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candido

jornal da biblioteca pública do paraná


57 ABRIL 2016
www.candido.bpp.pr.gov.br
Pedro Franz

Meu
tempo
é hoje
Com uma produção intensa, que vai do conto
ao teatro, Caio Fernando Abreu continua lido
e discutido 20 anos após sua morte

Entrevista | Jorge Mautner • Conto | Luís Henrique Pellanda • HQ | Robson Vilalba


2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

editorial

expediente

E
ste ano a Balada Literária, evento leitores dão likes e compartilham frases primeira tese de doutorado defendida
que movimenta a agenda cultural de Caio nas redes sociais. na USP, em 2008, estudou a presença candido
de São Paulo no segundo semes- Caio F., como ele costuma assi- do autor em sua própria ficção, enten-
tre, vai homenagear Caio Fernan- nar cartas e bilhetes, escreveu e publi- dendo-a como uma construção autofic- Cândido é uma publicação mensal
da Biblioteca Pública do Paraná
do Abreu (1948-1996). A escolha de cou muito. Romances, textos para tea- cional, uma forma de escrita que supe-
Marcelino Freire, escritor, idealizador e tro, novelas, crônicas e, principalmente, ra qualquer abordagem autobiográfica
organizador da Balada, deve chamar a contos. “Os assuntos são sempre os afe- no sentido de que o autor não preten-
atenção do público, e da imprensa, para tos. Mais que propriamente as paixões, de, com a obra, contar fatos de sua vida
o legado do escritor gaúcho, morto há são os afetos”, diz Moriconi. pessoal a partir de um suposto “pacto de
20 anos, cada vez mais lido, discutido e, Além de Moriconi, a reporta- verdade”. O estudo acadêmico, Infiniti-
sem exagero, badalado. gem do Cândido entrevistou outros es- vamente pessoal: a autoficção de Caio Fer- Governador do Estado do Paraná: Beto Richa
O poeta, crítico e professor da tudiosos. Thais Torres de Souza diz que nando Abreu, o biógrafo da emoção, será Secretário de Estado da Cultura: João Luiz Fiani
Universidade do Estado do Rio de Ja- um dos temas centrais da obra escritor publicado em forma de livro ainda no Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira
neiro (Uerj) Italo Moriconi afirma que é o erotismo. A partir do pressuposto, primeiro semestre de 2016. Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Marta Sienna
Daniel Galera, no romance Barba enso- ela elaborou a tese de doutorado Uma A professora da Universidade
pada de sangue, dialoga — obliquamente vaga promessa: aspectos do erotismo em Federal de São Carlos (UFSCar) Tâ-
Coordenação Editorial:
— com um imaginário-Garopaba inau- contos de Caio Fernando Abreu, defen- nia Pellegrini explica que Caio dialo-
gurado, entre outros, por Caio Fernan- dida em 2014 na Universidade de São gou literariamente com 2 renomados Rogério Pereira e Luiz Rebinski
do Abreu. Além de Galera, jovem es- Paulo (USP). autores brasileiros. “O mais claro di-
critor reconhecido pela crítica, jovens Já Nelson Luís Barbosa, autor da álogo [de Caio] acontece com Clari- Redação:
ce Lispector, de quem herda o mergu- Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy
lho nas profundezas da subjetividade”,
Reprodução
afirma, acrescentando que outra inter- Estagiários:
locução do escritor se dá com Gracilia-
Kaype Abreu e Lucas de Lavor
no Ramos e a sua meticulosa metodo-
logia construtiva.
Coordenação de Desenho Gráfico | CDG | SEEC
Ivan Pinheiro Machado, editor
da L&PM, conta de que maneira co- Rita Solieri Brandt | coordenação
nheceu o escritor e também faz uma Bianca Franco, Marluce Reque e Raquel Dzierva | diagramação
análise da literatura de Caio: “Sua obra
se caracterizava por um extremo apuro Colaboradores desta edição:
formal e temática cosmopolita, na me- Alberto Mussa, André Coelho, Bianca Franco, Celeste Ribeiro, Luís Hen-
dida em que ele foi um escritor urbano, rique Pellanda, Marcelo-Brum Lemos, Marluce Reque, Pedro Franz, Ro-
bson Vilalba e Tita Blister.
o que não era comum na época no Bra-
sil. Caio estava mais para o rock and roll
enquanto a maioria dos autores buscava Redação:
a tal ‘brasilidade’ no romance histórico imprensa@bpp.pr.gov.br | (41) 3221-4974
ou no romance regionalista.”
O especial ainda traz uma lei-
tura de Para sempre teu, Caio F., obra em Biblioteca Pública do Paraná
que a jornalista Paula Dip apresenta a Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 | Curitiba | PR.
Horário de funcionamento:
trajetória do escritor, principalmente a Segunda à sexta, das 8h30 às 20h.
partir do momento em que eles se co- Sábados, das 8h30 às 13h.
nheceram, no fim dos anos 1970 em
São Paulo — além da indicação de 6
dos mais importantes livros de Caio. Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
Boa leitura!
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 3

curtas da bpp

O cinema de Lelio Mostra fotográfica Reprodução Reprodução

Fernanda Rodrigues
A partir de 12 de abril, a Biblio-
teca Pública do Paraná abre a mos-
tra Memórias do Quintal, do fotógrafo
curitibano Guilherme Pupo. A exposi-
ção nasceu a partir do projeto de mes-
mo nome que visa resgatar expressões
lúdicas tradicionais dos bairros. O que
possibilitou a Pupo uma imersão em
espaços sociais como praças, áreas pú-
blicas de lazer, ruas, terrenos e quintais
dos bairros Tatuquara, Campo de San-
tana e Caximba, localidades do extremo
sul de Curitiba. O projeto da exposição
foi realizado pela instituição Malasar-
tes, que promove ações de incentivo à
leitura, e teve o apoio do Programa de
Apoio e Incentivo à Cultura da Fun-
dação Cultural de Curitiba (FCC). A
mostra segue até 20 de maio.

Cândido no
Facebook
O crítico paranaense Lelio Sot- O arco de Cestaro Coisas de adornar
to Maior Junior vai lançar no dia 7 de
abril, na Biblioteca Pública do Paraná, O escritor Antonio Cestaro aca-
paredes
às 18h, o livro Cinematographo, que traz ba de lançar o livro Arco de virar réu, que Coisas de adornar paredes é novo
textos sobre o legado de cineastas que, marca sua estreia no romance. Nascido livro do quadrinista José Aguiar. A HQ
de acordo com Sotto Maior, fizeram em Maringá (PR), Cestaro é editor e narra a busca de um aspirante a escri-
um “cinema de classe”, entre eles Glau- fundador do selo Tordesilhas, dedicado a tor na tentativa da publicação de seu
ber Rocha, Orson Welles, François Tru- obras literárias. Em 2012 lançou seu pri- livro. Curitiba, cidade natal do autor,
ffaut, Federico Fellini e Arthur Penn. A meiro livro, a coletânea de crônicas Uma é também inspiração, mas é retratada
obra custa R$20 (vinte reais). A entra- porta para um quarto escuro, que ganhou o com um olhar que passa longe dos car-
da é franca. Sotto Maior é um dos no- prêmio Jabuti na categoria Projeto Grá- tões postais da capital paranaense. Ele-
mes mais expressivos da crítica de cine- O Cândido agora tem uma fico. Arco de virar réu narra a história de mentos banais, às vezes quase invisíveis,
ma no Paraná. Ele começou a publicar página própria no Facebook. A proposta um homem que tem a infância e a ju- como fachadas, quadros, e até rachadu-
textos sobre filmes em jornais no fim desse novo espaço é divulgar as edições e ventude marcadas pela esquizofrenia do ras, são o ponto de partida para narra-
de 1963 e, desde então, colaborou com resgatar todo o acervo do jornal mensal irmão mais novo. Em uma narrativa la- tivas que falam sobre pessoas comuns
O Estado do Paraná, Diário do Paraná, da Biblioteca Pública do Paraná, que biríntica e fragmentada, o narrador-pro- que compõem a metrópole. José Aguiar
Revista da Cinemateca, Correio de Notí- já tem mais de 50 números lançados e tagonista discorre sobre a natureza física e é autor de trabalhos como a webcomic A
cias, Folha do Paraná e Jornal do Estado e completa cinco anos de circulação em psicológica do tempo, sobre como a vida infância do Brasil (www.ainfanciadobra-
também com a revista norte-americana agosto. Acesse, curta e compartilhe. foge ao nosso controle e sobre a desagre- sil.com.br) e das tiras Folheteen e Nada
Florida Review Magazine. www.facebook.com/jornalcandido gação familiar provocada pela doença. com coisa alguma.
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ENTREVISTA | JORGE MAUTNER

O filho do
Divulgação

amálgama
Aos 75 anos, o multiartista fala sobre
inspirações, literatura brasileira, crise,
nazismo e, é claro, seu assunto preferido:
a riqueza cultural do Brasil

Omar Godoy
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 5

P
ara marcar os 75 anos de Jorge Os organizadores de Kaos to- o Kaos tinha dois objetivos principais:
Mautner, completados em janeiro, a tal são também os responsáveis pelo impedir um novo holocausto e irra-
conteúdo do seu site/portal oficial, diar a imensa grandeza e profundida-
editora Companhia das Letras lançou
Panfletos da nova era — que traz, além de da cultura brasileira. Em 1823, José
uma compilação que vai fundo na da sua história, muitas dicas de livros Bonifácio [poeta, estadista e “Patriar-
produção escrita do tropicalista. Com de outros autores. Fale um pouco so- ca da Independência”] nos definiu di-
bre essas indicações. zendo: “Diferentemente dos outros po-
cerca de 400 páginas, Kaos total reúne, entre Em todos os meus livros, desde vos e culturas, nós somos o amálgama,
material conhecido e inédito, todas as suas o Deus da chuva e da morte (1962), eu esse amálgama tão difícil de ser feito”.
letras de música e mais uma variedade de sempre indico as minhas inspirações E tudo aqui é amálgama mesmo, essa é
e os grandes autores da filosofia, da li- uma das nossas riquezas.
poemas, manifestos, trechos de prosa poética, teratura e de letras de música também.
etc. Há ainda uma seleção de pinturas do Isso é um hábito contínuo que tenho. Um dos temas do momento,
artista, nunca publicadas em livro. Não basta escrever, nem colocar a men- em âmbito mundial, são os movimen-
sagem nas minhas letras, porque muita tos migratórios. Como os novos imi-
A reportagem do Cândido aproveitou gente não lê. Então, mesmo como artis- grantes que estão chegando ao Brasil
o lançamento para conversar com o artista ta, músico, intérprete ou palestrante, eu nos últimos anos vão participar desse
desenvolvi esse hábito de indicar. É uma “amálgama”?
sobre o novo volume e sua relação com a
trilha constante de pensadores, desde os Eles de imediato são abraçados.
literatura. Mas, em se tratando do autor de pré-socráticos. E é o tempo todo isso. É Só para falar, por exemplo, de Curitiba
“Maracatu Atômico”, qualquer bate-papo é o caos. e do Paraná: Paulo Leminski era pro-
duto de misturas, de miscigenação. Isso
um “revirão” — termo criado pelo psicanalista
Hoje o artista também é, de é o ineditismo do Brasil, o tempo todo.
MD Magno que significa “uma escolha a certa forma, um editor. Principal- Eu fui exilado e passei cinco anos nos
cada segundo” e deu título ao seu álbum de mente nas redes socais, onde ele apre- Estados Unidos, como funcionário das
senta o seu trabalho e de outros artis- Nações Unidas. Também fui secretário
2006. tas, numa espécie de curadoria. Você literário do [poeta] Robert Lowell. Ele
Ou seja: quando menos se espera, já fazia isso nos anos 1950, 1960... só queria ler sobre “os mistérios do Bra-
Mautner salta de um assunto para o outro, Já em 1956, né? Foi nesse ano sil”. Lia Gilberto Freyre, Câmara Cascudo.
que comecei a escrever o Deus da chuva Outro amigo meu, o Paul Goodman [so-
citando toneladas de referências filosóficas, e da morte e, ao mesmo tempo, ideali- ciólogo, escritor e militante anar-
históricas e científicas. O resultado, como se zar o Partido do Kaos. [Mautner cos- quista] sempre me perguntava: “O que
pode ler, é sempre a confirmação de sua visão tuma afirmar que o grupo chegou a ter você está fazendo no Village [o “bairro
3 mil membros em 1962, quando en- dos artistas” em Nova York, local do sur-
de mundo ampla e da crença na riqueza (ou cerrou suas atividades. Em seguida, o gimento de vários movimentos culturais
“amálgama”, como ele prefere dizer) cultural artista se filiou ao Partido Comunista] importantes]? Você não sabe que o úni-
Porque sempre achei que a prática de- co e verdadeiro Village, desde o início dos
do Brasil.
veria acompanhar a palavra escrita. E tempos, é o Brasil?”.
6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENTREVISTA | JORGE MAUTNER

Em 2006, você publicou O fi- Você guarda todos os livros que


lho do Holocausto, livro que reúne suas lê, tem um grande biblioteca em casa?
memórias desde a infância até 1958 Eu já tinha 10 mil livros aos
[e mais tarde deu origem a um fil- 14 anos, pois meu pai sempre me in-
me, dirigido por Pedro Bial e Heitor centivou a ler. Foram tantos livros lidos
D’Alincourt]. Pensa em lançar outro que eu não teria onde guardar, fui dan-
volume semelhante, cobrindo um pe- do tudo. Conheço a literatura de cada
ríodo diferente da sua trajetória? país. Leio em alemão, leio em fran-
Sim, e provavelmente vai sair no cês... Mas leio novidades também. Re-
final deste ano. O título é uma frase do comendo, por exemplo, A nova biogra-
[filósofo português] Agostinho da Sil- fia do Brasil, que saiu pela Companhia
va, Não há abismo em que o Brasil caiba. das Letras [das autoras Lilia Moritz
E o subtítulo é O domínio do fato. Ali eu Schwarcz e Heloisa Murgel Starling].
conto histórias incríveis de toda a mi- Ali elas dizem que o Brasil de fato já
nha participação como ativista. Será o era conhecido em 1008, 500 anos antes
primeiro de uma série de dez volumes do descobrimento. Também comentam
de memórias literalizadas, que também que os índios eram nus, atléticos, perfu-
misturam História do Brasil, Histó- mados... Mas o que mais causava estra-
ria do mundo e literatura. Isso sempre nheza é que eles faziam guerra não para
transparece em todos os meus cadernos. conquistar território, e sim apenas por
vingança pessoal. Aí você tem outros li-
A literatura brasileira, na sua vros, como os do Domenico De Masi.
opinião, dá conta de um país do tama- O último dele, O futuro chegou, tem 500
nho do Brasil, com essa riqueza, esse páginas. Começa lá nos sumérios e acá-
amálgama de que você tanto fala? dios, segue por todas as culturas e nas
Dá. Você tem Machado de As- últimas 100 páginas afirma que a única
sis, Cruz e Souza, José de Alencar, Pa- civilização que poderá dar continuida-
dre Antônio Vieira, Câmara Cascudo, de à vida no planeta é o Brasil, por tudo
Gilberto Freyre... Tudo isso é amálga- isso que estou dizendo. Por esse amálga-
ma. O Stephen Zweig [escritor austrí- ma, esse tropicalismo, essas característi-
aco que se exilou na cidade fluminense cas que são totalmente inéditas e origi-
de Petrópolis durante a Segunda Guer- nais de um país que é um continente.
ra Mundial, autor de Brasil, país do fu-
turo], por exemplo, ficou abismado com A palavra do momento no país
o fato de que, numa época dominada é “crise”. Como você vê este momento,
pelo racismo, Carlos Gomes compôs O do ponto de vista simbólico?
Guarani, uma obra em homenagem ao A crise é necessaríssima. Acho
índio. E o Brasil é o tempo todo isso. que a Lava Jato deveria ser uma insti-
Guimarães Rosa é amálgama, Oswald tuição permanente e perpétua do Esta-
de Andrade é amálgama, Mário de An- do brasileiro. A crise é ótima porque abre
drade é amálgama... novas perspectivas e nos obriga a pensar
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Reprodução

Jorge Mautner e Nelson Jacobina mantiveram uma parceria musical de 40 anos, só interrompida em 2012, quando o músico faleceu.
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ENTREVISTA | JORGE MAUTNER

em soluções. Porque o mundo não bebe


água, não respira e não come sem o Bra-
sil. Nós temos, por exemplo, 95% do ni-
óbio mundial. Sem esse minério, o nió-
bio, não existe satélite, foguete, viagem
à Lua, celular... Se o país tivesse estrada
de ferro, o preço das mercadorias bai-
xaria 70%. Se usássemos todo o poten-
cial dos rios navegáveis, baixaria 85%.
A nossa agroindústria pode alimentar a
China inteira. A Europa toda cabe no
Estado do Pará, meu amigo. A riqueza
do Brasil é imensa. Essa crise só é com-
preensível por causa do nosso surrealis-
mo, que é essa diferença entre a realidade
do Brasil e o que se descreve como sendo
o Brasil. Não leram Gilberto Freyre, Câ-
mara Cascudo, Padre Antônio Vieira...
Mas lá fora eles leram e sabem de tudo.
Aqui, só algumas pessoas sabem.

Então você é totalmente otimista?


Sim, a crise é real, seríssima, mas
tem solução e vai ser resolvida. O que
levava dez anos para acontecer, agora

Cena do documentário Jorge Mautner o filho do holocausto, dirigido por Pedro Bial e Heitor Dalincourt
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 9

acontece em dez segundos por causa do livro deve ser proibido. Porque o nazismo
nosso nióbio, que possibilitou a internet realmente pega. Como fogo na pólvora.
e o celular. O povo brasileiro foi proibi- Para mim, é uma indignação bonita, mas
do de ler e escrever, mas agora ele sabe acho que não é suficiente. Porque hoje
tudo pelo celular. Já sabia, mas agora em dia está tudo aí, existe a simultaneia-
sabe mais ainda. de, aquilo que eu falei de saber em dez se-
gundos o que antes você levaria dez anos
As coisas estão às claras... para saber. Aliás, é um livro chatíssimo. O
Totalmente. Eu vou até citar o que interessa mais era a propaganda que
[Martin] Heidegger, um filósofo nazista ele fazia. Porque o nazismo era entreteni-
— porque o nazismo é profundo, o mal mento absoluto, dia e noite.
é profundo. Ele disse, em 1953: “Através
da cibernética, viveremos num planeta Você citou o Nelson Jacobina.
em que todos serão controlados e con- Como tem sido os últimos anos, sem
troladores”. Isso está se formando agora. a presença dele?
Só espero que esses controlados e con- Foram 40 anos de parceria inten-
troladores não se tornem todos descon- sa, absoluta. Não só fazendo show, não
trolados e descontroladores, como dizia só fazendo palestra. Era o tempo todo
o Nelson Jacobina [principal parceiro lendo livro de História, o tempo todo
musical de Mautner, morto em 2012]. conversando. Era uma troca permanen-
te, total. Ele teve câncer, com uma me-
Já que você falou em nazismo, o tástase violenta de quatro anos. Qua-
que achou do grupo de escritores bra- tro anos! Nem a pílula mais cara que a
sileiros que publicou um manifesto de gente importava acabava com as dores.
repúdio ao lançamento do livro Minha O Drauzio Varella disse: “Mas ele está
luta, de Hitler? Eles também propuse- morto, isso é um milagre”. São os neu-
ram que as livrarias se recusassem a rônios. Oito anos atrás, descobriu-se que
vender o volume. nossos neurônios são pura emoção. Dei-
Eu acompanhei. Acho que deve xa o romantismo no chinelo. Só quan-
ser tudo transparente. Mas acontece que do ele tocava, ou ia ver a militância, é
o Hitler não era bobinho nem nada. Bo- que paravam as dores. Em Jacareí [SP],
bos eram os que achavam que ele era no último show, ele deu um bis de uma
bobo. Ele já era um artista pop, usando hora e meia porque não queria sair do
toda a força de Nietzsche, de Wagner. palco. Quatro dias depois, faleceu. Mas
Ele sabia tudo. Mas o mal é profundo, e é eu sempre falo com o Nelson Jacobina.
sempre preciso tomar cuidado. Eu enten- Drummond escreveu: “Sempre conver-
di que a indignação do grupo com o na- so com o meu pai. Ele está morto, o que
zismo é tamanha, que eles acham que o importa? Sempre falo com ele”. [ri] g
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CONTO| Alberto Mussa

a trilogia homérica
A
lenda das minas de prata, que al- (entre guaianás, guarulhos, tupiniquins E contou uma história terrível, de
guns acreditam terem sido desco- e carijós), deixou a futura vila de San- como a expedição de 39 tinha atingido
bertas pelo Caramuru, apesar do to André da Borda do Campo, na febre uma imensa serra prateada, mas fora fe-
extravio de um certo mapa traçado das minas de prata. rozmente combatida por um gentio des-
por seu neto, o Moribeca; a lenda das mi- conhecido — que lutava apenas com
nas, que levou homens tão díspares en- a notícia lanças de pau muito rijas e agudas; e se ali-
tre si como o padre Aspilcueta Navarro mentava de carne humana, crua e podre.
e o tremendo Anhanguera a penetrarem Em 1547 havia em Santo André — É o povo que descende do
no mais fundo dos sertões; a lenda, que uma única mulher branca: Mécia Viei- urubu. Têm ódio dos que acendem fogo
manchou de sangue a história dos fidal- ra, que sustentava, diante de todos, con- — explicou um guaianá.
gos da Casa da Torre — começou a to- tra opiniões cada vez mais veementes, O guarulho — em quem os ho-
mar forma em 1532, quando Martim seu estado de mulher casada. mens de Santo André mal reconhece-
Afonso passou por São Vicente, durante Os homens que lhe negavam tal ram Ipojiçá — contou que a expedição
a famosa expedição que pretendia asse- condição não possuíam, em casa, mu- resistira ainda alguns meses, mas fora
gurar a posse da terra aos reis de Portugal. lher daquela cor. E pareciam não se finalmente desbaratada, quando fica-
Foi ali, em São Vicente, que traí- contentar com as índias. Não fosse a ram encurralados à beira de um precipí-
ram o plano secreto de Martim Afonso: autoridade de João Ramalho, quem as- cio, alvejados com extrema violência por
tomar aos espanhóis o controle do rio sentara a povoação às próprias expensas, aquelas varas letais, vindas de surpresa,
que os conduziria às montanhas do co- preferindo o apoio de Tibiriçá ao do rei de dentro da mata.
biçado metal. dom João, não haveria homem capaz de — Quem exatamente você viu
Martim Afonso ainda estava no defender a honra de Mécia Vieira. morrer? Diga nomes — foi a pergunta
porto, carregando a nau que iria nau- — O que vale uma mandioca ansiosa de Mécia Vieira.
fragar, e — mais para dentro, subin- descascada como aquela? — indagava Os homens de Santo André perce-
do a serra, na povoação de casas de Ramalho, com a mão na espada. beram claramente aonde aquela única mu-
taipa e choças de palha fundada por Os homens de Santo André espe- lher branca — que sustentava ser casada
João Ramalho — já fervilhava a fan- ravam, como onças. Mas a tensão se agra- — pretendia chegar. E ficaram excitadís-
tasia de que aquelas mesmas minas vou quando, ainda em 1547, um índio simos. Foi outra vez João Ramalho quem
podiam ser alcançadas numa entrada guarulho — ferido, cansado, faminto — a protegeu. Mas não conseguiu impedir os
pelo mato, a pé. emergiu do mato e se atirou no terreiro sombrios rumores grassados após o relato
Corria o ano de 1539 quando que servia de praça: de Ipojiçá: Manuel Repincho estava mor-
meia dúzia de colonos e mamelucos, — As minas existem. Mas mor- to. Logo, Mécia Vieira era viúva, como há
seguidos por mais de cinquenta índios reram todos. muito desejavam e queriam demonstrar.
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o evento

O primeiro movimento de re-


volta se esboçou quando viram a por-
ta de Mécia Vieira aberta para rece-
ber Ipojiçá. Os homens se reuniram
na casa de João Ramalho. Pela pri-
meira vez, a soberania do capitão de
Santo André era desafiada, de manei-
ra explícita.
— Mécia Vieira não pode ir mais
longe do que foi — chispavam os olhos
de José de Barros.
João Ramalho não perdeu o
sangue-frio.
— Pois decidam primeiro entre
vocês, se são varões. Depois me avisem.
Aquilo enfraqueceu um pouco
os ânimos. Que finalmente se aplaca-
ram, quando se soube, mais tarde, ter
Ipojiçá confirmado para Mécia Vieira
a versão inicial: tinham morrido todos,

Ilustração Bianca Franco


12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

CONTO | Alberto Mussa

trespassados pelos paus, caídos no Manuel Repincho sabia que os João Ramalho recebeu mal aquele
despenhadeiro, mortos de fome du- olhos dos homens bons de Santo André hóspede noturno. Mas mandou trazer vi-
rante a fuga. caíam cálidos sobre os quadris de Mécia nho de milho e tapioca. Não se importou
— Dei minha palavra para aque- Vieira. Gozava aquela inveja; e tinha com as feridas que ainda supuravam;
la mandioca — explicava o capitão, de ódio: de Joaquim Carvalho, de José de não reparou no olho esquerdo vazado;
noite, às suas mamelucas. Barros, de Tomé Gonçalves. não se comoveu com uma imensa cica-
Mas, apesar de ter ficado acorda- Nenhum daqueles parvos ousa- triz que vinha do canto direito da boca,
do e se divertido com elas até altas horas, ria tocá-la, enquanto fosse vivo. E foi por fazendo uma curva até as sobrancelhas.
João Ramalho não testemunhou a terrí- isso, por ter essa certeza, que não hesitou Mas o homem não buscava pie-
vel afronta: um vulto sinistro, certamen- em corromper um dos asseclas de Mar- dade. Queria informação. João Rama-
te masculino, forçou a janela de Mécia tim Afonso, obter o mapa das minas de lho não moveu a língua. E foi dormir,
Vieira e acabou entrando pela porta. prata, conjecturar um caminho alternati- deixando o hóspede no chão da sala,
Só um cão, deitado no terreiro vo, adquirir facões, machados, arcabuzes, com uma manta velha.
que servia de praça, no lugar onde mais munição e pólvora, além de convencer um — Mandioca maldita! — disse,
tarde seria posto o pelourinho, farejou certo número de colonos quanto à viabili- com raiva, escarrando no penico.
aquele vulto; que — teria afirmado — dade da empresa, amealhar uma fazenda Ainda estava escuro quando
não era o de Ipojiçá. que garantisse o sustento da mulher — até acordou, no dia seguinte, com o baru-
partir, em 1539, no seu delírio argentino. lho vindo de fora. Quando abriu a ja-
antecedentes Na porta de casa, quando os in- nela, viu o homem da cicatriz deixando
dígenas estavam todos carregados, e a casa de Mécia Vieira (e só então per-
Não erram os que atribuem o João Ramalho pronto para investi-lo cebeu que, além de caolho, estava coxo)
imenso poder de João Ramalho à sua oficialmente no comando da tropa, para ir esmurrar a porta de uma outra
aliança com Tibiriçá. Não erram, porque comprimiu com as mãos os grandes casa, onde o cão latia.
omitir não é errar. Mas não dão a Manuel peitos brancos da mulher; depois, no Quando Tomé Gonçalves, enxo-
Repincho o valor que teria merecido. meio do terreiro, no lugar onde mais tando o cão, veio pessoalmente tomar
Era um homem forte, audaz, tarde seria posto o pelourinho, afagou, satisfação da arruaça, tombou, com uma
desleal. Alcançara Ramalho no planal- comovido, as orelhas do seu cão. faca cravada no pescoço.
to em torno de 1520; e fora inestimável
em quase tudo. Era o único português o crime o julgamento
de Santo André capaz de entesar um
arco indígena e pôr as flechas no centro Naquela noite, em 1550, o cão, Todos sabiam, na futura vila de
do alvo. Mas nem por isso conquista- deitado no mesmo lugar onde seria pos- Santo André da Borda do Campo, que
ra a simpatia dos tupiniquins, recusan- to o pelourinho, farejou um vulto que vultos embuçados rondavam a casa de
do com desprezo e altivez as filhas mais parecia forçar uma janela, para depois Mécia Vieira à noite, desde o regresso de
belas dos tuxauas. Porque fora o único entrar pela porta da frente. Era uma Ipojiçá. Sabiam que esses vultos perten-
aventureiro a cometer a intrepidez, a cena que se repetia, havia já três anos, ciam a homens brancos, como Joaquim
imprudência, poderia dizer a indecência desde o regresso de Ipojiçá. Só que com Carvalho, José de Barros, Tomé Gonçal-
de arrastar consigo, serra acima, o luxo uma diferença: daquela vez a casa pro- ves. Mas era um assunto que desagrada-
de uma esposa branca. curada não era a de Mécia Vieira. va João Ramalho. Por isso calavam.
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Só na manhã do crime, diante do racionalmente convencê-lo disso. E che-


cadáver de Tomé Gonçalves, depois de gou a oferecer dinheiro ao guarulho, para
terem preso o assassino, é que se come- que contasse uma história diferente.
çou a falar do caso abertamente. A honestidade do índio pôs sua
— Esse homem é um impostor. vida em sério risco. Sabia que não po-
Manuel Repincho está morto. deria resistir. Por isso, na noite do pri-
Diziam isso porque o recém- meiro evento — quando abrira a porta
-chegado alegara ter agido por vin- para Joaquim Carvalho, que ameaçava
gança, para lavar a honra, para poder incendiar a casa — forjara o plano.
punir o parvo que (como suspeitara) — Se em sete anos Manuel não
ousava deitar sobre a brancura ainda retornar, escolho um novo esposo. En-
única de Mécia Vieira. quanto isso, venham; um de cada vez.
— São muitos os que fazem isso Joaquim Carvalho ainda relutou
por aqui — admitiu Joaquim Carvalho. — queria a alvura de Mécia só para si.
O problema era que ninguém re- Mas teria que lutar sozinho, contra todos.
conhecia no rosto desfigurado do assas- E acabou apaziguado, cedendo a vez, no
sino o semblante impávido de Manuel dia seguinte, ao pulha do José de Barros.
Repincho. E clamavam pela justiça ime- João Ramalho — que só gosta-
diata de João Ramalho. Mécia Vieira, va das índias e de suas mamelucas —
ainda meio nua, era a mais indignada. aprovou o acordo, tacitamente, porque
— Não me teria casado com ho- não acreditava no regresso de Manuel
mem que fedesse tanto. Repincho, mas admitia as razões da-
João Ramalho não tinha muitas quela excêntrica Penélope, que em vez
dúvidas; mas queria ser imparcial. Foi de tecer e destecer seu manto, para afas-
Ipojiçá quem trouxe um imenso arco da tar os pretendentes, sequer trocava a
altura de dois homens e sugeriu, gesti- colcha onde todos se deitavam.
culando, a prova. Por muitos anos, os habitantes
A flecha não acertou exatamente de Santo André da Borda do Campo
o alvo. Mas o arco tinha sido entesado lembrariam a emoção de Mécia Vieira
até o fim, perfeitamente. E eram as mãos diante do marido — para quem se guar-
de um branco. A identidade do prisio- dara durante tanto tempo. Exultante e
neiro não podia mais ser contestada. furiosa, exigia que o desagravassem. Alberto Mussa nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Sua ficção
Longe do tumulto, caído no lu- abarca o conto e o romance, com destaque para o “Compêndio
a trama gar onde mais tarde seria posto o pe- mítico do Rio de Janeiro”, série de cinco novelas policiais, uma
lourinho, depois de farejar os lençóis de para cada século da história carioca. Sua obra está editada hoje
Mécia Vieira nunca tinha acredi- Mécia e conduzir o dono no caminho em 17 países e 14 idiomas. A história publicada pelo Cândido
tado em Ipojiçá. Não por intuição: era da vingança, morria o cão. Ele, também, foi reescrita pelo autor para integrar o livro Contos completos,
óbvio que um homem em fuga não teria como Argos, tinha esperado aqueles coleção de narrativas curtas que a editora Record publica ainda
o escrúpulo de contar os mortos. Tentou anos todos. g no primeiro semestre. Mussa vive no Rio de Janeiro (RJ).
14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

HQ | Robson Vilalba

O Cântico Sobre a HQ
A HQ “O Cântico” publicada nesta edição é inspi-
rada em um conto de mesmo nome escrito pelo paranaen-
se Newton Sampaio. O texto foi publicado originalmente
no livro Irmandade, em 1938, quatro meses após a morte do
autor, aos 24 anos. Apesar da curta carreira, sua literatura
encontrou eco em algumas figuras, como o contista Dalton
Trevisan. Em 2014 a Biblioteca Pública do Paraná reuniu
toda a obra de Newton Sampaio no livro Ficções. g
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 15

Robson Vilalba é ilustrador, cartunista e caricaturista.


É autor da graphic novel Notas de um tempo
silenciado, sobre o golpe militar no Brasil em 1964.
O livro ganhou o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e
Direitos Humanos em 2015. Atualmente trabalha na
Gazeta do Povo. Vive em Curitiba (PR).
16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto | Luís Henrique Pellanda

Meu último
concurso de beleza
E
u era o encarregado dos concursos controle de nada. E de repente, quando possuir nenhuma capacidade visível de me
de beleza. É claro que eu tinha ou- menos se espera, o sonho pode acabar. surpreender. Era uma parede bonita, mas
tras responsabilidades, mas essa era Feito um livro cuja trama não fecha. uma parede. A coisa mais linda que já viu,
só minha. Parecia pouca coisa, mas A gente só vai saber que foi ruim quan- as cataratas do Iguaçu. Gostava de ler re-
os concursos me satisfaziam porque, ti- do já for tarde demais. Tempo perdido. vistas femininas e romances policiais, sexo
rando eles, nada mais me interessava no Por isso, vou evitar essa ideia de e mistério, nenhuma novidade. Não sou-
jornal. Os artistas populares, o futebol, começo, não houve começo nenhum. be dizer o nome de nenhum autor favori-
as celebridades. As emoções da edito- Melhor pegar o bonde andando. Quan- to, nem o título de um livro sequer. Pra ela
ria de polícia. Tudo isso estava esgota- do eu vi, já estava falando com ela, bloco era tudo a mesma coisa. Queria estudar
do. E sempre havia um ou dois concur- e caneta na mão, o café requentado no Direito, ser juíza, moralizar o país. Tudo
sos por mês. A rainha da uva, a princesa copo de plástico. Era a décima terceira normal. Só na hora de responder sobre o
das praias, a mais bela idosa. Tudo nas miss que eu entrevistava naquela tarde. seu hobby é que parou pra pensar. Depois
minhas costas. A beleza, cobertura total. Representava uma cidade do litoral, e me disse que tinha um, sim, mas preferia
Eu me sentia um rei entre as can- nosso litoral, você conhece, é curto. Não não contar.
didatas. É ridículo isso de se sentir um era a mais bonita, embora eu até achasse Era um segredo, e segredos eram
rei, um galo no galinheiro, principal- que ela tinha chances. o meu fraco. Ela não podia, ou não que-
mente quando não se tem poder ne- As perguntas que eu fazia eram ria, me dizer e eu não conseguia deixar
nhum, nem se ganha dinheiro pra fa- as costumeiras, sempre as mesmas, não de insistir. Perguntei de novo, ela refu-
zer valer alguma realeza. Mas pra mim sou de inventar poesia. De primeira, gou, eu disse que confiasse em mim, eu
a redação é isso, um reino só de pobres. não achei que devesse perguntar algo não publicaria nada, só estava curioso.
Ou melhor, toda redação é uma embai- novo. Nada no olhar dela me fazia pen- E era verdade. Ela sorriu, doida pra abrir
xada da miséria. Quer grana e confor- sar numa menina diferente. Portanto, o bico. E acabou cantando, claro, não foi
to, fique longe delas. Procurando saúde, era a sabatina de praxe: você gosta de preciso suplicar.
nos esqueça. ler? O quê? Livro, jornal, revista? Que Na internet, ela disse. Curtia ver
Não vou dizer quando ou onde carreira pretende seguir? Tem algum fotos de gente morta. Acidentados. Ví-
essa história começou, porque as histórias hobby? E qual foi a coisa mais linda que timas de homicídio. Esquartejamentos.
nunca começam. É como tentar lembrar você já viu? Não era algo que me excitas-
o início de um sonho, impossível. Quan- Quando digo que ela não parecia se, não particularmente. Mas excitou.
do você vê, já está envolvido na ação, no diferente, quero dizer que não demonstrava Não o lance das pessoas mortas, mas a
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 17

intimidade entre nós, naquela cabine de


entrevista. A necessidade que ela sentiu
de contar aquilo pra mim, numa redação
de jornal, no meio de uma tarde de terça.
Gente morta na internet. Fotos de gente
morta. Lá fora, a fila de misses me espera-
va, mas eu sabia que não haveria nenhu-
ma melhor do que aquela. De repente,
como que pra confirmar minha suspei-
ta, ela virou o jogo e me veio com uma
pergunta inesperada:
— Você acredita em Deus?
— Acredito.
— No velho de barba?
— Não.
— E como é ele pra você?
— Ele é uma fonte dos desejos.
— Como assim?
— É onde eu deixo cair todas
as minhas moedas.
E a coisa funcionou entre a gente.
Eu era uma parede também, só que mal-
-acabada. O lucro era meu. Ela era malu-
ca, mas loucura não é gripe, não se pega
num espirro. E como eu não tinha nada
a perder, esperei que ela perdesse o con-
curso. No sábado seguinte, perdeu, e fica-
mos quites. Agora podíamos nos ver, no
mesmo patamar de derrota. Ela estava de
Ilustrações André Coelho mudança pra capital, vinha fazer cursinho
18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto | Luís Henrique Pellanda

e morar sozinha numa pensão, perto da Nosso programa favorito e mais sentadores, políticos do baixo clero. É
minha quitinete. Juntei minhas moedas, constante era frequentar concursos de claro que a gente não gostava da baju-
não eram muitas, e lancei todas na água miss. Nenhuma surpresa, não éramos lação em si. A gente gostava era da si-
turva. Apostei nela, depois eu digo se ga- apenas especialistas, éramos fãs. Você vai mulação de estar gostando daquilo. E
nhei ou perdi. achar que estou exagerando, mas havia gostava de identificar, na beleza, algum
Não, não vou falar aqui sobre muitos concursos de beleza por aí. Um padrão, alguma uniformidade. Gosta-
nossa vida sexual. Homem que é ho- atrás do outro, o ano todo. Havia concur- va de saber que a beleza, em algum lu-
mem não fala disso, é o que dizem. sos de bairro e de clube. Concursos dis- gar, era a regra, e não a exceção. A bele-
Conta uma ou outra vantagem, mente tritais, municipais, estaduais, regionais e za mediada pela competição aberta. Ou
um pouco, edita suas fantasias. Investe nacionais, promovidos por inúmeras en- pelo menos é nisso que gosto de acredi-
em autopromoção, com parcimônia. Eu tidades suspeitas, todas lutando pelo di- tar hoje, anos depois de assistir ao meu
não faço esse tipo, e nem sou publici- reito de se proclamarem oficiais, éticas último concurso.
tário. Minto somente por contingência e únicas. Havia concursos sul-america- Foi num hotel executivo, não
profissional e por escrito. Digo que nos- nos, latino-americanos, pan-americanos, muito bom, num bairro nobre. Era a noi-
sa vida sexual era boa, e só. Nos diver- transcontinentais. Concursos pra mu- te de eleição da Garota Latina, um even-
timos o bastante, nem sempre, e às ve- lheres maiores de idade, pra moças de to novo, e eu não estava lá como repórter:
zes até usei alguma maquiagem e fingi até quinze anos, pra menores de doze, pela primeira vez, participava do júri. Era
de morto. Coisa que qualquer jornalista dez, oito, cinco. Pra beldades abaixo de pra ser divertido, mas minha namora-
sabe fazer desde a faculdade. um metro e sessenta. Pra beldades aci- da não pôde sentar comigo na bancada,
Nosso caso, claro, não era só ma de dois metros de altura. Pra louras durante o desfile. Ela ficou três ou qua-
sexo e encenações de necrofilia, era o verdadeiras e louras platinadas, pra ne- tro fileiras atrás de mim, avulsa, e cerca-
cardápio todo. Comédias românticas gras, orientais, índias e ruivas, de todos da por vários homens solícitos, o que me
no DVD, macarrão e vinho barato, co- os tamanhos, procedências, credos e en- deixou levemente incomodado. No meio
mida japonesa, pista de dança às sextas, vergaduras. A maioria desses concursos, daqueles desconhecidos, ela me parecia
conversas sobre o futuro e o que fazer admito, só servia pra valorizar o passe das ainda mais bonita e fugidia.
nos feriados. Mas nenhum plano con- candidatas no mercado da prostituição de A noite começou mal, com as
junto. Mesmo assim, éramos namora- luxo e, assim, uma rainha do caqui podia candidatas se trombando num balé
dos, e a redação se dividia entre os que facilmente acabar estagiando num bordel amador, e você sabe como são esses ba-
me achavam um cara de sorte e os que na Lituânia. Mas essa parte da história, é lés. Depois, houve um desfile inaugural,
viam em mim uma espécie banal de claro, não entrava no jornal. em que cada miss aparecia vestida com
corno. Todos, no entanto, me conside- Eu cobria tudo, sempre na pri- um traje típico de seu país e gritava seu
ravam um idiota. O setorista de beleza, meira fila. Dos bastidores às coroações. nome e o local de onde vinha num
um esteta nanico. Podia estar no meu Éramos, ela e eu, bajulados pelos escro- microfone dourado. Tudo muito tradi-
crachá, eu nem me ofenderia. Nem ques mais vagabundos. Cafetões, mar- cional e aborrecido, até o momento em
todo idiota, afinal, é uma unanimidade. queteiros, promotores de festas, apre- que um número musical foi anunciado.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 19

As misses se espalharam pelo pal- rodopiante ordem alfabética, seminuas é que, de repente, comecei a chorar. Um
co, eretas em seus vestidos de gala, uma e desinibidas. Argentina, Bolívia, Bra- choro que era de extravasamento ou ad-
coxa diante da outra, as fendas genero- sil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana miração, não sei. Foi bom. Dei à Miss Re-
sas, os braços pra trás. E entre elas, feito Francesa, Honduras, México, Panamá, pública Dominicana as notas máximas,
um roedor numa floresta fechada, sur- Paraguai, Peru. Todas lindas e, na ver- lacrei o envelope e deixei o hotel, sozinho,
giu o cantorzinho. Era um sujeito baixo dade, quase maçantes em sua perfei- antes mesmo de saber o resultado.
e corcunda, vestido de palhaço. Pelo seu ção, até que a entrada da representante Nunca mais fui a um concurso.
rosto corria uma gorda lágrima de pur- da República Dominicana pôs um fim Minha namorada chiou, disse que pi-
purina. Ele cantou um sucesso esqueci- àquela sequência de fadas vaporosas. rei. Que saí chorando, que não dei sa-
do de um compositor alcoólatra, mor- A mulher, que antes eu não ha- tisfação aos meus contratantes, uma
to havia já um bom tempo, uma escolha via notado, era muito magra e cabeluda. vergonha. Disse que nem ela nem
com certeza extravagante. Entre outras De onde saiu? Estava inscrita? Tinha um ninguém se lembrava de ter visto, na-
confissões, o cantorzinho alegava ter vi- tom de pele amarelado, ou seria culpa da quela noite, qualquer representante
rado palhaço por acidente, e acusava o iluminação do auditório? Pouquíssima dominicana, e muito menos com uma
mundo de sempre haver sido um circo carne, pouquíssimas curvas, o maiô lasse- fissura labiopalatal.
de tristes originalidades, um picadei- ado em torno dela. Devagar, foi cruzando Nosso romance esfriou. Poucos
ro pra farsantes de várias estirpes, uns o palco da direita pra esquerda e, a exem- meses depois, numa tarde de calor, ela
talentosos, outros não. E cantava tudo plo do cantorzinho, também olhava pra mergulhou nua numa cava do Iguaçu e
isso olhando fixamente pra mim, e só mim, e só pra mim, ignorando os outros se afogou. Seu corpo nunca foi encon-
pra mim, como se me estudasse, ou me jurados. Mancava, mas não como se fos- trado, e fiquei sem saber se daria uma
conhecesse, ou me paquerasse. Durante se aleijada, e sim como se estivesse do- morta atraente. Não chegou a ser juíza,
os quatro minutos de sua apresentação, ente, cansada demais, ou mesmo ferida, não moralizou o país. Jamais passou no
nem por um segundo desviou de mim recém-saída de um estupro ou de um es- vestibular. E aquelas minhas moedas,
aquele olhar que, visto em retrospecto, pancamento. Havia hematomas por toda você já sabia, eu perdi.
talvez fosse de solidariedade. Ao fim da a extensão de suas pernas e braços. Ela não Continuo no jornal. Desisti dos
canção, lembro que me virei pra trás, sorria nem rodava, e somente quando che- concursos de beleza e me mandaram,
curioso pra ver a reação de minha na- gou à boca de cena, parando a dois metros primeiro, cobrir as corridas de cavalo.
morada, mas ela não demonstrava emo- da bancada, pude ver que me fazia uma Não me adaptei. Depois, fui pro obitu-
ção nenhuma, nem positiva, nem nega- careta. Realçado pelo batom vermelho, um ário, onde estou até hoje. Parece um tro- Luís Henrique Pellanda nasceu e vive em Curitiba
tiva. Apenas aplaudia, desatenta, alheia lábio leporino se crispava pra mim. ço desimportante, mas os necrológios (PR). Escritor e jornalista, é autor dos livros O
a mim, enquanto trocava impressões em Ela foi aplaudida com naturalidade me satisfazem. Tirando eles, nada mais macaco ornamental (contos), Nós passaremos em
voz baixa com dois homens ao seu lado. pela plateia. Olhei pra trás e vi que minha me interessa no mundo. Agora é tudo branco (crônicas, finalista do Prêmio Jabuti 2012)
Aquilo me perturbou, mas a noi- namorada, serena, também a aplaudia, mas nas minhas costas, que seja, que venha a e Asa de sereia (crônicas). Detetives à deriva, seu
te seguia, e logo vieram os maiôs pretos. sem qualquer entusiasmo ou estranheza. morte, a cobertura é total. Eu me sinto próximo livro, que traz crônicas publicas no jornal
As candidatas se atiravam ao palco em Até hoje não sei o que me deu, mas o fato um rei entre os mortos. g Gazeta do Povo, será lançado em julho.
20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

especial | Caio Fernando Abreu

Anotações sobre
um amor urbano Reprodução

Vinte anos após a morte


de Caio Fernando Abreu, o
legado do escritor é cada
vez mais lido, discutido,
encenado e até mesmo
compartilhado nas redes
sociais. Os contos, romances,
crônicas, textos para teatro
e cartas dele repercutem,
de acordo com a crítica,
porque tratam, entre outras
questões, dos afetos
humanos
Marcio Renato dos Santos

O poeta, crítico e professor da Uerj Italo Moriconi afirma que os afetos humanos estão presentes em toda a obra de Caio Fernando Abreu.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 21

I
talo Moriconi afirma que as duas Cristina Cesar”, argumenta Moriconi. Arrisco a considerar que isso tem a ver
principais linhas de unificação entre A exemplo do estudioso da Uerj, com a verdade que Caio sempre tentou
todos os gêneros praticados por Caio a professora da Universidade Federal de imprimir em seus textos”, diz Barbosa.
Fernando Abreu (1948-1996) são a São Carlos (UFSCar) Tânia Pellegrini
referência melodramática — “aqui to- também diz que a atual “popularidade” Construção autoficcional
mada em sentido totalmente positivo” do autor se deve ao fato de a obra dele No entendimento de Barbosa, os
— e intimista, e a capacidade do autor encontrar eco nas inquietações dos jo- textos de Caio, “numa postura altamen-
de criar metáforas simples, e ao mesmo vens que frequentam as redes sociais. te contemporânea e até hoje bastante in-
tempo elaboradas, e fazer dessas me- “Sobretudo aqueles que são contrários quietantes”, borram as fronteiras entre os
táforas os elementos que conduzem a às regras do convencionalismo burguês, gêneros, a ponto de um conto, uma peça,
narrativa. “Os assuntos são sempre os aqueles que 'ouvem' nos textos de Caio um texto avulso, uma crônica e até mesmo
afetos. Mais que propriamente as pai- ecos das próprias inquietações a respei- uma carta dialogarem entre si. “Ou seja,
xões, são os afetos”, diz Moriconi, poeta, to de questões de gênero, de raça, desi- uma carta de Caio pode muito bem ser
crítico e professor da Universidade do gualdades sociais, em um momento da lida como um conto, ou vice-versa”, diz.
Estado do Rio de Janeiro (Uerj). história brasileira em que essas questões Barbosa conheceu a obra de Caio
O comentário de Moriconi, são discutidas com mais clareza e vigor na década de 1980. Leu os contos de
apontando que Caio tratou literaria- do que antes”, comenta Tânia. Morangos mofados (1982) e as novelas de
mente dos afetos humanos, talvez aju- Autor de Infinitivamente pesso- Triângulo das águas (1983) — obra que
de a entender, por exemplo, o motivo da al: a autoficção de Caio Fernando Abreu, conquistou o Prêmio Jabuti, entre ou-
popularidade do legado do escritor gaú- O biógrafo da emoção, a primeira tese de tros títulos. Conviveu, brevemente, com
cho, morto há duas décadas. Frases do doutorado sobre Caio Fernando Abreu Caio a partir de 1986, período em que o
autor, ou atribuídas a ele, fazem sucesso defendida em 2008 na Universidade de escritor escrevia crônicas n’O Estado de
nas redes sociais. São Paulo (USP), Nelson Luís Barbosa S.Paulo — na época, Barbosa trabalhava
“A obra de Caio ainda atrai jovens considera desagradável esse boom do au- no setor de publicidade do jornal. Mas
inquietos, artísticos, amantes da leitura, tor nas redes sociais. “A meu ver, na me- só iria estudar academicamente a litera-
vivendo intensamente os embates do afe- dida em que qualquer frase passa a ser tura do autor no século XXI.
to e da perturbação de gênero. O fato de citada como de sua autoria, até mesmo A tese de doutorado surgiu, en-
ser tão recortada, imitada, falseada vem as coisas mais bobas ou pueris”, critica. tre outras inquietações, com a finalidade
da grande comunicabilidade de sua obra No entanto, admite que há um compo- de questionar a recepção da literatura de
e do fato de que sua assinatura assumiu nente interessante nessa repercussão da Caio. “Sempre achei que a obra dele era
um lugar popular, um lugar no imaginá- obra de Caio no universo virtual. “Por recebida de forma equivocada. Sobretudo
rio comum, lugar esse potencialmente que será que ele é tão citado, ou por que em relação ao equívoco de que sua obra
mítico, como ocorre com Clarice Lispec- suas supostas frases servem tão bem era considerada gay, certamente em razão
tor, Jorge Luis Borges, Mario Quintana, para ‘amparar’ as mensagens ou os pen- de suas declarações e de ele se assumir
Paulo Leminski, até mesmo com Ana samentos pretendidos nas redes sociais? homossexual publicamente, ainda mais
22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

especial | Caio Fernando Abreu

depois da fatalidade que o atingiu, no cer- linguagem, não diria inconfundível — minha opinião, fez o seu caminho solitá-
ne de todo o preconceito com a questão porque ele escreveu na língua literária rio como ficcionista. Seguiu pelo ‘cami-
da Aids e o mundo gay”, conta. dos anos 1970 e 1980, mas certamente nho do meio’, captando as vozes do seu
Barbosa também se incomo- dotada de singularidade”, diz. tempo, lírico e libertário, transforman-
dava, por exemplo, com definições A professora da UFSCar Tânia do uma realidade extremamente rica e
— como “literatura autobiográfica” Pellegrini compartilha do ponto de vista complexa, as décadas de 1970 e 1980, em

“Caio]O mais
— atribuídas à ficção de Caio. “Ele do estudioso da Uerj, e comenta: “O mais grande literatura”, afirma.
vivia mais da literatura do que pro- claro diálogo [de Caio] acontece com A L&PM tem exclusividade para
priamente da realidade. Havia nele Clarice Lispector, de quem herda o mer- publicar em formato pocket — de bolso claro diálogo [de
uma certa incompatibilidade com a gulho nas profundezas da subjetivida- — 4 títulos de Caio: Triângulo das águas
vida real, com seus tempos, seus espa- de, no reconhecimento e (re)construção (1983), o livro de contos O ovo apunha- acontece com Clarice
ços, suas cobranças, seus apertos e li- de si mesmo, na contiguidade imediata lado (1975), a reunião de dispersos Ove-
mites. Dessa forma, comecei a enten- com o viver, na estetização da lingua- lhas negras (1995) e Fragmentos (2000) Lispector, de quem herda o
der que aquele autor que por vezes se gem para narrar o quotidiano banal, na — atualmente, a Nova Fronteira publi-
mostra na sua obra não é necessaria- insuficiência da palavra.” ca em livros de formato tradicional toda mergulho nas profundezas
mente o próprio Caio, mas uma fan- Outro diálogo do escritor, acres- a obra do escritor, incluindo textos para
tasia de si mesmo, ou do amor, ou da centa Tânia, se dá com Graciliano Ra- teatro, crônicas e a ficção. da subjetividade, no
vida, mas sempre ancorada numa vi- mos e a sua meticulosa metodologia O relacionamento do editor gaú-
vência ou no desejo de uma vivência. construtiva. “Além disso, certamente cho com Caio teve início a partir de um reconhecimento e (re)
Ou seja, literatura por excelência!”, outros grandes mestres modernistas mal entendido. “Curiosamente o co-
observa Barbosa, cujo trabalho aca- inspiram seu discurso, como herança e nheci a partir de uma carta, onde ele me construção de si mesmo,
dêmico será publicado, em forma de revivescência de uma geração que acre- esculhambava, porque havíamos incluí-
livro, pela Editora Hucitec ainda no ditava na elaboração literária criteriosa do um conto seu numa antologia de au- na contiguidade imediata
primeiro semestre deste ano. acima de tudo”, completa. tores gaúchos publicadas pela L&PM.
Moriconi ainda observa que, no Ele ficou furioso, mas o Caio Graco, o com o viver, na estetização
Alguns diálogos quadro da história literária, Caio pertence seu editor na Editora Brasiliense, tinha
No texto “Adolescendo à beira do à vertente que ele define como “clariceana”: me dado autorização”, conta Pinheiro da linguagem para narrar
Guaíba”, de 2007, que acompanha uma “Não no sentido de escrever como Clari- Machado. Uma vez esclarecida a ques-
reedição de Limite branco, o primeiro ce Lispector, mas no sentido que escreve a tão, em 1976, eles se tornaram amigos. o quotidiano banal, na
romance de Caio, Italo Moriconi afir- partir de um ponto de vista não machista, Quase uma década após o inci-
ma que o autor gaúcho dialogou litera- não heteronormativo. Isso é definidor do dente, Caio planejava publicar uma bio- insuficiência da palavra.”
riamente com Clarice Lispector, Hilda lugar de Caio na literatura brasileira.” grafia de Emma de Mascheville (1903-
Hilst e Graciliano Ramos. Agora, em Já o editor da L&PM, Ivan Pi- 1980), astróloga alemã que viveu em Tânia Pellegrini, professora da UFSCar
2016, Moriconi confirma o comentário. nheiro Machado, analisa que Caio ocupa Porto Alegre. O escritor procurou Ivan
“Os autores com cujas linguagens um lugar sui generis no panorama da lite- Pinheiro Machado. “Fizemos várias reu-
Caio mais dialogou foram esses aí mes- ratura brasileira. “Hoje eu vejo como ele niões, o Caio chegou a fazer um belíssi-
mo. Mas observamos que o processo de foi à frente do seu tempo e como foi qua- mo trabalho, mas devido a influência dos
amadurecimento de Caio representou se um solitário no seu gênero. Na época, familiares da famosa astróloga, o proje-
sua libertação de qualquer influência os poetas estavam mais comprometidos to não saiu da gaveta. Foi uma pena”, la-
deles, tendo desenvolvido sua própria com a ideia da vanguarda e o Caio, na menta o editor da L&PM.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 23

Caio rock and roll


A literatura de Caio é cada vez pedra no caminho do desejo
mais adaptada para outras linguagens.
O romance Onde andará Dulce Veiga?
(1990), vencedor do prêmio da Asso- Reprodução
ciação Paulista dos Críticos de Arte Thais Torres de Souza diz que um dos temas
(APCA), rendeu um longa-metragem, centrais da obra de Caio Fernando Abreu
com título homônimo, dirigido por é o erotismo. A partir desse pressuposto,
Guilherme de Almeida Prado. “Aquele elaborou a tese de doutorado Uma vaga
dois”, conto de Morangos mofados, foi
promessa: aspectos do erotismo em contos
filmado por Sérgio Amon. Já o docu-
de Caio Fernando Abreu, defendida em 2014
mentário Sobre sete ondas verdes espu-
mantes, dirigido por Bruno Polidoro
na Universidade de São Paulo (USP). “Em
e Cacá Nazario, mostra cidades onde grande parte de seus livros, o autor apresenta
o autor viveu, como Porto Alegre, Pa- personagens que lidam com um desejo
ris e São Paulo, aproveitando trechos impositivo, mas que se deparam com diversas
da obra do escritor e depoimentos de impossibilidades para que o gozo efetivamente
amigos de Caio. aconteça”, comenta.
O ator e diretor de teatro Gilber-
to Gawronski já levou aos palcos contos Para comprovar a recorrência do impasse,
do livro Os dragões não conhecem o paraíso Thais estudou contos do autor publicados
(1988), vencedor do Prêmio Jabuti, en- em Morangos Mofados, “Terça-feira gorda” e
tre os quais “À beira do mar aberto” e
“Sargento Garcia”, e outros dois de Os dragões
“Dama da noite”. No entanto, uma das
não conhecem o paraíso — “Uma praiazinha de
montagens cênicas mais festejadas é a
do conto “Aqueles dois”, realizada pela areia bem clara, ali, na beira da sanga” e “Os
Cia Luna Lunera, de Belo Horizonte. sapatinhos vermelhos”.
A ficção mostra o encontro dos perso-
nagens Saul e Raul em um ambiente de “Meu argumento central é de que o erotismo
trabalho e a respectiva hostilidade de aparece nessas histórias mais como uma
quem está ao redor. promessa de gozo do que como prazer
Em texto publicado no Jornal do propriamente dito. Mesmo quando o prazer
Brasil, o crítico Macksen Luiz afirmou: “Os se realiza, o gozo é cerceado, quer seja
atores-dramaturgos-cenógrafos-cria- devido a fatores externos aos sujeitos, como o
dores desta coletivização de instigan-
preconceito da sociedade — ou pela condição
tes propostas dão corpo e voz à orgânica
intrínseca dos indivíduos e do próprio desejo: a
transposição do literário para o cênico, Caio Fernando Abreu sobreviveu trabalhando em redações de jornais e revistas.
incompletude”, explica. g
numa íntegra unidade onde não há lu-
gar para destaques. Cláudio Dias, Mar-
celo Souza e Silva, Odilon Esteves e
24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

especial | Caio Fernando Abreu

Reprodução

Rômulo Braga formam núcleo de cria-


ção vigoroso, em que ideias se transfor-
mam em teatro pulsante.”
O crítico Jefferson Lessa também
comentou, no jornal O Globo, a monta-
gem: “‘Aqueles dois’ é um espetáculo sobre
solidão, fragilidade, amizade. Longe de
disfarçar a temática homossexual (é mais
que claro que os rapazes se desejam), não
faz dela um discurso panfletário, optando
por mostrar, com inteligência e sensibili-
dade, um bonito poema teatral.”
Italo Moriconi observa que o tea-
tro, “o caráter dramático e melodramáti-
co da prosa de Caio”, merece ainda mais
atenção, enquanto Tânia Pellegrini suge-
re que os estudiosos pesquisem nos tex-
tos de Caio as marcas, “profundas”, do
contexto histórico em que o autor viveu.
Ivan Pinheiro Machado acres-
centa que Caio Fernando Abreu foi um
artista que soube entender as transfor-
mações do seu tempo. “Sua literatura
esteve afinada com os movimentos de
vanguarda e com as inquietações, frus-
trações e esperanças de uma geração
que vivia sob uma ditadura e ansiava
por liberdade”, afirma.
O editor da L&PM analisa que
a obra de Caio se caracteriza, entre

“tempo,Caiolíricoseguiue libertário,
outras nuances, por um extremo apu-
ro formal e temática cosmopolita, na
medida em que ele foi um escritor ur-
pelo 'caminho do meio', captando as vozes do seu
bano, o que não era comum naquele
contexto no Brasil: “Caio estava mais
transformando uma realidade extremamente
para o rock and roll, enquanto a maio-
ria dos autores buscava a tal ‘brasili-
rica e complexa, as décadas de 1970 e 1980, em grande literatura.”
dade’ no romance histórico ou no ro-
mance regionalista.” g
Ivan Pinheiro Machado , editor da L&PM
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 25

Arquivo UFRGS
Vida e morte na obra de Caio F.
Autor de infinitivamente pessoal: a autoficção de Caio Fernando Abreu,
o biógrafo da emoção, tese de doutorado sobre Caio Fernando Abreu
que será editada em formato de livro nos próximos meses, Nelson Luís
Barbosa comenta um aspecto do legado do escritor gaúcho

Em toda a sua vida, Caio jamais se omitiu em viver suas Embora muitos insistam em ver nessa “fatalidade” o
histórias ou as histórias que seu tempo apresentava grande momento de Caio F., chegando mesmo a explorar
para ele: foi hippie quando jovem, dark e punk mais o fato como uma celebridade mórbida em sua época,
maduro, experimentou drogas. Viveu em comunidades costumo dizer que isso é um imenso engano, porque
no Brasil e na Europa, viveu como estrangeiro fora e aqui Caio jamais se utilizou dessa contingência para se
no Brasil. Assumiu sua homossexualidade, mas nunca promover ou transformá-la em um atrativo para sua obra.
condicionou sua sexualidade a papéis previamente
estabelecidos, amou mulheres, homens, manteve uma Caio optou por viver essa realidade como sempre viveu
relação de amor e ódio com São Paulo, Porto Alegre, sua vida, escrevendo, produzindo e observando a vida,
Rio, com sua família, com seus parceiros... ainda que esta aos poucos lhe fosse escapando.

Viveu intensamente suas paixões, suas viagens, Esta sua atitude nunca o levou a fazer da doença um
abandonou empregos para escrever, sonhou viver panfleto ou um tratado sobre como enfrentá-la, ou
apenas de literatura — amava música, artes em geral... lastimá-la. Muito contrariamente, sempre a tratou,
Escreveu muito, traduziu, compôs, enfim, foi uma como de resto toda a sua vida, como uma questão
pessoa de seu tempo, com todas as letras que podia literária, e foi fazendo literatura que a enfrentou até
ou queria ser. Podia ser amado incondicionalmente, o fim da vida. E foi assim também que corajosamente
mas também ser muito odiado, mas tudo por sua abriu caminhos para que a doença deixasse de ser vista
verdade, por sua natureza transparente. Enfim... como um castigo, ou mesmo uma irreversibilidade,
como de fato acabou de fato se tornando. Pena foi
A sua história com a Aids aconteceu como aconteceria ele não ter conseguido atingir esse momento de
a todos/muitos de sua geração, que se entregavam a reversibilidade da doença, pois certamente estaria
viver suas histórias sem medo e sem risco. Quando a escrevendo muito e cada vez melhor.
doença realmente surgiu em sua vida (embora já a
visse próxima desde sempre), na verdade não foi uma Esta condição certamente fez de Caio o primeiro autor
novidade, mas sim o ponto de inflexão para o qual ele a inserir em sua literatura a sua vida, mas também a
sempre caminhava, antevisto na morte como um dos sua morte. E raros são os autores que puderam assim
temas que lhe eram caros. elaborar suas existências. g
26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ESPECIAL | CAIO FERNANDO ABREU

Pela passagem
de uma grande dor
Publicado em 2009, com nova edição prevista para este ano, Para sempre teu, Caio
F., da jornalista Paula Dip, apresenta a trajetória do escritor gaúcho, principalmente
a partir do convívio dele com a autora
Marcio Renato dos Santos

Arquivo de Paula Dip/Reprodução

Caio Fernando Abreu e Paula Dip tiraram fotos um do outro em frente ao prédio da Editora Abril, em São Paulo, em 1980.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 27

“C
aio, pelas mais diversas razões, nunca teve Perdidos na selva Trajetória ziguezagueante
praticamente nada; ao morrer, deixou para Durante a obra, Paula Dip pro- Além de expor situações pesso-
cura definir quem foi Caio Fernando ais, por meio das quais revela nuances
os sobrinhos sua coleção de galinhas de Abreu. Ela conta quais foram as suas do comportamento do escritor — por
louças, (que ele chamava de frangas, as quais, primeiras impressões a respeito do ami- exemplo, Caio era, de acordo com Paula,
go: “Afinal, qual era a dele? Cínico, lou- um sujeito que ficava com ciúme quan-
aliás, dedicou uma novela infantojuvenil: As co, tímido, meigo, Caio tinha um jeito do uma amiga se apaixonava —, Para
frangas), um computador que ganhou dos amigos, meio David Bowie de ser, e nada fica- sempre teu, Caio F. traz, sem lineari-
va muito claro: ele gostava de meninos dade, mas com uma considerável quan-
seus livros, discos e CDs, um aparelho de som, seus
ou meninas? Queria ser meu bem, meu tidade de informações, alguns dos epi-
prêmios e uma velha máquina de escrever Olivetti zen, meu mal, ou nenhuma das anterio- sódios mais conhecidos do percurso do
Lettera, vermelha, da qual nunca se separou.” res? […] E era meio bruxo: fazia ho- escritor, por exemplo, o interesse pre-
róscopo, interpretava tarô, tinha pais de coce pela leitura, escrita e música, que
O parágrafo anterior é a transcrição de um santo e orixás, dava conselhos, lia o que o acompanhariam por toda a vida, e o
trecho do livro Para sempre teu, Caio F. — Cartas, escrevíamos, distribuía elogios, ou nem período em que viveu no Sítio Casa do
tanto, nos mostrava seus contos, pedia Sol, da escritora Hilda Hilst, em Cam-
conversas, memórias de Caio Fernando Abreu, de Paula opinião, apontava caminhos.” pinas, no fim da década de 1960.
Dip, publicado pela Record em 2009, que terá uma Paula também observa que Caio Nascido em Santiago do Boquei-
F., como ele costumava assinar cartas e rão, interior do Rio Grande do Sul, dia
nova versão este ano pela mesma editora.
bilhetes, tinha uma personalidade com- 12 de setembro de 1948, Caio circulou.
O livro apresenta o percurso de Caio Fernando plexa: “Caio era briguento, não tinha Na década de 1970, viajou para a Eu-
Abreu narrado por Paula Dip, jornalista que também papas na língua e encarava uma briga, ropa, onde sobreviveu por meio de su-
saía no braço sem hesitação: às vezes fa- bempregos, além de alternar tempora-
fala de sua trajetória, principalmente, a partir do zia o tipo justiceiro, outras vezes era de- das entre Porto Alegre e São Paulo, com
momento em que os dois se conheceram, no final bochado e encrenqueiro.” passagens pelo Rio de Janeiro.
A jornalista, para quem ele de- Acima de tudo, a obra evidencia
da década de 1970, em São Paulo. A obra traz dicou o conto “Pela passagem de uma a relação visceral de Caio com a palavra
depoimentos de amigos e colegas de Caio, além de grande dor”, do livro Morangos mofa- escrita, seja a dedicação dele para a lite-
dos, conta que eles tiveram uma “úni- ratura e a luta que empreendeu para ga-
fotografias e cartas que o escritor enviou para Paula.
ca rusga” no início da amizade, que teria nhar a vida trabalhando como jornalista.
sido esquecida imediatamente — uma Alguns dos melhores momentos do li-
vez que, no dia seguinte ao incidente, vro coincidem com os trechos nos quais
Reprodução
Caio enviou duas dúzias de rosas bran- a autora descreve o ambiente da reda-
cas pedindo paz. ções de revistas em São Paulo, do fim da
No entanto, ela se surpreenderia década de 1970 em diante.
no futuro: “Quando, anos mais tarde, li Se, a exemplo do trecho que é
cartas ele trocou com outros amigos, ob- mencionado no início deste texto, Caio
servei que muitas vezes criticou minhas terminou a sua trajetória em Porto Ale-
atitudes, como fazia com todos, pois era gre, em decorrência da Aids, dia 25 de
esta a sua natureza, crítica e ferina, mas fevereiro de 1996, sem bens materiais,
sua alma era grande: sabia aceitar dife- após a sua partida, cada vez mais a obra
renças e de certa forma vivia delas, pois dele adquire relevância — e valor: “Caio
O livro deu origem a um documentário homônimo, criava em suas histórias seres contradi- não teve filhos. Seu legado são suas his-
de 2015, dirigido por Candé Salles. tórios, divididos, um pouco como todos tórias e nossas memórias, compartilhá-
nós, perdidos na selva da cidade.” -las é mantê-lo vivo entre nós.” g
28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ESPECIAL | CAIO FERNANDO ABREU

Prateleira
Limite branco
Primeiro romance escrito por Caio Fernando Abreu, Limite branco foi produzido em 1967, e publicado em 1971. O autor, no
texto “Um quarto de século”, de 1992, comenta a obra: “Limite branco (que originalmente não se chamava assim: foi rebatizado
por Hilda Hilst, a quem devo a bela epígrafe e tantas coisas mais) é um romance sobre um adolescente no final dos anos 60.
[…] Relendo-o — e foi, juro, quase insuportável reler/rever estes últimos 25 anos —, fiquei chocado com a sua, por assim dizer,
inocência. E digo ‘por assim dizer’ porque essa inocência do personagem Maurício (e do Caio que o criou) tem muito de falso
pudor, de medo, moralismo, preconceito, arrogância, coisas assim. […] É também um livro imaturo. Maurício, visto hoje, parece
um Peter Pan vagamente virgem, aterrorizado com a possibilidade de tornar-se adulto.” No texto “Adolescendo à beira do Guaíba”,
Italo Moriconi observa que “em Limite branco, estão inscritos começo e fim do autor/narrador. Da obra e da vida. […] É no tempo-
espaço da deriva urbana que reside o nosso tanto de adolescente permanente.”

Morangos mofados
Se, como alguns dizem, a literatura tem de provocar estranhamento, Morangos mofados (1982), traz essa sensação de pertubação
e desconforto diante do mundo e de tudo. Nos 9 contos da primeira parte do livro, “O mofo”, os personagens são solitários, para
quem não parece haver redenção. Já nos contos da segunda parte, “Os morangos”, até que se insinuam caminhos em meio ao
aparentemente árido caos urbano. “A originalidade do relato de Caio Fernando Abreu nasce do partido que toma enquanto autor
e personagem. Através da aparente isenção no recorte de situações e sentimentos, na maior parte dos casos engedrado por uma
sensibilíssima acuidade visual (e muitas vezes musical) cresce e se refaz a história de uma geração de ‘sobreviventes’”, escreveu
Heloísa Buarque de Holanda, em texto publicado no Jornal do Brasil. O último conto, que empresta o nome ao livro, traz uma espécie
de síntese do clima dos anos 1970-1980, antecipando a fragmentação que hoje muitos dizem ser uma das marcas do século XXI.

Os dragões não conhecem o paraíso


Coletânea de 13 contos, Os dragões não conhecem o paraíso (1988) traz, no breve texto de ficção homônimo, uma das muitas
mostras da literatura do autor gaúcho: “Tenho um dragão que mora comigo. Não, isso não é verdade. Não tenho nenhum dragão.
E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir espaço — seja
com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser.” Independentes, as 13
histórias tratam de sexo, morte, alegria, medo, loucura e, mais do que tudo, de amor. Mas, como o autor comentou, os 13 contos
também dialogam entre si. “Se o leitor também quiser, este pode ser uma espécie de romance-móbile. Um romance desmontável,
onde essas 13 peças talvez possam completar-se, esclarecer-se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneiras umas às outras, para
formarem uma espécie de todo. Aparentemente fragmentado mas, de algum modo — suponho — completo.”
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 29

Triângulo das águas


Publicada em 1983, esta obra reúne 3 novelas e conquistou, em 1984, o Prêmio Jabuti. “As três novelas deste livro revelam um
escritor em plena maturidade criativa, vários pontos acima de seu livro anterior, Morangos mofados”, escreveu, em texto veiculado
na revista IstoÉ, Geraldo Galvão Ferraz. O livro foi escrito durante uma temporada em que o autor decidiu viver no Rio de Janeiro e
o resultado é uma prosa poética por meio da qual os personagens de cada uma das narrativas não sabem se as circunstâncias não
os favorecem ou se eles não favorecem as circunstâncias, como se lê num fragmento de “Pela noite”: “Vinda de dentro, Santiago
ouviu a voz dele, batendo portas, fica à vontade, sabe mexer no som? Põe um som aí, tem jazz, porradas de jazz, que tal uma boa
e velha Billie pra dar o clima noturno? Tem uns rocks também, uns berros de Nina Hagen? Ligando a televisão no quarto, a música
familiar, irritante e estridente do Jornal Nacional derramou-se pelo corredor para invadir a sala, umas revistas malucas aqui no
quarto, gosta de sacanagem forte?”.

Onde andará Dulce Veiga?


Italo Moriconi afirma que Onde andará Dulce Veiga?, publicado em 1990, está entre os bons romances do momento de virada de
século. “Entra para qualquer lista de 30 melhores romances da segunda metade do século XX”, diz Moriconi. A narrativa apresenta
um personagem que consegue um emprego em um jornal e, a partir dessa situação, há, entre outras questões, a recriação do que
foi o ambiente de uma redação antes do advento da internet. Mais que isso, o livro tem como foco o desaparecimento de uma
cantora, Dulce Veiga, que já teve prestígio. A obra confirma que Caio Fernando Abreu sabia elaborar ficção a partir da valorização de
detalhes: “A primeira vez que vi Dulce Veiga, e foram apenas duas, ela estava sentada numa poltrona de veludo verde. Uma bergère,
mas naquele tempo eu nem sabia que se chamava assim. Sabia tão pouco de tudo que, na época, quando tentei descrevê-la depois
na mente e no papel, disse que era uma dessas poltronas clássicas, de espaldar alto e assim como duas abas salientes na altura da
cabeça de quem senta.” Em 2008, o livro foi adaptado para o cinema, com título homônimo, por Guilherme de Almeida Prado.

Ovelhas negras
Reunião de textos, escritos entre 1962 e 1995, ano da publicação do livro. “Foram às vezes publicados em antologias, revistas,
jornais, edições alternativas. Mas grande parte é de inéditos relegados a empoeiradas pastas dispersas por várias cidades, e que só
agora — como pastor eficiente que me pretendo — consegui reunir”, escreveu Caio, intitulando-se “autor-pastor”, na apresentação
da obra. Antes do início de cada texto, o escritor comenta quando produziu e o motivo de não ter publicado, o conteúdo, antes.
“‘Sagrados laços’, por exemplo, de acordo com Caio, “é um texto escrito no Rio de Janeiro em 1984. Deveria ter sido incluído em
Os dragões não conhecem o paraíso, mas acabou não havendo lugar para ele.” Sobre os textos, ainda escreveu: “Remexendo, e
com alergia a pó, as dezenas de pastas em frangalhos, nunca tive tão clara certeza que criar é literalmente arrancar com esforço
bruto algo informe do Kaos. Confesso que ambos me seduzem, o Kaos e o in ou dis-forme. Afinal, como Rita Lee, sempre dediquei
um carinho todo especial pelas mais negras das ovelhas.”
30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

internet

Boca a boca online


Com uma abordagem diferente da crítica literária,
booktubers criam comunidades de leitores na web
Kaype Abreu

O
Divulgação
Youtube tem sido palco de uma ma Tatiany, defendendo o lado didáti-
nova forma de troca de experiên- co da ferramenta. “Acho que os vídeos
cias literárias. Os vlogs — espé- ajudam as pessoas mais jovens a não te-
cie de diário em vídeo — incor- rem vergonha de ler”, completa.
poraram a literatura no hall de assuntos À frente do canal Livrada, que
abordados. No Brasil, a plataforma de trata de um tipo de literatura mais
vídeos do Google abriga dezenas de ca- “adulta”, falando de autores como
nais sobre o assunto. Os booktubers — Liev Tolstói, Milan Kundera e Karl
como são chamados os vlogueiros que Ove Knausgaard, o jornalista Yuri
falam sobre livros — não negam que Al’Hanati também acredita no papel
grande parte dos consumidores desse dos booktubers como fomentadores
tipo de conteúdo são adolescentes. Esse de novos leitores. “As pessoas que leem
é justamente um diferencial. Mas há geralmente são mais solitárias. Os vlo-
também espaço para todo mundo. gs criam essa sensação de comunidade
É o que argumenta a jornalis- leitora”, defende.
ta Tatiany Leite, do Cabine Literária. Para Gisele Eberspächer, do ca-
O coletivo, composto por seis pessoas nal Vamos falar sobre livros?, essa sen-
com repertórios totalmente diferentes, sação de comunidade existe graças à
busca diversificar os temas abordados. informalidade, característica desse tipo
No canal, é possível assistir a uma en- de material para internet. “É como se
trevista com John Green (celebridade estivesse falando com um amigo sobre
entre o público young adults — a lite- o que você está lendo”, conta a jorna-
ratura para jovens adultos), ver uma lista. O fato de parecer uma conversa
discussão a respeito do valor do conto justifica a opção pelos vídeos, ao invés
para a literatura e acompanhar um ví- de se escrever em um blog, por exem-
deo sobre a obra de Clarice Lispector. plo. “É a maneira como a garotada
“Quando as pessoas veem que a consome informação”, diz Al’Hanati,
gente está falando com tanta naturali- do Livrada.
dade sobre livros que talvez não este- Eberspächer vê grande diferença
jam tanto na mídia, elas se sentem mais entre a crítica especializada e o traba-
à vontade para ir “à biblioteca ou à li- lho dos booktubers. Para ela, até mes-
O canal Livrada, do jornalista Yuri Al’ Hanati, teve sua origem no blog de mesmo nome, mas migrou para o Youtube. vraria comprar determinada obra”, afir- mo o processo de leitura de uma obra
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 31

abordada num vídeo é diferente da ma- com blogs de literatura, e passou a ser
neira como o mesmo livro é tratado no ainda mais comum com os vlogueiros.
jornal. “Quando eu leio para resenhar Algumas editoras mantêm formalmen-
em jornal, vou com mais calma, fazen- te um acordo, enviando exemplares de
do anotações. A leitura para os vídeos é seu catálogo, numa quantidade previa-
mais solta, é o meu lazer.” mente combinada — enquanto outros
selos enviam esporadicamente títulos
Para todos, sem jabá para um ou outro vlogueiro.
De acordo com a gerente de O resultado disso é que muitos
comunicação da editora Rocco, Cin- vlogs acabam dedicando seus comentá-
tia Borges, o trabalho dos booktubers rios aos lançamentos. Mas é unanimi-
é visto como uma espécie de “boca a dade, entre os entrevistados pelo Cân- Divulgação

boca” online. A própria ideia das tags, dido, que ninguém aborda uma obra
espécie de pauta proposta por um vlo- que não tenha despertado seu interesse
gueiro, que é repassada a outros — por previamente. “A gente não é forçado a
exemplo, “5 autores que marcaram sua falar sobre nenhum livro, a não ser que
infância” — reforça isso. Outra prática seja uma coisa paga”, afirma Tatiany, do
comum são os desafios anuais, em que Cabine. Al’Hanati, do Livrada, conta
os vlogueiros propõem que seu públi- que uma editora já tentou “forçá-lo” a
co leia livros que se encaixem em per- comentar um livro que ele não queria.
fis previamente estabelecidos, como ro- Mas o vídeo nunca aconteceu.
mances de formação, contos escritos no Nenhum dos entrevistados diz
século XX, etc. ter lucro financeiro a ponto de poder se
Para Cintia, os vlogs e a crítica sustentar a partir da postagem dos víde-
especializada se complementam. O pri- os. O Youtube usa o sistema de anún-
meiro alcança um público que o segun- cios Google Adsense, que paga por cli-
do ainda não consegue chegar. “Nada ques. Isso significa que, quanto maior
substitui a crítica literária, de forma al- for o número de acessos de um vídeo,
guma. [O vlog] é um complemento in- aumentam as chances de se obter cli-
formal, muito pessoal e igualmente va- ques e ganhar dinheiro.
lioso, principalmente quando falamos Criado em 2007, o primeiro ca-
do público jovem, altamente conectado nal de literatura brasileiro, o Tiny Lit-
e leitor não tão assíduo assim dos ca- tle Things, de Tatiana Feltrin, tem uma
nais mais formais de crítica literária”, média de 14 mil visualizações por vídeo.
afirma, acrescentando: “O testemunho Já o Cabine, com uma média de 10 mil
deles [dos booktubers] é caloroso, sin- visualizações, segundo uma das colabo-
cero e muito positivo”. radoras, rende valor considerável, que é
Por isso mesmo, esses vlogueiros direcionado para melhorias no trabalho
despertaram o interesse das editoras, do vlog. Gisele, do Vamos falar sobre li-
que passaram a ver neles uma opor- vros — que tem uma média de 3 mil
tunidade para potencializar as vendas. visualizações — segue na mesma linha:
Algumas das casas editoriais tem um “Não dá uma grana federal, mas dá para
sistema de parceria. A prática já existia tirar alguma coisa”.g Tatiany Leite, do Cabine Literária, canal que aposta na diversidade de temas e autores.
32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ensaio

O mundo em negativo
de Franz Kafka
Reprodução

O poeta e ensaísta João Manuel Simões


analisa como o autor tcheco se valeu
do silêncio e da solidão para criar sua
monumental obra
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 33

C
omo escrever um romance, um a apreensão plena ou a posse integral de fértil, que se ergue e alteia pateticamen- magóricos, máscaras vazias. Obra do-
grande romance, capaz de resis- um objeto, o que só os amantes ingênuos te (e ao mesmo tempo num indizível e minada irresistivelmente por uma am-
tir ao influxo corrosivo do tempo? de utopias podem pretender.) incomparável sortilégio encantatório), o biguidade semântica dialeticamente
Como concebê-lo, nas suas coor- Kafka, contudo, não se limitou edifício disforme, descomunal, do “tem- insuperável, de signos arbitrários, polis-
denadas estruturais, nos seus parâme- a fornecer uma receita: seguiu-a ao pé po e modo” kafkiano. Edifício cuja porta sêmicos (ou insignificantes?) e por isso
tros definidores? Como arquitetá-lo, no da letra. É realmente nos limites exí- poderia ostentar o dístico que o Floren- mesmo irredutível a uma só fórmula, a
tempo e no espaço, injetando-lhe san- guos da sua sala — mais ainda: é nos tino colocou no pórtico do seu Inferno: um só esquema estrutural, a uma inter-
gue, impregnando-o de nervos, infun- limites estreitos do seu cérebro — que Lasciate ogni speranza voi ch’entrate. pretação unívoca que o seu caráter mul-
dindo-lhe vida autêntica? se desenrola e equaciona a mais estra- tímodo, poliédrico, só pode exorcizar.
Para isso, “não é necessário que nha aventura existencial já vivida por Sinfonias inacabadas Obra onde Deus, ausente, é substituído
saias de casa. Fica à tua mesa e conta. um ser humano debaixo do mesmo sol Obra verdadeiramente única. pela presença obsessiva do nada trans-
Não contes, sequer — espera somente. do Eclesiastes. Por um homem que, às Repleta de páginas noturnas, crepus- cendental. Obra que, antes e acima de
Nem esperes, apenas — fica absoluta- inalienáveis contingências da condition culares, onde se sucedem murais quase tudo, faz do absurdo o seu sustentácu-
mente silencioso e só”. Eis aí uma re- humaine, tão superiormente dissecada apocalípticos, painéis grotescos, ilumi- lo, a sua força motriz, o seu leit motiv.
ceita de um judeu tcheco, quase igno- por Malraux, alia e conjuga as vicissitu- nuras desvairadas, telas que são orgas- Franz Kafka é, por excelência, o épico
rado em vida, mas que, alguns anos após des da condição artística, de um criador mos de desespero e pus, prenhe de vida, do absurdo: as suas narrativas, por vezes
a sua morte, ocorrida em 1924, viria a de vida, de um instaurador de realidade de vida transfigurada (e desfigurada), de incompletas, imperfeitas — “sinfonias
ser reconhecido universalmente (obriga- através da palavra poderosamente mi- vida que parece brotar da mente de um inacabadas” — são a odisseia do sem-
do, Max Brod), como a mais extraordi- mética. Numa simbiose maldita, duas demiurgo de torvas intenções demonía- -sentido, a ilíada da absurdidade.
nária revelação, como o mais espantoso condições igualmente trágicas: se uma cas. Obra onde os relâmpagos do gênio Mas não há nada de fácil nem de
revolucionário da arte do romance oci- não perdoa nunca, a outra jamais dei- fulguram lividamente na meia-noite gratuito nesse absurdo: ele é a resultan-
dental no primeiro quartel do século XX xa ficar impune esse “bicho da terra vil imemorial do pesadelo e onde as pala- te direta da dissolução, da fragmentação
e, mais do que isso, como um dos seus e tão pequeno”, para usar a expressão do vras, mais do que emblemas hieráticos da realidade ante o impacto avassala-
grandes e singulares arquétipos, da es- Épico. Dentro das fronteiras da sua ou insígnias ardentes de um tempo de dor do desespero ontológico (ou da so-
tatura de um Balzac ou de um Dostoié- sala (sem metáfora), no silêncio e na so- delírio e tempestade e febre, são antes lidão antropológica?) que nenhum di-
vski, de Joyce ou de Proust: Franz Kafka. lidão, germina a obra mais profunda da estigmas ácidos, causticantes, tatuados que consegue deter, que nenhuma força
Nessas palavras densas, proteicas, literatura do século passado, a que mais na epiderme sensível de uma sociedade hipnótica consegue domar. O seu ab-
que parecem murmuradas em surdina, espanta, se não pela sua monumentali- (de uma humanidade) em crise visce- surdo, em síntese, nada mais é do que
de dentes cerrados e punhos contraídos, dade, pelo menos pela sua tessitura, pela ral, a viver um processo irremediável de uma nova ordenação, uma nova estru-
encontra-se talvez, em toda a plenitude, a sua temática, pela sua dialética de abor- desintegração (ou de autodestruição?). turação da realidade no seu conjunto
explicação límpida, a chave racional para dagem de uma problemática específi- Obra onde as alegorias e as hipérboles orgânico, já que os detalhes, os perso-
a compreensão do enigmático e sibilino ca. O silêncio e a solidão agem, de fato, e as transfigurações oníricas (todo o ins- nagens integrantes permanecem inalte-
universo ficcional do autor de O proces- como grandes forças catalizadoras (e trumental do fantástico) substituem a rados, no seu realismo original.
so. (Dentro de certos limites, é eviden- catárticas). É no silêncio, pavoroso mas realidade discursiva, linear, pois tudo são A novelística kafkiana desenrola-se,
te: compreender nem sempre representa fecundo, é na solidão, aterradora mas simulacros vacilantes, espectros fantas- pois, sob o signo candente do sem-sentido,
34 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ensaio

da absurdidade onipresente, que chega a absurdo. Fazer viver o absurdo, antes de quadrar-se com tanta facilidade dentro subterrâneo, de Dostoiévski, observa-
beirar as raias da histeria. Estranhamente, mais nada, é encará-lo de frente”. Se a do esquema do grande crítico húnga- ção crítica que me parece incontestá-
porém, Kafka, misto de artesão e de pres- vida, a realidade máxima, é essencial- ro como a de Kafka. Tal esquema, com vel. Não é menos verdade, contudo, que
tidigitador, vai entretecendo a teia mágica mente absurda, então todos os absur- efeito, lhe assenta como uma luva. o universo do autor de Cartas a Mile-
do seu absurdo com fios de lógica sutil, de dos são razoáveis. Esta parece ser a pre- Situando-se no polo oposto de na constitui também o filão, a matriz,
racionalidade incólume. missa básica de Kafka, no silogismo que Zola, que tenta desvendar (e desven- o ponto de partida das obras de alguns
O mundo em equação (melhor tem por conclusão a instauração de um trar) a realidade como uma exatidão dos mais altos e significativos expoentes
dizendo: o submundo) que ele reve- mundo sem sentido aparente. minuciosa, com um ostinato rigore qua- da literatura contemporânea. De Ca-
la e patenteia é um mundo inverossí- Mas será realmente sem sentido se científico (naturalista, portanto), Ka- mus a Ionesco. De Arrabal a Jorge Luis
mil de tragédia, é um mundo em nega- o seu mundo? Preferimos supor, como fka procura antes apresentar a distorção Borges. De Beckett a Dürrenmatt. De
tivo — quando não às avessas — onde o autor de La Nausée, que há nele um total, a desfiguração plena da realida- Faulkner a Lawrence Durrel. Com efei-
se multiplicam interminavelmente os sentido oculto, misterioso, subterrâ- de objetiva, que apenas funciona como to, os traços, as marcas, as cicatrizes são
labirintos e as encruzilhadas, na qual a neo, apenas denunciado por leves si- trampolim para uma espécie de suprar- demasiado evidentes, já que muitas ve-
comunicação entre os homens não exis- nais: o sentido que lhe é outorgado pela relidade fantástica, povoada de esfinges, zes nem sempre houve a preocupação (e
te, pois os diálogos, quando se verifi- sua própria existência, pelos signos ver- de enunciado sibilino, uma suprarreali- o pudor) de escondê-las.
cam (o que raramente ocorre), parecem bais que o elaboram, pelas palavras-es- dade de tensões nucleares, de espasmos
desenvolver-se em compartimentos es- tandartes que o nomeiam, pela sinaléti- surdos, de tremores clandestinos. Mensageiro sem mensagem
tanques, como se os interlocutores fa- ca em transe que o veste. O que chega a Grito estrídulo de protesto con- Kafka é o grande intérprete de
lassem línguas “diferentes”. (Mas não beirar a própria concepção de [ Johann tra as engrenagens metálicas que tri- uma inadaptação radical do homem ao
será isso precisamente que ocorre? Aca- Christian Friedrich] Hölderlin acer- turam e violentam e desumanizam o mundo. Ou melhor, do homem à praxis
so não pertencem essas línguas a con- ca do “mistério” da poesia: “A poesia é homem, a obra de Kafka desejaria ser social circundante (e asfixiante), com os
textos ideológicos distintos?) a instauração do ser através da palavra”. antes o epitáfio solene ou o réquiem seus mecanismos convencionais (e hi-
Como considerar Kafka, em úl- (E, de certo modo, não será poesia — derradeiro para um organismo (e para pócritas), com suas articulações mecâ-
tima análise? Profeta do caos original? grande poesia — toda a obra do arqui- um sistema) irremediavelmente putre- nicas, formais, com as suas ameaças de
Apóstolo iluminado de uma decadên- teto de O castelo? Não será ele, também, fato. E constitui, nesse aspecto, um de “excomunhão” sempre latentes a todos
cia tangível? Intérprete fidedigno da cri- um grande poeta em prosa, da linhagem profundis doloroso, um “exercício espi- quantos se recusem a enquadrar-se nos
se existencial de uma época de valores de um Nietzsche, para nos situarmos ritual” mórbido (e mordaz). seus “cânones” rígidos, nos seus “pa-
espirituais em derrocada, de princípios apenas dentro da língua alemã?) Os seus personagens míticos, drões” estereotipados, nas suas “leis”, na
éticos em colapso? Ou simples sismó- Se nomear é criar, é fazer existir, simbólicos, hieróglifos esquálidos mo- sua “tradição” milenar. Estruturas sem-
grafo das convulsões abissais que sacu- poderemos afirmar que o absurdo ka- vimentando-se em alegorias transpa- pre veladas pelos inefáveis “guardiões
diam as entranhas de uma sociedade do- fkiano nada mais é do que a instaura- rentes, translúcidas (distantes do esque- do templo”, pelos impolutos arautos do
ente, num momento histórico decisivo, ção de uma realidade subjetiva através ma balzaquiano do personagem típico) statu quo, pelas múmias veneráveis do
quando começava a surda gestação de do verbo demiúrgico. escondem por vezes a própria personali- establishment muitas vezes fossilizado
hecatombes inimagináveis? dade do autor, que chega a delinear uma e arcaico.
O autor de A metamorfose é isso Distorção total autêntica autobiografia mental: a letra K Na realidade, desde muito cedo o
e muito mais: ele é a personificação do Se, como pretende Lukács, o ro- é a máscara que encobre, o disfarce que mestre de Praga teve o pressentimento
homem atormentado, dilacerado pela mance é a forma dialética do épico, a resguarda — querendo mostrar. e a consciência de um destino singular
consciência do absurdo da vida em face forma da solidão na comunidade, da es- Como assinala com lucidez Na- a cumprir, de uma estrada espinhosa a
da inexorável finitude, em face do im- perança sem futuro, da presença na au- talie Sarraute, vestal exemplar do nou- percorrer. Rudes, poderosas mãos invisí-
pério implacável das Parcas. Daí serem sência, a que melhor condensa o choque veau roman (também tributário — por veis pareciam orientar o seu rumo. Ten-
tão certeiras estas palavras de Camus, entre o homem e o mundo, entre o indi- que não? — da obra torturada do mes- tou ainda resistir: America, o sonho dis-
outro dos grandes prosélitos da proble- víduo e a sociedade, entre o ser e o existir, tre tcheco), as narrativas de Kafka mer- tante, a imagem longínqua, da mesma
mática existencial: “Viver é dar vida ao é evidente que poucas obras poderão en- gulham as suas raízes nas Memórias do forma que Betractung, a contemplação
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 35

Reprodução
ainda alienada, são as provas cristalinas
de uma tentativa — malograda — de
evasão, de escapismo, de fuga ao im-
pério da sorte inelutável. Mas em vão.
Maktub — estava escrito. A “norma-
lidade” existencial de um ser humano
mais uma vez sacrificada, em puro ho-
locausto, no altar da criação artística:
é sobre as ruínas de um espírito que
se levanta o monumento de uma obra
imperecível.
A província romanesca de Kafka
— místico das alucinadas visões dioni-
síacas, profeta de um “tempo de fezes
e traição” — é uma floresta tropical de
símbolos feéricos. Sartre define-a como
um universo de cifras intraduzíveis.
Mas não será antes, com razão maior,
um reino fantástico de signos contami-
nados pelo vírus mortal da polissemia?
Plenamente consciente da sua
missão de “mensageiro sem mensa-
gem”, Kafka, impressionista, com a sua
paleta de cores sombrias, realiza aqui-
lo que poderia talvez considerar-se
uma espécie de fenomenologia do in-
visível. Um invisível que vai da soli- Cena do filme O castelo, adaptação do clássico de Franz Kafka feita pelo cineasta Michael Haneken.
dão ao tédio, da angústia ao desespero,
mas que nem por isso deixa de ser me-
nos real que a carne e o sangue e os os-
sos que percorrem os caminhos ásperos
do quotidiano e que, afinal, são o supor-
te concreto para uma realidade abstra-
ta. Radiografia em rubro de uma época
espiritualmente esclerosada, a obra de
Kafka é também a história dolorosa,
pungente, de uma peregrinação em de-
manda do Santo Graal de uma verdade
impossível. Mais do que isso: é o docu- João Manuel Simões nasceu em Mortágua, Portugal, e
mento tangível da lenta agonia de um vive em Curitiba (PR) desde 1954. É autor de mais de 50
espírito sem o bálsamo da fé redento- livros, entre crítica, contos e ensaios. Em 2015 foi editado
ra, de um espírito despojado de toda a o primeiro dos quatro volumes que vão reunir toda sua
esperança. De uma agonia sem êxtase.g obra poética produzida entre o período de 1960 e 2010.
36 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto|Marcelo Brum-Lemos

Apocalipse “podia ter acontecido com qualquer um”


(Luiz Vilela)

A
pocalipse chegou. Ser eu Ninguém nos escuta as panelas
E eu, como se estivesse Sereu dos joelhos, sempre doendo.
morto, retrospecto: Seu Esperneio. Espermeio.
Apocalipse chegou. O bis- No fundo, Ivoviu queria mesmo
po é rapper. Acordei com as bombas De repente um anticlímax: Seria era ganhar muito dinheiro. E nada no rei-
explodindo. O Exército Dedeus saltou tão bom se isto tivesse um enredo, você no dos jacarés. Formigas criam cascas de
seus sete cavalos sobre o abismo ferven- reflete. conchas, casas novas nos lombos, ovos
te de piche e cabelo que somos. Ok. mutantes. Nós de caracóis.
A lua apagou, nova. “Ivoviu abriu os olhos sem co- Prometo respirar para o resto da
Daqui de cima me finjo o próprio nhecer quem era. Estes são meus olhos, vida! — ele declama.
Dedeus, e tudo vejo, hipermetrope: quis dizer, mas não sabia. Tateou o par Mas não adianta.
Você, os pobres mortais, gira o de orelhas ao redor da testa vazia e ten-
nariz para o alto, míope, buscando uma tou sorrir. Depois sorriu, inepto. Sou Apocalipse chegou.
coisa qualquer — e vê o quê? um comanche, pensou por um triz, para Os cavalos param por um instan-
O narrador prenuncia: Ivoviu treinar o pensamento.” te, entretidos, pisoteando o triângulo
será o nome do herói deste delírio. do enredo. Seus vesgos óculos piscam,
Apocalipse chegou. bufantes os sete pares de narinas. Ivo-
Apocalipse chegou. O quarto selo. Teu nariz mordis- viu faz a conta do quadrado dos catetos;
As quatro ou sete patas dos sete ca ar. percebe que descobriu o resultado, mas
cavalos pisoteiam nossas almas (teto Selo não quer falar.
de zinco), totalizando 48. Vá entender: ou não Não se ouve nem um pingo:
ninguém mais sabe somar. sê-lo
O céu murcha, perde o jogo, cai, Péssimo o trocadilho, você sus- Você ouviu?
sem cor, afunda. tenta. Ok. Apenas exercícios de cogni- Jovens pós-doutores finalmente
Novos doutores escrevem teses, ção. elucidam a calda do mistério. Eles não
em papel, criando outros milhares de têm sonhos, nos ensinam.
árvores menos; total = EU. E você? Você mesmo! Sentado Muito elementar.
É isso que todos dizem, no fundo no conforto desse pesadelo, aí lendo. Papai Noel caiu do polo e rolou
de suas teses perdizes: EU. Você acha que é fácil — gritou até aqui, aos trópicos. Achamo-lo na
Repare. Ivoviu — ter 87 anos de idade? As car- praia mansa de Caiobá e linchamo-lo.
Todo o mundo quer ser EU. tilagens do corpo nunca param de cres- Dedeus nos sacuda. Os cavalos se
Eu quero ser eu. cer! aprochegam ainda mais, inflamando o
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já antes incandescente asfalto velho de deste brinkedo. Os pulmões também de barro.


verão. Seus azedos vapores bafejam. É Um de nós exibe a tatuagem que E bruxas; tinha esquecido as
o fim, esclareço, sorrindo num sussur- revela: somos poros e cotovelos. bruxas.
ro. Ivoviu também sorri, ainda, pra mim, Cada pata dos cavalos soma
sem discernir quem é real, quem ficção. nove joelhos, complicando ainda mais Tento voar.
Sete vezes quatro, vinte e seis, a equestre equação. Valor de xis, valor Puf !:
calculamos os dois juntos. Ou três. de ípsilon. Raiz.
Escutamos os cascalhos caval-
gando, onda que ruge mil pestes de es- Corram todos às janelas! Nada E voltamos para dentro do fo-
pelhos. aconteceu! lhetim:
Me rebelo: Apago a luz da sala Apocalipse mata a pau! Quem “Foi ao abrir o livro que a pon-
por uma hora no dia combinado pelo viveu verá! tada atacou. Disforme, logo na primei-
resto do mundo e perco um capítulo Oceanos guerreiam! Sombras ra linha. Não saberia quando ocorreu,
importante da novela. despencam do espaço! O dente do siso nem como, nem quanto. Depois um
dói; mortos ressuscitam, mas só os cães soco, um coice. Tum tum tum. Ivoviu
Apocalipse chegou. vadios. moveu o dedo, mas só até meio cami-
As sete cabeças de cada um dos nho, sem poder explicar se o não quis
sete cavalos meneiam, bufantes — no- Então o clímax: O narrador sai mover mais ou não o conseguia. O fato
venta olhos de permeio — um caolho. daqui e te sacode com energia, exigindo é que o gesto estacou ali, sozinho.”
Ouvimos o estalar das mandíbulas. São a parte que lhe cabe no resgate.
muitos dentes, considero. Quem sou Deste lado, Ivoviu agora sim quase Apocalipse!
eu? Ivoviu mais se concentra, não pode se assusta: Talvez seja mesmo hora de acio- Os personagens fogem do papel,
se perder agora. Imagina-se uma selfie e nar um advogado — cantarola sem voz. assustados. As palavras esvoaçam des-
se reencontra. Apocalipse dá trabalho. governadas, noivas disléxicas. O narra-
Repete: dor tentou suicídio, não adiantou, nin-
Sete vezes sete, vezes quarenta Fazia frio. Ouvíamos o som de guém morre no Apocalipse.
e oito, vezes trinta e dois, me perco de pés de barro batendo no chão. Quatro vezes sete, vezes doze vá-
novo. Eu devia ter estudado melhor o Tum tum tum. rias vezes, trinta e dois menos seis de
número de dentes de um cavalo na es- Quis tampar os ouvidos com a novo nove, desespero. Ivoviu sou eu?
cola! palma das mãos, mas ventava. Braços É você? Marcelo Brum-Lemos é autor do recém-lançado
Já não sei quem gritava, se Ivoviu bambus espalhando o deserto oco do Podia ter acontecido com qual- livro Galhos de árvore movendo os dedos. Vive
ou Eu. Ou Você, que é o terceiro herói universo. Espantalhos. quer um. g em Curitiba (PR).
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Ensaio | Tita Blister

CLIQUES EM CURITIBA
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Tita Blister é artista fotográfica e realizou


diversas exposições em espaços culturais. Faz
parte da equipe de Pesquisa e Documentação
do Museu Alfredo Andersen. As imagens
acima são fragmentos da série intitulada
“CwbCrazyCity”, que tem como inspiração o
feio, o sujo e o caótico (beirando o bizarro).
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Poemas | Celeste Ribeiro de Sousa Ilustração: Marluce Reque

Rosas Panteísta No parque


Floriram por engano Jardineira Saí para o parque de
As rosas bravas Quero ser Óculos high tech
No inverno veio o Sou diante da Senti em detalhe
Vento desfolhá-las Gardênia Clichês inventados
O paraíso assim Pétalas brancas em Topoi encantados
Se fecha Rosácea Saguis em flor
Não dá pra ser Entro pela Bananas em cacho a
Distraído num Porta em Fazer amor
Universo de que se Olho Formigas uivando por
Desconhecem as leis Solene Causa da dor
Só a do Amor parece Deslizo pela Sentada no banco
Partículas congregar em Nave Serena quedei
Novos corpos Raiada de
Fundi-las refundi-las Sol diante do Gorjeios edênicos no
Adaptação sobre adaptação Altar me Meio da cidade
Reajuste constante ao Dobro em Borboletas pulando
Destino insondável onde Prece ao Em musculação
Rosas só na mão do Universo que me Ratos do banhado
Jardineiro Escuta por entre as Minhocas gigantes na
Perfume exalam Flores Terra afofada
Rumores de outros Agulhas de sol
Mundos em Espetando as folhas
Comunicação Brisa refrescante a
Eu Limpar a pele
Elemento de Sentada no banco
Conexão. Serena fiquei

Voltei para casa


Retirei os óculos
Tive uma tontura
Era já meidia
Dois artigos bons
Esperando parecer
Que linguageméesta
Que tenho que ler

Celeste Ribeiro de Sousa nasceu em Portugal, em


1948. Formou-se na Universidade de São Paulo (USP),
onde trabalha como professora de Língua e Literatura
Alemã. Vive em São Paulo (SP).

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