tempo, que a alfabetização não se abrevia
ao domínio psicológico e mecânico das técnicas de escrever e
falar, pois, para além disso, envolve a compreensão e a tomada
de consciência acerca daquilo sobre o que se escreve ou sobre
o que se fala. Dessa forma, defende “[...] o aprendizado da es-
crita e da leitura como uma chave com que o analfabeto inicia-
ria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. O ho-
mem, afinal, no mundo e com o mundo” (FREIRE, 2005a, p.
117, grifos do autor). Nesse sentido, a importância da leitura e
da escrita também não se fecha ao processo de alfabetização.

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Formação do sujeito crítico letrado

Tal relevância precisa estar presente em todo o processo edu-


cativo, se democrático e crítico, até porque, como Freire (2012)
salienta, a leitura posterior do mundo pode ser mais crítica,
mais rigorosa. Para Soares (2004), o processo de letramento (e
não o de alfabetização puramente) é prática social, é o que se
faz com as habilidades de leitura e escrita e como tais habilida-
des se relacionam com as próprias práticas sociais.
Precavendo-se contra um possível encadeamento equivo-
cado, é frequente que uma aligeirada compreensão do conceito
de letramento aproxime-o ao de alfabetização — ambos comu-
mente colocados como sinônimos em alguns contextos, e por
isso ainda cabe a pertinência em distingui-los. Kleiman (2005,
p. 11) afirma categoricamente que “letramento não é alfabetiza-
ção, mas a inclui!”. Em seus estudos, a autora coloca que impor-
ta entender que o primeiro conceito pressupõe necessariamen-
te o segundo, entretanto o contrário não tem sido uma condição
irrefragável na realidade educacional brasileira, embora deves-
se ser. Por alfabetização — ação de alfabetizar — compreende-
-se uma prática, mais comumente realizável em ambiente esco-
lar, que se dedica a ensinar de forma sistematizada as regras
combinatórias do código escrito de uma língua. Seu objetivo
está relacionado ao processo de aquisição das primeiras letras,
sendo necessário, para alcançá-lo, seguir determinadas sequên-
cias cognitivas de aprendizagem (KLEIMAN, 2005). Como
produto da alfabetização, tem-se um indivíduo apto a ler e a
escrever graficamente as palavras, isto é, alfabetizado.
Esse mesmo sujeito alfabetizado, no entanto, pode não ser
letrado — entendido aqui como condição que assume aquele
que participa dos processos de letramento, no sentido da alfa-
betização a que Paulo Freire se refere. Letrado, nesse contexto,
se refere à pessoa que, além de saber ler e escrever, faz uso so-

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cial e competente da leitura e da escrita na vida cotidiana (SO-


ARES, 2012, p. 36). Isso porque a alfabetização, enquanto pro-
cesso sistematizado, está relacionada às ações de decodificação
e de codificação das estruturas de uma língua, a saber, grosso
modo, ao ler e ao escrever respectivamente. Já o letramento diz
respeito à aplicação dessas habilidades de ler e de escrever em
contextos sociais de usos da língua, conforme bem distingue
Tfouni (2002, p. 9-10):

A alfabetização refere-se à aquisição da escrita en-


quanto aprendizagem de habilidades para a leitura, es-
crita e as chamadas práticas de linguagem. [...] O letra-
mento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos
da aquisição da escrita. [...] Desse modo, o letramento
tem por objetivo investigar não somente quem é alfa-
betizado, mas também quem não é alfabetizado, e, nes-
se sentido, desliga-se de verificar o individual e centra-
liza-se no social.

Em outras palavras, aludindo à formação educacional, não


basta apenas que uma pessoa seja alfabetizada; é necessário
letrá-la, ou seja, fazer com que alce a um estado permanente de
letramento o qual lhe possibilite participar de forma digna e
cidadã das práticas sociais de leitura e escrita, respondendo às
demandas dessa natureza na sociedade grafocêntrica atual.
Portanto, no conjunto de sua obra, Paulo Freire compreendia a
alfabetização como letramento, porque palavra é palavramun-
do, porque forma-se o sujeito, mediante uma educação crítica
e problematizadora, para a inserção nas práticas sociais.
Segundo Britto (2003, p. 153) constata, na realidade brasi-
leira, “nem todos os cidadãos são leitores” (grifo do autor), isso

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Formação do sujeito crítico letrado

porque o saber letrado não é distribuído equitativamente. Ain-


da que não se tivesse nenhum esclarecimento a respeito de
questões linguísticas, seria possível identificar pessoas que,
embora alfabetizadas (e muitas vezes o simples “assinar o
nome” define essa condição), não são capazes de ler e compre-
ender, com propriedade, as informações veiculadas em textos
comuns no cotidiano: manuais de instrução, rótulos de emba-
lagens, documentos pessoais, anúncios publicitários, notícias
de jornal etc. Recorrentemente, também se depara com aque-
las que, em relação à escrita, demonstram ter extrema dificul-
dade em se expressar, seja para escrever um simples bilhete,
seja para elaborar um currículo profissional, por exemplo. So-
ares (2012) amplia o quadro dos usos sociais:

As pessoas se alfabetizam, aprendem a ler e a escrever,


mas não necessariamente incorporam a prática da lei-
tura e da escrita, não necessariamente adquirem com-
petência para usar a leitura e a escrita, para envolver-se
com as práticas sociais de escrita: não leem livros, jor-
nais, revistas, não sabem preencher formulários, sen-
tem dificuldade para escrever um simples telegrama,
uma carta [...]. (SOARES, 2012, p. 45-46)

Se tais pessoas, inclusive as adultas, na condição de usuá-


rias da língua e tendo já passado pelo processo de alfabetiza-
ção, não são capazes de participar de rotineiras atividades de
leitura e de escrita, é porque, por motivações várias, tais habi-
lidades não foram plenamente desenvolvidas visando ao uso
social da língua. Considerando o processo de alfabetização-le-
tramento, cabe à escola intensificar a transição dessa primeira
etapa, alfabetização, para a segunda, letramento, sendo de fun-

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damental importância que esta seja uma etapa permanente na


vida de todos os sujeitos.
Freire, educador pioneiro a se dedicar à educação de adul-
tos, já nos anos 1960, não concebia outra forma de êxito no
processo de ensino-aprendizagem se não fosse pela via do que
Mollica e Leal (2009) chamam de letramento social — con-
quanto ele não tenha feito uso de tal terminologia. Procurar
entender em que lugar os educandos se colocam nos processos
educativos e que experiências de vida apresentam ao chegar à
escola não é outra coisa senão considerar o letramento social
dos sujeitos, tal qual defendem as autoras.
Soares (2003, p. 120) também identifica no ideal freireano
centelhas de letramento na postura de o educador repudiar
qualquer prática educativa que se distancie da experiência
existencial dos educandos, isto é, que se distancie da esfera so-
cial que o compõe. Kleiman (2003) reitera tal afirmação ao
analisar que a educação considerada por Freire é aquela que
leva o aluno a perceber o seu entorno para, então, compreen-
dê-lo criticamente, da perspectiva cidadã a que se almeja. En-
fim, é extenso o elenco de teóricos que referendam, até os dias
de hoje, a concepção adotada por Freire, para o que caberia
um estudo mais refinado em uma outra oportunidade.
Quanto à adoção de práticas escolares letradas, embora
ainda existam realidades educacionais precárias nesse aspecto,
notam-se rumos favoráveis, ao menos oficialmente. A título de
exemplificação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação de Jovens e Adultos (DCNEJAs), o principal docu-
mento educacional que regulamenta o ensino na EJA, ratifi-
cam a necessidade de tais práticas nessa modalidade. Impele
tal direcionamento, principalmente, o fato de o atual diagnós-
tico ainda apontar que muitos desses alunos apresentam uma

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relação precária com o ler-escrever, sendo, em muitas situa-


ções, “incapazes de fazer uso rotineiro e funcional da escrita e
da leitura no dia a dia” (BRASIL, 2000, p. 3).
Freire (2005c, 2011b, 2012) não alude a um ensino que é
mero depósito de conhecimentos do educador no educando.
Trata de um ensino da leitura e escrita, não apenas nas aulas de
LP, como exercício crítico da leitura e da releitura do mundo.
O autor reforça essa questão ao tocar no conceito de competên-
cia linguística que, para ele, é a experiência que se tem com os
usos da língua, de que resulta o vocabulário, a sintaxe, a prosó-
dia (FREIRE, 2006); usos que, também para Travaglia (2011),
são possíveis pela língua, forma de atuação social e cidadã, afi-
nal tudo o que constitui a sociedade é simbolizado ou signifi-
cado na língua.
Freire (2006) imputa à aprendizagem da norma culta, por
exemplo, uma função singular: como um direito do cidadão,
os sujeitos precisam aprendê-la a fim de instrumentalizar-se
para a luta em busca da “necessária reinvenção do mundo”. En-
tretanto, não nega que a escola pública popular de fato compe-
tente precise respeitar os educandos, “[...] seus padrões cultu-
rais de classe, seus valores, sua sabedoria, sua linguagem”
(FREIRE, 2006, p. 42). Por tudo o que foi expresso, é evidente
que a temática do letramento, embora não se restrinja somente
a esta, está mais relacionada à responsabilidade do ensino de
LP. Naturalmente, isso ocorre devido ao fato de os dois princi-
pais processos que englobam as práticas letradas — o ler e o
escrever — serem habilidades a se desenvolver, sobretudo, no
ensino dessa disciplina.
Assim, quando pensa nas práticas democráticas como ine-
rentes ao processo de democratização tanto da escola, em nível
micro, quanto da sociedade, em nível macro, Paulo Freire atri-

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bui à linguagem — e, nela, ao aprendizado crítico da leitura e


da escrita como práticas sociais — um lugar de realce: “[...]
mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo.
A relação linguagem-pensamento-mundo é uma relação dia-
lética, processual, contraditória” (FREIRE, 2011b, p. 94).

O ensino da leitura e da escrita da palavramundo

A escrita e a leitura, embora complementares, são processos


distintos e de especificidades próprias. Conforme ressalta Soa-
res (2012, p. 48), ambos os fenômenos mobilizam diferentes
habilidades e conhecimentos no processo de aprendizagem,
não sendo o foco deste trabalho adentrar profundamente nes-
sa distinção. Considerando o contexto de ensino de LP, fica
claro o desafio que se impõe, principalmente porque cada ha-
bilidade dessa apresentada, e outras mais, se redimensiona de
acordo com cada contexto, com cada natureza humana, exi-
gindo daquele que educa um olhar assaz refinado para procu-
rar atender às demandas linguísticas dos discentes.
Atestado o laborioso trabalho, fato é que ter o domínio de
tais habilidades revela-se, no mínimo, essencial para se viver
dignamente na sociedade atual. É o caráter engajado que Soa-
res (1989) confere à função do ensino de LP que, dentre outras,
pode promover e fortalecer a inserção dos sujeitos em ativas
participações sociais — seja lendo, compreendendo e opinan-
do com propriedade sobre uma notícia de jornal, seja desem-
penhando diversificados papéis em ambientes fortemente
marcados pela cultura grafocêntrica. É impraticável conceber
a abordagem de leitura e escrita na sala de aula da Educação
Básica fora de uma criticidade, sobretudo quando essa é con-

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dição para a formação visando “ao exercício da cidadania” nes-


sa etapa da educação (BRASIL, 1996).
Num primeiro momento, o sintagma leitura crítica pode
soar redundante. Optou-se, contudo, por incorrer em uma ex-
plicitação dessa natureza para não negar, por exemplo, que
ainda existam práticas de leitura dissociadas do conceito de
criticidade. Em um grau mais preocupante, que existam práti-
cas de ensino de leitura nessa circunstância. Decompondo tal
sintagma, criticidade é um estado permanente alcançado por
um indivíduo que percebe e se percebe no mundo. Estado esse
que permite a reflexão, a tomada de decisões — e até mesmo a
não tomada, se for o caso — de forma consciente. No cenário
da educação, mais especificamente da educação de adultos,
Paulo Freire, mais uma vez, é um referencial que aliou os con-
ceitos de criticidade e conscientização às práticas educativas.
A abrangência do trabalho de Freire ultrapassa as barreiras
da disciplinaridade. O “modo”2 como educava perpassava
múltiplos conteúdos disciplinares, isso porque, como já dito, o
ponto de partida do processo de ensino-aprendizagem era a
experiência que os educandos traziam do mundo, da vida —
lugar onde tais conteúdos estão postos de uma forma não sis-
tematizada (FREIRE, 1979). No entanto, aponta-se, neste tex-
to, a disciplina LP como aquela com a qual o educador
demonstrou maior proximidade em sua prática educativa, até
porque Paulo Freire devotou grande parte de sua trajetória à
alfabetização de adultos. E, como visto, as habilidades compre-
endidas na ação de alfabetizar fazem parte de um núcleo maior
de competências a serem desenvolvidas por meio do ensino de
2
Segundo Freire-Dowbor (2000), filha do educador, Freire não gostava de
dizer que tinha um “método” por não se reconhecer reproduzindo determi-
nadas ações sistematizadas no ato de educar.

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língua materna. Ademais, em todo seu percurso na história da


educação brasileira, a considerável importância dedicada ao
estímulo à leitura não o aproximaria mais de outra área do co-
nhecimento senão a do ensino de LP — disciplina, inclusive,
lecionada pelo mestre (FREIRE, 2011a).
Por essas e outras razões, visando ao desenvolvimento da
competência leitora, recorre-se ao tripé estabelecido por Freire:
leitura — conscientização — criticidade. Este constitui, assim,
um trinômio indissociável se o objetivo do ensino de LP for pro-
mover essa competência para uma formação cidadã, para que o
indivíduo possa se inserir letradamente nos diversos espaços e
contextos da sociedade, transformando-a, transformando-se.
Freire (2011a) via, na produção da vida e do mundo, a leitura e
a escrita (não obstante a leitura do mundo preceda a leitura da
palavra). Nesse sentido, o processo de ensino-aprendizagem da
língua é compreendido pelo viés da transmutação da transitivi-
dade ingênua para a crítica, ou seja, para uma formação que
desaliena e desenvolve a consciência histórica e crítica.
Os processos de leitura e escrita, nesse sentido, compõem
uma das esferas do trabalho realizado pelo educador, consti-
tuindo-se não apenas como elemento da formação para a
competência linguística, mas também como formação para as
práticas sociais letradas, distanciadas de uma concepção ins-
trumental de língua. Nesse viés, se a relação do sujeito com a
língua que fala é determinante nas maneiras de se ser e de se
estar no mundo e no reconhecimento de que se pode ser cida-
dão de sua própria língua, essa cidadania se entrelaça à ideia
de formação dos sujeitos conscientes de sua situação na reali-
dade posta e atuantes criticamente nela. Um dos objetivos da
educação (como emancipação humana) e da escola (ambiente
privilegiado dessa esfera sociopolítica) é, por conseguinte, o

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Formação do sujeito crítico letrado

ensino da língua materna. Essa questão, para Gagné (2002),


pode parecer demasiado simples, porém abarca muitas com-
plicações. Para ele, destarte, há duas orientações comuns ao
ensino de língua materna, e nela, o ensino da leitura e da escri-
ta: a pedagogia prescritiva centrada no código e a pedagogia
centrada no uso do código.
A primeira orientação se resume à “[...] perspectiva da
qualidade da língua que é normativa e frequentemente purista.
Esta perspectiva, centrada na escrita, concebe a língua como
um código homogêneo, único e intrinsecamente superior”
(GAGNÉ, 2002, p. 196-197). Desse modo, Gagné (2002), ao
encontro da discussão de Bagno (2002b), fundamenta a exis-
tência do preconceito linguístico: a discriminação contra o de-
sempenho linguístico considerado inferior, pois distante do
desempenho padrão privilegiado pela escola, pela mídia e por
outros espaços de prestígio. Nesse viés, a criança é vista como
destinatário do ensino, de acordo com a concepção bancária
discutida por Freire (2005c, 2006).
A segunda orientação reconhece que o código linguístico,
por ser arbitrário, pressupõe a existência das variedades de uso,
as quais são aceitáveis, pois situadas em determinados contextos
e constituídas de específicas funções. Mas também há um po-
rém nessa abordagem: “[...] a vontade de promover muito mais
a libertação da palavra e a emancipação das classes populares do
que a aquisição da língua padrão” (GAGNÉ, 2002, p. 208). Na
verdade, segundo esse autor, deve haver uma espécie de equilí-
brio entre as duas orientações. A escola, como instituição privi-
legiada no ensino da língua, é responsável tanto pela promoção
da aquisição do código escrito e pelo registro formal do código
oral, quanto pela valorização das variedades linguísticas de re-
gistro informal. E, nesse debate, recorre-se a Freire (2006):

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Textualidades em Aula

A linguagem é culturalmente um dos importantes aspec-


tos do processo de democratização das sociedades. Natu-
ralmente, quando falamos em linguagem popular, cor-
remos o risco, de um lado, de cair no elitismo e
considerar a expressão linguística das classes popula-
res como algo feio e inferior, de outro, de cair no basis-
mo e negar a importância e a própria necessidade que
as classes populares têm de dominar a sintaxe domi-
nante. Necessidade de dominar a sintaxe dominante
para não apenas sobreviver mas também para melhor
lutar pela transformação da sociedade malvada e injus-
ta em que são humilhadas, negadas e ofendidas. (FREI-
RE, 2006, p. 139, grifo nosso)

Paulo Freire, em diversos momentos, alerta para a metáfora


da “curvatura da vara” (SAVIANI, 2002): “[...] nem a leitura da
palavra apenas, nem só a do mundo” (FREIRE, 2006, p. 63).
Não se deve, assim, confinar o ensino da língua ao ensino da
codificação e decodificação da palavra escrita, ou seja, a uma
alfabetização desonerada do letramento, desonerada das práti-
cas sociais letradas. Para Freire (2011a), alfabetização é, ao mes-
mo tempo, ato do conhecimento, criador e político, leitura da
palavramundo, cuja compreensão crítica se antecipa e se alonga
à realidade concreta, já que “[...] a leitura do mundo precede a
leitura da palavra [...]. A compreensão do texto a ser alcançada
por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o
texto e o contexto” (FREIRE, 2011a, p. 19-20). A leitura da pa-
lavra, enfim, não rompe com a leitura da palavramundo.
Zuin e Reyes (2010) procuraram investigar as contribui-
ções da teoria linguístico-crítica (a obra de Vygotsky), da teo-
ria da enunciação (a obra de Bakhtin) e da teoria de Paulo

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Formação do sujeito crítico letrado

Freire para o ensino da língua materna, para quem, segundo as


autoras, a linguagem é uma questão central. As pesquisadoras
enfocam a discussão na questão da dialogia como processo
fundamental nas relações de ensino-aprendizagem. No caso, o
diálogo problematizador é o que levará o homem a tornar-se
consciente da realidade concreta por ele vivenciada.
Porém, para além disso, Zuin e Reyes (2010) argumentam
que a questão da tomada de consciência da palavramundo, da
relação intrínseca da palavra com o mundo, coloca Paulo Frei-
re em consonância com os estudos de Bakhtin. Ao afirmar que
“todos os diversos campos da atividade humana estão ligados
ao uso da linguagem” (BAKHTIN, 2011, p. 261), o filósofo
russo estabelece entre o homem e a sua ação de ser no mundo
um elo indissociável conduzido pela linguagem, uma vez que
esta perpassa todas as suas manifestações. Nessa ação de mani-
festar-se, está pressuposta outra (re)ação, a de interagir com o
outro. Os sujeitos são constituintes e constituídos de lingua-
gem, pois, em tal relação dialética, imprimem e se deixam im-
primir “marcas” da natureza humana nos diversos campos de
atividade em que transitam. Tamanho processo só é possível
de se dar no plano das relações sociais, e, por esse motivo, po-
de-se atribuir-lhe um caráter sócio-histórico (BAKHTIN,
2009, p. 15).
Em consonância, a língua figura de modo coerente ao ser
compreendida como portadora dos mesmos atributos, isto é,
intrinsecamente relacionada às atividades sociais e históricas de
que os sujeitos participam. Apesar da faceta particular de cada
usuário de uma língua, sua subsistência somente se sustenta na
coletividade, na interação com o social, conforme deslinda
Marcuschi (2008, p. 61, grifos do autor): “Assim, a língua é vista
como uma atividade, isto é, uma prática sociointerativa de base

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Textualidades em Aula

cognitiva e histórica. Podemos dizer, resumidamente, que a lín-


gua é um conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente
situadas”. Leitor de Bakhtin, Marcuschi — teórico brasileiro de
referência no campo da Linguística Textual — dentre outras
concepções de língua apresentadas, opta por entendê-la como
“atividade”, conferindo-lhe um caráter dinâmico, interativo
que, em funcionamento, opera como um mecanismo utilizado
pelos seus usuários quando necessitam expor ao outro suas in-
tenções em determinadas circunstâncias na vida.
Se a língua é produto da história e está marcada pelos usos
e pelos espaços sociais em que ocorrem tais usos (GERALDI,
2009), a produção da vida e do mundo está relacionada ao en-
sino da LP. Na escrita do texto A importância do ato de ler, o
regresso de Freire (2011a) às experiências da infância no Reci-
fe, (re)criando e (re)vivendo a experiência pela palavra, pelo
texto escrito, é uma metáfora a essa questão, quando também
defende o estímulo à escrita da alfabetização à pós-alfabetiza-
ção, como participação crítica e democrática dos sujeitos no
ato do conhecimento: “[...] é preciso, na verdade, que a alfabe-
tização de adultos e a pós-alfabetização, a serviço da recons-
trução nacional, contribuam para que o povo, tomando mais e
mais a sua História nas mãos, se refaça na feitura da História”
(FREIRE, 2011a, p. 53). Aqui, é possível fazer menção à educa-
ção linguística de que trata Bagno (2002a) e Travaglia (2011)
como um dos componentes do pensamento de Paulo Freire.

Um dos problemas cruciais da educação brasileira — a


erroneamente chamada evasão escolar, pois que é, no
fundo, expulsão escolar, é fundamentalmente político-
-ideológico. A solução deste problema passa pela for-
mação científica do educador, que implica uma com-

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Formação do sujeito crítico letrado

preensão crítica da linguagem, de sua aquisição, de sua


produção social e histórica, mas também passa por
uma compreensão política e ideológica da linguagem
que perceba por isso mesmo o caráter de classe da fala.
Os alarmantes índices de reprovação nas classes de al-
fabetização têm que ver, de um lado, com o despreparo
científico dos educadores e educadoras, de outro, com
a ideologia elitista que discrimina meninas e meninos
populares. (FREIRE, 2012, p. 77, grifos do autor)

Freire (2011a) reflete sobre como o ensino de leitura pode


ser realizado de maneira significativa. Uma constante é a pers-
pectiva de que tal caminho, por estar essencialmente ligado à
forma como os indivíduos se relacionam com o mundo, neces-
sita ocorrer pela via da criticidade, a fim de que mude justa-
mente a forma como tais sujeitos (não) se veem no mundo.
Sobre a compreensão crítica do ato de ler, o autor explicita ser
um processo contínuo que se perpetua na posição que a lin-
guagem ocupa na relação homem-mundo. Giroux (1997), por
exemplo, defende que a pedagogia da escrita e a pedagogia do
pensamento crítico estão ligadas dialeticamente, no sentido de
que a “[...] pedagogia da escrita pode ser usada como veículo
de aprendizagem que auxilie os estudantes a aprender e pensar
criticamente” (GIROUX, 1997, p. 91). Para Freire (2011b),
tanto a leitura quanto a escrita, processos interligados e contí-
nuos, são dispositivos legitimados, portanto, para se chegar à
formação do sujeito crítico.
Goulart e Gonçalves (2013) também se referem ao pensa-
mento de Paulo Freire quando discutem a alfabetização não
limitada à base alfabética da língua, mas extrapolada a seu sen-
tido político-social. Por um lado, a aprendizagem da escrita

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Textualidades em Aula

para Freire (2011a), segundo essas autoras, só tem valor social


se ampliada à leitura de mundo construída pelo sujeito crítico.
Por outro lado, inerente a isto, a escola, como sendo o primeiro
lugar público em que o sujeito se expõe enquanto educando,
precisa considerar essa leitura de mundo e permitir e provocar
a circulação entre as instâncias pública e privada da vida (GE-
RALDI, 2009).
Essa forma como é concebido o ensino de leitura e escrita
aponta para a compreensão de que o processo de criticidade é
passível de construção, de estímulos em situações de aprendi-
zagem, assim como o contrário também é possível. A iniciativa
de optar por uma educação que conduza os discentes a uma
postura crítica e, portanto, emancipatória de uma condição é
uma postura engajada e política de que Freire não abre mão. É
o que chama de “educação como prática de liberdade” (FREI-
RE, 1979, p. 15).
O reverso dessa concepção, no entanto, também é passível
de ocorrer. Ao optar por práticas educativas que não estimu-
lem esse mover de perspectiva dos educandos, sendo, portan-
to, práticas alienantes, só se reforça o status quo da natureza
humana. Apesar de a espécie humana ser a única com esse po-
tencial de refletir sobre sua condição no mundo — práxis hu-
mana —, isso somente ocorre se for estimulado. Freire (1979,
p. 15) complementa: “A conscientização implica, pois, que ul-
trapassemos a esfera espontânea da apreensão da realidade,
para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá
como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma po-
sição epistemológica”.
Nessa perspectiva, o ensino de LP e, por decorrência, o en-
sino de leitura e escrita assumem um papel de extrema impor-
tância, o de levar os sujeitos a refletir sobre a realidade, bus-

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Formação do sujeito crítico letrado

cando a compreensão dos fenômenos para, então, com base


nesse conhecimento, serem capazes de estabelecer reflexões
críticas, próprias de cidadãos conscientes a respeito de seu pa-
pel na sociedade. Em consonância com Soares (1989), Britto
(2012) defende que o ensino de LP de modo algum pode ser
cogitável fora da esfera da criticidade por se constituir uma
ferramenta fundamental de inclusão do indivíduo em situa-
ções de participação cidadã na sociedade. Em relação à com-
petência leitora, deixa claro ser esta uma condição básica de
inserção social dos sujeitos: “[...] contribuindo decididamente
para sua maior produtividade, intervenção política e social,
organização na vida prática” (BRITTO, 2012, p. 35).
O fio condutor que liga esse autor a possíveis diálogos com
Freire (em toda sua obra) e Soares (principalmente SOARES,
1989) é certamente a consciência engajada de que o ensino de
língua materna — em todos os estágios de aprendizagem —
pode conferir condições para o exercício de cidadania, para a
tomada consciente de posicionamentos políticos. Para tais au-
tores, tal ensino não está dissociado de um processo histórico
de luta de classes, respeitante à concepção marxista do termo.
Britto (2012, p. 88) sintetiza tal reflexão ao afirmar que, histo-
ricamente, o domínio das habilidades de leitura e de escrita
sempre prevaleceu ligado aos grupos que detêm o maior poder
político e econômico. Perseguir, portanto, o objetivo de expan-
dir tal domínio para o uso de toda a sociedade é um significa-
tivo passo em direção a uma condição de vida mais igualitária
socialmente. Nesse contexto, Britto (2003, p. 9) afirma que ter
ciência de que os usos sociais da leitura e da escrita proporcio-
nam “importantes modificações na vida das pessoas” já deve-
ria ser suficiente para que a escola — instituição social oficial-
mente responsável por ofertar a educação formal — adotasse a

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Textualidades em Aula

postura de colaborar para esse sentido, de promover, de fato,


uma formação cidadã.
Decerto, no processo educativo, há de se reconhecer que a
prática docente e a escolar são ações distintas, já que a segunda
está mais relacionada a uma cultura escolar, a todo um modus
operandi que estabelece extensivamente outras mais ligações.
No entanto, quanto à primeira, na função de educador, de
agente diretamente responsável pela construção da aprendiza-
gem em sala de aula, a opção por um ensino que priorize o seu
potencial de transformação social é uma atitude que somente
convém ao próprio educador. A adesão de tal postura pela es-
cola é, obviamente, um arrimo sempre bem-vindo.

Considerações e inquietações finais

É terrível que o homem se resigne tão facilmente com


o existente, não só com as dores alheias, mas também
com as suas próprias.
Todos os que meditaram sobre o mau estado das coisas
recusam-se a apelar à compaixão de uns por outros. Mas a
compaixão dos oprimidos pelos oprimidos é indispensável.
Ela é a esperança do mundo. (BRECHT, 2000, p. 222-223)

Bertold Brecht (1898-1956), dramaturgo e poeta alemão,


trouxe, no bojo de seus poemas e de suas peças teatrais, a críti-
ca às relações humanas arroladas na sociedade ainda vigente.
A revolução conferida ao teatro pelo célebre artista do século
XX é uma das marcas de sua produção, a que imprimiu a fun-
ção da conscientização. Nestas considerações finais, decidiu-
-se trazer à baila esse fragmento de um de seus poemas por

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Formação do sujeito crítico letrado

entendê-lo em intersecção com os escritos de Paulo Freire,


para quem “[...] a esperança é um condimento indispensável à
experiência histórica” (FREIRE, 1996, p. 72). Em A pedagogia
do oprimido, Freire (2005c), na compreensão da História como
tempo de possibilidade, atribuiu aos oprimidos (sem excluir a
discussão sobre classe social) um papel fundamental para a
transformação da sociedade, porque esses sujeitos, que sofrem
com agudeza os males sociais — da fome do pão à fome da
leitura —, como massa organizada, são os que possuem a “rai-
va justa” (FREIRE, 1996) para o enfrentamento dos limites do
capital. É em direção a esse mesmo fluxo argumentativo que
caminha Brecht (2000), ao conferir à compaixão dos oprimi-
dos pelos oprimidos a esperança do mundo.
Nesse contexto, reforça-se que o debate sobre democracia,
democratização e práticas democráticas é extremamente ne-
cessário, pois democracia, valor universal, compõe o “inédito
viável”, a utopia que se fará possível pela democratização, pela
invenção democrática da sociedade, embora, no contexto bra-
sileiro, como dito, as experiências democráticas tenham sido
negadas ao povo. Defende-se, aqui, que esse sonho é, portanto,
possível, se respaldado por uma concepção democrática de
educação, por pedagogia dos homens livres, instaurada nas
práticas democráticas, que podem ser privilegiadas na educa-
ção escolar comprometida com a realidade concreta.
Para tanto, é imprescindível desenvolver a linguagem das
massas de trabalhadores, em sua transmutação da transitivida-
de ingênua para a crítica, pensando na atuação concreta dos
oprimidos sobre a realidade posta, até porque, como afirma
Freire (1996), a vocação ontológica do homem é a de ser sujei-
to, e não objeto. Nesse sentido, a consciência histórica e crítica,
indispensável para se pensar a transformação, precisa ser enri-

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Textualidades em Aula

jecida pela gradação, não linear, da ingenuidade à criticidade,


fomentada por um trabalho educativo crítico (não apenas no
sentido do criticar para conhecer, mas no sentido de criticar
para recriar) e democrático (não no sentido reacionário do
termo, tornado, muitas vezes, verbalismo em detrimento da
práxis), embasado em um comprometimento com as práticas
sociais letradas. Desse modo, defende-se que o ensino da leitu-
ra e da escrita compõe um aspecto deveras importante no pro-
cesso de democratização, especificamente por intermédio de
um ensino de LP que não dicotomize o ler-escrever, ou seja,
não fragmente a palavramundo — e que não se ancore numa
pedagogia centrada apenas no código nem em uma pedagogia
centrada apenas nos usos desse código, mas que se comprome-
ta, de fato, com a formação do sujeito crítico letrado.
Trouxeram-se a propósito, neste artigo, apenas alguns vie-
ses da abordagem de Paulo Freire no que toca a democracia, a
linguagem e a educação, sem pretender esgotar essa discussão.
Apresentaram-se apenas alguns pontos considerados essen-
ciais para se compreender a prática educativa (que não é neu-
tra) — e nela a aprendizagem da leitura e da escrita por um
viés crítico — como uma porta aberta à passagem do ímpeto
transformador. Sem dúvida, valem a pena mais estudos sobre
o tema em debate.

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Notas sobre o silêncio: reflexões sobre o poético
no espaço da sala

Ana Lucia Soutto Mayor


Docente aposentada do CAp/ UFRJ
Pesquisadora da EPSJV/FIOCRUZ

A linguagem desobedece naquela hora em que os si-


lêncios assumem a duração do tempo e os sonhos
adormecem a exigência substantiva; na hora em que
a perplexidade governa o olhar e dá passagem ao
desconhecer primeiro; na hora da morte tesa e do de-
sejo úmido. A linguagem desobedece naquela hora
em que a confusão é a única possibilidade da alma,
na hora em que parece que a passagem da vida é
detida pelas palavras e o roçar da língua demora
mais de um século para pronunciar-se.
Carlos Skliar

Um convite, uma proposta, um desafio: pensar textualidades


no ensino de Literatura... Hoje. Século XXI. Um mundo atra-
vessado por palavras, imagens, sons, ruídos, redes, múltiplas

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Textualidades em Aula

espacialidades e temporalidades. Texto como teia de discursos


que se entrecruzam, sujeitos e objetos atravessados, ressignifi-
cados e reinventados a todo instante. Mundos em rotação pa-
ralela e permanente: imersos em um gigantesco hiperlink esta-
mos... Enfim: aceito a empreitada, topo o risco e arrisco um
giro de cento e oitenta graus. Fecho meus olhos-câmera, em
zoom, para dentro do espaço da sala. E subverto a pauta, pro-
pondo um desvio: em lugar do “ensino da literatura”, a “experi-
ência do poético”. Assim: “textualidades na experiência do po-
ético — notas sobre o silêncio no espaço da sala”.
O desvio da pauta não é apenas uma questão de estilo, uma
subversão in ou um capricho inusitado. Trata-se, antes, de uma
aposta e de uma experiência ou, ainda, uma aposta na experi-
ência, em uma experiência radical de desestabilização de luga-
res e de rotas predeterminadas. Uma profissão de fé em senti-
dos outros para um território consagrado: a sala de aula. Uma
tentativa de instaurar silêncios, em curtos-circuitos de corpos
e textos, sons e palavras, deslizes e fricções. Alteridades em
xeque, em choque. Demasiadamente humanos: alunos e a pro-
fessora — no risco, na aposta, na experiência...
A literatura e o poético — uma questão de lugares, de in-
terseções e de escolhas. Na série do literário, a opção pelos tex-
tos poéticos: o poema, a prosa, a imagem (do filme, da fotogra-
fia). Poiesis na raiz: criação, invenção — do texto, de si, do
outro. Do silêncio do poético ao silêncio originário de toda
criação: circuitos, dobras, travessias. Antes do mergulho nas
sonoridades roucas desses fenômenos, voltar-me para as di-
mensões da experiência. Tomá-la como condição e como des-
tino. Pensá-la como um locus privilegiado, um espaço de sin-
gularidades, aprendizados e reinvenções... Definida por Jorge
Larrosa como “... o que nos passa, o que nos acontece, o que

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Notas sobre o silêncio: reflexões sobre o poético no espaço da sala

nos toca”(2002, p. 21), a experiência surge como desafio nos


diferentes espaços da contemporaneidade, marcada pelo ex-
cesso de informação, pela falta de tempo e pela sobrecarga de
demandas. Em contraponto à fragmentação e à diluição dos
saberes no mundo de hoje, a experiência atualiza-se como
uma potência dissonante, instaurando uma dimensão outra do
tempo — um recorte, uma suspensão, uma fenda. Nas palavras
de Larrosa,

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconte-


ça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um
gesto que é quase impossível nos tempos que correm:
requer parar para pensar, parar para olhar, parar para
escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e es-
cutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais deva-
gar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, sus-
pender o juízo, suspender a vontade, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza,
abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acon-
tece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a
arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço. (2002, p. 24)

Se tomarmos as palavras de Larrosa, contextualizando-as


no espaço da sala de aula e seus múltiplos tempos, pode-se
dimensionar o desafio da experiência nas aulas de Literatura,
assumindo esse território como espaço para o contato com o
poético, com todas as implicações inerentes a esse encontro.
Em outros termos: como instaurar a interrupção, o intervalo, a
suspensão no correr dos tempos de cinquenta minutos, pres-
sionados — professores e alunos — por grade horária, conteú-

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Textualidades em Aula

dos programáticos, avaliações, enfim, todo um protocolo que


carimba e legitima as atividades escolares? Como reestabelecer
pactos, supondo a sala de aula como lugar de leitura, de leitu-
ras — do texto, do mundo, de si... —, desalojando carteiras,
alternando vozes, assumindo o silêncio como ponto de partida
e porto de chegada? Como, enfim, lançar-se ao risco do não
controle desses processos, simultâneos e caleidoscópicos, sub-
vertendo a lógica dos planos, dos fechamentos de unidades, do
encadeamento de conteúdos, da seleção minuciosa de meto-
dologias, em prol de um modo desarmado, sutil e cuidadoso
de leitura do texto como um barco... nós, leitores, embriagados
de tanto mar, à deriva, nas rotas dos sentidos...
Quem são esses sujeitos-leitores — nós, alunos e professo-
res, navegantes singrando em oceanos nunca dantes desbrava-
dos?... Outra vez, as reflexões de Larrosa conversam com mi-
nha visão acerca dos lugares da experiência (do poético), das
experiências na sala de aula, ao esboçar um retrato desses su-
jeitos — em si mesmos, corpos abertos ao mundo, dispostos,
atentos, ariscos, em risco iminente....

Em qualquer caso, seja como território de passagem,


seja como lugar de chegada ou como espaço do acon-
tecer, o sujeito da experiência se define não por sua
atividade, mas por sua passividade, por sua receptivi-
dade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-
-se, porém, de uma passividade anterior à oposição
entre ativo e passivo, de uma passividade feita de pai-
xão, de padecimento, de paciência, de atenção, como
uma receptividade primeira, como uma disponibilida-
de fundamental, como uma abertura essencial. O su-
jeito da experiência é um sujeito “ex-posto”. Do ponto

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Notas sobre o silêncio: reflexões sobre o poético no espaço da sala

de vista da experiência, o importante não é nem a po-


sição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição”
(nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nos-
sa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa
maneira de propormos), mas a “ex-posição”, nossa ma-
neira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vul-
nerabilidade e risco. (LARROSA, 2002, p. 24-5)

Então: diante do texto poético, cada sujeito na sala é um


mapa de possibilidades, incertezas e alumbramentos. Singula-
ridades dispostas em um conjunto: o eterno desafio do movi-
mento do todo, sem perder de vista o cada um. A comunhão
do texto e o saboreá-lo de maneira particular — o papel do
professor-regente, maestro e músico a um só tempo, agencian-
do imagens em palavras e as sonoridades revoltas no silêncio
de dentro da sala...
Mas o que, de fato, esses sujeitos experienciam? Como a
partilha do poético se opera no espaço da sala de aula? De que
modo colher o silêncio da poesia, em silêncio, com o silêncio
acolchoando a sala? Antes de pensar as condições dessa captu-
ra, de um deixar-se capturar pelos vazios do texto, é preciso
olhar para a natureza desse saber que se instaura veladamente
na sala — a orquestra é una, mas os instrumentos são múlti-
plos... Esse saber que se origina na experiência de um texto
poético tem a textura das águas: um que encharca, envolve,
inunda... Retorno às palavras de Jorge Larrosa:

[...] trata-se de um saber que revela ao homem concre-


to e singular, entendido individual ou coletivamente, o
sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de
sua própria finitude. Por isso, o saber da experiência é

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Textualidades em Aula

um saber particular, subjetivo, relativo, contingente,


pessoal. [...] O acontecimento é comum, mas a expe­
riência é para cada qual sua, singular, e de alguma ma-
neira, impossível de ser repetida. O saber da experiên-
cia é uma saber que não pode ser separar-se do
indivíduo concreto em quem encarna.(2002, p. 27)

Um saber singular na travessia do poético: uma experiên-


cia de emudecer(-se). O que resta de um texto poético em nós,
ao fim da travessia? Como aferir “conhecimentos”, nesse mo-
mento primeiro, quando o que contam são os vestígios, os ras-
tros, os restos sobre os quais nada se pode dizer?... Penso em
Bakhtin e nos conceitos de voz, discurso e polifonia por ele sis-
tematizados e ouso retomá-los nessa cena: o espaço da sala. A
perspectiva bakhtiniana pressupõe o silêncio como um calar
de vozes, para que o dialogismo possa se instaurar no âmbito
do discurso de um só sujeito. Como explica Marília Amorim,

A intensidade dialógica dá-se como tensão interior à


palavra de uma só pessoa e, para ouvi-la ou fazê-la fa-
lar, é preciso calar todo bate-papo, todo diálogo exte-
rior. Parece-me que é nesse ponto que o conceito de
voz torna-se mais preciso, e que ele deixa de coincidir
com a ideia de pessoa. O dialogismo da escrita e o dia-
logismo da leitura supõem ambos uma cena muda; a
primeira coisa que autor e leitor têm a compartilhar é
o silêncio.(2002, p. 14)

Resguardados os silêncios do autor e do leitor — do pro-


fessor e dos alunos, acrescentaria eu... —, torna-se necessário
avançar na direção de um silêncio outro, aquele provocado pe-

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Notas sobre o silêncio: reflexões sobre o poético no espaço da sala

los vazios do texto, uma experiência de encontro com o indizí-


vel, com a alteridade radical do texto e do outro de si que
emerge — náufrago... —, finda a travessia... Um irredutível do
texto — aquilo que ele não quis dizer...; antes, aquilo que o
texto calou, lançando-nos, leitores, no abismo, em vertigem,
bêbados de tanto fulgor... Não o silêncio bakhtiniano, das vo-
zes caladas, para a escuta dos discursos que atravessam uma só
voz; antes, um silêncio de outra tessitura, um enigma, uma es-
finge, uma charada...

... o que não se encontra em Bakhtin é o silêncio daquilo


que nunca foi dito nem subentendido e que não se con-
segue dizer. O silêncio que permanece, mesmo para o
leitor, como uma ausência que ele não pode preencher
ou como uma interrogação a qual, baseado no texto, ele
não pode tentar responder.(AMORIM, 2002, p. 14)

Para tentar possibilitar esse percurso, através do qual alu-


nos e professor consigam atingir o coração selvagem do texto,
podem-se tomar duas categorias de textualidade: a situaciona-
lidade e a aceitabilidade, buscando compreender de que modo
cada uma delas pode favorecer a experiência do poético em
sala de aula.
A situacionalidade pode ser compreendida como a relação
entre o contexto e o texto, na medida em que sua interpretação
depende das circunstâncias de sua produção e de sua recepção.
Em função das questões que aqui levanto, acerca da experiên-
cia do poético em sala de aula, interessa-me pensar a recepção
como instância decisiva para essa experiência e as tensões que
atravessam os contextos em que os textos poéticos se inserem
na sala de aula.

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Textualidades em Aula

Há que se pensar, por exemplo, nos enquadramentos que a


história da literatura propõe — estilos de época, gêneros literá-
rios, estilística dos autores, entre outras... — como molduras
que, muitas vezes, tornam as condições de recepção do texto
poético bastante inóspitas. Uma espécie de olhar de fora para
dentro do texto inverte as condições de mergulho — é necessá-
rio começar a navegação de dentro para a fora, deixando-se
levar pelas imagens, pelas sonoridades, pelos estranhamentos
provocados... Um corpo a corpo direto, na fricção das pala-
vras, no susto das metáforas improváveis... Nesse sentido, por
mais que um texto poético se encontre presente em linhagens
de diversas ordens e admita aproximações intertextuais múlti-
plas, cada um deles instaura seu próprio mundo, criando, por
sua intrínseca veia insubordinada e transgressora, referentes
singulares e imagens novas, no processo de configuração de
paisagens poéticas. Não há como negar que determinadas
marcais contextuais de um texto poético podem e devem ser
iluminadas pelo professor, de maneira a ampliar não somente
referências histórico-culturais, mas também alargar as poten-
cialidades expressivas do texto em questão. Todavia, o que pre-
tendo sublinhar aqui é a necessidade de tornar a experiência
de leitura e de recepção do texto poético não subordinada às
amarras contextuais quase sempre impostas pelos parâmetros
conteudísticos determinados pela história da literatura. Trata-
-se, enfim, de tentar preservar a condição soberana do poético,
para além de contextos de que ordens forem.
Outro fator de textualidade que me interessa examinar
aqui é a aceitabilidade, entendida como um complemento da
intencionalidade. Esse fator de textualidade procura dar conta
da acolhida do texto pelo seu receptor, isto é, das condições
para que o leitor possa ser mobilizado pelo texto, aceitando

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Notas sobre o silêncio: reflexões sobre o poético no espaço da sala

seu “convite” a experimentá-lo, em uma perspectiva comuni-


cacional. Na verdade, por mais que se possa esperar que um
texto poético seja “aceito” pelo seu leitor, muitas vezes ou qua-
se sempre, a sua imediata “recusa” é que possibilita, em nível
mais profundo, a experiência necessária e fundante de estra-
nhamento, de perplexidade, de desestabilização do olhar, o que
nos levaria a pensar, considerando a natureza dos textos poéti-
co-literários, em uma antitextualidade, como problematiza
Paulo Sérgio Marques:

... o texto poético procura afirmar-se como indepen-


dente dos sujeitos em comunicação. A arte e a literatura
recusam-se a fazer um objeto de comunicação e serem
apropriadas como manifestação de um logos entre in-
terlocutores. Pelo contrário, fazem a apologia do silên-
cio e da exaustão de toda comunicabilidade (CON-
NOR, 2002, p.94) [...] Para os novos poetas, a Poesia é
uma espécie de linguagem geral da humanidade: “Para
os modernos, a obra deve ter uma função de conheci-
mento e de autoconhecimento, que só pode ser exerci-
da se ela disser respeito a todos os homens” (PERRO-
NE-MOISÈS, 1998, p.170). Toda obra poética quer,
pois, ser vista como uma mensagem independente de
qualquer situação de consumo e produção. (2009, p. 95)

No extremo, pensar as textualidades na experiência do po-


ético nas aulas de Literatura parece indicar uma intransitivida-
de constitutiva dos textos dessa natureza, o que, no limite, im-
plicaria rever expectativas e procedimentos junto aos
educandos, assumindo o espaço da sala de aula como um locus
privilegiado de escutas, espantos, alteridades. Um território

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Textualidades em Aula

para o encontro com os outros, com o outro em nós — promo-


ver uma fenda em temporalidades preestabelecidas, em espa-
ços rigidamente demarcados, reinventando lugares, subver-
tendo hierarquias, redesenhando mundos...

Educar seria criar alteridade todo o tempo. Outros au-


tores chamam isso de outra forma; podemos abrir um
orifício na ideia do normal. E isso também é acabar
com a mesmice. A pedagogia do acontecimento; a pe-
dagogia das experiências, das narrativas, mas todas
elas — me parece — se voltam para uma questão do
ato de educar que seria o fato de poder criar alteridade,
o que na síntese seria como ser outras coisas diferentes
daquilo que já pensamos que somos e como a educa-
ção poderia contribuir para além de nós mesmos.
(SKLIAR, 2012, p. 317)

A possibilidade de acesso a esse duplo de nós, alunos e pro-


fessor, irmanados em um processo de contato com o texto po-
ético no espaço da sala, pressupõe um corte na linearidade, na
homogeneidade da experiência, uma vez que cada um se cons-
titui em um sujeito-leitor, na intimidade desse encontro com a
palavra — uma intimidade que não admite controle, normas,
parâmetros. Gostaria de sublinhar, aqui, minha aposta na con-
dição de leitor, que precisa ser assumida como uma condição
primeira, indispensável, fundante de toda experiência que se
pretenda perene. O tempo da leitura — em sala de aula ou em
qualquer outro espaço... — precisa ser compreendido, necessa-
riamente, como um tempo intervalar, um hiato, uma distensão
temporal a ser habitada por espantos, descobertas, encanta-
mentos, silêncios. Um tempo afinado com um entendimento

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Notas sobre o silêncio: reflexões sobre o poético no espaço da sala

de educação não linear, apontada para um futuro progressivo


e previsível; antes um tempo vinculado a descontinuidades, a
aberturas, a um porvir... Outra vez, nas palavras de Jorge Lar-
rosa:

Gostaria [...] de esboçar uma ideia de educação como


figura de descontinuidade: pensar a transmissão edu-
cativa não como uma prática que garanta a conserva-
ção do passado ou da fabricação do futuro, mas como
um acontecimento que produz o intervalo, a diferença,
a descontinuidade, a abertura do porvir. [...]
Enquanto o futuro se conquista, o porvir se abre. En-
quanto o futuro se anuncia ruidosamente, o porvir,
como dizia Nietzsche, “vem com passos de pomba”. E
enquanto o futuro nomeia a relação com o tempo de
um sujeito ativo definido por seu saber, por seu poder,
por sua vontade — um sujeito que quer se manter no
tempo —, o porvir nomeia a relação com o tempo de
um sujeito receptivo, não tão passivo quanto paciente e
passional —, de um sujeito que se constitui desde a ig-
norância, a impotência e o abandono, desde um sujei-
to, enfim, que assume a sua própria finitude, a sua pró-
pria mortalidade.(2001, p. 285/287)

A experiência com a leitura dos textos poéticos, enfim, no


espaço da sala de aula, pode-se constituir em um modo parti-
cular de agenciamento de silêncios — do silêncio dos sujei-
tos-leitores ao silêncio irredutível do texto —, na lógica de um
processo de risco, de um não controle sobre rastros e pegadas,
muito para além de aferições de conhecimentos previsíveis e
respostas pré-fabricadas. Adentrar na arena do poético na

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Textualidades em Aula

sala de aula abre-se como possibilidade de reinventar territó-


rios, instaurar novas cartografias, em espaços moventes e mo-
vediços. No extremo da aposta nessa experiência, lançar-se
nas rotas de uma educação poética, naquilo que ela possa se
constituir como errância, aventura, travessia e quietude —
um encontro radical com a alteridade, o indizível, a vida e a
morte...

Uma educação poética é uma educação que sabe que o


ser humano está de passagem no mundo, que somos
convidados da vida. Uma educação poética é uma edu-
cação que sabe que a palavra humana é plural e que
esta palavra, ou palavras, tem sentido não somente
pelo que dizem, pelo que podem dizer, mas também e
essencialmente, pelo indizível, pelo silêncio, pelo teste-
munho, pela alteridade, pela ausência. E também pela
fragilidade e a vulnerabilidade, pela mestiçagem e a
fronteira, pelo desaparecimento de pontos de referên-
cia estáveis e absolutos. (MÈLICH, 2001, p.279)

Referências bibliográficas:

AMORIM, Marília. “Vozes e silêncios no texto de pesquisa em


Ciências Humanas”. In: Cadernos de Pesquisa. Nº. 116, p.7-
19, julho/2002.
BONDÍA, Jorge Larrosa. “Notas sobre a experiência e o saber
da experiência”. In: Revista Brasileira de Educação. Nº.19,
p.20-28, jan/fev/mar/abr.
LARROSA, Jorge. “Dar a palavra. Notas para uma dialógica da
transmissão”.

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Notas sobre o silêncio: reflexões sobre o poético no espaço da sala

In: LARROSA, Jorge e SKLIAR, Carlos (orgs.) Habitantes de


Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Au-
têntica, 2001.
MARQUES, Paulo Sérgio. “Poética moderna e linguística tex-
tual: Apontamentos de uma relação problemática”. In: Re-
vista de Letras Norte@mentos. Estudos Literários, Sinop, v.
2, n. 3, p. 90-101, jan./jun. 2009.
MÈLICH, Joan-Carles. “A palavra múltipla: por uma educação
(pó)ética). In: LARROSA, Jorge e SKLIAR, Carlos (orgs.)
Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
SAMPAIO, Carmen Sanches e ESTEBAN, Maria Teresa. “Pro-
vocações para pensar uma educação outra. Conversa com
Carlos Skliar. Revista Teias. v.13. n.30. p.311-325. set./dez.
2012.
SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem : educar. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2014.

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Argumentação: ideologias e propostas para uma
abordagem escolar

Fabiana dos Anjos Pinto


Renata Calheiros Alves

Introdução

Não há dúvidas de que a argumentação vem sendo mote para


diversos trabalhos ao longo da história da humanidade, desde
Aristóteles até os estudos discursivos em pleno desenvolvi-
mento nos dias atuais, razão que nos permitiria supor que se
trata de assunto suficientemente compreendido. Entretanto,
não é bem assim.
Especialmente no que diz respeito ao domínio do tema no
âmbito escolar, para o qual se volta o olhar deste trabalho, per-
cebe-se ainda certa falta de clareza na prática de boa parte dos
professores de língua portuguesa e, consequentemente, no de-
sempenho dos estudantes, conforme atestam diversos estudos,
entre os quais os de Charaudeau (2008, p. 201): “A tradição
escolar nunca esteve muito à vontade com essa atividade da
linguagem, em contraste com o forte desenvolvimento do Nar-
rativo e do Descritivo”.

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

Em que pese o fato de a argumentação, como atividade co-


municativa, ser praticada diariamente pelos falantes de uma
dada língua, os quais dela se valem para atingir um sem núme-
ro de propósitos comunicativos, a transferência desse conheci-
mento para um nível mais explícito, escrito e formal parece se
revestir de uma especial dificuldade, sendo, portanto, uma ha-
bilidade cujo desenvolvimento se reserva aos anos finais de
escolaridade na educação básica. Gerard Vigner, num estudo
fundamental para a melhor compreensão do ensino de reda-
ção, alude a essa questão, empregando o termo ensaio para se
referir a um gênero textual predominantemente argumentati-
vo, solicitado aos estudantes concluintes do equivalente ao en-
sino médio na França:

Por mais modesto que seja, o ensaio (este termo será


por enquanto mais conveniente do que o de disserta-
ção, que permanece estreitamente ligado a uma época
e a um certo tipo de ensino) pressupõe, da parte de seu
autor, todo um trabalho que garantirá a transferência
de noções, lidas ou vividas, analisadas, e depois trans-
formadas e redistribuídas, em um discurso escrito de
acordo com critérios específicos. Dada a sua complexi-
dade, estas operações devem ser objeto de preparação
e treinamento adequados. (VIGNER, 1988, p.110)

Na sociedade brasileira contemporânea, vimos observan-


do crescente interesse em torno dos estudos sobre a argu-
mentação, entre outras razões, pela solicitação frequente de
uma produção textual argumentativa como uma das etapas
de exame em concursos públicos, vestibulares e seleções em-
pregatícias.

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Textualidades em Aula

Sendo assim, nota-se que se vem construindo um estado


de coisas em que não basta que o estudo da argumentação
ostente séculos de história sem que produza reflexos nas co-
munidades linguísticas a que se referem. Em outras palavras,
há uma demanda nessas comunidades linguísticas para que
esse conhecimento se difunda para além dos meios especiali-
zados, de modo que interessa, sobretudo ao professor de lín-
gua, tornar esse saber mais acessível aos seus alunos, o que
pressupõe que ele próprio, o professor, se aproprie desse ca-
bedal.
Em consonância com nossa intenção de instrumentalizar
esse ensino, a seção adiante buscará fazer breve histórico dos
estudos sobre a argumentação.

O ensino da argumentação: breve histórico de uma deslegitimação

Nos tratados sobre a história da argumentação, com frequên-


cia se marca a inauguração desses estudos na Antiguidade, no
pensamento aristotélico, notadamente no Organon:

Do ponto de vista da organização clássica das discipli-


nas, a argumentação está vinculada à lógica, “a arte de
pensar corretamente”, à retórica, “a arte de bem falar”, e
à dialética, “a arte de bem dialogar”. Esse conjunto for-
ma a base do sistema no qual a argumentação foi pen-
sada, de Aristóteles ao fim do século XIX. (PLANTIN,
2008, p.9)

Curiosamente, o entendimento sobre a natureza da argu-


mentação, ao longo dos séculos, ora a aproxima da lógica, ora

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

da dialética, ora da retórica, num movimento dialético, no


sentido moderno do termo.
No Prefácio à edição brasileira do Tratado da argumen­
tação (2005), de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca,
Fábio Ulhoa Coelho assinala o ressurgimento de algumas
ideias de Aristóteles, mais bem compreendidas nos dias atuais
do que nos séculos que se interpuseram entre a época do pen-
sador grego e o nosso tempo.
Segundo Coelho, Aristóteles concedia, em sua doutrina, o
mesmo valor à demonstração analítica e à argumentação dia-
lética, dois modos de pensar propostos pelo filósofo. Ainda de
acordo com Coelho:

O primeiro se traduz numa demonstração fundada em


proposições evidentes, que conduz o pensamento à
conclusão verdadeira, sobre cujo estudo se alicerça
toda a lógica formal; o outro se expressa através de um
argumento sobre enunciados prováveis, dos quais se
poderiam extrair conclusões apenas verossímeis, repre-
sentando uma forma diversa de raciocinar. (PEREL-
MAM & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, pp. XI-XII)

Há que se destacar, na tentativa de isolar a demonstração e


a argumentação, certa ingenuidade quanto ao estatuto de ver-
dade buscado na caracterização do primeiro processo, supon-
do que a língua teria como que um estado referencial puro, li-
vre de qualquer ideologia. Diversas críticas a essa crença foram
dirigidas à obra Os usos do argumento, publicada em 1958, por
Toulmin. O estudo propunha um modelo que deveria ser ca-
paz de dar conta da estrutura argumentativa monologal
(PLANTIN, 2008, p. 26). Muitos outros esforços foram feitos

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Textualidades em Aula

no sentido de se procurar descrever uma linguagem “científi-


ca”, em que não se encontrassem certas “inconveniências” das
línguas humanas naturais, como a polissemia. Entretanto,
como esclarece o professor Gustavo Bernardo na sua Educação
pelo argumento (2007), a comunidade científica também inte-
rage e se constitui por meio de práticas discursivas:

Thomas Kuhn nos lembra que não existe ciência fora


de comunidades científicas, comunidades estas que
por sua vez determinam regras e perspectivas. O rela-
cionamento dentro de cada comunidade, bem como o
relacionamento de uma comunidade com a outra, no
tempo e no espaço, só pode se dar pela via do argu-
mento. (BERNARDO, 2007, p. 15-6)

Ainda que, para Aristóteles, houvesse campo para ambos


os tipos de raciocínio — a demonstração e a argumentação —,
entendidos como igualmente necessários ao desenvolvimento
do pensamento humano, as escolas filosóficas que se seguiram
ao período clássico não consideravam o mesmo.
Coelho (apud PERELMAM & OLBRECHTS-TYTECA,
2005, pp. XII-XIII) cita, no processo de desvalorização da ar-
gumentação dialética, a contribuição do Cristianismo, “que
não poderia, em suas formulações iniciais, conviver com a
ideia de multiplicidades de premissas, igualmente aproveitá-
veis como ponto de partida para a argumentação”, uma vez es-
tando comprometido com a legitimação do discurso religioso
como incontestável e fonte de toda a verdade.
Outro golpe contra a popularidade da argumentação foi
desferido pelo cientificismo e pelo racionalismo que vigora-
ram até a virada do século XX. Assim justifica Plantin: “Diante

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

das descobertas positivas da pesquisa histórica, nenhuma po-


sição fundada no bom senso, no consenso, na opinião, na doxa
ou nos lugares comuns pode ser seriamente sustentada. O sa-
ber retórico não é saber” (2008, pp. 13-4).
Com o olhar voltado para a sociedade francesa, Plantin
aborda diversos fatores que confluíram para a deslegitimação
dos estudos de argumentação: a reação anticlerical da Terceira
República Francesa, a divisão dos conhecimentos em discipli-
nas especializadas, a formalização da lógica. O Estado laico
buscou remover todo vestígio clerical, entre outras medidas,
pela reforma dos currículos universitários e escolares, elimi-
nando a retórica, único componente dos estudos argumentati-
vos ainda conservado pela educação jesuítica, mesmo que ape-
nas na prática de estudos de texto e exercícios de eloquência.
O autor esclarece que se instituiu o método histórico como
o padrão, de modo que a abordagem dos estudos linguísticos e
literários passou a ser a histórica, legitimada pela doutrina po-
sitivista tão efervescente à época. A essa altura, não parece ab-
surdo traçar um paralelo com a realidade educacional brasilei-
ra, visto que, há muito tempo e ainda nos dias atuais, em boa
parte das salas de aula de ensino médio, não se tem aula de
leitura, ou de literatura, mas de história da literatura brasileira,
exclusivamente.
Por sua vez, a nova divisão epistemológica é apontada por
Plantin como um entrave ao projeto retórico de “fornecer a
síntese útil de todos os saberes” (2008, p.14). Entre nós, Gisele
de Carvalho aborda essa mesma questão, ao tratar do ensino
de argumentação:

A fragmentação do conhecimento e das disciplinas, a


partir da 5ª série, desresponsabiliza cada professor de en-

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Textualidades em Aula

sinar a ler, escrever e raciocinar, jogando todo esse peso


nas costas dos professores de Língua Materna e de Mate-
mática — que, por sua vez, usando a mesma desculpa do
conteúdo programático, não dão conta da responsabili-
dade concentrada. —[...]Reconhecê-lo implica admitir a
urgência de uma proposta interdisciplinar, centrada na
lógica e na redação, isto é, na educação pelo argumento
(não é isto que estamos propondo?). (2007, p. 63)

Em que pese o distanciamento espacial e temporal das si-


tuações descritas, a digressão mostra-se oportuna quanto à
observação dos efeitos em longo prazo das escolhas político-
-filosóficas.
Cabe ainda salientar que, segundo Plantin, a lógica deixou
de subsidiar por completo as atividades discursivas ao se ma-
tematizar, geometrizar até, dissociando-se da argumentação.
Está posto o quadro que relegou, ao cabo e ao longo desse
processo, os estudos da argumentação “ao plano dos sofismas,
identificada às técnicas de persuasão sem compromisso ético,
aos discursos vazios de oradores hábeis em convencer auditó-
rios, quaisquer que fossem as teses” (Coelho, 2005, p. XII).
É preciso que se diga, no entanto, que em pelo menos dois
campos do saber os estudos sobre a argumentação mantive-
ram considerável interesse durante todo esse processo: o jurí-
dico e o teológico. Segundo Plantin:

Os manuais de introdução ao direito tradicionalmente


abrem certo espaço para a argumentação, dando uma
definição sumária de alguns argumentos particulares,
considerados como fundamentais para a prática: a
pari, a contrario, a simili, por absurdo, especialmente.

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

A argumentação também subsistiu em teologia, como


parte importante do currículo filosófico neotomista.
Em 1979 (que também é o ano da publicação da Begri-
ffschrift), o papa Leão XIII publica a encíclica Æterni-
Patris, que constitui Tomás de Aquino (1227-1274)
como uma espécie de filósofo oficial da Igreja católica.
Ora, essa filosofia, o “neotomismo”, adere a uma visão
da lógica aristotélica como fundamento do pensamen-
to no exato momento em que essa orientação se torna
cientificamente ultrapassada. Existe uma ligação clara
entre essa decisão e o fato de que podemos encontrar
desenvolvimentos substanciais relativos à lógica tradi-
cional, como interessantes considerações sobre os ti-
pos de argumentos e sobre os sofismas, nos manuais de
filosofia de inspiração neotomista para uma educação
religiosa de nível superior. (2008, p. 18)

O processo de revitalização dos estudos de argumentação,


responsável por retirá-los do quase ostracismo e por conduzi-
-los ao posto de assunto da “moda” (CHARAUDEAU, 2008, p.
201), teve início com a publicação do Tratado da argumenta-
ção: a nova retórica, de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-
-Tyteca, em 1958.
Para Plantin (2008, p.8), essa refundação dos estudos da
argumentação representou uma espécie de reação aos discur-
sos totalitários do pós-guerra, numa busca por um discurso
mais racional. É bem essa a perspectiva que se depreende de
trechos como o que segue, colhido no Tratado:

Combatemos as oposições filosóficas, taxativas e irre-


dutíveis, que nos são apresentadas pelos absolutismos

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Textualidades em Aula

de todo tipo: dualismo da razão e da imaginação, da


ciência e da opinião, da evidência irrefragável e da von-
tade enganadora, da objetividade universalmente acei-
ta e da subjetividade incomunicável, da realidade que
se impõe a todos e dos valores puramente individuais.
(PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.576)

Há que se sublinhar, no subtítulo da obra, sua explícita fi-


liação à desprezada tradição retórica, não no sentido de orna-
mentação do discurso, mas no de reabilitação das técnicas dis-
cursivas que permitiriam inclinar “os espíritos à adesão de
determinadas teses” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 4).
Entre os méritos da obra está a delimitação do campo da
argumentação, em cotejo com o da demonstração:

Deveríamos, então, tirar dessa evolução da lógica e dos


incontestáveis progressos por ela realizados a conclu-
são de que a razão é totalmente incompetente nos
campos que escapam ao cálculo e de que, onde nem a
experiência, nem a dedução lógica podem fornecer-
-nos a solução de um problema só nos resta abando-
narmo-nos às forças irracionais, aos nossos instintos, à
sugestão e à violência? (PERELMAM &OLBRECHTS-
-TYTECA, 2005, p. 3)

Coube ao Tratado esclarecer que, entre o racionalismo da


demonstração e a manipulação persuasiva, poderia se estender
o campo da argumentação, do verossímil, do plausível, a um só
tempo, ambicionando certo rigor e se utilizando de técnicas
persuasivas, o que não se confunde com o abandono da ética

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

(MEYER, 2008, p.5). Foram, dessa forma, refundados os estu-


dos de argumentação, dotados agora de inédita clareza quanto
ao seu campo de atuação, a fornecer as bases para outras aplica-
ções desse conhecimento, como se viu nos anos subsequentes.
Como mais um legado do século XX, não se pode deixar
de ressaltar a reintegração da argumentação na pauta dos estu-
dos sobre a linguagem, operada por Ducrot e Anscombre, com
destaque para a noção de orientação argumentativa, já tão
operacionalizada nos dias atuais: “Ocorre, ao contrário, que,
para descrever determinada expressão, construção ou torneio,
faz-se preciso indicar as restrições argumentativas que ela im-
põe aos enunciados em que aparece” (DUCROT, 1987, p.139).
Na teoria da argumentação na língua, postulada por Du-
crot e Anscombre, o sentido de um enunciado e mesmo de um
signo deve ser mensurado com base na projeção que eles ope-
ram nas possibilidades de sequenciação discursiva. Trata-se,
dessa maneira, de uma propriedade inscrita na língua, e não
mais de técnicas discursivas especialmente ativadas, com vis-
tas a convencer por evidência ou persuasão, o que distancia
essa perspectiva da concepção retórica de argumentação.
Com efeito, a noção de orientação se mostrou produtiva
até mesmo quando observada em sequências narrativas e des-
critivas, cujos enunciados também limitam as possibilidades
de continuação, o que alargou bastante a noção de argumenta-
ção na teoria supracitada, levando os próprios autores a admi-
tirem que sua teoria “deveria era ser chamada de ‘teoria da
não-argumentação’” (DUCROT, 1993, p. 234 apud PLANTIN,
2008, p.37).
Numa outra perspectiva, considerando que a teoria da ar-
gumentação na língua, de Ducrot, não dava conta dos aspectos
discursivos da atividade argumentativa, como os valores e as

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Textualidades em Aula

crenças dos sujeitos envolvidos, Grize propôs uma abordagem


mais cognitiva do que linguística, sobretudo por meio da no-
ção de esquematização:

Uma esquematização é um discurso que constrói um


mundo coerente e estável, apresentado ao interlocutor
como uma imagem da realidade: “Esquematizar é um
ato semiótico: é dar a ver” (Grize, 1990, p.37), de onde
a metáfora da “iluminação”. Entre as imagens propos-
tas ao ouvinte, a lógica natural se interessa especial-
mente pela imagem do objeto de discurso, tanto pela
do locutor como pela do ouvinte. Aqui também as
pontes com a argumentação retórica não estão rompi-
das. (PLANTIN, 2008, p. 40)

A manutenção de certo vínculo com a argumentação retó-


rica aludida por Plantin se deve ao interesse pelos elementos da
situação comunicativa, presente nos estudos de Grize, particu-
larmente nos seus postulados comunicativos: postulado do dia-
logismo, postulado da situação comunicativa, postulado das
representações, postulado do pré-construído cultural e postu-
lado da construção dos objetos (MELO, 1999). Uma vez que
um desses postulados afirma que todo enunciado leva em conta
uma imagem do interlocutor, pré-construída pelo produtor,
torna-se difícil não relacioná-lo com uma das premissas da ar-
gumentação retórica, segundo a qual o discurso argumentativo
deve considerar o auditório a que se destina, adaptando-se a ele.
Outra implicação que convém destacar é “a dissolução da
noção de argumentação” verificada nos pensamentos de Du-
crot e de Grize, quando se operacionalizam suas ideias. Já se
comentou neste trabalho que a propriedade da orientação, no

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

sentido dado por Ducrot, não é exclusiva dos textos argumen-


tativos, sendo notada também em textos narrativos e descriti-
vos. De maneira análoga, a noção de esquematização de Grize
também alarga os limites do que se entende por argumentação:

Se a argumentação é “um procedimento que visa inter-


vir sobre a opinião, a atitude e até mesmo sobre o com-
portamento de alguém”, por meio de uma esquemati-
zação que atua sobre suas representações (Grize, 1990,
p. 40), um enunciado informativo clássico como “São 8
horas” é argumentativo nesse sentido. [...] Falar da ar-
gumentação é outra maneira de falar do sentido e da
informação. (PLANTIN, 2008, p.42)

Foram essas as concepções que levaram a distinguir a ar-


gumentação stricto sensu, que compreende as estratégias dis-
cursivas ativadas com uma finalidade persuasiva, da argumen-
tatividade, que estaria presente em todo enunciado, em menor
ou maior grau. De acordo com essa teoria, o homem se vale do
discurso para influenciar o comportamento do outro, visando
a que adote a mesma opinião ou determinada atitude. Para
isso, estrutura os textos empregando pistas linguísticas que
apontam para certa “direção”, que conduzem a uma determi-
nada conclusão. Entre nós, dão testemunho dessa perspectiva
teórica os estudos de Carlos Vogt, Eduardo Guimarães e Inge-
dore Koch, em suas pesquisas sobre os operadores argumenta-
tivos, marcas linguísticas estruturadoras do discurso, tais
como as conjunções mas e embora, tratadas pela gramática
tradicional como meros elementos relacionais.
A esse respeito, em Koch (2002) encontra-se, além de uma
análise abrangente e objetiva dos operadores argumentativos,

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Textualidades em Aula

verdadeira defesa de uma alteração no tipo de abordagem que


se faz desses recursos no ensino convencional:

Tanto nas gramáticas, como no ensino de língua ma-


terna, tem-se dado maior ênfase ao estudo dos morfe-
mas lexicais e dos morfemas gramaticais flexionais e
derivacionais, relegando-se a um plano totalmente se-
cundário os elementos aqui abordados. Desse modo,
eles passam totalmente despercebidos ao aprendiz, que
— na melhor das hipóteses — limita-se a decorá-los,
sem lhes dar maior atenção. No entanto, como vimos,
grande parte da força argumentativa do texto está na
dependência dessas marcas e o fato de se minimizar a
sua importância pode ser interpretado, até mesmo,
como uma postura de caráter ideológico. (p.108)

A autora finaliza ressaltando a importância de habilitar os


estudantes a reconhecer tais marcas, instrumentalizando-os,
inclusive, para o emprego eficaz no seu próprio discurso. Essa
perspectiva nos traz de volta ao escopo deste trabalho, o ensi-
no de produção de texto, e evidencia a propriedade da aborda-
gem proposta pela autora para este artigo, em que operaciona-
lizaremos a noção de argumentatividade em textos de gêneros
diversos.
Ao fim desta breve digressão histórica, cabe comentar que,
no atual panorama dos estudos sobre a argumentação, se ainda
não se reataram os laços com todo o complexo de disciplinas
com as quais a argumentação já esteve relacionada (FÁVERO
& KOCH, 2005, p.28), já é possível vislumbrar certa reconci-
liação. Podem-se citar, a esse respeito, algumas obras recente-
mente publicadas, como Argumentação: a ferramenta do filo-

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

sofar, de Juvenal Savian Filho (2010), e Fundamentos lógicos da


interpretação de textos e da argumentação, de Vicente Masip
(2011), num aparente resgate do prestígio da argumentação,
nos âmbitos da filosofia e da lógica, respectivamente. Por seu
turno, a retomada dos estudos sobre a argumentação na edu-
cação, mais especificamente no ensino de Língua Portuguesa,
será tratada na seção subsequente.

O lugar da argumentação no ensino do português

Um dos grandes desafios no ensino de língua materna ainda


tem sido a desconstrução de conceitos que, em grande parte
das salas de aulas, permanecem internalizados nos alunos.
Ideias preconcebidas como “saber língua portuguesa é apren-
der gramática” ou “argumenta-se de forma mais consistente
— ou somente — no final do ensino médio” são comuns entre
estudantes e familiares, o que contribui para uma visão redu-
cionista e, por vezes, opressiva do ensino do português brasi-
leiro.
Obviamente, essa forma de conceituar o conhecimento da
língua e seu aprendizado tem marcas profundas no modelo de
colonização a que fomos submetidos. Durante três séculos de
dominação lusitana, as poucas escolas aqui existentes ignora-
ram as línguas faladas em todo território e impuseram a língua
do colonizador, tal como se escrevia em Portugal, como única
forma reconhecida de expressão. Com essa postura, as varieda-
des linguísticas e as manifestações espontâneas de comunica-
ção verbal foram estigmatizadas na colônia. A partir da segun-
da metade do século XIX, e em todo o século XX, esse legado
contribuiu para acirrar debates entre grupos tradicionalistas e

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Textualidades em Aula

correntes progressistas durante a formação do pensamento


gramatical e linguístico no Brasil. Especialmente a partir da
segunda metade do século passado até os dias de hoje, têm sido
notáveis as contribuições ao ensino de língua materna. Os
avanços da Sociolinguística, da Pragmática, da Linguística
Textual, das práticas de letramento e da Análise do Discurso
têm movimentado grande número de eventos acadêmicos e de
produção de material didático. Por sua vez, o governo tem con-
vocado especialistas para elaborar documentos destinados à
capacitação de professores e à modernização de práticas peda-
gógicas. No entanto, apesar desse cenário animador, na prática
escolar, os efeitos benéficos ainda são embrionários.
Não se trata de levantarmos as causas da lentidão desse
processo, muito menos de valorizarmos resultados negativos
referentes aos esforços escolares e acadêmicos. Ao contrário,
pretendemos reafirmar a concepção de ensino-aprendizagem
em que acreditamos e que temos desenvolvido: aprender uma
língua é aprender a relacionar-se com o outro, é saber interagir
em sociedade. Nesse sentido, ao proferirmos uma palavra, de-
senvolvermos uma conversa ou elaborarmos textos de nature-
zas diversificadas, pretendemos atrair o outro, influenciá-lo. A
argumentatividade, portanto, está prevista em uma perspecti-
va interacionista e ideológica da linguagem, o que nos leva a
crer que ensinar língua materna é ensinar a argumentar. Por
esse motivo, resgatamos as palavras de Koch (2002) acerca do
fundamento da comunicação humana:

A interação social por intermédio da língua caracteri-


za-se, fundamentalmente, pela argumentatividade.
Como ser dotado de razão e vontade, o homem cons-
tantemente avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

valor. Por outro lado, por meio do discurso — ação ver-


bal dotada de intencionalidade — tenta influir sobre o
comportamento do outro ou fazer com que comparti-
lhe determinadas opiniões. É por esta razão que se pode
afirmar que o ato de argumentar, isto é, de orientar o
discurso no sentido de determinadas conclusões, cons-
titui o ato linguístico fundamental. (KOCH, 2002, p.17)

Se língua e linguagem são essencialmente argumentativas,


desde as primeiras vivências escolares as crianças devem iden-
tificar e elaborar comunicações persuasivas e seus efeitos de
sentidos — o lugar da argumentação é, inicialmente, na escola.
É nesse espaço que os alunos aprendem a interagir pelas lin-
guagens, de acordo com as particularidades que cada área do
saber agrega à atividade argumentativa. Não por acaso, no sé-
culo XXI, tem sido recorrente a defesa de que ensinar a ler e
escrever é responsabilidade de todas as áreas, sendo necessária
uma “educação pelo argumento”, como propôs o professor
Gustavo Bernardo em 2007, em obra já referida. Assim, aos
docentes das inúmeras disciplinas que integram a educação
básica nos níveis fundamental e médio, cabe ensinar a cons-
truir argumentos de naturezas várias ou manejar recursos que
extrapolam os limites da linguagem verbal. Aos professores de
Língua Portuguesa, cabe ensinar as estratégias argumentativas
que favoreçam a comunicação oral e escrita, bem como auxi-
liar na expressão inteligível e persuasiva da língua.
Desse modo, o professor de português pode conduzir os
alunos ao aprendizado da argumentação lato sensu ou stricto
sensu. A primeira está relacionada ao trabalho com a argu-
mentatividade que, grosso modo, é perceptível nos vestígios de
linguagens de todo tipo de texto, inclusive os não argumenta-

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Textualidades em Aula

tivos. A segunda é própria dos textos organizados pelo modo


argumentativo, que apresentam, obrigatoriamente, elementos
típicos da arquitetura do argumentar, como teses explícitas ou
implícitas e argumentos explícitos, entre outros.
Independentemente do tipo de argumentação que se ensi-
ne ao aluno, o essencial é estabelecer que todo tipo de intera-
ção pela linguagem tem suas normas próprias e, naturalmente,
os argumentos ou as tendências argumentativas presentes de-
vem obedecer a alguns fatores. Elementos como a identidade
dos interlocutores, a situação comunicativa, palavras ou estru-
turas adequadas para a interação, hábitos autorizados, por
exemplo, devem ser considerados na produção de textos orais
e escritos. Nessa perspectiva, a socialização pela linguagem se
materializa por meio de rituais que orientam a harmônica co-
municação entre os seres. Em outras palavras, ao nos relacio-
narmos com os nossos parceiros comunicativos, vivenciamos
uma espécie de contrato, que regula o que é possível ou o que
é proibido em cada evento linguístico.
Em consonância com o nosso propósito de apresentar
exemplos sobre essa prática, a seção adiante buscará fazer bre-
ves elucidações sobre os conceitos de contrato de comunica-
ção, gêneros e modos de organização textual, tão caros ao en-
sino de língua que pregamos.

Argumentação, entre gêneros e contratos: uma abordagem


escolar discursiva

A metáfora de “contrato”, associada ao universo da linguagem,


remonta ao início do século XX, com os estudos de Ferdinand
de Saussure. Na ocasião, o mestre genebrino usava o termo

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

para identificar a langue como “acervo linguístico” e matéria de


uma “realidade funcional sistemática”. Nesse sentido, a dicoto-
mia langue x parole se identifica pelo binômio coletivo x indi-
vidual, que compreendia tanto um contrato para regulamenta-
ção de usos linguísticos quanto uma apropriação particular
destes pelos indivíduos. Ao longo do século XXI, o linguista
Patrick Charaudeau ressignificou a noção de contrato, uma vez
que agrega o dispositivo linguístico interno às condições exter-
nas de produção comunicativa. Nessa nova significação meta-
fórica, o homem é considerado o protagonista da situação so-
ciointerativa, pois, mesmo determinado por um contrato de
restrições e liberdades do ato linguístico, tem poder de usar a
linguagem para atender a um projeto de comunicação, que
previamente estabelece, para melhor lidar com o interlocutor.
Segundo esse raciocínio, considera-se fundamental a con-
cepção de intersubjetividade, uma vez que nossos usos linguís-
ticos são direcionados para construir uma identidade linguísti-
co-textual favorável ao sucesso do evento comunicativo. Assim,
existe um “ser de carne e osso” que fala ou escreve para alguém
também “de carne e osso”, mas o que vale na comunicação são
os papéis contratuais que cada um representa, segundo as hi-
póteses traçadas na comunicação. Esse aporte teórico, de um
lado, retoma a questão da subjetividade na linguagem, inaugu-
rada na década de 60 do século XX, por Èmile Benveniste, e, de
outro, abarca a construção do ponto de vista como inerente ao
ato linguístico, sendo, por isso mesmo, fundamental à nossa
concepção de ensino de língua, pautada na argumentação.
Se o contrato de comunicação, na ótica charaudiana é, por-
tanto, um conjunto de direitos e deveres linguísticos de quem
participa de uma comunicação, compreende-se que cada con-
trato está subjacente a um gênero de texto. Assim é, por exem-

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Textualidades em Aula

plo, com o gênero “propaganda”, cujo contrato prevê um proje-


to de comunicação do tipo “compre este produto e ganhe algo
mais”, delineando as identidades dos interlocutores de acordo
com essas condições de produção. De um lado o vendedor; do
outro, o comprador — essa situação, sabidamente criada por
um contrato, requer certas estruturas linguísticas mais apro-
priadas à relação de compra e venda, como a mescla entre a
linguagem verbal e a não verbal, tempos verbais no imperativo
e no presente, de forma frequente, incorporação de outros gê-
neros textuais para seduzir o consumidor, presença de inter-
textualidade e outros recursos que sensibilizam o interlocutor.
Se cada gênero pressupõe determinado contrato, com suas ca-
racterísticas extra e intralinguísticas específicas, é bem verdade
que, para melhor orientar o sentido argumentativo da lingua-
gem, existem determinadas maneiras de estruturação interna
de um texto a que nomeamos modos de organização textual.
Faz parte da história do homem, portanto, organizar seus
textos seguindo objetivos mais ou menos restritos, tais como
argumentar e expor, narrar e descrever, instruir e enunciar. Es-
ses modos de atender aos nossos projetos são finitos e mais ou
menos regulares, com certas variações ou desdobramentos. Isso
porque essas formas de organização, embora pouco numerosas,
servem, frequentemente, a um número ilimitado de culturas
em locais e tempos distintos. Por essas razões, os modos são
universais, mesmo sendo reconhecidos na porção interna do
contrato de comunicação, como esclarece Helênio de Oliveira:

[...] os modos, não sendo típicos de determinadas cul-


turas, são universais, ou seja, tendem a existir em todas
elas. É evidente que eles se manifestam de formas dife-
rentes em diferentes culturas, mas isso não nega sua
universalidade.

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

O que é cultural, portanto, é a maneira de argumentar,


de descrever, de narrar etc., mas não a existência mes-
ma desses modos de organizar o texto. Os pós-moder-
nos não narram do mesmo modo que os românticos,
nem estes o fazem como os naturalistas; não se argu-
menta hoje como no século XVIII, nem os nativos de
uma tribo australiana descrevem paisagens do mesmo
modo que nós. (OLIVEIRA, 2007, p.82)

Para Oliveira, são seis os modos de organizar um texto: (1)


o narrativo, cuja função é contar uma história situada no tem-
po, no espaço e desenredada por personagens; (2) o argumen-
tativo, que apresenta a função de defender uma proposta sobre
o mundo, sob explicação racionalizante, atendendo a um prin-
cípio de credibilidade e influência; (3) o descritivo, cujo prin-
cípio é caracterizar algo ou alguém; (4) o injuntivo, que cum-
pre a função de instruir o leitor de um texto; (5) o expositivo,
em que o comunicante se ocupa da explanação ou apresenta-
ção de um conteúdo; (6) o enunciativo, que cumpre a função
de gerir os demais, explicando o próprio ato comunicativo.
Esse último, portanto, teria uma função metadiscursiva.
Com base na comparação entre as propostas de Werlich
(1975), Adam (1987), Fávero e Koch (1987), Charaudeau
(1992) e Marcuschi (2002), Oliveira elabora a sua própria, por
meio de um quadro relacional em que reúne apenas nove cate-
gorias de modos de organização textual, demonstrando uma
quase regularidade desses modos, em função de seus aspectos
predominantemente “intratextuais”. Optamos pela proposta
mais clara de Oliveira, por julgarmos que ela atende de forma
mais completa as especificações de cada modo para se traba-
lhar com textos de naturezas diversas.

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Textualidades em Aula

Cabe salientar, ainda, que ao considerar a linguagem es-


sencialmente argumentativa, certos modos de organização po-
deriam estar a serviço de outros, daí a ideia de predominância
estar atrelada não a um fator quantitativo, mas sim a um qua-
litativo. Nesse sentido, não é o maior espaço de texto, ou a
maior quantidade de vezes de ocorrência de um modo que vão
determinar um texto como narrativo, mas sim certas percep-
ções diante dos questionamentos: a que finalidade se presta
esse fragmento narrativo? Qual é a função dessas micro-orga-
nizações para a organização maior do texto? Entendendo os
modos como procedimentos textuais coexistentes, tendo em
vista aonde se chegou pelos estudos discriminados, podemos
avançar nessas considerações, pensando com Oliveira:

Um modo de organização predomina quantitativa-


mente sobre outro num texto quando ocupa mais espa-
ço do que ele (na mensagem escrita) ou mais tempo (na
oral) e predomina qualitativamente quando o outro,
mesmo ocupando mais espaço ou tempo, está a serviço
dele. Diríamos também que a predominância qualitati-
va tem prioridade, na classificação dos textos, sobre a
quantitativa. Se um texto leva mais tempo ou ocupa
mais espaço narrando do que argumentando, mas os
fatos narrados funcionam como argumentos para a
tese “defendida”, temos de classificá-lo como argumen-
tativo, o mesmo se aplicando à descrição a serviço da
narração e a qualquer relação desse tipo. (2007, p.89)

A relação entre os modos, portanto, é dependente do tipo


de gênero que se deseja produzir, mas fica evidente que são
fenômenos de natureza comunicativa distinta: enquanto os

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

primeiros constituem formas de organizar a estrutura de um


texto para atingir certas finalidades discursivas, os segundos
representam uma classe de textos cujo agrupamento se dá pe-
las similaridades do contrato de comunicação.
A seguir, apresentaremos exemplos de análises textuais re-
alizadas com turmas iniciais do ensino médio, para dar conti-
nuidade à discussão sobre um ensino argumentativo da língua.

Ler e escrever, atividades naturalmente argumentativas

Observemos o texto seguinte:

100 anos de propaganda. São Paulo, Abril Cultural, 1980.

No anúncio do cosmético Cilion, a linguagem verbal e a


não verbal são ordenadas segundo o raciocínio argumentativo
“compre o produto e ganhe algo mais”, típico das propagandas.
Considerando que esse texto circulou pela primeira vez em

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Textualidades em Aula

1965 na revista carioca O cruzeiro, não fica difícil compreen-


der por que a mulher, alvo da interlocução, pode ser presen­
teada com um marido.
Em um exercício de análise com alunos, seria muito natural
que eles identificassem os aspectos extratextuais que orienta-
ram a escolha dos elementos linguísticos selecionados. Natu-
ralmente, o resgate da condição sociocultural feminina nos
anos 60 do século XX conduziria ao acionamento de enquadres
mentais distintos, porém confluentes: de um lado, o estereótipo
submisso da mulher, cuja projeção social estava atrelada ao ho-
mem por meio do casamento; do outro, a identidade da “nova
mulher”, que se constitui como sujeito autônomo, inscrito no
mundo profissional, desejo que se fortalece após movimentos
culturais em defesa de uma sociedade mais igualitária, sobretu-
do com o feminismo, idealizado nos idos de 1960.
Esses vestígios da memória histórica possibilitam o reconhe-
cimento da encenação que se cria para construir o discurso da
sedução, pois os anunciantes se transformam em uma persona-
gem, cujo ethos reforça a “imagem do sucesso”, identificada pela
realização matrimonial e pelo exercício profissional. Desse modo,
no contrato de comunicação da propaganda, os anunciantes re-
presentam como em um espetáculo teatral, instaurando a ilusão
de que a aquisição do produto eleva a consumidora a uma posi-
ção triunfante em comparação àquelas que não compram Cilion.
Examinando mais detalhadamente a linguagem verbal do
texto, cria-se o seguinte enunciado: ele era meu chefe, hoje é meu
marido, (porque) eu passei a usar Cilion. A proposta se inscreve
na estrutura tese porque argumento, em que o posicionamento do
argumentante reforça a avaliação positiva acerca da mulher que
tem um marido e um chefe. De acordo com essa estruturação,
elabora-se um argumento ilusório, porém altamente sedutor,

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

pois constrói-se uma falsa evidência de que a cliente, cujo retrato


está ilustrado na propaganda, ao usar o rímel Cilion, fica tão bela
a ponto de fazer o seu chefe se tornar seu o companheiro.
A porção verbal do texto tem suas mensagens e intenções
reiteradas pelos signos não verbais. No canto superior esquer-
do, o desenho menor sugere que, em ambiente de trabalho, a
mulher recebe alguma orientação ou ordem de um homem
cujo traje e elegância autorizam a reconhecê-lo como líder.
Essa imagem é pequena porque simboliza uma espécie de lem-
brança visual que a consumidora tem de seu passado, materia-
lizando-a de forma parecida com um desenho a lápis, distante,
quase apagado. A cliente, por sua vez, com foto ao centro do
anúncio, é projetada em destaque, com rosto altivo e olhos ma-
quiados paralisados, como se representassem a análise que ela
faz da sua vida no passado e do seu presente feliz.
Assim, por meio de uma argumentação em sentido amplo e
estrito, o publicitário oferece à interlocutora o desejo de osten-
tar imagens, valores e comportamentos que uma sociedade pre-
ga em determinada época. Elementos próprios do modo argu-
mentativo, como tese implícita e argumentos verbais e não
verbais explícitos, são fundamentais para construir o projeto de
texto dessa propaganda. Partindo de uma formulação argumen-
tativa sedutora, o anunciante pode fazer a sua tomada de posi-
ção favorável à aquisição do produto sem se expor, promovendo
o seu quadro de proposição cuja persuasão é feita por uma “ver-
dade” ali instituída como prova — quem compra Cilion, casa.
A leitura de um texto como este não é tão simples. Fazer o
aluno perceber as estratégias de uma argumentação sedutora,
os aspectos e as construções verbais e não verbais que favore-
cem o projeto da venda são apenas etapas da interpretação.
Além disso, podemos explorar mais minuciosamente os as-

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Textualidades em Aula

pectos linguísticos macro e microestruturais do gênero propa-


ganda, como a presença de enunciados breves, o apelo e a fle-
xão de certas formas verbais, por exemplo. Entretanto, a
análise mais produtiva, a nosso ver, está na identificação de
ideologias subjacentes e na necessária comparação entre as re-
presentações femininas várias que os alunos defendem e vi-
venciam em sua sociedade.

https://www.facebook.com/vitortegom/photos/pb.232492200226611.-
2207520000.1456270470./532037150272113/?type=3&theater

O texto anterior foi publicado na internet no dia 8 de mar-


ço de 2015, data em que se comemora o Dia Internacional da
Mulher. Interessante é a possibilidade de mostrar ao aluno
como um texto pode apresentar defesa contundente de uma
opinião sem estar orientado no modo de organização argu-
mentativo. Destaca-se, na condução dessa percepção, a ima-

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

gem da rosa murcha e enegrecida ao centro da charge. Bem


sabemos que a flor, dentre algumas representações sociocultu-
rais, expressa o universo feminino, geralmente simbolizando a
beleza e a suavidade da mulher. Nesse caso, contrariamente, a
rosa é a própria mulher sem vida, marcada pelos espinhos,
simbologia da dificuldade humana, constituindo o caule da
flor e, ao mesmo tempo, marcando o sofrimento da mulher do
século XXI.
O contrato de comunicação do gênero charge prescreve a
atualidade como condição para a leitura e a compreensão des-
se tipo de texto. Não por acaso, várias expressões sinalizadas
pelos espinhos da rosa constituem fatos ocorridos em 2015 ou
muito próximos desse ano. Com base nessa organização dis-
cursiva, pode-se discutir o feminicídio, o que motivou esse
projeto de lei que entrou em vigor em março do ano em ques-
tão; por que motivo mulheres são violentadas e mortas sim-
plesmente por serem mulheres; e por quais razões essa deter-
minação legal ainda não havia sido instituída em nossa
sociedade. Tomando como exemplo a expressão revenge porn,
também um índice de morte da flor, aborda-se um dos fatos
atualíssimos e frequentes no universo jovem — a vingança
amorosa pela internet, suas causas e efeitos, análises que po-
dem provocar, inclusive, debates calorosos em torno de ques-
tões éticas e de valores familiares.
Agregados a essas questões extralinguísticas estão os ele-
mentos de linguagem verbal e não verbal. Explorar a leitura
de signos não verbais como símbolos e índices, seus efeitos
nessa charge, além de apontar o efeito da descrição a serviço
de uma argumentação mais ampla são outros exemplos para
se trabalhar a leitura argumentativa vinculada à mostra e re-
consideração de opiniões. Dessa maneira, os termos descriti-

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Textualidades em Aula

vos “culpabilização da vítima”, “mercantilização do corpo”,


“discriminação de gênero”, “desigualdade salarial” e “objetifi-
cação”, por exemplo, mostram a apurada escolha terminológi-
ca em defesa da luta por melhores condições de vida das mu-
lheres. Na charge, o indivíduo do gênero feminino é
representado como um morto-vivo na sociedade brasileira,
retrato bastante diverso da mulher que se apresentou na pro-
paganda do cosmético Cilion.
Para dar continuidade ao exame da argumentação em dife-
rentes gêneros, apresentaremos um parágrafo argumentativo
oriundo de um exercício escolar. Nessa atividade, os estudan-
tes deveriam escrever o parágrafo de introdução de uma dis-
sertação argumentativa, semelhante à que se elabora no Exa-
me Nacional do Ensino Médio (ENEM). Um dos objetivos
principais da produção de texto era propor aos estudantes que
elaborassem explicitamente a sua tese sobre o tema “a desi-
gualdade de gêneros no Brasil do século XXI”, com base nos
seus conhecimentos prévios e nas discussões mediadas em au-
las. Vejamos um exemplo:

Desigualdade de gênero:
resolver para crescer
Embora visto o progresso alcançado pela Lei Maria da
Penha, de 2006, e pela lei do feminicídio, sancionada
em março de 2015, não se pode dar por vencida a luta
pela equidade de gêneros no Brasil. Ocupando a séti-
ma posição no ranking mundial de assassinatos de
mulheres e repleto de disparidades salariais entre os
sexos, muito ainda deve ser feito, no país, em prol do
gênero feminino e de seus direitos.
(P.C. — aluno da terceira série, campus Realengo II)

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

A orientação de se produzir inicialmente a introdução do


texto foi uma estratégia para possibilitar ao aluno o conheci-
mento do modo argumentativo no gênero dissertação escolar.
A metodologia consistia em auxiliar os estudantes na percep-
ção de que o contrato de comunicação desses textos prevê um
discurso previamente planejado e organizado em etapas do
raciocínio argumentativo. Tal como nos ensinou Othon Moa-
cir Garcia, em sua célebre obra Comunicação em prosa moder-
na, publicada em 1969, um parágrafo bem escrito no interior
de um texto tem de apresentar unidade, coerência e ênfase.
Dessa forma, essa parte do texto deve ser organizada como se
fosse um minitexto, cuja ideia principal, ou tópico frasal, esti-
vesse explícita e interligada por meio de conectores adequa-
dos. Em suma, o estudante deve “dizer uma coisa de cada vez”
(2002, p. 268), com relevo e destaque de certas estruturas,
quanto maior for a intenção argumentativa.
De forma similar, Charaudeau e Maingueneau (2004,
p. 52) esclarecem que, em textos organizados pelo modo argu-
mentativo, “enunciar é esquematizar; significar é dar uma
orientação argumentativa”. Com efeito, quanto mais organiza-
do e distribuído o parágrafo, maiores as chances de o texto
como um todo resultar em uma comunicação proficiente, com
argumentação consistente. Por esse motivo, defendemos a
ideia de que os textos argumentativos, sobretudo nos gêneros
escolares e acadêmicos, constituem produtos de escrita previa-
mente planejada e, sendo assim, podem ser elaborados em se-
quências, dependendo do objetivo da aula.
Observemos que o parágrafo em análise apresenta tese cla-
ra, em tópico frasal explícito, o que favorece a identificação da
linha de defesa do aluno. É explícita essa estrutura no final do
primeiro período da introdução: “[...]não se pode dar por ven-

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Textualidades em Aula

cida a luta pela equidade de gêneros no Brasil”. Contudo, já


nesse momento da redação, apresenta-se uma evidência argu-
mentativa que, na verdade, deveria compor os próximos pará-
grafos de argumentação para que, agregada a uma breve análi-
se, constituísse o espaço de comprovação da tese ou, em outras
palavras, o espaço em que se recomenda, de acordo com o
contrato de comunicação desse gênero, a defesa, a demonstra-
ção e a comprovação da tese. Os dois últimos períodos do pa-
rágrafo, portanto, não foram produtivos para a finalização da
introdução, uma vez que já antecipam o argumento e comen-
tário que reafirma a tese (“muito ainda deve ser feito em prol
do gênero feminino”). Ressalta-se, ainda, o uso da concessão
no primeiro período, em que o conectivo “embora” prepara a
ênfase que será dada à tese. Verificamos, inclusive, que a expo-
sição organiza o parágrafo junto à argumentação, exigindo do
aluno manejo para que a defesa de opinião não seja prejudica-
da pela mera apresentação de conteúdos.
Essa atividade foi bastante interessante e legou aos alunos
reescritas produtivas em que o “dizer uma coisa de cada vez” se
tornou mais natural, já que, em grande parte dos casos, reco-
nhecer as partes do texto como progressão do raciocínio argu-
mentativo favorece a clareza, a unidade e a força argumentativa.

Considerações finais

Todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na


acepção mais ampla do termo. A neutralidade é apenas
um mito. (KOCH, 2002, p.17)

Tal como defende Koch, acreditamos que não existe neutra-


lidade do discurso — “mesmo textos pretensamente neutros

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

apresentam uma ideologia: a da própria objetividade”. Ao


encontro desse pensamento, regressamos, também, a certas
ideias presentes no Tratado de argumentação (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, 2005), já que combatemos a “obje-
tividade universalmente aceita” e a “subjetividade incomuni-
cável”.
No rastro dessa ideologia pedagógica, compreendemos
por que motivo o ensino da argumentação foi por tanto tempo
deslegitimado e, até mesmo, boicotado. No Brasil, especifica-
mente, a esses fatos somam-se os vestígios dos anos de opres-
são colonial e de imposição da língua do colonizador, sendo
negligenciado, por séculos, o nosso direito à língua brasileira.
Se, em suma, defendemos que ensinar língua materna é ensi-
nar a argumentar, podemos identificar nessa trajetória uma
das razões que embasam ideias como “saber português é
aprender gramática”. Embora no século XXI a argumentação
esteja sendo reconhecida como caminho para a formação ci-
dadã, a setorização de saberes ainda prevalece na organização
de currículos e dinâmicas escolares, com profundos resquícios
de ideias positivistas do século XIX.
Como agimos pela linguagem e por ela construímos nos-
sos papéis sociais, defendemos um ensino de língua em que o
aluno atue pela escolha e pela reelaboração de argumentos,
para que seja ele próprio autor de seus discursos e direcione os
vários saberes, inclusive os escolares, para o alcance de seus
objetivos comunicativos e de uma sociedade mais crítica. So-
mente a escola pode oferecer essa transformação. E isso não
constitui uma utopia, e sim uma ideologia.

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Textualidades em Aula

Referências

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Rocco, 2007. p. 55-82.
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CHARADEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Di-
cionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008.
CHARADEAU, Patrick. Linguagem e Discurso. São Paulo:
Contexto, 2008.
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Tradução de Eduardo Gui-
marães.Campinas: Pontes, 1987.
GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em Prosa Moderna:
aprenda a escrever, aprendendo a pensar. 21. ed. Rio de Ja-
neiro: FGV, 2002.
KOCH, Ingedore; FÁVERO, Leonor Lopes. Contribuição a
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KOCH, Ingedore Villaça. Argumentação e linguagem. 8. ed.
São Paulo: Cortez, 2002.
MELO, Maria de Fátima Vilar de. Os processos da argumenta-
ção: uma abordagem pragmático-discursiva. Revista Sym-
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MEYER, Bernard. A arte de argumentar. Traduçãode Ivone C.
Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Oliveira, Helênio Fonseca de. Gêneros textuais e conceitos
afins: teoria. In: VALENTE, André (org.). Língua portu-
guesa e identidade: marcasculturais.Rio de Janeiro: Caetés:
2007. p. 79-92.

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Argumentação: ideologias e propostas para uma abordagem escolar

PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado


da argumentação: a nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
PLANTIN, Christian. A argumentação: história, teorias, pers-
pectivas. Tradução
de Marcos Marcionilo. Rio de Janeiro: Parábola Editorial,
2008. (Naponta da língua, n. 21)
VIGNER, Gerard. Técnicas de aprendizagem da argumenta-
ção escrita. In: GALVES, Charlotte (org.) O texto: leitura e
escrita. Campinas: Pontes, 1988.

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino
fundamental: desafios e perspectivas

Marcos Rogério Ribeiro Ponciano


Raquel Cristina de Souza e Souza

Durante muito tempo, acreditou-se que produção de textos


argumentativos não seria adequada no Ensino Fundamental
devido à imaturidade cognitiva dos estudantes. É o que afir-
ma Maria Teresa Serafini, apoiada em pesquisas de diferentes
áreas:

Nem todos os textos apresentam as mesmas dificulda-


des: por exemplo, o tipo de capacidade necessário à
efetivação de textos expressivos como a carta e o diário
desenvolve-se numa idade anterior àquela em que se
desenvolve a capacidade necessária à realização das
dissertações (textos argumentativos). (Britton, 1975;
Martin, 1976). Este último tipo de texto requer uma
capacidade classificatória e hierarquizante que não se
desenvolve antes dos quinze-dezesseis anos (Lowery,
1981). Por isso, é absurdo criticar uma criança por ter

92

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

apresentado os dados de maneira pouco sistemática.


(SERAFINI, 1987, p.131)

A mesma referência à faixa etária citada aparece em outros


autores que procuram problematizar a relação estanque entre
desenvolvimento cognitivo/ competência comunicativa e lin-
guística para a argumentação/ idade. Jany Cotteron, baseada
em suas próprias experiências de sala de aula, contesta:
“É necessário se referir às conclusões algo pessimistas de
pesquisas de psicólogos que consideram que as crianças so-
mente são capazes de ter opinião com 10 e 11 anos, produzir
um texto e se distanciar dele com 13 e 14 e ter o domínio da
negociação com 16?” (COTTERON, 2006, p. 99).
A autora cita estudos mais recentes que os elencados por
Serafini (Brassart, 1990 e Golder, 1992) para confirmar suas
constatações empíricas de que as crianças apresentam certo
número de capacidades discursivas para argumentar e o fa-
zem, em seu nível e em boas condições, para defender suas
ideias, entrar em acordo para uma ação comum ou confrontar
opiniões.
Beatriz Citelli, também ancorada em sua prática docente,
observa que falta às crianças de sexto e sétimo ano1 certos re-
cursos da linguagem conceitual necessários à argumentação,
bem como o domínio de expedientes linguísticos e discursivos
que traduzam operações lógicas complexas (causa e consequ-
ência, concessão, oposição e similaridade, parte e todo etc.) e
coloquem em funcionamento mecanismos enunciativos ne-
cessários para eficiência comunicativa do texto argumentativo

1
À época da publicação, tais níveis de escolaridade eram denominados 5ª e
6ª séries, respectivamente.

93

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Textualidades em Aula

(como a modalização, que permite que se qualifique aquilo


que é dito no texto e insinua a polifonia subjacente ao texto).
Entretanto, isso não significa que as produções dos estudantes
sejam totalmente desprovidas de coerência ou que eles não en-
contrem formas alternativas de estruturar o texto de acordo
com suas capacidades. Para Citelli, a análise dos textos de seus
alunos revela que não faz sentido dizer que às crianças faltam
os recursos exigidos pelo raciocínio argumentativo; eles estão
presentes, de forma embrionária, mas necessitam de estímulo
para serem plenamente desenvolvidos.
Esta é também a posição de Selma Leitão. Embora a autora
aponte, baseada em inúmeras pesquisas (Andriessen et al.,
1996; Coirier, 1996; Golder e Courier, 1992; Oostdam, Glo-
pper e Eiting, 1994), que a possibilidade de lidar com os níveis
mais complexos de organização textual do tipo argumentativo
não é observada em menores de quinze/ dezesseis anos, ela
afirma que:

A capacidade de produzir textos argumentativos de


boa qualidade não é algo que surge de forma automáti-
ca, apenas em decorrência de um indivíduo ter adqui-
rido capacidades gerais de argumentação e de escrita.
Pelo contrário, a aquisição de habilidades e conheci-
mentos necessários à produção competente de argu-
mentação na escrita exige aprendizagem específica.
(LEITÃO, 2001, p. 119).

Por isso, parece contraproducente que a argumentação


costume ser alvo de trabalho planejado e sistemático, na esco-
la, somente a partir do Ensino Médio ou do quarto ciclo do
Ensino Fundamental — neste caso, entretanto, como uma es-

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

pécie de propedêutica à abordagem do Ensino Médio. Leitão


acredita que, justamente porque a produção eficiente de argu-
mentação na linguagem escrita é uma atividade complexa que
exige considerável carga de trabalho cognitivo, ela deveria ser
objeto de intervenção pedagógica já em fases iniciais de esco-
larização. Além disso, a argumentação é uma atividade funda-
mental à vida social (FIORIN, 2015). Ainda que a escola possa
negligenciá-la enquanto objeto de ensino, à criança é exigido o
tempo todo, em situações reais de comunicação, que se posi-
cione, emita juízos, fundamente seu ponto de vista, negocie
com posições contrárias, invista no estabelecimento de acor-
dos, convença, seduza ou influencie os outros. Neste sentido,
as crianças já estão expostas, de forma concreta, às variadas
vozes na sociedade, tendo, mesmo que com recursos reduzi-
dos, já iniciado o jogo social dialógico.
Também nos interessa verificar como as conclusões de Ci-
telli, calcadas na observação empírica enquanto professora
pesquisadora de sua prática, encontram confirmação nas pes-
quisas acadêmicas referidas por Leitão. Tais estudos mostram
com clareza que a justificação de pontos de vista e a considera-
ção de perspectivas contrárias são realizadas desde cedo por
crianças, em situações de diálogo oral. A questão principal a
ser enfrentada, pois, está na possibilidade de manejá-las na es-
crita, já que nesta modalidade a argumentação requer um lon-
go processo de desenvolvimento, dados os inúmeros fatores de
complexidade que a envolvem.
A autora organiza em três grupos as demandas e dificulda-
des específicas da escrita argumentativa. O primeiro diz respei-
to à complexidade do planejamento dos conteúdos textuais. Os
temas sujeitos à argumentação admitem múltiplas perspectivas,
além de estarem circunscritos a um domínio mais conceitual e

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Textualidades em Aula

menos figurativo. Citteli também esclarece que a argumentação


é um procedimento discursivo de formulação de conceitos e
construção de efeitos de sentido mediado por demonstrações e
provas, que exige não só o domínio dos mecanismos retóricos
da argumentação, mas também conhecimento de mundo. Um
bom texto argumentativo seria o resultado de maturidade inte-
lectual — é preciso ter o que dizer —, o que pode ser exigido de
acordo com a idade. Além disso, Leitão ressalta que os argu-
mentos e contra-argumentos precisam se encadear por meio de
relações lógicas só gradualmente dominadas pelos indivíduos, e
que devem ser manejadas não só no nível local, do período, mas
no nível global, do texto. Para isso, são necessárias não só ope-
rações lógicas como também o estabelecimento de uma estru-
tura hierárquica para os argumentos produzidos.
O segundo grupo refere-se à complexidade das operações
linguísticas envolvidas: a linearização e o manejo dos organi-
zadores textuais. Este aspecto está ligado às já citadas relações
lógicas, já que “a produção do discurso argumentativo depen-
de de uma variedade de operações lógicas do pensamento que
impõem marcas à estrutura de um texto produzido.” (LEITÃO,
2001, p. 129). Estas marcas compreendem conjunções e advér-
bios, por exemplo, que garantem a progressão no nível local e
global. Destas operações dependerá em grande medida a coe-
rência argumentativa do texto. Quanto à linearização, a dificul-
dade advém do fato de, no texto argumentativo, argumentos e
contra-argumentos se relacionarem de forma multidimensio-
nal, e não sequencial, como no texto narrativo. Neste, o apoio
na sequência temporal facilita a organização dos eventos. Na-
quele, relações paralelas, coordenadas ou subordinadas entre
os argumentos estabelecem outra forma de exposição e apre-
ensão do conteúdo.

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

O terceiro e último grupo atém-se à complexidade no ma-


nejo da natureza dialógica/ dialética da escrita argumentativa.
O texto argumentativo tem como traço principal, embora não
necessariamente explícito, ser polifônico. Perceber e produzir
as marcas linguísticas que insinuam essas vozes outras no tex-
to não é uma operação fácil, pois, além da defesa do seu pró-
prio ponto de vista, é necessário que o enunciador antecipe
críticas e objeções oriundas de lugares sociais de falas diversos
e negocie com estes “oponentes imaginários”, como nomeia
Leitão, a resolução de diferenças de opinião, usando para tal
mecanismos linguísticos e discursivos eficientes. Talvez a difi-
culdade dos mais jovens em considerar contra-argumentos na
escrita, embora o façam oralmente, esteja também na ausência
do interlocutor que refuta, contradiz e provoca. É nisso que
acredita Cotteron, para quem:

A dimensão dialógica interiorizada pela ausência física


do ‘outro’ é certamente a maior dificuldade na constru-
ção da argumentação escrita, pois exige um afastamen-
to de si mesmo, da própria opinião como ‘verdade in-
discutível’, para imaginar, escutar ‘dentro de si mesmo’
uma opinião diferente. (COTTERON, 2006, p. 103)

Diante do exposto, temos motivos suficientes para concor-


dar com Leitão (2001), Citelli (2001) e Cotteron (2006) que
não podemos esperar que o estudante, no Ensino Médio, este-
ja “naturalmente” instrumentalizado para a escrita competente
do texto argumentativo, como se se tratasse apenas de uma
consequência do desenvolvimento cognitivo. Ao contrário, é
necessário pensar na argumentação como objeto de ensino no
Ensino Fundamental.

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Textualidades em Aula

Nesse sentido, Cotteron (2006) acredita não ser possível


decompor conteúdos e habilidades do texto argumentativo em
níveis de escolaridade. Segundo ela, este tipo textual necessita
de capacidades argumentativas comuns, globais e não sucessi-
vas. Por isso, desde o princípio da escolaridade todas as noções
relativas ao discurso argumentativo deveriam ser abordadas
de maneira não reflexiva; mais adiante, seriam precisadas e de-
senvolvidas segundo a idade e a capacidade dos alunos. Sch-
neuwly, Dolz et al (2004) partilham de alguma forma dessa
premissa ao defenderem o princípio da progressão através de
ciclos e séries, considerando que a cada etapa do ensino novos
objetivos de aprendizagem podem ser acrescidos, de forma
que cada capacidade de linguagem dominante2 (narrar, relatar,
argumentar, expor e descrever ações) seja explorada, com dife-
rentes níveis de profundidade e complexidade, em todas as sé-
ries/ ciclos.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do 3º e 4º
ciclos do Ensino Fundamental também apostam na progres-
são em espiral, ou seja, na retomada de dado conhecimento
em diferentes etapas do processo de aprendizagem — e, assim,
estimulam a presença da argumentação como objeto de ensino
em todo o Ensino Fundamental, desde que de forma adequada
às necessidades dos alunos, às possibilidades de aprendiza-
gem, ao grau de complexidade do objeto e das exigências da
tarefa em relação à etapa de ensino:

No que concerne à prática de produção de texto, apli-


ca-se o mesmo raciocínio: a produção de um artigo de

2
Ou tipo textual, ou sequência tipológica, segundo Marcuschi (2007): Nar-
ração, descrição, exposição, argumentação, injunção.

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

opinião, por exemplo, pode estar colocada em diferen-


tes ciclos, ou, ainda em diferentes momentos do mes-
mo ciclo, pressupondo níveis diferenciados de domí-
nio do gênero. Pode-se tanto priorizar aspectos a
serem abordados nas diferentes ocasiões quanto esta-
belecer graus de aprofundamentos diferentes para os
mesmos aspectos nas diferentes situações. (BRASIL,
1998, p. 38-39)

Aqui cabe um esclarecimento. Temos falado em “texto ar-


gumentativo” enquanto tipo textual, ou seja, uma expressão que
designa: “[...] uma espécie de sequência teoricamente definida
pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais,
sintáticos, tempos verbais, relações lógicas).” (MARCUSCHI.
2007, p. 22 — itálicos do autor) Entretanto, os tipos textuais se
materializam em gêneros, que são fenômenos históricos, pro-
fundamente vinculados à vida cultural e social, que constituem
concretamente um conjunto aberto e variado, em constante
mutação, pois acompanham o fluxo de mudanças da sociedade
e as necessidades de comunicação entre os indivíduos.
Os gêneros ordenam e estabilizam as atividades comunica-
tivas do cotidiano. É impossível se comunicar verbalmente a
não ser por algum texto — o produto concreto das atividades
de interação linguística, definido por propriedades socioco-
municativas. Quando dominamos um gênero, dominamos
uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos
em situações sociais particulares através de textos. Por isso,
trata-se, no ensino de língua materna, e em consonância com
os PCN, de assumir como objeto de ensino o texto em seu con-
texto de produção e recepção, evidenciando as significações
geradas a partir da observação e análise da língua em funcio-

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Textualidades em Aula

namento, quer dizer, como palco de negociações de sentido


entre os sujeitos. Isso significa que a atenção do ensino de lín-
gua materna se desloca dos tipos, que não constituem textos
empíricos, para os gêneros, textos empiricamente realizados
cumprindo funções em situações comunicativas.
Assim, propomos a seguir a apresentação de três experiên-
cias pedagógicas com o ensino da argumentação a partir de
quatro gêneros distintos: dois escritos (a resenha e o comentá-
rio em rede social); um escrito em diálogo com elementos vi-
suais (o booktrailer) e um oral (o debate regrado), em turmas
de sexto e sétimo ano do Ensino Fundamental do Colégio Pe-
dro II, uma instituição pública federal de Ensino Básico. Em-
bora as pesquisas mostrem o domínio de certas habilidades
argumentativas orais por parte de crianças, o gênero oral elen-
cado para atividades pedagógicas impõe dificuldades (moto-
res de aprendizagem) por não ser familiar e exigir um uso mais
formal da língua — ou seja, exige a desautomatização, por par-
te do aluno, do já sabido.
O projeto Booktrailer, planejado para turmas de sétimo
ano do ano letivo de 2014, foi um desdobramento de uma ex-
periência anterior, realizada com essas mesmas turmas no sex-
to ano. À época, tínhamos como objetivo criar em cada sala de
aula uma comunidade de leitores literários que partilhassem
gostos e modos de ler e que também pudessem variar suas pre-
ferências e afinar suas estratégias de leitura a partir da sociali-
zação de suas leituras — principalmente as espontâneas, mas
igualmente aquelas indicadas pelos professores para uma in-
terpretação coletiva e aprofundada. Para realizar tal tarefa,
criamos em uma rede social muito utilizada pelos estudantes,
o Facebook, grupos de discussão, por turma, chamados “Ci-
randas de livros”, onde os alunos eram convidados a fazer pos-

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

tagens (resenhas) sobre livros de que gostassem e pudessem


emprestar, assim como eram estimulados a comentar, nas pos-
tagens dos colegas, os livros que haviam pedido emprestados.
A orientação dada para a escrita da resenha e dos comen-
tários foi vaga: os alunos deviam fazer um resumo do enredo e
dizer por que estavam indicando aquele livro ou por que os
colegas poderiam se interessar por ele. Nessa instrução estava
implícita a nossa expectativa de ver em funcionamento as es-
tratégias de argumentação já dominadas pelos jovens em ques-
tão para que pudéssemos trabalhar a partir delas. Entretanto,
nosso objetivo principal era estimular a interação entre os alu-
nos, pois imaginávamos que, assim, pelo contágio dos pares,
poderíamos estar contribuindo para a formação do hábito e do
gosto pela leitura literária. Segundo Lencastre (2003), a moti-
vação à leitura envolve também um aspecto afetivo e interacio-
nal que envolverá um sentimento positivo frente à atividade,
levando potencialmente o leitor a torná-la permanente em sua
vida. Além disso, pela própria natureza argumentativa dos gê-
neros envolvidos na tarefa, a resenha e o comentário, e pela
estrutura dialógica da rede social, que estimula a interlocução
entre os usuários por meio dos comentários, esperávamos que
as conversas em torno dos livros propiciassem, além das trocas
afetivas, a construção de habilidades e competências argumen-
tativas.
Para Cosson (2014), o comentário consiste numa aprecia-
ção pessoal da obra literária que foi ou está sendo lida e que
pode se materializar, por exemplo, nos gêneros diário de leitu-
ra e resenha. No caso da rede social, a postagem inicial era
concebida enquanto resenha: a combinação de uma apresenta-
ção com uma apreciação que visa dar ao outro o conhecimento
prévio da obra para que possa decidir pela sua leitura ou não

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Textualidades em Aula

(COSSON, 2014). Se concebida como uma prática de leitura


interativa, que pressupõe um diálogo implícito ou explícito
com um interlocutor, ao ser compartilhada, a resenha pode
gerar um segundo posicionamento de um leitor que manterá
ou não a circulação daquela obra entre os demais. No caso es-
pecífico do Facebook, os posicionamentos gerados pela rese-
nha constituem eles mesmos um gênero, o comentário, cuja
característica principal é ser um texto necessariamente atrela-
do a um texto anterior — a resenha e os outros comentários —,
o que contribui para que esses alunos pratiquem a retomada
do argumento de outrem como base para apreciação mas,
também, para refutação. É um mecanismo, pois, que os esti-
mula a empregar na escrita o recurso da contra-argumentação,
que vimos ser negligenciados pelos indivíduos mais jovens
quando da elaboração escrita de textos argumentativos. (LEI-
TÃO, 2001)
Devido ao escopo deste artigo, não será possível aprofun-
dar a análise das interações ocorridas ao longo de todo um ano
letivo, mas alguns exemplos podem ser ilustrativos do poten-
cial pedagógico da rede social nos termos que acabamos de
apresentar. Abaixo, um comentário que retoma a primeira re-
senha para refutá-la, trazendo à baila inúmeros contra-argu-
mentos, além de convidar a interlocutora explicitamente para
continuar a negociação de opiniões:

Bem, vou começar dizendo que não concordo com a


sua resenha, porque sou dessas. Mas, eu posso afir-
mar que Insurgente possui muita enrolação, mas não
é culpa do casal, foi culpa da Tris, porque, todos que já
leram sabem que ela passou por coisas trágicas em um
único dia, ela estava desnorteada e achava que tinha

102

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

perdido todo mundo, e é aí que entra o Tobias pra ten-


tar mostrar pra ela que ela não está sozinha, mas ela fica
paranóica em tentar retribuir os sacrifícios que fizeram
por ela e metade do livro é enrolação pura de drama.
Eu só não reclamei das enrolações porque se tudo o
que aconteceu com ela tivesse acontecido comigo, eu
não teria levantado da cama nem pra ir ao banheiro.
Agora, vou falar de Convergente e da Trilogia em si.
Eu achei o desfecho do livro ótimo, só achei que ficou
faltando eles terem dado ênfase no que aconteceu com
o futuro da cidade, pois esse é o grande ponto dos dois
primeiros livros e parece que tudo o que importa na
trilogia inteira se vai quando o que ninguém esperava
ou queria que acontecesse acontece, assim com o tal
“grande ponto”, ele vai embora e é como se não tivesse
mas a Chicago futurística e nem o que mantia as carac-
terísticas inesquecíveis de cada personagem, e acho que
a Veronica fez isso de propósito. É como se o grande
ponto do Tobias fosse outro e, quando ele se vai, tudo se
vai, inclusive o grande ponto da trilogia que era salvar a
cidade. Pensando assim, parece que a Veronica fez isso
de propósito. E como você não achou a frase “Conser-
tamos uns aos outros” uma frase “tchân”? Insurgente
e Convergente se baseia em praticamente nas brigas
dele e da Tris, e ela amava dar ênfase de que eles esta-
vam “se destruindo”. Em Convergente, ela tambem di-
zia que eles estavam “se colidindo” (não foi na intenção
de parecer algo meigo ou bonitinho, mas...) e, no final,
o que acontece? Eles se “consertam”. Ele descobre que
eles se consertaram da pior maneira, mas descobre. Um
dos objetivos era mostrar que o amor te destrói, mas no

103

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Textualidades em Aula

final, ele te conserta. “Consertamos uns aos outros” foi


a melhor frase pro desfecho, pois o Tobias, ao longo dos
anos, vai se consertando. Espero que você leia essa re-
senha, D., pois eu sei que você possui um olhar literá-
rio diferente do meu e quero que você reflita sobre “o
final não ter sido ‘tchãn’”, porque realmente foi. Di-
vergente, Insurgente e Convergente são livros que vão
ficar na memória pra sempre, e no final todos vão ter
visões diferentes do mundo ao redor3. (M.E. — grifos
nossos)

Nos exemplo abaixo, o diálogo é estabelecido com um in-


terlocutor imaginário, já que a leitora parte de um argumen-
to que ela entende que possa ser a opinião dos colegas:

(...) O livro pode parecer muito “amorzinho”, conto


de fadas e várias coisas clichês, mas ele só parece
mesmo. É uma leitura tão impressionante! A autora
escreve de forma simples, a leitura flui como mágica,
ela descreve cada coisa tão bem e criou um enredo fan-
tástico! A cada parágrafo você ânsia por mais e mais,

3
Não interferimos nos textos originais. Aliás, como o propósito principal
era o estímulo à leitura literária, não corrigíamos os textos postados, pois
isso certamente desencorajaria os alunos a continuarem escrevendo (espe-
cialmente aqueles com mais dificuldades). Entretanto, utilizávamos ocor-
rências de seus textos para atividades localizadas de reescrita, já que enten-
demos, como Camps (2006), que algumas habilidades de escrita podem ser
exercitadas separadamente (relacionar orações, exercitar ortografia, substi-
tuir sintagmas nominais por pronomes etc), já que, para levar a cabo a ati-
vidade global de escrita, é preciso dominar habilidades específicas. É o mes-
mo que propõem Schneuwly e Dolz (2004) nas oficinas para tratar de
problemas específicos de escrita identificados nas produções dos alunos.

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

você consegue se sentir como a personagem através de


meras palavras. (D.– Grifos nossos).

Os leitores ainda provocam os colegas a melhorarem seus


textos, incitando-os a argumentar:

A capa parece interessante, se eu soubesse do que se


trata... (V.)

como alguém se interessa só pela capa do livro?? (V.T.)

E empregam conhecimentos aprendidos nas leituras apro-


fundadas em sala de aula para melhorar sua argumentação,
além de empregar a estratégia do suspense — muito próxima
das utilizadas pelo marketing das editoras a cujos livros os alu-
nos têm acesso mais facilmente — como forma de persuadir
seu potencial interlocutor:

Eu achei o livro maravilhoso, tudo nele propaga ao lei-


tor uma grande surpresa, fiquei impressionado com a
astucia de Hugo (principalmente se comparada à mi-
nha), o uso das imagens foi uma estratégia ótima,
não só pela beleza dos desenhos com também con-
tribui para a dinâmica da história, houveram surpre-
sas como em quase todos os livros que eu já li, mas em
todos os livros ha um modo diferente de contar essas
surpresas e esse é particularmente incrível, a ÚNICA,
repito, ÚNICA coisa que eu gostaria de mudar na
história é que  Hugo  poderia ter namorado com...
(acho melhor não falar, quem ler vai entender). (N.
— Grifos nossos)

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Textualidades em Aula

Embora o resultado da experiência tenha sido muito posi-


tivo para nossos propósitos iniciais, observamos que havia
uma discrepância na qualidade das resenhas e dos comentá-
rios no que tange às características do tipo argumentativo. En-
quanto um grupo argumentava de forma eficiente e se projeta-
va subjetivamente no que lia, outro grupo se atinha apenas ao
resumo de conteúdo e apresentava muitas dificuldades em es-
truturar seus textos de forma efetivamente argumentativa. Por
isso, no ano seguinte, de posse de vários exemplos de textos
bem sucedidos e outros nem tanto, em sua maioria produzidos
pelos próprios alunos, montamos atividades direcionadas ex-
plicitamente para o tipo argumentativo. Os alunos foram leva-
dos a perceber a diferença entre resumo e resenha, tendo que
identificar em textos selecionados do ano anterior os trechos
que correspondiam à contação do enredo e os trechos que se
referiam à apreciação crítica. Foram instados a observar os
tempos verbais predominantes em cada segmento, bem como
os adjetivos, substantivos e verbos4 empregados para expressar
opinião. Foram estimulados também a identificar nas aprecia-
ções as justificativas, ou seja, os argumentos utilizados para
fundamentar os pontos de vista, bem como outras estratégias
linguísticas e discursivas empregadas para convencer o inter-
locutor: a comparação; o uso expressivo de sinais de pontua-
ção e de palavras intensificadoras; a conversa com o leitor; a
elipse de fatos na contação do enredo de forma a causar sus-
pense; o estabelecimento de relações com textos conhecidos
da turma; o uso de recursos que conferem credibilidade ao li-
vro: opinião de especialistas, lista de prêmios recebidos, tre-
chos de resenhas em jornais e revistas; etc. Os textos também

4
Classes gramaticais a que foram apresentados no ano anterior.

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

foram avaliados coletivamente em termos de eficiência comu-


nicativa: qual convence mais e por quê? Qual desses livros
você tem vontade de ler e por quê? Que textos são menos efi-
cientes e por quê? O que falta a eles? Em seguida, cada aluno
deveria escrever sua própria resenha de um livro que pudesse
emprestar, como já estavam acostumados, mas agora tendo
como horizonte as aulas sobre o tipo argumentativo.
Depois disso, os alunos foram apresentados ao gênero
booktrailer. Semelhantemente a um trailer de filme, o novo gê-
nero textual tem como objetivo atiçar a curiosidade do leitor e
estimulá-lo a ir em busca do livro, empregando para isso inú-
meros recursos verbais e não verbais, sonoros e visuais, para
seduzir o leitor. Tem sido uma estratégia utilizada por várias
editoras para divulgar seus livros na internet e forçar um canal
de comunicação com o jovem leitor, tão afeito ao império do
audiovisual.
Nas aulas de Informática Educativa5, exibimos e discuti-
mos coletivamente vários booktrailers em circulação na inter-
net com vistas a investigar de que forma opinião e argumento
comparecem ao gênero a partir de recursos sonoros e imagéti-
cos, além de verbais. Vários dos elementos anteriormente dis-
cutidos nas resenhas escritas foram transpostos para a resenha
em formato booktrailer, e os alunos foram estimulados a per-
ceber as diferenças e semelhanças entre os dois gêneros. Em
momento posterior, os alunos tiveram que preencher um ro-
teiro, em Word, em que eles planejaram o seu vídeo (que foi
construído no programa MovieMaker). O roteiro foi elabora-
do para facilitar a criação do produto final e orientar os alunos
5
Contamos, nestas etapas, com o apoio inestimável das professoras Simone
da Costa Lima e Alexandra Camargo Alves, que ficaram responsáveis por
orientar os alunos na efetiva elaboração dos vídeos.

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Textualidades em Aula

em relação aos recursos e estratégias que poderiam empregar


para expressar opinião, argumentar e seduzir o leitor. Abaixo,
exemplo de parte do roteiro:

Com relação ao resumo: Como você pretende apresen-


tar o resumo do livro? (frases resumindo a história,
imagens em sequência cronológica, combinação de
imagens e frases, trechos selecionados do livro, etc).
Que paleta de cores você pretende usar em seu
booktrailer (cores claras, escuras, cores quentes, tons
de cinza, etc)? Por quê? Que efeitos você pretende pro-
vocar com essa escolha? Que arquivos de áudio pode-
riam ser usados para reforçar a temática apresentada
no livro (romance, terror, suspense, etc.)?

Com relação à sua opinião sobre o livro: Que adjetivos


melhor descrevem o livro selecionado por você? Que
recursos poderiam ser usados em seu booktrailer para
ilustrar a sua opinião? Que trechos do livro poderiam
ser usados para ilustrar a sua opinião sobre ele? Trans-
creva-os abaixo, indicando a página.

Sobre os argumentos: Dentre os diferentes textos de


opinião que você encontrou na web, quais reforçam ou
complementam a sua opinião sobre o livro? Transcre-
va-os abaixo, indicando a autoria dos mesmos. O livro
selecionado participou de alguma feira de livros? Ga-
nhou algum prêmio? Qual/ quais?”

Os alunos eram levados o tempo todo a refletir sobre a re-


lação entre forma e conteúdo. Cada escolha verbal ou não ver-

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

bal tinha que ser pensada em termos do efeito que se pretendia


causar no espectador do vídeo. Após a elaboração dos booktrai-
lers, houve correção por parte dos professores e solicitações de
consertos/adaptações ou sugestões de modificações para que
os alunos revisassem suas produções. Eles assistiram aos víde-
os uns dos outros e também puderam contribuir com corre-
ções e sugestões. Terminados os vídeos, estes foram postados
em um canal no Vimeo, compartilhados no Facebook e estão
circulando pela web. Dois deles, inclusive, chegaram ao conhe-
cimento dos autores dos respectivos livros, que se mostraram
muito lisonjeados com a homenagem e com a promoção de
suas obras. Conseguimos, desta forma, que o produto final do
projeto6 ultrapassasse os limites da sala de aula e cumprisse
objetivos comunicativos reais, o que certamente foi um fator
importante para o engajamento dos alunos em todas as etapas.
Os alunos procederam na verdade a uma atividade de re-
textualização (MARCUSCHI, 2001), ou seja, de transforma-
ção de um gênero em outro. Embora Marcuschi se interesse
pela retextualização de textos orais para textos escritos, admite
que esta é uma operação absolutamente rotineira para os usu-
ários da língua e que pode se dar em variadas direções: do oral
para o oral, do oral para o escrito, do escrito para o escrito e do
escrito para o oral. As atividades de retextualização podem ser
muito produtivas em sala de aula porque mobilizam inúmeros
conhecimentos, habilidades e competências dos mais variados
tipos e matizes, seja no nível discursivo, seja no nível linguísti-
co, o que exige maior envolvimento do aluno na busca de solu-
ções para a reescrita. Devido às limitações do artigo, mostrare-
6
A organização das etapas foi inspirada na concepção de projetos de escrita
explicitada em Camps (2006) e nas sequências didáticas descritas por Sch-
neuwly e Dolz (2004).

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Textualidades em Aula

mos apenas um exemplo de retextualização que dá conta de


exemplificar o aproveitamento singular dos recursos e estraté-
gias estudados em sala de aula. Abaixo, a resenha original:

Estou falando de um livro bem clássico, intrigante, de


fácil leitura e uma trama bem... Interessante. Ele é O
MENINO DO PIJAMA LISTRADO!
Bruno. Cercas. Segunda Guerra Mundial.
Bruno tem uma vida normal com uma família normal
que residia em Berlim. Composta pela seus pais e por
sua irmã mais velha, Gretel. Ele cita a irmã como se
fosse uma pessoa ‘terrível’, mas ela é apenas uma irmã.
E vocês sabem como são as relações fraternais.
O Pai do menino foi ‘promovido’ de cargo e, obrigato-
riamente, precisaram se mudar de sua casa, indo para
onde chamavam de Haja-Vista. Ele estava muito desa-
nimado, afinal, não saía de casa, não tinha amigos, vi-
zinhos, não iam à escola e o que restava era apenas
cumprir as ordens de seu pai.
Ele repara na vista da janela de seu quarto. Em primei-
ro plano, vê uma cerca. Logo atrás, viu pessoas... Espe-
ra... E eram pessoas vestindo pijama? Era algo incrível!
Pelo menos percebeu que não estava sozinho naquele
lugar! Bruno se via louco para explorar além das cer-
cas, e assim foi feito quando resolve andar pelas redon-
dezas da casa. Aí que a história começa.
Nesse passeio ele conhece Shmuel, que curiosamente
nasceu no mesmo dia que o menino. Uma grande ami-
zade se constrói e Bruno começa a descobrir e pesqui-
sar o mistério que envolve o trabalho de seu pai e aque-
las misteriosas pessoas de pijama.

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

Eu li em algum lugar um trecho falando do livro bem


assim “É uma fábula sobre amizade em tempos de
guerra, e sobre o que acontece quando a inocência é
colocada diante de um monstro terrível e inimaginá-
vel.” E acho que não tem colocação melhor.
O livro, na verdade, é escrito através de uma simplici-
dade que te emociona e contagia, tudo visto aos olhos
de um menino de nove anos, uma criança que não sabe
nada da vida, uma criança inocente que acredita que
todas as pessoas tem o coração bom, que ninguém é
capaz de fazer maldades.
Alguns podem achar que o final foi injusto, mas acho
que escolha melhor para terminar esse livro, impossí-
vel. (M.C)

Na transposição para o vídeo7, o resumo foi significativa-


mente reduzido e transformado em frases mais curtas e objeti-
vas, já que esta é uma exigência do próprio gênero. Além disso,
a aluna usou como imagem de fundo o padrão de estampa do
pijama, sendo que reservou o preto e branco para os trechos
avaliativos e o azul e branco para os trechos em que contava o
enredo, demonstrando consciência das escolhas formais/ ima-
géticas. Resumo e avaliação vão se alternando harmoniosa-
mente durante a sequência. A música instrumental de fundo
reforça a atmosfera delicada, mas também melancólica, da his-
tória. O vídeo abre com uma sucessão de palavras em diversas
línguas que entendemos depois serem traduções para “amiza-
de”, o que tem relação estreita com o tema do livro: a relação de

7
Que pode ser visto, assim como todos os outros, em https://vimeo.com/
projetobooktrailer.

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Textualidades em Aula

companheirismo improvável entre dois garotos de culturas


diferentes. A leitora faz uso também do argumento de autori-
dade ao transcrever trechos elogiosos proferidos por veículos
internacionais de grande circulação (The Guardiam, USA To-
day etc.). É interessante observar como a afirmativa feita na
resenha, de que os fatos são narrados a partir da perspectiva de
uma criança de nove anos, é transposta para o vídeo por meio
de índices muito sutis, como podem ser vistos em: “Shmuel e
mais um monte de gente do outro lado da cerca cismavam em
usar pijama todo dia.”; Bruno tinha vontade de vestir também,
mas infelizmente não tinha um igual”. Alguns recursos gráfi-
cos também deixam entrever intenções comunicativas muito
interessantes. Logo após o aparecimento do último trecho cita-
do, no slide seguinte figura, solitária e no pé da tela, a expres-
são “ou felizmente”, que garante um toque de suspense no es-
pectador sobre o enredo. Outro recurso gráfico significativo é
o sintagma “tão GRANDE que..” ocupando toda a tela e termi-
nando com reticências que se completam no slide seguinte.
Depois da revelação de que eles trocam de roupa, aparece a
frase: “E Bruno realizou seu SONHO”, com destaque gráfico
na última palavra, como a salientar a ironia, já que a realização
desse sonho não culmina com um final feliz, como ela própria
anunciou no parágrafo final da sua resenha. No vídeo, essa in-
formação é mais elíptica, sutil e inteligente.
O próximo gênero argumentativo, trabalhado no trimestre
seguinte com as mesmas turmas, é um gênero oral, o debate
regrado, que foi escolhido como objeto didático em decorrên-
cia da leitura literária que estava sendo realizada pela turma.
Os alunos liam Frankenstein, de Mary Shelley (adaptada por
Ruy Castro), obra que privilegia o jogo com diferentes pontos
de vista narrativos sem estabelecer um julgamento cabal sobre

112

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

os personagens envolvidos nos fatos. Por isso, consideramos


que este aspecto poderia ser produtivo para continuarmos o
trabalho com a argumentação. A modalidade oral se mostrou
mais adequada porque, sendo a motivação uma obra literária,
o partilhamento de diferentes leituras faria jus à plurissignifi-
cação da obra.
O debate é um gênero “por meio do qual os alunos desen-
volvem seus conhecimentos, ampliando seu ponto de vista,
questionando-o e integrando — em diferentes graus — o pon-
to de vista dos outros debatedores”. (SCHNEUWLY e DOLZ,
2004, p. 223) Para que cumpra seus objetivos comunicativos, o
tema de interesse do debate deve permitir a controvérsia, caso
contrário não há investimento argumentativo real. Segundo
Schneuwly e Dolz (2004), haveria dois tipos principais de de-
bate: o de opinião de fundo controverso — que visa não a uma
decisão, mas a colocação em comum das diversas posições
com a finalidade de influenciar a posição do outro ou modifi-
car a própria — e o deliberativo, que visa à tomada de decisão
sobre uma demanda real dos debatedores. O trabalho propos-
to a partir da leitura de Frankenstein se adequa melhor ao pri-
meiro caso, ainda que os professores-mediadores tenham se
proposto a “julgar” a melhor argumentação no fim do proces-
so, pois o objetivo do debate era discutir sobre quem seria efe-
tivamente o monstro da narrativa: a criatura ou o seu criador.
Como a própria narrativa tem desfecho (propositalmente)
aberto, e a discussão não levaria a nenhum tipo de deliberação
interventiva na realidade dos debatedores, o propósito do de-
bate era o exercício da argumentação propriamente dita em
um contexto específico que exigia, além de capacidades lin-
guísticas e cognitivas, a construção de habilidades sociais e in-
terativas: a gestão da palavra entre os participantes; a escuta do

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Textualidades em Aula

outro e o respeito por sua fala; a retomada do seu discurso do


outro para refutá-lo ou reformular o próprio; as regras e fór-
mulas para tomada e cessão de turno de fala.
Assim, as atividades relativas ao debate transcorreram da
seguinte maneira8. Depois da discussão coletiva de um roteiro
de leitura sobre a obra — que os levava a perceber a questão do
ponto de vista como construtor de verdades e estruturador da
narrativa, além de já levantar questões sobre o perfil psicológi-
co dos personagens antagônicos (entre outras questões) —, os
alunos foram convidados a tomar criador e criatura com réus9.
O espaço da sala de aula foi arrumado de forma a traduzir a
polêmica: as carteiras foram separadas em dois grandes gru-
pos, com um corredor no meio, para facilitar a locomoção do
debatedor e a interação com os demais. Cada um dos grupos
correspondia à defesa ou à acusação do personagem. Esses
dois grandes grupos foram divididos novamente em seis gru-
pos (três de defesa e três de acusação) para facilitar a comuni-
cação entre eles. Cada pequeno grupo escolheria um líder que
representaria seus argumentos de acordo com o papel que re-
presentava. Os grupos alternariam em suas apresentações, de
maneira que, além de expressarem suas ideias, deveriam reba-
ter a exposição do colega da equipe adversária.
A atividade acima descrita aconteceria em duas rodadas e
algumas regras foram estipuladas: os alunos poderiam se reu-
nir por pelo menos 20 minutos, antes de iniciar as apresenta-
ções, para fazer anotações e discutir os argumentos; o uso da

8
Agradecemos à então licencianda da UFRJ, Camila dos Santos Gomes,
pelo empenho na elaboração das atividades, pela aplicação das mesmas jun-
to aos alunos e pelos registros em vídeo e por escrito do debate (que foram
muito úteis para a elaboração deste artigo).
9
Há semelhanças com o gênero “júri simulado”, como podemos perceber.

114

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

obra literária seria indispensável para dar suporte aos argu-


mentos; quando um dos grupos estivesse se apresentando, o
outro deveria permanecer em silêncio; apenas manifestações
silenciosas eram permitidas. É importante salientar também
que os alunos não puderam escolher “de que lado” ficar: foi
feito um sorteio para assegurar o equilíbrio do número de par-
ticipantes em cada posição, o que evidentemente não agradou
aos alunos a princípio. Com o desenvolvimento da atividade,
entretanto, o engajamento foi surpreendente. Se pensarmos
que o envolvimento demasiado subjetivo com determinado
tema pode ser um entrave para a argumentação — pois as
crenças individuais podem se impor ao diálogo —, o exercício
de argumentar a favor do que se condena (e vice-versa) pode
ser uma estratégia produtiva para exercitar o distanciamento
crítico e a acolhida respeitosa de opiniões divergentes.
Ao observarmos o registro das atividades, pudemos levan-
tar alguns pontos de interesse para a discussão aqui travada
— os quais certamente não esgotam as reflexões que poderiam
ser feitas a partir de uma análise detida do material visual. Em
relação às questões propriamente linguísticas, o estabeleci-
mento dos nexos para encadear os argumentos se deu a partir
de marcadores muito simples e repetitivos (então, mas), inclu-
sive próprios da fala informal (aí, daí).
No que diz respeito às estratégias argumentativas, chama-
ram a atenção, em primeiro lugar, o uso produtivo que os alu-
nos fizeram da leitura literária. Certamente, a discussão apro-
fundada feita antes colaborou para que eles se familiarizassem
com os elementos da narrativa e a temática abordada. Muitos
se valeram de anotações no próprio livro ou em folhas separa-
das para organizar suas falas, assim como usaram trechos da
obra para justificar seus argumentos.

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Textualidades em Aula

Em segundo lugar, se destaca o recurso a um conheci-


mento de mundo, para além do explicitado no livro, como
forma de estabelecer relações comparativas ou exemplifica-
doras que dessem suporte à argumentação. Houve quem se
referisse a saberes “jurídicos”, como as noções de crime pas-
sional e homicídio doloso, ou quem recorresse a conhecimen-
tos de outras áreas, como as Ciências Sociais, citando exem-
plos e conceitos aprendidos na própria escola, nas aulas da
disciplina. Um aluno citou o exemplo de Mandela — ele pró-
prio era negro — para contrapor às atitudes da criatura na
obra. Houve, também, muitas exemplificações baseadas em
experiências pessoais ou em conceitos genéricos, o que, como
advertiu Cotteron (2006), é mesmo um dos desafios a ser en-
frentado no exercício da argumentação, em especial entre os
mais jovens.
Em terceiro lugar, pudemos notar formas diferentes de or-
ganizar os argumentos, como a enumeração dos mesmos, sem
critério definido ou em ordem de força argumentativa, e o es-
tabelecimento de uma linha do tempo para as ações do perso-
nagem como forma de facilitar a visualização das relações de
causa e consequência que seriam expostas. Por último, a estru-
tura proposta para o debate facilitou que os alunos retomas-
sem de forma ora mais, ora menos explícita os argumentos dos
colegas para refutá-los, problematizá-los e relativizá-los. Apa-
receram expressões como “Ele disse que...”, “Você disse que...”,
“Porém...”, “Isso que você disse...”.
Já em relação à regulação interativa, observamos que, de-
pendendo das características das turmas, os alunos se compor-
tavam de maneira mais ou menos efusiva, mais ou menos
agressiva, demandando interferência do professor. Os alunos
foram orientados o tempo todo a respeitar o turno de fala do

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

colega debatedor em destaque, o que gerou a situação inusita-


da de eles elaborarem cartazes com frases de contestação e in-
centivo em relação à argumentação ou de instruções para me-
lhorar a interação (como falar mais alto ou ater-se ao tempo).
Isso não significa que algumas vezes o papel de moderador do
professor não devesse vir à tona para evitar a sobreposição de
vozes que dificultava o efetivo debate. É um trabalho árduo o
da regulação das regras interacionais do debate entre alunos
jovens, mas não impossível. Se for uma prática constante, ain-
da que a partir de outros gêneros ou mesmo em relação à pró-
pria interação cotidiana em sala de aula, o resultado é positivo.
Alguns alunos também demonstraram dificuldades em con-
cluir a sua fala, fechando o turno, o que também demandou
interferência do professor.
Antonio Suárez Abreu (2003) ressalta que a argumentação
envolve tanto razão como emoção. Neste sentido, muitos alu-
nos ainda não dominam sua autorregulação neste tipo de ati-
vidade e ambiente. O momento de mediação pelo professor
indica ainda um aprendizado necessário às interações argu-
mentativas orais, tanto em sala quanto na vida social mais am-
pla. Por algumas vezes, na atividade em sala de aula, a irritação
e a raiva de alguns estudantes, no processo de argumentação e
contra-argumentação, impediram o transcurso do trabalho.
Dessa forma, é também necessário observar e desenvolver tais
aspectos emocionais, principalmente na modalidade oral de
debates.
Avaliando as três experiências, podemos dizer que nenhu-
ma delas deve ser tomada como modelo bem acabado, mas
como exemplos de um exercício constante de pensar em práti-
cas didáticas significativas. No caso da primeira atividade, por
exemplo, talvez não devêssemos ter esperado o ano seguinte

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Textualidades em Aula

para intervir nas resenhas e comentários dos alunos. Já no caso


da última experiência, teria sido interessante e produtivo que
os alunos pudessem ter visto as filmagens para que discutis-
sem coletivamente sobre a eficácia (ou não) das estratégias
empregadas, além de pensarem em estratégias alternativas.
Questões relacionadas à língua (como o uso de elementos co-
esivos variados e adequados à progressão argumentativa em
discurso formal), à modalidade (as pausas, os marcadores dis-
cursivos, as hesitações, as reformulações) e ao grau de forma-
lidade (já que, apesar do esforço, a coloquialidade compareceu
de forma inadequada em algumas falas) poderiam ter sido tra-
balhadas após a atividade, como forma de avaliá-la e como
ponto de partida para novas aprendizagens.
Enfim, tentamos mostrar, a partir de exemplos efetiva-
mente colocados em prática, que a argumentação, materializa-
da em diferentes gêneros orais e escritos, pode — e deve — ser
objeto de ensino desde o terceiro ciclo do Ensino Fundamental
— e mesmo antes —, já que é um tipo textual que faz parte do
cotidiano dos alunos e demanda habilidades e competências
complexas que precisam ser desenvolvidas progressivamente.

Referências

ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando


razão e emoção. 6. ed. Cotia, SP: Ateliê, 2003.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos. Secretaria de
Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CASTRO, Ruy. Frankenstein. Uma história de Mary Shelley
contada por Ruy Castro.

118

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A argumentação no terceiro ciclo do ensino fundamental

Ilustração: Odilon Moraes. São Paulo: Companhia das Letras,


1994.
CITELLI, Beatriz. A criança e seu texto argumentativo. In:
Produção e leitura de textos no Ensino Fundamental. São
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Propostas didáticas para a prender a escrever. Tradução Va-
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COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e
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DO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Orgs.).
Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.
    . Da fala para a escrita: atividades de retextualização.
São Paulo: Cortez, 2001.
SERAFINI, Maria Teresa. Como escrever textos. Tradução Ma-
ria Augusta Bastos de Mattos; Adaptação Ana Luísa Mar-
condes Garcia. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

119

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Construções de tópico marcado em textos de
escritores brasileiros e o ensino de língua
portuguesa

Priscila Bezerra de Menezes (CPII)


Antonio José dos Santos Junior (CPII)

1. Considerações iniciais

Ao falar sobre o ensino de Português, temos sempre


deplorado, às vezes temos mesmo rido, quase sempre
temos detestado, e muito poucas vezes temos compre-
endido. Compreender, explica Bourdieu, é tomar as
pessoas e os acontecimentos como são, apreendendo-
-os como necessários, relacionando-os metodicamente
às causas e às razões que fazem que sejam como são
(SOARES, 2001, p. XIV).

Os estudos linguísticos muito contribuem para a compreensão


da estrutura, da natureza e do funcionamento das línguas. Tal
conhecimento é fundamental para o professor de língua ma-
terna cujo pressuposto seja o de criar, em sala de aula, as con-
dições de aprendizagem da variedade padrão da língua, esti-

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

mular os discentes à reflexão acerca da natureza da linguagem


e de seus diferentes usos, bem como da adequação ou inade-
quação de determinadas variedades linguísticas frente a con-
textos de uso diversos e das diferenças entre as modalidades
falada e escrita.
Admitindo-se as premissas de que a língua é o lugar de
ação e inter-ação social, de que sua unidade básica é o texto
— seja falado ou escrito — e de que o objetivo do ensino de
língua materna é desenvolver as competências linguística e
textual (TRAVAGLIA, 2005, p. 17) dos estudantes (a fim de
que eles sejam proficientes na produção textual e na leitura dos
diversos textos que circulam nas variadas práticas sociais de
que tomam parte), o ensino de língua materna torna-se orien-
tado, principalmente, para a leitura, análise e produção de tex-
tos. Tais atividades são relacionadas com a análise linguística
das estruturas que compõem o texto — respeitando-se, obvia-
mente, o estágio em que os estudantes se encontram — com o
intuito de explicitar os recursos linguísticos selecionados para
a composição dos textos e os efeitos de sentido que tais recur-
sos engendram, licenciando a construção de determinados
significados. Tal análise permite que os estudantes se cons-
cientizem dos recursos de que a língua dispõe e que deles se
apropriem para poder utilizá-los de forma eficaz em suas prá-
ticas textuais.
Durante o processo de ensino da língua portuguesa, um
fenômeno linguístico chama a atenção: o aparecimento de sen-
tenças que apresentam tópico marcado nas produções textuais
dos estudantes (em especial os do segundo segmento do ensi-
no fundamental). Diante desse fenômeno, a questão que se
apresentou foi a seguinte (Menezes, 2014, p.14): tal estrutura é
apenas uma marca de oralidade que deveria ser, gradativa-

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Textualidades em Aula

mente, suprimida dos textos escritos de maior formalidade ou


ela apresenta uma motivação pragmático-discursiva relevante,
que permite ao ouvinte/leitor se aproximar da compreensão
intencionada pelo falante/escritor?
Partindo da segunda hipótese, este artigo, na esteira das
análise de Menezes (2014), apresenta construções de tópico
marcado em autores brasileiros, em textos literários e não lite-
rários, verificando as motivações pragmático-discursivas de
seu uso, sob perspectiva funcionalista. Defendemos, desse
modo, a produtividade do ensino das construções de tópico,
haja vista serem um recurso linguístico que contribui para a
competência linguística e textual dos estudantes.

2. O Funcionalismo — breve explanação

O aporte teórico para o estudo das construções de tópico será


o Funcionalismo. Tal vertente demonstrou ser a mais adequa-
da por considerar essenciais o papel dos interlocutores, os co-
nhecimentos prévio e partilhado, bem como o contexto socio-
interacional para se compreender como se dá o processo
comunicativo e de que forma a estrutura da língua está a servi-
ço desse processo. Segundo Pezzati,

Obedecendo a seus princípios, a gramática funcional


considera que a relação entre a intenção do falante e a
interpretação do ouvinte não é estabelecida, mas ape-
nas mediada pela expressão linguística; o significado
que o falante codifica na expressão linguística não é
idêntico à sua intenção e nem se iguala à interpretação
final dada pelo ouvinte: apenas representa a informa-

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

ção necessária e suficiente que corresponde a determi-


nadas intenções para determinadas interpretações,
dentro da estrutura definida pela informação pragmá-
tica disponível aos interlocutores. (2011, p. 201)

É importante ter em mente que, além da informação parti-


lhada pelos interlocutores (indispensável para que haja intera-
ção verbal), existem informações que são apenas do conheci-
mento do falante e outras que são conhecidas apenas do
ouvinte. E é esse, nas palavras de Pezatti, o ponto “real” da in-
teração verbal (2011, p. 22), pois é por conta dessa diferença de
informações entre os interlocutores que a língua pode exercer
sua função, que é, primordialmente, a de provocar mudanças
na informação pragmática do destinatário. Essas mudanças
podem ser, basicamente, de três tipos: elas podem adicionar
informações ao conhecimento do falante; podem substituir
um conhecimento antigo por um conhecimento novo; ou po-
dem relembrar, no falante, algum conhecimento anterior que
estava desativado no momento da interação.

3. O conceito de tópico, segundo Lambrecht

Para que essas mudanças se realizem, a língua dispõe de fun-


ções específicas, que são atribuídas pelo falante a determina-
dos constituintes das orações, marcando-os, a fim de que o
destinatário, ao entrar em contato com o texto a ele endereça-
do, possa construir-lhe uma significação que se aproxime ao
máximo da intenção do falante no momento em que produziu
seu discurso. Essas funções são conhecidas como Tópico e
Foco.

123

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Textualidades em Aula

Alguns estudiosos tomam o tópico como uma categoria


discursiva; conceitualmente falando, seria o assunto desen-
volvido no discurso. Nesse sentido, o discurso apresenta um
tópico mais geral, que pode se subdividir em outros tópicos
— alguns mais centrais, outros mais periféricos, embora este-
jam todos ligados ao tópico mais geral. Costuma-se chamar
esse tópico mais geral de tópico discursivo e os outros, de sub-
tópicos.
O foco, por sua vez, é o constituinte que contém a infor-
mação a ser ressaltada, é o elemento sobre o qual o falante
chama a atenção, mostrando para o ouvinte que aquela é a in-
formação mais importante no texto. Qualquer elemento da
oração pode ser o foco, tanto as estruturas que compõem o
predicado quanto o sujeito. A informação que constitui o foco
da mensagem é aquela que visa operar a mudança pragmática
no conhecimento prévio do ouvinte (PEZATTI, 2011, p. 203-
4). O falante, por meio das marcações dos constituintes sen-
tenciais com as funções de Tópico e Foco, orienta a construção
do significado que deseja que o ouvinte realize (PEZATTI,
2011, P. 204).
Nesse sentido, é muito esclarecedora a teoria desenvolvida
pelos estudos funcionalistas de Lambrecht (1994) acerca da es-
trutura da informação (informational structure). A partir dessa
perspectiva, o autor redefine os tipos de sentença possíveis em
uma língua e os conceitos de tópico e foco a partir de uma vi-
são que estuda a sintaxe dentro do contexto pragmático-dis-
cursivo. Lambrecht pretende investigar de que modo a organi-
zação intencional que o falante faz acerca da estrutura
sentencial sinaliza para o ouvinte a forma como este deverá
processar a informação, marcando discursivamente partes da
sentença.

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

Lambrecht, por apresentar uma visão funcionalista, afirma


que não há como compreender certas estruturas da língua em
sua totalidade sem olhar para os contextos linguístico e extra-
linguístico nos quais as sentenças foram criadas. Fica claro,
portanto, o papel fundamental que a pragmática apresenta
para a compreensão dos fenômenos de linguagem:

[…] certain formal properties of sentences cannot be


fully understood without looking at the linguistic and
extralinguistic contexts in which the sentences having
these properties are embedded. Since discourse invol-
ves the use of sentences in communicative settings,
such research is clearly associated with the general area
of pragmatics (Lambrecht, 1994, p. 2).1

No livro Information structure and sentence form, Lambre-


cht (1994) se ocupa de estudar de que modo a forma e a orga-
nização da sentença revelam a organização da informação feita
pelo usuário da língua com vistas a alcançar determinados ob-
jetivos. Estuda, portanto, o uso que o falante faz dos diferentes
modos de organizar a informação, dentro de uma sentença,
para atender a determinados propósitos comunicativos. Lam-
brecht deixa claro que se baseou no termo estrutura informa-
cional criado por Halliday e citado em seu artigo Notes on
transitivity and theme in english, publicado no Journal of lin-
guistics 3, em 1967.

1
“Certas propriedades formais das sentenças não podem ser completa-
mente entendidas sem que se olhe para os contextos linguístico e extralin-
guístico nos quais tais sentenças estão inseridas. Uma vez que o discurso
envolve o uso de sentenças em situações comunicativas, tal pesquisa está
claramente associada ao domínio geral da pragmática.” (Tradução nossa)

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Textualidades em Aula

Outro mérito das análises de Lambrecht é que procura ex-


plicar a estrutura da sentença tendo em vista os estados men-
tais dos interlocutores, as informações por eles compartilha-
das e a informação nova que será acrescentada pelo falante:

[…] Information structure is concerned with the form of


utterances in relation to assumed mental states of spe-
akers and hearers. And important part of the “hypotheses
about the receiver’s assumptions” are hypotheses about
the statuses of the mental representations of the referents
of linguistic expressions in the mind of the receiver at the
moment of utterance (Lambrecht, 1994, p. 3).2

As informações que já são de conhecimento do ouvinte se-


rão, pelo falante, ativadas (ou reativadas) mediante certas po-
sições que os sintagmas que veiculam essas informações assu-
mirão, e essa posição sinaliza para o receptor o status dessa
informação com relação ao seu grau de informatividade; do
mesmo modo, a informação que será acrescentada ocupará
outra posição específica na sentença, posição essa que a deter-
mina como informação nova.
Sabendo que o conceito de tópico apresenta várias defini-
ções e foi estudado dentro de diferentes perspectivas (cf. Cha-
fe, Li & Thompson (1976), Pontes (1987), dentre outros),
Lambrecht trata de esclarecer logo de início que o tópico a que
se refere em seu estudo está relacionado com a definição aris-

2
“A estrutura informacional diz respeito à relação entre a forma dos discur-
sos e os estados mentais assumidos pelos falantes e ouvintes. Uma importan-
te parte das ‘hipóteses acerca das suposições do receptor’ são hipóteses sobre
o status das representações mentais dos referentes das expressões linguísticas
na mente do receptor, no momento da interação.” (Tradução nossa)

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

totélica de sujeito: o elemento sobre o qual se faz uma declara-


ção. Deixa claro, entretanto, que as noções de tópico e sujeito
não se confundem, uma vez que o tópico nem sempre será o
sujeito e vice-versa (Lambrecht, 1994, p. 118).
Lambrecht também alerta que o tópico a que se refere não
se identifica com o conceito de ‘o elemento que vem primeiro
na sentença’ — definição dada também para tema dentro da
tradição da escola linguística de Praga e adotada por funciona-
listas como Halliday e Firbas (LAMBRECHT, 1994, p. 117).
Em seu dispositivo teórico, o elemento que vem primeiro na
sentença pode tanto ser o tópico quanto o foco, sendo classifi-
cado de uma forma ou de outra de acordo com a informação
que expressa dentro do contexto pragmático-discursivo.
O sujeito, na estrutura sentencial clássica sujeito-predica-
do é, segundo Lambrecht, o tópico não marcado. O tópico
marcado será aquele em que o tópico é apenas o sujeito psico-
lógico, porém não é idêntico ao sujeito gramatical.
A definição de sujeito remonta à tradição gramatical oci-
dental, sendo um termo que não tem uma conceituação única;
as diferentes definições existentes de sujeito revelam, em ver-
dade, diferentes perspectivas segundo as quais se pode apreen-
der essa categoria. Essa inexistência de um conceito absoluto
para o sujeito não é um problema ou um defeito das análises
linguísticas. O equívoco, assaz frequente, é com o próprio ato
de conceituar. Acredita-se que só se conceitua delimitando-se
propriedades necessárias e suficientes (conceituação clássica,
que atende perfeitamente à geometria e à aritmética); porém,
podemos conceituar através de propriedades gerais, frequen-
temente verificáveis (conceituação por protótipos, pertinente
aos raciocínios humanos e aplicada em inteligência artificial).
(Ver Santos Junior, 2014, p.17)

127

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Textualidades em Aula

Halliday, por exemplo, aponta três definições básicas de su-


jeito: o ser sobre o qual se declara algo; o ser sobre o qual se
predica algo (ou seja, aquele que é o argumento externo do ver-
bo); o ser que pratica a ação. (1994, p. 30). Segundo ele, essas
definições não são sinônimas, e a questão que se coloca é se o
sujeito pode abrigar ao mesmo tempo todas essas definições.
Em algumas sentenças, essas três definições coincidem de esta-
rem reunidas em um mesmo sintagma, porém isso não ocorre
sempre. O fato é que essas diferentes definições correspondem a
diferentes funções, uma vez que tais funções estão em domínios
distintos da língua. Na verdade, essas três definições correspon-
dem, respectivamente, aos três tipos de sujeito: Sujeito psicoló-
gico, Sujeito gramatical e Sujeito lógico (Halliday, 1994, p. 31).
Segundo Halliday, essa distinção é fundamental quando se
analisam dados de língua em uso, estudando textos construí-
dos em situações reais de interação, uma vez que é nessa seara
que a diversidade de construções sentenciais se verifica. Não
há como considerar que o sujeito apresenta uma definição
única, ou que as três definições supracitadas pertencem a um
mesmo domínio, ou sejam variações da função única Sujeito.
Tais definições devem ser entendidas individual e separada-
mente, como funções distintas (1994, p.32). Halliday classifica
da seguinte maneira os três tipos de sujeito: o sujeito psicoló-
gico é o tema (theme); o sujeito gramatical é o sujeito (subject)
e o sujeito lógico é o agente (actor). Muitas vezes, esses três ti-
pos de sujeito coincidem nas sentenças, porém esse fato não
significa que tal ocorrência seja uma regra.
Para ilustrar esses conceitos, segue abaixo um fragmento
de uma produção textual de um estudante do 7º ano do ensino
fundamental de uma escola municipal do Rio de Janeiro, se-
guido de comentários:

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

(1) Esse livro eu peguei na sala de leitura da escola eu


vou devolver o livro mas se quiser pegar é só pegar.
(final do texto — G.G. 7º ano)

O exemplo 1 é o final de um texto no qual o estudante de-


veria abordar, resumidamente, o livro lido e recomendá-lo (ou
não) a um colega. Queremos chamar a atenção para as cons-
truções “eu vou devolver o livro” e “esse livro eu peguei na sala
de leitura da escola”.
Na primeira construção, as três definições de sujeito coin-
cidem no mesmo termo: “eu” é, ao mesmo tempo, o sujeito
lógico, pois é o ser que pratica a ação, o sujeito psicológico,
porque é o ser sobre o qual se declara algo e é o sujeito grama-
tical, porque é o termo com o qual o verbo concorda.
Já na construção “esse livro eu peguei na sala de leitura da
escola”, o sujeito psicológico não coincide com o sujeito gra-
matical e lógico. O sujeito psicológico — o ser sobre o qual se
declara algo — é “esse livro”, ao passo que “eu” assume os pa-
péis de sujeito gramatical e sujeito lógico (uma vez que é o
termo com o qual o verbo concorda e também é o agente).
Nesta pesquisa, adotando a posição de Lambrecht, consi-
deramos o sujeito psicológico como tópico, uma vez que assu-
mimos a definição de tópico como sendo a entidade sobre a
qual se declara alguma informação e a ideia de que as senten-
ças tópico-comentário são sentenças básicas da língua portu-
guesa. A justificativa dessa posição e a distinção entre senten-
ças tópico-comentário e sujeito-predicado serão feitas a seguir.
Lambrecht (1994) parte da distinção entre os três tipos de
sujeito retomada e enriquecida por Halliday e da concepção de
sentença como unidade de informação para desenvolver uma
teoria que investiga e procura explicar a forma e a organização

129

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Textualidades em Aula

dos elementos composicionais de uma sentença com base na


sua estrutura informacional, dentro de uma contextualização
pragmático-discursiva — uma vez que leva em conta o contex-
to interacional, a intenção do falante, o estado mental do ou-
vinte e seu conhecimento prévio no momento da interação.
Na perspectiva da estrutura informacional de Lambrecht,
existem dois tipos de sentenças: as sentenças tópico-comentá-
rio (doravante, TC) e as sentenças event-reporting3. As senten-
ças TC são consideradas básicas por serem as mais comuns, e
são, por isso, classificadas como estrutura pressuposicional
não marcada — em inglês, unmarked pressuppositional struc-
ture (Lambrecht, 1994, p. 136). Essa se caracteriza por conter
um sujeito cujo referente é conhecido do ouvinte e, portanto,
apenas o predicado contém informação nova a ser processada.
Tem-se, então, o sujeito como tópico não marcado e o foco, a
informação sobre o tópico, estará no predicado. Já a sentença
do tipo event-reporting se caracteriza por apresentar sujeito e
predicado como referentes de informações novas. Nesse caso,
o sujeito não é o tópico, uma vez que se considera que o tópico
é a entidade sobre a qual se fala e o termo cujo referente está
ativo ou acessível no discurso ou no contexto interacional.
Nesse último tipo de sentença, considera-se que sujeito e pre-
dicado constituem o foco, uma vez que, para o processamento
da informação veiculada pela sentença, o ouvinte não poderá
partir de nenhum referente evocado por algum tópico presen-
te na sentença, haja vista a sentença não possuir tópico.

3
Mantivemos o nome que designa o conceito em inglês por não haver tradu-
ção para a Língua Portuguesa do livro utilizado. Entretanto, o termo event-
-reporting poderia ser parafraseado, em Língua Portuguesa, por uma expres-
são do tipo “anunciar/ relatar um evento”, “reportar um acontecimento”.

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

Lambrecht nos dá o seguinte exemplo para demonstrar a


diferença entre uma sentença TC e uma sentença event-repor-
ting (1994, p. 123-4): dada uma sentença como

(2) As crianças foram para a escola. (Lambrecht, 1994,


p. 123. Tradução nossa)

Há, basicamente, duas leituras pragmáticas possíveis para


essa sentença. A diferença entre as duas está na proposição
subjacente a essa sentença e no pressuposto de que se parte: o
contexto pragmático-discursivo é o que fornecerá subsídios,
portanto, para classificá-la. Caso a sentença (2) esteja respon-
dendo a uma questão como “O que as crianças fizeram?”, “As
crianças” será o termo sobre o qual a sentença (2) traz infor-
mação nova, portanto “As crianças” é considerado tópico e “fo-
ram para a escola” é o comentário, e a sentença (2) seria, por-
tanto, um caso de construção TC. Caso a sentença (2) seja a
resposta a uma pergunta do tipo “O que aconteceu?”, claro está
que tanto o sujeito gramatical quanto o predicado trazem in-
formações novas — não novas no sentido de que o destinatá-
rio não saiba a que crianças o falante esteja se referindo, e sim
novas no sentido de não terem sido previamente acionadas/
ativadas no discurso. Nesse sentido, a sentença (2) seria um
exemplo de sentença event-reporting.
Para um termo ser tópico, segundo Lambrecht, é necessá-
rio que satisfaça duas condições: ser o termo sobre o qual se
fala (aboutness) e ter relevância no contexto pragmático-dis-
cursivo (Lambrecht, 1994, p. 164).
Lambrecht (1994, p. 132) defende a ideia de que os sujeitos
gramaticais, em sentenças canônicas sujeito-predicado, são tópi-
cos não marcados, e justifica essa afirmação chamando atenção

131

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Textualidades em Aula

para o fato de que, geralmente, o falante não inicia sua fala com
algum termo completamente novo, no sentido da informação
que transmite. Geralmente se inicia com um sintagma cujo refe-
rente está no contexto pragmático-discursivo ou será reativado,
caso tenha sido anteriormente mencionado. Sendo assim, Lam-
brecht prossegue afirmando que as construções tópico-comen-
tário são a articulação pragmática mais utilizada, sendo, portan-
to, construções sentenciais básicas. Dentre as várias evidências
que o autor cita para comprovar sua tese, está o fato de que em
um discurso coerente, a maioria dos sujeitos são expressões que
indicam continuidade tópica, como pronomes (1994, p. 132).
A estrutura TC é utilizada para trazer alguma informação
nova a respeito de um tópico sob discussão. Sendo assim, nos
casos em que a estrutura gramatical sujeito-predicado é equi-
valente pragmaticamente à estrutura TC — que são, segundo
Lambrecht, a maioria —, o sujeito gramatical será também o
sujeito psicológico e irá veicular uma informação já conhecida
do ouvinte ou acessível a ele no contexto pragmático dado e o
predicado conterá a informação nova. Nesses casos, o sujeito é
considerado unmarked topic expression (Lambrecht, 1994, p.
136), ou seja, “expressão tópica não marcada”4. Essa frequente
superposição entre o domínio gramatical que divide a senten-
ça em sujeito-predicado e o domínio pragmático que divide a
sentença em tópico-comentário, segundo Lambrecht, é que fez
com que muitos gramáticos e linguistas considerassem a es-
trutura sentencial sujeito-predicado como a estrutura básica.
Nos casos em que a sentença é, na perspectiva pragmática,
TC, porém não corresponde à ordem canônica sujeito-predi-
cado, ocorrem casos de tópicos marcados. A marcação tópica é

4
Tradução nossa.

132

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

feita no intuito de sinalizar ao leitor a entidade sobre a qual se


irá falar, que deve estar ativa na mente do ouvinte ou acessível
no contexto pragmático-discursivo ou, ainda, deve ser ativada
na memória do ouvinte, e mostrar que é sobre aquele ente que
se irá acrescentar informação nova. Para um termo ser marca-
do como tópico ele deve, também, ter relevância para os inter-
locutores dentro da situação de comunicação.
Muitos pesquisadores, ao sinalizarem a existência de cons-
truções de tópico no Português Brasileiro (doravante PB), le-
vantaram a hipótese de que o PB é uma língua de sujeito e de
tópico (Li e Thompson, 1976). Essa discussão, entretanto,
pode ser resolvida caso se considere, a exemplo do que fez
Halliday (1994), que existem três tipos de sujeito, de acordo
com a função exercida pelo sintagma nominal dentro da sen-
tença — sujeito psicológico, sujeito lógico e sujeito gramatical
— e se levarmos em conta a distinção feita por Lambrecht
(1994) entre os domínios sintático e pragmático, distinção essa
que faz com que a construção sentencial sujeito-predicado es-
teja no domínio da sintaxe e a construção tópico-comentário
esteja no nível pragmático-discursivo. Sujeito e tópico são,
dessa maneira, categorias pertencentes a domínios diferentes
da língua, havendo casos em que um mesmo sintagma nomi-
nal pode ser, coincidentemente, sujeito gramatical e psicológi-
co — e tópico, portanto — e outros em que tais categorias não
coincidam em um mesmo sintagma nominal.

4. Construções de tópico em textos de autores brasileiros

Nesta seção, apresentamos alguns textos pertencentes a dife-


rentes gêneros textuais de autores brasileiros variados que exi-

133

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Textualidades em Aula

bem construções de tópico marcado, a fim de demonstrar, pri-


meiramente, sua ocorrência e, em segundo lugar, o propósito
comunicativo de seu uso.

(3) Ideologia

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Frequenta agora as festas do “Grand Monde”

Meus heróis morreram de overdose


Meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver

(Cazuza. Site da internet)

Nesta letra de música, vemos que, no refrão, há uma cons-


trução TC:

Ideologia
Eu quero uma pra viver.

134

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

Se pensarmos na escala de aceitabilidade tópica de Lam-


brecht (1994, p. 165), o tópico — Ideologia — não está ativado,
mas é altamente acessível por conta do contexto discursivo: a
letra de música traz uma reflexão do eu-poético acerca da con-
juntura sociopolítica em que vive e de suas desilusões quanto a
grandes ideais e em relação a seus ídolos. A própria análise da
camada lexical do texto leva o ouvinte/leitor a essa conclusão,
pois ativa esse frame: partido, ilusões, heróis, poder, sonhos
vendidos, mudar o mundo.
O tópico nessa sentença estabelece uma relação argumental
de objeto direto com o verbo querer. Entretanto, evitamos a clas-
sificação que leva em conta uma regra de movimento5. Parece
claro que ideologia é o ponto de partida para a construção da
sentença, regendo-a, constituindo-se essa sentença como básica.

(4) O nosso amor a gente inventa (estória romântica)

O teu amor é uma mentira


Que a minha vaidade quer
E o meu, poesia de cego
Você não pode ver

Não pode ver que no meu mundo


Um troço qualquer morreu
Num corte lento e profundo
Entre você e eu

O nosso amor a gente inventa


Pra se distrair

5
Para maiores explicações, cf. Menezes, 2014.

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Textualidades em Aula

E quando acaba, a gente pensa


Que ele nunca existiu

(Cazuza. Id. ibid.)

Nessa letra de música, também de Cazuza, ocorre, igual-


mente, no refrão, uma construção TC, na sentença “O nosso
amor a gente inventa/ Pra se distrair”, cujo tópico também es-
tabelece uma relação argumental de objeto direto com o verbo
inventar. Podemos compreender por que o eu-poético optou
por essa construção: na primeira estrofe ele caracteriza o amor
da pessoa a quem se dirige e o amor que ele próprio sente; na
segunda estrofe ele demonstra o descompasso entre os dois
amantes e, no estribilho, por fim, ele retoma, através do sin-
tagma “o nosso amor”, o tópico que está ativo no discurso para
lhe acrescentar informações novas, uma conclusão a respeito
do que se disse até o momento: revela que o amor de ambos é
uma invenção que serve de passatempo sem maiores conse-
quências.
Vejamos, agora, construções TC na poesia de escritores
consagrados da literatura brasileira:

(5) Teresa

A primeira vez que vi Teresa


Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo


Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto
do corpo

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

(os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que


o resto do corpo [nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada


Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das
águas.

(Bandeira, 1981, p. 66)

Nesse poema de Manuel Bandeira, há uma construção tó-


pica no primeiro verso da primeira estrofe: “A primeira vez
que vi Teresa”; o adjunto adverbial que inicia a sentença está
“reanalisado”, não havendo a presença da preposição em ou de.

(6) A Rua dos Cataventos


II

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...


E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro.
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...

Dorme... não há ladrões, eu te asseguro...


Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,


O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

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Textualidades em Aula

Só os meus passos... Mas tão leves são


Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...

(Quintana, 2005, p. 86)

No poema de Quintana, vemos uma construção sentencial


TC que é classificada como pleonasmo: “E os meus passos,
quem é que pode ouvi-los?” Pois a oração se inicia com o tópi-
co “E os meus passos”, que estabelece uma relação argumental
de objeto direto com o verbo ouvir e, logo após o verbo, há o
objeto direto (classificado sintaticamente de objeto direto ple-
onástico). Essa estrutura tópica se assemelha a casos em que o
tópico se inicia com a expressão “quanto a...”. O conectivo “e”
instaura, a exemplo de “quanto a...”, uma mudança de subtópi-
co discursivo.

(7) Máquina de coser


Eu podia comemorar o fato de Hércules fiando aos pés
de Ônfale, e mostrar o importante papel que represen-
tou, na antiguidade, a teia de Penélope, que mereceu
ser cantada por Homero. Quanto à agulha de Cleópa-
tra, esse lindo obelisco de mármore, é a prova mais for-
mal de que os egípcios votavam tanta admiração à arte
da costura, que elevaram aquele monumento à sua rai-
nha, naturalmente porque ela excedeu-se nos traba-
lhos desse gênero. (Alencar, 2007, p. 37 — fragmento)

No fragmento da crônica Máquina de coser, de Alencar, te-


mos uma construção de tópico que, segundo Pontes (1987 p.
100), é utilizada frequentemente em textos escritos com o objeti-

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

vo de introduzir um subtópico no texto: a construção que se ini-


cia com a expressão “quanto a...”. De fato, essa é a função do ter-
mo grifado, uma vez que o tópico discursivo é o ato de costurar.
Vejamos, agora, algumas construções TC em contos de
Machado de Assis:

(8) O poeta [Luís Tinoco] puxou da algibeira o Cor-


reio Mercantil, e o velho Anastácio entrou a ler para si
a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padri-
nho, Luís Tinoco parecia querer adivinhar as impres-
sões que produziam nele os seus elevados conceitos,
metrificados com todas as liberdades possíveis e im-
possíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os ver-
sos e fez com a boca um gesto de enfado.
– Isto não tem graça, disse ele ao afilhado estupefa-
to; que diabo tem a lua com a indiferença dessa moça,
e a que vem aqui a morte deste estrangeiro?
Luís Tinoco teve vontade de descompor o padri-
nho, mas limitou-se a atirar os cabelos para trás e a
dizer com supremo desdém:
– São coisas de poesia que nem todos entendem;
esses versos sem graça, são meus.
– Teus? Perguntou Anastácio no cúmulo do espanto.
– Sim, senhor. (Assis, 2008, p. 17 — fragmento)

No fragmento acima, retirado do conto Aurora sem dia, de


Machado de Assis, chama atenção, no diálogo, a construção
“esses versos sem graça, são meus”, com o uso da vírgula indi-
cando uma pausa que marca o sintagma “esses versos sem gra-
ça” como o tópico, uma vez que é sobre ele que uma informa-
ção nova será dada. Consideramos essa sentença como de

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Textualidades em Aula

tópico marcado, embora as construções SVO sejam, em casos


como esse, de tópico não marcado, por conta da vírgula, que
leva o leitor a uma leitura pragmática diferente daquela que
poderia ser feita sem a vírgula; a vírgula apresenta uma função
discursiva, de marcação do tópico, marcando a retomada do
assunto em pauta e criando expectativa para a informação
nova que sobre ele será dada.
Chamamos a atenção também para o grifo que aparece so-
bre o termo ‘sem graça’, indicando claramente que se trata de
retomada do discurso do interlocutor com vistas a criticar tal
julgamento de valor e partir desse tópico ativo no diálogo para
acrescentar a ele a informação nova — o falante/narrador está
certo de que causará surpresa no ouvinte, por isso a escolha
dessa construção de tópico marcado com a vírgula — de que
os versos são do próprio falante. Como o termo sobre o qual
irá se acrescentar informação nova (“esses versos sem graça”) é
o próprio sujeito gramatical da sentença — e, portanto, seria
considerado o tópico marcado —, o narrador optou por sepa-
rar por vírgulas o sujeito gramatical do restante da sentença,
marcando o tópico e criando certo suspense e expectativa so-
bre a informação nova que será transmitida pelo comentário,
que nesse caso coincide com o predicado.
No mesmo conto, mais adiante, verificamos a seguinte
construção, em diálogo de Luís Tinoco com Dr. Lemos:

(9)
– Ela ignora talvez que eu me consumo.
– Isso é mau!
– Que quer? Disse Luís Tinoco enxugando com o
lenço uma lágrima imaginária; é fado dos poetas arde-
rem por coisas que não podem obter. É esse o pensa-

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

mento de uns versos que escrevi há oito dias. Publi-


quei-os no Caramanchão literário.
– Que diacho é isso?
– É a minha folha, que eu lhe mando de quinze em
quinze dias... E diz que lê as minhas obras!
– As obras leio... Agora os títulos podem escapar.
Vamos porém ao que importa (Assis, 2008, p. 26 —
fragmento)

Na última fala da personagem, vemos a construção de tó-


pico marcado, com o tópico “as obras” iniciando a sentença (o
mesmo estabelece uma relação argumental de objeto direto
com o verbo “ler”).
Mais à frente, nas p. 31 e 34 do mesmo conto, “Aurora sem
dia” (fragmentos 12 e 13) e na p. 43 do conto “A chinela turca”
(fragmento 14), verificamos outras construções sentenciais
TC de natureza semelhante, agora na parte do texto cuja voz é
a do narrador observador:

(10)  O artigo foi publicado e Luís Tinoco recebeu al-


guns apertos de mão. Aquela doce e indefinível alegria
que ele sentira quando estampou no Correio Mercantil
os seus primeiros versos, voltou a experimentá-la ago-
ra, mas com alegria complicada de uma virtuosa reso-
lução: Luís Tinoco desde aquele dia sinceramente
acreditou que tinha uma missão, que a natureza e o
destino o haviam mandado à terra para endireita os
tortos políticos (Assis, 2008, p. 31 — fragmento).

(11)  Luís Tinoco acreditava piamente que ele era um


artigo do programa da Providência, e isso o sustinha e

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Textualidades em Aula

contentava. A sinceridade que nunca teve quando ver-


sificava os seus infortúnios entre suas palestras de ra-
pazes, teve-a quando enterrou a mais e mais na política
(Assis, 2008, p. 33-4 — fragmento).

(12)  Duarte recordou-se de que efetivamente o major


falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais,
duas ou três nênias e boa soma de artigos que escreve-
ra acerca das campanhas do Rio da Prata. Havia porém
muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os gene-
rais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a mo-
léstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama.
Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse
que Lopo Alves, algumas semanas antes, assistira à re-
presentação de uma peça do gênero ultrarromântico,
obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a ideia de
afrontar as luzes do tablado (Assis, 2008, p. 43 — frag-
mento).

Nos exemplos (10), (11) e (12), verificam-se construções


de tópico nos quais há pleonasmo (trechos grifados). Percebe-
-se a intenção de sinalizar que o objeto direto, colocado no
início da sentença, é o termo sobre o qual se irá acrescentar
informação, sobre o qual irá se declarar algo.
Finalizando a análise dos textos literários, um exemplo da
obra de Clarice Lispector, extraído do conto “Uma amizade
sincera”:

(13)  Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao


outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditáva-
mos em provas de uma amizade que delas não precisa-

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

va. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: sa-


ber que éramos amigos. O que não bastava pra encher
os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceri-
dade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza.
Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvin-
do música ou lendo, era muito maior do que quando es-
távamos sozinhos (Lispector, 1991, p. 21 — fragmento).

O exemplo (13) apresenta uma construção de tópico mais


comumente encontrada na modalidade falada: há a repetição
do sujeito pronominal, provavelmente pela distância entre o
sujeito e o restante da sentença a cujo verbo está ligado (moti-
vação sintática e discursiva) e também pela intenção de ressal-
tar a importância daquele personagem na vida do narrador.
Construções sentenciais TC aparecem, também, em textos
escritos de outros gêneros textuais não literários, como artigos
de opinião e entrevistas. Vejam-se, a título de ilustração, os se-
guintes exemplos:

(14)   Corpo a corpo — José Mariano Beltrame


O modelo de segurança está falido?
Falido, não sei, mas está doente. Polícia valorizada,
leis modernas, celeridade nas punições, presídios de-
centes, controle de fronteiras e do contrabando de ar-
mas e mais participação da sociedade. É isso que temos
de defender (O Globo, 2014, p. 14 — fragmento).

No exemplo (14), temos um par adjacente pergunta-res-


posta de uma entrevista concedida ao jornal O Globo pelo se-

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Textualidades em Aula

cretário de segurança pública do Rio de Janeiro José Mariano


Beltrame. Em sua resposta, o secretário escolhe uma estrutura
TC de tópico marcado aproveitando que o termo “falido” havia
sido ativado pelo entrevistador em sua pergunta para declarar
algo sobre o mesmo: “falido, não sei, mas está doente.” O tópi-
co estabelece uma relação argumental de predicativo do sujei-
to com o verbo estar.

(15)  Tá tendo Copa

Na Vila Madalena, a galera e os turistas festejam até gol


contra.

Se tudo der certo, na próxima semana teremos um re-


fozinho internacional. Parto para a Riviera francesa, a
serviço, com reserva no La Vistamar, restaurante co-
mandado por Joel Garauld e que ostenta uma estrela
Michelin. Veremos se o fez por merecer.
O La Vistamar é um dos restaurantes do hotel Her-
mitage, em Mônaco. Os que me seguem de longa data
sabem que minhas experiências com a alta gastrono-
mia na França não me entusiasmaram. Mal não comi,
mas saudade não senti. Não volto a nenhum deles.
(Alemão, 2014, p. 80 — fragmento)

No exemplo (15), uma crônica publicada na revista Carta


Capital, ocorre a sentença “Mal não comi, mas saudade não
senti”. Os tópicos marcados são “mal” e “saudade”, que foram
escolhidos para assumir essa posição muito provavelmente
pelo fato de que, na sentença anterior, há a informação de que
o narrador teve uma experiência negativa em um momento

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

anterior com restaurantes franceses (“Os que me seguem de


longa data sabem que minhas experiências com a alta gastro-
nomia na França não me entusiasmaram”), portanto mal e
saudade, sentimentos e estados de espírito ligados à experiên-
cia, são colocados como tópico por serem informações acessí-
veis — pensando na escala de aceitabilidade tópica de Lambre-
cht — por conta da abertura do frame que as sentenças
anteriores promoveram, ligadas a experiências gastronômicas.
O restante da sentença (“não comi”/ “não senti”) é a informa-
ção nova a ser acrescentada sobre o tópico. É interessante tam-
bém o paralelismo estrutural sintático dessas orações dentro
da sentença, a marcação rítmica e a rima entre os dois verbos,
o que faz com que essa sentença se aproxime de uma estrutura
poética.
Com esta análise de algumas sentenças TC de tópico mar-
cado em textos de diferentes gêneros, demonstramos que essa
estrutura, mais do que estar presente em textos escritos de di-
versos autores brasileiros, apresenta uma motivação pragmáti-
co-discursiva e atende a determinados propósitos comunicati-
vos ligados à estrutura da informação, ou seja, ao modo como
o escritor organiza, em seu texto, as informações, levando em
conta o estado mental-cognitivo do leitor quanto ao assunto
de que irá falar, o conhecimento que é compartilhado por lei-
tor e escritor e aquele que será informação nova para o leitor.

5. Considerações finais

Nesta pesquisa, pudemos constatar que as construções de tó-


pico marcado identificadas nos textos analisados são utiliza-
das de forma consciente e com clara intenção pragmático-dis-

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Textualidades em Aula

cursiva, visando à criação de certos efeitos de sentido. Tal fato


leva a crer que essa estrutura merece um olhar mais atento do
professor e deve ser incluída entre os objetos de ensino de lín-
gua portuguesa, uma vez que as sentenças de tópico marcado
podem ser apresentadas aos estudantes como mais um recurso
linguístico de que a língua portuguesa dispõe, cujo aprendiza-
do propiciará ao estudante tomar posse de novas habilidades
linguísticas: o professor poderá criar condições de aprendiza-
gem que façam com que o estudante, ao produzir seus textos
escritos, saia do uso inconsciente das construções de tópico
trazidas da modalidade oral da língua para um uso consciente
e competente desse recurso de linguagem altamente produtivo.

Referências

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neiro, 25 jun. 2014, ano XX, nº 805, p. 80.
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de Castro (org.) Contos de Machado de Assis. vol 1: Litera-
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(org.) Contos de Machado de Assis. vol 1: Literatura e músi-
ca. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 43.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira: poesias reunidas.
2 ed. Rio de Janeiro: livraria José Olympio, 1970, p. 177.

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Construções de tópico marcado em textos de escritores brasileiros

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    . O nosso amor a gente inventa (uma estória românti-
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Textualidades em Aula

PEZATTI, Erotilde Goreti. O Funcionalismo em linguística.


In: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina
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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

Luiz Guilherme Barbosa

Em 2009, por iniciativa de Caio Meira, o livro La littérature en


péril, que havia sido publicado dois anos antes na França, ga-
nha versão em português pela editora carioca Difel. O curto
ensaio, que na edição brasileira não chega às 100 páginas, em
poucos anos passou a constar em inúmeras bibliografias dos
processos de seleção para professores do ensino básico ou para
estudantes de pós-graduação na área de Letras. Naturalmente
é de se prestar atenção ao discurso sobre o ensino da literatura
quando ele é assinado por um intelectual que, após cinco déca-
das de trabalho, esteve no centro das pesquisas estruturalistas
na França, e posteriormente empreendeu — como o vem fa-
zendo ainda hoje — uma crítica aos usos das teorias estrutura-
listas, a ponto de se reposicionar como um historiador das
ideias, não mais teórico da literatura. Aos ensaios dedicados às
estruturas narrativas dos gêneros literários, como a literatura
fantástica, seguiram-se importantes obras sobre os discursos

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Textualidades em Aula

dos viajantes europeus nas primeiras décadas de colonização


do continente americano, sobre a história do pensamento hu-
manista francês, sobre a trajetória artístico-biográfica de Goya,
Rilke, Oscar Wilde, Marina Tsvetaeva, sobre o homem sob a
perspectiva antropológica, sobre a crise da democracia con-
temporânea. É um olhar para o ensino da literatura prenhe de
uma experiência intelectual de amplo espectro, que escolhe
percorrer diversos campos das ciências humanas em virtude
da convicção de que o homem precisa ser pensado em sua in-
teireza, aquele que encontramos em A literatura em perigo.
Como quando, após narrar a trajetória de Rilke com base em
sua correspondência, afirma que nessas cartas, que testemu-
nham a dificuldade da criação literária e as angústias da vida
do poeta, se lê “uma obra plenamente realizada, mediante a
qual vida e criação cessam de se opor para, enfim, se alimenta-
rem e se protegerem uma à outra” (TODOROV, 2011, p. 173).
Neste trecho de A beleza salvará o mundo, título em português
para Les aventuriers de l’absolu (2006), a familiaridade entre
“vida e criação”, que se alimentam e se protegem, é reveladora
da defesa de uma irredutibilidade do homem e da obra às teo-
rias, que caracteriza este Todorov autor do ensaio sobre o ensi-
no da literatura.
A recepção do livro de Todorov no Brasil parece se justifi-
car não propriamente por uma escassez bibliográfica, e sim
pelo eco que esse discurso de fundo crítico ao estruturalismo
encontra em novo contexto. A reflexão a respeito do ensino da
literatura, no contexto brasileiro, tem encontrado dois campos
teóricos legitimadores, por um lado, pela pesquisa universitá-
ria, por outro lado, pelos documentos oficiais produzidos pelo
Ministério da Educação, como é o caso dos Parâmetros Curri-
culares Nacionais (PCN). O primeiro desses campos se dese-

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

nha na tradição crítica produzida a partir da obra de Antonio


Candido, profundamente institucionalizada nas universidades
a partir de São Paulo, polo disseminador, e reproduzida nos
livros didáticos de literatura brasileira para o ensino médio.
Por mais que leituras decisivas, como a que faz do romance
Memórias de um sargento de milícias, ou fortes leituras de tex-
tos não canônicos, como a que faz dos poetas realistas do sécu-
lo XIX, não tenham sido institucionalizadas pela escola, a
perspectiva de uma história da literatura compreendida como
a formação de uma consciência nacional cuja autonomia esté-
tica se elabora na obra de Machado de Assis, em prosa, e nos
poetas do Modernismo, em poesia (o atraso da poesia, aqui, é
um indício forte de uma tomada de partido em prol da prosa),
está bem assentada nas mais potentes propostas pedagógicas
que se veem realizar nos colégios. É o caso, por exemplo, da
frequência com que se adota, na segunda série do ensino mé-
dio, a leitura de O cortiço ou do poema-mural “Navio negrei-
ro”, obras canônicas exemplares de uma formação progressiva
mas irregular da consciência crítica, atravessada pela grandilo-
quência do poeta romântico ou pelo preconceito de classe do
narrador naturalista. Outro campo teórico de reflexão do ensi-
no da literatura tem sido aquele propagado pelos PCN (2000)
que, sob o argumento de uma perspectiva dialógica da lingua-
gem, de base bakhtiniana, deslocou para o campo das linguís-
ticas do texto a legitimidade do estudo literário. A ponto de
outro documento publicado pelo Ministério da Educação seis
anos depois, as Orientações Curriculares Nacionais (OCN,
2006), reconhecerem que a proposta dos PCN recusa à litera-
tura a autonomia e a especificidade do seu estudo em relação
aos discursos não literários (OCN, 2006, p. 49). Apesar da res-
salva do documento orientado por Lígia Chiappini e Haquira

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Textualidades em Aula

Osakabe, os PCN até hoje legitimam um forte discurso crítico


de planificação da literatura, imersa no mesmo campo de for-
ças dos discursos não literários. (Uma das estratégias de reo-
rientação da reflexão sobre ensino de literatura é a releitura de
Bakhtin, teórico de Dostoiévski e Rabelais, cuja obra competiu
justamente com as teorias do Formalismo antenadas com a
vanguarda russa. Se lembrarmos que Roman Jakobson, o lin-
guista apaixonado pela vanguarda, era estudante e jovem pro-
fessor nos tempos futuristas, e que Tzvetan Todorov foi res-
ponsável por introduzir a obra dos formalistas russos na
cultura universitária francesa, então o quadro que se desenha,
de resistência bakhtiniana aos valores da vanguarda, põe em
jogo o campo minado do discurso sobre ensino de literatura
hoje.)1 Propostas como, ainda na segunda série do ensino mé-
dio, um tribunal julgador de Capitu, ou ainda a experiência de
fotografar a cidade do Rio de Janeiro a partir da leitura de al-
gum romance brasileiro do século XIX estão baseadas no pres-
suposto de que a ambiguidade do texto literário, ou a sua do-
cumentação histórica da memória urbana, são da mesma
ordem que a experiência de um jurado no tribunal ou de um
fotógrafo documental, com o mérito de pôr o texto em situa-
ção: produz-se, em aula, uma situação “real”, produzida antes,
por sua vez, pela ficção. Assim, tanto o campo teórico que par-
te da obra de Antonio Candido quanto aquele que se baseia na
concepção bakhtiniana de linguagem são resistentes a uma vi-
sada estruturalista do ensino da literatura. Mas, embora a tra-

1
Ver, a respeito, a resenha “Para aumentar a temperatura da língua: sobre
Questões de estilística no ensino da língua, de Mikhail Bakhtin” (Fólio — Re-
vista de Letras. Vitória da Conquista: Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia, v. 6, n. 2, jul.-dez. 2014, p. 401-408. Disponível em: http://periodicos.
uesb.br/index.php/folio/article/view/2770. Acesso em 15 de abril de 2016.)

152

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

jetória de Todorov o sugira, não é bem uma crítica ao estrutu-


ralismo o principal combate que A literatura em perigo busca
realizar.
Indo direto ao ponto, Todorov busca diagnosticar, no ensi-
no francês, um desequilíbrio entre o que chama de abordagens
interna e externa da obra literária. O predomínio da aborda-
gem interna, fruto das transformações por que passaram as
universidades francesas desde a década de 1960, encontraria
hoje solo fértil para infertilizar:

Permanece o fato de que a tendência que se recusa a


ver na literatura um discurso sobre o mundo ocupa
uma posição dominante no ambiente universitário,
exercendo uma influência notável sobre a orientação
dos futuros professores de literatura. (TODOROV,
2009, p. 40).

É, digamos, o mundo irredutível à obra o que interessa a


Todorov defender diante do risco de uma concepção, nomea-
damente pós-estruturalista, para a qual a indagação da verda-
de do texto, objeto do discurso crítico, produz um interminá-
vel comentário tagarela que consiste em recusar a verdade do
texto: “O texto só pode dizer uma única verdade, a saber: que
a verdade não existe ou que ela se mantém para sempre inaces-
sível” (TODOROV, 2009, p. 40). Assim, algo que não se reduz
ao discurso, nem mesmo à verdade — o mundo —, a literatura
toma como objeto, representando-o. Os herdeiros da descons-
trução, ou “os representantes da tríade formalismo-niilismo-
-solipsismo” (TODOROV, 2009, p. 71), dão o tom do discurso
crítico francês, por ocuparem posições ideologicamente hege-
mônicas, e apregoam: “Admitindo-se que uma obra fala do

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Textualidades em Aula

mundo, exige-se dela, em todo caso, que elimine os ‘bons sen-


timentos’ e nos revele o horror definitivo da vida, sem o qual
ela se arrisca a parecer ‘insuportavelmente ingênua’” (TODO-
ROV, 2009, p. 71). As lentes da caricatura desenhada por To-
dorov focalizam o perigo que a literatura sofreria hoje, sob o
risco de, realizado o projeto pós-estruturalista, a leitura do tex-
to literário desaparecer da cultura:

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão


quando estamos profundamente deprimidos, nos tor-
nar ainda mais próximos dos outros seres humanos
que nos cercam, nos fazer compreender melhor o
mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de
tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; po-
rém, revelação do mundo, ela pode também, em seu
percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de
dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas
por isso é preciso tomá-la no sentindo amplo e intenso
que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que
hoje é marginalizado, quando triunfa uma visão absur-
damente reduzida do literário. O leitor comum, que
continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode
dar sentido à sua vida, tem razão contra professores,
críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só
fala por si mesma ou que apenas pode ensinar o deses-
pero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria
condenada a desaparecer num curto prazo. (TODO-
ROV, 2009, p. 77)

Tomamos aqui um pito do “leitor comum”. Como pode


tanto palavrório para não reconhecer o mais simples e essen-

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

cial, que a literatura tem um “papel vital” a cumprir, desde que


se reconheça o seu “sentido amplo e intenso”, que afinal reside
na experiência do “leitor comum”? Como poderia um con-
gresso, um livro, uma aula de literatura que gastassem palavras
sem fim sem testemunhar transformações subjetivas pela lite-
ratura, desde dentro? Todorov, ao dar voz ao leitor comum, via-
ja na direção de uma comunidade literária, cuja experiência de
liberação teórica lança o leitor para fora da crítica literária a
fim de encontrar, fora dela, a literatura. A teoria como “ferra-
menta invisível” (TODOROV, 2009, p. 41) é aquela que faz jus
à literatura em sentindo amplo e intenso. E o perigo na trans-
missão cultural da prática da leitura está em certa “falta de hu-
mildade” (TODOROV, 2009, p. 31) que cometemos ao ensinar
teorias e não literatura. Sendo um “discurso sobre o mundo”, é
imperativa uma abordagem equilibrada entre obra e mundo,
elementos internos e externos, sob o perigo mesmo de a teoria,
com uma força insuspeita, participar da destruição da leitura.
Estranha, então, a repercussão brasileira do livro. Pois o
que encontra forte espelhamento na cultura brasileira é essa
defesa de uma experiência cultural enraizada, comum, que ex-
trapola e, ao mesmo tempo, deveria ser o núcleo das teorias.
Como se a verdadeira teoria da literatura fosse a do leitor co-
mum, eis uma fórmula acalentada por uma comunidade de
leitores historicamente pouco letrada como a brasileira, na
qual a tradição da oralidade ou então a defesa compensatória
da leitura qualquer (“pelo menos é livro, é literatura”) justifi-
cam um pouco a recepção do ensaio de Todorov. Mas o que
estranha a sua repercussão é a diferença de contextos, pois não
é parecido o caso brasileiro em relação ao que diagnostica o
autor na França. O excesso de teoria, a húbris teórica que teria
invadido as escolas a partir das mudanças na universidade

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Textualidades em Aula

desde há cinco décadas, não se encontra entre nós, quando


muito o que há é a apropriação, como “ferramenta invisível”,
da concepção de literatura organizada por aquela matriz can-
didiana: é crítico o olhar para a literatura que reconhece na
forma literária uma elaboração social, aquele que reconhece a
força transgressora da obra no seu modo de organização inter-
na. Assim, dentro e fora encontram-se, conforme o desejo de
Todorov, equilibrados.
É tal posição de equilíbrio que Antonio Candido formula
no ensaio de 1988, “O direito à literatura”, que é uma espécie de
plataforma para a reflexão sobre o ensino da literatura. A defe-
sa da força da literatura com base na noção dos direitos huma-
nos reconhece na literatura o poder de atualizar o homem en-
quanto homem, como se, antes da literatura, o homem fosse
potencialmente homem. Assim, a fórmula segundo a qual a
literatura “confirma o homem na sua humanidade” (CANDI-
DO, 2011, p. 175) reconhece, pelo avesso, que a humanidade
do homem não está assegurada. Trata-se não só de uma leitura
tributária da experiência sui generis do horror da Segunda
Guerra Mundial, da Shoah, do processo histórico de elabora-
ção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como
também de uma leitura reveladora do contexto brasileiro para
o qual a cultura, durante a formação social do Brasil, imprimiu
suas marcas de violência como regra. Mas a partir do momen-
to que a literatura encontra sua formulação autônoma, que a
ficção e a poesia se consolidam socialmente, a força negativa
da literatura, o seu perigo reside nos efeitos perturbadores que
pode provocar naqueles que lidam com ela. Por isso que o po-
der humanizador da literatura é contraditório, pois muitas ve-
zes ele é, em vez de pacificador, provocador de marcas de vio-
lência no sujeito que com ela lida. Esse perigo ao qual se está

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

sujeito é, na perspectiva de Candido, sempre revertido — dia-


leticamente — num processo humanizador: pois o papel da
literatura é “contraditório mas humanizador (talvez humani-
zador porque contraditório)” (CANDIDO, 2011, p. 176). Eis o
“poder”, eis a “função”, eis a “força”. Tais são os três termos pre-
sentes na reflexão de Candido, seja no ensaio de 1988, seja ain-
da na conferência de 1972, intitulada “A literatura e a formação
do homem”, quando a “função humanizadora” da literatura ao
“confirmar a humanidade do homem” (CANDIDO, 2002, p.
77) é compreendida em contestação à hegemonia estruturalis-
ta que, no afã de transformar um método num fim, não reco-
nheceria, para além das estruturas, as funções, a força, o poder
do texto literário. Um significante que se repete no texto de
1972 é o adjetivo “indiscriminado”: ao considerar o que a lite-
ratura teria a ensinar, é a vida o parâmetro de comparação, de
modo que “a literatura, como a vida, ensina” com um “impacto
indiscriminado” (CANDIDO, 2002, p. 83), uma “força indis-
criminada” (CANDIDO, 2002, p. 85) sobre o leitor.
Uma força que, indiscriminada, arrasa a forma, a literatura
preserva, num sentido talvez à revelia da conferência e do en-
saio de Antonio Candido, a possibilidade de ultrapassar a
identidade de si. Indiscriminada, difícil, em alguns momentos,
separá-la do mundo, do que, fantasiosamente, se chamava
mundo antes da literatura, de modo a ser possível dizer, sobre
a literatura, que:

É a coisa mais interessante do mundo, talvez mais inte-


ressante do que o mundo, razão pela qual, se não é
idêntica a si mesma, o que se anuncia e se recusa com
o nome de literatura não pode ser identificado a ne-
nhum outro discurso. (DERRIDA, 2014, p. 70.)

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Textualidades em Aula

A hipótese desequilibrada de Jacques Derrida, diferente-


mente do posicionamento de Todorov, equilibrado, reconhece,
a um só tempo, o traço único da literatura em virtude de um
mundo que perde, em interesse, para ela. A literatura é, talvez,
o que, diante do mundo, interessa.

* * *
Como questões como essas de teoria literária poderiam ser
pensadas em função das práticas pedagógicas de fato realiza-
das por um professor do ensino básico num colégio brasileiro?
Numa operação de corte e montagem, que devolve ao leitor,
aqui, o choque dos encontros e a possibilidade de produzir, ele
próprio, as relações de sentido entre um movimento e outro do
texto, relato brevemente a experiência com a oficina literária
(ou seria uma oficina de escritura) Ato Zero, desenvolvida há
dois anos no Colégio Pedro II.
A Oficina Literária Ato Zero consiste num projeto pedagó-
gico gestado no ano letivo de 2014 no contexto de uma escola
pública da Zona Oeste do município do Rio de Janeiro. Partin-
do do diagnóstico de sobrevalorização das disciplinas mate-
máticas e das ciências naturais em detrimento das ciências hu-
manas e linguagens, e de naturalização da competitividade
acadêmica entre os estudantes, a oficina literária se constituiu
como espaço de uma experiência de ensino-aprendizagem de-
mocrática. Saber-se produzindo um texto público, a ser lido
pela comunidade escolar, e ler e ouvir os textos dos outros es-
tudantes, partindo-se de experiências de produção literária
baseadas no jogo e nas dimensões lúdica e política da literatu-
ra, mostraram-se experiências transformadoras aos estudantes
que participaram do projeto. Além disso, o contexto de ensino

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

cronológico da história do cânone da literatura brasileira, na


contramão de uma perspectiva intertextual e dialógica do en-
sino da leitura, segundo a qual leitor e autor se confundem
num mesmo processo de comunicação e produção subjetiva,
foi decisivo para o traço interventivo que o projeto de Oficina
Literária demonstrou. Por fim, o caráter irradiante que o pro-
jeto tem demonstrado, contagiando alunos e professores de
outros colégios que com ele tomam contato e buscam replicá-
-lo, diz algo a respeito da força que a literatura e as artes de-
monstram quando encaradas como processos de produção
subjetiva e, assim, formação cidadã.
Inicialmente inspirado na metodologia do grupo de escri-
tores franceses Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle —
Oficina de Literatura Potencial), que formularam um modo de
produção literária baseado no jogo e no princípio da necessi-
dade de fazer a obra em detrimento da inspiração, a Oficina
Ato Zero buscou e busca propor aos estudantes-escritores jo-
gos de produção textual originais, durante os quais cumprir a
regra e fazer o texto é mais importante do que produzir um
texto excelente. Fazendo jus à etimologia da palavra “poesia”,
originada do verbo grego “poein”, que significava “fazer”, a Ofi-
cina se propõe a uma experiência arqueológica da cultura por
meio da desmitificação do cânone e da potencialização do es-
critor-estudante. Se fazer em vez de não fazer é mais importan-
te do que fazer bem em vez de fazer mal, então a poesia, segun-
do concluiu uma das escritoras oficineiras, está antes na
capacidade que alguém tenha de fazer do que na habilidade
que alguns tenham de fazer com excelência. Abrem-se, então,
as portas para a compreensão do outro em sua singularidade,
em lugar de se medi-lo com base na adequação a critérios que
lhe antecedem.

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Textualidades em Aula

Assumindo uma perspectiva crítica em relação à cronologia,


ao cânone, à inspiração, no campo literário, e à compreensão
histórica do texto literário como fim do ensino e à compreensão
do aluno como “recebedor” de interpretações alheias, no campo
pedagógico, o projeto assume a responsabilidade de encarar a
literatura como, antes de tudo, uma atividade global, uma práti-
ca social, um ato singular do sujeito. Sendo assim, a potência
criativa do estudante é o pressuposto de um trabalho que busca,
com a produção literária, a produção subjetiva de democracia,
na medida em que inventar o texto literário seja inventar o sujei-
to que se é. Sendo produção democrática, a literatura entendida
como jogo trabalha em prol do reconhecimento do outro em
sua potência subjetiva, furando assim as pequenas opressões e
aprisionamentos que um ensino do tipo “bancário”, como o no-
meou Paulo Freire, naturalizam em dado contexto escolar.
Como todo projeto pedagógico, a Oficina Literária Ato
Zero foi surgindo a partir de problemas e desafios concretos,
colocados a um professor específico e a alunos específicos,
numa situação de ensino própria. O grupo de estudantes para
os quais lecionava em 2014, quase 150 pessoas divididas em
quatro turmas, provinha das mais diversas camadas sociais e
territórios da cidade: o Colégio atrai alunos num raio muito
extenso que inclui toda a região da Zona Oeste da cidade, des-
de a região de Guaratiba e Santa Cruz até Jacarepaguá, e tam-
bém boa parte da Zona Norte, sejam os bairros cortados pela
antiga linha de trem da Leopoldina (na região da Penha) ou
aqueles cortados pelo ramal de Deodoro (as regiões do Méier
e de Madureira). Uma escola grande, com quase 2.000 alunos,
segundo o Censo Escolar de 2014, onde, até o ano passado,
não havia reuniões regulares com os responsáveis. A infraes-
trutura física é muito boa: salas de aula espaçosas, bem ilumi-

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

nadas e climatizadas, com inspetores suficientes e alguns equi-


pamentos importantes, como projetores portáteis e auditório
para eventos. A ausência de internet que possa ser utilizada em
sala de aula é ainda um desafio com que se lidar. Esse contexto,
de exceção em se tratando de uma escola pública, talvez justi-
fique a confiança às vezes excessiva das famílias em relação à
instituição, abdicando da participação na vida escolar dos jo-
vens. E talvez esse mesmo contexto explique mas não justifi-
que algum discurso pedagógico que pressupõe a falta (de sa-
ber, responsabilidade, capacidade) no aluno a ser avaliado. De
qualquer maneira, foi esse o contexto, com condições para
buscar um ensino de excelência, em que surgiu a ideia da Ofi-
cina Literária e, com ela, o convite e o desafio aos estudantes
para os quais lecionava.
Atualmente curso doutorado em Teoria Literária numa
universidade pública carioca, e pesquiso a produção de poesia
hoje. Tenho percebido e defendido que, com a consolidação da
democracia no Brasil e nos países latino-americanos, a produ-
ção das artes e da literatura tem sofrido transformações tais
que põem em jogo o próprio campo estético específico de cada
linguagem artística e das artes em geral. Esse processo ocorre
em escala mundial — ou ocidental — e ganha contornos sin-
gulares quando formulado por quem se debruça sobre a cultu-
ra na América Latina. Naturalmente não estou sozinho nessa
defesa e vou seguindo a trilha desbravada por professores
como a escritora argentina Josefina Ludmer (1939-), que vem
sugerindo que certa produção literária hoje “não admite leitu-
ras literárias” (LUDMER, 2014, p. 148). As chamadas “literatu-
ras pós-autônomas”, que compreendem algumas práticas de
esvaziamento do sentido literário da obra e de territorialização
delas no cotidiano, estariam organizadas por dois postulados

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Textualidades em Aula

que se aplicam ao mundo hoje: o primeiro supõe “que todo o


cultural (e literário) é econômico e todo o econômico é cultu-
ral (e literário)”; o segundo considera “que a realidade (se a
pensarmos a partir dos meios de comunicação, que a consti-
tuem constantemente) é ficção e que a ficção é realidade” (LU-
DMER, 2014, p. 149). Essas palavras dão voz a movimentos e
forças estéticas que formalizam obras “literárias” cujo valor
está nas “aspas”, no “talvez”, no caráter “potencial” da literatu-
ra. Num contexto como esse, defender a literatura como lugar
de alto valor cultural alheio aos valores baixos e processos es-
púrios de base individualista, de acirramento da desigualdade
econômica e produção da subalternidade da maioria da popu-
lação, experiência de purificação do mundo, parece significar
não apenas não reconhecer a) o valor histórico de toda a arte
moderna, para a qual a representação do baixo torna a obra
uma mercadoria inútil, com paradoxal valor de uso infinito e
negativo sem o valor de troca redentor, como também b) a
produção de religiosidade fanática numa democracia muitas
vezes ciosa pelo sectarismo religioso. E, no entanto, é assim
que os alunos e professores entendem a literatura na escola em
geral, e o currículo de apresentação cronológica dos textos ca-
nônicos da literatura brasileira parece, nesse contexto, com-
pactuar com o “fracasso programado” ou mesmo com a sabo-
tagem (como que estratégica) da experiência estética na
formação do leitor. A perpetuação do cânone como paradigma
formativo serve à produção de novas mercadorias de alto valor
de troca, e é por isso que aqueles que o defendem tendem a ver
na produção contemporânea o “vazio cultural” tagarela coni-
vente com o mercado e catastrófico para o campo estético. Tal
postura crítica, à espera da vinda do novo grande escritor dig-
no do cânone histórico, associada ao mal-estar quanto à gran-

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

de quantidade de publicação de literatura hoje, apenas pressu-


põe, por outro lado, a falência das instituições de ensino como
espaços de produção estética. E é precisamente em tensão
como esse posicionamento crítico que a prática das oficinas no
ensino básico deseja se colocar. No contexto da consolidação
do currículo nacional do ensino médio, cujas bases e cujos pa-
râmetros já têm sido colocados nas duas primeiras décadas da
democracia com a Lei de Diretrizes e Bases (1996) e com a
publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (2000), a
discussão em voga da Base Nacional Comum talvez seja uma
oportunidade histórica para a inclusão da prática de oficinas
literárias no currículo do ensino médio.
Durante os meses de setembro e outubro, atravessei um
doloroso processo de divórcio do casamento em que vivia. E,
sendo novato no funcionalismo público, me dei conta de que
aquele sofrimento que eu experimentava, por ser constitutivo
da vida em sociedade tal como ela é hoje organizada, não é
reconhecido em seu estágio de sofrimento. Ou seja: não existe
(nem parece haver engajamento para se criar) uma licença
após um divórcio. Tendo atravessado uma semana de muito
sofrimento, fui para o trabalho com uma ideia de oficina na
cabeça: perguntar aos alunos se também eles sentiam alguma
necessidade de obter licenças específicas quanto a frequentar a
escola. E, naturalmente se tratando de um exercício de ficção,
tomaram a liberdade de também utilizar o humor. Antes, no
entanto, relatei brevemente o que estava se passando em mi-
nha vida. Ao final, os textos produzidos, redigindo as licenças
fictícias que pareciam necessárias às vidas deles, davam o tes-
temunho de uma densidade afetiva que passa ao largo das ins-
tituições escolares mas que são vividas nelas, com elas ou ape-
sar delas. O resultado da oficina foi o seguinte:

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Com a sua licença


Quanto tempo dura um luto? O quanto um luto inca-
pacita alguém para o trabalho? O quanto tornar-se pai
requer a suspensão das atividades profissionais para que
se possa trabalhar o pai nascendo em si? Que dor de bar-
riga, dor na coluna ou filho doente são páreo para o apai-
xonado que adoece de amor? Mas se adoece de amor?
Quais licenças são necessárias para contemplar os esta-
dos de exceção em que as circunstâncias da vida lançam
o trabalhador? Qual é, diante dos imprevistos da vida, o
trabalho necessário para que se continue trabalhando,
mesmo que para tanto seja necessário interromper por
um tempo o tempo de trabalho? Nessa sessão da oficina,
instituíram-se licenças. E se a licença poética põe a per-
der o tanto de poético que não pede licença para aconte-
cer, assim também a licença de trabalho põe a perder o
tanto de trabalho que há em perna quebrada, crise de
labirintite, transtorno pós-traumático. E por isso, que se
reescrevam as licenças, para que a lei, que torna visível o
que não se vê, dê a ver as urgências que teimam em ser
adiadas pelo trabalho, como se trabalho não fossem.
(Hoje o nosso registro difere daquele tempo em
que Thiago de Melo escreveu os “Estatutos do Ho-
mem”, mas a insistência em legislar contra a lei jogan-
do com as palavras diz algo acerca do odor autoritário
que ambos os tempos do Homem se colocam. Por isso,
fica-lhe como homenagem essa sessão da oficina.)

Licença aos pedaços


Artigo único. Fica instituído o direito de licença
por tempo indeterminado à pessoa que precisa conser-
tar os pedaços do coração.

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

Licença querido avô


Artigo único. Caso a pessoa possua um avô ou uma
avó que tenham o dom de contar longas histórias no
horário antes do almoço, assegura-se por este decreto
o direito a se atrasar levemente a compromissos legais
ou ao local de trabalho, a fim de garantir que a pessoa
ouça a lorota até o final.

Licença-medo
Artigo único. Toda vez que a pessoa sentir medo de
algo ou principalmente de viver, torna-se isenta de
praticar qualquer atividade à qual esteja submetida, in-
clusive a de se levantar da cama.

Licença-recomeço
Artigo único. Fica estabelecido que todo indivíduo
terá o direito a sonhar acordado com os sorrisos e pa-
lavras doces dos novos amores por quanto tempo o
amor durar.

Licença-spoiler
Artigo único. Por meio desta declara-se que qual-
quer pessoa que tenha tido o coração partido e todos
os sonhos e expectativas dizimados por conta de spoi-
ler tem direito a permanecer em casa tempo suficiente
para que se emende o coração partido.

Licença-partiu
Artigo único. Qualquer filho tem o direito de fre-
quentar festas mesmo sem a permissão dos pais, inclu-
sive o direito de ir e voltar em qualquer horário e com
a roupa que quiser.

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Textualidades em Aula

Licença para a vida


Artigo único. Fica decretado que todas as pessoas,
sem exceção, têm o direito de viver suas vidas às suas
próprias maneiras, inclusive o direito de amar livre-
mente e sonhar.

Licença-paixão
Artigo único. Toda pessoa que se apaixonar tem di-
reito de se declarar, independentemente de sua orien-
tação sexual, e sem que o amado rompa a amizade já
existente com o declarante.
(OFICINA LITERÁRIA ATO ZERO, 2015, s/p.)

Os oitos exemplos elencados dão conta dos limites dos di-


reitos civis no exercício não só da cidadania, mas principal-
mente da existência. Numa época de superjudicialização da
vida, quando até mesmo a relação pedagógica entre professor e
aluno quer ser regida por leis criminais, a exemplo de projetos
de lei em tramitação no Congresso Nacional que visam crimi-
nalizar o ensino de teorias e conceitos científicos considerados
nocivos ao exercício da liberdade religiosa das famílias dos es-
tudantes, numa época como essa, reconhecer que aonde a lei
não vai a vida segue existindo, a vida continua a ser possível,
em tempos assim, foi, para mim como certamente para quem
redigiu tais licenças, um aprendizado em dimensão terapêutica
exercer a ficção nos limites da lei. Penso, por exemplo, no tra-
balho do escritor Ricardo Lísias, que está sendo processado por
um delegado da Polícia Federal porque teria falsificado docu-
mentos policiais ao criar um personagem delegado com o mes-
mo nome que o dito delegado que o processa. A obra de Lísias,
reconhecidamente idônea do ponto de vista ético, explora, de

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

fato, as zonas de interseção e desconforto entre ficção e realida-


de. A notícia do processo, veiculada no dia 11 de setembro pelo
jornal Folha de S. Paulo (“Obra de ficção cria ‘liminar’ e vira
alvo de investigação da PF”), causou espanto entre aqueles que
acompanham a trajetória do escritor, no entanto revela precisa-
mente o que chamei aqui de superjudicialização das relações
sociais, a ponto de desconsiderar o estatuto ficcional de uma
obra literária, passível então de o seu autor responder juridica-
mente por aquilo que concebeu ficcionalmente. A justiça não
pode ser uma ficção: esse é um dos principais desafios de uma
sociedade democrática. Tornar a justiça real. Ficcionalizar a
justiça, contudo, precisa ser um dos componentes da experiên-
cia democrática, como modo de, através da arte, e pelo avesso,
conhecer a justiça e aprender que nem sempre ela se reduz à
aplicação da lei. Muitas vezes, a lei não dá conta da vida, e é
justo que seja assim, já que a vida é o que escapa à lei, e isso
aprendemos na oficina “Com a sua licença”.
A oficina mais marcante foi, sem dúvida, a de Maria Clara
Bubna, que veio relatar a perseguição sofrida (e reconhecida
pela instituição) nas salas de aula da UERJ. Essa oficina tratou,
de maneira muito intensa, dos diversos modos de exclusão na-
turalizados na sociedade, e a convidada propôs, por fim, que
os alunos redigissem um texto se colocando no lugar de algu-
ma das pessoas perseguidas ou excluídas que foram exemplos
durante a oficina. Ao final, vários estudantes estavam em pran-
tos. O mais comovente ainda estava por vir: recebi, à noite,
uma mensagem de rede social de uma das alunas que partici-
pou da oficina. Era uma forma de avaliar o trabalho com a
oficina que vinha sendo feito e de eu avaliar os efeitos desse
trabalho também. A leitura dessa mensagem, íntima, depois
de um dia de trabalho, foi certamente um dos momentos mais
fortes de minha vida de professor:

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Textualidades em Aula

Olá, professor.
Vim aqui te agradecer pela oficina. De verdade. Eu
estava me sentindo muito sozinha e sufocada e essa
oficina tocou no meu ponto fraco (ou forte).
Então, é agradecer por você ter dado esse espaço
pra gente e vocês (você e a moça que foi lá fazer a ofi-
cina) nos ouviram, nós estávamos precisando disso.
Como foi dito, nossa casa não é um abrigo e não po-
demos falar certas coisas, então, fica tudo internalizado.
Muuuuito obrigada por reconhecerem que temos
voz e por nos ouvirem.
Isso fez com que eu fosse falar com minha mãe que
muitas coisas me incomodavam e inclusive contar so-
bre minha sexualidade, que não é a que dizem ser a
certa.
Enfim, é só pra saber da importância que foi que
essa oficina teve.
Novamente, muito obrigada.

Esse texto talvez tenha sido o mais importante produzido


pelos estudantes durante o semestre de oficina literária. Não é
um poema, nem um conto, nem um jogo de palavras, nada
disso. Não é nem mesmo propriamente literatura. E é um texto
que demonstra a profunda compreensão do trabalho que era
feito, compreensão tal que se transformou num ato, numa de-
cisão, numa corajosa tomada de partido para a construção da
identidade de si junto à família. Decidir “contar sobre minha
sexualidade, que não é a que dizem ser a certa”, e reconhecer
que esse “contar” surgiu de uma oficina de texto na escola é, de
fato, o reconhecimento da potência política que a liberdade de
escrever e, então, de escrever a própria vida trouxe para essa

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O direito, a força e o currículo: literatura na escola

estudante e pode seguir trazendo para diversos outros com a


consolidação desse trabalho.

Referências

BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasí-


lia: Ministério da Educação, 2006.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio.
Brasília: Ministério da Educação, 2000.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos.
5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 171-193.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In:
Textos de intervenção. Seleção de Vinícius Dantas. São Pau-
lo: Editora 34, 2002. p. 77-92. (Coleção Espírito Crítico)
DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada litera-
tura: uma entrevista com Jacques Derrida. Tradução Mari-
leide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
LUDMER, Josefina. “Literaturas pós-autônomas”. In: Interven-
ções críticas. Tradução de Ariadne Costa e Renato Rezen-
de. Rio de Janeiro: Azougue, 2014. p. 147-154.
OFICINA LITERÁRIA ATO ZERO. Leminski dá dicas para
um bigode saudável. Rio de Janeiro: edição dos autores,
2015.
OULIPO. La littérature potentielle. Paris: Gallimard, 1973.
TODOROV, Tzvetan. A beleza salvará o mundo: Wilde, Rilke e
Tsvetaeva: os aventureiros do absoluto. Tradução de Caio
Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2011.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio
Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

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O poema como um inutensílio, a sala de aula
como um lugar de ser inútil

André Luís Mourão de Uzêda

Para Ana Lúcia Soutto Mayor


e Luiz Guilherme Barbosa,
pelo prazer de um encontro
que alcançou o reino da despalavra.

Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário.


O que presta não tem confirmação;
O que não presta, tem.
Manoel de Barros

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei

O seguinte texto é fruto de um convite. Há um tempo percebo


que meu amigo Luiz Guilherme Barbosa vem sondando mi-
nhas andanças, tal qual andarilho, pelo mundo da palavra po-
ética de Manoel de Barros. Tendo participado de uma ativida-
de no festival literário do Colégio de Aplicação da UFRJ
(CAp-UFRJ) e assistido a algumas apresentações minhas em
eventos acadêmicos, veio a propósito um convite para fazer
uma fala no evento organizado pelo GEEPOL e compartilhar

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O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lugar de ser inútil

um pouco da minha experiência com a poesia do poeta da


despalavra. Diante do convite inesperado, só me veio à mente
um verso seu: “A poesia está guardada nas palavras — é tudo
que eu sei” (BARROS, 2010, p. 403).
Mas, obviamente, não era sobre a minha experiência pesso-
al com a poesia de Manoel de Barros de que se tratava o convite.
Na verdade, o evento abarcava uma série de experiências didá-
ticas no ensino de língua e literatura, e durante um dia inteiro
foram bastante proveitosas as trocas entre profissionais do Ensi-
no Básico e Superior, que em muito me enriqueceram. Tive, as-
sim, a oportunidade de desexplicar, como convém em se tratan-
do da poesia de Barros, algumas das minhas peraltagens com a
sua obra poética nas aulas de literatura para minhas turmas de
sétimo ano do Ensino Fundamental no CAp-UFRJ. Agora, ve-
jo-me diante da difícil tarefa de organizar as ideias apresentadas
oralmente no evento e formatá-las em um texto corrido.
O artigo que agora se lê — e desde já me desculpo por cer-
ta informalidade na linguagem, pouco convencional para o
espaço acadêmico — divide-se em duas partes. Na primeira,
apresentam-se algumas chaves de leitura para a obra de Mano-
el de Barros, tomando-a como um “inutensílio” — isto é, a po-
esia do inútil, que não está a serviço de nada. Tais pressupostos
teóricos me levam a dissertar brevemente a respeito dos apon-
tamentos de Platão e de Aristóteles, em suas República e Poéti-
ca, respectivamente, para pensar o lugar — ou não-lugar —
dentro da tradição literária ocidental ocupado pela figura do
poeta. Confrontando-se tal perspectiva, é possível entender a
originalidade poética do autor no afastamento da palavra refe-
rencial, “desgastada” de seus usos utilitários. Desse modo, para
ler tal poesia, requer-se uma nova lógica de ensino e apropria-
ção do texto poético.

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Textualidades em Aula

É nesse contexto que, na segunda parte desse artigo, busco


entender a sala de aula enquanto um “lugar de ser inútil”. O
termo me foi inspirado a partir do próprio autor, que assim se
referia a seu escritório. Para fora do sistema escolástico e nor-
mativo que se propõe para o ensino de literatura — enquadra-
do em gêneros, cronologicamente linear, historiográfico e con-
ceitual — o desafio que se coloca consiste em trazer a poesia
para a sala de aula dentro de uma nova perspectiva: lendo o
texto poético de Manoel de Barros de forma a nos apropriar-
mos das chaves de leitura que sua própria poesia apresenta e,
livre das amarras conceituais, poder “usar palavras de ave para
escrever” (BARROS, 2015, p. 13).
Assim, como projeto de leitura do gênero literário “poesia”
desenvolvido com as turmas de sétimo ano, optei pela leitura de
um livro de poemas, Menino do mato, publicado originalmente
em 2010, durante todo um trimestre, como forma de se compre-
ender a organicidade interna do livro a partir da própria visão
poética de mundo do autor. Intuito, então, apresentar algumas
das estratégias didáticas adotadas para a mediação da leitura à
faixa etária do seriado, bem como expor o resultado do trabalho
que culminou no envolvimento dos alunos com o gênero e a
obra do poeta a ponto de se sentirem, eles mesmos, livres para
escreverem seus poemas em sala de aula — quando efetivamen-
te a sala de aula se torna, enfim, “um lugar de ser inútil”.
Por fim, gostaria de esclarecer que para a elaboração desse
artigo, como também para a da apresentação realizada durante
o seminário do Grupo de Estudos em Ensino de Português e
Literaturas (GEEPOL), optei por dialogar exclusivamente com
o próprio Manoel de Barros, sem trazer qualquer leitura me-
diada por críticos e autores que já tenham se debruçado sobre
sua obra. Essa escolha se justifica pela consonância com o tra-

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O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lugar de ser inútil

balho desenvolvido em sala de aula com os alunos, que busca


justamente se apropriar da obra poética de um autor encon-
trando nela mesma suas chaves de leitura. Para além disso,
cabe ainda ressaltar que esse foi um projeto realizado com
muita dedicação e zelo durante os anos de 2014 e 2015 e com
o qual pretendo dar continuidade nos anos seguintes. Todos os
resultados dessa pesquisa em andamento são de caráter expe-
rimental e ainda carecem de maior aprofundamento. Como
indicação de leitura complementar, algumas notas explicativas
foram inseridas a fim de que o leitor possa buscar outros auto-
res nos quais possa aprofundar suas pesquisas.

DO POEMA COMO UM INUTENSÍLIO

No poema IX de “Sabiá com trevas”, primeira parte deArranjos


para assobio (1980), o poeta Manoel de Barros apresenta a se-
guinte visão acerca da poesia:

IX

O poema é antes de tudo um inutensílio.

Hora de iniciar algum


convém se vestir roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro


nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta


uma veia aberta.

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Textualidades em Aula

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema


enquanto vida houver.

Ninguém é pai de um poema sem morrer. (BARROS,


2010b, p.174)

Muitos foram os poetas que já versaram metapoeticamente


a respeito das funções da poesia. Entre os poetas brasileiros,
Manoel de Barros foi um dos que mais se debruçou sobre a
questão. Sua obra, marcadamente metalinguística, caracteriza-
-se pela originalidade estética, aberta ao universo dos parado-
xos sintático-semânticos, na qual o verbo “tem que pegar delí-
rio” para “fazer nascimentos” (BARROS, 2010b, p. 301).
Manoel fez de sua poesia mais do mesmo, com a qual se recria
constantemente pela repetição: “Repetir repetir — até ficar di-
ferente. / Repetir é um dom do estilo” (BARROS, 2010b, p.
300) — eis o mantra do poeta.
Mas não apenas do ponto de vista estético o poeta se desta-
ca no cenário da poesia brasileira. Sua visão de mundo tam-
bém é de caráter bastante original. Para além da alcunha de
“poeta do pantanal” — título que rejeitara veementemente1 —,
a concepção poética de mundo do artista ultrapassa o universo
referencial para poder “chegar ao grau de brinquedo para ser
séria”(BARROS, 2010b, p. 348). Dentro de sua perspectiva, que
rejeita a palavra em sua função denotativa, utilitária, a “função
da poesia” está sempre ao “des-serviço”, a serviço do nada.
É importante ressaltar aqui que o nada em Manoel de Bar-
ros nada tem de metafísico ou niilista, nos termos de Jean-Paul
1
Para mais, ler: MÜLLER, Adalberto. “A ecologia poética de Manoel de
Barros”. In: Revista Palavra SESC de Literatura. Ano 3, n. 2. Rio de Janeiro:
SESC, Rio de Janeiro: Record, 2011.

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O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lugar de ser inútil

Sartre. Trata-se do “nada mesmo”: o vazio, a ausência, o não-


-algo. É o que o poeta afirma no “pretexto” de seu Livro sobre
nada, publicado originalmente em 1996:

O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o


que escreveu Flaubert a uma amiga sua em 1852. [...]
Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada exis-
tencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não
tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada
de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por es-
crito: um alarme para o silêncio, um abridor de ama-
nhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de
veludo, etc etc. O que eu queria era fazer brinquedos
com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo.
Tudo que use o abandono por dentro e por fora.
(BARROS,2010b, p.327; grifo nosso)

Dentro da lógica de que a poesia serve para nada, de que


serve para fazer coisas inúteis, é que Manoel de Barros afirma
ser o poema um “inutensílio” — “é coisa que de nada serve o
poema / enquanto vida houver”, como lemos em seu poema.2
Requisitar a “não-função” da poesia — ou sua disfunção — é
coisa mais do que necessária em tempos de verdades absolutas
e dogmáticas. Em sua poética, abrimo-nos a novas perspecti-
vas que fujam à lógica do mercado, na qual obrigatoriamente
alguma coisa está sempre a serviço de outra. O próprio poeta
nos esclarece isso em uma de suas entrevistas:
2
Para aprofundar a noção de “inutensílio”, sugiro a leitura de PUCHEU,
Alberto. “Manoel de Barros: em que acreditar senão no riso?”. In: Estudos
Avançados. Vol. 29, n. 85. São Paulo: Set.-Dez 2015. Disponível em: http://
w w w. s c i e l o. b r / s c i e l o. p h p ? s c r i p t = s c i _ a r t t e x t & p i d
=S0103-40142015000300018. Acesso em: 29 mar 2015.

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Textualidades em Aula

A mim me parece que é mais do que nunca necessária


a poesia. Para lembrar aos homens o valor das coisas
desimportantes, das coisas gratuitas. [...] Quanto à
função da poesia... Creio que a principal é a de promo-
ver o arejamento das palavras, inventando para elas
novos relacionamentos, para que os idiomas não mor-
ram a morte por fórmulas, por lugares comuns. Os go-
vernos mais sábios deveriam contratar os poetas para
esse trabalho de restituir a virgindade a certas palavras
ou expressões, que estão morrendo cariadas, corroídas
pelo uso em clichês. Só os poetas podem salvar o idio-
ma da esclerose. (BARROS, 2010a, p.95)

O valor dado ao “desimportante”, ao “inútil”, é tônica re-


corrente em sua poesia, como se vê em alguns de seus mais
famosos versos:

Tenho desapetite para inventar coisas


prestáveis (BARROS, 2001, p.15)

Todas as coisas cujos valores podem ser


Disputados no cuspe à distância
Servem para poesia (BARROS, 2010b, p. 145)

Não gosto de palavra acostumada (BARROS, 2001


p. 71)

A gente gostava das palavras quando elas perturbavam


Os sentidos normais das falas (BARROS, 2015, p. 14)

Na luta contra as palavras “fatigadas de informar”, Manoel


de Barros vai de encontro a toda concepção postulada pela fi-

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O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lugar de ser inútil

losofia clássica de Platão e Aristóteles, na luta contra a ideia de


que a poesia é a arte da “imitação”3. A palavra poética em Ma-
noel de Barros atinge a “originalidade” tão enaltecida no senti-
do mais literal deste termo: no retorno às origens, de modo a
se “escovar palavras”: tal como os arqueólogos escovando ob-
jetos que remontem aos vestígios da civilização, “eu queria ir
atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das
palavras” (BARROS, 2008, p. 15). Sua “invencionática” ilustra
que a disfunção da poesia, para horror da visão clássica instau-
rada por Platão, é na realidade a de se recriar a realidade pelo
universo da imaginação e da fantasia.
Mas, afinal, o que temia Platão ao expulsar os poetas de sua
República? Se o poeta é um produtor de simulacros, a “imita-
ção da imitação”, que se afasta do mundo “intangível”, em quê,
de fato, residiria o verdadeiro “perigo” a que se expõe a poesia?
A poética de Manoel de Barros nos responde a isso de maneira
bastante ilustrativa: quais os efeitos de se “perturbar” os senti-
dos normais das palavras? Simples: colocá-las ao desserviço da
ordem pré-estabelecida e da lógica racional é portanto deses-
tabilizar a ordem dogmática. O perigo reside, assim, no poder
afetivo da palavra poética, capaz de despertar nossos sentidos
mais profundos, podendo nos afetar a alma. E, por isso, “é
mais do que nunca necessária a poesia”, como nos disse Ma­
noel de Barros: é preciso transver o mundo, abrirmo-nos ao
diálogo, a outras possíveis “verdades”, que não se confrontem,
mas se harmonizem por meio da experiência poética que é,
também, a experiência do real imaginado. Afinal, “tudo que
não invento é falso” (BARROS, 2001, p. 67).
3
Para mais, ler PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Perei-
ra. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1986; ARISTÓTELES. Poética.
Trad. Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.

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Textualidades em Aula

Se, assim, é mesmo necessária a poesia, outro é o espaço


que deve ser dado a ela para além da lógica racional aristotéli-
ca, que a enquadrou dentro de um padrão a ser moldado e se-
guido, como propôs em sua Poética, para se fazer “boa” poesia.
Em vista do exposto, nos parece, portanto, fundamental a po-
esia ocupar o espaço que lhe é devido em sala de aula. Cabe-
-nos, no entanto, questionar qual sala de aula comporta a poe-
sia enquanto “aparelho de ser inútil”.

DA SALA DE AULA COMO LUGAR DE SER INÚTIL

“De minha parte, preciso do ócio para trabalhar”

Na compilação de suas entrevistas, organizada por Adalberto


Müller, lemos o seguinte depoimento do poeta Manoel de Barros:

Tenho uma disciplina: escrevo, leio, invento essas coi-


sas, releio. Vou ao meu escritório, que chamo de escri-
tório de ser inútil, às sete da manhã, e saio às onze. Isto
não é para me forçar, tenho prazer. Às vezes passo do
horário, fico lendo, pesquisando, lendo dicionário, li-
vros que eu gosto, lendo poetas. Escutando música. A
música é que alimenta minha imaginação. (BARROS,
2010a, p.107)

O documentário Só dez por cento é mentira (2010), dirigido


por Pedro Cezar, tentou capturar um pouco dessa rotina “do
ócio” de Manoel de Barros, no qual vemos um pouco do seu
trabalho, com suas leituras e anotações — todas a lápis muito
bem apontados em caderninhos artesanalmente produzidos

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O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lugar de ser inútil

pelo próprio poeta —, e somos inseridos dentro do universo


particular do autor. Ali, como ele mesmo afirma, lê, pesquisa,
estuda — termos muito próprios do universo da sala de aula.
O paradoxo que se coloca, no entanto, consiste no fato de
atrelar as palavras “inútil” e “ócio” ao campo semântico do
estudo, uma vez que historicamente o vocábulo está atrelado
à vadiagem, à preguiça, à folga. A etimologia dessa palavra, no
entanto, remete-nos ao latim otium, cujo sentido refere-se
também à concepção de lazer, ao que é próprio do prazeroso,
mas ao qual, ao longo do seu processo histórico, ainda que a
concepção original persista, foi atrelada a uma conotação ne-
gativa.
Por esse motivo, talvez, a palavra “ócio” jamais remeta ao
campo semântico da sala de aula, mais apropriada ao campo
da “produção”, da “ocupação”, do “trabalho”, da “tarefa” etc. A
questão que se coloca, então, é: não sendo a sala de aula um
lugar do ócio, estaria afastada dela também a concepção do
prazer e do lazer? Pensando em nossa grade curricular, dividi-
da em disciplinas, talvez esse seja um sentido que comumente
nossos alunos atribuam às aulas de Educação Física ou às áreas
que compõem o ensino artístico, mas raramente estaria ligado
às aulas de Língua Portuguesa e de Literatura, por exemplo. O
que ocorre ao ensino formal que não nos permite atrelar o ato
educativo ao “prazer” e ao “ócio”? E o que seria, de fato, um
ensino “formal”?
A lógica aristotélica, desde a fundação de sua “academia”,
perdura no ensino enrijecido como um todo, incluindo-se aí
as aulas de literatura. Afinal, os alunos ainda passam por ava-
liações e aferições que “testam” seus conhecimentos escolásti-
cos e conceituais sobre poeta A, B ou C, bem como se cobram
o estilo artístico em que melhor se enquadra a sua obra ou

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Textualidades em Aula

dados do período histórico que justifiquem essa ou aquela te-


mática. Mas, então, qual seria o espaço dado à leitura prazero-
sa do texto literário na sala de aula? Em que momentos de nos-
sas aulas incentivamos a criação artística e a prática da
imaginação de nossos alunos, se a todo e qualquer trabalho
proposto uma “nota” precisamente é atribuída ao desenvolvi-
mento do que é produzido por eles? Essas e outras questões
precisam vir à tona para nos questionarmos sobre o trabalho
que se realiza com a literatura em nossas aulas. Afinal, é incoe­
rente que o trabalho com o texto literário recorra à linguagem
referencial para “explicar” a palavra poética.

“Pra meu gosto a palavra não precisa significar — é só entoar”

Não há dúvida de que se trabalhar em aula o texto literário, em


especial a leitura de poesia, dentro da proposta de que “poesia
não é para compreender, mas para incorporar” (BARROS,
1998, p. 37), como fala Manoel de Barros, não é nada fácil. O
desafio que propomos consiste em fazer da sala de aula um
lugar de ser inútil, onde se lê, se pensa e se faz poesia. Para
tanto, em primeiro lugar, é necessário fugirmos de alguns dos
lugares-comuns que se impõem comumente à leitura do texto
poético em sala de aula.
Primeiramente, propomos fugir das famosas “antologias
poéticas”, em que se selecionam poemas e poetas diversos, de
formas e temáticas também distintas, em que se prevalece o
estudo da forma estrutural e a paráfrase dos poemas. Em outra
via, a proposta que apresentamos consiste na escolha de um
único autor, e a seleção da leitura paradidática de um livro de
poesia do autor escolhido. A partir da visão de mundo exposta

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O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lugar de ser inútil

pelo próprio autor, o trabalho conceitual deve se apropriar do


universo poético e artístico por ele trabalhado para ali se en-
contrarem algumas chaves de leitura que auxiliarão na “incor-
poração” da poesia, como propõe o poeta. Apresento agora o
desenvolvimento dessa proposta com as turmas de sétimo ano
a partir da leitura do livro de poesia Menino do mato, de Ma-
noel de Barros, e as chaves de leitura que encontramos em sua
obra para “incorporá-la”.

“É preciso transver o mundo”

O famoso verso de Manoel de Barros serviu de base para tra-


balharmos com a importância da imaginação para o despertar
da poesia. Na segunda parte de Menino do mato, “Caderno de
aprendiz”, alguns dos apontamentos do poeta para seu amadu-
recimento poético enquanto “menino do mato” nos são apre-
sentados. Entre eles, destaca-se o seguinte verso: “Escrever o
que não acontece é tarefa da poesia”4. Tendo assistido ao docu-
mentário Só dez por cento é mentira, os alunos incorporaram a
máxima de que é preciso transver o mundo e foram instigados
a não mais recorrer aos olhos parar ver, mas aos “restolhos”
para “transver” — entenda-se por “restolho” o olho enviesado,
que vê nas coisas aquilo que os outros não veem, as “vistas de
um olho anômalo, que é o olho com que os poetas enxergam
as coisas” (BARROS, 2010a, p. 65). Assim como propõe o do-

4
Sobre Menino do mato, ver: “Manoel de Barros e o gorjeio azul da palavra
pousada na infância: o transver em Menino do mato”. In: Fórum de Literatu-
ra Brasileira Contemporânea. Disponível em: http://www.forumdeliteratu-
ra.com.br/artigos/artigos-6-edicao/37-o-transver-em-menino-do-mato-
-de-manoel-de-barros. Acesso em: 3 dez. 2015.

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Textualidades em Aula

cumentário, os alunos também puderam transver em muros


destacados o que seus restolhos enxergassem.
Como suporte de mediação, associamos a concepção de
“transver” ao menino Calvin e seu tigre Haroldo, personagens
criados pelo cartunista americano Bill Watterson5. O menino
travesso tem a imaginação fértil e vive, com seu tigre de pelú-
cia — o amigo imaginário de Calvin, com quem conversa e
brinca —, as maiores aventuras no reino da sua imaginação.
Calvin ora é pirata, astronauta ou explorador arqueológico, e
critica de maneira inteligente qualquer forma de “limitação” à
sua imaginação fértil e criativa. Calvin, como o sujeito poético
da poesia de Manoel de Barros, chega ao “deslimite” da força
imaginativa, potência da realidade fantasiada.6 Como forma
de apropriação conceitual a partir da linguagem poética do au-
tor, passamos a nos referir sempre à concepção de “transver”
para tratar da noção de “imaginação”, “fantasia” ou “inspira-
ção”, por exemplo.

“Eu sou dois seres”

Outro clássico conceito trabalhado quando se lê poesia consis-


te na ideia de “eu-lírico”, a voz que fala no poema. No poema
“Os dois”, Manoel de barros apresenta uma outra perspectiva
pra essa noção. Nele, lemos:

5
Como sugestão de leitura, indico a série de tiras compiladas no álbum
“Tem alguma coisa babando embaixo da cama”. WATTERSON, Bill. Tem
alguma coisa babando embaixo da cama. São Paulo: Conrad Editora, 2010.
6
Sobre a noção de “deslimite”, sugiro a leitura de SOUZA, Elton Leite de.
Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

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O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lugar de ser inútil

OS DOIS
Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral;
é fruto de uma natureza que pensa por imagens,
como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue seu amor em nós.
(BARROS, 2010a, p.437)

Também no documentário a que assistimos, o poeta dizia


que sobre seu “ser biológico” nada de interessante se tinha a
dizer, pois interessante mesmo era o seu “ser letral”. Entenden-
do por “ser biológico” o autor e o “ser letral” como “sujeito
poético”, os alunos logo compreenderam com facilidade essa
distinção que gera, comumente, muita confusão — o que é na-
tural, em se tratando de conceitos tão abstratos.
Reforçando essa perspectiva, uma atividade interdiscipli-
nar entre Língua Portuguesa e Geografia distinguiu também o
ser biológico “Bernardo”, trabalhador do meio rural, figura
histórica que trabalhou na fazenda do poeta, como afirma o
documentário, com o Bernardo letral, aquele capaz de “ser so-
nhado pelas garças”, como afirma a sua poesia. A atividade
ainda propiciou aos alunos perceberem que a poesia pode
transcender a área de estudo na qual habitualmente é inserida,
não se restringindo, necessariamente, às aulas de Língua Por-
tuguesa.

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Textualidades em Aula

As funções “brincativa” e “explicativa” da linguagem, o glossário


das “transnominações” e os “desenhos verbais de imagem”

No trabalho com poesia, os conceitos de conotação e denota-


ção da linguagem são comumente apresentados. A metáfora é
outro conceito que vem sempre à tona, como, normalmente,
algumas outras figuras de linguagem. Em entrevista, Manoel
de Barros certa vez declarou: “Eu gosto de fazer desenhos ver-
bais de imagens. Como seja: ‘vi um lagarto lamber as pernas da
manhã’”.7 A noção de “desenhos verbais de imagens” foi logo
assimilada por nossos alunos, que já estavam craques em apli-
car a prática da “transvisão” do mundo. Assim, distinguir “co-
notação” de “denotação” tornou-se algo bastante simples. Para
tanto, recorremos ao universo poético do autor mais uma vez
para incorporar o sentido de tais conceitos, no que muito nos
ajudam alguns dos versos de Escritos em verbal de ave, em que
lemos:

[...] Nossa linguagem não tinha função


explicativa, mas só brincativa.
Como seja: ontem Bernardo fez para nós
Um ferro de engomar gelo!
Toninho disse Bernardo dementava
as palavras.
Ele viu, diz que, uma formiga
Frondosa com olhar de árvore.
Formiga frondosa?
(BARROS, 2013, s/p; grifo do autor)

7
“Entrevista: Manoel de Barros”. In: Revista Palavra SESC de Literatura.
Ano 3, n. 2. Rio de Janeiro: SESC, Rio de Janeiro: Record, 2011, pp.44-5.

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O poema como um inutensílio, a sala de aula como um lugar de ser inútil

Assim, ao reportarmo-nos à linguagem referencial, o ter-


mo “explicativa” dá conta de maneira muito mais eficiente na
compreensão de seu sentido, bem como a noção do que está
no âmbito do “brincativo” engloba as mais diversas formas de
figuração da linguagem, para o que se faz necessário, de fato,
“brincar” com as palavras. É o que se observa em desenhos
verbais de imagem como “Um ferro de engomar gelo” ou “for-
miga frondosa com olhar de árvore”, por exemplo.
Em Menino do mato, o ser letral de Manoel de Barros apre-
senta o seguinte questionamento: “Visão é recurso da imagi-
nação para dar às palavras / novas liberdades?” (BARROS,
2015, p. 59). Para entender como a imaginação poderia dar às
palavras essas novas liberdades, lemos alguns trechos do
“Glossário de transnominações em que não se explicam algu-
mas delas (nenhumas) ou menos”, do livro Arranjos para asso-
bio. Trata-se de um glossário — que curiosamente está no cen-
tro do livro, e não ao final, como geralmente são dispostos
— em que se apresentam algumas definições poéticas, como
“Cisco”, “Trapo”, “Lesma” etc. A seguir, apresentamos a defini-
ção de “poeta” a título de exemplo:

Poeta, s.m. e f.
Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu
Espécie de um vazadouro para contradições
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como
um rosto
(BARROS, 1998, p. 45)

Confrontando-se a definição apresentada no dicionário


com a definição do “glossário de transnominações”, os alunos

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Textualidades em Aula

viram-se diante das possibilidades múltiplas de significação


que o trabalho poético com a palavra propicia, sem, contudo,
sair do próprio universo poético do autor. Do mesmo modo,
exploraram inúmeras figuras de linguagem sem se deterem
nos diferentes conceitos dados a elas, partindo da ideia de “de-
senhos verbais de imagens”, sabendo reconhecê-los e decifrar
seus sentidos.

“O delírio do verbo” e “usando palavras de ave para escrever”

Após a imersão na mundividência poética da obra de Manoel


de Barros e a leitura do livro Menino do mato, entendendo a
sua organicidade e estrutura interna do ponto de vista estético
e filosófico, os alunos se apropriaram da sala de aula como um
“lugar de ser inútil”: produzindo poemas. Ao método dadaísta
de seleção aleatória de termos, os alunos sortearam palavras
selecionadas previamente pelos licenciandos alocados nas tur-
mas de sétimo ano extraídas do universo poético do autor e
produziram seus próprios poemas.
Outro aspecto fundamental em sua obra consiste na cria-
ção dos neologismos que iluminam sua poesia. Em O livro das
ignorãças, publicado originalmente em 1993, o poeta afirma:
“Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer / nascimen-
tos — / O verbo tem que pegar delírio” (BARROS, 2010b,
p. 301). O delírio verbal — que é também o delírio da palavra,
do logos (“no descomeço era o verbo”, ele afirma no mesmo
poema) — toma conta de toda a poesia de Manoel de Barros.
O delírio da palavra, fruto da prática da transvisão do mundo,
acabou por incorporar em nossas aulas a concepção do que
seja “neologismo” — quando a palavra “pega delírio”. Em seus

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Não preciso do fim para chegar. / Do lugar onde estou já fui embora.

poemas, os alunos foram instigados a também fazer com que


suas palavras delirassem, o que fizeram da maneira mais cria-
tiva, pois já sabiam que poesia “é voar fora da asa” (BARROS,
2010b, p. 302).
Os poemas foram expostos no festival literário da escola, o
CAp Literário, onde puderam inclusive convidar os visitantes
a produzirem seus próprios poemas em nossa “oficina de ser
inútil”. Enquanto faziam seus poemas, os alunos explicavam,
na oficina, os conceitos que aprenderam com a poesia de Ma-
noel de Barros, como as noções de “transver”, “ser letral”, “de-
senhos verbais de imagens”, entre outros, de modo que pude-
ram do mesmo modo ensinar aos visitantes-autores a fazerem
suas palavras “pegarem delírio”. Os poemas dos visitantes tam-
bém foram expostos em um varal de poesia, e a interação que
se viu entre alunos e o resto da comunidade escolar em torno
da poesia comoveu a todos os envolvidos na atividade.

“Não preciso do fim para chegar. / Do lugar onde estou já fui


embora.” — Uma inconclusão

As coisas muito claras me noturnam.


Manoel de Barros

Não é fácil realizar um trabalho de qualidade com a literatura


em sala de aula. São muitos os contras que nos atravessam du-
rante essa difícil tarefa de se guardar nas palavras os nossos
desconcertos, como requer a poesia. Incluem-se aí, por exem-
plo, currículo, avaliação, conteúdo programático, entre muitas
outras questões de ordem burocrática e administrativa que vão
de encontro à prerrogativa de que “a palavra não precisa signi-

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ficar — é só entoar” (BARROS, 2015, p. 45). No entanto, não é
disso que se trata quando vemos os exames de ingresso para o
Ensino Superior, que matam a poesia em busca “do que o poe-
ta quis dizer”, ou da “análise poética” que usa o texto como
pretexto para análise de aspectos linguísticos que o poema
permite explorar.
Retomo o que o poeta afirmou em entrevista, quando fala
“que é mais do que nunca necessária a poesia”, sobretudo para
nada. Enquanto a poesia estiver a serviço de algo — passar de
ano, fazer análise sintática, ser aprovado no vestibular ou no
ENEM — ela presta seu desserviço, posto que perde seu caráter
lúdico e de ócio, como convém. Não é à toa que nossos alunos
se mostrem desinteressados e pouco propensos à leitura do
texto poético em sala de aula, pois ali a leitura está sempre com
uma função utilitária — e que não é, em nenhuma instância,
ela mesma. Creio ser nesse aspecto o maior ganho com o tra-
balho realizado durante todo o trimestre com a poesia de Ma-
noel de Barros no 7º ano do Ensino Fundamental. Com esse
projeto, pude comprovar (em especial para mim mesmo) que o
trabalho com a literatura no Fundamental pode — e deve —
ser realizado com bastante profundidade e qualidade.
O estranhamento inicial com o texto poético de Manoel de
Barros, os neologismos, as “palavras que se juntavam uma na
outra por amor e não por sintaxe”, os “delírios do verbo”, ao fim
de todo um trimestre, pareciam ter sido superados. Tive a cer-
teza disso quando fomos ao fim do ano de 2014 pegos de sur-
presa pela notícia da morte de Manoel de Barros. Os alunos,
muito comovidos, resolveram então na última semana de aula
fazer uma homenagem ao poeta, e decoraram a escola com ba-
lões e poemas, que distribuíram para toda comunidade escolar.
Além disso, tivemos o prazer de ouvir a palestra proferida pela

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Não preciso do fim para chegar. / Do lugar onde estou já fui embora.

professora Maria Lúcia Guimarães de Faria, que leciona Litera-


tura Brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ, como forma de
encerrar aquele ano letivo entendendo que “só os absurdos en-
riquecem a poesia”. A morte do poeta nos mostrou, enfim, que
se por um lado o ser biológico Manoel de Barros se despedia
dessa para melhor, seu ser letral continuaria vivo em sua poesia.

Referências

BARROS, Manoel de. Arranjos para assobio. Rio de Janeiro:


Record, 1998.
    . Encontros: Manoel de Barros. Org. Adalberto Mül-
ler. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2010a.
    . Escritos em verbal de ave. São Paulo: Leya, 2013.
    . Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 2001.
    . Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de
Barros. São Paulo: Planeta, 2008.
    . Menino do mato. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.
    . Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010b.
CEZAR, Pedro. Só dez por cento é mentira. 2010 (documentá-
rio).
MENDES, Rafael. “Manoel de Barros e o gorjeio azul da infân-
cia: o transver em menino do mato”. In: Fórum de Literatu-
ra Brasileira Contemporânea. Disponível em: <http://www.
forumdeliteratura.com.br/artigos/artigos-6-edicao/37-o-
-transver-em-menino-do-mato-de-manoel-de-barros>.
Acesso em 03 dez 2015.
MÜLLER, Adalberto. “A ecologia poética de Manoel de Bar-
ros”. In: Revista Palavra Sesc de Literatura. Ano 3, nº 2. Rio
de Janeiro: SESC; Rio de Janeiro: Record, 2011.

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Textualidades em Aula

PUCHEU, Alberto. “Manoel de Barros: em que acreditar se-


não no riso?”. In: Estudos Avançados. Vol. 29, n. 85. São
Paulo: Set.-Dez 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/
s c i e l o. php ? s c r ipt = s c i _ ar tte x t & pi d = S 0 1 0 3 - 4 0 1 4
2015000300018. Acesso em: 29 mar 2015.
SOUZA, Elton Leite de. Manoel de Barros: a poética do desli-
mite. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.
WATTERSON, Bill. Calvin e Haroldo: tem alguma coisa ba-
bando embaixo da minha cama. São Paulo: Conrad, 2010.

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Sobre os autores

Ana Lucia Soutto Mayor é pesquisadora da Fundação Oswal-


do Cruz, e professora aposentada do Colégio de Aplicação da
UFRJ. Doutora em Letras pela UFF, onde desenvolveu pesqui-
sa sobre as relações entre poesia, literatura e cinema, a partir
da escritura de Clarice Lispector, dedica-se hoje a pesquisar
relações entre arte e ciência na educação básica.

André Luís Mourão de Uzêda é Licenciado em Letras-Portu-


guês/Literaturas pela UFRJ (2011), Mestre em Ciência da Lite-
ratura pela UFRJ (2013) e professor de Língua Portuguesa e
Literatura Brasileira no Colégio de Aplicação da UFRJ. É
membro do Núcleo de Literatura Infantil e Juvenil (NIELIJ) da
UFRJ e desenvolve pesquisa sobre a formação do leitor de poe­
sia no segundo segmento do Ensino Fundamental.

Antonio José dos Santos Junior é professor do Colégio Pedro


II (CPII). Doutor em Língua Portuguesa pela UERJ (2014),
Bacharel e Licenciado em Letras pela UERJ (2007), Mestre em
Língua Portuguesa pela UERJ (2010). Membro do GEEPOL.

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Textualidades em Aula

Fabiana dos Anjos Pinto é Licenciada em Letras pela UERJ


(2004), mestre (2007) e doutora (2013) em Língua Portuguesa
pela mesma instituição. É professora de Língua Portuguesa e
Literaturas do Colégio Pedro II. Atualmente, é membro do
GEEPOL.

Jéssica do Nascimento Rodrigues é Licenciada em Letras pela


UEMG (2000), especialista pela UFLA (2003), mestre pela
UFRRJ(2010) e doutora pela UFF (2014) em Educação. É pro-
fessora de Português e Literaturas do Colégio Pedro II e mem-
bro do GEEPOL. Atualmente, realiza o Estágio Pós-Doutoral
na UFF.

Luiz Guilherme Barbosa é escritor. Professor de Português e


Literaturas do Colégio Pedro II, é doutorando em Teoria Lite-
rária pela UFRJ, e integra o coletivo de poetas Oficina Experi-
mental de Poesia. Autor de A mão, o olho: uma interpretação
da poesia contemporânea (Oficina Raquel, 2014), é pesquisa-
dor do Grupo de Estudos em Ensino de Português e Literatu-
ras (GEEPOL), do Colégio Pedro II, e do Grupo de Pesquisa
Poesia Brasileira Contemporânea, da UFRJ.

Marcos Rogério Ribeiro Ponciano é Licenciado em Letras -


Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela UERJ
(1996),mestre em Ciência da Literatura pela UFRJ (2003) e
doutor em Língua portuguesa pela UERJ(2009). Atualmente é
professor de Português e Literaturas do Colégio Pedro II e
membro do GEEPOL. Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos se-
guintes temas: leitura, literatura infanto-juvenil e ensino de
língua portuguesa.

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Sobre os autores

Maria Cecília Sousa de Moraes é Licenciada em Letras pela


UFRJ (2007), especialista (2013) e mestre em Educação (2015)
pelo Colégio Pedro II, onde atua como professora de Portu-
guês e Literaturas. É membro do GEEPOL e associada em for-
mação do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise – Seção RJ.

Priscila Bezerra de Menezes é Bacharel e Licenciada em Le-


tras pela UERJ (2006), mestre em Literatura Portuguesa pela
UERJ (2009) e Doutora em Língua Portuguesa pela UERJ
(2014). É professora de Português e Literaturas do Colégio Pe-
dro II (CPII) e membro do GEEPOL.

Raquel Cristina de Souza e Souza é Licenciada em Letras pela


UFRJ (2005), especialista em Literatura Infantil e Juvenil
(2011), mestre (2008) e doutora em Literatura Brasileira pela
UFRJ. É professora de Português e Literaturas do Colégio Pe-
dro II e membro do GEEPOL e do NIELIJ (Núcleo Interdisci-
plinar de Estudos em Literatura Infantil e Juvenil – UFRJ).

Renata Calheiros Alves é Licenciada em Letras pela UERJ


(2004), mestre (2005) e doutora (2013) em Língua Portuguesa
pela mesma instituição. É professora de Língua Portuguesa e
Literaturas do Colégio Pedro II. Atualmente, é membro do
GEEPOL.

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Este livro foi composto
em papel XXXXXXX X0g/m²
e impresso em ???????? de 2016

Que este livro dure até antes do fim do mundo

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