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“TERCEIRIZAÇÃO, PRECARIZAÇÃO E AGRAVOS À

SAÚDE DOS\AS TRABALHADORES\AS”

IX Seminário de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora


“Terceirização, Precarização e Agravos à Saúde dos
Trabalhadores” e o VIII Seminário “O Trabalho
em Debate” (Volume II)
UNESP – Universidade Estadual Paulista

Reitor
Prof. Dr. Sandro Roberto Valentini

Vice-Reitor
Prof. Dr. Sergio Roberto Nobre

Pró-Reitora de Extensão
Prof.ª Dr.ª Cleopatra da Silva Planeta

Pró-Reitor de Pesquisa
Prof. Dr. Carlos Frederico de Oliveira Graeff

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Diretora
Profª. Drª. Célia Maria David

Vice-Diretora
Profª. Drª. Márcia Pereira da Silva

Comissão Editorial UNESP - Câmpus de Franca

Presidente
Profa. Dra. Célia Maria David

Membros
Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa
Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes
Profa. Dra. Analúcia Bueno R. Giometti
Profa. Dra. Cirlene Ap. Hilário da Silva Oliveira
Profa. Dra. Elisabete Maniglia
Prof. Dr. Genaro Alvarenga Fonseca
Profa. Dra. Helen Barbosa R. Engler
Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da Silva
Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França
Prof. Dr. José Duarte Neto
Profa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira
Prof. Dr. Luis Alexandre Fuccille
Profa. Dra. Paula Regina de Jesus P. Pavarina
Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges
Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira
Profa. Dra. Rita de Cássia Ap. Biason
Profa. Dra. Valéria dos Santos Guimarães
Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino
Edvânia Ângela de Souza Lourenço; Vera Lúcia Navarro; José Reginaldo Inácio, Ricardo Lara;
Claudia Mazzei Nogueira
(Organizadoras\es)

“TERCEIRIZAÇÃO, PRECARIZAÇÃO E AGRAVOS À


SAÚDE DOS\AS TRABALHADORES\AS”

IX Seminário de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora


“Terceirização, Precarização e Agravos à Saúde dos
Trabalhadores” e o VIII Seminário “O Trabalho
em Debate” (Volume II)

2017
UNESP
Edvânia Ângela de Souza Lourenço
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – FCHS- UNESP-Franca, SP.
Vera Lúcia Navarro
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP.
Comissão Organizadora
Andressa Vanusa Carmargo José Reginaldo Inácio Confederação Nacional dos
(FCHS), UNESP – Franca, SP.‑ Trabalhadores da Indústria (CNTI).
Aline Pereira da Silva (FCHS), UNESP – Franca, SP. Marcelo Galo (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Benedito R. de Miranda (FCHS), UNESP – Franca, SP. Maria Angélica da Silva (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Bianca Barbosa do Vale (FCHS), UNESP – Franca, SP. Marcos Antonio Limonti Filho Associação de Ensino e
Cássia Regina Rosa (FCHS), UNESP – Franca, SP. Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS.
Claudia Mazzei Nogueira UNIFESP-BS. Mayra Ribeiro Oliveira (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Clara Lúcia Aguiar Sindicato dos Trabalhadores Nathália Lopes Caldeira Brant Instituto Federal Sul de
das Indústrias de Calçados e Vestuários (STICF) da Minas Gerais, campus Machado, MG.
região de Franca, SP. Onilda Alves do Carmo (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Cleyton da Silva Oliveira (FCHS), UNESP – Franca, SP. Raquel Santos Sant’Ana (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Edvânia Ângela de Souza Lourenço (FCHS), UNESP – Ricardo Lara Universidade Federal de
Franca, SP. Santa Catarina, UFSC.
Gislaine dos Santos Silva- Secretaria de Saúde da Robson de Jesus Ribeiro - (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Prefeitura Municipal de São Paulo. Sebastião Ronaldo (STICF)
Graziela Donizetti dos Reis (FCHS), UNESP – Franca, SP. Tamara dos Santos Oliveira (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Helyssa Bafum (FCHS), UNESP – Franca, SP. Vera Lucia Navarro USP Ribeirão Preto
José Antonio Pereira (FCHS), UNESP – Franca, SP.
José Fernando Siqueira da Silva (FCHS) UNESP Franca,
SP.

Comissão Científica
Albério Neves Filho – (FCHS), UNESP – Franca, SP. Maria Beatriz Costa Abramides – PUC/SP.
Anita Pereira Ferraz – Pontifícia Maria Izabel da Silva – UFU
Universidade Católica - PUC/SP. Maria das Graças Lustosa – UFF/Niterói RJ,
Caio Sgarbi Antunes – Universidade Marta de Freitas – Subsecretaria de Vigilância e Proteção á
Federal de Goiás – UFG. Saúde\Secretaria do estado de Minas Gerais, MG.
Claudia Mazzei Nogueira - UNIFESP-BS. Murilo Gaspardo – (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Edvânia Ângela de Souza Lourenço - (FCHS), UNESP – Nathália Lopes Caldeira Brant – Instituto Federal Sul de
Franca Minas Gerais, campus Machado, MG.
Gislaine dos Santos Silva- Secretaria de Saúde da Onilda Alves do Carmo - (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Prefeitura Municipal de São Paulo. Patricia Soraya Mustafa - (FCHS), UNESP – Franca, SP.
Gustavo José de Toledo Pedroso - Priscila De Souza Oliveira – Ministério
(FCHS), UNESP – Franca, SP. Público – Franca, SP.
José Antonio Pereira- (FCHS), UNESP – Franca, SP. Raquel Santos Sant’Ana – (FCHS), UNESP – Franca, SP.
José Fernando Siqueira da Silva - (FCHS), UNESP – Ricardo Lara - Universidade Federal de
Franca, SP. Santa Catarina – UFSC.
José Reginaldo Inácio – (CNTI). Reginaldo Pereira França Junior - Universidade Federal de
Leandro Carlone - (FCHS), UNESP – Franca, SP. Santa Catarina – UFSC.
Lívia de Cássia Godoi Moraes – UFES. Vera Lucia Navarro –USP Ribeirão Preto
Luiz Gonzaga Chiavegato Filho – UFSJ. Vinicius Barbosa de Araújo – BNDS.
Marcelo Galo - (FCHS), UNESP – Franca, SP.

Terceirização, Precarização e Agravos à Saúde dos Trabalhadores (I :


2015 : Franca, SP).
Terceirização, precarização e agravos à saúde dos/as trabalhadores/as /
IX Seminário de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora “Terceirização,
Precarização e Agravos à Saúde dos Trabalhadores” e o VIII Seminário
“O trabalho em debate” ; Edvânia Ângela de Souza Lourenço ... [et al.]
(Organizadoras/es). – Franca : UNESP-FCHS, 2017.

2 v.
ISBN: 978-85-7818-100-0

1. Serviço social com trabalhador. 2. Saúde do trabalhador.


3. Seguridade social. 4. Terceirização. 5. Acidentes do trabalho.
I. Seminário “O trabalho em debate” (VIII : 2015 : Franca, SP).
II. Lourenço, Edvânia Ângela de Souza. III. Título.
CDD – 362.85
Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773
Índices para catálogo sistemático:
1. Serviço social com trabalhador ................................................... 362.85
2. Saúde do trabalhador ..................................…............................. 610.88
3. Seguridade social ......................................................................... 341.61
4. Terceirização ............................................................................... 322.3
5. Acidentes do trabalho................................................................... 342.61
APRESENTAÇÃO
Este livro1 é o segundo volume do livro “Terceirização, Precarização e Agravos à
Saúde dos Trabalhadores”, o qual é resultado do IX Seminário de Saúde do trabalhador, evento
tradicionalmente realizado pela UNESP-Franca em conjunto com a USP-Ribeirão Preto e Sindicato
dos Trabalhadores nas Indústrias de Calçados e Vestuários da Região (STICF) de Franca, sendo que a
partir desta edição, ocorrida em setembro de 2015, passou a contar também com a parceria da UFSC
e UNIFESP - BS. Ressalta-se, que desde a edição do Seminário de 2012, vem-se contando também
com a parceria e apoio da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI). Além do
apoio do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) – Franca, SP.
Para a realização deste Seminário foram criadas estratégias para garantir a articulação
entre ensino e pesquisa e as demandas sociais dos\as trabalhadores\as. Buscou atender aos anseios
dos trabalhadores e trabalhadoras que necessitam do apoio de serviços de pesquisa e de extensão
universitária para a solução de problemas referentes às condições de trabalho, à saúde e aos direitos
trabalhistas. A participação de pesquisadores de diferentes instituições, de representantes de organismos
estatais e de representantes de trabalhadores possibilitou conjugar esforços na busca de soluções
para estes problemas. Este evento conta também com importante participação de representantes do
movimento sindical.
A articulação entre os vários setores que atuam no âmbito da saúde do trabalhador constitui a
particularidade do Seminário, ou seja, a pesquisa acadêmica e o diálogo constante com os movimentos
sociais oferecem possibilidades concretas para a universidade atingir, de forma orgânica, a pesquisa,
o ensino e a extensão.
Ao oferecer palestras, debates, cursos e a socialização de pesquisas entre trabalhadores\
as, profissionais, estudantes\as e pesquisadores\as, o Seminário de Saúde do Trabalhador vem se
consolidando e criando um espaço complementar para a formação tanto dos que se dedicam à pesquisa,
quanto daqueles que atuam no campo do trabalho e da saúde do trabalhador.
Nesta edição, seguindo as diretrizes das universidades públicas (UNESP e USP), que
promovem o evento, juntamente com o apoio da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), CNTI, Sindicato dos\as Trabalhadores\as da Indústria
de Calados e Vestuários de Franca e região empreendeu-se esforços para imprimir ao Seminário um
caráter nacional e quiçá internacional, trazendo conferencistas de âmbito nacional e de dois países
diferentes. Este esforço é importante à medida em que poderá possibilitar não apenas intercâmbio
de conhecimentos, mas possíveis intercâmbios de pesquisas envolvendo, em especial, alunos\as de
pós-graduação.
Assim, este livro “Terceirização, Precarização e Agravos à Saúde dos Trabalhadores”,
(VOLUME II) que ora vem a público constitui-se de 22 capítulos oriundos dos textos apresentados
no Seminário de Saúde do\a Trabalhador\a, divididos em três eixos fundamentais, em continuidade ao
Volume I, quais sejam: Eixo IV- Trabalho e Saúde do Trabalhador; Eixo V - Questão Agrária, Questão
Urbana e Saúde do Trabalhador; Eixo VI - Sindicato, Movimentos Sociais e Saúde do Trabalhador,
conforme as normas científicas do evento. O primeiro eixo conta com nove textos, os quais discutem
a Saúde do\a Trabalhador\a no sistema capitalista; os impactos da terceirização para a saúde dos\as
trabalhadores\as do setor elétrico; o neoliberalismo e a destruição dos direitos sociais e do trabalho;
o assédio moral no trabalho; os agravos à saúde do\a trabalhador\a no setor bancário; a saúde do\a
trabalhador\a dos mototaxistas e a saúde das mulheres catadoras de materiais recicláveis.
O eixo Questão Agrária, Questão Urbana e Saúde do Trabalhador constam de oito textos,
os quais discutem o trabalho na produção de celulose; a relação trabalho e saúde na mariscagem; na
agroindústria canavieira; o trabalho dos pescadores artesanais; a relação entre o câncer e o trabalho
rural; a utilização dos agrotóxicos e sua relação com a saúde nas plantações de tomate e o debate do
meio ambiente na sociedade do capital e o Serviço Social.
1
Registra-se aqui um agradecimento especial ao Murilo Celli, servidor técnico administrativo da Seção Técnica de
Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (STAEPE) e também a Laura Odette Dorta Jardim, Diretora da Biblioteca, ambos
da UNESP-Franca, SP, pela preciosa contribuição e trabalho inestimável no que se refere às questões técnicas para a
organização deste livro, volume I e volume II.
Por fim, o eixo Sindicato Movimentos Sociais e Saúde do Trabalhador compõe-se de
cinco textos que discutem o sindicato e o partido político comunista de vanguarda; a experiência do
sindicato da Previdência Social do Rio Grande do Sul; o trabalho do sindicato dos eletricitários de
Minas Gerais e a terceirização; o papel da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) e a
luta dos movimentos sociais para pensar a relação trabalho e saúde.
Assim, o livro que ora vem a público constitui-se de dois volumes – VOLUME I e II-
contemplando ao todo 45 trabalhos que anteriormente foram apresentados durante o Seminário e,
agora, após análise e seleção compõem o livro de evento.
Com este livro (VOLUME II) espera-se ampliar o debate a respeito do trabalho e da saúde
dos sujeitos que laboram, do mesmo modo, ampliar o debate acerca da terceirização-precarização do
trabalho. Espera-se também estreitar os espaços entre a universidade e a comunidade, sobretudo, com
o CEREST-regional e demais órgãos públicos que atuam com a saúde do\a trabalhador\a e sindicatos
dos\as trabalhadores\as.
Assim, cabe a universidade o debate coletivo para que sejam construídas as possibilidades
de transformação da realidade.
Organizadoras e organizadores
Inverno de 2016.
LISTA DE SIGLAS
ABEAD Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas
ABEPSS Associação Brasileira de Estudos e Pesquisa em Serviço Social
ABRAF Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas
ACP Ação Civil Pública
AEAT Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho
ANP Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustível
AT Acidente de Trabalho
BAP Bacia do Alto Paraguai
BM Bombeiro Militar
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CAGED Cadastro Geral de Empresados e Desempregados
CAPES Coordenação e Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CAT Comunicações de Acidente de Trabalho
CBO Classificação Brasileira de Ocupação
CEGET Centro de Estudos de Geografia do Trabalho
CEMIG Companhia Energética de Minas Gerais
CEREST Centro de Referência em Saúde do Trabalhador
CETAS Centro de Estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde
CF Constituição Federal
CFESS Conselho Federal de Serviço Social
CGTB Central Geral dos Trabalhadores do Brasil
CID Classificação Internacional das Doenças
CIPA Comissão Interna de Prevenção de Acidente
CIUO Classificação Internacional Uniforme de Ocupações
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
CNAE Classificação Nacional de Atividades Econômicas
CNS Conselho Nacional de Saúde
CNTI Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria
CODEVASF Companhia do Vale do São Francisco e do Parnaíba
COOPERFRAN Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de Franca e Região
CRAS Centro de Referência de Assistência Social
CREA Centro de Referência Especializado de Assistência Social
CRESS Conselho Regional de Serviço Social
CSB Central dos Sindicatos do Brasil
CSP Central Sindical e Popular
CTB Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil
CUT Central Única dos Trabalhadores
DATASUS Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde
DCNT Doenças Crônicas Não Transmissíveis
DEM Democratas
DIEESE Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos
DNOCS Departamento de Obras Contra as Secas
DORT Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho
DRT Doenças Relacionadas ao Trabalho
DSST Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho do Ministério do Trabalho e
Emprego
EA Educação Ambiental
EAPDS Educação Ambiental para Desenvolvimento Sustentável
EERP Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
ENPESS Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social
EPD Faculdade Escola Paulista de Direito
EPE Empresa de Pesquisa Energética
EPI Equipamento de Proteção Individual
EUA Estados Unidos da América
FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FCHS Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca
FFCLRP Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
FHC Fernando Henrique Cardoso
FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
FIFA Federação Internacional de Futebol
FMI Fundo Monetário Internacional
FMRP-USP Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
FUNCOGE Fundação Comitê de Gestão Empresarial
FUNDACENTRO Fundação Jorge Duprat Figueiredo, de Segurança e Medicina do Trabalho
GEE Gases do Efeito Estufa
GEX Gerência Executiva
GM General Motors
GT Grupo de Trabalho
IAP’S Institutos de Aposentadorias e Pensões
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INAMPS Instituto Nacional de Assistência Medica da Previdência Social
INPS Instituto Nacional da Previdência Social
INSS Instituto Nacional de Serviço Social
IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada
KKE Partido Comunista Grego
LENAD Levantamento Nacional de Álcool e Drogas
LER Lesões Por Esforços Repetitivos
LIPES Laboratório Integrado Produção e Saúde
MDIC Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços
MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MPS Ministério da Previdência Social
MPT Ministério Público do Trabalho
MS Ministério da Saúde
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
MTE Ministério do Trabalho e Emprego
NAISST Núcleo de Atenção Integral e Segurança do Trabalhador
NCST Nova Central Sindical dos Trabalhadores
OIT Organização Internacional do Trabalho
OLT Organizações por Local de Trabalho
OMS Organização Mundial da Saúde
ONG Organizações Não Governamentais
ONU Organizações das Nações Unidas
OPAS Organização Pan-Americana da Saúde
PAIR Perda Induzida Por Ruído
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PCE Partido Comunista da Espanha
PCPE Partido Comunista dos Povos da Espanha
PDV Programas de Demissão Voluntária
PEAC Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras
PIA Plantios Industriais de Árvores
PIB Produto Interno Bruto
PM Polícia Militar
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PMPDP Projeto de Monitoramento Participativo do Desembarque Pesqueiro
PNAS Política Nacional de Assistência Social
PND Plano Nacional de Desenvolvimento
PNPC Plano Nacional de Papel e Celulose
PNSST Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho
PNSTT Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
PNUMA Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
PPDS Projeto de Pesquisa e Desenvolvimento Social
PPGSS Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
PRP Programa de Reabilitação Profissional
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PSF Programa Saúde da Família
PSOL Partido Socialismo e Liberdade
PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado
PT Partido dos Trabalhadores
PUCRS Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RAIS Relação Anual de Informações Sociais
REF Relatório de Estabilidade Financeira
RENAST Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador
RN Rio Grande do Norte
SAT Seguro Acidente de Trabalho
SECEX Secretaria do Comércio Exterior
SENAC Serviço Nacional do Comércio
SENAI Serviço Nacional da Indústria
SESC Serviço Social do Comércio
SESI Serviço Social da Indústria
SFN Sistema Financeiro Nacional
SIM Sistema de Informação sobre Mortalidade
SINAIT Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
SINDIELETRO-MG Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas
Gerais
SINDISPREV Sindicato dos Trabalhadores Federais da Saúde, Trabalho e Previdência no Rio
Grande do Sul
SINDMETALSJC Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos
SINDSAÚDE Sindicato dos Servidores Estaduais da Saúde do Paraná
SRTE Superintendência Regional do Trabalho e Emprego
SST Saúde Segurança do Trabalhador
ST Saúde do Trabalhador
STICF Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Calçados e Vestuários da Região
STTR Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
SUAS Sistema Único de Assistência Social
SUS Sistema Único de Saúde
TST Tribunal Superior Do Trabalho
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFAL Universidade Federal de Alagoas
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFEP Universidade Federal de Pernambuco
UFF Universidade Federal Fluminense
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFOP Universidade Estadual de Ouro Preto
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
UFS Universidade Federal de Sergipe
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UFSCAR Universidade Federal de São Carlos
UFSJ Universidade Federal de São João Del Rei-MG
UFTM Universidade Federal do Triangulo Mineiro
UFU Universidade Federal de Uberlândia
UGT União Geral dos Trabalhadores
UNABRAS União de Anistiados do Brasil
UNB Universidade de Brasília
UNCISAL Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas
UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
UNESPAR Universidade Estadual do Paraná
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNIOESTE Universidade Estadual do Oeste do Paraná
UPA Unidades de Pronto Atendimento
URSS União das Republicas Socialistas Soviéticas
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO

EIXO IV - Trabalho e Saúde do Trabalhador

TRABALHO E SAÚDE NOS TEMPOS DO CAPITAL


Diany Ibrahim de Souza Camilo
Reivan Marinho de Souza............................................................................................15

TRABALHO CAPITALISTA E INSTABILIDADE SOCIAL:UMA PROPOSTA


DE INVESTIGAÇÃO DO SOFRIMENTO MENTAL DO TRABALHADOR
Roberto Coelho do Carmo...........................................................................................25

PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO:RELAÇÃO RECÍPROCA DE


FUNCIONAMENTO DO CAPITALISMO, CUJA MOEDA É A
SAÚDE DO TRABALHADOR
Vanessa Batista de Andrade.........................................................................................37

A TERCEIRIZAÇÃO MUTILANTE:IMPACTOS PSICOSSOCIAIS DE UM


ACIDENTE NO SETOR ELÉTRICO
Laís Di Bella Castro Rabelo
Julie Micheline Amaral Silva
Carlos Alberto Faria Ferreira
Anelisa Bonato da Silva...............................................................................................49

MEIO AMBIENTE DE TRABALHO E PROCESSO DE “BANALIZAÇÃO DO


MAL”:AS CONSEQUÊNCIAS DA “AVALANCHE” NEOLIBERALIZANTE
Júlia Lenzi Silva
Juliana Presotto Pereira Netto
Adriano Roque Pires....................................................................................................59

ELUCUBRAÇÕES SOBRE O FAZER MÉDICO-PERICIAL NO CAMPO DA


SAÚDE DO TRABALHADOR
Bruno Chapadeiro........................................................................................................69

ADOECIMENTOS E AFASTAMENTOS DO TRABALHO BANCÁRIO


Juliana Lemos Silva Fortes
Vera Lucia Navarro......................................................................................................77

A SAÚDE DO TRABALHADOR MOTOTAXISTA DO MUNICÍPIO DE CAICÓ/


RN NO CONTEXTO DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
Aline Gomes dos Santos
Antônio de Medeiros Pereira Filho..............................................................................87
SAÚDE DAS MULHERES NEGRAS CATADORAS DE
MATERIAIS RECICLÁVEIS
Bárbara Oliveira Rosa..................................................................................................97

EIXO V - Questão Agrária, Urbana e Saúde do Trabalhador

A VERDADEIRA NATUREZA DO TRABALHO NOS NOVOS TERRITÓRIOS


DA PRODUÇÃO DE CELULOSE NO BRASIL
Guilherme Marini Perpetua
Antonio Thomaz Junior.............................................................................................107

O TRABALHAR DA ENFERMAGEM EM TURNOS:ROTAS


PARA UMA INVESTIGAÇÃO
Roberta Peixoto Nogueira
Ailton Souza Aragão..................................................................................................121

A RELAÇÃO ENTRE PROCESSO DE TRABALHO E PROBLEMAS


DE SAÚDE NA MARISCAGEM
Sheyla Zacarias da Cruz Santana
Tamires Barros de Almeida
Thainara Guimarães Ribeiro
Carlos Frederico Bernardo Loureiro
Nailsa Maria Souza Araújo........................................................................................129

INTENSIFICAÇÃO DO PROCESSO DE TERCEIRIZAÇÃO NAS


AGROINDÚSTRIAS CANAVIEIRAS
Maria Joseli Barreto
Antonio Thomaz Junior.............................................................................................139

VULNERABILIDADES DOS TRABALHADORES


RURAIS:RELATO DE EXPERIÊNCIA
Nycole Israel do Nascimento
Maria Lúcia do Carmo Cruz Robazzi........................................................................147

OS PESCADORES ARTESANAIS E OS EMPREENDIMENTOS NA BACIA


DO ALTO PARAGUAI (BAP)
Enilda Maria Lemos...................................................................................................157

A UTILIZAÇÃO DE AGROTÓXICOS NA AGRICULTURA E OS


EFEITOS NOCIVOS Á SAÚDE HUMANA E AMBIENTAL: DA REDUÇÃO
DE CUSTOS A MAXIMIZAÇÃO DA EFICIÊNCIA DO PROCESSO
PRODUTIVO PARA MAIORES LUCRO
Robson de Jesus Ribeiro............................................................................................165
O SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO FRENTE A CONCOMITÂNCIA DA
“ECOLOGIZAÇÃO” DO CAPITAL E DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
Vitor Moretti Zonetti..................................................................................................173

EIXO VI: Sindicato, Movimentos Sociais e Saúde do Trabalhador

AS EXIGÊNCIAS IMPOSTAS PELA GLOBALIZAÇÃO DA


ECONOMIA ÀS REPRESENTAÇÕES
Benedito Romualdo de Miranda................................................................................183

APONTAMENTOS SOBRE O SIGNIFICADO TEÓRICO-POLÍTICO DO


“PARTIDO COMUNISTA DE VANGUARDA”
Giovanny Simon Machado........................................................................................191

PRECARIEDADE NO TRABALHO:OS IMPACTOS DA TERCEIRIZAÇÃO


NA SAÚDE E NA SEGURANÇA DOS ELETRICITÁRIOS
Marcelle La Guardia Lara de Castro
Wesley da Silva Coelho
José Jurandir Alves Esteves Junior
Lucas Henrique de Oliveira Fonseca Cruz
Eliza Helena de Oliveira Echternacht........................................................................203

COMISSÕES INTERNAS DE PREVENÇÃO DE ACIDENTES:A SAÚDE DO


TRABALHADOR COMO ALTERNATIVA À REORGANIZAÇÃO DA BASE
OPERÁRIA NA EXPERIÊNCIA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS
Natalia Perdomo dos Santos......................................................................................215

TRABALHO, SAÚDE AMBIENTAL E MOVIMENTOS SOCIAIS:ELEMENTOS


PARA PENSAR AS RESISTÊNCIAS DO TRABALHO FRENTE AO CAPITAL
Diego Pessoa Irineu de França
Antonio Thomaz Júnior.............................................................................................225
TRABALHO E SAÚDE NOS TEMPOS DO CAPITAL*
Diany Ibrahim de Souza Camilo**
Reivan Marinho de Souza***
RESUMO: O presente estudo analisou a problemática da saúde do trabalhador relacionada às condições de trabalho e de reprodução
dos trabalhadores, recuperando a base da produção material e das principais doenças acometidas desde as comunidades primitivas
ao capitalismo contemporâneo. Nas sociedades precedentes, pelo precário desenvolvimento das forças produtivas, as doenças eram
associadas às causas transcendentais. Essa situação modifica no capitalismo com as transformações ocorridas nos métodos de trabalho
e descobertas científicas. Constata-se que na dinâmica do desenvolvimento capitalista, os trabalhadores estão subsumidos à exploração
e à precarização do trabalho, cuja lógica produz uma diversidade de adoecimentos que atingem integralmente sua reprodução.
Palavras-chave: Trabalho, Saúde, Doenças sócio-ocupacionais, Capitalismo
ABSTRACT: The present study analysed the problem of workers’ health related to work conditions and reproduction of labour power,
recovering the base of material production and the major diseases that occurred from primitive societies to contemporary capitalism. In
ancient societies, due to precarious development of productive forces, diseases were associated to metaphysical causes. This situation
is changed in capitalism with the transformation of working methods and scientific discoveries. It is verified that, in the dynamics of
capitalist development, workers are vulnerable to exploitation and precarization of labour, whose logic generates a series of illnesses
that wholly affect their reproduction.
Keywords: Work, Health, Occupational diseases, Capitalism

INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda a problemática da saúde do trabalhador relacionada as suas


condições de trabalho e de reprodução social na sociabilidade capitalista. Recupera-se, neste texto,
ainda que sinteticamente, a base da produção material e das enfermidades mais comuns, desde a
comunidade primitiva até o capitalismo contemporâneo, principalmente aquelas que mais acometeram
os trabalhadores, para problematizar se com o desenvolvimento das forças produtivas os homens
conseguem exercer o controle da incidência das enfermidades e garantir melhores condições de
reprodução material e social.
A pesquisa desenvolvida, de natureza bibliográfica, teve como referência teórica a perspectiva
marxiana, a qual busca desvendar a raiz dos fenômenos na dinâmica da realidade social, o que
contribui para produzir uma crítica radical do objeto investigado. Foram utilizados como referência
metodológica os textos de Karl Marx, Friedrich Engels e de outros autores contemporâneos como
István Mészáros e José Paulo Netto; além de estudiosos da área da saúde como Lacaz e Mendes e
Dias que tratam o tema numa perspectiva histórico-crítica. Resulta da síntese de pesquisa realizada
em curso de Mestrado.
Ao analisar o processo saúde-doença, com base na referência marxiana, considera-se que o
adoecimento não é produzido a partir de um elemento ou causa, mas de vários determinantes histórico-
sociais que estão associados às condições de vulnerabilidade do homem em relação à natureza e ao
desenvolvimento da produção material na sociedade. Pelas contradições que são imanentes à relação
capital vive-se, na sociedade capitalista, um paradoxo - ao mesmo tempo em que as bases materiais
desta sociedade propiciam o desenvolvimento acelerado das forças produtivas e o avanço da ciência
e da tecnologia, deflagrando as possibilidades materiais/sociais de eliminar e controlar doenças, no
entanto, também são geradas formas adoecedoras diversas.
O homem adoece de causas multifatoriais, em sua maioria, fruto do processo de reprodução
material de cada sociedade, conforme dito. Esse processo tem como alicerce o trabalho, categoria

*
O presente artigo trata-se de uma publicação parcial da dissertação intitulada “Na saúde e na doença até que a morte
os separe: trabalho e saúde nos tempos do capital” apresentada em 2012, no Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social (PPGSS), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), tendo como autora a terapeuta ocupacional Diany Ibrahim
de Souza Camilo, sob orientação da Profa. Dra. Reivan Marinho de Souza.
**
Graduada em Terapeuta Ocupacional pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2002. Mestrado em
Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), concluído em 2012. Terapeuta ocupacional e coordenadora
do Núcleo de Atenção Integral e Segurança do Trabalhador (NAISST) da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de
Alagoas (UNCISAL). e-mail: dianyto@yahoo.com.br;.
***
Doutora em Serviço Social e docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) pela UFAL,
professora orientadora. e-mail: reivansouza@yahoo.com.br.

15
fundante do ser social, momento em que através do trabalho a humanidade produz meios para o
atendimento de suas necessidades de subsistência e as demais necessidades sociais e, com isso,
desenvolve as forças produtivas nas diferentes sociedades. Contudo, o trabalho quando subordinado
ao capital está voltado à produção de mercadorias como valor de troca, que são resultantes do
trabalho abstrato, e não apenas para a confecção de valores de uso, que são produto do trabalho útil
concreto (MARX, 1988a).
Essas considerações sobre a categoria trabalho permite entender que a problemática
do trabalhador acometido por doenças está presente nas diferentes sociedades e tem implicações
significativas para a reprodução da vida social. Mas, em particular, na sociedade capitalista, verifica-
se com o desenvolvimento técnico-científico desenfreado dos processos de organização do trabalho
e da incessante necessidade de acumulação, a proliferação de doenças, de natureza diversa, que
atingem a vida dos trabalhadores. Assim, quando o trabalho adquire configurações adoecedoras
e alienantes, não é resultante de suas características imanentes, mas da forma que ele assume no
interior da sociabilidade capitalista, que tem como necessidade principal produzir riqueza através da
expropriação da mais-valia, o que promove diferentes processos de adoecimento.
Dentre os processos de adoecimentos produzidos na sociabilidade capitalista no trabalho
estão aqueles que abrangem as moléstias osteomioarticulares, as doenças ligadas ao sofrimento
psíquico e outros que se agravam de acordo com as mudanças na organização do trabalho. Entretanto,
cabe ressaltar, a significativa prevalência das doenças mais conhecidas como as Doenças Crônicas
Não Transmissíveis (DCNT), responsáveis pela maior causa de morte da atualidade. Nestas, o trabalho
pode estar relacionado direta ou indiretamente tanto no seu surgimento como na sua gravidade. Além
das doenças crônicas e limitantes, há a persistência de doenças de caráter infectocontagioso que
incidem de forma mais endêmica na população pauperizada. Essas doenças costumam dar visibilidade
à condição de classe imposta, de forma que há aquelas associadas às precárias condições de vida e
de saúde; há também indícios de surgimento de agravos causados pela alimentação excessivamente
industrializada e de pobre conteúdo nutricional, substâncias tóxicas e equipamentos de última geração,
dos quais, pelo tempo de uso, ainda não há elementos suficientes para propor um prognóstico de
seus danos vindouros.
Dada a não superação dessas doenças e o surgimento de outras relacionadas ao trabalho,
abordamos a seguir os fundamentos materiais da relação saúde-doença, elemento que pode contribuir
para explicar a problemática da saúde do trabalhador no desenvolvimento do capitalismo.

1 FUNDAMENTOS HISTÓRICO-MATERIAIS DA RELAÇÃO SAÚDE-DOENÇA

O desenvolvimento histórico da humanidade foi marcado pela dinâmica dos modos de


organização da produção social, tendo em seu interior desdobramentos pautados pelas diversas formas
de relações entre os indivíduos e o trabalho. Dessa forma, concepções sobre saúde e doença, noções
de curabilidade e tratamentos empregados também acompanharam as transformações decorrentes das
demandas da produção e reprodução social de cada momento histórico.
A produção econômica e os processos de transformação que eles engendram definem
relações sociais e políticas que interferem decisivamente na existência da problemática saúde-doença
nas sociedades. A primeira forma de trabalho da história deu-se através da coleta, durante o período
das comunidades primitivas. A coleta implicava uma sociedade nômade, organizada em bandos que
passavam o dia em busca de alimentos. À medida que se desenvolviam enquanto grupos, os homens
passaram a se organizar em tribos, A cada geração, os homens aperfeiçoaram sua busca por alimentos,
adquirindo maior conhecimento sobre as condições de clima e sobre os outros animais.
De acordo com Engels (1984) em sua obra “A origem da família, da propriedade privada
e do Estado”, conforme desenvolviam a agricultura, a pecuária, a horticultura, a domesticação de
animais, o aperfeiçoamento dos instrumentos, a aquisição de habilidades e o maior domínio sobre
a natureza realizado pelo trabalho, os homens começaram a acumular sua produção, chegando a

16
ultrapassar as necessidades imediatas para a sobrevivência. A partir da revolução neolítica1, o
acúmulo desencadeado pelo excedente econômico permitiu a constante troca de produtos de uma
comunidade com outra, gerando as mercadorias e as diferenciações entre os grupos. Destes, havia os
que produziam, e os que se apropriavam dos bens produzidos. Essa nova característica possibilitou o
surgimento do escravismo (PAULO NETTO; BRAZ, 2008).
Assim, o excedente possibilitou as primeiras formas de exploração do homem pelo homem,
baseado na propriedade privada. Essa passagem fundou a necessidade do Estado e o surgimento
das sociedades de classe. Os povos acreditavam que as doenças procediam de forças sobrenaturais
decorrentes do poder dos deuses ou das feitiçarias lançadas por alguns homens. Essa concepção
mágico-religiosa perdurou por muitos séculos.
Cabe ressaltar o poder peremptório das forças da natureza sobre a vida dos homens e o caráter
predominantemente natural enfrentado pelas comunidades primitivas no trato da relação homem-
natureza, bem como sua modificação na realização do trabalho ainda de forma paulatina. Essa dimensão
natural estendia-se ao homem com a aparição de doenças, em face do precário desenvolvimento das
forças produtivas, resultante do incipiente domínio do homem em relação à natureza.
O surgimento do excedente da riqueza na produção material foi o ponto de partida para
a exploração e escravização do homem pelo homem, baseado na força e na violência, produzindo
sociedades de classes. O modo de produção escravista, em particular, estrutura-se por volta de 3.000
anos a.C. até a queda do Império Romano.
A relação de produção correspondia ao trabalho rude e braçal realizado pelos escravos.
A condição de escravo era semelhante à de um instrumento de produção como outro qualquer;
assentava-se numa negação peremptória do caráter humano do escravo. Para manter o controle
sobre os escravos, era necessário desenvolver instrumentos de coerção baseados na violência e na
força, mantendo-se assim o regime de dominação. O Estado foi criado para esse fim; subsidiado pela
classe dominante, precisava cada vez mais de riqueza para sua estrutura repressora. Nessa direção, a
grandeza do Império também reclamava um enorme excedente econômico para manter a repressão
dos escravos, a submissão dos povos conquistados e o parasitismo dos grandes proprietários.
Com as invasões bárbaras, a queda do Império Romano culminou no fim do escravismo (PAULO
NETTO; BRAZ, 2008).
Concebia-se a doença como sinal de desobediência ao mandamento divino. O povo hebreu
viveu períodos de pestes e doenças associadas ao castigo divino. A Bíblia, no Antigo Testamento,
explora, mais especificamente em “Levítico”, as enfermidades que acometiam o povo. Dentre os
“castigos divinos” estão a pobreza, a fome, a peste, a lepra, a febre, as úlceras, a sarna, a loucura e a
cegueira transmitida para suas gerações (BÍBLIA, 1993).
Na Grécia antiga, sob forte influência da mitologia, acreditava-se que as doenças eram enviadas
pelo deus Apolo. Dessa forma, a cura também era concebida através de um deus, Asclépio, deus solar
e da saúde, filho de Apolo, que detinha o poder de curar as pessoas das enfermidades (UJVARI, 2003).
As guerras e as destruições foram responsáveis pela disseminação e expansão de muitas
epidemias. O crescimento populacional de Roma resultou em problemas tipicamente urbanos como
as habitações com cômodos pequenos, ruas estreitas com intenso comércio local. Quando um agente
infeccioso era introduzido em determinada localidade do Império, disseminava-se pelas estradas
romanas, por caminhos percorridos pelas pessoas infectadas, como legionários, comerciantes e
viajantes (UJVARI, 2003).
Da superação do escravismo decorreu o sistema feudal, e a propriedade de terra constituía
o fundamento da estrutura social da sociedade, que se polarizava entre os senhores e os servos. A
produção era destinada ao autoconsumo e havia compromissos mútuos entre os servos que prestavam
serviços nas terras dos senhores e estes, que lhes garantiam a proteção da vida.
A Igreja Católica também associou as doenças aos pecados, e sua cura envolvia fé e
arrependimento. A população, frequentemente, convivia com epidemias de grandes proporções, muitas

1
Referente às duas grandes descobertas relacionadas à descoberta da agricultura e à domesticação de animais.

17
disseminadas em outros lugares do mundo através das rotas marítimas conduzidas pelo transporte de
mercadorias e pela descoberta de terras para serem exploradas.
A Igreja Católica se colocou à frente dessa discussão, sustentando a concepção de que as
doenças eram consequência de pecados cometidos pelos homens. As pestes que dizimaram populações
pelo seu forte poder de contágio e difícil estratégia de controle, em virtude do desconhecimento do
agente causal bem como de sua cura corroborava para fortalecer essas afirmações até dado momento
histórico. No início, pela característica autossuficiente dos feudos, as doenças eram mais restritas, não
se alastravam com facilidade. À medida que se desenvolviam as atividades produtivas e o comércio,
doenças controladas numa região tornaram-se epidêmicas em outra.
Conforme evoluía o comércio, a velha organização feudal apresentava-se como um entrave.
Essa particularidade altera a característica fundamental do feudalismo, a terra como única fonte
de riqueza, para a posse do dinheiro baseada no lucro, regida pelos emergentes comerciantes. O
desenvolvimento do comércio propiciou o surgimento das cidades e um movimento urbanizador
favorável ao modo de produção que se gestara com o colapso do Antigo Regime. Com o capital
mercantil vigente, os comerciantes estavam motivados pelo lucro, adquirido pelo processo de
compra e venda de mercadorias. Esta nova classe, a burguesia, conduziu à gênese do capitalismo
(PAULO NETTO; BRAZ, 2008).
É nesse processo de transição do feudalismo para o capitalismo que se constituem as origens
da acumulação primitiva com a separação do produtor dos seus meios de produção. Conforme Marx
(1988b) houve duas situações favoráveis que culminaram com o desenvolvimento da produção
capitalista; primeiro, existirem possuidores de meios de produção e de dinheiro dispostos a incorporar
valor aos seus bens através da exploração do trabalho alheio; segundo, existirem trabalhadores livres
para vender sua força de trabalho como mercadoria, enquanto única coisa que ainda lhes resta para
suprir suas necessidades básicas. Diante dessa “[...] polarização no mercado, estão dadas as condições
fundamentais da produção capitalista.” (MARX, 1988b, p. 252).
Foi a partir do século XVI, com a introdução da ciência moderna na Europa, que a medicina
conseguiu diagnosticar e tratar muitas doenças infecciosas, o que culminou com a superação das
concepções mágico-religiosas sobre o advento e tratamento das doenças na sociedade. Urgia desmitificar
o velho mundo e superar essas concepções para alavancar as bases do mundo regido pelo capital.
Assim, a relação saúde/doença passou por várias mudanças nas sociedades precedentes ao
capitalismo. Com a emergência das sociedades de classes, o modo mágico de lidar com as doenças na
antiguidade foi suplantado pelo modelo místico ou religioso, que se tornou hegemônico durante todo
o regime escravista e feudal.
Diante das transformações nos métodos de trabalho, iniciadas e consolidadas no modo de
produção capitalista, a condição de assalariamento e de reprodução social dos trabalhadores desde o
período da manufatura avança com a grande indústria.2 Trata-se, nesse contexto, da peculiaridade do
desenvolvimento das forças produtivas e da ciência aplicada ao processo de trabalho e, no entanto,
verifica-se a permanência de doenças que já poderiam ter sido eliminadas. Identifica-se nessa
organização produtiva maior concentração e circulação de mercadorias. Explicita-se o controle do
capital no processo de trabalho e o trabalhador, subsumido às exigências da produção, vivendo em
condições de pauperismo, o que culmina com a disseminação de várias doenças relacionadas ao
trabalho, decorrentes dos ambientes insalubres na indústria, nas moradias e nas cidades.
O surgimento da grande indústria demarcou uma nova fase de organização no sistema do capital,
pois passa a atender parte da demanda que se expande em nível mundial. Com o desenvolvimento do
capitalismo e, em particular, da ciência moderna, a produção de conhecimento se orienta supostamente
para atender às necessidades básicas da reprodução dos homens. Pesquisas e descobertas em diversas
áreas do conhecimento se expandiram no novo mundo. Essas descobertas possibilitaram controlar a
disseminação das doenças e das grandes epidemias que atingiram a reprodução da humanidade no
velho regime. Contudo, com o avanço da industrialização capitalista, a relação saúde-doença adquire

2
Esse processo é analisado na obra de Karl Marx (1988a, 1988b) e na produção de Friedrich Engels (2010).

18
novas configurações, pois o ritmo do processo de trabalho implica intensa extração da mais-valia
absoluta e relativa, traduzindo-se em consequências danosas à saúde dos trabalhadores.
Foi com o advento da manufatura que ocorreu o prolongamento do tempo de trabalho
socialmente necessário, decorrente da mudança no ritmo e na intensidade da produção de mercadorias.
O trabalhador ficou submetido a uma atividade parcial, reduzido a um órgão componente de um
conjunto para a elaboração de um único produto, de forma a produzir mais mercadorias em menor
tempo. A manufatura foi predominante entre meados do século XVI; até o último terço do século
XVIII, é nesse período que a cooperação associada à divisão do trabalho adquiriu sua forma clássica.
Com esta base artesanal manufatureira, o trabalhador passa a exercer uma atividade cooperada,
pois se decompõe o processo de trabalho com a parcelização de tarefas e a extensão da jornada de
trabalho sob o controle de um mesmo capitalista. Esta atividade produtiva provoca esgotamento físico
e mental, sobretudo porque a extração de mais-trabalho é levada às últimas consequências. Contudo,
os danos à saúde da classe trabalhadora existem desde o início da divisão do trabalho em geral.
Isso significa que, em qualquer sociedade, os problemas de saúde relacionados ao trabalho sempre
existiram, mas com a manufatura generaliza-se a divisão técnica do trabalho, estabelecendo-se a
cisão entre trabalho manual e intelectual e, com isso, atinge-se a força vital dos indivíduos “em suas
raízes”, ou seja, sua energia física e espiritual, potencializando-se, dali por diante, o mecanismo que
impulsionará as patologias industriais. Isso está explicado nas palavras de Garnier citado por Marx
(1988a, p. 272) em seu capítulo “Divisão do trabalho e Manufatura d’O Capital”, quando afirma que:
[a] deformação física e espiritual é inseparável mesmo da divisão do trabalho em geral na
sociedade. Mas como o período manufatureiro leva muito mais longe esta divisão social
dos ramos de trabalho e, por outro lado, apenas com a sua divisão peculiar alcança o
indivíduo em suas raízes vitais, é ele o primeiro a fornecer o material e dar impulso para a
patologia industrial.
Esse argumento de que “[...] a deformação física e espiritual é inseparável da divisão do
trabalho em geral” reafirma o pressuposto do próprio Marx de que o desenvolvimento da produção
material da existência, mediada pela divisão do trabalho, atinge integralmente a vida dos homens.
É, portanto, com a Revolução Industrial, no século XVIII, que se desenvolve o aparato técnico e
científico para ampliar a produção e acumular riqueza sob o domínio dos proprietários dos meios de
produção e também de formas de controle de doenças consideradas epidêmicas.
A máquina extenua o trabalhador, pois agride seu sistema nervoso e domina mecanicamente
a livre atividade corpórea de seus músculos para atender à finalidade do processo de acumulação. Essa
é a implicação determinante do uso da máquina para a saúde do trabalhador. A máquina converteu-
se em um instrumento sistemático de “[...] espremer mais trabalho no mesmo espaço de tempo.”
(MARX, 1988b, p. 33).
O trabalhador assalariado exercia sua função num espaço físico, condenado a um trabalho
duradouro, repetitivo e monótono. Trabalho levado ao extremo de monotonia, que não lhe permitia
desviar a atenção, passando horas preso à máquina. No entender de Engels (2010), o trabalho
obrigatório e indesejado é uma tortura cruel e degradante, pois a cada dia o trabalhador era sentenciado
a fazer o que não queria e o dia inteiro, por tempo indeterminado.
O trabalhador passava a maior parte de seu dia na fábrica, num lugar insalubre, e tal situação
se prolongava em seu lar. Esses ambientes insalubres propiciavam o aparecimento, o agravamento
e a disseminação de doenças infectocontagiosas, causadas principalmente pelas péssimas condições
em que viviam os operários. Essa proliferação de doenças reflete, sobremaneira, no pauperismo a que
estavam submetidos e o potencial destruidor do maquinário.
Foi através do controle intenso do processo de trabalho que o trabalhador vendeu
extremamente barata sua força de trabalho, viabilizada pela exploração de seu tempo de trabalho
socialmente necessário e pela apropriação gratuita do excedente de seu trabalho pelo proprietário
dos meios de produção. Fica constatado com isso que é “[...] o trabalho morto que suga e domina a
força de trabalho vivo.” (MARX, 1988b, p. 42). Mas é, principalmente, a generalização da extração
da mais-valia relativa na grande indústria que irá determinar a exploração integral da força física e
mental do trabalhador, propiciando o desencadeamento de um conjunto de doenças e problemática

19
social. Nesse contexto, era praticamente inviável que, mediante aquelas condições de trabalho, o
trabalhador conseguisse preservar sua saúde e viver muito tempo. A sentença era, fatalmente, a morte
de sua liberdade, de sua saúde, de sua consciência, e por último, a sua própria morte.
Nesse contexto social, sob pena de tornar inviável a sobrevivência e a reprodução do processo
produtivo, surge, por volta da primeira metade do século XIX, a Medicina do Trabalho, no berço da
Revolução Industrial na Inglaterra, como uma intervenção das autoridades locais para evitar a perda
de trabalhadores. A rigor, a especialidade foi criada para identificar e minimizar as doenças e os
acidentes ocupacionais dentro dos limites permitidos pelo capital. Sua função consistia em reduzir os
custos dos capitalistas, em reparar o homem-máquina para garantir seu funcionamento, no sentido de
detectar possíveis ameaças de epidemias que desfalcariam forças de trabalho. Nessa direção, caberia
ao médico do trabalho reparar as não conformidades em tempo mínimo (MENDES; DIAS, 1991).
A Medicina do Trabalho e a legislação social tornaram-se, então, necessárias à manutenção
do sistema de exploração – obtenção da produtividade, ampliação dos lucros e redução de custos.
De forma que “[...] o esforço é pago porque a prevenção custa menos que a reparação, e de outra
parte o rendimento do ‘motor humano’ aumenta se ele trabalha em melhores condições fisiológicas.”
(DESOILLE, 1958 apud FERREIRA FILHO, 2010).
Reiterando nossa discussão, a grande indústria se complexifica e novos cenários são
ajustados para adequar a reprodução social do trabalhador. As crises cíclicas do capitalismo, os
avanços científicos e as descobertas em vários campos de conhecimento foram orientados por
segmentos econômicos que detinham o controle da expansão e acumulação de capital. A passagem do
capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, no final do século XIX, exige mudanças
no modo de produzir que intensificam ainda mais a exploração da força de trabalho na dinâmica
compulsiva do sistema do capital.
Com a introdução do taylorismo-fordismo na organização produtiva contemporânea
são identificadas diversas alterações no processo de trabalho. Após sucessivas crises econômicas,
seguidas por fases de expansão e depressão, por volta de 1860 foi generalizada nos países centrais
a extração da mais-valia relativa, apropriada pela intensidade da exploração do tempo de trabalho,
a redução dos preços de produtos de consumo de primeira necessidade e o incremento tecnológico.
Isso propiciou produzir mais riquezas e ampliar a acumulação de capital. Este método ou gestão
do trabalho trouxe consequências para a saúde dos operários, tanto na exposição aos agravos
ocupacionais quanto na vulnerabilidade e gravidade de outras enfermidades vigentes, relacionadas
principalmente ao comprometimento da saúde mental. O trabalho repetitivo com a prática de
“adestramento” procurava fixar a ideia do homem-máquina, sendo o operário parte da engrenagem
do maquinário (ANTUNES, 2005).
Em decorrência da crise econômica do capitalismo no século XX, Henry Ford, cria o modelo
de produção fordista, em 1913, voltado à indústria automobilística. Desde os anos de 1920 até os anos
1970 o fordismo foi o sistema dominante de produção na indústria automobilística mundial. O fordismo
aprimorou as formas de controle tayloristas existentes, elevando a parcelização das tarefas de maneira
que cada operário se responsabilizava por uma única atividade até se obter o produto final. O operário
também era convocado a executar exaustivamente movimentos repetitivos, de tarefa fragmentada e de
curtos ciclos, o que levava a movimentos estereotipados. A linha de montagem estava acoplada a uma
esteira rolante de maneira que as peças chegavam até o operário reduzindo o tempo e o desperdício de
esforço desnecessário à produção, levando-os a uma acentuada desqualificação e alienação.
O sistema taylorista/fordista se expandiu nas economias capitalistas centrais e foi disseminado
nos países periféricos após as guerras mundiais, constituindo a produção e o consumo em massa em
escala mundial. Durante sua vigência os danos causados à saúde do trabalhador foram imensuráveis,
decorrentes do excesso de atividades repetitivas e intensas que fadigam a musculatura na utilização
excessiva, e do enfraquecimento de outros grupos musculares pouco solicitados na ação recorrente.
Ademais, o pensamento do trabalhador alheio ao todo do que se produz, facilmente levava ao estado
de exaustão e ao desgaste mental. Em relação à incidência de doenças epidêmicas, pela melhoria na
insalubridade nos espaços fabris houve uma redução significativa, embora outras doenças tenham se
agravado com a modernização do processo de trabalho, como as doenças ocupacionais.

20
Os fatores que repercutem sobre o estado de saúde do trabalhador são as condições de
estresse, a monotonia, a rotina burocrática e entediante, desprovida de significado, a exposição
aos riscos ocupacionais, os baixos salários, a precarização, vulnerabilidade ou instabilidade no
trabalho; em sua maioria, são componentes geradores de sofrimento. A disseminação de um conjunto
de doenças durante o período do taylorismo-fordismo decorreu do crescimento da indústria em
diversos segmentos produtivos. Contudo, no início desse processo de organização do trabalho, o
desenvolvimento significativo das forças produtivas levou à superprodução, à superacumulação e às
crises frequentes do capitalismo.
Em face da necessidade histórica, o Estado interventor garantiu a viabilidade da produção
em massa de mercadorias para um consumo também “em massa”. Diante dos ideais keynesianos de
regulação da economia, o Estado também amplia a intervenção nos problemas sociais através das
políticas públicas e sociais, e dentre as políticas sociais de proteção social ao trabalho (previdência,
assistência e saúde), destaca-se a política de saúde como uma das prioridades. Isto porque à proporção
que se desenvolvia a Ciência e a Tecnologia voltadas à medicina, a área da saúde tornou-se alvo
dos interesses lucrativos do capital. Esse processo de mercadorização incorporou vários segmentos
lucrativos como os de medicamentos, os de equipamentos médico-hospitalares, os de serviços e de
assistência, compondo o que foi denominado por alguns teóricos de complexo médico-industrial,
na vigência do capitalismo monopolista. Em face desses desdobramentos, a área da saúde foi
mercantilizada, tendo o Estado como um dos agentes legitimadores da instituição e expansão do
complexo médico-industrial.
Nesta fase de desenvolvimento produtivo acelerado, no taylorismo-fordismo, identificou-
se um desgaste físico intenso do trabalhador, decorrente das atividades repetitivas, exaustivas e
fragmentadas, que provocam dores e doenças musculares graves, problemas ortopédicos (amputação
de braços, dedos) e a incidência de doenças mentais e psicossomáticas, bem como a continuidade
dos vícios, como o alcoolismo e o tabagismo. A incidência de doenças mentais e de doenças
psicossomáticas demarca a diferença em relação aos processos anteriores. Ainda prevalecem doenças
infectocontagiosas e respiratórias, conforme dito anteriormente, embora tenham sido reduzidas. A
relação saúde-doença adquire novos contornos e preservam-se determinados aspectos. Em geral,
melhoraram as instalações no ambiente de trabalho, apesar de condições de insalubridade ainda
permanecerem nas moradias das populações subalternizadas.
Nos anos de 1970, ocorrem grandes mudanças na sociedade capitalista em face da queda
tendencial da taxa de lucros, que dificulta ampliar as formas de acumulação e dos processos de
produção, configurando a maior crise capitalista. Esta crise se expressa no desemprego massivo; no
aumento do preço do petróleo entre os anos de 1973 e 1979; nas oscilações do dólar (1978 e 1985);
no desgaste do Welfare State; na hipertrofia do sistema financeiro; na redução do investimento na
atividade produtiva industrial; no desgaste do modelo taylorista-fordista e das formas de acumulação
rígida. O capitalismo vivencia, portanto, um período de recessão econômica e de crise estrutural3 do
capital. Essa crise foi determinada pela queda tendencial da taxa de lucro, gerada pela elevação do
preço da força de trabalho, pela redução dos níveis de produtividade do capital, pela oscilação do
dólar e pela queda do preço do petróleo (ANTUNES, 2005).
Isso impulsionou o capital internacional a investir em seu processo de reestruturação,
facilitado pela assimilação do padrão flexível de produção e de acumulação, associada ao projeto
neoliberal, que culminou numa transferência sistemática de capitais para o mercado financeiro.
Instauram-se mudanças significativas na produção capitalista em decorrência do modelo flexível,
ampliando os padrões de produtividade e lucratividade pelo avanço tecnológico e, por outro lado,
3
Segundo Mészáros (2002), a crise é denominada de crise estrutural porque atinge de forma global o cerne do sistema
sociometabólico do capital mundialmente, pois se os seus elementos básicos como produção, circulação e consumo
não mantêm um “equilíbrio” conforme as exigências da produtividade e da acumulação, acirram-se as contradições
imanentes deste sistema. As crises peculiares ao desenvolvimento da sociedade capitalista, de natureza cíclica e estrutural,
derivam da superprodução de mercadorias e da falta de escoamento desses produtos. Antes dos anos de 1970, as crises
eram apenas cíclicas, temporárias; e após 1970, adquirem caráter estrutural. Saliente-se que, embora as crises sejam de
naturezas diferentes, enquanto as relações capitalistas permanecerem dominantes as crises são inelimináveis/inexoráveis,
pois constituem a essência do sistema do capital. A dinâmica das crises demonstra o quanto o sistema é instável; ele
produz sempre a sua afirmação e sua negação. .

21
aumenta o fenômeno do desemprego, dos processos de terceirização que dificultam o acesso dos
trabalhadores ao emprego, precarizando suas condições de reprodução social. Acentuam-se as
formas de adoecimento relacionadas ao trabalho, tanto no que se refere às doenças ocupacionais que
atingem fisicamente os trabalhadores, quanto às doenças psicossomáticas e mentais, que decorrem da
instabilidade, dos riscos e das pressões presentes nos ambientes de trabalho e na vida social.
Essas mudanças tendem a intensificar a exploração da força de trabalho em decorrência das
formas de controle que buscam capturar ideológica e subjetivamente o trabalhador através de meios
supostamente mais “humanizados” de subordinação do trabalho (SOUZA, 2011). Esse ideário de
humanização “[...] propõe ao trabalhador encontrar sentido no trabalho capitalista essencialmente
desprovido de sentido.” (SOUZA, 2011, p. 33), esta é uma investida do capital para mascarar a
exploração intensa a que o trabalhador está submetido. Assim, “[...] aderir às regras não é uma opção
do trabalhador, é uma condição para ele se manter no trabalho.” (SOUZA, 2011, p. 73). Atualmente
considera-se que as doenças relacionadas ao trabalho são aquelas que acometem também a população
em geral, mas que quando articuladas às condições de trabalho, podem assumir um perfil diferenciado
quanto à sua intensidade, seu agravamento e sua cronicidade.
Amplia-se a dimensão alienante do trabalho, porque além do seu caráter fisicamente
degradante, os trabalhadores sucumbem à ideia de que têm o domínio sobre o processo de trabalho.
Isso corrobora a perda do referencial de classe, o que impede refletir sobre a possibilidade de
superação do domínio do trabalho abstrato na sociedade. A fadiga resultante do ritmo intenso e da
exigência da criatividade torna perversa a condição de trabalho e de reprodução do trabalhador, que
tem dificuldade em perceber o quanto a exploração atinge diversas esferas da sua vida. Com isso, o
capital consegue com a reestruturação produtiva, com a inovação tecnológica, completar o ciclo de
dominação sobre o trabalho, porque captura espiritual e intelectualmente o trabalhador, tornando-o
cada vez mais suscetível às suas iniciativas.
Apesar do avanço quanto à abrangência da área saúde do trabalhador, a nosso ver os elementos
essenciais que compõem a relação capital-trabalho que determinam a existência e a manifestação da
problemática da saúde do trabalhador não são contemplados. Sabe-se que, dado o desenvolvimento
desigual e combinado do capitalismo, as expressões das contradições basilares da sociedade, como
o desemprego, o pauperismo e as desigualdades sociais, interferem decisivamente na configuração
desta problemática e a redimensionam historicamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos processos históricos nas sociedades de classes precedentes e no capitalismo


possibilitou apreender que a problemática da saúde do trabalhador, tratado neste texto, desdobra-se de
forma diferenciada com o desenvolvimento das forças produtivas. Verificou-se que essa problemática
constitui-se socialmente nos processos de reprodução material nas sociedades e que o desenvolvimento
científico aplicado tecnologicamente à produção industrial, identificado no capitalismo, propiciou a
diminuição da incidência das grandes epidemias, porém não eliminou a relação saúde-doença, dado
o caráter mercantil predominante nesta sociedade.
Nas sociedades precedentes, os homens recorreram a uma visão mágico-religiosa/mítica para
entender os processos de adoecimento e neles intervir. Com isso, perceberam a enfermidade como
originária de uma dimensão transcendental, cuja responsabilidade (individual ou coletiva) se dava em
atitudes humanas que desagradavam à ordem divina. A nosso ver, a constituição das doenças reside
no precário desenvolvimento das forças produtivas, pois o desconhecimento científico das causas e
das formas de prevenção das enfermidades favoreceu a disseminação dessa forma de conceber e lidar
com os agravos e doenças na época.
Na transição à sociedade capitalista, as concepções religiosas, míticas, transcendentais são
postas em questão e os homens passam a compreender os problemas da sociedade a partir de suas
ações. Os homens produziram uma nova forma de pensar e intervir sobre o mundo, em que a razão e
a Ciência dão a direção da práxis humana. A história passa a ser compreendida pelos homens como

22
produto da sua ação, os homens se reconhecem na história, ainda que sob a ótica da emergente classe
dominante, a burguesia.
Ademais, foi a partir do século XIX que o excedente produzido conseguiu suprir as carências
e oferecer condições para responder às necessidades humanas. A sociedade capitalista, regida por
esta classe, produziu pobreza e doenças que seriam supostamente incompatíveis com o acelerado
desenvolvimento das forças produtivas. No entanto, a sede do capital em acumular e expandir
precedeu a demanda social básica da reprodução do homem. Quanto mais se acumula riqueza em
um polo, proporcionalmente se encontra mais miséria e pobreza no outro, conforme atesta a Lei
Geral da Acumulação Capitalista (MARX, 1988a). O trabalho é, portanto, o meio mais eficiente para
reproduzir o capital, ainda que associado às demais condições materiais.
No desenvolvimento do capitalismo monopolista evidencia-se a redução das doenças de
ordem infectocontagiosa e o significativo aumento dos agravos ocupacionais que atingem a estrutura
física e mental dos trabalhadores, provocando sua degradação e desumanização. Foram verificados
diversos tipos de acidentes nos espaços fabris no período de vigência da organização produtiva
taylorista-fordista. Até meados do século XX, a prática dominante da medicina buscava mensurar as
doenças “visíveis” e pouco se falava dos transtornos mentais decorrentes das relações de subordinação
do trabalho ao capital.
A nosso ver, conforme exposto, o processo saúde-doença é matrizado, na sociedade
capitalista, pelo aumento do pauperismo, pelas precárias condições de trabalho, pelo desemprego e
pelo grau de exploração do trabalho. O controle exercido pelo capital gerou e fixou ao longo desse
desenvolvimento formas de subordinação, subsunção formal e real do trabalho, que interferiram
decisivamente para a produção e a complexificação das doenças relacionadas ao trabalho.
Na reestruturação produtiva contemporânea, as doenças relacionadas ao trabalho ampliaram-
se com o agravamento das enfermidades crônicas e a intensificação dos transtornos mentais.
Amplia-se a captura da dimensão intelectual e subjetiva do trabalho, intensificando a exploração dos
trabalhadores. As doenças mais comumente encontradas atualmente são aquelas que apresentam uma
relação direta ou indireta com o trabalho e com as condições de vida nesse contexto de aprofundamento
da crise estrutural.
Assim, o capital procura usufruir ao máximo da força de trabalho, das suas condições
físicas e mentais, para produzir a riqueza necessária à reprodução e à expansão do seu sistema
sociometabólico. Essa relação se reproduz e se cronifica no capitalismo, um a depender do outro: o
trabalhador necessita vender sua força de trabalho para garantir sua subsistência, enquanto o capitalista
precisa garantir as condições mínimas de saúde para manter a força de trabalho produtiva e geradora
de lucros, através da extração do excedente de seu trabalho. Assim, sob a ótica da “humanização”
do trabalho, o capital na contemporaneidade aprimora e complexifica os mecanismos de controle do
trabalho, no sentido de cooptar não só a dimensão física, mas subjetiva, psicoafetiva e intelectual do
trabalhador, comprometendo integralmente sua vida e a reprodução social.
A saúde passou a ser progressivamente rentável ao capital, no entanto gerou perdas
significativas à força de trabalho. Os grandes capitalistas, na área da saúde, passam então a produzir
mais mercadorias para manter seus índices de lucratividade, em decorrência da queda tendencial da
taxa de lucro, provocada pela crise estrutural dos anos 1970. Esse setor passou por transformações
significativas, promovidas pelo avanço da ciência articulada à tecnologia, para fins mercadológicos.
O capital, assim, lucra nas duas situações: na saúde, para manter a força de trabalho
eficiente e produtiva, e na doença, quando incorpora todos os elementos lucrativos do complexo
médico-industrial. Desta feita, a sociedade capitalista coloca na ordem do dia a transformação de
tudo, produção de bens e de relações sociais, em mercadoria, sendo a área de saúde marcada por esse
processo de mercantilização que se agrava com a crise estrutural. Com isso, segue o paradoxo no
cenário atual: mesmo com as inovações científico-tecnológicas na área da saúde, com a descoberta de
várias causas de doenças de grande repercussão e com o aumento da expectativa de vida relacionado à
redução da mortalidade, a crise da saúde se aprofunda e se estreita, sem perspectiva de alteração desse

23
quadro crítico, pois o sistema do capital não consegue mais se reproduzir sem atingir violentamente
a reprodução da força de trabalho.

REFERÊNCIAS

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trabalho. 10. ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Ed. Unicamp, 1995.
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UJVARI, S. C. A história e suas epidemias: a convivência do homem com os microorganismos.
São Paulo: Ed. SENAC, 2003.

24
TRABALHO CAPITALISTA E INSTABILIDADE SOCIAL:UMA PROPOSTA DE
INVESTIGAÇÃO DO SOFRIMENTO MENTAL DO TRABALHADOR
Roberto Coelho do Carmo*
RESUMO: O presente trabalho tem como chave de leitura a instabilidade social, entendendo que esta instabilidade social pode
transfigurar-se em instabilidade psicológica à medida que os contextos sociais se expressam na personalidade do indivíduo numa
relação dialética. Isto posto, buscou-se realizar análise da contemporaneidade dos processos de trabalho com vias a interpretar o
fenômeno do sofrimento mental do trabalhador.
Palavras-chave: capitalismo flexível. sofrimento mental. trabalho.
ABSTRACT: This work has social instability as a key to reading, understanding that this social instability can transfigure into
psychological instability as the social contexts are expressed in the individual’s personality in a dialectical relationship. That said, we
tried to carry out analysis of today work processes with ways to interpret the workers’ mental suffering phenomenon.
Keywords: flexible capitalism. suffering mental work. work.

INTRODUÇÃO

Do que pudemos levantar até agora com a pesquisa, sabemos que para que um transtorno
mental comum se instaure, a instabilidade é fator determinante, ou seja, o homem que não consegue
por outra finalidade na vida, além de viver, e não encontra os meios para realizar este fim está no limiar
do transtorno. No universo instável do mundo do trabalho, quatro são os fatores imprescindíveis
na determinação da situação de instabilidade: a informalidade, a terceirização, a intensificação do
trabalho e uma cultura de “consentimento” a tudo isso, que encurrala o trabalhador a acreditar que
aceitar a superexploração posta pela instabilidade como única forma de operar no mundo do trabalho.
O que propomos no momento é mostrar como esse consentimento atinge uma das égides da formação
humana tendo como fim a conversão do individualismo em egoísmo. É no enfrentamento a este
egoísmo que acreditamos existir uma pista de transformação à imposição subjetividade do capitalismo
e à servidão voluntária enquanto única alternativa.
Em termos históricos, depois de um período de baixa do liberalismo vimos ascender, nos
anos 1940 a alternativa social democrata (BIHR, 2010), e todo um comportamento social de proteção
do indivíduo. Sindicatos mais atuantes pela coletividade dos trabalhadores. Políticas salariais menos
agressivas ao trabalhador, políticas públicas de bem estar que possibilitavam melhor segurança na
promoção de saúde, educação, lazer, moradia e tantos outros recursos indispensáveis à manutenção da
vida1. Em suma, vimos ascender maior estabilidade no curso da vida do trabalhador, em contraposição
ao duro e instável período anterior.

1 TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO: DO FORDISMO


À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL

Como se sabe, a categorização de fordismo para uma dada etapa da vida capitalista nasceu
dos trabalhos de uma equipe de economistas franceses da chamada “escola de regulação” (BIHR,
2010, p. 35). Esta equipe buscava entender como o capitalismo do ocidente pôde conhecer três
décadas de crescimento econômico e por que os mecanismos reguladores que fizeram isso possível
pareciam agir no vazio a partir dos anos 1970, e, por isso explora o termo para caracterizar o modo de
vida capitalista Pós-Segunda Guerra Mundial. É característica do fordismo, o envolvimento da soma
“das normas tayloristas do trabalho com a produção e consumo de massa” que conduziu este modo
de produção a regular o valor para além do movimento espontâneo do mercado. Em outras palavras,
podemos entender o fordismo como “[...] o conjunto de práticas econômicas, técnicas gerenciais,
políticas, e sociais que, combinadas, formam uma estratégia específica de o capital reproduzir-se

*
Programa de Estudos e Pesquisas em Lutas Sociais, Trabalho e Política na Realidade Brasileira (PROLUTA). Docente
do Curso de Serviço Social Universidade Estadual de Ouro Preto (UFOP). E-mail: robertocoelhoas@gmail.com.
1
Não queremos com o destaque dos elementos positivos, fazer uma apologia à social democracia, nem mesmo ao
fordismo, é sabido o alto preço pago nas lutas da classe trabalhadora para se ter este lado positivo.

25
de forma ampliada.” (BOTELHO, 2008, p. 31-32). O taylorismo limita-se à separação estrita entre
concepção e execução do trabalho e ainda pela fragmentação desta última, restando a cada operário
executar gestos elementares.
Podemos dizer que, para o capital, implementar o fordismo representou uma forma de se
apropriar da dimensão intelectual do trabalho operário, dos saberes e habilidades necessários para
manipulação das máquinas e ferramentas.
Isso implicou um amplo desenvolvimento das forças produtivas, em favor da produção em
massa de mercadorias.
Pode-se dizer também que o conceito de fordismo é comprometido pelo economicismo.
Isso se revela especialmente pelo privilégio atribuído, sistematicamente, em suas análises,
às transformações econômicas, em detrimento das transformações sociais, institucionais e
ideológicas do capitalismo pós-guerra; e sobretudo por um relativo desconhecimento do
processo da luta de classes que, sozinho, explica, em última análise, o nascimento, a dinâmica
e a crise final desse modelo. (BIHR, 2010, p. 35, grifo do autor).
Os estudos acumulados mostram que o fordismo significou um modo típico de lidar com a
subjetividade do trabalhador, marcado pela radical separação entre concepção e execução do trabalho,
fragmentação e simplificação do trabalho com ciclos curtos de operação. O trabalhador permanece
fixo em seu posto de trabalho. O fluxo contínuo das peças na esteira rolante, evita o deslocamento do
trabalhador, reduzindo a porosidade, e assim, se requer pouco tempo para formação e treinamento
dos trabalhadores. Nessa lógica gerencial, o movimento do trabalhador torna-se repetitivo, com ritmo
e velocidade estabelecidos independente do trabalhador que é disciplinado a executá-lo. Com esta
técnica gerencial, o trabalhador perde suas qualificações, que são incorporadas à máquina.
Mesmo o capital conseguindo aumentar a produtividade do trabalho com as técnicas
tayloristas/fordistas, não pôde se livrar do fato de que é o trabalho vivo que gera a riqueza. Assim,
Botelho (2008) afirma que a resistência dos trabalhadores às técnicas tayloristas nos anos 1950 e
1960 manifestou-se na baixa produtividade, no aumento da taxa de peças defeituosas, na falta de
cuidados do trabalhador na manutenção do capital constante, na sabotagem, paralisações, abstenção,
rotatividade no emprego entre outras expressões.
No mundo capitalista, com o movimento da luta de classes no período de implantação das
técnicas tayloristas, por volta dos anos 1950 e 1960, os trabalhadores souberam tirar proveito das
novidades propostas pelo fordismo2, acima de tudo no que diz respeito à concentração de operários
nas indústrias e consequentemente da maior facilidade de organização que esta concentração
proporcionava. Uma importante característica do fordismo, então, é a relação entre sindicalização da
classe trabalhadora e processos de trabalho fordistas, que levou, contraditoriamente, ao acirramento
da contestação aos processos de trabalho e aos conflitos entre capital e trabalho. Este exasperado
embate trouxe a reboque outros fenômenos importantes, a saber: queda nos níveis de desemprego
e, consequente, aumento da segurança no emprego além de aumentos reais de salário, seja direta
(remuneração) ou indiretamente (serviços públicos e benefícios sociais). No gozo desta segurança no
emprego, o trabalhador era capaz de projetar sua vida, planejando sua velhice e o futuro da família.
Desta forma, a ideia de Ford de produção em massa e consumo em massa se deu no mesmo processo
em que a classe operária passou a exigir uma fatia maior da riqueza socialmente produzida. Nos
países em que o fordismo se desenvolveu com plenitude, pode-se observar um ciclo virtuoso de
crescimento econômico, bem como crescimento da organização sindical e maior proteção social aos
trabalhadores dividindo parte das opressões do mercado, o que provocava certa estabilidade social.
Essas disputas e compromissos firmados entre o sindicato, a grande corporação e o Estado se
articulou como um modo de vida dos países onde a estratégia fordista foi plenamente desenvolvida.
Como lembra Botelho (2008), o Estado assumiu um novo papel e construiu novos poderes
institucionais; o capital se ajustou para seguir lucrando de forma segura; e, o trabalho ampliou o

2
Este momento histórico, Pós-Segunda Guerra Mundial, teve ainda uma particularidade: a “ameaça comunista”, que
possibilitava maiores conquistas dos trabalhadores junto ao capital e ao Estado. Na verdade, o poder de barganha da classe
trabalhadora neste período proporcionou maior participação na repartição do fundo público.

26
desempenho na produção capitalista. Uma fórmula pseudoestável que proporcionou sensação real de
estabilidade para o trabalhador, que podia planejar com segurança sua velhice.
Evidenciava-se que um regime de acumulação nesses moldes só seria possível se o crescimento
dos lucros possibilitado pela alta produtividade do trabalho fosse acompanhado por um crescimento
proporcional dos salários reais e do consumo. Por isso, profundas transformações na relação salarial
foram realizadas, como a garantia ao operário de um salário mínimo que correspondesse a uma norma
de consumo considerada irredutível, calçada no crescimento da produtividade, com o aumento dos
salários reais. A inclusão de práticas e procedimentos de negociação coletiva. A instituição de um
salário indireto, através de um conjunto de benefícios sociais, que proporcionavam ao assalariado e
sua família certa segurança ante as eventualidades como doença, invalidez, desemprego, velhice e
sobrecargas ligadas à educação das crianças.
Neste acordo, o papel do Estado3 foi fundamental assumindo uma série de obrigações, como,
por exemplo, o controle dos ciclos econômicos através das políticas fiscais e monetárias para que a
produção e o consumo de massa crescessem, bem como a garantia relativa de pleno emprego. Além
disso, o Estado procurou oferecer um forte complemento salarial através de gastos com seguridade
social, assistência médica, educação, habitação e outros serviços. Por outro lado, o poder estatal
manteve-se presente, de forma direta ou indireta, nas negociações salariais, seja como mediador,
seja como protagonista. Ainda que esta participação tenha variado para cada Estado, ela foi de fato
importante na caracterização do compromisso fordista entre capital, Estado e trabalho.
No auge do compromisso fordista o capitalismo combinou, nos países avançados, alta
produtividade e distribuição de renda através de “salário indireto” (BOTELHO, 2008).
Os estudos mostram que essas mudanças do trabalho iniciam-se no último terço do século XIX
com a mudança do regime de acumulação extensiva baseado na formação de mais-valia absoluta pelo
simples prolongamento da duração do trabalho, para um regime de acumulação intensiva, orientado
para a formação de mais-valia relativa, pelo aumento do trabalho excedente com diminuição do tempo
de trabalho necessário e com o aumento contínuo da produtividade média do trabalho social. As
consequências dessa mudança são, por um lado, o inchaço da demanda de meios de produção através
da conversão de mais-valia em capital constante – única forma de se aumentar a produtividade do
trabalho – e, por outro lado, a limitação da demanda de meios de consumo. Isso ocorreu do decorrer
da década de 1920 – nos primeiros anos das experiências com o taylorismo/fordismo – quando a
produtividade do trabalho cresceu em um ritmo extraordinário e desproporcional ao crescimento dos
salários. Essa desproporcionalidade, para Bihr (2010), é uma das causas da crise dos anos 1930, que é
marcada pelo limite inerente a onda de superacumulação. E o remédio para essa descompensação só
virá no período Pós-Segunda Guerra Mundial, quando o fordismo se institucionaliza como modo de
vida socialmente necessário ao capitalismo.
Todavia, entendemos que o compromisso fordista não foi uma relação contratual entre dois
indivíduos, ou ainda, não resulta da livre vontade de dois indivíduos que se engajam reciprocamente
de maneira clara uma em relação à outra. O capital e o trabalho tiveram este compromisso imposto
pela lógica do desenvolvimento na etapa anterior do capitalismo (crise estrutural dos anos 1930 e
1940) que colocou em questão a espontaneidade do mercado.
Na verdade, mesmo onde o compromisso fordista teve vigência plena, ele só foi possível
porque resultou de um “[...] processo muitas vezes cego e, portanto, também ilusório.” (BIHR, 2010,
p. 36) para as classes sociais. Ele veio ratificar o estado da relação entre as duas classes sociais
depois de lutas acirradas, no final de muito tempo de incertezas, e, não como resultado de barganhas
e discussões em torno de uma disputa clara. As negociações viriam a ocupar o espaço aberto pelo
compromisso fordista apenas mais tarde.

3
O crescimento das funções do Estado implica necessariamente o crescimento da máquina estatal, portanto da
burocracia e da tecnocracia. “[...] o crescimento desses dois agentes do aparelho estatal é uma função mais estrita da
diferenciação da divisão social do trabalho no nível da economia e da sociedade como um todo, ao passo que em períodos
mais recentes (pós anos 1960) o crescimento da burocracia e da tecnocracia é função mais estrita da diferenciação da
divisão social do trabalho no nível do próprio Estado, já que na economia como um todo, completada a formação do
“novo mercado”, novas leis restauram em parte sua automaticidade.” (OLIVEIRA, 2003, p.42).

27
Outra característica deste compromisso é que ele não se deu de forma direta entre os membros
das classes, mas entre intermediários institucionais e organizacionais que cumpriam a função de
representantes oficiais, com força e status social. Nessas relações, o Estado ganha um papel chave
para a acumulação e para a proteção social, o que levou a permanente disputa de sua direção com a
alternância entre partidos socialdemocratas e partidos conservadores.
Por fim, no limite, esse compromisso circunscreveu a luta de classes à disputa pela definição
dos termos e do campo de aplicação do compromisso. Isso leva Bihr (2010) a considerá-lo como
uma barganha onde o proletariado renuncia à luta revolucionária de transformação comunista da
sociedade, em contrapartida recebe a garantia da seguridade social e a satisfação de interesses de
classe imediatos e vitais, como: relativa estabilidade de emprego; crescimento de seu “nível de
vida”; redução do tempo de trabalho; satisfação de algumas necessidades fundamentais como saúde,
educação, formação profissional, cultura e lazer.
Para o autor “[...] é a perspectiva de sair da miséria, da instabilidade, da incerteza do futuro e
da opressão desenfreada.” (BIHR, 2010, p. 38), que caracteriza a condição proletária neste momento.
A possibilidade de ter uma vida, se não agradável, pelo menos suportável. Nessa linha, o Estado
proporcionará a satisfação de algumas necessidades, na medida em que isso também permitir melhor
controlar o proletariado.
Esse compromisso levou a burguesia a escapar da ameaça revolucionária que se fazia presente
e neutralizar parte do conflito proletário. O capital tinha sua fonte de legitimidade e a base do valor
na satisfação das necessidades fundamentais do proletariado. Para o proletariado este compromisso
significou “[...] o direito de negociar as condições de sua dominação.” (BIRH, 2010, p. 39).
No quadro do compromisso fordista, segundo Bihr (2010), o movimento operário, de forma
processual, torna-se uma engrenagem do poder capitalista, até mesmo por sua capacidade de se
opor a ele e limitá-lo. Isso porque ao mesmo tempo em que ele está subordinado ao comando do
capital, conserva certa autonomia. Esta particularidade difere-se tanto do liberalismo clássico, onde o
movimento é excluído de qualquer forma de participação, quanto do fascismo ou populismo, onde o
movimento operário é integrado a essas estruturas e privado de qualquer autonomia.
Essa integração significa que as organizações das quais o movimento operário fez parte
impuseram a negociação coletiva para resolver problemas tanto da classe trabalhadora quanto do
capital. Significa também que essas organizações se instituíram diante dos capitalistas individuais,
mas também diante da classe dos capitalistas, perante o Estado (mediação obrigatória da relação
de classe). Além de implicar uma integração progressiva dessas organizações aos aparelhos de
dominação do capital sobre o trabalho e sobre toda sociedade, ou seja, da empresa ao Estado, o que
as fez cogestoras do processo global de reprodução do capital.
Uma integração como está não poderia dar-se com a total ausência do consentimento do
movimento operário. O fato é que durante todo o período fordista, a classe trabalhadora não cessou
a luta para melhorar a seu favor os termos do compromisso fordista. Essa luta foi realizada para
aumentar sua parte na divisão do “valor adicionado”; para reduzir o tempo de trabalho; para garantir,
para si, a assistência social de qualidade e uma responsabilização mais ampla – por parte da sociedade
e do Estado – com suas necessidades coletivas (BIHR, 2010).
De outro lado, foi através dessa integração que ocorreu a transformação do movimento operário
em “[...] estrutura mediadora do comando do capital sobre o proletariado.” (BIHR, 2010, p. 46).
Essas serão as bases políticas fundamentais para o movimento de internacionalização ou
mundialização que acontece em três frentes, quais sejam, a mundialização dos processos produtivos;
a mundialização dos mercados e, a mundialização da cultura, a partir da segunda metade do século
XX. Um aspecto conjuntural relevante a este momento de mundialização é o poder econômico,
financeiro e militar dos EUA, com o dólar transformado em lastro de riqueza após o acordo de Bretton
Woods (1944). Os Estados Unidos agiam como banqueiros do mundo em detrimento da abertura dos
respectivos mercados de capital e de mercadorias. Desta forma, a internacionalização do fordismo
deu-se sob uma conjuntura de regulação político-econômica mundial centrada no poderio dos Estados
Unidos, que exercia seu domínio por meio de um sistema de alianças militares.

28
Todavia, devemos observar ainda a este respeito que “[...] capitalismo não é apenas uma
realidade econômica. Ele é também, e acima de tudo, uma complexa realidade sociocultural, em
cuja formação e evolução histórica concorrem vários fatores extra-econômicos.” (FERNANDES,
1975, p. 9). E assim podemos perceber a singularidade da sociedade brasileira nesse processo de
expansão do mundo ocidental, como ente dependente num jogo de alianças entre capital nacional
e internacional marcados por relações de trabalho caracteristicamente mais perversas que sempre
associaram arcaico e moderno. Isso significa que, da mesma forma que a colonização do Brasil serviu
como uma revitalização do regime estamental no mundo capitalista, também as mudanças no mundo
do trabalho no país possuem uma ligação intrínseca com o moderno capitalismo mundial. Como
afirma Fernandes sobre o tema: é preciso identificar os “[...] vários caminhos tomados pelos diferentes
círculos das camadas dominantes para ajustar interesses sócio-econômicos mais ou menos toscos
e imediatistas às estruturas econômicas, sociais e jurídico-políticas requeridas pelo capitalismo.”
(FERNANDES, 1975, p. 13).
Botelho (2008) observa com destaque a existência dos fenômenos decorrentes da
internacionalização: a ampliação das empresas transnacionais (ou multinacionais); a nova divisão
internacional do trabalho e o aumento de financiamento offshore (externo). No que se refere ao primeiro,
o autor acentua que o capital se expandiu em várias direções do globo, o que deu suporte mundial
às várias estratégias de acumulação fordista, porém, as grandes corporações, ditas transnacionais
agiam de acordo com os interesses de seus locais de origem. Isso acabou reforçando a tradicional
relação hierárquica entre superior e subordinado – na nomenclatura empresarial: matriz e filial –,
também, entre os países.
Contudo, essa mundialização das empresas ocorrida a partir da segunda metade do século
XX não significou que elas tenham se espalhado pelo globo, mas o que ocorreu foi uma concentração
nas grandes metrópoles, que ofereciam segurança de potencial econômico e a possibilidade de
mobilização de economias externas.
A nova divisão do trabalho, decorrente desse processo expansivo, desestrutura o papel de mero
fornecedor de matérias-primas dos chamados países subdesenvolvidos. Essas novas indústrias podiam
abastecer o crescente mercado local, como fazer parte de um processo transnacional de manufatura.
Estas mudanças só foram possíveis com as inovações no transporte e na comunicação, de modo que
uma indústria poderia, agora, controlar centralmente a produção de um único artigo, parcialmente
produzido em vários países, através da tecnologia informacional. Houve uma incorporação da mão
de obra de muitos países em uma estrutura produtiva empresarial integrada mundialmente, sem que
isso significasse desenvolvimento igualitário entre eles, seja pelo viés econômico ou social. Pelo
contrário, os países subdesenvolvidos, tinham seu desenvolvimento subordinado, devendo se ajustar
aos movimentos realizados pelos centros maiores, que estavam em constante inovação e expansão.
Outra característica do processo de internacionalização foi à criação de um mercado
internacional de capitais. Empresas, através dos bancos, lançando títulos de dívida, (eurobonds)
uma espécie de moeda universal com o objetivo de captação de grandes volumes de capitais;
esses volumes são concentrados e, posteriormente, devolvidos aos países de origem por meio das
empresas multinacionais.
O termo offshore traduz a prática das empresas de registrar sua sede legal em territórios fiscais
com uma legislação empresarial e trabalhista cheia de buracos legais, que permitiam às empresas
produzir verdadeiras mágicas em suas balanças.
Para Botelho (2008), essa liberdade irrestrita tomada pelo capital acabou causando
dificuldades ao compromisso fordista gerando uma potencial instabilidade econômica, fruto do
surgimento do mercado de capitais.
As inovações tecnológicas do final do século XX, combinada com o movimento de
mundialização do capital gerou também no Brasil um aumento bastante agudo da produtividade do
trabalho abstrato. Com isso, o consumo da força de trabalho viva encontrou obstáculos em reduzir
a porosidade entre o tempo de trabalho total e o tempo de trabalho da produção. Para o aumento da
produtividade, a ideia era transformar todo o tempo de trabalho em trabalho não-pago, o que nas

29
palavras de Oliveira (2003, p. 135) “[...] é o fetiche em sua máxima expressão.” No limite, o trabalhador
com sua força de trabalho transforma-se em mercadoria como qualquer outro meio de produção.
Neste ponto, a mais-valia absoluta e relativa se fundem: na forma absoluta, como trabalho
informal, não se produz mais do que uma reposição constante do que seria o salário. Desta forma,
o capital só faz uso do trabalhador quando lhe convém; na forma relativa, “[...] é o avanço da
produtividade do trabalho nos setores hard da acumulação molecular digital que permite a utilização
do trabalho informal.” (OLIVEIRA, 2003, p.136).
A partir dessas observações, Oliveira (2003) vê a moderna tendência do capital de acabar
com o adiantamento4 de capital pelo uso da força de trabalho. Este pagamento dependerá diretamente
dos resultados das vendas dos produtos-mercadorias.
Nas formas da terceirização, do trabalho precário, e, entre nós, do que continua a se chamar
‘trabalho informal’, está uma mudança radical na determinação do capital variável. Assim, por
estranho que pareça, os rendimentos dos trabalhadores agora dependem da realização do valor
das mercadorias, o que não ocorria antes; nos setores ainda dominados pela forma-salário, isso
continua a valer, tanto assim que a reação dos capitalistas é desempregar força de trabalho.
Mas o setor informal apenas anuncia o futuro do setor formal. (OLIVEIRA, 2003, p. 136).
Para o autor, desta tendência decorre que não podem haver postos fixos de trabalho, os
trabalhadores não podem ter contrato e que as regras do WelfareState (Fordismo) tornaram-se um
limite à realização do valor e do lucro por fazerem dos salários, diretos e indiretos, uma forma de
adiantamento do capital. Nesse ponto, a estabilidade do compromisso fordista se apresenta com mais
clareza como pseudoestabilidade, pois esbarra no lucro capitalista. Enquanto a estabilização das
condições de vida dos trabalhadores pode existir em concomitância com a estabilização do lucro, ela
aconteceu. Na verdade, pelo que observamos até aqui neste capítulo, uma foi condição para a outra no
compromisso fordista assumido nas condições materiais daquele momento histórico mundial.
A principal característica da acumulação de capital na periferia do sistema mundial, como o
Brasil, é que, não sendo possível o tal “fetiche em sua máxima expressão”, ou seja, igualar o tempo de
trabalho ao tempo de produção, da feita que exista uma jornada definida, suprime-se a jornada, e com
ela os direitos dos trabalhadores. Com isso, assistimos em todos os níveis e setores a desconstrução
da relação salarial.
A sociedade brasileira é, segundo Oliveira (2003), uma das mais desiguais do planeta, contudo,
a organização dos trabalhadores poderia operar uma transformação na estrutura da distribuição de
renda, mudando essa realidade. Para o autor, a expansão das relações salariais seria o vetor pelo qual
a organização trabalhadora ganharia corpo e de fato, aconteceu de maneira precária até os anos 1970.
Essa expansão teve fim nos anos 1980, quando começou também a regredir.
O autor refere-se às sociedades subdesenvolvidas como um ornitorrinco e afirma:
O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvido e
aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial propiciava; não há possibilidade
de avançar, no sentido da acumulação digital-molecular: as bases internas da acumulação são
insuficientes estão aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as
‘acumulações primitivas’, tais como as privatizações propiciaram: mas agora com o domínio
do capital financeiro, elas são apenas transferências de patrimônio, não são, propriamente
falando, ‘acumulação’. O ornitorrinco está condenado a submeter tudo à voragem da
financeirização, uma espécie de ‘buraco negro’: agora será a previdência social, mas isso o
privará exatamente de redistribuir a renda e criar um novo mercado que sentaria as bases para
a acumulação digital-molecular. O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma
sociedade desigualitária sem remissão. (OLIVEIRA, 2003, p.150).
Durante os trinta anos do fordismo e do subdesenvolvimentismo (modelo de substituição
de importações) dos países subdesenvolvidos, vários países viveram uma fase de crescimento
contínuo dos ganhos de produtividade sucedida de uma queda. Essa oscilação se explica porque
para o sucesso nos resultados do modelo fordista, fez-se necessária a ampliação desse método a
mais e mais setores. Acontece que isto não poderia ocorrer de forma vitalícia. Eis o primeiro fator

4
Adiantamento aqui ante a realização da mercadoria, não quanto ao uso da força-de-trabalho.

30
de diminuição dos ganhos de produtividade nos moldes do fordismo. Sucederia ainda que a maior
exploração dos métodos fordistas geraria revolta por parte dos trabalhadores – movimentos de greve,
absenteísmo, sabotagem – e alterariam diretamente a produção capitalista, além de aumentar o custo
salarial. Assim, as formas assumidas pela combatividade proletária estão diretamente relacionadas à
produção capitalista, o que sugere que com o declínio da produtividade nos anos 1970, haja também
mudanças nesta combatividade.
A crise que leva à ruptura do compromisso fordista é, para Bihr (2010), marcada, além deste,
por outros três fatores. O segundo fator refere-se à elevação da composição orgânica do capital.
Elevar de forma constante os ganhos de produtividade teve como condição a elevação da composição
técnica do capital, da relação entre a massa de trabalho morto e o trabalho vivo que a mobiliza.
Se todas as outras coisas permanecem iguais, qualquer elevação da composição técnica do
capital tende a provocar uma elevação da composição orgânica (da relação entre a massa do
capital consumido e o valor criado pelo trabalho vivo), mas também um aumento do capital
fixo em relação ao capital circulante e, portanto, uma diminuição da rotação do capital, dois
fatores que diminuem inevitavelmente a taxa de lucro (BIHR, 2010, p. 70).
As formas que o capital usou para lutar contra esta tendência foram, de um lado, desvalorizar
elementos do capital constante, graças, principalmente, à sua obsolescência acelerada. Por outro lado,
o capital generalizou o trabalho por turnos, trabalho em equipes, permitindo diminuir a composição
orgânica ao mesmo tempo em que acelerou a rotação do capital fixo. Aqui afirmamos que frente à
tendência de queda em curso, essas foram medidas paliativas.
Um terceiro fator corresponde à saturação da norma social de consumo. A regulação do
fordismo tem calço em um processo de consumo privado centrado em bens duráveis e este mercado
começa a se saturar no curso das décadas de 1960 e 1970.
É a partir deste período que podemos observar um aumento progressivo do custo de um
conjunto de benefícios sejam através de subsídios ou de equipamentos e serviços coletivos colocados
à disposição dos consumidores individuais nos países de capitalismo avançado.
Este aumento nos custos é resultado de três processos ligados à dinâmica fordista. Primeiro,
a crescente internalização do processo de reprodução da força de trabalho, como o caso do aumento
potencial dos regimes de aposentadoria. Segundo, o deslocamento do consumo de bens duráveis e
semiduráveis do caráter privado ao caráter coletivo, como por exemplo, a necessidade de assistência
individual e social, a aspiração ao benefício de convivência familiar e social e outros benefícios.
Terceiro, a impossibilidade de o fordismo compensar o aumento da massa dos meios sociais de
consumo, já que concentrou todos os seus esforços na produção em escala de bens de consumo privados.
Por fim, o último dos fatores é o desenvolvimento do trabalho improdutivo. Em especial, o
trabalho que garantia a circulação de capital como o comércio, os bancos e os seguros. Além destes,
aqueles trabalhos ligados ao conjunto das condições sociais, institucionais e ideológicas da reprodução
do capital, dos quais se destacam os que se concentram nos aparelhos de Estado.
Aprofundar a análise da instauração da crise do fordismo é tarefa a fazer-se sob dois prismas:
pensando os aspectos estruturais do modo de produção capitalista e pensando os aspectos específicos
do regime fordista de produção capitalista. Botelho (2008) assinala a respeito da “Era de Ouro” do
capitalismo (1950/1980), que novas tecnologias tendem a exigir pouca mão de obra e, em alguns
casos, até mesmo a substituí-la. Existe aqui uma tendência de aumento do capital constante em relação
ao capital variável. Consequente a isso, há uma queda tendencial na taxa de lucro, caso se mantinha
estático o grau de exploração do trabalho pelo capital. Desta feita, revela-se aí o anacronismo inerente,
pois, o capitalismo impõe a si limite em desenvolver suas forças produtivas (visto que cancelar o
trabalho seria cancelar a possibilidade de lucro), tornando evidente seu caráter transitório, histórico.
Assim, “[...] a produção capitalista procura sempre ultrapassar seus limites inerentes, mas ultrapassa-
os apenas com meios que de novo lhe opõem esses mesmos limites, em escalas mais potentes.”
(BOTELHO, 2008, p. 53). Essa é uma lição de Marx: o capital tem origem no trabalho e se opõe a este
trabalho, assim opõe-se a si mesmo. Se o capital passa a reportar-se cada vez mais a si, em detrimento
do trabalho, no processo de geração do valor, perde a referência neste processo. Quanto menor o

31
número de trabalhadores recrutados – por conta do desenvolvimento das forças produtivas – mais
essa referência se oculta.
O avanço do fordismo levou à crescente tecnologização e, consequentemente, à diminuição
do número de trabalhadores envolvidos no processo produtivo, contrariando ou tencionando o ideal
fordista de emprego de massa, consumo de massa, ou seja, “[...] a insegurança e instabilidade no
mercado de trabalho e o crescente desemprego são óbvios freios ao padrão de consumo de massa.”
(BOTELHO, 2008, p. 55).
Outro determinante do processo de crise deflagrado no fordismo estaria ligado à escala
microeconômica, das empresas que faziam uso das estratégias fordistas de acumulação. Por volta
de 1960, temos um acirramento das pressões competitivas intercapitalistas que saturou o mercado
consumidor, contando para isso com os países subdesenvolvidos – onde o contrato social do trabalho
era fracamente respeitado ou inexistente – levando ao avanço das empresas multinacionais. Este
acirramento da competição intercapitalista se apresenta sob dois prismas: da competição por mercado
consumidor e da competição por insumos, e ambas afetaram duramente a lucratividade do capital.
No tocante aos insumos, é só após 1973, com o primeiro choque do petróleo, que existe um
aumento drástico nos custos, que proporcionou a preocupação com a economia de energia e a busca
por novas tecnologias, além da reciclagem de petrodólares excedentes – dinheiro proveniente da
exportação do petróleo – gerando uma forte instabilidade dos mercados financeiros.
O mercado consumidor ficou marcado por um drástico processo inflacionário e o mundo
capitalista sufocou-se em excesso de fundos com poucas áreas produtivas para investimento. A
tentativa de frear essa inflação acabou por expor a capacidade excedente nas economias e disparar
uma crise mundial provocando severas dificuldades nas instituições financeiras.
Numa primeira fase deste processo, a crise se mantém latente. Aparentemente temos a
continuidade do crescimento, mas alguns indícios de um declínio do regime de acumulação podem
ser percebidos como a aceleração da inflação, o endividamento crescente das empresas e o aumento
lento e gradual do desemprego. Por volta de 1973/74, temos uma situação já deteriorada, com o
aumento brutal no preço do petróleo bruto no mercado mundial, que, para Bihr (2010) é o estopim da
crise. A crise, antes latente, é agora manifesta em queda da produção, aumento brutal do desemprego,
contração do comércio mundial e desmoronamento da cotação da bolsa.
Patronatos e governos ocidentais apostaram, nesse momento, que era possível sair da crise
sem fundamentalmente mudar o regime de acumulação. Nesta segunda fase, tratava-se de “[...]
perseguir o fordismo a crédito, confiando na retomada da acumulação para reembolsar as dívidas.”
(BIHR, 2010, p.74). Isso significou internamente estender e manter mecanismos de aumento
dos salários reais e recorrer aos gastos públicos, concedendo facilidade de crédito às empresas e
consumidores individuais.
Externamente, tratou-se de mundializar mais o capital, expandir o fordismo para os países
subdesenvolvidos no que Bihr (2010) chama de “[...] uma espécie de keynesianismo mundial”, para
que estes países pudessem pagar a conta da crise nos países de capitalismo avançado. Isso permitiu
a alguns países da periferia capitalista desenvolverem e/ou consolidarem seus aparelhos industriais,
mas essa economia de endividamento conseguiu apenas evitar o agravamento da recessão mundial,
sendo incapaz de retomar a acumulação nas bases fordistas.
Contudo, devemos observar que o subdesenvolvimento não é parte de uma sucessão de
eventos de caráter evolutivo que tende ao pleno desenvolvimento. É o subdesenvolvimento um
momento singular da história, a forma de desenvolvimento capitalista de ex-colônias cuja função
histórica é o fornecimento dos elementos da acumulação de capital ao centro. É exatamente essa
característica que impediu os países subdesenvolvidos, como o caso do Brasil, de “evoluir” em
direção a estágios superiores da acumulação capitalista.
Também não podemos dizer que o subdesenvolvimento seja uma evolução truncada, mas,
sim, produção e reprodução da dependência na divisão internacional do trabalho capitalista, aliada a
interesses internos. Isto revela um pouco da não neutralidade do termo constituído pelo prefixo “sub”
indicando uma clara posição na divisão internacional do trabalho. Dito isso, fica claro que entender

32
o desenvolvimento no Brasil, passa não apenas por situá-lo na divisão internacional do trabalho, mas
também de entender as particularidades do processo histórico brasileiro.
Com os ganhos de produtividade seguindo uma linha descendente e com o aumento do
custo dos investimentos, confirma-se o esgotamento do padrão fordista de acumulação ou do modelo
desenvolvimentista de substituição de importações do Brasil. O medo do desemprego proporcionou
intensificação na disciplina do trabalho, aumentando a mais-valia, e este aumento acaba comprometido
pelo crescimento das retiradas obrigatórias para financiar o compromisso fordista.
Com as economias capitalistas em estágio vegetativo, o segundo choque do petróleo
veio – dessa vez, sem chance para o fordismo ser financiado a crédito – como estopim para outra
fase da crise, onde se buscará outras formas de retomar uma taxa de lucro satisfatória. Para Bihr
(2010), o capitalismo precisa destruir uma parte social do capital, eliminando empresas de pouco
rendimento, reestruturando-se tecnicamente, financeiramente e juridicamente. Isso acontece com a
concorrência capitalista, mas o Estado pode interferir com uma política econômica de restrição de
crédito. Por outro lado, podemos dizer que quem efetivamente pagou pela crise foi o trabalhador, por
conta do rebaixamento dos salários reais diretos, redução dos elementos socializados do processo de
consumo. Isso ganha contornos mais perversos no Brasil por conta das características das relações de
trabalho (POCHMANN, 2006).
O regime fordista se assentava numa boa previsibilidade da procura, presumia crescimento
estável em mercados de consumo invariante. Essa rigidez do sistema fordista aos poucos foi
se mostrando incapaz de conter as contradições do capitalismo. Havia problemas de rigidez nos
mercados, na alocação e nos contratos de trabalho. É no contexto da crise dos anos 1970 (1980,
no Brasil) que as empresas e os governos tomam consciência dos aspectos da rigidez, em razão da
dificuldade de adaptação às incertezas.
Esta crise que, para Bihr (2010), toma estruturalmente o sistema capitalista, ou seja, a
totalidade das relações sociais apresenta ainda outro importante aspecto sobre a sociabilidade. Para o
autor, a crise da sociabilidade, precisa ser entendida no processo de apropriação capitalista da práxis
social, ou seja, a forma com que a prática social é submetida aos imperativos da reprodução do capital.
Essa apropriação pode ser percebida se analisarmos as condições sociais gerais do processo
de produção imediato, pois perceberemos que a reprodução do capital constante demanda a produção
de uma infraestrutura material, que somente o Estado pode tomar sob sua responsabilidade. De igual
maneira, a reprodução do capital variável mobiliza uma série de aparelhos do Estado como assistência,
educação, fiscalização e até repressão.
Essa apropriação também pode ser expressa nas relações sociais realizadas no processo de
circulação do capital. Para Bihr (2010, p. 144)“[...] a reprodução dessa relação social, que é o capital,
exige que todas as relações sociais (e não mais somente as relações de produção) sejam submetidas à
“lógica” da equivalência de troca mercantil.”
Mas, é através destes aparelhos, sintetizados e afirmados pelo Estado que o processo de
reprodução do capital busca apropriar-se da práxis social. Para Bihr (2010) existe uma intensificação
da comunicação social sob várias formas: o emaranhado crescente das relações e das práticas sociais;
a compactação dos grupos sociais fora do espaço e do tempo de suas práticas e de suas representações,
desde as relações individuais e grupos locais até a relação entre nações. Em consequência,
[...] esse processo tende a relacionar o que estava anteriormente isolado e sem ligação.
Mas simultaneamente leva, devido às separações constitutivas das relações capitalistas de
produção (separação entre força de trabalho e os meios de produção, divisão mercantil do
trabalho generalizada), a explodir a unidade da prática social em uma grande quantidade de
trabalhos e funções, de lugares e de momentos, de organizações e de instituições, etc., que não
mais são religadas entre si, senão pela mediação das formas e dos aparelhos de reprodução
do capital. Daí os efeitos bem conhecidos de desintegração, segregação, atomização. Em
síntese, a socialização capitalista da sociedade é também e simultaneamente dessocialização:
dissolução das relações comunitárias, relaxamento do vínculo social, privatização da vida
social. (BIHR, 2010, p. 145-146).

33
Essa apropriação faz eclodir e reforçar o individualismo, colocando cada indivíduo como
sujeito econômico, jurídico, ético, político e psicológico, como portador de interesses particulares.
No âmbito do compromisso fordista a rigidez dos acordos entre capital, Estado e trabalho,
acabou funcionando no decorrer dos anos como uma jaula para a acumulação do capital. O que
antes era um círculo virtuoso de crescimento das economias passa a funcionar como um círculo
vicioso de estagnação e inflação, forçando a entrada em um período de racionalização, reestruturação
e intensificação do controle do trabalho. Isso desde os anos 1970 no mundo todo e a partir de 1980,
no Brasil. Mudanças que passam pela constituição de formas de acumulação flexível, de gestão
organizacional, do avanço tecnológico, de modelos denominados por Braga (1996) de pós-fordistas.
O controle sobre os limites da exploração do trabalho proporcionou certa estabilidade e
segurança social, além de considerar o sindicato interlocutor legítimo para lidar com as autoridades
do mercado. Isso, associado às legislações protetivas de mercado nacional, passa a ser considerado
dispositivo de rigidez que limita a rotação do capital. A flexibilidade das normas, dos contratos,
dos processos produtivos e das relações de trabalho aparece como a receita para competitividade e
rentabilidade de capital. No panorama da crise, o capital inicia, em oposição ao contra poder emergente
das lutas sociais, seu processo de reorganização das formas de dominação societal, recompondo-se
para recuperação de sua hegemonia no processo produtivo e em todas as esferas da sociedade. Verifica-
se uma nova organização industrial e um novo relacionamento entre capital e trabalho, exigindo um
trabalhador mais qualificado, participativo, multifuncional, polivalente.
Alguns estudos buscam acentuar os elementos tanto de continuidade do padrão produtivo
anterior, quanto os de descontinuidade. O essencial neste entendimento é que ficam mantidas as
matrizes fundamentais do modo de produção capitalista, destacando o que é específico nas mudanças e
as consequências que essas exercem no interior do sistema de produção capitalista. Trata-se do regime
de acumulação flexível que mencionaremos adiante, caracterizando a nova divisão dos mercados, do
desemprego, de uma divisão global do trabalho, do fechamento de plantas industriais, reorganização
financeira e tecnológica através de uma eliminação, transferência, terceirização e enxugamento de
unidades produtivas (ANTUNES, 2010).

2 CONCLUSÃO

O compromisso fordista firmado entre o “grande capital”, o “grande governo” e o “grande


trabalho”, proporcionava rigidez que dificultava a maior liberdade para retirar essas vantagens. Tanto
o capital, quanto o trabalho, quanto o Estado eram capazes de prefigurar com bastante antecedência
o que seria o futuro de forma prática. O operário tinha a segurança que seus filhos seriam, no
mínimo, operários também, ou seja, não haveria uma mobilidade social ascendente, mas que seria
possível atualizar ou controlar a mobilidade social descendente. Todavia, como vimos tratando, as
contradições primárias do sistema capitalista se adensaram em uma crise que esse sistema rígido se
mostrou impossível de dar solução. Para que o lucro se estabilizasse novamente, seria socialmente
necessária a desestabilização do trabalho com a quebra da rigidez do estatuto de regulação e da
organização política, resultando em formas cada vez mais engenhosas de intensificação da exploração
do trabalho pelo capital. Em contrapartida vimos retornar patamares perversos de instabilidade social
– o que é uma situação típica do trabalho sob o capitalismo, mas que no período fordista encontrou
formas de limitação.
A proposta que por ora apresentamos, vai de encontro com a absorção deste debate da
morfologia do trabalho, em particular a reconstrução da instabilidade social, para entender sua
expressão sensível no sofrimento mental do trabalhador.

3 REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Produção liofilizada e a precarização estrutural do trabalho. In: SANT’ANA, R.


S.; LOURENÇO, E. A. S. et al. (Org.). Avesso do trabalho II: trabalho, precarização e saúde do
trabalhador. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

34
BIHR, A. Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. Tradução de
Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2010.
BOTELHO, A. Do fordismo à produção flexível: a produção do espaço num contexto de
mudanças das estratégias de acumulação do capital. São Paulo: Annablume, 2008.
BRAGA, R. A reestruturação do capital: um estudo da crise contemporânea.
São Paulo: Xamã, 1996.
DEJOURS C. A banalização da injustiça social. Tradução de Luiz Alberto Monjardim. 8. ed. Rio
de Janeiro: Ed. FGV, 2007.
FERNANDES, F. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
MARX, K. Sobre o suicídio. Tradução de Rubens Enderle e Francisco Fontanella. São
Paulo: Boitempo, 2006.
OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista: o Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
POCHMANN, M. Desempregados do Brasil. In: ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e miséria do
trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.
SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São
Paulo: Cortez, 2011.
SENNET, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio
de Janeiro: Record, 1999.
SOARES, L. T. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. 2. ed. São
Paulo: Cortez, 2002.

35
PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO:RELAÇÃO RECÍPROCA DE FUNCIONAMENTO
DO CAPITALISMO, CUJA MOEDA É A SAÚDE DO TRABALHADOR
Vanessa Batista de Andrade*
RESUMO: Pensemos sobre a sociedade atual, seu modo de produzir e reproduzir, e os reflexos deste movimento sobre os trabalhadores,
que reféns deste processo, são ao mesmo tempo: produtores e reprodutores do capital. Este artigo tem o intuito de discutir como ocorre
o aprisionamento dos homens na lógica econômica e a partir desta relação sua vinculação a um estado enfermo. Utilizaremos o método
materialista histórico e dialético, que nos permitirá apreender como se efetiva o processo de reificação destes homens em interação com
o movimento da mercadoria. E utilizaremos as contribuições da psicanálise para entendermos o produto patológico desta relação social.
Palavras-chave: Capitalismo, Produção, Reprodução, Saúde do trabalhador
ABSTRACT: Think about today’s society, its way of production and reproduction, and reflections of this movement on workers, that
hostages of this process, are both: producing and reproducing capital. This article aims to discuss how occurs the imprisonment of men
in economic logic and from this relationship linking her to a helpless state. We will use the historical materialist and dialectical method,
which will allow us to grasp how effective the process of reification of these men in their interaction with the movement of goods. And
we will use the contributions of psychoanalysis to understand the pathological product of this social relationship.
Keywords: Capitalism, Production, Reproduction, Worker’s health

INTRODUÇÃO

A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento de valor


do mundo dos objetos.
O indivíduo em sociedade é educado de diferentes maneiras para atender os interesses do
capital, e isso é possível notar de maneira formal no setor educativo, quando o direcionamento dos
estudos visa a cada época, atender e obedecer à lógica do modo de produção, de maneira velada
primeiramente na escola, e mais tarde explicitamente ao patrão dentro da empresa. Todavia, seu
servilismo ao capital extrapola os encaminhamentos institucionais, sua construção social deve atender
não só os interesses da produção, como também a reprodução do capital. Assim, este homem sofre
influências e pressões de múltiplas dimensões, inclusive de maneira informal, por diversos meios de
comunicação que são utilizados pela mídia com a intenção de motivar a população para fazer circular
a mercadoria. Porque no capitalismo, como disse Marx (1974, p. 16.), “[...] produção é o consumo, e
consumo é produção.” Nesta relação social, o homem é explorado pela produção da mais-valia e pela
intenção da valorização do capital através da circulação da mercadoria.
Assim, o que sobeja ao trabalhador é o sofrimento, ou a sensação de sempre estar à procura
do inatingível, do inaccessível e do inalcançável e, o corolário de tal percepção pode lhe acarretar em
múltiplas patologias sociais.
O trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e sua produção cresce em
força e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria
mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento de valor
do mundo dos objetos. O trabalho não cria apenas objetos; ele também se produz a si mesmo
e ao trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens
(MARX, 2004, p.111, grifos nossos).
Sua vivência na sociedade capitalista lhe cobra uma atitude envolvida nas tramas do próprio
modo de produzir, desta forma para participar da sociedade ativamente ou economicamente, o
indivíduo subordina-se as cobranças estéticas e espetaculosas do modo de ser capitalista. À vista disso,
algumas consequências em suas estruturas física e psíquica irrompem-se, com a ajuda de um aparato
robustamente preparado, que tem como escopo amalgamar as necessidades humanas às necessidades
do modo de produção vigente. Assim, o paradoxo de se tornar miserável, à medida que produz e/ou
trava relações de troca, se expande na velocidade do próprio desenvolvimento do capitalismo.
Para entendermos como as patologias sociais se intensificam dentro de certa sistemática,
temos que regressar a história do século XX, e entendermos que por parte do movimento econômico,
grandes mudanças comportamentais serão exigidas aos indivíduos no interior da sociedade. E assim,
*
Docente Assistente do Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
E-mail: vandradebr@yahoo.com.br.

37
temos no interior dos EUA e da Europa um incentivo publicitário para que a produção complete seu
ciclo com a reprodução, estimulando, incitando, acordando necessidades humanas e subsumindo-as a
necessidade do capital. Realizando assim a produção desgovernada de comportamentos, que poderão
se transformar em enfermidades provocadas pelo excesso de estímulos. Assim como: a obesidade,
o alcoolismo, o tabagismo, a anorexia e a bulimia, a oniomania, a depressão etc., que são em sua
maioria resultado desta relação social contraditória de produção de riqueza e miséria humana.

1 “EDUCANDO” O TRABALHADOR PARA O CONSUMO NO PÓS-GUERRA

A Publicidade terá um papel fundamental na concepção deste “novo homem” no período


do pós-guerra, o gasto com este setor pelas empresas será crescente, segundo Naomi Klein (2003, p.
35) em seu livro “Sem Logo - a tirania das marcas”, ela demonstra o salto gigantesco de 10 bilhões
de dólares gastos com publicidade ao ano, por volta de 1963, em comparação com os mesmos gastos
em 1998, estes ultrapassaram 200 bilhões de dólares ao ano. Ou seja, a criação de demanda artificial
graças à publicidade, passa a ser o foco principal de apostas e investimentos das empresas. Assim,
seja pelos estímulos provocados pelo Estado que imprime no pensamento coletivo a responsabilidade
da crise, e cuja única saída seria por parte da população comprar e comprar, ou quando os estímulos
são gerados pelas empresas, que oferecem como sucedâneo de alegria os prazeres prometidos pelo
invólucro encantado e superfaturado das mercadorias muito bem elaborado pelas campanhas de venda.
E segundo Baran; Swezzy em sua obra “Capitalismo monopolista”, as campanhas de vendas
surgiram muito antes de sua fase monopolista “[...] a campanha de vendas é muito mais velha do
que o capitalismo como ordem econômica e social. Surge em várias formas na antiguidade, torna-se
bastante acentuada na Idade Média, e cresce em âmbito e intensidade na era capitalista.” (1966, p.
119). Contudo, foi só na fase monopolista, e principalmente nos Estados Unidos da América que pôde
ser utilizada de forma majestosa, e de um simples recurso da economia passou a ser “[...] um dos seus
centros nervosos decisivos” (1966, p.120), e ainda segundo estes autores, “[...] seu impacto sobre a
economia só são superadas pelo militarismo” (BARAN; SWEZZY, 1966, p.120, grifo nosso).
E Vance Packard (1965), em seu livro “A Estratégia do Desperdício”, nos leva ao
conhecimento que nos Estados Unidos da América (EUA) a produção em massa do momento fordista
─ sistema rígido ─ levou a uma superprodução de bens duráveis. E para afastar uma possível crise
de superprodução, duas medidas econômicas foram adotadas, que visavam: 1º estimular as vendas
e compras de novas mercadorias, usando a “pressão psicológica” sobre a população, outorgando a
ela responsabilidade pela estabilidade econômica do país; 2º aplicar a obsolescência planejada das
mercadorias, para tentar acelerar sua circulação econômica.
E para exemplificar a pressão psicológica exercida sobre a população, o autor recorda que em
1959, o presidente Eisenhouer foi a público pedir aos cidadãos americanos que comprassem qualquer
coisa que necessitassem, pois assim a depressão econômica não se instalaria. E em sua mensagem
econômica anual disse: “[...] a prosperidade só poderia ser mantida se os consumidores – assim como
o patronato e o operariado – executassem suas funções econômicas” (PACKARD, 1965, p. 18).
Estas recomendações econômicas, já nos são muito conhecidas hoje, tanto Bush como Lula,
presidentes de nossa história recente, também orientaram sua população para as compras em momento
de crise1. Ou seja, a ideia de fazer circular a mercadoria, foi projetada para toda sociedade, para
que esta possa responder com compras e compras, e assim permitir o bom andamento do mercado
econômico. A organização da sociedade para atender os interesses da circulação constante, foi sendo
planejada para torna-se o modo de vida no capitalismo.

1
Podemos ver em “História das Coisas”, recomendações feitas pelo presidente Bush em 2001, “[...] que após o 11 de
Setembro, quando o nosso país estava em choque e o presidente Bush poderia ter sugerido fazer luto, rezar, ter esperança...
Mas não... ele disse para fazermos compras! Compras! Nos tornamos numa nação de consumidores. Nossa principal
identidade passou a ser de consumidores. Não mães, professores, agricultores, mas consumidores!” (VIEIRA, 2011); e
sobre as recomendações de Lula na época: “[...] O presidente recomendou a prefeitos e governador presentes a “não sentar
em cima do dinheiro” e esperar a crise passar” (G1, 2009).

38
Assim como a hipnopedia2 do livro “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, se instalou
nos anos sessenta nos EUA um movimento publicitário que utilizava:
[...] slogans que martelavam as razões patrióticas ou egoísticas pelas quais todos deviam
atacar de rijo e consumir mais. Em Detroit, um coro com 45 vozes, gritava quinhentas vezes
por semana através do rádio e da televisão: ‘Dias de compra significam dias de pagamento...
dias de pagamento significam dias melhores... Por isso, comprem, comprem!... alguma coisa
de que precise hoje’ (PACKARD, 1965, p.16, grifo nosso).
A primeira maneira encontrada pelos empresários americanos para afastar a possível crise
de superprodução foi empurrar as mercadorias3 existentes no mercado, para conseguir um equilíbrio
econômico. E dessa forma a estratégia dos publicitários era, [...] martelar na cabeça das pessoas a
conveniência indubitável, e, na verdade, a necessidade imperativa, de possuir o mais recente produto
que surg(ia) no mercado (BARAN, SWEZZY, 1966, p. 120).
As medidas empresariais pretendiam estimular e criar um “apetite voraz” nos consumidores,
“expandir suas necessidades” e “criar desejos de mercadorias”. Este era o comando de ação direcionado
às agências de publicidades, pois a capacidade de produção havia superado a de consumo e, algo
devia ser feito muito rápido. E como alertou Marx sobre a questão da realização do valor “[...] a
existência de encalhe significa a morte econômica do capital fixado em forma de mercadoria” (MARX
apud HAUG, 1996, p. 35). “Pois o tempo de circulação do capital é tempo de sua desvalorização”
(ROSDOLSKY, 2001, p. 282).
Os apelos efetuados pelos meios de comunicação ao público foram inúmeros, como é
possível perceber por meio dos jornais da época. Segue abaixo um pequeno pedaço de um texto,
retirado de dois longos artigos feitos por um consultor de vendas no The Journal of Retauling 4 na
década de 1950.
Nossa economia enormemente produtiva [...] exige que façamos do consumo nosso modo de
vida, que transformemos as nossas compras e uso de mercadorias em rituais, que procuremos
nossas satisfações espirituais, as satisfações de nosso consumo [...] Precisamos ter coisas
consumidas, queimadas, gastas, substituídas e jogadas fora, em um ritmo sempre crescente
(LEBOW apud PACKARD, 1965, p. 23).
O desenvolvimento produtivo trouxe consigo alterações no padrão de consumo, que podemos
perceber se analisarmos como foi consolidando-se nos Estados Unidos o “espírito consumista”,
produzido pela necessidade do próprio sistema de “empurrar mercadorias”. O novo padrão criou novos
hábitos, numa população a qual até então se mantinha avessa aos gastos e fiéis a poupança. Nesse
processo o caráter ascético do americano protestante, foi violado e transformado em um “padrão” que
seria posteriormente exportado - the american way of life.
Na composição desse novo modo de viver sob a lógica do capital, os americanos foram
moldados por meio de pressões psicológicas exercidas através dos meios de comunicação5, que

2
Hipnopedia – era um recurso utilizado pelo governo do novo mundo – do livro “Admirável Mundo Novo” de Aldous
Huxley – que visava por meio da de repetição influenciar os habitantes do mundo novo para que se conformassem com a
forma de governo e posição social que ocupavam dentro desse sistema, ou para que gostassem de algo levando a consumir,
usar e usufruir determinado bem. Este discurso era efetuado enquanto eles dormiam, para captar o inconsciente de cada um.
3
Empurrar mercadorias ou criar uma demanda artificial para utilizar um termo econômico.
4
Victor Lebow, The Journal of Retauling: primavera de 1955, p. 7; inverno de 1955-56, p. 166. .
5
Sobre meios de comunicação podemos recordar o que Huxley disse em seu livro “Retorno ao Admirável Mundo
Novo”, 1959: “Desde o tempo de Hitler, o arsenal de dispositivos técnicos à disposição do aspirante a ditador foi
consideravelmente aumentado. Além do rádio, do alto-falante, do cinema e das grandes máquinas impressoras, o
propagandista contemporâneo pode empregar a televisão para transmitir a imagem, assim como a voz, de seu cliente, e
pode registrar tanto a voz como a imagem nas fitas magnéticas. Graças ao progresso técnico, o Grande Irmão pode ser
agora quase tão onipresente como Deus. E não é apenas no âmbito da técnica que a mão do aspirante a ditador recebeu
novas forças. Desde o tempo de Hitler, tem se realizado trabalhos notáveis nos campos da psicologia e da neurologia
aplicadas, que constituem o domínio próprio do propagandista, do doutrinador e lavador de Cérebros” (HUXLEY, 1959,
p. 63). E foi através de Joseph Gobbels que Hitler conseguiu, já naquele tempo trabalhar com as necessidades humanas de
forma eficaz. Conseguiu como diz o próprio Huxley, “[...] privar oitenta milhões de pessoas da liberdade de pensamento
para sujeitá-las à vontade de um homem”. O que mudou hoje na verdade, foi apenas à figura representativa de poder, de
um homem — o Grande Irmão — para o Grande Capital.

39
diariamente anestesiavam a consciência puritana e construíram novos desejos, necessidades que
impulsionaram o desenvolvimento econômico. Isso se deu graças a grande pressão publicitária que
apontava o consumo sendo o melhor investimento ao americano - colocando a poupança em segundo
plano, gastar era a palavra de ordem dirigida à população.
As estratégias de estimulo subjetivo do consumo americano foram ampliadas e se diversificaram,
elas agora visavam criar no consumidor novas necessidades e não apenas responsabilizá-los pela
estabilidade econômica do país. Dessa forma a publicidade passou a ser a “arma” ou instrumento
que mediava à possibilidade de efetivar a relação de troca. O valor de uso se tornou uma “isca”,
que seduzia o consumidor e criava nele a carência pelo objeto publicizado; contudo, como a grande
maioria da população já possuía diversos bens duráveis, então era necessário criar uma situação para
que os bens já obtidos pelo consumidor se tornassem de alguma forma obsoletos.
Com o aumento da produtividade, o problema da realização assume uma nova forma para
os oligopólios. As forças produtivas organizadas do capital privado não mais se defrontam
com os muitos vendedores concorrentes como um limite, mas diretamente com a barreira das
relações de produção que definem a necessidade social desde que a demanda seja solvente.
Numa sociedade como a americana, uma grande parte da demanda total — como observam
Baran e Sweezy – ‘baseia-se na necessidade de substituir uma parte dos pertences por bens
de consumo duráveis, tão logo se deteriorem.’ Uma vez que o caminho para a diminuição do
trabalho em toda a sociedade levaria a abolição do capitalismo, o capital depara agora com a
grande durabilidade de seus produtos (HAUG, 1996, p. 52).
Novamente o setor de propaganda trabalhou arduamente, criando novos campos de “ataque”:
1) começou a trabalhar com a ideia de que: “sempre cabe mais um” produto em sua casa; 2) como
também, trabalhou com a criação no americano, do “espírito de jogar fora” os produtos antigos; 3)
colocou em prática de forma intensificada a obsolescência da desejabilidade.6 Esses três campos
de ataque da publicidade sobre a subjetividade do consumidor foram se entrelaçando e por meio
da estética da mercadoria, consolidou-se enfim, a intenção capitalista de realização do valor ao
impulsionar a circulação dos produtos.
As pressões psicológicas exercidas sobre o inconsciente dos americanos no período da
Guerra Fria permitiram por parte das campanhas de vendas, o emprego em demasia e por vezes
“falacioso”, da importância e imprescindibilidade de determinados produtos para vida do homem
comum. Falacioso, pois como disse Galbraith em seu livro “O Novo Estado Industrial”.
A maior parte das mercadorias realizam funções comuns: suprimem a fome, prestam-se
aos vícios do álcool ou da nicotina, conduzem as pessoas gradualmente através do tráfego
intenso, movimentam mais rapidamente os resíduos através do tubo intestinal ou ajudam a
remover a sujeira. Pouco ou nada de importância pode-se verdadeiramente dizer a respeito do
modo pelo qual um produto desempenha essas funções de rotina. Mentiras descaradas sobre
a sua atuação geralmente não são permissíveis, mas é essencial que haja um substituto para
a verdade. Substituto, pelo qual, qualidades menores ou mesmo imaginárias proporcionem
grandes benefícios (GALBRAITH, 1968, p. 355, grifo nosso).
Primeiramente a aceleração da circulação da mercadoria foi impressa através do emprego
intensificado da propaganda e do desgaste da mercadoria na mente do consumidor – propiciado pela
obsolescência da desejabilidade. Posteriormente, outras espécies de obsolescências seriam aplicadas
sobre a mercadoria com esse intuito, que colocariam limites aos produtos e obrigariam veladamente o

6
Obsolescência de desejabilidade. Segundo Packard é “[...] a situação, na qual um produto que ainda está sólido,
em termos de qualidade ou performance, torna-se “gasto” em nossa mente porque um aprimoramento de estilo ou outra
modificação faz com que fique menos desejável (PACKARD, 1965, p. 51, grifo do autor).

40
consumidor a voltar ao mercado para adquirir um novo produto, já que sua satisfação foi comprometida
com a deterioração desta mercadoria.

2 A NÃO REALIZAÇÃO DA EXPECTATIVA HUMANA AO CONSUMIR MERCADORIA,


E OS PROBLEMAS DE SAÚDE QUE SE LEVANTAM DESTA RELAÇÃO

As grandes promessas produzidas pelas empresas publicitárias por meio da estética da


mercadoria, que apelavam para as cores, sons, e construções de históricas dos produtos (MARTINS,
1999), com se estes tivessem “alma”, ou ainda, as depreciações provocadas intencionalmente na
mercadoria por meio das obsolescências planejadas, acabaram envolvendo os consumidores de tal
forma, que as expectativas geradas pelas campanhas de vendas trouxeram danos de diferentes aspectos
aos indivíduos. Os diferentes apelos sobre valor de uso da mercadoria, que tinham o objetivo de
facilitar a circulação econômica desta, se levantaram como promessas aos consumidores, promessas
de múltiplas respostas, que uma vez não contempladas no ato de consumir tais produtos, acabaram
enleando-os em diferentes patologias.
Patologias às vezes ligadas a compulsão, de tentar alcançar o inalcançável, seja ele:
um sabor, um tipo físico, uma aventura, um status, até mesmo a alegria etc. Assim, a procura da
satisfação das necessidades por meio dos encantos, feitos sobre corpo da mercadoria, e que não se
efetivaram de fato, acabaram levando muitos consumidores a um estado enfermiço. Como é o caso
das doenças psicossociais, a exemplo: a depressão; a bulimia; a anorexia; a obesidade; o alcoolismo;
a dependência química, etc.
A tentativa de tentar satisfazer suas necessidades, de tentar alcançá-las e estas desaparecerem,
escapar-lhes, acabaram levando o consumidor a um estado de suplício como o de Tântalo.7
Este estado de suplício, o qual o consumidor é levado, tem grande relevância para a produção e
reprodução do capitalismo. Pois, como disse Haug (1996, p. 47), nesta relação social, surge um “[...]
vazio funcional contraposto ao vício do consumidor [...]” que corre “[...] atrás de meras imagens
[...]”, que não se realizam e nem devem se realizar, para que não cesse o movimento do modo de
produção de mercadorias.
Assim, como disse Roudinesco (2000, p. 17), em seu livro “Por que a psicanálise?” “[...] a
depressão domina a subjetividade contemporânea [...] às vésperas do terceiro milênio, a depressão
tornou-se epidemia psíquica das sociedades democráticas, ao mesmo tempo que se multiplicam os
tratamentos para oferecer a cada consumidor uma solução honrosa.” Segundo esta autora, estamos
vivendo uma época em que há uma força social que tenta apagar a perspectiva revolucionária, e
incentiva a criação de um sujeito deprimido intencionalmente. Neste aspecto, grande maioria dos
trabalhadores se enquadram nesta circunstância, à medida que como Tântalo, vivem trabalhando para
deixar de sofrer por meio de suas conquistas econômicas, contudo a não realização por meio dos
produtos das a promessas propagandeadas, geram um sujeito iludido e angustiado, que sobremaneira
terá que ser anestesiado por meio de drogas farmacológicas para ter um comportamento profícuo
ao estado das coisas atuais, ou procurará a transcendência religiosa para narcotizar o estado de
sofrimento gerado socialmente.
A sociedade democrática moderna quer banir de seu horizonte a realidade do infortúnio, da
morte e da violência, ao mesmo tempo procurando integrar num sistema único as diferenças
e as resistências. Em nome da globalização e do sucesso econômico, ela tem tentado abolir
a ideia de conflito social. Do mesmo modo, tende a criminalizar as revoluções e retirar o
heroísmo de guerra, a fim de subsistir a política pela ética e o julgamento histórico pela
sanção judicial. Assim, ela passou da era do confronto para era da evitação, e do culto da
glória para a revalorização dos covardes (ROUDINESCO, 2000, p. 16).
Como disse a autora acima, os sentimentos de revolta, violência e contestação devem ser
abafados e para isso os fármacos se levantam como a melhor saída para produção de uma modelo

7
Que como no mito “[...] ‘Suplício de Tântalo’ que designa o sofrimento de quem quer muito algo próximo, mas não o
consegue [...] designa aos objetivos impossíveis de se alcançar e a angústia da luta pela transposição dos limites, o desejo
de conquista do inalcançável diante da limitação e fragilidade humanas” (SARASVATI apud ANDRADE, 2015, p. 133).

41
esquizoide de ser humano, que deverá negar sua plenitude de sentidos, e deve procurar sua realização
na efemeridade da mercadoria.
Para o capitalismo isso funciona muito bem, uma vez que serve como “anticoagulante” da
dentada realizada pelo vampiro capitalista, como o já citado por Marx em “O Capital” no capitulo
VIII, ao tratar da jornada de trabalho. Este suga a energia do trabalhador no momento da produção e se
inebria com o processo de reprodução, no qual os trabalhadores, como moscas presas na teia da aranha,
só aguardam para servir de alimento a este artrópode que com suas pernas os enrolam num casulo,
por meio dos “feitiços e facilidades” de vinculação ao mercado, em forma de propagandas e créditos.
O capitalista compra a força de trabalho pelo seu valor diário. Seu valor-de-uso lhe pertence
durante a jornada de trabalho. Obtém, portanto, o direito de fazer o operário trabalhar para
si durante um dia. Mas o que é um dia de trabalho? É, de qualquer modo, menos do que
um dia de vida natural. Em quanto? O capitalista tem seu próprio ponto de vista sobre esse
extremo, a fronteira necessária da jornada de trabalho. Enquanto capitalista, ele é apenas
capital personificado. A sua alma é a alma do capital. Contudo, o capital tem um único
impulso vital, o impulso de se valorizar, de criar mais-valia, de sugar a maior massa possível
de sobre trabalho com a sua parte constante, os meios de produção. O capital é trabalho
morto que apenas se anima, à maneira de um vampiro, pela sucção de trabalho vivo, e que
vive tanto mais quanto mais dele sugar. O tempo durante o qual o operário trabalha é o tempo
durante o qual o capitalista consome a força de trabalho por ele comprada. Se o operário
consome o seu tempo disponível para si próprio está a roubar o capitalista (MARX, 2003,
p. 271, grifo nosso).

3 EXCESSOS - DOENÇAS E NÚMEROS ECONÔMICOS

Os últimos dados do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD), referente aos


anos entre 2006 a 2012, nos trazem um alerta das pesquisas relacionadas ao consumo de álcool e
drogas, temos um crescimento de 20% do uso abusivo e nocivo de álcool nestes últimos 10 anos,
isso é extremamente significativo quando relacionamos o ponto tratado por Roudinesco (2000), de
estarmos vivendo em tempos em que as pessoas estão precisando viver anestesiadas, entorpecidas
para se relacionar com o mundo, seja através do álcool, das drogas lícitas e ilícitas.
Todos os estudos sociológicos mostram igualmente que a sociedade depressiva tende
a romper a essência da vida humana. Entre o medo da desordem e a valorização de uma
competitividade baseada unicamente no sucesso material, muitos são os sujeitos que preferem
entregar-se voluntariamente a substâncias químicas a falar de seus sofrimentos íntimos.
O poder dos remédios do espírito, portanto, é o sintoma de uma modernidade que tende a
abolir o homem não apenas o desejo de liberdade, mas também a própria ideia de enfrentar a
prova dele. O silêncio passa então a ser preferível à linguagem, fonte de angustia e vergonha
(ROUDINESCO, 2000, p. 30).
Vejamos, Marx (2004) diz que o operário foge do trabalho como o diabo da cruz, ou da
peste, mas ao invés deste escapar fora do trabalho, temos a invasão de todas as esferas da vida do
trabalhador. Assim, a administração científica dos tempos e movimentos do trabalhador, passou a ser
utilizada também em seus momentos ociosos, ou seja, fora do trabalho. A educação deste que se dava
no chão de fábrica, e permitia ao capital ampliar de seu processo produtivo, saltou para fora desta,
educando o trabalhador de maneira sistemática a servir o capital não só para a produção, mas também
à sua reprodução, cada vez mais acelerada.
A educação deste trabalhador se processa de maneira formal por meio das instituições
escolares, e informal através dos meios de comunicação, que são utilizados pelas campanhas de
vendas dos produtos para incitar os trabalhadores a consumi-los.
O capital tenta assim fechar seu ciclo, do processo de produção e reprodução de mercadorias,
e torna-se cada vez mais evidente a ampliação de sua administração em nossas vidas.
[...] hoje, é a totalidade de nossas vidas que é assim minuciosamente ordenada a partir do
exterior. Pela primeira vez, o homem parece totalmente espoliado de si mesmo. Isso coincide,
aliás, com a espoliação do tempo (característica do proletário, segundo Marx) – o homem

42
moderno está tomando uma ocupação permanente, inclusive a do lazer, nunca pode distanciar-
se, refletir sobre sua condição; mas também a relação com as administrações, que lhe toma um
tempo considerável, e o tempo jamais teve tão pouca importância, na sua qualidade de vida,
mas também na sua realidade natural. O homem ganha cada vez mais tempo e, no entanto,
seu tempo é cada vez mais absorvido pelas atividades sociais (ELLUL, 1985, p. 202).
Destarte, os pensamentos de busca de realização dos homens em sociedade, estão sempre
mediados pela relação com a mercadoria, pois as atividades sociais estão comprometidas com as
relações econômicas. E como é necessário às mercadorias rodarem muito rapidamente pelo mercado,
há um aparato de mecanismos, como já vimos que são utilizados para esta efetivação, e quem é
afetado por esta aceleração econômica é o trabalhador, que sofrerá pelos excessos ou pelas buscas
infinitas de consubstanciar-se plenamente por meio dela.
O alcoolismo e a dependência química são moléstias que traduzem de maneira efetiva, o
constrangimento do homem frente à imposição de um cânone social, que despreza a saúde ou o
bem-estar dos indivíduos, e que privilegia a realização do capital. A título de exemplo, podemos
apontar como as propagandas de bebidas são apresentadas, os sentimentos: de prazer, de felicidade
são intercedidos pela “poção mágica”. O valor de uso do produto deixou de ser o de matar a sede, e
passou a outro nível pomposo de promoção dos desejos.
E para nos certificarmos de sua eficácia, basta vermos os dados trazidos neste último LENAD,
referente ao período de 2006 a 2012, que aponta que: “[...] quase dois a cada dez bebedores consomem
álcool de forma nociva, sendo bebedores abusivos ou dependentes” e as mulheres fazem parte da
população mais vulnerável, pois apresentaram maior índice do uso nocivo do produto neste período.
Para termos uma ideia do absurdo deste modo de produzir, só no Brasil, segundo a Associação
Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), os gastos no ano passado com os problemas
gerados à saúde pelo uso de álcool e drogas, custaram para os cofres públicos cerca de R$ 1,8 bilhão.
O governo federal gastou R$ 1,8 bilhão por meio do SUS (Sistema Único de Saúde) no
atendimento de 3 milhões de dependentes químicos somente no ano passado. O dinheiro
foi destinado para a Rede de Atenção Psicossocial, responsável pelas ações voltadas para
usuários de drogas e álcool no país. Esse montante representa 2,5% do Orçamento do governo
federal para a área da saúde. Do total de R$ 1,8 bilhão, 34% foram usados em internações e
atendimentos hospitalares. Outros R$ 490 milhões foram gastos no custeio de 2,5 mil leitos
exclusivos para o tratamento de dependentes químicos.

Em dez anos, o Ministério da Saúde diz ter triplicado o volume de recursos destinados para
a rede de atendimento. Em 2002, a verba era de R$ 619 milhões. Para este ano, a previsão é
de que chegue a R$ 2,1 bilhões (BOCÃO NEWS, 2012).
Há sem dúvida, algo errado nesta construção social mediada pela mercadoria, se focalizarmos
apenas este exemplo, mas não para por aí, se olharmos os sofrimentos aflorados desta relação homem e
capital via reprodução da mercadoria, poderemos constatar que o comportamento humano é moldado
ao bel prazer das empresas, com a ajuda da ciência e de seus setores mais avançados. Assim, as
preocupações dos capitalistas de serem assertivos nos seus objetivos econômicos, os fazem avançar
adentro de pesquisas neurocientíficas, que possam certificar que as ações dos consumidores irão
corresponder a tais expectativas de vendas.
A vida interna deve entrar como matéria básica para todos os profissionais de todas as áreas
relacionadas à economia, ao marketing e à administração em geral, em toda sua extensão e
subciências, que querem e precisam entender o comportamento econômico das pessoas e dos
consumidores, especificamente. As reações internas, que os indivíduos sequer notam, fazem
toda diferença no ‘agir’ do sujeito. Se escolhemos algo ou tomamos uma decisão econômica e
de consumo, essa é processada internamente e, muitas vezes, impossível de ser externalizada
verbalmente. Por mais que o sujeito queira colaborar, não entende o que acontece para que
ele aja de determinada maneira (CAMARGO, 2010, p. 66).
Nossas ações estão sendo administradas até mesmo internamente, não há muita margem para
liberdade ansiada pelo trabalhador que foge do trabalho na esperança de respirar outros ares. Esse

43
escape é ilusório, em medida que, fora do trabalho não lhe sobra espontaneidade, fica cada vez mais
evidente a perda de si mesmo em todas as esferas da vida.
Assim, como exemplo, podemos relacionar aqui outro problema gerado em tal processo,
os transtornos alimentares são recorrentes em tal estágio de desenvolvimento do capitalismo, ou
pelo excesso ou pela falta, já que a liberdade de escolha está cada vez mais reduzida. Os padrões
são lançados por meio das propagandas e, o consumidor cede ao prazer do paladar ou da estética,
o mercado ganha dos dois lados, e no futuro, em médio prazo, com um terceiro lado que é o da
recuperação da saúde. Novamente o ciclo se fecha da produção e da reprodução do capital, e os
distúrbios gerados por este movimento ampliam e intensificam o peso sobre os seres humanos no
interior desta sociedade contraditória.
A revista “Mente e Cérebro”, representante no Brasil da Scientific American, na edição
especial n. 11 de 2005, sob o título “Muito mais que só comer”, publicou uma discussão ampliada
sobre os hábitos alimentares e seus problemas. Esta edição trouxe a estimativa da época, segundo a
Organização Mundial da Saúde (OMS) de que “[...] no mundo 22 milhões de crianças com menos de
5 anos [...] eram [...] obesas”, e segundo a professora Marmo da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), “[...] em 20 anos, a obesidade triplicou” (LEAL, 2005, p. 42).
É preocupante e estarrecedor, saber que nossos pequenos são vítimas de todas as campanhas
de venda, que tentam educar do berço ao tumulo para o mercado, e não importando se a saúde será
prejudicada, por meio das artificialidades dos sabores, corantes e todos os elementos químicos usados
para ludibriar os consumidores. Até porque, um novo nicho de mercado se abre com a enfermidade
causada pela relação homem e mercadoria.
Para termos uma percepção do quão é sério os distúrbios alimentares neste atual estágio
de desenvolvimento do capitalismo, vejamos:
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assinou nesta terça-feira (19) portaria que cria a
Linha de Cuidados Prioritários do Sobrepeso e da Obesidade no Sistema Único de Saúde
(SUS). Dados do Ministério da Saúde revelam que o SUS gasta anualmente R$ 488 milhões
com o tratamento de doenças associadas à obesidade. A nova linha define como será o
cuidado, desde a orientação e apoio à mudança de hábitos até os critérios rigorosos para a
realização da cirurgia bariátrica, último recurso para atingir a perda de peso.

A obesidade é um fator de risco para a saúde e tem forte relação com altos níveis de gordura
e açúcar no sangue, excesso de colesterol e casos de pré-diabetes. ‘Este é o momento de o
Brasil agir em todas as áreas, prevenção e tratamento, atuando com todas as faixas etárias e
classes sociais, com um esforço pra quem tem obesidade grave’, ressaltou o ministro, durante
a apresentação da pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), que rastreou os gastos com
obesidade no SUS (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013).
E ainda no que diz respeito aos distúrbios alimentares:
De acordo com balanço da Secretaria de Estado da Saúde, a cada dois dias, em média, uma
pessoa é internada por anorexia ou bulimia nos hospitais que atendem pelo SUS (Sistema
Único de Saúde) no Estado de São Paulo. Somente nos primeiros sete meses do ano, foram
97 internações devido a estes distúrbios alimentares.

Em 2012, 165 pacientes precisaram de internação e 1.220 pacientes fizeram tratamento


ambulatorial no Estado de São Paulo contra os dois distúrbios (UOL, 2013).
Excesso ou falta de alimentação, distúrbios gerados por padrões de consumo, que aprisionam
os trabalhadores nesta teia de relações econômicas do capital que se desenvolvem sem princípios
e probidade. Há ainda problemas gerados pelo excesso, que ao invés de afetar o comportamento
alimentar, gera outras perturbações psicológicas, como a oniomania.
Doença do acumulo, na qual a felicidade está em possuir mais e mais objetos, o comportamento
destes indivíduos são marcados pela vontade de satisfazer suas necessidades na fugacidade dos
momentos efêmeros com a mercadoria, e principalmente na relação de troca no mercado. Assim,
estes compulsivos adquirem através das trocas econômicas, mercadorias e mais mercadorias, sem
nunca se satisfazerem completamente, e se envolvem em uma série de problemas financeiros, porque

44
a demasia em compras pode levar a um estado mal planejado, em que seus recursos não conseguem
cobrir os gastos. Assim, seus comportamentos são marcados por sofrimentos, devido à intrusão do
pensamento da necessidade compulsiva de adquirir produtos continuamente.
A oniomania, doença que ataca esse tipo de compulsivo, é caracterizada como um transtorno
de personalidade e mental, classificado dentro dos transtornos do impulso. Para o consumidor
compulsivo, o que lhe excita é o ato de comprar, e não o objeto comprado. Essa pessoa
‘tem vontade de adquirir, mas não de ter’, afirma o psicólogo Daniel Fuentes, coordenador
do Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas. Segundo ele, a maioria dessas pessoas é composta por mulheres, mas todas
possuem temperamento forte, são ágeis, dinâmicas, inquietas, perfeccionistas, possuem uma
desenvoltura social e cultural maior, são imediatistas e muito inteligentes. ‘O mais interessante
dos dados que a gente conseguiu com o grupo foi que essas pessoas têm tendência a ser mais
inteligentes do que a média das outras pessoas. De alguma forma essa vantagem intelectual
não é aplicada na vida, porque racionalmente são pessoas que, depois da compra, são capazes
de saber que fizeram besteira’, complementa. Na hora da compra, o craving (avidez) por
comprar fala mais alto. Os compulsivos por jogos, por exemplo, possuem uma fixação maior
que a fixação do viciado em cocaína (LOPES, 2001).
Os estudos destes comportamentos sugerem que tais pessoas sofrem paralelamente de outros
distúrbios de saúde, como os ligados ao alcoolismo, as drogas e problemas alimentares, e geralmente
as compras aparecem como uma alavanca psicológica, que vem tentar apaziguar os desconfortos
existenciais por meio da relação com os objetos, já que as relações com os outros seres humanos são
mais complexas e difíceis.
Giovanni Siri destaca que nossa identidade se baseia na relação com os semelhantes. ‘Em
momentos de ansiedade, quando se sentem frágeis ou mal-adaptadas, as pessoas podem tentar
suprir carências afetivas substituindo relações mais complexas pela aquisição de objetos,
que não as rejeitam nem as decepcionam’. ‘Há pesquisas demonstrando que o consumo é
menor quando as relações humanas são satisfatórias.’ O professor pondera que o mercado
atual, entretanto, com o interesse específico na venda, recorre a ‘alavancas psicológicas’
especializadas, justamente para responder as crises de identidade. Essas ferramentas são
capazes de despertar interesses e criar no consumidor uma falsa sensação de escolha autônoma.
‘As pessoas são aparentemente livres e têm acesso a um grande volume de mercadorias, Na
realidade somos bombardeados por uma rajada de produtos apresentados pela publicidade de
forma cada vez mais intensa e eficaz’ (CICERONI, 2007, p. 76).
Destarte, devemos reconhecer o grandioso papel da publicidade que trouxe uma nova
“filosofia” comportamental, e o antigo hábito de guardar ou poupar foi trocado pelo gastar, consumir
e antecipar através do crédito as rendas futuras em troca de mercadorias.
A função da publicidade, talvez a sua função dominante hoje, torna-se assim a de travar, em
nome dos produtores e vendedores dos bens de consumo, uma guerra incessante contra a
poupança e em favor do consumo (BARAN; SWEEZY, 1996, p. 131-132)
E, para enredar mais ainda o trabalhador às artimanhas do modo de produção capitalista, este
pode contar com o sistema de crédito dos bancos que trabalham com refinanciamento de dívidas, “[...]
em que um banco, em tese, seduz o cliente de outra instituição, oferecendo condições supostamente
melhores para migrar um empréstimo em curso” (SCIARRETTA, 2010, p. 9). Ou seja, ele não se
desvincula da corrente que lhe aprisiona, apenas lhe é dado mais algumas argolas.
Desta forma, com tais empréstimos, as empresas financeiras conseguem novos clientes, com
a transferência dos débitos, ou seja, como Magdoff; Sweezy (1982, p. 16), já haviam previsto: “Novos
suportes tornaram-se necessários, e foram proporcionados ao consumidor [...]”, para que a circulação
econômica da mercadoria siga seu curso perenemente.

CONCLUSÃO

O modo de produção capitalista é gerenciado por homens, geralmente donos de capitais, e


estes por sua vez são perspicazes, inventivos e sem princípios morais em correspondência a relação

45
capital e trabalho. Assim, tomam para si aliados como alguns ramos das ciências, com o intuito
de atrair, seduzir e conquistar os trabalhadores, para que estes os sirvam de forma inconsciente
produzindo e reproduzindo o capital. Neste rol de ramos científicos, estão profissionais da psicologia,
da antropologia, da sociologia, da neurociência, da economia, bem como do setor administrativo – que
através do departamento de marketing, entre outras ações, promove as estratégias de publicidade e
propaganda. Ou seja, o resultado dessa relação previamente elaborada, agindo sobre os trabalhadores,
se estabelece muitas vezes de forma dolorosa, pois ao “educar” de forma comportamental sob a forma
de uma coação velada, estabelecendo aos homens e mulheres um comportamento cada vez mais
consumista, despertou enfermidades sociais que só podem ser entendidas de forma sistematizada,
neste modo de produção de mercadorias e não em outros tempos. Por isso, pensamos ser extremamente
válido nos debruçarmos sobre está questão que trata da saúde do trabalhador, e tentar achar as causas
atuais de tais distúrbios, que afloram em seu corpo.
Pois, como disse Roudinesco, tal trabalhador “[...] deixou de pretender ser sujeito livre”, e
com a ajuda das substâncias químicas, ou psicotrópicas, foi transformado em um “[...] novo homem,
polido e sem humor, esgotado pela evitação de suas paixões, envergonhado por não ser conforme
o ideal que lhe é proposto” (ROUDINESCO, 2000, p. 14-15). E como o Soma8 usado no livro
“Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, estas substâncias trazem a normalização necessária à
lógica das relações capitalistas, sem confrontos e com muita resignação, onde o dever é produzir e
reproduzir o capital ad infinitum.

REFERÊNCIAS

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4., 2015. Foz do Iguaçu-PR. Anais eletrônico... Foz do Iguaçu: UNIOESTE, 2015. Disponível
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americana. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.
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G1. Não vamos “sentar em cima do dinheiro” esperando crise passar, diz Lula.
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IRO+ESPERANDO+CRISE+PASSAR+DIZ+LULA.html> Acesso em: 30 out. 2015.

8
O “Admirável Mundo Novo” que Aldous Huxley idealizou, há cerca de 70 anos, em 1931. A obra é uma “fábula”
futurista de uma sociedade completamente organizada, sob um sistema científico de castas, onde a vontade livre
fora abolida por meio de um condicionamento metódico, a servidão tornou-se aceitável mediante doses regulares de
felicidade quimicamente transmitida pelo “Soma” (a droga liberada do futuro), e onde as ortodoxias e ideologias eram
“propagandeadas” em cursos noturnos ministrados durante o sono (TENÓRIO, 2001).

46
GALBRAITH, J. K. O nôvo estado industrial. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
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Acesso em: 23 out. 2015.

48
A TERCEIRIZAÇÃO MUTILANTE:IMPACTOS PSICOSSOCIAIS DE UM
ACIDENTE NO SETOR ELÉTRICO
Laís Di Bella Castro Rabelo*
Julie Micheline Amaral Silva**
Carlos Alberto Faria Ferreira***
Anelisa Bonato da Silva****
RESUMO: O setor elétrico brasileiro exibe números alarmantes de acidentes de trabalho graves e fatais, associados à terceirização.
O presente texto apresenta um estudo de caso acerca de um acidente de trabalho mutilante sofrido por um eletricitário terceirizado em
uma cidade no interior de Minas Gerais. Objetivou-se analisar os impactos psicossociais do acidente e propor uma discussão acerca do
panorama do processo de terceirização, que através da dupla exploração da mais valia, provoca o cerceamento das condições de saúde
e segurança dos trabalhadores gerando uma avassaladora precarização do trabalho neste setor.
Palavras chave: Terceirização, Setor elétrico, Acidente de trabalho, Mutilação
ABSTRACT: The Brazilian power sector presents alarming numbers of serious and fatal labor accidents associated with the
outsourcing process. This paper shows a case study about a mutilating labor accident suffered by an outsourced electrical worker in a
small town of Minas Gerais. This study aimed to analyze the psychosocial impacts of such accident and to propose a discussion about
the scope of the outsourcing process, which through the double exploitation of the surplus value causes a trimming of health and safety
conditions of workers, thus generating an overwhelming precariousness of work in this sector.
Keywords: Outsourcing, Power sector, Labor accident, Mutilation

INTRODUÇÃO

1 O CENÁRIO DA TERCEIRIZAÇÃO NO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO

O setor elétrico, subdividido nas atividades de geração, transmissão e distribuição de energia,


é responsável por garantir o atendimento à demanda de eletricidade do Brasil. De acordo com dados
do Balanço Energético Nacional de 2014, a energia elétrica representa a segunda fonte energética mais
consumida do País, responsável por 17,1% da demanda total de energia em 2013. Deste modo, o setor
desempenha um significativo papel socioeconômico, uma vez que a utilização otimizada de recursos,
visando a garantia de energia barata e de qualidade, requer e atrai investimentos do capital público e
privado, promovendo o desenvolvimento do País e o fortalecimento de suas relações políticas.
Durante a década de 90 o setor elétrico brasileiro sofreu profundas mudanças, promovidas por
modificações no contexto socioeconômico do, como a então recente constituição de 1988, a inclusão de
empresas de energia no Plano de Desestatização Nacional do governo Collor, a abertura econômica para
o mercado externo, intensificação da globalização e a recessão. Visando estimular a competitividade
e aproveitando fatores como desregulamentação das relações trabalhistas e transferência do controle
acionário do capital público para o privado, houve a inserção da terceirização no setor, processo
que gradualmente se solidificou, culminando em uma proporção atual de aproximadamente 60% de
trabalhadores terceirizados.
O processo de terceirização é aquele em que uma determinada empresa, contratante, transfere
parte de suas atividades para outra empresa, contratada. Típico do sistema capitalista, a terceirização
tem embasamento na especialização do trabalho e minimização dos custos através de uma dupla
exploração da mais-valia. No Brasil, sua intensificação ocorreu na década de 90, impulsionada

*
Psicóloga e Docente do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Mestra e doutoranda em Psicologia do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora
orientadora de iniciação científica, Campos Morro do Cruzeiro, UFOP, Escola de Minas, Ouro Preto/Minas Gerais/Brasil.
E-mail: laisdibella@gmail.com.
**
Graduada em Psicologia pela UFMG - campus Pampulha, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo
Horizonte/Minas Gerais/Brasil. E-mail: julie.amaral50@gmail.com.
***
Graduando em Engenharia de Produção pela UFOP, Campos Morro do Cruzeiro, UFOP, Escola de Minas, Ouro
Preto/Minas Gerais/Brasil. E-mail: caffp@hotmail.com.
Graduanda em Engenharia de Produção pela UFOP, Campos Morro do Cruzeiro, s/n, Bairro Bauxita, UFOP, Escola
*****

de Minas, Ouro Preto/Minas Gerais/Brasil. E-mailanelisa.bonatos@gmail.com.

49
pela abertura de mercado, privatização e globalização da economia. Assim, devido a tal conjunção
de fatores e visando a manutenção da competitividade, a terceirização tem sido majoritariamente
utilizada como ferramenta para redução de custos e externalização das relações trabalhistas.
Os riscos dessa flexibilidade operacional e suas consequências para a classe trabalhadora,
como a diminuição dos benefícios e salários, a fragilidade dos vínculos laborais e a perda de forças
sindicais, são drásticos, principalmente quando nos referimos à saúde física e psíquica dos terceirizados.
No Brasil existem 12,7 milhões de trabalhadores assalariados prestando serviços a outras empresas,
no entanto, considera-se que esse número não corresponda à realidade do total de trabalhadores
terceirizados, já que parte deles está inserida no mercado informal. E, ainda, a média salarial é cerca
de 24,7% menor que dos trabalhadores de quadros próprias das contratantes (CUT, 2014).
O setor elétrico, considerado de alto risco, apresenta estatísticas relacionadas à segurança
do trabalho destoantes do restante das demais atividades econômicas do País. O risco é inerente à
atividade do eletricitário, pois engendrar energia elétrica é ter que lidar com um produto invisível e
inodoro de alta complexidade. A taxa de acidentes fatais típicos de todos os trabalhadores brasileiros
foi calculada em 5,8 por 100.000 trabalhadores em 2011, já entre trabalhadores do quadro próprio
das empresas do setor elétrico essa taxa chegou a 16,7 por 100.000. A situação é ainda muito mais
grave nas empresas terceirizadas, nas quais a taxa foi de 44,3 mortes em cada 100.000 trabalhadores
(DIEESE, 2010; DIEESE, 2013). Em análise de dados coletados entre 2002 e 2011 acerca do setor
elétrico Brasileiro, pela Fundação Comitê de Gestão Empresarial (FUNCOGE), observa-se que os
números de acidentes fatais e a taxa de mortalidade entre os terceirizados é significativamente maior
do que as mesmas taxas para os trabalhadores de quadro próprio. Foram 139 acidentes fatais entre
empregados do quadro próprio, enquanto que no quadro das contratadas, foram 609 mortes. Neste
mesmo período, ocorreram 8.940 acidentes típicos com afastamento no setor elétrico, entre os quais
se inclui um elevado número de mutilações.
A Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), especificamente, tem reduzido seu
quadro efetivo de forma crescente, subcontratando a mão de obra através da habilitação de empresas
terceiras por processo licitatório. Em 2008 os terceirizados representavam 40% da força da força de
trabalho em sua atividade fim e em 2012 já alcançavam 60%. Dos 110 trabalhadores mortos em obras
das CEMIG entre 1999 e 2013, 80% eram terceirizados (WROBLESKI, 2014).

2 OBJETIVO E METODOLOGIA

Diante do panorama alarmante do crescimento da mão de obra terceirizada no setor elétrico


brasileiro e suas graves consequências à saúde e segurança dos trabalhadores, buscou-se analisar os
impactos psicossociais de um acidente de trabalho sofrido por um trabalhador terceirizado da CEMIG.
Para tanto, realizou-se entrevista aberta e em profundidade, com duração de três horas,
em janeiro de 2015, com um trabalhador eletricitário vítima de acidente de trabalho, buscando
compreender os impactos psicossociais do ocorrido. A entrevista teve como objetivo principal a
realização de parecer para fins de assistência técnica judicial, papel exercido por uma das autoras do
artigo, de forma que este trabalho se trata, em parte, de um relato de experiência profissional.
A partir do parecer técnico psicológico elaborado para o processo judicial do trabalhador,
com auxílio dos alunos de graduação em psicologia da UFMG e em engenharia de produção da UFOP,
orientados pela psicóloga do trabalho e professora orientadora de iniciação científica, foram levantadas
informações sobre o setor elétrico brasileiro, especialmente, sobre acidentes com trabalhadores
terceirizados, nos principais bancos de dados sobre o setor, como Departamento Intersindical de
Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), FUNCOGE e Empresa de Pesquisa Energética
(EPE), somadas à revisão teórica de artigos (buscas realizadas na base Scielo) e reportagens sobre
o setor elétrico e também acerca dos temas relacionados aos impactos psicossociais do acidente
sofrido pelo eletricista em foco. Desta forma, a metodologia eleita preconizou uma discussão
acerca das dimensões psíquica e social de um estudo de caso de um acidente de trabalho atrelada à

50
análise do panorama do processo de terceirização e, consequente, precarização do trabalho no setor
elétrico brasileiro.

3 ESTUDO DE CASO

3.1 O trabalho como eletricitário terceirizado

L.N.S., 40 anos, ensino fundamental incompleto, trabalhou como eletricitário, na manutenção


de rede elétrica, de 2003 a 2012. Durante esse período foi empregado por nove empreiteiras,
consecutivamente, que prestavam serviço para a CEMIG.
Apesar da mudança de registro de empresa empreiteira na carteira de trabalho, devido a
diferentes processos de licitação para a terceirização, L.N.S. afirma que pouco se alterava na
configuração do trabalho, inclusive tendo repetidas vezes os mesmos empregadores: “A gente
costuma falar na empreiteira que muda só o batedor, o chicote continua sendo o mesmo, não
muda quase nada (sic)”.
Ao se referir ao empregador e à organização e condições de trabalho como “batedor” e
“chicote”, aponta o panorama precário ao qual era submetido como trabalhador terceirizado. L.N.S.
relata que a conjuntura de trabalho dos eletricitários terceirizados é crítica e precária, sem condições
adequadas de segurança, alimentação e assistência médica, corroborando com as estatísticas
levantadas pelas pesquisas acerca do setor. Ele refere-se, principalmente, à pressão temporal e por
produção, ao tratamento desrespeitoso que recebia de seus encarregados, aos constrangimentos éticos
e aos riscos de acidente.
L.N.S. afirma que cotidianamente trabalhava sob pressão para cumprir metas relacionadas a
realizar um alto número de manutenções de rede elétrica no espaço de tempo mais reduzido possível.
Neste sentido, sua equipe de trabalho era pressionada a liberar as redes elétricas em que atuavam
dentro de um prazo máximo de quatro horas, independente da natureza do serviço a ser executado.
Constantemente, ele não desfrutava de intervalos para as refeições, almoçava por volta de dez
horas da manhã, dentro do veículo da empresa, a caminho do local do trabalho, ou sequer conseguia
se alimentar durante o dia. Além da pressão temporal, também era submetido à pressão por resultados.
Os funcionários deviam sempre entregar a rede na qual deram manutenção em perfeitas condições
de funcionamento. Para isso, em muitas ocasiões, ele e colegas, trabalhavam até a exaustão. Os
intervalos não usufruídos e o trabalho realizado após o final do expediente para garantir a qualidade
da manutenção não eram contabilizados como horas extras.
L.N.S. relata também que, em muitas ocasiões, os trabalhadores eram impelidos a mentir à
empresa contratante, CEMIG, sobre acidentes sofridos pelos terceirizados. Descreve, por exemplo,
certa situação em que devido a acidente com o carro da empresa, foi impelido pela empreiteira, na
qual trabalhava, a mentir para funcionários da CEMIG sobre o ocorrido, tendo que relatar informações
falaciosas acerca de quem estava dirigindo o veículo e como acorreu o acidente.
Os terceirizados também eram obrigados a omitir à CEMIG o não uso ou uso indevido de
Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), muitas vezes preteridos devido à pressão por produção.
Apesar de necessários às tarefas, o não uso de EPIs era, muitas vezes, incentivado pelos encarregados
em prol da produção, prática compactuada pela empresa contratante.
L.N.S. também descreve que as inspeções de materiais das empreiteiras feitas pela CEMIG
eram burladas. Quando havia a notícia da inspeção, os funcionários eram impelidos pela empreiteira a
fazer troca de materiais e equipamentos, maquiando as condições de trabalho dos eletricitários: “Por
exemplo, se vai fazer inspeção naquele caminhão, vai lá e troca tudo (sic)”.
Além disso, conta que o ambiente de trabalho era permeado por desrespeito, principalmente
de encarregados em relação aos eletricitários, que lhes direcionavam tratamentos grosseiros e eram
indiferentes às suas necessidades básicas como cansaço e fome.
O cotidiano experienciado por L.N.S e seus colegas eletricitários terceirizados configura-
os como vítimas de assédio moral, pois se referem a vivências sistemáticas e contínuas de

51
comprometimento de sua saúde física e psíquica, já que a produção tornava-se primordial em relação
à segurança do trabalhador, sempre em segundo plano. Além disso, os trabalhadores eram impelidos
a executar práticas, como omissão de acidentes e não uso de EPIs, que iam contra os valores próprios.
E, ainda, as práticas de tratamento grosseiro e indiferente, que recebiam, rotineiramente, constituem
uma degradação do clima de trabalho (SOARES; OLIVEIRA, 2012).
Neste panorama, o risco e o medo de acidente eminente eram constantes:
Então é muitas condições críticas que trabalha, até chegar no acidente. (sic).

Poderia ter acidentado qualquer dia. Pequenos acidentes acontecem todo dia
na empreiteira (sic).
L.N.S. afirma que a segurança, os treinamentos, os equipamentos, o monitoramento e os
programas de prevenção de acidentes, fornecidos pelas empresas terceirizadas são insuficientes, e que
os riscos e acidentes reais não são devidamente tratados.
Exposto a todos os riscos, assédios e condições precarizadas de trabalho supracitados, após
dois anos prestando serviços para a mesma empreiteira e tendo passado por vários acidentes sem
maiores consequências, sofreu seu acidente mais grave.

3.2 O acidente

Em uma quinta-feira, dia 11 de abril de 2012, com cansaço acumulado de 16 dias de trabalho
seguidos, L.N.S. afirma ter pensado em faltar ao trabalho, pediu, inclusive, ao seu supervisor que o
liberasse: “Falei: hoje eu tô muito cansado. Ele falou: não, hoje eu preciso do cê (sic)”.
Neste dia, os trabalhadores foram designados pelas reclamadas para executar “serviço
emergencial não programado” no município de Cruzeiro da Fortaleza, em Patrocínio/MG. L.N.S. foi
encaminhado pelo seu encarregado para substituir duas suspensões de vidro e um isolador em um
poste de madeira. Ele foi designado a esta tarefa por ser o único trabalhador na equipe com habilidade
e prática para escalar postes de madeira com uma espora de bico (equipamento de metal com pontas
afiadas que é fixado aos pés por correias). Juntamente com dois ajudantes, um deles inexperiente
e o segundo que pertencia a outra equipe, L.N.S. se encaminhou ao poste de madeira, que ficava
distante dos demais colegas da equipe e fora do seu campo visual, de forma que se comunicavam
através de gritos. O eletricitário aguardava a sinalização sonora, em relação ao desligamento da rede
elétrica, para então dar início ao seu trabalho. Logo quando escutou o sinal- “Tá liberado!”, efetuou
a escalada, porém, a rede estava energizada e L.N.S. sofreu forte descarga elétrica.
Ele perdeu a consciência imediatamente, ficou suspenso no poste, pela linha de vida, até que
os ajudantes avisassem aos demais da equipe, que estavam também prontos a iniciar seus trabalhos,
de que a rede estava energizada e buscassem uma escada no veículo da empresa para resgatá-lo no
poste. Após o desligamento da rede, um colega eletricista o levou, ainda desacordado, ao solo e a
equipe o socorreu na carroceria de uma pequena caminhonete até se encontrarem com uma viatura
do corpo de bombeiros que o encaminhou ao atendimento no pronto socorro da cidade de Patrocínio.
O eletricitário acordou cerca de 20 minutos após o acidente, já a caminho do atendimento médico.
O encarregado afirmou não ter gritado o sinal de liberação. Entretanto, os ajudantes de L.N.S.
não tentaram o impedir de subir na Rede, o que indica que eles corroboraram com a escuta do sinal
afirmando desligamento da mesma e o início imediato dos trabalhos. Além disso, os demais colegas
também estavam prontos a iniciar seus trabalhos, desconhecendo que a rede estava energizada, o que
indica o risco real de outros acidentes na equipe naquela situação.
Após o primeiro atendimento no pronto socorro de Patrocínio, L.N.S. foi encaminhado ao
Hospital Escola da Universidade Federal de Uberlândia, nesta cidade. Em seguida, teve seus dois
antebraços e parte da perna esquerda (panturrilha e pé) amputados em decorrência de necrose causada
pela descarga elétrica sofrida. A complexidade dos danos o tornou incapacitado a exercer as atividades

52
nas quais trabalhava, e também, impossibilitado de exercer atividades laborais de qualquer espécie,
além de ter suas vivências cotidianas totalmente alteradas.

3.3 Acusação de suicídio

O acidente sofrido por L.N.S. traz consequências para além das irreversíveis perdas
físicas. As mutilações em seu corpo e a experiência de passar perto da morte provocam também
impactos psicossociais significativos, relacionados às consequências avassaladoras do acidente à sua
sociabilidade e, logo, à sua saúde psíquica.
O acidente de L.N.S. relaciona-se a uma possível falha de comunicação da equipe, enraizada
nas condições precárias do trabalho terceirizado que afetaram consideravelmente sua prevenção,
principalmente no que se refere à pressão temporal da produção e a ausência de equipamentos
importantes como um aparelho de walktalk e um conjunto de aterramento instalado, que indicam o
descumprimento de vários itens da NR-17.1 Contudo, como se não bastasse ser vítima de um acidente
gravíssimo que lhe gerou danos corpóreos irreversíveis, o trabalhador ainda foi vítima de uma
culpabilização pelo próprio acidente, pois seus empregadores lhe acusaram de tentativa de suicídio.
L.N.S. relata a acusação com grande incômodo, pois além de sentir-se injustiçado, já que não
tinha a menor intenção de acabar com a própria vida e sim apenas de realizar seu trabalho, foi ferido
em relação a seus valores éticos e religiosos, de forma que se sente humilhado já que muitas pessoas
associaram seu acidente com uma tentativa de suicídio:
O que mais mata, o que mais deixa, às vezes, eu pensativo, é nem o acidente, é como eles
acusou, eu como é que o acidente aconteceu, porque que aconteceu, entendeu? Eles acusaram
que eu queria tirar a própria vida, sabe, isso aí, é... pode, hoje pode ter indenização, eu
posso conseguir mão, mas uma coisa que ninguém conserta é isso aí, sabe? [...] Hoje tem
cara que me vê na rua e acha que eu sou um suicida, entendeu? (sic).
A prática de responsabilizar os trabalhadores pelos seus próprios acidentes, psicologizando
suas causas e negligenciando todos os fatores organizacionais que os construíram é uma alternativa
recorrente das empresas na tentativa de se eximirem de suas responsabilidades em relação à vida
e à morte de seus empregados. Análises reducionistas que desconsideram que todo acidente tem
uma história organizacional, com causas múltiplas e circunstâncias materiais e sociais, visam
construir a atribuição de culpa ao detectar o “ato inseguro” do trabalhador (ALMEIDA, 2003,
2006; VILELA, 2003).
Neste sentido, L.N.S. além de vítima do seu próprio acidente, também passou a carregar
o fardo da sua causa a partir da construção de uma hipótese falaciosa de tentativa de suicídio que
lhe constrange socialmente. Assim, a teoria inventada da culpa do trabalhador pelo seu próprio
acidente refere-se à conveniência de um modelo para perpetuar a impunidade na investigação das
suas causas (VILELA, 2003).

3.4 Abalos na qualidade de vida

Em decorrência das graves mutilações em seus três membros, L.N.S. está impossibilitado de
realizar inúmeras atividades cotidianas. Ele consegue se locomover pulando com a única perna, ou
com uma prótese na perna que lhe falta. Contudo, já sente dores no joelho da perna sadia. Para além
disso, L.N.S. não consegue banhar-se, trocar uma lâmpada, abrir uma porta, ligar a televisão, ir ao
banheiro, dirigir, cozinhar, manusear sabão e toalha, tomar um copo d’água, abrir o forno, puxar uma
cadeira para se sentar, levantar-se, abrir uma torneira, usar o computador, vestir-se, abrir uma janela,
telefonar, barbear-se, escovar os dentes, abrir a geladeira ou alimentar-se sem ajuda de adaptações ou
dos parentes, dentre outras tarefas corriqueiras ou qualquer outra de maior complexidade.

1
A NR-17 indica que a organização do trabalho e os equipamentos que compõem um posto de trabalho deve ser
adequados às características psicofisiológicas dos trabalhadores e à natureza do trabalho a ser executado, considerando a
exigência de tempo e a comunicação da equipe, dentre outros aspectos.

53
Esse panorama de impossibilidades o tornou um adulto completamente dependente de
sua família. O eletricitário não consegue, por exemplo, ficar sozinho em casa, sem que sua esposa
deixe água e alimentação estrategicamente localizadas, para que consiga alcançar e enfrenta sérias
dificuldades para ir ao banheiro sozinho, pois apesar de já ter adaptado várias facetas da sua casa, não
consegue se vestir sozinho.
Além disso, suas atividades de lazer foram profundamente comprometidas. L.N.S. gostava
de cozinhar, visitar fazendas, visitar o pai, no interior de Minas Gerais, pescar, viajar cos amigos da
igreja da qual faz parte, consertar objetos. Hoje passa a maior parte do tempo pensando e articulando
formas de se adaptar e viver melhor, mas sempre carrega a frustração de não conseguir executar os
planos que contempla, necessitando sempre das mãos dos seus parentes.
A dependência é grande fonte de sofrimento, visto que L.N.S. se vê como encargo pesado
para seus familiares. Além disso, sofre um severo cerceamento de sua privacidade, pois não pode
mais estar sozinho e necessita ter seu espaço íntimo constantemente invadido. Devido ao prejuízo
severo de seu pragmatismo, por exemplo, os amigos já o não chamam pelo portão, mas entram na
casa, pois sabem que o abrir é uma tarefa impossível para L.N.S. Além disso, sua esposa é, muitas
vezes, a responsável por sua higiene pessoal.
O panorama de dependência repercute em uma difícil troca de funções dentro do âmbito
familiar. L.N.S. antes era ativo na manutenção da vida doméstica e hoje, é passivo e condicionado à
disponibilidade filhos e esposa:
Pensa num cara que gostava de cuidar da família: era eu, tudo, tudo era eu, eu gostava
de fazer tudo (sic).
Sua dependência faz, ainda, com que receba de amigos e familiares um tratamento
infantilizado, que lhe incomoda muito:
Eu chego na casa dos pais da minha esposa e eles me tratam como criança: ôh L.N.S., cê
vai dormir ali (sic).
Outra grave alteração na qualidade de vida do L.N.S. em decorrência do acidente diz respeito
às alterações do seu padrão de sono. Ele sofre constantemente com insônias, durante as quais os
pensamentos referentes ao trauma do acidente são constantes:
Eu não durmo de noite, pensando nas possibilidades daquele dia (sic).
E as deformações físicas o impedem de encontrar uma posição confortável para dormir,
tornando o sono ainda mais dificultoso.
Além das inúmeras limitações e dificuldades de readaptação, ele também vivencia sensações
fantasmas referente aos membros faltantes, ou seja, tem a impressão de presença dos membros
mesmo com eles ausentes, sendo em algumas ocasiões, percepções dolorosas. O desconforto gerado
pela sensação, comum nas amputações de membros superiores e inferiores, reduz significativamente
a qualidade de vida de pessoas amputadas (DEMIDOFF, PACHECO; SHOLL-FRANCO, 2007).
Neste sentido, as sensações fantasmas dificultam ainda mais a vivência de L.N.S. com as perdas
decorrentes do acidente.

3.5 Estigma social e abalos na autoestima

As profundas e irreversíveis mudanças na imagem corporal de L.N.S. em decorrência do


acidente de trabalho impactam significativamente suas relações interpessoais. O primeiro impacto do
abalo da imagem corporal foi quando sua filha caçula não conseguiu ir visita-lo no hospital, temendo
vero pai ainda enfaixado e sem os membros. A imagem corporal deteriorada afetou a relação com a
filha e foi com grande sofrimento que, aos poucos, L.N.S. teve que reconquistá-la.
No âmbito familiar as adaptações quanto à imagem corporal resultante do acidente foram,
aos poucos, estabelecidas, entretanto, cotidianamente, as mutilações sofridas em seus membros
geram um olhar perplexo das pessoas em geral, que provocam em L.N.S. extremo constrangimento e
o abalam emocionalmente:

54
Hoje eu não dou conta de sair de casa muito, eu daqui na igreja porque o pessoal daqui da
rua mais ou menos já me viu, já não tem mais curiosidade. Mas depende do lugar que eu
vou... As vezes que eu vou na UFA ainda, quando eu entro naquela sala, lá tem uma tela de
60 polegadas, todo mundo tira o olho dela e olha pra mim... Aquilo é terrível (sic).
Neste sentido, L.N.S. é vítima de um estigma social, ou seja, sofre imputação de atributos de
inferioridade comum às pessoas portadoras de característica desprezadas pela sociedade. O estigma é
a expressão uma imagem social deteriorada. Um dos principais motivos de estigmatização refere-se à
presença de deformidades físicas corporais que podem ser observadas no contato visual (GOFFMAN,
2008). Aquele que não corresponde às expectativas acerca da aparência corporal torna-se passível
de exclusão social, pois é tomado como desacreditado e diminuído (BOTELHO, 2012; GOFFMAN,
2008). O estigma gera uma inabilitação para aceitação social. A imagem corporal desviante desperta
intolerância, incômodo e estranheza. O corpo que foge ao esperado e ao simétrico se afasta da imagem
do que é eficiente (AMARAL, 1994).
Os prejuízos em sua estética corporal e no seu pragmatismo provocam severas restrições nas
possibilidades de vida de L.N.S., que praticamente encerra seu cotidiano dentro das paredes da sua
casa: “Tem mais de ano que meu mundo é minha casa”.
O isolamento social refere-se também à relação entre imagem corporal, formação de
identidade e construção de autoestima.
Considerando a identidade como uma construção social que é perpassada pela imagem
corporal, o estigma, ao indicar um desvio ao padrão, provoca obstáculos dolorosos para autoafirmação
e para a auto aceitação. Neste sentido, a autoestima é prejudicada quando não há uma inserção positiva
em sociedade, principalmente quando o estigma social indica a noção de um corpo pouco eficiente.
Sobre sua autoestima, L.N.S. afirma
Assim, a gente num mostra, mas fica muito baixa, entendeu? Baixa por que? É que nem
eu te falo: o que eu sou hoje? Eu sou deficiente, querendo ou não querendo, eu sou sim,
deficiente, eu deixei de ser eficiente. E ser deficiente não é bom pra ninguém, as maneiras
que as pessoas te olham... (sic).
Desde o acidente, L.N.S., passou a ter crises de choro, principalmente relacionadas ao
sentimento de inutilidade social. Apesar de todos seus incontáveis esforços de adaptação, ele relata a
sensação de uma eminencia de sintomas depressivos:
Eu sou na verdade um cara neutro, eu num dou conta da fazer nada... num dou conta de
tomar banho... Cê passou de eficiente pra deficiente. Às vezes eu tenho medo de talvez, um
tranco futuro a gente afundar dentro de um quarto e num querer sair mais. Já passei dias
sem querer sair do quarto (sic).
L.N.S., com ajuda especializada, tem conseguido alguns ajustamentos como talheres adaptados
aos antebraços, mas sempre esbarra em severas limitações para a reconquista de sua autonomia e em
decorrência disso, a vivência do trauma do acidente reverbera de forma dolorosa em seu cotidiano:
Eu achei que ia ser mais fácil viver, a gente finge de forte, na verdade eu finjo pela minha
família. Cê acorda de madrugada, de noite, pensando na possibilidade, porque cê foi
trabalhar naquele dia... Se eu tivesse colocado só uma mão na rede, talvez tinha me sobrado
uma mão, porque falta de duas mãos é complicado (sic).
Ao afetar as relações sociais, sentimentos de incapacidade e desprestígio, provocam
o afastamento de círculos de amizades e familiares aumentando significativamente o risco do
desenvolvimento de transtornos de humor como a depressão (BARBUTTI, SILVA, ABREU, 2008).

3.6 Cerceamento da vida social

Os impactos na identidade social de L.N.S. frutos das consequências avassaladoras do estigma,


somados aos sérios limites de pragmatismo e autonomia, acarretam um cerceamento avassalador em
sua vida social, mas que não se reduz a ele próprio, mas atinge também aqueles que o rodeiam.

55
Sua esposa, seus três filhos e o enteado com os quais mora, passam boa parte do tempo lhe
prestando auxílio e cuidado. Os familiares têm sua rotina severamente alterada, tendo em vista a
necessidade constante de acompanhamento de L.N.S., para auxiliá-lo em tarefas, de todas as ordens.
O cotidiano familiar também foi profundamente abalado a nível financeiro, já que
a aposentadoria de L.N.S. é inferior ao salário que recebia durante o pacto laboral. A renda é
complementada com o trabalho da esposa como faxineira diarista, porém sua atividade laboral é
instável e as necessidades constantes do marido a impedem de investir mais tempo sem seu próprio
trabalho. A família conta hoje com menos recursos financeiros comparado ao período anterior
ao acidente e, além disso, têm mais gastos e adquiriram dívidas em decorrência dos tratamentos
necessitados por L.N.S.
O contato de L.N.S. com os amigos passou a depender de que eles lhe façam visitas
domiciliares. Os membros da igreja, da qual L.N.S. participa, por solidariedade, não mais promovem
viagens e passeios, como era de costume, para evitar que o eletricitário seja excluído.

3.7 Mutilação laboral

O acidente de L.N.S., lhe corrompe o corpo e, neste sentido, o mutila não só os membros, mas
lhe tira também suas possibilidades de existir como trabalhador, como indivíduo que contribui para
sua sociedade. De “eficiente para deficiente”, após o acidente, de eletricitário ativo, L.N.S. passou a
se sentir neutro, sem função: “O neutro da rede, sem a rede, ele num é nada, neutro é neutro”.
L.N.S. ainda se considera eletricista, sente saudades do seu cotidiano laboral, gosta de se
encontrar com colegas de profissão e conversar sobre o antigo trabalho e relata com grande lástima a
impossibilidade continuar a exercer sua atividade.
O afastamento do trabalho é fonte de grande sofrimento e de vazio existencial. (LIMA,
2003). A perda do trabalho gera traumatismo social generalizado: detrimento de referência no espaço
e no tempo, sentimento de inutilidade, crises de identidade, baixa autoestima, ressentimento, sensação
de abandono, de incompetência, de frustração e culpa; instabilidade emocional, caracterizada por
insegurança, ansiedade, angústia, estresse e depressão. Além disso, a ruptura com o meio laboral
relaciona-se à impotência em se projetar no futuro, esfacelamento do status social, desaparecimento
dos vínculos com os outros, sentimento de exclusão social, abalo das relações familiares e sociais;
mudanças no poder aquisitivo e pode gerar abuso de drogas e de álcool, deterioração da saúde física
e até mesmo tentativas de suicídio (CLAVIER apud LIMA, 2003; DOPPLER, 2007).

3.8 Interrupção de sonhos e planos

As consequências avassaladoras do acidente de trabalho na vida de L.N.S. não cessam na


esfera laboral. Ele vivencia uma severa interrupção em diversas facetas de sua vida, sofrendo em ter
seus sonhos e planos futuros completamente frustrados: “Os sonhos que eu tinha, eles foi cortado (sic)”.
L.N.S. planejava se aposentar com o trabalho de eletricitário, aos 40 anos de idade e
continuar trabalhando como autônomo, sonhava em comprar o próprio barco para pescar e se tornar
pastor. Apesar de continuar frequentando os cultos e os eventos da igreja, torna-se pastor se tornou,
para L.N.S., impossível, pois está impedido de usar as mãos para fazer batismos, pregar, manusear
equipamentos, como microfone e a própria bíblia.
Ao pensar no futuro, L.N.S. não consegue traçar planos felizes, ao contrário preocupa-se
seriamente em como as suas limitações decorrentes das mutilações serão ainda piores na velhice:

56
Hoje eu fico pensando na vida futura, viver até 60 anos [...] é cadeira de rodas, um cara de
60 anos, talvez eu não dou conta de andar com a perna mecânica, ou talvez anda né. [...]
Mas uma velhice muito judiada (sic).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caso apresentado, consonante com a literatura estudada, explicita algumas consequências


avassaladoras do regime de trabalho terceirizado no setor elétrico. O acidente sofrido por L.N.S. está
relacionado às condições precárias do trabalho que afetaram consideravelmente a possibilidade de
sua prevenção. Os impactos do acidente de trabalho do eletricitário vão além da esfera individual e
indicam também uma questão sociopolítica. Os acidentes graves e fatais sofridos por grande parcela
da classe trabalhadora terceirizada do País significam prejuízos para os sistemas de saúde pública,
previdência e para o próprio sistema trabalhista.
O trabalhador eletricitário terceirizado ao vivenciar um cerceamento de sua saúde e segurança,
além da diminuição dos benefícios sociais, salários mais baixos, ausência de equipamentos de proteção,
trabalho sem registro em carteira e perda da representação sindical (MARCELINO, CAVALCANTE,
2012; MARTINEZ, LATORRE, 2008), está inserido em uma realidade que pode ser equiparada a
uma escravidão da era moderna, que o mutila todos os dias, física, psíquica e socialmente.
A terceirização, ao promover a dupla exploração da mais valia dentro do contexto do
capitalismo flexível, favorece a produção de lucros em detrimento da vida da classe trabalhadora
a expondo a acidentes de trabalho graves e fatais, com consequências imensuráveis. Em 2014, a
CEMIG anunciou um lucro líquido de 3,137 bilhões de reais (VALOR ECONÔMICO, 2015), ao
passo que L.N.S se esforça em viver com seus três membros mutilados e com todos os graves impactos
psicossociais do acidente de trabalho sofrido quando prestava serviço terceirizado a essa empresa.
Deste modo, verifica-se a necessidade de mobilização de esforços para o cerceamento do
processo de terceirização no mundo laboral, como o impedimento de projetos de lei tais quais o PLC
30/2015, a ser votado no senado, que visa a legalização da terceirização para atividades fim, fato que
expandiria a realidade laboral degradante e suas consequências avassalantes apresentadas neste trabalho.

REFERÊNCIAS

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da ampliação da análise. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 10, n.
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fecha. Dossiê acerca do impacto da Terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a
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57
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as-de-escravos/>. Acesso em: 2 mar. 2015.

58
MEIO AMBIENTE DE TRABALHO E PROCESSO DE “BANALIZAÇÃO DO
MAL”:AS CONSEQUÊNCIAS DA “AVALANCHE” NEOLIBERALIZANTE
Júlia Lenzi Silva*
Juliana Presotto Pereira Netto**
Adriano Roque Pires***
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo discutir as consequências pessoais advindas da aplicação do receituário neoliberal,
tomando como ponto de partida a análise das dinâmicas relacionais dentro do meio ambiente de trabalho. Através do método dedutivo
com aporte em revisão bibliográfica, pretende-se salientar o processo de “banalização do mal” como consequência da ausência de
percepção do sofrimento próprio e alheio como injusto. Por meio de tal abordagem, intenta-se explicar a aparente frouxidão dos laços
de solidariedade e reconhecimento entre trabalhadores na atual dinâmica do capitalismo flexível, o que tem dificultado a organização
coletiva e a luta contra a supressão de direitos.
Palavras-chave: Meio ambiente do trabalho, Neoliberalismo, Sofrimento, “Banalização do mal”
ABSTRACT: This paper intends to discuss the personal consequences coming from the application of the neoliberal theory. The
starting point is the analysis of the dynamics of interpersonal relationships within the working environment. Through deductive method
based on bibliographical review, this paper intends to highlight the process of “trivialization of evil” as a result of lack of awareness
of own and others suffering as unfair. Through such approach, attempts to explain the apparent laxity of the ties of solidarity and
recognition among workers in the current dynamics of flexible capitalism, which has hindered collective organization and the fight
against suppression of rights.
Keywords: Working environment, Neoliberalism, Suffering, “Trivialization of evil”

INTRODUÇÃO

Filiando-se às correntes críticas do pensamento1, este artigo tem como propósito discutir
as consequências nefastas que a aplicação do receituário neoliberal gera no meio ambiente de
trabalho, destacando o processo de “banalização do mal”, o qual promove o afrouxamento dos laços
de solidariedade e empatia entre os trabalhadores ao promover a percepção do sofrimento como
natural, fruto das diferenciações existentes entre os seres humanos e das respostas individuais ao
paradigma da competitividade, desvinculando-o do conceito de injustiça. Propõe-se uma análise mais
centrada nas questões da subjetividade afetadas pelo meio ambiente do trabalho, tendo em conta que
as dinâmicas relacionais ali existentes condicionam, ainda que parcialmente, os processos de saúde e
doença, resignação e revolta e, não raro, de vida e morte dos trabalhadores e trabalhadoras.
Por meio de método dedutivo calcado em análise bibliográfica, pretende-se ressaltar que,
para além das consequências macro individuais mais visíveis, como os altos índices de desemprego
e a supressão dos direitos sociais, a “avalanche neoliberal” que se abateu sobre os países europeus
em crise e ameaça atingir, uma vez mais, os países latino-americanos – que, nos últimos anos, tem
apresentado propostas reformistas conciliatórias para o desenvolvimento do capitalismo com alguma
dose de justiça social –, também opera no âmbito pessoal, por meio da reafirmação da desigualdade
social como produto natural das diferentes capacidades de cada ser humano quando inserido na
lógica de mercado. Nesse sentido, segundo o referencial teórico adotado por este trabalho, os
discursos acerca da diferenciação natural acabam gerando os processos de clivagem do eu e, por
consequência, dilatando, no tempo, a suportabilidade de situações abusivas, indignas e de extremos
sofrimentos no trabalho.

*
Graduação e Mestrado em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e
Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Docente nos cursos de Direito da Faculdade de Educação
São Luís de Jaboticabal/SP e Faculdade Escola Paulista de Direito (EPD). E-mail julialenzisilva@gmail.com.
**
Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito pela UNESP. Docente-Doutora da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). E-mail: jprepen@gmail.com.
***
Bacharel e Mestrando em Direito pela UNESP. E-mail: adriannopires@hotmail.com.
1
[...] Por teoria crítica entendo toda a teoria que não reduz a “realidade” ao que existe. [...] A análise crítica do que
existe assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades da existência e que portanto, há alternativas
suscetíveis de superar o que é criticável no que existe. O desconforto o inconformismo ou a indignação perante o que
existe suscita impulso para teorizar a sua superação (SOUSA, 2005, p. 23). .

59
Com isso, este trabalho pretende dar contribuição à análise da conjuntura contemporânea e de
seus desdobramentos para o futuro, em especial, no que tange às relações de trabalho e sua influência
na configuração de uma vida digna de ser vivida, ciente de que, por ser prenhe de contradições, o
atual momento histórico também é prenhe de possibilidades.

1 INTERFACES DA RELAÇÃO ENTRE MEIO AMBIENTE DE TRABALHO E VIDA/


MORTE DOS TRABALHADORES NA DINÂMICA DO CAPITALISMO FLEXÍVEL

Em plena era da informatização e do desenvolvimento tecnológico, do “pensamento único”


e das “verdades a-históricas”2, poucos conceitos ainda conseguem abarcar tantas contradições
quanto o de “trabalho”.
Desde o mundo antigo e sua filosofia, o trabalho vem sendo compreendido como expressão
de vida e degradação, criação e infelicidade, atividade vital e escravidão, felicidade social e
servidão. Érgon e pónos, trabalho e fadiga. Momento de catarse e vivência de martírio. Ora
cultuava-se seu lado positivo, ora acentuava-se o traço de negatividade [...].

Essa dimensão dúplice e mesmo contraditória presente no mundo do trabalho que cria, mas
também subordina, humaniza e degrada, libera e escraviza, emancipa e aliena, manteve o
trabalho humano como questão nodal em nossa vida (ANTUNES, 2005, p. 11-12).
Muito embora a discussão afeta à continuidade da centralidade ou não da categoria do trabalho
para análise da sociedade permaneça em aberto, o fato é que, “[o] trabalho e, consequentemente, a
identidade profissional adotada por cada pessoa é parte constituinte da identidade individual, desde
que inserido num contexto, inscrito numa temporalidade e guiado pelo objetivo da ação” (SILVA
FILHO, 2009, p. 82). Desta forma, vislumbra-se que a atividade laborativa continua a ser fator de
determinação subjetiva e condicionante da realização do projeto existencial de cada ser humano.
A constatação da dinâmica relacional existente entre o “ser”, em sua integralidade, e o “ser
que trabalha” evidencia a necessidade de um olhar mais atento às questões afetas ao chamado “meio
ambiente artificial”, ou seja, o meio ambiente de trabalho. Atenta-se para o fato de que esse conceito
comporta tanto o espaço físico – incluindo-se o maquinário, as condições de higiene, salubridade
e ergonomia e o local do trabalho em si – quanto as relações interpessoais conformadoras do
ambiente laboral, concluindo-se, pois, que ele representa o “solo” onde se manifesta grande parte
das contradições inerentes ao modelo capitalista de produção. Portanto, o que nele se passa, termina
por afetar de forma substancial diversos outros aspectos da vida do trabalhador, tais como, sua saúde
(física e mental), seu convívio e a qualidade das relações sociais e familiares que estabelece, e mesmo
a continuidade ou interrupção de sua própria vida.
Investigar as interfaces entre saúde e meio ambiente do trabalho pressupõe a necessidade
de “fincar os pés na realidade concreta”, não se permitindo satisfazer com interpretações teórico-
abstratas da legislação em vigor. A implementação de referida pré-condição de análise relaciona-se à
possibilidade de superação dos estereótipos fordistas, que vinculam os conceitos afetos ao mundo do
trabalho ao plano fabril e ao “compromisso de classes3”, característicos do Estado de bem-estar social.

2 “
Quando o futuro é concebido fora do utopismo automático da tecnologia, é muito difícil fornecer representações
credíveis dele. A noção de progresso, gêmea da noção de utopismo automático da tecnologia, continua a ser tão consensual
que funciona como topos no discurso argumentativo sobre o futuro: em vez de ser objeto de argumentação, é premissa.”
(SANTOS, 2005. p. 112). “Não esqueçamos que sob a capa dos valores universais autorizados pela razão foi de facto
imposta a razão de uma “raça” de um sexo e de uma classe social.” (SANTOS, 2005. p. 30).
3 “
A modernidade sólida era, de fato, também o tempo do capitalismo pesado – do engajamento entre capital e trabalho
fortificado pela mutualidade de sua dependência. Os trabalhadores dependiam do emprego para a sua sobrevivência; o
capital dependia de empregá-los para a sua reprodução e crescimento. Seu lugar de encontro tinha endereço fixo; nenhum
dos dois poderia mudar-se com facilidade para outra parte – os muros da grande fábrica abrigavam e mantinham os
parceiros numa prisão compartilhada” (BAUMAN, 2001, p. 166, grifo nosso).

60
Isso porque, atualmente, vive-se os fenômenos da flexibilização4, desregulamentação5 e precarização6
dos postos de trabalho; e o retorno do “novo” individualismo, caracterizado pelo consenso neoliberal7
e pelo processo de globalização8, que acabam por promover o que David Sanchez Rubio (2010, p.
53-57) denominou de “[...] processo de mercantilização de todas as parcelas da vida.”
Por óbvio que, diante dessa conjuntura, as relações de trabalho não passariam ilesas.
[...] a liberação dos fluxos internacionais de capital dá lugar a uma desregulamentação
econômica que ganha força em um percurso contínuo de fusões e aquisições de empresas,
para responder às necessidades permanentes de reestruturação produtiva. Com esse objetivo,
acirra-se a concorrência internacional por via de um movimento de mercantilização que,
ao transformar tudo em mercadoria, aumenta o individualismo, afrouxando os mecanismos
de solidariedade. O vértice desse emprego é o desemprego responsável, ou por uma
descontinuidade do trabalho, ou por um aumento do chamado trabalho informal, em cujo
espectro o direito ao trabalho é sutilmente ou declaradamente filtrado pelo poder econômico,
configurando-se um projeto de desregulação e desestruturação do mercado de trabalho, cujo
ápice é a desconstrução da relação salarial que marcou a segunda metade do século XX
(ALMEIDA, 2008, p. 26).
Como resultado da confluência de todos esses processos, vislumbram-se os chamados “[...]
trabalhadores típicos da atual composição do mercado de trabalho” (PEREIRA NETTO, 2002, p.
125), cujas vidas laborais estão preponderantemente definidas pela característica da instabilidade, e
são sintática e genericamente descritas em exemplo ilustrativo:
[...] é instável o trabalhador, que, por exemplo, inicia sua vida laboral por volta dos 14 anos,
exercendo atribuições de ‘guardinha’, aos 16 começa a trabalhar com o pai como servente
de pedreiro, aos 19 consegue emprego em uma fábrica de calçados onde permanece por três
anos antes de ser dispensado, usufrui por cinco meses do seguro desemprego e por mais dois
continua procurando emprego até conseguir uma vaga de ‘calheiro’ na qual, ‘por não ter
experiência’, passa dois anos sem registro. Após cinco anos de trabalho regular, é novamente
dispensado e, com o dinheiro do FGTS, abre uma micro-empresa de corte e costura com as
irmãs, uma também desempregada e a outra que deixa o emprego de doméstica, no qual era

4 “‘
Flexibilidade’ é o slogan do dia, e quando aplicado ao mercado de trabalho augura um fim do emprego como o
conhecemos, anunciando em seu lugar o advento do trabalho por contrato de curto prazo, ou sem contratos, posições
sem cobertura previdenciária, mas com cláusulas ‘até nova ordem’. A vida de trabalho está saturada de incertezas”
(BAUMAN, 2001, p. 169).
5 “
Desregulation”, traveste-se, então de fórmula mágica de invalidação do direito estatal e das conquistas da cidadania
liberal e social. Os grupos privados com maior poder de barganha e negociação políticas – algumas vezes os “novos
atores”; geralmente, os velhos beneficiários de uma estratificação social iníqua, “flexibilizam” os ordenamentos e
atribuem às normas, não raras vezes, significados absolutamente diversos dos originais. Essa substituição dos “controles
públicos” pelo “autocontrole” não pode passar desapercebida pelo Judiciário. Dissemina-se o sentimento de que não cabe
ao julgador aplicar com rigor a legislação social, sob pena de “quebrar a empresa”, provocar mais desemprego, alimentar
a inflação, inviabilizar a Administração e outros mitos. Quem usa a lei é visto como “arcaico” e sabotador da estratégia
neoliberal (CAMPILONGO, 2005, p. 37-38).
6
No tocante à composição do mercado de trabalho, destaca Juliana Presotto Pereira Netto que se pode afirmar que ela,
no decorrer dos últimos 50 anos, obedeceu a dois momentos distintos: no primeiro, durante aproximadamente três décadas
após o final da 2ª Guerra Mundial, predominaram a expansão do emprego assalariado com registro formal, bem como a
maior cobertura dos mecanismos de proteção social e trabalhistas; no segundo, iniciado no fim dos anos 70 e agravado
na década de 90, observa-se um movimento geral e crescente de precarização do mercado de trabalho, com redução da
capacidade de geração de novos empregos regulares, destruição de parte das ocupações formais existentes, diminuição do
poder de compra dos salários e a ampliação da subutilização da força de trabalho (PEREIRA NETTO, 2002, p. 117). .
7
De acordo com Perry Anderson, foi no “balão de ensaio” chileno do general Pinochet que o neoliberalismo começou
seus programas de maneira dura: desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda a favor
dos ricos, privatização de bens públicos. Após o sucesso da experiência de acumulação de capital no Chile, quase dez anos
depois, o programa passa a ser adotado na Inglaterra, no governo de Margaret Thatcher, em 1979, seguido pelo governo
Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e pelo chanceler Khol na Alemanha, estabelecendo-se, a partir de então, verdadeiro
“efeito dominó” que alcançou, inclusive, a América Latina: No México, a partir de 1988; na Argentina e Venezuela, em
1989, no Peru, em 1990 e no Brasil, em 1991, a partir do governo do presidente Fernando Collor de Mello (ANDERSON
apud UGATTI, 2009, p. 70).
8 “
Desde que o capitalismo ingressou na sua mais recente fase de mundialização – o que se deu a partir do monumental
processo de reestruturação e financeirização dos capitais nos anos 70 -, estamos constatando que os capitais transnacionais
exigem dos governos nacionais a flexibilização da legislação do trabalho, eufemismo para designar a desconstrução dos
direitos sociais, resultados de longas lutas e embates do trabalho contra o capital desde o advento da Revolução Industrial”
(ANTUNES, 2006, p. 499).

61
registrada com salário menor do aquele que efetivamente recebia, para ajudá-lo e também para
tentar melhorar de vida. E daí em diante continua uma trajetória não muito diferente da até
então relatada, com fracassos, acertos, indefinições, etc. (PEREIRA NETTO, 2002, p. 127).
Guardadas as peculiaridades relativas à legislação nacional, a descrição acima transcrita
poderia definir a vida de um trabalhador paraguaio, boliviano, argentino, espanhol, grego e de tantas
outras nacionalidades igualmente “globalizadas”. O quadro de vulnerabilidade e de oscilação entre
situações estáveis, regulares e de ganhos definidos, e situações de completa insegurança e desamparo,
atesta a dificuldade de implementação e fiscalização dos preceitos normativos constitucionais
afetos à saúde e segurança do trabalhador, bem como o estabelecimento de organizações coletivas
e próximas dos trabalhadores para a reinvindicação de direitos e participação nas negociações. Tal
quadro é notadamente agravado quando um verdadeiro “exército de reserva” encontra-se disposto a
se submeter às condições mais insalubres e indignas de trabalho em troca do abandono da situação de
“desocupado”9, afinal, na sociedade do desemprego estrutural, o sofrimento no trabalho é considerado
tema sacrílego diante do sofrimento dos que não trabalham.10
Ocorre que a intensificação do sofrimento dos que trabalham, ocasionada, sobretudo, pela
precarização, parece estar gerando um quadro de afrouxamento dos laços de solidariedade, empatia e
reconhecimento entre os trabalhadores, fazendo com que a angústia experimentada no cotidiano do medo
do desemprego não se traduza em revolta impulsionada pelo desejo de mudança, mas sim solidifique
a postura de resignação diante do “inevitável”. As causas desse processo, bem como as dinâmicas que
ele opera no plano individual e coletivo serão objeto de problematização no tópico seguinte.

2 A AVALANCHE NEOLIBERAL E O PROCESSO DE “BANALIZAÇÃO DO MAL”:


CONCEITOS EM RELAÇÃO DE COMPLETUDE11

Em fins da década de 1980 e durante todo o correr dos anos 1990, os países passaram a
sofrer as consequências da “globalização totalitária”, conceito que abrange o processo de expansão
do projeto neoliberal para todos os cantos do planeta, desconsiderando-se as particularidades
históricas dos Estados, suas culturas e seus modos de vivência em nome da propagação e vigência
do que Eduardo Fagnani (2008, p. 34-35) denominou fundamentalismo de uma nota só. As diretrizes
desse fundamentalismo econômico que acarretou consequências perversas no âmbito político
e, especialmente, no social, foram socializadas via agências de fomento e órgãos de cooperação
internacionais e, segundo Ana Elizabete Mota (2011, p. 80), ultrapassaram em larga medida os
limites de um suposto programa de “ajuste econômico-fiscal”, “[...] afirmando-se como instrumento
formador de uma racionalidade política, cultural e ética da ordem burguesa, expressa nos programas
de desregulamentação dos mercados, abertura comercial e financeira, privatização do setor público e
na redução do Estado.”
A autora esclarece que do ponto de vista prático-operativo, a difusão e implementação das
orientações de cunho neoliberal restou facilitada diante da conjuntura de crise econômica de grandes
proporções, que já solapava as economias dos países desenvolvidos e chegou com força total aos países

9 “
Em seu traço perene, pode-se ver que cada vez menos homens e mulheres trabalham muito, em ritmo e intensidade
que se assemelham à fase pretérita do capitalismo, quase similarmente à época da Revolução Industrial. E, na marca da
superficialidade, cada vez mais homens e mulheres encontram menos trabalho, espalhando-se à cata de trabalhos parciais,
temporários, sem direitos, ‘flexíveis’, quando não vivenciando o flagelo dos desempregados. Em pleno mito neoliberal
do individualismo exacerbado, tal como a ideologia do ‘empreendedorismo’, presenciamos de fato um individualismo
possessivo cada vez mais desprovido de posse, onde cada vez amplas parcelas de trabalhadores e trabalhadoras perdem
até mesmo a possibilidade de viver da venda de sua única propriedade, a sua força de trabalho” (ANTUNES, 2005, p. 17).
10 “
Por trás da vitrina, há o sofrimento dos que trabalham. Dos que aliás, pretensamente não existem, embora na verdade
sejam legião, e que assumem tarefas arriscadas para a saúde, em condições pouco diferentes daquelas de antigamente e
por vezes mesmo agravadas por frequentes infrações das leis trabalhistas. [...]. Enfim, por trás das vitrinas, há o sofrimento
dos que temem não satisfazer, não estar à altura das imposições da organização do trabalho: imposições de horário, de
ritmo, de formação, de informação, de aprendizagem, de nível de instrução e de diploma, de experiência, de rapidez
de aquisição de conhecimento teórico e prático e de adaptação à ‘cultura’ ou à ideologia da empresa, às exigências do
mercado, às relações com os clientes, os particulares ou o público etc.” (DEJOURS, 2007, p.27-28).
11
Para um aprofundamento desse debate, consultar o capítulo 1: “O sistema de seguridade social no Brasil: política
pública social em tempos de globalização econômica” (SILVA, 2015).

62
em desenvolvimento. Tal contexto propiciou a criação e o fortalecimento da utopia “salvacionista
indiferenciada”, propugnada sob o argumento estratégico de que a luta pela recuperação econômica
do país beneficiaria a todos indistintamente. Desta forma, restaram escamoteados os interesses ocultos
no âmbito de um projeto político-econômico que detinha claro e inobstante recorte de classe, passando
a desconsiderar por completo outras propostas para a solução do impasse econômico, inserindo
todos, independentemente do lugar que ocupavam na estrutura social, no âmbito de uma estratégia
de atuação forjada sem a participação popular. A visão acerca da crise e a “solução única” apontada
revelam-se, portanto, como um modo particularizado de construção de uma cultura da crise, que visa
facilitar a implementação de estratégias econômicas e políticas favoráveis ao desenvolvimento do
capital dentro dos marcos do Neoliberalismo (MOTA, 2011, p. 108-111).
As diretrizes e consequências neoliberais não se restringiram ao campo da economia. Em
verdade, para que alcançasse a categoria de “doutrina do pensamento único12”, o neoliberalismo teve
de infiltrar-se em todos os setores e áreas onde se estabelecem relações humanas. Ao borrar a fronteira
entre os paradigmas orientadores da atuação no setor público e no setor privado, transfigurou-se,
enfim, no senso comum dos tempos contemporâneos.13 Nos dizeres de Emir Sader:
[o] neoliberalismo reinterpreta o processo histórico de cada país: os vilões do atraso econômico
passam a ser os sindicatos, e junto com eles, as conquistas sociais e tudo o que tenha a ver
com a igualdade, com a equidade e com a justiça social. Ao mesmo tempo, a direita, os
conservadores, se reconvertem à modernidade na sua versão neoliberal, via privatizações e
um modelo de Estado Mínimo (ANDERSON et al., 1995, p. 147, grifos do autor).
Para que se compreenda a extensão e a profundidade com que se operou esse “giro conservador
para neoliberalismo” (BEHRING, 2008, p. 145), é preciso problematizar os discursos e as estratégias
que visavam (e visam) naturalizar esse processo, classificando-o como uma etapa da evolução na
história natural do capitalismo, em que a supressão dos direitos sociais aparece como uma medida
necessária à sobrevivência do país na dinâmica competitiva do capitalismo financeiro globalizado.14
Num primeiro momento é preciso considerar que, quando posta em prática a “cartilha
neoliberal”, constata-se uma acentuação profunda dos níveis de desigualdade econômica e,
consequentemente, um aumento exponencial da pobreza. Todavia, tais consequências não são vistas
de forma negativa, já que o agravamento da questão social ganha nova interpretação sob o paradigma
neoliberal. Em verdade, segundo Atílio Boron (1995, p. 104), em tempos de Neoliberalismo, “[...]
a multiplicação dos pobres e o aumento do sofrimento humano não são mais do que dolorosas
mensagens situadas no começo da estrada, indicando que estamos no bom caminho.” Isto porque,
ao operar com o dogma do mercado livre e autorregulado, rechaçando as formas de intervenção do
Estado para amenizar suas distorções mais perversas, o Neoliberalismo resgata de forma radicalizada
os paradigmas do liberalismo clássico, na perspectiva dada por Adam Smith em sua obra “A riqueza
das nações” (1776). De acordo com a “nova” perspectiva, fenômenos como o desemprego e a exclusão
não são vistos como implicações inerentes à lógica do capitalismo, mas sim como consequências
da diferenciação natural de capacidades e aptidões que há entre os homens, o que, por sua vez,

12 “
Para este, não há alternativa para o desenvolvimento da economia a não ser buscar, a ferro e fogo, a estabilidade
monetária mediante uma política monetária altamente restritiva e a substituição da intervenção estatal pelo livre
jogo das forças de mercado, pois só assim a política econômica ganhará reputação e credibilidade, e o País poderá
ser premiado com a vinda de capitais que garantirão sua entrada no paraíso do crescimento sustentado” (NAKATANI;
OLIVEIRA, 2010, p. 40).
13
Atílio Boron destaca que “[o] senso comum da época é neoliberal. Gostemos ou não, ele se implementou nas massas.
O mercado é idolatrado; o Estado é demonizado; a empresa privada é exaltada e o ‘darwinismo social de mercado’ aparece
como algo desejável e eficaz do ponto de vista econômico” (ANDERSON et al., 1995, p. 158).
14
No prefácio de seu livro “A banalidade da injustiça social”, o autor Christoper Dejours (2007, p. 13), ao descrever a
realidade francesa do fim do século XX, acaba por caracterizar a realidade de grande parte dos países que foram atingidos
pela “avalanche” neoliberal, ressaltando o discurso economicista como fundamento a exigir todo e qualquer “sacrifício”
do social: “Encontra-se largamente difundida a ideia de que paira sobre nosso país uma ameaça de derrocada econômica.
Até mesmo cientistas e pensadores admitem que, sendo a situação excepcionalmente grave, é preciso aceitar e recorrer
a meios drásticos sob o risco de fazer algumas vítimas. Portanto, estaríamos hoje a acreditar em tais rumores, numa
conjuntura social que representa muitos pontos em comum com a situação de guerra. Com a diferença de que não se trata
de um conflito armado entre nações, mas de uma guerra ‘econômica’ na qual estariam em jogo, com a mesma gravidade
que na guerra, a sobrevivência da nação e a garantia da liberdade. Nada menos que isso!”. .

63
justificaria as diferentes posições (ou não-posições) ocupadas por eles no processo produtivo. Estando
o mercado orientado para a eleição dos mais competentes, essa lógica se mostraria como desejável,
já que garantiria que somente os indivíduos mais capacitados preenchessem os postos de trabalho,
influindo na melhora dos índices de produtividade e aumentando a geração de riquezas. Ao Estado,
portanto, caberia tão somente assegurar a igualdade formal entre os indivíduos, competindo a eles
escolher, entre as inúmeras oportunidades oferecidas pelo mercado, aquela que possibilitasse sua
realização individual.15
Ademais de justificar as disparidades econômicas existentes entre as pessoas, atribuindo seu
sucesso ou fracasso às suas próprias e distintas particularidades – e jamais à lógica centralizadora
e excludente que rege os ditames do mercado –, essa conjuntura ideologicamente forjada permite
que se opere o fenômeno da naturalização das injustiças sociais, uma vez que, dentro da perspectiva
neoliberal, elas não são consideradas como verdadeiramente “injustas”, mas sim como resultados
adversos de fenômenos econômicos racionalmente estruturados sobre os quais não se pode exercer
nenhuma influência (DEJOURS, 2007, p. 20). Desta forma, o mercado torna-se Mercado, um agente
autônomo e voluntarioso, que tem animus que se alteram a cada dia, os quais ditam os futuros dos
países num jogo de sobe e desce de ações e títulos com resultados que, no mais das vezes, reproduzem
aqueles do antigo jogo colonial de cartas marcadas, no qual ganhadores e perdedores já se encontram
previamente definidos.
No âmbito das inter-relações humanas, uma das principais consequências dessa dinâmica é
a consubstanciação do processo de clivagem entre sofrimento e injustiça, resultando no fato de que,
ainda que haja a percepção do sofrimento humano, não há o desencadeamento de atitudes de repulsa,
revolta ou indignação, pois, “[...] [o] sofrimento somente suscita um movimento de solidariedade e de
protesto quando se estabelece uma associação entre percepção do sofrimento alheio e a convicção de
que esse sofrimento resulta de uma injustiça” (DEJOURS, 2007, p. 19-20). A propagação da ideologia
neoliberal permite, portanto, que se assista ao espetáculo de tragédias humanas diárias sem que isso
gere um mínimo de identificação solidária, dada a introjeção passiva do dogma da responsabilidade
individual exclusiva acerca das histórias de vida de cada ser humano.
O processo de clivagem do “eu” frente ao sofrimento causado pelas consequências da
aplicação do receituário neoliberal (desemprego, precarização, aumento da desigualdade social,
concentração de renda, desmonte dos sistemas de proteção social etc.) não gera, todavia, apenas uma
atitude de passividade e resignação. A dissociação entre sofrimento e injustiça também se constitui em
mecanismo de autoafirmação da própria inocência. Aderindo ao discurso justificador da imperiosidade
do “ajuste” neoliberal como única possibilidade de inserção no mundo globalizado, o indivíduo passa
a ter uma atitude de complacência diante de si, classificando suas atitudes colaboracionistas como
algo inescapável, que tinha que ser feito, escamoteando, sob o discurso técnico-economicista, o que
se configura essencialmente como uma escolha. São esses mecanismos que possibilitam compreender
como tantos homens e mulheres “de bem” tornarem-se “[...] zelosos colaboradores de um sistema
que funciona mediante a organização regulada, acordada e deliberada da mentira e da injustiça

15
A legitimação do mundo moderno como mundo ‘justo’ está fundamentada na ‘meritocracia’, ou seja, na crença

de que superamos as barreiras de sangue e nascimento das sociedades pré-modernas e que hoje só se leva em conta o
‘desempenho diferencial’ dos indivíduos. Afinal, se alguém é 50 vezes mais produtivo e esforçado que outro, nada mais
natural e ‘justo’ que também tenha um salário 50 vezes maior e 50 vezes mais prestígio e reconhecimento. Todas as
instituições modernas tomam parte nesse teatro da legitimação da dominação especificamente moderna. O mercado ‘diz’,
ainda que não tenha boca: eu sou ‘justo’ porque dou a remuneração ‘justa’, verdadeiramente equivalente ao desempenho.
O Estado também ‘diz’ o mesmo: eu faço concursos públicos abertos para todos, o melhor deve vencer. Nada mais ‘justo’
do que isso” (SOUZA, 2009. p. 22).

64
[...]”, o que torna a banalidade do mal (DEJOURS, 2007, p. 76)16 uma das principais características
da Nova Ordem Mundial.
[A] opção das pessoas de bem por colaborar parece-lhes legitimada pela compreensão que
têm da ‘lógica econômica’. Em último caso, não seria uma opção, na medida em que a
injustiça da qual elas se tornaram instrumento é inevitável. Estaria ligada à natureza das
coisas, à evolução histórica, à ‘globalização’ da economia, de que tanto se fala. Toda decisão
individual de resistir e toda recusa a submeter-se seriam inúteis e mesmo absurdas. A máquina
neoliberal está em movimento, e não há como pará-la. Ninguém pode fazer nada. A opção
não mais seria entre submissão ou a recusa, no plano individual ou coletivo, mas entre a
sobrevivência ou o desastre (DEJOURS, 2007, p. 94).
Entretanto, para chegar a constituir uma das características marcante dos tempos
contemporâneos, a banalidade do mal passou por um processo em níveis de extensão e aprofundamento.
Tal processo foi designado por Christophe Dejours de “banalização do mal” e esteve (está) fortemente
vinculado aos novos padrões de conduta e moralidade oriundos das metamorfoses pelas quais vem
passando o mundo do trabalho.17 O elemento primordial para o desencadeamento da “banalização
do mal” é, segundo o autor, o medo que, em conjunturas de aumento significativo do desemprego
(ocasionado pelos processos de modernização da planta fabril, com a introdução de maquinários,
tecnologias e modelos de gestão que reduziram significativamente a oferta de postos de trabalho) e
avanço da precarização (impulsionada pelo aumento do contingente do “exército de reserva”), torna-
se o sentimento motivador de grande parte das condutas pessoais.
Nesse sentido, o processo de “banalização do mal” é impulsionado pelos efeitos advindos da
intensificação da oferta de postos de trabalho precarizados, isto é, com supressão de direitos trabalhistas
e previdenciários. Tal supressão incide, sobretudo, nas garantias de limite de horas da jornada de
trabalho (regimes de trabalho parcial, “banco de horas”, etc.), de formalização da contratação (elevados
índices de informalidade e terceirizações ilegais) e de salário mínimo (remuneração com base na
produtividade). Diante desse quadro, identifica-se, como primeiro efeito adverso da precarização,
o aumento do sofrimento subjetivo no trabalho, ocasionado pela intensificação de ritmo em virtude
da introdução dos sistemas de gerenciamento fundados no cumprimento de “metas”. O segundo é
caracterizado pela neutralização da mobilização coletiva contra o sofrimento, contra a dominação e
contra alienação, o que se dá por meio da retroalimentação do “fantasma” do desemprego. A terceira
consequência é designada de “[...] estratégia defensiva do silêncio, da cegueira e da surdez”, que pode
ser resumida no dever de negar o sofrimento alheio e calar o seu. Tal estratégia aponta no sentido de
que cada um deve, antes de tudo, preocupar-se em resistir, suportando o ambiente e as condições de
trabalho com escopo de assegurar a continuidade da ocupação de “um lugar” na produção. Assim, no
16
A expressão banalidade do mal, utilizada pelo autor, faz clara referência ao conceito de “banalidade do mal”
desenvolvido por Hannah Arendt em seu livro “Eichmann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade do mal”. Na obra,
a autora analisa a personalidade de Eichmann - oficial nazista sequestrado e levado a julgamento em Israel – chegando
à assustadora constatação de que ele não detinha nada de “anormal”, não era um “monstro” sádico e perverso, mas sim
alguém que agia sem pensar, rigorosamente orientado pelos padrões de moralidade e conduta vigentes na Alemanha nazista.
De acordo com Christophe Dejours, no fundo, a principal característica constitutiva da personalidade de Eichmann era
a “falta de personalidade verdadeira”. Em outras palavras, Eichmann é um normopata, e essa normopatia é que Hannah
Arendt designa pela expressão “banalidade do mal” (DEJOURS, 2007, p. 115).
A título de esclarecimento, ressalta-se que “‘Normopatia’ é um termo usado por certos psicopatologistas para designar
certas personalidades que se caracterizam por sua extrema ‘normalidade’, no sentido de conformismo com as normas
do comportamento social e profissional. Pouco fantasistas, pouco imaginativos, pouco criativos, eles costumam ser
notavelmente integrados e adaptados a uma sociedade na qual movimentam com desembaraço e serenidade, sem serem
perturbados pela culpa, a que são imunes, nem pela compaixão, que não lhes concerne; como se não vissem que os
outros não reagem como eles; como se não percebessem mesmo que os outros sofrem, como se não compreendessem
por que os outros não conseguem adaptar-se a uma sociedade cujas regras, no entanto, lhes parecem derivar do bom
senso, da evidência, da lógica natural. Sendo bem-sucedidos na sociedade e no trabalho, os normopatas se ajustam
bem ao conformismo, como um uniforme, e portanto carecem de originalidade, de ‘personalidade’” (DEJOURS, 2007,
p. 115, nota n. 23).
17
O autor é um dos expoentes da tese que atesta a permanência da centralidade da categoria “trabalho” nas sociedades
contemporâneas. Para ele, o trabalho continua sendo o único mediador da realização do ego no campo social, e não
se vê atualmente nenhum candidato capaz de substituí-lo. O autor trabalha na perspectiva da psicodinâmica do prazer
no trabalho e do trabalho como medidor insubstituível da reapropriação e da emancipação, argumentando que “[...] o
trabalho se revela essencialmente ambivalente. Pode causar infelicidade, alienação e doença mental, mas pode também
ser mediador da auto realização, da sublimação e da saúde” (DEJOURS, 2007, p. 42-43, 97-98).

65
tocante ao sofrimento alheio, não só “não se pode fazer nada”, como também sua própria percepção
constitui um constrangimento ou uma dificuldade subjetiva suplementar, que prejudica os esforços
de resistência. Por fim – como não poderia deixar de sê-lo – a precarização contribui para o culto ao
individualismo, ao “cada um por si”, porquanto materialize no cotidiano dos trabalhadores o medo do
desemprego e do fracasso, dificultando enormemente qualquer possibilidade de construção de laços
de solidariedade e de reconhecimento (DEJOURS, 2007, p. 51).
Contata-se, pois, que o processo “banalização do mal” não tem início em virtude de uma natural
e até mesmo inata predisposição dos homens à competitividade e ao individualismo, e também não é
fruto de uma revelada essência humana, como, por vezes, soam propugnar os arautos do “pensamento
único”. Pelo contrário, é possível afirmar que sua origem está vinculada à “[...] manipulação política
da ameaça de precarização e exclusão social” (DEJOURS, 2007, p. 119), o que torna os impulsos
psicológicos defensivos – que este trabalho designou de “efeitos” da precarização – respostas dos
indivíduos à vivência cotidiana da insegurança, “[...] mobilizados por sujeitos que procuram lutar
contra seu próprio sofrimento: o medo que sentem, sob o efeito dessa ameaça” (DEJOURS, 2007, p.
119). A intensificação do processo de “banalização do mal” terminará por fundamentar a indiferença
– manifestação mais reveladora da supremacia da banalidade do mal – como característica marcante
das relações socioeconômicas e políticas da atualidade, permitindo que o mal continue a se (re)
produzir no cotidiano de um número cada vez maior de seres humanos.
A intrincada relação existente entre a “avalanche” neoliberal e o processo de “banalização
do mal” é, enfim, revelada, aparecendo na tradução da banalidade do mal como característica
primeva dos tempos atuais. A relação de completude entre ambos os processos se estabelece a partir
da compreensão de que os processos de flexibilização, precarização e desregulamentação impostos
pelo ideal neoliberal suplantaram a maneira como se concebia o trabalho e suas relações no tempo do
capitalismo duro, trazendo como consequência a afirmação do medo, em suas diferentes espécies – da
precarização, do desemprego, da perda de prestígio social, da pobreza, da exclusão, da fome, etc. –
como intermediador premente das relações sociais, desmantelando redes de solidariedade e reduzindo
o comportamento do indivíduo às tentativas reiteradas de não fracassar.
A novidade não está na iniqüidade, na injustiça e no sofrimento impostos a outrem mediante
relações de dominação que lhe são coextensivas, mas unicamente no fato de que tal sistema
possa passar por razoável e justificado; que seja dado como realista e racional; que seja aceito
e mesmo aprovado pela maioria dos cidadãos; que seja, enfim, preconizado abertamente,
hoje em dia, como um modelo a ser seguido, no qual toda empresa deve inspirar-se, em
nome do bem, da justiça e da verdade. A novidade, portanto, é que um sistema que produz
e agrava constantemente adversidades, injustiças e desigualdades possa fazer com que tudo
isso pareça bom e justo. A novidade é a banalização das condutas injustas que lhe constituem
a trama (DEJOURS, 2007, p. 139, grifos do autor).
O aprofundamento do processo de banalização do mal tem se dado a partir de uma relação
dialética com a expansão do ideário da “doutrina da solução única” pelos países do mundo, sendo
por ela fomentado e abrindo caminhos para seu alargamento. A tomada do modelo neoliberal
como paradigma de atuação tanto no âmbito privado quanto (especialmente) no setor público foi
(é) impulsionada pelo processo de globalização econômica, sobretudo, a partir das condicionantes
impostas aos países latino-americanos e demais países ditos “em desenvolvimento” para a feitura
de empréstimos junto aos organismos econômicos internacionais, dos quais o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Mundial continuam sendo os expoentes mais importantes.
Nesse contexto, não é estranho que, na atualidade, o exercício do trabalho esteja
constantemente associado a situações de sofrimento, angústia, sentimento de rejeição e incapacidade,
adoecimento e, por vezes, até mesmo de morte. O trabalho criativo, de produção e reprodução
das condições materiais e imateriais de vida, é incompatível com a expansão dos paradigmas de
precarização e desregulamentação, sendo as “operadoras de telemarketing” categoria ilustrativa por
excelência das consequências dos fenômenos acima descritos. Ricardo Visser (2010, p. 71) define
o telemarketing como “[...] um verdadeiro porão da dominação financeira”, no qual a precariedade

66
do trabalho contribui para a “[...] desorganização da vida como um todo, o que tem como efeito a
diminuição das possibilidades de realização de planos e aspirações futuras.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como propósito discutir as consequências nefastas que a aplicação
do receituário neoliberal gerou (e tem gerado) no meio ambiente de trabalho, destacando o processo
de “banalização do mal”, o qual parece promover o afrouxamento dos laços de solidariedade e empatia
entre os trabalhadores ao promover a percepção do sofrimento como natural, fruto das diferenciações
existentes entre os seres humanos e das respostas individuais ao paradigma da competitividade,
desvinculando-o do conceito de injustiça. No âmbito dessa lógica, a intensificação dos discursos
de responsabilização individual pelo fracasso/sucesso acaba gerando os processos de clivagem do
eu e, por consequência, dilatando, no tempo, a suportabilidade de situações abusivas, indignas e de
extremos sofrimentos no trabalho.
Ao se propor uma análise mais centrada nas questões da subjetividade afetadas pelo meio
ambiente do trabalho, teve-se em conta que as dinâmicas relacionais ali existentes condicionam,
ainda que parcialmente, os processos de saúde e doença, resignação e revolta e, não raro, de vida e
morte dos trabalhadores e trabalhadoras. A partir dessa perspectiva, espera-se ter logrado êxito em
problematizar a questão de que a “avalanche” neoliberalizante - a par das consequências econômicas
e sociais amplamente discutidas -, também opera no âmbito pessoal, por meio da reafirmação da
desigualdade social como produto natural das diferentes capacidades de cada ser humano quando
inserido na lógica de mercado, o que, consequentemente, interfere na tomada de consciência e na
capacidade de mobilização individual.
Tendo ciência dos limites deste artigo, é importante destacar que a análise nele feita não
tem qualquer pretensão de generalização. A complexidade das dinâmicas entre capital e trabalho em
tempos de financeirização da economia não permite que as questões sejam vistas e analisadas sob um
único aspecto ou referencial. O objetivo, portanto, foi trazer à tona mais uma vertente interpretativa
das dificuldades que os trabalhadores têm encontrado para se organizar enquanto classe e frear os
avanços que o capital tem feito contra seus direitos sociais historicamente conquistados, rompendo de
vez os discursos conciliatórios tão característicos dos tempos do “capitalismo duro”. Se o cenário que
a “avalanche neoliberal delineia nos países centrais já é bastante trágico sob a perspectiva de garantia
das condições mínimas de produção e reprodução da vida humana, o que esperar quando (e se) ela se
abater novamente sobre os países latino-americanos?
Tomando como espectro de análise o cenário atual brasileiro – em que as bases do lulismo
(SINGER, 2012) dão claros sinais de desgaste, assistindo-se a retomada de discursos e programas
de vertente claramente neoliberal – denota-se a necessidade premente de análise das condicionantes
que podem se constituir em obstáculo para a luta pela preservação dos patamares protetivos
sociais-trabalhistas já assegurados em lei. E para esse diagnóstico precoce, imprescindível para a
compreensão do momento presente e eleição das estratégias de luta, que esse trabalho espera ter dado
a sua contribuição ao estabelecer a relação entre neoliberalismo e “banalização do mal”.

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68
ELUCUBRAÇÕES SOBRE O FAZER MÉDICO-PERICIAL NO CAMPO DA
SAÚDE DO TRABALHADOR
Bruno Chapadeiro*
RESUMO: Pretende-se nas próximas linhas esmiuçar o campo médico pericial em saúde do trabalhador tal qual se encontra no
movimento do real, material e concreto. Tem-se como objetivo descrever sua estrutura formativa e em quais preceitos, saberes, poderes
e instituições se alicerça para se constituir na forma como o encontramos hoje no mundo real, em diálogo e contraponto com o ideal;
analisar sua função política no sistema do capital, com nossa atenção especialmente voltada à realidade brasileira, visando responder
algumas perguntas: “Para o quê serve?” “A quem serve?” “Cumpre sua função social?” e; compreender sua dinâmica de funcionamento
levando-nos a responder a outras questões: “De que forma serve?” Ou então, “De que forma serve a quem serve?”
Palavras-chave: Trabalho, Capital, Saúde, Perícia, Nexo causal
ABSTRACT: The purpose of this text is to analyze the medical expertise in the field of health of the worker as it is in the movement
of the real, material and concrete. Its purpose is to describe its formative structure and in which precepts, knowledge, powers and
institutions are based to form the way we find it today in the real world, in dialogue and counterpoint with the ideal; Analyze its political
function in the capital system, with our attention focused on the Brazilian reality, with the aim of answering some questions: “What
is it for?” “Who does it?” “Does it fulfill its social function?” and; Understand its dynamics of operation leading us to answer other
questions: “In what way?” Or, “In what way serves who does it serve?”
Keywords: Work; Capital; Health, Expertise; Casual relation

INTRODUÇÃO

Pretende-se nas próximas linhas esmiuçar o campo médico pericial em saúde do trabalhador
tal qual se encontra no movimento do real, material e concreto. Tem-se como objetivo descrever sua
estrutura formativa e em quais preceitos, saberes, poderes e instituições se alicerça para se constituir
na forma como o encontramos hoje no mundo real, em diálogo e contraponto com o ideal; analisar sua
função política no sistema do capital, com nossa atenção especialmente voltada à realidade brasileira,
visando responder algumas perguntas: “Para o quê serve?” “A quem serve?” “Cumpre sua função
social?” e; compreender sua dinâmica de funcionamento levando-nos a responder a outras questões:
“De que forma serve?” Ou então, “De que forma serve a quem serve?”
Para tal, propomo-nos então a abrir a caixa-preta das perícias. Desvelar o que se passa em seu
interior com vistas à uma desobnulação perene no campo científico sobre o tema, em tarefa hercúlea de
se explicitar seu conteúdo crítico e caráter fetichizado. Afim de procedermos numa maior compreensão
dos diferentes aspectos que envolvem a prática da perícia no Brasil, interessa-nos entender por
exemplo, qual o perfil, as atividades laborais pertinentes ao médico perito em suas várias instâncias,
o que este especialista produz, sob qual condição produz e principalmente, para quem produz.
Acredita-se que o movimento constante entre decompor o processo global do trabalho
médico-pericial em suas partes constitutivas e recompô-lo depurando os elementos secundários se
faz extremamente necessário. Desse modo, buscaremos expor, em breve análise, o que as teses da
literatura médica, o movimento do real e nossa antítese teórica-metodológica sintetizam sobre o
campo médico pericial em nosso país na área de saúde do trabalhador.

1 PERÍCIA MÉDICA: PRODUTO E PROCESSO DE TRABALHO

A classe dominante, força essa interessada na manutenção do processo social, através da


mediação do Estado, se apodera do poder de decisão e influência sobre as consequências práticas
da vida social como o de se determinar, por exemplo, o processo saúde-doença. Nesse subitem
procederemos numa investigação do processo médico-pericial em trabalho-saúde e do laudo pericial
enquanto produto dessa técnica, visando um diálogo entre a literatura da medicina hegemônica e
nosso método histórico-dialético de análise.
Desse modo, durante levantamento bibliográfico de nossa pesquisa de doutoramento que
pretende compreender o estado da arte das perícias em saúde do trabalhador, vemos que, as obras
especializadas sobre o tema das perícias disponíveis na literatura científica, costumam dar maior

*
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Bolsista da Coordenação e
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

69
destaque às áreas criminais (perícias de responsabilidade penal por exemplo) e às cíveis, com
avaliação da capacidade civil, dando pouca ênfase para as questões que envolvem o campo da saúde
do trabalhador e consequentemente do processo de adoecimento pelo trabalho. Na área médica
especificamente, encontram-se definições que vão na confluência de que a perícia tanto consiste no
exame de pessoas, - ou cadáveres -, com a finalidade de avaliar lesões, causas, quantificar sequelas
e disfunções para fins de indenização, quanto mensurar comprometimento da capacidade laborativa
em trabalhadores, ou atestar capacidade/incapacidade para determinada atividade, numa clara adesão
à visão da Saúde Ocupacional.
Alcântara (2006, p. 87) define a prática médico-pericial como sendo: “[...] a capacidade
teórica e prática para empregar, com talento, determinado campo do conhecimento, alcançando sempre
os mesmos resultados.” Nakano, Rodrigues Filho e Santos (2007), nesse mesmo sentido entendem
que a perícia é uma sindicância de natureza médica que visa esclarecer fatos que interessam em um
procedimento judicial, administrativo-estatal ou mesmo privado. Consideram um elemento de prova
fundamental quando as normas (penais, civis, administrativa, etc.) exigem conhecimentos médicos
para serem executadas. Na visão dos autores a perícia trata de ramo da Medicina Legal em que os
ensinamentos técnicos e científicos especiais são ministrados nas especializações da área em questão
e suficientes para a emissão de pareceres. Brandimiller (1996) descreve que a perícia é o exame das
situações ou fatos relacionados a coisas e pessoas, praticado por especialista na matéria que lhe é
submetida, com o objetivo de elucidar determinados aspectos técnicos.
A partir destes breves referenciais da literatura médica supracitados, compreende-se de início
que, o entendimento sobre o ato pericial no Brasil, dispões sobre toda e qualquer ação propedêutica ou
exame realizado por um médico, com a finalidade de contribuir com as autoridades administrativas,
policiais, estatais e judiciárias na formação de juízos a que estão obrigados. Nesse sentido, uma
perícia deve então contribuir para demonstrar a existência ou não de um fato que está em análise
atuando na direção da formação de uma convicção sob o olhar de um julgador, seja a Justiça, a
Previdência ou demais órgãos periciais. Mas de qual pressuposto parte para conceber seu parecer tido
como verdadeiro e irrefutável nos âmbitos em que se faz presente?
Podemos dizer que perícia no Brasil tal como a vemos, é então fruto do processo de ato médico
com contexto e finalidades social e histórica determinadas, como também delimitadas. É realizada
por requisição formal de instituição pública ou privada, ou de pessoa jurídica. Seus resultados são
apresentados através de parecer sucinto, apenas com respostas a quesitos previamente formulados, ou
de laudo técnico com exposição detalhada dos elementos investigados, sua análise e fundamentação
das conclusões, além da resposta aos quesitos previamente formulados (BRADIMILLER, 1996).
Contudo, ao nosso ver, há todo um caráter classista enraizado no sistema jurídico, sanitarista
e previdenciário superestruturais, que não advém do mero interesse de uma classe. Explica-se: esse
sistema atua na esfera da ideologia pretendendo-se um reflexo o mais adequado possível da realidade.
Porém, ao entoar-se como capaz de captar e traduzir o processo saúde-doença nivelando-o em padrões
universais biomédicos, é que, as perícias fornecem a quem lhe demanda, de forma fetichizada e
subreptícia, uma reprodução de base consistente e estruturada das relações mercantis predeterminadas.
Tal processo se dá na mesma medida em que se afirma de maneira sistemática e autossuficiente
apartando-se das condições materiais e objetivas que dão vida a esse sistema.
O trabalho médico-pericial faz-se, portanto, um processo de trabalho comum aos demais sob
a égide do sistema do capital: trabalho abstrato nos ditames marxianos, que se concretiza na maioria
das vezes na produção desta peça ou relatório com características formais, intrínsecas e extrínsecas,
denominada laudo pericial. Tal peça contém o resultado materializado, fundamentado científica ou
tecnicamente, de procedimentos utilizados para constatação, prova ou demonstração conclusiva
sobre a ‘veracidade’ do estado do objeto sobre o qual recaíram as atenções do médico perito. Ou
seja, tal como as demais mercadorias derivados das formas capitalistas de produção, o laudo pericial
também assume uma forma-mercadoria fetichizada resultante do caráter social peculiar da sociedade
produtora de mercadorias e produz valor.
Tão logo o laudo pericial torna-se uma mercadoria, ganha um valor de troca a ser consumido
pela Justiça, pela Previdência e/ou demais órgãos administrativos. Como bem nos relembra Marx

70
(2013), reflete a quem dele se fará uso, - magistrados e órgãos públicos de saúde/previdenciários
-, os caracteres sociais próprios do trabalho médico-pericial enquanto caracteres objetivos dos
próprios produtos deste trabalho (o laudo pericial), como propriedades sociais que são naturais a
essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores (médicos peritos-magistrados-
órgãos públicos) com o trabalho total (o sistema jurídico, sanitarista e previdenciário superestrutural)
como uma relação social entre os objetos (laudo-litígio), existente à margem de quem os produziu.
Nesse caso, quem os produz insere-se no que denominamos questão pericial sistêmica composta
por seus agentes: Justiça/Previdência/Órgãos administrativos (quem demanda), Medicina (quem
produz) arraigado na lógica jurídico/sanitária/previdenciária (condições, organização e processo que
determinam o que se produz).
França (2008) entende que justamente a instância última do trabalho pericial deva ser
precisamente produzir tal prova (por meio do laudo pericial). A prova não é outra coisa senão o
elemento que visa corroborar um fato ou não. Desse modo, tem a perícia a faculdade de contribuir
com a revelação da existência (ou da não) de um fato suposto, - por exemplo o nexo causal entre
determinada patologia e o trabalho que a produziu -, possibilitando ao magistrado e/ou aos demais
órgãos previdenciários e administrativos, a oportunidade de se aperceber da ‘verdade’ e de formar sua
convicção sobre certa lide.
Contudo, se a abordagem biologizante do processo saúde-doença é expressão ideológica
e continua forte nas escolas, no meio acadêmico e corporativo dos médicos, a despeito do esforço
de pesquisadores em ampliar o olhar para além das células, tal prova já é produzida imbuída de
significados que irão delinear esse conceito de ‘verdade’ o qual Justiça, Previdência e demais órgãos
administrativos irão se ancorar e reproduzir. Em outras palavras, é como se os conflitos essenciais de
classe, sob o prisma biologizante da medicina estivessem ocultados no interior do parecer médico-
pericial respaldados no discurso normativo. Desmistificar estes significados é uma das tarefas caras
de nossa tese de doutoramento ainda em desenvolvimento.
Então, eis que tal sistema jurídico, sanitário e previdenciário superestrutural se apresenta
como apartado dos conflitos essenciais de classe ao mesmo tempo em que não faz sentido algum sem
estes. Por relacionar-se intimamente com a propriedade privada, com a divisão social do trabalho
e com a forma mercadoria fetichizada é que, na medida mesma em se propõe a manter a norma, a
relação entre classes, muito embora conflituosa, é fator inclusive necessário para que este sistema se
retroalimente. Lembremo-nos que se trata de uma lógica fruto de antagonismos presentes na própria
estrutura da sociedade do capital e que coube às visões idealistas e positivistas, fortes concepções
mantenedoras do status quo desta sociedade, colocar este sistema como transcendental, acima da
história e relegando homens e mulheres à condição de meros observadores da realidade objetiva
e não artífices do mesmo. Ou seja, na mesma medida em que esse sistema precisa dos indivíduos
pois necessita destes enquanto coisas subsumíveis a uma universalidade abstrata, guarda uma
relação obrigatória deste com o processo de alienação próprio das formas de ser e de se trabalhar na
sociedade capitalista.
Nos dizeres de Lukács (1981), o capital se utiliza de técnicas manipulatórias particulares, o
que já é suficiente para explicar o fato de que este pode se reproduzir apenas se a sociedade burguesa
produz continuamente seus necessários especialistas no que, claramente demonstra também a íntima
relação que este sistema guarda com as esferas da alienação e da manipulação também em sua
instância superestrutural, aqui objeto de nosso estudo, o sistema jurídico-sanitário-previdenciário
especificamente delineando o fazer médico-pericial e suas subsequências.
Assim, a divisão social do trabalho em sua etapa de capitalismo flexível promove a ampliação
crescente da figura dos especialistas - juristas e médicos - que, dispostos à aplicação da norma, se
pretendem uma camada social autônoma e, ao mesmo tempo, são o corolário sem o qual o sistema
jurídico-sanitário-previdenciário não se configura como tal. Nesse ínterim, o fazer médico-pericial
torna-se um instrumento oficial e legitimado nesse contexto por ser comumente determinada ou
requisitada por autoridades do Estado (juízes, promotores e delegados, principalmente).
A instauração do então chamado “reino médico”, incontestável e inquestionável nos fazeres
que chama pra si no campo pericial, dá-se pela figura do médico perito como inserido na divisão

71
social do trabalho preconizado por determinações preconcebidas de suas atuações profissionais por
diversos órgãos reguladores e legislativos e que irão operar a norma (essa definida pelo discurso
biologizante) à um sociedade de classes ao executarem nesta, a função de um especialista preenchido
pelo discurso da saúde como se esta fosse um dado natural, necessário e não com uma concepção
construída social e historicamente.
O saber médico pericial torna-se então, o produto global de experiências empíricas que
necessitam ser comprovadas através de procedimentos formais e regimentais de natureza jurídica
e que são julgadas não a partir de critérios de conhecimento, mas em sua referência, sendo então
legalmente sacramentadas e atestadas pelo consenso da classe dominante sobre o mesmo pela via da
mediação burocrática do Estado. Da mesma forma que tal atividade parece propiciar certa autonomia
e dar certo poder de decisão dos delineamentos de sua conduta aos médicos peritos, para decidirem
qual comportamento adotar em seu ato médico pericial, o aparato jurídico-sanitário-previdenciário
superestrutural também necessita manter um controle direto sobre a atuação dos mesmos, o que
leva a fazer com que estes assimilem e incorporem suas regras de funcionamento como elemento
de sua percepção, chegando, num último estágio, a um reordenamento subjetivo, visando garantir a
manutenção das norma (HELOANI, 2003).
Em outras palavras, o médico perito quando demandado a dar seu parecer especializado-
científico, atua como intelectual orgânico do capital dispondo de seu saber enquanto uma subciência
médica, numa forma subserviente ao capital agindo em prol da fiscalização e do bom cumprimento
da norma e de controle da força de trabalho. Ou seja, aliena-se do gênero médico na medida em que
abdica de tratar os trabalhadores propiciando a cura de seus males e, preocupa-se tão somente com
o cumprimento normativo de todo um rol de leis, códigos, decretos, portarias, medidas provisórias e
etc. que o direcionam a avaliar a capacidade laboral dos trabalhadores de forma igualmente alienada
e isenta de reflexão apartando-o da real práxis médica.

2 MEDICINA DO TRABALHO OU DO CAPITAL?

A Medicina do Trabalho deveria ser a especialização médica que visa aprofundar o olhar
médico para aquelas enfermidades que, originadas na relação trabalho-saúde, pudessem em ato
médico continuado e coerente, alcançar o “bem” finalístico da medicina-ciência, a saber, a cura e o
bem-estar do trabalhador.
Contudo, este não é o escopo de uma Medicina “do Trabalho”. Posto que a maioria dos
médicos peritos possuem especializações em “Medicina do Trabalho”, por sua posição e qualificação
institucional, não têm o objetivo de tratar e, em consequência, buscar o “bem” do paciente, mas
sim, avaliar a capacidade físico-mental do trabalhador para que esse possa continuar trabalhando
ou não. Muitas vezes o ato médico se traduz na devolução do paciente às fontes determinantes de
seu mal-estar original (VASCONCELLOS, PIGNATI, 2006). No máximo, em situações-limite
de mal-estar dos trabalhadores capazes de impedir ou comprometer a capacidade de trabalhar, o
médico-perito/médico do trabalho age como bloqueador do mal-estar pelo afastamento temporário,
pelo menor tempo possível que as exigências do processo produtivo e a cadeia do valor permitam.
Caso o problema de saúde seja grava, a ponto de comprometer mais definitivamente o trabalhador
como elemento da produção, o afastamento poderá ser definitivo, e o problema de saúde-doença será
resolvido por outro médico e, não, pelo médico do trabalho.
Dessa forma, o ato médico pericial ancorado nos pressupostos da Medicina “do Trabalho”
se restringe a servir de mediador dos danos infligidos à força de trabalho, estabelecendo critérios,
não para o diagnóstico do dano (ou doença) em si, mas para averiguar a capacidade/incapacidade do
trabalhador para que este possa retornar ao trabalho ou não. Ora, se o interesse não recai no bem-estar
do trabalhador, mas sim, o objetivo-fim de sua atividade baseia-se na avaliação de se há condições
para manutenção da força de trabalho no processo produtivo de valorização do valor, porque não
chamarmos tal prática médica então de Medicina “do Capital”?
O Médico “do Trabalho” é um mediador, um instrutor, um facilitador que frequentemente
chega ao trabalho repleto de boas intenções, de ilusões até, e não raro se decepciona precocemente,

72
frustra-se e muda de área. Não à toa há um consenso entre nossos médicos peritos entrevistados até
o momento em nossa pesquisa, de que a especialização em “Medicina do Trabalho” é vista com
desdém pela classe médica, de forma a disseminarem o pensamento que “[...] aquele que não deu
um bom médico (cirurgião, cardiologista e etc.) torna-se um médico do trabalho.” Ou seja, mesmo
no interior do “reino médico” há a unanimidade de que o fazer da Medicina “do Trabalho” é o
antônimo da práxis médica.
Devido a essa relativa impotência da Medicina “do Trabalho” para intervir sobre os problemas
de saúde causados pelos processos de produção pois pauta-se na ciência positivista com vista à
adaptação do trabalho ao trabalhador, de acordo com Mendes e Dias (1991), crescem a insatisfação
e o questionamento dos trabalhadores - ainda que apenas “objeto” das ações - e do capital, onerados
pelos custos diretos e indiretos dos agravos à saúde de seus trabalhadores. Sob tal panorama, a
resposta, racional, “científica” e aparentemente inquestionável traduz-se na ampliação da atuação
médica direcionada ao trabalhador, pela intervenção sobre o ambiente, com o instrumental oferecido
por outras disciplinas e outras profissões. Portanto, com a incorporação de novas tecnologias nos
espaços laborais ao longo do século XX, essa subciência médica foi gradativamente substituída por
abordagens técnicas típicas da visão de Saúde Ocupacional por apresentar insuficiências técnicas,
disciplinares e metodológicas de preservação da saúde no trabalho.
O olhar da Saúde Ocupacional surge, sobretudo, dentro das grandes empresas, com a
organização de equipes progressivamente multiprofissionais, e a ênfase na higiene “industrial”. Por
sua vez, restringe-se a vinculações econômicas regidas pelo contrato entre capital-trabalho e, por
situar-se enquanto prática no interior do sistema jurídico-sanitário-previdenciário superestrutural do
capital, também mediado pelo Estado através de políticas públicas de caráter contributivo, e não
distributivo, portanto não universalizado e de forma paternalista cuja dimensão segundo Vasconcellos
e Oliveira (2011), não espelha a necessidade social de ampliação de direitos e maior justiça.
Da abordagem médico-pericial da Medicina “do Trabalho” para a agora da “Saúde
Ocupacional” vê-se que a ideia cartesiana do corpo como máquina permanece. Contudo há um
vislumbre da interação desse corpo de forma sistêmica expondo-se a fatores/agentes de risco. Assim,
segundo Lacaz (2007), as consequências do adoecer pelo trabalho são entendidas pelos médicos
peritos nesse campo de saber como resultado da interação do trabalhador (corpo hospedeiro) com
fatores/agentes (físicos, químicos, biológicos, mecânicos), existentes no meio ambiente de trabalho
que mantêm uma relação de externalidade aos trabalhadores. Então, passam a balizar sua prática
médica em manuais que trazem características empiricamente detectáveis mediante instrumentos das
ciências exatas e biológicas.
Assim, o olhar para a incapacidade laboral do trabalhador e seu possível retorno ao trabalho
no exame médico-pericial baseia-se ideologicamente na abordagem da Saúde Ocupacional de forma a
guiarem-se por manuais técnicos que supõem pressupostos preconizados pela média dos trabalhadores
ditos normais quando à suscetibilidade individual aos agentes/fatores. Fala-se então em “limites de
tolerância” e “limites biológicos de exposição”, ou ainda em “periculosidade/insalubridade”, conceitos
esses emprestados da higiene industrial e da toxicologia que demarcam a práxis médica atuando
sobre indivíduos, atentando-se sobre diagnósticos e tratamentos dos problemas de natureza orgânica
a partir de uma visão positivista e empirista trazida da clínica. Segundo Lacaz (2007), toma-se o
trabalhador como paciente e objeto da técnica, estreitando a possibilidade de apreensão das formas de
adoecimento nas formas de se trabalhar que encontramos na atualidade.
Demarcados por profundas diferenças, os campos da saúde ocupacional e da saúde do
trabalhador, com suas distintas características, segundo Vasconcellos e Oliveira (2011) estão
estruturados em discursos e métodos refletidos em ações que, por sua vez, geram contradições na
conduta das formulações políticas e das práticas institucionais. Nesse sentido, à visão da Saúde
Ocupacional que hoje rege grande parte da prática médico-pericial tanto no âmbito judicial quanto
na esfera previdenciária, escapa a possibilidade de considerar e apreender outras relações, como
aquelas configuradas pela organização/divisão do trabalho imputando um limite epistemológico que
considere e opere sobre nexos mais complexos.

73
Por isso, ressalta-se que uma Medicina “do Trabalho” realizada pelos médicos peritos
necessitaria afastar-se da abordagem da Saúde Ocupacional (essa verdadeiramente uma Medicina
“do Capital”) e aproximar-se dos pressupostos do campo da Saúde do Trabalhador que, a nosso ver,
melhor contribui na compreensão da causalidade das doenças relacionadas ao trabalho, especialmente
as cardiovasculares, psicossomáticas e mentais, tipicamente características dos adoecimentos pelo
trabalho atualmente. Dessa forma, passaria a entender o meio ambiente do trabalho a partir de um
movimento dinâmico com o trabalhador e sua subjetividade considerando o ritmo e a duração da
jornada de trabalho, o trabalho em turnos, a hierarquia, a fragmentação do conteúdo das tarefas, o
controle da produtividade e exercícios de poder cujas consequências para a saúde expressam-se como
doenças crônico-degenerativas e distúrbios mentais dos coletivos de trabalhadores (DEJOURS, 1987).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Somente a experiência dos trabalhadores, surgida de sua inserção específica na sociedade,


permite chegar a uma compreensão verdadeira da realidade. E a única transformação efetiva é aquela
que surge da ação direta baseada nessa experiência (sintetizar tanto a experiência particular de
determinado grupo de trabalhadores como as condições gerais da classe num movimento dialético
entre o particular e o universal). Portanto, a questão que se coloca é então, a capacidade coletiva
dos trabalhadores para colocar-se problemas complexos e articular estratégias de transformação de
forma que as lutas por sua saúde no trabalho devam se desenvolver somente parcial e inicialmente no
terreno imposto pela legislação, que o é também, o do campo da Saúde Ocupacional.
É importante fazermos esse esclarecimento, visto que o entendimento de nexo causal tal
como o encontrado nos campos jurídicos, sanitários e previdenciários atualmente, estabelece a
“doença” como processo particular ou derivado de conceitos como o de “risco” que diz respeito a
soma dos “perigos” de um ambiente de trabalho. Contudo, se nos distanciarmos dessa visão limitada
e já superada de Saúde Ocupacional de acordo com Mendes (1986), perceberemos que uma análise
mais aprofundada das “cargas de trabalho”, ou seja, dos “riscos” numa dinâmica global de processo
de trabalho, por parte dos médicos peritos, darão o substrato geral ao campo da Saúde Pública que
determina a geração de uma constelação característica de doenças particulares, conhecidas como
o perfil patológico de um grupo social característico de formas históricas específicas.1 Entretanto,
ainda se observa a predominância do ato médico pericial calcado num discurso biologizante
impregnado em concepções superadas como a da Saúde Ocupacional para a elucidação do nexo
causal e, que intermitentemente ainda ressoa numa individualização das questões relativas aos
adoecimentos do trabalho.

REFERÊNCIAS

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BRADIMILLER, P. A. Perícia judicial em acidentes e doenças do trabalho.
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Isabel Paraguay e Lucia Leal Ferreira. São Paulo: Oboré, 1987.
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HELOANI, J. R. Gestão e organização no capitalismo globalizado: história da manipulação
psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

1 “
As cargas psíquicas têm o mesmo caráter que as fisiológicas à medida que adquirem materialidade através da
corporeidade humana. [...] são socialmente produzidas e não podem ser compreendidas como ‘riscos’ isolados, ou
abstratos, à margem das condições que geram” (LAURELL, NORIEGA, 1989, p. 112).

74
LACAZ, F. O campo saúde do trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações
trabalho-saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 4, p. 757-763, 2007.
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São Paulo: Hucitec, 1989.
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de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam, 2011.

75
ADOECIMENTOS E AFASTAMENTOS DO TRABALHO BANCÁRIO
Juliana Lemos Silva Fortes*
Vera Lucia Navarro**
RESUMO: Esta pesquisa, em andamento, tomou como sujeitos trabalhadores bancários afastados, temporária ou definitivamente, do
emprego por motivos de saúde relacionados ao trabalho, com o objetivo de conhecer as implicações decorrentes desse episódio, tanto
em seu trabalho, quanto em sua vida fora do trabalho. Este estudo qualitativo é embasado no materialismo histórico dialético e foi
realizado junto aos bancários de Uberaba-MG. Foram realizadas 15 entrevistas semiestruturadas. A análise preliminar dos dados, à luz
do referencial teórico adotado, tem permitido relacionar as condições e a organização do trabalho bancário com o adoecimento físico e
mental desses trabalhadores culminando no afastamento do emprego.
Palavras-chave: Trabalho e saúde, Bancários, Saúde do trabalhador, Reestruturação produtiva dos bancos
ABSTRACT: This study is being presently conducted on bank workers who have temporarily or permanently taken sick leaves due to
work-related health conditions in order to learn about the implications resulting from such events, both to their work and to their lives
outside of work. This qualitative study, which is grounded on dialectical and historical materialism, was carried out on bank employees
in the city of Uberaba-MG/ Brazil. 15 semi-structured interviews were conducted. The preliminary analysis of the data in light of the
theoretical approach adopted has allowed to relate the conditions and the organization of bank work with physical and mental illnesses
in such workers which eventually remove them from employment.
Keywords: Work and health, Bank workers, Workers’ health, Production restructuring in banks

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o setor bancário brasileiro vem sendo afetado profundamente por um
processo de transformação e vem destacando posição de liderança na incorporação de novas tecnologias
e inovações organizacionais. A reestruturação produtiva atinge esse setor com o objetivo de ajustá-lo
às novas formas de acumulação capitalista. A intensa informatização do trabalho bancário, aliada a
outras mudanças estruturais do setor, que afetaram não apenas a natureza dos produtos, mas também
o próprio comportamento dos mercados, resultaram em mudanças significativas nas condições e
relações de trabalho e, consequentemente, na saúde dos trabalhadores bancários (SILVA, 2009).
Se por um lado o novo paradigma tecnológico da era da informação possibilitou novas
maneiras de trabalhar, por outro acarretou a precarização social através da gestão flexível do trabalho,
destruição dos direitos sociais e trabalhistas, enfraquecimento identitário (falta de reconhecimento
e valorização no trabalho), taylorismo da atividade mental e proliferação dos conceitos de empresa
enxuta, “empreendedorismo” e “cooperativismo” (ANTUNES, 2009).
Desta forma, o mundo do trabalho tem se revelado um cenário profundamente contraditório
e agudamente crítico (ANTUNES; BRAGA, 2009). Através do processo intenso de reestruturação
produtiva, novas estratégias ganharam força seguindo a política da precarização e precariedade do
trabalho bancário. Ao tratar do adoecimento do “homem-que-trabalha”, Alves (2013) considera como
manifestação explícita do processo de precarização do trabalho as ocorrências de adoecimentos e
doenças do trabalho, “[...] expressão candente do esmagamento da subjetividade humana pelo capital,
a negação do sujeito humano-genérico pelos constrangimentos da ordem burguesa” (ALVES, 2013,
p. 128). Selegrin (2013) complementa tal questão apontada por Alves (2013):
Precariedade e Precarização do trabalho: a utilização dessas duas categorias se dá como
termos mediadores e são de grande valia para situarmos o entendimento sobre o antigo e o
novo trabalhador bancário sem forte apego aos critérios ‘subjetivistas’ em termos geracionais,
mas em termos de condições de vida e trabalho. [...] esses termos remetem às questões
vivenciadas por trabalhadores e trabalhadoras em seus ambientes de trabalho e fora deles
e permitem evidenciar as mudanças que incorrem com as constantes ondas de inovações e
transformações no mundo do trabalho (SELEGRIN, 2013, p. 51).
Os novos modos de organização do trabalho influíram incisivamente nas condições de
trabalho e na saúde dos trabalhadores, a ponto de, ao “vestirem a camisa”, sacrificarem-se em prol

*
Fisioterapeuta e Doutora em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – FMRP USP.
Especialista em Ergonomia e Fisioterapia do Trabalho e em Perícia Judicial. Email: jubalemos@hotmail.com.
**
Socióloga, Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP).
Departamento de Psicologia e Educação. E-mail: vnavarro@usp.br.

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da instituição, suportar, assim, más condições de trabalho e estando expostos a riscos, sem que
haja qualquer controle sobre os adoecimentos e, inclusive, óbitos. (BARRETO; HELOANI, 2013).
Decorrente disso, como destaca Alves (2013), é “[...] o surgimento de um novo metabolismo laboral
com impactos na vida cotidiana do homem-que-trabalha.” (ALVES, 2013, p. 141). Tendo em conta
tais evidências apontadas, Barreto e Heloani (2013) explicam que
[...] os novos riscos coexistem ao lado dos velhos: as novas tecnologias e processos
de produção; as novas condições de trabalho, com jornadas prolongadas e extenuantes
associadas à intensificação e densificação do trabalho; as novas formas de contrato de trabalho
e a insegurança no emprego – como o trabalho independente e incerto, parcial, temporário,
pessoa jurídica, dentre outras formas de contrato; e as exigências emocionais e cobranças
elevadas no trabalho (BARRETO; HELOANI, 2013, p. 110).
São questões que revelam um maior nível de esgotamento e de empobrecimento dos
trabalhadores, sendo as condições de trabalho responsáveis por causarem insatisfação, desvalorização
profissional, fadiga, adoecimento laboral e sofrimento (BARRETO; HELOANI, 2013).
Em 2012, o número de bancários afastados do trabalho, registrados pelo Instituto
Nacional de Serviço Social (INSS), foi de 21.144, entre esses 5.511 (27%) foi devido a doenças
do sistema osteomuscular (LER/DORT) e 5.425 (25,7%) em decorrência de transtornos mentais e
comportamentais relacionados diretamente ao trabalho, como estresse, depressão e Síndrome do
Pânico. No entanto, o fato mais alarmante é que grande parte dos pedidos de afastamentos acaba
sendo negada. Assim sendo, o número de bancários que adoece pode chegar a 60 mil por ano em todo
o país (CONTRAF-CUT, 2013).
Segundo o secretário de saúde do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Walcir Previtale
Bruno, a categoria consegue ser campeã no que se refere à auxílios-doença e acidentário mesmo
diante das evidentes tentativas, largamente praticadas pelo INSS, de descaracterizar os problemas
dos bancários como doenças do trabalho. Somente nos primeiros três meses de 2013, 4.387 bancários
já haviam se afastado por adoecimento, sendo 25,8% por transtornos mentais e 25,4% por doenças
osteomusculares relacionadas ao trabalho. (CONTRAF-CUT, 2014). Alves (2013) também identificou
a subnotificação ou notificações insuficientes e a dissimulação do nexo causal como mecanismos da
ideologia das doenças do trabalho (ALVES, 2013).
A flexibilização da jornada de trabalho e seus reflexos na saúde dos bancários foram analisadas
por Silva (2013). O autor destaca o fato de os bancos possuírem altas taxas de doenças relacionadas ao
trabalho mesmo com a previsão legal de jornada especial, que estabelece o limite de seis horas diárias
e pausas passivas de 15 minutos. Na prática, o disposto pelo Direito do Trabalho, ao que tudo indica,
não tem sido respeitado, e tal desconfiança é confirmada pelo expressivo número de ações judiciais
em desfavor dos bancos. O autor ainda afirma que, ao confrontar os dados das jornadas mais extensas
com os dados disponíveis referentes a acidentes/doenças laborais, é possível afirmar que há uma
relação de causalidade entre a duração do tempo de trabalho e o surgimento de tais acometimentos. A
“sinistralidade” nos bancos, assim denominada pelo autor, é reflexo das características inerentes do
trabalho bancário marcado pela alta repetitividade, extrema concentração e jornadas prolongadas com
reduzido (ou inexistente) horário para pausas passivas e fisiológicas (SILVA, 2013). Como confirma
o advogado do Sindicato dos Bancários de Uberaba e Região.
Nós temos um caso para ilustrar também que é um caso clássico do Banco do Brasil, em
que para uma determinada função, a de assistente de gerente, que tem uma jornada de 6
horas, passou-se a ser exigido, pelo banco, que fosse desempenhada em 8 horas. Nós fizemos
uma ação judicial e fizemos com que fosse cumprido o que determina a lei, e o banco não
contratou outro funcionário. Mesmo com a diminuição de mais de 20% da carga horária,
o banco não contratou nenhum funcionário para suprir esse serviço. E o bancário hoje,
trabalhando por 6 horas, é obrigado a fazer o mesmo serviço que antes demorava 8 horas
para ser feito. O que vai gerar mais ação judicial e passivo trabalhista... e caímos no círculo
vicioso de conquistar o direito e depois de fazer prevalecer o direito (Advogado do Sindicato
dos Bancários de Uberaba e Região).

78
É cabida a preocupação do autor Silva (2013) em relação ao número de ações trabalhistas
movidas pelos bancários. Tal questão também foi reforçada pelo advogado do Sindicato dos Bancários
de Uberaba e Região e fica explícito o perfil das ações judiciais em andamento:
As ações judiciais com relação aos problemas de adoecimento por causa do trabalho,
geralmente, são de dois tipos: a previdenciária e a trabalhista. A previdenciária, no
sentido, de assegurar quando há a negativa, por parte do INSS, do pagamento do auxílio-
acidentário, ou seja, pagaram o auxílio-doença ao invés de pagar o auxílio-acidentário,
um é o código B31 e o outro B91. Então, a primeira ação é no sentido de assegurar ao
bancário que o afastamento dele seja caracterizado como doença bancária, desde que haja
um laudo justificando que aquela doença decorre do trabalho, que é o nexo causal ou uma
concausa. Então, no primeiro momento, é assegurado isso por causa da estabilidade do
trabalho quando ele retorna, conforme o artigo 118 da Lei 8.21334. No segundo momento,
é assegurado o pagamento do benefício previdenciário quando há a suspensão por parte
do INSS, mas o médico do bancário entende que ele ainda continua doente, inapto para
o retorno ao trabalho. E há também as ações em que se buscam a aposentadoria do
bancário porque o INSS, na maioria das vezes, não defere voluntariamente o benefício da
aposentadoria, mesmo considerando as idades e o tempo de contribuição. Nós temos as
ações trabalhistas que buscam a responsabilização dos bancos pelo sofrimento que este
bancário tem e/ou teve, e possíveis sofrimentos que ele terá no futuro decorrente da restrição
de uma série de atividades que ele vai ser cerceado (Advogado do Sindicato dos Bancários
de Uberaba e Região).
A onda contemporânea de intensificação da jornada de trabalho foi objeto de estudo de
Dal Rosso (2008). O autor apresenta fatos impressionantes do setor bancário: 72,5% dos bancários
consideram que seu trabalho atual é mais intenso do que o executado na época em que ingressaram
no banco; 62,5% deles afirmam que dedicam mais tempo ao banco do que no início de sua atividade
profissional; 85% dos trabalhadores acreditam que o ritmo e a velocidade do trabalho são mais
intensos do que antes; e 75% dos trabalhadores do setor bancário acumulam outras atividades que
antes eram realizadas por mais de um funcionário (DAL ROSSO, 2008).
Nesta senda, Antunes (2008) também tem o olhar especialmente voltado às formas de
padecimento, adoecimento e sofrimento no ambiente de trabalho. Formas essas que emergem da
precarização presente na:
[...] intensificação da atividade laborativa, no aumento do esforço, nas responsabilizações,
nas individualizações, na cobrança de um trabalho segundo os preceitos de ‘metas’,
‘competências’, onde a lógica humano-societal é substituída por um produtivismo típico da
era privatista, por uma lógica movida pela (des)razão instrumental (ANTUNES, 2008, p. 7).
Os resultados do acirramento da concorrência entre os trabalhadores, marcado por maior
individualismo e pelo princípio da meritocracia, são o esgotamento físico e psicológico, e os
sentimentos de frustração e culpabilidade dos bancários. Como relata o advogado do Sindicato dos
Bancários de Uberaba e Região.
São os riscos do próprio serviço, a pressão, a responsabilidade e as cobranças intensas de
metas, da produtividade dele em relação à venda comercial. E não só para os que trabalham
na área comercial e gerencial, mas também para os caixas, os escriturários, os chefes de
serviços, o pessoal da área administrativa, propriamente dita, que também sofrem uma
cobrança muito grande por produção, de vendas (Advogado do Sindicato dos Bancários
de Uberaba e Região).
A partir dos dados obtidos na pesquisa realizada pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo,
Osasco e Região, em 2011, os trabalhadores bancários apontaram a prática de assédio moral, associada
à cobrança abusiva de metas, como a principal causa de desgaste mental e adoecimento no trabalho.
A pesquisa traz ainda outro dado importante: 84% dos bancários já relataram ter apresentado algum
problema de saúde com maior frequência, mesmo sendo a maioria dos bancários (65%) considerada
jovem, com idade até 35 anos (BRUNO, 2011).
Há inúmeras e recorrentes denúncias divulgadas tanto pela mídia em geral como em sites
relacionados ao assunto. São conteúdos referentes a decisões judiciais e a material divulgado pelos

79
sindicatos da categoria, retratando a realidade dos bancários no país e apontando o assédio moral e
as metas abusivas como ameaças à saúde desses trabalhadores (segundo a perspectiva de dois em
cada três bancários) (CARSTENSEN, 2014). O ambiente de trabalho tem sido fonte de adoecimento,
tanto físico quanto mental, marcado pelas elevadas taxas de adoecimento da categoria bancária,
as quais estão relacionadas diretamente com a organização do trabalho e as profundas formas de
precarização do trabalho, destacando as formas de enfrentamento dos bancários frente a inúmeros
problemas vivenciados diariamente dentro das agências bancárias. A partir dessas constatações,
Carvalho e Mendes (2012) sinalizam também outra questão relevante que é o processo de afastamento
do trabalho e suas implicações sociais, as quais se somatizam à saúde fragilizada do trabalhador
(CARVALHO; MENDES, 2012).
Este novo modo de organização do trabalho agrava uma outra realidade, como explica
Barreto e Heloani (2013): “[...] aviltamento, exploração, violência, desemprego e exclusão social;
estes são elementos presentes na sociedade contemporânea, desenhada pelo neoliberalismo e pela
reestruturação produtiva” (BARRETO; HELOANI, 2013, p. 118). Imediatamente a atenção se volta
para o termo assédio moral, que se revela como uma das facetas da violência vivida no ambiente de
trabalho, responsável por deteriorar as condições e as relações de trabalho, seja na forma velada ou
declarada, seja através de velhas ou modernas estratégias de controle e dominação laboral.
Tal fenômeno foi definido pelos autores Freitas, Heloani e Barreto (2013) como sendo
[...] uma conduta abusiva, intencional, frequente, e repetida, que ocorre no ambiente de trabalho
e que visa diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um
indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade
e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional (FREITAS; HELOANI;
BARRETO, 2013, p. 37).
Infelizmente, são incontáveis as formas de violência no ambiente de trabalho, as quais podem
ser expressas através de um comportamento agressivo, uso do poder e da força física, psicológica ou
moral. O presidente do Sindicato dos Bancários ilustra alguns casos emblemáticos de assédio moral
que chegam até o sindicato através de denúncias, tais como as elencadas a seguir:
O gerente do Bradesco questionou a bancária de o porquê ela não ter ido trabalhar com a
‘roupa de bater metas’. Ou seja, é a sainha mais curta, com a barriga de fora, a ‘roupa de
bater meta’. A moça não tinha ido trabalhar com a roupa ‘apropriada’ para bater meta, mas
sim para induzir ou seduzir o cliente do banco. O gerente ainda complementou dizendo que
ela não estava empenhada em ajudar o banco a bater metas.

[...] hoje, uma denúncia da Caixa, o gerente chega a falar que: ‘Quem não estiver satisfeito
pede para sair do setor, pede transferência para outra agência.’ [...] Não quero nem falar
com o gerente, porque a briga vai ser tão grande ‒ e eles já são reincidentes. A ex-gerente
geral da agência aqui já tinha feito isso em pior grau: ‘Quem não estiver satisfeito pede
para sair da Caixa.’

[...] No Banco do Brasil, teve a seguinte denúncia: a bancária falou que o seu gerente
ficava na praça esperando a hora que ela passava, para ver quanto tempo ela iria demorar
da casa dela até chegar ao banco, controlando a hora que ela estava entrando no banco.
Ela fez essa denúncia e entramos com a ação. (Presidente do Sindicato dos Bancários
de Uberaba e Região).
Nesse sentido, Carvalho e Mendes (2012) concluíram, por meio da obra “As implicações das
novas formas de gestão na saúde do trabalhador: o que o assédio moral tem a ver com isso?”, uma
discussão contextual, de 2012, que as atuais práticas organizacionais se tornaram território suscetível
para o sofrimento e o adoecimento dos trabalhadores. Chamam a atenção, ainda, para os principais
fatores geradores e potencializadores do adoecimento mental, tais como:
[...] imposição de metas de produção, a intensificação do ritmo de trabalho, a
multifuncionalidade, a redução de pessoal, a precarização e a multiplicidade dos vínculos, o
reforço ao individualismo, a reestruturação produtiva visando o aumento da competitividade
e da lucratividade com a crescente taxa de desemprego, a perda de direitos, a naturalização
do trabalho precário e a violência no trabalho [...] (CARVALHO; MENDES, 2012, p. 276).

80
Tendo em vista tais evidências, Bruno (2011) afirma, categoricamente, que “[...] o assédio
moral não é uma doença, mas a sua prática leva o bancário ao adoecimento, ao afastamento do trabalho,
ao isolamento social e pode até desencadear o suicídio” (BRUNO, 2011). E fica explícita essa questão
da violência no trabalho através dos dados obtidos na pesquisa realizada pela Universidade de Brasília
(UnB) em 2009, no período entre 1996 a 2005, foram registrados 181 casos de suicídios de bancários
no Brasil, ou seja, a cada 20 dias, um bancário comete suicídio (FINAZZI-SANTOS, 2009).
Do ponto de vista do capital, tais mudanças, que constituem o processo de reestruturação
produtiva, resultaram em ampliação da produtividade e da lucratividade do setor. Enquanto que,
do ponto de vista do trabalho, verificou-se uma significativa redução de postos de trabalho, bem
como a intensificação de seu ritmo laboral, a sobrecarga de tarefas e o aumento do controle e da
pressão sobre os trabalhadores. Todo esse conjunto de mudanças repercutiu duramente nas condições
e nas relações de trabalho e na saúde dos trabalhadores do setor, e o pioneirismo da automatização
e da informatização não tardou em cobrar seu preço: rapidamente, o setor financeiro brasileiro
tornou-se o pioneiro também no registro de casos de Lesões Por Esforços Repetitivos (LER) e
Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT), doenças estreitamente relacionadas
à intensificação do trabalho. Isso porque a significativa redução dos postos de trabalho intensificou
o volume de trabalho para os que continuaram nos bancos, assim como para os novos contratados.
O aumento da pressão sobre os trabalhadores, expresso pela necessidade de cumprir metas cada vez
mais difíceis e o recorrente desrespeito à jornada de trabalho, agravaram a saúde física e mental dos
bancários (SILVA; NAVARRO, 2012). Antunes (2014) reforça esta realidade:
Num contexto de crescente desemprego e de aumento de formas precárias de contratação, os
assalariados bancários foram compelidos a desenvolver uma formação geral e polivalente,
na tentativa de manter seus vínculos de trabalho, sendo submetidos à sobrecarga de tarefas
e a jornadas de trabalho extenuantes. Agravaram-se os problemas de saúde no espaço de
trabalho nas últimas décadas, e observou-se, ainda, um aumento sem precedentes das lesões
por esforço repetitivo (LER), que reduzem a força muscular e comprometem os movimentos,
configurando-se como doenças típicas da era da informatização do trabalho, conforme
também constatamos na pesquisa realizada no universo bancário (ANTUNES, 2014, p. 17).

1 DESENVOLVIMENTO

1.1 Objetivos

Diante desse contexto, o objetivo do estudo que embasa este artigo é conhecer as implicações,
para os bancários, decorrentes do afastamento temporário ou definitivo do trabalho por motivos de
saúde relacionados ao seu trabalho.

1.2 Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que tem como referencial teórico-metodológico o


materialismo histórico dialético. Tomou-se como sujeitos da pesquisa, bancários afastados temporária
ou definitivamente do trabalho da cidade de Uberaba-MG. Os critérios de inclusão para se determinar
a participação dos bancários na pesquisa, incluíram: todos deveriam ter tido vínculo empregatício, em
algum momento, com alguma instituição financeira; estar afastado temporária ou definitivamente do
trabalho por motivos de saúde relacionados ao trabalho e emitir concordância em participar do estudo
ao assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A entrevista semiestruturada foi adotada como a principal técnica de coleta de dados, baseada
no roteiro desenvolvido pela pesquisadora, dando o privilégio da fala ao entrevistado. O registro das
entrevistas1 foi realizado através do método de gravação, tendo sido utilizado um telefone celular

1
O total de horas de gravação das entrevistas: 13h00min25s. Sendo que a média de duração de cada entrevista foi de
uma hora e meia cada. .

81
como instrumento, por meio do aplicativo “Gravador de voz”. Após a realização de cada entrevista,
a mesma foi transcrita, pela própria pesquisadora, uma a uma, a fim de se preservar e de manter o
contato direto com os dados a serem analisados, além de facilitar a pré-seleção dos mesmos por temas.
O recrutamento dos bancários entrevistados foi realizado através da técnica de snow ball,
baseada nas indicações sucessivas de informantes. Considerou-se que todas as entrevistas fossem
realizadas no ambiente externo ao trabalho, sendo que a maioria ocorreu no domicílio do próprio
entrevistado e algumas na sede do Sindicato dos Bancários de Uberaba e Região.
Ao todo foram entrevistados 15 bancários afastados temporária ou definitivamente do
trabalho por motivos de saúde relacionados ao trabalho, da cidade de Uberaba. Por uma questão de
sigilo, os nomes dos trabalhadores entrevistados foram mantidos no anonimato, sendo identificados
por números; bem como os nomes das respectivas instituições financeiras, que foram identificadas
apenas como públicas e privadas. Além das entrevistas com os bancários, também houve outros
depoimentos com valor para a composição dos argumentos apresentados, como a entrevista cedida
pelo presidente do Sindicato dos Bancários de Uberaba e Região, Mauricio S. de Sousa2, e pelo
advogado do respectivo sindicato, Muriel Vieira.
Este estudo respeitou os aspectos éticos previstos na Resolução 196/96 do Conselho Nacional
de Saúde (CNS) pertinentes às pesquisas envolvendo seres humanos e foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da FMRP-USP (Número do parecer: 531.453).

1.3 Análise dos dados

Os dados coletados revelam que o sofrimento e o adoecimento físico e mental culminando


no afastamento do trabalho, que acometem os bancários, estão relacionados à forma de organização
do trabalho, às condições precárias e à intensificação do ritmo de trabalho.
A maioria dos depoimentos obtidos nas entrevistas denuncia que as más condições de
trabalho são responsáveis pelos adoecimentos e afastamentos no setor bancário. São histórias de
trabalhadores cuja saúde foi impactada pela precariedade e pela precarização do trabalho. No ambiente
laboral, em que os bancários são submetidos à intensificação do trabalho, à pressão, à insegurança, às
metas abusivas e ao assédio moral, destacam-se, nos depoimentos, algumas consequências pessoais
experimentadas e marcadas pela dor dos adoecimentos físicos acompanhados pelo sofrimento, pela
ansiedade e pela depressão. Por essa lógica, a organização do trabalho bancário e as condições
laborais, onde as atividades são realizadas, repercutem negativamente na saúde do trabalhador que
sofre graves doenças relacionadas ao trabalho, conforme demostra o relato do bancário entrevistado:
Eu aguentava a dor e sempre pensava que eu precisava trabalhar. Eu suportava. [...] Têm uns
vinte anos que eu tomo remédios por conta do banco. Tudo isso, eu acho, que o que gerou
foi o banco, a pressão. O meu gerente fala: ‘você tem que vender, tem que vender’, porque a
gente não é só Caixa do banco, a gente faz tudo, o banco é um supermercado, tem produtos
à venda. Você tem que vender seguros, títulos de capitalização, cartões, abrir contas, então
a pressão ali é demais. A gente às vezes não dorme, eu também tomo remédio controlado
[...] E o mais grave foi realmente o derrame ou infarto, é tudo a mesma coisa. Eu estava
no banco e não estava me sentindo bem e aí eu senti um choque, um choque esquisito. [...]
Eu tive a Síndrome do Pânico depois do infarto, eu pensava: ‘vou morrer, vou morrer!’ [...]
eu não conseguia nem dirigir, eu chegava na porta do banco e voltava. Eu não conseguia
entrar. Eu perdi 20 quilos. Às vezes, eu tomava tanto remédio e ia trabalhar que eu não
olhava nos olhos dos clientes, porque minha pupila estava dilatada, eu estava com cara de
doido mesmo. Eu olhava para baixo, ia entregar o papel para o cliente e minha mão tremia.
Eu tentava disfarçar, enganando a mim mesmo, mentindo para mim mesmo. [...] Eu sou
também hipertenso hoje, tomo remédio para hipertensão, ou seja, entrei sadio no banco e
estou doente! Hoje se eu sair do banco eu não consigo trabalhar em nenhuma outra empresa
[...] (Entrevistado 12).
Antunes (2008) enfatiza que as novas formas de organização do trabalho – toyotismo e
a acumulação flexível foram responsáveis por importantes transformações no processo produtivo.

2
Maurício Sebastião de Sousa, presidente do Sindicato dos Bancários de Uberaba e Região (2009-2015).

82
E essas, por conseguinte, geraram resultados diretos no mundo do trabalho, como por exemplo, a
desregulamentação dos direitos trabalhistas, o aumento da fragmentação da classe trabalhadora, a
precarização e a terceirização da força humana que trabalha, a destruição do sindicalismo de classe,
além do aumento da incidência de doenças do trabalho, como sugere:
O trabalho, espaço de sobrevivência possível para aqueles que só dispõem da venda de
sua força de trabalho, tornou-se, então, o lócus por excelência das jornadas extenuantes,
da precarização dos direitos sociais, dos medos e dos temores constantes do desemprego,
do stress para se manter no emprego, ou ainda das lesões por esforço repetitivo (LER) e
dos múltiplos modos de ser do adoecimento. É um adoecimento típico da era informacional
(ANTUNES, 2008, p. 8).
No estudo “A Patologia da Solidão: o suicídio de bancários no contexto da nova organização
do trabalho”, Finazzi-Santos (2009), com o objetivo de responder à pergunta: “[...] as violências
decorrentes das reestruturações produtivas podem influenciar a decisão do bancário em cometer
o suicídio?”, afirma que o adoecimento, a morte e o suicídio na categoria bancária externalizam
as consequências negativas das mudanças estruturais dos processos de reestruturação produtiva
(FINAZZI-SANTOS, 2009).
Mesmo não sendo uma estatística oficial, a categoria bancária é apontada por vários
investigadores como a segunda maior em número de suicídios no Brasil. Finazzi-Santos (2009), em sua
pesquisa, trata da questão do suicídio como consequência direta da incapacidade do bancário suportar
as violências que é constantemente submetido, as doenças de ordem física e mental e, principalmente,
o afastamento (“símbolo da incapacidade”) não só do trabalho, mas da vida (FINAZZI-SANTOS,
2009). A esta questão extrema do suicídio junta-se ao que Dejours (2007) problematiza em torno das
consequências reais desta decisão na vida destes trabalhadores: “[...] o mundo do trabalho torna-se a
tal ponto inabitável para um número crescente de trabalhadores e trabalhadoras, que alguns deles, que
se supunha privilegiados com relação àqueles condenados ao desemprego e à pobreza, acabam por
tirar a própria vida” (DEJOURS, 2007, p. 19).
Em um depoimento difícil, relatado pela pesquisadora, o Entrevistado 07 ilustra com a sua
própria experiência essa questão extrema do suicídio no trabalho. O bancário relembra durante a sua
entrevista que chegou a ir armado para a agência trabalhar. Seu intuito, naquele dia, era matar quatro
colegas de trabalho dentro do ambiente do banco, entre eles o seu superior imediato e, inclusive,
tentar contra a sua própria vida.
A ocorrência de LER/DORT e de acometimentos mentais dentro das agências bancárias
foi destaque nos depoimentos obtidos no estudo do impacto da reestruturação produtiva sobre o
trabalho bancário da autora Silva (2009). A pesquisa apontou o envolvimento direto das condições
do trabalho bancário, agravadas pela intensificação, desvalorização, instabilidade e redefinição do
perfil profissional, com o aumento dos adoecimentos físico e mental desses trabalhadores. A saúde
dos bancários foi ameaçada pelo aumento da pressão sobre os mesmos, expressa pela necessidade
de cumprimento de metas cada vez mais difíceis e o recorrente desrespeito às jornadas de trabalho.
(SILVA, 2009). Os depoimentos dos bancários põem em relevo esta questão:
O que mais me marcou foi uma vez que eu estava no Caixa e eu com talas nos dois braços
e com o colar cervical, e o pessoal chegava e perguntava: ‘você sofreu algum acidente,
algum desastre?’ E eu ali, trabalhando, sentindo dor, não andava direito por conta da
coluna e trabalhando em pé. Sentindo dor e trabalhando. Eu não sei como eu conseguia,
mas conseguia... era mais pelo medo de ser mandada embora por não dar conta do serviço.
Para eles era conveniente, eu mantinha o meu padrão... mas eu tinha medo de ser taxada
como inválida e inútil (Entrevistado 13).

O meu problema no banco nunca foi da mesa para fora e sim da minha mesa para trás. Eu
não tinha problemas com os clientes, o contato com o público... eu gostava de atendê-los,
de verdade. Mas, até isso o banco me tirou. Hoje tenho Síndrome do Pânico e fobia social.
O negócio passou a ficar ruim... Eu deveria ter saído antes, eu não precisava ter morrido lá
dentro do banco. Eu não soube administrar, a lidar com a pressão. É como eu sempre digo
o banco tem que ser encarado como algo transitório. [...] Resumindo, sofri quatro infartos,

83
passei a sofrer de pressão alta, que subiu tanto que acabei perdendo parte da minha visão.
Ficava tão nervosa que chegava a contorcer as mãos... Tenho hérnias de disco na coluna
também. Hoje eu gasto muito mais com a minha saúde do que eu ganho, do que eu já ganhei.
Faço tudo que as pessoas me indicam: terapia, tratamento com psicólogo, hidroterapia e até
homeopatia. Estou tentando ainda porque tenho uma criança pequena que depende de mim,
eu tive um filho temporão (Entrevistado 15).
Tendo em vista tais evidências, Finazzi-Santos (2009) explicam como se dá a
construção desse contexto:
O trabalho se torna pesado, visto que o fator ‘custo’ restringe a contratação de novos
trabalhadores, sobrecarregando os poucos existentes; os trabalhadores são forçados a
trabalhar mal, na medida em que são obrigados a desenvolver múltiplas tarefas, com
velocidade crescente, sujeitando-se a sucessivos erros; o assédio moral se dissemina como
prática utilizada para fazer com que os trabalhadores produzam cada vez mais, ou, de
outra forma, com o intuito de desqualificar e eliminar os que são indesejáveis; o medo do
desemprego ou da perda da função gratificada3 é utilizado como estratégia de intimidação
para que o trabalhador aumente a produtividade a qualquer custo ou se sujeite a humilhações
e violências psicológicas das chefias; o ‘contingente de reserva’, resultado das altas taxas de
desemprego, pressiona aqueles que estão empregados para que se sujeitem à precarização das
condições laborais (FINAZZI-SANTOS, 2009, p. 193).
Os bancários entrevistados, alguns de forma consciente e crítica, enquanto outros ainda de
forma ensaística, já apresentaram a percepção de que a culpa do adoecimento não é do trabalhador
(fenômeno denominado culpabilização) e responsabilizam o sistema organizacional do trabalho como
“doentio”. Não é o bancário que está doente, e sim o banco! Como explica Paparelli (2012), “[...] o
bancário que adoece é rechaçado porque ele é uma denúncia viva do que acontece dentro desse modelo
organizacional” (PAPARELLI, 2012, p. 1). O bancário entrevistado 6 sublinha a este propósito:
A vida emocional da gente fica muito abalada! Quem sabe como vai ser no futuro? Se isso
vai acarretar alguma doença para a gente? Com certeza! Porque é um beliscão que você
leva todo dia naquela ferida! Todo dia vai tirando uma casquinha. Todo dia você chega lá
para trabalhar e tem novas coisas, novas metas, muda isso, muda aquilo outro... as coisas
mudam de forma tempestiva. Fora as mudanças que estão tendo no mercado, nos bancos.
Os bancos cada vez mais com novas tecnologias, novos clientes, e querendo nos eliminar de
dentro da agência. São todos os bancos querendo fazer isso com a gente, jogando para cima
das máquinas. E será que eles vão vender para máquinas daqui uns tempos? Uma máquina
consome? Terceiriza tudo: ele (o banco) quer ganhar dinheiro! Mas e daí? Como será o
amanhã? Será que alguém já pensou nesse futuro? Ele vai vender para quem? Máquina vai
pedir dinheiro emprestado, vai consumir lá no supermercado? (Entrevistado 6).

CONCLUSÃO

Esta pesquisa, com o objetivo de conhecer como se dá o processo de adoecimento e


afastamento do emprego por motivos de saúde relacionados ao trabalho, tomou como sujeitos
trabalhadores bancários que foram afastados temporária ou definitivamente do trabalho.
Os dados da pesquisa, coletados até o momento, tem revelado que os trabalhadores bancários
estão continuamente submetidos à flexibilização das relações de trabalho (terceirização e rotatividade),
às práticas de assédio moral, à intensificação do ritmo de trabalho e à cobrança abusiva de metas -
apontada inclusive pelos próprios trabalhadores como a principal causa de desgaste físico e mental.
Os relatos de adoecimentos por doenças relacionadas ao trabalho acompanhados pelo
afastamento do emprego, principalmente, os casos de afastamentos definitivos por incapacidade
laborativa, revelaram impactos profundos não só na vida profissional desses trabalhadores como
também na vida pessoal. Os bancários adoecidos e afastados do trabalho sofrem com a exclusão

3
Função gratificada: A gratificação de função tem como objetivo remunerar a maior responsabilidade do cargo, isto
é, pagar ao bancário pelo exercício de uma atividade de maior relevância e que envolve obrigações mais complexas e
emocionalmente mais tensionantes.

84
econômica, por deixarem de ser trabalhadores produtivos e com a exclusão social, por se tornarem
indivíduos dependentes marcados por sequelas e limitações acarretadas pela doença.
Pode-se depreender, a partir dos resultados obtidos neste estudo, que o contexto de mudanças
que vem ocorrendo no setor financeiro brasileiro, nas últimas décadas, somado a intensificação
do trabalho e a precarização das condições laborais, está intimamente relacionado a ocorrência
de adoecimentos e afastamentos relacionados ao trabalho. A organização do trabalho bancário
é responsável pelo adoecimento físico e mental desses trabalhadores culminando no afastamento
temporário ou definitivo do emprego.

REFERÊNCIAS

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86
A SAÚDE DO TRABALHADOR MOTOTAXISTA DO MUNICÍPIO DE CAICÓ/RN
NO CONTEXTO DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
Aline Gomes dos Santos*
Antônio de Medeiros Pereira Filho**
RESUMO: Frente ao aumento do desemprego estrutural no país, surge a atividade de mototaxista. Em Caicó/RN esta atividade vem
se apresentando como uma alternativa de subsistência. Considerando ser esta uma atividade precária e de risco, buscamos analisar as
condições da saúde do trabalhador mototaxista de Caicó/RN no contexto da precarização do trabalho. O estudo trabalhou com pesquisa
documental, entrevista semiestruturada e aplicação de questionário junto a uma amostra da população de mototaxistas do município.
O resultado revelou que estes trabalhadores estão expostos a diversos riscos inerentes à profissão, e acidentes no trânsito e violência
urbana são bastante evidentes no presente estudo.
Palavras-chave: Precarização do trabalho, Acidente, Saúde do trabalhador, Trabalhador mototaxista
ABSTRACT: Opposite the increase in structural unemployment in the country, there is the mototaxi driver activity. In Caicó/RN this
activity has been presented as an alternative livelihood. Considering that this is a precarious and risky activity, we analyze the health
conditions of the mototaxi driver worker Caicó / RN in the context of precarious work. The study worked with documentary research,
semi-structured interview and questionnaire with a sample of the population of the municipality motorcycle taxi drivers. The result
revealed that these workers are exposed to various risks inherent in the profession, and traffic accidents and urban violence are quite
evident in this study.
Keywords: Precarious work, Accident, Occupational health, Worker mototaxi driver

INTRODUÇÃO

No Brasil o uso da motocicleta como um serviço para transporte de pessoas surgiu na cidade
de Crateús, Estado do Ceará, no final de 1995, ganhando rapidamente espaço em várias cidades do
Estado, as quais adotaram esse sistema como alternativa no transporte urbano. Em pouco tempo essa
atividade/serviço foi se disseminando para outros Estados do país, estando presente principalmente
na região Nordeste.
Esta atividade econômica vem crescendo em várias regiões do Brasil; a prática do
serviço de mototáxi está presente em 52,7% dos Municípios e capitais brasileiras (IBGE, 2008),
provavelmente, como uma alternativa de subsistência a uma considerável parcela da sociedade face
à ausência de possibilidades reais de trabalho, juntamente com a ausência/deficiência de políticas
de mobilidade urbana.
A expansão da atividade de mototáxi é um fenômeno que pode ser visualizado na cotidianidade
de várias cidades e capitais brasileiras, no município de Caicó - RN não é diferente, e a observação
empírica permite constatar, inclusive, o crescimento dessa atividade na cidade.
No município de Caicó a atividade se expandiu principalmente devido a falha no sistema
de transporte coletivo urbano, mas também pela dificuldade do trabalhador se manter no mercado
de trabalho formal.
Atualmente a profissão vem passando por um processo de legalização através da promulgação
da Lei n. 12.009/09 cujo objetivo é regulamentar a profissão. No entanto, cabe a cada município
normatizar e fiscalizar essa atividade, conforme a Lei Nacional, assim, o município de Caicó/RN,
regulamentou a profissão de mototaxista através da Lei Municipal n. 4.507 sancionada no ano de 2011.
O presente trabalho tem por objetivo apresentar as condições de saúde do trabalhador
mototaxista do município de Caicó – RN, categoria profissional que está inserida em um setor
fora do trabalho tradicional (formal), onde se lança o olhar sobre o processo da informalização das
relações de trabalho, o qual tem por base a ausência de qualquer contrato formal entre empregador
e empregado e, consequentemente, a inexistência de garantias e direitos sociais conquistados pela
classe trabalhadora.

*
Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba. Mestre em Serviço Social - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Assistente Social do Centro Regional de Referência em Saúde do Trabalhador
(CEREST) - Regional de Caicó/RN. E-mail: alinelipe2@hotmail.com.
**
Graduado em Enfermagem – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; especializando em Gestão em Saúde
- Escola de Enfermagem (UFRN). Coordenado do CEREST Regional de Caicó/RN. E-mail: anthonyorn@hotmail.com.

87
A pesquisa de campo foi realizada a partir da aplicação de questionários junto aos mototaxistas
da cidade, os quais foram selecionados por meio de critérios que definiram uma amostra intencional
de 98 trabalhadores, com base na análise realizada pelo Centro Regional de Referência em Saúde do
Trabalhador (CEREST) no ano de 2011. Também foram utilizados como instrumentais nesse estudo
a pesquisa documental e a utilização de entrevista semiestruturada.
A interpretação dos dados foi realizada através do método de análise estatística descritiva
para o tratamento dos resultados pertinentes às questões fechadas dos questionários, mediante o uso
de Gráficos; e para a discussão dos resultados coletados como as questões abertas e das entrevistas,
utilizou-se a análise por categorização temática, através da qual os dados foram agrupados,
considerando a parte comum existente entre eles; proporcionando uma descrição objetiva, sistemática
e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação dos sujeitos pesquisados.
De acordo com os dados obtidos em nossa pesquisa, estes trabalhadores se caracterizam
por serem em sua maioria do sexo masculino, com um grau de escolaridade baixo (fundamental
incompleto), com idade entre 18 a mais de 60 anos (a maioria compreendendo a faixa etária dos 30
anos), residentes em casa própria1, com até três moradores na residência e que já trabalharam em
outras atividades, inclusive com carteira assinada.
Esse estudo buscou analisar as condições de saúde dos mototaxistas do município de
Caicó, atividade que compõe o leque de trabalhos informais em crescimento exponencial e de forma
desorganizada em diversas regiões do país.

1 AS CONDIÇÕES DE SAÚDE DO TRABALHADOR MOTOTAXISTA DE CAICÓ/RN:


RISCOS E AGRAVOS INERENTES A PROFISSÃO

As condições de trabalho as quais o mototaxista encontra-se submetido no seu cotidiano


de trabalho acabam gerando o seu adoecimento, através das chamadas doenças ocupacionais;
ocasionando nestes trabalhadores uma possível invalidez ou mesmo a morte.
De acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT):
Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação
aprovada pelo Ministro do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou
métodos de trabalho, impliquem risco acentuado em virtude de exposição permanente do
trabalhador(a) (BRASIL, 1943).
A exposição ao risco constante de acidentes no trânsito é algo permanente na atividade
mototaxista, portanto, trata-se de uma atividade perigosa, que vulnerabiliza o trabalhador.
No dia 20 de junho de 2014 foi publicada a Lei n. 12.997 que acrescenta entre as atividades
perigosas àquelas desenvolvidas pelo trabalhador em motocicleta. Acontece que, não obstante o
reconhecimento da periculosidade da atividade pela lei, os efeitos pecuniários dela decorrente não se
aplicam a todos os trabalhadores, restringindo-se aqueles que possuem vínculo empregatício.
Apesar da Lei n. 12.997/14 considerar perigosas as atividades do trabalhador motociclista,
os efeitos pecuniários decorrentes dessa alteração legislativa ainda estão em discussão, visto que
se aguarda a regulamentação da atividade prevista no parágrafo quarto do artigo 193 da CLT pelo
Ministério do Trabalho (VIEIRA JUNIOR, 2014).
Observamos que muitos desses trabalhadores se enquadram como autônomos e ainda
não estão inscritos no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ficando assim, desprotegidos
no que tange aos benefícios previdenciários. De acordo com a legislação em vigor no município
(Lei n. 4.507/11, artigo 2°, inciso II), o mototaxista precisa estar vinculado ao INSS, no entanto,
essa recomendação ainda não é fiscalizada pelos órgãos competentes do município, levando vários
trabalhadores ao não cumprimento da referida recomendação.
Uma das tentativas do Estado para tentar reduzir as assimetrias presentes no mercado
de trabalho tem sido a articulação entre uma política macroeconômica que tenha na geração de

1
Apesar de não termos procurado aprofundar essa questão em nossa pesquisa para sabermos as condições de moradia
desses trabalhadores, no que tange a estrutura física, saneamento, localização, dentre outros aspectos.

88
empregos um de seus pressupostos com políticas sociais e de mercado de trabalho que visem reduzir
as desigualdades existentes entre os diversos grupos de trabalhadores.
Essas assimetrias, decorrentes do maior poder do comprador de força de trabalho, assim
como das características inatas e adquiridas pelos indivíduos, refletem-se nas oportunidades que estes
têm no mercado de trabalho. Portanto, cabe ao Estado, através das políticas públicas, intervir para
corrigir ou ao menos compensar essas tendências (MORETTO, 2010)
Cabe às políticas públicas sociais enquanto sistema operacionalizador de direitos direcionarem
o atendimento aos trabalhadores, no caso em apreço, a saúde do trabalhador constitui uma área
especifica da Saúde Pública que tem por objeto de estudo e intervenção as relações de trabalho e saúde.
A grande incidência de doenças relacionadas à categoria dos mototaxistas revela a necessidade
de geração de conhecimentos acerca dos riscos inerentes aos profissionais mototaxistas. Neste sentido,
o CEREST procurou delinear o perfil de adoecimento do trabalhador mototaxista através de um
trabalho de vigilância epidemiológica, o qual é caracterizado pela Lei n. 8.080/90 como:
Conjunto de ações que proporciona o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer
mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com
a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou
agravos (BRASIL, 1990)
Portanto, a vigilância epidemiológica constitui-se, ainda, como um importante instrumento
para o planejamento, a organização e a operacionalização dos serviços de saúde, como também para
a normatização de atividades técnicas correlatas.
Com base neste estudo realizado pelo CEREST realizamos uma análise mais aprofundada
acerca das condições de saúde desses trabalhadores.
Questões acerca de possíveis acidentes de trabalho, intensidade dos acidentes envolvendo os
mototaxistas, relação entre a intensidade do acidente e a paralisação do trabalho, existência de doença
relativa ou decorrente do tipo de atividade profissional desenvolvida foram abordadas.
Sabemos que a paralisação da atividade representa, para o trabalhador2, a suspensão de seu
rendimento. Com efeito, não são todos os trabalhadores mototaxistas que se beneficiam dos direitos
trabalhistas, embora possam ocorrer casos em que alguns trabalhadores contribuam com o INSS,
amenizando, assim, os efeitos de qualquer adversidade relativa à profissão.
Ao questionarmos em nossa pesquisa se para os mototaxistas entrevistados a atividade que
eles exercem oferece riscos, observamos que todos têm consciência do quanto a profissão oferece
riscos à saúde do trabalhador; então perguntamos quais seriam os maiores riscos observados por eles
no cotidiano de trabalho e obtivemos os seguintes dados: 95,9% dos entrevistados responderam que os
maiores riscos aos quais eles estão expostos são assaltos e acidentes no trânsito, um dos entrevistados
não respondeu e 3, 06% respondeu que os riscos aos quais os mototaxistas estão expostos no cotidiano
de trabalho são as doenças de pele.
A violência tem sido uma preocupação constante na vida do mototaxista; o município vem
vivenciando uma onda de assaltos nos últimos meses e o mototaxista tem sido um alvo frequente dessa
onda de violência. No mês de março deste ano de 2014 um mototaxista foi assassinado3 após ter reagido
a um assalto, fato que levou a categoria a realizar um protesto que reuniu Centenas de mototaxistas
nas ruas de Caicó contestando a falta de segurança vivenciada no município nos últimos dias.
A variável já sofreu algum acidente de trabalho é um dos aspectos fundamentais para medir
a dimensão da periculosidade, dos riscos que permeiam a atividade de mototáxi. De acordo com os
dados do CEREST o número de trabalhadores que já sofreram algum acidente de trânsito durante a
execução de seu trabalho chega próximo aos 50%.
Dos 133 trabalhadores entrevistados, 43% já sofreram acidentes de trabalho; assim, o
acidente de trabalho, particularmente o de trânsito, constitui um elemento presente e que se manifesta
2
Dos 133 mototaxistas que participaram da pesquisa realizada pelo CEREST, cinquenta e sete já tinham sofrido algum
tipo de acidente durante a realização do seu trabalho; compreendendo um dado de 42,9% dos entrevistados.
3
O mototaxista, Alceno Santos, foi atingido por dois disparos de arma de fogo no seu local de trabalho, ao reagir a um
assalto. Alceno, 55anos, que vinha resistindo aos ferimentos, faleceu na madrugada desta quinta-feira (27) na Unidade de
Terapia Intensiva do Hospital de Currais Novos (DANTAS, 2015).

89
na atividade de mototáxi; neste sentido, a questão referente à segurança assumiu o tema central das
primeiras discussões no tocante a regulamentação da profissão.
Porém, para compreender em que medida tal aspecto é nefasto para esses trabalhadores,
deve-se medir a intensidade dos acidentes. Esta variável permitirá enxergar se houve um período
longo de paralisação de suas atividades. Entre os mototaxistas entrevistados que já se acidentaram,
vinte trabalhadores precisaram se afastar do trabalho e apenas oito trabalhadores precisaram de
atendimento médico e/ou ambulatorial.
A questão do acidente se torna relevante, na medida em que a atividade de mototáxi não
comporta, no caso de Caicó, qualquer cobertura social e trabalhista, as quais poderiam ofertar alguma
segurança para esses trabalhadores, diferentemente dos casos daqueles que contribuem para o INSS.
Os efeitos decorrentes dos acidentes podem ser de ordem individual e social, pois, além de incidirem
no trabalhador as sequelas fisiológicas do acidente, socialmente têm um custo elevado, na medida em
que sua unidade familiar se encontra desamparada de qualquer benefício.
Vejamos o trecho da entrevista de um mototaxista vítima de acidente de trabalho grave
relatando sua situação após o acidente:
Minha vida financeira foi através dos amigos e da família; porque a pessoa que me acidentou
manda um salário pra mim. Graças a Deus que ele manda, mas como todos sabem, um
salário não dá pra viver, principalmente um pai de família com duas crianças dentro de casa.
E então, os familiares e os amigos me ajudam bastante. Mas vou começar a contribuir; se
Deus quiser, a partir de agosto. Por causa de quatro dias de atraso no meu INSS que eu não
fui contemplado com o benefício (Entrevistado 2).
Era o segundo acidente que o mototaxista entrevistado se envolvia durante a execução do
seu trabalho. Neste segundo acidente, o trabalhador teve sua perna fraturada em dois locais quando
teve a moto atropelada por uma caçamba, e por não ser segurado do INSS não foi beneficiado com
o auxílio acidente previdenciário; restando-lhe contar apenas com o apoio de familiares e a ajuda da
empresa a qual a caçamba faz parte.
Outra variável mensurada e que pode caracterizar a atividade de mototáxi diz respeito ao fato
de que se esses trabalhadores já desenvolveram alguma doença devido à profissão que realizam. Ao
questionarmos os mototaxistas entrevistados se eles sentem algum sintoma de Doença Relacionada
ao Trabalho (DRT), observamos que mais da metade dos entrevistados afirmaram que sim, 53,1%.
Perguntamos então, aos entrevistados se eles acham que estes sintomas têm relação com o
trabalho executado por eles; 51% responderam que sim. Ao perguntarmos por que eles pensam que
este sintoma tem relação com o seu trabalho, obtivemos os seguintes dados: 27,5% associa o sintoma
ao tempo em que passa sentado na garupa da moto e 23,4% associa o sintoma às más condições
das estradas; 47,9% dos entrevistados não se queixaram de sentirem sintomas de DRT e um dos
entrevistados não respondeu.
A pesquisa realizada pelo CEREST procurou levantar questões acerca de assuntos específicos
da área médica, fonoaudiológica e fisioterapêutica; contando com a participação dos técnicos de sua
equipe. De acordo com os dados levantados a maioria dos mototaxistas sente algum sintoma de
doença osteomuscular, aproximadamente 61% dos entrevistados. Este número também compreende
o quantitativo de trabalhadores que se queixa de desconforto durante a execução do seu trabalho.
Estes dados estão relacionados ao cotidiano de trabalho dos mototaxistas para a execução
de sua atividade, cujo traço característico é estar sentado sobre a moto por várias horas no decorrer do
dia, trafegando por ruas e rodovias em más condições (esburacadas), e sem muito tempo e até mesmo
um lugar adequado para descanso, fatores que em longo prazo vão ocasionar nestes trabalhadores
vários problemas osteomusculares.
Dentre os problemas osteomusculares a lombalgia pode ser considerada uma das doenças
ocupacionais mais frequentes, estando associada às atividades nas quais os trabalhadores estão
expostos a uma grande sobrecarga física ou a uma postura inadequada, no caso específico dos
mototaxistas, a postura do trabalhador sobre a moto por um período prolongado é um condicionante
que pode levar o trabalhador a desenvolver este tipo de DRT.

90
Os dados levantados pelo CEREST deixam claro que mais de 50% dos mototaxistas
entrevistados sentem desconforto durante a execução do seu trabalho. O fato deste trabalhador não
conseguir relaxar durante a execução de seu trabalho, acaba gerando uma tensão muscular muito forte
ou pode ainda levar este trabalhador a manifestar certa agressividade, e outras descargas psicomotoras,
ou comportamentais, muitas vezes observada no dia a dia, ou em brigas no trânsito, etc.
A pesquisa do CEREST também revelou que 54,89% dos mototaxistas entrevistados
apresentam desconforto na hora de dormir. Estes dados revelam o quanto à saúde desses trabalhadores
encontra-se afetada pelo cotidiano de trabalho ao qual cada trabalhador está submetido. Essa rotina
pode melhor retratada através da fala de um dos entrevistados em nossa pesquisa.
Minha rotina de trabalho [...] eu começo de cinco horas da manhã, vou pra casa as oito
tomar café, volto novamente pra praça, esperar fazer corrida. Vou almoçar de onze horas,
retorno as duas pra descansar um pouco; vou pra praça novamente as cinco, trabalho até
oito horas e às vezes até mais. No período de festa mais ainda, porque se estende às vezes até
amanhecer o dia. Então, é essa a rotina do mototaxistas (Entrevistado 2).
A análise desses dados deixa transparecer o quanto estes trabalhadores são vítimas de sua
própria auto exploração, ocasionada pelo sistema vigente que impõe condições precarizadas de
trabalho, principalmente ao trabalhador informal, visto ser este um trabalhador mais fragilizado no
que se refere às leis trabalhistas e de proteção social.
No tocante a proteção contra os efeitos causados pela constante exposição ao sol, observamos
nos dados colhidos pela pesquisa do CEREST que, dentre os entrevistados, 27 já apresentaram lesões
de pele, sendo que apenas onze procuraram assistência médica especializada. A mesma pesquisa
questionou os trabalhadores acerca dos meios de proteção e uso de protetor solar e foram obtidos os
seguintes dados: apenas 40,60% dos mototaxistas entrevistados usam o protetor solar constantemente
e 59,40% não utilizam. No entanto a maioria dos entrevistados, cerca de 86,47%, utilizam outros
meios de proteção solar (roupas de mangas compridas, bonés, luvas e óculos).
Também procuramos saber se, dentre os trabalhadores entrevistados pelo CEREST existia
casos de problemas auditivos; obtivemos os seguintes dados: 11% se queixam de dor no ouvido, 17%
sentem dificuldade para ouvir e 27% ouvem um zumbido no ouvido (tipo cigarra) no ouvido durante
o dia, destes, seis trabalhadores relataram que esse zumbido aumenta durante a noite.
A exposição a ruídos intensos pode ocasionar vários distúrbios no organismo humano. Pode
alterar significativamente o humor e a capacidade de concentração das pessoas, além de provocar
interferências no metabolismo de todo o organismo gerando riscos de distúrbios cardiovasculares,
inclusive tornando a perda auditiva irreversível.
A constante exposição ao ruído no ambiente de trabalho pode ser prejudicial, levando muitos
trabalhadores a perda de audição, problema conhecido como Perda Induzida Por Ruído (PAIR).4
A perda auditiva induzida pelo ruído (PAIR) relacionada ao trabalho é uma diminuição
gradual da acuidade auditiva, decorrente da exposição continuada a elevados níveis de
pressão sonora. [...] podendo levar à incapacidade auditiva, disfunções auditivas – como
zumbidos e alterações vestibulares – e mesmo dificultar a inserção no mercado de trabalho
(OGIDO, COSTA, MACHADO, 2009, p. 378).
No caso dos mototaxistas que estão cotidianamente expostos a sons como buzina, sirene,
carros de som, dentre outros barulhos presentes nas ruas, o ruído também pode agravar o stress,
comprometendo a saúde desses trabalhadores e aumentar o risco de acidentes.
Os sintomas auditivos são na maioria das vezes representados por: perda auditiva, zumbidos,
dificuldades na compreensão da fala, alterações do sono e transtornos: da comunicação, neurológicos,
digestivos, comportamentais, cardiovasculares e hormonais.
A análise realizada pelo CEREST não relaciona a exposição constante dos mototaxistas
ao ruído a problemas de saúde mais específicos, como as doenças cardiovasculares, por exemplo,
visto que é preciso um estudo aprofundado por cada caso identificado na referida pesquisa. No

4
A perda induzida pelo ruído é uma patologia cumulativa e insidiosa, que cresce ao longo dos anos de exposição ao
ruído associado ao ambiente de trabalho.

91
entanto, podemos observar que estes trabalhadores estão mais suscetíveis a desenvolverem algum
tipo de perda auditiva.
Observa-se, a partir dos dados analisados que as questões relativas à saúde dos mototaxistas
são de suma importância, pois tanto o acidente de trânsito, quanto a doença ocupacional, em número
menor, incide na paralisação imediata de sua profissão. Esse fato tem por desdobramento a ausência de
seu rendimento, uma vez que ele não está protegido por uma legislação trabalhista, assim impulsiona
a precarização de reprodução social.
Na medida em que parâmetros da formalidade do trabalho se fazem ausentes na atividade
do mototáxi, pode-se compreender a submissão desses trabalhadores às condições de trabalho
a eles apresentadas.
Esses dados nos revelam não uma escolha por parte desses profissionais, mas, sim, um
engajamento preciso para que eles almejem o mínimo necessário para a reprodução de sua força de
trabalho e sustento de suas famílias.
Ocorre, com frequência, a extensão da jornada de trabalho. A permanência destes
trabalhadores nas ruas é estendida no sentido de auferir uma maior proporção corrida/dia, mesmo que
isto implique em uma jornada de trabalho superior aos padrões vigentes.
De uma forma geral o perfil de adoecimento dos mototaxistas da cidade de Caicó/RN, na sua
maioria é formado por elementos negativos, ocasionados por condições de trabalhos árduas e difíceis,
que afetam a saúde e o bem-estar desses trabalhadores, levando-os a desenvolverem sérios problemas
ortopédicos, de pele e audição, entre outros que o desconforto do trabalho possibilita.
Essa breve análise revela o quão precarizado é o trabalho desses trabalhadores que, na
garupa de uma motocicleta, passam horas sob o sol forte da região, em meio ao caos do trânsito do
município, com todo o desconforto da rotina diária de trabalho, numa verdadeira luta para conseguir
ganhar o sustento de sua família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A precarização das condições de trabalho e a intensificação das desigualdades sociais


e da pobreza são indicadores claros das mudanças que vem ocorrendo no mundo do trabalho
desde os anos de 1970.
A percepção acerca do conceito de trabalho tem se modificado devido às alterações da
sociedade e de novos meios de garantias da própria sobrevivência por parte dos trabalhadores como
respostas a tais mudanças.
Assim, o trabalho tem perdido o sentido de satisfação pessoal, de valorização do ser humano,
predominando como meio de satisfação das necessidades básicas, em que os indivíduos trabalham
para sua sobrevivência.
Neste contexto,
O aumento da produção, da automação, da precarização e do trabalho informal, bem como,
a utilização de um número cada vez menor de trabalhadores empregados, vem causando
novos prejuízos à saúde dos trabalhadores, aliando-se aos acidentes e doenças do trabalho já
existentes (BRASIL, 2005).
O adoecimento dos trabalhadores, vítimas da precarização dos processos e relações nos
ambientes de trabalho é um fenômeno que vem se agravando a cada dia.
No caso dos mototaxistas “doenças ocupacionais”, reveladas, sobretudo através de distúrbios
osteomusculares relacionados ao trabalho e acidentes de trabalho no trânsito configuram o grau de
precarização a qual estes trabalhadores encontram-se expostos no seu dia a dia.
Percebemos através desse estudo que o trabalhador mototaxista (em sua maioria) identifica
vários riscos aos quais estão expostos, principalmente os riscos relacionados à vulnerabilidade do
trabalhador frente aos acidentes no trânsito e violência urbana.
No estudo realizado por Albuquerque et al (2012):

92
O acidente de trânsito foi citado pelo entrevistado como sendo um dos riscos da profissão,
principalmente, pela falta de garantias como a ausência do plano de saúde, que faz o mototaxista
acidentado está totalmente dependente do SUS (ALBUQUERQUE et al., 2012, p. 5).
Realidade próxima a vivenciada pelos mototaxistas de Caicó. O número de acidentes de
trânsito envolvendo motociclistas tem crescido significativamente nos últimos anos, sendo um dos
maiores responsáveis pelas internações nos hospitais de urgência e emergência.
De acordo com Waiselfisz (2013):
As internações por acidentes de moto foram as que cresceram de forma totalmente
inaceitável no período 1998/2012 (crescimento de 366,1%), chegando, em 2012 a representar
mais da metade do total de internações por acidentes de trânsito registrados pelo SUS
(WAISELFISZ, 2013, p. 65).
O autor observa que houve um crescimento contínuo a partir de 1998, com um ritmo de perto
de 10% ao ano, e ressalta que as taxas de internação de motociclistas “[...] experimentam um brusco
incremento a partir de 2009, quando pulam para 30% ao ano” (WAISELFISZ, 2013), período em que
a lei federal que regulamenta a atividade entra em vigor.
O mesmo autor explicita ainda que no ano de 2011 a morte de motociclistas representa 1/3
das mortes no trânsito no Brasil. No Rio Grande do Norte (RN), este número compreende 50, 6% dos
óbitos, conforme os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) (WAISELFISZ, 2013).
No município de Caicó, de acordo com dados de Estatísticas de Ocorrências de Acidente de
Trânsito do 3° Subgrupamento de Bombeiros Militar (Corpo de Bombeiros Militar do RN, 2014) do
município de Caicó, entre o mês de junho de 2013 a junho de 2014 foram registrados 163 atendimentos
envolvendo motociclistas no município.
Não são especificados nesses dados se os envolvidos eram mototaxistas ou não, mas se
levarmos em consideração o quantitativo de trabalhadores atuando como mototaxistas e os dados
coletados pelo CEREST (2011), onde 43% dos entrevistados afirmaram já ter se envolvido em algum
acidente durante o trabalho, percebemos o quanto estes trabalhadores são vulneráveis em relação aos
acidentes de trânsito.
Os acidentes de trânsito, como causas de mortes de trabalhadores exercendo sua atividade,
estão presentes no mundo do trabalho, principalmente em ambientes onde predomina a precarização do
trabalho. Para os mototaxistas, os acidentes de trânsito podem proporcionar lesões físicas e emocionais
e, consequentemente, causar o afastamento destes trabalhadores de suas atividades laborais.
Os mototaxistas de Caicó são, na grande maioria, trabalhadores autônomos, por conta própria,
sem vínculos empregatícios, se enquadrando assim, no trabalho informal e, consequentemente, as leis
que regem a atividade, principalmente no tocante a periculosidade, restringem-se aos trabalhadores
com carteira assinada. Estes trabalhadores informais continuam exercendo a atividade por precisarem
desta renda para o seu sustento, mesmo que em condições insalubres e danosas à sua saúde.
O fato da maioria dos mototaxistas serem trabalhadores autônomos (exercendo uma atividade
informal) colabora para que uma parcela significante desses trabalhadores não contribua para a
Previdência Social. Desta forma, ao sofrerem algum tipo de acidentes de trabalho, não possuem os
benefícios da proteção concedida pela legislação trabalhista.
No entanto, a regulamentação da atividade mototaxista pode garantir mais segurança a estes
trabalhadores, visto que a legislação prevê a adequação do veículo de modo a apresentar alguns
itens de segurança, tais como: barra protetora de pernas, denominado “mata-cachorro”, antena
corta-pipa, escapamento revestido com protetores de isolamento para evitar queimaduras, botas,
colete, dentre outros.
Trata-se de uma atividade com precárias condições de trabalho, que exige longas jornadas
de trabalho para a garantia de uma renda melhor, fato que pode ocasionar efeitos negativos na saúde
destes trabalhadores.
A pesquisa aqui apresentada revelou o quanto estes trabalhadores estão diariamente expostos
a vários riscos ocupacionais, tais como estresse, insolação, desidratação, lombalgias, perda da
visão e câncer de pele.

93
Evidencia-se que no perfil de adoecimento do mototaxista destacam-se as causas externas de
morbidade e mortalidade, em especial os acidentes de trabalho no trânsito; as patologias dermatológicas,
com potencial para desenvolvimento do Câncer de pele (potencializadas pelas características
climáticas da região); os distúrbios osteomusculares gerados pela Doença Osteomuscular Relacionada
ao Trabalho (DORT); as doenças do ouvido em virtude da Perda Auditiva Induzida por Ruído (PAIR);
e também, pela observação da atividade detectamos um potencial desenvolvimento de doenças do
aparelho respiratório em virtude da poluição no trânsito.
Conforme os dados coletados na pesquisa do CEREST (2011), os problemas osteomusculares
são os mais frequentes entre os mototaxistas entrevistados, sendo as lombalgias as mais incidentes.
Em nossas análises percebemos que a maior preocupação do mototaxista de Caicó
compreende o risco desse trabalhador vir a ser uma vítima de acidente de trânsito e assalto, o que
revela o quanto este trabalhador encontra-se vulnerável no exercício de sua atividade.
Os resultados deste estudo também evidenciaram a necessidade de uma maior divulgação
e discussão acerca da efetivação das políticas públicas que contemplam a segurança e saúde dos
trabalhadores, especificamente à Política de Saúde do Trabalhador.
Faz-se necessário, portanto, a implementação de ações voltadas para a prevenção de acidentes
no trânsito e de promoção a saúde na região, visto o município ser sede de um CEREST regional, cuja
finalidade maior é a promoção da Saúde do Trabalhador, na perspectiva de contribuir para a melhoria
das condições de saúde e qualidade de vida do trabalhador, mediante ações de promoção, proteção,
assistência e vigilância à saúde.
Frente à complexidade que envolve o campo da saúde do trabalhador, ressalta-se a importância
de intervenções multidisciplinares e intersetoriais que tenham como principal objetivo a
proteção e a promoção da saúde dos trabalhadores, envolvendo o poder público, a iniciativa
privada e a participação pró-ativa do trabalhador, possibilitando a conquista do pleno direito
à saúde (ROBLES, SILVEIRA, 2009, p. 53).

REFERÊNCIAS

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vida no trabalho e riscos ocupacionais dos mototaxistas: um estudo de caso. Revista
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Senado Federal, 1988.
______. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção,
proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília-DF: 20 set. 1990.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 26 jun. 2014.
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DF: Ministério da Saúde, 2004.
______. Ministério da Saúde. 3ª Conferência Nacional De Saúde Do Trabalhador: 3º CNST
“Trabalhar sim! adoecer não!”. Coletâneas de textos. Brasília-DF: Ministério da Saúde, 2005. (Série
D. Reuniões e Conferências).

94
BRASIL. Lei n. 12.997, de 18 de junho de 2014. Acrescenta §4º ao art. 193 da Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5452, de 1º de maio de 1943, para considerar
perigosas as atividades de trabalhador em motocicleta. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
Brasília-DF: 20 jun. 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l12997.htm> Acesso em: 26, jun., 2014.
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Janeiro: CEBELA, 2013.

95
SAÚDE DAS MULHERES NEGRAS CATADORAS DE
MATERIAIS RECICLÁVEIS
Bárbara Oliveira Rosa*
RESUMO: O propósito de nossa pesquisa é correlacionar as temáticas raça, gênero e saúde. Descobrir os impactos que o trabalho com
materiais recicláveis causa na saúde das catadoras de materiais recicláveis. Assim, questionamos como que a discriminação de gênero/
raça pode levar as mulheres negras para os trabalhos mais precários, como o trabalho de triagem de materiais recicláveis e quais os
reflexos do trabalho na sua saúde. Portanto, a pesquisa visa estudar a questão de gênero/raça correlacionado com a saúde das trabalhadoras
da Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de Franca e Região (COOPERFRAN), situada na cidade de Franca/SP.
Palavras-chave: Gênero, Raça, Materiais recicláveis, Saúde
ABSTRACT: The purpose of our research is to correlate the thematic race, gender and health. Discover the impact that working with
recyclable materials have on health of recyclable materials. Thus, we question how that discrimination of gender/race took black
women for the most precarious, as the work of separation of recyclable materials and what the consequences of the work on their
health. Therefore, the research aims to study the issue of gender/race correlated with the health of workers of the Cooperative of
Recyclable Materials Franca Area (COOPERFRAN), located in the city of Franca/SP.
Keywords: Gender, Race, Recyclable materials, Health

INTRODUÇÃO

O propósito de nossa pesquisa é correlacionar as temáticas raça, gênero e saúde. Descobrir


os impactos que o trabalho com materiais recicláveis causa na saúde das catadoras de materiais
recicláveis. A pesquisa visa estudar a questão da saúde e de gênero/raça, vislumbrando as trabalhadoras
da Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de Franca e Região (COOPERFRAN), situada
na cidade de Franca/SP, percebendo como a discriminação de gênero/raça levaram as mulheres negras
para os trabalhos mais precários, sem direitos trabalhistas, como o trabalho de triagem de materiais
recicláveis (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2015).
Recorreremos a pesquisa de campo, esta constitui em observações do processo de trabalho e
uma entrevista estruturada com os trabalhadores da Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis
de Franca e Região, situada na cidade Franca. A entrevista ocorreu no ano de 2013, sendo aprovada
pelo Comitê de Ética. O trabalho ficou dividido em dois tópicos o primeiro: a caracterização do perfil
social dos catadores da cooperativa, entrevistando os 31 catadores, constatando que a maioria dos
catadores são mulheres negras. E o segundo: os reflexos do trabalho na saúde das cooperadas, essas
entrevistas foram feitas apenas com as 21 trabalhadoras identificadas na entrevista anterior (ROSA;
SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
As questões motivadoras desta pesquisa encontram na reflexão: se a maioria dos cooperados
são homens ou mulheres, qual a raça/etnia dos catadores, quais os serviços que as mulheres realizam
dentro da cooperativa (se tem uma divisão de gênero perante as funções), o perfil social desta catadora
(se ela mora sozinha ou se tem companheiro, se tem filhos, quem mantém financeiramente seu lar).
Além do reflexo do trabalho na sua saúde (se as mesmas têm doenças, abordando também acidentes
de trabalho, entre outras questões) (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).

1 MULHERES NEGRAS E CATADORAS DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

Para pensarmos em gênero é necessário perceber que este é perpassado por uma ideologia e por
um processo histórico, “[...] o gênero é o sexo socialmente construído.” (BARBIERI, 1993, p. 4). Sendo
um produto histórico, o modo em que vivemos, o modo como nos relacionamos reflete na construção
do gênero e na sua transmissão ao longo das gerações. As relações de gênero são influenciadas pelos
aspectos culturais, econômicos, políticos e sociais. Assim, gênero não é sinônimo de mulher, ou apenas
uma diferenciação sexual, este é uma representação social, um conceito construído coletivamente no
imaginário das pessoas do que é ser homem e do que é ser mulher e que consequentemente influência
na relação entre sexos (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
*
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Serviço Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho, campus de Franca/SP. Bolsista Coordenação e Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: barbarass@hotmail.com.br. .

97
É importante também enfatizar que com o surgimento e a expansão do conceito gênero –
como ‘sexo socialmente construído’, ou seja, como práticas sociais de gênero onde se incluem
símbolos, representações, normas e valores sociais, que a sociedade constrói a partir da
‘diferença sexual’, ou seja, como objeto de estudo bem mais amplo e complexo – vislumbram
maiores possibilidades para a compreensão e explicação da subordinação feminina –
dominação masculina como um sistema de poder (OSTERNE, GEGLEN, 2005, p. 164).
Por isso, para Scott (1995) o gênero é um saber, um conhecimento sobre as diferenças sexuais,
para ela o gênero estaria em um relação imbricadas a relações de poder, há um poder ideológico
para manutenção de uma hierarquia, para reproduzir preconceitos contra as mulheres, como se essas
fossem inferiores, subordinadas aos homens, “[...] gênero é um elemento constitutivo de relações
sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e é uma forma primaria de dar significado
às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86).
Já Safiotti (2004) o gênero pode estar a serviço da opressão, ou da igualdade, dependendo das
relações sociais, assim não pode ser considerado um conceito neutro, para ela o conceito de gênero
vai além do patriarcado, justificando que o gênero existe junto com a humanidade e o patriarcado
seria uma consequência do capitalismo, ou seja, um fato recente. Porém, se deve ter cuidado na
desconstrução do conceito de patriarcado, “[...] tratar esta realidade exclusivamente em termos de
gênero distrai a atenção do poder do patriarca, em especial como homem/marido, ‘neutralizando’ a
exploração-dominação masculina” (SAFIOTTI, 2004, 136).
[...] gênero diz respeito às representações do masculino e do feminino, as imagens construídas
pela sociedade a propósito do masculino e do feminino, estando inter-relacionadas. Ou seja,
como pensar o masculino sem evocar o feminino? Parece impossível, mesmo quando se
projeta uma sociedade não ideologizada por dicotomias, por oposições simples, mas em que
masculino e feminino são apenas diferentes (SAFIOTTI, 2004, 116).
Dos 31 catadores da cooperativa COOPERFRAN, entrevistadas em 2013, 80% são do sexo
feminino e 20% são do sexo masculino (25 mulheres e 6 homens). A maioria dos trabalhadores de
cooperativa ainda são mulheres, mesmo em 2014 aumentando a quantidade de homens. (ROSA;
SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014). Segundo Hirata (1998) o crescimento do trabalho
feminino trouxe como consequência: “[...] menores salários, maior instabilidade, condições de
trabalho acumulando atividades domésticas e profissionais, maior desemprego, impactos previsíveis
sobre a saúde” (HIRATA, 1998, p. 19).
[...] a situação evidente e generalizada segregação da mulher aos piores postos de trabalho,
a pior remuneração e a ausência de mobilidade social nas atividades ditas femininas. A
maioria das mulheres está vinculada as atividades informais e, portanto, de modo geral,
mais sujeita as flutuações de demanda e crescimento da concorrência por parte de outros
trabalhadores transferidos do setor formal para o informal da economia que se dá na época
atual (CARVALHO, 1998, p. 85).
Assim, o trabalho feminino vive um paradoxo, as mulheres se reconhecem pelo trabalho,
ganham autonomia por meio deste, mas, sofrem preconceitos, discriminações e violências que
transpassam todos os aspectos da vida, inclusive no trabalho. Essas acabam ocupando os trabalhos
subalternos, informais, além da jornada dupla, de tarefas domésticas e o cuidado dos filhos, que
recaem apenas “nos ombros” das mulheres, como que só elas tivessem que cumprir com essas
responsabilidades (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
[...] o processo de feminização do trabalho tem um claro sentido contraditório, marcado pela
positividade do ingresso da mulher no mundo do trabalho e pela negatividade da precarização,
intensificação e ampliação das formas de modalidade de exploração no trabalho.[...] que
nessa dialética que a feminização do trabalho ao mesmo tempo, emancipa, ainda que de
modo parcial, e precariza de modo acentuado, oscilando, portanto entre a emancipação
e a precarização, mas buscando ainda caminhar da precarização para a emancipação
(NOGUEIRA, 2004. p. 94).
Os trabalhadores da COOPERFRAN são em sua maioria negros, a pergunta sobre raça foi
retirada porque diretoria achou ofensivo, e um dos representantes disse “[...] você já sabe só de olhar

98
que todo mundo é negro”, demonstrando o preconceito sofrido e tendo até receio de falar sobre o
assunto (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014). Segundo Schumaher e Brazil (2013) o
racismo é um poder ideológico para manutenção de uma hierarquia, que garante a superioridade de
um sobre outro, por meio de justificativas sobre características físicas e culturais.
Os negros estão fortemente concentrados nas ocupações da indústria tradicional e nos
serviços gerais, sendo que o acesso à educação é um dos principais fatores de produção
dessa desigualdade. Entretanto, mesmo quando eliminadas as diferenças educacionais, os
negros ainda apresentam desvantagens, principalmente no acesso às melhores posições
ocupacionais, demonstrando que há uma distribuição desigual de indivíduos no mercado de
trabalho e um dos fatores dessa desigualdade é a cor (LIMA, 2001, p. 152).
Para pensarmos em etnia e raça temos que entender que etnia refere-se a características
físicas e culturais que pessoas de um determinado grupo compartilha e raça refere-se a características
físicas, que interferem no lugar social, nas relações sociais na sociedade, “[...] raça é um conceito
que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se, ao contrário de um conceito que denota
tão somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos
sociais” (GUIMARÃES, 1999, p. 11).
Raça e etnia são dois conceitos relativos a âmbitos distintos. Raça refere-se ao âmbito
biológico; referindo-se a seres humanos, é um termo que foi utilizado historicamente para
identificar categorias humanas socialmente definidas. As diferenças mais comuns referem-
se à cor de pele, tipo de cabelo, conformação facial e cranial, ancestralidade e genética.
Portanto, a cor da pele, amplamente utilizada como característica racial, constitui apenas
uma das características que compõem uma raça. Entretanto, apesar do uso frequente na
Ortodontia, um conceito crescente advoga que a cor da pele não determina a ancestralidade,
principalmente nas populações brasileiras, altamente miscigenadas. Etnia refere-se ao âmbito
cultural; um grupo étnico é uma comunidade humana definida por afinidades linguísticas,
culturais e semelhanças genéticas. Essas comunidades geralmente reclamam para si uma
estrutura social, política e um território (GUTBERLET, 2013, p. 124).
Assim, as mulheres negras foram “empurradas” para o trabalho com materiais recicláveis,
“[...] as mulheres negras arcam com todo o peso da discriminação de cor e de gênero, e ainda mais
um pouco, sofrendo a discriminação setorial-regional-ocupacional que os homens da mesma cor e a
discriminação salarial das brancas do mesmo gênero” (SOARES, 2000, p. 51). As mulheres negras são
desvalorizadas socialmente, é como se tivessem apagado sua história, trazendo uma invisibilidade, o
não reconhecimento, estas sofrem com a discriminação de gênero e raça, é como se a mulher negra
já tivesse um lugar reservado na sociedade: em trabalhos precários e subalternos. (ROSA; SGARBI;
GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).

TABELA 1 – Idade dos indivíduos da cooperativa COOPERFRAN, no ano de 2013


*IDADE DOS COOPERADOS EM 2013
EM ANOS (%)
20 aos 29 anos 22%
30 aos 39 anos 25%
40 aos 49 anos 16%
50 aos 59 anos 25%
60 aos 69 anos 6%
70 aos 79 anos 3%
Fonte: Elaborado por Rosa; Sgarbi; Giometti (2015); Rosa (2014).

Assim, a partir desses dados podemos perceber que a maioria dos cooperados são mulheres
dos 50 aos 59 anos e dos 30 aos 39 anos, que moram sozinhas com os filhos, como vemos na tabela:

99
TABELA 2 – Estado civil dos trabalhadores da COOPERFRAN, no ano de 2013
*ESTADO CIVIL DOS COOPERADOS EM 2013
EM PORCENTAGEM (%)
Casado 29%
Solteiro 42%
Divorciado 19%
União estável 3%
Separado 3%
Viúvo 3%
Fonte: Elaborado por Rosa; Sgarbi; Giometti (2015); Rosa (2014).

Sobre a pergunta filhos, em 2013, 96% responderam que têm filhos e apenas 4% responderam
não tem filhos. Por meio desses dados, fica nítido que a maioria são mulheres sozinhas que cuidam
de seus filhos, sem ajuda de outro adulto, além do que também podemos perceber que a identidade
materna ainda é uma marca feminina (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014). Segundo
Chauí (1998) ainda hoje, mesmo que em concepções mais diluídas, ainda se acredita em uma “natureza
feminina”, uma “natureza materna”, que deriva em um “instinto materno”, “amor materno”, como
coisas naturais e não construídas.
Um dos marcadores mais importantes da identidade feminina é, sem dúvida, a maternidade. A
condição de mulher, sempre associada ao papel de mãe, cuja responsabilidade no cuidado com
os filhos parece uma imposição da ordem da natureza, limita as oportunidades de construção
de outros marcadores identitários necessários à ordem civilizatória (AZEREDO, 2010, p. 84).
Segundo Bruschini (2000) a responsabilidade das mulheres pelos cuidados com a casa,
com a família e com os filhos é um dos fatores determinantes da posição secundária no mercado
de trabalho, essa questão tende a se agravar quando os filhos são pequenos. Além dessas questões a
principal renda da casa é da própria catadora, como vemos:

TABELA 3 – Principal renda dos trabalhadores da COOPERFRAN, no ano de 2013


*PRINCIPAL RENDA DA CASA DOS COOPERADOS EM 2013
EM PORCENTAGEM (%)

Sua 65%
Cônjuge 10%
Filhos 3%
Pais 6%
Outros 6%
Não tem uma renda principal 10%

Fonte: Elaborado por Rosa; Sgarbi; Giometti (2015); Rosa (2014).

Assim, com essas perguntas já podemos traçar o perfil social dos catadores, estas são
mulheres, “chefes de família”, ou seja, são mulheres que moram sozinhas com seus filhos sendo as
únicas responsáveis economicamente e emocionalmente pelo lar.

100
A realidade tem mostrado que se por um lado cresce o número de domicílios no qual a
mulher tem papel fundamental na manutenção econômica, com ou sem presença do
marido/companheiro, por outro, ela ainda é na maioria das casas a responsável pela esfera
doméstica. Esta situação se agrava entre as mais pobres, pela absoluta falta de acesso a
formas de apoio, como creches, escolas em período integral, sistema de saúde de qualidade,
moradias dignas e demais fatores que poderiam aliviar a sobre carga de trabalho doméstico
(CARLOTO, 2006, p. 146).
Outro ponto que percebemos com os relatos e a observação foi que as problemáticas
ultrapassam o âmbito do trabalho. Outra questão que se faz presente na vida dessas mulheres
é a falta de uma política pública realmente voltada para a emancipação da mulher. Estas não têm
apenas o direito ao trabalho, os direitos trabalhistas, sendo desrespeitados. Estas também não
têm acesso aos direitos sociais básicos, como creche, educação, saúde, o que acaba prejudicando
ainda mais a situação da trabalhadora, aumentando sua opressão e exploração (ROSA; SGARBI;
GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
O que poderia de fato gerar impacto na perspectiva de gênero e no enfrentamento das condições
de pobreza, sobretudo nas famílias cuja responsabilidade econômica não é partilhada, é
o acesso a equipamentos sociais de qualidade, como creches, escolas em tempo integral,
serviço de saúde, entre outros que poderiam aliviar a carga de trabalhos domésticos e gerar
melhores oportunidades de vida, emprego e rendimentos (AZEREDO, 2010, p. 586-587).

2 SAÚDE DAS MULHERES NEGRAS CATADORAS DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

Por meio das entrevistas, observamos que na cooperativa COOPERFRAN, é constante


a possibilidade das catadoras serem picados por insetos, além de terem o contato pela pele com
substâncias químicas tóxicas, lixo hospitalar e restos de animais mortos que passam na esteira. Porém
quando perguntamos se elas já sofrem algum acidente de trabalho a maioria diz que não 76%, sendo
apenas 24% diz que sim, essas alegaram cortes, na perna, braços e mão, sendo que uma alegou ter a
mão presa na esteira.
Assim, vemos que um meio de o próprio capital encobrir a exploração é dificultando a
identificação do que é acidente de trabalho, sendo que os únicos que responderam que sim foram
casos muito graves. O lixo “[...] funcionando como abrigo e local propício à proliferação de animais,
pode se configurar como uma importante via de transmissão de doenças como peste bubônica, tifo,
leptospirose, salmonelose, febre amarela, malária, dengue, leishmaniose” (RODRIGUES apud
JUNCÁ, 2004, p. 14).
Sobre a pergunta tem problemas de saúde a maioria alegou ter doenças físicas 89%, doenças
emocionais nenhuma, físicas e emocionais 11%. Aparecendo doenças como enfisema pulmonar,
labirintite, pressão alta, diabete, fibromialgia, problema de visão, depressão, entre outros.
Vemos que problema na coluna, dores nas pernas, costas e demais partes do corpo são frutos
da posição dos catadoras do fato de ficarem o dia inteiro de pé em frente à esteira, uma esteira
fordista, esta dita o tempo e movimento das mesmas. Cada trabalhadora separa um tipo de material,
o papel branco, papel colorido, o papelão, a caixa de leite, o plástico o jornal, a garrafa pet, a latinha,
o vidro, entre outros.
Portanto, só trabalham mulheres na esteira, elas são responsáveis pela triagem, enquanto os
homens ficam nos trabalhos considerados pesados como na prensa, manobrando o guincho e na alocação
de fardos. Por meio da observação do cotidiano e do processo de trabalho dos cooperados podemos
perceber que a mulher fica responsável pelas atividades consideradas mais leves, que é a esteira, que
não precisa de esforço físico. Porém, esta acaba cumprindo uma atividade monótona, repetitiva e
estressante que é separar os tipos de materiais na esteira, exigindo da cooperada habilidade manuais e
agilidade para acompanhar o ritmo da máquina (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
A divisão sexual do trabalho é considerada como um aspecto da divisão social do trabalho,
e nela a dimensão opressão/dominação está fortemente contida. Essa divisão social e técnica

101
do trabalho é acompanhada de uma hierarquia clara do ponto de vista das relações sexuadas
de poder (HIRATA, 2002, p.280).
O fato dos homens serem responsáveis pelo maquinário se justifica por demandar maior força
física, assim Wirth (2013), nos traz reflexões sobre os homens serem estimulados a se desenvolver
fisicamente, além do fato da tecnologia não ser projetada para as mulheres, “[...] o equipamento
mecânico geralmente é produzido e montado de um modo que o torna muito grande e pesado para ser
utilizado por uma mulher comum” (WAJCMAN, 1998, p. 255 apud WIRTH, 2013, p.170).
Além dessas questões, o que mais as cooperadas relataram foi a falta de conscientização,
o fato de junto aos materiais recicláveis vir misturado resíduos orgânicos, como nos mostra o relato
de um catador, “[...] vem gato, vem bicho, vem bosta, a gente pega tudo aqui” (COCKELL, 2004, p.
22). Assim, com a pergunta o que já encontraram de perigoso junto ao material reciclável, a maioria
respondeu material hospitalar e vidro, sendo que depois desses tiveram as mais variadas respostas
como: faca, material inflamável, agrotóxico, produto químico, animal morto, lâmpadas e lixo industrial.
Outra questão que confirma essas respostas foi a pergunta se a população de Franca/SP
separava o lixo corretamente, tendo 62% não, 24% sim, 7% mais ou menos e 7% não soube responder.
Sendo que uma cooperada relata sobre isso:
[...] eles mistura tudo o lixo, tá separando nada. Tá misturado. Até lixo hospitalar passa na
esteira. Semana passada passou uma seringa. Eu trabalho de luva olha a cor da mão? E
ainda suja ainda toda hora. A poeira, olha aqui a poeira! A gente fica que sujeira, olha aqui,
dois dias com essa calça, tá separando não, tá misturando é tudo. Separando não. Não tem
consciência para separar. Muita poeira no lixo, sujeira demais, papel higiênico, bosta de
cachorro, terra, vem tudo isso no lixo. Cabeça aqui? Tem que lava todo dia, cabelo cumprido
deixa amarrado. Suja muito.

3 CONCLUSÃO

O século XXI tem sido marcado por um período de responsabilização do indivíduo, no


qual este tem que buscar soluções individuais para a questão do desemprego. O trabalho nesta
perspectivaganha um caráter de sobrevivência, mas não só, o sujeito tem uma importância social
quando trabalha, mesmo sendo um trabalho precário e estigmatizado.
Segundo Costa (1986) há dois motivos principais que levam ao trabalho com materiais
recicláveis a necessidade de sobrevivência, precisa-se de dinheiro para garantir seus sustentos e
sobreviver nesta sociedade, como também pelo fato do trabalho ser valorizado na sociedade capitalista,
carregando valores positivos, de dignidade e aceitação na sociedade. Por isso, o autor traz a fala dos
catadores entrevistados:
É melhor catar lixo que roubar ou pedir esmolas. Se roubar vou preso e não posso deixar
meus filhos abandonados e muito menos dar esse exemplo para eles; se pedir esmolas, o que
eu recebo é pouco e incremento, é hoje e pode não ser amanhã. Assim, o jeito que tem é tocar
pra frente até um dia encontrar coisa melhor

Achar bom trabalhar no lixo, ninguém acha. Mas, a gente vai vendo os outros trabalhando
lá e via se acostumando mais fácil. Também, quando quero me revoltar, fico pensando nos
conselhos de minha mãe que dizia: qualquer trabalho é melhor do que ser vagabundo.

Não há trabalho que não possa ser feita com honestidade. No começo a gente sofre muito,
mas termina se acostumando (COSTA, 1986, p. 61).
Os sujeitos começam a trabalhar com a catação por falta de opção, sem liberdade são escravos
do sistema capitalista, tendo que sujeitar a trabalhos desumanos para garantir a sobrevivência, como
nos mostra a fala do catador “[...] somente a fome faz um ser humano enfrentar situações como essas”
(COSTA, 1986, p. 71).
Com a pesquisa podemos perceber que a discriminação e o preconceito contra as mulheres
negras durante a história acabaram empurrando-as para serviços precários, sem direitos trabalhistas,

102
no qual expõe sua saúde, como o trabalho na Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de
Franca e Região (COOPERFRAN) (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
Como exemplo, de mulher negra e catadora materiais recicláveis, temos Maria Carolina de
Jesus, que no ano de 1955, coletava papel a fim de sustentar seus filhos, era comum pessoas pobres
catarem papel para sobreviver, um relato dessa atividade é visto no livro “Quarto de despejo”, no qual
ela escreveu sobre seu cotidiano na favela:
20 de julho de 1955

Terminaram a refeição. Lavei os utensílios. Depois fui lavar roupas. Eu não tenho homem
em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho era andar bem
limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu
não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos
que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela [...] Estendi as roupas rapidamente
e fui catar papel. Que suplicio catar papel atualmente! Tenho que levar a minha filha Vera
Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e
levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos
braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo
(JESUS, 1993, p. 19).
Mostrando que as vezes Carolina tirava comida do lixo: “[...] achei um cará no lixo, uma
batata doce e uma batata salsa” (JESUS, 1993, p. 36), mostrando que com esse trabalho que se
comprava os alimentos “[...] fui no deposito receber o dinheiro do papel. 55 cruzeiros. Retornei de
pressa comprei leite e pão [...]” (JESUS, 1993, p.16), com o trabalho de catadora que esta vivia:
“Era papel que eu catava para custear o meu viver. E no lixo eu encontrava Livros para eu ler”
(JESUS, 1996, p. 33).
Como nos mostra Santos (2014) no relato de quando sua mãe estava desemprega, com
oito filhos para sustentar vê o trabalho como catadora um meio para garantir a sobrevivência, nos
mostrando mais um exemplo de uma mulher catadora e negra mãe de família:
Foi quando Dona Gerusa percebeu que trabalhar no lixo, apesar de todos os perigos, da
exposição a doenças, dos acidentes frequentes, não era bem uma escolha. Era a única opção,
a saída que ela vinha procurando – e parecia finalmente ter encontrado – para nos sustentar.
Com o tempo, contrariando as expectativas, aquele espaço marginalizado, que num primeiro
momento exclui quem faz parte dele, que parecereduzir as pessoas a algo menor, acabou
devolvendo à minha família a dignidade que ela tinha perdido. É estranho dizer isso, e mais
estranho ainda pensar que um lugar como o lixo possa incluir, mas foi exatamente isso o que
fez com a minha família (SANTOS, 2014, p. 40).
Quando vemos a história de Maria Carolina de Jesus em 1955 e vemos a história de “Dona
Gerusa” em 2014, quando comparamos com a pesquisa realizada com as catadoras em 2013, percebemos
que ao longo do tempo a mulher negra ainda é “chefe de família”, a única responsável pelo seu lar,
emocionalmente e economicamente, percebemos que estas são mães e responsáveis pelos seus filhos,
sofrem com o preconceito de gênero e raça que as leva ao trabalho com material reciclável, como a
única forma de sua sobrevivência e da sua família (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
Além disso, essas mulheres sofrem com o modo de organização do trabalho: que se constitui
na esteira, a produção é por quantidade de material que a cooperada consegue separar, a produção se
dá pela exploração da trabalhadora, prejudicando sua saúde. Ao mesmo tempo em que as catadores são
trabalhadoras, elas são donas da cooperativa, assim, elas se tornam donas da sua própria exploração,
o que dificulta a possibilidade de atingir uma consciência de classe e agrava a situação da saúde das
mesmas. (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
A cooperativa de reciclagem se torna uma “indústria de subsistência”, apesar de a reciclagem
ser um trabalho do século XX, um trabalho moderno, está se torna arcaico nas condições precárias
em que se desenvolve, tendo risco à saúde, exposição a doenças. Sem direitos trabalhistas, o trabalho
na cooperativa se torna análogo à escravidão, sem direito a férias, décimo terceiro e demais direitos.
As catadoras fazem um serviço de utilidade pública, ficam expostos a doenças e não conseguem

103
com as suas retiradas nem prover uma vida digna para si e suas famílias (ROSA; SGARBI;
GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
Segundo Luxemburgo (1970) as cooperativas não estão alheias ao sistema capitalista, por
isso seria mais uma reforma do próprio capital para manutenção da ordem e por esse motivo as
cooperativas se corrompem, sendo um meio dos trabalhadores se auto explorarem “[...] com toda a
autoridade absoluta necessária e de os seus elementos empenharem entre si o papel de empresários
capitalistas” (LUXEMBURGO, 1970, p. 78).
Percebemos que há um interesse ideológico por trás das discriminações contra a mulher negra,
há uma questão política. Manter esta explorada tanto no trabalho, como ainda culturalmente fazê-la
acreditar que o trabalho doméstico e a criação dos filhos é apenas sua responsabilidade por causa de
sua “natureza feminina”, é um modo de manter o status quo. Os riscos do trabalho das catadoras são
os mais variáveis como: materiais recicláveis sujos, a mistura de materiais não recicláveis, materiais
cortantes, movimentos repetidos, ficar em pé o dia inteiro, contaminação com produtos tóxicos
ou químicos, uma infraestrutura inadequada, animais no ambiente de trabalho (ROSA; SGARBI;
GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).
Assim, as diferenças biológicas são usadas como argumentos para construir uma imagem do
que é ser homem e do é ser mulher e para discriminar os negros, e o sistema capitalista se apropria
destas questões para excluir/discriminar a mulher negra nas relações de trabalho. Por isso, buscamos
por meio da pesquisa mostrar a importância de se buscar uma igualdade de gênero e racial não apenas
no trabalho, mas na vida (ROSA; SGARBI; GIOMETTI, 2015; ROSA, 2014).

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105
A VERDADEIRA NATUREZA DO TRABALHO NOS NOVOS TERRITÓRIOS DA
PRODUÇÃO DE CELULOSE NO BRASIL*
Guilherme Marini Perpetua**
Antonio Thomaz Junior***
RESUMO: No bojo da atual estratégia novo-desenvolvimentista adotada pelo Brasil desde o início da década passada, os setores
produtores e exportadores de commodities agrominerais são representados como peças-chave e têm suas supostas virtudes exaltadas.
A capacidade de geração de empregos pelos chamados “agronegócios” seria, dentre outras, uma das vantagens de se apostar neste
modelo. O presente trabalho visa desconstruir tal argumento, explicitando seus limites e contradições por meio da análise da
verdadeira natureza do trabalho nas atividades relacionadas à produção de celulose, nas regiões onde recentemente foram implantados
megaempreendimentos do segmento no Brasil.
Palavras-chave: Novo-desenvolvimentismo, Monocultivo de eucalipto, Produção de celulose, Precarização do trabalho, Agravos à
saúde dos trabalhadores
ABSTRACT: Amid the current new-developmentalism strategy adopted by Brazil since thebeginning of the last decade, producing and
exporters sectors of agromineral commodities are represented as key pieces and have had exalted their supposed virtues. The ability to
generate jobs by so-called “agrobusiness” would be, among others, one of the advantages of investing in this model. This study aims
to deconstruct this argument, explaining their limits and contradictions by analyzing the true nature of the work in activities related to
the production of cellulose, in areas where mega-projects have recently been deployed in the segment in Brazil.
Keywords: New developmentalism, Eucalyptus monoculture, Pulp production, Precarious work, Health problems of workers

INTRODUÇÃO

Ao escrever sobre o golpe de Estado sucedido na França de meados do século XIX no


“O 18 de brumário de Luís Bonaparte”, Marx (2011) acrescenta à assertiva de Hegel, de que os
fatos e grandes personagens da história apresentam-se sempre duas vezes, o caráter trágico da
primeira e farsesco da segunda. Não por acaso, o Novo desenvolvimentismo brasileiro, enquanto
adequação do antigo (Nacional-desenvolvimentismo) às novas circunstâncias vigentes (BRESSER-
PEREIRA, 2004), reapresenta os grandes projetos agroindustriais do passado miraculoso sob uma
nova e farsesca roupagem.
Desde o início da década passada, a estratégia de desenvolvimento novo-desenvolvimentista
adotada pelos governos Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011 até o presente), tem apostado
suas fichas nos setores produtores e exportadores de commodities agrominerais altamente intensivas
em recursos naturais (minério de ferro, soja, carne de frango e bovina, açúcar em bruto e celulose,
principalmente), dispensando-lhes amplo e generoso apoio (BOITO JUNIOR, 2012). O resultado
foi a célere reprimarização da pauta de exportação brasileira e a transformação do país em uma
“república de commodities”.1 Com isso, segundo seus defensores, pretende-se promover o crescimento
econômico sustentado reduzindo, concomitantemente, a vulnerabilidade externa do balanço de
pagamentos (SICSÚ; DE PAULA; MICHEL, 2007), por meio da geração de elevados superávits da
balança comercial (DELGADO, 2012).
Esse tipo de argumento economicista soma-se a tantos outros na construção de um consenso
legitimador em torno da defesa dos (autodenominados) “agronegócios” para o crescimento econômico
e o desenvolvimento nacional. Há, por exemplo, o alerta neomalthusiano, insistentemente disparado
*
O trabalho apresenta resultados parciais da pesquisa de doutorado intitulada “Pilhagem territorial e degradação do
trabalho nos novos espaços da produção de celulose no Brasil”, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho (UNESP), com apoio financeiro da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
**
Mestre e doutorando em Geografia na UNESP – Campus de Presidente Prudente-SP. Orientador: Prof. Antonio
Thomaz Junior. E-mail: geomarini@yahoo.com.br.
***
Doutor em Geografia e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da UNESP – Campus de
Presidente Prudente-SP. E-mail: thomazjr@gmail.com.
1
A expressão é de autoria do ex-secretário de comércio exterior Welber Barral, em entrevista ao portal eletrônico
Brasil Econômico, no dia 06/05/2015. Segundo dados da Secretaria do Comércio Exterior (SECEX) e Ministério da
Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), em 2000 os produtos básicos e semimanufaturados representavam
38,2% das exportações brasileiras, contra 41,8% dos produtos manufaturados. Já em 2010, a participação dos referidos
produtos saltou para quase 60%. .

107
por organismos ditos supranacionais, de risco de escassez de insumos básicos devido às vertiginosas
projeções de crescimento da população mundial nas próximas décadas, cuja solução obrigatoriamente
passaria pelo crescimento proporcional da produção desses insumos. Tal alerta, por sua vez, vai ao
encontro da afirmação ufanista, hiperbólica e cada vez mais frequente de que o Brasil é um país
cujas condições naturais convocam a atender à uma vocação única e intransferível: a de abastecer
o mercado mundial com tais produtos. Nisso residiria, segundo apoiadores do modelo econômico
vigente, a chave para a competitividade e, por conseguinte, o desenvolvimento futuro do país em
consonância com as necessidades mundiais.
Além dessas, há outras proposições tão ou mais questionáveis que ajudam a sustentar o
apoio irrestrito do Estado e da sociedade aos megaempreendimentos do setor, tais como sua pretensa
eficiência econômica (FABRINI, 2008), suas supostas contribuições para a sustentabilidade ambiental
(CORNETTA, 2013) e - como não poderia deixar de ser num país social e regionalmente tão desigual
como o Brasil - as promessas de geração de inúmeros empregos nos lugares onde se instalam.
O presente trabalho toma este último ponto por objeto e pretende explicitar as verdadeiras
características dos empregos num segmento produtivo específico, o da produção de celulose
associada ao cultivo industrial de árvores, bem como seus rebatimentos para a segurança e saúde dos
trabalhadores envolvidos nas atividades que a compõem. Para tanto, lança mão de procedimentos
metodológicos quantitativos (levantamento de dados secundários) e qualitativos (realização de
trabalhos de campo, observação direta e entrevistas), investigando empiricamente os casos de três
microrregiões (seguindo a regionalização do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
em estados diferentes, nas quais recentemente foram implantados megaempreendimentos arbóreo-
celulósicos: Porto Seguro (BA), Três Lagoas (MS) e Imperatriz (MA).

1 A TERRITORIALIZAÇÃO RECENTE DO CAPITAL ARBÓREO-CELULÓSICO


NO MUNDO E NO BRASIL

Tradicionalmente, a produção de papel compunha-se por etapas espacialmente articuladas


e era realizada em fábricas integradas, as quais processavam a matéria-prima, geralmente madeira
de florestas nativas, transformavam-na em celulose e, em seguida, papel. Até o último quartel do
século XX, os principais países produtores localizavam-se no Hemisfério Norte, com destaque para
os Estados Unidos da América (EUA), o Canadá, a China, o Japão e os países nórdicos (Finlândia e
Suécia) (SANTOS, 2009; PAKKASVIRTA, 2010). No Brasil, até os anos 1960, a indústria papeleira
era incipiente, pulverizada em inúmeras empresas, importadora de grande parte de sua matéria-prima
(PEDREIRA, 2008), e altamente concentrada nos estados do Centro-Sul, destacadamente em São
Paulo, mantendo-se esta última característica até o final dos anos 1990 (DAURA, 2004).
O processo de mundialização do capital (CHESNAIS, 1996), contudo, não deixou o setor
imune, mas, ao contrário, trouxe à tona um intenso movimento de reestruturação geográfica da
indústria papeleira marcado pela fragmentação espacial e periferização das etapas iniciais (plantio
de árvores e produção de celulose), mais custosas e socioambientalmente impactantes, rumo aos
países do Sul global, com grande destaque para o Brasil, o Chile, a Indonésia e a Índia (SANTOS,
2009; PAKKASVIRTA, 2010). A rapidez com que tem se desenvolvido o processo é tamanha que, em
1994, o Hemisfério Norte representava cerca de 80% (138 milhões de ton.), da produção mundial de
celulose, percentual reduzido para algo em torno de 45% (86 milhões de ton.), em 2007 (OVERBEEK,
KRÖGER; GERBER, 2012). Como decorrência disso, estima-se que, nas últimas décadas, a área dos
plantios industriais de árvores (PIAs) no Sul global tenha sido multiplicada por quatro e, apenas entre
1990 e 2010, tenha crescido cerca de 50%, passando de 95 milhões de hectares para 153 milhões de
hectares (OVERBEEK, KRÖGER; GERBER, 2012).
Subjacente ao novo padrão locacional da indústria celulósica está uma combinação de
condicionantes presentes nos países do Norte, como a escassez de florestas nativas, as pressões
ambientalistas voltadas para sua preservação e os custos mais elevados com mão de obra, e “atrativos”
existentes no Sul, como as condições edafoclimáticas favoráveis (água superficial e subterrânea
abundante, solos férteis, insolação e pluviometria adequadas) refletidas na alta produtividade

108
média da madeira, a flexibilidade da legislação ambiental e trabalhista e, não menos importante, o
comprometimento dos governos locais, nos níveis nacional e subnacional, em assegurar os lucros
exorbitantes das empresas do segmento eucalipto-celulósico a qualquer custo (BACHETTA, 2008;
PAKKASVIRTA, 2010; OWERBEEK, KRÖGER; GERBER, 2012).
No mesmo contexto e pari passu o Brasil passou a ser o maior produtor e exportador de
celulose de fibra curta branqueada (BHKP, na sigla em inglês) do mundo, acrescentando 8,53 milhões
de ton./ano à sua capacidade produtiva instalada (de 4,87 para 13,4 milhões de ton./ano) apenas entre
1992 e 2011, fato acompanhado pela expansão do plantio de árvores, o qual atingiu a marca dos 7,6
milhões de hectares em 2013 (BRACELPA, 2011; ABRAF, 2013), fazendo da atividade a quarta
maior em área ocupada, atrás apenas da soja, da cana-de-açúcar e do milho. (IBGE, 2013). Para isso,
muito contribuíram as medidas implementadas pelos governos militares, desde a década de 1960,
particularmente após o II Código Florestal Brasileiro (Lei nº 4.771/65) e o I Plano Nacional de Papel
e Celulose (PNPC), contido no grande arco do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) (1974-
1979). (PEDREIRA, 2008; MALINA, 2013), além do vultoso volume de financiamentos públicos via
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ao todo, entre 1955 e 2002 por
exemplo, R$ 30,9 bilhões (em reais de 2001) foram concedidos pelo banco, perfazendo uma média de
R$ 1,2 bilhão por ano, sem contar as participações acionárias em diversos investimentos que também
tiveram importante papel (JUVENAL; MATTOS, 2002). E a concessão de recursos públicos para
empresas do setor pelo BNDES só fez aumentar nos últimos anos, somando cerca de R$ 23,4 bilhões
entre 2006 e 2013, de acordo com dados do próprio banco.
Tudo isso resultou num setor cujas características principais são a concentração e centralização
do capital e a verticalização do processo produtivo. Na prática, isso significa que o capital constante
(capital fixo mais capital circulante) ocupa alta proporção na composição orgânica, realizando-se
a produção sob o comando estrito de um número muito reduzido de grandes corporações, as quais
assumem para si todas as etapas da produção e até mesmo da circulação.
O processo de centralização do capital, por seu turno, recebeu grande impulso nos anos
1990, em razão da abertura comercial e do processo de integração competitiva e reestruturação
produtiva das industrias (PEDREIRA, 2008; RIBEIRO JUNIOR, 2014), acompanhando a tendência
mundial de oligopolização do setor.2 Conforme a explicação de Pedreira (2008), esse fato pode ser
explicado majoritariamente pela busca por obtenção de economias técnicas de escala e pelo controle
de “insumos estratégicos” por parte das maiores concorrentes.
Outra característica marcante da indústria de celulose no período recente é a replicação da
tendência à periferização também no interior do território nacional (PERPETUA, 2013; MALINA,
2013). Até o final dos anos 1990, segundo dados apresentados por Daura (2004), a produção de
celulose encontrava-se extremamente concentrada do ponto de vista geográfico, correspondendo
à região Sudeste sozinha 57% e ao Sul mais 30% de toda a produção nacional. A mudança no
padrão locacional foi de tal envergadura que, hoje, a quase totalidade das plantas fabris de celulose
instaladas, em instalação ou previstas localiza-se (ou pretende localizar-se) em estados do Centro-
Oeste, do Nordeste e do Norte do país. Os motivos não são outros quando comparados ao movimento
desdobrado em escala mundial: redução de custos com a compra de terras, exploração das condições
edafoclimáticas mais favoráveis, legislação ambiental e trabalhista mais “flexível”, mão de obra
barata e menos organizada e, não menos importante, aproveitamento dos generosos “incentivos”
oferecidos por estados e municípios mais afastados da core area nacional (PERPETUA, 2013).
Deste modo, nos últimos anos o Brasil tem levado a cabo sua opção pela especialização
regressiva, tendo por lócus espaços regionais receptores de grandes inversões que os tornam altamente
especializados nesse tipo de produção (PEDREIRA, 2008). Sem dúvida, os principais exemplos são o
Extremo Sul da Bahia (microrregião de Porto Seguro, para fins estatísticos), onde se localizam, desde
2005, fábrica e áreas de plantio da multinacional Veracel Celulose, joint venture entre a brasileira
Fibria e sueco-finlandesa Stora Enso; a região de Três Lagoas, nordeste de Mato Grosso do Sul,
onde se encontram os empreendimentos da Fibria Celulose e da Eldorado Brasil, respectivamente
2
Em 2008, 84,7% da capacidade produtiva instalada nacional estava nas mãos de 7 empresas: Fibria, Suzano Papel e
Celulose, Klabin, Cenibra, International Paper, Veracel Celulose e Jari Celulose (BIAZUS; HORA; LEITE, 2010). .

109
inaugurados em 2009 e 2012, e a região de Imperatriz, no oeste maranhense, local onde a Suzano
instalou sua mais nova fábrica, em 2013.

2 TRABALHO ESCASSO, MASCULINO, MAL REMUNERADO E VOLÁTIL

Todo e qualquer anúncio midiático de implantação de uma nova fábrica de celulose veiculado
traz em seu corpo uma estimativa superdimensionada do número de empregos a ser gerado. Sem
entrar nos pormenores acerca da natureza desses empregos, os escribas da comunicação procuram
deslumbrar a população com os milhares de postos de trabalho, “entre diretos, indiretos e por efeito
renda”3, exaltando suas virtudes na transformação das regiões “degradadas” e “abandonadas” do
interior. Na realidade, porém, como advertem Souza e Overbeek (2008, p. 56), “[...] nas regiões
onde é plantada a monocultura de eucalipto e produzida a celulose, é amplamente sabido que essas
atividades contribuem pouco para a geração de empregos.”
Isso fica evidente quando se compara os dados relativos às admissões nas atividades envolvidas
na produção de celulose4 com o total de admissões nos três municípios-sede dos empreendimentos
celulósicos estudados (Tabela 1).

TABELA 1 - Trabalhadores admitidos em atividades relacionadas à produção de celulose em


relação ao total de admissões em Eunápolis-BA, Três Lagoas-MS e Imperatriz-MA (2007-
2013)

Produção de Fabricação
Mudas e Outras Produção Atividades de Celulose e Total de Total de ad-
Ano Formas de Pro- Florestal - de Apoio à Outras Pastas admissões missões (todas %
pagação Vegetal, Florestas Produção para a Fa- (atividades as atividades)
Certificadas Plantadas Florestal bricação de selecionadas)
Papel

2007 0 117 1.667 54 1.852 30.731 6,02

2008 11 773 2.106 386 3.276 42.432 7,72


2009 0 307 2.165 108 2.580 34.737 7,42
2010 0 397 3.106 196 3.699 42.620 8,67
2011 2 1.256 5.061 398 5.595 52.118 10,73
2012 0 1.269 2.733 589 4.591 59.058 7,77
2013 0 1.657 2.387 643 4.687 70.573 6,64
Total 13 5.776 19.225 2.374 26.280 332.269 7,9

Fonte: Elaborado por Guilherme Marini Perpetua, a partir do Cadastro Geral de Empresados e Desempregados (CAGED)
(2007-2013).

Considerando-se o volume de investimentos requerido (R$ 3,4 bilhões para o projeto da


Veracel na Bahia; R$ 3,88 e 5,1 bilhões, respectivamente, para os projetos da Fibria e Eldorado
Brasil em Três Lagoas; e cerca de R$ 5 bilhões para o projeto da Suzano em Imperatriz) e a intensa
especialização econômica do espaço regional promovida, salta aos olhos a pequena proporção ocupada
pelos empregos gerados nas atividades do segmento celulósico, em relação ao total de admissões
(7,9%). Ademais, o número de admissões apresenta certa intermitência, com picos e períodos de

3
Calculados por meio desta engenhosa metodologia, teriam sido gerados, segundo a IBÁ (2014), 4,4 milhões de
empregos em 2013 pelas empresas do setor. Destes, 2,44 milhões correspondem ao “efeito renda”, 1,33 milhão corresponde
a empregos indiretos e 630 mil aos empregos diretos. Conste-se que o BNDES faz uso dos mesmos dados de geração de
emprego para justificar suas concessões e investimentos diretos no setor (BIAZUS; HORA; LEITE, 2010). .
4
Os dados sobre emprego foram coletados a partir da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), em
sua versão 2.0, nos extratos Setor e Classe.

110
retração, e há enorme discrepância dos empregos gerados nas “atividades de apoio à produção
florestal”, as quais, normalmente exigem pouco preparo técnico e pior remuneram.
A efervescência da geração de empregos alardeada pelas empresas e seus porta-vozes limita-
se à fase de construção e montagem das unidades fabris, geralmente prolongada por um período que
não excede dois anos e abastecida por uma mão de obra majoritariamente composta por trabalhadores
migrantes – os “peões do trecho”, como são conhecidos –, os quais acompanham as empreiteiras
subcontratadas em obras em diversos pontos do país (PERPETUA, 2012). Após entrar em operação,
uma fábrica moderna de celulose não necessita de mais do que três ou quatro centenas de trabalhadores
para o seu funcionamento habitual5, e isso não difere muito do cenário revelado pelas atividades de
silvicultura no campo, para as quais algumas fontes chegam a calcular a geração de apenas 1 emprego
direto para cada 187 ha de terra ocupados (CPT, 11/12/2012). A escassez de empregos, portanto, é
uma marca distintiva desse tipo de empreendimento.
O número de empregos nas atividades do setor como um todo vem caindo drástica e
continuamente desde os anos 1970 (DE’NADAI; SOARES; OVERBEEK, 2011), fenômeno
intensificado pelo ajuste neoliberal da década de 1990 (DAURA, 2004). Na base dessa transformação
estão modificações gerenciais (enxugamento) e, sobretudo, processos de automação industrial e
mecanização das atividades agrícolas, por meio da introdução de novas máquinas e implementos
poupadores de trabalho vivo.
E os problemas não param por aí. Muitos dos postos de trabalho efetivamente gerados, em
especial os melhor remunerados, são ocupados por trabalhadores migrantes provenientes de outras
regiões, a grande maioria já empregados pelas mesmas ou por outras empresas em busca de melhores
salários e condições de vida.6 A escassez do trabalho vivo, faz-se mister destacar, não se relaciona
apenas com a migração e a baixa geração de novos postos ou a migração, mas também e principalmente
com a eliminação dos doe empregos noutras atividades. Isso ocorre porque um dos desdobramentos
indiretos da expansão do monocultivo arbóreo (eucalipto) é a expulsão de trabalhadores (camponeses,
empregados na pecuária etc.) do campo, engrossando as fileiras do êxodo rural (KOOPMANS, 2005;
PEDREIRA, 2008; KUDLAVICZ, 2011).
Por tudo isso, não espanta o quadro a seguir, pintado pelo presidente do Sindicato dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Imperatriz.
É uma tristeza, porque a gente vê que, na verdade, a empresa não tem condições de manter
serviço pra toda essa população da região. Teve muito serviço na construção da fábrica
mesmo, tinha sete, oito mil homens todos os dias; mas hoje, segundo um levantamento que
a gente fez lá, eles têm em torno de setecentos funcionários, o resto, todo mundo foi embora.
Os [trabalhadores] daqui da região que se empregaram foi todo mundo mandado embora, [e]
estão por aí ‘fazendo bico’ de qualquer jeito7.
Um segundo traço marcante dos empregos gerados é a diminuta participação das mulheres
frente à enorme presença masculina. Segundo dados do Cadastro Geral de Empresados e Desempregados
(CAGED), entre 2007 e 2014, das 54.633 admissões nas atividades relacionadas à produção de celulose
(ver tabela 1) na microrregião de Porto Seguro (BA), apenas 3.824 corresponderam à admissão de
mulheres, e na microrregião de Três Lagoas (MS) foram 8.662, dum total de 52.029 admissões. A
maior desproporção foi registrada na microrregião de Imperatriz (MA), onde somente 2.662 mulheres
foram admitidas, num total de 94.616 admissões.
A baixa remuneração é outra característica visceral dos empregos nas atividades em
questão. De modo geral, quando se analisa a remuneração, os dados do CAGED de 2013 para o
setor de “agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura” evidenciam a concentração do
maior percentual dos empregados na faixa entre 1 e 2 salários mínimos, nas microrregiões estudadas.
Porto Seguro destaca-se com mais da metade (63,4%) dos empregados ganhando menos de 1 salário,

5
Informação verbal, pesquisa de campo. Entrevista realizada em 16/12/2014. .
6
Informações verbais, pesquisa de campo nas três áreas de estudo. Entrevistas realizadas nos meses de março,
setembro, novembro e dezembro de 2014.
7
Informação verbal, pesquisa de campo. Entrevista realizada em 09/09/2014.

111
seguida por Imperatriz, onde mais de um terço dos empregados (37,26%) se encontra em situação
semelhante. E, por mais insólito que pareça, no setor de “indústria de transformação” mais de 20%
dos empregados recebiam menos de 1 e quase 70% entre 1 e 2 salários em Porto Seguro; em Três
Lagoas, mais de 80% dos empregados no setor também não ultrapassam os 2 salários e, em Imperatriz,
esse número beira os 70%. Tal característica certamente constitui um fator de atração nas escolhas
locacionais das empresas.
Os dados de renda específicos para os trabalhadores empregados nas atividades selecionadas
(Figura 1), a situação não é muito diferente. Nas atividades de “produção de mudas e outras formas
de propagação vegetal, certificadas”, “produção florestal - florestas plantadas” e “atividades de apoio
à produção florestal” a maioria esmagadora dos empregados concentrava-se na faixa entre 0 e 2
salários mínimos, havendo uma relativa variação entre Porto Seguro (pior situação) e Três Lagoas
(melhor situação). Entre todas, a atividade de “fabricação de celulose e outras pastas para a fabricação
de papel” é a exceção, apresentando maior percentual de empregados nas faixas acima de 2 salários.
Convém lembrar, entretanto, que essa é a atividade que menos absorve mão de obra (ver tabela 1).

FIGURA 1 - Faixa de salário mensal nas atividades relacionadas à produção de celulose nas
microrregiões estudadas (2013)

Fonte: Elaborado por Guilherme Marini Perpetua, a partir do Cadastro Geral de Empresados e Desempregados (CAGED)
(2007-2013).

Por fim, para agravar ainda mais a situação, outra feição inerente ao segmento produtivo
estudado é a alta rotatividade (turnover) da mão de obra. No Brasil, em 2007, 70.567 trabalhadores
foram admitidos e 65.887 desligados nas atividades relacionadas à produção de celulose; em 2008,
foram 102.977 admissões contra 109.698 desligamentos; em 2009, 76.372 admissões contra 89.678
desligamentos; em 2010, 92.740 admissões contra 78.711 desligamentos; em 2011, 92.738 admissões

112
contra 92.614 desligamentos; em 2012, 78.436 admissões contra 88.659 desligamentos; em 2013,
73.713 contra 80.907 desligamentos e, em 2014, 66.784 admissões contra 70.500 desligamentos.
Deste modo, os saldos só não foram negativos nos anos de 2007, 2010 e 2011.
Reproduzindo o mesmo padrão, nas microrregiões de Porto Seguro, Três Lagoas e Imperatriz,
entre 2007 e 2014 (Figura 2), quando não ultrapassa, o número de desligamentos beira o de admissões,
demonstrando que grande parte dos supostos empregos gerados na verdade, quando muito, repõe
empregos eliminados.

FIGURA 2 – Admissões e desligamentos nas atividades relacionadas à produção de celulose


nas microrregiões estudadas (2007-2014)

Fonte: Elaborado por Guilherme Marini Perpetua, a partir do Cadastro Geral de Empresados e Desempregados (CAGED)
(2007-2013).

Para eliminar qualquer dúvida quanto aos motivos dos massivos desligamentos, deve-se
observar que, em média, nas microrregiões e atividades analisadas 77,2% deles ocorreram por motivos
independentes da vontade dos trabalhadores, isto é, por demissão sem justa causa (não a pedido do
trabalhador) e término de contrato.
Baixa geração de empregos, empregos masculinizados, mal remunerados e altamente
rotativos: eis apenas a superfície do problemático círculo de aspectos que encerra o trabalho vivo na
produção de celulose.

3 TRABALHO PRECÁRIO E DEGRADANTE

Conquanto indicativos, per si os dados quantitativos não são capazes de revelar diversos dos
problemas que integram a verdadeira natureza do trabalho nas atividades relacionadas à produção
de celulose. Eles só podem ser entendidos contra o pano de fundo dos processos mais abrangentes e
situações laborais concretas, por meio do recurso ao arcabouço teórico adotado e à voz dos sujeitos

113
enredados pelo ambiente, formas de organização e controle do trabalho precarizadas, cujo corolário
não é outro senão a superexploração e, consequentemente, a exposição a situações de risco e os
agravos à saúde dos trabalhadores.
As transformações econômicas, políticas, técnicas e organizacionais que marcam a
reestruturação produtiva do capital em escala mundial, a partir dos anos 1970, e suas implicações no
tocante à constituição do novo regime de produção flexível rebateram duramente sobre os trabalhadores
numa plêiade de desdobramentos denominada por muitos estudiosos como precarização do trabalho
(MATTOSO, 1995; ANTUNES, 1999; ALVES, 2000; DRUCK, 2011). Conforme Mattoso (1995), em
termos genéricos o conceito de precarização do trabalho faz referência ao processo amplo e variado
de mudanças nas condições de trabalho, no mercado de trabalho, nas exigências de qualificação
dos trabalhadores e nos direitos trabalhistas, engendrado no interior da crise do regime fordista e
emergência do regime flexível.
No Brasil, os novos elementos “flexíveis” de cariz toyotista foram introduzidos de forma
sistêmica apenas a partir dos anos 1990 (ALVES, 2000), porém, jamais promoveram qualquer
homogeneização entre setores produtivos, regiões e até mesmo empresas (THOMAZ JUNIOR, 2012).8
Na realidade, o que houve foi a combinação entre regimes produtivos e suas formas de organização e
controle do trabalho, colocando vis-à-vis elementos regressivos e espectrais e agravando ainda mais
as já (e desde sempre) precárias condições de trabalho. (ALVES 2002/2003).
Mesmo limitada pelas características intrínsecas às indústrias de processo contínuo como a
de celulose, a reestruturação foi maciçamente incorporada pelas empresas durante a fase neoliberal.
As novas rotinas, formas de contratação, remuneração e controle flexíveis características do novo
regime de acumulação (ALVES, 2011), varreram o setor de norte a sul, ao lado da tendência geral de
redução significativa da mão de obra empregada. (DAURA, 2004)9.
Sem dúvida, a principal forma de flexibilização da contratação presente e virulentamente
disseminada no cultivo de eucalipto e produção de celulose no Brasil é a terceirização, um fenômeno
insuflado pelos ventos novo-desenvolvimentistas não apenas neste, como nos mais diversos setores
e atividades10. Ainda no início da década passada, Leite, Souza e Machado (2002 apud OLIVEIRA,
2014, p. 215) observavam que “[...] o processo de terceirização no setor de eucalipto-celulose-papel
tem sido crescente, se expandido estrategicamente para quase todos os subsetores das atividades
envolvendo o monocultivo de eucalipto e fabricação de celulose e papel.”
De fato, a terceirização indiscriminada promovida pelas grandes corporações (Tabela 2),
por vezes, constituidora de uma longa cadeia de até uma dezena de empresas diferentes, abre espaço
para toda sorte de irregularidades em relação à legislação trabalhista, sem contar a diferença no nível
salarial, jornada e condições de trabalho.

TABELA 2 – Tipo de vínculo de trabalho nas empresas produtoras de celulose (2013)


Empresas/Funcionários Próprios % Terceirizados % Total
Veracel Celulose 701 16,42 3.567 83,58 4.268
Eldorado Brasil 2.218 51,01 2.130 48,99 4.348
Suzano Papel e Celulose 6.409 38,28 10.330 61,72 16.739
Fibria Celulose 3.827 22,28 13.343 77,07 17.170
Total 13.155 30,93 29.370 69,07 42.525
Fonte: Elaborado por Guilherme Marini Perpetua. Veracel (2013); Suzano (2013); Eldorado Brasil (2013); Fibria (2013).

8
De acordo com Leonardo Melo e Silva (2010), devido às particularidades de nossa formação econômica e social nem
mesmo o taylorismo pôde ser encontrado em sua “pureza doutrinal” em terras brasileiras.
9
Entre 1989 e 2000, segundo Daura (2004), a mão de obra total empregada no setor de celulose e papel no Brasil
decaiu 28%, acompanhando a mesma tendência observada na Europa, na América do Norte, na Oceania e na África.
10
Como observa Alves (2014), na década de 2000, a terceirização assumiu o principal posto na geração de novas
ocupações no Brasil, crescendo a um ritmo quatro vezes superior que o dos contratos diretos. .

114
Quase 70% de toda a mão de obra ocupada pelas empresas correspondem à categoria
funcionários terceirizados, ou seja, são empregados de empresas prestadoras de serviço subcontratadas
pelas empresas citadas. A despeito das alegações arvoradas nos argumentos da eficiência produtiva
e maior qualidade dos produtos, enquanto prática social a terceirização esconde o objetivo velado
de reduzir custos e libertar-se de quaisquer responsabilidades, constrangimentos e ônus inerentes à
relação capital-trabalho atrelados à contratação direta. Para Druck (2011), a terceirização é uma das
facetas do processo mais amplo de precarização do trabalho, manifestado igualmente (e de forma
articulada) no aumento da insegurança e dos agravos à saúde dos trabalhadores, com rebatimentos
para além do ambiente de trabalho.Em poucas palavras, Gonçalves (1994) fornece explicações
contundentes para a terceirização das atividades envolvidas na silvicultura, relacionando-as, inclusive,
com os aspectos anteriormente analisados (baixa remuneração e rotatividade) e aspectos doravante
expostos (riscos e agravos).
As razões [para a terceirização] parecem evidentes: o trabalho no eucaliptal é um trabalho
pesado, sujeito a acidentes constantes e garante uma rentabilidade enorme quando mal
remunerado. E para ser mal remunerado, a desmobilização dos trabalhadores é um fator
importante e pode ser obtida através da alta rotatividade. A alta rotatividade, por sua vez, é
garantida com eficácia pela terceirização (GONÇALVES, 1994, p. 144-145).
Vários trabalhadores entrevistados reconheceram as diferenças gritantes de remuneração,
jornada e condições de trabalho entre a contratação direta e a subcontratação. Mas não é só isso.
Em resumo, no caso específico do monocultivo industrial de eucalipto e da produção de celulose
nos moldes aqui analisados, a terceirização enceta uma hierarquia interna extremamente funcional,
pois configuradora dos territórios das empresas-mãe. Essas, por meio dos contratos de serviço,
firmam vínculos rígidos com as subcontratadas, disciplinando-as a seu favor; aquelas, movidas pela
concorrência encarniçada, são impelidas em direção ao rebaixamento dos custos e ao aumento da
produtividade e, assim, à intensificação do controle e da exploração da força de trabalho. Assim,
de maneira verticalizada o controle do território é exercido, em diversos níveis, da empresa-
mãe até o trabalhador.
O controle do tempo de trabalho (conditio sine qua non da acumulação) revela um
movimento combinado em dois sentidos. Primeiro, em direção à duração das jornadas de trabalho,
ou seja, daquilo que Marx (2013) chamou de mais-valor absoluto. De acordo com diversos relatos
de trabalhadores ouvidos em campo nas três áreas de estudo, nas atividades de silvicultura (preparo
do solo, coveamento, plantio, irrigação, combate a pragas etc.) as jornadas comumente se estendem
por 14, 15 e até 16 horas, incluindo o tempo de deslocamento até às frentes de trabalho, o qual pode
variar bastante de acordo com sua localização. O pior é que, em geral, quando muito as empresas
pagam por um valor simbólico dessa extensão na forma de horas in itinere. Entre os operadores de
máquinas agrícolas de corte de árvores e transporte de toras (harvester e forwarder) adiciona-se às
longas jornadas o trabalho em turnos rotativos (manhã, tarde e noite) causador de sérios distúrbios
fisiológicos e sociais nos trabalhadores.
Segundo, no sentido da intensificação do ritmo de trabalho por meio de diversos expedientes
tecnológicos e organizacionais, ao que Marx (2013) denominou mais-valor relativo. O principal deles,
sem dúvida, é o sistema de metas de produção, normalmente associado, de um lado, a bônus e prêmios
por produção, e de outro, a penalizações às mais diversas. Na Veracel, por exemplo, conforme um
operador entrevistado,
Em média, a meta depende muito do volume [de produção], varia muito. O volume hoje da
Veracel é de 0,35, então em média você tem que produzir 90 árvores por hora, ou seja, você
tem que ‘abater’ a árvore, descascar ela toda – e ela só pode ter 3% de casca, porque acima
disso você é penalizado – e cortar as toras de 6 metros. Então imagine, você tem que produzir
90 árvores por hora, descascando, limpando e cortando [...]. O ritmo de trabalho é frenético!
Visando cumprir as metas superdimensionadas, prepostos da empresa apelam para o
encurtamento dos intervalos entre tarefas, jornadas e até mesmo das pausas para descanso e
atendimento de necessidades fisiológicas. Outra tática encontrada entre os operadores de máquinas
agrícolas e industriais da Fibria e da Eldorado Brasil em Mato Grosso do Sul, explica outro operador,

115
é transformar as metas de produção em coletivas, ou seja, “[...] se todo mundo bateu a meta o módulo
ganha aquele valor. É o prêmio de produção para o módulo, o módulo tem que bater junto.”Ora, do
ponto de vista do capital, sua eficácia é garantida, pois cada um dos funcionários acaba por se tornar
um “fiscal” intransigente do outro.
Tudo isso culmina noutro aspecto da precarização: a remuneração flexível, determinada ao
sabor das metas e prêmios por produção ditadas pela dramática combinação entre seu estabelecimento
e a capacidade (ou a incapacidade) dos trabalhadores em atingi-las. Além de intensificar o trabalho, as
metas transformam boa parte dos salários em vencimentos variáveis, aos quais o trabalhador não tem
direito em caso de afastamento por doença ou acidente de trabalho ou mesmo quando se aposentar.
Somam-se a toda essa miscelânea problemática as penosas condições de trabalho no campo,
sejam elas dadas pelo próprio ambiente, criadas pela forma de organização do trabalho ou (o mais
comum) a soma das duas coisas. Por exemplo, além do esforço físico descomunal requerido para a
execução de algumas tarefas, os trabalhadores apontaram como o pior dos aguilhões das atividades
de campo a irradiação solar, muito intensa nas regiões pesquisadas e potencializada pelo tipo de
vestimenta e pela inexistência de vegetação nos locais de plantio/manejo.
Finalmente, o descumprimento reiterado e sistemático da legislação trabalhista não pode
deixar de ser citado enquanto outro grave problema encontrado não apenas nas prestadoras de
serviço, mas igualmente entre as próprias empresas-mãe (Veracel, Suzano, Fibria e Eldorado Brasil).
Malgrado toda a conhecida incipiência da fiscalização do trabalho no Brasil, os casos de denúncia e
condenação das empresas por tal motivo vão se acumulando de maneira estarrecedora. Em função da
exiguidade do espaço, ficaremos apenas em dois exemplos.
Em 2011, segundo consta na proposta de Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelo Ministério
Público do Trabalho (MPT) de Três Lagoas na Vara do Trabalho do mesmo município em 18 de
fevereiro de 2014, trabalhadores da empresa Florestal Brasil, posteriormente incorporada pela Eldorado
Brasil, formalizaram denúncia junto ao órgão sobre irregularidades quanto ao meio ambiente do
trabalho, condições de trabalho, órgãos e medidas de proteção (Equipamento de Proteção Individual e
Equipamento de Proteção Coletiva), atividades e operações insalubres, condições sanitárias, duração
do trabalho e pagamentos respectivos, anotação e controle da jornada, trabalho noturno, alimentação
do trabalhador, entre outros, em desacordo com às exigências legais e constitucionais.No dia 02 de
agosto de 2012, após sucessivos pedidos não atendidos de esclarecimento por parte dos representantes
da empresa quanto às irregularidades destacadas, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) realizou
diligência de fiscalização conjunta com o MPT numa das frentes de trabalho de empresa. A ação teve
como resultado a constatação de uma longa lista de irregularidades e, por conseguinte, o requerimento
da condenação da ré (Eldorado Brasil) ao pagamento de indenização por dano moral coletivo no valor
de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais), além, é claro, da imediata adequação das atividades e
condições em conformidade com a legislação e normas regulamentadoras competentes.
Em outubro de 2013, a Veracel foi condenada pela Justiça do Trabalho a pagar R$ 4 milhões
por danos morais coletivos e graves riscos à segurança e saúde dos seus funcionários. Segundo o
MPT, a empresa expunha os trabalhadores a situações de alto risco e não emitia a Comunicação
de Acidente de Trabalho (CAT) nas ocorrências em que isso se fazia necessário. Considerando-se
apenas o período de janeiro a fevereiro de 2008, 40 trabalhadores foram afastados por problemas
de saúde da sua unidade em Eunápolis, sendo 25 deles operadores. Além da multa, a empresa foi
obrigada a conceder intervalos de 12 minutos a cada 90 minutos trabalhados, deixar de premiar os
empregados para aumentar a produção e não exigir mais a realização de horas-extras, como vinha
fazendo (BAHIA NOTÍCIAS, 2013).
Assim, tristemente, comprova-se também neste setor a costumeira ausência de efetividade
das normas jurídicas trabalhistas, sempre mais grave no meio rural. Temos, portanto, em todas essas
formas de precarização do trabalho no segmento em tela a materialização, por diferentes meios, da
superexploração do trabalho, que é exploração em níveis superiores às necessidades reprodutivas
mais elementares dos trabalhadores, tal como a descreveu e explicou Marini (2011). Sua existência
não é apenas funcional, mas tornou-se necessária às empresas envolvidas numa concorrência
elevada ao plano mundial, em meio a qual a redução de custos e o aumento da rentabilidade dos

116
investimentos constitui a verdadeira palavra de ordem. O resultado não poderia ser diferente: altos
índices de agravos à saúde.
Em 2004, a “indústria de celulose, papel e outros produtos de papel” ocupava o inglório
posto de oitava colocada entre os setores industriais com maiores taxas de acidentes de trabalho, com
32,5 acidentes para cada 1.000 trabalhadores. (SILVA et al., 2005). Entre 2007 e 2013, a Previdência
Social registrou um total de 29.736 casos de acidentes e adoecimento do trabalho nas atividades
relacionadas à produção de celulose no Brasil (figura 3). Considerando o amplo conjunto de fatores
que fazem da alta subnotificação um problema real desse tipo de levantamento, reconhecido
e apontado por diversos estudiosos do assunto (MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997;
NAVARRO, 2003; LOURENÇO, 2011) é forçoso admitir que esses números são apenas a ponta de
um iceberg muito maior.

FIGURA 3 – Casos de acidente e adoecimento do trabalho no Brasil em atividades


relacionadas à produção de celulose (2007-2013)*

*Na categoria acidentes estão somados os acidentes “típicos” e os de “trajeto”, segundo a nomenclatura utilizada pela
Previdência Social. Fonte: AEATs, 2009, 2012 e 2013.

Quer nas atividades do campo, quer nas da indústria os trabalhadores estão constantemente
submetidos a uma série de riscos ambientais de natureza física (risco de queda, torção de membros,
lesões por impacto, corte e esforço repetitivo - LER/DORT), biológica (risco por contato com animais
peçonhentos) e química (risco de contaminação por contato com agrotóxicos, utilizados em larga
escala na silvicultura, e/ou com produtos químicos usados no processamento industrial da celulose).
Ainda assim, a política de saúde e segurança do trabalho das empresas estudadas imputa aos
trabalhadores a responsabilidade por evitar tais efeitos ambientais deletérios, fazendo campanhas de
“conscientização” para o uso de EPIs, criando programas verticais de vigilância, impondo-lhes metas
de segurança, enfim, culpabilizando-os por todo e qualquer “descuido”, inclusive com demissão por
justa causa caso ocorram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da análise de um aspecto específico (a geração de empregos) num determinado


segmento produtivo (produção de celulose) procuramos demostrar o caráter farsesco que reveste os
megaempreendimentos do capital envolvido com a produção de commodities agrominerais no Brasil
novo-desenvolvimentista contemporâneo. Devido à sua forma de inserção no mercado internacional
e às suas próprias características intrínsecas, a indústria de celulose tem lutado com todas as forças
para aproveitar “vantagens” territoriais, ao mesmo tempo em que rebaixa custos produtivos, entre
os quais têm destaque o trabalho vivo. Desta forma, não se pode negar que empregos são gerados,

117
porém, de maneira escassa, masculinizada, mal remunerada e volátil. Acima de tudo, o trabalho nas
atividades estudadas mostra-se extremamente precarizado e degradante para os seres humanos de cujo
esfalfante trabalho depende a geração da riqueza que é motivo de tanto orgulho para os representantes
do Estado e do capital.

REFERÊNCIAS

ABRAF. Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas. Anuário estatístico ABRAF


2013 - Ano base 2012. Brasília-DF: ABRAF, 2013.
ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do
sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.
______. Globalização como processo civilizatório humano-genérico. Estudos de Sociologia,
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G. (Orgs.). Trabalho e Saúde: a precarização do trabalho e a saúde do trabalhador no século XXI.
São Paulo: LTr, 2011.
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120
O TRABALHAR DA ENFERMAGEM EM TURNOS:ROTAS
PARA UMA INVESTIGAÇÃO
Roberta Peixoto Nogueira*
Ailton Souza Aragão**
RESUMO: O trabalho é uma atividade humana cuja essencialidade permite ao homem viver em sociedade. Na atualidade do trabalho
e sua perspectiva para a enfermagem se observa sua realização em turnos, com face especialmente o turno noturno, no que tange aos
impactos à saúde, à família, às relações sociais e ainda à assistência prestada aos usuários. Assim, torna-se um relevante escopo de
análise junto ao fazer dos profissionais de enfermagem, em particular, e dos trabalhadores que atuam em turno. Busca-se fomentar um
maior entendimento a respeito do trabalhar em enfermagem, sua realidade e seus trabalhadores.
Palavras chave: Trabalho, Trabalho noturno, Enfermagem
ABSTRACT: Work is a human activity whose essentiality allows man to live in society. In the actuality of the work and its perspective
to the nursing one observes its realization in shifts, about especially the nocturnal shift, with respect to the impacts to the health, to
the family, to the social relations and to the assistance given to the users. Thus, it becomes a relevant scope of analysis along with the
nursing professionals, in particular, and the shift workers. It seeks to foster a greater understanding regarding work in nursing, its
reality and its workers.
Keywords: Work, Nightwork, Nursing

1 O TRABALHO E A CONSTRUÇÃO DAS SUBJETIVIDADES

Ao refletirmos a cotidianidade da vida constatamos que o trabalho está invariavelmente


presente, sob diferentes configurações, apresentações, meios e fins; ocupando importante parte do tempo
de cada indivíduo, representando um elemento essencial e de ampla magnitude da vida do ser humano.
Atualmente, assistimos a uma diversidade de concepções a respeito do trabalho. Apontamentos
como os que se referem à centralidade do trabalho para o ser humano são alguns dos referenciais
teóricos que alicerçam esse estudo.
Para Marx (1971) citado por Antunes (2008) o ser humano, em sociedade, se relaciona
por meio do trabalho, numa acepção social do mesmo, e dele faz o meio – por excelência - na
construção e manutenção das condições para sua sobrevivência. “O selvagem tem de lutar com a
natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer
o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção” (MARX, 1971 apud
ANTUNES, 2009, p. 171).
Marx (1971) citado por Antunes (2008) considera o trabalho como uma atividade
essencialmente humana e vital para a vida cotidiana. Ao considerar o ser humano como consciente e
racional, que se organiza e mantêm relações sociais, que produz bens materiais a partir da natureza, o
tornando diferente de outras formas de vida.
A ideia de trabalho, como um elemento que dá identidade ao ser na sociedade,
significado à vida e que o empodera de meios econômicos e sociais para sobreviver, também é
compartilhada por outros autores.
[...] o trabalho é aquilo que implica, do ponto de vista humano, o fato de trabalhar: gestos,
saber-fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir,
de interpretar e de reagir às situações; é o poder de sentir, de pensar e de inventar, etc. Em outros
termos, para o clínico, o trabalho não é em primeira instância a relação salarial ou o emprego;
é o «trabalhar», isto é, um certo modo de engajamento da personalidade para responder a uma
tarefa delimitada por pressões (materiais e sociais) (DEJOURS, 2004a, p. 29).
Dejours (2004a), ainda, faz um apontamento quanto ao diferente entendimento sobre trabalho
e emprego. Ao trabalho, a partir do ideal Marxista, considera a conquista de dignidade, humanidade
e felicidade social. Enquanto o emprego refere-se ao cargo ou ocupação de um indivíduo dentro da
organização empregatícia. “Trabalhar não é somente produzir; é, também, transformar a si mesmo

*
Mestranda do curso de Pós-graduação em Saúde Ambiental e Saúde do trabalhador da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). E-mail: robertapn@yahoo.com.br.
**
Professor Adjunto II do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Triangulo Mineiro (UFTM).
E-mail: ailton.aragao@uftm.edu.br.

121
e, no melhor dos casos, é uma ocasião oferecida à subjetividade para se testar, até mesmo para se
realizar” (DEJOURS, 2004a, p. 30).
Antunes (2008) em suas constatações referiu-se à necessidade do trabalho para a vida humana
e de seu potencial emancipador e fez relações a atual conjuntura política e econômica, que causaram
implicações nos processos e relações de trabalho.
Pelo exposto, o trabalho, como uma atividade central ao ser humano e considerando sua
subjetividade, promove e constrói identidade, confere significância além de condições de sobrevida.
Ele legitima o sujeito trabalhador como um ser agente social, ativo, produtivo.
Contudo, a estruturação do trabalho sob a égide do modo capitalista, constatamos que as
condições do trabalho historicamente têm impactado sobre a condição de saúde do trabalhador, pois
a saúde dos trabalhadores está imbricada nas condições do trabalho.

2 O TRABALHO NA SUA ATUALIDADE

Antunes (2009) tece algumas reflexões acerca da relação entre o trabalho e o capital nos
dias atuais. A reestruturação do cenário econômico agrava as contradições que circunda o mundo
do trabalho, acirrando as condições inadequadas de trabalho e deflagrando novas circunstâncias
precarizadas de trabalho.
O ideário de trabalho como elemento central na vida do ser humano, que capacita e dá
sentido se torna uma das faces assumidas por ele. Ao se deparar com processos de trabalhos que
desumanizam o ser, aliena, transformando o trabalho assalariado em um meio e não o fim em si mesmo,
temos a outra perspectiva do trabalho. A vitalidade do trabalho é levada à fonte para sobrevivência na
sociedade de consumo (ANTUNES, 2008).
O trabalho passa a ser condição para o consumo, perdendo o estatuto de fim em si, enquanto
motor de desenvolvimento social e pessoal. Como consequência, tem-se a perda do sentido
do trabalho enquanto motor da ação humana para fins de desenvolvimento e aprendizagens
de novos conhecimentos e habilidades. Ele fica subjulgado a uma nova esfera de produção:
não de mercadorias, mas sim, de bens de consumo (DIAS; MANDELLI; SILVA, 2014).
Configurado nos dias atuais, “[...] se a vida humana se resumisse exclusivamente ao trabalho,
seria a efetivação de um esforço penoso, aprisionando o ser social em uma única de suas múltiplas
dimensões” (ANTUNES, 2008).
Nos ditames do neoliberalismo a condição de trabalho passa por transformações,
[...] como respostas do capital à crise dos anos 70, intensificaram-se as transformações
no próprio processo produtivo, pelo avanço tecnológico, pela constituição das formas de
acumulação flexível e pelos modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, entre
os quais se destaca, para o capital, especialmente, o modelo ‘toyotista’ ou japonês [...]
(ANTUNES, 2009, p. 188).
O modo produtivo de organização do trabalho norteados pelo toyotismo configura na realidade
a intensificação da exploração da força de trabalho. Um falso discurso em relação à participação
do trabalhador, à autonomia, ao trabalho em grupo e flexibilidade; quando na verdade busca-se a
exploração máxima do trabalhador, por meio da apropriação do corpo e da mente dos trabalhadores
em prol do capital (SATO; HESPANHOL BERNARDO; OLIVEIRA, 2008).
A flexibilização que precariza, a implementação de tecnologias que possui como finalidade
a intensificação da produção através da inserção de padrões de produção no sistema just in time,
por exemplo, constituem formas de exploração do trabalhador, que agora é caracterizado por ser
polivalente, devendo estar prontamente a postos em qualquer situação de trabalho para o desempenho
de suas – ou de outras – funções em prol do capital (ANTUNES, 2008).
Nesse ponto, cabe expor a relação entre trabalho precário e trabalho precarizado. Sá (2010)
em seu estudo evidencia a expansão da noção de precariedade para além da miséria e pobreza,
atrelando precariedade às condições de trabalho, aproximando da ideia dos “empregos sem estatuto”.
O histórico de trabalho precário no Brasil, cujas raízes penetram profundamente nas
estruturas atuais existentes, somado a um capitalismo que avança com novos ditames, tem-se uma

122
realidade do trabalho precarizado. A exploração do trabalhador é ocultada pelos procedimentos
de trabalhos baseados na flexibilização, cooperação e empreendedorismo (SATO; HESPANHOL
BERNARDO; OLIVEIRA, 2008).
Nessa esteira observamos a ineficiência de políticas de proteção ao trabalhador, em que “[...]
o estado, [...], tende a se afastar das intervenções significativas no âmago das relações de produção
hegemônicas, onde se localizam as principais fontes para o enfrentamento abrangente da crise social”
(MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997, p. 31).
Nesse panorama de instabilidade, o trabalhador torna-se alvo das consequências da nova
organização do trabalho. Antunes et al. (2013a) aponta sobre o enfraquecimento das forças sindicais,
a informalidade e o desemprego que são elementos crucias da modernidade e impactantes na
vida do trabalhador.
Sobre a modernidade Bauman (2001) faz referência ao termo “modernidade pesada” e
“modernidade líquida”. O primeiro referindo ao compromisso entre capital e trabalho, fortificado
pela mutualidade de sua dependência. Enquanto que na atualidade, expressa uma liquidez que no
trabalho “[...] anuncia empregos sem segurança, compromissos ou direitos, que oferecem apenas
contratos a prazo fixo ou renováveis, demissão sem aviso prévio e nenhum direito à compensação
[...]” (BAUMAN, 2001, p. 185).
Esse diagnóstico empírico revela a ampliação da “[...] sensação de descartabilidade e a
necessidade de construir meios para competir com o outro, em vista de uma realidade social no qual
os postos de trabalho tornam-se cada vez mais escassos” (DIAS; MANDELLI; SILVA, 2014).
Frente à instabilidade do tempo presente e às pressões decorrentes da organização do processo
de trabalho, Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) consideraram as potencialidades desestabilizadoras
do processo de trabalho para a saúde do trabalhador.
Assim, tendo em vista as considerações discorridas sobre o trabalho na atualidade, tornam-
se oportunas reflexões sobe o trabalho como desencadeador de processos de adoecimento do corpo
físico, mas também do desgaste e sofrimento mental.

3 TRABALHO E O ADOECIMENTO

A atualidade do trabalho nas relações de produção capitalista evidencia uma evolução do


trabalhar. “[...] sob o império das novas formas de organização do trabalho, de gestão e de administração
específicos do neoliberalismo é, nolensvolens1, o futuro do homem que está comprometido”
(DEJOURS, 2004a, p. 33).
Para Dejours (2004a) o adoecimento do trabalhador faz jus à lacuna existente ao que ele
chama de trabalho prescrito e trabalho real. O sujeito que trabalha reconhece esta distância irredutível
entre a realidade e de outro lado as previsões, as prescrições e os procedimentos. O trabalhador pode
reagir a esse distanciamento gerando o adoecimento oriundo do processo de trabalho. “Assim, é numa
relação primordial de sofrimento no trabalho que o corpo faz, simultaneamente, a experiência do
mundo e de si mesmo” (DEJOURS, 2004a, p. 28).
O trabalho, como um elemento que possui implicações diretas à saúde do indivíduo. “A
centralidade do trabalho é percebida na construção de identidade, na relação de si mesmo e na saúde
mental – ou mesmo na saúde somática” (DEJOURS, 2004b, p. 138).
Dessa forma, o trabalho “[...] jamais é neutro, [...]. Ou joga a favor da saúde ou, pelo
contrário, contribui para sua desestabilização e empurra o sujeito para a descompensação”
(DEJOURS, 2004b, p. 138).
O prejuízo ao corpo físico e mental do trabalhador é entendido nas relações de tensão
entre o trabalho prescrito e trabalho real: medo e insegurança frente à informalidade, aos contratos
temporários, ao desemprego; sobrecarga, referente aos múltiplos vínculos empregatícios, para suprir
as necessidades financeiras básicas e sustentar o consumismo ditado pela sociedade (DEJOURS,
2004a; ANTUNES, 2009).
1
A expressão “nolensvolens” refere-se a uma locução latina que significa “quer queira, quer não queira” equivalente a
“querendo ou não querendo” (PRIBERAM, 2015).

123
Pelo exposto, o trabalho é um fator social de relevância ao relacioná-lo à saúde, pois implica
diretamente sobre a qualidade de vida do sujeito. Logo, trabalhar, seja no campo da saúde, como a
enfermagem, seja nas fábricas, como os metalúrgicos, estão imersos nos pressupostos do trabalho na
atualidade líquida com implicações sobre a saúde dos mesmos.

4 O TRABALHO EM SAÚDE

O foco do trabalho da equipe de saúde é a manutenção e o restabelecimento da saúde dos


indivíduos, atuando em diferentes níveis de atenção e com ações diversas. A equipe de saúde é
composta por vários profissionais que desempenham várias atividades de assistência à saúde.
O setor de saúde, não distante da realidade neoliberal, sofre influências diretas.
Os serviços públicos como saúde, energia, educação, telecomunicações, previdência
etc., também sofreram, como não poderia deixar de ser, um significativo processo de
reestruturação [...]. O resultado parece evidente: intensificam-se as formas de extração de
trabalho, ampliam-se as terceirizações, metamorfoseiam-se as noções de tempo e de espaço
também e tudo isso muda muito o modo como o capital produz as mercadorias, sejam elas
materiais ou imateriais, corpóreas ou simbólicas (ANTUNES, 2009, p. 249).
A comercialização da saúde, de seus procedimentos, produtos, rejeitos e sujeitos é uma
realidade que está imbricada à lógica do modelo produtivo.
O trabalhador em saúde presta serviço e seu trabalho não se materializa em um produto.
“Serviço não é, em geral, senão a expressão para o valor de uso particular do trabalho, na medida em
que este não é útil como coisa, mas como atividade” (ANTUNES, 2013b, p. 136).
Ainda que improdutivos pelo viés materialista, os setores de serviços, como o da saúde,
são essenciais para as dinâmicas do modo produtivo e das necessidades da sociedade. Neste sentido,
Antunes (2009) fez considerações quanto à diferenciação entre trabalho vivo e trabalho morto. O
primeiro referido ao trabalho humano; e o segundo referindo-se ao maquinário científico-tecnológico,
que desde sua elaboração por Marx, há a valorização do segundo em detrimento do primeiro.
Como se constata, muitas atividades do trabalho têm sido substituídas pelo trabalho morto,
informatizado e mecanizado. Na área da saúde a introdução de tecnologias, que também está
amplamente presente, não desabilita a necessidade humana à assistência em saúde, não podendo ser
substituída pelo maquinário tecnológico, apesar deste servir como importante subsídio para o serviço
em saúde. Dessa forma, mostra-se um setor com presença ampla de trabalho vivo. Contudo, cabe
refletir sobre os impactos quando da ausência de trabalho morto no campo do cuidado hospitalar,
atividade essencialmente humana.
Nesse sentido, Antunes (2009, p. 40) constata a presença da realidade de exploração: “[...]
exatamente porque o capital não pode eliminar o trabalho vivo do processo de criação de valores, ele
deve aumentar a utilização e a produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extração
de sobrecarga [...].”
Além dessas constatações para a equipe de saúde, ao ampliarmos a visão para os resultados
do trabalho desses profissionais nos deparamos com circunstâncias de desvalorização e não
reconhecimento do fruto do trabalhar em saúde por diferentes razões e agentes, como por exemplo:
descontinuidade do acompanhamento das ações em saúde individuais e coletivas que esbarram em
enfrentamentos diversos, como adesão ao tratamento e políticas públicas ineficazes, fazendo os
resultados se encontrarem diluídos podendo passar despercebidos.

124
Pelo exposto, o trabalho se mostra como um fator social relevante ao relacioná-lo ao setor
saúde e suas implicações diretas e indiretas ao sujeito trabalhador em saúde, destes, o trabalhador de
enfermagem tem foco neste estudo.

5 O TRABALHAR DA EQUIPE DE ENFERMAGEM

Como já visto, o trabalho representa uma atividade essencial ao ser humano. Por meio dele os
indivíduos se relacionam e adquirem as condições para a manutenção da sua sobrevivência (MARX,
1971 apud ANTUNES, 2008).
A enfermagem, não diferente dos outros trabalhadores, também está inserida no contexto
socioeconômico e cultural atual que influencia a estruturação das atividades profissionais assim como
a individualidade e a coletividade desses sujeitos trabalhadores.
Essa assertiva foi assim exposta por Menzani (2006): “A enfermagem é considerada
uma profissão que sofre o impacto total, imediato e concentrado do stress, que advém do cuidado
constante com pessoas doentes, situações imprevisíveis, execução de tarefas, por vezes, repulsivas e
angustiantes [...].”
Esse “impacto total” também foi exposto por Veiga, Fernandes e Paiva (2013), pois o
processo de trabalho no hospital se configura como uma atividade ininterrupta.
[...] na Enfermagem, o significado do Trabalho abrange, além das experiências do cotidiano da
prática, os aspectos inerentes ao processo de cuidar e administrar, que, no âmbito hospitalar,
se caracteriza por ser contínuo, com atividades ininterruptas durante as 24 horas, distribuídas
em turnos de revezamento (VEIGA; FERNANDES; PAIVA, 2013, p. 19).
Na área da saúde a organização de trabalho em turnos, diurnos e noturnos, constitui
uma necessidade, para que possa ser garantida, aos usuários, assistência em período integral
(SILVA et al., 2011).
Assim, a jornada de trabalho noturna representa uma inversão nos padrões normais de vida,
quando maior parte do período ativo do dia acontece no momento em que o corpo deveria estar
repousando, podendo impactar a saúde e qualidade de vidas desses profissionais.
O trabalhador ao inverter o ciclo sono-vigília em decorrência do trabalho noturno, ou seja,
dormir durante o dia e trabalhar à noite, induz a uma dessincronização interna dos ritmos
biológicos e circadianos, bem como favorece conflitos de ordem social, pois nossa cultura é
predominantemente diurna (REGIS FILHO, 2002, p. 71).
Para esse autor, fisiologicamente, o corpo tem suas funções controladas por fatores endógenos,
que constituem o relógio biológico e mudanças nesse mecanismo provocam algumas alterações
orgânicas, seja na temperatura, nos hormônios, na psique, no comportamento ou no desempenho
pessoal. Regis Filho (2002) salienta, ainda, que tal alteração de turno reflete na ocorrência dos
elevados níveis de estresse, insônia, sonolência excessiva, distúrbios de humor, alteração de hábitos
alimentares, distúrbios gastrointestinais e cardiovasculares, problema de relacionamentos familiares,
conjugais e sociais.
As implicações da escala de trabalho noturna giram em torno do processo de dificuldade
do organismo em adaptação às alterações de hábitos de sono. Conforme análise feita por Pimenta
et al. (2012) os profissionais que desempenhavam suas funções à noite tinham maior prevalência de
hipertensão arterial comparados aos que trabalhavam durante o dia, havendo maior vulnerabilidade
de ocorrência de doenças cardiovasculares àqueles profissionais.
As implicações à vida do trabalhador de enfermagem noturno são constatadas em estudos
diversos como verificado por Silva et al. (2011) ao discorrer sobre as consequências da realização do
trabalho no período noturno na saúde do trabalhador frente as alterações do equilíbrio biológico, dos
hábitos alimentares e do sono, na perda de atenção, na acumulação de erros, no estado de ânimo, na
vida familiar e social.

125
Somado a isso, o desempenho profissional pode ser afetado pelo hábito noturno. “O serviço
noturno, apesar de imprescindível para a atividade de enfermagem, traz consequências para a saúde
do trabalhador podendo afetar a qualidade da assistência prestada.” (LISBOA et al., 2010, p. 482).
Quanto a esse respeito, Silva et al. (2011) é enfática: “[...] a privação do sono é fator que
pode comprometer tanto a saúde do trabalhador quanto a assistência prestada, pois reduz o estado de
alerta e a atenção do trabalhador.”
As alterações de ordem cronológica da organização da vida ativa são contrárias às funções
biológicas normais e ao cotidiano social, alavancando o trabalho como causador de danos à saúde do
trabalhador de enfermagem. Cabendo, ainda, reflexões sobre a qualidade de vida desses trabalhadores.
[...] qualidade de vida em saúde coloca sua centralidade na capacidade de viver sem doenças
ou de superar as dificuldades dos estados ou condições de morbidade. Isso porque, em geral,
os profissionais atuam no âmbito em que podem influenciar diretamente, isto é, aliviando a
dor, o mal-estar e as doenças, intervindo sobre os agravos que podem gerar dependências
e desconfortos, seja para evitá-los, seja minorando consequências dos mesmos ou das
intervenções realizadas para diagnosticá-los ou tratá-los (MINAYO, 2000, p. 14).
Considerando a importância desses trabalhadores no setor saúde e entendendo que esses
devem estar preparados para o desempenho profissional, o referencial teórico estudado aponta para
a necessidade de promover ações que visem minimizar os impactos dessa jornada de trabalho na
saúde do trabalhador.
[...] estratégias individuais e coletivas a serem instituídas a nível organizacional, como
investir na melhoria das condições de trabalho, incluindo a boa iluminação, a orientação
aos trabalhadores sobre as repercussões da realização do trabalho noturno em suas vidas e
a implantação e incentivo aos trabalhadores da prática da ginástica laboral no ambiente de
trabalho no intuito de colaborar com a saúde desses profissionais. Também se sugere que os
trabalhadores consumam alimentos mais leves nos plantões noturnos, evitem o açúcar em
excesso e o consumo de alimentos fritos, restrinja o consumo de café e realizem atividades
físicas de maneira sistemática, no intuito de minimizar as repercussões do trabalho em sua
saúde (SILVA et al., 2011, p. 275).
Reconhecemos que o processo de trabalho de enfermagem em turnos nos hospitais se faz
necessário. Porém, cabe refletir sobre a criação de estratégias que reduzam os prejuízos inerentes
a essa forma de exercício do trabalho, visando à promoção da saúde e à proteção integral da saúde
desses trabalhadores.
Como se constata, essa questão nos conduz a refletir de modo processual o trabalho na
atualidade e considerar a integralidade do processo saúde-doença dos trabalhadores do campo da
enfermagem. Pois ambos os aspectos – historicidade do trabalho e integralidade do processo saúde-
doença – implicam na saúde individual, ao ameaçar os vínculos familiares, por exemplo, e que,
por conseguinte, influem na assistência prestada aos usuários/pacientes em face da fragilidade das
relações sociais de trabalho.
Em linhas gerais, o trabalho se converte em tema de investigação como possibilidade
concreta de elaborar análises críticas sobre os saberes e práticas no contexto das relações líquidas no
e do trabalho. Investigações essas que podem conduzir, ainda, a possibilidades de intervenção que
minimizem danos e promova condições saudáveis de vida.

6 CONCLUSÃO

A análise dos referenciais adotados aqui tem nos permitido reconhecer a importância do
trabalho como atividade essencial ao ser humano. Que produz subjetividades, reconhecimentos e
identidades e, dialeticamente, produz adoecimento, privação, alienação.
No campo da enfermagem, o trabalho, quando situado nas relações sociais de produção
no modo de produção capitalista, também expõe sua contradição. Pois, sob a égide da centralidade
identitária aliada à satisfação das necessidades cotidianas, têm exposto o coletivo de trabalhadores,
também da saúde no espaço do hospital, a processos de relações sociais de adoecimento biopsicossocial.

126
A reflexão iniciada permite aprofundar os estudos acerca da realidade do trabalho da equipe
de enfermagem, permitindo reconhecer sua densa rotina de trabalho. No que tange aos turnos de
trabalho, ainda que necessário e imprescindível, conduzir investigações que compreendam as
implicações sobre a saúde do trabalhador e, por conseguintemente, à sua qualidade de vida. Esta
entendida como forma de construir subsídios, à luz de promoção de saúde, para o enfrentamento de
processos de trabalho que adoecem estes profissionais.

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128
A RELAÇÃO ENTRE PROCESSO DE TRABALHO E PROBLEMAS
DE SAÚDE NA MARISCAGEM
Sheyla Zacarias da Cruz Santana*
Tamires Barros de Almeida**
Thainara Guimarães Ribeiro***
Carlos Frederico Bernardo Loureiro****
Nailsa Maria Souza Araújo*****
RESUMO: O presente artigo, fruto da pesquisa intitulada “Diagnóstico de Vulnerabilidade de Grupos de Marisqueiras”, relata o
processo, as condições de trabalho e os principais problemas de saúde que acometem as marisqueiras de 12 comunidades inseridas
no Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC), realizado no litoral de Sergipe. O estudo contém caráter
exploratório, metodologicamente baseado numa investigação bibliográfica, documental e empírica. Evidenciou-se que o trabalho de
mariscagem é precarizado e, aliado a outros fatores, tem ocasionado problemas de saúde às marisqueiras. Isto demonstra uma relação
entre o processo de trabalho e o processo de adoecimento dessas trabalhadoras.
Palavras-chave: Mariscagem, Condições de trabalho, Problemas de saúde
ABSTRACT: This article Search fruit titled “Diagnostic Seafood Groups Vulnerability” reports the process, working conditions and
the major health problems that affect the seafood restaurants of 12 communities within the Environmental Education Program with
Coastal Communities (ECCP). The study contains exploratory, methodologically based on literature and empirical research. It was
evident that the shellfish work is precarious and its process, combined with other factors, has caused health problems for seafood
restaurants. This shows a relationship between the work process and the disease process of these workers.
Keywords: Shellfish, Work conditions, Health problems

INTRODUÇÃO

O texto em tela é fruto dos resultados da pesquisa intitulada “Diagnóstico de Vulnerabilidade


de Grupos de Marisqueiras”, desenvolvida em 12 comunidades da área de abrangência do Programa
de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC1), quais sejam: Bairro Industrial,
Mosqueiro, Areia Branca (Aracaju); Rita Cacete (São Cristóvão); Carapitanga (Brejo Grande); Praia
do Saco, Muculanduba, Tibúrcio (Estância); Pedra Furada, Rua da Palha (Santa Luzia do Itanhi);
Pontal, Terra Caída (Indiaroba).
O referido diagnóstico foi realizado entre abril de 2013 e maio de 2014, no interior do Projeto
de Pesquisa e Desenvolvimento Social (PPDS) do PEAC, atualmente executado pelo Departamento
de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe. O intuito maior da pesquisa é compreender
se ocorrem, e de que forma, as interferências das atividades marítimas de produção e exploração de
petróleo e gás da PETROBRAS sobre os grupos de marisqueiras do litoral sergipano, verificando
se estas efetivamente alteram a possibilidade de reprodução social destes grupos. Para este fim,
foi feita a análise acerca das condições da reprodução social e do modo de vida das marisqueiras,
buscando entender as relações de gênero, participação política, trabalho e particularmente as
condições ambientais.

*
Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Especialização em Direitos Humanos,
Compromisso e Seguridade Social - Faculdade Pio Décimo - Campos III, PIO X. E-mail: sheuzac@hotmail.com.
**
Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Especialização em Direitos Humanos,
Compromisso e Seguridade Social - Faculdade Pio Décimo - Campos III, PIO X. E-mail: tamiresbalmeida@hotmail.com.
***
Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: thaguir@yahoo.com.br.
****
Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador da UFS do Programa de
Educação Ambiental em Comunidades Costeiras. E-mail: fredericoloureiro89@gmail.com.

Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente do curso de Serviço Social da UFS.
*****

E-mail: nayaraujo5@yahoo.com.br.
1
O PEAC “[...] atende às condicionantes específicas de educação ambiental e compensação pela interferência na
atividade pesqueira” (PEAC, 2009. p. 01), exigido junto à Petrobras, sob responsabilidade do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) e executado, em parte pelo Departamento de Serviço Social da UFS.

129
Para isso, o diagnóstico utilizou metodologia participativa2 estruturada em três
etapas de execução, a saber: Sistematização de dados e informações sobre as comunidades de
Marisqueiras3; Inserção/Mobilização Comunitária4– dentro desta etapa foi desenvolvido o estudo de
georreferenciamento, com o objetivo de contribuir com a análise5– e o Diagnóstico Participativo
com as Marisqueiras6. O montante total de contatadas na pesquisa foi de 3017 marisqueiras. O
desencadeamento deste processo gerou um relatório, partindo-se de uma análise macro até chegar
a uma análise mais específica por comunidade. Além disso, ainda está em execução uma etapa de
retorno dos resultados sistematizados para as marisqueiras, a fim de que estas se reconheçam em todo
o processo e validem os resultados do estudo.
O presente texto faz um recorte do estudo, particularizando a discussão sobre o processo,
as condições de trabalho e os principais problemas de saúde que acometem as marisqueiras das
12 comunidades, utilizando-se dos dados levantados na supracitada pesquisa, e dialogando com
documentos bibliográficos e estudos que retratam as temáticas ora discutidas. Os dados foram
analisados com base nos pressupostos sócio-históricos da perspectiva marxista. Em virtude das
similaridades dos resultados entre as comunidades, as análises serão dispostas por grupo de trabalho.
Além da introdução e considerações finais, o texto inicia seu desenvolvimento contextualizando a
categoria trabalho com base no pensamento marxista e analisa o processo de trabalho na mariscagem
realizado pelas marisqueiras das 12 comunidades estudadas. Em seguida são apresentados alguns
problemas de saúde apontados pelas trabalhadoras e suas possíveis causas.

1 O PROCESSO DE TRABALHO NA MARISCAGEM

A compreensão acerca das condições de trabalho das marisqueiras está diretamente


relacionada ao que se entende por trabalho. Para Marx (2008, p.211) o trabalho é o processo de
produção material pelo qual o homem interage com a natureza e a partir dessa interação retira dela os
elementos essenciais para sua sobrevivência. Nesse processo, o homem “[...] põe em movimento as
forças naturais do seu corpo - braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da
natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana.” Neste ínterim, o homem modifica e transforma
a natureza e a si mesmo, criando novas potencialidades e necessidades. O trabalho é, portanto, o
elemento fundante do ser social.

2
Foram realizadas visitas às comunidades, utilizando-se dos seguintes instrumentais: contato porta a porta, reuniões,
observação participante com lideranças já reconhecidas ou não, munidas de um formulário construído para este fim.
3
Realização de levantamento de dados secundários sobre os municípios e comunidades da área da pesquisa, referentes
à localização geográfica; hidrografia; economia; indicadores sociais; organização política; aspectos culturais e ambientais
das localidades e respectivos distritos (extraídos de sites oficiais, como: Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustível (ANP), InfoRoyalties, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Departamento de Informática
do Sistema Único de Saúde (DATASUS), Sistema Firjan, etc. Além disso, foram coletadas informações em relatórios
operacionais do PEAC, nas estatísticas pesqueiras 2010 e 2011 do Projeto de Monitoramento Participativo do Desembarque
Pesqueiro (PMPDP) e em pesquisas realizadas por investigadores da UFS ou outros estudiosos, dentre outros). Também
foram levantadas informações sobre as atividades de produção off shore da PETROBRAS em Sergipe (contextualização
das atividades da empresa, permeando, sobretudo, os campos marítimos da PETROBRAS e consideradas sobre as
informações levantadas durante visita técnica a alguns campos terrestres da companhia) e aspectos gerais do estado de
Sergipe, através de formulário construído para este fim.
4
Nesta fase também foram coletadas informações sobre os aspectos gerais e socioambientais das comunidades,
por meio de técnicas de pesquisa social qualitativa e quantitativa, como entrevistas semiestruturadas e aberta, além de
observação participante, subsidiadas por um instrumental elaborado para este fim.
5
O estudo identificou as áreas de trabalho das marisqueiras dessas localidades; as áreas de restrição da mariscagem
(turismo, carcinicultura) e as instalações off shore da PETROBRAS, sendo observadas as possíveis relações existentes
entre esses ambientes.
6
A pesquisa se utilizou dos resultados dos grupos de discussão promovidos no I Encontro Inter-Regional de
Marisqueiras, considerando-se que houve uma expressiva participação das marisqueiras da área da pesquisa nesse espaço.
7
Inicialmente, foram contatadas mais de 100 mulheres entre as comunidades pesquisadas, posteriormente o
levantamento de dados foi ampliado, abrangendo outras 201 mulheres.

130
Contudo, no modo de produção capitalista esta relação entre o homem e a natureza passa a
ser alienada (estranhada) em nome de uma ordem societária que visa o lucro, a mais-valia8. Já que
para o capital se expandir é necessário retirar do homem suas condições de se manter, restando-lhes
apenas a força de trabalho para ser vendida e explorada pelo capital. Em outras palavras, este regime
se apropriou privadamente dos meios de produção – e aqui também destacamos a propriedade privada
dos recursos ambientais – desapropriando a classe trabalhadora dos mesmos (MARX, 2008).
Segundo Almeida e Cruz (2011) as transformações provocadas pelo capitalismo não se
restringem à esfera fabril, mas se metamorfoseiam para adentrar em outros espaços de produção de
mercadorias e no conjunto de relações sociais, reproduzindo a dominação e a expropriação em todos
os espaços da vida social. Ressaltam que não obstante o sistema capitalista demandar um elevado
nível de desenvolvimento tecnológico é capaz de conviver concomitantemente com o arcaico, com
a permanência de tipos de trabalho que parecem separados das determinações do sistema, como é o
caso da pesca artesanal e do trabalho de mariscagem. Essa é uma dinâmica do próprio capital para se
utilizar de desenvolvimentos diferenciados com o objetivo de intensificar as formas de exploração do
trabalho e se expandir e angariar maiores lucros com menores investimentos, o que Cardoso de Mello
(1998) e Mandel (1985) chamam de desenvolvimento “desigual e combinado”.9
Ao passo que o capitalismo desenvolveu a pesca industrial, visto como o centro da produção
pesqueira, a pesca artesanal - tomada como subordinada à produção industrial -, recebeu menor ou
nenhum investimento, ficando historicamente à mercê de sua própria sorte ou da conquista de direitos
mais amplos na esfera estatal. A interferência do capital no tocante à pesca artesanal, notadamente
na mariscagem, se manifesta seja quando a força de trabalho das marisqueiras é necessária em uma
determinada etapa do processo de trabalho da pesca industrial, seja na comercialização do produto
(ALMEIDA; CRUZ, 2011, p. 55).
O capital se apropria de parte da atividade pesqueira permitindo que parte desta, enquanto
trabalho extrativista, se mantenha com uma estrutura rudimentar. O que interessa é a retirada
de lucros, obtidos pela transformação dos produtos em mercadorias. Não lhe importa o
processo produtivo, pois é mais cômodo e rentável para o capital manter os meios produtivos
da pesca artesanal e entrar na exploração do produto capturado, apropriando-se da mais-valia
no momento de sua realização sem ter que se preocupar em organizar a produção deste bem.
Em outras palavras, a atividade da mariscagem convive sem estar dentro do desenvolvimento
tecnológico, no entanto, os trabalhadores desta atividade são explorados igualmente pelo
movimento mais geral do sistema como um todo, pela unidade que caracteriza o trabalho
social geral, o trabalho coletivo.
Percebe-se na pesca artesanal que o modo de produção capitalista encontrou no trabalho
feminino mais uma maneira de dominar e mostrar seu poder de exploração. Dito isto, discorreremos
sobre o processo e as condições de trabalho na mariscagem realizado pelas marisqueiras das 12
comunidades pesquisadas.
O estudo permitiu diferenciar dois ramos do trabalho de mariscagem desenvolvido pelas
mulheres marisqueiras da área de abrangência da pesquisa: o primeiro, que se caracteriza pela captura
e beneficiamento de mariscos e crustáceos em rios e manguezais está presente em 11 comunidades
pesquisadas10; e o segundo, voltado para o trabalho de mariscagem no beneficiamento do camarão
8
A mais-valia segundo Marx (2008, p. 231), diz respeito ao montante extraído do trabalho excedente do trabalhador,
ou seja, “[...] a mais-valia se origina de um excedente quantitativo de trabalho, da duração prolongada do mesmo processo
de trabalho”, pois a força de trabalho tem a peculiaridade de ser fonte de valor, e de criar mais-valor que seu próprio valor.
9
Segundo Cardoso de Mello (1998 apud ALMEIDA; CRUZ, 2011, p. 53) “[...] é próprio do sistema capitalista
desenvolver alguns países e determinado setores em detrimento de outros, bem como criar uma relação de dependência
entre eles. De um lado, desenvolve os países, ditos ‘centros’ da produção, com a inserção de tecnologias de ‘ponta’ – os
maiores responsáveis pelo progresso da economia; de outro lado, os ‘periféricos’, grandes fornecedores de matérias-
primas para os países centrais – recebedores dos menores investimentos. Essa desigualdade é visualizada principalmente
por meio do desnível de produtividade e pelo fator renda. O centro, com seu progresso técnico, consegue manter sua
produtividade e se apropriar de parte do desenvolvimento da periferia, enquanto que esta abastece os países centrais com
seus produtos primários, recebendo os menores investimentos do capital”.
10
Mosqueiro e Areia Branca (Município de Aracaju), Terra Caída e Pontal (Município de Indiaroba), Muculanduba,
Tibúrcio e Praia do Saco (Município de Estância), Rita Cacete (São Cristóvão), Carapitanga (Brejo Grande), Rua da Palha
e Pedra Furada (Município de Santa Luzia do Itanhi).

131
sete-barbas, produto advindo da pesca industrial, que é realizado pelas marisqueiras de Bairro
Industrial (município de Aracaju). Entretanto, ambos são trabalhos artesanais, estabelecidos em sua
maioria por meio da tradição, que incluem saberes e práticas que perpassam gerações.
O primeiro tipo de trabalho de mariscagem se apresenta como uma atividade extrativista
que, segundo Hironaka (2000), “[...] consistente na simples coleta, recolhida, extração ou captura de
produtos do reino animal e vegetal, espontaneamente gerados [...].” O trabalhador extrativista retira
os elementos necessários para sua subsistência na natureza e transforma-o em trabalho social, sob
qual se interpõem instrumentos rudimentares (PEDRÃO, 2001, p. 38), construídos manualmente
pelas próprias marisqueiras.
Almeida e Cruz (2011) salientam que o trabalho na mariscagem desenvolvido pelo primeiro
grupo, na sua execução (strictu senso), apresenta-se nos moldes em que Marx (2008) delineou
como sendo uma relação mais direta de intercâmbio entre o homem e a natureza, desenvolvendo as
potencialidades humanas para transformá-la e suprir sua subsistência e ao mesmo tempo, transformar
a si mesmo. Caracteriza-se como um trabalho autônomo, em que as mulheres marisqueiras são
detentoras dos meios de produção e independentes para escolher como e quando realizá-la.
Ao contrário das demais, as mulheres do Bairro Industrial não extraem os produtos nos
mangues, trabalham filetando o camarão dos capitalistas, instaurando mais valor à mercadoria de
outrem. As marisqueiras desta localidade estão entrelaçadas no “véu” do trabalho informal, entendido
por Suísso (2011, p. 2) como “[...] o trabalho sem carteira assinada, à margem das leis trabalhistas.”
Ainda nesse sentido, Soares (2011, p. 2) ressalta que “[...] todas as atividades informais de trabalho
estão subordinadas, integradas e são funcionais à reprodução da sociedade do capital.”
Apesar das diferenças no processo e relações de trabalho, a atividade de mariscagem realizada
por ambos os grupos de mulheres marisqueiras (trabalho autônomo e trabalho informal) demanda
uma jornada intensa de trabalho, comumente realizada de segunda a sexta com uma carga horária
média de 13 a 16 horas11 pelas mulheres que extraem o produto nos rios e manguezais e de segunda a
sábado com carga horária acima de oito horas pelas marisqueiras que beneficiam o camarão.
Além desta jornada de trabalho, as mulheres marisqueiras, no geral, desenvolvem outras
atividades secundárias à mariscagem em virtude da escassez dos moluscos e crustáceo em suas
comunidades. Estas atividades estão voltadas principalmente para a coleta de frutas típicas das regiões
(com destaque para a mangaba) e trabalhos de diarista. Além dessas atividades, há o desenvolvimento
da agricultura familiar (plantação de feijão, milho, horta, dentre outros), trabalhos temporários ou
autônomos (restaurantes, comércio, babá, cozinheira, vendedoras de doces), ou seja, atividades que
também estão às margens dos direitos trabalhistas.
Soma-se a estas, o trabalho desenvolvido pelas marisqueiras no âmbito doméstico, no trato
do lar, dos companheiros e dos filhos, visto como uma atividade tipicamente feminina, fruto de uma
sociedade ainda com resquícios patriarcais. Uma característica essencial do trabalho doméstico, como
versa Toledo (2001) é a de ser ele um mecanismo de alienação da mulher.
[As tarefas domésticas] é o trabalho alienado em si mesmo, já que nem mercadorias produz.
Seu resultado não é concretizado em coisas palpáveis que possam se contrapor à mulher
enquanto trabalhadora doméstica. Ela se anula em objetos não-visíveis. É trabalho que
se esvai em trabalho. Se a alienação vem com a separação do homem do produto do seu
trabalho, um trabalho que não gera produto (como é o caso do trabalho doméstico) só gera
trabalho, é um trabalho contínuo, sem fim (TOLEDO, 2001, p. 47).
Ávila (2002) destaca que o trabalho doméstico se cruza com o produtivo, dificultando a
quantificação do tempo gasto para o desenvolvimento de cada atividade. Assertiva confirmada pela
pesquisa que identificou a imprecisão da jornada de trabalho das marisqueiras das 12 comunidades.
Diante dessa realidade, observa-se que estas trabalhadoras “vivem no e para o trabalho”
não por escolha, mas por necessidade objetiva de sobrevivência, haja vista que a renda angariada
mensalmente com o trabalho de mariscagem gira em torno de R$ 320,00 a R$ 400,00 (grupo de maior
renda) e R$ 124,00 a R$ 200,00 (grupo de menor renda). Estes valores, por sua vez, dizem respeito

11
Correspondentes à captura e beneficiamento.

132
ao período em que a captura está propícia, constatando que a renda arrecadada por essas mulheres é
extremamente baixa, não condizendo com o esforço de trabalho nem ao valor dos mariscos no mercado.
Corroborando com Toledo (2001, p. 58):
Hoje, [...] a mulher é o retrato daquilo em que o capital transformou a classe trabalhadora
[...]: um[a] trabalhador[a] precário[a], disponível, com salários miseráveis, sem direitos
trabalhistas e obrigado[a] a cumprir duas e até três jornadas para poder se manter.
Pari passu a essas questões, o estudo identificou que os ambientes de trabalho das
marisqueiras vêm sendo palco de inúmeras alterações ocasionadas tanto por atividades produtivas
(indústria do petróleo, carcinicultura, turismo, especulação imobiliária, dentre outros) quanto pelos
produtos derivados destas atividades, o que tem contribuído com a precarização da mariscagem e o
processo de adoecimento dessas trabalhadoras. Segundo as marisqueiras entrevistadas, tais mutações
têm ocasionado dentre outras variáveis: a redução de suas áreas de trabalho, consequentemente
o sufocamento da mariscagem – acarretando a progressiva retirada das mulheres da atividade de
captura em algumas comunidades – ou mesmo a inserção em áreas circunvizinhas – sobrecarregando
o ambiente marinho destas –; a diminuição do quantitativo de mariscos; poluição e a instauração de
conflitos de terra (espaço).
Dentre todas essas vulnerabilidades, parcela significativa das entrevistadas vê a atividade
de carcinicultura como o principal mecanismo de alteração dos ambientes de trabalho das
marisqueiras, uma vez que é comum o desmatamento ou aterramento de mangues para dar lugar
aos viveiros de camarão, contribuindo, sobretudo, para a redução do espaço de trabalho dessas
mulheres. Além disso, destacam o lançamento de produtos químicos nos mangues e rios provenientes
da atividade, acarretando a mortandade dos mariscos. Conforme o estudo de georreferenciamento
realizado por dentro da pesquisa, a maior concentração dos viveiros de camarão está localizada nas
comunidades mais interioranas.12
Corroborando com essa assertiva, Carvalho e Fontes (2007, p. 105), destacam que a
carcinicultura provoca sérias consequências para a vida marinha, tais como a “[...] supressão do
ecossistema manguezal; mudanças no padrão de circulação hídrica do estuário e eutrofização do
estuário, com as descargas dos efluentes dos viveiros sem tratamento prévio.” Esses impactos vão
rebater diretamente na vida daquelas(es) que necessitam do trabalho de mariscagem para sobreviver,
haja vista que “[...] a atividade de carcinicultura fomenta a degradação ambiental e social, através da
extinção de áreas de mariscagem – o que vai contribuir com a expulsão da população ribeirinha de
suas terras tradicionais, afetando inclusive a segurança alimentar da localidade” (CUNHA, 2006, p.
28). Essas alterações são evidenciadas por Costa e Santos (2010, p. 9) ao afirmar que:
[...] a carcinicultura no litoral sergipano contribuiu para uma redução e extinção de habitats de
numerosas espécies, o desmatamento de extensas áreas de manguezal causando interferência
direta na produção e distribuição de nutrientes para o estuário e plataforma continental;
extinção de setores de reprodução e alimento de moluscos, aves e peixes e diminuição da
biodiversidade ao longo das bacias hidrográficas. Isso gera a expulsão de marisqueiras,
pescadores e catadores de caranguejo de suas áreas de trabalho, ou tornam-se obstáculos a seu
acesso, aos espaços produtivos do território, ao estuário e ao manguezal com a privatização
de terras da União, tradicionalmente utilizadas para o extrativismo animal e vegetal.
Além da criação de camarões em viveiros, esses ambientes estão sendo utilizados para: a
construção de grandes e médios empreendimentos, seja de resorts, pousadas; o desenvolvimento de
atividades ligadas à produção e exploração de petróleo e gás; ocupações fundiárias, dentre outras.
Ações indiretas, mesmo que distantes do litoral, também podem impactar na distribuição e extensão
dos manguezais (BEZERRA et al, 2006).
Com o ambiente de trabalho cada vez mais restrito, seja pela poluição dos recursos
hídricos, seja pelo avanço da carcinicultura e outros impactos difusos, esses grupos são obrigados

12
O georreferenciamento ainda evidenciou que as áreas de carcinicultura encontram-se distribuídas em três blocos:
a primeira e com o maior número de viveiros, localiza-se na região da comunidade de Carapitanga (Brejo Grande); a
segunda entre as comunidades de Muculanduba (Estância), Rua da Palha e Pedra Furada (Santa Luzia do Itanhi) e a
terceira nas proximidades de Pontal (Indiaroba) onde se encontra a Lusomar, atualmente desativada.

133
a se deslocarem para outros locais em busca da extração de mariscos. Nesse caso, nota-se que as
consequências da destrutividade dos recursos naturais adentram tanto na atividade de mariscagem
desenvolvida pelas marisqueiras que capturam o produto, quanto no trabalho de beneficiamento
realizado em Bairro Industrial, tendo em vista que nesta comunidade a captura se extinguiu em
virtude das diversas problemáticas ambientais detectadas pelo estudo. Ademais, o atual trabalho de
filetamento do camarão também tem sido alvo dos impactos ambientais, ocasionando a diminuição
do quantitativo de espécies capturadas, consequentemente tem acarretado na redução do quantitativo
de camarão para o beneficiamento.
Percebe-se, portanto, que a ação humana tem ameaçado a sustentabilidade dos recursos
naturais, assim como a sobrevivência daqueles que tem na natureza a principal fonte de subsistência.
Com a degradação ambiental das áreas costeiras, fica cada vez mais restrito o desenvolvimento das
espécies marinhas e consequentemente, isso afeta a vida dessas trabalhadoras. Sem o produto para
vender, estes grupos estão sujeitos a uma série de vulnerabilidades, sendo urgente a efetivação de
políticas públicas que venham a garantir as condições necessárias de trabalho.

2 A RELAÇÃO ENTRE PROCESSO DE TRABALHO E PROBLEMAS


DE SAÚDE NA MARISCAGEM

A categoria trabalho é carregada de contradições e antagonismos, uma vez que propicia a


satisfação das necessidades básicas e a qualidade de vida, mas pode também conceber a produção de
doenças e mortes, devido às condições destrutivas da organização do trabalho na lógica do capital
(ANTUNES, 1999). Assim como o trabalho fabril e/ou de carteira assinada, o processo de trabalho na
mariscagem ocasiona problemas específicos de adoecimento da trabalhadora que estão interligados
às condições e relações de trabalho, a própria dinâmica mais geral do trabalho em sociedade e com as
desigualdades de gênero que imperam também na pesca artesanal.
Oliveira (2001) enfatiza que o adoecimento do trabalhador está estritamente relacionado ao
processo histórico-social das relações sociais de produção, em que a exploração da força de trabalho
tem sido massivamente orquestrada pelo sistema capitalista. Entende, portanto, que a determinação
do caráter histórico e social do processo saúde-doença deve ser analisado em sua totalidade, fugindo
do caráter reducionista que se restringe à avaliação de riscos presentes no ambiente de trabalho e que
ocultam a complexa relação entre processo de trabalho e saúde. Sinaliza ainda que esta análise mais
ampla da saúde do trabalhador tem suas origens na medicina social, que se contrapõe à medicina do
trabalho, tendo em vista seu viés tradicional e tecnicista, próprio da esfera capitalista.
O processo saúde-doença é uma totalidade, não podendo ser reduzido ao estritamente
biológico e individual, pois a essência do processo é o reconhecimento de seu caráter social e
sua determinação histórica; mesmo o processo biológico presente no processo saúde-doença,
também tem um caráter social. Essa concepção identifica a historicidade dos processos
biológicos e psíquicos humanos, rompendo com o pensamento médico dominante do caráter
a-histórico da biologia humana. A medicina dominante, ao enfatizar o caráter biologicista no
processo saúde-doença, oculta o seu verdadeiro caráter de ser um processo biológico e social
(OLIVEIRA 2001, p. 71).
Laurell e Noriega (1989 apud OLIVEIRA, 2001, p. 71), defendem que a apreensão do
caráter histórico do processo saúde-doença deve ser observado de forma coletiva, haja vista que
“[...] o caráter social da doença não se expressa individualmente, mas no modo de adoecer e morrer
dos grupos humanos, numa dada sociedade, de acordo com as classes sociais que a compõe.” Desse
modo, ressaltam que o caráter social precisa ser analisado tomando por base a inserção dos grupos
humanos no processo de produção, sendo fundamental a análise do processo de trabalho para o estudo
do processo saúde-doença.

134
Segundo Goiabeira (2012), na atividade da pesca, particularmente no trabalho de mariscagem,
as trabalhadoras estão sujeitas a uma série de potenciais riscos ocupacionais13, decorrentes da
precariedade dos instrumentos utilizados, elevado grau de insalubridade dos ambientes de trabalho,
além da grande instabilidade na renda. Os riscos ocupacionais são identificados frequentemente no
ambiente de trabalho, originados em atividades insalubres e perigosas que podem provocar efeitos
adversos à saúde dos profissionais.
Os principais problemas apresentados pelos dois grupos estudados foram: os problemas
articulatórios e neuromusculares, refletidos por dores na coluna (41%), pernas, braços, pés e
mãos (26,5%); dores de cabeça/enxaqueca (25%); problemas oftalmológicos (18,5%); problemas
circulatórios como dormência (10,5%) e câimbra (10,5%). Problemas respiratórios (9,5%), dores no
aparelho reprodutivo (9%) e problemas dermatológicos (7%), foram referenciados por um quantitativo
menor de mulheres. Do total de 301 marisqueiras entrevistadas, os resultados evidenciaram que mais
de 50% das marisqueiras fazem relação direta entre o processo de trabalho da mariscagem e seus
problemas de saúde.
Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS) os riscos ocupacionais
podem ser de ordem física (ruído, calor, umidade, radiação solar); ergonômica (postura inadequada,
excesso de jornada de trabalho, esforço físico, repetitividade); biológica (vírus, bactérias, fungos);
química (poeiras, gases, vapores, compostos e substâncias químicas) ou de acidentes (iluminação
inadequada, equipamentos sem proteção, equipamento improvisados, animais aquáticos) (BRASIL,
2010 apud GOIABEIRA, 2012).
A partir dessa classificação, percebe-se que os principais problemas de saúde elencados pelos
grupos dizem respeito principalmente a doenças ocasionadas por riscos ergonômicos e físicos. As
possíveis causas do adoecimento estão diretamente relacionadas à intensa jornada de trabalho realizada
em condições insalubres, postura inadequada, esforço físico e repetitividade dos movimentos, seja no
trabalho de extração e beneficiamento do marisco ou no processo de filetamento do camarão. Alguns
relatos das marisqueiras confirmam as informações:
Tenho dor nas cadeiras e na coluna por causa do peso dos mariscos e da lama do
mangue (Rita Cacete).

Tenho os dedos inchados, dor na coluna, nos braços e nas costas quando fico sentada por
muito tempo quebrando os mariscos [...] (Tibúrcio).
O debate acerca dos problemas de saúde relatados pelas marisqueiras não se restringe aos
riscos ocupacionais. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) saúde deve ser entendida
como “[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de
afecções e enfermidades.” A Lei n. 8.080 de 1990, que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde (SUS)
trata a saúde como um direito fundamental do ser humano, cabendo ao Estado garantir as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício.
Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como
determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico,
o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o
acesso aos bens e serviços essenciais (BRASIL, 1990, Art. 3o).
Verificando os dados sanitários dos municípios onde situam as comunidades pesquisadas,
inferimos que em 11 das localidades (afora Bairro Industrial) não existe rede de esgoto e os dejetos
sólidos são depositados em fossas sépticas ou a céu aberto em quase a totalidade das localidades.
Com relação ao serviço de coleta de lixo, constatou-se também precariedade, uma vez que em pelo
menos três municípios14 o fornecimento do serviço é restrito para uma minoria da população. Em

13
Para Trivellato (1998 apud GOIABEIRA,2012), os riscos ocupacionais são os riscos encontrados no ambiente de
trabalho, frequentemente, originados em atividades insalubres e perigosas, que podem provocar efeitos adversos à saúde
dos profissionais.
14
Faz-se necessário destacar que em determinados momentos as análises foram realizadas por município em virtude da
similaridade dos dados.

135
04 dos municípios investigados as marisqueiras relatam a instauração de indústria e o despejo de
resíduos provenientes da atividade em rios e mangues.
Os dados revelam que as precárias condições de saneamento refletem diretamente nas
condições ambientais e consequentemente nas condições de trabalho, de vida e saúde de uma localidade.
Na verdade o que se observa é que as marisqueiras de modo geral convivem com a completa falta
de saúde em seu sentido mais amplo, seja pela apreensão de doenças ocasionadas pela atividade de
mariscagem e as demais atividades realizadas pelas marisqueiras, seja pela carência dos serviços
sanitários, poluição dos recursos ambientais por diversas atividades poluidoras e potencialmente
poluidoras (indústria do petróleo, carcinicultura, turismo, especulação imobiliária – conflitos de
terras), dentre outros.
Para Herculano (1998, p. 09), a “[...] qualidade de vida não deve, portanto, ser entendida
como um mero conjunto de bens, confortos e serviços, mas, através destes, das oportunidades efetivas
das quais as pessoas dispõem para ser.” O supracitado autor ainda advoga que a qualidade de vida
deve perpassar não somente o conjunto de condições materiais de subsistência, educação, saúde,
tecnologias, política, mas deve envolver também os aspectos ambientais. É necessário que se tenha
à disposição dos indivíduos um ambiente natural e saudável ao seu entorno para que estes possam
desenvolver suas potencialidades e se realizar socialmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se pode depreender desse cenário é que a rotina de vida das marisqueiras se faz em
conjunto com o ecossistema estuarino, dependendo, portanto, dos ambientais marinhos e costeiros
e de sua respectiva preservação para manter a atividade de trabalho e consequentemente satisfazer
suas necessidades humanas. A atividade de mariscagem é caracterizada pela extensiva jornada
realizada em precárias condições de trabalho, seja pelas más condições de higiene nos locais de
beneficiamento, seja pelas problemáticas ambientais que interferem no ambiente costeiro, aliada a
baixíssima renda que permite os mínimos para a sobrevivência familiar. Em relação às doenças pelas
quais são acometidas, é possível afirmar que o processo de trabalho na mariscagem é um dos fatores
determinantes para o processo de adoecimento.
Sob uma rotina diária de grande dispêndio de força física, as marisqueiras das 12 comunidades
enfrentam as diversas intempéries no trabalho de mariscagem. As marisqueiras que realizam a extração
dos mariscos nos rios e mangues enfrentam o calor, chuva, umidade, contato com produtos químicos,
já que realizam o seu trabalho em locais abertos, e estes, segundo a maioria das entrevistadas, têm sido
determinantes para o adoecimento dessas trabalhadoras. O trabalho de beneficiamento, assim como
a extração dos mariscos, demanda várias horas de trabalho sob movimentos repetitivos e altamente
desgastantes. As marisqueiras de Bairro Industrial, apesar de não extraírem o marisco no habitat
natural, estão submetidas a um trabalho precário em ambiente insalubre, exigindo prolongadas horas
de trabalho com movimentos repetitivos, além de uma má postura ocupacional.
Conforme a legislação que versa sobre saúde, essa política é um direito fundamental que
deve ser garantido pelo Estado e não pode se restringir a ausência de afecções e enfermidades.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos defende, em seu artigo 25º, que enquanto direito
humano as pessoas devem ter um nível de vida suficiente que assegure a sua saúde e bem-estar, bem
como de sua família, “principalmente os relacionados à alimentação, ao vestuário, ao alojamento,
à assistência médica e aos serviços sociais necessários”. Contudo, observa-se que tais direitos se
distanciam das marisqueiras, tanto em virtude das ínfimas condições de vida refletidas através do

136
processo de trabalho, quanto ao insuficiente acesso das marisqueiras aos serviços sociais necessários
a exemplo dos serviços de saneamento básico e educação.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm > Acesso em: 16 mar. 2017.
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137
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TOLEDO, C. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. São Paulo: Xamã. 2001.

138
INTENSIFICAÇÃO DO PROCESSO DE TERCEIRIZAÇÃO NAS
AGROINDÚSTRIAS CANAVIEIRAS*
Maria Joseli Barreto**
Antonio Thomaz Junior***
RESUMO: O texto tem como objetivo central apresentar reflexões sobre os efeitos da reestruturação produtiva viabilizado pelas
agroindústrias canavieiras e os desdobramentos para o trabalho, no que tange a intensificação da terceirização em diferentes setores
e etapas do processo produtivo agroindustrial da cana-de-açúcar. Nessa perspectiva, terceirizar comparece como mais uma estratégia
usada pelo capital canavieiro para gerar lucro e desmobilizar os trabalhadores envolvidos, ou seja, uma mescla de novas e velhas
formas de degradação do trabalho. Não obstante, ao mesmo tempo em que há trabalhadores laborando em máquinas de alta tecnologia
(colhedoras), encontra-se trabalhadores atuando em situações de trabalho degradante (plantio e corte manuais), ambos com jornadas de
trabalho intensificadas em atendimento à remuneração por produção e o cumprimento de metas.
Palavras chave: Terceirização, Trabalho, Agroindústria canavieira
ABSTRACT: This paper aims to present the first reflections on production restructuring of sugarcane agribusiness and ramifications
for work, with regard to intensification of outsourcing in different sectors and stages of the sugarcane production process. In this
perspective, outsourcing appears as another strategy used by sugarcane capital to generate profit and demobilize workers involved,
i.e., a mixture of old and new forms of labor degradation. Simultaneously, there are workers operating in high-technology machinery
(harvesters) and workers operating in degrading working conditions (planting and cultivation with manual labor), both with work
shifts intensified by production and/or targets.
Keywords: Outsourcing, Labor, Sugarcane agribusiness.

INTRODUÇÃO

Diante de um cenário marcado por retrocesso e extermínio de direitos trabalhistas, a partir


de projeto voltado terceirização de atividades fim (PL n. 4330), buscaremos nesse texto, refletir
sobre a terceirização do trabalho no âmbito das agroindústrias canavieiras nas regiões de Presidente
Prudente e Ribeirão Preto.
De maneira geral, o setor canavieiro passou por vários processos de mudança ao longo de
seu desenvolvimento no Brasil, seja do ponto de vista técnico, gerencial e organização e controle
do trabalho. No entanto, esse processo não ocorre de maneira isolada, mas situado no interior do
processo geral de mudanças que atingiu largamente o mundo do trabalho no final dos anos 1980,
marcada pelo fordismo/taylorismo e mais tarde pela acumulação flexível.
A reestruturação produtiva, de maneira geral, foi marcada por um longo processo de mutações
sócio-organizacionais e tecnológicas que transformaram a morfologia da produção de mercadorias
em vários setores da indústria e dos serviços. No caso do fordismo/taylorismo, suas ideias e valores
estavam embasados na necessidade de construir um novo tipo de trabalhador e de sociedade, a do
consumo. Onde os novos métodos de trabalho são inseparáveis do modo de pensar, de viver e sentir
a vida (ALVES 2007; HARVEY, 2010; BARRETO, Thomaz Junior, 2015).
Embora tenha enfrentado barreiras, sobretudo, no período entre guerras, o fordismo, que
surgiu nos EUA, foi disseminado para outras nações capitalistas, onde “[...] os padrões de vida foram
elevados, as tendências de crise contidas, a democracia de massa preservada e a ameaça de guerras

*
Esse texto faz parte de reflexões que buscaremos aprofundar a partir da pesquisa de doutorado que estamos
desenvolvendo, intitulada “Novas e velhas formas de degradação do trabalho no agrohidronegócio canavieiro nas Regiões
Administrativas de Presidente Prudente e Ribeirão Preto (SP), no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Geografia,
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Presidente Prudente e junto ao Centro de Estudos
de Geografia e Trabalho – CEGET/Coletivo Cetas de Pesquisadores - UNESP/Campus de Presidente Prudente”, sendo
vinculada ao Projeto Temático “Mapeamento e análise do território do agrohidronegócio canavieiro no Pontal do
Paranapanema - São Paulo - Brasil”. As reflexões que compõem o artigo foram em parte discutidas em nossa dissertação,
defendida no ano de 2012 e apresentadas no Seminário Internacional Ruralidades, na cidade de São Carlos/SP. Disponível
em: “Anais II Seminário Internacional Ruralidades, Trabalho e Meio Ambiente. São Carlos: Universidade Federal de São
Carlos (UFSCAR), 2013. v. 1. p. 01-16”.
**
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP/Presidente Prudente. Membro do Centro
de Estudos de Geografia e Trabalho – CEGeT. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP). E-mail: joselibarreto5@yahoo.com.br.
***
Professor dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Geografia da UNESP/Presidente Prudente; Coord. do
Centro de Estudos de Geografia e Trabalho (CEGeT); e do Centro de Estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde (CETAS);
Pesquisador PQ-1/CNPq. E-mail: thomazjrgeo@fct.unesp.br.

139
intercapitalista tornaram-se remotas” (HARVEY, 2010, p. 125). Para o autor, o mundo capitalista foi
inundado pelo excesso de fundos; e, com as poucas áreas produtivas reduzidas para investimento,
esse excesso gerou forte inflação. Mais tarde, ficou evidente que o fordismo e o keynesianismo
eram incapazes de conter as contradições inerentes ao capitalismo. Essa situação levou as grandes
empresas/corporações a entrar num novo período de reestruturação e ativação do controle do
trabalho (HARVEY, 2010).
No cerne dessas mudanças surge o novo complexo de reestruturação produtiva, o toyotismo,
mais um elemento compositivo do longo processo de racionalização da produção capitalista e de
manipulação do trabalho vivo que teve origem com o fordismo/taylorismo, oriundo de um processo
lento, desigual e combinado, que percorreu maior parte do século XX (Alves, 2007; Antunes, 2007).
Em princípio, esse modelo de reestruturação se apoia na flexibilização dos processos,
mercados de trabalho, produtos e padrões de consumo. Além de ser caracterizado pelo surgimento
de novos setores de produção, novos serviços financeiros, novos mercados, inovação tecnológica e
organizacional, esse modelo também aumenta o poder dos empregadores (patrões), que conseguinte
passam a pressionar e ter maior controle sobre os trabalhadores no processo de produção (THOMAZ
JUNIOR, 2009; BARRETO; THOMAZ JUNIOR, 2015).
Para Alves (2007), a flexibilidade do trabalho adquiriu múltiplas determinações no âmbito do
modo de produção capitalista, a partir da Terceira Revolução Tecnológica, sob a ofensiva neoliberal.
Nessa conjuntura, se intensificou e se expandiu, passou a exigir maior versatilidade do trabalhador,
além de tornar-se um atributo da própria organização social do processo de produção.
Para o autor, o toyotismo e a acumulação flexível representa o verdadeiro espírito do novo
complexo de reestruturação produtiva, a ideologia orgânica da produção capitalista sob a mundialização
do capital, que tem por característica a ampliação dos valores e regras de gestão da produção e de
manipulação do trabalho vivo, além de sustentarem uma série de inovações organizacionais, inovações
tecnológicas e inovações sócio-metabólicas (Alves, 2007).
Dessa forma, o novo complexo de reestruturação produtiva, trouxe muitas mudanças na
sociabilidade do trabalho, seja pela captura da subjetividade do trabalhador, do desemprego estrutural,
intensificação da exploração por meio do aumento da jornada de trabalho etc. No entanto, vale lembrar
que esses impactos não incidiram exclusivamente sobre a quantidade de empregos, mas, sobre a
qualidade dos postos de trabalho, constituídos como: trabalho autônomo, temporário, terceirizado,
entre outros (ALVES, 2000).
Diante de tantas inovações proporcionadas por esse novo complexo de reestruturação
produtiva (organizacionais, tecnológicas e sócio-metabólicas), voltamo-nos para ampliação da
terceirização do trabalho, que comparece como mais um artifício de reprodução do capital, amparado
na descentralização e flexibilização da produção e da mão de obra.
Nessa perspectiva, Druck e Thébaud-Mony (2006) asseveram que a terceirização do
trabalho comparece como um novo fenômeno no mundo do trabalho, que tem ocupado lugar central
nas chamadas “novas” formas de gestão e organização do trabalho inspiradas no modelo japonês
e implementadas no bojo da reestruturação produtiva do capital. Sobre sua inserção no Brasil, as
autoras sublinham que, embora o processo esteja presente desde os primórdios da industrialização,
sua gênese está no trabalho rural, através do sistema do “gato”, que amparado no trabalho sazonal
ainda se mantém ativo.
Alves (2000) observa que no Brasil a terceirização tomou impulso a partir da era neoliberal,
como artifício do capital voltado à desestruturação e desorganização da classe trabalhadora. Para
o autor, a nova (e radical) terceirização está cercada por estratégias e dimensões políticas, pois
tende a fragmentar e desestruturar a classe trabalhadora, debilitando a organização da classe e,
consequentemente seu poder de resistência (de barganha) aos desmandos do capital (ALVES, 2000).
Quando à discussão se dá em torno dos efeitos da terceirização para os trabalhadores
envolvidos nesse processo, o autor chama atenção para a degradação das condições de trabalho, as
quais tendem a diminuir benefícios sociais e salários, que são relativamente mais baixos, além da
ausência de equipamentos de proteção individual, insalubridade, trabalhos menos qualificados, perda
da razão sindical e jornadas extensivas (Alves, 2000).

140
Nessa perspectiva, Marcelino e Cavalcante (2012) ainda destacam que a implantação de
modelos organizacionais, ajustados pela produção “flexível” instituiu no mercado de trabalho brasileiro
contratos de natureza distinta daqueles que vigoravam pela Consolidação das Leis Trabalhistas
(CLT), alterando a estrutura do mercado de trabalho e levando empresas e trabalhadores se relacionar
em condições econômicas, políticas e sociais significativamente distintas. Para os autores, essas
mudanças incidiram diretamente no “[...] rebaixamento geral das condições de trabalho e emprego
das categorias terceirizadas e no peso que a ameaça de terceirização tem nas negociações daqueles
trabalhadores não terceirizados” (Marcelino, Cavalcante, 2012, p. 332).
Antunes (2007, p. 71), por sua vez, sublinha “[...] a desregulamentação da força de trabalho,
a inexistência de mecanismos regulamentadores das condições de trabalho e a enorme flexibilização
do mercado possibilitaram uma expansão sem precedentes do trabalho part in time.” Nesse sentido, o
autor assevera que a terceirização do trabalho no Brasil tem se tornado um problema sem precedentes,
pois, além de ampliar de forma expressiva nos últimos anos, ainda tem se considerado tais trabalhadores
como parte do contingente de empregados, fato que oculta à realidade referente às estatísticas de
desemprego no país (ANTUNES, 2007).
Na prática, a terceirização passa a ser vista como principal forma de flexibilização, que
permite ao capital, a dominação e a precarização da força de trabalho. Além de instaurar um novo
controle capitalista da produção, pulverizar o coletivo de trabalho, prejudicar a ação sindical, ainda
surge como estratégia para redução dos custos de produção, frente à exploração da classe trabalhadora.
Dessa maneira, apreende-se que a inserção do processo de terceirização no âmbito industrial
proporciona a descentralização geográfica das indústrias, conduzindo à degradação do mundo do
trabalho e à consequente fragilização da atuação sindical (THOMAZ JUNIOR, 2009; BARRETO;
THOMAZ JUNIOR, 2013).
No âmbito do agronegócio canavieiro não é diferente. Em busca da redução de custos e
ampliação dos lucros no processo produtivo, os detentores dos meios de produção têm investido
cada vez mais na terceirização dos processos de produção e trabalho, sobretudo no setor agrícola.
Nessa perspectiva, terceirizar comparece como mais um artifício para gerar lucro e desmobilizar a
luta e a resistência dos trabalhadores envolvidos no processo produtivo (THOMAZ JUNIOR, 2005;
BARRETO; THOMAZ JUNIOR, 2013).
Diante disso, buscaremos ponderar sobre inserção da terceirização no âmbito da produção
canavieira e as implicações dessas mudanças para trabalhadores e trabalhadoras inseridos nesse
processo. Metodologicamente buscamos realizar revisão bibliográfica sobre a temática em questão e
pesquisa de campo na região de Presidente Prudente e Ribeirão Preto, a fim de apreender a intensidade
de tais processos no referido setor.

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRANSFORMAÇÃO DO TRABALHO NA


AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA

A produção canavieira passou por inúmeros processos de reestruturações ao longo de sua


história, sendo a inserção das máquinas nos sistemas de colheita e plantio da matéria-prima, as
alterações mais expressivas ao longo de seu desenvolvimento no Brasil. De forma sintética pode-se
dizer que a colheita da cana-de-açúcar passou por várias fases, as quais perpassam pela mão de obra
escrava, boia-fria/volante, cortador de cana assalariado, operador de colhedora assalariado (contratado
pelas unidades processadoras) e operador de colhedora assalariado (contratado por terceiros).
Apesar das mudanças no patamar tecnológico serem expressivas, observa-se que tais
alterações, somadas às novas formas de organização e controle no processo de trabalho têm conservado
as adversidades nesse ambiente de trabalho, fato que o torna difícil e hostil. É certo que os caminhões
foram substituídos pelos ônibus, e que o trabalhador tem acumulado conquistas trabalhistas (registro
em carteira, equipamentos de proteção individual (EPI’s), 13º salário, férias e Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), todavia, o trabalhador ainda permanece com seus vencimentos atrelados
à produção, na atual conjuntura, mascarado pelo cumprimento de metas. Ademais, tem-se observado
que as reais condições de trabalho, tende a ser invisibilizada pela inserção das máquinas e outras

141
inovações tecnológicas no processo de produção e trabalho (THOMAZ JUNIOR, 2002; BARRETO;
THOMAZ JUNIOR, 2011).
Isto é, embora tenha havido mudanças, estas não eliminaram as adversidades no trabalho,
muito menos o adoecimento e mortes de trabalhadores. Hoje, as mortes podem até não acontecer com
a mesma frequência e intensidade do passado, os acidentes com os podões nos canaviais, as tragédias
envolvendo os caminhões que transportavam os trabalhadores, mas ainda ocorrem, contudo, de forma
mais silenciosa. Nesse caso, tal problema pode ser associado ao fato dos empregadores atrelarem o
salário do trabalhador à produção e/ou cumprimento de metas diárias, intensificação e ampliação das
jornadas de trabalho (THOMAZ JUNIOR, 2002; ALVES, 2006; BARRETO, 2012).
Essa realidade evidencia a face perversa do capital. A remuneração por metas, estímulo a
competitividade, acumulo de função e intensificação da jornada de trabalho, expõem os trabalhadores
a situações de risco, seja a acidentes e/ou adoecimento, independentemente da função que desenvolve.
Nesse contexto, o depoimento de trabalhadores e ex-trabalhadores reforça a preocupação
com tais riscos no exercício do trabalho. Seja na indústria, nos canaviais ou transporte da matéria
prima, os acidentes são constantes, as diferenças comparecem na gravidade e intensidade do problema.
Nessa perspectiva, dar-se-á atenção para aqueles, cujas lesões e consequências são mais graves e não
permite disfarce (THOMAZ JUNIOR, 2005).
Frente a essa realidade, os trabalhadores asseguram, que todas as adversidades enfrentadas
nesse ambiente de trabalho podem ser intensificadas, quando o contratante é uma empresa terceirizada,
já que a princípio não há qualquer preocupação com o trabalhador, porque seu principal objetivo é o
desenvolvimento da atividade, e por conseguinte o lucro.1
Ou seja, a reestruturação produtiva do capital tem trazido alterações expressivas no processo
produtivo da cana-de-açúcar, todavia, isso não significa que existem avanços nas condições de
trabalho. O cenário posto é de retrocesso, e o aumento da terceirização nas agroindústrias canavieiras
pode ser posta como expressão máxima dessa situação. O antigo “gato” se modernizou e hoje atua
como empresário “prestador de serviço” em diversos setores e diversas etapas da produção canavieira.
Embora a prática da terceirização ou subcontratação de mão de obra para o desenvolvimento
de atividades no processo produtivo da cana-de-açúcar esteja presente desde os primórdios de sua
história, por meio da figura do “gato”, a terceirização ganhou evidência e foi intensificada a partir das
transformações em curso2. Isto é, a tecnificação, a inserção das máquinas, e de tantas outras inovações
tecnológicas na produção da cana-de-açúcar, somadas as mudanças no sistema organização e controle
do trabalho têm intensificado esse processo, que por sua vez tem proporcionado novas transformações
no ambiente de trabalho.
Com todas essas mudanças, pode-se dizer que atualmente a terceirização do trabalho nas
agroindústrias canavieiras extrapolou a atuação do “gato” e hoje operam com empresas especializadas
nos setores de serviços, no setor de transporte, em todo setor agrícola e na indústria. Figura 1.

1
Durante o desenvolvimento do trabalho de campo, ouvimos depoimento de trabalhadores que já presenciaram e
vivenciaram situações de risco e acidentes de trabalho na produção da cana-de-açúcar na região de Presidente Prudente e
Ribeirão Preto/SP.
2
Nesse caso, cabe explicar que o sistema do gato funcionava/funciona da seguinte forma: um indivíduo, proprietário
de um caminhão ou ônibus, arregimentava trabalhadores rurais (diaristas/safristas) para laborar na atividade agrícola
(cana-de-açúcar, algodão, milho, amendoim etc.). Essa “contratação dos trabalhadores” poderia acontecer tanto na região
de residência do “gato/turmeiro” como em outras regiões do país (como é o caso dos trabalhadores da cana-de-açúcar
vindos da região nordeste). No entanto, vale ressaltar que o “gato” fazia a escolha dos trabalhadores, “vigiava” a turma na
roça, exigindo produtividade, mas, quem efetuava o pagamento dos trabalhadores era o proprietário da lavoura (no caso
da cana-de-açúcar o proprietário do canavial e/ou o usineiro). De acordo com o senhor V.S, da cidade de Santo Anastácio,
o “gato/turmeiro” só vigiava a turma que transportava para as lavoras de cana, quando seu ganho mensal estava atrelado
a produtividade desta, quando o pagamento era realizado por quilômetro rodado, essa função passava para o fiscal da
empresa.

142
FIGURA 1 - Esquema sobre a terceirização e a quarteirização do trabalho no setor canavieiro

Fonte: Elaborado por Maria Joseli Barreto, a partir do Trabalho de Campo, 2015.

De maneira geral, observa-se que a terceirização está cada vez mais presente no setor
canavieiro, desde a indústria até o campo, perpassando pelos setores de serviços e transporte, apesar de
se evidenciar mais concentrado no campo, nos processos que envolve a produção da cana-de-açúcar.
Todavia, também se fazem presentes no âmbito da planta industrial, especialmente nos
setores de serviços, atividades de limpeza, segurança, manutenção e soldagem de máquinas. Também
estão presentes no setor de transporte, tanto dos trabalhadores (administrativo, indústria e rural),
quanto da matéria prima (transporte da cana entre o campo e a indústria).
Nas RA de Presidente Prudente e Ribeirão Preto identificamos empresas que tem terceirizado
grande parte da produção agrícola, preparo de solo, plantio, tratos culturais, colheita da cana-de-
açúcar, além de fornecimento de matéria-prima. Nesse caso, foi possível observar que entre as
empresas agrícolas que atuam no fornecimento de matéria prima, existe um processo mais amplo
e mais complexo. Trata-se de empresas que operam no fornecimento de matéria prima, a partir da
terceirização dos serviços (processo de produção), que por sua vez quarteiriza a mão de obra. Essa
intensificação da terceirização no setor agrícola das agroindústrias sinaliza, de certo modo, para
uma tendência no âmbito do capital canavieiro, a flexibilização e descentralização da produção. Em
síntese, quando a matéria-prima chega à agroindústria, passou por três ou quatro empresas diferentes.
O processo de terceirização é uma realidade em todo o território nacional, e na produção
canavieira não é diferente. As agroindústrias têm acumulado prejuízos com desgastes de equipamentos,
implementos e automóveis, por isso, tem-se tornado mais lucrativo terceirizar. Além disso, na
atual conjuntura não tem sido interessante para as grandes empresas ocupar recursos com compra
de implementos (colhedora, transbordos, tratores, etc.) ou frotas de veículos (carros, ônibus ou
caminhões) se existe esta possibilidade. Ademais, a terceirização ainda propicia maiores facilidades,
a partir da flexibilização da produção e trabalho, retira das empresas a preocupação com as questões
trabalhistas, gerenciais e outras (BARRETO; THOMAZ JUNIOR, 2013).
Diante de tais observações apreende-se que, com a terceirização, a empresa tomadora de
serviço se livra das leis trabalhistas, passando a administrar apenas os contratos com outras empresas
na esfera do Direito Civil. Não é por acaso, que este, está entre os principais objetivos das empresas.
O objetivo é tentar escapar do enquadramento jurídico trabalhista (Marcelino, Cavalcante, 2012;
SCHEIDL; SIMON, 2012).
Nesse viés, Alves (2006) destaca que, a terceirização tem possibilitado às empresas
contratantes livrarem-se de suas obrigações sociais e legais, sem repassar as conquistas dos acordos
coletivos aos trabalhadores das empresas contratadas. Isto é, surge como estratégia para redução dos

143
custos de produção, e atinge de modo desleal o mundo do trabalho. Para o autor, a empresa terceira
gera trabalho precário, com jornadas de trabalho extensas e intensas, ritmo de trabalho exaustivo,
além de não cumprir direitos trabalhistas já conquistados. (ALVES, 2006).
Ao observar e refletir sobre esse processo no âmbito do setor canavieiro de forma horizontal
foi possível apreender as dificuldades que estes trabalhadores têm enfrentado no ambiente e na
rotina de trabalho. Os problemas vão desde o descumprimento das Leis Trabalhistas, intensificação
da jornada de trabalho, pressão por metas e resultados até a ameaça constante de desemprego e a
insegurança no trabalho. A sensação frequente da espoliação e degradação.
Diante disso apreende-se que, as condições de trabalho diariamente enfrentadas pelos
trabalhadores terceirizados e quarteirizados podem ser apontadas como mais um retrocesso no âmbito
da produção canavieira. É inadmissível que trabalhadores atuem desenvolvendo funções de carpa
química/controle de pragas sem os devidos equipamentos de proteção individual – EPI’s, do mesmo
modo que é inadmissível que trabalhadores laborem no transporte de matéria prima (motorista de
caminhões canavieiros) em jornadas de trabalho que ultrapassa 24 horas, sem direito a pausa para
refeições, pressionados pelas metas e obtenção de resultados e que trabalhadores atuem sem o devido
registro em carteira de trabalho.
Diante do cenário posto, os resultados são os acidentes de trabalho em todas as escalas
(cortes, mutilações e mortes), além de trabalhadores laborando adoecidos a fim de evitar faltas, perdas
salariais, acuados pelo medo do desemprego.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto da reestruturação produtiva do capital, a terceirização do trabalho pode ser vista


como estratégia de concentração de valores e descentralização de obrigações por parte dos grandes
empresários. No âmbito do capital canavieiro não é diferente. Embora esse processo seja histórico, na
atual conjuntura, se encontra disseminado em todos os setores das empresas, isto é, está inserido em
grande parte do processo de produção.
Diante dessa realidade, e relevante observar que sua ampliação tende a gerar um grave
problema para os trabalhadores inseridos nesse processo, já que em grande parte destas empresas
(prestadoras de serviço) existe um aumento expressivo no descumprimento de normas e leis
trabalhistas, além da intensificação da exploração do trabalhador. Ademais, ainda se observa que tais
empresas têm resgatado práticas laborais que já foram extintas do processo produtivo da cana-de-
açúcar pelo Ministério Público do Trabalho devido aos riscos que trazem a vida do trabalhador.

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145
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146
VULNERABILIDADES DOS TRABALHADORES
RURAIS:RELATO DE EXPERIÊNCIA
Nycole Israel do Nascimento*
Maria Lúcia do Carmo Cruz Robazzi**
RESUMO: OBJETIVO: Descrever as vulnerabilidades a que os trabalhadores rurais estão expostos. MÉTODO: Estudo descritivo,
configurando-se como um relato de experiência da primeira autora, que trabalha com atividades de educação em saúde no meio rural
no Estado de Minas Gerais. RESULTADOS: Pesquisa desenvolvida a partir da observação dos relatos de trabalhadores da zona rural,
em sete cidades do estado de Minas Gerais. São consideradas neste contexto algumas das vulnerabilidades dos trabalhadores rurais.
CONCLUSÃO: As pessoas do meio rural são carentes de informação e aconselhamento, e uma boa estratégia para se mudar essa
realidade constitui-se nas atividades de educação em saúde.
Palavras-chave: Trabalhadores rurais, Vulnerabilidades, Prevenção de doenças, Meio rural
ABSTRACT: OBJECTIVE: To describe the vulnerabilities which rural workers are exposed. METHOD: A descriptive study, configured
as an experience report from the first author, who works with health education activities in rural areas in the state of Minas Gerais.
OUTCOMES: The research was developed from the observation of reports of workers from rural areas, in seven cities of the state of
Minas Gerais. In this context, there are some of the vulnerabilities of rural workers, which were considered. CONCLUSION: People
from rural area have a lack of information and advice, and a good strategy to change this reality constitutes in health education activities.
Keywords: Rural workers, Vulnerabilities, Prevention of diseases, Half rural

INTRODUÇÃO

Todos os trabalhadores, no exercício de sua função, estão sujeitos a sofrer eventos inesperados
que lhes podem causar prejuízos ou perdas, aos quais se denomina Acidente de Trabalho (AT).
Dentro do cenário agrícola, isso se torna mais preocupante, devido à dificuldade de acesso
aos serviços de saúde e, muitas vezes despreocupação, tanto do empregador, como do empregado,
com treinamentos, capacitações e equipamentos de proteção.
A autora deste estudo, trabalha com treinamentos sobre primeiros socorros em estabelecimentos
rurais, dentro do Estado de Minas Gerais. Foi a partir da análise das queixas destes trabalhadores e
da observação da realidade vivenciada por eles no cotidiano de seu trabalho, juntamente com suas
dificuldades e riscos que surgiu o interesse em relatar as principais vulnerabilidades a que estão expostos.
Verifica-se que acidentes no meio rural, têm se tornado cada vez mais preocupante devido ao
seu índice elevado, à idade dos acidentados e suas consequências (BAPTISTA, 2012). Trabalhadores
rurais são considerados todas as pessoas, do sexo masculino ou feminino, que desenvolvem
atividades, sejam no setor formal ou informal da economia, para garantirem o próprio sustento e de
seus dependentes. (DIAS, 2006). Estes, estão descritos no grande grupo 6 da Classificação Brasileira
de Ocupações (CBO) e compreende todos os produtores na exploração agropecuária, trabalhadores
na exploração agropecuária, pescadores e extrativistas florestais, trabalhadores da mecanização
agropecuária e florestal e excluindo os técnicos agropecuários, profissionais da agricultura de nível
superior e diretores e gerentes de atividades agropecuárias (BRASIL, 2010).
Desta forma, o grande grupo 6 da CBO está ligado a atividades para o arranjo de artigos
por meio da agricultura, silvicultura e da pesca, sendo que para isso, precisam de conhecimentos e
experiências vindas no desempenho diário da profissão, podendo estes produtos ser vendidos, quando
relacionados à atividades da agricultura e/ou pesca comerciais, para compradores, entidades de
comercialização ou mercados. (BRASIL, 2010).
A maioria das ocupações deste grande grupo requer competências de segundo grau, de acordo
com a definição da Classificação Internacional Uniforme de Ocupações (CIUO 88) (BRASIL, 2010).
Com a inserção da tecnologia no meio rural, os riscos ocupacionais foram reduzidos, já
que tornaram o ambiente de trabalho menos insalubre, porém, outros foram gerados, levando à uma
drástica mudança na forma de produzir e gerando aumento na carga de trabalho. (DIAS, 2006).

*
Graduação em Enfermagem pela Fundação de Ensino Superior de Passos e Mestrado em Tecnologia e Inovação em
Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP), Universidade de São Paulo (USP).
**
Docente-Doutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
Mestrado Profissional em Tecnologia e Inovação em Enfermagem da EERP-USP.

147
Dentre as principais causas de AT no meio rural, pode-se destacar: a falta de treinamento dos
trabalhadores com relação ao maquinário, sendo uma das atividades de maior periculosidade, pois
muitas vezes resulta em incapacidade permanente ao trabalhador; aplicação de insumos agrícolas, os
quais são feitos sem os devidos cuidados e paramentação apropriada e a falta de informações acerca
dos riscos das funções que os mesmos desempenham (BAPTISTA, 2012).
Porém, um agravante dessa situação, é que as estatísticas existentes sobre o assunto
são escassas ou restritas a determinado tempo ou região. O conhecimento sobre o tema acaba se
remetendo mais aos relatos dos próprios trabalhadores ou aos artigos policiais que retratam a situação
(CORRÊA et al, 2003).
Desta forma, o objetivo deste estudo é descrever, através de um relato de experiência, as
principais vulnerabilidades a que os trabalhadores rurais estão expostos.

1 DESENVOLVIMENTO

1.1 Saúde do Trabalhador no Meio Rural no Estado de Minas Gerais

Trabalhador é toda pessoa que exerce alguma atividade de trabalho para seu próprio sustento
e/ou de seus dependentes, seja no mercado formal, informal, em atividades familiares ou domésticas.
Desde a sua inserção no mercado de trabalho, o processo de adoecimento tem sofrido alterações em
padrões (BRASIL, 2002).
No Brasil, a Saúde do Trabalhador passa a ser vista de maneira diferente a partir da criação
do Constituição Federal de 1988, a qual declara no artigo 196 que “[...] a saúde é um direito de
todos e dever do Estado” (BRASIL, 1988), instituindo a partir de então, o Sistema Único de Saúde
(SUS). É também, a partir da Constituição de 1988 que as ações de saúde do trabalhador tornam-se
mais esclarecedoras, efetivando as ações de saúde do trabalhador e ambiente de trabalho como parte
integrante da saúde, conforme explicitado no artigo 200 da mesma, afirmando que:
[...] o Sistema Único de Saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: [...]
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do
trabalhador; [...] VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do
trabalho (BRASIL, 2005, p. 37).
A Saúde do Trabalhador é um campo especializado em estudar o processo de saúde/doença e
suas interações com o trabalhador e através da Lei n. 8.080, conhecida como Lei Orgânica da Saúde,
que foi criada em 19 de setembro de 1990. Ela se insere também como parte do SUS, conforme é
descrito no parágrafo 3° do artigo 6° desta lei, a qual explicita que a Saúde do Trabalhador constitui-
se em atividades destinadas, por meio das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária,
à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, além de sua recuperação e reabilitação da saúde,
àqueles que estiverem submetidos aos riscos e agravos cuja origem seja as condições de trabalho
(BRASIL, 2002; BRASIL, 1990).
Para que as ações de Saúde do Trabalhador sejam mais abrangentes e obtenham melhores
resultados, há a necessidade da união entre vários Ministérios, para que, cada um com sua especificidade,
possa complementar as ações do outro (BRASIL, 2002), garantindo assim melhoria nas condições de
vida e laborais dos trabalhadores e garantia de seus direitos e deveres reservados.
No âmbito da saúde, os principais responsáveis pela execução das ações municipais em
Saúde do Trabalhador, são as unidades da Atenção Básica, sendo, portanto, de responsabilidade de
toda equipe: agentes comunitários de saúde, auxiliar de enfermagem, enfermeiro e médico, cada um
com suas atribuições específicas.
Em relação ao meio rural, isso não se torna diferente, visto que as unidades de Programa de
Saúde da Família (PSF) Rural funcionam também como unidades sentinelas dos Centros de Referência
em Saúde do Trabalhador (CEREST), já que estão mais próximas dessa população. Porém, devido à

148
dificuldade de acesso do PSF da Zona Rural às famílias, os trabalhadores do meio agrícola estão mais
vulneráveis a acidentes e doenças de trabalho.

1.2 Vulnerabilidades dos trabalhadores rurais

A vulnerabilidade é um conceito que tem grande importância dentro da área da enfermagem,


pois relaciona a saúde aos problemas nela encontrados. Desta forma, o estudo sobre o termo, é
importante para que se aprofunde o conhecimento sobre os indivíduos que são vulneráveis e assim
conheça suas necessidades de saúde, garantindo-lhes maior proteção (NICHIATA et al., 2008).
O conceito de vulnerabilidade se refere à chance de exposição das pessoas ao adoecimento,
cujo ato é resultado de vários aspectos, seja do indivíduo apenas ou dele e sua relação intrínseca com
o coletivo (MUÑOZ-SANCHÉZ; BERTOLOZZI, 2007).
Assim, a vulnerabilidade, vai além de risco, ele é dinâmico pois interliga os aspectos
individuais, sociais e programáticos e representa as chances prováveis de susceptibilidade designado
para um indivíduo inserido em grupos populacionais delimitados por meio da exposição a agentes
agressores ou protetores, desta forma, devido a sua subjetividade, cada pessoa possui um limiar de
vulnerabilidade diferenciado, porém quando ele é ultrapassado, leva o indivíduo ao adoecimento
(NICHIATA et al, 2008; MUÑOZ-SANCHÉZ; BERTOLOZZI, 2007).

2 METODOLOGIA

Trata-se de um estudo descritivo, configurando-se como um relato de experiência


relacionado ao trabalho de uma enfermeira com atividades de educação em saúde no meio rural no
Estado de Minas Gerais.
A pesquisa descritiva é aquela que descreve o objeto através da observação em campo de
atuação e assim, chegando a elaboração de perfis, cenários para a busca de percentuais, medias,
indicadores ou curva de normalidades (BARROS; LEHFELD, 2005). Além disso, a pesquisa descritiva,
observa, analisa e correlaciona as variáveis sem haver a intervenção do pesquisador procurando
compreender da melhor e mais precisa forma, a frequência e conexão com outros, sua natureza e
suas características. É um tipo de investigação que tem por objetivo, saber as diferentes situações
e relações, que ocorrem na vida social, política e econômica além de aspectos do comportamento
humano, seja em questões individuais ou coletivas (CERVO; BERVIAN; SILVA, 2007).
O relato de experiência é diferente de um texto analítico, visto que é usado para descrever
de maneira mais informal e sem o rigor exigido na apresentação de resultados de outras produções
técnicas, dando assim, vida e significado para a leitura (MEDEIROS, 1997).
Essa pesquisa foi desenvolvida a partir da observação da primeira autora, por meio dos
relatos de trabalhadores da zona rural, durante a execução de atividades de educação em saúde,
voltadas para prevenção de acidentes dentro do meio agrícola, do período de outubro de 2013 a
agosto de 2014, em sete cidades do estado de Minas Gerais, sendo elas: Buritis, Carmo do Rio Claro,
Guaranésia, Guaxupé, Heliodora, Limeira do Oeste e Mutum, totalizando 11 cursos e tendo cerca
de 121 participantes.
Essas atividades de educação em saúde aconteceram por intermédio de uma empresa de
treinamentos que fornece capacitação para trabalhadores relacionados aos primeiros socorros no
meio rural e as formas de se reconhecer o risco e prevenir AT. São cursos que associam teoria, prática
e dinâmicas como forma de atingir e sensibilizar todos os participantes, sendo a responsável pela
realização destas atividades, a autora deste estudo.
Os cursos foram todos ministrados pela primeira autora e os temas abordados foram: acidente
doméstico e acidente de trabalho, verificação da cena do acidente e avaliação inicial (“ABCDE” do
trauma), suporte básico de vida com técnicas de ressuscitação cardiopulmonar, primeiros socorros em
urgências respiratórias, traumáticas e clínicas, em acidentes com animais domésticos e peçonhentos
e parto de emergência.

149
Este curso tem duração de 32 horas, sendo, portanto dividido em quatro dias. Para que o
curso seja efetivo, já que o público é bastante heterogêneo, é usada a técnica participativa, na qual
o conhecimento vai sendo construído pelos próprios participantes, e o instrutor é um facilitador do
processo ensino-aprendizagem. Parte-se de princípios andragógicos e todo conteúdo novo ensinado
segue iniciam-se por conceitos simples e concretos para só então, irem aos complexos e abstratos.
Os cursos ministrados, também não possuem local fixo para acontecer, sendo que são
realizados dentro do próprio ambiente rural, para que todos tenham as mesmas chances de participar.
Neste caso, a cada curso tem-se uma realidade diferente, pois mudam-se as pessoas, os costumes de
cada grupo e o local. Para que a qualidade das capacitações seja mantidas, é necessário que o instrutor
adote estratégias diversas, tais como: improvisação de talas para imobilização com papelão, chinelo,
revistas, pedaços de madeira; improvisação do colar cervical com bonés; as tipoias são feitas de
lençol ou jaquetas; dentre outros. Além disso, o uso de recursos visuais eletrônicos, muitas vezes é
inviável, cabendo então ao facilitador, o uso de álbuns seriados, fotografias impressas, fazer desenho
de próprio punho para explicação, dinâmicas e até mesmo encenar determinada situação.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Diante das observações, a partir da análise dos relatos obtidos nos cursos de primeiros
socorros, constatou-se a presença de vulnerabilidades dos trabalhadores rurais presentes no local de
trabalho dos mesmos, diante dos aspectos apresentados na sequência.
Nosso país tem sua economia basicamente agrária e é por este motivo que os trabalhadores
do meio rural são tão importantes.
Há mais de 16 milhões de trabalhadores, envolvidos com as atividades do campo, a maior
parte destes, cerca de 74% está inserido na agricultura familiar que ocupa uma faixa de 24% de
toda extensão de área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros, os demais são
funcionários de grandes e médias propriedades que ocupam três quartos da área total de produção
e correspondem em um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e de mais de um terço das
exportações (FREITAS; GARCIA, 2006).
Com a globalização, o mercado de trabalho rural vem passando por mudanças tanto no
ramo tecnológico com a mecanização das atividades agrícolas e, portanto, a substituição da mão-
de-obra pela máquina, além da introdução de agroquímicos na produção rural e da biotecnologia, por
exemplo, os alimentos transgênicos, como no ramo organizacional, tudo isso, a fim de aumentar a
produtividade (SILVA et al, 2005).
Com essa mudança na forma de produção, estes trabalhadores estão cada vez mais suscetíveis
aos AT dentro do ambiente de trabalho e danos à sua saúde, devido às tecnologias utilizadas, da
organização e da divisão do trabalho, da intervenção dos mesmos nos campos de trabalho, da ação de
técnicos e instituições relacionados à esta questão e da estrutura jurídica vigente (SILVA et al, 2005).
Além destes fatores, por meio da observação dos relatos contados pelos participantes
dos cursos, é possível verificar outras vulnerabilidades dos trabalhadores rurais que muitas vezes
acarretam em graves problemas de saúde, tais como:

3.1 Baixa escolaridade dos trabalhadores rurais

Dos trabalhadores que tiveram a oportunidade de frequentar uma escola, a grande maioria
não apresentou condições de encerrar o ensino fundamental, pois devido às condições de vida da
família, muitos tiveram que abandonar os estudos e se inserir no mercado de trabalho precocemente,
para ajudar os pais no sustento da casa.
Algumas pessoas tentaram conciliar o estudo com o trabalho, porém como as atividades no
campo são muito exaustivas e iniciam-se antes mesmo do amanhecer, o cansaço foi um dos motivos
para que eles deixassem de estudar e dedicassem-se apenas ao trabalho, já que o rendimento em
ambos era diminuído e isso levava como aluno, a repetidas reprovações e, como trabalhador, a uma
diminuição da produção e consequentemente de trabalho.

150
Por causa destes fatores, estes trabalhadores hoje, não conseguem empregos melhores até
dentro da própria unidade rural, devido à dificuldade em leitura e escrita.
Vários trabalhadores também são analfabetos e, em alguns casos, nem assinam o próprio
nome. Estes, desde crianças, não tiveram a oportunidade de frequentar uma escola devido à distância
em que moravam da mesma e que, pelo fato das famílias serem muito grandes há alguns anos, eram
os filhos que ajudavam a garantir o sustento da família. Ainda hoje, é possível se deparar com jovens
do meio rural, abandonando a escola para trabalhar junto com os pais. Porém, ao contrário de anos
atrás, em que os pais incentivavam os filhos a permanecerem no trabalho, hoje eles reconhecem
a importância de se ter uma formação e incentivam para que continuem na escola, mesmo com
as dificuldades a serem enfrentadas. Atualmente, mesmo dentro das atividades agrícolas, torna-se
importante o domínio da leitura e escrita, já que alguns tipos de tarefas são gerenciais e requerem esse
tipo de conhecimento.
Além disso, a introdução de máquinas de última geração dentro do campo requer uma leitura
minuciosa de manuais de instruções, a fim de evitar uma série de acidentes no ambiente de trabalho.
Muitas vezes, um dos fatores que mantém a baixa escolaridade é a condição socioeconômica,
pois filhos de pais que possuem baixa renda e nível de instrução, têm chances maiores de vivenciar
atmosferas familiares e escolares negativas e eventos estressantes. Isso acontece porque a necessidade
de trabalho é grande e faz com que os jovens saiam precocemente da escola, por outro lado, aqueles
que tiverem maior escolaridade, futuramente serão melhor remunerados (SILVEIRA, 2008).

3.2 Inserção precoce no mercado de trabalho dos trabalhadores rurais

Devido aos baixos salários e ao excesso de trabalho em períodos determinados, como os de


safra, por exemplo, o início das atividades remuneradas ocorre, ainda, na juventude, pois muitos se
sentem na obrigação de participar das atividades de trabalho para garantir uma melhor renda, pelo
menos em certa época do ano.
Isso acontece principalmente em pequenas propriedades rurais, já que para diminuir o gasto
com contratação de outro funcionário, estes se submetem aos riscos da atividade no campo, para no
final de um período, o dinheiro que seria gasto com o operário, poder permanecer dentro da própria
família, aumentando, portanto, sua lucratividade.
O dinheiro recebido pelo esforço, raramente é o jovem quem o administra. Ele geralmente o
entrega ao arrimo da família, que o utiliza para a compra de mantimentos para toda a família. Quando
esse processo acontece apenas durante o período de safra, raramente o adolescente para de estudar,
pois consegue conciliar ambas as atividades.
Portanto, vê-se em crianças e jovens que participam de atividades laborais, que elas carregam
uma grande responsabilidade pelo bem-estar da família, o que pode acarretar em um processo de
amadurecimento precoce, pulando etapas importantes da vida. Além disso, se as condições de trabalho
para os adultos já são precárias, para estes jovens elas se mostram muito mais insalubres, já que um
acidente de trabalho pode prejudicá-la por toda sua vida.
Para Silveira (2008), cerca de sete a cada 10 crianças que estão atuando no mercado de
trabalho, são do setor agrícola. Isso se dá devido aos conflitos familiares, juntamente com a diminuição
da renda, agravando situações de fracasso e evasão escolar, o que pode colocar em cheque o futuro
desses indivíduos, já que a escola representa uma oportunidade para superar as carências presentes.
A inserção precoce no mercado de trabalho prejudica o desenvolvimento físico, emocional
e intelectual de crianças e adolescentes, já que duas entre 10 crianças que atuam no mercado de
trabalho, não frequentam a escola (SILVEIRA, 2008).
No meio rural, ainda há outros fatores complicadores que, de acordo com Silveira, muitos
pais, que também tiveram sua carreira escolar interrompida precocemente, acreditam que saber ler
e escrever é o suficiente para o sustento da família, e que escola não é uma ocupação de fato. Além

151
disso, a permanência em tempo integral na lavoura e a necessidade de auxiliar nas despesas familiares
dificultam o seguimento da carreira escolar (SILVEIRA, 2008).

3.3 Falta de capacitação e treinamento para os trabalhadores rurais

A partir das observações realizadas e dos relatos dos trabalhadores, percebe-se que
aprendizagem das atividades exercidas dentro do ambiente agrícola, muitas vezes é passada de geração
em geração ou através de funcionários que trabalham naquela mesma função por um longo período
de tempo. Dessa forma, a capacitação destes novos funcionários já vem carregada pelos vícios dos
próprios trabalhadores, que vão desde o não uso dos equipamentos de proteção individual, até a
adoção de técnicas que prejudiquem a saúde e, principalmente, a ergonomia. Outro fator preocupante
é a inserção de máquinas cada vez mais modernas dentro do setor agrícola. Muitos trabalhadores
aprendem a lidar com elas no seu dia-a-dia, sem nenhuma capacitação, isso aumenta a chance de
acidentes no trabalho, já que estes desconhecem os riscos que o equipamento oferece.

3.4 Desuso de Equipamento de Proteção Individual (EPI) pelos trabalhadores rurais

Os EPIs ainda são instrumentos com finalidade desconhecida por muitos trabalhadores.
Quando a propriedade oferece esses equipamentos, eles raramente recebem algum tipo de informação
sobre o produto, como por exemplo, a forma correta de usar, tempo de duração, quando o equipamento
necessita ser trocado, entre outas. Desta forma, a maioria não vê nestes utensílios uma forma de
garantir a Saúde do Trabalhador. Como não há uma fiscalização rigorosa, muitos abandonam o seu
uso, alegando que o mesmo provoca certo incômodo ou atrapalha no desenvolvimento da tarefa,
sendo assim, o trabalhador fica suscetível aos acidentes.
Outro fator preocupante é a falta destes equipamentos dentro do setor trabalhado. Como
muitos atuam como meeiros nas propriedades rurais, ou as mesmas são de agricultura familiar,
os trabalhadores não se preocupam em adotar este tipo de proteção, seja pela economia e maior
lucratividade no processo final, seja pelo desconhecimento da importância ou por acreditarem que,
devido ao fato de estarem trabalhando para seu próprio benefício, eles não necessitam lançar mão
destes equipamentos, já que não há quem cobre deles o uso das mesmas. Desta forma, o risco de
acidente e doenças ocupacionais é elevado, o que acarretará em mais gastos públicos com recuperação
da saúde deste trabalhador, reabilitação do mesmo e até previdência social caso ele necessite de
afastamento do seu ofício.
Sendo assim, a partir das observações realizadas, verifica-se que a forma de proteção mais
comum dentro do meio rural, são as botinas, bonés, calças e camisa de manga longa, porém isso não é
adotado por todos os trabalhadores, visto que alguns trabalham descalço, de short e sem camisa, devido
ao calor intenso, além de que algumas funções dentro do meio rural requerem um equipamento próprio,
como é o caso da aplicação de insumos agrícolas, como está descrito na Norma Regulamentadora 31.
De acordo com Barroso e Wolff (2009), fornecer um equipamento de proteção individual
(EPI), não significa que a saúde do trabalhador esteja mesmo protegida, pois, para que isso aconteça é
necessário que seja feita uma aliança entre informações e regras básicas de segurança a fim de evitar
a exposição deste trabalhador aos fatores de risco e garantir a proteção da saúde do mesmo.

3.5 Riscos trazidos pelo ambiente no qual os trabalhadores rurais estão inseridos

O ambiente no qual o trabalhador rural está inserido é de grande risco, pois ele está exposto aos
vários fatores que podem prejudicar sua saúde, tais como: animais peçonhentos, agentes infecciosos,
poeira, dejetos de animais, radiação solar, ruído dos maquinários, dentre outros, que podem levar a
uma série de patologias laborais.
Para Caran (2012), as atividades agrícolas são importantes para a economia nacional e este
setor é dependente do trabalhador rural, porém o ambiente a que eles estão expostos é agressivo, já
que os coloca em várias situações desconfortáveis e prejudiciais à sua saúde e consequentemente

152
causando perda de produtividade e qualidade de vida. Estes trabalhadores estão expostos à inúmeros
fatores do ambiente físico como, temperatura, pressão, barulho, vibração, irradiação e altitude;
químicos, como produtos manipulados, vapores de gases tóxicos, poeira e fumaças, e também os
biológicos que são os vírus, bactérias, parasitas e fungos, as condições de higiene, de segurança e
as características antropométricas do posto de trabalho. Tudo isso associado, são fatores capazes de
produzir problemas de saúde quando superados os limites de tolerância do trabalhador.
Com relação aos animais peçonhentos, é muito comum, ouvir relatos de trabalhadores que
já sofreram algum tipo de acidente, sendo destes os mais comuns: cobra, escorpião, aranha, taturana,
abelha e marimbondo. Isso acontece frequentemente dentro da lavoura e o socorro é feito pelos
próprios colegas de serviço, porém em técnicas arcaicas e errôneas como, por exemplo: sugar o
sangue da vítima com a boca, fazer sangrias e torniquetes, o que acaba prejudicando ainda mais a
saúde daquele trabalhador.
Dentro do ambiente rural, existe inúmeros agentes infecciosos que causam doenças como a
dengue, a malária, a doença de Chagas (principalmente nas culturas de cana-de-açúcar), a leishmaniose,
a febre maculosa entre outros. É muito comum também, devido à inalação da poeira presente no local
de trabalho, a aquisição de problemas respiratórios, principalmente asma e bronquite. No meio rural,
é comum haver dejetos de animais espalhados por todas as partes. Como algumas pessoas, preferem
trabalhar sem o uso de um calçado fechado apropriado, eles entram em contato através da pele,
com patógenos como o Ascaris Lumbricoides, ancilostomídeos (causando o famoso “amarelão”) e a
Schistossoma Mansoni.
Outro fator muito prejudicial à saúde do trabalhador rural é a exposição longa e duradoura
sob os raios solares, isso pode predispor a doenças de pele, principalmente ao câncer de pele e o
envelhecimento precoce e a outras doenças como desidratação, por causa da reposição hídrica e
desmaios. É raro ver algum trabalhador que se preocupe com o uso do filtro solar, sempre alegando
que o mesmo possui um preço muito elevado.
De acordo com Caran (2012), os trabalhadores rurais sofrem muito com as consequências
do calor, seja causada devido à exposição direta aos raios solares ou pela atividade desenvolvida, que
leva distúrbios como câimbras, insolação ou síncope manifestada por tontura ou desmaio. Porém,
quando estão expostos a baixas temperaturas e juntamente com a baixa resistência orgânica, é comum
o acometimento desses trabalhadores por infecções de vias aéreas superiores, gripes, resfriados, dores
articulares e agravo de doenças pulmonares (CARAN, 2012).
Quando se encontra algum destes trabalhadores que se preocupam com a saúde da sua pele,
geralmente eles acabam cometendo alguns equívocos quanto ao uso do produto. Primeiramente, muitos
deixam para aplicar o filtro solar, quando já estão expostos a radiação, depois não utilizam a quantidade
correta e posteriormente não fazem o reaplique periodicamente ao longo do dia. Isso leva a uma
ineficácia do protetor solar e consequentemente o aparecimento, mesmo que tardio, das lesões de pele.
Outro fator que encontramos por meio das observações e vivência da autora, no ambiente
de trabalho são os ruídos que os maquinários provocam. Estes causam a perda auditiva gradual
do trabalhador. É comum ver este tipo de problema em trabalhadores que lidam com motosserra e
tratores. Frequentemente, eles pedem para repetir o que foi dito e conversam em um tom de voz mais
elevado durante as atividades educativas.

3.6 Riscos do trabalho com produtos químicos

Com a utilização cada vez mais abrangente de insumos agrícolas na produção, o trabalhador
rural está mais exposto aos efeitos nocivos destes defensivos, principalmente pelo fato de não usarem
os equipamentos de proteção específicos para este fim. Muitos desconhecem os prejuízos que o
agrotóxico pode causar na saúde, já que estes ocorrem geralmente em longo prazo, mas já passaram
por algum processo de intoxicação pelo produto, apresentando dispneia, salivação, náuseas, irritação
e ardência no nariz e garganta, e até mesmo prurido.
Porém, como estes sinais e sintomas são passageiros, não são considerados por estes
trabalhadores como algo que se necessite de auxílio médico. A partir dos relatos e das observações da

153
autora, constata-se que alguns trabalhadores utilizam a própria camiseta para proteger as vias aéreas,
amarrando-as sobre o rosto, deixando uma grande extensão do corpo desprotegida e em contato
com o agroquímico, que pode ser absorvido pela pele e trazer danos à saúde. Contudo, por meio de
fiscalizações de entidades públicas consegue-se perceber no relato dos trabalhadores rurais que este
problema tem sofrido uma relativa melhora, já que tem se aumentado a preocupação com relação
a compra e venda destes produtos, e tem-se levado mais informações a este público a respeito dos
cuidados a serem adotados.
Segundo Silva et al. (2005), a exposição à fertilizantes e agrotóxicos, são os grandes
responsáveis por graves problemas de saúde na população rural. Um fator que tem sido bastante
preocupante, é que grande parte dos casos de intoxicações, são consideradas acidentais, envolvendo
principalmente produtos do grupo dos fosfatos, gerando hipocalcemia, sais de potássio provocando
úlceras gástricas, hemorragia e perfuração intestinal e os nitratos, que se transformam em nitrosaminas,
por meio de reações metabólicas, que são substâncias cancerígenas.

3.7 Longas jornadas de trabalho nos períodos de safra

Durante a fase de colheita, principalmente dos grãos de café, a jornada de trabalho é maior,
devido ao excesso das atividades a serem executadas. Muitos iniciam as atividades antes do nascer do
sol e seguem até a noite. Além disso, necessitam ficar atentos com os grãos que ficam no pátio para
secagem, pois caso haja chuva, eles precisam ser cobertos imediatamente. Durante este período, as
horas de sono ficam reduzidas e o trabalho se estende inclusive aos finais de semana e feriados. Com
isso, a concentração acaba ficando debilitada e as chances de acontecer algum acidente se torna maior
do que em outras épocas da produção.
Corroborando com este fato, Silva et al. (2005) afirmam que a divisão e o ritmo de trabalho
intenso, principalmente em trabalhadores assalariados voltados para a cultura do café, cana e flores,
os quais devido à cobrança de produtividade, realizam número reduzido de pausas na sua jornada de
trabalho, tem levado principalmente a patologias como Lesão por Esforço Repetitivo (LER) e Doença
Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT).

3.8 Dificuldade de acesso aos serviços de saúde pela comunidade rural

No meio rural, é mais difícil os moradores terem acesso aos serviços de saúde, devido à
distância. Muitas vezes, o ponto de referência destes trabalhadores é o hospital, já que o mesmo
possui atendimento 24 horas. Há a atuação do Programa de Saúde da Família (PSF) do Meio Rural,
mas este possui atendimento enquanto os mesmos cumprem sua jornada de trabalho, o que torna este
tipo de serviço inviável para muitos. Ele é mais frequentado por mulheres, principalmente devido ao
exame de Papanicolau. Muitos moradores não possuem meios de transporte que o leve até a unidade
de saúde mais próxima, optando pelo tratamento domiciliar por meio de plantas e ervas. Quando
necessitam buscar atendimento na zona urbana, é necessário da disponibilidade de um vizinho que
tenha além de um veículo, carteira de habilitação, pois muitos sabem dirigir, mas devido ao fato de
ter que saber ler e escrever para realizar o exame, eles dirigem clandestinamente.
Além destes problemas, ainda há a dificuldade de contratar profissionais da saúde para
as unidades rurais, além da alta rotatividade, são problemas que afetam diretamente no acesso aos
serviços de saúde. No entanto, outras barreiras estão relacionadas com a dificuldade de acesso da
população rural, tais como: “[...] restrições sociais, culturais e econômicas, necessidades de saúde,
informações limitadas a respeito das necessidades de saúde e dos direitos à saúde e também sobre a
disponibilidade de serviços” (VIEIRA, 2010, p. 24).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabe-se que as vulnerabilidades dos trabalhadores rurais vão muito além destas citadas neste
trabalho e que elas se modificam muito de acordo com a região, pois há costumes diferentes e a

154
cultura da lavoura também diferentes riscos, por isso, a saúde do trabalhador rural deve ser mais
estudada, já que este tipo de trabalhador possui muitos quesitos que o torna vulnerável a acidentes
de trabalho e ao adoecimento e são tão importantes para o PIB nacional. São pessoas carentes de
informação e aconselhamento, principalmente com relação aos seus direitos enquanto trabalhador e
questões de saúde, mesmo em dias atuais, em que a tecnologia torna a veiculação dessas informações
muito mais rápida e eficaz.
É importante que as Unidades de Saúde da Família dentro do meio rural tenham uma
forte atuação sobre este público, já que estas são a referência de saúde e participam diretamente da
realidade que estes trabalhadores enfrentam, podendo assim intervir com mais qualidade. As ações
de educação em saúde são estratégias que podem amenizar a suscetibilidade dos trabalhadores,
pois através de informação é que ele reconhecerá a importância de trabalhar com segurança, mas
para isso é imprescindível que se compreenda a realidade a que essa população está inserida. Essas
atividades devem ter caráter participativo e dinâmico, usando recursos que facilitem a compreensão
dos participantes, visando atender toda a demanda. A partir do conhecimento é que podemos
mudar essa realidade.

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156
OS PESCADORES ARTESANAIS E OS EMPREENDIMENTOS NA BACIA
DO ALTO PARAGUAI (BAP)
Enilda Maria Lemos*
RESUMO: Este texto trata, de forma preliminar, sobre os pescadores artesanais e os empreendimentos na BAP. Discute o tratamento
que eles recebem na implantação de empreendimentos na BAP. Faz menção à Medida Provisória 665, que prevê alterações também
para o seguro defeso, benefício pago ao pescador artesanal. O pescador artesanal já sofre com a insuficiência dos serviços de saúde,
de coleta de lixo, de escola e outros serviços públicos. Considera que o Serviço Social de MS poderá ajudar as famílias que vivem da
pesca profissional artesanal a pensar criticamente sobre a sua condição de vida no Pantanal.
Palavras-chave: Pescador profissional artesanal, Empreendimentos, Bacia do Alto Paraguai
ABSTRACT: This text deals, in a preliminary way, on artisanal fishermen and their enterprises at BAP. It discusses the treatment they
receive in the implementation of improvements at BAP. It also mentions the Provisional Measure 665, which considers alterations in the
unemployment benefits during the fishing prohibition season paid to the artisanal fishermen. Artisanal fishermen have already suffered
the effects of the inefficiency of health services, garbage collection, school and other public services. It considers that Social Service of
MS will be able to help families that live from professional artisanal fishing to critically think about their living conditions in Pantanal
Keywords: Artisanal fishermen, Improvements, Upper Paraguay Basin.

INTRODUÇÃO

Os ambientalistas já vêm debatendo sobre os diversos empreendimentos que têm sido


propostos para implantação e aqueles que já estão operando na Bacia do Alto Paraguai (BAP). Por
serem de base capitalista, esses empreendimentos, quase sempre, não trazem uma preocupação com
a forma de vida das comunidades tradicionais que daí tiram o seu sustento, ou seja, não consideram
a realidade dessas comunidades. Disso nasceu a seguinte pergunta: O que fica para as comunidades
tradicionais quando da implantação de um empreendimento na Bacia do Alto Paraguai (BAP)?
Diante de tal questionamento, definiu-se como objetivo deste trabalho, discutir o tratamento que as
comunidades ribeirinhas recebem quando da implantação de empreendimentos na BAP.
O estudo considerou importante distinguir as duas formas do processo de trabalho, o
artesanal e o capitalista, ressaltando que a produção material é acompanhada por um conhecimento
educacional que pode ser denominado de Educação Ambiental (EA). Cabe destacar que a EA aqui
tratada se encaixa perfeitamente nos moldes do neoliberalismo, pois que enfatiza, acima de tudo, a
ação individual e coletiva, sem, contudo, tocar na forma de produzir da sociedade burguesa.
Por se tratar de uma reflexão de caráter introdutório para esta autora, foi especialmente rico
o conhecimento de Cristhiane Amâncio (2009) acerca do pescador artesanal no Pantanal, no Mato
Grosso do Sul (MS), assim como, os depoimentos de ribeirinhos que vivem próximos de Corumbá-MS,
registrados pelo site da Ecoa (MULHERES, 2005). A referência sobre o trabalho é a de Marx (2010),
e a que explica a aparência e a essência é de Kosik (1976). Mészáros (2003) clarifica as ações locais
que são realizadas individualmente e no coletivo. Lessa (1992) também contribui nas explicações
sobre o trabalho. A escolha das referências já é um indicativo de que a preocupação da autora nesse
texto foi também demonstrar que a produção material não ocorre de forma separada do conhecimento
educacional e que ambos se configuram ou para o lucro ou para satisfazer as necessidades humanas.

1 A RELAÇÃO ENTRE O HOMEM E A NATUREZA

A relação entre o homem e a natureza é feita pelo trabalho. Na sua forma original, o trabalhador
apanhava da natureza aquilo que precisava para sobreviver. A simples elaboração de um objeto
passava pelo planejamento que implicava na pesquisa de um conhecimento teórico, nos instrumentos
de trabalho; enfim, o trabalhador ia atrás de tudo o que fosse necessário para a execução do seu objeto.
Como ele participava de todas as fases do processo de trabalho, ele se reconhecia no produto que
havia feito. Para Lessa (1992, p. 44), o “[...] ato de trabalho tem no momento ideal, na prévia-ideação

*
Doutora em Serviço Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” Unesp-Franca. E-mail: enildalemos1@gmail.com.

157
seu ponto de partida [...].” O momento da ideação-prévia torna o trabalho um ato consciente, um ato
que foi pensado para uma determinada finalidade. O trabalho, então, é um ato pensado.
Mas, o trabalho também é explicado como uma mediação entre o homem e a natureza.
Lukács (1979, p.1 6) afirma que o trabalho tem a função de “[...] mediatizar o intercâmbio entre
o homem e a natureza, ou seja, a vida dos homens.” O animal também precisa da natureza para
sobreviver, mas ele estabelece uma relação com a natureza no plano da imediaticidade. O homem não.
Ele vai construindo mediações que vão aperfeiçoando o seu intercâmbio com a natureza. Granemann
(2009, p. 227) diz que “[...] a execução da colmeia é um ato biológico, muitas vezes condicionador
da própria vida; um imperativo biológico que ao não se realizar pode fazer a vida da abelha cessar.”
Portanto, a relação imediata do ser natural com a natureza é distinta da relação mediatizada que o ser
social estabelece com a natureza. De acordo com Barroco e Terra (2012, p. 54):
A objetivação do trabalho propicia o desenvolvimento de certas capacidades que instituem
um novo ser, diverso de outros seres existentes na natureza: um ser social, [grifo do autor]
capaz de agir conscientemente, de forma livre e universal (grifos das autoras).
Acontece que esse ser social “capaz de agir conscientemente” tem a sua subjetividade
capturada no processo de trabalho capitalista. Aprisionado, no lugar de desenvolver potencialidades
humanas, o trabalhador é submetido à exploração e às manipulações da consciência. Ao olhar para
o trabalho hoje, para a sua imediaticidade, parece que o trabalho perdeu a centralidade. Granemann
(2009, p. 224-225) refere-se ao seguinte pensamento de Porchmann (2007) “[...] a exigência de
modificações postas pelo capital não faz o trabalho perder a centralidade [...].” Ocorre que as condições
de empregabilidade determinadas requerem do trabalhador uma aceitação ou o desemprego. Os
empregos criados, em geral, exigem um grau de especialidade e absorvem um número inexpressivo
de trabalhadores, se comparado ao grande número de desempregados que são descartados do sistema
produtivo. Assim, houve uma transformação do trabalho no seu metabolismo com a natureza. Quando
o capitalismo passou a reger a produção, instituiu o trabalho alienado, sobre o qual o trabalhador
conhece somente a parte que ele executa.
Alguns tipos de atividade, ao retirar do trabalhador toda a sua força, em poucos anos deixa-o
em condições físicas debilitadas. Assim, impossibilitado de inserir-se no trabalho, que reflexões o
trabalhador pode fazer? Que tipos de escolhas pode fazer se é obrigado a aceitar o emprego que
tem? Sem poder escolher, os trabalhadores aceitam empregos ou, conforme indica Mészáros (2002,
p. 321-322), se convertem em “[...] grandes massas de pessoas – em praticamente todos os campos
de atividade – que continuam a ser impiedosamente expulsos dos processos de trabalho [...].” Essa
situação é muito diferente do trabalho original, em que o trabalhador refletia, escolhia seus argumentos
e instrumentos para realizar a sua obra.
Essa condição do trabalhador precisa de enfrentamentos e não de uma aceitação passiva. A
passividade é proposta do trabalho no neoliberalismo. Sobre as mudanças no trabalho, Antunes (1997,
p. 79) afirma que o “[...] salto tecnológico fez com que o modelo de produção [...]”, baseado no padrão
fordista de produção fabril na lógica taylorista de organização do trabalho, “[...] deixasse de ser o
único modelo dominante no processo de trabalho.” Tais mudanças e as imposições do neoliberalismo
não devem constituir fatores desmobilizadores de ações de resistência. Ao contrário disso, devem ser
mobilizadores de argumentos teóricos e estratégias de enfrentamento.
Outro problema decorrente da exploração capitalista do trabalhador e da natureza é o da
destruição ambiental. O capital tem sido impotente para corrigir os estragos que ele mesmo provoca
na natureza, ainda que tendo a ciência e a técnica a seu dispor. Mészáros (2003, p. 51) cita a “[...]
produção dos alimentos geneticamente modificados por gigantes transnacionais americanos [...].”
A produção dos alimentos geneticamente modificados é resultado da articulação entre a ciência e
a técnica que exclui a culturas de subsistência. O Estado sempre ajuda o empresariado, como diz
Mészáros (2002, p. 244) “[...] os Estados nacionais particulares hoje proporcionam serviços às
gigantescas corporações transnacionais [...].” Propicia também uma EA que diz para as pessoas que
as condições sociais e ambientais mudam para melhor se cada um fizer a sua parte. Assim, as pessoas
são culpabilizadas e, à medida que assumem essa responsabilidade, tendem a se distanciar cada vez

158
mais das raízes dos problemas. E ficam, cada vez mais, longe da possibilidade de fazer reflexões
coletivas acerca da condição atribuída a elas.

2 AS COMUNIDADES TRADICIONAIS E OS EMPREENDIMENTOS NA BACIA


DO ALTO PARAGUAI (BAP)

A discussão sobre o tratamento que as comunidades tradicionais recebem na implantação de


empreendimentos na BAP deve considerar que esses projetos capitalistas visam ao lucro, como em
qualquer outra região. O primeiro fato a concordar é que nesses empreendimentos não há lugar para
reivindicações, porque, de antemão, a comunidade já tem as audiências públicas. Quase sempre, a
participação nas audiências públicas é tímida, visto que a correlação de forças tem sido injusta, como
é a condição de pescadores artesanais, por exemplo. Em geral, essas comunidades são pequenas e,
pode-se dizer, fragilizadas quanto ao seu poder de negociar; porém, são fortes na sua organização.
As comunidades de pescadores e de catadores de isca e os empreendimentos capitalistas seguem
caminhos completamente distintos. Além das audiências públicas, os empreendimentos preveem
ações EA pontuais que orientam comportamentos a partir da implantação dos empreendimentos.
Ao considerar que a operacionalização de monocultivos e de atividades nas indústrias, assim
como a operacionalização da pesca artesanal e da coleta de isca, utilizam o trabalho, cabe lembrar que
o trabalho foi definido por Marx (1985, p. 149) “[...] como um processo entre o homem e a natureza
[...].” O pescador profissional artesanal vai até o rio e retira dele o necessário para a sobrevivência
da sua comunidade, ao tempo que o trabalhador nos monocultivos e nas indústrias tem que ampliar a
acumulação. Por consequência, o trabalho do pescador artesanal não é destrutivo. Ilustra bem isso o
depoimento de uma moradora da comunidade de São Francisco-MS, reportado no site da Ecoa:
Dona Bernadina da Silva, residente na Comunidade de São Francisco, localizada a 140 km
distante de Corumbá, região na qual as principais atividades são o turismo, a pesca e a coleta
de iscas, descreve que os ribeirinhos compreendem a necessidade de preservação e de como
isso afeta suas vidas e o próprio sustento (MULHERES..., 2005).
O texto acima revela que os trabalhadores da Comunidade de São Francisco sabem que
eles não podem provocar danos no ambiente natural. Por isso, procuram preservá-lo, como registra
o depoimento citado no site da Ecoa. “O ribeirinho é o verdadeiro pantaneiro. Ele é o que cuida do
Pantanal, porque se nós não cuidarmos do Pantanal, nós não estaríamos lá” (MULHERES..., 2005).
O ribeirinho sabe sim que o rio e os elementos naturais do seu entorno são essenciais para
a vida dos peixes e para a sobrevivência de suas famílias. A exemplo disso, eles não mexem no
curso natural do rio.
Ao se referir à pesca artesanal no Pantanal, Amâncio (2009, p. 1) diz que os pescadores
possuem conhecimento sobre “[...] a dinâmica dos rios, dos bichos, dos peixes, das plantas, das
atividades econômicas com melhor aptidão para a região.” Também afirma que o índice baixo de
escolaridade dessas comunidades não interfere no “[...] acúmulo de conhecimento tradicional.”
Em acréscimo, Amâncio (2009, p. 3) diz que os pescadores vivem em “[...] residências precárias,
sem acesso a saneamento básico, coleta de lixo, atendimento à saúde, transporte fluvial [...].” O
pescador necessita estar em boas condições físicas para exercer o seu trabalho. Em um lugar onde
não há saneamento básico, é de se prever que, facilmente, as pessoas serão acometidas de doença. E
quando isso ocorre, o pescador não conta com o atendimento de saúde necessário. Mas o pescador
profissional artesanal não é afligido somente pela deficiência desses serviços públicos. Em abril de
2015, o pescador artesanal foi tangido pela Medida Provisória 665, registrada por Diniz (2015):
A Câmara dos Deputados aprovou, por 252 votos a 227, o texto principal da medida provisória
665, que muda regras de acesso ao seguro-desemprego, abono salarial e seguro defeso de
pescadores. Os deputados ainda precisam analisar destaques que podem modificar o texto.
O site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) explica o seguro
defeso como “[...] um benefício pago ao pescador artesanal que fica proibido de exercer a atividade
pesqueira durante o período de defeso de alguma espécie.” (MDS, 2015). Com as mudanças no seguro

159
defeso, o pescador profissional artesanal do Pantanal já está entre os brasileiros que sofreram prejuízos
com a Medida Provisória 665. Amâncio (2009, p. 4) reforça que “[...] quem conservou o Pantanal,
como ele está até hoje, foram seus moradores.” Certamente, a comunidade de São Francisco-MS
recebeu das gerações passadas um conhecimento que foi obtido na sua prática laboral. Esse tipo de
conhecimento é o que Alves (2005, p. 71) denomina de “[...] conhecimento culturalmente significativo
[...],” um conhecimento educacional que foi construído no processo de trabalho artesanal, e não fora
do processo de trabalho.
Já o conhecimento educacional que acompanha os grandes empreendimentos é construído
diferentemente do conhecimento artesanal, como o que é produzido na pesca artesanal e na captura
de iscas. O conhecimento educacional previsto para os grandes empreendimentos fica por conta da
EA que já é planejada para esconder o processo de trabalho destruidor. De fato, a destruição do
trabalhador e da natureza é inerente a qualquer trabalho capitalista. No entanto, se essa destruição
ficar às claras, poderá comprometer a adesão da sociedade; por isso mesmo, precisa ficar escondida.
A EA opera com o discurso ambiental nos artifícios tecnológicos da mídia para atrair a sociedade.
Há dois projetos de produção em confronto. Um que produz explorando os trabalhadores
e a natureza, passando por cima do modo de ser das comunidades, e o outro que produz para a
vida. Se a pesca profissional artesanal na BAP for monitorada, ela modifica os elementos naturais,
porém sem correr o risco da extinção. Conforme registrado no documento do Centro de Pesquisa do
Pantanal, Ecoa e Rede Pantanal (8 a 10 de novembro de 2005), “[...] os estoques pesqueiros da BAP,
enquanto recursos naturais renováveis, podem ser utilizados pela pesca dentro de seus limites naturais
de reposição, sem qualquer prejuízo para a sua conservação.” (CPP, 2015). Os próprios trabalhadores
da pesca profissional-artesanal prestam atenção nos peixes porque se estes diminuírem terão que
procurar um outro trabalho para sobreviver.
Não se pode dizer o mesmo dos trabalhadores de grandes empreendimentos. O documento
do Centro de Pesquisa do Pantanal, Ecoa e Rede Pantanal (8 a 10 de novembro de 2005) indica
que “[...] a maior parte dos problemas da pesca que levam à redução dos estoques pesqueiros na
BAP, é causado por fatores externos.” (CPP, 2015). São considerados fatores externos a construção
de barragens ou de obras civis para a navegação que provocam alterações vitais, bem como, os
agrotóxicos utilizados nas lavouras de cana-de-açúcar e de soja, entre outros. Além da destruição da
natureza, os trabalhadores de um grande empreendimento não se reconhecem na obra concluída, dado
que eles operam com um conhecimento parcial necessário à obtenção do lucro. Marx (2010, p. 84)
afirma que na sociedade capitalista o trabalho estranha do homem a natureza e o homem de si mesmo,
“[...] estranha do homem o gênero [grifo do autor] [humano].” Então, não há como esperar que em
projetos de grandes empreendimentos sejam previstas concessões especiais para os trabalhadores e
para os recursos naturais. A Hidrovia Paraná-Paraguai é uma obra para a navegação que abrange áreas
da BAP. Sobre essa Hidrovia o site da Ecoa (HIDROVIA, 2011) faz o seguinte registro:
Na Comunidade Porto Esperança, distante cerca de 70 km de Corumbá, além das consequências
ambientais desastrosas que poderão ser causadas pela implementação do projeto da Hidrovia
Paraná-Paraguai, os moradores enfrentam uma batalha judicial com uma empresa que tenta
expulsá-los da área, utilizando cercas feitas de arame nos locais de pesca e coleta de frutos
nativos, a compra de propriedades, invasões de residências, ameaças diretas e, inclusive, o
suposto envolvimento de forças policiais apoiando os agressores.
A violência física praticada contra as pessoas da Comunidade Porto Esperança, se persistir,
pode acabar com o seu meio de trabalho existente na região comprometendo a sobrevivência e
fragilizando a forma de convivência daquela comunidade. Em outras palavras, pode destruir a sua
cultura e a sua identidade. Como diz Pinto (1969, p. 123) “A cultura é indissociável do processo
de produção, entendido este, em sentido supremo, como produção da existência em geral.” Isto é,
a cultura é entendida aqui como um processo de criação e de transmissão de conhecimento que é
obtido no processo de trabalho. Se o processo de trabalho capitalista exige que o trabalhador conheça
a tarefa que lhe foi destinada e nela dispenda o seu esforço, pouco importa o seu conhecimento
sobre o produto final que ajudou a realizar. O conhecimento que importa é o que vai contribuir para
a obtenção do lucro; logo, não há qualquer previsão para acrescentar um conhecimento além do que

160
lhe é facultado para executar a sua tarefa. Então, o conhecimento com o qual opera o trabalhador é
ínfimo em relação ao processo de trabalho como um todo. Já a prática dos ribeirinhos enfatiza a vida
dos seres humanos e dos seres naturais. Mais ainda. Ela veio de um conhecimento acumulado por
gerações anteriores e que requer do trabalhador o conhecimento do processo de trabalho por inteiro.
Ao tempo que o conhecimento educacional relativo ao processo do trabalho artesanal –
por exemplo, a pesca profissional artesanal – está intrinsecamente ligado ao conhecimento sobre os
elementos naturais, o processo de trabalho capitalista tem como horizonte o lucro. O conhecimento
educacional que acompanha a produção nos grandes empreendimentos tem como fim apresentar as
alternativas técnicas para corrigir as destruições previstas e modificar comportamentos humanos. É
esse conhecimento, que é repassado para as comunidades de modo parcial e superficial, que subsidia
as audiências públicas. Seguramente, esse não é um conhecimento de essência. De acordo com Kosik
(1976, p.11) “A essência não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno e, portanto, se manifesta
em algo diferente daquilo que é.” É o conhecimento que não traz qualquer elemento acerca do modo
destruidor de produzir; portanto, não questiona a sociedade capitalista.
O conhecimento de essência é o que faz sentido para os trabalhadores e para a sociedade
como um todo, e não o conhecimento obscurecido que mostra apenas uma parte da realidade. É o
conhecimento utilizado na pesca artesanal, que, segundo Amâncio (2009, p. 1) “[...] é uma atividade
milenar nas águas do Pantanal.” Pode parecer óbvio, mas a apropriação de alguns elementos da
dinâmica natural pelo ribeirinho do Pantanal, de fato, não interessa ao empreendedor e, por isso,
sequer é contabilizada no projeto de uma obra civil.
Viu-se, então, que o processo de trabalho está vinculado ao conhecimento. Ocorre, no entanto,
que os grandes empreendimentos não consideram nem o conhecimento acumulado sobre o Pantanal
das comunidades tradicionais e muito menos a sua prática laboral e a sua convivência. Assim é que,
por vezes, desavisadamente, essas comunidades são pressionadas a desocuparem o espaço em que
vivem, com o fim de abrir passagem para a implantação de grandes empreendimentos. E tem mais:
o que fazer diante da violência contra os poucos direitos adquiridos que vêm sendo aviltados pelo
autoritarismo das leis governamentais? A cada dia a sociedade brasileira continua sendo surpreendida
pelas notícias na mídia sobre as perdas de direitos, como foi o caso da Medida Provisória que fez
alterações inclusive no seguro defeso. O que fica para as comunidades tradicionais quando vai ser
implantado um empreendimento na BAP? Além da perda da atividade econômica, fica para essas
comunidades a fragilização do seu modo de convivência e da sua sobrevivência. Muitas vezes, os
trabalhadores dessas comunidades são banidos dos seus espaços de convivência e são empurrados
para as periferias urbanas. Ali, terão que sair em busca de alternativas de trabalho para a sobrevivência
deles e de suas famílias, como também podem vir a ser usuários das unidades de Saúde e das unidades
do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e do Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (CREA). Poderão, ainda, ocupar espaços nas ruas, que acabarão como moradias,
numa total perda de vida, de dignidade e de um descarte social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou discutir alguns elementos que implicam no tratamento que é
reservado às comunidades tradicionais quando vão ser implantados grandes empreendimentos
na BAP. As comunidades são empurradas de seus locais de convivência, como aconteceu com a
Comunidade Porto Esperança quando foi invadida. Isso mostrou bem o tratamento que se tem dado
às comunidades tradicionais.
Se olhar bem para as comunidades pantaneiras, observa-se que elas já sobrevivem em
condições desvantajosas perante outras comunidades. A distância de centros urbanos, a falta de
serviços públicos essenciais, como saúde, educação, coleta de lixo, saneamento básico etc, são
expressões das condições precárias de sobrevivência dessas comunidades. Para a melhoria do acesso
a esses serviços públicos, em especial, o da saúde, quase não adianta o seu conhecimento cultural
acumulado. Mas, como foi visto, esse conhecimento cultural acumulado, que é significativo para os
trabalhadores, não só é desconsiderado pelos empreendimentos capitalistas na BAP, como também

161
pode ser extinto mediante a violência. Tudo se naturaliza diante dos interesses capitalistas. É a lógica
do lucro, logo, não é questionada. Quando há propostas de empreendimentos na BAP, o governo e o
empresariado se apoiam mutuamente.
A sociedade desmobilizada vem sofrendo a perda dos direitos dos trabalhadores. Em Mato
Grosso do Sul, os arranjos feitos na legislação que protege o Pantanal sul-mato-grossense têm
beneficiado de maneira especial os empreendedores, sem haver distinção sobre a região onde irão
investir, se na BAP, se na Bacia do Paraná. De todo modo, essa predisposição dos investimentos
capitalistas está em consonância com o projeto neoliberal vigente.
No combate à condição posta aos pescadores profissionais artesanais e outros profissionais
que utilizam a forma artesanal do trabalho, o Serviço Social de MS pode contribuir sobremaneira
inserindo-se nos debates promovidos pelas Organizações Não Governamentais (ONGs) ambientalistas
que atuam com essas comunidades. É certo que esses debates abrangerão os empreendimentos
propostos para serem implantados na BAP e as implicações sociais e ambientais que eles podem
causar. O Serviço Social de MS precisa prestar mais atenção nesse segmento, ajudando os ribeirinhos
a fazerem a crítica sobre a sua condição no Pantanal-MS. O que se tem é um discurso neoliberal
que confere ao indivíduo e à comunidade uma atenção ao convidar, de maneira sutil e perversa, a
“cada um fazer a sua parte”. Isso só reforça a ordem social capitalista vigente, que é injusta, desigual
e excludente, e que não traz elementos para afirmar o projeto ético-político do Serviço Social. É
certo que o envolvimento de assistentes sociais nesse debate concorrerá para fortalecer o projeto
ético-político profissional, como também concorrerá para o acúmulo de forças para a realização de
mudanças em favor dos trabalhadores.

REFERÊNCIAS

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162
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MULHERES clamam em defesa do Pantanal e das suas moradias. Habitantes das
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Disponível em: <www.unicamp.br/ju> Acesso em: 27 fev. 2010.

163
A UTILIZAÇÃO DE AGROTÓXICOS NA AGRICULTURA E OS
EFEITOS NOCIVOS Á SAÚDE HUMANA E AMBIENTAL: DA REDUÇÃO
DE CUSTOS A MAXIMIZAÇÃO DA EFICIÊNCIA DO PROCESSO
PRODUTIVO PARA MAIORES LUCRO
Robson de Jesus Ribeiro*
RESUMO: A década de 1930 caracterizou-se, entre outros acontecimentos, pela chamada Revolução Verde, que teve como um dos
atributos o estímulo ao aumento da produção agrícola, um dos aspectos desse processo foi o uso massificado de sofisticadas tecnologias
e recursos bioquímicos, seus reflexos e impactos ao meio ambiente e a saúde humana estão sendo presenciados de forma bastante
intensa na atual sociabilidade.
Palavras chave: Saúde do trabalhador, Meio ambiente, Revolução verde
ABSTRACT: The 1930s was characterized, among other things, the so-called Green Revolution, which had as one of the characteristics
of the stimulus to increased agricultural production, one of the characteristics of this process was the massive use of sophisticated
technologies and biochemical resources, your reflexes and impacts on the environment and human health are being witnessed in a very
intense way in the current sociability.
Keywords: Occupational health, Environment, Green revolution

1 A MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA NO BRASIL

O século XX se caracterizou, entre outros aspectos, por um intenso e contínuo processo de


mudanças tecnológicas, que tem acarretado grandes transformações nas formas, nos processos e nas
relações de trabalho, a Agricultura que por séculos se constituiu no meio de sobrevivência de famílias
campesinas, converteu-se em uma atividade orientada pela produção comercial e na atualidade sobre
intensa especulação financeira.
Para Silva et al. (2005), o processo de produção agrícola sofreu diversas mudanças
tecnológicas e de organização, cujo resultado final tem sido o aumento da produtividade. Em relação
ás alterações tecnológicas, primeiramente há a mecanização de diversas atividades agrícolas e a
consequente substituição da mão de obra por atividades mecanizadas, um dos principais motivos
do êxodo rural. Posteriormente, a partir de 1930 há a introdução de agroquímicos no campo. Outra
mudança ocasionada pela modernização da agricultura que merece destaque é a introdução da
biotecnologia, com notoriedade os organismos geneticamente modificados, os transgênicos.
Todo esse processo constitui o arcabouço da chamada modernização agrícola, que por um
lado tem gerado o aumento da produtividade e por outro tem provocado a exclusão social, migração
rural, desemprego, concentração de renda, empobrecimento da população rural e danos á saúde e ao
meio ambiente (GRISOLIA, 2005).
Dessa forma, a produção agrícola brasileira se mostra cada vez mais dependente de fertilizantes
químicos e agrotóxicos. Esses produtos utilizados em larga escala no país expõem diversos grupos
populacionais a riscos de intoxicação, inúmeros trabalhadores rurais são expostos diariamente a
esses riscos, além de consumidores que ingerem alimentos contaminados, isso demonstra que toda
a sociedade está refém de diversos efeitos oriundos da utilização desses agentes químicos e tem seu
direito à alimentação saudável violada.
A Lei dos agrotóxicos (Lei n. 7.802, de 11 de julho de 1989) e o Decreto n. 4.074/2002 que
regulamenta, definem que esses produtos são:
[...] os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao
uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas,
nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e
também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição
da flora ou da fauna, a fim de preservá-las das ações danosa de seres vivos considerados
nocivos (BRASIL, 1989).
Na busca por uma maior produtividade a fim de alavancar os níveis de competitividade
principalmente no mercado internacional tem se utilizado exacerbadas quantidades de agrotóxicos nas

*
Graduando em Serviço Social. Orientadora Profa. Dra. Edvânia Ângela de Souza Lourenço. E-mail: robsonjrib@
gmail.com.

165
lavouras, esses tem conseguido manter altíssimos níveis de produção e gerado inúmeros problemas
sociais e de saúde pública, além de acarretar inúmeros passivos ambientais e problemas para a
saúde dos trabalhadores.
Segundo Nunes e Tajara (1998) esses produtos são utilizados em grande quantidade na
agricultura para o combate de uma ampla variedade de pragas, a composição química desses produtos
implica que eles podem exercer efeitos tóxicos sobre o homem e a população em geral pode estar
exposta a esses agroquímicos através da ingestão de alimentos (incluindo carne, peixe, laticínios,
frutas e vegetais), por exposição dérmica após aplicações domésticas ou pulverizações em cultura
ou ambientes públicos (praças, auditórios) ou inadvertidamente por inalação durante a aplicação.
Assim, a exposição é quase sempre de natureza crônica, ocorrendo em período de anos. Em termos
populacionais, os efeitos mórbidos crônicos são mais prejudiciais que os agudos e existem evidências
de que compreendem desde consequências deletérias na reprodução até sequelas neurológicas e câncer.

2 A REVOLUÇÃO VERDE E O “MITO” DO DESENVOLVIMENTO

No Brasil, a lógica da expansão capitalista se intensificou no fim da década de 1930, na


agricultura, por meio da Revolução Verde. Neste cenário houve o declínio do setor agrícola tradicional
e a sua substituição pelo setor agrícola mecanizado. O boom da locomotiva da fronteira agrícola
trouxe a inovação e a disseminação de sementes modernas e práticas agrícola que permitiram um
vasto aumento da produção, principalmente nos países menos desenvolvidos, como é o caso do Brasil.
Faz parte desse processo o ideário do aumento da produção agrícola por meio do melhoramento
genético de sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanização em massa e redução de custos
da produção. Com isso, inicia o processo de desagregação da cultura camponesa e a transformação
do modelo de agricultura do país, que passa a intensificar a grande exploração latifundiária, assim, os
pequenos agricultores que não conseguiram acompanhar as novas técnicas de plantio inseridas pela
modernização do campo não puderam permanecer nesse novo mercado, uma vez que não conseguiam
alcançar o padrão de produtividade alcançado pelos grandes fazendeiros e investidores que passam a
atuar no ramo do agronegócio. A modernização no campo favoreceu ao processo de endividamento
dos produtores devido a solicitações de empréstimos aos bancos para a mecanização, sobrando
como alternativa de pagamento a venda da propriedade que na maioria dos casos é o único meio de
subsistência, principalmente para as famílias que vivem da pequena agricultura. Nesse sentido, estes
aspectos representam contradições da proposta inicial da Revolução Verde.
O desenvolvimento capitalista vem sendo acompanhado pelo desenvolvimento da ciência,
a qual é apropriada por ele, com o intento de aumentar e expandir a capacidade da produção e de
acumulação. Assim, como já afirmado, no âmbito da agricultura destaca-se o que se convencionou
chamar de Revolução Verde, a partir da qual, houve por um lado a produção a partir de novas
tecnologias, mas por outro, a exclusão e marginalização de trabalhadores rurais, que não conseguiram
mais continuar vivendo da agricultura familiar ou como assalariado rural.
No Brasil, onde muitos foram despejados de suas terras, por um modelo perverso capitalista,
ou expulsos pelo sistema escravocrata, monocultural, politicamente defensor do latifúndio,
ou por razões de ordens de modelos firmados pelo mercado exportador, o da Revolução
Verde, que até hoje perdura, forma sem dúvida, uma população sem acesso aos direitos
humanos básicos, firmados em tratados ou convenções. Sem esses direitos, não há como falar
em democracia, em Estado de Direito, em paz social (MANIGLIA, 2007, p. 17).
As novas condições impostas por esse processo não refletiram apenas nas exportações que
alavancaram consideravelmente, mas também, no mercado interno e no setor de subsistência, pois o
mote principal nos períodos que sucederam a Revolução Verde era a expansão do mercado. Observa-se
então que a partir de 1950 o mercado agrícola passa a dar prioridade para a exportação em larga escala,
visando atender as necessidades de acumulação e não as necessidades da população. Lembrando, que
se trata de exportação de produtos in natura ou de matérias prima para as indústrias, como é o caso
tão em voga hoje das commodities, ou seja, exportam produtos que carecem de industrialização e
mantém a histórica dependência do Brasil para com os mercados norte-americanos e europeus tanto

166
para vender os produtos sem processamento industrial como para adquirir aqueles já processados,
muito embora na atualidade o Brasil já disponha um amplo parque industrial e dispõe de mecanismos
para uma produção independente.

3 AGROTÓXICOS E A SAÚDE PÚBLICA

Desde a Revolução Verde, as formas tradicionais de produção agrícola passaram por diversas
mudanças com a inserção de novas tecnologias no campo. Essas transformações ocorreram visando o
aumento da produtividade e a produção extensiva de commodities agrícolas. Essas novas tecnologias
inseridas na agricultura favoreceram o uso extensivo de agrotóxicos, com a finalidade de controlar e
prevenir pragas para expandir a produtividade.
Essa enorme quantidade de agrotóxicos inseridos na agricultura irá contribuir para inúmeros
problemas relacionados a saúde pública em áreas de grande produção agrícola, os custos desses
adoecimentos irão ter rebatimentos diretos nos custos do Sistema Único de Saúde (SUS) e Instituto
Nacional de Seguros Sociais (INSS), esse através de benefícios previdenciários.
Os agrotóxicos trazem consigo uma gama de substâncias químicas ou produtos biológicos.
Agrotóxicos, defensivos agrícolas, pesticidas, praguicidas são algumas formas de nomear esses
produtos químicos que são utilizados em larga escala na agricultura para o combate de pragas e
doenças na produção agrícola e são prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.
O uso dos agrotóxicos tem gerado inúmeros agravos, tanto para a saúde quanto ao ambiente.
Há estimativas feitas por agências internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS,
1990), que ressaltam que o uso indiscriminado e o contato com esses produtos podem levar o indivíduo
à morte, ou acarretar inúmeros problemas de saúde determinados pelo contato direto ou indireto,
sendo que, o contato através dos alimentos é uma preocupação frequente.
Mesmo que alguns dos ingredientes ativos dos agrotóxicos, por seus efeitos agudos, possam
ser classificados como medianamente ou pouco tóxicos, não se pode perder de vista os efeitos
crônicos que podem ocorrer meses, anos ou até décadas após a exposição manifestando-se em
várias doenças como cânceres, malformação congênita, distúrbios endócrinos, neurológicos
e mentais (CARNEIRO et al., 2015, p. 58).
A ampla utilização de agrotóxicos na agricultura, o fato de muitos agricultores desconhecerem
os riscos envolvidos no manuseio desses produtos, os sucessivos desrespeitos às normas básicas de
segurança e a livre comercialização desses produtos em diversos locais e a intensa pressão para o
aumento da produtividade no campo são fatores cruciais para o aumento dos casos de intoxicação por
esses agentes químicos.
Outros fatores que merecem destaque é a deficiência de assistência técnica aos trabalhadores
do campo, a dificuldade de fiscalização – a equipe do governo responsável por executar esse
serviço tem poucos funcionários e não dá conta da alta demanda – o despreparo das equipes de
saúde para enfrentar esses problemas – as equipes de saúde em áreas rurais muitas das vezes não
têm profissionais suficientes e equipamentos para realizar os atendimentos, além de outras vezes
os responsáveis pelas áreas de produção entrarem em contato com os postos de saúde para evitar
que seja realizada notificação junto ao SUS – as equipes de saúde muitas vezes estão despreparadas
para relacionar problemas de saúde com o ambiente de trabalho, particularmente a exposição de
agrotóxicos, diagnósticos incorretos, escassez de laboratórios são algumas das casas que influenciam
na inexistência de diagnóstico e inexistência de registros relacionados a acidentes de trabalho,
contribuem para o aumento do número de contaminações químicas.
Para Rigotto (2003), o trabalho na agricultura é assumido prioritariamente por homens adultos,
também há o envolvimento significativas de mulheres, crianças e adolescentes, que podem receber
baixas doses de agrotóxicos, porém devido a exposição com frequência esses produtos ocasionam
vários agravos, muita das vezes, por acreditarem que estão auxiliando no puxada da mangueira do
pulverizador mecânico ou no abastecimento do pulverizador manual, acabam por se expor mais aos
riscos relacionados a estes agentes químicos.

167
Os gastos em Saúde Pública decorrentes da contaminação por agrotóxicos são extremamente
altos e totalmente assumidos pelo Estado e sociedade, no Brasil, segundo a Organização Pan-americana
de Saúde (OPAS, 1990) indica que para cada caso de intoxicação registrado, 50 outros casos ocorreram
sem notificação ou como notificações errôneas, o SUS depende de R$ 150,00 para recuperar cada
paciente vítima de intoxicação por agrotóxicos, estima-se dessa forma que o custo para tratar esses
casos – devido o grande número- é bastante alto, estes gastos poderiam ser reduzidos se as medidas
de controle e de vigilância fossem mais ativas e tivessem maiores investimentos.
Diminuir o número de casos de intoxicação é um grande desafio e a mudança de hábitos é
necessária para os atores públicos e privados envolvidos nessa questão são importante que haja uma
produção segura, sem o uso de agrotóxicos e substâncias químicas, é necessária uma abordagem
interdisciplinar/multidisciplinar, envolvendo vários atores sociais comprometidos com essa questão,
para que os problemas de saúde vivenciado por inúmeros trabalhadores sejam objeto de reflexão e
passíveis de redução para a melhoria nas condições de vida e trabalho.

4 AGROTÓXICOS E O MEIO AMBIENTE

Deve ser dito que ainda pouco se sabe acerca da produção de alimentos cultivados com
agroquímicos e em consequência à contaminação do meio ambiente, dos trabalhadores e dos alimentos.
O solo, águas e áreas vizinhas às plantações podem ficar comprometidas por causa do uso de produtos
químicos, ou seja, o aumento da produção dos alimentos tem sido acompanhado pelo uso volumoso
de venenos para o combate de pragas ou para a aceleração do processo de produção. Desta forma,
ampliou-se o acesso a determinados alimentos, contudo há uma grande possibilidade de consumir
alimentos contaminados por agrotóxicos.
No processo de aplicação de agrotóxicos, há um grande potencial de esses produtos
atingirem o solo e as águas, principalmente pela água das chuvas e pelo vento que desvia o produto
na hora da aplicação, além disso, qualquer caminho que esses produtos atinjam no meio ambiente o
homem será o receptor.
Como já descrito anteriormente, a Revolução Verde foi responsável pela disseminação
dos agroquímicos em todo o país, e os resultados dessa mudança adotada pode ser observada na
atualidade através de distintos problemas que afetam o planeta e acelera a destruição ambiental.
Segundo Moreno (2005, p. 66):
Os resultados da Revolução Verde são bastante conhecidos: a destruição de sistemas
tradicionais fortaleceu o êxodo rural, a contaminação ambiental, a degradação de áreas, o
desmatamento, etc. O uso massivo de agrotóxicos com a vinculação ao crédito para aquisição
da tecnologia vendida como sinônimo de modernização e desenvolvimento, os híbridos,
acabou acelerando a concentração de terra e o avanço do capital financeiro sobre o campo
e a agricultura: e esta dinâmica acarretou na criação ou no incremento da dívida externa de
países da periferia do capitalismo.
Para a mesma autora, é exatamente essa ideia do pagamento da dívida externa, que muitas
das vezes justificam o apoio do Estado para a expansão do agronegócio, sua justificação social e com
ele os transgênicos.
Podemos observar na atualidade que o pacote tecnológico oferecido através da Revolução
Verde, que trazia a promessa de desenvolvimento rural, tornou-se um alto risco econômico e ambiental.
Não acabou com a fome do mundo e ainda acabou com a soberania alimentar dos países.

5 AGROTÓXICOS, SAÚDE DO TRABALHADOR E O SERVIÇO SOCIAL

Verificou-se nos estudos bibliográficos tomando por base principalmente, que os agrotóxicos
podem apresentar diferentes tipos de intoxicação, a qual não é o resultado de uma simples relação
entre o produto e a pessoa exposta. Vários fatores participam da determinação dos problemas de
saúde derivados dos agrotóxicos, dentre eles, os fatores relativos ás características químicas e
toxicológicas do produto.

168
O contato com os agrotóxicos sem a devida proteção representa um potencial para o agravo
na saúde do trabalhador rural. Os danos à saúde causados por esse contato são compreendidos
como expressões sobre o corpo dos trabalhadores de riscos presente nas lavouras, há uma redução
naturalista e biologicista da ideia de risco e dano, na medida em que não se considera seu caráter
histórico e social. Supõe se que esses produtos não prejudicam apenas quem tem contato direto com
eles no momento do cultivo, mas também as comunidades vizinhas das lavouras, a família desses
trabalhadores e os consumidores.
A partir destas inquietações e da busca de respostas para questões que comprometem a
saúde do trabalhador, que o Serviço Social comprometido à classe trabalhadora brasileira, evidencia a
necessidade desta pesquisa e da busca de dados e análises que possam contribuir com transformações
nas políticas públicas.
A saúde do trabalhador constitui-se área do conhecimento, investigação e intervenção,
embora ainda pouco estudada no Serviço Social, mas de grande interesse da área, uma vez que as
condições de trabalho que muitos são submetidos, a exploração do trabalhador são objetos de estudo
da profissão. Muitos fatores contribuem para o uso exagerado de agrotóxico, como o baixo nível de
informação e escolaridade da população, a regulamentação, os métodos de controle e os cuidados para
a aplicação. Esses elementos podem estar relacionados ao processo de produção, pois se trata de um
modelo de sociometabolismo do capital, onde sua única função é produzir cada vez mais, sem medir
as consequências advindas desse modo de produção capitalista, que visa à acumulação acentuada.
Em qualquer atividade que exija o contato do trabalhador com o agrotóxico há um risco
pré-existente de intoxicação, damos ênfase nesse estudo dos problemas relacionados ao uso desses
produtos nas lavouras de tomate, muitas das vezes, sem nenhum equipamento de proteção.
Dada razão da falta de controle no uso dessas substâncias químicas tóxicas e o desconhecimento
da população em geral sobre os riscos e perigos a saúde decorrente, entretanto existe um receio
dos trabalhadores de procurar socorro quando intoxicados, uma vez que os mesmos dependem do
trabalho, além disso, muitas vezes, o indício de intoxicação é tratado com uma simples virose por
causa da semelhança dos sintomas. Isso corrobora para que seja muito comum a ausência de registros
dos problemas decorrentes desse modelo de produção. Os agrotóxicos estão entre os principais fatores
de agravos a saúde do trabalhador, esses agravos à saúde e ao meio ambiente contribuíram para a
restrição de determinados agentes químicos como ressalta Soares;
Isso ficou claro com o passar dos anos com o surgimento de vários problemas ambientais
e de saúde associados ao uso dos agrotóxicos, o que acabou concorrendo para o Protocolo de
Estocolmo assinado por 120 países, que proibia ou restringia não só o Dicloro-Difenil-Tricloroetano,
que é o primeiro pesticida moderno, mais de outras substâncias poluentes e de agravo a saúde
(SOARES, 2010, p. 16).
O agravo dos agrotóxicos a saúde humana, especialmente os crônicos, não tem sido
caracterizado adequadamente, pois os efeitos tardios de alguns desses químicos podem tornar aparentes
após anos de produção, com a demora no aparecimento dos sintomas aumenta a probabilidade de um
diagnóstico diferente de intoxicação.
Também é comum encontrarmos na literatura específica estudos com familiares de
agricultores, ou seja, indivíduos potencialmente expostos ao ambiente onde o agrotóxico é aplicado e
acabam sofrendo os agravos do uso do produto.
Mesmo sabendo de todas as consequências do uso dos agrotóxicos, o Brasil dispõe de poucas
políticas voltadas para a minimização dos riscos dos agrotóxicos na saúde do trabalhador rural, é
necessária a criação de medidas que visem à informação dos trabalhadores rurais sobre os riscos
eminentes dessas substâncias. Necessitamos de estudos e pesquisas que pautem essa problemática e que
possam instigar ações de vigilância para o uso do agrotóxico, bem como campanhas socioeducativas
que auxiliem na compreensão deste importante problema de saúde pública.
Os severos danos à saúde causados pelos agrotóxicos não se restringem somente aqueles que
manuseiam diretamente os produtos contaminados, moradores de pequenas cidades próximas à zona
das lavouras também podem ser atingidos por nuvens de pesticidas trazidas pelo vento.

169
As consequências de uso e do contato com os agrotóxicos e pesticidas podem trazer graves
problemas, contaminando também os recursos hídricos. Portanto, projetos educacionais que abordem
diretamente sobre a necessidade da adoção de medidas de segurança no manuseio de agrotóxicos e
sobre o risco a saúde humana, animal e ambiental devem ser pautados. É muito difícil estabelecer regras
de consumo e proteção baseado nos parâmetros adotados na atualidade, pois essas regras são criadas
para proteger o capital e não o trabalhador em geral, entretanto essas ações se fazem necessárias.
Denúncias de intoxicação muitas vezes não são registradas porque os efeitos nocivos
do agrotóxico não agem de imediato, levam-se alguns dias para sentir os primeiros sintomas de
intoxicação, além das unidades de saúde não terem suporte para identificar o caso, que nem o
trabalhador imagina que pode ser por causado contato direto ou indireto com o produto em algum
momento. Esse é um dos obstáculos para o Sistema Único de Saúde (SUS) que é uma política de saúde
pública que dispõe de projetos voltados ao atendimento específico da saúde do trabalhador, por meio
do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (CEREST) pela implantação de ações de saúde
dos trabalhadores, tal órgão vem sendo responsável no SUS, inclusive para as questões relacionadas
aos agrotóxicos. O SUS tem como responsabilidade a saúde da população, incluindo os ambientes de
trabalho. Lourenço (2009) explicita que desde 2004 foi criada a Rede Nacional de Atenção a Saúde
do Trabalhador (RENAST), a qual tem disseminado as ações de saúde do trabalhador nos vários
serviços de saúde, desde então, a principal estratégia tem sido a criação e ampliação dos Centros de
Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), os quais são órgãos regionais que atuam nos vários
municípios como norteadores e apoiadores da política de saúde do trabalhador (LOURENÇO, 2009).
Além dos agravos advindos do uso do agrotóxico, existem outras preocupações de cunho
econômico e social, que devem ser analisadas e consideradas na elaboração das políticas públicas e
principalmente da política da saúde do trabalhador.
No entanto, infelizmente não são essas análises e números que chamam a atenção dos
políticos, dos produtores e da população em geral. O que ganha destaque principalmente na mídia é a
prosperidade do agronegócio no país e não os percalços trazidos por ele na saúde dos trabalhadores,
expressos não só por cifras mais também na chamada Bancada Ruralista do Congresso Nacional.
Conclui-se deste modo que há um preço a ser pago por todo esse incremento na produção
agrícola que parcela desse sucesso se deva aos impactos negativos à saúde do trabalhador e questiona-
se: O que o trabalhador rural está lucrando com isso?

REFERÊNCIAS

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proteção e recuperação da saúde, a organização e o financiamento dos serviços correspondentes
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm > Acesso em: 8 abr. 2013.
______. Lei n. 7.802, de 11 de julho de 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a
produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a
propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e
embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos,
seus componentes e afins, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
Brasília-DF: 12 jul.1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7802.htm>.
Acesso em: 8 abr. 2013.
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(Doutorado em Ciência)- Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Rio de Janeiro, 2010.

171
O SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO FRENTE A CONCOMITÂNCIA DA
“ECOLOGIZAÇÃO” DO CAPITAL E DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
Vitor Moretti Zonetti*
RESUMO: Por meio da reestruturação produtiva o capital tem intensificado sua reprodução e, consequentemente, exaurido
as fontes naturais. Seus rebatimentos não se limitam a degradação ambiental ao provocar, também, diversos agravos à saúde dos
trabalhadores. Como justificativa, a estrutura do poder hegemônico tenta convencer que o crescimento econômico deve ser pautado
no desenvolvimento sustentável, que nada mais é que um aparato ideológico a serviço da ecologização do capital. Paralelamente,
os organismos internacionais dialogam sobre a necessidade eminente de uma educação ambiental a nível planetário, sendo assim, o
Serviço Social brasileiro necessita se reportar qual o direcionamento sociopolítico acerca da questão ambiental deve estar inserido em
sua esfera socioeducativa.
Palavras-chave: Reestruturação produtiva, Desenvolvimento sustentável, Educação ambiental, Serviço social
ABSTRACT: Through the productive restructuring, the capital have intensified its reproduction thus exhausted the natural resources.
The consequences embrace the nature degradation as well as the health of the working class. To justify its process continuation, the
hegemonic power pushes the sustainable development as the ideology facade to greening the economic imperialism. Furthermore, the
most important international organizations have lead discussions on environmental education in a worldwide scale meanwhile the
brazilian Social Work must report the matrix to follow and to match its ethical-political project.
Keywords: Environmental education, Productive restructuring, Sustainable development, Social work

INTRODUÇÃO

É evidente a atual degradação do ambiente que nos cerca, desde o contínuo ataque aos
espaços naturais se estendendo a acentuada transformação das paisagens rurais com a utilização
da mercadoria-solo para replicação da mercadoria-animal e da mercadoria-vegetal até a constante
impermeabilização do espaço urbano. Somos confinados a espaços menores na mercadoria-habitação,
as cidades ficam cada vez mais cinza e recheadas de mercadoria-automóveis que expelem a fumaça
resultante da mercadoria-combustível. Até mesmo o ar que respiramos se transformou em mercadoria-
oxigênio por meio dos créditos de carbono emitidos pelas bolsas de valores mundo afora. A questão
ambiental é eminente e plausível de diálogo com todas as esferas da sociabilidade vigente. Fazer a
crítica à degradação ambiental é necessariamente questionar se realmente queremos continuar no
caminho que nos trouxe até aqui.
O ser humano vive da natureza significa que a natureza é seu corpo, com o qual ele precisa
estar em processo continuo para não morrer. Que a vida física e espiritual do ser humano está
associada à natureza não tem outro sentido do que afirmar que a natureza está associada a si
mesma, pois o ser humano é parte da natureza (MARX, 2010, p. 516).
Parte esta, que devido ao desenvolvimento de suas forças produtivas e atualmente dominadas
pelo sistema de produção e consumo capitalista tem levado a fabricação do lucro a exaurir fontes
naturais, ao mesmo tempo, que submete trabalhadores a exaustão. A questão ambiental é resultante
de uma opção política dos seres humanos ou até da dominação de uma classe social sobre a outra
mas, mesmo que haja alternativas de sociabilidades paralelas e escondidas em rincões do globo, o
capitalismo é necessariamente a estrutura hegemônica, portanto, hegemonicamente responsável.
No último relatório publicado pelo Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), ou
Painel Intergovernamental sobre Mudança Climáticas, estabelecido pela Organização Meteorológica
Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), foi exposto que “[...]
a influência humana no sistema climático é clara, e a recente emissão antropogênica de gases do efeito
estufa é a maior da história. Recentemente, a mudança climática tem difundido impactos nos seres
humanos e nos sistemas naturais.” (IPCC, 2014). Ora, se os dados propagados por instituições criadas
para monitorarem as refrações da questão ambiental estão denunciando a continuidade e aumento
dos impactos ambientais causado pelos seres humanos, faz-se necessário questionar a estrutura da
destrutividade que tem determinado a direção da história.

*
Bacharel em Serviço Social pela Faculdade de Ciências Humanas Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” UNESP-Franca. E-mail: vitormz@gmail.com.

173
Anthropogenic greenhouse gas (GHG) emissions since the pre-industrial era have driven
large increases in the atmospheric concentrations of carbon dioxide (CO2), methane
(CH4) and nitrous oxide (N2O) (Figure SPM.1c). Between 1750 and 2011, cumulative
anthropogenic CO2 emissions to the atmosphere were 2040 ± 310 GtCO2. About 40% of
these emissions have remained in the atmosphere (880 ± 35 GtCO2); the rest was removed
from the atmosphere and stored on land (in plants and soils) and in the ocean. The ocean has
absorbed about 30% of the emitted anthropogenic CO2, causing ocean acidification. About
half of the anthropogenic CO2 emissions between 1750 and 2011 have occurred in the last
40 years (high confidence) (Figure SPM.1d).(IPCC, 2014).1
Ao se revelar tais informações evidencia-se a reponsabilidade da industrialização quanto a
degradação ambiental, no entanto, é crucial apontar que este mesmo processo fabril não está a serviço
do desenvolvimento humano e sim da replicação incessante de capital. Por isso, não é cabível culpar
a humanidade em si, mas é necessário apontar os fatores sociais, políticos e históricos decisivos para
a composição de tal cenário. Assim, ao se discutir a intensificação da emissão de CO2 na atmosfera
do Planeta Terra e a extração exacerbada dos elementos naturais nos últimos 40 anos, é necessário
traçar o paralelo com o atual e também intensificação do processo de acúmulo de riqueza, uma vez
que atualmente 80 pessoas detém a mesma quantidade de riqueza que 50% da população mundial
(OXFAM, 2015). Esta contemporaneidade de fatos demonstra que a questão ambiental e a questão
social são consequências diretas do metabolismo do capitalismo, ao mesmo tempo que coincidem
com a periodicidade da restruturação produtiva e da ofensiva neoliberal iniciada na segunda
metade do século XX.
É sabido que nos idos tempos do feudalismo os mestres e artesões das corporações de ofício
elaboravam seus utensílios e produtos através da manufatura. Neste mesmo processo produtivo as
ferramentas não eram utilizadas todas aos mesmo tempo, ou seja, num determinado momento em que
se extraia a madeira de uma árvore, por exemplo, o martelo e os pregos repousavam para uma futura
atividade. Sendo assim, Mészaros (1989) aponta que esta não utilização de uma determinada força
produtiva não existe no capitalismo ou, melhor dizendo, o capital é um processo social em que não
há ‘subutilização’ de sua capacidade produtiva, desta forma, movimenta toda uma sociabilidade a seu
favor para que tudo coloque disponível para a extração de mais-valia, para replicação e acúmulo de
capital e principalmente para ser revertido ao processo de produção numa incessante “[...] dinâmica
expansiva dos próprios meios de produção” (MÉSZAROS, 1989, p. 37).
É justamente neste ponto que este mesmo autor expõe a ‘taxa decrescente de utilização’
que nada mais é que a automatização do próprio capital de se retroalimentar com os investimentos
em novos meios de produção através de toda produção acumulada, num processo que tudo que é
transformado em capital tem sua capacidade de uso descaída devido o avanço da própria lógica de
acumulação. Assim, todos os meios de produção, a força de trabalho e a própria mercadoria perdem,
gradualmente, a possibilidade de colaboração com acúmulo de capital exigindo que tudo se renove
numa velocidade ainda mais voraz.
A taxa de uso decrescente é necessária concomitância de todas essas determinações. Tanto
a própria contribuição do trabalho no sentido da redução produtiva de tempo de trabalho
necessário, quanto o imperativo objeto do capital em converter ganhos do trabalho a seu
favor trazem consigo a taxa de uso decrescente em diversos planos: desde o modo de
funcionamento do próprio trabalho vivo (assumindo com o passar do tempo a forma de
desemprego crescente), até à produção excedente/subutilização de mercadorias e o uso cada
vez mais dissipador da maquinaria produtiva (MÉSZAROS, 1989, p. 38).
Deste modo, o consumo das mercadorias se torna mais acelerado para auto combater
as mazelas intrínsecas de uma crise da superprodução sempre eminente, consequentemente se

1 “
As emissões antropogênicas de gases do efeito estufa (GEE) desde a era pré-industrial tem causado grande aumento
de concentração atmosférica de dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O). Entre 1750 e 2011, o
acúmulo de emissão antropogênica de CO2 foi de 2040 ± 310 GtCO2. Por volta de 40% dessas emissões permaneceram
na atmosfera (880 ± 35 GtCO2); o resto foi removido da atmosfera e armazenado na superfície (em plantas e solos) e nos
oceanos. Os oceanos absorveram entorno de 30% da emissão antropogênica de CO2, causando a acidificação oceânica.
Da emissão antropogênica de CO2 realizada entre 1750 e 2011, quase a metade se deu nos últimos quarenta anos (alta
confiabilidade) (tradução livre do presente autor).

174
reinventando por meio da ‘obsolescência planejada’ a fim de absorver esta capacidade acumulada
de produção com o encurtamento da vida útil das mercadorias. Portanto, estas devem estar postas de
tal modo que a capacidade de compra – e aqui inclui-se também a capacidade de consumo da classe
trabalhadora – possam absorvê-las resultando em ampliações de mercados consumidores, utilização
exacerbada de matérias primas e, consequentemente, numa extração de elementos naturais sem
considerar a finitudes dos mesmos (MÉSZAROS, 1989).

1 O PANORAMA GERAL DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

Com mais uma crise estrutural e o consequente desmantelamento do Estado de Bem-Estar


Social europeu na década de 1970, o capitalismo desenvolveu uma nova organização dos meios
de produção, mais conhecida como Toyotismo. No ponto de vista geopolítico, esta reestruturação
produtiva se deu de maneira global na qual o capital impõe uma nova divisão sócio técnica do
trabalho, numa espécie de roupagem contemporânea das vantagens comparativas tão defendidas
pelos autores do liberalismo clássico. Sendo assim, as nações se definem como especialistas em
fragmentos da produção de mercadorias ainda controlada pelos países do capitalismo central: EUA,
Europa Ocidental e Japão. Como ilustração, neste caso, o Brasil fica, majoritariamente, a cargo da
produção de commodities, enquanto a China detém grande parte da produção industrial dos bens de
consumo (RIGOTO, 2008).
Este processo se deu graças ao apoio político do Estado e em muitos países o mesmo é
utilizado como máquina de convencimento ideológico à classe trabalhadora para intensificar a
subordinação do trabalho ao capital. Desta transição de Estado de Bem-Estar Social para um Estado
que direciona seus recursos ao campo social de forma mínima e com marcante presença na esfera
econômica como facilitador para o acúmulo de riqueza, o neoliberalismo aparece como a mais nova
ideologia a ser propaga para então se afirmar na realidade objetiva por meio da reorganização dos
modos de produção. O neoliberalismo tenta justificar a intensificação da exploração da força de
trabalho se estendendo a terceirizações e tomada do lucro de outras empresas ao “[...] apropriar-
se do excedente criado coletivamente no seio de um conjunto de empresas trabalhando em rede”
(ALVES, 1999 p. 37).
O mundo agora é uma aldeia global, as vantagens comparativas que antes serviam as
economias nacionais para a troca de mercadorias, hoje são especificidades impostas ao se aproveitar
das fontes naturais e força de trabalho que cada país detém. Deste modo, as empresas multinacionais
criam suas tecnologias nos países da tríade e exploram os trabalhadores e o ambiente natural dos
países fora do capitalismo central. Os ricos se mantém pela exportação de tecnologia científica e os
subdesenvolvidos se transformaram nos novos industrializados. (ALVES, 1999). Consequentemente,
as estruturas sociais historicamente criadas nas nações também são submetidas a “mundialização do
capital”, como intitulado por Chesnais (1996), e se tornam alvos constantes das privatizações por
parte deste poder econômico que almeja a ampliação dos lucros em âmbito planetário e de maneira
desimpedida de qualquer tarifa alfandegária. Para tais ações, a telemática tornou-se o canal de fluxo
de capital que pode entrar e sair das fronteiras nacionais sem que haja locomoções materiais.

2 O SURGIMENTO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Paralelamente a este cenário, que como exposto se dá início nos anos de 1970, surge
também uma suposta preocupação do capitalismo acerca dos impactos que o mesmo é capaz de
causar ao ambiente natural. As discussões ambientais em níveis internacionais tiveram início em
1968, quando “[...] foi realizado em Roma uma reunião de cientistas dos países industrializados para
se discutir o consumo e as reservas de recursos naturais não-renováveis e o crescimento da população
mundial até o século XXI” (REIGOTA, 2009, p.23). O denominado Clube de Roma com o seu livro
resultante “Limites do crescimento” concluiu que o considerado elevado número de habitantes no
Planeta Terra seria a causa da questão ambiental. Esta primeira conferência sofreu incisivas críticas,
principalmente dos latino-americanos, uma vez que intrinsecamente propunha a continuidade da

175
estratificação da produção industrial com a conservação do consumo nos países desenvolvidos e do
arrocho salarial aos países subdesenvolvidos majoritariamente localizados na América Latina, África
e Sudeste Asiático, bem como, pela tentativa de retirar as causas da degradação ambiental da esfera da
produção industrial. No entanto, obteve méritos ao alocar a questão ambiental num debate de escala
planetária (REIGOTA, 2009).
Ainda na década de 1970, mais precisamente em 1972, a Organização das Nações Unidas
realizou em Estocolmo, na Suécia, a Primeira Conferência Mundial de Meio Ambiente Humano
com o foco na poluição industrial e, neste mesmo encontro, a resolução que “[...] se deve educar
o cidadão e a cidadã para a solução dos problemas ambientais” (REIGOTA, 2009, p. 24), pode ser
considerada o marco zero para a educação ambiental. Desde então, diversas conferências ambientais
vêm sendo realizadas com intuito de problematizar a questão ambiental na tentativa de sistematizar
suas origens e pontuar soluções efetivas às mesmas. Neste quadro, “[...] a Unesco foi o organismo da
ONU responsável pela divulgação dessa nova perspectiva educativa, e desde os anos 1970 realizou
vários seminários regionais em todos os continentes, procurando estabelecer os seus fundamentos”
(REIGOTA, 2009, p.27).
Já na década de 1980, aconteceram grandes acidentes ecológicos da contemporaneidade
com destaque para o caso da cidade de Cubatão, no interior do Estado de São Paulo, que devido a
intensa atividade industrial química foram registrados 18 casos de crianças nascidas com anencefalia,
enquanto que na cidade de Bophal, na Índia, um acidente de uma multinacional química que operava
sem medidas de segurança exigidas em seu pais de origem ocasionou na morte de milhões de pessoas.
Bem como, ocorreu o fatídico acidente da usina nuclear de Chernobyl envolvendo mais de 500 mil
trabalhadores incluindo evacuações de cidades inteiras, 31 mortes diretas e consequências irreversíveis
a gerações sucessoras. Ao mesmo tempo, o desmatamento da Amazônia atingiu índices alarmantes
sendo assunto de ressonância global. Vale ressaltar que os casos nacionais se sucederam na época da
Ditadura Militar, mais precisamente como partes do “milagre econômico”, justificados pela premissa
governista de que “[...] a poluição é o preço que se paga pelo progresso” (REIGOTA, 2009).
Mas, mesmo com estas conferências de escala planetária direcionadas à discussão acerca da
questão ambiental, bem como, as catástrofes resultantes da industrialização irresponsável, os relatórios
oficiais já indicavam o caráter que os países do capitalismo central dariam para as conclusões dos
debates com a reafirmação da globalização imposta. Como elucidação deste pressuposto, cita-se aqui
o princípio 9 do relatório da Conferência de Estocolmo de 1972:
As deficiências do meio ambiente originárias das condições de subdesenvolvimento
e os desastres naturais colocam graves problemas. A melhor maneira de saná-los está no
desenvolvimento acelerado, mediante a transferência de quantidades consideráveis de
assistência financeira e tecnológica que complementem os esforços internos dos países em
desenvolvimento e a ajuda oportuna que possam requerer (ONU, 1972).
O interesse de sustentar o contínuo desenvolvimento numa espécie de “ecologização do
capital” e de se obter a aceitação da reestruturação produtiva por parte das comunidades sociais,
políticas e científicas engajadas na questão ambiental, deu origem ao termo “desenvolvimento
sustentável” que veio à luz somente em 1987. Este é uma criação da Comissão Mundial sobre o
Meio Ambiente e Desenvolvimento cuja líder, Gro Harlem Brundtland, então a primeira-ministra da
Noruega, trouxe à luz no “Relatório de Brundtland”.
[...] o desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no qual a exploração
dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a
mudança institucional se harmoniza e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender
as necessidade e aspirações humanas (BRUNDTLAND apud GADOTTI, 2012, p. 43).
Esses direcionamentos do documento que coloca o “desenvolvimento sustentável” em
voga e, principalmente, na centralidade das ações a serem tomadas pelos distintos Estados, empresas
e sociedade civil, não demonstra as bases da ‘produção destrutiva’ – força motriz da questão
ambiental – que se encontra no metabolismo do sistema de produção e consumo capitalista e que é
contemporaneamente intensificada pela reestruturação produtiva. A comprovação desta premissa se

176
segue no fato de que a concepção da “Agenda 21”, que fora outro conjunto de propostas para combater
a degradação ambiental concebida na Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e
Meio Ambiente, a Rio-92, também não foi suficiente para barrar a degradação ambiental. Adiciona-
se a isto, a ausência dos Estados Unidos no comprometimento com o “Protocolo de Quioto” que
demandava a redução de gases poluentes advindos da industrialização.
[...] constatou-se o fracasso das medidas tomadas dez anos antes. O mundo tomava
conhecimento de que a maior consciência ecológica que se seguiu à Rio-92 não fora suficiente
para evitar o desastre confirmado logo a seguir (2006 e 2007) pelo Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climática (IPCC) (GADOTTI, 2012, p. 44).
Sendo assim, expõe-se que a intenção do desenvolvimento sustentável não é de fato apontar a
crítica à questão ambiental e induzir questionamentos acerca da organização dos modos de produção,
e sim reafirmar novas possiblidades de acumulação de capital concentradas em redes empresarias
capazes de financeirizar não somente as relações de trabalho, mas, também, o ambiente natural. Até
mesmo a termologia utilizada por esta via ideológica evidencia sua visão economicista da natureza
ao passo que os elementos naturais não são considerados parte de um sistema vivo, mas somente
recursos ambientais que devem ser utilizados de maneira que as próximas gerações também possam
utilizá-los. A visão ‘recursista’ e ‘economicista’ da natureza é intrínseca a esta corrente ambientalista.

3 AS VERTENTES DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

É evidente que os debates sobre a questão ambiental foram institucionalizadas em grande


parte pela Organização da Nações Unidas (ONU) e é dentro dos limites políticos desta mesma
instituição que é concebido o termo ‘Educação Ambiental’. Ao passo que a estrutura da teoria crítica
cita a emancipação política da classe trabalhadora como uma premissa para o alcance da emancipação
humana é necessário, portanto, considerar as diversas concepções de ambiente dos diferentes sujeitos e
momentos históricos para finalmente obter qual a percepção de educação ambiental a ser desenvolvida.
De fato, as diversas concepções sobre os objetivos e métodos da educação no âmbito ambiental
tem sido elaborada por interesses sociais distintos. A Educação Ambiental para Desenvolvimento
Sustentável (EAPDS) tem sido a mais utilizada por ter sido a mais defendida pelas organizações já
instauradas na estrutura do sistema capitalista e possuírem maior poder econômico e político.
Introdutoriamente, no artigo intitulado “Educação ambiental e desenvolvimento sustentável:
uma análise complexa”, a autora Lucié Sauvé (1997), expõe diferentes concepções de ambiente na
atual sociabilidade, são estes:
• Ambiente como Natureza para ser apreciado, respeitado e preservado: esta visão de
ambiente nos remete a apreciação da natureza pelo homem, como algo a ser contemplado;
• Ambiente como recurso para ser gerenciado: concepção de que os elementos naturais como
as diferentes espécies animais, vegetais e minerais são recursos a serem utilizados para a reprodução
da sociabilidade, porém, atentando-se a suas finitudes. É deste que se tem origem a ideologia do
Desenvolvimento Sustentável;
• Ambiente como um problema a ser resolvido: com enfoque pragmático, esta vertente traz a
necessidade de criar planos, programas e projetos para combater a degradação com foco na poluição
e não nos elementos ainda preservados.
• Ambiente como um lugar para se viver, para conhecer e apender sobre, para planejar para,
para cuidar de: nada mais é que o ambiente que envolve os aspectos culturais do cotidiano, bem como,
os espaços físicos e urbanos que são frequentados e assim adquire um aspecto de familiarização e não
somente como um espaço de natureza selvagem;
• Ambiente como biosfera, onde devemos viver juntos, e nos preocuparmos com o futuro.
A percepção de biosfera traz consigo uma categoria planetária, na qual tudo que é vivo sofre os
rebatimentos da degradação ambiental desde os vegetais, minerais e animais não humanos, como os
próprios seres humanos e suas diferentes culturas. Esta clama pela solidariedade humana e estimula a
participação dos seres humanos sobre a questão ambiental em escala mundial.

177
• Ambiente como projeto comunitário, onde somos envolvidos. Como a própria nomenclatura
demonstra, este envolve indivíduos num ambiente comunitário, o qual convida a todos a encontrar
caminha para a evolução comunitária.
Somente a partir do esclarecimento de diversos modos de se entender o ambiente que nos cerca
é possível definir o verdadeiro significado das correntes ambientalistas, em especial, o desenvolvimento
sustentável. Mais ainda, é crucial compreender a maneira na qual a educação ambiental direcionará as
reflexões acerca do ambiente e quais ideias estarão sendo defendidas ao final do processo educacional.
Nas palavras de Bob Jickling “É importante entender que conceitos como educação e educação
ambiental são abstrações e ideias que trazem consigo diversas percepções” (JICKLING, 1992).
A partir destas distinções entre concepções de ambientes e comparações de relatórios
publicados pelas conferências ONU, se obtém a conclusão que o desenvolvimento sustentável
considera o ambiente como um recurso para ser gerenciado, ao passo que defende o desenvolvimento
econômico como caminho para o enfrentamento da questão ambiental.
Infelizmente, as propostas da EA são restritas em uma dessas concepções, limitando o principal
objetivo da educação: o ambiente é percebido de uma forma global e consequentemente, a
rede de interrelações pessoa-sociedade-natureza (que é o centro da EA) é percebida somente
parcialmente. Por exemplo, certas teorias e práticas relativa à educação para o DS adotam
uma visão limitada do ambiente, essencialmente como um recurso, assim como a visão de
que o ambiente é um grande armazém genético que precisa ser gerenciado ou que precisa ser
assegurado para os benefícios a longo prazo. Nesse contexto, as intervenções focalizando a
atenção para a campanha dos 3 Rs, prescrevendo o comportamento cívico individual para a
reciclagem, podem ser pertinentes num determinado contexto, mas são limitadas se forem
consideradas na perspectiva de um processo holístico (SAUVÉ, 1997).
Em paralelo, Isabel Cristina de Moura Carvalho divide as ações da educação ambiental em
dois segmentos distintos: a educação ambiental comportamental e a educação ambiental popular.
Notoriamente, ambas vertentes da educação ambiental proposta por esta autora consideram o ambiente
como instâncias distintas pois, possuem distintas finalidades. No primeiro “[...] é valorizado o papel
da educação como agente difusor dos conhecimentos sobre o meio ambiente e indutor da mudança
dos hábitos e comportamentos considerados predatórios” (CARVALHO, 2012, p.46). Já o segundo
considera “[...] o processo educativo como um ato político no sentido amplo é, como prática social de
formação de cidadania” (CARVALHO, 2012, p.46), e ainda destaca que a importância de uma “[...]
formação de sujeitos políticos, capazes de agir criticamente na sociedade” (CARVALHO, 2012, p. 46).
Ao observar os distintos modos de considerar o ambiente que nos cerca e os métodos
destes dois modos de educação ambiental, fica evidente qual a apropriação que a teoria crítica deve
possuir da educação ambiental e, principalmente, qual seu posicionamento perante a educação para o
desenvolvimento sustentável. Tomar o ambiente como mero espaço para o gerenciamento de recursos
levanta dúvidas para quais finalidades estes mesmos recursos estarão disponíveis e, principalmente
sobre quais sujeitos os controlam. Se a educação ambiental possuir um aspecto popular, ou seja, ser
direcionado para e pela classe trabalhadora amplia-se a possiblidade de preservação, conservação e
socialização do acesso aos elementos naturais já que o meio ambiente quando colocado a favor do
capital intensificado com a reestruturação produtiva sofre degradações intensas chegando a provocar
colapsos de ecossistemas inteiros como tem ocorrido atualmente.
O embate para o direcionamento da educação ambiental tem refrações não só apenas para
uma conscientização das distintas populações, mas definitivamente pode influenciar as concepções
sobre o mundo que nos cerca oferecendo possibilidades de reflexões e ações sobre a estrutura societária
vigente. Neste sentido, a partir da materialidade dos diversos ambientes é possível defender não apenas
causas ambientais, mas também as condições de trabalho e a saúde da classe trabalhadora. Na edição
de maio de 2015 da revista ‘Our Planet’ publicada pela ONU, o pesquisador Samuel S. Myers em
seu artigo intitulado “Clear and Present Danger” (Perigos claros e presentes) aponta que a redução
de insetos polinizadores tem grande contribuição na baixa qualidade nutricional dos alimentos que
pode resultar em até um milhão de mortes anualmente. É importante ressaltar que esta pesquisa fora
executada em países fora do capitalismo central como Moçambique, Uganda, Bangladesh e Zâmbia.

178
Outro estudo de extrema importância realizado por este mesmo pesquisador da Universidade
de Harvard é a comparação de 41 cultivos de arroz, trigo, milho, soja, sorgo e ervilhas plantados em
espaços aberto em sete localizações diferentes do planeta em três continentes no período de dez anos.
Pela comparação dos alimentos cultivados o resultado mostrou que aqueles alimentos cultivados
com a indução de concentração de CO2 teve grande redução de proteínas, ferro e zinco. Ao mesmo
tempo, Myers aponta que por volta de 2 bilhões de pessoas sofrem de deficiências de zinco e ferro
gerando um balanço de 63 milhões de morte anualmente, e que se estima uma grande alta na emissão
de dióxido de carbono nos próximos 40 anos (MYERS, 2015, p. 36)
Neste mesmo relatório oficial da ONU, o pesquisador Achim Steiner aponta dados relevantes
para a discussão acerca da questão ambiental. Este cita, por exemplo, que o relatório de março
de 2014 da Organização Mundial da Saúde aponta que a morte de 7 milhões de pessoas em 2012
foram causada pela exposição a poluição do ar tanto em condições internas quanto externas que por
sua vez, possui raízes na intensa emissão de gases resultantes da queima de combustíveis fósseis.
Aliado a isso, a elevação da temperatura média do Planeta Terra, causada pela também emissão de
gases poluentes, afetará drasticamente a produção agrícola em todo o globo e, no caso específico do
continente africano, esta redução alcançará níveis de 20% até 2050 enquanto estima-se sua população
poderá dobrar de quantidade.

4 O POSICIONAMENTO DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO

Mesmo que originalmente o Serviço Social seja uma profissão voltada à atuação sobre a
questão social, esta pode, principalmente por conta de seu caráter crítico, contribuir com a desvinculação
da questão ambiental da esfera economicista e comportamentalista do desenvolvimento sustentável.
É evidente a liderança da iniciativa privada na criação de programas tecnicistas com o controle quase
que total sobre as Organizações Não Governamentais (ONGs) e o terceiro setor ao estipular um
direcionamento da educação ambiental e que, por fim, formatam a visão e relacionamento dos sujeitos
históricos e seus distintos entornos ambientais.
Historicamente, sobretudo no contexto brasileiro, esta profissão foi concebida como atuação
filantrópica executada pela Igreja e legitimada pelo próprio Estado no processo de intermediação
da replicação do capital por parte da burguesia nacional e do atendimento mínimo ao proletariado.
Posteriormente, ao se fundar na teoria marxista, o Serviço Social passa a considerar que a movimento
histórico engloba a natureza e o mundo criado pelos homens. E somente ao se fazer história é que
o homem se produz como ser social essencialmente coletivo, modificador do ambiente e construtor
de si mesmo num intenso vir-a-ser do ser humano (IAMAMOTO, 2011). A partir da percepção do
homem como ser social modificador da natureza e de sua realidade objetiva, pode-se compreender
que a questão ambiental também se insere como consequência da atual opção política hegemônica, na
qual se encontra estruturada numa produção destruidora e socialmente estratificada. “O proletariado
surge, pela posição que ocupa no processo de produção, como a classe que, ao liberta-se, liberta a
humanidade” (IAMAMOTO, 2011, p.117).
Assim, o Serviço Social porta-se como uma profissão que instrumentaliza a classe
trabalhadora em busca de sua emancipação política num cotidiano profissional também inserido no
embate das classes sociais e, consequentemente, decidida por revelar a sociabilidade criada pelo
capital através do referencial teórico crítico eminentemente marxista e marxiano. Numa perspectiva
de totalidade revela-se, também, que pela atual criação de políticas públicas focalizadas e a expansão
da precarização do trabalho dos assistentes sociais, o Estado se coloca como defensor da acumulação
do capital e legitima o avanço do desenvolvimento sustentável com poucas promoções da educação
ambiental popular. No entanto, evidencia-se que mesmo que os profissionais do Serviço Social
queiram atuar de forma propositiva, estes devem corresponder com os anseios da política na qual
estão inseridos e da hierarquia que impõe determinadas tarefas a serem executadas sob a ordem do
Estado nacional nos domínios do capital.
Mesmo com as dificuldades institucionais apresentadas, o posicionamento profissional dos
assistentes sociais deve corroborar com o direcionamento do projeto ético político da profissão se

179
pautando pela dimensão teórico metodológica que eminentemente exige a revelação da realidade
por meio da perspectiva crítica. A materialidade da questão ambiental, portanto, deve ser colocada
em análise para se elucidar a finalidade de uma atuação ambientalista ressaltando que, neste caso, a
educação ambiental se apresenta como uma possibilidade técnico operativa em sua face socioeducativa.
E, como exposto, o desenvolvimento sustentável nasce como uma premissa ideológica de um pseudo
cuidado com o meio ambiente por parte da reestruturação produtiva que por sua vez produz grandes
impactos negativos na qualidade de vida dos trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como exposto neste artigo, intenciona-se traçar um paralelo entre a reestruturação produtiva,
o nascimento do desenvolvimento sustentável, o rebatimento das ações antropogênicas à saúde dos
trabalhadores, o desenvolvimento da educação ambiental e sua utilização por parte do Serviço Social
brasileiro. Obviamente, não se pretende esgotar o assunto e sim oferecer uma amarração fatos que se
apresentam como coincidências históricas e temporais, mas, factualmente tem origens concomitantes
e resultantes cumplices tanto sobre a questão social quanto sobre a questão ambiental. O neoliberalismo
enquanto esfera ideológica da reestruturação produtiva é a frente responsável por convencer a classe
trabalhadora que a mundialização do capital, as privatizações e o desmantelamento dos direitos sociais
são caminhos a serem seguidos, enquanto o desenvolvimento sustentável é o aspecto ideológico para
convencer esta mesma classe que a redução do desperdício no processo produtivo e a criação do
consumo consciente é suficiente para combater a degradação ambiental (SILVA, 2010).

REFERÊNCIAS

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globalização. Londrina: Práxis, 1999.
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do
trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.
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ed. São Paulo, 2012.
GADOTTI, M. A Carta da Terra na educação. São Paulo: Ed. Instituto Paulo Freire, 2010.
IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no serviço social. 11. ed. São
Paulo: Cortez, 2011.
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to the fifth assessment report of the intergovernmental panel on climate change. Geneva,
Switzerland: IPCC, 2014.
JICKLING, B. Why I don’t want my children to be educated for sustainable development. Journal
of Environmental Education, v. 23, n. 24, p. 1-4, 1992. Disponível em: < http://www.jickling.ca/
images/Why%20I%20Don%27t,%20web.pdf> Acesso em: 18 maio 2015.
MARX, K. Manuscritos econômicos-filosóficos. Tradução, apresentação e notas: Jesus Ranieri São
Paulo: Boitempo, 2010.
MÉSZÁROS, I. Produção destrutiva e Estado capitalista. São Paulo: Ensaio, 1989.
MYERS, S. S. Clear and present danger. Our Planet, maio, 2015. Disponível em <http://web.unep.
org/ourplanet/Clear-and-Present-Danger>. Acesso em: 15 jun. 2015.

180
ONU. Organização das Nações Unidas. Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente
Humano. 1972. Disponível em: <http://www.silex.com.br/leis/normas/estocolmo.htm>
Acesso em: 16 nov. 2015.
REIGOTA, M. O que é educação ambiental. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2009. (Coleção
Primeiros Passos; v. 292).
RIGOTTO, R. M. Desenvolvimento, ambiente e saúde: implicações da (des)localização industrial.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008.
SAUVÉ, L. Educação ambiental e desenvolvimento sustentável: uma análise complexa. Revista de
Educação Pública, Cuiabá, v. 6, n. 10, p. 72-103, jul./dez., 1997.
SILVA, M. G. e. Questão ambiental e desenvolvimento sustentável: um desafio ético-político ao
serviço social. São Paulo: Cortez, 2010.

181
AS EXIGÊNCIAS IMPOSTAS PELA GLOBALIZAÇÃO DA
ECONOMIA ÀS REPRESENTAÇÕES
Benedito Romualdo de Miranda*
RESUMO: Este artigo tem como objetivo desenvolver uma contextualização histórica dos fatos ocorridos quando da insurreição dos
proletários russos e suas contribuições para a formação dos sindicatos no Brasil. Por serem os sindicatos os representantes legítimos
dos interesses da classe trabalhadora com os empregadores. Metodologia: a pesquisa do tipo exploratória foi desenvolvida com leitura
bibliográfica de obras com temas específicos e atuais, buscando a melhor compreensão do processo em curso. Resultados: a partir deste
estudo é possível apreender como os proletários reagiram face às exigências impostas às representações. Conclusão: as relações de
trabalho precarizadas já estão consolidadas dentro do contexto do mundo globalizado.
Palavras-chave: Trabalho, Globalização, Representação, Sindicatos
ABSTRACT: These items have as Objective: To develop a historical context of the events when the uprising of the Russian proletariat
and its contributions to the formation of trade unions in Brazil. Because they are the legitimate representatives of trade unions of
the interests of the working class with employers seeking better conditions and working relationship between capital and labor
Methodology: The research of the exploratory type was developed with reading literature works with specific and current issues, seeking
the best understanding of the ongoing process. Results: grasp how the workers reacted meet the demands imposed on representations,
especially the unions legally constituted as representatives face the bosses. Conclusion: The working relationship practices and capital
precarious are already established within the context of a globalized world.
Keywords: Work, Globalization, Representation, Unions

INTRODUÇÃO

As manifestações de 2013, por todo o território brasileiro, convidam-nos a uma reflexão


sobre qual é o papel que as entidades representativas desempenham hoje. As pessoas de boa fé,
passivamente, saíram às ruas solicitando a redução das passagens de ônibus urbanos. Junto com essa
foram sendo inseridas outras tantas reivindicações. Como referência, por serem elas de primeira
necessidade, a saúde pública e a melhoria do sistema de Educação também foram agregadas. Um
aspecto a ser mencionado neste movimento é que as pessoas que participavam deixaram claro que não
tinham representantes nem estavam associadas a partidos políticos, e que não aceitariam bandeiras
representativas. Prosseguiram assim as manifestações com milhares de pessoas que, a cada dia, se
associavam voluntariamente ou pelo chamamento pelas vias das redes sociais. Portanto, um ponto a
ser ressaltado das manifestações é que se fundava em não ter representação, expresso pelos milhões
de brasileiros, exercendo a sua cidadania pelas ruas do país.
O tema do artigo é “As Contribuições produzidas pelo fato histórico da insurreição proletária
Russa para a formação dos sindicatos no Brasil”. Trata-se de um tema atual por envolver as classes
substanciais, a dos operários, expresso pela representação sindical, e a dos patrões, que são os
que detêm os recursos para desenvolver o processo de produção. No desenvolvimento do artigo,
teve-se como objetivo somar às manifestações de 2011, como também fazer um recorte histórico dos
sindicatos, representação e do Estado constituído à expansão das relações do capitalismo como sistema
de produção, de início do século XX ao início do século XXI, buscando compreender este movimento
que envolve as relações do mundo do trabalho. Por entender que é no processo de interação dos homens
com os recursos naturais gerados pela natureza que, necessita da ação humana para poder transformar
em coisas úteis a serem utilizadas pelos homens em suprimentos básicos a sua sobrevivência como
humano. Possibilitar-nos à apreenderem como são as relações dos homens entre si. Vale ressaltar que
o modo de interação do homem com a natureza, para extração dos recursos naturais por ela gerada, é
secular, segundo Marx e Engels (2001), já é uma relação determinada de viver.

1 AS CONTRIBUIÇÕES HISTÓRIA DA INSURREIÇÃO DOS PROLETÁRIOS RUSSOS


PARA FORMAÇÃO DO SINDICATO BRASILEIRO

No fim do século XIX surgiram as primeiras bases de classes operárias no Brasil, com as
primeiras organizações em São Paulo e Rio de Janeiro. Com elas surgiram também as primeiras
*
Membro do Grupo de Estudo Teoria Marxista e Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Franca). Mestre em Serviço Social pelo programa de
Pós-graduação do Departamento de Serviço Social da FCHS-Unesp-Franca. E-mail: sinhomira@yahoo.com.br.

183
lutas operárias no Brasil, como os tipógrafos no Rio de Janeiro, contra as injustiças e por aumentos
salariais. Com o sucesso obtido na reivindicação, logo surgiram outras manifestações. Em 1892, foi
realizado o Primeiro Congresso Socialista Brasileiro tendo como objetivo a criação de um partido
político, para poder melhor organizar os trabalhadores com orientações políticas, buscando conquistar
direitos fundamentais para o trabalhador. Assim, em todos os congressos sindicais e operários, as suas
manifestações se fundavam economicamente na melhoria salarial e na redução da jornada de trabalho.
Em 1906, no Congresso Operário Brasileiro contando com os mais dinâmicos representantes do eixo
São Paulo e Rio de Janeiro foram lançadas as bases para uma organização de âmbito nacional, a
Confederação Operária Brasileira voltada para as reivindicações básicas de solidariedade tanto no
âmbito nacional como internacional. Composta pelas duas tendências existentes de maior expressão
no movimento operário: os anarquistas e o socialismo reformista.
O anarco-sindicalista foi à representação com maior número de pessoas no momento. Por ter
o maior número de representantes, foi mantida a tendência ideológica dos anarquistas que não davam
importância à luta política e combatiam a constituição de um partido político; assim, a ênfase dada
era para a luta dentro da fábrica através da ação direta, e, via nas organizações sindicais a base para
a formação da sociedade anarquista. A outra tendência, socialismo reformista, buscava a mudança
gradativa da sociedade capitalista e a organização partidária dos trabalhadores em nível do Estado,
sobre as bases parlamentares.
A manifestação revolucionária ocorrida na Rússia para a massa trabalhadora brasileira
refletiu, sobretudo, na importância da sua organização política. A partir da consciência foi criado o
primeiro sindicato, o dos tipógrafos em janeiro de 1905, sendo 19 de junho do corrente ano o seu
primeiro dia de existência conforme pautado pelo estatuto e, assim ao lado de sindicato público
“legal” surgiram vários outros legais e similares. Luxemburgo (1979) descreveu em “Greve de Massa,
Partidos e Sindicatos”, um acontecimento histórico que expressou a importância da consciência de
classe, a da união dos relojoeiros, que só conseguiram a sua primeira reunião secreta após romper
obstáculos com a resistência policial e a Câmara do Comércio que representava os patrões, outra ação
que expressa à consciência de classe foi a realização de reunião secreta do Sindicato dos Alfaiates em
plena floresta com centenas de alfaiates.
A importância desse aprendizado foi colhida na greve geral de outubro na Rússia, a segunda
e importante greve manifestou se como era de se esperar. Manifestou-se diferentemente da primeira
devido ao alto grau de consciência reivindicatória da classe proletária russa, conquistando assim o
regulamento de trabalho de cinco dias por semana com oito horas diárias para todas as categorias. O
patronato, por sua vez, preparou – se para a resposta, usando como recurso as ameaças de demissão
em massa e as de fechar as fábricas, o que ocorreu com a dispensa de 40.00 a 45.000 trabalhadores
por um mês. O proletariado, na Rússia, atento à estratégia usada pelos patrões e sabendo muito bem
das consequências que causaria aos patrões a paralisação das atividades produtivas, proporcionando
no final do mês uma menor produção e um menor lucro, mas esse nível de consciência e organização
não estende a todo proletariado da Rússia, é o caso da elite metalúrgica de São Petersburgo, a qual
intensificou a luta para manutenção das oito horas de trabalho por dia. Prosseguiu empolgada pela
liberdade política conquistada, mas de curta duração. Com a tomada das manifestações e reuniões,
rapidamente entrou em cena os massacres, desce bruscamente a cortina de ferro, impondo ares
sombrios do proletariado. Assim, as manifestações de greve geral, como protesto pela ação repressiva
e sangrenta de São Petersburgo, contribuíram para desencadear a terceira greve geral de massa de
dezembro, estendendo a todo o Império, como uma ação política.
Para Rosa Luxemburgo (1979), a Revolução Russa ensina-nos assim uma coisa: que a greve
de massa é a busca da cidadania e não é “fabricado” artificialmente nem “decidido” ou “definida” no
éter imaterial e abstrato, é tão-somente um fenômeno histórico, resultante, em certo momento, de uma
situação social a partir de uma necessidade histórica.
A greve como um dos meios de emancipação da classe operária não pode limitar-se a única
forma de luta. Os sindicatos como organizações das classes operárias contra a exploração do capital
não podem se limitar à reivindicação econômica, porque se trata de uma luta indireta e não de uma
luta diretamente contra o sistema capitalista, que gera o sistema de salário; é uma luta indireta porque

184
luta contra os efeitos e não contra as causas. Para Lênin (1961) a luta econômica deve ser uma das
ações do proletariado, mas não deve se limitar só nesse campo econômico deve alcançar os princípios
do modo de produção capitalista e sobre os fundamentos sobre os quais assentam as ações do governo
autocrático e policial. A associação da luta econômica e da política possibilitará a formulação de um
projeto político, uma ação contra o antagonismo entre a classe operária e o patrão, buscando sua
emancipação proletária sobre o domínio do capital.
Por sua vez, o governo compreende muito bem que as greves abrem os olhos dos operários,
razão por que a tanto temem e se esforça a todo custo para sufocá-las quando antes possível.
[...] as greves ensinam os operários a unirem-se, as greves fazem-nos ver que somente unidos
podem agüentar a luta contra os capitalistas, as greves ensinam os operários a pensarem na
luta de toda a classe operária contra toda a classe patronal e contra o governo autocrata e
policial (LÊNIN, 1961, p. 45).
Pelo fato de as greves emanarem da natureza do sistema capitalista ela é também uma
necessidade por ele gerada. As greves são interrompem o processo de produção e, por isso, o
capitalista não tem como pagar os salários e também adquirir novas matérias-primas para serem
utilizadas na produção. Ela deve não só atrofiar o processo de produção, como deve ser também
organizada de forma a gerar o desconforto econômico aos patrões. Para poderem expressar na prática
que quando os empregados se unem são mais fortes que os patrões. Com a paralisação, os patrões não
têm empregados para produzir a riqueza, como se diz também que os empregados não têm o recurso
necessário para uma paralisação duradoura, portanto é necessária que a organização desenvolva uma
boa preparação para poder enfrentar esta cruel realidade, se opondo contra a exploração proletária.
Para que os operários não desenvolvam eternamente as suas habilidades produtivas para outro em
situação de extrema exploração, segundo Lênin (1961) “[...] submisso e silencioso.” As manifestações
devem desenvolver a consciência e clarificar na mente dos proletariados as relações capitalistas, que
não se mostram como verdadeiramente são à primeira vista, portanto, as greves ajudam a desmistificar
o empregador que na relação imediata com o trabalhador pode parecer como benfeitor, parafraseando
Lênin (1961), “[...] a sua exploração com um falaz barato.” A greve deve eliminar de imediato a
relação capitalista manifestada na relação entre empregador e trabalhador.
A influência da vitória da Revolução Socialista na Rússia sobre o operário brasileiro fez
com que um grupo de militante anarco-sindicalista rompesse com a sua concepção ideológica, e, em
1922, fundasse o Partido Comunista Brasileiro, dando uma nova roupagem ao movimento operário
brasileiro, que se organizava politicamente, com uma ideologia predominante do anarco-sindicalista.
Pouco se viu nos primeiros anos de sua fundação, as atenções estavam voltadas para a composição
do quadro do partido e como divulgar o marxismo-lenilismo, visando a uma linha política para a
compreensão e orientação da revolução brasileira. Mesmo com a condição de ilegalidade imposta,
suas ações não foram interrompidas. Além da publicação da Revista do Movimento Comunista,
foi publicado no Brasil o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels (ANTUNES, 1980).
Assim, o movimento operário politicamente foi se estruturando, mesmo como a predominância do
anarco-sindicalista. Com o Partido houve avanço significativo, a contribuição político partidária, que
possibilitou a criação da Federação Regional, em 1929. Com a participação de vários representantes
de sindicatos de vários Estados, realizou-se o assim, o Congresso Sindical Nacional, originando a
Confederação Geral dos Trabalhadores, de âmbito nacional a todos os sindicatos com influência
comunista. Em resposta, o Estado impõe a sua ação sobre os sindicatos.
Em 1930, no primeiro governo de Getúlio Vargas, deu-se início à transição de um sistema
econômico agrário exportador para o início da economia industrializada, com tendência puramente
reformista conciliava os interesses agrários com os urbanos, mas sem a participação dos trabalhadores.
Assim, o sindicalismo se viu sobre o controle do Estado, tal como é exemplo a criação do Ministério
do Trabalho, que elaborou uma política sindical em que as ações dos sindicatos fossem dentro dos
limites de conciliação do capital e trabalho. Criaram – se assim, os primeiros pilares do sindicalismo,
com o pronunciamento fisiológico do Primeiro Ministro Lindolfo Collor: Os sindicatos ou associações
de classe serão os para-choques das condições antagônicas, nos quais as relações de trabalho e

185
capital passam por uma análise do Estado, como também, os recursos econômicos dos sindicatos
(ANTUNES, 1980), expressando, assim o que Lênin chamou de reformismo pelo alto.
Como as ações do movimento anárquico sindicalista se limitavam ao econômico não exigindo
do Estado uma ação, não admitia a formação de um partido político nem a reconciliação com as
classes de setores da camada subalterna da sociedade, dificultando a luta operária e fortalecendo
a força repressiva do Estado, tendo ainda o sindicato reformista amarelo que por constituição não
questionava o Estado. As manifestações da Rússia com a greve geral contribuíram de forma a perceber
a sua importância (LUXEMBURGO, 1979), para consciência da classe proletária brasileira e para a
formação dos sindicatos no Brasil.
Lênin (1961) acreditava na sublevação das massas, mas que este espontaneísmo não fosse
além do reformismo, limitado ao universo burguês, mas que, sem a orientação política, não seria
suficiente para atingir as raízes do sistema e do Estado capitalista e que a luta econômica constituía
como um ponto de partida para a consciência operária, a consciência de uma classe operária
revolucionária. Com uma consciência socialista ou dentro da concepção socialista que a consciência
política de classe associada à luta econômica levaria consequentemente mais que uma luta imediata,
sendo necessário compreender também o poder político e o papel do Estado na garantia da dominação
capitalista. Lógico que esse processo é uma conquista que leva tempo e precisa ser trabalhada
gradativamente, pela classe operária, que o próprio momento de relação de produção capitalista,
obrigará a uma mudança na massa trabalhadora, ou seja, para tudo tem limite.
A ação econômica é uma ação contra o problema gerado pelo modo de produção do sistema
capitalista e não uma ação contra causa. Nesse contexto, é que se dá a escolha de autores como
Marx, Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo, Mészáros, Chesnais, e tantos outros. Para poder por meio
da leitura, orientar-se por uma análise crítica do momento atual, identificando as suas consequências
para o movimento representativo sindical como para o trabalhador em si.
O papel do partido político na emancipação do proletariado expressa à necessidade da
orientação partidária, que Marx, Engels, Lênin como também Luxemburgo eram favoráveis. A luta
econômica como forma de despertar a consciência da classe operária para transformar em luta política,
que além de reivindicar melhores condições, também se manifestam com o fim do sistema capitalista
de produção. Portando, são necessárias as greves que surgem por natureza do sistema capitalista.
É a luta da classe operária contra a estrutura da sociedade burguesa como instrumento de união e
consciência que os trabalhadores podem se posicionar frente a classe patronal e ao governo, segundo
Lênin (1961) “[...] governo autocrata e policial”, buscado a sua emancipação proletária.
As transformações produzidas pelo capital acabaram por afetar também os movimentos
sindicais que, historicamente, representaram os interesses dos trabalhadores solidificando o apoio
necessário nos momentos de negociação. Os mesmos perderam sua grande influência como
representantes legítimos dos interesses da classe trabalhadora e poucas são as categorias que
conseguem repor as perdas salariais anuais e até mesmo manter o vínculo empregatício. Contudo,
existe, por parte dos sindicatos, uma busca pela reação, por meio de estratégias voltadas a manter
a sua representatividade e potencial de negociação, demonstrando poder de reorganização e de
formular sob a ótica dos trabalhadores respostas às reivindicações imediatas do mundo do trabalho
(MEIRELES FILHO, 1998).
Outra estratégia que é a ação direta e repressiva quando da manifestação da massa trabalhadora
nas reivindicações de seus legítimos direitos de melhor remuneração, condições e relações do trabalho,
os empregadores tendo ao seu dispor o apoio do Estado e do exército militar impõem a ação repressiva
para manter a ordem. Como e também os meios de comunicação, o escrito e falado, como meios de
divulgação de massa, sendo um instrumento de comunicação e de utilidade pública, funciona dentro
dos princípios de concessão pública, que lhe é assegurada a autonomia, mas deve também atender
às comunicações de interesse público como as de cunho social, assegurando a soberania do Estado
e acomodação social da nação. Contudo, esses são capturados pela classe dominante e usados para a
reprodução da ordem do capital.
Por isso que a preocupação de Marx (1960) era a de traçar os caminhos nos quais os capitalistas
manejam suas ferramentas, na manipulação para atenuar as suas práticas de exploração e escravistas

186
da mão de obra produtiva. Portanto, a falta da leitura das obras de Marx pode passar despercebida
a esta grandiosa contribuição ao proletariado, que é o seu chamamento à forma manipulada e do
discurso ideológico e ambíguo, por se valer de termos vagos e ambíguo, mas cheios de conteúdos
ideológicos, para dificultar a compreensão das classes subalternas, e, ao mesmo tempo, produzirem
impactos nos meios sociais até mesmo à sua propagação. Principalmente por quem devia representar,
com manifestação contra essa forma nefasta, com já desenvolvera Marx (1996). Que é bem utilizado
pelo capitalista que vê na extração da mais-valia absoluta e relativa à acumulação do seu capital. Como
e também o Estado manifesta expresso pela percepção de uma maior arrecadação que é manifestada
em suas ações a favor do capital, e propagada pelos meios de comunicação tanto a escrita como a
falada, adulando o modo de produção do sistema capitalista. Portanto, uma relação que desenvolve
conteúdo de caráter dúplice, por não ter como agradar a um sem que o outro fique insatisfeito.
Essa associação é tão atrativa que arrasta para si infinitos movimentos e classes, até aqueles
ex-burgueses e, principalmente eles, com a esperança de voltar ao reino da acumulação, que, por
força da competitividade e por maior quantidade e qualidade com menor custo, foram alijados
da elite dominante e remetidos à classe dos proletários, os pequenos burgueses. Marx e Engels
(2001) fundamentaram as anormalidades ideológicas produzidas pelo sistema capitalista nas etapas
evolutivas até o seu domínio sobre o trabalho, alertando os trabalhadores para a necessidade da
mobilização da massa para o enfrentamento às manobras dos capitalistas, contra sua exploração.
Esta conscientização, este chamamento, está claramente em O manifesto do partido comunista 2000:
“proletariados uni-vos” (MARX; ENGELS, 2001, p. 109).
À custa do trabalhador, ela desenvolve a força produtiva social do trabalho, em proveito
exclusivo do capitalista. Cria condições novas para a dominação do capitalista sobre o
trabalho. Se, por um lado, aparece como um progresso histórico e como uma fase do
desenvolvimento econômico da sociedade, é, ao mesmo tempo, a por outro lado, um meio
civilizado e requintado de exploração (MARX, 1960, p. 61).
A cooperação é o modo fundamental da produção capitalista e o individualismo com ação de
sobrepor-se ao outro é utilizado como sendo uma estratégia do sistema de produção do capital, gerada
dentro das relações produtivas para extrair da cooperação o máximo que conseguir de produtividade,
tomou o trabalhador como sendo uma forma de produtivamente, e se manifesta como sendo uma das
múltiplas formas de ludibriar a força produtiva.
Esses processos de transformação se deram sempre pelo alto, ou seja, segundo um caminho
que Lênin (1974) chamava de via prussiana, essa tentativa da classe dominante de cooptar segmentos
das classes dominadas e subalternizar esses setores a uma política de caráter claramente burguesa.
Essa auto-organização da Sociedade no regime de mercado, como também novos modelos de
representação e aqueles a favor da ordem de acomodação, o sindicato de resultado, assim como
o proletariado votando contra os seus próprios interesses, vota, inclusive, a favor daqueles que o
domina. Bem definido por Milton Santos. Onde a manipulação e a confusão do imaginário social são
elementos essenciais à livre expansão do liberalismo.
Os resultados mais precisos porque permanecem esse brusco fluxo e refluxo da revolução,
são de ordem espiritual: o crescimento não intermitente do proletariado no plano intelectual e
cultural é uma garantia absoluta do seu irresistível progresso futuro tanto na luta econômica,
como na luta política (LUXEMBURGO, 1979, p. 35).
O Estado não é a causa e sim o efeito do modo de produção capitalista, por ter a função de
normatizador e regulador, jamais poderia ser responsabilizado pela forma de apropriação capitalista,
mas por normatizar suas práticas. Nas quais suas ações não se processam para o desenvolvimento
igualitário de uma nação, colocando-se as margens de suas funções, mas com um olhar de
arrecadador, até que seus agentes administrativos, pouco a pouco, vão tomando as cores do capital e
até as reproduz. Isto se manifesta nas múltiplas formas de arrecadações como também de assistência
via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que também manifesta
na formação e na disponibilização tanto dos recursos naturais como a normatização dos recursos
humanos. Resolvem-se as dificuldades do estado burguês, como sendo a consequência necessária de

187
aprofundamento, contradições e interesses das classes. Em que a classe não possuidora, que são os
proletários e a que possui é a burguesia, desenvolve ações que buscam romper com a sua dominação
pelo regime à sua libertação.

CONCLUSÃO

A relação com os acontecimentos ocorridos na Rússia se deve ao fato de ter sido lá


efetivamente, que se deu a única e importante revolta da massa trabalhadora contra a sua exploração.
Este estudo possibilitou apreender as manifestações que a ambiguidade do discurso
ideológico produz de forma nefasta sobre a classe trabalhadora. Manifestação que não só se expressa
uma realidade, por ser desenvolvida por quem vive as condições adversas entre trabalho e capital,
mas faz a roda da história girar no sentido inverso. Como também representa a possibilidade de
tensão, de organização da classe contra a sua exploração, gerando inúmeras manifestações que os
enfrentamentos revolucionários da massa produziram em benefício do proletário. Como e também
não expressa como sendo uma busca para sua libertação e sim acomodação, por não se verem em
condições de, em vez de, produzirem para outrem, produzirem para si.
As condições impostas nas relações de trabalho e capital exigem ações de caráter transformador
para além das que estão sendo desenvolvidas, no atual momento. Não basta só a vontade de mudanças.
As reivindicações são necessárias para que o trabalhador possa ter melhores condições para aquisição
dos recursos básicos para viver com dignidade, até mesmo para ter uma participação ativa, dando
suporte necessário para o sindicato conseguir melhores resultados em seu benefício, nas relações
entre trabalho e capital.
O que percebe é que o movimento representativo, os sindicatos e os partidos políticos não têm
um projeto diferente do que está posto. Os sindicatos quando muito transita na ordem de acomodação,
segundo Antunes (1980) com os sindicatos de resultado ou os denominados sindicatos de gaveta.
Uma alternativa utilizada pelo processo burguês de produção, com forma de minimizar as ações
dos que buscam de alguma forma meios para o enfrentamento das condições e relações impostas à
classe operaria. Já os partidos políticos com políticas de corporações e legislando a favor da ordem
em curso, também em nada contribui. As ações são quando muitas limitadas às lutas econômicas,
para melhorar os salários, que são necessárias para suprir as necessidades básicas de subsistência do
operário, enquanto se mantiver dentro da relação de venda por um tempo determinado de sua força de
trabalho. Uma movimentação dentro das condições do sistema capitalista de acumulação.
Assim é impossível construir um projeto alternativo que se dinamiza a partir dos interesses
reconhecidos das organizações correspondentes que compõem o heterogêneo setor popular para a
libertação do jugo do capital. Os sindicatos ou associações atuaram (e ainda atuam) como reguladores
das relações e condições antagônicas entre capital e trabalho.
Embora as relações hoje desenvolvidas pelos sindicatos estejam situadas dentro das
necessidades exigidas para o enfrentamento às condições de relações entre trabalho e capital, não têm
muita diferença das relações quando da fundação dos pilares de sustentação das entidades constituídas
legalmente como representante da classe trabalhadora.
Portanto, é necessário superar os princípios dos anarquistas que via como necessária
a reivindicação, com a da movimentação da massa, como e também a necessidade do Estado. Os
princípios básicos que sustenta a ação comunista também vêm a necessidade do Estado. Mais do
estado de coisa em que o Estado constituído com a função de normatizar e regular e a multiplicidade
de entidades representativas, à sociedade em si movimento. Por estarem caminhando na contramão
do movimento histórico da massa revolucionária russa, em que a multiplicidade representativa era
expressa pelas unidades de milhões de russos, unidos contra o absolutismo, e que sobre o seu domínio
a classe trabalhadora perecia.
Pode até dizer que são período distintos, mas as condições de precariedade não só são as
mesmas, mas se multiplicaram e se estenderam globalmente, segundo os imperativos não mais do
absolutismo, mas do capitalismo. É nesse contexto que milhões de brasileiros vivem em condições
desumanas, em um país de extensão continental como inúmeras áreas produtivas e um número

188
considerável de pessoas passando fome. Segundo Marx (1960), a grande riqueza de uma nação é o
seu povo. É nesse momento que a representação diz, que está caminhando na contramão da história.
As grandes transformações foram sempre com a participação de massa, mas da massa revolucionária.
Segundo a entrevista de um representante sindical já elaborada por Martins e Ramalho (1994), ao
dizer que “[...] o sindicato muda o ele desaparece,” Uma fala em que ele expressa sua visão como
representante sindicalista, e que deve ser respeitada; mas em nada contribui para o enfrentamento, a
libertação às condições escravistas impostas há séculos sob o jugo do capital.
Por entender que tanto a movimentação dentro da ordem de acomodação, como a dos sindicatos
fragmentados, além de ser uma relação sobre os imperativos do capital ela em nada contribui para o
proletariado a não ser que desenvolva ações conforme as que foram desenvolvidas por Luxemburgo
(1979, p. 15) sobre “[...] a escala ideológica dos lumpernproletariat contra-revolucionária, rosnando
como um bando de tubarões no casco do navio de guerra.” Como as que já foram desenvolvidas no
texto, os sindicatos não vão desaparecer enquanto a relação de produção for desenvolvida nos moldes
do sistema capitalista de produção. Por serem os sindicatos gerados dentro das relações do sistema
atual, como e também o trabalho por salário e o Estado assistencialista com suas políticas assistenciais.
Copiosamente da escola humanitária, que sem os que vivem na condição de miserabilidade,
não têm para quem prestar a sua ajuda, essa relação de solidariedade se desenvolve como sendo uma
ação social. Por se desenvolverem dentro nos moldes das relações do sistema capitalista de produção, se
desenvolvem segundo os seus princípios, meios e fins, segundos as relações da sociedade humanitária
como desenvolverá. (MARX, 2001). A escola filantrópica é a escola humanitária aperfeiçoada. Nega
a necessidade do antagonismo, quer transformar todos os homens em burgueses; quer realizar a teoria
na medida em que está se distingue da prática, e não encerra antagonismo. Basta um breve recorte
histórico para perceber as contradições e suas transformações idealizadas, que em nada contribuem
para a emancipação do trabalhador, como ainda aprofunda. Porque, querem transformar as categorias
das quais a burguesia se vale, conservando o antagonismo que os constituem.

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189
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trabalho. São Paulo: HUCITEC: CEDI: NETS, 1994.
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R. A. A. de. (Orgs.). Sindicato e negociação coletiva nos anos 90. Belo Horizonte: Ed. PUC, 1998.

190
APONTAMENTOS SOBRE O SIGNIFICADO TEÓRICO-POLÍTICO DO
“PARTIDO COMUNISTA DE VANGUARDA”
Giovanny Simon Machado*
RESUMO: O presente artigo objetiva a partir de uma crise de atuação dos Partidos, como instrumentos históricos de organização do
proletariado, recuperar seu sentido mais original e autêntico. Este objetivo é suscitado pela dúvida se tal crise tem caráter conjuntural ou
figura como esgotamento essencial, ou seja, do instrumento em si. Para desvendar esse dilema, adentraremos de forma introdutória nas
concepções clássicas de Partido e Vanguarda de Marx e Lenin, com vistas entender seus estamentos teóricos e filosóficos, bem como
as condições reais e concretas que as produziram.
Palavras-chave: Partido, Estado, Vanguarda
ABSTRACT: In this article, from a crisis of the Parties, working class historical organization instrument, recover it’s most original
and authentic sense. This is raised by the question if such crisis is cyclical or figure as an essential exhaustion, ie the instrument itself.
To solve this dilemma, we will enter, in an introductory character, in the classic conceptions of Party and Vanguard of Marx and Lenin,
with the goal to understand its theoretical and philosophical fundamental, as well the actual and specific conditions that produced it.
Keywords: Party, State, Vanguard

INTRODUÇÃO - CRISE E DESGASTE DOS PARTIDOS

Esse trabalho busca suscitar uma reflexão sobre situação do Partido, enquanto um
instrumento histórico de organização da classe trabalhadora no Brasil e no mundo desde o emergir
da sociedade burguesa no final do século XVII até a da consolidação da ordem monopolista já em
meados do século XIX.
Depois das manifestações de junho e julho de 2013, conhecidas como Jornadas de Junho,
que levaram milhares de pessoas às ruas em dezenas de cidades brasileiras, em especial nas principais
capitais, muitos especularam (desde a mídia convencional até a intelectualidade de esquerda1) sobre
quais os motivos da convulsão social desencadeada pela luta pelo Passe Livre2 no transporte coletivo,
e mais que isso, quais seriam os desdobramentos de tal acontecimento inédito na história política
recente do Brasil.3 Relatos4 de repulsa de pessoas que foram às ruas quanto à participação de Partidos
no interior dos protestos, inclusive gerando em alguns casos até atos de violência. Não apenas dos
Partidos mais tradicionais (as principais coligações governistas, Partido dos Trabalhadores (PT) e
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), e oposicionista, Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB) e Democratas (DEM), que disputam as eleições a cada dois anos, mas igualmente
uma repulsa às organizações partidárias de matriz marxista-leninista5 que sequer possuem registro
eleitoral formal. A discrepância e o desgaste dos Partidos assumem sua forma mais emblemática no

*
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestrando do Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social da UFSC.
1
O exemplo das reflexões na publicação Cidades Rebeldes (2013), agregando a contribuição de vários autores e autoras.
2
Mesmo que a luta pelo Passe Livre e a repressão sofrida nos atos de rua tenham sido o estopim que levou milhares de
pessoas às ruas, sabemos que, rapidamente, essa pauta foi deixada de lado e deu lugar a reivindicações históricas, porém
difusas, como a saúde, educação, segurança e indignação com os excessivos gastos na realização da Copa do Mundo da
Federação Internacional de Futebol (FIFA) no Brasil em 2014. .
3 “‘
O povo acordou!’, ‘Vem pra rua, vem, contra o aumento’,‘Saia do sofá e venha protestar’, ‘Sem vandalismo’, ‘Olha
que legal, o Brasil parou e nem é Carnaval’, ‘Que coincidência, não tem polícia, não tem violência’, ‘Brasil, ‘vamo’
acordar, o professor vale mais que o Neymar’. Esses foram alguns dos gritos entoados nos protestos que tomaram as ruas
de São Paulo na noite desta segunda-feira (17). Em mais de 20 cidades do Brasil, mais de 250 mil pessoas participaram
das manifestações” (NOTÍCIAS UOL, 2013).
4 “
A passeata da quinta-feira 20, reuniu cerca de um milhão de pessoas na Avenida Presidente Vargas. Uma ala com
centenas de manifestantes, na qual muitos empunhavam bandeiras de partidos de esquerda, sindicatos, organizações
estudantis e movimentos sociais, foi hostilizada desde o início com um coro que vinha se repetindo com menor intensidade
em manifestações anteriores: ‘Sem Partido!’. Em pouco tempo, as vaias e os gritos se tornaram mais agressivos e deram
lugar a ameaças que vinham de um grupo que pressionava cada vez mais a parte de trás da ala dos manifestantes com
bandeiras vermelhas” (ROMEU, 2013).
5 “
Durante as passeatas, os manifestantes gritavam o refrão ‘Sem partido’ e cobravam de militantes com bandeiras de
partidos, como PT, PSTU e PSOL, que se retirassem dos protestos. Houve confrontos entre os grupos. Nesta sexta, o ministro
da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, afirmou que ‘sem partido, no fundo, é ditadura’” (G1, 2013).

191
dia 11 de julho de 2013, quando as várias Centrais Sindicais6 e muitos Partidos dentro do espectro da
“esquerda” - Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado
(PSTU), PT e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), principalmente), convocaram um ato que não
chegou nem um pouco perto da expressividade de massas das manifestações descritas anteriormente.
É neste dilema que reside o centro de nossa reflexão: para além de uma negação generalizada
da população contra os partidos envoltos no jogo eleitoral (sejam de esquerda ou direita), é inegável
a existência de uma incapacidade dos Partidos que se intitulam “revolucionários”, “comunistas”,
“socialistas”, “operários”, sobretudo, aqueles herdeiros da tradição marxista-leninistas, de mobilizarem
as massas populares e proletárias. Ou seja, há um hiato entre aquilo que se considera a “vanguarda”
(ideia que vamos desenvolver mais adiante) e a grande massa.
Ao problema do atual descrédito e crise de legitimidade pelo qual passam os Partidos
em geral em nosso país podem ser associados aos limites da democracia burguesa e das
instituições do Estado moderno:
[...] a verificação expressa umas das debilidades centrais da democracia formal burguesa: as
massas aparecem – formalmente, nos atos eleitorais – como soberanos absolutos, inapeláveis;
todavia, são de fato carentes de poder e assim devem permanecer, de acordo com a vontade
de seus manipuladores. Uns poucos indicadores – o custo excessivo dos aparatos eleitorais,
dos jornais de grande circulação etc. – bastam para mostrar que, na organização da economia
em que se insere, o poder se concentra necessariamente em poucas mãos. A imprensa, a
literatura, o cinema etc., assim dirigidos, tendem a despolitizar o espírito das massas que,
educadas deste modo, são facilmente manipuladas pela propaganda eleitoral. Em suma: a
pretensa nova elite é, na realidade, escolhida por um pequeno círculo de personalidades
anônimas, que permanecem na sombra e, em parte, escolhe-se a si mesma; mas seu baixo
nível, sua irresponsabilidade e sua corrupção são atribuídos à democracia, às massas que
formalmente a elegeram (LUKÁCS, 2009, p. 33-34).
Estando os Partidos autointitulados revolucionários próximos aos partidos burgueses em
sua aparência, as massas passam a identificar todos os partidos com a corrupção, com o descaso
com o bem público e com o não atendimento das causas históricas do povo, ao modelo partido em
si, à sua essência. Assim, a grande massa associa os Partidos revolucionários aos que historicamente
desdenham as necessidades populares e exploram os trabalhadores. O fato é que aqueles partidos e
organizações autointituladas revolucionárias não conseguem apresentar-se de forma diferenciada dos
partidos da elite, levando a massa crer que o instrumento partido é um simples instrumento da rapina
do povo, através da corrupção e do “carreirismo político”. Isso tudo leva ao caminho perigoso que
Lukács (2009) aponta onde a democracia formal burguesa torna-se quase sinônimo de corrupção,
dando cada vez mais eco aos delírios fascistas7 de nosso tempo.8
Assim, nosso problema começa por tentar desvendar quais são as determinações sócio-
políticas que afastam a realidade do Partido, como instrumento histórico das classes populares na sua
luta pela emancipação humana, da concepção essencial teorizada, principalmente, por Vladimir Lenin
(concepção esta que nos debruçaremos nesta pesquisa e pontuaremos mais a seguir neste trabalho).
Para isso, procuramos encontrar os nexos entre a ontologia histórico-materialista lukacsiana, enquanto

6 “
Vão participar da mobilização nacional a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Trabalhadores e
Trabalhadoras do Brasil (CTB), a Força Sindical, a União Geral dos Trabalhadores (UGT), a Central Sindical e Popular
(CSP) Conlutas, a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), a Central dos Sindicatos do Brasil (CSB) e a
Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST), além do Movimento do Trabalhadores Rurais sem Terra (MST)”
(BRASIL DE FATO, 2013).
7
Esta tendência é facilmente verificável quando se observa qual o tom das marchas que ocorreram em todo o país no
dia 9 de março de 2015, onde os focos de grupos reivindicando “Intervenção Militar” como a salvação do país contra
o “comunismo” cresceram consideravelmente se comparados em 2013, quando ainda eram muito isolados. Em alguns
casos, os saudosos da Ditadura Civil-Militar que teve início em 1964, até dirigiram as manifestações, estando à frente dos
carros de som e sendo as figuras de maior destaque com seus discursos (NOTÍCIAS TERRA, 2015).
8
Anita Leocádia tem uma boa síntese sobre o caráter fascistizado da Ditadura Civil-Militar brasileira em sua obra
Luiz Carlos Prestes: combate por um Partido Revolucionário. Ela argumenta que o fascismo na América Latina tem as
forças armadas como o centro gravitacional e organizador das forças de extrema-direita fascistas, diferente de sua origem
europeia, cujo baluarte se centrava em partidos próprios e agia como fenômeno massivo. Não podemos deixar de levar
isso em conta quando parece estar em voga pedidos pela “volta dos militares”.

192
base filosófica de renascimento da teoria marxiana leniniana de luta pela emancipação humana,
mediada pelo progresso histórico através das conquistas por direitos sociais.
Considerando o afastamento abissal entre as bases do proletariado e das classes populares e
os Partidos ditos operários na contemporaneidade, e, ainda, a repulsa generalizada da grande massa
do povo brasileiro da matéria “política”, será então que os Partidos, instrumentos históricos do
proletariado, estão realmente esgotados em sua essência? Será que o descrédito pelo qual passam
os partidos que se propõe a uma transformação radical da sociedade significam um esgotamento da
concepção de “Partido revolucionário de vanguarda”? Já que o “modelo” de Partido “leninista”, tendo
em cada local específico uma característica peculiar9, nos propomos a identificar a dimensão teórico-
política essencial na concepção marxiana leniniana de “Partido comunista de vanguarda”, de
forma a apontar contribuições para uma restauração do significado teórico-político e filosóficos.
Não obstante, o caráter introdutório de tal pesquisa, assumimos que a luta pela
emancipação humana, como objetivo último dos Partidos Comunistas, tem a luta de classes entre,
fundamentalmente, proletariado e burguesia, imbricada no seu movimento. E a questão da luta de
classes é, inelutavelmente, uma questão de disputa pelo poder e pela hegemonia política entre classes
cujos interesses são antagônicos e que permanecem numa guerra civil mais ou menos10 declarada;
sendo assim, nosso primeiro ponto de partida será apontar a necessidade de uma clara localização da
concepção de Estado (como principal eixo de poder de uma classe sobre a outra) dentro do referencial
teórico que estamos adotando neste trabalho, bem como sua interação com as concepções marxiano
- leniniana de Partido.

1 ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E LUTA DE CLASSES

O único pressuposto que temos dentro da compreensão do Estado dentro da ótica de Lenin e
Marx é a certeza de que nenhum dos dois possuía algum tipo de concepção restrita, ou seja, o Estado
única e exclusivamente como um instrumento de dominação burguesa impermeável às pressões da
classe trabalhadora organizada. Equivocadamente associou-se à Marx e Lenin uma compreensão
restrita de Estado, e aos “modernos marxistas” uma concepção ampliada que permite e abrange a
conquista de direitos sociais. É necessário afirmar que a compreensão de um Estado que através de
pressões históricas do movimento operário reconhece determinados direitos dos trabalhadores já está
contida tanto em Marx quanto em Lenin. Se por um lado, no Manifesto Comunista de 1848, Marx e
Engels (2014, p. 27) afirmam que: “Um governo é tão somente um comitê que administra todos os
negócios comuns da classe burguesa”, também afirmam que proletariado “Aproveita-se das divisões
internas da burguesia para forçá-la a reconhecer, sob a forma de leis, certos interesses particulares dos
operários” (MARX; ENGELS, 2014, p. 40). Não é exagerado lembrar a saudosa menção de Marx às
lutas vitoriosas pela redução da jornada de trabalho na Inglaterra.
Já Lenin (2010, p. 32) afirma em “O Estado e a Revolução”, que: “[...] o Estado é um órgão
de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma ‘ordem’
que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes” em sua argumentação
contra seus adversários políticos que afirmavam que o Estado era um órgão de conciliação, assim
seria possível alcançar a emancipação humana, pela via pacífica, na medida em que pouco a pouco
se conquistasse espaço na democracia formal burguesa. Mesmo assim, Lenin (2010, p. 39) ainda
considera que “[...] a república democrática como sendo a melhor forma de governo para o proletariado
sob o regime capitalista [...]”, entendendo que mesmo a compreensão do Estado como instrumento de
dominação da classe burguesa sobre o proletariado repousa a ideia de que são possíveis e importantes
os avanços democráticos dentro da ordem. Às vésperas da Revolução de Outubro de 1917, quando
9
Lenin (2010) em Que fazer? reitera repetidamente que seu modelo organizativo proposto servia apenas para a
realidade da Rússia czarista e semi-feudal. Exigindo que o modelo partidário adotado em cada país seja produto da
realidade conjuntural de cada local.
10
O termo “guerra civil mais ou menos declarada” é de Florestan Fernandes (1984) em seu curto, mas brilhante trabalho
O que é revolução, e denota os diferentes estágios e metamorfoses pelo qual passa o desenvolvimento a luta de classes,
que pode ser mais declarada e aberta, ou mais omissa e velada, levando em conta o nível de organização do proletariado
e dos ataques desferidos pela burguesia (FERNANDES, 1984).

193
se está preparando a derrubada no recém-instaurado Governo Provisório, em suas conhecidas Teses
de Abril, Lenin afirma que “[...] a Rússia é agora o país mais livre do mundo entre todos os países
beligerantes [...].” (LENIN, 2017). Esta é, porém, a dialética de seu pensamento, onde a república
burguesa conquistada embora progressista se comparada com os séculos de czarismo na Rússia,
servia apenas como um momento da Revolução socialista, apenas como uma passagem mais aberta e
livre de um estágio ao outro. Da democracia burguesa à constituição do poder do proletariado como
república soviética.
No entanto, nos cabe desvendar, ainda que primariamente, qual a essência filosófica que
sustenta essa compreensão política. Em Sobre a questão judaica, Marx (2010) polemiza com Bruno
Bauer a respeito da emancipação política dos judeus, quando o governo alemão agia opressivamente
contra os não-cristãos a essência filosófica da categoria Estado de Marx fica evidente:
O limite da emancipação política fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de
se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado
ser capaz de ser um Estado livre [Freistaat, república] sem que o homem seja realmente livre
[...] (MARX, 2010, p.38-39) (grifos do autor).
Nesse trecho é colocada uma das noções mais importantes de Marx sobre o Estado, onde
temos a relação recíproca e contraditória entre Estado e Sociedade Civil, a vida dupla do cidadão
[citoyen] e do burguês [burgeois], em que o indivíduo se liberta, se iguala e se fraterniza numa
universalidade ilusória, ou seja, o Estado burguês moderno. Mais adiante Marx enfatiza:
[...] decorre que o homem se liberta politicamente, colocando-se em contradição consigo
mesmo, valendo-se de um meio chamado Estado, ou seja, ele se liberta politicamente,
colocando-se em contradição consigo mesmo, alterando-se acima dessa limitação de maneira
abstrata e limitada, ou seja, de maneira parcial. Decorre, ademais, que o homem, ao se
libertar politicamente, liberta-se através de um desvio, isto é, de um meio, ainda que se trate
de um meio necessário (MARX, 2010, p.39) (grifos do autor).
O Estado é, portanto, um produto da auto alienação humana na sociedade dividida em classes,
em que através dele o homem se generaliza falsamente, em que são anuladas as particularidades sociais,
econômicas e culturais numa essência abstrata. Age como um meio de falsa universalidade, sob a
qual todos são iguais perante as leis do Estado, mas a burguesia vive em mansões e o proletariado em
cortiços. Ou seja, o Estado é um meio de preservação da heterogeneidade humana real, das misérias
reais, isso como veículo para criação de uma falsa homogeneidade. A cidadania assume o lugar das
classes criando uma pseudo igualdade, uma pseudo universalidade. Formalmente, o trabalhador real é
tão cidadão quanto o burguês real, todavia, na medida em que as desigualdades reais não são suprimidas,
a cidadania é apenas uma abstração impotente e ilusória. Marx ainda aprofunda sua compreensão:
O Estado anula à sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e
atividade laboral, ao declarar nascimento, estamento, formação e atividade laboral como
diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro sem consideração dessas diferenças, como
participante igualitário da soberania nacional, ao tratar todos os elementos reais da vida de
um povo a partir do ponto de vista do Estado (MARX, 2010, p. 39-40).
Observemos exatamente isso, o Estado não supera as diferenças, ele as proclama anuladas
perante si. Mas numa leitura desatenta pode parecer que agora Marx não só não possui uma compreensão
restrita, como também teria, ao contrário, uma visão tão abstrata como se o Estado fosse um árbitro
neutro dos conflitos sociais: novamente um equívoco acreditar que se trata de uma visão abstrata. A
cidadania pode ser uma universalidade impotente e ilusória quando se trata de suprimir as misérias
reais, mas o Estado atinge seu ápice existencial desta ordem como potência burguesa (MACHADO,
2014, p.69). A emancipação política burguesa, para Marx (2010), não libertou o homem da religião,
mas concedeu a liberdade religiosa, não libertou o homem da propriedade privada, mas lhe garantiu a
liberdade de propriedade. Enfim o Estado não nega a propriedade privada, mas a pressupõe e garante
sua segurança e sua existência, não nega a exploração do trabalho assalariado, mas lhe proporciona
livre possibilidade de existência. A universalidade do Estado é, assim, um reflexo contraditório da
sociedade burguesa e da luta de classe, na medida em que a classe dominante se apresenta como a

194
burguesia, o Estado passa a ser essencialmente burguês, porém, ao mesmo tempo, na medida em que
o proletariado conquista espaço e poder na sociedade por meio de seus instrumentos de pressão e de
sua luta, o Estado passa a refletir, também, alguns anseios das classes subalternas. Dessa forma, o
Estado moderno não apenas é incapaz de superar as mazelas da sociedade capitalista, a propriedade
privada, a exploração do trabalho assalariado e divisão de classes, ele as pressupõe como elementos
constitutivos particulares de sua universalidade paralógica e sofística (MACHADO, 2014):
Só assim, pela via dos elementos particulares, é que o Estado se constitui como universalidade.
O Estado político pleno se constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição
à sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam subsistindo fora da
esfera estatal na sociedade burguesa, só que como qualidades da sociedade burguesa. Onde o
Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não
só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; [...] na qual ele
atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à
condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. [Adiante Marx
acrescenta] A diferença entre o homem religioso e o cidadão é a diferença entre o mercador
e o cidadão, entre o diarista e o cidadão, entre o proprietário de terras e o cidadão, entre o
indivíduo vivo e o cidadão (MARX, 2010, p.40-41) (grifos do autor).
Não se trata de uma concepção de Estado como aparelho governamental parlamentar, nem
como instrumento absoluto de dominação política burguesa, tampouco como uma força neutral
que legisla para sujeitos antagônicos indistintamente, é, sobretudo, uma complexa dialética entre
o público e privado, entre cidadão e indivíduo, entre sociedade civil e Estado, entre universalidade
e particularidade, cujo mecanismo é objeto de juízo da filosofia muito antes da criação da chamada
“Ciência Política”.
A respeito do modus operandi da dialética entre o público e privado, sociedade civil e Estado,
tentaremos abordar alguns elementos fundamentais. Um dos textos mais importantes de Marx na sua
juventude são os chamados Manuscritos de Kreuznach, conhecido como Crítica a filosofia do direito
de Hegel onde acerta contas com o grande filósofo idealista. Realizando uma suprassunção, Marx
não faz uma simples inversão materialista da dialética hegeliana11, mas preserva transformando em
essência (MACHADO, 2014, p. 70-71).
Se por um lado, para Hegel a esfera do direito privado, do bem privado, a família e a sociedade
civil têm o Estado como uma necessidade externa, sendo a ele subordinados e dependentes, mas
por outro lado, o tem como seu fim imanente, sua força na unidade de seu fim último geral com
os interesses particulares dos indivíduos (MARX, 2013). Isso significa, em poucas palavras, que
Hegel coloca o Estado democrático constitucional como determinante da sociedade civil, ou seja,
ao utilizar a categoria de dependência, significa que Hegel entende o Estado como pressuposto da
sociedade civil, como se a essência da sociedade civil fosse determinada por outra força estranha
que não a dela, já que:
[...] ‘subordinação’ e ‘dependência’ são relações externas, que restringem e se contrapõem
à essência autônoma, é a relação da ‘família’ e da ‘sociedade civil’ com Estado aquela da
‘necessidade externa’, de uma necessidade que vai contra a necessidade interna da coisa
(MARX, 2013, p. 36).
A suprassunção aparece justamente quando Marx (2013, p. 36) afirma o oposto: “Família
e sociedade civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos, mas, na
especulação, isso se inverte.” E ainda desenvolve (2013, p. 37):
O fato é que o Estado se produz a partir da multidão, tal como ela existe na forma dos
membros da família e dos membros da sociedade civil. A especulação enuncia esse fato como
um ato da Ideia, não como ideia da multidão [...].

11
Segundo Lukács (2009, p.156): “[...] o jovem Marx tomou um caminho que leva à forma desenvolvida de uma
dialética nova, a dialética materialista, que não somente faz justiça ao idealismo hegeliano, mas também submete as
categorias essenciais da ‘lógica’ de Hegel – como, por exemplo, a da superação das contradições - a uma inversão
materialista que implica uma transformação qualitativa.”.

195
E é esta determinação recíproca entre a sociedade civil e o Estado, onde o Estado aparece
como ideia da sociedade civil, e consequentemente é determinado pelas características e qualidade
específicas e propriamente históricas. Assim, é a sociedade fundada na propriedade privada e no
trabalho escravo que produziu um Estado particular escravocrata, da mesma maneira a sociedade
estamental feudalista produziu o Estado do antigo regime (MACHADO, 2014).

2 PARTIDO, SINDICATOS, CONSCIÊNCIA DE CLASSE E A VANGUARDA

Partindo-se, portanto, da experiência concreta, para uma abstração de cada elemento para
compreender sua essência e seu movimento interno de relação com os demais, pretendemos, portanto,
recuperar apontamentos histórico-concretos de construção do “Partido comunista de vanguarda”,
para daí conseguir desdobrar os instrumentos categóricos ideias, obtidos através da abstração, que
representem as linhas de força da experiência histórica de Partido Comunista em Marx e Lenin.
Se o termo “Partido” denota em primeiro lugar que haja uma parte distinta de um todo, então
significa que a existência de uma parte é resultado imediato de uma tal divisão deste todo. Os Partidos,
sejam quais forem, figuram como forças sociais cujos elementos concordam entre si e possuem
interesses comuns, tentando sempre ampliar o número de adeptos à suas causas, e tardiamente atuam
como forças que disputam o poder, portanto, como forças políticas. É claro que as forças sociais e
políticas que disputam a direção da sociedade não se limitam no formato Partido, mas acreditamos
que esta divisão da sociedade é o pano de fundo para compreender a formação do Partido tipicamente
marxista-leninista. Mas o que, afinal, provoca tal divisão?
Nas primeiras linhas do Manifesto de Marx e Engels (2014, p. 23) enuncia-se que “A história
de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes.” Recolhendo a partir das diversas
formações sociais pelas quais passou a humanidade até os tempos modernos, Marx e Engels (2014)
identificam a luta entre diferentes partes da sociedade, com interesses antagônicos, como a força
motora da História. Mas,
O que distingue nossa época – a época da burguesa – é ter simplificado a oposição de
classes. Cada vez mais, a sociedade inteira se divide em dois grandes blocos inimigos, em
duas grandes classes que se enfrentam diretamente: a burguesia e o proletariado (MARX;
ENGELS, 2014, p. 24, grifo nosso).
Sendo este estamento principal da divisão da sociedade moderna, é absolutamente factível
que tal divisão com base econômica terá impactos decisivos nas divisões políticas próprias. É no
contexto, portanto, de ascensão da luta de classes em que o proletariado se consolida como antagonista
principal dos capitalistas, em que se formam seus instrumentos políticos de combate e organização
principais: o Partido operário e o sindicato.
Na segunda metade do século XIX, o cenário político e econômico da Europa estava
completamente transformado. O êxodo rural provocou o inchaço da cidade transformando uma
grande massa dos que antes viviam da terra, agora em livre trabalhadores assalariados. É a ascensão
da Revolução Industrial, que Netto (1981) aponta ter sido pela grande produção de bens industriais, os
avanços científicos e a articulação do mercado mundial que consegue interligar e tornar interdependente
nações longínquas. A exploração dos trabalhadores era implacável e a luta de classes começa a tomar
forma organizada. Marx e Engels (2014) afirmam que os estágios das lutas são muitos: começam
isoladamente numa mesma fábrica, depois de um mesmo setor, de uma cidade, etc. Os trabalhadores
começam inclusive a criar suas próprias associações. Afirmam: “De vez em quando, os operários
triunfam, mas sua vitória é passageira. O resultado verdadeiro de suas lutas não é o sucesso imediato,
mas a extensão sempre maior da união dos operários” (MARX; ENGELS, 2014, p.39).
O crescimento da organização proletária vai redundar nos primeiros Partidos operários e
sindicatos. Em 1864 funcionou a Associação Internacional de Trabalhadores, chamada depois de
Primeira Internacional, mas que se dissolveu em 1871 devido ao tensionamento dos grupos internos.
O cenário mudará nas décadas seguintes: “[...] pela criação do primeiro grande partido proletário de
massas, o Partido Social-Democrata Alemão que se tornou o eixo da Segunda Internacional fundada

196
em 1889” (PAULO NETTO, 1985, p. 35). No entanto, as polêmicas no interior do movimento
proletário exigiram respostas mais claras para sua ação.
Não é por acaso que uma das principais batalhas de Lenin na primeira década do século
XX, no processo de preparação para a Revolução de 1917, foi o combate ao “economismo”.12 As
principais tendências socialistas da época davam um sobrepeso às lutas econômicas, ou seja, as lutas
do proletariado por melhores salários e melhores condições de trabalho, menosprezando as amplas
tarefas políticas a serem levadas à cabo na autocracia russa. Afirmavam eles (os economistas) ser
necessário transformar a luta econômica em luta política. Lenin, por outro lado, defendia que o
trabalho trade-unionista (sindical) não deveria ocupar um lugar: “[...] nem demasiado reduzido, nem
demasiado grande” (LENIN, 2010), no conjunto da luta socialista. A concepção leniniana de que os
sindicatos eram entidades ligadas às massas, sua função de existência era de educação das massas,
fica perfeitamente descrita na seguinte passagem:
A ligação com as massas, isto é, com a grande maioria, dos operários (e, a seguir, com todos
os trabalhadores), é a condição mais importante, fundamental do êxito de qualquer atividade
dos sindicatos. Na organização dos sindicatos e no seu aparelho deve ser criado desde os
alicerces até ao topo e verificado na prática, com base na experiência de vários anos, todo um
sistema composto por camaradas responsáveis, e não obrigatoriamente só por comunistas,
que devem viver a vida operária, conhecê-la em todos os seus aspectos, saber determinar
infalivelmente o estado de ânimo das massas, qualquer que seja o problema e a qualquer
momento, as suas verdadeiras necessidades, aspirações e pensamentos, saber determinar,
sem a menor sombra de falsa idealização, o grau de consciência e a força da influência destes
ou daqueles preconceitos e sobrevivências do passado, saber conquistar a confiança ilimitada
das massas com uma atitude de camaradagem para com elas e atendendo solicitamente às
suas necessidades (LENIN, 1987, p. 65).
É, portanto, uma função distinta da cumprida pelo Partido comunista na luta revolucionária,
a tarefa dos sindicatos e de todas outras entidades é a de assumir o contato mais próximo com as
massas e suas reivindicações mais sentidas. Essa é a função principal de todas as organizações de
base, sindicatos, movimentos e organizações rurais, associações de bairro, conselhos comunitários e
populares, entidades profissionais, etc; organizar o povo na luta pelas suas demandas mais sentidas,
ganhar sua confiança, tornar-se referência. Dentro da compreensão de Lenin (1987), os sindicatos
cumprem a função de: “[...] ligação entre o Partido e as massas, uma ponte entre a vanguarda e a base
da classe trabalhadora.” E é aproximando os quadros mais destacados das organizações de massas,
educando-os com o marxismo-leninismo, de forma que absorvam a teoria socialista, é que também
aproximamos a organização revolucionária das massas. Lenin também menciona os camaradas
destacados para cumprir as tarefas mais próximas do movimento de massa e da base do povo. Além
disso, a luta de massas, a partir de demandas específicas, assume, num primeiro momento, traços
corporativos, ou seja, que são pertinentes à uma determinada profissão ou categoria e que os difere
de outros segmentos da classe trabalhadora, como os funcionários públicos, ou os professores, ou os
metalúrgicos, ou os trabalhadores em telecomunicações, etc. Quando falando sobre a propaganda e
agitação sindical, Lenin afirma sobre brochuras específicas:
Nelas deveriam ser recolhidos e agrupados sistematicamente materiais legais e ilegais sobre
a questão das questões de trabalho em cada profissão, sobre as diferenças que a esse respeito
existem entre os diversos pontos da Rússia, sobre as principais reivindicações dos operários
de uma dada profissão, sobre as deficiências da legislação que a ela se refere, sobre os casos
mais relevantes da luta econômica dos operários dessa profissão, sobre os começos, a situação
atual e as necessidades da sua organização sindical etc. (LENIN, 1987, p.18).
Assim Lenin nos dá algumas lições importantes: primeiro que a luta e as entidades de massa
cumprem funções distintas do Partido, mas que são justamente a ponte de ligação entre vanguarda e
massas; segundo que a função de estreitar os laços com as massas pela via das entidades demanda um
profundo conhecimento do modo de vida, do estado de ânimo, do nível de consciência do específico
12 “
O nosso pecado capital está em rebaixar as nossas tarefas políticas e de organização ao plano dos interesses imediatos,
‘tangíveis’ e ‘concretos’ da luta econômica cotidiana. E continua a nos dizer: ‘deve- se imprimir à própria luta econômica
um caráter político’!” Lenin (2010, p. 174).

197
segmente da massas (sejam operários ou estudantes); terceiro, para estreitar os laços com as massas
é preciso que os dirigentes ganhem sua confiança atendendo suas necessidades, organizando a luta
pelas suas reivindicações mais simples; quarto, a luta de massas acaba sendo corporativa também,
então é preciso conhecer com profundidade as especificidades e as demandas de cada , comparar as
condições atuais com as de outros lugares do país, denunciar as limitações do Estado e da ordem
burguesa, apontar a história e o desenvolvimento do movimento, etc.
Mas cabe também dentro desse objeto uma discussão de fundo sobre o significado do
trabalho do Partido do ponto de vista teórico filosófico. Segundo Lukács o Partido é:
[...] a face visível da consciência de classe do proletariado. E a questão de sua organização
é decidida pelo modo como o proletariado alcança de fato sua própria consciência de
classe e a torna plenamente sua. Que isso ocorre por si só, pelo desenvolvimento mecânico
das forças econômicas da produção capitalista, e tampouco pelo simples crescimento
orgânico da espontaneidade das massas, deve ser admitido por todo aquele que não nega
incondicionalmente a função revolucionária do partido (LUKÁCS, 2012, p. 48, grifo nosso).
Esta é, portanto, uma questão decisiva para a compreensão do Partido comunista de vanguarda.
O problema da consciência de classe e da ideologia nas suas formas políticas assume um pano de
fundo essencialmente filosófico que deve ser explorado. Lenin combatia os seus adversários políticos
que afirmavam que a consciência de classe do proletariado surgiria espontaneamente, ou pela via
do próprio desenvolvimento capitalista ou pelas próprias lutas imediatas e espontâneas. Para Lenin
(2010) a ideologia socialista e a necessidade da revolução não poderiam surgir de maneira automática
nas massas, pois o socialismo enquanto ciência do proletariado foi formulada por intelectuais de uma
camada do proletariado mais avançada, e cabia a esse grupo destacado de pessoas que compreendem
os elementos científicos fundamentais elucidar as lutas proletárias, demonstrando no cotidiano a
oposição hostil entre proletariado e burguesia. Segundo Lenin:
[...] A social-democracia [isto é, os comunistas] dirige a luta da classe operária não só para
obter condições vantajosas de venda da força de trabalho, mas para que seja destruído o regime
social que obriga aos não proprietários a venderem sua força de trabalho aos ricos. A social
democracia representa a classe operária não só na sua relação com um grupo determinado de
patrões, mas também nas suas relações com todas as classes da sociedade contemporânea,
com o Estado como força política organizada (LENIN, 2010, p.120).
Assim Lenin desenvolve a noção de vanguarda que já está contida em Marx. Erroneamente
na literatura política marxista-leninista, e também entre seus adversários, se tornou corriqueiro
associar a noção de vanguarda como a inserção da ideologia socialista dentro do proletariado
por um sujeito externo, às vezes, até como uma obra de uma casta intelectual pequeno-burguesa.
Todavia, isso nada tem a ver com a proposta de Marx, Engels e Lenin. Vejamos o que Marx e Engels
afirmam no Manifesto:
Qual a relação dos comunistas com os proletários em geral? Os comunistas não são um partido
à parte entre outros partidos operários. Seus interesses não são distintos dos interesses do
conjunto do proletariado. [...] Os comunistas diferenciam-se dos outros partidos proletários
em apenas dois pontos: de uma parte, nas diversas lutas nacionais dos proletários, fazem
prevalecer os interesses comuns do conjunto do proletariado, independentes da nacionalidade;
de outra parte, nos diversos estágios de desenvolvimento da luta entre proletariado e burguesa,
representam sempre o interesse do movimento geral. Portanto, na prática, os comunistas são
a fração mais decidida, mais mobilizadora dos partidos operários de todos os países. Na
teoria, têm, sobre o resto do proletariado, a vantagem de te ruma visão clara das condições, da
marcha e dos resultados gerais do movimento proletário (MARX; ENGELS, 2014, p. 46-47).
Desta forma fica claro o equívoco político, mas igualmente teórico, na medida em que está
formulação não condiz com o que afirmam os fundadores do socialismo científico. A vanguarda
é, portanto, não um elemento externo ao proletariado, mas sim uma parte dele, uma fração do
conjunto do proletariado que leva a luta revolucionária às suas últimas consequências e exercita o
internacionalismo como princípio comunista. A vanguarda é o setor mais avançado e esclarecido do
proletariado dentro da concepção marxiano-leniniana.

198
Restaurar a noção de vanguarda, obviamente, não responde, e nem poderia responder,
aos dilemas organizativos do proletariado e do conjunto das classes exploradas e oprimidas pelo
capitalismo, no seu aspecto mais imediato. Mas recupera a necessidade da existência de uma
vanguarda revolucionária. Isso, como já afirmado, em um contexto de crise política dos partidos em
geral e especialmente no espectro da esquerda, aqueles de herança marxista-leninista. São sinais dessa
crise o exemplo de Partidos “de nova esquerda” que tem crescido e tomado o lugar dos tradicionais
Partidos comunistas. É emblemático o caso da Grécia, onde um partido de coalizão, o Syriza, tem,
por um lado, aparecido ao mundo como exemplo de nova organização e dando esperanças aos que
consideram esgotado o modelo marxista-leninista. Por outro lado, ao assumir o governo na Grécia,
o Syriza tem provocado uma significativa decepção13, e suas políticas tem sido duramente criticados
pelo Partido Comunista Grego (KKE).14 O mesmo acontece com o caso espanhol, em que um novo
e poderoso partido da dita “nova esquerda” aparece como alternativa aos partidos tradicionais: o
Podemos. Este caso é mais peculiar, pois o Partido Comunista da Espanha (PCE) entra no rol de
partidos deformados pelo eurocomunismo principalmente a partir da segunda metade do século
XX, onde os tradicionais partidos comunistas capitularam de seus princípios revolucionários e
marxistas-leninistas.15 A principal referência marxista-leninista na Espanha é o Partido Comunista
dos Povos da Espanha (PCPE), criado depois da deformação do PCE, um dos principais críticos
do Podemos16, quase no mesmo sentido em que o KKE critica o Syriza. Estes Partidos de “nova
esquerda” e seus entusiastas, ao negarem o papel dos tradicionais Partidos comunistas e suas premissas
revolucionárias, integram-se ao jogo eleitoral da política dentro da ordem burguesa e não questionam
os alicerces fundamentais do sistema capitalista. Em alguma medida, o fôlego contagiante com que
contam aponta para o abandono da concepção de vanguarda presente em Marx e Lenin e fortalece
um culto ao espontaneísmo que pressupõe a mobilização das massas nas cerimônias eleitorais da
democracia formal burguesa.

CONCLUSÃO – A NECESSIDADE DO PARTIDO COMUNISTA DE VANGUARDA E SEU


CARÁTER HISTORICAMENTE DETERMINADO

Em vias de conclusão, neste curto espaço, podemos no máximo apontar alguns elementos e
questionamentos introdutórios sobre essa temática. Em nossa opinião a noção de vanguarda permanece
sendo necessária, entendendo que os fundamentos teóricos que a justificam permanecem inalterados.
Quando Lenin (2010), em Que fazer? ventila uma suposta concordância com Karl Kaustsky de que
a ideologia socialista e a perspectiva revolucionária advém “de fora”, consideramos que se trata “de
fora” da luta econômica, ou seja, de fora da luta sindical (trade-unionista). Seu combate mais severo
é contra as tendências que cultuavam o “espontaneísmo” das massas:
[...] tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela, significa
fortalecer a ideologia burguesa. Fala-se de espontaneidade. No entanto, o desenvolvimento
espontâneo do movimento operário marcha precisamente para sua subordinação à
ideologia burguesa [...] pois o movimento operário espontâneo é trade-unionismo, é Nur-
Gewerkschftlerei, e o trade-unionismo implica exatamente na escravização ideológica dos
operários pela burguesia (LENIN, 2010, p.101, grifos nossos).

13
Em um artigo publicado por James Petras (2015), o autor descreve minuciosamente as traições e o desmonte da
narrativa pré-eleitoral pelo Syriza, iniciadas a partir das novas medidas adotadas.
14
Há inúmeros artigos do KKE (2015) atacando frontalmente as posições do Syriza, mas cabe destacar no atual
contexto, a dura posição do partido no que diz respeito ao referendo que será realizado no dia 5 de julho de 2015, onde o
povo grego está sendo chamado a decidir sobre os acordos com a Troika.
15
Um dos últimos acontecimentos mais expressivos dessa tendência eurocomunista foi o recente abandono da PCF
(Partido Comunista francês) do uso da foice e martelo como símbolo em 2013. Talvez tenha sido o ápice para este partido
que abandonou completamente sua ideologia original, e se integrou completamente aos demais partidos da ordem na
França. O fato é retratado em um artigo do site lusófono. (DIÁRIO LIBERDADE, 2013).
16
Al final el propio sistema político burgués crea las condiciones para que estas fuerzas reformistas, como Podemos,

Nueva Canaria, formen parte de la estabilidad del sistema capitalista” (PCPE, 2015).

199
Toda argumentação de Lenin é voltada para atacar os crentes do “espontaneísmo” como
via revolucionária, em que o movimento iria crescendo gradualmente em direção ao socialismo. Isso
simultaneamente ao ataque daqueles que desejam estreitar os campos de trabalho político do Partido,
restringindo-o à ação sindical (econômica) quando existem inúmeras expressões sociais e políticas da
exploração e dominação capitalista.
Ao contrário do que se possa imaginar, o combate de Lenin17 ao culto do espontaneísmo
não é algo meramente político, em verdade, possui um fundamento filosófico de amplas polêmicas.
Em 1923, Lukács publicara um conjunto de ensaios intitulado História e Consciência de Classe,
obra extremamente influente na tradição marxista, mas que o autor renegou anos mais tarde quando
reconheceu que estava sob influência idealista de Hegel, realizando uma autocrítica no Posfácio de
1967. O reconhecimento do processo de identidade como unidade entre sujeito/objeto18 foi o principal
aspecto teórico que no seu contexto histórico abriu brecha para ser alvo de muitos ataques. Essas
afirmações levam a acreditar que em História e Consciência de Classe a consciência verdadeira é
entendida como um conhecimento que urge de dentro do próprio objeto, o conhecedor, sujeito que
compreende o objeto configura-se, dessa maneira, como um sujeito-único. A tomada de consciência
de classe por parte do proletariado entendido por Lukács como sujeito e objeto nessa obra, leva ao
entendimento de que tal desenvolvimento da consciência seria espontâneo pelo próprio objeto em si, ou
seja, o proletariado adquiriria consciência de si mesmo enquanto classe de forma natural e espontânea.
Se considerarmos válidos e corretos os fundamentos teóricos que ancoram a noção de
vanguarda e como produto político dessa noção o Partido comunista, então nos restaria investigar
como se organizam e materializam esses partidos historicamente e tentar desdobrar dali análises
que reflitam sobre o possível esgotamento ou os motivos do desgaste pelo qual eles passam. Se
estes correspondem às necessidades históricas, se respondem à altura dos desafios das conjunturas
específicas de seus países. No caso da experiência de Lenin (2010, p. 70), ele sempre reiterou que
o modelo de Partido altamente centralizado, composto apenas pelos revolucionários profissionais,
completamente clandestino e restrito, correspondia apenas às necessidades da Rússia atrasada, sob
jugo do czarismo autocrático, com pouquíssima liberdade democrática. Por fim, nos cabe recuperar
as experiências práticas e teóricas desenvolvidas até então e com um exame crítico e uma análise
concreta de nossa situação e os desafios aos quais devemos dar resposta, propor saídas organizativas
que nem capitulem à ordem burguesa e nem morram como “seitas marxistas” impotentes e isoladas.

REFERÊNCIAS

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todo o país. 26 jun. 2013. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/13356>.
Acesso em: 6 ago. 2015.
DIÁRIO LIBERDADE. O reformista PCF abandona a foice e martelo. 10 fev. 2013. <http://
www.diarioliberdade.org/mundo/batalha-de-ideias/35518-o-reformista-pcf-abandona-a-foice-e-o-
martelo.html>. Acesso em: 29 jun. 2015.
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(Coleção Primeiros Passos).
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2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/pstu-atribui-violencia-sofrida-
em-manifestacoes-grupos-neonazistas.html>. Acesso em: 6, ago. 2015.

17
É importante lembrar que Lenin não nega a ação espontânea das massas, mas a reconhece como um estágio natural
do desenvolvimento do movimento proletário. Não obstante, sustenta que é preciso superar o espontaneísmo pela via
organizativa do proletariado.
18
Lukács (1974, p. 362) afirma que essa é uma influência lógico-filosófica de Hegel: [...] o seu fundamento filosófico
último é constituído pelo sujeito-objeto idêntico realizando-se no processo histórico. É verdade que no próprio Hegel o
sujeito-objeto nasce por via lógico-filosófica, atingindo o espírito absoluto o grau supremo na filosofia, com o recolher da
alienação (Entäusserung), com regresso a si mesmo da consciência de si, realizando assim o sujeito-objeto idêntico. .

200
KKE. Não a continuação da bancarrota do povo. 27 jun. 2015. Disponível em: <http://pt.kke.gr/
pt/articles/Nao-a-continuacao-da-bancarrota-do-povo/>. Acesso em: 29 jun. 2015.
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manifestacao-na-presidente-vargas/> Acesso em: 29 jun. 2015.

201
PRECARIEDADE NO TRABALHO:OS IMPACTOS DA TERCEIRIZAÇÃO NA
SAÚDE E NA SEGURANÇA DOS ELETRICITÁRIOS
Marcelle La Guardia Lara de Castro*
Wesley da Silva Coelho**
José Jurandir Alves Esteves Junior***
Lucas Henrique de Oliveira Fonseca Cruz****
Eliza Helena de Oliveira Echternacht*****
RESUMO: Objetivamos caracterizar a evidência empírica das relações entre terceirização, precarização e acidentes de trabalho no setor
elétrico em Minas Gerais. Foi realizada revisão bibliográfica, entrevistas com atores do sindicato da categoria e análise de relatórios
do MTE, Previdência Social, DIEESE, FUNCOGE, CUT, além de boletins do SINDIELETRO-MG. Conclui-se que a terceirização
contém, nesse contexto, elementos de precarização das condições e relações de trabalho e emprego, que restringem os campos de
possibilidades de gestão situada do risco, por não oferecerem bases ao desenvolvimento do agir competente que permite gerenciar in
loco a sinergia de fatores de risco que atravessam a atividade.
Palavras-chave: Setor elétrico, Terceirização, Precarização, Ergonomia, Acidentes de trabalho
ABSTRACT: Our aim in this article is to characterize the empirical evidences between outsourcing, precariousness and occupational
accidents in Minas Gerais’ electrical sector. It was held literature reviews, class union members interviews and MTE, Social Security,
DIEESE, FUNCOGE, CUT reports analysis, besides SINDIELETRO-MG newsletters. It was conclusive that outsourcing has, in this
context, precarious elements in conditions and labour and employment relations, which restrain the located risk management field
possibilities by not offering basis for the competent action development that allows managing in loco the activities risk factors and synergy.
Keywords: Electrical sector, Outsourcing, Precariousness, Ergonomy, Occupational accidents

INTRODUÇÃO

Esse artigo objetiva caracterizar a evidência empírica das relações entre terceirização,
precarização e acidentes de trabalho no contexto do setor elétrico no Brasil, especificamente no
estado de Minas Gerais. Tal setor é constituído por um intrincado campo técnico e organizacional,
responsável pela geração, transmissão, distribuição e comercialização de eletricidade, importante
base para o desenvolvimento econômico e social do país.
A reestruturação produtiva ocorrida com maior intensidade no final do século XX trouxe
profundas mudanças no âmbito organizacional, no qual a terceirização se destaca. Tempos passados,
nos deparamos hoje com um quadro de denúncias e mobilização sindical em torno da gravidade do
cenário atual da saúde e da segurança dos eletricitários, que aponta vários elementos de precarização.
Essa conjuntura nos convoca a investigar tal quadro para contribuir com as respostas necessárias às
demandas atuais de prevenção dos acidentes e doenças profissionais nesse contexto.
Especificamente objetivamos: a) analisar dados quantitativos sobre acidentes do trabalho
nesse setor no período entre 2001 e 2014, em três principais fontes: Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), Ministério da Previdência Social e Fundação Comitê de Gestão Empresarial (FUNCOGE); e
b) explicitar as denúncias e demandas sindicais a partir dos dados qualitativos oriundos dos boletins
emitidos pelo Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais

*
Mestranda em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do
Laboratório Integrado Produção e Saúde (LIPES). E-mail: marcelle.laguardia.lara@gmail.com. .
**
Discente de Iniciação Científica do LIPES do curso de Engenharia de Produção na Universidade Federal de Minas
Gerais. E-mail: wdscoelho@gmail.com .
***
Discente de Iniciação Científica do LIPES do curso de Engenharia de Produção na Universidade Federal de Minas
Gerais. E-mail: alvesestevesjunior@gmail.com .
****
Discente de Iniciação Científica do LIPES do curso de Engenharia de Produção na Universidade Federal de Minas
Gerais. E-mail: lucashofcruz@gmail.com .
Docente do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do
*****

LIPES. E-mail: eliza.echter@gmail.com .

203
(SINDIELETRO-MG) e documentos elaborados pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).

1 METODOLOGIA

Partimos do pressuposto que a terceirização, enquanto ferramenta organizacional da produção


de energia elétrica no Brasil e tal como concebida nesse contexto, contém elementos que caracterizam
a precarização, enquanto interação de elementos de precariedade que envolvem os direitos sociais
e trabalhistas, os processos de qualificação e formação profissionais e as condições técnicas e
organizacionais do trabalho. Tais elementos se relacionam ao aumento dos acidentes e adoecimentos
no trabalho no setor. Questões daí derivadas nos guiam: Quais os elementos de precariedade presentes
na realidade social e técnica do trabalho terceirizado que permeiam as reais condições de execução
dos serviços e comprometem a gestão real do risco no trabalho? Como esses elementos se relacionam
ao quadro atual de saúde e segurança entre os trabalhadores terceirizados?
Na busca de elementos de resposta para essas questões, a pesquisa assim se organiza:
a) Revisão bibliográfica: Busca por artigos acadêmicos, documentos e relatórios técnicos
em diferentes bases de dados e mecanismos de buscas acadêmicas: Scielo, Google Acadêmico,
Periódicos da Coordenação e Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sites do
DIEESE e da CUT. A seleção dos resultados foi feita restringindo-se aos seguintes temas: evolução
histórica do setor elétrico no Brasil e em Minas Gerais, saúde e segurança no trabalho, saúde mental
dos eletricitários e análise ergonômica do trabalho no setor.
b) Análise das bases de dados: Busca de dados quantitativos dos acidentes de trabalho neste
setor, entre 2001 e 2014, através dos sítios eletrônicos do MTE, Previdência Social e FUNCOGE.
c) Caracterização dos elementos empíricos relacionados à precarização do trabalho
expressos nas denúncias e demandas sindicais: Busca de dados que possam indicar a realidade do
trabalho dos terceirizados e do quadro próprio em fontes oriundas de representações sindicais nacionais:
documentos do DIEESE (2010, 2013) e da CUT (2014). Em Minas Gerais, centramos a pesquisa nos
boletins quinzenais do SINDIELETRO-MG, por meio do material publicado entre janeiro de 2012
e março de 2015 (edições 696 a 773)1. Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com a
médica do trabalho que atuou neste sindicato entre 2006 e 2013, com o diretor geral e o assessor de
formação, para aprofundar a compreensão dos impactos da reestruturação do setor sobre o trabalho,
segundo seus pontos de vista.
d) Análise dos dados e Conclusão: Discussão dos elementos de precarização encontrados,
a partir da abordagem ergológica da gestão dos riscos no trabalho (ECHTERNACHT, 2008).

2 SAÚDE E TRABALHO NO CONTEXTO DA PRIVATIZAÇÃO DO SETOR

A reestruturação produtiva do setor elétrico é resultado de mudanças atreladas à história


política do país e às medidas ditas liberalizantes, intensificadas nas décadas de 1980 e 1990.
Encontramos aqui a transição de um modelo estatal, com forte presença em toda a cadeia produtiva,
para um modelo híbrido, em que as privatizações impõem ao setor uma lógica empresarial.
As privatizações nasceram em uma contradição vivida na época: ao mesmo tempo em que era
preciso cooperar devido à necessidade de um forte planejamento e operação integrada dos sistemas,
era preciso também buscar eficiência através da concorrência (GOLDENBERG; PRADO, 2003).
Foi nesse contexto que a terceirização começou a fazer parte de modo sistematizado em importantes
etapas do processo produtivo, como uma estratégia competitiva que busca agregar flexibilidade
operacional e redução de custos, exigindo, porém, a expansão da capacidade técnico-gerencial da
empresa (SOUZA; MALDONADO; RADOS, 2011). A palavra “terceiro” se origina do latim tertius,
que significa estranho, e adquire, no meio empresarial, o sentido de repassar a um agente externo
a responsabilidade operacional por processos até então realizados internamente pela empresa. Tal
1
Durante todo o texto, as edições dos Boletins do “Chave Geral” serão referenciadas com o seu número precedido pelo
o índice “B”, entre parênteses e, quando for o caso, separadas por vírgulas. Ex: (B693); (B711, B722).

204
externalização de variadas parcelas desse sistema de trabalho ocorre com sérias consequências para
os trabalhadores e para a sociedade. Segundo o DIEESE (2010), os dados não revelam benefícios
concretos para os terceirizados, mas sim impactos negativos como: diminuição de salários, jornadas
mais extensas, diminuição da qualificação da força de trabalho e desorganização da representação
sindical, que caracterizam retrocessos na qualidade das relações de trabalho.
Estudos na literatura brasileira (SOUZA et al., 2012; VASCONCELOS et al., 2011;
MARTINEZ; LATORRE, 2008; SOUZA et al., 2010; HEMBECKER et al., 2009; MORIGUCHI
et al., 2008) apontam questões relacionadas à saúde e segurança do trabalhador (SST) e mostram
que a atividade dos eletricistas é caracterizada por expressivas demandas físicas, sociais e mentais,
coexistindo riscos de origem elétrica (choque elétrico e exposição aos campos eletromagnéticos),
mecânica, biológica, física, biomecânica e psicossocial. Os sintomas musculoesqueléticos são
citados como as principais causas do afastamento no trabalho e têm alta prevalência nos resultados
dos estudos que buscam avaliar as dores e suas principais interferências na vida dos eletricitários
(VASCONCELOS et al., 2011; MORIGUCHI et al., 2008). Ombros, pescoço, parte superior das costas
e joelhos são as regiões mais apontadas com dores, desconforto e formigamento, o que evidencia a
necessidade de intervenções para reduzir os riscos de Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao
Trabalho (DORT) entre esses profissionais.
Entre os aspectos psicossociais, encontram-se evidências de riscos de obesidade, alcoolismo,
tabagismo, depressão e transtornos mentais nessa atividade (SOUZA et al., 2012; SOUZA et al.;
2010; MARTINEZ; LATORRE, 2008). Estes últimos foram relacionados por Souza et al. (2012) à
alta exigência cognitiva, às pressões por metas de qualidade e produtividade e ao baixo apoio social.
Tal quadro pode ser agravado com os efeitos da exposição aos campos eletromagnéticos. Knave et al.
(1979 apud KOIFMAN; BLANK; SOUZA, 1983), citam estudos em que foram observadas alterações
dos sistemas nervoso, circulatório e gastrointestinal, como diminuição de glóbulos vermelhos,
elevação da pressão arterial, redução da atenção, náuseas, nervosismo e diminuição da libido em
trabalhadores que atuam próximos à rede de alta voltagem. Ajenjo et al., 1979 (apud KOIFMAN;
BLANK; SOUZA, 1983) encontraram alterações do sono, ansiedade e reumatismo nessa população.
O conjunto desses dados revela demandas concretas por estudos em saúde e segurança dos
trabalhadores eletricitários. Ademais, a literatura aponta para os elevados índices de acidentes no
setor, que serão objetivados no item a seguir.

3 OS ACIDENTES DE TRABALHO NO SETOR ELÉTRICO

3.1 Dados do Ministério da Previdência Social

No site do Ministério da Previdência Social (MPS) foram encontrados dados quantitativos


sobre acidentes de trabalho no setor elétrico brasileiro, durante o período de 2011 a 2013.
A Tabela 1 faz parte de um levantamento feito pelo MPS sobre acidentes do trabalho em todo
o setor (geração, transmissão, comércio e distribuição de energia). Verifica-se aqui que a maioria dos
acidentes acontece na distribuição de energia, com uma média anual de 58% dos casos. Embora os
dados não façam distinção entre terceiros e efetivos, é importante destacar que a distribuição é um
dos setores no qual a terceirização está especialmente presente. (DIEESE, 2013). Também é possível
verificar que, dentre os quatro grupos de possíveis consequências geradas por um acidente de trabalho
no setor elétrico - tais como considerados pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) (assistência
médica, afastamento até 15 dias, afastamento maior que 15 dias, incapacidade permanente e óbito),
o afastamento de até 15 dias é o mais frequente, com incidência média anual de 56% dos casos
registrados. A incapacidade permanente e a fatalidade, mesmo que em minoria quantitativa, resultam
em consequências graves dos pontos de vista social e econômico.

205
TABELA 1 – Quantidade de acidentes do trabalho no setor elétrico e suas consequências 2011-
2013

Fonte: Previdência Social (2013).

3.2 Dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)

Na página eletrônica do MTE, encontrou-se 25 documentos intitulados “Resumo de Acidente


Analisado” (MTE) que envolvem empresas do setor entre 2010 e 2013. Tais documentos contêm
análises realizadas pelos fiscais do órgão sobre as possíveis causas e consequências do acidente,
destacando as características dos trabalhadores envolvidos e suas condições de trabalho.
Dentre os 25 documentos pesquisados, foram encontrados 20 acidentes fatais – 22 mortes no
total – e outros 2 acidentes com amputação de membros, todos envolvendo descarga elétrica (choque).
Os demais fatores aí relacionados à causalidade destes acidentes foram: falta ou inadequação de
análise de risco da tarefa (60% dos casos), ausência de treinamento (56%) e fadiga mental e/ou
física (25%). Um ponto importante a ser destacado: 92% dos casos analisados envolvem empresas
terceirizadas e todas foram autuadas por desrespeitarem várias premissas da NR-10, documento que
regulamenta a prática segura em instalações e serviços em eletricidade dentro do território brasileiro.

3.3 Dados da Fundação Comitê de Gestão Empresarial (FUNCOGE)

A Fundação COGE é constituída por 67 empresas do setor elétrico, responsáveis pela


produção de 90% da energia elétrica produzida no Brasil (FUNCOGE, 2013). A partir dos dados
absolutos dos relatórios técnicos anuais da FUNCOGE (2012, 2013) expressos na Tabela 2, chegamos
aos seguintes números relativos: o número de trabalhadores próprios do setor sofreu um aumento de
9,72% entre os anos de 2004 e 2013, saltando de 96.579 para 105.962, ao passo que o número de
empregados terceirizados aumentou 69,97% no mesmo período, passando de 76.972 para 130.833.
Somando os 9.383 novos trabalhadores do quadro próprio aos 53.861 novos terceirizados, constata-se
um aumento de 36,7% do número total, sendo que 85,16% são de trabalhadores terceirizados.

TABELA 2 - Evolução do número de empregados: quadro próprio e contratadas - 2004-2013

Número de 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Empregados

Próprios 96579 97991 101102 103699 101446 102766 104857 108005 108133 105962

Contratados 76972 89283 110871 112068 126333 123709 127584 137525 146314 130833

Fonte: Fundação Comitê de Gestão Empresarial - FUNGOGE (2013)

206
A Tabela 3 diferencia o número de acidentes fatais típicos e acidentes com afastamento entre
trabalhadores contratados e próprios das empresas entre os anos de 2001 e 2013.

TABELA 3 - Evolução do número de trabalhadores acidentados: quadro próprio e


contratadas - 2001 e 2013

Empregados Próprios Empregados Contratados


Ano Acidentes Acidentes Acidentes Acidentes
com afastamento fatais típicos com afastamento fatais típicos
2001 1055 17 746 60
2002 1059 23 886 23
2003 994 14 890 64
2004 1008 9 1117 52
2005 1007 19 1543 57
2006 840 19 1584 74
2007 906 12 1477 59
2008 851 15 1589 60
2009 781 4 1361 63
2010 741 7 1280 72
2011 753 18 1479 61
2012 696 9 1245 58
2013 650 17 1105 45
Fonte: Fundação Comitê de Gestão Empresarial - FUNGOGE (2013).

Nota-se um número maior de acidentes com afastamento entre os trabalhadores terceirizados,


com uma média anual de 1.254 ante os 872,38 acidentes com os próprios. Considerando o número de
trabalhadores mostrado na Tabela 2, entre 2004 e 2013, encontramos taxas anuais de 116,63 acidentes
a cada 10.000 trabalhadores terceirizados e de 79,89 acidentes a cada 10.000 trabalhadores próprios,
uma taxa 46% maior entre os primeiros.
Os acidentes fatais típicos se destacam entre os terceiros: médias anuais, entre 2001 e 2013,
de 58,58 mortes. Este número cai para 13,83 entre os trabalhadores próprios no mesmo período. Entre
2004 e 2013, a média anual é de 5,08 mortes a cada 10.000 trabalhadores contratados e de 1,25 mortes
a cada 10.000 trabalhadores próprios, o que resulta em uma taxa 406,36% maior entre os terceirizados.

4 AS DENÚNCIAS E AS DEMANDAS SINDICAIS: A PRECARIEDADE NO TRABALHO

Embora haja obstáculos para que os sindicatos dos eletricitários representem os trabalhadores
terceirizados, as situações destes são denunciadas em boletins sindicais, como no Chave Geral (1987),
e nas entrevistas com a médica do trabalho e com os dirigentes sindicais. A partir dessas demandas
e de documentos oriundos dos sites do DIEESE (2010, 2013) e CUT (2014), buscamos organizar os
elementos de precarização em três grupos de possíveis impactos da terceirização sobre as condições
concretas de gestão do risco na atividade: a intensificação, as relações e as condições de trabalho.

4.1 Intensificação do trabalho

A intensificação do trabalho é um conceito amplo que envolve a combinação de fatores


organizacionais e psicossociais que acentuam a carga física e mental da tarefa.
As extensas jornadas de trabalho dos terceirizados estão atreladas às altas metas impostas que,
vinculadas ao ganho por produção (B716), aos baixos salários-base (B748, B732) e à falta de pessoal

207
(B711), exigem que os trabalhadores ampliem a jornada de trabalho para melhorar a remuneração,
podendo chegar a 14 horas diárias (B737) e com poucas pausas para refeição (B697, B719, B732). Há
denúncias de mais de 20 horas ininterruptas de trabalho (B733) e greves que colocam como pauta a
negociação de no máximo 11 horas por dia com o pagamento de horas extras (B719), evidenciando a
distância entre essas condições e as leis trabalhistas brasileiras. Além disso, as folgas não são regulares
e há vários indícios de férias atrasadas (B722), o que aumenta a fadiga mental e física, além de afetar
diretamente os vínculos familiares e sociais do trabalhador.
Segundo o diretor sindical, quando metas inalcançáveis são impostas a trabalhadores que
precisam se deslocar no trabalho (de uma cidade a outra ou mesmo dentro desta), a pressão ainda
pode agravar os acidentes no trânsito, que hoje representam uma das principais formas de acidentes
de trabalho do setor, principalmente com terceirizados que utilizam motos. As consequências são
intensificadas quando é instituído um modelo autoritário e conservador para supostamente promover
segurança, como o uso de punições para trabalhadores que se envolvem em acidentes de trânsito ou
são multados, gerando penalidades que vão de advertência à demissão por justa causa (B697, B708).
Ademais, quando um colega de trabalho falta, sua prescrição pode ser repassada integralmente a outro,
o qual passa a ser o responsável pelo cumprimento de duas metas no dia, como é o caso dos leituristas,
que são responsáveis pela leitura do gasto mensal de energia elétrica das unidades consumidoras.
No contexto do quadro próprio de trabalhadores, as contratações são insuficientes para
suprir as demandas efetivas de trabalho, uma vez que a terceirização avança por diversos setores e
atividades. Em suma, a clássica divisão entre atividades-fim e atividades-meio não encontra sentido
aqui. Destaca-se também a reestruturação das equipes de manutenção. Um exemplo, são aquelas que
atuam nas linhas aéreas com a rede energizada, as quais eram anteriormente constituídas por até 7
integrantes e hoje trabalham em trio e o treinamento em duplas já é uma realidade.

4.2 Relações de trabalho e emprego

As relações de trabalho abrangem, além dos vínculos formais do contrato trabalhista, aspectos
relativos ao relacionamento interpessoal, apoio e supervisão técnica, operacional e gerencial, além
do estabelecimento de ligações mais sólidas referentes ao emprego. A debilidade de tais relações é
apontada tanto no quadro próprio como nos contratados, sendo mais intensa nos últimos.
Segundo o dossiê da CUT (2014), o tempo médio de emprego calculado em 2013 também se
diferencia entre trabalhadores próprios e terceiros: 5,8 anos para os trabalhadores próprios e 2,7 anos
para os terceiros. Encontramos um alto turnover2 entre os terceirizados com uma taxa de rotatividade3
de 64,4%, enquanto entre os próprios essa porcentagem é de 33%. Assim, apesar de ter ocorrido uma
elevação do turnover no setor de 13,7 pontos percentuais entre 2010 e 2013, essa taxa é maior entre
os terceiros, com um aumento de 19,5 pontos percentuais no mesmo período (CUT, 2014). Esse fato
tem consequências para o trabalhador, que tende a alternar períodos de trabalho e desemprego.
No campo das relações interpessoais que embasam o trabalho coletivo e asseguram maior
segurança no exercício da tarefa, há relatos da falta de controle e de fiscalização por parte da
contratante. Em 2012, a causa de um acidente com trabalhador terceirizado foi apontada como a falta
de um coordenador orientando a equipe que realizava o trabalho (B697, B717).
As baixas remunerações não são consoantes com a premissa de isonomia salarial para a
mesma função, fazendo com que os contratados recebam até quatro vezes menos que os efetivos
(B734), além de não terem garantidos o adicional de periculosidade, vale transporte, vale alimentação
e plano de saúde (B697, B716, B733). Há denúncias da falta de apoio médico, psicológico e legal aos
acidentados terceirizados e suas famílias, sem garantia de próteses em caso de mutilação, omissões
de “Comunicados de Acidentes de Trabalho” e casos em que o trabalhador acidentado é encontrado
nos alojamentos sem qualquer suporte da empresa e sem receber salário (B727).
2
Turnover: conceito frequentemente utilizado na área de Recursos Humanos para designar a rotatividade de pessoal
em uma organização em determinado período de tempo.
3
Taxa de rotatividade anual = [mínimo (número de rescisões ocorridas no ano ou número de admissões ocorridas no
ano)/número de vínculos no início do ano] x 100 (cem).

208
No quadro próprio, a instabilidade no emprego se mostra nas demissões de trabalhadores
com 55 anos de idade ou nas aposentadorias forçadas dos mesmos (B743); demissões relacionadas
à depressão, ao alcoolismo e à obesidade, sem assistência da empresa (B750); e funcionários
concursados que são demitidos. O “Programa de Carreira e Remuneração” do quadro próprio tem
suscitado indignação devido à prolongada permanência na mesma função, sem melhorias no salário e
com análise de desempenho cuja neutralidade é questionada pelos trabalhadores (B699). Há denúncias
de situações enfrentadas devido à completa terceirização da atividade que exerciam, obrigando-os a
mudar de função (B723). É importante ressaltar que o treinamento dos terceiros é realizado por esses
profissionais que irão perder o seu posto, situação que agrava a tensão e o estresse, caracterizando um
potencial risco psicossocial (B747).

4.3 Condições de trabalho

As condições de trabalho envolvem toda a ambiência técnica e organizacional que oferecem


o suporte necessário ao trabalhador para o exercício da atividade.
A rede aérea de distribuição elétrica está permanentemente exposta às intempéries,
desgastando o seu material ao longo do tempo e exigindo manutenções preventivas constantes. No
entanto, o que se percebe é uma precariedade das instalações, que aumenta o risco de choques e
quedas devido à quebra de estruturas ou falhas de equipamentos, o que exige maior controle e cuidado
na execução da tarefa (B697, B705). Além dos riscos citados, a sociedade também é vítima, frente à
insuficiência das manutenções e qualidade dos dispositivos (B698) e dos serviços (B700), devido à
falta de material básico para o trabalho.
A situação dos terceirizados é agravada pela escassez e falta de manutenção dos equipamentos,
das ferramentas, dos uniformes e dos equipamentos de proteção individual (EPI) e coletivo (EPC).
O treinamento também se diferencia entre efetivos e terceirizados, tanto no conteúdo quando na
duração, 4 meses para os primeiros e 15 dias para os últimos. Há denúncias de contratadas que
emitem certificados de participação em cursos e reciclagem dos empregados, fazendo com que estes
assinem a declaração sem terem de fato a formação (B733). Segundo os diretores sindicais, os estágios
obrigatórios, em que os novatos aprendem com os experientes no próprio campo, não ocorrem em
grande parte dessas empresas, eliminando uma etapa fundamental da formação em uma atividade
periculosa e com alta exigência normativa.
As denúncias das péssimas condições dos alojamentos são frequentes, expondo a falta de
higiene no local, colchões e roupas de cama rasgados e insuficientes, número de banheiros aquém do
necessário, esgoto a céu aberto, falta de água potável e alimentos armazenados em locais sujos (B725,
B727, B733). As irregularidades chegaram a ser caracterizadas como trabalho análogo à escravidão,
o que gerou um relatório de fiscalização elaborado pela Superintendência Regional do Trabalho e
Emprego (SRTE), junto à Polícia Federal e Ministério Público do Trabalho (B742). Essas condições
são agravadas com a dispersão da representação sindical entre os trabalhadores terceirizados,
impedindo uma representação legal e ativa para combater essa situação (B701, B708).
As edições do “Chave Geral” revelam 71 mortes entre 2004 e 2012 em Minas Gerias, sendo
64 delas com terceirizados (B699). Os números demonstram uma média de um acidente fatal a cada
45 dias (B731), o que corrobora os altos índices apontados pelos relatórios da FUNCOGE.

5 ANÁLISE DOS RESULTADOS

Quadro atual de saúde e segurança dos eletricitários


Evidenciamos aqui a gravidade das questões de saúde e segurança no trabalho dos eletricitários,
a partir dos dados apresentados, que nos permitem visualizar alguns efeitos da reestruturação do
setor sobre o trabalho.
As formas de adoecimento atravessam as dimensões física, psíquica e social e atingem
mais intensamente os terceirizados, somando-se ao escasso apoio social e especializado a estes
trabalhadores. Na literatura pesquisada e nos dados empíricos encontrados, os transtornos mentais

209
e as doenças musculoesqueléticas foram apontados como os principais sintomas de adoecimento
no trabalho, em especial o alcoolismo, a depressão, a ansiedade, o estresse e as Lesões por Esforços
Repetitivos (LER) e Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT).
Os altos índices de acidentes, com suas consequências terríveis ligadas à morte, às mutilações,
à incapacidade física e psíquica, rondam como espectros da realidade do setor, especialmente entre
os terceirizados. Esse quadro evidencia as diversas sinergias de riscos, ou de situações de trabalho
imersas em periculosidade, insalubridade e penosidade, agravadas pelos elementos de precariedade
encontrados nos dados empíricos. A atenção aos elementos de precariedade no setor chega a alcançar
jornais (PEDROSA; ARIADNE, 2015), e revistas de grande circulação.4 Em Minas Gerais, as
denúncias sindicais de acidentes superam os dados da Previdência Social, MTE e FUNCOGE, pois
as subnotificações são ainda mais acentuadas nas empresas contratadas, o que exige uma presença
forte dos sindicatos para apurar dados mais próximos à realidade. Ao contrário, o que se mostra é a
fragilidade sindical para representar os terceiros, reforçada pelo fato de serviços desse setor serem
classificados como da construção civil, devido ao registro das empresas na Classificação Nacional de
Atividades Econômicas (CNAE).
Enquanto os acidentes e as doenças ocupacionais se manifestam de modo incisivo, sobretudo
nas empresas contratadas, as escolhas organizacionais do setor permanecem centradas na dita
flexibilização das relações de trabalho. O aumento de 69,97% dos terceirizados no período entre
2004 e 2013 evidencia uma nova normatização do quadro organizacional associada a um conjunto de
valores que confrontam a dignidade humana no trabalho. Esta lógica valorativa nos interroga sobre
as reais possibilidades de construção e gestão da saúde e segurança no trabalho diante dos critérios de
eficiência e das estruturas sociotécnicas do setor.

5.1 As relações entre terceirização, precariedade e acidentes no trabalho

Retomando nosso pressuposto, afirmamos que os elementos de precariedade, intrínsecos


ao contexto organizacional terceirizado, são fatores que constituem as situações reais de trabalho e
permeiam os modos de adoecer, acidentar e morrer no trabalho. Para Saint-Martin
[...] falar de precariedade não é apenas abordar os fenômenos sociais ligados às transformações
no mundo do trabalho e emprego, aqueles que colocam acento sobre as populações mais
atingidas e se abrem às questões relativas à proteção social e SST. É também, e mais
amplamente, traduzir a emergência dos processos sociais que culminam na evolução das
formas de estruturação dos espaços produtivos e das formas de regulação social que aí se
articulam. Trata-se de uma transformação das regras, das normas, dos valores associados ao
trabalho (SAINT-MARTIN 2008, p.1, tradução nossa).
A intensificação do trabalho é elemento que modaliza diversos outros elementos constituintes
da precariedade, e enquanto tal, produz sinergias de riscos e de sintomas, numa multiplicidade de efeitos
sobre a saúde dos trabalhadores. Volkoff (2008) afirma que a intensificação do trabalho dispersa os
problemas de saúde, sendo a sua própria definição pouco estabilizada, a sua mesura problemática, as
suas consequências difusas e a sua abordagem nos debates sociais frágil. Com o que concorda Saint-
Martin (2008), ao falar sobre a normalização da precariedade nas organizações profissionais e as
dificuldades de compreendê-la em suas repercussões sobre a saúde, a vulnerabilidade organizacional
e a fragilização profissional.
Do ponto de vista da atividade humana de trabalho, isso significa abordar os sujeitos da
precariedade em situações específicas nas organizações produtivas. Trabalhar concretamente na
precariedade imprime vivências singulares nesse contexto de múltiplos sentidos. “A gestão de si e
da própria saúde enquanto elemento estrutural da atividade humana de trabalho não se dissocia desta
enquanto agir competente” (ECHTERNACHT, 2008, p. 51). Portanto, a experiência da precariedade
se articula à experiência da gestão real dos riscos nas situações concretas de trabalho.

4
Em especial, destacamos a edição especial da revista Carta Capital (n. 848), publicada em 30 abr. 2015.

210
Trabalhar é gerir-se em um meio circunscrito por normas de ordens técnica, organizacional,
gerencial, por entre as estruturas produtivas que hetero-determinam os objetivos do
trabalho humano, seus instrumentos, seu tempo, seu espaço. Porém, tais níveis de hetero-
determinação não excluem a atividade humana em sua mobilização de saberes e valores
incorporados nas práticas, condição para a o agir competente em um meio produtivo em
constante transformação (ECHTERNACHT, 2008, p.51).
A gestão dos riscos no trabalho vai além da normatividade prescrita pelos saberes
especializados em SST, ela é, principalmente, resultado da aglutinação dos saberes construídos
na história das situações de trabalho, através da experiência coletiva no trabalho e das condições
concretas em que a atividade se realiza (ECHTERNACHT, 2008).
O contexto engendrado pela terceirização anuncia um universo de constrangimentos que
potencializa os riscos presentes e compromete o desenvolvimento da experiência necessária à gestão
do risco. A aprendizagem em situações de periculosidade está imersa na precariedade, o que se traduz
no próprio saber construído no e pelo trabalho, individual e coletivamente. Isso significa que o sistema
de valores perpetuado nesse modelo de flexibilização cria situações de trabalho incongruentes com os
mecanismos de apropriação técnica operacional. A estrutura sociotécnica tecida com a intensificação
do trabalho, a extensão das jornadas, a redução dos intervalos e das pausas durante o serviço, a
supressão das folgas, o frequente atraso das férias e a falta de pessoal tanto no quadro próprio quanto
nos terceiros, resulta na sobrecarga física e mental, além de impactos substanciais na vida social do
trabalhador. A fadiga se soma às condições precárias das instalações, ferramentas, equipamentos e
EPIs, o que potencializa os múltiplos riscos presentes no trabalho por não oferecer o alicerce necessário
ao trabalhador para gerenciar in loco a sinergia de fatores de risco que atravessam sua atividade.
A restrição dos campos de possibilidades de gestão do risco fica mais acentuada com a
insuficiente formação dos terceirizados, tanto em relação ao conteúdo quanto ao tempo destinado aos
cursos. A diferença significativa entre eles e o quadro próprio se revela na escolaridade, no contato com
as normatizações e conhecimentos especializados da atividade e no aprendizado com profissionais
experientes, através de estágios no campo. O comprometimento dessa etapa da formação tem efeito
direto na gestão do risco, pois não fornece as bases técnicas fundamentais para o exercício da atividade.
Todo o conjunto desses elementos elencados forma uma complexa rede de fatores que se
cruzam na atividade e modulam os modos operatórios dos trabalhadores, incidindo diretamente na
gestão real do risco no trabalho. Desse modo, a aproximação da gestão especializada em SST à atividade
real amplia as possibilidades de avanços nas medidas preventivas e práticas de segurança articuladas
com as particularidades dos sistemas de produção e com as singularidades dos trabalhadores. É
preciso, portanto, que os critérios de produtividade considerem os conteúdos de desempenho fixados
pela organização, ao mesmo tempo em que possibilitem a construção da saúde e da segurança no
trabalho. (ECHTERNACHT, 2008).

CONCLUSÃO

Os dados aqui analisados evidenciam que o atual modelo organizacional que embasa a
terceirização no setor elétrico tende a ser incompatível com as exigências mínimas relativas à saúde e
segurança do trabalhador, à proteção social e, em alguns casos, até mesmo à dignidade humana. Em
um contexto em que os defensores da terceirização buscam ampliar seu status constitucional no país,
a qualquer custo, impõe-se a revisão deste modelo, o qual deve ser elaborado pelos diversos atores
sociais, a fim de garantir critérios de produção e saúde que se complementem e ampliem as condições
preventivas, com base na experiência dos trabalhadores.
Interrogamos aqui a própria interdisciplinaridade no estudo em SST, no sentido de permitir
que diferentes conhecimentos dialoguem e gerem um novo saber pautado na realidade das situações
de trabalho. A complexidade do trabalho nos contextos de precariedade nos coloca novas questões
nesse campo e convocam os profissionais a pensarem sobre as dificuldades analíticas para a definição
do próprio objeto saúde-prevenção-trabalho.

211
Questionamos, então, a precarização, como uma experiência subjetiva arquitetada nos valores
e normas intrínsecos da terceirização, que restringe os campos de possibilidades do trabalhador na
gestão situada da saúde e da segurança, acentuando os diversos riscos presentes na atividade com
eletricidade. Mais que repensar os moldes em que a terceirização é colocada, é preciso adentrar no
conjunto de valores que permeiam o nosso sistema produtivo e perpetuam práticas que entram em
choque com a própria vida.

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213
COMISSÕES INTERNAS DE PREVENÇÃO DE ACIDENTES:A SAÚDE DO
TRABALHADOR COMO ALTERNATIVA À REORGANIZAÇÃO DA BASE
OPERÁRIA NA EXPERIÊNCIA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS*
Natalia Perdomo dos Santos**
RESUMO: O objetivo deste artigo é fazer uma análise introdutória das possibilidades contidas na construção das Comissões Internas
de Prevenção de Acidentes (CIPA) para a ampliação do processo contemporâneo de organização da classe operária brasileira. A
degeneração da saúde como produto direto das condições de trabalho na idade dos monopólios, especialmente a partir da flexibilização
do trabalho pós-fordista, fundamenta a discussão, que tem a experiência dos metalúrgicos de São José dos Campos como subsídio desse
projeto que buscou dar voz aos operários, e às possíveis respostas construídas por esses, diante a expansão do capital em detrimento
de suas condições de vida.
Palavras chave: Comissões internas de prevenção de acidente, Saúde do trabalhador, Flexibilização do trabalho
ABSTRACT: The purpose of this paper is to make an introductory analysis about the possibilities contained in the construction of the
Internal Commission for Accident Prevention (CIPA) to expand the contemporary process of organization of the Brazilian working
class. The deterioration of health as a direct product of the work conditions in the age of monopolies, especially from the flexibility of
the post Fordist working model, sustains this discussion in the experience of metalworkers of São José dos Campos, as central benefit
of this project, which seeks to give voice to workers and to the possible answers built by them facing the expanding of capital to the
detriment of their living conditions.
Keywords: Internal commission for accident prevention, Worker health care, Labour flexibility.

INTRODUÇÃO

Este texto é fruto da experiência de convivência e organização conjunta aos operários


metalúrgicos de São José dos Campos entre os anos de 2009 e 2011. Desta experiência germinou
a investigação1 que desvelava o estado de degeneração das condições de saúde dos operários como
produto imediato da típica organização do trabalho na fase Imperialista (LENIN, 2005), especialmente
a partir da crise do modo fordista de organização do processo de trabalho que, esgotado, passa a ser
interpenetrado pelo processo de flexibilização de suas relações (HARVEY, 2001).
A concepção da saúde como “[...] um bem coletivo vinculado ao desenvolvimento político
econômico e social” (SILVIERI, 1996, p. 18), orientou a construção da análise das condições de
saúde daqueles trabalhadores - ou de sua ausência - a partir da contemplação de aspectos que não se
findam diante de fronteiras nacionais ou da limitação fenomenológica do aspecto curativo do estado de
doença, trato majoritário de um dos maiores flagelos da classe trabalhadora na Idade dos Monopólios,
em especial nos países dependentes. Trata-se de incorporar sua dimensão social que, segundo Ribeiro
Corresponde ao ciclo do capitalismo e às condições objetivas onde ele se desenvolve. Ela
se expressa nas relações sociais e de produção e tem a ver também com as tecnologias dos
processos produtivos e de organização do trabalho incorporados pelas empresas (RIBEIRO,
1997 apud ABRAMIDES, CABRAL, 2003, p. 8).
A análise da dimensão da social da saúde demanda a compreensão da dinâmica de
transformação internacional de um modo de produzir que, em sua maturidade, passa a assumir, como
parte de seu metabolismo, um movimento destrutivo de suas próprias engrenagens, configurando uma
sociedade sui generis, cujas
[...] forças produtivas disponíveis já não mais favorecem as condições da propriedade
burguesa; ao contrário, tornaram-se poderosas demais para essas condições que as entravam;

*
Esse artigo é baseado no trabalho de conclusão de curso apresentado a Escola de Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, com orientação da professora Sara Aparecida Granemann, ano de 2012.
**
Docente Substituta do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Rio das Ostras- RJ.
E-mail tali.perdomo@gmail.com.
1
Realizada com apoio do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, em especial junto ao Departamento
de Saúde do Trabalhador. Foram entrevistados diretores sindicais, membros das comissões internas de prevenção de
acidentes, operários lesionados pelo trabalho e outros sujeitos que davam suporte ao sindicato. O sigilo foi mantido a
exceção dos que portavam cargos públicos e autorizaram a publicação. Importante contribuição foi dada pela pastoral
operária de São Paulo.

215
e, quando superam esses entraves, desorganizam toda a sociedade, ameaçando a existência
da propriedade burguesa (MARX, ENGELS, 2001, p. 34).
Enraíza-se no movimento de reconstrução interna do capital a gestação de crises econômicas
internacionais cada vez mais intensas. A tendência decrescente da taxa média de lucro, mesmo que
entrecortadas por ondas longas expansivas (MANDEL, 1985), faz ramificar as relações do capital para
o conjunto da vida social. Ramificação esta, que se manifesta na destruição das capacidades físicas e
psíquicas de uma parcela crescente dos trabalhadores, como condição inevitável de manutenção das
bases de sustentação desse modo de produção.
O Fordismo e suas implicações econômicas e políticas, responsáveis pela consolidação da
idade dos monopólios, foi também responsável pela introdução de uma nova sociabilidade da classe
operária diante das novas formas incutidas no processo de trabalho.
As condições psicofísicas pioram, a tensão nervosa aumenta; o trabalho é monótono e
extenuante, confunde os reflexos, e a atenção do operário na máquina diminui. É exatamente
no fim da jornada de trabalho que muitas vezes ocorrem os acidentes mais graves
(BERLINGUER, 1985, p. 123).
A onda longa recessiva (MANDEL, 1985), inaugurada na década de 1970 gerou implicações
estruturais e superestruturais no âmbito da produção e reprodução social gestada sob a égide desse
modelo de acumulação. A chamada reestruturação produtiva combinada ao projeto de remanejo estatal
Neoliberal2 buscava contra restar a decrescência das taxas de lucro numa corrida de desoneração do
capital e modernização das formas de exploração aplicadas até então pelo Fordismo.
A política de redução permanente do tempo de rotação de capitais combinou um processo
absoluto e relativo de extração de sobre trabalho, que se expressa na intensificação do ritmo da
jornada, nas táticas de extensão da mesma e na negligência teleológica quanto a investimentos em
segurança do trabalho. Refletem assim, a concepção do capital de que “[...] a saúde – entenda-se a
saúde suficiente é um simples e relativizado componente da mercadoria força de trabalho” (RIBEIRO,
1997 apud ABRAMIDES, CABRAL, 2003, p. 7). E como tal, são custos de produção que podem ser
reduzidos, exacerbando a reificação do trabalhador que, equiparado a qualquer mercadoria inclusa
no processo produtivo, passa a ser substituído, especialmente diante à deflagração dos agravos
consequentes do trabalho.
Os acidentes e as doenças resultantes do trabalho são expressões da realização dos fins
privados do capital sobre os corpos dos trabalhadores desde as protoformas desse modo de produção.
Mas o trabalho “flexível” trouxe novos signos a essas moléstias, sendo a invisibilidade um dos mais
cruéis aspectos que a transformação dos acidentes próprios do Fordismo3 não foi capaz de amenizar:
As mutilações do passado poderiam ser visivelmente mais feias, porque o cara perdia a mão,
perdia o braço, perdia o pé. Mas hoje as mutilações são maiores e mais prejudiciais do que
aquelas quando ele perdia o membro. Porque o cara hoje não perde só um membro, mas
fica mutilado internamente por inteiro. Então ele sofre não só a mutilação, mas a pressão
psicológica dos amigos, da empresa. Porque cê olha o corpo do cara e não falta nada nele.
mas ele tá inteirinho arrebentado por dentro e você pensa que ele é uma safado que não quer
trabalhar.[...] acho que isso é muito mais prejudicial do que quando o cara perdia um braço.
Primeiro que o trabalhador via o problema, segundo porque ele era colocado num serviço
compatível que ele pudesse fazer sem um braço. E ele sentia que era útil, preparava a cabeça
pra viver sem um braço, seguia trabalhando e a vida dele continuava. Hoje não. A pressão é
muito grande, os cara chamam ele de vagabundo! As dores que ele sente ninguém vê, porque
é interno. Então a situação piorou porque o ritmo de trabalho é muito alucinante [...]. Três,
quatro anos de fábrica, o trabalhador tá com todos os nervos atrofiados.4

2
A responsabilidade da crise, segundo Friedrich Hayek e seus asseclas, era do “[...] movimento operário que havia
corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre salários e com sua pressão parasitária
para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais” (ANDERSON, 1999, p. 10).
3
Há setores em algumas oficinas onde, quase todos os operários, falta pelo menos um dedo” (BERLINGUER, 1985, p. 124).

4
Renatão. Membro da direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos (SINDMETALSJC). Entrevista
concedida em março de 2010.

216
A desconstrução da saúde, expressão da “questão social”5, historicamente condicionada à
correlação de forças estabelecida pela disputa das classes antagônicas em diferentes conjunturas,
explicita o fundamento de suas assimetrias internacionais e demanda, para além da discussão de suas
manifestações sintomáticas, a construção de instrumentos que permitam aos trabalhadores refrear
as condições de acumulação do capital e organizar o sofrimento num programa político estratégico.
Nesse sentido, a experiência da disputa das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA)
realizada pelo SINDMETALSJC como via de construção de um ativismo que, em torno da saúde,
organize a classe no local de trabalho, se tornou suporte central dessa investigação.
Essa aproximação se deu num cenário ilustrado pelo enfrentamento dos metalúrgicos à
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), que propunha a redução salarial do setor
metalúrgico como medida de contenção dos efeitos da crise que se desenhava. A proposta considerada
legal pelo Supremo Tribunal Federal (CORDEIRO, 2009), e hegemonicamente aprovada no estado de
São Paulo, com a colaboração das centrais sindicais aliadas ao governo do Partido dos Trabalhadores
(PT), foi rechaçada em São José dos Campos, e sinalizou a questão: quais os elementos subjetivos
colocaram esses trabalhadores na contracorrente do projeto do Capital?
Apesar dos desafios e tarefas cotidianas que se acumulavam, como o enfrentamento aos
bancos de horas, denúncias de assédio moral e a redução do trabalho vivo nas indústrias que chegavam
a fechar turnos inteiros, assembleias de base eram diariamente construídas nas portas das fábricas por
sujeitos sociais diversos; entre eles, os membros das comissões internas de prevenção de acidentes.
Mas qual o caráter dessas comissões, o potencial e as limitações da ocupação desse espaço
no processo amplo de reorganização da base operária brasileira? Dentre as demais organizações por
local de trabalho, quais expressões da realidade corroboram a construção da CIPA como instrumento
concreto de organização contemporânea? São perguntas que essa análise pretende problematizar, sem,
entretanto, a pretensão de esgotá-las, já que a incipiência desse debate entre as próprias entidades dos
trabalhadores deixa obstáculos como legado que apenas coletivamente poderão ser transpostos.

1 UM INSTRUMENTO VOLTADO A COLABORAÇÃO DE CLASSES?

As condições de insalubridade e as mortes consequentes das jornadas de trabalho exaustivas


foram elementos que subsidiaram o surgimento da CIPA, como política internacional de regulamentação
das relações entre capital e trabalho. A recomendação era da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que na década de 20 do último século, propunha a elaboração de um organismo de fiscalização
das condições de segurança no trabalho com participação operária.
Essa construção acontecia num cenário de tensões sociais generalizadas e respondiam a
reivindicações arrefecidas pela primeira grande guerra imperialista de 1914, quando as fábricas
tomadas por um setor operário de reserva e inexperiente substituta dos trabalhadores convertidos em
soldados, tinham as taxas de acidente aumentadas sobremaneira.
Se, por um lado, a CIPA se apresentava como uma conquista da classe trabalhadora, por outro,
era um meio de silenciar as movimentações que internacionalmente inspiravam-se na Revolução de
1917 e objetivavam o controle produtivo. A disputa ideológica impunha ao capital a necessidade de
convencer os trabalhadores que, nos limites dessa sociedade, demandas originárias de suas lutas eram
concretizáveis. A proposta, em alguma medida, aproximava patrões e ativistas e transferia o conflito
do chão de fábrica para a esfera da justiça do trabalho.
No Brasil, a admissão da CIPA à legislação igualmente ocorreu em resposta às agitações
operárias em curso. Determinada em 1944 por Getúlio Vargas, através do Decreto n. 7.036, que
reformava a lei de acidentes de trabalho. A CIPA era instituída no artigo 82 que determinava:
Os empregadores, cujo número de empregados seja superior a 100, deverão providenciar
a organização em seus estabelecimentos de comissões internas, com representantes dos
empregados, para o fim de estimular o interesse pelas questões de prevenção de acidentes,

5 “
Traço próprio e peculiar da relação Capital/Trabalho- a exploração [...] que nada tem a ver com os desdobramentos de
problemas sociais que a ordem burguesa herdou ou com traços invariáveis da sociedade humana: tem a ver, exclusivamente,
com a sociabilidade erguida sob o comando do capital” (PAULO NETTO, 2006, p. 158).

217
apresentar sugestões quanto à orientação e fiscalização das medidas de proteção ao trabalho,
realizar palestras instrutivas, propor a instituição de concursos e prêmios [...] (BRASIL, 1944).
A proposição da CIPA era parte de um conjunto de medidas que objetivava “[...] substituir o
velho e negativo conceito da luta de classes pelo conceito novo, construtivo e orgânico da colaboração
de classes” (GIANNOTTI, 1988:39), sendo em síntese uma composição de consentimento e controle
típico do Estado Varguista. Entretanto, a CIPA somente passa a ter executoriedade efetiva através da
Portaria n. 3.214 de 1978 (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 1978), da Secretaria de
Segurança e Saúde no Trabalho6, quando o “milagre” conduzido pelo Regime autocrático burguês
(PAULO NETTO, 2006), fez do Brasil campeão internacional de acidentes de trabalho (BONCIONI,
1994), e onerou o Estado com um número exorbitante de indenizações por invalidez7, expressando a
sua dupla funcionalidade econômica e política.
Essa portaria é dividida em 28 normas regulamentadoras, sendo a Norma Regulamentadora
número 5, a NR-5, àquela responsável por apontar os critérios de observância obrigatória das CIPAS.
“Composta de representantes do empregador e dos empregados” (CIPA, 2015), a CIPA é defendida a
partir da exaltação de um caráter democratizante das relações entre capital e trabalho. Flutua sobre sua
existência a abertura da gestão empresarial à participação operária como fiscal das condições de saúde
no trabalho. A NR-5, entretanto, é a própria expressão da utopia democrática nos marcos do capital.
Dentre os aspectos normativos da CIPA que indicam a concessão mantida sob controle,
temos a composição estrutural das comissões. 50% da CIPA é composta por operários indicados
pela patronal8; as demais cadeiras estão sujeitas a disputa eleitoral, sendo a totalidade da composição
da CIPA por agentes diretamente vínculos a chefia, e sua consequente transformação numa via de
transmissão da política patronal, o mais comum dos cenários na disputa de projetos societários.
Outros elementos jurídicos asseguram o controle patronal sobre a ação institucional da
CIPA, como os que deliberam sobre cargos9; a elaboração e coordenação de cursos de formação10 dos
cipeiros11 e suas competências.12 Contudo a CIPA é portadora de uma face contraditória. Destrinchar
sua ação extra institucional pode desconstruir limites legais e o fatalismo com que parte dos ativistas
tratam esse instrumento, ao compreendê-lo como campo estrito a cooptação.

2 O REGIME AUTOCRÁTICO BURGUÊS E O PAPEL DA CIPA COMO


INSTRUMENTO DE LUTA NO BRASIL

A autocracia burguesa foi uma necessidade impreterível à consolidação do desenvolvimento


monopolista no Brasil de industrialização tardia. Dentre as tarefas delegadas pelo Grande Capital
(IANNI, 1981), ao seu regime, minar as organizações operárias que ganhavam força no início de 1960
era uma meta que se objetivava, entre outros elementos, pela intervenção na superestrutura sindical.
Contraditoriamente, o controle exercido pela burocracia civil-militar provocou um
movimento de retomada de práticas originárias do movimento operário. Levadas à clandestinidade,
as organizações operárias foram impelidas à reconstrução de um trabalho por fora dos sindicatos,
num processo de enraizamento da resistência nas bases que ia desde as organizações de bairro, até
as organizações por local de trabalho (OLT), embriões da posterior derrubada do regime autocrático:

6
Atualmente - Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (DSST).
7
Apesar da subnotificação e das fraudes próprias da autocracia burguesa, a relação óbitos/acidentes no Brasil se elevou
em 1971 de 1.9/1000 acidentes para 3.2/1000. Em 1979, foram registrados 14.000 casos de doença de nexo causal embora
se estimasse a existência de 30.000 trabalhadores portadores de silicose, além da existência de 1,4 milhões de acidentes
de trabalho a cada ano (RIBEIRO,1993, p. 48).
8
5.6.1. “Os representantes dos empregadores, titulares e suplentes serão por eles designados.” (CIPA, 2015).
9
5.11: “O empregador designará entre seus representantes o Presidente da CIPA, e os representantes dos empregados
escolherão entre os titulares o vice-presidente” (CIPA, 2015).
10
5.32 A empresa deverá promover treinamento para os membros da CIPA, titulares e suplentes. (205.028-5/ I4).
11
Designação dos membros da CIPA (CIPA, 2015).
12
“5.19 Cabe ao Presidente da CIPA: e) Delegar atribuições ao Vice-Presidente. 5.20 Cabe ao Vice-Presidente: a)
executar atribuições que lhe forem delegadas” (CIPA, 2015).

218
Depois do golpe militar a construção das organizações por local de trabalho ganhou
força porque nós vimos que era fundamental fazer o trabalho de formiguinha, descobrir
companheiros que estivessem preocupados, ajudá-los a construir uma consciência crítica
do momento que estavam vivendo, do ponto de vista da exploração do trabalho, do ponto de
vista da ditadura militar, do roubo do direito dos trabalhadores e da importância de voltar
às origens do sindicalismo[...] a ditadura militar pelas circunstâncias levou a unificação do
movimento de base pra fazer esse enfrentamento e permitiu um avanço da consciência de
classe muito profunda [...].13
Sem a centralidade das táticas de agitação e propaganda, esse trabalho de soerguimento de
uma consciência coletiva se iniciava na discussão das formas mais imediatas da exploração, nas quais
o exercício da compreensão da impossibilidade de satisfação das necessidades dos trabalhadores no
modo de produção capitalista brotava da luta por questões aparentemente menores, como a qualidade
da comida servida, ou pelo reparo de uma máquina que colocasse em risco a segurança dos operários.
Não falávamos nas fábricas da ditadura militar. Nós falávamos de condições de trabalho, do
problema da falta de ventilação, do ritmo de trabalho, da prevenção de acidentes, dos riscos,
das doenças, de como o patrão explorava [...] Nós começamos em cima disso, ao despertar
a consciência ela avança pra concluir que isso tudo faz parte de um modelo de exploração
que era preciso, então, enfrentar [...].14
O trabalho político na base operária criava uma identificação entre os trabalhadores que
permitia o entendimento de que o sofrimento latente de cada um era, em verdade, um sofrimento
coletivo. Essa movimentação iniciada no chão de fábrica se expandia, configurando um dia-a-dia de
lutas construtoras de uma unidade dialética entre demandas econômicas e políticas.
As mobilizações tomavam corpo e fortaleciam a construção de OLTs clássicas: os comandos
de greves, comissões salariais e comissões de fábrica. Data também desse período a experimental
transformação das CIPAS em um instrumento de organização política dos operários, tal qual realizado
pela ASAMA indústria de máquinas S/A, na cidade de São Paulo em 1981 (SILVA, 2006).
Os trabalhadores adotaram a ocupação deste organismo a partir de uma brecha que a própria
normatização das CIPA dispunha. O item 5.8 da NR-5 veda “[...] a dispensa arbitrária ou sem justa
causa do empregado eleito para cargo de direção de Comissões Interna de Prevenção de Acidente, desde
o registro de sua candidatura até um ano após o final de seu mandato” (CIPA, 2015). A estabilidade
permitia a publicização dos membros da CIPA e a segurança do conjunto dos militantes clandestinos.
A organização autônoma erguida à margem da superestrutura sindical e seus desdobramentos
conseguiram ampliar a mobilização os trabalhadores ao ponto de criar uma situação de dualidade
dentro da fábrica, na qual as decisões passavam pelo crivo dos trabalhadores: “O advogado da empresa
falou pro diretor da ASAMA: a fábrica não é mais sua, eles tomaram conta” (SILVA, 2006, p. 40).
A garantia da independência da CIPA frente a sindicatos e partidos, como é o propósito das
OLTs por essência, era princípio formador da CIPA da ASAMA. (SILVA, 2006). Entretanto, como São
Bernardo do Campo se transformou na referência nacional de organização política dos trabalhadores,
também foi fortalecida a referência de OLT defendidas por esses setores, cuja estratégia refletia a
construção de organizações que transmitiam à base operária as tarefas propostas pela direção sindical.
Isolada politicamente, a ação da CIPA da ASAMA se diluiu e acabou dissolvida em 1984.
A CIPA imbuída de novo significado de classe cumpriu papel central na construção da
chapa da oposição metalúrgica de São José dos Campos. A ação era concentrada na formação de uma
CIPA na General Motors (GM) que organizava pequenas reivindicações no dia-a-dia da produção e
consolidavam nas bases as referências políticas que se candidatariam à direção na eleição que, em
1981, levou à vitória da oposição. A partir disso a construção das CIPA passa a cumprir um papel
fundamental para a luta dos trabalhadores da GM, e elevou o grau das organizações operárias dentro
da fábrica num processo de acúmulo de pequenas vitórias que, em 1984, chegou a erguer a primeira
comissão de fábrica com estabilidade de seus membros reconhecida na história da GM do Brasil.

13
Waldemar Rossi, coordenador geral da pastoral de São Paulo, ativista político desde a década de 1960 em entrevista
concedida em sua casa, na cidade de São Paulo, em junho de 2010.
14
Idem.

219
O somatório de forças entre comissão de fábrica, CIPA, e a direção sindical por esta erguida
foi responsável pela organização de uma das greves mais importantes da história dos metalúrgicos de
São José dos Campos. A greve da GM de 1985 terminou com a ocupação da fábrica, repressão policial
e a demissão de 93 trabalhadores, entre eles diretores sindicais e cipeiros. Elucidando a fragilidade
jurídica da burguesia, a estabilidade legal dos trabalhadores foi subordinada ao interesse patronal.
Do ponto de vista organizativo:
A maioria das conquistas no interior da fábrica é determinado fundamentalmente pelo grau
de organização que a gente tem dentro da empresa. O patrão tolera o sindicato fora da
fábrica, mas o sindicato dentro da fábrica é muito mais difícil.15
Isso resulta de uma dimensão privilegiada portada pelo espaço donde o conjunto das demais
relações sociais é resultado:
É no local de trabalho que acontece tudo. A aplicação da política da patronal, a exploração
da mais valia, é lá que acontece a rebelião. É lá que o trabalhador dá o basta e vê no processo
da luta a possibilidade de acabar com aquela situação na vida delas. A organização de base, o
trabalho de base e a condição de uma categoria, uma classe organizada.16
O processo de burocratização e cooptação sofrido pela Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e o PT, embriões da admissão das medidas propositivistas fez com que direitos garantidos
fossem barganhado em troca de salários, e o trabalho via OLT abandonado nos anos 90. Apesar
disso, em São José dos Campos, a experiência da CIPA da GM criou uma tradição que contribui,
apesar das dificuldades garantidas pela expansão do capital sobre as organizações do trabalho, à
manutenção de direitos extintos para o conjunto dos trabalhadores, como a estabilidade para lesionados
até a aposentadoria.

3 CIPA: UMA ALTERNATIVA VIÁVEL À REORGANIZAÇÃO OPERÁRIA?

Assim como qualquer instrumento de luta, a ação da CIPA é resultado do projeto construído
por seus sujeitos sociais, sendo um campo de disputa para a organização do trabalhador. Se apartada
de outros instrumentos factíveis, e limitada a construção de um programa exequível nos limites do
capital, torna-se estreita e infrutífera. Entretanto, se localizado em um programa político estratégico,
pode significar um passo importante na, ainda incipiente, organização do movimento operário. E essa
ação é iniciada na superação das atribuições imbuídas aos seus membros pela legislação:
[...] na CIPA combativa ‘o cipista’17 tem que ir para além da NR-5 que normatiza sua ações18
Mas a defesa dessa proposta de ação é desde o princípio, dificultada pelos cursos de formação
de cipeiros. Legalmente atribuídos a própria direção das empresas, esses naturalizam a insalubridade
produtiva e agregam aos trabalhadores a função de contenção dos acidentes via fiscalização dos
operários, como vemos no exemplo da GM:
A GM tem uma forma de avaliar os acidentes que é o método dos porquês. Funciona assim:
O funcionário escorregou e caiu. Porque ele escorregou? Porque tinha óleo no chão. Porque
tinha óleo no chão? Porque tinha um vazamento. Porque não passou um pano no chão? Na
verdade, ela tem um objetivo. Que o trabalhador chegue a conclusão de que se o cara sofreu
acidente isso acontecer porque o operário não seguiu as regras de segurança caracterizando
um ato inseguro, portanto e culpa dele.19
A partir dessa caracterização, um dos pontos que hoje é mais desenvolvido pelo
SINDMETALSJC no campo da saúde do trabalhador é unidade de ação com a CIPA, na campanha

15
Satã. Direção Nacional do PSTU. Entrevista concedida em março de 2010.
16
Edson Alves. Operário da Avitron e membro da direção do SINDMETALSJC. Entrevista concedida em março de 2010.
17
Cipistas ou cipeiros classistas. Assim são chamados entre os ativistas, os membros da CIPA desvinculados da chefia.
18
Edson, operário da Avitron e membro da direção sindical. Entrevista concedida em março de 2010.
19
Macapá, operário da GM e diretor sindical. Entrevista concedida em março de 2010.

220
“CIPA + sindicato: Com esse time a vitória é certa.”, cujo objetivo fulcral é a formação política dos
membros da CIPA, que incidirá diretamente na disputa de projetos construída na fábrica, já que
A empresa quando tem CIPA, dá um curso por ela mesma que não explica nada. Serve só pra
implementar a política deles. Eles não falam nem que tem que abrir CAT20, não falam que
qualquer tipo de acidente, mesmo que seja um pequeno corte tem que ser comunicado. Tem
que ter um trabalho de formação junto com o sindicato. Não existe uma CIPA que não esteja
de um lado ou de outro [...].21
A função do “Cipista” é construir novos ativistas políticos, sendo um agente privilegiado
de formação que, pela característica de sua ação, pode transitar pelo espaço produtivo e mobilizar
cada trabalhador. Mais que a realização formal dos mapas de risco, essa especificidade permite a
identificação da disposição de ação operária, e faz do cipeiro um “catalisador” da consciência de que
a existência dos riscos é produto direto da sociedade baseada na exploração:
O ‘Cipista’ tem que sair da mesmice de fiscalizar se o cara tá de bota, se não tá de bota, se tá
com protetor auricular, se tá de óculos. O que temos que discutir é que não haja necessidade
de usar óculos, que não haja ambiente ruidoso, que não tenha condições do trabalhador
sofrer acidentes. O EPI previne uma situação que pode acontecer num acidente de trabalho.
Temos que discutir a não possibilidade do acidente acontecer.22
A presença da CIPA no cotidiano da empresa pode também propiciar materialidade à própria
ação sindical. Em razão da racionalidade de sua função, o diretor abarca um conjunto de fábricas, o
que por si só impõe dificuldades de aprofundamento nas relações específicas de cada uma delas. A
presença do cipeiro permite a tomada do conhecimento das arbitrariedades praticadas no cotidiano
produtivo e organização de reivindicações que poderiam permanecer ocultas:
A GM tinha fechado um setor inteiro da fábrica. Deu demissão voluntária pra uns e licença
coletiva pra mais ou menos uns 180 caras. Eu fiquei um ano de licença e quando a gente
voltou, a empresa botou o pessoal pra contar parafusos que já tinham ido pro lixo e separar
por números. Quando chegava de noite a gente não conseguia nem dormir porque os
parafusos ficavam dando volta na mente. Agora se lá não tivesse CIPA, os diretores sindicais
nem iam sonhar que isso estava acontecendo.23
A convivência cotidiana pode também cumprir um papel importante no combate a aspectos
da herança deixada pelo transformismo político do PT (COELHO, 2012), pois:
O trabalhador tem mais confiança na CIPA que no sindicato por causa da convivência[...].24
A CIPA ainda colabora à construção de uma educação de reivindicações imediatas, que
acontecem sem a intervenção sindical, e cria uma nova camada de ativistas que, organizados de forma
autônoma, não terceiriza a tarefa da luta, tornando-se um instrumento central de controle operário e
combate à burocratização:
O trabalho de base é fundamental pra recuperar o que foi perdido na década de 90. [...]
ter elementos organizadores internos, como delegados sindicais, comissões de fábricas, e
as CIPAS ajudam e muito na organização no local de trabalho porque cria um habito de
reivindicação que foi se perdendo [...] Sem isso, se o sindicato achar que a luta sindical é
feita pelos seus diretores, por sua estrutura, esse sindicato é burocratizado.25
Mas, a unidade entre sindicato e CIPA não pode ameaçar a manutenção de sua independência,
e mecanismos que garantam um processo permanente de democracia operária tornam-se imperativos.
Nesse sentido uma vitória dos operários de São José dos Campos foi a construção do Conselho de

20
Comunicado de Acidente de Trabalho.
21
Dantas, ex-cipeiro, membro da direção do SINDMETALSJC. Entrevista concedida em abril de 2011.
22
Edson Alves. Membro da direção sindical. Entrevista concedida em março de 2010.
23
Edson Alves. Membro da direção sindical. Entrevista concedida em março de 2010.
24
Waldir, cipeiro da GM em entrevista concedida em abril de 2011.
25
Herbet Claros. Vice-presidente do SINDMETALSJC no período da realização da entrevista. Março de 2010.

221
representantes no SINDMETALSJC. Composto exclusivamente por membros das OLTS, o conselho
tem poder deliberativo superior à direção sindical, com a perspectiva de garantir a razão de ser
das OLTs. Mas se as OLT são, como um todo, capazes de avançar politicamente o movimento dos
trabalhadores, porque as CIPA têm sinalizada sua importância na contemporaneidade?
A primeira proposição aventada é a desorientação política que se aprofunda na classe
operária após 12 anos de governo do PT. A visibilidade dos interesses irreconciliáveis que movem a
sociedade capitalista é turvada por ideologias de conciliação ou negação de classes, reafirmado pelo
“Lulismo”, que desmantelou as organizações dos trabalhadores e enraizou-se de forma profunda
especialmente nas entidades sindicais. Ao contrário do regime autocrático o controle é baseado não
na força, mas na confiança em um líder que não é “[...] um líder populista se passando por um
trabalhador sofrido, é antes de tudo um trabalhador, migrante, que partilha com eles o trabalho na
produção” (IASI, 2006, p. 370).
Esse quadro coloca uma tarefa complexa e ainda incontornável: como formar um processo
de consciência revolucionária numa classe cuja juventude é centrada na ação individual, desconhece
a prática revolucionária como prática concreta e a própria origem de suas agruras? A resposta parece
pousar nas condições palpáveis da vida operária e na inevitável materialização da exploração como
elemento capaz de desconstruir as ideologias típicas da cultura pós-fordista.
E a devastação das capacidades psicofísicas que as sucessivas reestruturações do capital
infligem aos trabalhadores faz justamente da ausência da saúde uma demanda sensível e urgente:
É impressionante a quantidade de jovens em torno de 20 a 25 anos de idade que têm problemas
que antes eram relacionados a doenças de ‘velho”, como hérnia de disco, bursite e surdez.26
O cansaço permanente do sobre trabalho, o assédio moral e as pressões emocionais que
fazem operários trabalharem sem saúde, diante o medo das demissões, são desconsideradas como
fatores de adoecimento, aumentam índices de acidente de trabalho, além de disseminar, de forma
epidêmica, um conjunto de doenças psíquicas, como a depressão, síndrome do pânico e a ergofobia:
[...] A fábrica tinha que produzir carros, mas hoje está produzindo um exército de lesionados.27
Agravam essas condições a construção do ajuste fiscal em curso no 2º governo Dilma,
cujas medidas severas desconstroem direitos e rebaixam de forma trágica as condições de vida e
trabalho. Concomitante ao Projeto de Lei n. 4.330 que generaliza a terceirização e suas já conhecidas
implicações sobre a saúde do trabalhador, a privatização da perícia médica, através da Medida
Provisória n. 664, entrega ao capital privado o poder de deliberação sobre o afastamento por agravo
resultante do trabalho, e traz à tona prospecções tenebrosas para o futuro dos lesionados pelo capital.
Hoje no SINDMETALSJC, a principal porta de entrada do operário é o departamento de
saúde do trabalhador. Por isso, esse é o principal foco de formação de um novo ativismo sindical.
[...] Hoje o departamento de saúde do trabalhador é o que tá trazendo mais gente pra militar,
porque a partir do momento que o cara vê que ele perdeu saúde na fábrica, ele não tem mais
valor nenhum pro patrão. O trabalhador procura o órgão sindical por que perdeu a saúde e
a partir disso a gente fala pra eles do porque eles foram alijados do processo, aí ele vê que
é porque a saúde acabou. Por isso que eu acho que nessa reorganização que tá havendo,
um dos polos pra atrair os trabalhadores ao sindicato, infelizmente, será o setor de saúde28.
Entretanto, a tradição economicista do movimento operário sinaliza uma dificuldade histórica
de construção do debate da saúde do trabalhador. Como aponta Berlinguer (1983, p. 15):
[...] os partidos dos trabalhadores sofreram de fato a chantagem ‘ou trabalho, ou saúde’,
deixaram de lado a análise dos danos psicofísicos das novas tecnologias, [...] aceitaram os
ritmos obsessivos, gases, pós, as horas extraordinárias mais longas e os turnos estafantes
fossem todos transformados em indenizações monetárias nos contratos de trabalho.

26
Herbet Claros. Vice-presidente do SINDMETALSJC no período da realização da entrevista. Março de 2010.
27
CN. Operário da General Motors, lesionado pelo trabalho. Entrevista concedida em janeiro de 2010.
28
Renatão, membro da direção sindical. Entrevista concedida em março de 2010.

222
Essa concepção secundarizou o debate da saúde como uma demanda reformista, e mesmo no
SINDMETASJC, a importância da ocupação da CIPA não é consensual. E essa divergência pode, na
disputa interna de estratégias sob as pressões externas do capital que se exacerbam durante o governo
vigente, colocar em risco todo o trabalho até então construído na base sindical. Contudo,
Uma palavra de ordem não é em si uma palavra revolucionaria se não for localizada dentro
de um programa revolucionário para avançar a consciência. [...] numa conjuntura em
que muitas vezes nem uma luta contra demissões se torna possível, é preciso levantar os
problemas concretos, que o trabalhador sente no dia a dia e[...] fazendo esses pequenos
questionamentos irem avançando até que o trabalhador entenda que dentro desse sistema
não há espaço para a satisfação das suas necessidades.29
Lutar pela saúde do trabalhador requer a construção de reivindicações que extrapolem as
demandas imediatas sem, entretanto, desconsiderá-las como elemento concreto de soerguimento da
consciência que, a partir de um conjunto de reivindicações transitórias (TROTSKY,2008), caminhe no
sentido de edificar as bases que levarão à transposição das fronteiras desse modo de produção. Afinal,
A saúde do trabalhador, pra gente pode alcançar tem que ter trabalho com segurança, sa‑
lubridade, sem intoxicações, sem lesão, pressão, sem assédio moral. Passa pela redução
da jornada, passa pelo controle operário da produção, passa pela socialização. Porque o
patrão visa somente o lucro. Pra ter saúde não pode ter patrão.30

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29
Antônio Neto, Assessor do Sindicato dos Petroleiros de Alagoas e Sergipe em entrevista concedida em junho de 2011.
30
Edson Alves. Membro da direção sindical. Entrevista concedida em março de 2010.

223
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224
TRABALHO, SAÚDE AMBIENTAL E MOVIMENTOS SOCIAIS:ELEMENTOS
PARA PENSAR AS RESISTÊNCIAS DO TRABALHO FRENTE AO CAPITAL
Diego Pessoa Irineu de França*
Antonio Thomaz Júnior**
RESUMO: O modelo de desenvolvimento pensado e executado no campo brasileiro, nas últimas décadas, trouxe um conjunto de
implicações que poderíamos qualificar negativamente pelo seu teor destrutivo, sobretudo no que se refere às questões socioambientais.
Merece destaque, neste contexto, dois elementos importantes: a saúde ambiental, que está relacionada, sobretudo aos impactos dos
agrotóxicos no Brasil; e as condições de vida e trabalho dos homens e mulheres envolvidos (diretamente e indiretamente) com os
processos produtivos. A territorialização do capital, personificado em grandes grupos nacionais e internacionais, que se apropriam da
terra e da água no Nordeste são exemplos desse quadro, na medida em que ampliam as contradições nas localidades. Tal processo nos
força a pensar, neste artigo, como os problemas relacionais acima incorporam e reforçam as ações dos diferentes sujeitos sociais por
condições melhores de vida e até mesmo por emancipação humana.
Palavras-chave: Trabalho, Saúde ambiental e movimentos sociais
ABSTRACT: The thought development model and executed in the Brazilian countryside in recent decades has brought a number of
implications that could negatively qualify for their destructive content, especially with regard to environmental issues. Noteworthy
in this context, two important elements: environmental health, which is related mainly to the impacts of pesticides in Brazil; and the
conditions of life and work of the men and women involved (directly and indirectly) with the production processes. The territorial
capital, embodied in major national and international groups, who appropriate the land and water in the Northeast are examples
of this situation, to the extent that expand the contradictions in the localities. This process forces us to think, in this article, as
the above relational problems embody and reinforce the actions of different social subjects for better living conditions and even
for human emancipation.
Keywords: Labour; environmental health and social movements

INTRODUÇÃO

O objetivo principal deste texto consiste em discutir sob um olhar geográfico a relação
entre o modelo de desenvolvimento pensado para o campo brasileiro e os desdobramentos sobre a
saúde ambiental e para o trabalho, especialmente no Nordeste, apontando a necessidade de refletir
sobre as ações emancipatórias encabeçadas pelos movimentos sociais, especialmente de luta
pela terra e pela água.
A temática da saúde ambiental exige que tenhamos a sensibilidade de enxergar as devidas
relações entre os processos sociais, econômicos e (geo)políticos que influenciam na transformação
do ambiente nos diferentes contextos da territorialização de um conjunto de agentes do capital. Tais
agentes ao monopolizarem os recursos naturais, grandes extensões de terras, impondo sua forma
de produção (fundamentada na quimificação e monocultura) criam um ambiente adverso à saúde
humana, cuja consequência direta é a intensificação dos conflitos em torno de tais contradições.
Por esta razão, é necessário compreender o processo de produção e reprodução da vida em
sua integralidade e em seu contexto histórico como elemento importante para enxergar os danos
à saúde do trabalhador a partir da dimensão territorial da saúde, que pressupõe a relação homem-
natureza. Conforme aponta Rigotto (2003), ao argumentar que no atual momento de reestruturação da
produção no capitalismo, as relações de saúde-trabalho-ambiente complexificam, especialmente nos
países em desenvolvimento para onde vieram as atividades produtivas de maior impacto ambiental.
Tal fato demonstraria o caráter seletivo – eu diria intencional e planejado – da localização
espacial dos processos produtivos mais destrutivos. A partir da liberalização econômica do capitalismo
essa ideia de desigualdade ambiental (ACSELRAD, 2012) ganha mais corpo na medida que os danos
decorrentes de práticas poluentes transferem-se dos países centrais para o hemisfério sul, exportando
junto com as empresas os riscos ambientais às populações pobres desses países.
Um exemplo recente dessa racionalidade é dado pela quantidade de projetos financiados
pelo Banco Mundial, destinados ao Brasil, enfatizando os danos decorrentes de tais investimentos:
*
Doutorando em Geografia pelo programa de Pós-graduação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) - Campus Presidente Prudente-SP. E-mail-
diego.pe.ssoa@hotmail.com.
**
Docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, Campus Presidente Prudente-SP. Coordenador do
Centro de Estudos de Geografia do Trabalho. Coordenador do Centro de Estudos do Trabalho, Ambiente e saúde.
E-mail- thomazjr@gmail.com.

225
Entre 2004 e 2013, o Banco Mundial aprovou o financiamento de 153 projetos no Brasil,
dando prioridade [...] aos setores de ‘Administração pública, administração da lei e da justiça’;
‘Agricultura, pesca e silvicultura’; e ‘Água, saneamento e proteção contra inundações’.
Em 42 projetos, 27,5% do total, há evidências de que pessoas perderam suas casas, terras
ou empregos. Desses, 57% projetos são ligados ao setor de água, saneamento e proteção
contra inundações. Pelo menos 10.094 brasileiros sofreram as consequências negativas
desses projetos, que custaram cerca de US$ 7,4 bilhões ao banco. As informações são de
um levantamento realizado pelo ICIJ com dados disponíveis no site do Banco Mundial. De
acordo com a pesquisa, o Brasil é o segundo país com maior número absoluto de projetos
que foram financiados pelo banco em que pessoas sofreram impactos negativos, ficando atrás
apenas da China, com 112 projetos (BARROS, AFIUNE, 2015).
Ao instaurar um conjunto novo de contradições e conflitos, a reestruturação do capital exige
de nós um repensar teórico1 que dê conta de compreender o papel dos sujeitos no interior dos processos
de dominação ditado pelo capital financeiro. Se partirmos da premissa de que o espaço geográfico é
produzido pela sociedade e, portanto, expressa suas contradições (SANTOS, 1997), cabe, ao mesmo
tempo, ressaltar a necessidade de entender a dimensão territorial das ações concretas dos diferentes
sujeitos e movimentos sociais envolvidos na trama dialética da luta de classes (THOMAZ JÚNIOR,
2002; MOREIRA, 2004), que ganha maior potencial combativo a partir da inserção de questões
relacionadas a saúde na atualidade.
Neste contexto, pensar a saúde ambiental pressupõe considerar as mudanças ocorridas na
lógica contraditória de acumulação mundializada do capital e como esta tem provocado rebatimentos
diretos sobre os homens e mulheres, seja através do uso intensivo de agrotóxicos, seja pelos diversos
tipos de agravos à saúde dos trabalhadores, fatos que se ampliam nas regiões brasileiras de forte
expansão do modelo “agro-hidro-exportador”.
O presente texto está organizado em duas partes. Na primeira, inicialmente, se fez necessário
tecer considerações sobre as transformações provocadas pelo movimento ampliado de acumulação
do capital para que entendamos os impactos de tais mudanças sobre a saúde ambiental, a degradação
do trabalho e a emergência das formas de luta, enquanto expressões concretas dessa totalidade
social. Depois, exemplificamos nossa problemática a partir de fatos concretos, ocorridos nas áreas de
fruticultura irrigação no semiárido do Nordeste brasileiro.

1 MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL E AS IMPLICAÇÕES SOBRE O


TRABALHO E SOBRE O AMBIENTE

O processo de mundialização do capital, apontado por François Chesnais (1996), provocou


um conjunto de redefinições na estrutura e na organização social do trabalho, bem como provocou
mudanças profundas na relação sociedade-natureza.
Com a financeirização da economia descrita por Harvey (2004), especialmente a partir da
década de 1970, em que tudo se subordina aos imperativos do capital financeiro, assistimos a ampliação
das formas de controle privado da riqueza social e o alargamento do potencial destrutivo com que
o capital atua, sobretudo quando consideramos à degradação do meio ambiente e a precarização/
desrealização do trabalho.
O capital, ao subordinar a relação sociedade-natureza à lógica do lucro, compromete-a
através do que Mészáros (2004) denomina de subsunção dos valores de uso aos valores de troca,
ou melhor, da subordinação das mediações de primeira ordem, que correspondem à produção das

1
Essa temática passa pela discussão sobre o papel da ciência na atualidade, quando assistimos um verdadeiro
comprometimento da “autonomia científica” em função de interesses econômicos e políticos direcionados ao processo de
acumulação do capital. Com isso, mesmo que sob o disfarce “neutralidade” observamos uma tendência à Inclinação de
vários pesquisadores de instituições importantes a esse fim. É ilustrativo de tal fato, o depoimento de Fernando Carneiro,
coordenador do GT Saúde e Ambiente da Abrasco: “Muitos dos pesquisadores que representam a Associação Brasileira
de Ciência (ABC) e a SBPC na CTNBio têm as pesquisas financiadas pelas empresas que se beneficiam do agronegócio,
e sabemos que na CTNBio não há espaço para discutir conflitos de interesse, mas temos que discutir isso. A ciência está
para quem, para o mercado ou para a população brasileira?”.

226
necessidades básicas dos indivíduos e da sociedade, às mediações de segunda ordem, fundamentadas
essencialmente na troca e no lucro.
Nesse sentido, o capitalismo contemporâneo, enquanto expressão histórica o predomínio
do valor de troca, produz uma geografia fundada na acumulação que se materializa territorialmente
de modo desigual (SMITH, 1998). Conforme Harvey (2004 p. 78), a expansão geográfica tem sido
uma das saídas para enfrentar as crises de sobreacumulação do capital, principalmente através de
investimentos em infraestrutura estratégica que garanta maior controle social e da natureza, com
o intuito, sobretudo, de evitar a desvalorização, e descobrir maneiras lucrativas de absorver os
excedentes de capital. “A expansão geográfica e a reorganização espacial que proporciona a tal
opção”, afirma o autor citado.
Entretanto, tal processo supracitado revigora, cada vez mais, mecanismos brutais de
acumulação, como a acumulação por espoliação. Esta tem implicações profundas sobre a totalidade
dos trabalhadores de trabalhadoras, não só por ampliar a massa descolada dos meios de (re)produção,
ao expulsar um conjunto de pessoas da terra e dos seus territórios, mas também por provocar um
conjunto de precarização do trabalho, tornando-o cada vez mais abundante e heterogêneo, o que é
característico do regime flexível do toyotismo atual (ANTUNES,1999).
Vale ressaltar, neste contexto, a conivência e o papel do Estado enquanto agente que faz valer
os interesses da acumulação do capital (HARVEY, 2004). Contrariamente aos ideais neoliberais, de
que estaríamos diante de um suposto “recuo” de suas “fronteiras”, observamos a ampliação da sua
intervenção tanto institucional quanto produtiva, reforçando a ideia levantada por Mészáros (2004)
que “[...] o sistema do capital não sobreviveria uma única semana sem o forte apoio que recebe do
Estado”, seja através das políticas agrícolas, das facilidades fiscais, dos financiamentos de pesquisas,
da concessão de terra e água, entre outros.
Essa presença massiva da forma política estatal corresponde ao momento iniciado nos anos
1980, que devido à reconfiguração da forma de acumulação do capital imposta pela crise estrutural,
demandou uma nova forma de regulação política da economia denominada neoliberalismo. Antes de
constituir a extinção da intervenção e da regulação, argumenta, Mascaro (2013, p. 124):
O neoliberalismo não é uma retirada do Estado da economia, mas um específico modo de
presença do Estado na economia. [...] o neoliberalismo encontra na crescente demanda por
liberalização financeira e dos mercados sua bandeira de política econômica [...] não é uma
política dos capitais contra os Estados, é uma política de capitais passando pelos estados.
[Portanto] não é uma abolição da forma política estatal, mas, antes, sua exponenciação.
Por garantir um ordenamento territorial e um arcabouço institucional, fundamentados na
garantia da propriedade privada e na arregimentação dos contratos formais que permitem ao capital se
apropriar da terra e da água, por exemplo, o Estado assume um papel importante de sua reprodução.
Bens da natureza que não são produzidos pelo trabalhado humano, através de mecanismos variados,
são incorporados ao processo de valorização do capital. Como iremos perceber no presente texto, em
seguida, no caso da região semiárida do Nordeste brasileiro, a intervenção estatal demonstra um claro
redirecionamento em atender aos interesses capital, sobretudo através da concessão bens naturais
públicos, que são incorporados ao processo de acumulação em detrimento das populações locais.

2 O AGROHIDRONEGÓCIO NO NORDESTE DO BRASIL E SEUS


DESDOBRAMENTOS SOBRE O TRABALHO E O AMBIENTE

Se pensarmos tais premissas teóricas desenvolvidas até então, direcionando-as para o


campo brasileiro, investido nas últimas décadas por um conjunto de intervenções estatais e privadas,
constataremos o forte impacto sobre o trabalho e sobre a saúde ambiental inerentes a esse modelo,
especialmente nas principais regiões que se expande, seja com a cana, com a soja, com o eucalipto, com a
fruticultura irrigada, etc, direcionados a exportação. Conforme ressalta Thomaz Júnior (2011, p. 309),
[...] as frações do território em disputa (intra e intercapital) – com a participação crescente,
inclusive de grupos estrangeiros – expressam não somente uma nova geografia do espaço
agrário, no Brasil, mas consolidam o poder de classe do capital sobre as melhores terras

227
agricultáveis e planas do país, e da maior incidência de disponibilização de água de
subsolo da América Latina.
Nesta perspectiva, a concepção de agrohidronegócio (THOMAZ JÚNIOR, 2009) permite
entender a complexa trama de relações inerentes ao capital. Se observarmos os principais usos das
melhores terras brasileiras, em sua maior parte, constataremos que estão à disposição do capital.
Basta, a título de exemplo, observar as áreas expansão da soja, do eucalipto, da cana de açúcar e da
fruticultura, para constatar que, não por acaso, coincidem com os principais corpos d’agua superficiais
e subterrâneos brasileiros.
Ora, ao se apropriar indiscriminadamente da terra e da água (superficial ou dos aquíferos),
grupos empresariais provocam a privação dos meios essenciais que garantem a reprodução da vida de
milhares de trabalhadores, ao mesmo tempo em que flexibilizam, terceirizam e precarizam o trabalho
nos processos produtivos.
Além disso, o crescente número de agravos à saúde dos trabalhadores que estão diretamente
ligados a tais empresas, ou até mesmo das consequências para os pequenos produtores que são afetados
(pela contaminação da terra, da água e do ar) por estarem próximos aos grandes empreendimentos,
reforçam a necessidade da luta dos movimentos sociais contra o modelo do agrohidronegócio.
O exemplo dos Perímetros Irrigados na região semiárida do Nordeste brasileiro é
emblemático da intervenção estatal e da brutalidade da ação do capital em regiões de certo
“esquecimento” e “invisibilidade” da grande mídia e da opinião pública. Trata-se da construção de
grandes infraestruturas de irrigação e da concessão de terras públicas a iniciativa privada (nacional e
internacional), que permite a territorialização de grupos empresariais que praticam uma atividade de
fruticultura altamente impactante e nociva à saúde ambiental e humana.
Em tais obras de Irrigação tuteladas pelo Departamento de Obras Contra as Secas (DNOCS)
e da Companhia do Vale do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), a destrutividade do capital,
pode ser observada, sobretudo a partir dos impactos ambientais e para saúde do trabalho, como vem
ocorrendo com contaminação por agrotóxicos e com o aumento dos casos de doenças relacionadas à
ingestão (crônica e aguda) de veneno.
Tais evidenciadas apontadas por vários estudos são sintetizadas por Maciel, Rigotto, Alves
(2011), em pesquisa realizada com 540 trabalhadores na chapada do Apodi, no estado do Ceará. Deste
montante, cerca 341 eram do agronegócio, 156 agricultores familiares camponeses e 43 trabalhadores
dos assentamentos. Alguns resultados mostram que havia um forte risco à saúde, sobretudo nos
dois primeiros grupos, onde cerca 99% e 97,9%, respectivamente, estavam expostos a agrotóxicos.
Além disso, o estudo alerta que dos 420 trabalhadores que passaram por exames clínicos e laborais
completos2, 46,6% queixaram-se de problemas de saúde e em sua maioria os relacionaram aos
agrotóxicos. Além disso, 78, 45% relatam haver problemas neurológicos.
Esta relação entre territorialização das empresas e o comprometimento da saúde coletiva
nas comunidades e dos trabalhadores diretamente envolvidos nos processos de aplicação de veneno,
constituem a marca central da contaminação do meio ambiente pelo capital e dos rebatimentos sobre
a vida humana, especialmente depois de 2008, quando o Brasil assume o posto de maior consumidor
de veneno do mundo.3
Esse recorte empírico (embora não o único possível no Brasil) possibilita observar os
conflitos territoriais resultantes da ação do capital em se apropriar da terra e da água, bem como
a materialização da forma predatória dominante no que estamos chamando de agrohidronegócio,
muitas vezes encoberta pela ideia de “eficiência” e “alta” produtividade, sem que se questione
os verdadeiros custos.
Através de expansão de um modelo que tem por característica a concentração dos lucros e de
socialização das perdas, o capital segue sua marcha expansionista no campo brasileiro. A singularidades

2 “
Do total de 420 trabalhadores, 316 (75%) eram oriundos agronegócio e 104(24,8%) eram agricultores familiares”
(MACIEL, RIGOTTO, ALVES, 2011).
3
O Brasil desde 2008 é o país que mais consome agrotóxico no mundo, embora não seja o campeão mundial de
produção agrícola. Em 2013 foram consumidos um bilhão de litros de agrotóxicos no País – uma cota de 5 litros por
habitante (ADITAL, 2015).

228
da brutalidade presente nos mais diversos conflitos territoriais é que existe uma imposição dos danos
e dos riscos aos mais pobres, como se eles tivessem de aceitar sem questionar determinado modelo
ditado pelo capital.
Como bem mostra Acselrad (2010), através da chamada “chantagem locacional”, as empresas
buscam impor às populações subalternas a aceitação das consequências do trabalho precarizado e os
danos ambientais. Com os argumentos de que geram empregos (muitas vezes vulneráveis à saúde
humana) e de que seria melhor para os despossuídos aceitarem tais condições de trabalho precarizados,
ao invés de não ter “nenhum trabalho” – como se não houvesse alternativa –, tais empresas e o Estado
mascaram a dimensão predatória do modelo do agronegócio.
Essa sobreposição a qualquer custo de seu modelo, geralmente, ganha maior respaldo porque
está articulada a um discurso ideológico que tenta invisibilizar as consequências humanas e ambientais.
Por exemplo, no caso dos agrotóxicos, é comum se falar dos níveis de rentabilidade, de produção
etc. Mas, quase nunca se fala do problema de saúde pública que representa o uso indiscriminado de
veneno permitido no Brasil dos últimos anos. Com relação a isso, assistimos um verdadeiro descaso
de organismos estatais de vigilância sanitária que pouco conseguem (ou querem) fazer para combater
tal prática de veneno, que não é permitida em nenhum lugar dos países centrais.
Tais fatos parecem ser apenas a ponta do iceberg, pois os efeitos reais sobre a saúde humana,
derivada das exposições aos agrotóxicos não podem ser detectadas imediatamente. Se por um lado,
o agrohidronegócio provoca impactos profundos sobre o ambiente e sobre a classe que vive do
trabalho (ANTUNES, 1996), ampliando e invisibilizando as formas exploração, por outro, ressurgem
dos conflitos territoriais, de luta pela terra e pela água, os movimentos que podem encabeçar ações
emancipatórias, pois em suas lutas negam, essencialmente, a utilização da propriedade privada
enquanto meio de dominação e degradação da reprodução social da vida.
Portanto, como lembra Thomaz Júnior (2011) surge a necessidade de se pensar outra relação
entre a sociedade-natureza que seja construída no seio das disputas de classe e que permita abolir a
dominação sociometabólica do capital na qual a sociedade está mergulhada.
Como no século XXI, as lutas sociais não se restringem aos operários fabris, do modelo
fordista, mas contempla um universo heterogêneo de movimentos e de homens e mulheres (assalariados,
informais, camponeses etc.), necessitamos cada vez mais de um repensar teórico, através da ciência
geográfica, que permita apreender as contradições e os conteúdos materializados no território e
nas dinâmicas territoriais do trabalho com o intuito de potencializar as resistências e as lutas por
emancipação humana que passam pela conquista da saúde plena e do meio ambiente preservado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da (in)rracionalidade de concentração dos lucros e de socialização das perdas o


Brasil adentrou no século XXI dando continuidade à depreciação dos bens naturais e deteriorando a
humanidade de milhares de pessoas que tendem à subsumir suas necessidades reais de bem-estar aos
imperativos de lucro do capital mundializado.
Em função da exportação de produtos primários, com baixo valor agregado, como: soja,
milho, celulose, minério, frutas tropicais, etc. o Brasil abre mão da preservação de suas florestas,
das altas reservas de águas (superficiais e subterrâneas) e compromete cada vez mais a saúde das
populações do campo e da cidade, que estão cada vez mais vulneráveis ao intensivo uso de agrotóxicos.
O fato de gerar divisas para o país faz com que em muitos casos esqueçamos a destrutividade
de tal modelo em função da máxima “economicista” e “reducionista” do crescimento do PIB. Todos
sabem o aumento da participação dos produtos primários para garantir o superávit na balança
comercial, embora sejam poucos os que conhecem as profundas implicações sociais em ambientais.
Diante de tais fatos, quais seriam as possíveis saídas? Evidentemente que não existe apenas
uma resposta possível para esta questão e, muito menos, pode ser respondida individualmente. O que
podemos afirmar é que problemas coletivos só podem ser resolvidos através da superação da visão
individualista e privatista, que está no cerne da produção das desigualdades sociais e ambientais
em questão. Para que os bens da natureza, que não são produzidos pelo trabalho humano, passem a

229
incorporar o conjunto de elementos necessários à reprodução da vida humana, é preciso romper com
uma lógica que os utilizam enquanto meio de dominação da natureza e do homem.
Neste sentido, as lutas sociais por melhores condições de vida e de saúde e, em última
instância, por emancipação humana passam necessariamente pela reapropriação social, consciente
da riqueza social e dos bens da natureza. Trata-se de subjugar o direito de propriedade ao direito de
uso comum, devendo ser exercido pela maioria dos brasileiros, que constantemente têm suas vidas
comprometidas devido à destrutividade inerente ao modelo agro-hidro-exportador.

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Murilo Celli
Diagramação
STAEPE (Unesp Franca)

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