Sei sulla pagina 1di 24

Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

Imagens e sons como forma de luta,


ensaio de Georges Didi-Huberman
17/10/2018

No aniversário de um ano da conferência que o filósofo francês


realizou no Sesc Pinheiros por ocasião da abertura da exposição
Levantes (2017), é disponibilizada a tradução integral e inédita do
texto que serviu de base para a fala do curador da mostra

Em 18 de outubro de 2017, o Sesc Pinheiros inaugurou Levantes, uma


exposição transdisciplinar sobre as diferentes formas de representação
de atos populares e políticos, engajados nas transformações sociais, nas
revoltas e revoluções. A mostra, que esteve aberta ao público da unidade
até 28 de janeiro de 2018, foi realizada pelo Sesc São Paulo em parceira
com o Jeu de Paume e apoio da Embaixada da França no Brasil e do
Institut Français.

Levantes, cujo catálogo foi publicado pelas Edições Sesc, contou com a
curadoria do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman
(1953), um dos grandes intelectuais franceses de sua geração, autor de
dezenas de livros. Suas reflexões abrangem desde a filosofia da imagem
à história da arte, passando pelo cinema e pela literatura.

Abaixo é disponibilizado, de forma inédita em língua portuguesa, o texto


completo do ensaio Images et sons à bout de bras [Imagens e sons
como forma de luta], redigido pelo pensador francês e que serviu de
base para sua fala na conferência que ocorreu em 17 de outubro de 2017.
Não se trata da transcrição do que foi dito por Didi-Huberman, com suas
sínteses e digressões, naquela terça-feira à noite, mas da tradução para
o português do texto integral que ele redigiu para a oportunidade.

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 1 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

Didi-Huberman na conferência dada em 17 de outubro de 2017, no Sesc


Pinheiros | Foto: Alexandre Nunis

Imagens e sons como forma de luta (texto integral)


Ensaio por Georges Didi-Huberman
Tradução de Edgard de Assis Caravalho e Mariza Perassi Bosco

É difícil revivificar os próprios sonhos, construir a partir do heterogêneo,


desenvolver a arte de reinventar de outro modo a própria vida, até então
mutilada. É por isso que engendramos levantes sem-fim. Sem-fim
porque com muita frequência tudo se repete, tudo fracassa; tudo
fracassa nas praias do conformismo ou contra as falésias dos serviços
de ordem. O recomeçar, porém, também é sem-fim. Sem-fim: sem que
jamais o objetivo final — o apaziguamento de tudo, a reconciliação

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 2 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

obtida, o desejo finalmente satisfeito — seja alcançado. Mas também


sem jamais deixar de reacender o desejo e, com ele, a coragem de
desobedecer, a pulsão de inventar, a força de fazer diferente, a energia
de não mais se assujeitar. Por essa inesgotável multiplicidade
demonstrada pela história das sociedades humanas, os levantes,
tomados em conjunto, formariam a grande arte política do não finito. Isso
para explicar simultaneamente sua fragilidade constitutiva — ou
constitucional: fragilidade de se indefinir em relação ao poder — e sua
potência propriamente infinita. Potência de vulcões, de vagas gigantes,
de poeiras em movimento, ou de furacões.

Já que na história nada jamais terminou, engendrar um levante talvez


fosse simplesmente recuperar a capacidade de saber recomeçar.
Recomeçar a qualquer preço, recomeçar senza fine, infinitamente. Seria
a faculdade de se tornar um sujeito que renasce, que se põe em
movimento, que começa a inventar gestualidades e formas de vida pelas
quais não se sentirá mais assujeitado. Repito, ao mesmo tempo, que não
se deixa jamais de começar, de recomeçar, de continuar a se debater ou
a se bater. "Eu vou continuar", não foi assim que Samuel Beckett concluiu
seu debate íntimo no livro O Inominável, logo após ter declarado sua
própria tentativa de voltar a partir com a expressão "É preciso continuar,
será que eu posso continuar"? Não é evidente que isso também queria
dizer: "Lá onde tudo me diz não, vou continuar, apesar de tudo, a
arriscar, a tentar, a desejar, a falar, a afirmar, a inventar, a dizer não ao
não"? Suportamos muitas coisas e depois, um dia, dizemos a nós
mesmos que aquilo não pode mais continuar. Por muito tempo,
mantivemos os braços abaixados. Entretanto, mais uma vez — como
havia sido possível fazer em certa ocasião, como outros com frequência
fizeram antes de nós — erguemos os braços acima dos ombros, ainda
atordoados pela alienação, curvados sob o peso da dor, da injustiça, do
abatimento que até então nos dominava. Nesse momento nos
reerguemos: projetamos nossos braços para o alto e para frente.
Erguemos a cabeça. Reencontramos a potência liberadora de olhar em
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 3 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

frente. Nós abrimos, nós reabrimos a boca. Nós gritamos, nós cantamos
nosso desejo. Discutimos com nossos amigos como fazer isso,
refletimos, imaginamos, avançamos, agimos, inventamos. Passamos a
ser protagonistas de um levante.

Todos os braços se erguem. Como os dos marinheiros do Encouraçado


Potemkin, que, em um primeiro gesto de desobediência, arrancaram de
cima de suas cabeças o pano branco que os recobria com uma ameaça
mortal. Como os dos náufragos cheios de esperança que pedem socorro
no quadro A Balsa da Medusa, de Théodore Géricault. Como os da
senhora Liberdade, no célebre quadro de Eugène Delacroix, que agita
sua bandeira no posto avançado dos revolucionários franceses de 1830.
Como os dos meninos de Zero de conduta, filme de Jean Vigo, que de
cima do telhado de sua escola atiram tudo ao alcance de suas mãos. Ou
como os do lumpenproletariado de Goya, ainda à procura de uma forma
de expressar seu desespero e sua cólera. Em uma tela, que hoje se
encontra no Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires, Goya
representou uma cena de massacre análoga à dos Desastres da Guerra.
O que se vê é uma carnificina de uma violência inconcebível: o poder o
das armas é mostrado em sua capacidade de aniquilar qualquer potência
(em particular a de uma mulher, à esquerda do quadro, de braços
abertos, e que imaginamos, isso porque seu rosto se reduz a uma
mancha marrom, grita a plenos pulmões).

Mais acima, sozinho sobre a colina, um ser humano — esboçado, sem


dúvida alguma, para que nele não se reconheça nada mais do que um ser
humano comum — ergue os braços. Trata-se simultaneamente de um
gesto de total desespero diante da atrocidade da cena que se
desenvolve no seu entorno, gesto de pedido de socorro dirigido aos
eventuais salvadores externos e, sobretudo, gesto de imprecação
trágica, que ultrapassa — ou permeia — qualquer invocação à vingança.
Assim como no célebre fuzilado do quadro Três de Maio, que também
ergue vigorosamente os braços, é menos a significação psicológica

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 4 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

isolada do personagem que se trata de identificar do que a direção de


sentido dada pelo pintor no quadro como o um todo: de qualquer modo,
em cenas como essas é efetivamente a potência da população anônima
que protesta e se subleva diante do poder das forças armadas que
vieram para subjugá-la ou massacrá-la. Tudo isso será encontrado, sem
surpresa alguma, na Guernica, no qual Picasso projeta fortemente os
braços dos personagens, com seus olhos, com suas bocas em um
mesmo elã, e que feridos ou aniquilados os corpos continuarão a clamar
contra com uma energia poderosa, na constante dialética entre as
formas patéticas da morte infringida e os signos vetoriais, dinâmicos, da
vida permanentemente sublevada.

O non finito da história reside exatamente nisso: abatimentos e


sobressaltos, refluxo com retorno dos fluxos, limites rígidos subitamente
ultrapassados, perdas seguidas de levantes, e isso sem trégua. No meio
de tudo — simultaneamente como embarcações à mercê das vagas e até
mesmo como intermediários da política, pela qual um refluxo poderá dar
lugar a um retorno do fluxo — estão os corpos com suas gestualidades,
suas imaginações, suas linguagens, suas ressubjetivações, suas ações
no espaço público. Razão pela qual a política se vê sempre "encenada"
em sua perpétua vocação de aparecer, como afirmou Hannah Arendt em
sua coletânea de textos intitulada "O que é a política?", e segundo uma
problemática comentada posteriormente por Étienne Tassin. Essa
encenação vai bem mais além — ou melhor, fica bem aquém pelo fato de
ser intimamente cotidiana, disseminada, polimorfa, em múltiplas escalas
— das alegorizações políticas familiares, tais como a "assembleia do
Povo", ou a imagem do "corpo da Liberdade" tão frequentemente
representadas no século XIX, principalmente de David a Delacroix. O
"corpo da Liberdade" não passa de uma representação que também é
gesto, presença, ou "apresentação" até em seus momentos de
aparecimento público, que em francês se denomina perfeitamente
manifestações (termo que, fenomenologicamente falando, parecerá bem
mal traduzido em inglês pela palavra extremamente argumentativa
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 5 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

demonstração).

Isso porque na palavra manifestar incluem-se primeiro as mãos, depois


os próprios braços e o corpo inteiro. Em latim, o manufestus é o indivíduo
que é "preso no ato", ou, explicando melhor: é "pego em flagrante" ou
"com a mão na cumbuca". Como uma contravenção visível à regra social,
a palavra manifestatio designa tudo o que se descobre, tudo o que se
expõe — de acordo com o duplo sentido do termo aparecer e de correr o
risco, e até mesmo do crime de lesa-majestade — de modo visível,
"manifesto", ou transgressivo, como um desafio à ordem em vigor.
Manifestar seria, então, ter desejado clamar seu desejo e, nesse
momento, desobedecer por meio de ações, ou até mesmo de gestos
premeditados. É impressionante que na genealogia social das
manifestações políticas na Europa, os funerais, procissões e festas
típicas tenham constituído uma matriz antropológica para os
agrupamentos ou cortejos reivindicativos, como demonstrou Vincent
Robert em seu livro Os Caminhos da Manifestação. Manifestar seria,
então, "reencontrar o desejo": transformar a perda em levante, a
imobilidade do abatimento em fluxo de rio, a paralisia do medo em
progressão absoluta, em gesto de emancipação. Entre muitos outros
exemplos possíveis, é o que demonstra o caso dos funerais de Jean
Jaurès, descritos, em 1938, por Paul Nizan em seu romance A
Conspiração:

"O bulevar ficou repleto de gente: eram os operários dos subúrbios, a


massa densa vinda de bairros do Leste e do Norte da cidade; eles
ocuparam a rua ponta a ponta, o rio finalmente começava a correr. […]
Não se podia pensar senão em potências compactas, em seiva, em um
rio, no fluxo do sangue. De súbito, o bulevar bem mereceu seu nome de
artéria. […] Os homens imóveis não resistiram mais aos homens em
movimento, os espectadores ao espetáculo, os taciturnos aos cantores,
eles desceram para conhecer o movimento do rio; Laforgue, Rosenthal e
Bloyé […] também se juntaram e começaram a cantar."

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 6 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

É claro que em uma manifestação nada jamais é resolvido com


antecedência: tudo permanece em suspenso diante das aleatoriedades
do acontecimento, pelo não finito da história e das relações das forças
presentes. Trata-se, portanto, de um drama que sempre se encena
quase "classicamente", com suas unidades de tempo e de lugar nas
quais a rua ou a praça assumem a função de palco principal (A Rua como
Palco, de Mathias Reiss, é o título de uma coletânea de estudos sobre
essa questão). No caso da França, historiadores como Charles Tilly e
Danielle Tartakowsky demonstraram a evolução dos "repertórios da ação
coletiva", desde as insurreições de subsistência ou "confisco de grãos"
do Antigo Regime até os movimentos de greve, reuniões eleitorais e
outras manifestações de rua da contemporaneidade. Na verdade, as
pessoas se manifestam de acordo com os diferentes modos possíveis de
expressão pública e as diferentes estruturas da organização política: o
paradigma revolucionário de 1789 — é preciso tomar as bastilhas — ou a
constituição do movimento operário, por exemplo.

Como aconteceu antes dele, com Michelet ou Victor Hugo, a descrição


de Paul Nizan é ao mesmo tempo alegórica (a "seiva revolucionária" que
se eleva com a aglutinação da multidão em marcha, reunida pelo canto
da Internacional) e morfológica: na verdade, naquele exato momento, o
bulevar "bem mereceu seu nome de artéria", isso porque o povo
finalmente circulava por ele em um mesmo movimento fluido,
simultaneamente compacto e potente. Nesse caso, mais uma vez, trata-
se de uma questão de morfologia dinâmica, o que demonstram
sobejamente os estudos históricos ou sociológicos sobre o fenômeno
das manifestações políticas, desde os trabalhos de Pierre Favre até os de
Olivier Fillieule ou, no caso das insurreições urbanas, de Alain Bertho. A
manifestação revela, então, toda a complexidade de seus aspectos, seus
processos, suas dialéticas: principalmente entre seu contexto e sua
explosão, quando o ato de se manifestar depende de um direito
democrático inscrito na Constituição, e de um ato de dissenção radical,
de luta imprevista que as forças policiais tentarão não apenas reprimir,
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 7 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

como ainda prevenir e deslegitimar por todos os meios possíveis.

Esses jogos de forças manifestam-se por si mesmos; aparecem


diretamente nas ruas, nas praças e, por isso, não poderiam ser
compreendidos sem uma observação — ou seja, uma antropologia —
táctil, sonora, visual do espaço sensível como um todo. Processos
agônicos de um lado — quando aparecer é entrar em contato, ou seja,
combater — processos de participações efusivas ou de fraternizações
do outro; espaços de solicitação com espaços de recusa; vontade de ser
compreendido com o sentimento de não sê-lo; "serviços de ordem" com
o objetivo de "manutenção da ordem" que visam não apenas a repressão
dos "transbordamentos", mas ainda o sufocamento do próprio
fenômeno, segundo protocolos que nada mais são do que atentados às
liberdades públicas fundamentais. Torna-se evidente, então, que a
manifestação ocupa o espaço sensível, visível principalmente a partir de
uma resistência da representatividade política em vigor: ela revela uma
expressão política — qualificá-la de "direta" talvez não seja exato uma
vez que ela é sempre intermediada por suas escolhas de percurso, de
palavras de ordem, de iconografia, de comportamentos mais ou menos
obrigatórios — que contesta fundamentalmente as aquisições
preliminares da representação política, seja ela parlamentar ou mesmo
sindical.

Razão pela qual os manifestantes inventam para si próprios


gestualidades, canções, ou imagens originais: artes de fazer que os
caracterizam muito bem. Os braços se erguem, mas não apenas para
votar, como se faz em uma assembleia parlamentar clássica. As bocas se
abrem e as línguas se liberam, mas não apenas para emitir uma opinião
política stricto sensu. Eles caminham, dançam, correm, gesticulam e
atiram todo tipo de coisas. Eles se reagrupam, se dispersam. Cantam e
provocam. Abre-se espaço para o retorno de uma dimensão
carnavalesca — ou seja, de uma festividade que reivindica o direito de
virar o mundo social de cabeça para baixo — como demonstraram Kuba

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 8 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

Majmurek, Kuba Mikurda e Janek Sowa no contexto do Solidariedade, ou


mesmo Rocío Martínez no do Chiapas, no México. Não era, portanto,
sem razões antropológicas e políticas que Pierre Clastres falava do
exercício da autonomia e da construção de liberdades sociais dos
indígenas da América do Sul, os Guaiakis ou os Guaranis, por meio da
"Fala Sagrada" dos mitos — narrativas simultaneamente de memórias e
de desejos — na medida em que são cantadas por toda a Sociedade
contra o Estado:

"Os homens se preparam para cantar e nessa noite […] sua meditação
forja o acordo sutil de uma alma e de um instante sobre as palavras que
irão dizê-lo. Uma voz logo se eleva, de início quase imperceptível, de tão
interior que ela é, murmúrio prudente que ainda nada articula antes de se
dedicar à busca paciente de um tom e de um discurso exatos. Pouco a
pouco, porém, ela se intensifica, doravante o cantor está seguro de si e,
subitamente, glorioso, livre e contraído, seu canto brota. Estimulada, uma
segunda voz se junta à primeira, depois outra; elas proferem palavras
rápidas, como respostas a questões que elas sempre previram. Agora os
homens cantam todos juntos. Permanecem imóveis, o olhar um pouco
mais perdido; eles cantam todos juntos, mas cada um canta seu próprio
canto. Eles são donos da noite e cada um pretende ser dono de si."

É extraordinário constatar como os povos mais oprimidos sabem se forjar


uma potência poética que por si só significa um levante em certas
situações — coloniais, por exemplo — nas quais o poder político está
fora de alcance e, com frequência, não é nem mesmo desejado. No
exemplo descrito por Pierre Clastres, as mulheres também tomam a
palavra e seu canto manifesta, então, como por tradição, um patos
particular: "o canto das mulheres jamais é […] alegre. Os temas de suas
canções são sempre a morte, a doença, a violência dos Brancos e, na
tristeza de seu canto, as mulheres assumem toda a dor e toda a angustia
do povo Aché." Mesmo entre os Guayaki, insiste Pierre Clastres, "o
homem é um animal político": mas retorna ao canto para expressar a

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 9 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

alternativa de um outro desejo político, o de "não ser mais o que se é"


quando se é oprimido. Em 1903, em sua obra fundamental As almas do
povo negro, William Du Bois consagrou um capítulo inteiro aos cantos de
dor. Bem mais tarde, Jerry Silverman conseguiu, sob o título A Chama
Imortal recolher um conjunto de cento e dez canções — em dezesseis
línguas diferentes — inventadas em meio aos tormentos do Holocausto.

Desse modo, cantam sem-fim — como uma outra resposta invocatória e


reconvocatória ao não finito da história — os povos oprimidos. Lutos,
cóleras e desejos mesclados. É a música dos párias, dos sem-nome, dos
revoltados, dos exilados, dos proletários. Temos a música armênia, os
rebetiko das populações gregas atiradas ao mar pelos turcos. Há os
mineras (cantos das minas), ou os carceleras (cantos das prisões), o
canto jondo cigano-andaluz, do qual José Luis Ortiz Nuevo e Alfredo
Grimaldos mostraram o conteúdo essencial social e subversivo. Temos
os tangos políticos do submundo de Buenos Aires, recentemente
coletados por Javier Campo e Ofelia Flores. Existem, sem dúvida, todos
os cantos da luta política na Europa, desde a Revolução Francesa, até
seu elemento anarquista, cuja história Larry Portis retraçou. Existem
cantos políticos que foram inventados e ressoam por toda parte no
mundo, desde a Catalunha até a Cabília, na Argélia, ou do México até a
Itália, dos quais um colóquio realizado recentemente tentou esboçar uma
cartografia geral com o título Cantar a Luta.

Dizem com razão que esses cantos — essas práticas musicais em geral
— são "populares". Nessa expressão, ainda é preciso não reconduzir as
hierarquias acadêmicas nas quais erudito e popular se ignorariam
reciprocamente. As lamentáveis polêmicas que opuseram Arnold
Schönberg e Bertolt Brecht, desde seu exilio político em Los Angeles,
polêmicas entre música de vanguarda e música do povo, certamente não
podem mais ser levadas em conta a partir de suas opiniões isoladas e
hostis. Archie Shepp, citado por Philippe Charles e Jean-Louis Comolli
em sua obra Jazz livre, poder negro, afirmava que "não é possível ver

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 10 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

três crianças e uma igreja explodirem sem que alguma coisa permaneça
em sua própria experiência cultural. A vanguarda é [exatamente] isso".
Considerada de uma perspectiva na qual a memória da música Hobo
[música boêmia] — com a figura marcante do cantor lumpemproletário
Joe Hill que, nas primeira décadas do século XX, foi cognominado
"trovador da revolta" em razão de suas palavras de ordem
simultaneamente poéticas e políticas — bem como a grande tradição do
blues caminhavam lado a lado, com um espírito de experimentação sobre
as formas musicais que ia de encontro aos desejos políticos
emancipadores dos negros americanos nos anos 1950 e 1960.

O fato de o jazz ter sido literalmente "mal compreendido" por Theodor


Adorno — mas estávamos em 1937 — nada exime do caráter
surpreendente do primeiro, nem tampouco das exigências filosóficas do
segundo. Na opinião dos nazistas, a música de Arnold Schönberg ou de
Alban Berg não era menos degenerada do que a das orquestras de jazz.
E as "utopias sonoras" da música erudita contemporânea, como foram
denominadas por Laurent Feneyrou, não provocaram menos levantes —
até mesmo em suas questões políticas, por vezes manifestas, como
aconteceu com o compositor Luigi Nono — com os clamores magistrais
de John Coltrane, Albert Ayler ou Ornette Coleman. É surpreendente que
em seu primeiro grande livro de filosofia política, O Espírito da utopia,
escrito entre 1915 e 1917, Ernst Bloch quis separar a questão das formas
da questão estética: uma oportunidade para chegar a uma verdadeira
"filosofia da música" que constituiu a parte central dessa obra de um
marxismo bastante ortodoxo. Isso porque na opinião de Ernst Bloch, toda
forma — sonora, visual ou literária — é capaz de surgir no espaço público
"como um dom visionário transformado". Desse modo a forma se revela
um "signo anunciador", e até mesmo o segredo de nós mesmos
(exatamente porque ela sempre volta a representar) o tempo e o lugar
rememorado. Essa seria a significação essencialmente anunciadora,
"apocalíptica" e utópica, da forma estética entendida como desejo do
outro — outro tempo, outro lugar, outro regime semiótico, outro mundo
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 11 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

político — no levante de nós mesmos.

Nós mesmos: ou seja, nossos corpos em movimento. Todo corpo em


movimento também poderia ser considerado como um "corpo da
Liberdade" — e relembremos que Delacroix retomou a dinâmica dessas
antigas figuras de ninfas que denominamos "Vitórias" em marcha. Todo
corpo manifestante não seria como a proa de um pesado navio que
avança atrás dela? Essa proa, por sua vez, possui suas próprias proas:
uma frente que "faz frente" e olhos que "ardem de desejo", por exemplo.
Mas também a boca que , em geral, é "o começo, ou, se quisermos, a
proa dos animais", como escreveu Georges Bataille na revista
Documents: "Nas grandes ocasiões, a vida humana ainda se concentra
bestialmente na boca, a cólera faz ranger os dentes, o terror e o
sofrimento atroz fazem da boca o órgão de gritos lancinantes" — coisas
às quais se oporiam, por exemplo, a expressão de um funcionário de
banco com "o caráter de constipação rígida [de sua] atitude estritamente
humana, o aspecto magistral da face boca cerrada, bela como um cofre-
forte." A boca se escancara para clamar, para reclamar, para transgredir,
seja por um processo de "regressão", comentado por Pierre Fédida, a
partir de Bataille, em seu livro Por onde começa o corpo humano.

Os "corpos da Liberdade" avançam, bocas na frente. Bocas abertas


entoando seus cantos de convocação ou sua reclamação fundamental.
Ao mesmo tempo, vamos repetir, os braços se erguem: é como se, ao se
exporem, os corpos manifestantes se abrissem para o mundo e
quisessem abrir o próprio mundo com o gesto de empunhar os braços,
de seus braços erguidos à frente. Não existe, porém, nada de humano —
menos ainda de político — que não seja aparelhado, meditatizado. O fato
de os corpos manifestantes se manterem perpetuamente entre
expressão e representação, na análise de Emmanuel Soutrenon ou
Dominique Memmi, isso não impede que imagens, ou todo tipo de
objetos, tenham a função de intermediar a reivindicação em causa,
agitadas pela força dos braços com o intuito de desempenhar seu papel

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 12 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

no espaço sensível dos levantes. É preciso, então, se perguntar: o que


empunham os braços dos sujeitos em levante. O que braços como esses
agitam, sublevam ou projetam no ar?

Primeiramente, suas próprias mãos, ou seus punhos. Lembramos que no


Encouraçado Potemkin, de Eisenstein, os punhos dos moradores de
Odessa, revoltados com a morte injusta do marinheiro, se crisparam de
cólera — cada um por si — antes de se erguerem unanimemente em
sinal de revolta que, na ocasião, era muito mais do que uma simples
expressão afetiva: punhos erguidos todos juntos que, a partir de então,
se tornaram o emblema gestual por excelência da reivindicação
comunista. Já em A Greve, os braços se ergueram com as mãos abertas
para o céu, clamando, por assim dizer, seu desejo de emancipação. Um
pouco mais tarde, Jean Jaurès iria arengar as multidões do Pré-Saint-
Gervais com o punho do braço direito cerrado — marca da intensidade
—, e o do esquerdo firmemente agarrado à bandeira vermelha hasteada
acima dele. Tratava-se de uma versão antimilitarista — o próprio tema
desenvolvido em seu discurso — de A Liberdade guiando o povo, na qual
a bandeira era agitada à direita e o fuzil com baioneta à esquerda, versão
encontrada também na imagem de Gustave Courbet impressa na revista
A salvação pública na época da Revolução de 1848.

Uma célebre fotografia de Willy Ronis, feita em 1938 na sessão de


estofamento das fábricas Citroën, de Javel, em Paris, mostra uma mulher
que arenga seus camaradas. À frente de sua boca está seu braço
erguido. Na extremidade do braço um indicador apontado em direção a
um ponto qualquer do espaço exterior. Ela segura uma pequena folha de
papel. Ela incita os trabalhadores a reivindicarem seus legítimos direitos.
E, naquele mesmo dia, a fazer greve. Ela informa igualmente, como o
próprio Willy Ronis testemunhou, as ações tomadas pela CGTU, da qual
ela era militante, para reiterar a "solidariedade com os cidadãos da
Espanha". Seu nome era Rose Zehner. Assim que a greve terminou, ela
foi afastada da empresa e só obteve reconhecimento público bem mais

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 13 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

tarde, quando a fotografia — que era muito subexposta para encontrar


lugar na revista comunista Regards, para a qual era destinada — foi
finalmente publicada em 1980. Uma maneira de constatar que, em todo
caso, o braço erguido acompanha a palavra do levante: ele a prolonga e
difunde em direção ao outro, quando se trata, como nesse caso, de
reunir um grupo por uma causa política. Além disso, o braço erguido
concentra diversas operações: ele abre o espaço à frente para um outro
lugar, e, consequentemente colabora para ressubjetivar qualquer um que
tenha razões para "reivindicar" em um grupo que, coletivamente, irá
"fazer reivindicações no espaço público".

Nesse sentido, o gesto de Rose Zehner — e das passionárias em geral,


desde a veemência das mães trágicas, estudadas por Nicole Loraux, até
as célebres arengas de Dolores Ibarruri, em Madrid, de Federica
Montseny, em Barcelona, e em outros lugares também — encontra seu
prolongamento contemporâneo no gesto simples, mas
extraordinariamente potente, inventado, ou reinventado, pelas feministas,
no início dos anos 1970. Como bem lembrou Laura Corradi, esse gesto
"faz parte da linguagem de sinais utilizada pelos deficientes auditivos, os
surdos e pessoas com deficiências da fala: ao abrir o indicador e o
polegar de cada uma das mãos formamos a letra L, quando as
extremidades dos dois polegares e dos dois indicadores se juntam
forma-se um triangulo, signo da vagina, utilizado em nosso país [a Itália]
no decorrer das manifestações feministas dos anos 1970. Trata-se,
porém, de um signo usado na mais alta Antiguidade" e que remonta, pelo
menos, à civilização suméria. Nesse caso, ele foi reapropriado como
desdobramento feminino do V da vitória, como signo de rebelião, como
imagem do sexo feminino assumido através de uma ressubjetivação
política e pública.

Ilaria Bussoni o denominou, com razão, um "gesto de autorrealização". As


mulheres efetivamente se reuniam para expor do alto de seus braços
erguidos, à frente de si próprias, a imagem gestual do que constituía,

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 14 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

simultaneamente, a parte mais íntima de sua anatomia — lugar do prazer,


mas também do sofrimento comum de se ver coisificada ou controlada
pela predação machista — e o elemento reivindicado de sua liberdade
sexual ou de sua decisão quanto ao gênero. Tratava-se, acima de tudo,
de uma ressubjetivação auxiliar, um "novo sexo" inventado, ainda nas
palavras de Ilaria Bussoni, que subitamente, surgia no espaço público
entre as mãos dessas mulheres. Gesto de sexo: que belo paradoxo! Esse
não foi um gesto sublimado, "pleno" e "seguro de si", de tomadas de
partido, de braços simplesmente erguidos na vertical, de punhos
cerrados, ou, como se vê algumas vezes, de mãos imitando um revólver
apontado para o inimigo. Foi um gesto de desejo que indicava uma
relação de si com o outro, que designava o espaço interior de cada um,
que podia estar aberto para o mundo comum, ou podia desenquadrar, ou
enquadrar à sua maneira. Ele enfrenta (por que está erguido em frente)
e, ao mesmo tempo, deixa passar (pois esboça uma abertura). Ele
assinala, com isso, a afirmação de uma fissura — ou de uma nova
dialética — em nossas habituais linhas de divisão no que diz respeito às
relações entre o mundo subjetivo e o mundo público, o desejo e a
política.

Talvez não fosse por um mero acaso que, inventado nos anos 1970, esse
gesto evocasse igualmente a forma em losango escolhida por Jacques
Lacan para indicar a relação de "punção" no que ele denominava o
"fantasma fundamental", que liga e desliga um sujeito ao objeto que ele
deseja. Como dizia ele, em seu seminário de 1959 sobre O Desejo e sua
interpretação, essa relação "assegura ao suporte do desejo sua estrutura
minimal". Essa "estrutura minimal" já é complexa e, para completar,
dialética: ela "se complexifica pelo fato de ser em uma relação mediadora
com o fantasma que o sujeito se constitui como desejo". Por isso, ela é o
que faz com que "o sujeito se entregue à medida em que se enfraquece"
em sua relação com o objeto no mundo real. Aqui, essa seria, então, uma
maneira complementar de compreender o gesto feminino: uma forma
dada, reafirmada, dirigida, mas também uma "forma da ruptura" —
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 15 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

intrínseca ao desejo —, que Lacan desenvolvia na época, reiterando que


essa relação nos faz compreender, fundamentalmente, que "todo sujeito
não é um". O que, a seu modo, as feministas clamavam em público.
"Gesto-punção" por isso mesmo: um gesto que simultaneamente corta e
junta, separa e reúne. Gesto do compartilhamento por excelência, no
sentido dialético que essa palavra poderá assumir na ordem do desejo,
bem como na da política, em algum lugar entre uma imagem de revolta e
uma imagem de esperança. Coisas que obras decisivas de artistas como
Ana Mendieta, Valie Export, Cindy Sherman ou Helena Almeida desvelam
no que se denomina "cultura visual feminista".

Que gestos são esses que se expressam por intermédio de nossos


braços erguidos? O corpo que espera ainda tem as mãos vazias. O corpo
que resiste procura outra mão para segurar a sua e ampliar sua ação.
Quando precisa se render e se sente condenado, ele ainda lança as
palmas da mão em direção ao mundo — ou rumo aos tempos futuros —
em um gesto de desafio desesperado. O corpo sublevado se posiciona à
frente de modo mais aparente e alegre. Mas quais são suas estratégias,
seus aparelhos de protensão, de progressão? A resposta é de uma
inventividade sem-fim, um grande não finito de escritos, de imagens e de
objetos. No conflito, previsto nas manifestações violentas, usam-se
sobretudo a funda, o coquetel Molotov, o paralelepípedo, ou até mesmo
uma simples pedra. Em casos extremos de guerras civis ou de guerras
de ocupação, como a que Goya representou em sua tela Desastres de
Guerra, é uma mão inexperiente, uma mão de mulher, que ousa armar
uma peça de artilharia quando todos os combatentes ao seu redor já
estão mortos. No curso de sua pesquisa sociológica sobre as Estratégias
da rua, Olivier Fillieule retirou do serviço central da CRS, Companhia
Republicana de Segurança francesa uma fotografia que mostra,
depositados sobre um pano branco, os objetos confiscados no levante
de Creys-Malville, em 1977 — fundas, porcas de metal, ferros de solda —
expostos como troféus de guerra.

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 16 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

As maneiras não violentas são ainda mais inventivas e variadas: como se


fosse preciso simular uma arma, um gesto, ou falsear uma imagem
usando o menor objeto ao alcance. Sem dúvida alguma há a bandeirola
que precede os manifestantes e que, de qualquer modo, clama em nome
deles. Philippe Artières consagrou a ele uma útil monografia reduzindo-o
à dimensão única de "cartaz escrito". A bandeirola é tanto uma superfície
de visibilidade como de legibilidade: por exemplo, constitui um sistema
ao lado das bandeiras que com frequência saturam o espaço sensível
das manifestações. Ele é quase sempre figurativo. Se Henri Cartier-
Bresson cruzou o mundo incansavelmente a fim de fotografar tudo o que
pudesse dos cortejos de manifestantes — tarefa infinita sem sombra de
dúvida, arte do não finito diante da história — foi porque para ele a
relação dos corpos com os estandartes assemelhava-se a uma forma
antropológica exemplar da vida social na qual, cada pessoa caminha no
levante de todos e sob o olhar de todos.

Razão pela qual ninguém se contenta em erguer os braços para tomar a


palavra, como acontecia nas assembleias de estudantes, em 1968, ou
para indicar ao cortejo de manifestantes o caminho a seguir. Sempre
existem imagens que os sublevados empunham nos levantes: são
bandeiras que, por vezes, assumem a dimensão lírica e infantil de
grandes cervos voadores, são balões de gás, alguns imensos e
surpreendentes, com os quais as forças policiais não sabem mais o que
fazer, tampas de panelas com as quais se fazem panelaços, mas que
também são imagens de escudos protetores ; construções
carnavalescas de material reciclado parecidas com charretes festivas
(por exemplo uma bicicleta-megafone ou uma grande catapulta feita de
ursos de pelúcia, expostos na coleção Objetos de Desobediência,
reunidos no Victoria & Albert Museum, de Londres, em 2014), mascaras
ou disfarces, como se vê nos feministas ou nos "zaps" do Act Up,
estudados por Victoire Patouillard em um artigo da revista Sociétés
Contemporaines, em 1998. Como se nessas mascaradas fosse preciso
reinstaurar a "política do riso", inerente às sátiras e às caricaturas do
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 17 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

passado, ou então reproduzir as "festas de loucos" das quais Michel


Foucault, que as assistiu pessoalmente, percebeu a profunda dimensão
blasfematória.

Razão pela qual, de maneira semelhante, os membros aguerridos do


exército zapatista, em Chiapas, se dedicaram tão pacientemente a
bordar seus tecidos figurativos e a confeccionar suas bonecas meio-
tradicionais, meio-propagandistas. Por toda parte, os que protagonizam
levantes fabricam imagens que exibem e fazem circular. Foi fato notório
que, em maio de 1968, paralelamente à intensa atividade dos fotógrafos
e cineastas, as prensas tipográficas, litográficas e serigráficas
funcionaram a pleno vapor. Quatro anos depois, alguns artistas pintores
da "Cooperativa dos Malassis" se viram obrigados a utilizar os quadros
que pintaram para uma exposição — uma exposição oficial
encomendada pelo Presidente Georges Pompidou, e que eles haviam
decidido desertar — como estandartes figurativos ou escudos
improvisados diante de um regimento da gendarmaria, incapazes, então,
quem ou o que "verbalizar". Os artistas também manifestam, as
manifestações se revestem de todo tipo de invenções formais.

Essa é a origem da proliferação das marcas visuais e das "cores


manifestantes": as da "revolução laranja", na Ucrânia, ou do Black Bloc,
por exemplo. É a origem também da escala quase industrial da produção
de camisetas e de bottons militantes. As mais comoventes, no entanto,
são as imagens ampliadas que os manifestantes agitam, e que
representam aqueles cujo recente desaparecimento provocou lágrimas e
para quem se reclama justiça: foi o que aconteceu em Paris, nos funerais
das vítimas do massacre de Charonne, em 1962 — cortejo que também
foi fotografado por Henri Cartier-Bresson —, no momento trágico dos
desaparecidos argentinos, em 1983, bem como, no mesmo ano, na
Marcha pela Igualdade, quando abrindo o cortejo estavam as fotografias
dos jovens franceses de origem magrebina assassinados pela polícia
francesa.

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 18 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

Não são apenas os livros de filosofia ou de literatura que são brandidos


simultaneamente como imagens e como escudos contra a polícia: é o
caso do Book Bloc. Da mesma maneira que sabem confeccionar
máscaras contra os gases lacrimogêneos — uma garrafa de plástico é
quase suficiente para isso —, os manifestantes por vezes fabricam
grandes escudos em forma de livros. Entre duas placas de acrílico, basta
espalhar duas camadas de espuma de borracha de um lado, do outro um
pedaço de papelão duro, e representar sobre a face anterior do escudo a
capa de título do livro de sua escolha. O que se pôde ver nas
insurreições de Londres, em dezembro de 2010, foi um grande Espectros
de Marx proteger um manifestante dos cassetetes da polícia. O espaço
sensível do levante assume, então, uma estranha figura: como se uma
imensa biblioteca se espalhasse pelas ruas para fazer com que sua
reclamação fosse ouvida. Não se trataria, uma vez mais, de um
fenômeno de ressubjetivação? Diante dos cordões policiais, dos
cassetetes, dos Flash Ball, ou dos lança-chamas, não são efetivamente
esses livros, cada um com sua "mensagem", que doravante tomam a
palavra e se agrupam para fazer ouvir o direito dos povos? Foi assim que,
em Roma, Mil Platôs protestava ao lado de A República, ou de Dom
Quixote, da Ética, ou das Almas mortas. Em Londres, A Insurreição que
vem caminhava ao lado de Ulisses e de Fim de Parte; deliberadamente
pintados de cores vivas, todos esses títulos escondiam das forças da
ordem o rosto daqueles que, sem dúvida, os haviam lido e tinham
decidido levá-los nos braços erguidos como seus porta-vozes.

É simultaneamente significativo e banal constatar que, na imagem da


manifestação de Londres, uma câmera de vídeo foi dirigida —ela também
erguida nos braços — para o ponto de contato entre a polícia e os
militantes do Book Bloc. Nos dias atuais, no mundo inteiro as pessoas se
manifestam com um telefone celular, utilizado como câmera ou máquina
fotográfica, agitado no espaço real e imediatamente colocado em rede
no espaço digital. O que faz com que as imagens sejam utilizadas bem
além de sua simples função informativa ou representativa: por essa
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 19 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

razão, elas podem também funcionar, psíquica e socialmente, como


operadores de ressubjetivação. É espantoso constatar, por exemplo, que
Che Guevara precisou percorrer seus próprios campos de combate com
uma máquina fotográfica a tiracolo: o importante para ele era
documentar o estado das populações indígenas, fazer retratos de seus
amigos na prisão, imortalizar as paisagens do maqui cubano ou, mais
tarde, as grandes manifestações em Havana. Em meio a tudo isso —
como mostra muito bem a coletânea Che fotógrafo, organizada por
Joseph Monzó, em 2008 — era preciso para ele se deter também nas
ruinas antigas e, além disso, se sacrificar, ao que parecia quase um ritual
compulsivo de autorretrato, como se fosse exigido da imagem que ela se
colocasse na interface mais íntima, afetiva ou estética de sua
"subjetividade" e de sua "figura" de revolucionário histórico.

Em contrapartida, quando percorremos a vida e a obra de Tina Modotti,


ambas extraordinárias, deparamo-nos imediatamente com essa potência
— tão frágil que pode cessar a qualquer instante — que as imagens
possuem de refigurar um indivíduo sensível a partir de seus desejos mais
fundamentais, da sexualidade até o fervor revolucionário. Nos dias atuais,
nas florestas insurgidas de Chiapas, a "participação das mulheres no
governo autônomo", explicada em grande parte do Manual de la Escuelita
Zapatista (no qual se escreve aos Zapatistas para não separarem o
masculino do feminino), é acompanhada igualmente de um trabalho de
imagem. Como Guiomar Rovira revelou em Mulheres de Milho, e Rocío
Martínez analisou posteriormente, em 28 de março de 2001, uma mulher
indígena tomou a palavra no Parlamento Mexicano — quando todos
esperavam pelo subcomandante Marcos — e seu discurso foi
prolongado na prática de produção de imagem das mulheres de Chiapas
feitas por elas mesmas. Essas camponesas, cuja vida cotidiana era muito
difícil, aprenderam a usar máquinas fotográficas e câmeras de vídeo a
fim de construir um ponto de vista inerente à sua própria vida de luta
política. Já em 1972, o artista mexicano Francisco Toledo, com a ajuda
de Macario Matus, Elisa Ramírez e Vitor de la Cruz, conduziu uma
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 20 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

experiência semelhante no contexto da luta política dos camponeses de


Juchitán, no estado de Oaxaca: a câmera transformava-se, assim, em um
instrumento de ressubjetivação nas mãos — na força dos braços
erguidos — dos próprios camponeses. O que aconteceu também no
Brasil com o Cinema Novo, ou com as experiências cinematográficas
portuguesas no tempo da "Revolução dos Cravos". E que ocorreu
igualmente na França, por meio da intensa atividade dos grupos de
vanguarda cinematográfica que se fraternizaram com os operários em
luta e com os grupos de ação política.

Sem dúvida alguma, continua difícil realizar os próprios sonhos e inventar


uma vida melhor, desassujeitada e ressubjetivada. Mas produzir imagens
livres para representar a si mesmo, sua memória, seu desejo, seu destino
— em vez de ser assujeitado ao ponto de vista dos senhores, que
também são senhores das imagens — isso já constitui um avanço
considerável no próprio plano da imaginação política. O exemplo da
"mulher com a câmera" no México, ou em Chiapas, bem como o de Tina
Modotti, nos relembra uma condição essencial da prática do espírito, tal
como a definia Walter Benjamin, em 1934, em um contexto de luta contra
o fascismo: é muito mais crucial ser produtor de suas imagens do que
ser "artista" em geral, mesmo "engajado" em uma causa específica. É um
completo contrassenso pensar em reduzir as relações da estética e da
política a uma relação unívoca a ser estabelecida entre certos artistas e
certas ideologias políticas, como reiterou, ainda recentemente, uma
coletânea de estudos intitulada Artistas e partidos.

Benjamin protestou veementemente contra a trivialidade — e mesmo o


perigo — dessa relação de equivalência: não é a "tendência" que conta,
ou seja, a afiliação de uma obra a um partido político, seja ela romance
ou peça de teatro, poema ou fotografia, mas sim o que Benjamin
denominou o "conteúdo". Melhor ainda, os dois devem funcionar
recíproca e dialeticamente, fora de qualquer oposição entre "conteúdo" e
"forma": "A tendência de uma obra política não pode funcionar

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 21 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

politicamente se não funcionar também literariamente", afirmava ele. O


que poderia fundamentar uma possível distinção entre "tomar partido" e
"tomar posição", como demonstra em particular a relação, com
frequência muito mal compreendida, que Benjamin manteve com Bertold
Brecht. Antes de mais nada, o que importa compreender é que devemos
nos constituir como livres produtores das imagens que propomos,
eventualmente agitadas com a força de nossos próprios braços erguidos
— mas também entre as páginas de um livro de bolso — no espaço
público. Sobre essa questão, Benjamin escreveu que é necessário um
"tratamento dialético": "É preciso integrá-lo em contextos sociais vivos",
mas também em contextos específicos, técnicos, nos quais uma imagem
pode ser produzida. "O conceito de técnica representa o ponto de
partida dialético a partir do qual a oposição estéril entre a forma e o
conteúdo pode ser ultrapassado".

A associação dessas duas palavras, técnica e dialética permite


compreender o que Benjamin teria escolhido para se referir ao trabalho
de Sergeï Tretiakov: produzir uma imagem no espaço político, afirmava
ele, implica redialetizar e ressubjetivar seu desejo em relação às
circunstâncias — aos "perigos" — históricos. É, além disso, redialetizar e
ressubjetivar suas próprias técnicas de invenção formal, principalmente
confrontando-as ou compartilhando-as com outros: ou seja, quando o
escritor não tem mais medo de usar fotografias (como Alfred Döblin ou
Georges Bataille), quando o fotógrafo não tem medo de começar a
escrever (como Man Ray ou Walker Evans). "O próprio trabalho toma a
palavra [e] a competência literária não se fundamenta mais na formação
especializada, mas na formação politécnica (in der polytechnischen
Ausbildung begründet), e se transforma em uma espécie de bem
comum".

É desse modo, prossegue Benjamin, que a "politécnica" do autor como


produtor permite "implodir as barreiras" e "ultrapassar essas oposições
que impedem a produção da inteligência"; em primeiro lugar "a barreira

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 22 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

entre escrita e imagem". Uma maneira de dizer que é necessário se


reapropriar das técnicas especializadas para, a partir delas, desconstruir
os conformismos e empreender exatamente o que Brecht denominava
sua "mudança de função" (Umfunktionierung), da qual um dos
procedimentos essenciais pode ser reconhecido na montagem das
heterogeneidades: o mesmo procedimento de Aby Warburg em seu atlas
Mnemosine, de James Joyce em Ulisses, do próprio Benjamin em seu
Livro das Passagens. Isso, porém, não pode se efetivar se o paradoxo
das heterotopias e o anacronismo do "retorno às origens" não for
produzido — por isso o interesse de Brecht pela poesia épica e pelos
"elementos mais originais do teatro" — implicados na mais ardorosa
urgência histórica e política, mesmo que esse ardor pareça, ou não,
inatual aos olhos da opinião majoritária. Jamais nos sublevamos melhor
do que quando levantamos barreiras e ultrapassamos limites. E é
primeiro na matéria, no húmus do tempo — no perpétuo non finito e no
entrecruzamento das temporalidades — que é preciso tentar o acesso.

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 23 de 24
Sesc São Paulo - Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman - Revistas - Online 27/11/2019 14:38

Levantes, exposição realizada em 2017, no Sesc Pinheiros | Foto:


Matheus José Maria

Confira também (abaixo) a reprodução da brochura editada para a


mostra Levantes (2017) — uma publicação complementar,
distribuída gratuitamente à época da exposição, repleta de
imagens, com textos de Danilo Santos de Miranda, diretor regional
do Sesc São Paulo, do curador e da diretora do Jeu de Paume, Marta
Gili.

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN Página 24 de 24

Potrebbero piacerti anche