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Departamento de Teologia

Antropologia Teológica – 2017/I - Geraldo De Mori SJ


Segunda Parte: O Ser humano conformado a Cristo no Espírito
Transição: o realizar-se de nossa predestinação em Cristo
A predestinação, verdade última do ser humano segundo a revelação cristã, se
realiza segundo um ritmo que consiste num duplo movimento de diferenciação e de
unificação.
O primeiro movimento diz que a predestinação em Cristo pôde realizar-se somente
se Deus pusesse uma realidade outra que ele (história humana como criação, liberdade,
diferença masculino-feminino). Esta alteridade não pré-existe à vontade salvífica de Deus
manifestada em Jesus, mas só pode ser compreendida teologicamente no interior do dom de
Deus que chama os seres humanos a participarem na vida do Filho. Criação, liberdade,
diferença homem-mulher, são a manifestação do mistério transcendente de Deus no outro
que ele, totalmente dependente dele e a ele aberto e disponível. O dom de Deus, que é Jesus
Cristo, faz com que o destinatário do dom possa conforma-se gratuitamente (no Espírito) à
figura do Filho. O criado não é uma realidade neutra, mas originariamente destinado à
conformação filial. A antropologia teológica diz que a alteridade do mundo é possibilidade
de comunhão e chamado a ser em Cristo, tomando em si a figura filial.
O primeiro movimento retoma, portanto, três motivos clássicos da antropologia
teológica: criação, ser humano, masculino e feminino.
O segundo movimento mostra a destinação daqueles que Deus põe com relativa
autonomia como outro que ele: o mundo, a liberdade, a diferença masculino-feminino são
criados para a conformação em Cristo. A verdade, a vida e a via da criação é a incorporação
gratuita à figura filial de Jesus Cristo. Esta se realiza como uma atualização excedente e
indedutível (graça) da realidade criada na figura singular da liberdade filial de Jesus Cristo.
A graça da incorporação não supõe, portanto, uma natureza prévia, à qual se acrescenta um
sobrenatural, mas põe a realidade criada contra-assinalando-a com sua destinação. A
incorporação é absolutamente gratuita porque põe o criado como gramática pelo chamado
em Cristo e o dom do Espírito como atualização da criatura livre em sua conformação filial.
O duplo movimento do ritmo da predestinação desenvolve a análise dos elementos
constitutivos do chamado em Cristo. Sem a análise dos elementos em jogo, a compreensão
da antropologia cristã ficaria indiferenciada. Isso nos leva ao percurso analítico desses
elementos: 1) o primeiro trata da criação, que analisa a manifestação do mistério
transcendente de Deus que põe o outro que si, totalmente dependente dele e a ele aberto; 2)
o segundo trata da criação do ser humano como liberdade corpórea, qualificando a abertura
e a disponibilidade a Deus de parte da criação; 3) o terceiro trata da relação homem-mulher,
no sentido que a liberdade corpórea se dá essencialmente na diferença sexual; 4) o quarto
trata da incorporação, que diz que a liberdade criada se realiza na comunhão com Cristo.
Nisso se mostra que tal incorporação é obra do Espírito que conforma a liberdade filial à
vida filial de Jesus, através da transformação do ser e do agir humanos. Vamos iniciar nosso
estudo desse percurso com a temática da criação, compreendida como lugar da antropologia
cristã.
2. A criação: lugar da antropologia cristã
A que corresponde a pergunta pela protologia, que está na origem da teologia da
criação? Na narração de uma história, ao seu início; na vida de uma pessoa, ao seu
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nascimento ou, se quisermos ser mais radicais, à sua concepção; para a coletividade, ao
evento fundador; para a humanidade e o cosmos, à criação-fabricação dos deuses, do
cosmos e do humano, ou à origem de tudo.
Vários discursos tentam dizer, contar ou explicar o início como começo ou origem,
bem como o sentido-significado de tudo o que existe e do ser em geral. Antes de passarmos
a uma análise mais aprofundada da doutrina da criação em sua expressão bíblico-cristã e
histórico-teológica, vamos apresentar brevemente alguns aspectos dessa problemática nos
distintos discursos antropológicos.
2.1. A questão do início de tudo nos diversos discursos antropológicos
A primeira linguagem elaborada pela humanidade para dizer o sentido das coisas e
do ser foi a linguagem dos mitos. Todas as culturas possuem seus mitos e a maioria delas
deixou-se enriquecer com os mitos das culturas com as quais entraram em contato. Quando
este tipo de discurso não mais responde à necessidade de dizer o sentido, outros passam a
ser elaborados. Na história humana, o primeiro grande intento de dizer o sentido de outra
forma que o dos mitos foi o da filosofia. Isso ocorreu nas culturas complexas da Ásia e na
Grécia dos séc. VI-V aC. Junto com esse intento da filosofia, também surgiu o das ciências,
como a matemática, a astronomia e outras ciências. Com Galileu, o discurso das ciências
passa por uma transformação radical, tornando possível o nascimento de todos os discursos
científicos da modernidade, sejam os da física newtoniana e os da física relativista e
quântica, sejam os das ciências da vida, como a biologia, a genética, etc. e os das ciências
humanas, como a psicanálise, a etnologia e a historiografia. Vejamos como todos esses
discursos dizem o começo e o porquê de tudo.
a. O começo e o porquê de tudo na linguagem dos mitos
A primeira linguagem que busca dizer o sentido de tudo o que existe, desde o
começo até o fim é o dos mitos, que realmente estão associados aos ritos. Em geral esse tipo
de discurso elabora relatos teo-cosmo-antropocêntricos, onde a gênese do divino, do mundo
e do ser humano é apresentada numa linguagem simbólica e figurativa. Em geral, o início
de tudo está associado a um caos original. No mito trata-se de instaurar a ordem e o sentido
nesse caos. A busca pela ordem/sentido tem uma dimensão de causalidade, que remete a
causas sempre mais universais e originárias: normalmente Deus ou o herói fundador ou o
demiurgo.
Vejamos dois desses mitos presentes em duas das culturas que deram origem ao
povo brasileiro: a dos ameríndios e a dos africanos.
No Brasil, os povos originários correspondem, sobretudo, a duas grandes áreas
linguísticas e culturais: a dos Tupi-Guaranis, que ocupavam o litoral atlântico do país e a
Bacia do Rio Paraná, e os Jês, que ocupavam extensas áreas do interior do Maranhão,
Goiás, Pará e Mato Grosso. Além desses grupos existem ainda os das famílias Aruak e
Karib, do norte do Brasil/fronteira com as Guianas e a Venezuela.
Na área Tupi-Guarani a figura de um ser supremo é esporádica, menos definida do
que os espíritos da natureza. Isso explica o animismo dessas culturas. Em geral, o ser
supremo está longe ou ausente e não é objeto de culto, não exercendo uma função de
criador. Na maioria dos casos, a criação não provém do nada, mas da transformação de algo
que já existia. A repetição da cadeia criação, transformação, destruição denota a fraca
capacidade dos seres supremos e de seus colaboradores em criar para a eternidade, além de
uma forte tendência o erro. Vejamos um dos mitos dos Tupis-Guaranis.

“O criador, cujo coração é o sol, tataravô desse sol que vemos, soprou seu cachimbo e da fumaça desse
cachimbo se fez a Mãe Terra. Chamou sete anciãos e disse: gostaria que criassem ali uma humanidade.
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Os anciãos navegaram em uma canoa que era como uma cobra de fogo pelo céu; e a cobra-canoa
levou-os até a Terra. Logo eles ali depositaram os desenhos-sementes de tudo o que viria a existir.
Então eles criaram o primeiro ser humano e disseram: você é o guardião da roça. Estava criado o
homem. O primeiro homem desceu do céu através do arco-íris em que os anciãos se transformaram. Seu
nome era Nanderuvuçu, o nosso Pai antepassado, o que viria a ser o sol. E logo os anciãos fizeram
surgir as águas do grande rio Nanderykei-cy, a nossa Mãe antepassada. Depois que eles geraram a
humanidade, um se transformou no so, e a outra, na lua. São nossos tataravós”.

Entre os negros vindos ao Brasil, predominam povos vindos de duas grandes áreas
culturais: os povos sudaneses (Costa Guiné: Fom, Yorubás, Akam) e povos bantus (área
congolesa, angolesa e moçambicana). Os primeiros eram politeístas, com estrutura
organizada e complexa de tempos e de imagens, com cultos e sacerdotes, enquanto os
bantus eram animistas. Nos mitos dos povos sudaneses: deuses são conhecidos como
Orixás. O universo desses deuses é composto de dois mundos: orum (céu) e aiê (terra).
Tudo o que existe na terra, existe no céu. Os deuses tomam parte na vida terrestre onde
comunicam a força sagrada (axé). Só eles possuem todos os poderes. Existe entre eles uma
hierarquia: Olorum é o senhor do mundo sobrenatural, o mestre da existência, o detentor da
força sagrada e da permanência do cosmos. Os outros Orixás são deuses filhos, salvo Oxalá,
o criador. Com relação aos mortais, eles exercem o papel de pais divinos ou
duplos/arquétipos de comportamento ou caráter. Vejamos um dos mitos dos povos
sudaneses:

“No começo o mundo era todo pantanoso e cheio de água, um lugar inóspito, sem nenhuma serventia.
Acima dele havia o Céu, onde viviam Olorum e todos os Orixás, que às vezes desciam para brincar nos
pântanos insalubres. [...] Ainda não havia terra firme, nem o homem existia. Um dia Olorum chamou à
sua presença Orixanlá, o Grande Orixá. Disse-lhe que queria criar terra firme lá embaixo e pediu-lhe
que realizasse tal tarefa. Para a missão, deu-lhe uma concha marinha com terra, uma pomba e uma
galinha com pés de cinco dedos. Orixanlá desceu ao pântano e depositou a terra da concha. Sobre a
terra pôs a pomba e a galinha e ambas começaram a ciscar. Foram assim esparramando a terra que
viera na concha até que terra firme se formou por toda parte. Orixanlá voltou a Olorum e relatou-lhe o
sucedido. Olorum enviou um camaleão para inspecionar a obra de Oxalá e ele não pôde andar sobre o
solo que ainda não era firme. O camaleão voltou dizendo que a terra era ampla, mas ainda não
suficientemente seca. Numa segunda viagem o camaleão trouxe a notícia de que a terra era ampla e
suficientemente sólida, podendo-se agora viver em sua superfície. O lugar mais tarde foi chamado Ifé,
que quer dizer ampla morada. Depois Olorum mandou Orixanlá de volta à terra para plantar árvores e
dar alimentos e riquezas ao homem. E veio a chuva para regar as árvores. Foi assim que tudo começou.
Foi ali, em Ifé, durante uma semana de quatro dias, que Orixá Nlá criou o mundo e tudo o que existe
nele.”

O Oriente Médio antigo também elaborou vários mitos criacionistas. Um dos mais
antigos, pois remonta a 2000 aC, é o mito Enuma Elish. Tal qual o temos é uma compilação
babilônica de mitos sumero-acadianos. Israel provavelmente teve conhecimento deste mito
quando esteve no exílio. Era normalmente representado no ritual do ano novo, quando o
mundo velho desaparecia e o novo era reafirmado através da entronização simbólica de
Marduk, que fundava o mundo e a sociedade. O poema possui 7 partes. É um relato teo-
cosmo-antropogônico que começa contando a gênese do divino a partir de um caos original
marcado pela dualidade de princípios: água doce (Apsu) e água salgada (Tiamat), a primeira
considerada princípio masculino, iniciador da criação, e a segunda, princípio feminino,
útero do universo. Do encontro desses princípios surgem os deuses mais jovens. Como estes
perturbassem a tranquilidade do velho casal divino, Apsu quis destruí-los, propondo a
Mammu, um de seus deuses filhos, que o fizesse. Ea, outro de seus filhos, lançou um
encantamento que fez dormir o velho Apsu, matando-o e aprisionando Mammu. Da relação
de Ea com Damkina nasceu Marduk, que organizou os demais deuses para combater
Tiamat, que queria vingar-se da morte de Apsu. Depois de uma série de peripécias, Marduk

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vence Tiamat, matando-a e fazendo de seu cadáver as partes distintas do cosmos. O gesto
criador, que distingue, separa, mede e põe em ordem, é inseparável do gesto criminoso, que
põe fim à vida dos deuses mais velhos. O ser humano nasce desse crime, sendo o resultado
do sangue de um dos deuses que combatia por Tiamat. Ele é criado para servir os deuses,
ocupando o lugar dos que foram vencidos por Marduk. Além da relação teo-cosmo-
antropogônica, também existe uma relação entre criação, legislação (controle social) e
religião (liturgia).
b. O começo e a razão de tudo na linguagem filosófica
Como assinalamos, a segunda grande linguagem que busca dizer o porquê e a
origem de tudo é a da filosofia. A forma emblemática como surgiu no Ocidente, na Grécia
dos séc. VI-V aC, mostra ao mesmo tempo sua especificidade e sua diferença com relação
ao discurso dos mitos. Como vemos nos pré-socráticos, a filosofia, que em sua primeira
versão é contemplação e explicação do porquê do cosmos ou da physis, e depois, com os
sofistas e as grandes escolas filosóficas, ocupa-se também das questões antropológicas,
éticas e políticas da polis, estabelece uma relação crítica com o discurso mitológico, que
desde então é posto sob suspeita pela razão demonstrativa da filosofia. Mais que recorrer à
narração e à imaginação simbólica e figurativa, a razão filosófica busca compreender e
explicar, via argumentos lógicos, razão de ser das coisas.
Com relação ao começo/origem e ao porquê de tudo o que existe, duas grandes
respostas vão pouco a pouco ser elaboradas, em parte sob influências dos relatos míticos
que as precederam. A primeira, mais de corte dualista, vai explicar a existência do mundo
material como resultado da luta eterna que existe entre o princípio da luz e o princípio das
trevas. Desta explicação nascem todos os sistemas de tipo gnóstico e maniqueísta, para os
quais a criação é o resultado de um criador mau. A segunda, de tipo emanacionista, explica
o porquê e a origem de tudo à luz de um princípio único que estaria no começo, do qual
emanam todas as coisas que existem, tanto as do mundo invisível quanto as do mundo
visível. O neoplatonismo é sua versão mais acabada, mas não só ele possui este substrato,
pois o mesmo se encontra também nas explicações que alimentam os monismos de tipo
panteísta, presentes nas cosmovisões de tipo holístico, em certos aspectos do platonismo e
do estoicismo, e na filosofia de tipo hegeliano.
c. O começo/origem e o porquê de tudo no discurso das ciências
O discurso das ciências, sobretudo o das chamadas ciências exatas, é determinado
em grande parte pelo nascimento da nova epistemologia elaborada a partir de Galileu, onde
a experimentação, a demonstração e universalização são fundamentais. À luz desta nova
epistemologia, que não cessou de se aperfeiçoar ao longo dos últimos séculos, o
conhecimento do universo ampliou-se de forma espetacular, dando origem, num primeiro
tempo, à física clássica, de tipo newtoniano, e, em seguida, sobretudo no século passado, à
física de tipo relativista, que busca explicar as leis do universo, e à física quântica, que tenta
compreender as leis da matéria.
Da confluência das leis da física relativista e quântica, surgiu na década de 1920 a
teoria do big bang (grande explosão). Esta teoria foi proposta inicialmente por Alexander
Friedmann e Abbé Georges Lemaître, e sua versão atual, da década de 1940, deve-se,
sobretudo ao grupo de George Gamow. Segundo Gamow, o universo expandiu-se
rapidamente a partir de um estado inicial de alta compressão, que deu origem ao big bang.
Nesse instante inicial, que pode ter ocorrido há 10-15 bilhões de anos, a temperatura era
altíssima. Logo depois, a matéria passou a predominar sobre a anti-matéria. Depois de
alguns segundos, com a possível presença de alguns tipos de partículas elementares, o
universo teria se resfriado o suficiente para surgirem núcleos de hélio, lítio e hidrogênio.
Cerca de um milhão de anos mais tarde formaram-se os primeiros átomos, os quais estão na
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origem da matéria que compõe as estrelas e os planetas e tudo o que existe no universo.
Segundo alguns físicos, o universo atual ainda está em expansão. Ele deverá, no entanto,
voltar a contrair-se, provocando o que eles chamam de big crash. O processo poderia então
reiniciar-se de novo.
Além destas teorias, que tentam dar explicações sobre a existência do mundo físico,
o séc. XIX viu surgir uma teoria muito importante, que tenta explicar o início da vida no
planeta terra, a teoria da evolução das espécies. Veremos mais adiante as dificuldades que a
teologia cristã da criação teve com essa teoria, que parecia opor-se ao dado bíblico da
criação de todas as coisas já feitas ou completas em si, não suponde nenhuma mudança
substancial. Na verdade, a teoria da evolução foi precedida de outras teorias, que tentavam
dar conta de certas transformações observadas em certas espécies. Entre essas teorias se
destacam o transformismo e o lamarkchismo. Charles Darwin, com a teoria da seleção
natural, propõe que se repense radicalmente a irrupção da vida no planeta terra. Sua teoria
suscitou muito debate. Depois dele, Mendel, com a descoberta da herança genética abriu
espaço para novas pesquisas nesse campo. O surgimento da paleontologia contribuiu
também em muito para a confirmação de muitas das hipóteses levantadas pela teoria da
evolução. Os grandes avanços no estudo da biologia, da química, da genética levaram nas
últimas décadas os teóricos da evolução a novas hipóteses, o que vai dar origem ao
neodarwinismo, sem contar todos os avanços representados pelos estudos sobre o DNA, que
podem ajudar e perceber os elos na cadeia da evolução das distintas espécies.
Finalmente, outro campo do saber científico que também se interroga pela questão
do começo/origem e do porquê de tudo, é o das ciências humanas, entre elas a psicanálise, a
etnologia e a historiografia. Estas ciências não pretendem certamente avançar hipóteses
relativas a questões das ciências exatas. O discurso delas propõe respostas para se pensar o
começo/origem das sociedades ou da cultura. Assim, a psicanálise e a etnologia, por
exemplo, veem no interdito do incesto o início/origem da cultura ou postulam em certas
estruturas arquetípicas o início, sentido e ordem das coisas. Já a historiografia fala do
evento fundador como lugar deste início/origem.
2.2. Fundamentos bíblicos da teologia da criação
a. Questões preliminares
São basicamente três:
1) a relação dos textos bíblicos com os das culturas do Oriente Médio antigo. Estas
culturas já haviam produzido relatos sobre os primórdios do mundo, dos deuses e da
humanidade (cf. Enuma Elish). Israel tinha em comum com tais culturas a convicção de que
o homem é criatura de um Deus e o mundo era criado por Deus. A conexão do tema da
criação com o ambiente circundante e a descoberta de textos semelhantes ao relato bíblico
da criação e do dilúvio levantaram o problema da dependência/autonomia do texto bíblico;
2) a da estrutura mítica dos relatos do Oriente Médio, que levanta a questão da
peculiaridade da linguagem simbólica do texto bíblico. Tradicionalmente, duas são os traços
levantados como próprios aos textos bíblicos: a) sua forma desmitologizada, que suprime
dos textos os traços politeístas, baseado na afirmação de YHWH é o único Deus; b) a maior
atenção à história, através da conexão entre a criação e os tôledôt (genealogia), que unem
estes e aquela à história de Abraão. Os eventos da criação são o primeiro elo da sequência
do tempo. O mito bíblico não quer explicar a origem do mundo. Ele é uma leitura sapiencial
da história e uma teologia da história expressas em linguagem simbólica, ou, como diz
Rahner: uma etiologia histórica (causalidade). Não busca responder à demanda científica da
origem do mundo e da humanidade. Não busca uma causa primeira metafísica, mas a causa
que diz respeito à existência atual do ser humano. Busca responder às seguintes questões:
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por que o ser humano é assim, frágil e pensante? Por que sua existência é ameaçada em seu
habitat? Que sentido tem a vida? Donde ela vem e para onde vai?
3) a relação entre criação e salvação. A fé no Deus criador não aparece na mais
antiga confissão de fé de Israel. A libertação da escravidão, a passagem do mar e a entrada
na terra estão no centro do credo do AT, mas a fé na criação não aparece nele: Dt 26,5-9;
Jos 24,16-18; Ex 20,2; 1 Sm 12,6. A explicação desta ausência são duas. A primeira
apresenta a criação como implicação da fé na salvação. O evento fundador da fé bíblica é a
libertação e a aliança, enquanto a fé no agir criador de Deus seria derivada por dedução.
Quem sustentou isso foi G. von Rad, em 1936, seguido por Karl Barth, em sua reflexão
teológica. Essa linha tornou-se hegemônica nos comentadores e nos manuais de teologia. O
Deus bíblico se manifesta principalmente em seu agir salvífico do Êxodo. Israel teria
pensado sua fé na criação explicitando a perspectiva da aliança que Deus havia estabelecido
no Sinai. Esta passagem comporta a ampliação da concepção particular-nacionalista de
Israel para a visão universal. Isso supõe o confronto de Israel com outros povos e sua
condição estável (presença na terra, reino salomônico), mas, sobretudo, a experiência do
exílio e do pós-exílio. O Deus libertador coincide com o Deus criador e este não é outro que
o Deus salvador. A criação aparece aí como pressuposto da aliança ou seu prólogo. A
segunda linha de interpretação é a atribuída a C. Westermann. Este dá uma interpretação
distinta da criação nos credos históricos. A criação, segundo ele, não é deduzida da aliança
e posta como seu pressuposto, como primeira obra salvífica, mas pertence ao patrimônio
comum das crenças dos povos do Oriente Médio. A idéia de criação não seria original de
Israel, mas compartilhada pelos povos vizinhos. Por isso, não aparece entre os artigos de fé
do povo eleito, porque era um pressuposto pacífico. Ela não depende da aliança ou da fé
num Deus salvador, mas procede paralelamente desta. Só num segundo momento Israel,
quando se confronta com outros povos e põe o problema do criado em relação a Deus,
afirma a identidade do Deus salvador com o Deus criador. O louvor de Deus compreende
seu ser criador e salvador. A discussão sobre estas duas interpretações depende da história
da fé de Israel na unicidade de Deus. Trata-se de um longo processo, que tem resquícios na
pré-história do povo eleito, que condividia com seus vizinhos a crença no Deus criador, e
encontra sua síntese no período exílico e pós-exílico, em particular no Deutero-Isaías, que
une a fé no Deus salvador e criador e faz Israel passar ao monoteísmo em sentido estrito.
Essas três questões ocuparam o debate exegético-teológico por muito tempo,
tornando a reflexão teológica sobre a criação difícil, conjetural e, de certa forma,
engessando-a. Os novos métodos exegéticos literário-sincrônicos e uma leitura canônica do
testemunho vétero-testamentário abriram o horizonte a uma nova abordagem da questão.
Um aporte interessante, que abre novos caminhos para a teologia da criação, é o
proposto recentemente por Ricoeur1. O filósofo francês, retomando as leituras literário-
sincrônicas do Primeiro Testamento diz que a exegese que interpreta o testemunho escrito
como um ato significativo do redator final mostra que a Lei é o texto fundador do cânon. A
Torá reúne uma série de livros complexos, que contam os eventos fundadores de Israel e
têm a forma literária dos textos narrativos e legislativos fundadores da consciência de fé do
povo eleito. No seu início estão alguns relatos sobre a história primordial que precedem a
história salvífica dos eventos fundadores. É preciso, diz Ricoeur, esclarecer o sentido da
precedência da história primordial com relação à história da salvação. À história das
origens correspondem os relatos do início ou os relatos primordiais. Mais que simples
gêneros literários, onde se reconhecem muitos elementos postos em evidência pela exegese

1
P. RICOEUR. « Pensando a criação », in P. RICOEUR e A. LACOCQUE, Pensando biblicamente. Bauru: EDUSC,
2001, p.49-87.

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histórico-crítica, tais narrações exprimem a função de Gn 1-11 como história primordial, em
relação com a história dos patriarcas e os eventos do Êxodo. Ricoeur analisa o caráter de
precedência dos eventos e relatos dos primórdios. Não se trata de uma prioridade
cronológica sobre a linha dos eventos históricos, nem de um tempo mítico além da história.
A relação com o resto da Torá é dupla: de cesura e inauguração, de separação e fundação.
À função de separação é dada a tarefa de desenhar uma história que ordena uma
multiplicidade de eventos, conferindo-lhes a unidade de uma seqüência inteligível. A isso
corresponde a forma narrativa, que põe ordem e na qual se insere, por exemplo, o hino
poético de Gn 1. A idéia de separação é polivalente, porque diz que o início não pertence à
série das coisas contadas sucessivamente, mas que junto inaugura e funda. Por isso, se
assiste a uma espécie de progressão na separação, que corresponde à idéia de distinção do
criador com relação à criação, e evoca a separação originária sem a qual o mundo não existe
como realidade múltipla. A segunda função é de fundação, no sentido que os relatos dos
primórdios inauguram a história, primeiro a dos patriarcas e depois a do Êxodo, como
evento fundador do povo de Israel. A função inaugural e instauradora da história primordial
corresponde ao dispositivo narrativo da redação final do Gênese, onde os tôledôt produzem
história. A ordem canônica faz dos relatos do início a pré-história de uma história. De fato,
as genealogias que se sucedem geram um esquema do início que remete para além do tempo
primordial, o que faz com que entre os eventos inaugurais da Torá e o tempo histórico se
instaure uma circularidade de significação, e leva a atribuir a cada início o caráter de evento
de criação. O significado fundador da história primordial fala da função etiológica que diz
respeito ao arquétipo ou à função de universalização de traços particulares a toda condição
humana.
A disposição canônica introduz, portanto, a promessa de uma continuação, que se
exprime em nível de conteúdo com o tema da bênção, que não aparece só com Abraão (Gn
12,2), mas desde o início (Gn 1,22.28) e reaparece no novo início (Gn 5,2) e depois do
dilúvio (Gn 9,1). Nesse sentido, a função fundadora dos relatos do início introduz a
promessa. Configurando assim o texto, o redator canônico antecipa o futuro, mostra que os
relatos da origem dizem o início como aquilo a partir do qual é a história. O futuro da
criação se abre a partir do presente, que diz respeito à origem (procedimento etiológico)
como uma história desde sempre contada e reconhecida que a configura como aquilo que
funda o hoje do escritor (função instituinte) e a esperança do futuro. Daí o caráter
instaurador do início.
b. Criação e bênção nos relatos dos primórdios
Na perspectiva canônica, a questão da criação aparece na Torá na sequência de Gn
1-11, que se articula com a história dos patriarcas, que por sua vez é prelúdio da do Êxodo.
Nesse sentido, a história é um suceder-se de tôledôts, da qual a criação do céu e a da terra é
a energia inicial. A genealogia produz história, e a bênção de Deus, iniciada na criação, se
propaga na história da humanidade. O valor teológico da genealogia, sobretudo a sacerdotal
(Gn 2,4b; 5,1; 6,9; 10,1; 11,10; 11,27) propõe uma fé no agir de Deus que continua e
sustenta a bênção de Gn 1,28, seja no decurso do tempo (Gn 5), seja no do espaço (Gn 10).
No interior dos tôledôts encontramos uma série de relatos. Entre esses podemos
distinguir os que falam da criação e do dilúvio (Gn 1-2; 6-9), pertencentes ao sacerdotal e
ao javista, os de delito e castigo, presentes só no javista (3; 4,2-16; 6,1-4; 20-27; 11,1-9).
Segundo Westermann: a) criação e dilúvio são estreitamente unidos, e o tema da bênção
assegura a obra do Criador até o presente, apesar de a criação ser constantemente ameaçada
de catástrofes; b) a criação do homem compreende a tarefa de civilização (1,28: “dominai a
terra”) e de transformação (2,15: “cultivar e guardar”). O trabalho e seu labor, o progresso,
seja na forma nômade e sedentária, seja na da técnica, da arte, da construção da cidade, é
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fundado no poder fecundante da bênção; c) os relatos de culpa e castigo (todo o javista)
mostram que o homem é pecador. Isso aparece especialmente nos em dois tipos de relatos:
no primeiro é o homem singular que peca contra Deus (Gn 3) e contra o próximo (Gn 4,2-
16); no segundo é o gênero humano que peca, com uma transgressão no campo genealógico
(Gn 6,1-4) e no âmbito tecnológico (Gn 11,1-9).
A conclusão que se impõe é que os relatos da criação se propagam em toda direção
da experiência humana e dão início à história dos povos e ao agir salvífico de Deus. A
criação se reproduz com a bênção no horizonte do cosmo e dos povos. Vejamos como o
texto sacerdotal nos mostra isso:
O texto sacerdotal, Gn 1,1-2,4, vê a criação em sua originalidade e em seu caráter
como fundadora da história da salvação. A instância subjacente do código sacerdotal é a de
explicar o culto e a festa, com os quais Deus manifesta novamente sua presença a Israel. As
estrofes deste hino em prosa tratam da totalidade do mundo no contexto da história da
humanidade. Articula a dimensão temporal e espacial do discurso sobre a criação como
totalidade: a dimensão temporal na sucessão dos seis dias que têm seu cume no sétimo dia
como vértice; a dimensão espacial que distingue a obra criada colocando nela a sucessão
dos dias. Vejamos como esse duplo movimento acontece e qual o seu sentido:
- Ordem e obra da criação
Seguindo a dimensão espacial, descobrimos juntas duas modalidades expressivas:
repetição e variação. Gn 1-2,4 se apresenta com um ritmo que é marcado por uma fórmula
fixa que estrutura o agir: isso produz o efeito de um cântico singular, de uma liturgia solene.
A litania da fórmula fixa (8 vezes) apresenta o contínuo desdobrar-se do relato da
proclamação e da execução de um comando. A ação divina se funda na Palavra de Deus que
comanda e chama ao ser e é a Palavra de Deus que confirma, bendiz, reconhece. A
repetição contém alguns elementos interessantes: a) o uso absoluto de “Deus disse”, não
dirigido a nenhum destinatário, indica que a criação é uma afirmação limite e se refere ao
caráter misterioso da ação criadora. A execução do comando reproduz não o modo, mas o
resultado do ato criador, que corresponde à nossa confissão de fé que Deus criou o mundo;
b) a execução do comando não termina o relato da criação: esta deve ser para alguém, é um
bem que deve ser proclamado. No texto, Deus é quem aprova a criação como beleza estética
e bondade ética: o louvor a Deus não pode ainda vir de sua obra, mas da contemplação de
Deus; c) a ação criadora no fim vem posta no tempo que com a criação se torna o campo do
agir divino. O número sete no texto exprime a totalidade fundada em partes iguais do
tempo. A variação se insere no quadro rítmico. Trata-se de oito obras que se enquadram na
sequência dos seis dias. No lugar da repetição, entra a exposição detalhada e a variedade da
obra criada. Há uma desproporção entre as obras e os dias. O quarto dia, que traz a quinta
obra criada, está no centro da semana, o que explica a largueza do texto (vv. 14-19). Trata-
se da fundação do calendário em uso no tempo do sacerdotal, que quer justificar a separação
entre tempo sagrado e tempo profano, relacionando-o à separação luz-trevas (primeiro dia)
e à separação do sétimo dia, reservado à santidade divina.
- Septenário criacional
A dimensão temporal insere a obra criada no septenário, que representa a característica
típica da redação sacerdotal. A confissão de fé no Deus criador (v. 1) sublinha que a criação
do céu e da terra dá início à história. O início livre da história é indicado com o verbo bãra‟,
que aparece 48 vezes no AT. O ainda não da criação (v. 2): o modo de representar o ainda
não existente da criação, comum a relatos criacionistas do Oriente Médio, não é
interpretado no sentido da matéria pré-existente à ação de um demiurgo, mas como situação
antitética à condição atual, que é percebida pelo narrador como uma ordem. O ainda não da
criação expressa o caos. Existem resquícios mitológicos no v. 2: a referência ao
8
oceano/abismo e à água como elemento primordial, à qual se acrescenta o “vento
fortíssimo” descreve bem o ainda não da criação. Não se trata ainda do “ex nihilo” nem da
“matéria pré-existente”. O primeiro dia (v. 3-5): conta a criação da luz, donde a importância
do tempo como ritmo ordenado e sucessivo de dia e noite. A sequência dia/noite é o
fundamento da semana e do calendário. Para o sacerdotal, em primeiro plano está a
categoria temporal mais que a espacial, porque a primeira obra é a separação da luz/trevas e
não terra/céu. Isso volta no fim com o par noite/manhã. A luz é apresentada em sua
criaturidade, à diferença da cosmogonia mesopotâmica e egípcia, e o juízo de Deus a
qualifica como boa/bela (tôb = dito só da luz), indicando a beleza e bondade reconhecida
pelo Criador. Enfim, Deus dá o nome, sinal de senhoria sobre a coisa nomeada, tanto da luz
quanto das trevas. O quarto dia (vv.14-19): criação dos luminares (sol e luz), que não são
nomeados, sendo relegados ao papel de luzeiros, perdendo o caráter divino presente nas
cosmogonias do entorno e orientados à sua função. Por oito vezes há uma proposição com
valor final. Três são as funções: a de separar (vv.14.17) o dia da noite; a noite é posposta
com relação à geração da luz, desdivinizando-se; a segunda função é iluminar (vv.15.17) a
terra; a terceira é governar (v. 16: 2 vezes, v.17) que pode ser considerado paralelo a
assinalar (v. 14), para ser sinal de festa, dias e anos. Sol e lua são destinados a determinar o
calendário das festas. A preocupação do calendário no meio do septenário é reveladora. As
grandes festas anuais caíam sempre no quarto dia da semana. A fundação do calendário
cultual mostra a importância do tempo para Israel. O sétimo dia (Gn 2,2-3): o número sete
indica plenitude e está também na base da estrutura da semana. A semana da criação
inaugura a escansão semanal do tempo. O sétimo dia, com a conexão entre semana da
criação e semana do homem, institui o paralelo com o mandamento do sábado (Ex 20, 8-11
// Dt 12,15-16). O sétimo dia separa a ferialidade laboral da pertença a Deus e indica o
repouso como a meta dos seis dias. O dia de Deus é o fim do homem. Não é só interrupção
da atividade, mas fecundidade conectada com o repouso de Deus, do qual se experimenta a
antecipação na bênção concedida por Deus na festa e no culto. O culto e a festa dão sentido
à temporalidade humana. O repouso não é ausência de trabalho, mas presença de Deus, do
diálogo com ele, de quem se recebe a fecundidade para ser no tempo e assim, através do
culto, o nosso tempo desemboca em Deus e o tempo funda a história.
c. Criação e salvação nos profetas
Os profetas retomam o tema da criação articulando-o com o tema da salvação e
atualizando o evento fundador e a referência à precedência no hoje. Em particular, a
experiência do exílio e a do retorno incerto serão os lugares onde o apelo ao agir criador
sustentará a esperança presente além do pecado e do perigo da dispersão do povo e de seus
sinais distintivos: Jerusalém, templo, realeza. Os profetas revelam que ainda é o momento
para a aliança. A retomada do tema da criação, propiciada historicamente no confronto com
outros povos no exílio, assume o caráter de uma nova criação e de um novo êxodo.
Jeremias oferece a primeira tentativa de articular a fé na criação com a mensagem
profética que busca iluminar o presente e o futuro do povo. Os verbos que indicam a ação
criadora de Deus: fazer („asah), que tem como elementos a chuva, a terra, os homens, os
animais, o céu, o favor, o direito e a justiça; criar (bãra‟) do novo sobre a terra; plasmar
(jãsar), na menção do vaso que modela; encher (mãla‟). O tema da criação em Jeremias tem
uma função de retomada da tradição de Oséias, mas a ultrapassa falando da restauração de
Israel não só em termos de fecundidade da terra, mas como criação-transformação do
homem e de seu coração no quadro da nova aliança. Jeremias reconduz a senhoria de
YHWH sobre as nações à sua autoridade de Criador do mundo e de toda a carne.
O Dêutero-Isaías (Is 40-55) não fala da criação em si mesma, mas parte da situação
atual de Israel. Para responder aos questionamentos urgentes que se põe o povo, ele retoma

9
a questão da salvação na história. O motivo da criação é a libertação no presente. No
Dêutero-Isaías a concepção histórico-salvífica da obra criadora é particularmente
sublinhada. A situação é a da opressão no exílio. Neste contexto, se torna necessária uma
resposta que motive a fé em Deus de modo mais radical. O Dêutero-Isaías assume a fé na
criação ligando a obra primordial de YHWH com seu poder salvífico manifestado no
presente contra os inimigos de Israel. A afirmação “YHWH criou Israel” se torna o
equivalente de “Deus elegeu Israel”. A ação criadora de Deus é o fundamento da eleição do
povo e a razão pela qual a salvação é assegurada. O verbo bãra‟ é utilizado para indicar a
formação do povo (Is 43,1-5) e é aplicado à ação salvífica de YHWH (o Dêutero-Isaías usa
uma terça parte das 48 vezes que aparece o verbo bãra‟ no AT), indicando com isso seu
poder libertador (41,20; 43,7; 45,8; 48,7). O motivo da criação não é endereçado ao início,
mas sustenta o presente e orienta ao futuro. O Dêutero-Isaías anuncia assim a atualidade dos
gestos fundadores de Deus, seu domínio soberano sobre os poderes da natureza e do mundo
(Is 40,22-28; 42,5-6; 44,24-26), sua capacidade de restabelecer a aliança e recriar o povo
fazendo-o voltar do exílio, e animando-o a superar a tentação idolátrica (46,1-10).
d. Criação e sabedoria nos Escritos
A literatura sapiencial oferece uma nova luz à relação entre criação e salvação.
Influenciada pela literatura didática do antigo Oriente Médio e do Egito, a reflexão
sapiencial aparece na forma como caracteriza o problema da existência do homem no
cosmo, em particular a questão do mal e do sofrimento do justo. A solução é dada pela
sabedoria, que oferece a resposta adequada com sua busca de traços pessimistas, serenos,
que remete ao sentido da criação e do governo do mundo. Os autores da sabedoria (Pr, Sir,
Jó e Sb) ligam o tema da sabedoria com o da criação em ordem à resposta à questão vital:
donde viemos? Por que o sofrimento e o mal? Na constituição do universo e na criação do
homem, como na história de Israel, a sabedoria põe a fé no Deus da aliança e no Deus
criador, que agiu em favor de Israel e através de sua lei dá um conhecimento que supera
toda sabedoria humana. Os sábios retomam os eventos fundadores da lei e os universalizam
mediante a sabedoria que assume traços personalistas e é presente no agir criador de Deus.
Provérbios: 1-9: tratam do tema da criação, em particular em 3,19-20, que fala do
papel da sabedoria na obra da criação, e 8,22-31, onde a sabedoria personificada se volta
para o povo e o convida a segui-la porque ela dá a vida. Nos dois textos a criação aparece
como garantia de credibilidade da sabedoria.
Salmos: a criação no saltério representa um tema interessante no seu profundo
entrelaçamento com o tema da fidelidade do Deus que salva. Os salmos cantam o domínio
de Deus sobre a natureza (8; 29; 104; 148). Outros fundam a unidade do louvor a Deus pela
criação e pela salvação acontecida em Israel (33; 74; 89; 95). Particularmente importante,
por ligar criação e salvação, são os Sl 19; 135 e 136, onde a criação não é um gesto isolado,
mas o fundamento e o primeiro gesto da salvação.
Sirácida: sua visão otimista se funda na bondade superior do desígnio divino
(39,16). O problema do mal é referido ao abuso da liberdade humana (15,14s) e o
sofrimento do justo é compreendido na soberania absoluta de Deus e no mistério de seus
desígnios (33,7-15). Esta visão é inserida numa reflexão sobre a bondade da criação (42,15-
43,33) e no plano salvífico (44,1-50). Em 25,24, o Sirácida recorda a morte como
consequência do pecado, referindo-se a Gn 3.
Jó: introduz o tema da criação como solução ao problema que o mal, levando a uma
correta compreensão de Deus. O recurso à oba do Criador é feito com liberdade,
amalgamando o vocabulário típico de Gn 1-3, a figura do homem feito da argila, a
linguagem dos hinos cósmicos, e a retomada estereotipada dos mitos do Oriente Médio (luta
contra o caos). O tema da criação primordial e o poder cósmico de YHWH são dois
10
aspectos do mesmo mistério insondável. A criação é o primeiro ato de uma providência
divina que sustenta o fluir do tempo, o suceder-se dos fenômenos naturais e dos eventos da
existência. A relação criação-salvação é retomada por Jó de modo paradoxal. Ela é referida
à história do indivíduo. A relação do homem com Deus é tomada numa ótica universal, sem
referência ao destino particular de Israel. O argumento da criação intervém em vários
momentos da controvérsia que opõe Jó aos diferentes amigos. Para Elifaz, o poder criador
de Deus revela a fragilidade e a indignidade do homem (4-5; 15; 22); Bildad sublinha que a
autoridade de Deus sobre o criado convida-nos à humildade (25,1-6; 26,6-14); Zofar vê na
amplidão do mundo o sinal da presença de Deus (11,7-9; 24,4s). Nas respostas de Jó, o
argumento da criação é usado no sentido inverso (9,4-10; 12,7-10; 23,3.8-10). A sabedoria e
o poder divinos na criação parecem ter-se tornado irreconhecíveis quando Deus se irrita
contra o homem. É a palavra de YHWH (38,1-42,6), que argumenta a partir da criação, que
faz Jó reconhecer o amor do Criador na sua história de homem sofredor.
Sabedoria: fala da manifestação de Deus na natureza (7,21; 8,5; 9,12) e na história
salvífica (10-19). O ponto de partida é o problema do mal e a morte, sobretudo a do justo.
Referindo-se ao desígnio da criação e à vivência da salvação, o autor mostra como o
homem não tem como destino a morte, mas a incorruptibilidade. O elemento novo que o
livro introduz é uma visão mais cosmológica que antropológica da criação, e uma visão
apologética do cosmo, no sentido que a contemplação do mesmo torna possível a
contemplação do Criador. Descreve as coisas criadas por Deus como término de um ato
benévolo de amor (11,25). O homem pode por isso elevar-se da contemplação do mundo à
descoberta do Criador (13,1-5). É evidente aqui a influência da filosofia grega.
O influxo do vocabulário grego tem seu cume, porém, com 2 Mac 7,28 que fala da
criação ex nihilo, entendida porém não no sentido técnico-filosófico, mas religioso: tudo o
que existe está sob o domínio poderoso e universal de Deus. Esse texto, como todo o livro
dos Macabeus, é marcado pela apocalíptica judaica, nascida neste período tão importante
para a Escritura bíblica, mas também para a compreensão do surgimento da fé na
ressurreição dos mortos. O Deus criador tem não só poder de criar tudo do nada, mas
também o de dar vida aos corpos mortais, ressuscitando-os.
e. Cristo: cumprimento e mediador da criação
O testemunho do NT, sobretudo a mensagem de Jesus, parece não ter como centro a
fé no Deus criador. Não porque Jesus não a considere importante, mas porque é dada como
pressuposta. O patrimônio do AT é o pano de fundo, seja na conexão entre agir criador e
intervenção salvífica de Deus, seja na personificação/pré-existência da sabedoria na obra
criadora divina, reenviando a uma futura ação escatológica que tem juntamente traços
históricos e cósmicos. Paulo e João percebem a centralidade do evento pascal em relação
com o agir criador de Deus. Daí provêm as páginas que iluminam a dimensão cósmica do
evento Jesus Cristo (1Cor 8,6; Rm 8; Col 1,15-20; Ef 1,2-14; Jo 1,1-18; Hb 1,1-3). O
impacto com a fé em Jesus Cristo levou os primeiros cristãos a repensarem radicalmente o
tema da criação. Ela não é mais somente o fundo da fé na salvação em Jesus, mas o Cristo
torna-se a referência à realidade criada, pois ele é seu mediador. Numa primeira leitura
parece difícil perceber o tema nos Sinópticos. Paulo e João não teriam referido a criação a
Cristo se isso não tivesse presente na mensagem de Jesus, centro dos relatos Sinópticos.
- A criação nos Sinópticos
Os Sinópticos retomam o ensinamento do AT fazendo convergir seus dois aspectos:
a falta de uma tematização explícita, dado que a criação é pressuposta (Mc 10,6; Mt 11,25;
Mc 13,19) e o reenvio ao AT, para o qual o mundo e o ser humano dependem em seu ser e
agir de Deus. A atenção é concentrada nas consequências da certeza da fé no operar criador
de Deus. Essas consequências são duas: a primeira diz respeito a Deus, afirma que ele tem
11
um poder soberano sobre tudo e participa na obra de sua criação; a segunda diz respeito ao
ser humano, e indica que ele deve viver uma vida moral fundada no chamado de Deus como
criador da realidade boa. No interior desse quadro, os Sinópticos apresentam duas reflexões
iluminando o valor antropológico e cristológico da criação:
Sobre o valor antropológico: os Sinópticos mostram que para Jesus as coisas
criadas são boas (Mc 7,14-23). Por isso, todo o criado é o lugar no qual se manifesta a
bondade de Deus (Mc 12,24-27; Mt 10,29s). Nesta criação boa pode, porém, surgir o perigo
(Mc 10,28-31; Mt 22,2-10; Lc 17,26-30). A ambiguidade entre a bondade originária do
mundo e sua periculosidade levanta um problema. A resposta é que o mundo é o lugar do
exercício da liberdade humana. Esta liberdade pecaminosa produziu a queda da criação
primitiva (Mc 10,5s). Os Sinópticos convidam a ver nisso a ação de Satanás (Lc 10,13-17).
Na doença, que fere a bondade da criação, Jesus vê um princípio do mal que não pode
coincidir com o Deus criador, origem da vida. Jesus veio lutar contra este princípio do mal.
Os milagres que ele realiza são o sinal de sua luta vitoriosa contra Satanás (Lc 11,20).
Sobre o valor cristológico: os Sinópticos insinuam uma relação entre criação e Jesus
Cristo em três lugares emblemáticos: 1) as curas no dia de sábado, 2) o recurso ao tema da
origem, 3) o olhar de Jesus. De fato, lutando contra Satanás, Jesus tende a cumprir a
intenção salvífica presente em Deus ao criar o mundo. No episódio da cura da mulher
encurvada (Lc 13,10-17), é importante notar a insistência no fato de ter sido realizada no
sábado, dia que indica o cumprimento perfeito da criação. É o dia mais apto para a atividade
salvífica de Jesus. Com seu agir, Jesus é o verdadeiro sábado, o cumprimento autêntico da
intenção criadora de Deus. Ainda mais interessante é o tema do início/princípio, sobretudo
na discussão sobre o divórcio (Mc 10,2-12; Mt 19,309), onde Jesus remete à vontade de
Deus expressa no início. Ele se faz o intérprete autêntico da vontade de Deus presente no
princípio, tornando presente, por sua palavra e pessoa, o início que institui o sentido da
realidade do homem, no caso citado, à relação homem-mulher. Enfim, outro tema onde
aparece a conexão entre Jesus e a criação é o sermão da montanha (Mt 6,25-34), onde não
se trata de um banal providencialismo, mas de mostrar o olhar de Jesus sobre os lírios do
campo e sobre os pássaros do céu. Ele nos faz ver o mundo como obra maravilhosa do “Pai
nosso” que cuida do homem porque, pondo no centro o reino, o resto é dado com Ele e
Nele. Em Mt 25,34, a relação entre a criação e a salvação definitiva que se cumpre em Jesus
é confirmada com um traço escatológico: o reino que os eleitos podem possuir é preparado
pelo Pai desde o início da criação do mundo. A obra salvífica tem como centro Jesus Cristo
que introduz os eleitos no reino: com ela teve início a criação.
- A criação em Paulo
Paulo apresenta a reflexão neo-testamentária da criação em Cristo. Ele assume a fé
criacionista do AT, como aparece no anúncio aos pagãos no aerópago (At 17,22-32) e na
homologia de 1Cor 8,6. A reflexão paulina sobre a criação se articula em três perspectivas:
Perspectiva soteriológica e teológica:
Retomada do AT: a) Deus é onipotente, e sua onipotência se revela em particular no
fato de que a Palavra de Deus chama à existência do nada e pelo efeito do apelo desta
Palavra surge algo de verdadeiramente novo, que antes não existia (Rm 4,17; At 17,25); b)
Deus é quem sustenta o mundo, que não só o cria, mas sustenta sua existência e apresenta-
se como o fim do mundo (Rm 11,36); c) Deus é quem estende a própria ação em toda a
criação, por quem tudo é objeto de sua ação, que cria e sustenta (1Tm 6,13; 2Cor 5,18);
Perspectiva cristológica:
Porque Cristo é o centro e o sentido do plano salvífico, então ele é também
mediador da criação. 1Cor 8,6 e Col 1,15-20 são os textos onde Paulo desenvolve melhor
12
isso. De fato, a homologia de 1Cor 8,6 apresenta, no contexto da idolatria, o contraste entre
a adoração e o respeito diante das potências demoníacas, consideradas pelos pagãos como
“senhores”, e a afirmação paulina de que na realidade existe um único Deus, o Pai, e um
único Senhor, Cristo. Nesse contexto, o v. 6 entre ex abrupto, o que leva a pensar que se
trata de uma confissão de fé de estrutura binária, na qual a primeira parte diz respeito ao
único Deus e a segunda ao único Senhor. O fundo da aclamação ao único Deus é o do
shema de Dt 6,14, mas sem as inúmeras aclamações helenísticas que expressavam a
monolatria e não o monoteísmo. Temos assim um paralelismo exato: a. aclamação a Deus
Pai + relativa + coordenada; b. aclamação a Jesus Cristo Senhor + relativa + coordenada. O
fundo é o da pregação aos pagãos que pressupõe (1Cor 8,4; Gl 3,20; 1Tes 1,1; Hb 6,1) o
anúncio monoteístico com relação ao cristológico (At 17), elemento não especificamente
cristão, mas assumido da missão entre os prosélitos. Na aclamação é notável a posição de
Jesus como kyrios e mediador da criação (tà panta, que comporta a pré-existência ativa) e
da nova criação (hêmêis). A mediação na criação não é contida nas aclamações pagãs. Tà
panta é presente no estoicismo. Ao Senhor ressuscitado e exaltado são atribuídas as funções
de mediação criadora e de pré-existência. Para entender a homologia é preciso referir-se ao
contexto sapiencial, ao qual parece referir-se o texto de 1Cor 8,6 (Pr 8,30; Sb 7,12-22). A
sabedoria já tinha um papel na criação segundo esses textos hebraicos. Já se havia afirmado
que à essência divina pertencia sua sabedoria, que conhece e guia tudo (Pr 8,22-26; Sir
24,8). No período pós-exílico a sabedoria era personificada: era a imagem da grandeza de
Deus (Sb 7,25s); habitava no céu (Sir 24,24); sentava-se ao lado de Deus em seu trono (Sb
9,4); tomava parte em tudo o que Deus tinha feito no mundo: estava presente na criação (Pr
3,19s; 8,22.27-31; Sir 24,5); governava cada coisa (Sb 8,1), como a providência é o guia da
história (Sb 10,1-11,4) e guiava a história da salvação (Sb 9,18). O texto Paulino afirma: a)
Cristo é a sabedoria que, imagem de Deus, é instrumento mediador da criação; b) com
relação à sua natureza, não se trata de uma personificação retórica de Deus, nem de um
instrumento inferior a Ele, mas de uma pessoa divina, de um mediador de tudo, igual a
Deus. A demonstração se encontra no paralelismo com o Pai e como o emprego da
preposição dia + genitivo e não do dativo instrumental.
O hino de Cl 1,15-20, que dá início à carta aos colossenses, entre os quais começa a
surgir uma gnose, conhecimento radicado na valorização negativa da matéria e no culto dos
anjos mediadores entre Deus e os homens. A gnose insistia na prática da abstinência e nas
restrições alimentares. A partir da mediação dos anjos diminuía o papel mediador do Cristo.
Contra isso Paulo afirma com força a mediação crística, que se explica não só no âmbito
religioso-redentivo, mas também criatural-cosmológico. Nesse contexto, Paulo expõe sua
reflexão em um hino próximo ao da linguagem estóica, como mostram as proposições dia,
eis, em, mas que tem seu contexto próprio na reflexão sapiencial. O Apóstolo insiste na
função cosmológica do Cristo, na perspectiva de sua missão redentora, como mostra a
centralidade de Cristo no hino (Cl 1,12-14; 15-17; 18-20). Os dois mistérios estão em
continuidade. A redenção influi na harmonia do mundo. O Cristo, em quem reside toda a
plenitude, reconcilia em Deus tudo o que existe no céu e na terra (1,20). No entanto, embora
a redenção se reflita no destino do universo, este não é chamado corpo de Cristo, como a
Igreja (1,18).
Vejamos os elementos da argumentação: 1) “tudo foi criado em Cristo” (vv. 15-16a:
en autô). A exegese aproxima esta afirmação da de Jo 1,4: “nele estava a vida”, no sentido
de que todas as coisas encontram no Cristo seu princípio originário. A expressão “em auto”
é a mesma que Paulo usa para relacionar a Igreja e Jesus Cristo. Parece que ele estende esta
relação a todo o universo, numa espécie de causalidade exemplar, como em Pr 8; Jó 28,23-
27, onde a sabedoria aparece como o espelho no qual Deus, no momento mesmo da criação,
vê o plano do mundo criado; 2) “tudo foi criado por Cristo (dia) e para (eis) Ele” (v. 16b).

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Há uma mudança de tempo com relação ao versículo precedente: ao aoristo ektísthê do v.
16a, que indica a referência ao ato da criação é substituído o perfeito, que indica a ação
permanente e que se aplica à mediação cósmica (dia), à causalidade final (eis). Em
particular: a) no que diz respeito à mediação cósmica, o parentesco de expressão com Filo
não deve levar ao engano. Enquanto Filo usa a preposição dia para descrever a função do
Logos na criação do mundo, ele concebe, porém, o Logos somente como instrumento
passivo, diferentemente de Paulo, que se aproxima de Jo 1,3 e Hb 1,2; b) com relação à
finalidade atribuída a Cristo, nos encontramos diante de uma novidade na Bíblia. De fato
1Cor 8,6 e Rm 11,36 referem a finalidade ao Pai. Esta concepção é explicitada em Ef 1,10;
3) “o Cristo, primogênito e princípio de coesão de todas as coisas” (v. 17). Ainda que
estoico, esse vocabulário traduz outra doutrina. Para o estoicismo o espírito do homem é
uma parcela do espírito divino, enquanto o Apóstolo diz que o Cristo é o princípio de
coesão e da ordem do universo, sendo transcendente. Esta relação Cristo-mundo dá um
valor otimista à matéria, corrige e compensa a afirmação bíblica que diz que é preciso
desprezar o mundo, porque solidário do pecado.
Perspectiva antropológica:
Descreve a condição do mundo no sentido que se torne bom ou cativo, segundo a
decisão que toma o homem, e isso com a ligação concreta que sua liberdade estabelece com
a realidade criada. Assim é explicitada a realidade do pecado, que não procede de Deus,
mas da liberdade do homem. A criação, na perspectiva antropológica, se apresenta como
boa. Paulo reflete sobre este tema na discussão sobre os ídolos (1Cor 8,4-13; Rm 14,14). No
entanto, conhece ainda um aspecto negativo da criação no tema dos elementos deste mundo
= stoikêia tu kósmu tutu (Gl 4,3.9; Cl 2,8.20), que tornam o homem escravo, excluído da
salvação. Para compreender esta visão pessimista da criação, devemos recordar que para
Paulo a criação não tem valor autônomo em relação ao homem, pois é o ambiente concreto
no qual ele exercita sua liberdade (Rm 8,19-23). É o homem que dá sentido definitivo a
toda realidade criada.
- A criação em João
João remete-nos à centralidade do mistério de Cristo. Utiliza expressões mais
explícitas da dimensão cristológica da criação, já presentes nos Sinópticos e em Paulo. É o
caso do Prólogo: Jo 1,1-18. O protagonista aí é Jesus de Nazaré, que em seu viver terreno é
visto por João como Logos, ou seja, como sinal revelador de Deus ao mundo. Os estudos
mais recentes reconhecem que o tema do Logos tem um substrato grego e judaico. O
substrato grego: na filosofia o tema do logos já está presente em Heráclito, mas conheceu
sua fortuna maior no estoicismo, onde adquiriu uma abstração impessoal e panteísta,
entendido como alma universal que rege o universo e está também presente na razão
humana. O judaísmo tardio, representado por Filo, o personificou, atribuindo-lhe uma
função cosmológica intermediária entre Deus e o mundo. O gnosticismo acentua a
personificação, representando-o mitologicamente e dando-lhe papel soteriológico.
O substrato judaico vétero-testamentário: é resultado de vários temas: o dãbar
(Palavra) de YHWH como revelação implícita de Deus na criação (Gn 1) e como revelação
explícita na história de Israel (Ex 34,27); a hôkmã (sabedoria) da literatura sapiencial que,
ao aspecto dinâmico da Palavra acrescenta um aspecto ontológico tendendo à
personificação (Sb 9,4-10; Pr 8,22-30). João confere, porém, ao título Logos uma
originalidade inaudita, que é a da encarnação (v. 14: “o Logos se fez carne”), fato novo na
história do conceito. O Logos não é outro que Jesus de Nazaré, em quem a Palavra incriada
se fez carne e habitou entre nós. Se esta é a intenção originária de João, a de identificar o
Logos-Palavra criadora de Gn 1 e a sabedoria criadora de Pr 8,22-30, com a figura história
de Jesus de Nazaré, então o tema da criação não é concebido separadamente do tema da
14
redenção salvífica de Cristo: criação e redenção são um único ato que Deus cumpre em
Jesus Cristo.
2.3. A criação na confissão de fé da Igreja e na história da teologia cristã
Como vimos no NT, a fé cristã assumiu o criacionismo do AT, interpretando-o à luz
do evento Cristo. Com o passar do tempo, esta leitura será aprofundada, seja no diálogo
com a cosmovisão antiga, feito pela patrística e pela escolástica no confronto com a
filosofia e as ciências clássicas, oriundas do mundo greco-latino, seja no diálogo com a
cosmovisão moderna e contemporânea, feito pela teologia desde o séc. XVI.
a. A doutrina da criação no período patrístico
A patrística, em sua reflexão sobre a criação, teve que responder às questões vinda,
de um lado, da gnose e do maniqueísmo, e do outro, do neoplatonismo. Vejamos como isso
se deu em alguns autores que se tornaram referência para a reflexão posterior.
1) Os padres antignósticos
Apresentam duas tendências, já presentes em gérmen no NT, a da oposição e a da
acolhida da cultura grega. A oposição se refere a uma visão soteriológica sobre a qual
cristianismo e gnose não estão de acordo; a acolhida diz respeito a uma fundamentação
lógico-linguística que acolhe em si elementos platônicos, estoicos e neopitagóricos
utilizáveis como instrumentos expressivos para a cosmovisão cristã. A figura emblemática
da oposição é Irineu de Lion, enquanto a da acolhida é Orígenes.
Irineu representa uma síntese insuperável na interpretação cristológica da criação. O
elemento decisivo de sua resposta ao gnosticismo é que ele afrontou o problema do mal não
segundo a perspectiva parcial da origem, mas segundo a perspectiva total da vitória final de
Deus sobre o mal. O bispo de Lion não se contentou em desculpar Deus pelo mal presente
no mundo, reconduzindo-o à liberdade do homem, mas buscou captar o sentido da liberdade
e o modo pelo qual ela é reconduzida à salvação. Irineu intuiu assim o plano compreensivo
de Deus, que é Cristo, em vista do qual Deus quis a existência de um homem livre e
mediante o qual Deus reconduz à salvação a liberdade, mesmo que ela se afaste do plano
divino mediante o pecado. A partir daí se articulam os grandes temas da teologia irineana da
criação.
Irineu tem um sentido claro da soberania de Deus sobre todas as coisas, contra a
doutrina da matéria incriada. O conceito da soberania absoluta de Deus exclui tal concepção
da matéria e este é o significado das repetidas afirmações sobre a criação do nada. A
soberania de Deus é, por isso, princípio de uma comunhão da aliança que Deus faz em
Cristo, que é o verdadeiro fim da criação. O mundo, portanto, não é o resultado de uma
queda que predetermina em sentido negativo a história do mundo, mas ele é bom porque é
fundado na vontade de comunhão de Deus e é obra de Cristo. O paralelismo Adão-Cristo é
retomado não tanto na perspectiva paulina, que sublinha a antítese entre as duas figuras,
mas numa perspectiva de continuidade, o primeiro Adão se realiza plenamente no segundo
e criação na redenção. Irineu chega assim à grande ideia de recapitulação que, à primeira
vista, indica uma espécie de retorno à origem, e parece sugerir uma desvalorização da
história. Trata-se, porém, de compreender o sentido da origem em Irineu: ela é o estado de
infância inocente, aberta ao crescimento em Cristo e não o fechamento provocado pelo
pecado. Portanto, a recapitulação, como retorno à origem, não exclui, mas pressupõe o
crescimento rumo a uma plenitude final. Dada esta perspectiva salvífica, compreende-se a
ligação que Irineu estabelece entre a criação e os grandes temas salvíficos da Igreja e da
Eucaristia. A Igreja é concebida como o lugar no qual se estende a senhoria de Deus, como
o ambiente da nova criação. A eucaristia é ligada com a criação e está relacionada com a
páscoa e a encarnação. A realidade material do pão e do vinho, criada por Cristo, é
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transformada por sua palavra em alimento para a alma, o que não seria possível se pão e
vinho, como pretendiam os gnósticos, não viessem da ação criadora do Cristo, mas fossem
obra de um demiurgo mau.
Orígenes, reagindo à concepção gnóstica em seu ponto fundamental, a saber, a da
criação do mundo material por um princípio divino do mal, mostrando a componente
mitológica do gnosticismo, pensa poder acolher na síntese cristã, vários elementos da gnose.
O elemento típico do pensamento origenista é a distinção platônica entre dois mundos: o
mundo das essências intelectuais e o mundo das realidades materiais. Entre esses dois
mundos se coloca o evento da queda das essências intelectuais (pecado dos anjos), que
fazem ver o mundo material com uma coloração pessimista. É verdade que, ainda que
criado por Deus, o mundo material, como lugar da prova purificatória para a alma decaída,
torna o pensamento do alexandrino difícil de ser integralmente acolhido na síntese cristã.
Esse fato comporta dois limites em sua teologia da criação: um se refere a seu princípio e
diz respeito à criação do mundo inteligível, e outro a seu fim e se refere à criação do mundo
sensível. Sobre a criação, é clara a afirmação que ela foi criada ex nihilo, que o mundo das
ideias existia somente em Deus e as processões extratrinitárias são temporais. Apesar disso,
estas afirmações parecem insinuar uma espécie de eternidade e necessidade no mundo
intelectual. Uma concepção platônica da imutabilidade de Deus e de seus atributos de
bondade, soberania, providência, etc., leva a pensar que Deus não pode ser sem a criação.
Para o mundo material, é previsto um fim pela conflagração, com a reconstrução do estado
inicial, precedente à queda, e com o retorno a uma total espiritualidade (a ressurreição dos
corpos é um estado provisório que deve ser superado na apocatástase). É fácil perceber
nesta deshistoricização da criação uma insuficiência cristológica: o Logos, ao qual Orígenes
reconduz a criação intelectual, é pensado em continuidade com a reflexão platônica da
mente na qual o uno absoluto reflete-se a si mesmo e projeta a ideia de todas as coisas.
Donde a tendência subordinacionista e a dificuldade em relacionar o Logos com a história
de Jesus de Nazaré.
2) Os séculos IV-V
Na grande teologia patrística dos séc. IV-V dois fatores estiveram presentes na
reflexão sobre a criação: 1) a apropriação do pensamento pagão, com a consequente
consciência, da parte do pensamento cristão, que este pensamento era um guia desde o
ponto de vista cultural; 2) a luta trinitária, que obrigou a teologia cristã a deslocar a reflexão
do plano da Trindade econômica, no qual se fechavam as heresias de tipo modalista e
subordinacionista, ao plano da Trindade imanente, com a consequente dificuldade de
explicar a função cosmológica do Cristo e a orientação que levou a fazer intervir o Cristo só
depois do pecado, com função redentora. Esses dois fatores comportam uma visão da
criação vizinha das reflexões culturais sobre a origem do cosmo e não das intuições bíblicas
sobre o valor da aliança realizada por Deus ao criar cada coisa em Cristo. A criação se torna
assim o problema da origem de todas as coisas.
De fato, a definição de Niceia, que coloca o Cristo na vida imanente de Deus, não
comportou logo um sufocar da concepção da função do Cristo na criação. Os dois maiores
defensores de Niceia, Alexandre de Alexandria e Atanásio, têm muitas reflexões sobre o
lugar de Cristo na criação. Porém, progressivamente a dificuldade acima anunciada se
tornou presente, como aparece em Gregório de Nissa e Crisóstomo.
Gregório de Nissa fala frequentemente do nexo entre criação e redenção, mas entre
os dois eventos salvíficos é posta a previsão do pecado que alenta de tal modo a tensão da
criação rumo à redenção, deixando espaço a uma exuberante reflexão filosófica e
naturalística sobre a criação mesma. Basílio já o havia precedido nisso, com as Nove
homilias sobre o hexameron, que influenciou toda a antiguidade cristã e, através de
16
Ambrósio e Agostinho, a Idade Média. Além do mais, é verificada a identidade do sujeito
da criação e da redenção: para esta última é o Cristo e para a primeira o Logos, com um
forte influxo da concepção platônica e pouca referência a Jesus de Nazaré.
O discurso de Crisóstomo, que não pertence à escola alexandrina dos Capadócios,
mas à antioquena, fala muito do Logos como criador, mas tem dificuldade, como os
antioquenos, em descrever a unidade do Logos imanente de Deus com o Cristo, diminuindo
a força cristã da afirmação que reconduz a criação ao Logos de Deus.
A teologia latina acrescenta outro princípio de naturalização aos já assinalados, a
saber, o da orientação moral e prática desta teologia, que vê na reflexão sobre a criação uma
ocasião para intensificar a exaltação religiosa de Deus e convidar os homens e mulheres a
um uso correto das coisas. O exemplo mais evidente desta orientação parenética da teologia
latina é Santo Ambrósio em seu Comentário ao Hexameron. Limitaremos nosso comentário
da teologia latina desse período a uma breve retomada de Agostinho, que foi quem mais
influenciou a reflexão posterior.
O ponto de partida da reflexão de Agostinho sobre a criação não é mais cristão, mas
representa a conquista de um valor cristão, mediante a superação do problema filosófico do
maniqueísmo e do neoplatonismo. Mais precisamente, sua reflexão sobre a não positividade
do mal, própria ao neoplatonismo, ajudou-o a superar o maniqueísmo. Por sua vez, a
posição neoplatônica de tipo emanacionista é superada com o aprofundamento da
concepção tradicional da matéria criada ex nihilo. Esta afirmação aparece em Agostinho
com uma profundidade que será definitiva na teologia.
A superação da concepção emanacionista comporta um repensar da relação entre o
Logos-Verbo e a criação. Para o bispo de Hipona, a matéria não é produzida pura, mas já
articulada de modo variado, segundo várias formas que são impressas nela. O princípio de
toda forma é o Verbo, que é a imagem perfeita de Deus, que contém em si todos os outros
modos com os quais a matéria, que é total dessemelhança, pode ser informada. Esta relação
do Verbo com todas as coisas criadas, superando a mentalidade neoplatônica no que diz
respeito à emanação, não corresponde, todavia, com os grandes textos do NT. Esta reserva
pode ser feita também com relação a outro grande tema agostiniano, que está em sintonia
com as orientações do NT, a saber, o da semelhança de todas as coisas com a Trindade,
semelhança que na realidade espiritual alcança o grau de uma verdadeira imagem, enquanto
na realidade corpórea é simplesmente vestígio. Este recurso à imagem trinitária, presente
nas coisas criadas, constitui uma espécie de suporte do único verdadeiro contexto no qual o
mistério trinitário encontra a própria colocação e explicação, que é o da economia salvífica.
A ideia de uma presença do Verbo como princípio de inteligibilidade e de
significado em cada coisa ajuda a compreender a doutrina agostiniana das razões seminais.
Com esta doutrina, o bispo de Hipona busca conciliar a afirmação de que Deus, no seu
Verbo, fez simultaneamente todas as coisas, e a constatação experimental da sucessão
contínua dos seres. Agostinho distingue dois tipos de criaturas: 1) aquelas às quais pertence
o ser fixado definitivamente na sua forma desde o primeiro momento, ou seja, os anjos, o
dia, o firmamento, os quatro elementos (terra, água, ar, fogo), os astros e a alma humana; 2)
aquelas às quais são constituídas as razões seminais de todos os seres que existem, sejam
animais ou vegetais, como também o corpo do próprio Adão.
Pode-se notar na doutrina de Agostinho a falta de uma adequada impostação
cristológica, em nome de uma forte orientação religiosa. Tudo isso corresponde à sua
história espiritual, que atingiu sua maturidade na fé cristã não através do ambiente cristão
eclesial, mas dos estímulos religiosos suscitados pelo encontro com a filosofia neo-
platônica. Embora a sucessiva experiência pastoral o tivesse feito modificar sua
personalidade religiosa e cristã, é preciso reconhecer que esta pré-compreensão religiosa
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influenciou permanentemente sua fé, oferecendo-lhe um lugar privilegiado de expressão e
representando uma interferência não suficientemente dominada.
3) Intervenções do Magistério no período patrístico
Foram importantes neste período, sobretudo, os símbolos de fé, nos quais a
consciência do povo cristão se expressa de modo privilegiado. Dois fenômenos são
perceptíveis nos símbolos: 1) o regresso do caráter cristológico: as fórmulas simples
(Cristo) ou duplas (Pai – Cristo), que veem a referência da realidade criada a Cristo, cedem
o lugar às fórmulas mais evoluídas e ternárias (Pai – Filho – Espírito), nas quais o ato
criador é referido ao Pai, pela mediação do Filho e no poder do Espírito; 2) o progresso da
reflexão filosófica e a polêmica no descrever a criação como dependente da atividade
criadora de um único Deus. No entanto, para acolher a mensagem salvífica destes símbolos
de fé sobre a criação, não é esquecida a estrutura geral dos símbolos que requer as etapas da
história da salvação. A criação tem um valor salvífico ainda não sempre claramente
expresso por sua referência a Cristo. Além dos símbolos elaborados nos grandes concílios,
podemos ainda recordar outras intervenções do Magistério contra algumas heresias
dualistas na Espanha no séc. V, presente na obra de Prisciliano. Este tem seu pensamento
discutido, embora ele mesmo não seja condenado, só algumas de suas proposições. À parte
a reconstrução histórica dessa polêmica, é de interesse o dualismo, condenado nos sínodos
de Toledo (ano 400 e 447) e no de Braga (ano 561).
b. A doutrina da criação no período medieval
A influência do neoplatonismo agostiniano na teologia da criação medieval será
hegemônica no período posterior, embora o pensamento de outro neoplatônico cristão,
Dionísio, o Pseudo-Areopagita, também seja importante nos autores medievais. A entrada
do aristotelismo introduzirá, porém, um novo registro de pensamento que encontrará seu
momento de assimilação nas grandes sínteses escolásticas do séc. XIII.
1) O quadro geral
Enquanto na Idade Média, o Magistério se pronuncia contra um dualismo
ressurgente (Lateranense IV: DS 800/1196; Lion II: DS 851; Florença: DS 1333/1199), a
teologia prossegue o labor de cosmologização iniciado na patrística. Ela reafirma com isso a
exigência dialética da racionalidade da fé, mostrando o valor e a racionalidade de suas
afirmações, e assume o ingresso do aristotelismo no mundo latino, apesar de suas teses anti-
criacionistas, o que fará nascer uma ampla reflexão sobre a criação e o modo de concebê-la.
Particularmente importante foi a reflexão sobre a eternidade do mundo.
2) A evolução medieval do tema da criação
A teologia medieval tem como evento determinante a introdução de Aristóteles no
Ocidente latino, através dos tradutores e comentadores árabes. Diversos fatores
contribuíram nisso: a) algumas infiltrações neo-platônicas presentes no aristotelismo (De
theologia Aristotelis; Liber de Causis); b) as duas linhas de leitura árabe de Aristóteles: 1) a
que buscava conciliar os princípios aristotélicos com a exigência da fé islâmica (Avicena);
2) a que advogava o retorno a uma leitura puramente racionalista de Aristóteles (Averroés);
c) o ingresso de Aristóteles nas escolas teológicas, através da Faculdade de Artes, e a
progressiva desconfiança da parte da autoridade eclesiástica. Com este contexto histórico,
vejamos qual a contribuição espiritual do aristotelismo ao repensar cristão em confronto
com o que a teologia havia absorvido do platonismo.
3) O influxo platônico na teologia da criação
Pertencem a esta orientação a escola de Chartres (Fulberto de Chartres, Thierry de
Chartres, Bernando Silvestris, Guglielmo de Conches, Gilberto de Porreta, Anônimo das
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Sententiae Divinitatis), Bernardo de Claraval, Anselmo de Canterbury, Hugo de São Vitor,
Ruperto de Deutz, Abelardo e Pedro Lombardo.
Os princípios fundamentais sobre os quais se funda esta orientação são: o da
participação: a realidade é estudada como um sistema de participação de uma realidade
suprema e unitária; e o da imitação-semelhança: a consequência e o modo expressivo da
participação é a semelhança que cada realidade, em graus diversos, possui com relação à
realidade originária. Esta leitura favorece o sentido religioso, uma leitura espiritual do
universo, um potente anelo da realidade criada na direção do Criador, uma atitude
contemplativa; embora comporte riscos no confronto com as exigências típicas da fé.
O princípio da participação se expressa na afirmação: bonum diffusivum sui. Ele
pode levar a pensar como necessária a emanação da realidade criada a partir da realidade
suprema e unitária. Uma afirmação de tal gênero não é compatível com a fé cristã. Ela
emerge, porém, de forma velada, como em Abelardo, para quem o mundo criado deve
necessariamente ser o melhor mundo possível. O princípio da semelhança pode levar a uma
visão panteística. Deus se torna a lei imanente do mundo. Embora o panteísmo não seja
aceito pela fé (condenação de Amalário de Bène, no Lateranense IV: DS 808, e de David de
Dinant), ele está presente em algumas orientações da Escola de Chartres, e se exprime em
um destaque na atitude contemplativa e numa conversão naturalística ao mundo. Como o
mundo traz em si as leis divinas, é semelhante a Deus, e participa da ordem divina, não
podemos fechar-nos a isso, ver e descobrir Deus nisso.
4) O influxo aristotélico na teologia da criação
Pertencem a esta orientação os principais teólogos dominicanos e franciscanos:
Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste, Boaventura, Alberto Magno Santo Tomás.
Os princípios fundamentais deste influxo são os da causalidade do ser. À primeira
vista, esta forma de ver parece platônica, pois é cheia de ardor religioso e contemplativo. A
causalidade eficiente marca um nítido destaque entre a coisa criada e a causa da qual
deriva. Na realidade, o princípio de causalidade pode revestir-se de uma extraordinária
função expressiva de profunda exigência da mensagem cristã. Segundo este princípio, as
coisas não se apresentam como trazendo em si uma marca divina, como no platonismo, mas
como abertas diante de Deus, como totalmente entregues em suas mãos plasmadoras, como
disponíveis a uma relação imediata e direta com Deus. A ambiguidade pode surgir quando,
pelo esquecimento do contexto cristológico, ou pela não compreensão plena do modo
concreto, histórico e revelado como as coisas estão diante de Deus, ou se acaba por
esquecer este aspecto ou se interpreta de forma parcial, levando as coisas a se fecharem em
si, em suas próprias características, e esta efetualidade como continuamente posta em
movimento pela criativa presença da causalidade divina. Um exemplo desta orientação
cristã do aristotelismo e de sua ambiguidade encontra-se em Tomás, nas Questões 44-46 da
Parte I da Suma Teológica.
Q. 44: a 1: o radical depender de cada coisa de Deus. Inserido o tema da
participação; a 2: o depender investe as coisas em todo seu ser; a 3: o tema da causa
exemplar, mas com a perfeita identificação da ideia com Deus mesmo; a 4: o tema da causa
final;
Q. 45: a 1: o tema da creatio ex nihilo recebe particular iluminação da reflexão
sobre o depender total, único e singular das coisas de Deus, primeiro princípio; os termos
usados são platônicos, ou seja, emanação, mas a realidade é a de uma radical causalidade; a
2: retorna o tema do depender da coisa em todo seu ser e não só num aspecto; a 3: é o artigo
chave: o depender de Deus em todo o ser leva a concluir que a criação é uma relação, um
estar diante de Deus de forma imediata, total e totalmente disponível; a 4: nada de
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importante neste artigo; a 5: outro artigo chave: a característica única, irrepetível da
atividade criadora de Deus enquanto é uma atividade que abraça o ser em toda sua
completude; a 6: aqui aparece a ambiguidade do discurso tomista: a ideia de dependência de
Deus de modo total e disponível, que é definida em base ao livre revelar-se de Deus, é
substituída pela ideia de uma dependência de Deus vista como ser (sem uma suficiente
vigilância no precisar o processo da analogia segundo o qual Deus pode ser pensado como
ser); a consequência é perigosa: a tendência a renegar o caráter cristológico e trinitário da
criação; a 7: recuperação da concepção trinitária, mas só indireta e substitutiva, mediante o
recurso ao tema agostiniano dos vestigia;
Q. 46: a 1: o recurso ao princípio de uma radical dependência da coisa de Deus,
causa primeira, permite fundar a não necessária eternidade do mundo; a 2: este princípio
funda a não necessária temporalidade; a temporalidade do mundo é querida por Deus, e só
por revelação divina é cognoscível; a 3: clarificação do início temporal da criação.
5) A criação: entre platonismo e aristotelismo
O platonismo insere na relação Deus-mundo algo de intermediário, ou seja o tema
da semelhança e da imitação. Se isso não é criticado, se torna ambíguo. Uma clarificação
cristianizante deste tema é a presença de Cristo como imagem, como símbolo de Deus,
como sacramento da bondade divina Mas se trata de ver até que ponto a categoria da
imagem é reformada e replasmada na raiz da aplicação a Cristo e não a que influencia
aprioristicamente a concepção cristológica (como, por exemplo, em São Bernardo, onde o
tema do Cristo imagem, intervém quando se trata de reconduzir o homem pecador a seu
estado primigênio de imagem de Deus, mas este estado é descrito sem referência a Cristo.
O aristotelismo parece mais disponível e aberto a um discurso revelado, ao eliminar
o tema intermédio da semelhança e ao recorrer ao tema do radical depender causal de Deus,
o que põe a realidade criada numa atitude de plasmabilidade no confronto da livre vontade
de Deus que se manifesta, por revelação e fé, na história. Quando, porém, a efetiva
referência à ação livre de Deus na história salutis está ausente (o que ocorre se se esquece o
caráter cristológico e trinitário da obra da criação), a disponibilidade da criatura no
confronto com Deus acaba por perder seu contexto real e é exposta ao risco de ofuscar-se
em nome de uma nem sempre vigilante reflexão sobre a analogia que se interpõe entre a
coisa criada e o Criador.
Como podemos ver, o problema central, mesmo da teologia da criação é o do
cristocentrismo: sua maior ou menor presença nos autores medievais tem ressonância
decisiva no discurso antropológico. Pode ser significativo o fato de que Ruperto de Deutz,
cuja cristologia é uma das mais abertas a um pleno e preciso cristocentrismo, tenha
recuperado plenamente o caráter cristológico e trinitário da criação.
c. A doutrina da criação na época moderna
A partir do século XVI, mas já antes, se considerarmos toda a evolução técnica,
científica e filosófica que emergiu no mundo europeu a partir do fim da Idade Média, uma
nova maneira de ver o mundo e o ser humano foi se estabelecendo. Vamos assistir ao
nascimento de uma nova ciência, seguida de uma nova cosmologia e de uma nova
ontologia. Da mesma maneira que no passado, esta cosmologia e esta ontologia estarão no
centro dos novos debates que se instalarão no seio da cultura nascente. À diferença do
passado, porém, a cultura onde esse debate se instala é hegemonicamente cristã. É do seio
mesmo do cristianismo que nascerá a cosmovisão que paradoxalmente colocará em questão
os diferentes elementos da fé cristã no Deus criador. Este processo vai se estabelecer em
três campos: 1) o da interpretação dos textos bíblicos, lidos até então como testemunhas
fidedignas do evento da criação e da salvação; 2) o das ciências, que com as descobertas da
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física moderna vão tornar possível a saída do mundo fechado e a abertura a um universo
indefinido (infinito); 3) o da filosofia, que vai romper com a ontologia clássica, marcada
pela physis e a substância, e privilegiar a ontologia do sujeito.
1. A controvérsia ao redor da cosmovisão heliocêntrica
É Nicolau Copérnico (1543) que emprestou seu nome e sua descoberta à virada que
assistimos no começo dos tempos modernos: a da cosmovisão heliocêntrica, contrária à
cosmovisão aristotélico-ptolomaica. Como sabemos, na visão geocêntrica, a terra forma o
centro de um cosmo de estrutura esférica, sendo circundada anelarmente pelas esferas dos
elementos água, ar e fogo. Segundo esta estrutura, mais distante mora Deus, fundamento do
cosmos. A descoberta de Copérnico vai colocar o sol no centro de um universo onde a terra
é somente um dos planetas. Esta descoberta não desencadeou de imediato uma controvérsia,
por ter sido apresentada como hipótese. É com Giordano Bruno (1600) e Galileu Galilei
(1642) que a teoria de Copérnico vai desencadear as reações que conhecemos por parte do
Magistério da Igreja católica. Giordano Bruno vai assumir o sistema heliocêntrico como
fundamento de um enunciado teológico: o de que a infinidade do espaço cósmico seria a
necessária correspondência para o ser infinito de Deus. Nesta concepção, não havia espaço
para a contingência da realidade empírica. Muito menos ainda para um evento salvífico
mediado historicamente. Galileu também se pronunciou a favor da tese de Copérnico,
dando-lhe os elementos da observação para prová-la. Seu processo terminou, porém, numa
retratação pública, embora feita sob coação.
A partir dessas controvérsias, a teologia vai começar a se interrogar sobre o sentido
dos enunciados bíblicos e de sua pretensão à veracidade. Quem tinha razão, a ciência ou a
Bíblia? Esta questão resume bem o tipo de relação que se instaurou entre o que dizia a
ciência e o que dizia a revelação. Belarmino, num debate com Foscarini (1616), afirmou
que, se fosse demonstrado que a terra gira em torno do sol, dever-se-ia proceder com
cautela na explicação dos relatos bíblicos que, aparentemente, afirmam o contrário. Ele
cogitou com isso a possibilidade de ler os relatos bíblicos de outro modo que o da leitura
literal. Advertiu também que não se atribuíssem a visão de fé e a visão científica a esferas
distintas e irreconciliáveis. As autoridades eclesiásticas argumentaram, porém, no sentido
tradicional: a inescrutável onipotência de Deus atuaria de um modo inacessível às
possibilidades intelectuais do homem, visto que não está condicionada a qualquer sistema
de leis. Em consequência disso, as descobertas científicas não teriam nenhuma força de
expressão na área da verdade. Essas autoridades negam assim aos representantes das
ciências naturais qualquer competência na esfera teológica, fechando o caminho proposto
por Belarmino, para o qual as descobertas das ciências poderiam ser uma das provocações
para se repensar o método e a prática de interpretação da Bíblia.
2) Antropocentrismo e cosmovisão mecanicista
A descoberta de Copérnico mostra que o ser humano vive num universo
incomensurável, fortalecendo assim a reflexão moderna do sujeito sobre si mesmo e sobre
sua própria capacidade de percepção. Esse antropocentrismo será repensado por Descartes
(1650) em termos de uma cosmovisão mecanicista. Ao ser humano pensante (sujeito, res
cogitans), que percebe a si mesmo como meio de seu próprio mundo, se contrapõe a
natureza não humana (objeto mensurável, res extensa). A distinção cartesiana entre espírito
pensante, não estendido e concebido em abstração de sua corporalidade, e a natureza não
humana, destituída de espírito, levou, por um lado, à coisificação, à objetivação e à
utilização da natureza (o homem como senhor e proprietário) e, por outro, à ideia de que os
fenômenos da natureza obedecem a leis puramente mecânicas, ou seja, destituídas de
qualquer espírito. O pensamento mecanicista revela sua fecundidade na racionalidade
científico-técnica. Em conexão com o interesse despertado num aproveitamento da
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natureza, esse pensamento vai, no entanto, fomentar o desenvolvimento da exploração da
natureza e a crença no progresso. Essa tendência cresceu na medida em que se começou a
duvidar da origem metafísica da realidade.
A ideia de que o mundo pode ser explicado como efeito de causas reconhecíveis
levou também às tentativas de uma redefinição da ação de Deus nele. Spinoza (1677), em
ligação com a cosmovisão mecanicista cartesiana, pensa esta ação não mais como
interferência planejada (historicamente constatável) nos fenômenos da natureza, mas como
as leis da natureza. Para ele, a ação divina não anula a ordem da natureza, que é ela mesma
a vontade divina. Deus, diz ele, é uma causa imanente, e não uma causa transcendente, visto
que faz tudo nele mesmo e nada fora dele mesmo, porque fora dele não existe
absolutamente nada. Com este princípio, Deus se torna um mero substituto, que sempre se
apresenta quando os fenômenos não podem ser explicados naturalmente. Corre-se com isso
também o risco de se afirmar a necessidade do que existe efetivamente.
3) A fé no Deus criador na teologia dos tempos modernos
A dificuldade para dialogar com a nova mentalidade científica inaugurada na
modernidade se fez sentir também no debate que o cristianismo estabeleceu com as novas
correntes filosóficas que surgiram. No campo protestante foi, sobretudo, Lutero que propôs
alguns elementos para repensar a fé no Deus criador, e no católico, Suárez.
Os Reformadores insistirão sobre a doutrina clássica da criação de todas as coisas
por Deus. Lutero vai impregnar de conteúdo existencial as formulações do ensinamento
tradicional. Para ele, a ideia da criação e da relação entre o Criador e a criatura deve ter por
consequência o abandono pelo homem de toda intenção de encontrar nele mesmo o
fundamento de seu ser. Isso significa que o homem recebeu seu ser como uma graça
absolutamente imerecida. A criação pode ser vista como uma palavra que Deus dirige ao
homem. Este conceito da criatura como palavra é o centro e o resumo da doutrina luterana
da criação. Ao se fechar a esta palavra, diz o reformador, perde-se o sentido do mundo que,
não sendo mais casa, se torna um deserto. Deus é mais profundamente, mais intimamente na
criatura que a criatura nela mesma, mas o homem nem sempre se dá conta disso. Esta
presença de Deus não é sempre reconhecida, porque o mundo, por causa do pecado, não é
aquele que saiu bom das mãos de Deus. Lutero une o relato da criação com a experiência
atual do homem. Devemos lembrar-nos dos bens que perdemos e pensar na redenção futura
da qual fala Rm 8,19-25. O cristão está no começo da vida eterna porque é de novo atingido
por este conhecimento das criaturas perdido em Adão. Mais que reinterpretação dos
problemas teológicos e metafísicos da criação, Lutero se preocupa com o profundo caráter
religioso dessas verdades da fé. Segundo ele, devemos dizer: «creio que Deus me criou,
com todas as criaturas ». Sem esquecer a referência à totalidade, faz-se referência pessoal a
esta verdade da fé. A ideia de criação a partir do nada se repete e se atualiza a todo o
momento da existência. Deus ama tudo o que criou e se compraz a todo instante com sua
criação. Lutero sublinha a presença contínua de Deus mais que a autonomia e o ser próprio
da criatura. O acento no caráter salvífico da criação predomina sobre a ontologia.
A teologia católica seguirá, não sem os modificar, as linhas clássicas da escolástica.
A nova sensibilidade, criada desde o Renascimento, corresponde a uma distinção mais
nítida ainda entre filosofia e teologia. Quanto ao problema da criação, o teólogo que definiu
toda a reflexão feita no período moderno foi Suárez. Ele trata este problema, por um lado,
como questão filosófica, porque é uma verdade da razão, e por outro, como questão
teológica. No início do tratado Sobre a obra dos seis dias, o teólogo jesuíta pressupõe o que
considera como os princípios gerais da criação: que ela foi necessária para que o mundo
existisse; que é obra da onipotência de Deus e sem nenhum pressuposto, ou seja, ex nihilo;
que a essência incriada é única e que dela provém todas as outras. Uma vez estabelecidos
22
esses princípios, começa o discurso propriamente teológico. Pertence à teologia, diz ele,
mostrar como se produz a criação que, enquanto feita, pode ser conhecida pela razão. O
mundo e os anjos foram feitos no começo dos tempos. Suárez considera também que a
criação sem começo temporal não suprime a priori o espírito, mas não estima esta hipótese
possível no caso concreto da criação, antes de tudo por causa dos ensinamentos da
Escritura, mas também porque desde sempre (ab aeterno), poderiam se criar coisas
«permanentes» e não «sucessivas», como as que constituem o mundo concreto que
conhecemos. A análise dos seis dias pretende mostrar como as coisas foram criadas. Com
esses pressupostos, apesar da leitura da história da salvação proposta na leitura de Suárez, a
criação parece ser uma modalidade concreta de uma ideia geral da criação, à qual se pode
atingir pela filosofia.
4) A teodiceia filosófica: o problema do mal
A pergunta pelo problema do mal surge no mundo moderno como questão de
teodiceia, que busca justificar o Criador, cuja onipotência, sabedoria e bondade são postas
em dúvida diante da imperfeição do mundo experimentada pelos que sofrem. A forma
clássica da teodiceia deste período é a de Leibniz (1716). Sua tese fundamental é que, entre
as possibilidades imagináveis, Deus escolheu o «melhor mundo possível». Leibniz rejeita
assim a interpretação determinista do mundo, segundo a qual tudo é necessariamente como
é, e ao mesmo tempo, se opõe à ideia de que tudo aconteça por mera casualidade
(arbitrariedade). Em oposição a isso, ele vai defender a causalidade final, ou seja, o
finalismo de uma teleologia dos eventos dada por Deus ao mundo. O mundo existente, diz
ele, é o melhor dos mundos possíveis porque foi criado por Deus. Trata-se de um mundo no
qual a maior variedade possível dos fenômenos se combina com a maior ordem possível. O
mal aparece como carência de perfeição e não como uma realidade de qualidade ontológica
própria. A imperfeição das criaturas é possível porque Deus admite que elas rejeitem o bem.
Deus não quis e não quer o mal, mas permite que exista por causa de um valor mais
elevado: a liberdade e a razão das criaturas.
Kant (1804) considera a tentativa de Leibniz fracassada. Segundo ele, todas as
teodiceias tentam atribuir o mundo, tal como ele é feito, a um Deus responsável por este
estado de coisas, ou seja, acreditam poder reconhecê-lo como intencionado por Deus como
ele é. Com isso, transcendem a capacidade do conhecimento teórico nos limites da esfera do
perceptível pelos sentidos. Esse conhecimento não pode inferir do mundo percebido pelos
sentidos um criador como fundamentação desse mundo, nem pode descobrir no curso do
mundo uma razão divina planejadora. A crítica filosófica pode somente concluir que nossa
razão é incapaz de reconhecer como se encontraria o mundo. Se se quisesse nele a
manifestação divina de sua vontade, ele permaneceria para o conhecimento teórico um livro
fechado. Uma teodiceia doutrinal (conhecedora) é impossível. O que nos é permitido pensar
é o aspecto prático ou moral do problema do mal. O homem que age moralmente
subentende que a realidade do mundo remonta a um demiurgo divino moral e sábio. A
teodiceia autêntica exige a possibilidade de realização da moralidade, apesar da imoralidade
reinante, ou do pendor para o mal no qual os homens se sujeitam a máximas imorais. Kant
se restringe então a um tratamento filosófico do mal moral, dizendo que é impossível atingir
a intenção final de Deus.
5) Unidade dialética de Deus e do mundo: Hegel
Diferenciando-se dos filósofos do iluminismo, que distinguiam Deus e mundo,
Hegel (1831) procurou fundamentar racionalmente a unidade dialética entre Deus e o
mundo. Para ele, a existência da realidade criada, em sua concreção histórica, deve ser vista
como um momento necessário do evento dialético da alienação e da reconciliação de Deus
consigo mesmo. O mundo é o destino necessário de Deus. Isso significa auto-esvaziamento,
23
no estar fora de si, e redenção, no tornar-se consciente da unidade do espírito humano com
o espírito em si. Esta reflexão ajuda a compreender a possibilidade do mal (negativo),
liberando Deus da acusação de impotência e de arbitrariedade diante da existência do mal.
Para Hegel, a reconciliação do espírito humano com o espírito absoluto, Deus, somente é
possível, se antes reinar um estado de separação. Como o processo de reconciliação é um
acontecimento em liberdade, ele pressupõe que o homem esteja em condições potenciais de
deter o movimento de reconciliação, de permanecer no estado da separação. O mal
necessário potencialmente se torna atual, se o homem insiste em sua singularidade, se
resiste ao movimento de sua união com Deus.
6) O Magistério católico diante do pensamento moderno
Ao pretender entender tudo o que é real como acontecendo necessariamente no
pensamento, Hegel contradiz a noção teológica da contingência fundamental. Seu
pensamento não exprime inequivocamente nem a liberdade divina do Criador, nem a
inderivável ação redentora de Deus na história. Sua obra vai mesmo assim fecundar a
teologia, dando origem à intervenção do Magistério católico no final do século XIX, na
constituição dogmática Dei Filius, do concílio Vaticano I. A ocasião imediata da
intervenção magisterial foi a teologia feita a partir do pensamento hegeliano, sobretudo por
G. Hermès e A. Günther. Para o primeiro, a verdade da fé sobre a criação afirma tudo o que
a razão deveria admitir. Como Deus não pode criar para um fim egoísta, não se pode
afirmar que ele criou o mundo para sua glória. É preciso afirmar, tanto pela razão como
pela revelação, que é a beatitude da criatura que é o fim último da criação. A providência
divina significa somente que Deus rege o universo com as leis naturais.
Uma primeira reação magisterial a essas doutrinas se produziu em 1836. Reprova-se
a Hermès seu método, que coloca a dúvida na base da investigação teológica, e o princípio
segundo o qual a razão é a norma principal e o único meio pelo qual o homem pode obter o
conhecimento sobrenatural. Günther tentará dar um fundamento racional à fé na criação.
Esta é considerada como um produto secundário do processo que porta o Absoluto a se
constituir como o Deus trino. A ideia que Deus tem dele mesmo é acompanhada pela ideia
do «não eu», do nada. Mas ao mesmo tempo, esta ideia tem certa positividade, porque se
enraíza na consciência do Absoluto e equivale à ideia que Deus tem da criação, ideia que
deve em seguida se realizar numa manifestação ad extra. Assim, a criação aparece como o
inverso do processo da vida divina ela mesma. As reações oficiais do Magistério a essas
teses são imediatas, em particular no breve Eximiam tuam de Pio IX ao arcebispo de
Colônia, em 1857. Entre outros erros sobre a Trindade e a encarnação, o texto papal diz que
Günther se opõe à doutrina católica sobre a suprema liberdade de Deus na criação de todas
as criaturas. Além do mais, Günther é acusado de submeter a fé à razão humana e à
filosofia.
De uma maneira mais equilibrada e sistemática, o Vat. I, em 1870, expõe os pontos
fundamentais sobre a criação na Dei Filius. O primeiro capítulo, intitulado «Deus criador de
tudo», contém as principais afirmações. O único Deus vivo e verdadeiro é o criador do céu
e da terra. Ele é distinto do mundo e «inefavelmente elevado acima de tudo o que é e pode
se conceber fora dele [...] Este único verdadeiro Deus, por sua bondade e onipotência, não
para aumentar sua beatitude nem para adquirir sua perfeição, mas para manifestá-la pelos
bens que ele acorda às suas criaturas, criou desde o começo dos tempos, no mais livre dos
desígnios, tudo do nada, dois tipos de criaturas, as espirituais e as corporais, ou seja, os
anjos e o mundo, e em seguida a criatura humana que tem os dois elementos, pois é
composta de espírito e corpo».
O texto reproduz, com acréscimos notáveis, a definição do IV concílio de Latrão. A
menção da onipotência divina é precedida pela da bondade da qual falará o Concílio de
24
Florença. Acrescenta-se também a referência explícita à liberdade com a qual Deus criou
todas as coisas (liberrimo consilio). Uma dimensão desta liberdade divina consiste no fato
de que Deus não cria para aumentar sua beatitude nem para adquiri-la. Ele não depende
então em nada da criatura. A finalidade da criação é, segundo o que se deduz do texto, a
manifestação da perfeição divina pelos bens concedidos às criaturas. Esta declaração é
completada pela alusão à providência divina: Deus cuida e governa com sua providência
todas as coisas que criou, porque nada é escondido a seus olhos, nem mesmo as coisas
futuras. Uma diferença com o IV Concílio de Latrão, que havia atribuído ao Deus trinitário,
Pai, Filho e Espírito Santo, considerados como um princípio único, a criação de tudo.
Falando do Deus criador, a Dei Filius não menciona mais a Trindade, nem mesmo para
dizer que a criação é uma obra comum às três pessoas. Ele retém somente a referência ao
Deus único. A afirmação da criação sai de alguma forma do quadro tradicional do Credo,
para ser tratada no quadro dos «preâmbulos da fé» (praeambula fidei), prévios à revelação e
acessíveis à razão. Isso é confirmado pelo caráter filosófico do vocabulário referente aos
atributos do Deus único e de sua atividade criadora, que no texto da Constituição, após ter
tratado do Deus criador, é abordado pela revelação. A criação é também apresentada sem
nenhuma ligação com a história da salvação. A menção da providência vai na mesma
direção. Além do mais, o ensinamento que seguirá imediatamente o capítulo 2, segundo o
qual Deus como princípio e fim de todas as coisas pode ser conhecido com certeza pela luz
natural da razão humana a partir das coisas criadas, afeta indiretamente a teologia da
criação. A redação dá a pensar que essas verdades, sem dúvida «cridas e professadas» pelo
Concílio, podem ser encontradas pela razão natural, esclarecida pela revelação, a fim de que
«na condição presente do gênero humano» elas possam ser conhecidas «facilmente, com
uma firme certeza e sem mistura de erro». A tese subjacente é que «o dogma da criação
não é somente um artigo de fé, mas ao mesmo tempo uma verdade de ordem natural». Essa
verdade deveria então poder ser partilhada com outros espíritos que não professam a fé
cristã. Mas o Concílio não entra nos detalhes e deixa aberta a questão da cognoscibilidade
da verdade da criação em todas suas particularidades, como por exemplo, a creatio ex
nihilo, somente pela razão. Essas afirmações são completadas pelos cânones
correspondentes. A Dei Filius vai insistir na afirmação de que tudo foi criado por Deus, na
distinção entre Deus e a criatura, que não são uma única e mesma substância, de sorte que é
condenado todo panteísmo (can. 1 e 3). O texto conciliar não admite que as criaturas
corporais e espirituais possam ser consideradas como emanações da essência divina, que
tudo vem por evolução ou manifestação desta mesma essência, ou que Deus seja um ser
universal e indeterminado que, no processo de sua determinação, constitui as distinções
entre os seres (can. 4). No cânon 5, afirma-se a criação de tudo ex nihilo, mas numa
formulação positiva : toda coisa depende de Deus segundo toda sua substância (substantia),
ou seja, em tudo o que ela é. Em seguida, fala-se da liberdade de Deus na criação: Deus não
criou com a mesma necessidade que a que é a sua no seu amor por ele mesmo. O Concílio
afirma enfim que o mundo foi criado para a glória de Deus. Este conceito, que não é novo,
não é definido. Mas comparando este cânon com o texto da Constituição, vemos como a
glória de Deus parece equivaler à manifestação da perfeição divina pelos bens concedidos à
criatura. Recolhe-se a ideia que encontramos nos grandes autores escolásticos, ou seja, a de
que a finalidade da criação é Deus mesmo, não porque deva se aperfeiçoar, mas porque as
criaturas encontram sua plenitude na participação à sua perfeição e à sua bondade.
Descobre-se facilmente os problemas com os quais o Concílio se defrontava. Diante de toda
confusão e identificação entre Deus e criatura, ou diante das intenções de se colocar em
relação a criação com a autodeterminação de Deus, o Concílio faz claramente a distinção
entre Criador e criatura, colocando em evidência a liberdade total do ato criador, que
provém de sua bondade antes mesmo que de sua onipotência. A clarificação desta doutrina

25
tradicional é um dos méritos da Dei Filius. Depois dela, os meios de teologia católica não
questionarão mais essa questão.
6) A doutrina cristã da criação diante da teoria da evolução
A teoria científica da evolução das espécies (Lamark e Darwin) levou a doutrina da
criação a repensar radicalmente as posições até então assumidas. Foi com muita hesitação
que a tradição da Igreja encontrou um caminho para associar a teoria da evolução com sua
herança teológico-criacional. Somente após um período de desastrada controvérsia, o
diálogo entre cientistas e teólogos levou finalmente ao reconhecimento de que o
pensamento evolucionista não se encontrava em contradição com a doutrina da criação. Os
defensores da teoria da evolução, que tinham uma cosmovisão do mundo mecanicista-
materialista, e os teólogos, que interpretavam literalmente as narrativas bíblicas da criação,
consideravam a evolução e a criação como realidades alternativas.
Para Darwin, existe um nexo evolutivo entre todos os seres vivos pelo fato de as
novas espécies no reino dos seres vivos se desenvolverem a partir das respectivas espécies
precedentes. Os princípios ativos desse processo são a seleção natural e a mutação. O
pensamento de Darwin encontrou rápida difusão e reconhecimento. Da parte dos teólogos,
porém, esse pensamento provocou reações contrárias fortes, a maior parte devida à
interpretação dos textos bíblicos e ao estatuto que lhes era dado. A ideia da evolução
parecia tornar impossível a singularidade teológica do ser humano, sua relação direta com
Deus, seu pecado, sua salvação e responsabilidade. Instaura-se então o conflito entre
monogenismo (bíblico) e poligenismo (científico). O primeiro afirma o começo do humano
a partir de um único núcleo humano primitivo, enquanto o segundo levanta a possibilidade
de uma pluralidade de núcleos. Sem o monogenismo, ou seja, sem a pressuposição de uma
inter-relação das gerações entre toda a humanidade, o discurso teológico da necessidade
universal da salvação dos homens parecia não mais ter fundamento. Em 1909, a Pontifícia
Comissão Bíblica publicou uma declaração sobre o caráter histórico dos capítulos iniciais
do Gênesis, no qual o discurso bíblico da unidade do gênero humano é designado como um
discurso cujo sentido literal e histórico não pode ser posto em dúvida sem prejuízos para os
fundamentos da fé cristã. Em 1948 esta declaração será reinterpretada pelo mesmo
Magistério, que começava a aceitar a exegese histórico-crítica, já admitida desde 1943 pela
Divino afflante Spiritu. Em 1950, a encíclica Humani generis aceita que a teologia possa
examinar a teoria da evolução. A tentativa mais abrangente de recepção do pensamento
evolucionista na esfera teológica foi empreendida por Teilhard de Chardin (+1955), que via
na dimensão dinâmica da cosmovisão evolutiva uma possibilidade para expressar em
linguagem mais adequada a ligação bíblica entre cristologia e cosmologia. O paleontólogo
francês vai falar da figura do «Christus evolutor». Para ele, Cristo é o princípio da
consistência universal, nele o universo subsiste, para ele converge o movimento evolutivo
do mundo.
O concílio Vaticano II não falou explicitamente do tema da criação. Mas
encontramos nele alusões significativas. Na constituição Dei Verbum, por exemplo, a
criação é claramente inscrita na ordem da revelação cujo cume é o Cristo, e situada no
começo da história da salvação à luz do relato bíblico. Foi, sobretudo, na Gaudium et Spes,
que trata da atividade humana no universo, que a criação foi apresentada de maneira mais
antropocêntrica : «o homem, criado à imagem de Deus, recebeu a ordem de submeter a
terra e tudo o que ela contém, de governar o mundo na justiça e na santidade,
reconhecendo Deus como Criador de todas as coisas, de lhe dar sua pessoa e o conjunto
das realidades, de maneira que, todas as coisas sendo submetidas ao homem, o nome
mesmo de Deus seja objeto de admiração, sobre toda a terra » (GS 34). As duas finalidades
da criação, a glória de Deus e o bem do homem, presente no Vaticano I, se encontram aqui

26
articuladas e hierarquizadas. Deus é o único criador. Os homens, por sua ação no mundo,
«prolongam» a obra divina. A bondade da criatura é destacada (GS 36), onde o documento
fala da autonomia da realidade temporal. A realização plena de toda a atividade humana é
enfim atribuída ao Cristo em seu mistério pascal : «o Verbo de Deus, por quem tudo foi
feito, se fez ele mesmo carne, e, vindo habitar a terra dos homens, homem verdadeiro, ele
entrou na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a em si» (GS 38). Esta
referência cristológica leva consigo a dimensão da consumação escatológica, direção para a
qual tende toda a criação. A escatologia se vê assim novamente conectada ao conjunto da
dogmática cristã.
d. A teologia da criação no debate contemporâneo
A reflexão teológica da segunda metade do séc. XX registra o retorno do interesse
pelo tema da criação. Duas frentes, ad extra, propiciaram essa retomada: a atenção à
questão ecológica e a retomada do diálogo com a ciência da natureza, e uma ad intra: a
exigência de recuperação da dimensão teológica da criação, em particular cristológico-
trinitária. Estas instâncias delinearam a redescoberta da criação no séc. XX.
1) As críticas provenientes da questão ecológica
O primeiro fenômeno que levou a uma retomada crítica da teologia da criação é a
questão ecológica, surgida a partir dos anos 1960. Vejamos os principais traços desse
movimento para, num segundo momento, mostrar suas principais elaborações conceituais.
a) Principais traços da questão ambiental. A questão ambiental nasceu de uma
mudança radical de perspectiva: de uma sociedade da subsistência e do equilíbrio passou-se
a uma sociedade do crescimento e da exploração. Uma sociedade voltada à exploração dos
recursos da terra não mais para atender somente às necessidades de seus habitantes, mas
para o acúmulo de bens, põe a questão da integridade do ambiente: integridade é a
capacidade da natureza regenerar-se para fornecer sempre possibilidades à vida humana.
Numa sociedade de subsistência a questão da integridade da terra era óbvia, mesmo porque
a capacidade de exploração era limitada. A um dado momento do avanço da sociedade
industrial, a questão da integridade do ambiente se tornou explícita sob três pontos de vista:
1) o esgotamento dos recursos naturais; 2) a poluição ambiental; 3) a urbanização
indiscriminada. O primeiro ponto é fácil de delimitar em seus aspectos gerais: enquanto nos
movimentos ecológicos é afirmada a conservação das espécies animais e vegetais
ameaçadas, a questão dos recursos diz respeito, sobretudo, ao esgotamento da energia. O
segundo ponto é o mais complexo, pois tem a ver com a poluição ambiental do ar, água e
solo. O problema não pode ser posto somente em termos bioquímicos, mas diz respeito ao
habitat da vida humana e das espécies que a circundam. Os três elementos são, portanto,
correlatos, pois constituem o ecossistema, do qual o ar, a água e a terra são variáveis
interdependentes. O terceiro ponto tem a ver com o crescimento populacional das grandes
metrópoles e sua forma artificial, que produz fenômenos de poluição urbana (acústica e
luminosa, fragmentação dos ritmos biológicos, crescimento massivo de habitações, etc.), e
constrói um ambiente que planifica um habitat recriado de modo artificial, sem as normas
de equilíbrio da natureza e com a perda das formas simbólicas que provêm do contato direto
com o habitat natural, com seus equilíbrios e ritmos (noite e dia, frio e calor, sol e chuva). O
ambiente não pode ser concebido como um sistema cibernético que recria as relações
segundo um programa projetado pelo homem. A compreensão científica a natureza e a
exploração indiscriminada de seus recursos sequestram-na e a transformam em universo
exclusivamente material, lugar somente do agir produtivo (fazer) do homem, mais que de
sua capacidade de construir (agir) seu destino pessoal e sua casa comum com outros.
b) Reflexões provocadas pela consciência ecológica: a reflexão cultural que se
alimentou da nova consciência ecológica se expressou em diversos níveis: científico,
27
ideológico e político. O nível científico nasceu como um novo capítulo da ciência biológica
na última parte do séc. XIX. Ernst Haeckel foi o primeiro a usar o termo ecologia em sua
obra Morfologia geral dos organismos (1886), como um novo ramo da ciência biológica: a
ecologia é a ciência global dos organismos em relação com o meio circundante, do qual
podemos calcular todas as condições de existência. No contexto da biologia, ela estuda a
relação passiva e ativa das plantas e animais entre si e com o ambiente natural. O conceito
de Umwelt (meio, ambiente) surgiu nesta época e foi introduzido na biologia no séc. XX por
Jacob von Uexküll, para assinalar uma diferença com relação ao ambiente social. Depois
este conceito se alargou e passou a incluir a noção de ecossistema, ou seja, a grande zona da
superfície terrestre na qual vivem juntos várias espécies de seres vivos que são ligados entre
si e com o espaço de vida em inúmeras relações. Assim, o conceito de ambiente se dilatou a
fim de compreender sistemas de vida mais amplos. A noção vai atingir a ideia totalizante de
natureza. Aí se põe o problema da posição do homem na natureza, como ele intervém nela.
Que o homem tenha relações com as diversas formas de vida no planeta, isso pertence à sua
condição. Suas relações, porém, devem ser responsáveis. O aspecto técnico ou instrumental
do problema ecológico oferece um critério necessário, mas não suficiente para o problema
ecológico, que possui um significado ético. Um retorno ingênuo do homem à natureza não
resolve, todavia, o problema. Não se pode tampouco reificar a separação entre homem e
natureza. A ciência do ambiente se torna ideologia ecologista, uma nova doutrina da
realidade centrada no retorno à natureza. Ela se expressa na crítica à orientação
antropocêntrica do Ocidente. Apresenta-se sob duas modalidades conexas: 1) crítica ao
antropocentrismo cartesiano e iluminista, responsável por uma visão mecanicista da
realidade/natureza; 2) crítica da orientação espiritual da tradição hebraico-cristã, que
favoreceu uma atitude hostil de domínio sobre a natureza. A confusão dos dois registros
potencia a força da acusação ambientalista, porque a possibilidade de estabelecer uma
dependência histórico-causal entre os dois aspectos leva a um único juízo desqualificador
da tradição civil do Ocidente e de suas raízes cristãs. É verdade que a crítica ecológica
percebe bem que a não referência a Deus e a ausência da valorização ética levou o sujeito a
encontrar-se sem mundo num duplo sentido: no confronto com Deus e no confronto com os
outros, pois o mundo não é mais lugar de significação dessas relações. Daí a valorização
negativa da ideologia ecológica contra a concepção mecanicista das ciências naturais que
reificaram a natureza como um mundo de coisas, uma espécie de grande mina de pedra para
a construção da cidade tecnológica, dominada pela economia de mercado. Várias
afirmações são então feitas: a ciência é homicida já em sua íntima essência (A. M. Kl.
Muller); articulação entre ciências naturais, econômicas, políticas e sociais, pessoais e
coletivas (G. Liedke). O ponto crítico encontra-se na valoração do nexo que existe entre a
complexa concepção antropológica da civilização moderna e o desenvolvimento das
ciências. A crítica ao antropocentrismo da cultura ocidental trouxe consigo a rejeição do
antropocentrismo da tradição hebraico-cristã. O caráter antropocêntrico da cultura moderna
pode ser atribuído ao impulso proveniente da tradição cristã. Esta é a leitura da Teologia do
mundo, de J. B. Metz, hegemônica nos anos 1960, que traçava uma dependência direta entre
concepção cristã e concepção moderna do mundo. Os expoentes do pensamento ecológico
tentaram envolver na crítica ao antropocentrismo a visão hebraico-cristã, em particular a
leitura do texto genesíaco sobre o “dominium terrae”, o mandato de soberania pela
intervenção do homem no mundo e a submissão da terra. A tradição hebraico-cristã teria
gerado a oposição entre homem e natureza pelo fato de afirmar uma
precedência/predominância do homem sobre as outras criaturas. Outros buscaram mostrar,
em defesa da diversidade da visão bíblica, sua original impostação, reclamando a teologia
real que é subentendida a Gn 1, mas sem reconstruir argumentativamente o sentido da
centralidade do homem em relação à cristologia e ao mistério trinitário. Em todos os casos a
crítica ao antropocentrismo cristão não pode não iluminar a apressada identificação entre

28
antropocentrismo moderno e suas raízes cristãs. Enfim, a consciência ecológica se propõe
ainda como movimento político, cuja característica principal é a de ser transversal às
normais configurações sociais e políticas. Trata-se de uma instância a mais a interpelar os
que organizam o consenso social e o projeto político. A instância ecológica tem a forma de
um apelo e de uma medida de juízo de toda a modalidade com a qual se exprime um
programa social. Próprio deste caráter transversal e extraterritorial da instância ecológica,
com relação às formas objetivas do viver social, é a denuncia da separação entre ecologia e
ética, aspecto que será assumido por sua retomada teológica.
c) A teologia da natureza numa ótica ecológica: a perspectiva ecológica exerceu
uma pressão sobre o discurso teológico, sobretudo na teologia protestante, mas não só,
reacendendo o interesse pela doutrina da criação. Dois aspectos caracterizam a retomada
teológica da questão ambiental: 1) a mudança do paradigma epistemológico; 2) a doutrina
da criação como teologia da natureza em perspectiva histórico-emancipativa.
- Da razão instrumental à razão comunicativo-integral: Moltmann foi quem
inaugurou o repensar da teologia em perspectiva ecológica, não só em seus temas, mas
também revendo sua forma epistemológica. Na aproximação ao tema da criação em
perspectiva ecológica emerge, segundo ele, a necessidade de se repensar o instrumento
cognoscitivo da teologia, de forma que supere a estreiteza do paradigma histórico e se
recupere o paradigma da natureza. Moltmann critica ainda o tipo de abordagem analítico
das ciências. Este modelo teria influenciado o discurso teológico, fundado na distinção
sujeito-objeto, enquanto hoje se trata de aprender um novo tipo de pensamento,
comunicativo, integral. A razão instrumental havia feito com que os objetos fossem vistos
como coisas a calcular e padronizar, prolongando sua sombra no paradigma histórico e
lendo o futuro do mundo em termos de um indefinido progresso do homem e da
comunidade humana. Moltmann diz que por isso a teologia da história parecia a mais
adaptada para assumir e explicar as tradições históricas da promessa e da esperança contidas
na Bíblia. Contra esta abordagem metodológica, da qual ele mesmo tinha sido seguidor e
intérprete, o teólogo alemão delineia o tema do conhecimento da criação. O conhecimento
do mundo como criação de Deus encontra seu fundamento numa diversa consideração da
natureza: na perspectiva da teologia natural, a natureza era a base auto-evidente para o
conhecimento de Deus. Numa nova teologia da natureza, é a autorrevelação de Deus a base
do conhecimento do mundo como criação. Uma teologia cristã da criação exige, portanto,
um novo perfil epistemológico. Podem-se indicar dois modelos de leitura da natureza: o
mundo como similitude; o mundo como representação. O primeiro modelo fala do mundo
como similitude por sua capacidade de reenviar a um futuro de redenção e glorificação.
Supera-se assim a dualidade entre criação e aliança proposta por Barth e a impressão de que
o mundo como criação corresponde à estaticidade, à constância e à circulação, enquanto só
ao evento salvífico pertence o aspecto de novidade e alteridade. Segundo Moltmann, todos
os sistemas vitais são estruturados temporalmente e abertos internamente a uma realização
plena futura. Por isso, ele se propõe a ler a similitude como promessa e antecipação do
futuro: a similitude criada não encontra só sua capacidade, mas a necessidade de
antecipação na sua realização/cumprimento futuro. Sem tal realização/cumprimento, o
mundo estaria em busca de uma realização que não pode dar-se por si. O segundo modelo
fala do mundo como representação. Ele é defendido por Ch. Link. A qualidade de
similitude do mundo deve ser pensada como uma interação entre homem e natureza, e só
neste jogo é possível compreender o mundo como criação de Deus. Link, diferente de
Moltmann, toma posição com relação a algumas orientações ecológicas. Para ele, são
insuficientes as leituras que buscam explicar as asserções teológicas sobre a criação, como
acontece no diálogo com as teorias evolucionistas. A transparência da natureza, diz ele,
pressupõe que o mundo a partir de si possa ser o médium de uma representação e reenvie

29
para além de si mesmo. Com isso são evitados todos os equívocos dos que falam de um
espírito da matéria (Daecke) ou de um espírito do mundo (Moltmann), postulando a
imanência de Deus. É necessário que o modelo epistemológico esclareça em quais
condições se representa a própria realidade nos diversos horizontes de experiência e como
estes horizontes se relacionam reciprocamente. O modelo de representação de Link parte do
pressuposto de que Deus pode se representar no mundo, pondo então as condições para isso.
O pressuposto desta abordagem provém da revelação: Deus se interpreta mediante a
linguagem da criação. Ele se faz conhecer no mundo mediante os meios de representação do
mundo. O modo como Deus se faz conhecer aparece na questão sobre o futuro do mundo.
Na Escritura, a experiência do mundo reenvia à origem, mas sua função é a de garantir o
futuro de Deus. A natureza se torna então transparência do futuro ainda não nascido e,
todavia, já antecipado: este futuro tem a função de fundação, que uma metafísica teológica
atribuiu como a-histórica e necessária.
- A doutrina da criação como teologia da natureza: a reflexão teológica sobre o
tema da criação em perspectiva ambiental se apresenta hoje também como uma teologia da
natureza. Esta teologia é um momento complementar da teologia da criação, e propõe uma
reflexão teológica sobre o mundo como casa para todos os viventes e sob as condições de
vida possível. Trata-se de uma teologia da natureza, ou seja, de uma teoria da reta
percepção da natureza, da modalidade de conhecimento e de intervenção ética: por isso
assume relevo a dimensão soteriológica. A teologia da natureza orientada ecologicamente,
sobretudo no âmbito protestante, enfatiza o aspecto da percepção da natureza como criação
de Deus, o que implica a articulação entre conhecimento e ação, estética e ética, de forma
que a teologia da natureza possa ser entendida como teologia da cultura do mundo através
do homem. Trata-se de uma teologia da criação em perspectiva soteriológica, orientada
escatologicamente. Esta teologia pensa de modo estreito a relação de imanência entre Deus
(o Espírito) e o mundo. Ela é orientada no sentido prático-emancipativo, como salvaguarda
da criação. Seus principais expoentes: Dembowski, Sölle, Altner, Link, Liedke,
Drewermann. Eles tiram o conceito de criação da unilateral concentração sobre a origem e o
situam na perspectiva da redenção cristológica, com fortes traços escatológicos. Esta
perspectiva soteriológico-escatológica busca a superação da experiência histórica da criação
sob o signo da escravidão do pecado e da degradação, em benefício de sua plena
transfiguração na glória. A teologia da criação é na teologia cristã a doutrina da salvação da
criação como resistência contra sua destruição. Teologia da natureza significa salvação da
natureza a partir de Deus. Da criação se pode falar a partir de sua experiência de negação,
em perspectiva de libertação. A intencionalidade histórico-prática do projeto ecológico guia
sua releitura teológica. A experiência do pecado e da miséria à qual está submetida a
criação, constitui o ponto de partida para uma soteriologia da cruz que supere a contradição
individualística da doutrina da justificação. Trata-se de uma teologia da natureza em função
da salvaguarda do criado, que institui os critérios éticos para uma correta percepção da
natureza e propicia uma virada na própria percepção do mundo.
2) A retomada do diálogo com as ciências da natureza
O segundo fenômeno que provocou a recuperação da teologia da criação é o da
retomada do diálogo com as ciências da natureza. Depois de séculos de batalhas e mal-
entendidos, depois de um período de ignorância mútua, abriu-se um tempo de diálogo
fecundo. A teologia retomou o confronto com as ciências da natureza, buscando uma
hermenêutica teológica do significado da natureza tal como ele é dado pelas ciências
naturais e a filosofia. Vejamos os impulsos vindos das ciências da natureza para depois
mostrar como a teologia buscou dialogar, seja no ambiente protestante, seja no católico.

30
a) Novos paradigmas: a evolução como sistema aberto
São três as áreas onde se instaurou o diálogo entre teologia e ciências naturais : 1) a
primeira concerne a relação metodológica entre ciências da natureza e fé/teologia. A partir
dos anos 1980, surgiu uma maneira mais positiva de relação, depois de um longo período de
conflito e depois da trégua derivada da forma barthiana de pensar a relação teologia e
ciência. Segundo Barth, a ciência estuda a origem do homem e do mundo, e teologia o
sentido da origem à luz da revelação. Esta maneira de ver as coisas havia acalmado os
ânimos beligerantes, oriundos ainda da crise com Galileu e reanimados com o debate entre
evolucionismo e criacionismo. Tudo isso havia produzido uma hibernação do diálogo,
depois do último episódio do confronto produzido com a obra de Teilhard de Chardin. A
busca do diálogo surgiu nos últimos 20 anos, sendo provocada pelas ciências da natureza e
da evolução biológica. A ciência saiu de uma estreita profissão do método positivista,
propondo, com Popper, Kuhn e Lakatos, uma epistemologia renovada, baseada no princípio
da falsificabilidade. A teologia/filosofia afinaram a leitura dos textos bíblicos e dos
pressupostos hermenêuticos subjacentes ao modelo clássico de relação com a ciência,
marcado pelo mecanicismo cartesiano-leibniziano, sob o pressuposto de uma lei universal
dos seres vivos garantida pelo Deus da natureza. É este Deus que foi rejeitado pelo neo-
positivismo mais radical, ao qual Barth contrapôs o Deus da aliança e da revelação ; 2) a
segunda área provém da descoberta da termodinâmica e da física quântica. A concepção
do mundo como sistema aberto e o tema da auto-organização do universo trouxe dois perfis
para a ciência, o da termodinâmica e o da física quântica. A reflexão teve como ponto de
partida a ideia de estrutura dissipativa, descoberta pela termodinâmica, alargando-se a todos
os aspectos da evolução do cosmos, da vida, da relação matéria e espírito, das estruturas
humanas e sociais. A superação do modelo mecanicista de ciência levou à adoção do
modelo de auto-organização, com suas características de irreversibilidade, caoticidade e
criatividade. Fala-se desde então de um sistema aberto. Os autores que defendem estas
teorias a transpõem filosófico-teologicamente, criticando a concepção mecanicista e
atemporal do mundo do deísmo e do ateísmo e introduzindo uma dimensão temporal na
mesma evolução. Na mesma linha se situam as aquisições da física quântica, com o
princípio da indeterminação, que introduz uma visão dinâmica da unidade da natureza. De
um universo newtoniano, onde Deus é o garante imutável e o princípio de unidade de uma
natureza ordenada, se passa a uma unidade na natureza entendida como múltipla e
sistêmica, no processo contínuo e infinito do universo ; 3) a terceira área diz respeito ao
tema da evolução do cosmos e dos seres vivos. Sem solução de continuidade, o discurso
sobre o infinitamente pequeno passa ao discurso sobre o infinitamente grande, pondo em
relação a construção da cosmologia científica e das diversas teorias evolucionistas. Alguns
autores vão propor o princípio antrópico para falar de uma teleologia ou finalidade da
natureza ; outros, a partir da reinterpretação darwiniana, feita à luz da genética, fundam um
neodarwinismo a partir das descobertas do DNA.
b) A retomada do confronto entre teologia e ciência
As publicações sobre o diálogo entre ciência e teologia nos últimos 20 anos são
incalculáveis. Este diálogo é muito forte na área anglo-americana e no ambiente germânico.
O perigo de certo concordismo é sempre presente, porém, nesses estudos. Vejamos dois
modelos exemplares desta relação, um católico e outro protestante.
- O Criador Trinitário e sinergia, Ganoczy : com esta obra, este teólogo é o que
mais avançou no esforço de diálogo entre teologia e ciências, no seio da reflexão católica.
Nos anos 1990, temos ainda as figuras de Polkinghorne e Arnould, que prosseguiram neste
intento, embora a partir da própria competência interdisciplinar. Ganoczy propõe uma
teologia da Trindade em relação com a criação, utilizando o conceito de sinergia. Ele

31
introduz o sistema filosófico da ontologia da estrutura de Heinrich Rombach, onde o
conceito de estrutura é portador de uma ontologia relacional. Contrário aos conceitos de
essência e de sistema, o conceito de estrutura pressupõe espaço à liberdade. Nele se insere o
conceito de relacionalidade, como sua parte constitutiva. Em nível científico, isso
corresponde a uma busca contínua, pois o sistema que se transforma em estrutura gera
possibilidades sempre novas. A nível teológico, isso implica um modelo de Trindade que
continuamente cria. A estrutura é contínua criação e evolução. Ela só existe como evento e
advento. O que existe é concebido de modo radicalmente relacional. A criatividade é um
processo presente não só no homem, mas em toda a natureza. Ganoczy distancia-se, porém,
de Rombach, tomando de Nicolau de Cusa o conceito de Deus como Trindade. Segundo o
cusano, entre Deus e o mundo existe uma pericorese originária. A estrutura não surge de si,
diz Ganoczy, mas de uma livre decisão divina. Entre Criador e criatura, existe uma sinergia,
mas assimétrica.
- Contingência e lei da natureza: Pannenberg: este teólogo sempre buscou dialogar
com as ciências da natureza. Ele procede à dedução da multiplicidade/unidade da
criatura/criação na unidade do Logos universal, que na encarnação se torna forma da
criação mediante o homem, a saber o homem Jesus cristo. Em segundo lugar, o autor
diferencia o devir da natureza em relação com a ação do Espírito Santo. Enfim, conclui
delineando a reciprocidade e a diferença da ação do Filho e do Espírito Santo em relação à
criação. Em sua reflexão, o teólogo alemão busca dialogar estreitamente com as ciências da
natureza, especialmente com a teoria dos campos de força de Faraday.
2.4. Articulação teológico-sistemática da teologia da criação
a. Pressupostos
A teologia da criação deve hoje levar em consideração três grandes orientações: 1) a
do diálogo com a ecologia e as ciências naturais; 2) a da perspectiva cristológico-trinitária
da reflexão; 3) a da percepção do mundo como meio simbólico dado ao ser humano.
1. O diálogo com a ecologia e as ciências naturais
A primeira instância diz respeito à teologia da criação surgida do diálogo com a
ecologia. A crítica do antropocentrismo moderno, considerado como herdeiro da tradição
espiritual cristã e da doutrina bíblica da eleição, parece um juízo genérico e indeterminado.
A crítica ecológica propõe a superação da virada antropológica mediante a restituição de
uma autonomia axiológica e do direito da natureza. O retorno a uma concepção naturalística
do real é evidente nesta crítica e parece ressuscitar a inclinação cosmológica da teologia da
criação da antiguidade e da Idade Média, embora perdendo a pretensão ontológica. A
desmundanização do homem moderno, com a separação entre homem e mundo, é só um
fato sucessivo dentro de algo mais radical: a dificuldade de se afirmar a liberdade do
homem no mundo em sua radical derivação de Deus. Não se pode fazer um só juízo do
percurso da antropologia moderna. Basta pensar a diferença de trajeto para a afirmação de
Deus na vertente da virada antropológica e na teologia natural. Os dois percursos reforçam a
separação e se desenvolveram em vias paralelas. A debilidade e a inconsistência da crítica
ao antropocentrismo se fazem sentir na literatura ecológica. A recuperação da doutrina da
criação por parte da teologia de inspiração ecológica possui, porém, um sério problema: ela
surgiu no âmbito da teologia protestante, a primeira a pôr em evidência o aspecto histórico-
existencial e prático da revelação, e a primeira também a propor um retorno mítico à
natureza.
Outro aspecto importante desta primeira instância é o renovado diálogo feito entre
as ciências da natureza e a teologia da criação. Embora esse diálogo pareça favorecer o
diálogo com a teologia, a longo prazo, porém, pode revelar-se enganoso. No diálogo com a
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ciência, a superação de uma concepção mecanicista e matemática do cosmo como machina
mundi e de Deus como o grande relojoeiro que preside o desdobrar imutável e imóvel das
leis da natureza, aparece como libertadora. A concepção do cosmo que surgiu depois,
marcada pelos traços da direção temporal e da irreversibilidade dos fenômenos que se
produziram no tempo e graças ao tempo, produziu uma concepção dinâmica do cosmos,
capaz de inovar e de estruturar-se em formas de vida complexas e diversificadas, até abrir o
espaço à mudança e à criatividade. Aí, porém, aparece o engano, pois o uso, por parte dos
pioneiros da nova ciência contemporânea, conotada antropologicamente, leva a ultrapassar
a linguagem religioso-mística e depois insinua um paralelismo ingênuo entre fenômenos
naturais e agir divino. Quando não aparece claramente o apelo ao humano, não só como
espaço para a intervenção da liberdade, mas para seu significado ético, em ordem a instituir
o sentido do real, a compreensão do cosmos reproduzirá a separação entre mundo e homem.
Não mais um homem sem mundo, mas um mundo sem homem ou um homem que deve
naturalizar-se para entrar no ritmo da evolução cósmica. A conivência do homem com a
natureza o remitiza como uma forma de vida superior que deve dar o passo da dança
cósmica.
Nesses dois domínios de retomada recente da teologia da criação, o êxito parece
insatisfatório. A razão disso é que se recupera a teologia da criação com um preconceito
anti ou extra-antropológico. Do ponto de vista de uma teologia cristã, é infundado pensar
que uma teologia da criação possa entender-se sem a presença específica do ser humano.
Certas tendências do diálogo inter-religioso podem levar à dissolução da relação estreita
entre homem e mundo. A teologia ecológica da criação tem assumido a-criticamente certos
aspectos da crítica ambientalista, como os que querem suprimir o lugar do humano. A
primeira solicitação para uma teologia da criação é então falar do cosmos como condição e
lugar da liberdade, não tanto como cenário para uma intervenção a-cósmica e arbitrária do
agir humano, mas como um lugar simbólico no qual e através do qual a consciência do
homem é instruída acerca da confiabilidade da realidade toda, consignada à sua consciência
por ser acolhida e escolhida em vista de um destino comum. Ao homem não é concedido
colher o bem prometido à sua vida ou escolhê-lo, a não ser dentro do caráter prometedor do
mundo. Uma reflexão cristã sobre o cosmos deve instituir originariamente a relação entre a
bondade do mundo e o apelo ao ser humano, porque nos entregamos a Deus amando o
mundo como casa comum. Entre o homem e Deus, o mundo não é um terceiro incômodo,
mas o sinal onde é indicado o caráter bom da vida, que cada um deve escolher para poder
entregar-se ao mistério inexaurível de Deus e encontrar uma vocação e um rosto. É um
lugar no qual tudo advém. É o corpo. O corpo é o mundo na casa do homem e a forma
prática da vida, o lugar no qual o homem chega à consciência de si e ao encontro com Deus.
2. A orientação cristológico-trinitária da teologia
A segunda orientação da teologia da criação é a perspectiva oriunda do testemunho
da revelação. Se a primeira orientação representa a aquisição crítica do debate das últimas
décadas, a segunda apresenta a leitura da relação homem-mundo à luz da criação em Cristo.
A relação entre criação e salvação encontra sua profunda unidade na singular centralidade
de Cristo no desígnio divino, onde Ele é o centro porque é a via/vida que leva ao Pai e à
qual a liberdade no mundo pode ter acesso só no Espírito. Esta doutrina foi pouco a pouco
sendo esquecida ao longo da história, embora em outros lugares do discurso teológico,
como no da teologia da ressurreição, tenha resistido a uma contração antropocêntrica. Em
teologia, o tema da criação em Cristo é posto como perspectiva de uma teologia do mundo.
O per quem omnia facta sunt, do Símbolo, representa o elemento cristológico qualificador
de uma reflexão sobre o mundo como origem das coisas de Deus (perspectiva tradicional) e
sobre o cosmo como lugar da ação dinâmica e transformante do Pneuma (perspectiva
recente). O correto ponto de partida ou o ponto de vista sintético para uma doutrina da
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criação não é só a questão do “onde” começar, mas o de definir a tarefa propriamente
teológica de uma compreensão teológica da criação. A partir de Barth e de De Lubac, a
questão do ponto de partida de uma teologia da criação tem um relevo estratégico, pois sua
função sistêmica é fundamental na dimensão compreensiva da teologia. Onde se coloca e
como se desenvolve a teologia da criação se torna o ponto discriminante de uma sistemática
teológica. Para além dessa dimensão compreensiva da teologia, uma teologia da criação só
pode partir da revelação e, portanto, deve ser uma teologia estruturada cristocentricamente.
Esta é o elemento que emerge da história da fé. Ao redor dos anos 1970 pensava-se que isso
era um consenso, que foi, porém, dissolvido no confronto com a ecologia e as ciências.
No início do séc. XX Barth buscou articular criação e redenção a partir da teologia
da Palavra. Sua estrutura fundamental delineia a alteridade da criação, como unidade de
mundo e humanidade, no interior e em vista de seu chamado à comunhão em Cristo. A
criação não pode ser pensada em sua determinação propriamente cristã sem sua referência a
Cristo. Por isso, seu conteúdo não pode reduzir-se ao contexto genesíaco vétero-
testamentário, mas deverá receber seu selo próprio na páscoa de Jesus. No evento pascal, o
Pai dá a Cristo a vida nova e a criação é a condição posta em Cristo e na humanidade
chamada a ser nele, porque se realiza no dom pascal. Consequentemente, a noção cristã de
criação se determina por seu essencial substrato antropológico, no sentido de que a
comunhão a Cristo só pode ter como término a liberdade criatural. Será para dar razão da
concepção cristã da liberdade no mundo que se deverá indagar o sentido do mundo em
relação à liberdade humana. A temática da creatio in Christo assume diferentes entonações
hoje. A diferença de tipologias abaixo descritas depende do grau de maturação da
cristologia.
Segundo Barth, o ato da criação é a manifestação de si de Deus, o Pai, ao mundo.
Trata-se de uma ação totalmente mediada pelo Filho, cuja consequência é o não
pronunciado por Deus a um mundo que se pensa fora da intenção divina, que é oposto ao
agir divino. De tal modo a criação é aberta à vontade histórico-salvífica que aparece na
revelação cristológica como fundamento externo da aliança, e a aliança como fundamento
interno da criação. A criação é pensada como um positivo dispor-se à aliança em Cristo. Á
luz desta reflexão sobre a criação, o mundo criado assume seu sentido na mediação de
Cristo. A vida histórica de Jesus é a síntese da aliança, ou seja, da liberdade criada de Deus
e vivente por Ele e Nele. Em Jesus Cristo aparece o sentido último e definitivo da criação.
Com sensibilidade diversa, Karl Rahner buscou pensar a criação em relação com o
evento da encarnação do Logos. A realidade criada é a gramática que Deus predispõe para
dizer livremente sua Palavra, para comunicar a si mesmo na humanidade do Filho. A
liberdade criada é então a modalidade histórica que nasce quando o Logos, em sua diferença
do Pai, se autocomunica no evento da encarnação. De tal modo a humanidade criada é
aquilo que surge quando o Filho, enquanto Logos enviado pelo Pai se exprime ad extra, que
constitui sua auto-expressão naquilo que é o outro de si e manifesta ultimamente o sentido
desta alteridade ao ser o instrumento com o qual o Verbo se exprime e se dá a si. Rahner
mostrou transcendentalmente como a abertura do ser humano ao Mistério Santo de Deus
predispõe a gramática criada pelo evento indedutível da revelação de Cristo.
O modelo de Balthasar é mais orientado ao evento central da vida de Cristo: a
páscoa. A liberdade criada é assumida segundo a visão da indiferença inaciana. No sentido
que a orientação do ser humano à encarnação redentora não pode de modo algum antecipar
a modalidade de sua realização. A realidade criada é então fragmento, figura, abertura ek-
stática, dramática humana, que pode aludir à figura cristológica e a seu centro na cruz,
segundo o princípio da maior dissimilitude em tamanha similitude. Balthasar orquestra uma
ampla análise antropológica que assume a experiência estética, as relações interpessoais, a

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dramática humana, para que em cada caso esta linguagem possa constituir ao máximo uma
antecipação simbólica que reenvia e revela o evento pascal só quando o mesmo é dado em
sua absoluta e indedutível singularidade, como o universal concreto que é Jesus de Nazaré.
A teologia da criação de Pannenberg se desdobra numa perspectiva mais trinitária.
Sua reflexão se põe em duas direções. A primeira, evocada acima, com relação à relação
com as ciências da natureza, vê no processo evolutivo do cosmos e na autotranscendência
do homem, o campo do dinamismo criativo do Espírito, que leva sempre a uma maior
autonomia, através do processo de autotranscendência ek-stática. No ser humano, o excesso
de forma vital se encontra na autodistinção do outro homem e do Outro que é Deus mesmo.
A dimensão pneumática confere ao processo evolutivo aberto um sentido unificante, que
passa da forma elementar de vida à forma mais complexa do espírito humano, onde a maior
autotranscendência corresponde uma autonomia da criatura humana chamada à sua
Bestininung em Cristo. A segunda direção cruza a dedução trinitária da criação, que em
Cristo, em sua ressurreição, vê a antecipação escatológica e completa do processo evolutivo
do mundo. Aqui se enlaça a reflexão de Pannenberg sobre a teologia trinitária da criação.
Ele parte da relação entre Jesus e o Pai, e vê na autodistinção que existe entre Jesus e Deus,
não só a revelação histórica do estar-diante do Filho com relação ao Pai na Trindade, mas o
próprio fundamento de sua fida filial, que implica ainda o estar diante de Deus da criatura.
A alteridade eterna do Filho com relação ao Pai é fundamento de sua relação filial ao Abba,
que põe como condição de possibilidade a alteridade do ser humano (criado) de Jesus. A
tese da criação em Cristo diz que a autonomia-alteridade da criatura com relação a Deus
tem sua realização em Cristo, na autodistinção da vida filial de Cristo com relação ao Pai. A
existência criatural como autotranscendência, que funda a própria autonomia, a segunda das
várias formas vitais do desenvolvimento evolutivo, encontra em Jesus Cristo a realização
máxima e plena que dá sentido a toda a criação.
As reflexões recentes da teologia parecem concentrar-se numa dedução trinitária da
doutrina da criação. Pannenberg sublinha a diferença dos modelos que entram em jogo na
concepção trinitária e cristológica da criação. Os modelos se desdobram em duas direções,
uma cristológico-fundacional, outra histórico-evolutiva. A diferença entre as duas
perspectivas está no modo de se entender o caráter escatológico do evento Jesus que,
alargado atinge a dimensão pneumatológica da criação. A diferença resultará ainda da
infraestrutura conceitual com a qual se reflete uma cristologia escatológica com o risco de
esgotar o sentido da absolutidade do evento Cristo. Se ela não consegue dizer o sentido da
singularidade absoluta de Jesus de Nazaré, acaba por reduzir o apelo à cristologia à sua
função crítico-negativa, à abertura a um futuro que é o sempre outro com relação à figura
atual do mundo e do homem. Aqui se insere o apelo ao agir do Espírito como princípio
dinâmico da evolução do mundo, que o faz superar a atual figura sujeita à degradação e à
escravidão. A ação pneumática é entendida como um contínuo transcender da forma vivente
a uma ulterioridade com fortes traços cósmicos. Como consequência, o discurso sobre a
criação em Cristo corre o risco de ser relido como promessa de uma realização futura. A
criação é uma antecipação, é uma gramática cujas regras são expostas à verificação
escatológica. Isso explica a funcionalidade desta perspectiva diante do problema ecológico
e diante do modelo evolutivo do mundo como sistema aberto. Mas sobre ela pesa toda a
reserva feita à ontologia escatológica, que constitui a infraestrutura conceitual desta
orientação. Hoje somos mais inclinados a mostrar que a relação entre o Espírito e a Páscoa
de Jesus não é de sucessão, mas se entrelaça mais finamente e inextricavelmente. A
orientação de uma teologia da criação deve ser a de um cristocentrismo trinitário.

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3. A percepção do mundo como meio simbólico dado ao ser humano
A terceira orientação postula uma tarefa ainda aberta para a teologia da criação, que
deve tornar-se uma reflexão teológica sobre o cosmos. É necessário elaborar um
instrumento teórico, uma ontologia que, superando o impasse de uma metafísica
essencialista, constitua o meio conceitual para pensar o discurso sobre a criação. Isso não
significa liquidar a história da tradição com um juízo desqualificador, afirmando que nela
aconteceu a perda da referência a Jesus Cristo e uma progressiva filosofização da criação.
Na Patrística o pensar a criação como origem das coisas em Deus tinha como intenção
alentar conceitualmente a referência a Cristo. Isso esteve presente não só nos Padres, mas
também na Escolástica. Na teologia manualística, quando a criação se tornou um tema
acessível à razão, sua afirmação, que separada da referência explícita à cristologia, tinha
ainda a função de preâmbulo para a intervenção salvífica de Deus. A necessidade de afirmar
a universalidade da salvação em relação ao mundo e ao homem, desequilibrou a reflexão
antiga, levando-a a defender o fato que toda realidade provém de Deus e é a ele sujeita. Só
se o mundo e o homem são dependentes de Deus, a ordem da criação é orientada à ordem
salutar em Cristo. A função da teologia da criação, em seu aprofundamento a partir do neo-
platonismo e do aristotelismo, era a de afirmar o índice de realidade e de totalidade do agir
divino, sem o qual parecia perdida uma característica essencial da fé cristã. Por isso, a
aquisição patrístico-medieval representou uma conquista cristã no terreno da cultura
helenística. Suas teses explícitas, a saber, total dependência do criado com relação a Deus,
superação do dualismo ontológico, bondade da criação, etc., são um patrimônio da cultura
ocidental. A doutrina cristã não só preservou o sentido da fé, mas transformou
profundamente as concepções culturais gregas. Mediante a batalha doutrinal se afirmou a
eficácia da teologia da criação sobre a compreensão cultural. É o instrumento expressivo da
doutrina da criação antiga que prevaleceu diante das concepções cosmológicas da cultura
ambiente. Isso ocorreu também na Bíblia, embora ela tenha posto a criação em estreita
relação com a Lei e a Sabedoria. Se a criação pertence ao complexo dos eventos fundadores
de Israel é porque a história salvífica do povo eleito tem um significado universal e é
inserida no quadro dos primórdios do mundo e da humanidade. Portanto, a instância que
impõe de pensar cristologicamente a doutrina da criação requer a mediação de uma
completa reflexão teológico-fundamental, se não quiser perder os instrumentos de mediação
crítica. É este o aspecto mais negligenciado da teologia da criação. De fato, se o sentido
cristão da criação, tal como se dá em Cristo, revela uma pretensão de verdade, ou seja, a de
dizer o sentido e o fim últimos da realidade, é necessário que a mesma tenha uma visão
ontológica compatível com o evento Cristo. Neste sentido, a tríade ontológica Deus-
homem-mundo deve ser pensada sem naturalismos ingênuos, mas sem subjetivismos
antropocêntricos fáceis tampouco. A relação homem-mundo, história-natureza, sujeito-
objeto exige ser relida numa renovada compreensão da relação ontológica. Não se pode
negligenciar aqui a contribuição da antropologia moderna, que compreendeu
unilateralmente a tríade ontológica à luz do homem. Ir além do moderno não significa
retornar ao naturalismo ontológico, que já foi objeto da crítica. Por isso, é impossível
abandonar a antropologia. É preciso ter uma reflexão sobre o mundo que não seja só
contraposição ao homem. Ela deverá apresentá-lo como o meio simbólico em ordem à
confiança do fundamento último do ser da realidade e a seu caráter prometedor e bom para
o homem. Este reconhecimento é possível somente diante do homem que se decide,
entregando-se na fé a Deus como sentido último de sua existência e da história comum. O
homem não tem a existência por si só, mas é posto no mundo. Por isso, deve deixar-se
instruir sobre o sentido da vida como antecipação prometedora, que chama à decisão ético-
religiosa. Daí se intui o significado do mundo com relação ao homem e a Deus. Do mundo,
o homem não só conhece o caráter bom (de dom) para si e para os outros, mas, sobretudo,
mediante o mundo ele pode decidir-se pela figura da vida prometida por Deus. Daí deriva o
36
caráter de meio simbólico do mundo, que é dado/doado e precede, enquanto simbólico,
além de manifestar um sentido que deve se escolhido praticamente pelo homem, por si e
pelos outros, porque nisso e com isso se aproxima da vida prometida por Deus. Esta vida
que constitui o término, o sentido e o dom mesmo da revelação no evento Jesus Cristo. Daí
a terceira instância: a necessidade de repensar as categorias clássicas da teologia da criação:
creatio ex nihilo, onipotência, gratuidade, causalidade, contingência, temporalidade,
subtraindo-as de uma hermenêutica naturalística, mas não tirando-lhes o caráter realístico.
b. A articulação sistemática da teologia da criação
É possível desenvolver a reflexão cristã sobre a criação tendo como ponto de partida
os três modos de se falar do Deus criador: Deus, o Pai, do qual (ek) o mundo é criado, em
virtude do Filho (diá), e ao qual o mundo tem acesso no Espírito (eis), deve ser descrito
como o outro do mundo, o outro para o mundo e o outro no mundo ou o futuro do mundo.
1. Deus é o outro do mundo
Deus é o outro do mundo e o mundo provém livre e gratuitamente de Deus (creatio
ex nihilo). Como vimos, este é o dado fundamental reafirmado por toda a tradição cristã.
Este aprofundamento sublinha uma exigência tipicamente cristã, que é a não necessidade
(contingência) da criação, seu caráter não devido, gratuito, fruto da liberdade divina: as
coisas são porque radicalmente diversas de Deus, e provém d‟Ele na totalidade de seu ser.
O ser criado não define um efeito do agir criador em uma realidade pré-existente,
mas o total derivar e depender que o ente (ex nihilo) tem com relação ao ato com o qual
Deus o põe no ser. Toda a teologia clássica é baseada nesta definição. A teologia patrística
assumiu esta tarefa distinguindo a criação da emanação/geração, enquanto a medieval
aprofundou metafisicamente a relação entre Criador e criatura sob o aspecto da origem das
coisas de Deus, ou seja, do ato de existir. O esforço desta teologia é empenhado em explicar
a contingência das coisas, ou seja, o fato de a realidade existir, mas não ser divina, e a
transcendência de Deus com relação à sua obra criada. As duas categorias defendem a tese
da bondade da criação, decisiva para a história do Ocidente, embora a tradição tenha tido
que batalhar para salvaguardá-la. As coisas existem e poderiam não existir. Se existem, o
são por um dom gratuito de Deus; por isso são boas, porque fruto do ato do amor divino. O
êxito deste tipo de teologia é o de concentrar-se na alteridade de Deus com relação à
criação, uma alteridade que é ainda relação livre e gratuita de Deus com a realidade criada:
o tipo de relação é esclarecido com as categorias de participação e de causalidade.
Este esquema interpretativo diz negativamente o que é a criação, deixando na
sombra como acontece a relação Criador-criação. Afirma que a realidade, fruto da liberdade
de Deus, é radicalmente disponível para uma intervenção imediata de Deus, mas não dá um
conteúdo a esta possibilidade. Sua função é útil e decisiva para liberar o campo da possível
explicação errada que fecha o discurso. Seu desdobramento positivo requer que se mostre
como a noção de causalidade ajuda a dizer um esquema ontológico, que desenha a condição
de possibilidade da relação histórica entre Criador e criatura. Compreende-se bem que se a
noção é jogada numa estrutura de pensamento essencialista e cosmológico, leva a uma
compreensão da causalidade eficiente pensada no modelo da produção das coisas. Mas não
aparece como ela é aberta ao acontecer histórico da relação de Deus com o mundo. Se a
relação Criador-criatura é aberta ao devir histórico (como aparece nas Escrituras) então ela
é objetivamente aberta à referência da criação a Jesus Cristo. É necessário manter a
existência do mundo entre o quadro da história da salvação e da referência a Jesus Cristo. A
comunicação do ser às coisas, que são o outro de Deus, aparece finalizada na realização da
aliança com Deus e em sua figura neo-testamentária que é a predestinação em Cristo. Pode-
se reler, desde o ponto de vista cristológico, a relação Criador-criatura em três momentos
num único olhar: o mundo como dado, o mundo como doado e o mundo como doação.
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- O mundo como dado
A palavra de Jesus conduz a um novo olhar sobre a criação. Em Mt 6,26.28, ele nos
convida a observar a realidade com seus olhos. A referência a Gn 1,4: “e Deus viu que a luz
era boa...” parece descoberta. No evento fundador do Gênese, o ver de Deus vem depois de
sua palavra/ordem e o acontecer da criação é afirmado de modo absoluto. O narrador
convida a olhar a criação como Deus a olha, não como puro dado. É preciso que ela seja
vista como boa. Jesus retoma o olhar de Deus e convida os discípulos/ouvintes a verem a
criação mediante seu olhar. O olhar de Jesus, inscrito em sua pessoa e na consciência filial
de receber tudo do Pai, revela o mundo como dado, não simplesmente como “ser aí”
(Dasein) ou como originado de uma causa outra que o próprio Deus. Na relação com o
mundo, Jesus proclama que a primeira atitude é “olha, observa...” O encanto desta palavra
fascinante de Jesus leva a um olhar novo e ao mesmo tempo antigo sobre o mundo: a
maravilha do thalmázein originário que se deixa alcançar pela criação, não como uma
efetividade bruta e opaca, mas como um cosmos dado para acender a emoção e o encanto
no ser humano. O caráter dado do mundo desperta o olhar receptivo do homem que o acolhe
como dom, como dom prometido, presente como promessa e ausente como plenamente
possuído: por isso a maravilha diante do mundo tem a forma da antecipação con-fidente.
A primeira relação com o criado, portanto, não põe a questão do porquê, da
causalidade e ou da origem das coisas, mas acolhe seu ser dado. A forma dessa acolhida é a
maravilha de sua presença e o temor de sua possível perda, o estupor do nosso ser, e não
somente de nosso ser aí, e o medo de nosso poder não ser. No início, isso advém ainda de
modo sim-bólico, quando o bebê confunde o mundo com a mãe. Todos os outros bens do
mundo são recebidos deste modo originário. O mundo aparece então em primeiro lugar
como dado-a. Uma teologia da criação nasce deixando aparecer o caráter de dom do mundo
que leva a levá-lo à palavra/gesto e a dedicar-se a ele como coisa boa. Como se vê, a
conotação antropológica da criação é originária, mas não no sentido instrumental (dado para
usar) ou contemplativo (dado para ser admirado), mas como um bem para conduzir à
palavra a promessa que anuncia. Mais radicalmente então o mundo é um apelo que chama à
palavra.
- O mundo como doado
O olhar de Jesus conduz a um segundo passo (Mt 6,26.29). O mundo dado-a revela
um cuidado amoroso e o esplendor de uma glória que faz surgir a pergunta sobre sua
origem: unde mundus? A pergunta de Leibniz/Heidegger: “por que o ser e não o nada?”
não tem primeiramente a forma de uma pergunta, mas a de uma exclamação, de uma
surpresa que interroga. É só partindo do estupor e da exclamação, do impensado do qual
surge nosso ser no mundo, que é possível fazer surgir a interrogação: por que existe algo?
Jesus esclarece esta pergunta. Ela não é a questão do porquê existe algo e não o
nada, mas o portar à palavra o esplendor que veste o mundo e o cuidado amoroso do Pai que
o nutre. A passagem do mundo dado-a ao mundo doado-a não deve abandonar a maravilha
originária. A palavra de Jesus nos leva a perceber que a origem é inatingível, porque
inexaurível. A dívida da origem (seu ser doado-por) pode ser somente contada e louvada.
Só nesse quadro se pode recuperar a noção de causalidade, com a qual a tradição, em
particular Tomás, aprofundou metafisicamente a questão da origem das coisas de Deus.
A palavra causa (aitía em grego) tem uma grande polissemia: em primeiro lugar
significa designar como causa ou dar como razão. No âmbito religioso, Dionísio, o Pseudo-
Aeropagita, assimila esta expressão à da ação de graças (aítêsis = pedido ou oração). Na
Idade Média, esta noção de causa é um aprofundamento da noção de participação. Sua
função, portanto, não é a de estabelecer uma cadeia que sai do mundo a Deus, nem a de
atribuir a Deus a imagem do fundamento do mundo, mas a de dizer a alteridade, o fato de
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Deus não poder ser pensado a partir das causas segundas. Enquanto causa prima e
principium, Deus está fora da linha causal, não é o primeiro elo da corrente, mas está além
dele. A causalidade quer sublinhar a distância e a alteridade de Deus. Nesse sentido, se deve
entender o aprofundamento de Tomás: a dependência das criaturas do Criador, como do
princípio, é do gênero da relação: a relação que institui a criaturidade é o contexto de
descoberta da forma singular da alteridade do princípio. Por outro lado, o princípio do ser
criado da criatura se realiza na forma de uma relação instituidora do Criador com a criatura.
Assim, o apelo de Jesus ao Pai que nutre os pássaros do céu e veste os lírios do
campo, mostra a visão do mundo como criação continuamente doada-por. O ser da criação,
objeto do interminável cuidado de Deus, que veste e nutre, não é só algo a contemplar como
realidade doada-por, mas como doada-a. O mundo como realidade doada, enquanto faz
brotar o gesto contínuo da bênção de Deus, também vem entregue como dever de
compreender e escolher, como matéria da qual ocupar-se para tornar a bênção de Deus
fecunda para todos. Se o mundo dado-a é doado como bem entregue para levar palavra à
promessa que anuncia, o mundo doado-por é dado ao agir livre do ser humano para que a
promessa que porta consigo seja continuamente recebida e escolhida como resposta ao
cuidado amoroso de Deus. O mundo doado-por, deve ser recebido como fecundidade que
deixa ser a bênção prometida, como tarefa, sem que se torne a conquista do nosso traficar.
Isso funda um agir con-dividido, e não só um fazer produtivo, no qual se leva à palavra e ao
gesto a promessa que contém. O relato do início, a busca da causa primeira funda a história
infinita da causa segunda, a vida do mundo entregue e confiado à história dos homens.
- O mundo como doação
A palavra de Jesus traz à luz um terceiro e último traço do mundo. Se o olhar de
Jesus faz sair ao esplendor o cuidado do Pai pelo mundo, abre ao futuro da promessa. Mt
6,32-33 mostra que Jesus conduz à palavra o critério com o qual o mundo atinge a
realização. Entre a promessa surpreendente do início e a realização gratuita da justiça se
coloca a correta atitude do homem diante do mundo. É preciso descobrir o sentido
prometido do mundo que é o de conduzir a descobrir o Doador, o habitar a relação com Ele.
O mundo dado-a manifesta o mundo doado-de, mas coloca na relação-com: o mundo é
dado/doado como doação. O reino é a figura última da criação, sua perfeita doação. À
palavra criadora do início, responde a figura escatológica da palavra re-criadora. A primeira
palavra/ordem de Deus é projetada adiante, a Palavra definitiva retoma e realiza o princípio.
Buscar o reino e sua justiça é levar à palavra a promessa que desde o início é contida no ser
dado/doado do mundo. É deixar que a doação que o mundo porta consigo tome a forma
daquela palavra que tem o rosto do Filho em relação com o Pai. A figura cristã do mundo
não só como mundo dado/doado, mas recebido da contínua doação de Deus (creatio est
relatio), como dom de seu amor e como tarefa con-dividida da liberdade para todos os
homens.
A relação ontológica Criador-criatura manifesta de seu interior o sentido
teológico/soteriológico da doutrina da criação. O olhar de Jesus vê o mundo criado em sua
misteriosa abertura a revelar o Pai celeste que lhe dá cada coisa: em seu Espírito ocorre
acolher o mundo dado como doado. Assim é preciso aproximar-se dele sem arrancá-lo de
sua constante doação.
2. Deus é o outro para o mundo
O mundo e o homem são outro para Deus em vista da comunhão com Ele, do
crescimento nEle. Se a teologia buscou indagar sobre a relação Criador-criação em sua
alteridade para defender o agir criador de toda forma de emanacionismo e panteísmo e,
respectivamente, para afirmar a bondade da criação em seu ser doada por Deus, contra todo
dualismo ou maniqueísmo, no entanto, neste caminho ficou na sombra a afirmação do NT
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sobre criação em Cristo. A teologia tinha ainda como referente a realidade criada quando
apresentava a redenção como retorno superabundante ao estado originário. Ainda que numa
perspectiva hamartiacêntrica, a relação com a criação guiava a compreensão da salvação
como restauração das origens. Porém, a recuperação da centralidade do evento Cristo é
seguida de consequências na retomada da tese da creatio in Christo. O sentido revelado da
doutrina da criação pôde ser restituído. A criação em Cristo diz a unidade do desígnio de
Deus que, desde a origem, pensa o mundo e o homem em Cristo e não só depois do pecado
do homem. A sucessão histórico-salvífica deve ser compreendida teologicamente segundo a
ordem cristã que vê a páscoa de Jesus no centro, não só como remissão dos pecados, mas
também como verdade/vida do mundo e do homem. A creatio in Christo diz que toda a
realidade é presente no evento pascal e que o mediador da salvação é o mediador da criação.
- In Christo: o lugar filial
O olhar de Jesus sobre a criação se alimenta de sua relação com o Pai. O mundo que
brota de seu olhar é o de uma visão filial: síntese de um ver e de um receber, de um ver que
recebe a forma do olhar do abandono filial ao Pai, ao mistério de Deus como Abba. A
cristologia passa de uma história da Palavra a uma história do Filho, mais precisamente, de
uma Palavra que tem os traços filiais, porque Jesus é o Verbo enquanto Filho, seu ser Filho
é a Palavra na qual Deus leva à expressão o sentido do mundo, na qual ele se disse e se dá
ao mundo. Por isso, o hino da fé pascal (Cl 1) afirma que Jesus é “o primogênito do toda
criatura”, porque ele é “antes de todas as coisas e todas subsistem n’Ele”. A expressão
paulina “tà pánta” tem seu princípio de coesão na expressão “em autô”, a qual indica que a
criação encontra seu “lugar filial” em Jesus morto e ressuscitado. O sentido, propriamente a
verdade do mundo, pode ser encontrado no fato de que a relação filial de Jesus com o Pai
(no Espírito) manifesta a vida íntima de Deus como fonte originária de doação. A história
de Deus com o mundo não existe porque Deus teria necessidade da mesma. A cons-tituição
e a pre-servação da alteridade do mundo é radicada na diferença trinitária, posta pela
autodoação paterna, acolhida e mudada na recepção filial, custodiada na liberdade do
Espírito. A dedução trinitária da diferença criada não seria adequada se pusessem em
evidência somente a constituição do outro (creatio ex nihilo: relação Criador-criatura), sem
aprofunda a destinação da criatura à filiação divina em Cristo (relação criação-Cristo). A
figura cristológica não tem só significado redentor (do pecado), mas ela aponta para o lugar
originário da dedução crística do mundo. Nesse sentido, tem razão N. Hoffmann quando
diz: “Deus não quer conceder aos homens somente um lugar em alguma região do ser, mas
o lugar de ser intra-trinitário do Filho”. O mundo dado/doado ao homem para que ele o
custodie, para que o acolha como bem prometedor, no qual por à prova seu agir na história e
assim decidir seu destino, recebe a figura específica da doação filial. O lugar deve ser um
mundo onde o mundo do homem, toda a criação (“tà pantá”) toma existência e coesão,
porque “n’Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,4). A confissão de fé não
faz outra coisa que retomar o olhar de Jesus e reler o significado do Crucificado
ressuscitado para o mundo. A criação encontra consistência na relação filial de Jesus com o
Pai. Esse é o lugar no qual a doação ao mundo assume os traços filiais. A isso o homem
pode confiar na forma da fé, porque a doação é ancorada no lugar do Cristo ressuscitado. A
forma escatológica do mundo aparece como absolutamente indisponível. Ela é antecipada
somente no agir agradecido e responsável do homem que custodia a forma do mundo aberta
à vida que vem Dele. A confiança com a qual o homem, cada homem vindo ao mundo,
recebe a vida e os dons que a acompanham, porque se dedica àquele bem prometido que ela
anuncia e o con-divide com outros, pode se tornar explicitamente fé no Cristo, que é Alfa e
ômega de toda a criação, o nome e o rosto do Ressuscitado que transfigura a realidade toda.

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- Per Christum: a forma filial
Com esta expressão é esclarecido o sentido bíblico da “mediação” de Cristo na
criação: “tudo foi feito por meio (diá) d’Ele, e sem ele nada foi feito de tudo o que existe”
(Jo 1,3); “por meio (diá) d‟Ele foram criadas todas as coisas, as que estão no céu e as que
estão na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Dominações, Principados e Potestades”
(Cl 1,16). O diá não indica tanto um meio instrumental, mas tem o sentido de: “pelo trâmite
de”, “em virtude de”, “na força de”: na força salvífica do Crucificado ressuscitado. O lugar
filial da criação tem a forma do Senhor ressuscitado, na qual a forma servi da entrega de
Jesus ao Pai é constituída de modo definitivo. A forma filial ressuscitada é a restituição do
sentido originário de toda a realidade e a superação de toda ferida e de toda escravidão à
qual está sujeita a toda a criação. (“potências” do cosmos e “elementos” deste mundo). A
forma gloriosa não anula a forma servi, mas a institui como verdade escatológica da
doação. O que se anuncia no caráter confiável do mundo doado tem a “forma” singular do
Ressuscitado, que mantém as chagas do Crucificado, para que no seu corpo dado e
transfigurado seja reconhecida a verdade do mundo e recebida sua força salvífica e
medicinal. Por isso, o mundo como doação não está só no “lugar” filial, mas tem ainda a
“forma” filial da doação trinitária. Entre “lugar” e “forma” se encontra a relação mesma
entre bem prometido e sua figura realizada. É uma figura inexaurível não só porque se
anuncia no bem prometedor do mundo dado aos homens, mas também porque inatingível
fora da fé, que preserva o caráter de doação “filial”, não sequestrável do agir fabril do
homem ou de sua voracidade que trata a criação como mundo de coisas. O “novo céu e a
nova terra” são assim o mundo da ressurreição, que pode ser antecipado no agir confidente
do homem que con-divide conjuntamente o que custodia (o cuidado e não só o respeito) e o
cultivo (a civilização cultural e não só o progresso) do mundo para que se torne a casa da
liberdade filial e fraterna. O mundo como criação se torna o habitat do homem somente se é
iluminado pela luz que ilumina todos os homens (a vida filial). A doação que cria os filhos
de Deus se faz casa entre os seres humanos somente se seu esplendor se irradia em toda a
criação. Bastaria a relação do monaquismo com o mundo (como custódia e como
civilização, e não como naturalística relação ecológica ou criativo agir técnico), para dizer
como a forma filial, a existência cristã batismal gera quase que por contágio uma
domesticação do mundo como casa dos homens porque habitação dos filhos e dos irmãos.
- Ad Christum: o destino filial
O último traço crístico da criação diz que o lugar e a forma filial da criação é
também o destino de toda a criação: “todas as coisas foram criadas por meio d’Ele e em
vista (eis) d’Ele” (Cl 1,16). A origem do mundo em Cristo é ainda seu fim. A Escritura não
tem nenhum problema de aplicar a causalidade final a Cristo, porque não é certamente
alternativa com o que o Magistério afirma sobre a criação ad Dei gloriam. O hino
cristológico de Filipenses diz, sem sombra de dúvidas, que a senhoria cósmica de Cristo,
reconhecida por todo joelho e confessada por toda língua “nos céus, na terra e nos
infernos” é a senhoria do Filho eis dóxan Theû Patrós (a glória de Deus Pai). A con-divisão
do destino filial da criação toda a torna solidária do trabalho da humanidade em seu esperar
a con-divisão dos filhos. Aqui se vê o caráter dramático da participação da criação na
história da humanidade e, inversamente, o potencial destrutivo que o homem pode ter sobre
a criação. Paulo, no grande texto de Rm 8 afirma de modo claro o vínculo solidário entre
mundo e homem, numa perspectiva filial: “a criação toda inteira espera com impaciência a
revelação dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade – não por seu
querer, mas por vontade daquele que a submeteu – na esperança de ela também ser
libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de
Deus. Sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não
somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente,
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suspirando pela redenção do nosso corpo. Pois na esperança é que fomos salvos” (Rm
8,19-24). O lugar e a figura do destino filial da criação é possuído por nós como primícias
do Espírito e no Espírito (Rm 8). Seus sinais são a impaciente espera, a esperança da
libertação, o gemido e o sofrimento das gerações, para que a criação como dom e doação
seja regenerada pelo Espírito para participar da “revelação dos filhos de Deus. O Espírito é
o motor do destino filial da creatio nova, para que receba a forma filial, que é uma operação
espiritual não só para o homem, mas para toda a criação na solidária espera futura.
3. Deus é o outro no mundo
Deus é o outro no mundo porque é o fim do agir com o qual faz crescer o mundo. A
finalidade da criação é a comunhão com o Deus trinitário. A alteridade de Deus com relação
ao mundo e sua doação ao mundo não é já dada como uma coisa, uma figura empírica, mas
é a forma sempre nova que o mundo é convidado a assumir, a superação e o
aperfeiçoamento do mundo atual. Deus é o espaço de transcendência, futuro, ainda não que
contesta continuamente toda figura histórica do mundo, quando ela é somente apresentada
de modo instrumental, técnico, quantitativo, esvaziado de seu significado simbólico e de sua
abertura a ser o lugar concreto no qual se exercita a liberdade do homem. Por isso, o mundo
se torna ainda o espaço de um emprenho prático de transformação da realidade, de cuidado
da natureza, de responsabilidade pela casa comum. Com isso se recupera o que é proposto
pela teologia política, da libertação, ecológica e do diálogo com as ciências da natureza. O
espaço de transcendência, de futuro e de esperança da criação é preservado e promovido
pela ação do Espírito que anima a liberdade do homem. É preciso, no entanto, contra toda
fácil tradução pragmática ou política, não confundir a libertação da natureza promovida
pelo agir do ser humano com a ação do Espírito Santo. Contra todo concordismo
precipitado, não se pode interpretar a autotranscendência das formas vitais da evolução
como sendo o espaço de transcendência aberto pelo Espírito. Seja na vertente ecológica,
seja na perspectiva das ciências da natureza, a função do Espírito encontra um sinal e não
uma prova no gemido da natureza violada e na autotranscendência evolutiva, para que esses
elementos possam se tornar verdadeiros lugares de transcendência espiritual somente
mediante a ação livre do homem ao qual o mundo é entregue como doação.
Podemos enumerar a teologia da criação que desenvolve a dimensão trinitária
segundo uma dinâmica histórico-evolutiva. Podemos recordar, entre outros, Moltmann,
Daecke, Link e, num outro sentido, Pannenberg. Todos desenvolvem a perspectiva trinitária
numa dimensão histórico-escatológica. A ação criadora é lida na perspectiva
pneumatológica. Esta parece aludir a uma ação do Espírito na criação vista de modo
diverso: ou se sublinha mais diretamente sua imanência com todas as formas evolutivas da
vida e a forma prática de salvaguarda da criação, com uma ambígua contaminação dos dois
registros (como no caso de Moltmann); ou a ação do Espírito antecipa no mundo o poder do
futuro de Deus, mas o discurso fica sem referência cristológica (como no caso de Daecke e
Link); ou o agir do Espírito é em ação no campo do futuro possível ligado aos campos de
força da natureza física (Pannenberg). A teologia da criação não é mais uma doutrina das
origens, mas uma doutrina do fim. A figura trinitária da criação se dá na glorificação
escatológica, a qual parece de alguma forma transcender a representação cristológica, mas
com isso se perde a determinação filial da criação. Desprendida da figura da creatio in
Christo, ela parece inclinar-se rumo a uma transformatio in Spiritu. O registro evolucionista
desta teologia é muito evidente. A figura cristológica do mundo aparece como uma
antecipação (Moltmann, Daecke), uma representação (Link), o evento histórico-definitivo
(Pannenberg) em vista de sua plenitude escatológica. Não se pode afastar a suspeita de que
nesta teologia a verdade da criação não seja tanto instituída na doação filial, mas na
suspensão a uma realização final. A ontologia escatológica, contida nas tentativas que
pensam Deus como poder de futuro, tende a uma relativização da singularidade de Jesus
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Cristo. Trata-se de saber se a noção de Deus como poder de futuro é compatível com uma
plena ilustração do sentido da singularidade cristológica. Torna-se evidente que esta visão
apareça como ambiguamente disponível a transposições ecologistas ou a formas de
concordismos com as ciências naturais, e é previsível que ela deixe-se contaminar com as
outras religiões, quando o confronto com elas passe da visão de Deus à experiência do
mundo.
Mais radicalmente, a exigência da dimensão cristológica da criação não pode ser
feita simplesmente recorrendo ao caráter escatológico do evento Jesus, entendido em sua
função de contestação crítica ou de superação da atual figura da criação (e de todas as
formas que a submete à escravidão). A novidade do evento Jesus deve coordenar-se com
sua figura exemplar que é dada na singularidade do olhar de Jesus, e deve ainda deixar-se
iluminar pelo caráter histórico e absoluto da mediação de Jesus Cristo na criação, abrindo o
espaço à liberdade do homem. O mundo é o lugar da ação da liberdade humana, de seu agir
inteligente e responsável. O Espírito Santo é Spiritus creator, capaz de assumir o
dinamismo do mundo confiado ao homem, porque é Spiritus veritatis, que se revela
plenamente na figura filial dada em Jesus, e assim se torna Spiritus vitae. A vida que o ele
dá tem a forma da promessa, da qual o Ressuscitado é a figura histórico-escatológica
definitiva, e a vida cristã no mundo as primícias e o penhor semeado no seio da criação.
Os três esquemas interpretativos são todos igualmente indispensáveis. O perigo que
a teologia tem sempre que enfrentar é o de absolutizar um em detrimento do outro. Só a
intrínseca correlação preserva uma teologia do mundo que se faz sem solução de
continuidade com a consideração do homem. A criação é o mundo do homem e o homem
pode ser incorporado ao destino filial de Cristo só na morada mundana: a salvação cristã
não é salvação do mundo, mas no mundo e com o mundo. O Espírito mantém a doação do
mundo à sua destinação a Cristo. Entre eles a orientação é em direção da glória de Deus Pai.

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