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A Guerra Contra a Inteligência

Análise do ambiente intelectual e psicológico e das inibições e obstáculos


que ele impõe à inteligência individual
OLAVO DE CARVALHO

Aula 1
5 de março de 2018

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Seminário de Filosofia.
O texto dessa transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor, não cite nem divulgue esse material.

Boa noite. Sejam bem-vindos todos os presentes e também aqueles que estão assistindo online.
O tema desse curso é a inteligência humana e um dos seus objetivos é mostrar a vocês todas as
correntes e mecanismos postos em ação hoje em dia e desde a, pelo menos, duzentos anos para
deprimi-la e, se possível, suprimi-la. Desde muito tempo atrás tudo o que chamamos de “sistema de
educação” tem se destinado precisamente a isso e muito do que imaginamos como alta cultura tem
apenas esse objetivo.
É evidente que, até certo ponto, todo ser humano se considera inteligente ou pelo menos imagina que
possui inteligência suficiente para as suas necessidades. Eu nunca conheci ninguém que confessasse
ser definitivamente burro – às vezes as pessoas fazem isso por brincadeira. Por exemplo, o Pedro
tinha um amiguinho que dizia: “Eu sou burro com muito orgulho” – ele morreu baleado pela polícia.
Então, evidentemente é uma coisa contraproducente.
De algum modo, nós nos apegamos à nossa inteligência, porque não temos outro farol para orientação
na vida. Não adianta confiar num instinto ou em ordens de superiores, nada disso vai resolver nossos
problemas. Sempre vamos precisar usar a sua inteligência para, de algum modo, tentar se orientar na
situação, mesmo que se pretenda seguir uma autoridade, um líder ou uma religião, nós ainda vamos
precisar usar inteligência para entender o que eles estão dizendo e para saber se os estamos seguindo
corretamente ou não. Portanto, nós simplesmente não temos escapatória. Desistir da inteligência é
como um urso desistir das garras e dentes ou uma águia desistir das asas.
No entanto, as principais forças da nossa civilização se voltam contra a inteligência humana e isso
não é de hoje. Muitas ideias se impregnaram de tal modo na cultura que elas [acabaram por] nos
parecer naturais. Uma delas é a de que nós não conhecemos a realidade, mas apenas fenômenos ou
aparências; que na verdade o mundo real supostamente seria muito diferente daquilo que vemos.
Podemos, mais ou menos, datar a origem disso em um filósofo escocês chamado David Hume –
mesmo que essa não fosse a sua intenção. A maior parte da obra de Hume é dedicada à crítica do
conhecimento humano – somando tudo ele tenta provar que é impossível conhecer qualquer coisa.
Ele diz, por exemplo, que temos sensações, impressões, pensamentos, mas não temos nenhuma prova
de que por trás disso exista um “eu” pensante, um “eu” consciente – de fato, não temos. Ninguém
nunca viu o seu “eu”, nunca tiveram uma experiência direta do seu “eu”, só o reconhecendo pelas
suas ações que estão, evidentemente, separadas umas das outras, não há uma experiência contínua e
daí por diante, Hume segue fazendo vários exames críticos do conhecimento humano, sempre
apontando as suas falhas. Porém, depois de ter dito tudo isso, de ter mostrado que não há razões para
crer na objetividade, na realidade, na veracidade do próprio conhecimento, ele diz, apesar disso, que
precisamos crer nesse conhecimento, pois isso nos é ensinado pela tradição e nós não podemos viver
sem isso. Então, é errado considerar o Hume como um céptico. Na verdade, ele está fazendo, com a
crítica da razão, a apologia da tradição, da obediência, do hábito. Ele diz que há muitas ideias que
não podemos provar, que se impregnaram em nós pelo hábito, mas que nós precisamos delas embora
não possuam fundamento racional.
Nós sabemos que essa crítica do conhecimento humano feita por Hume causou uma profunda
impressão em Immanuel Kant, que não se conformou com aquela conclusão negativa e achou que
devia encontrar um novo fundamento para o conhecimento, sobretudo porque ele viu um paradoxo
no fato de que, por um lado, Hume provava que o conhecimento racional não é possível, por outro
lado, lendo as obras de Newton, se via que algum conhecimento racional Newton havia conseguido
obter. Então, se uma coisa é impossível, como ela aconteceu? Se Hume tem razão, como a física de
Newton é possível?
Tentando localizar um novo fundamento para a credibilidade do conhecimento científico, Kant
descobre – ou acredita ter descoberto – que esse fundamento não está na objetividade do
conhecimento, no fato de que ele reflita a realidade das coisas, mas dado na própria estrutura da razão
humana. Essa estrutura se define por uma série de pré-condições do nosso conhecimento e algumas
dessas pré-condições determinam o formato do nosso conhecimento racional e um outro conjunto de
pré-condições determina o formato da nossa percepção sensível – isso ele vai chamar de “categorias”.
Existem as categorias da percepção sensível e as categorias da razão e fora dessas categorias nós não
conhecemos absolutamente nada. Porém, essas categorias só dizem respeito ao nosso modo de
conhecer e não à realidade do mundo. Daqui ele conclui que nós só conhecemos aquilo que nos chega
no formato adequado da nossa estrutura de percepção ou da estrutura da razão – ele chama isso de
“condições a priori”; a priori significa o que vem antes, ou seja, antes de qualquer ato de
conhecimento essas condições formam um quadro que molda e limita o nosso conhecimento e isso já
está dado na nossa cabeça de uma vez para sempre e é igual para todos os seres humanos. Então, daí
vem a famosa confusão dele de que “nós não conhecemos as coisas em si mesmas, mas apenas as
suas aparências fenomênicas”.
“Aparência fenomênica” é de fato uma redundância, porque “fenômeno” quer dizer aparência. Ele
diz que nós captamos estes dados externos, mas que eles não refletem a estrutura real das coisas, mas
apenas o nosso modo de conhecer. Depois disso apareceram várias observações que parecem
confirmar isso. Por exemplo, nós não captamos todas as longitudes de onda que nos chegam aos
ouvidos, mas apenas uma certa faixa. Um cachorro, por exemplo, capta ondas que nós não. Essas
ondas corresponderiam às categorias, as formas a priori, do cérebro do cachorro, mas não do nosso.
Portanto, todo o nosso conhecimento é apenas uma vasta coleção de aparências da qual não podemos
saber se é real ou não. Podemos saber apenas se ela é adequada ao estado atual dos conhecimentos
científicos. Então, a ideia de realidade fica substituída pela ideia de um consenso científico, isto é,
todos os seres humanos pensam mais ou menos da mesma forma e possuem as mesmas categorias de
sensação e percepção, portanto se os mais inteligentes dentre nós concordam em alguma coisa, essa
coisa deve ser mais ou menos assim; não porque tenhamos meios de verificá-la na realidade, mas
simplesmente porque corresponde ao estado atual dos nossos conhecimentos.
A maior parte das pessoas não percebe a consequência imediata disso: nenhum de nós pode jurar que
aquilo que enxergamos e conhecemos é a realidade e a única autoridade que decide se o nosso
conhecimento é verdadeiro ou não é um consenso científico. O que é um consenso científico? É a
opinião dominante para a maioria dos cientistas. Isso quer dizer que entre o ser humano e a realidade
se interpõe uma espécie de guardião, o homem do pedágio, que te deixa ou não passar, que é a classe
científica. A partir daí, vai se espalhando gradativamente na sociedade a ideia de que a ciência
estabelecida pela classe científica é o único árbitro para todas as questões possíveis. Nós não estamos
num mundo real, mas separados dele, e a única coisa que remotamente nos conecta a ele é a autoridade
do consenso científico.
Não é preciso dizer que esse consenso não existe, porque a todo momento aparecem novas teorias
desmentindo as de antes e assim por diante. Praticamente não existe nenhuma teoria que não tenha
sido vigorosamente contestada por outra. Por exemplo, uma parte da população acredita que a teoria
da relatividade de Einstein está provada de uma vez para sempre, mas muitas críticas à relatividade
ainda continuam aparecendo ano após ano. Elas não são incorporadas na visão pública da ciência,
embora façam parte do patrimônio científico.
Não há praticamente nenhuma certeza pública fundada na autoridade da ciência que não seja
contestada dentro do campo da própria ciência. Desse modo, precisamos distinguir duas coisas: uma
que é a prática científica real, envolvendo milhões de cientistas no mundo inteiro, e o que é a imagem
pública da ciência. Não por coincidência, qual é a matéria ensinada por Richard Dawkins? Ele é
catedrático de imagem pública das ciências. Isso quer dizer que ele sempre se apoia numa imagem
pública como fundamento para os seus argumentos, mas essa imagem pública sempre é
eminentemente enganosa, porque faz parte da própria natureza da atividade científica estar
continuamente se criticando e renovando, de maneira que nós podemos dizer que não existe nenhuma
teoria científica que foi provada de uma vez para sempre, simplesmente nenhuma. Existe apenas
aquela que é aceita pelo consenso e isso, para o cidadão comum que passa pelo sistema da educação
de hoje, vale como se fosse não propriamente a realidade, mas o substituto adequado da realidade.
Essa linha de pensamento inaugura então uma corrente que chamamos de “positivismo”, formulado
por Auguste Comte – esse nome é dado por Comte, mas na verdade o positivismo não é senão um
kantismo mais ou menos adaptado. Ele também parte do princípio de que só as ciências, tal como
conhecidas no mundo moderno, nos fornecem um conhecimento adequado da realidade. Não significa
um conhecimento real ou verdadeiro, mas um conhecimento adequado. O conceito de “adequado”
substituiu o conceito de “verdadeiro” – o verdadeiro jamais saberemos o que é.
O efeito que isso desencadeia nas mentes das pessoas, principalmente na dos estudantes, é
absolutamente devastador, porque a partir daí tudo começa a ficar móvel, jamais podemos ter uma
certeza adequada do que quer que seja.
Por outro lado, Kant era um sujeito religioso, um sujeito crente, e ele dizia que tudo aquilo que nós
não podemos conhecer nós temos de aceitar pela fé. Se vocês perguntam o porquê, ele diz que é o
imperativo categórico – que quer dizer “porque sim”. Ou seja, o sujeito tem de acreditar, senão ele
não presta. Aqui foi cavado um abismo intransponível entre o que é matéria de fé e o que é matéria
de conhecimento. Particularmente, tudo aquilo que se refere a Deus, à vida após a morte, aos anjos,
etc., segundo Kant, são coisas que podemos pensar, mas não podemos conhecer e embora não
possamos conhecer, temos de crer.
Todo o conceito atual de ciência e fé que aparece nas discussões públicas – na mídia, seja cultural ou
popular – é baseado nessa distinção de Kant entre o que é conhecimento e o que é fé. [Ou seja, para
Kant], a fé consiste em acreditar em uma coisa que não se pode saber, mas na qual é obrigado a
acreditar porque se não vocês simplesmente não prestam. No fundo, é o mesmo argumento de Hume:
há coisas que nós não podemos conhecer, mas temos de conhecer porque sem elas nós não podemos
viver. Onde Hume colocava o poder da tradição e do hábito, Kant coloca a autoridade da fé.
É claro que isso cria um problema terrível. Alguém pode pegar a Bíblia e perguntar ao outro: “Por
que você acredita nisto?”. O outro diria: “Porque é a palavra de Deus”. “Mas por que você acredita
que isso é a palavra de Deus?” – ele pergunta novamente. Aí não tem mais jeito, não tem nenhuma
maneira objetiva de sair dessa discussão. Então, por um lado, existe a autoridade do irracional e, por
outro lado, a falta de autoridade do racional que é substituída pela autoridade do consenso científico
o qual, por sua vez, não existe.
Que efeitos vocês acham que um sujeito, educado nesse sistema, acaba sofrendo na sua mente? Por
exemplo, dentro desse contexto, qual seria a diferença entre um sujeito inteligente e outro burro? Se
os dois dependem de um consenso externo e só podem se apegar a uma fé irracional na qual têm de
acreditar porque sim? A mim me parece que não há mais diferença entre o inteligente e o burro,
porque ambos conhecem a mesma coisa, isto é, praticamente nada, exceto aquilo que o consenso
científico lhes ordena, portanto eles ficam nivelados. A partir daí o conceito de inteligência como a
capacidade de penetração e expressão dessa realidade está acabado de uma vez para sempre. Mais
ainda, o consenso científico é móvel: de ano para ano as teorias se trocam e às vezes nos colocam
num beco sem saída.
Por exemplo, baseado numa hipótese materialista, um sujeito começa a investigar e diz que existe um
negócio chamado “matéria”, embora não saiba exatamente defini-la. Primeiro ele a define como algo
que ocupa um lugar no espaço, depois ele vê que há partículas que não ocupam lugar nenhum e, não
obstante, existem. Sabe-se que existem pela sua verificação experimental. Elas se comportam de uma
certa maneira que é até previsível. Não existem hipóteses que tenham sido mais comprovadas
experimentalmente do que as da física quântica. Mas por que a física quântica se chama assim?
Quântica, que vem de quantum, que é quantidade? Porque ao dividir os elementos que compõem a
matéria se chega até partículas ínfimas que não se sabe mais se elas existem ou não e do que elas são
feitas, só se sabe o quanto elas contêm. Mas quanto do quê? Não sabemos. Quer dizer, o que começa
com um materialismo termina com um imaterialismo total. Nós sabemos que tudo o que existe
materialmente se compõe de partículas cuja a materialidade nós não podemos sequer definir ou
afirmar e as quais nós só conhecemos pela medição do seu comportamento. Não sabemos o que elas
são, não sabemos sequer se existem e elas têm um modo de existência muito ambíguo que hora parece
existir, hora parece não existir. No entanto, esta é a hipótese mais comprovada do universo. Nenhuma
outra hipótese cientifica foi jamais testada tantas vezes quanto esta. Experimento atrás experimento,
os físicos quânticos provam que eles são capazes de prever o comportamento de certas partículas.
Elas se comportam exatamente do jeito que foi previsto e os experimentos sempre dão certo. Mas,
nós não sabemos sequer se podemos chamá-las de partículas, pois algo para ser parte de uma coisa,
tem que ela própria ser uma coisa, mas não sabemos sequer se as partículas são coisas.
A essa altura o que significa inteligência? A partir daí a inteligência só pode ser medida em termos
de certas capacidades que são prezadas pela classe científica. Por exemplo, ter um raciocínio verbal,
um raciocínio espacial, um raciocínio geométrico, um raciocínio matemático, etc., ter até certos tipos
de raciocínio e inteligência social, ter um traquejo social, tudo isso são modos de um negócio chamado
“inteligência” e muitas destas podem ser medidas. Mas elas são exatamente como as partículas: nós
podemos medi-las, mas não sabemos o que elas são.
Se o sujeito não tem uma realidade objetiva efetiva pela qual se possa testar os seus conhecimentos e
discernir o que é verdadeiro do que é falso, então a inteligência é apenas uma capacidade operativa
cujos resultados não significam absolutamente nada – notem bem, todo mundo está sendo educado
nessa base, hoje em dia. O que se mede, por exemplo, num teste de quociente de inteligência não é
efetivamente a inteligência, é alguma dessas operações consideras em si mesmas, separadas das outras
e independentemente do seu resultado real. É a mesma coisa que medir a capacidade que o sujeito
tem de levantar peso: ele levanta [um certo] peso e, portanto, é considerado um sujeito muito forte.
Mas se ele for absolutamente incapaz de realizar qualquer ato real com toda sua força, não interessa;
ele continua sendo um sujeito fortão porque foi medido no levantamento de peso. Isso quer dizer que
se a única habilidade dele for o levantamento de peso, funciona.
Do mesmo modo, digamos, o raciocínio verbal: o sujeito pode ter um raciocínio verbal extraordinário,
mas ele jamais é capaz de usar esse seu raciocínio verbal para compreender qualquer coisa real, isto
é, ele entende textos e produz textos com uma certa facilidade, ele monta as frases com uma certa
flexibilidade e isto prova que ele tem inteligência verbal. Se essa “inteligência” não puder ser aplicada
a coisa alguma exceto a execução do teste, está bem, está provado que o indivíduo tem um alto
quociente de inteligência verbal. Do mesmo modo as outras modalidades de “inteligência”.
Se, ao contrário, exigirmos da inteligência algo mais – para que ela mereça este nome – e dissermos
que “só há inteligência onde existe uma capacidade de penetração na realidade das coisas e de
expressão dessas”, então aí toda a perspectiva muda – só que esse conceito está ausente da nossa
cultura.
Para compensar, vamos dizer, os efeitos dessa tradição – que começa com Kant, se prolonga com
Auguste Comte e que, no EUA, ainda é tendência dominante em todas as universidades –, surge com
Hegel uma tendência exatamente oposta onde ele afirma resolutamente a nossa capacidade, não só de
conhecer o real, mas de conhecer o trajeto todo do real na história efetiva humana. Ou seja, Kant diz:
“Nós nada podemos conhecer além de aparências”. E Hegel diz: “Nós conhecemos tudo, pelo menos
eu conheço tudo, eu já entendi todo o percurso da história humana e já sei onde vai terminar”. Dessas
duas tendências aparecem os pilares do pensamento moderno que são o marxismo e o positivismo. O
positivismo herdado de Kant e marxismo herdado de Hegel. Então, uns não têm conhecimento de
nada a não ser da aparência e outros já têm conhecimento de tudo e já sabem aonde tudo vai dar e
aonde as coisas vão terminar.
Vejam, só o fato de haver essas duas tradições e de elas serem influentes na nossa educação, isso já
nos coloca num problema terrível, pois podemos ver que metade da humanidade se empenhou em
realizar o sentido da história, tal como Hegel e Karl Marx haviam explicado – e para isso mataram
centenas e milhões de pessoas – e para opor-se a isso tem somente o Kant que diz que não sabe de
nada, que ninguém também não sabe nada, que não podemos conhecer coisa nenhuma a não ser
aparências. Aí está a coisa mais engraçada, pois na medida em que se aceita este pressuposto kantiano
o indivíduo se coloca nas mãos da classe científica e é como se ela dissesse: “Ninguém conhece a
realidade, só quem conhece um pouco da realidade somos nós, os cientistas, então você sempre tem
que perguntar para nós se o que você está vendo é real ou irreal” – isso consagra o poder da
intelectualidade, é a intelectualidade cientifica que comanda a sociedade inteira e é a máxima
autoridade. Por outro lado, no desenvolvimento histórico da tradição hegeliana, com Marx, com o
Partido Comunista, etc., o poder termina nas mãos de quem? Da intelectualidade também. Então
temos dois caminhos pelos quais se consagra a uma certa classe de pessoas, que são “intelectuais”, o
poder e tudo temos que perguntar a eles. Ora, o que significa adestrar a inteligência de uma pessoa
nesse contexto? O quê que é uma pessoa inteligente dentro da tradição hegeliana ou dentro da tradição
kantiana?
Bom, dentro da tradição hegeliana, o sujeito mais inteligente que existiu foi Josef Stalin
evidentemente, porque ele era o sujeito que conseguia fazer planos e realizá-los no sentido dos
objetivos propostos na tradição, conseguia fazer isso com uma eficiência monstruosa. Stalin fez um
plano de ocupar metade da Europa e conseguiu isso usando até o seu adversário, que era Adolf Hitler
e o nazismo; o resultado final da guerra foi entregar metade da Europa para a União Soviética. A
URSS antes era um país falido, era um terceiro mundo, e quando termina a guerra ela virou uma
potência comparável ao EUA. Então, é claro que temos de concluir que Stalin foi o maior estrategista
de todos os tempos, porque estratégia consiste em articular um conjunto de ações para obter um certo
resultado e se medir a eficiência da estratégia pelo resultado obtido. Se vocês perguntarem: “Quem
mais fez isso no mundo?” – ninguém mais fez. Se vocês pensarem, peguem os governantes dos vários
países – Roosevelt, Charles de Gaulle, Churchill – e perguntem se algum deles concebeu uma
estratégia tão boa e se obtiveram exatamente os resultados pretendidos: nenhum deles.
Por exemplo, Churchill, se dissessem para ele: “Olha, o resultado de tudo o que você está fazendo
para defender o império britânico vai ser a liquidação do império britânico” – ele ficaria mortalmente
ofendido, no entanto, foi isso mesmo que aconteceu. E se dissessem ao Roosevelt: “Olha, o resultado
de tudo o que você está fazendo é entregar o mundo para a URSS” – ele também diria que não. Então,
vemos vários personagens que não têm controle do fluxo dos acontecimentos lidando com outro que
tem o controle total das coisas. É claro que ele, [Stalin], também errou, houve alguns percalços, mas
no conjunto ele fez exatamente o que queria. Isso é o resultado final da tradição hegeliana-marxista.
O resultado final da tradição kantiana é a perpétua inconclusividade, é a Síndrome do Piu-Piu, onde
não se pode nunca chegar a conclusão nenhuma pois tudo são apenas aparências, tudo são hipóteses,
tudo é apenas investigação cientifica, portanto tem que continuar investigando. Nunca se pode chegar
a uma conclusão sobre nada. Isso é exatamente a cabeça perfeita do que no ocidente se considera um
político, um líder moderado, racional, equilibrado, etc., é um sujeito que nunca tira conclusão
nenhuma, sempre tudo pode ser de um jeito, pode ser de outro, está eternamente com a Síndrome do
Piu-Piu. Se dizem uma realidade para ele, ele diz: “É, pode ser, pode não ser. Será que eu vi um
gatinho? Eu vi um gatinho ou não vi um gatinho?” – e assim continua. O próprio Franklin Roosevelt
foi um exemplo disso: enquanto ele estava governando, o pessoal da URSS infiltrou tudo quanto era
agente dentro do governo dele e ele não percebia. Tinha um agente que era tão íntimo do Roosevelt
que morava dentro da Casa Branca, o sujeito era espião da KGB e ele não sabia. E se o dissessem,
ele diria: “Não. Não temos provas científicas. Temos de esperar mais um pouco”.
Isso é mais ou menos o panorama do mundo histórico tomado na visão das elites. E nós perguntamos
a ele: “O que é aí a efetiva inteligência?”. O único sujeito inteligente que aparece aí é Joseph Stalin,
evidentemente. Parece ser o único sujeito que tem algum poder de preensão sobre a realidade. Mas
se dissessem para ele: “Olha, tudo o que você está fazendo não vai resultar no paraíso dos proletários,
mas na eternização de uma ditadura que vai ter que continuar matando os proletários um por um para
sempre”. Ele chegaria a perceber isso? Acho que não. Era certamente o personagem mais inteligente
no tempo da segunda guerra, mas não tão inteligente assim.
Quando Karl Marx formula o marxismo, todo o destino do movimento comunista já estava dado ali
nas entrelinhas; era perfeitamente previsível. Por exemplo, se lhe perguntassem assim: “Olha, no
mundo capitalista você tem o poder econômico que são as pessoas que têm muito dinheiro,
banqueiros, etc., do outro lado há o poder político que é mais ou menos independente disso, embora
um dependa do outro, mas são coisa distintas, se se vai ao socialismo, vai unificar, as pessoas que
têm o poder político serão as mesmas que têm o poder econômico direto, portanto o que vai acontecer
é uma separação muito maior daquilo que se tem hoje entre o povo e os governantes. Você acha que
isso vai ser alguma democracia?”. Isso é coisa de idiota! É claro que isso vai terminar numa ditadura
quase impossível [0:30] de se derrubar. Uma ditadura desse porte só pode ser derrubada, por assim
dizer, desde fora; por uma guerra ou alguma coisa assim – como acabou acontecendo; foi uma guerra
econômica, mas houve uma guerra.
Nós podemos perguntar: “Por que ninguém percebeu isso logo ao ler as obras de Karl Marx? Por que
tiveram que esperar a experiência de cento e tantos anos, da qual tem muita gente que ainda não tirou
as conclusões?” – nós estamos carecas de ver esquerdista que conhece a história da desgraça toda que
foi o regime comunista, não só na URSS, mas na China, na Hungria, na Polônia, em Cuba, em toda
parte, e ainda não tirou as conclusões, então, é a Síndrome do Piu-Piu evidentemente. Só que de onde
eles a obtiveram? Certamente não foi do marxismo. Foi do positivismo. São pessoas educadas no
mundo kantiano e que continuam em dúvida eterna quanto as coisas que estão bem na cara delas – é
proibido tirar conclusões.
Vejam, para o sujeito da tradição comunista-marxista ele não precisa tirar conclusão; a conclusão já
veio pronta. A conclusão é a revolução socialista universal e a instauração da universal ditadura do
proletariado, pronto, acabou, chegamos ao fim da história. O que quer que aconteça será explicado
assim. Se no meio da realização do projeto acontece a formação de uma ditadura dos intelectuais e
opressão total do proletariado, para os marxistas, essa é uma etapa dialética. Aconteça o que a
acontecer o resultado final será o reino dos proletários. Aí simplesmente não há respostas porque não
há perguntas – do outro lado, só há perguntas que não tem respostas. Esse é o conjunto das influências
que nós recebemos na educação.
Por exemplo, muitas pessoas acreditam que o problema atual é o seguinte: fazer uma escolha entre o
totalitarismo comunista e a democracia. Mas o que é a democracia? A democracia é um conjunto de
direitos que são assegurados a todas as pessoas. Mas daí perguntam: “Mas está sendo assegurado
mesmo a todos ou nós precisamos ampliar? E quais são esses direitos?”. Aí um sujeito vem com uma
lista de, por exemplo, quinze direitos. “Por que quinze e não cento e cinquenta?” – perguntam
novamente. Então é preciso, como diz a Marilena Chauí, “ampliar os direitos”. Daí amplia-se mais e
mais os diretos e na medida em que os amplia é preciso garanti-los. Mas como se garante? Através
da fiscalização e controle estatal de tudo. “Uai, então nas democracias acontece a mesma coisa que
no comunismo?” – é cada vez mais controle estatal ao qual se segue indefinidamente e daí, sem saber
a conclusão de nada, se estará empurrando o mundo para o mesmo lugar onde Stalin queria empurrar
– e as pessoas acham que esses caras são inteligentes.
Eu vejo, assim, uma crise monstruosa da inteligência humana, porque esses padrões são os mesmos
que são passados para as crianças nas escolas. Quando se julga a inteligência, se julga determinadas
habilidades. Mas, se essas habilidades têm de ser julgadas em si mesmas, pelo seu mero
funcionamento e não pelo resultado obtido em termos de conhecimento da realidade, então pouco
importa se essas habilidades são utilizadas para o conhecimento da realidade ou para a geração de
uma fantasia idiota, dá na mesma.
Podemos dizer, por exemplo, todo mundo conhece o Lula. Ninguém pode dizer que o Lula é
desprovido de uma inteligência social. Ele conseguiu fazer a carreira dele inteira sem ter um único
inimigo dentro do partido. Ele conseguia seduzir todo mundo, fazer todo mundo confiar nele. Ele não
sabia fazer uma conta de dois mais dois, mas inteligência social ele tinha. Qual foi o resultado? O
resultado foi a desgraça que se viu. Se vocês julgarem essa habilidade em si mesma, separada da sua
eficiência cognitiva, então o resultado dela pouco importa. O resultado pode ser uma desgraça, mas
o sujeito continua tendo aquela inteligência. E até as pessoas, às vezes, não sabendo exprimir o que
elas percebem no Lula, dizem: “Ele é um líder carismático” – mas não; ele nunca foi líder e muito
menos carismático. Ele foi um símbolo do partido, ele nunca liderou ninguém – esse foi o segredo do
Lula. Ele nunca deu uma ordem na vida! Enquanto o pessoal do partido estava fazendo a assembleia,
ele saía para tomar um cafezinho. Quando terminava a assembleia ele voltava e perguntava: “O que
foi que vocês decidiram?” – eles lhes respondiam e daí o Lula “vestia a camiseta”. Passava a dizer a
mesma coisa e agradava a todo mundo. O fato é o seguinte: o Lula não é um líder, muito menos é
carismático, ele é um sujeito com um traquejo social monstruoso e subiu na vida nessa base, só isso.
Vejam que até para diagnosticar os caracteres, as personalidades, os vícios das pessoas, nós hoje
temos nomes errados. Quando se quer dizer, por exemplo, no Brasil que uma ideia é duvidosa, é
improvável, se diz que ela é polêmica. Mas o que significa isso? Uma ideia em si mesma não pode
ser polêmica. Só pode haver polêmica entre duas ideias, salvo engano. Como é que se pode dizer que
uma ideia em si mesma é polêmica? Isso aí parece aquele koan: bater palmas com uma mão só. Essa
imprecisão de linguagem revela uma imprecisão de percepção.
Por que usam tantas palavras fora do lugar hoje em dia? Se vocês pegarem a mídia brasileira inteira
vão ver que aquilo é de uma imprecisão vocabular do início ao fim. Por quê? Porque não há uma
realidade pela qual se possa aferir a linguagem. Há apenas a autoridade do consenso. E, no caso, é o
consenso da mídia – que faz parte da intelectualidade evidentemente. Então, se a mídia inteira aceita
isso, então essa linguagem está adequada, porque eles entendem o que eles estão dizendo. Um fala
um negócio que ele não sabe, o outro entende um negócio que ele também não sabe, mas parece a
mesma coisa: os dois lados aceitam essa maluquice.
No entanto, vocês não têm para onde correr, não saem do problema do consenso. Existem filosofias
inteiras construídas com base na ideia do consenso. O Jürgen Habermas é um exemplo. Consenso
para ele é tudo. Só que, enquanto Habermas está fazendo essa apologia do consenso, há outro sujeito
que é o Kurt Lewin – que é um psicólogo absolutamente genial, um pouco maligno, mas genial – que
estava criando um negócio chamado de engenharia do consenso. Que é essa engenharia do consenso?
Alguém reúne um grupo de pessoas para discutir determinado assunto – pode até ser uma psicoterapia
de grupo, um projeto, um jogo de futebol, qualquer coisa – e tem ali um técnico treinado orientando
sutilmente o grupo para que ele chegue a determinadas conclusões. Isso aí se tornou o modo normal
de ação social no mundo desde o fim da segunda guerra mundial, ou seja, todo mundo já participou
de algum grupo de encontro, grupo de psicoterapia, grupo de discussões etc. A coisa é conduzida de
maneira muito sutil, exatamente como numa psicanálise: o “psicoterapeuta” não vai influenciar o
paciente, ele só vai fazer determinadas perguntas e às vezes tirar determinadas conclusões, ele não
influencia o paciente nisto ou naquilo, mas a forma total da relação está dada na mão do
“psicoterapeuta” e não na mão do paciente. Portanto, pouco importa as conclusões específicas sobre
este ou aquele ponto, já está demonstrado ali quem está no comando da coisa e isso sempre alcança
os resultados desejados, praticamente nunca falha – ouve um estudo estatístico que apontava que
funcionava em 82% ou 83% dos casos, o restante não interessa.
O número de procedimentos que existem para se criar consensos é impressionante – no livro do Pascal
Bernardin, Maquiavel Pedagogo, tem algumas dessas técnicas, que hoje constituem quase 100% da
nossa pedagogia. Tudo é engenharia do consenso, engenharia comportamental. A engenharia
comportamental não serve para torná-los inteligentes, não tem nada a ver com isso, ela serve para
fazer vocês se comportarem de determinada maneira – “Desde que estejam aprovados pelo consenso,
está tudo bem”. Isso quer dizer que em parte alguma o conhecimento da realidade é exigido, aliás,
ele é até dificultado.
Hoje, a educação em todo o ocidente é assim – eu não posso dizer o que se passa na Rússia ou no
mundo islâmico porque eu não estudei a educação nesses lugares, porém em todo o ocidente é assim.
As pessoas não apenas se acostumaram a não ter uma inteligência capaz de apreender a realidade,
mas até acham que isso seria uma pretensão excessiva. Nesse meio, toda e qualquer ideia vigora
exatamente como numa discussão científica: todas as ideias são provisórias e nunca se pode chegar a
uma conclusão sobre nada – é a Síndrome do Piu-Piu obrigatória.
No campo das ciências isso funciona, porque toda e qualquer ciência – se pensarmos direitinho – não
tem nada a ver com a realidade. Cada ciência só pode estudar o seu objeto após recortá-lo, separando-
o dos outros. Por exemplo, se formos estudar determinada espécie animal: ela tem de ser isolada das
outras, ela precisa de um conceito descritivo próprio para que possamos distingui-la das outras e
estudá-la especificamente. Nenhuma ciência estuda nenhum objeto concreto e real, isso seria
impossível. O que eu chamo de objeto concreto? Um objeto ou fato que nos chega acompanhado de
todos os acidentes que o tornam possível.
Por exemplo, suponhamos que na esquina um sujeito deu um tiro no outro: ele tem de ter tido um
motivo para isso, ele tem de ter encontrado o sujeito num certo lugar [e assim por diante]. Do motivo
dá para concluir onde a vítima estava? Existe alguma conexão lógica entre as duas coisas? Nenhuma.
Em seguida, para disparar o tiro é necessário que haja uma certa quantidade de pólvora e um projétil
com determinado peso. Alguma dessas coisas pode ser deduzida do motivo do crime? Há alguma
conexão lógica? Não. Terceiro, a bala pode ter sido desviada pelo vento. Existe alguma conexão
lógica entre o motivo, o potencial mortífero da bala e a direção do vento? Essas coisas podem ser
deduzidas do mesmo princípio? Não. E assim por diante. Podemos ainda perguntar: “O que a vítima
estava fazendo ali?”. Se o sujeito tinha algum motivo para matá-la, ela também tinha um motivo para
estar ali, o qual não tinha nada a ver com o motivo do assassino. O sujeito poderia estar indo ao
barbeiro. É o fato que alguém quisesse matá-lo que determinou que ele fosse ao barbeiro? Claro que
não. Do mesmo modo, existe uma infinidade de outros acidentes sem os quais aquilo não poderia
acontecer. Na vida real é assim.
Tudo o que chega ao nosso conhecimento é acompanhado de uma montanha de acidentes que não
tem nada a ver com a natureza do evento, do fato particular, mas sem os quais ele não poderia
acontecer. Esse é o conhecimento real que nós temos das coisas. Por exemplo, agora vocês estão
vendo/lendo essa aula. O lugar onde vocês estão sentados tem alguma coisa a ver com o conteúdo
dela? Não. Eu poderia estar dando essa aula na rua, num auditório ou em qualquer outro lugar. Mas
se vocês não souberem onde está sendo dada a aula, então não vão poder assistir. A aula também tem
um horário. Esse horário tem alguma coisa a ver com o seu conteúdo? Não tem. Mas se alguém chegar
depois não assiste à aula. E assim por diante. Também vocês precisam de um transporte para chegar
[aqui]. Esse fato tem alguma coisa a ver com o conteúdo da aula? Também não. Tudo o que
percebemos é assim e isso é o que chamamos de realidade concreta – “concreta” vem de
“concrescior”, são coisas que crescem juntas, uma não tem nada a ver com a outra, mas crescem
juntas.
Qual é o primeiro procedimento de qualquer ciência ao estudar o seu objeto? Separá-lo da
acidentalidade para que possa corresponder a um conceito unívoco, um conceito que signifique a
mesma coisa para todos os estudiosos da área. Por exemplo, as realidades da física estão expressas
em conceitos que são os mesmos para todos os físicos e separadas de toda acidentalidade. Esse
conceito separado não existe, não corresponde a uma realidade concreta, mas apenas àqueles aspectos
específicos que interessam àquela ciência e que só são conhecidos por abstração.
Se nós não somos ensinados desde pequenos a perceber a realidade concreta e a expressá-la, mas
somos ensinados nas várias disciplinas científicas, então estamos sendo ensinados a estudar somente
coisas que não existem ou que só existem desde o ponto de vista de interesse de determinada ciência.
No tempo de São Tomás de Aquino já se sabia que as ciências têm três tipos de objetos: primeiro, o
objeto material; segundo, o objeto formal, que é o ângulo pelo qual se vai estudar o objeto. Por
exemplo, a zoologia pode estudar as vacas, mas não do ponto de vista da pecuária, que também pode
estudar as vacas, mas sob um ângulo completamente diferente. No entanto existe alguma vaca que
não tenha nada a ver com a pecuária ou com a zoologia? Não. Ela tem a ver com as duas, ao mesmo
tempo. Também, as condições de exercício da pecuária dependem das condições econômicas de
determinado país num determinado momento. Existe alguma conexão entre as regras práticas da
pecuária e a economia nacional? Nenhuma. Mas a vaca está, por assim dizer, no cruzamento entre
esses vários fatores. Quando escolhemos um desses ângulos – “Vou estudar a vaca, porém deste
ângulo” – isso se trata do objeto formal. Mas, além do objeto formal, existe outra divisão que os
escolásticos distinguiam além do objeto formal motivo: é o objeto formal terminativo. O objeto
formal motivo é esse que falei, o ângulo pelo qual se vai estudar o objeto. Mas, qual é a pergunta
específica que se quer responder a respeito de tal animal? Por exemplo, podemos estudar a anatomia
do animal, mas também podemos estudar a origem daquela espécie animal. Qual é exatamente a
relação entre a sua anatomia e a sua origem? Nós não sabemos. Podemos conhecer a origem só pela
anatomia ou a anatomia só pela origem? Não. Então há uma segunda escolha: além do ângulo pelo
qual queremos olhar o objeto, temos também de escolher qual é pergunta final que queremos
responder, isto é, qual é a finalidade última do estudo que estamos fazendo. Com isso, vamos
separando o objeto da sua concretude e o tornando amoldado ao estudo científico. Fazer isso é muito
mais difícil do que praticar qualquer ciência.
Por exemplo é muito bonito vocês estudarem o conjunto de discussões que culminou na obra do
Miguel Reale, que se chama Teoria Tridimensional do Direito, onde até então havia uma confusão
enorme sobre o que exatamente é o direito. Alguém pode dizer que o direito estuda a justiça. Bom, a
palavra “justiça” quer dizer duas coisas: primeiro, todo o aparato judiciário, os juízes, os tribunais, os
advogados, os códigos, etc.; segundo, o conceito do “bem” e do “mal”. Uma coisa pode ser deduzida
da outra e outra da uma? Não. Por outro lado, a justiça se exerce dentro de um campo social
determinado, que é aquele no qual está o autor do crime, a vítima, o advogado, o juiz, etc., e não
outro. Não é a mesma coisa julgar um crime na Zâmbia ou em Nova Iorque. Portanto, há o lado
sociológico da coisa. Esses vários aspectos do fenômeno jurídico são enormemente confusos. Por
exemplo, em sua obra, Hans Kelsen diz que a justiça não tem nada a ver com o “bem” e o “mal” ou
com a noção moral de justo e injusto, ela é apenas um sistema de leis, uma lógica normativa, que
começa com uma premissa qualquer, que pode ser totalmente arbitrária, mas vai funcionar do mesmo
jeito. Então, alegaram contra ele: “Uma justiça que não leva em conta o bem e mal, que não leva em
conta o conceito do moralmente justo e injusto não é justiça, de maneira alguma”. Do ponto de vista
do Kelsen seria a mesma coisa, por exemplo, estudar a Constituição do EUA ou a Constituição da
URSS ou da Alemanha Nazista: são sistemas e são sistemas normativos, todos eles têm uma premissa
fundamental, portanto, do ponto de vista formal, seria a mesma coisa. Mas outros defendiam o aspecto
sociológico do direito. Eles diziam que o direito é efeito, a criação, de um determinado estado de
coisas em tal ou qual sociedade – também há esse lado sociológico. Assim, haviam essas três
correntes, uns podiam estudar o direito como norma, outros como fato sociológico e outros como um
valor. E, foi o Miguel Reale que conseguiu articular esse três: “O direito é definido justamente pela
fusão inseparável desses três aspectos” – com isso ele realmente matou o problema; até agora pelo
menos.
É muito interessante acompanharmos essas discussões para vermos que o campo de uma ciência não
aparece pronto. O campo de uma ciência depende de uma série de procedimentos abstrativos que vão
separando o que ele é daquilo ele não é, daquilo que é contíguo ou que está associado, e assim por
diante.
Por exemplo, se olharmos para a física de Newton: tudo o que ele fez que nós conhecemos pelo livro
Princípios Matemáticos da Filosofia Natural é uma física teológica, aquilo é parte de um argumento
teológico que Newton estava desenvolvendo, para ele, a física era um aspecto da teologia. Ora, nas
gerações seguintes já não aceitavam mais isso. E o que fizeram? Apagaram os outros livros do
Newton e ficaram só com esse. E assim, durante 300 anos, se entendeu errado a física de Newton,
pois não era isso o que ele estava dizendo. Ele não estava fazendo física no sentido atual da palavra
“física”, ele estava fazendo física no sentido do tempo dele, que era uma parte da teologia.
Newton tinha umas ideias religiosas muito estranhas: ele era cristão, mas era contra a trindade, ele
acreditava numa espécie de unidade absoluta – do tipo islâmico; uma espécie de islamismo cristão –
e tudo o que ele fez foi para poder argumentar em favor disso. Por isso, se vocês entenderem essa
parte, a parte da física, fora do contexto teológico de Newton, na verdade, vocês não estão entendendo
direito. No entanto, foi só essa parte que foi aproveitada pelas gerações seguintes, as gerações de
cientistas, o que eles estudam não é o Newton, é o Newton que interessa a eles, um Newton abstrato.
No processo de formação de qualquer ciência nós temos essa série de operações abstrativas que vão
criando um objeto cientificamente estudável, mas esse objeto cientificamente estudável não é um
objeto da experiência real e concreta.
Apesar de Kant, apesar de todo o positivismo, nós todos continuamos vivendo no mundo das
realidades concretas. Tudo o que chega a nós, chega entremesclado de aspectos acidentais que não
tem nada a ver com a essência do fenômeno, com a essência do objeto, mas que sem os quais não
poderia existir. Nós cada vez mais somos convidados a esquecer isso e focar a nossa atenção só
naqueles objetos já formalizados para o estudo de determinada ciência. O que acontece devido a isso?
Nós simplesmente saímos da realidade e vivemos no mundo do consenso científico. Isso é um
desastre? É claro que é. Porque nós nunca mais teremos uma realidade na qual possamos testar nossos
conhecimentos – só poderemos testar no sentido do teste científico, mas esse também não se refere a
objetos reais, mas sim a objetos recortados e especialmente recortados para testes em laboratório. Ora
a ciência funciona assim, não há outra maneira dela funcionar – isso não é uma crítica a ciência, é
assim que se faz mesmo e não tem outro jeito. Às vezes ela nos dá algumas certezas sobre algum
objeto recortado para as necessidades dela, mas não sobre o objeto considerado em geral.
Assim, os camaradas inventam um negócio que é a interdisciplinaridade. Eles percebem que eles
estão indo muito [fundo] no mundo abstrato e decidem cruzar os resultados, mas não adianta,
cruzando diferentes recortes abstrativos não se obtém uma realidade concreta. A realidade não pode
estar no fim do estudo cientifico, ela tem de estar na origem dele. Pergunto eu: “Alguém foi ensinado,
alguém no mundo, algum cientista, à medida em que ele vai recortando o objeto da sua ciência, a
voltar a referi-lo a realidade concreta inicial para que ele não se perca nas abstrações?” – não, ninguém
foi ensinado a fazer isso, essa disciplina simplesmente não existe. Essa é – ou seria – uma das tarefas
fundamentais da filosofia, mas acontece que a filosofia também tentou virar uma ciência.
Existem dois tipos de filosofias científicas. A marxista, que já tem – ou imagina ter – todo o domínio
do trajeto completo da existência humana e da sua finalidade e que tudo pode ser deduzido a partir
dessa finalidade que, para ela, é o paraíso dos proletários – essa é a culminação da humanidade, esse
é o fim da História, a História termina aí e, na verdade, é esse o começo da História verdadeiramente
humana, em termos do próprio Karl Marx – e, portanto, tudo pode ser julgado em função disso. Pode
até, a partir disso, tirar conclusões para as ciências físicas: como a famosa genética de Lysenko, que
é uma genética marxista, não funcionava, mas se enquadrava bem dentro dessa visão global. Por outro
lado, tem a visão positivista, que é a Síndrome do Piu-Piu organizada. Se perguntarem: “Alguém foi
treinado para perceber a realidade, expressá-la e discuti-la?” – ninguém.
Uns são treinados para se enquadrarem dentro do projeto socialista final. Outros são treinados para
se enquadrar dentro do consenso científico no qual, por definição, é provisório. Significa, então, que
a noção de realidade sumiu e, portanto, a noção de inteligência também sumiu sendo substituída por
duas coisas: no mundo marxista pela sua ortodoxia, pela sua fidelidade ao projeto global e, no mundo
ocidental, pela sua fidelidade e obediência ao consenso científico – que na verdade, repito, não existe,
existe apenas para uso popular.
É claro que quanto mais o ensino das ciências se aprimora, mais esses problemas aparecem, quer
dizer, os cientistas acabam percebendo que eles não sabem do que estão falando. Entre os praticantes
da física quântica, eu acho, hoje em dia todos eles sabem que não sabem do que estão falando: “Nós
sabemos fazer esse experimento, sabemos medir para onde vai a partícula, etc., mas não sabemos do
que estamos falando”. Isso porque simplesmente não existe mais o “quê”, existe só a descrição de
fenômenos. E fenômenos são o quê? Aparências. Eles podem continuar praticando isso o resto da
vida e se praticarem direitinho serão tidos como grandes cientistas, mas no fundo eles sabem que não
sabem do que estão falando.
Essa dupla corrente de filosofias que dominam a mente contemporânea, sobre todos os aspectos,
foram feitas para neutralizar a inteligência humana. Uma vai lhes submeter aos mandados do partido,
que é um bando de intelectuais, e a outra vai lhes submeter ao consenso dos cientistas, que é outro
bando de intelectuais. Assim, tudo fica reduzido a obediência e a adequação do sujeito a esse estado
de coisas passa a ser a medida da sua própria inteligência – se ele obedece aos planos do partido
direitinho, então ele é um grande homem, se ele não consegue ou não quer, então, ou ele é um idiota,
ou é um traidor, ou é um infiltrado, ou um burguês, qualquer coisa assim; do outro lado, se o sujeito
tenta escapar do formalismo científico e tenta dizer algo da realidade concreta, então o que ele diz é
poesia, é sonho, é fanatismo, é fundamentalismo, qualquer coisa assim. Tudo foi montado para
instituir a obediência e não a inteligência. [1:00]
Em seguida, aparecem umas pessoas dizendo: “Então temos de ensinar as pessoas a ter um
pensamento crítico” – mas nós sabemos de onde vem essa expressão, vem da tradição marxista. O
pensamento crítico para eles é o pensamento crítico do quê? Da ideologia capitalista. Ademais, se
pegarmos todas as teorias que estão rodando por aí e fizermos a crítica de uma por uma, nós
conhecemos algo da realidade concreta? Ainda não. Estaremos apenas dentro do processo dialético
da discussão de cada uma dessas ciências, ainda estaremos dentro do mundo do formalismo. É claro
que não será o pensamento crítico que irá nos libertar disso aí.
Quem percebeu direito o que precisava fazer foi o Edmund Husserl que disse que precisávamos nos
voltar às coisas. O que quer dizer as coisas? São as coisas que nos aparecem na realidade – “Temos
de começar a descrever a experiência tal como ela nos aparece”. Se ele conseguiu ou não fazer isso,
é outro problema – eu acho que não conseguiu, eu acho que no fim ele acabou terminando no
formalismo também. Mas a ideia era muito boa e é ela que deve nos inspirar aqui.
Aluno: Com a internet ficando cada vez mais presente, de uma certa forma todas essas contradições
não ficam mais aparentes e geram essa confusão política que a gente tem hoje, essa coalização em
que as pessoas começam a perceber essa distância entre a realidade e esse totalitarismo aí dos
intelectuais?
Olavo: Sim, mas pelo volume de informações se cria outro negócio que é a psicose informática, quer
dizer, um bombardeio de informações que ultrapassam infinitamente a capacidade do indivíduo de
organizá-las. Isso chega ao ponto de ocorrer um fenômeno chamado snapping – como alguns
estudiosos chamam, que significa aquele barulho de estalo, como que um elástico que foi puxado
demais e arrebenta – na qual o sujeito fica mais ou menos num estado de estupor, de incerteza total.
Tem muita gente assim hoje: não são capazes de tirar conclusão de absolutamente nada, pois foram
infectadas pela psicose informática.
Aluno: Professor, eu vi uma palestra do Obama, que era para ser só para os estudantes do MIT, mas
que veio a público, na qual ele fala que o problema hoje é o de que existem várias realidades como,
por exemplo, a realidade do NY Times, a realidade da Fox News, e que a China resolve isso de uma
maneira simples, que é o partido é que tem que dizer o que tem de ser e que todo mundo obedece.
Ele acha que a gente tem que viver em mundo assim, mas ele mesmo coloca né...
Olavo: A busca da autoridade é uma busca de alívio, evidentemente. O que eles fazem? As pessoas
transferem o problema para alguém que, segundo elas, sabe mais do que elas e então não precisam
mais pensar no assunto – é uma busca de alívio e de segurança. Mas isso resolve o problema? Não.
Isso agrava o problema formidavelmente. Onde o partido estiver errado todo mundo vai errar junto e
isso, notem bem, não é a exceção, isso é a regra.
A única coisa que deu certo no comunismo foi o plano do Stálin da Segunda Guerra, onde as coisas
se passaram exatamente como ele tinha previsto, com exceção da invasão da Rússia pela Alemanha.
Ele imaginava o contrário, a Rússia que iria invadir a Alemanha. Mas ele conseguiu dar a volta por
cima, conseguiu readaptar o plano e chegou onde queria – ele não dominou a Europa inteira, mas
dominou metade. Isso, para nós, é bom exemplo. Para o nosso tipo de estudo aqui, a melhor coisa que
podemos fazer é estudar alguém que fez alguma coisa que deu certo. Um sujeito que fez um plano,
que executou esse plano e que chegou ao resultado que ele queria – o que não quer dizer que ele
controlou inteiramente o resultado, mas apenas em linhas gerais.
Um filósofo chamado Alain também pensava a mesma coisa sobre esse ponto: ele botava os alunos
dele para estudar a campanha que os americanos fizeram para eliminar a febre amarela em Cuba, que
foi um negócio excepcionalmente bem-sucedido. Ele usava isso como modelo de como se faz as
coisas. Ora, uma campanha para eliminar a febre amarela é baseada no quê? Na existência de uma
vacina? Não. A fabricação da vacina advém dos fatores sociais, fatores econômicos, etc., e como é
que se vai articular tudo isso? A ação real é sempre a articulação de linhas de forças acidentais.
Por exemplo, no último ano da Primeira Guerra Mundial os alemães decidiram fazer um ataque
frontal final. Eles reuniram uma força monstruosa, muito superior à do adversário, pois fazia anos
que a guerra estava estática, que se dava apenas entre confrontos de trincheiras, que ninguém
conseguia avançar, eles decidiram romper com essa dinâmica e acabar com tudo de uma só vez – eles
fizeram isso. Só que lá pelas tantas faltou comida. O quê que a comida tem a ver com a atividade
bélica? Podemos deduzir uma coisa da outra e a outra da uma? Para o serviço de intendência, que vai
fornecer a comida, o seu funcionamento depende da eficácia bélica do exército que está no front?
Não. É um fator extra. A verdadeira inteligência a gente vê em operação nessas horas. No tempo dos
escolásticos, isso era chamado de raciocínio de conveniência – conveniência no sentido de vir junto,
de coisas que convergem, é como convergência, como concrescior ou concreto. Algumas pessoas
têm uma genialidade excepcional nisso aí. Se estudarmos a vida de Napoleão Bonaparte veremos que
o segredo dele era este: ele conseguia juntar coisas que não tinham nada a ver para produzir um
resultado.
Na verdade, isso é a definição da técnica. O que uma ciência faz? Ela separa determinados aspectos
da realidade para ver se descobre um princípio comum que explique todos ao mesmo tempo. O que
faz uma técnica? Ela pega fatores e linhas de força absolutamente inconexas, que não têm nada a ver
entre elas mesmas, que não podem ser deduzidas entre si, e junta todas para produzir um resultado.
Por isso que é burrice dizer que os grandes resultados da tecnologia são efeitos do progresso
científico, pois não são. O progresso científico pode entrar aí apenas como um dos elementos. O
exemplo que costumo dar é o seguinte: “Os computadores se baseiam no código binário. Certo? Mas
eles também dependem da fabricação de plástico. E o que uma coisa tem a ver com a outra? Nada.
Mas se não juntar o código binário em um negócio feito de plástico não se consegue fazer um
computador e assim por diante” – nós vamos operando na base de uma fusão de fatores que nada têm
de científico, a base de toda tecnologia é isso aí. Não existe uma tecnologia que seja baseada num
princípio cientifico único. Todas elas juntam princípios científicos com regras práticas – que não
possuem fundamento científico nenhum – e uma boa utilização das ocasiões.
Esse raciocínio de conveniência é o mais alto que existe para um ser humano fazer, porque o
conhecimento científico, o conhecimento pragmático, o conhecimento habitual, os valores, etc., tudo
isso converge para a produção de um resultado desejado e, mesmo assim, pode falhar. Napoleão
dominava isso maravilhosamente. Ele só não percebeu uma coisa: só ele sabia fazer esse tipo de
raciocínio, os generais dele não sabiam. As coisas só davam certo para ele onde ele estava
pessoalmente no comando. A primeira vez que ele delegou uma tarefa fundamental para um sujeito,
falhou tudo e ele perdeu. Para ele, era tão natural pensar assim, que talvez ele acreditasse que todo
mundo tem essa capacidade, mas não tem. A maior parte das pessoas são educadas na mais extrema
abstração possível. Elas vão abstraindo e abstraindo e perdem o fio da meada que as conecta a
realidade concreta originária.
Se fôssemos criar um princípio de educação baseado na realidade concreta e no controle do
mecanismo abstrativo, como seria? Bom, eu tenho dado o exemplo disso no meu Curso Online de
Filosofia – o COF é isso. É isto o que eu tenho feito o tempo todo: eu subo um pouquinho para o
lugar da abstração e volto para a experiência imediata – eu espero que os alunos tenham pelo menos
absorvido esse processo de maneira quase inconsciente. Eu estou dando esse curso aqui para explicitar
qual é a técnica que eu estou usando no COF e porquê ele está funcionando, porquê as pessoas
realmente ficam mais inteligentes. Elas sentem que ficaram mais inteligentes e vemos que ficaram
pelo próprio trabalho delas, pelo o que elas fazem. Não necessariamente por um trabalho intelectual,
mas pode ser até, sei lá, um trabalho de agitação política ou qualquer coisa que elas quiserem, até
mesmo com o trato dos seus dramas pessoais ou de família, qualquer coisa, vemos que todas
progridem. Por quê? Por causa disso. Isso quer dizer que a gente não pode medir o avanço de um
aluno mediante provas. Só podemos medir pelo procedimento concreto dele, perante os problemas
que, de algum modo, vão parar na mão dele, seja problemas intelectuais ou de outro tipo.
No ginásio, eu tive um professor de biologia – eu acho que a única coisa que aprendi no ginásio foi
biologia, os outros professores todos eram chatos, porém esse era um gênio – que sempre dizia o
seguinte: “Se você explica para o sujeito o quê que é bicho de pé e ele entende, ele passa na prova,
mas depois você chega na casa dele e ele está andando descalço no lugar onde as galinhas fizeram
cocô, então ele não entendeu o que é bicho de pé, enquanto um outro pode ter até errado na prova,
mas se ele aprende que não é para fazer isso, então esse outro aprendeu, mas aquele de antes não”. O
único teste do conhecimento da realidade concreta é na própria realidade concreta, por isso que eu
não faço provas nem coisa nenhuma – provas são altamente enganosas nesse sentido.
Também, outra coisa que eu levo muito em conta é algo ensinado pelo educador americano John
Taylor Gatto. Ele diz – essa primeira coisa é óbvia – que as pessoas só aprendem o que querem.
Então, eu aprendi duas coisas no ginásio – biologia e latim – e disso eu tenho certeza, pois eu queria
aprender. Eu me lembro que enquanto o professor de matemática estava ensinando álgebra eu
aprendia tudo direitinho, mas quando ele passou a ensinar geometria eu falei que não queria mais. A
primeira coisa que ele disse eu já não entendi: “Bom, então eu não quero entender a seguinte” – e daí
depois não teve jeito. Fizesse o que fizesse, podia contratar professor particular, usar chantagem, etc.,
eu não ia aprender aquilo; criei uma resistência incontrolável. Portanto, se o sujeito só aprende o que
ele quer aprender, então temos de partir do que ele quer aprender e daí, gradativamente, ir colocando
outros elementos dos quais ele vai precisar.
Por exemplo, o pai quer ensinar física para o moleque, mas ele só quer saber de beisebol. Muito bem,
para o moleque entender o trajeto da bola, ele vai ter de estudar a cinemática e daí, partindo de
qualquer ponto, se chegará nos outros. Sempre organizando [os assuntos] em torno daquele interesse
fundamental.
E o Gatto diz outra coisa também que é básica: “Alguma coisa o sujeito tem que conhecer em
profundidade, as outras podem ficar em pano de fundo, porém algo ele tem que dominar
completamente”. Pode ser a coisa mais humilde do mundo como, por exemplo, engraxar sapato: essa
atividade ele tem que saber tudo e dominar o processo inteiro. Por exemplo, qual a graxa que ele vai
comprar? Por que essa graxa é diferente da outra? Como ela foi fabricada? E assim por diante.
Partindo da arte de engraxar sapatos ele acaba cobrindo uma área de conhecimento muito grande e
sempre fundamentada na sua experiência concreta de engraxar sapatos. Também uso isso muito com
os meus alunos e acho que qualquer interesse que eles tenham de aprender qualquer coisa é isso o
que eles têm de aprender. Não adianta tentar outra coisa.
O mundo moderno inventa os programas escolares. Os programas escolares consistem em dar um
pouquinho de cada coisa e, evidentemente, sem conexão alguma. Que elas não tenham conexão entre
si, isso é inevitável, porém, na mente do estudante, elas vão se articular em torno do quê? Se damos
vários conhecimentos inconexos, mas o indivíduo tem um interesse fundamental em torno do qual
ele pode articular tudo que ele sabe, aí sim. Mas acontece que esse ponto, o interesse pessoal por isso
ou aquilo, é totalmente desprezado. Isso não é só no Brasil, é em toda parte.
Notem bem, a queda do nível de inteligência dos estudantes é algo universal, isso está acontecendo
no mundo inteiro. Porém, não tanto quanto no Brasil. No Brasil chegou na calamidade. Também eu
acho que é no Brasil que se dá mais importância aos programas escolares e menos a vida real. Aqui
no EUA até que ainda tem alguns pontos de contato como, por exemplo, o sujeito pode obter nota
prestando trabalhos sociais: no fim de semana ele vai cuidar das criancinhas pobres e apresenta o
relatório do que fez; isso conta nota para ele. Bom, esse é um interesse real que ele tem. Ele pode
também participar de uma equipe de esportes, isso também conta. Mas no Brasil não há nada disso,
é só o programa.
Eu me lembro que uma vez o colégio em que eu estudava mudou de prédio e havia muita coisa para
transportar e aí eles se socorreram no serviço dos alunos. Nós ficávamos transportando caixas,
transportávamos os negócios da biblioteca e colocávamos no mesmo lugar. Transportávamos os
materiais de laboratório e era preciso saber o que era preciso fazer com aquilo. Eu aprendi mais com
essa mudança do que em todas as aulas. No entanto, eu me lembro de uma cena em que estávamos
em cima do caminhão descarregando coisas e daí passa a professora de matemática e diz: “Essa
matação de aula está uma vergonha!” – ela simplesmente não entendia o valor pedagógico daquilo.
Agora, eu tenho a experiência de alguns outros alunos que estavam no meu outro curso e que me
ajudaram a classificar os livros na biblioteca: eles aprenderam muita coisa ali. Bom, se o sujeito não
sabe organizar a sua própria biblioteca ou a biblioteca do vizinho, então ele simplesmente não tem
ideia do que é o sistema dos conhecimentos humanos; ele vai sempre estar perdido no espaço. Por
isso que eu tenho sempre em conta – mais tarde vou dar mais explicações sobre isso – que a
organização da bibliografia do que eu vou precisar estudar mais tarde é mais importante do que ler
qualquer um dos livros que estão na bibliografia. Isto é ensinado em alguma escola? Não. “Teremos
aqui aula de português, matemática, geografia, história, etc., muito bem, agora vamos organizar os
livros que precisamos usar para estudar tudo isso” – no Brasil ninguém nunca teve essa ideia e é uma
coisa tão simples. Eu tive a sorte de estar presente nessa mudança da escola. Por exemplo, eu não
tinha ideia da riqueza de livros que havia na biblioteca do colégio, isso eu adquiri nesse dia. Por quê?
Porque era eu mesmo que estava pegando os livros e colocando na estante, no lugar certo.
Então, aí nós temos alguns princípios. Todo conhecimento que toma raiz na realidade da experiência
concreta e tão logo perde essa conexão só vale para fins administrativos. Agora, existe alguma prática
que tenha realmente algo a ver com a realidade concreta e com a tomada de posse dela? Existe. Mas
certamente não é nenhuma das ciências.
Vejam, quando começamos a estudar física, por exemplo, alguém nos informa o rolo que foi para
isolar a física dos outros fatores para poder chamá-la de física? Como se formou o objeto dessa
ciência? Ninguém nunca ouviu falar disso. E acho que aqui, [no EUA], também não. As ciências que
são resultado da articulação de inúmeros procedimentos de abstração que vão se consolidando e
recortando um objeto ideal no espaço aparece para nós como se fossem uma coisa do mundo físico.
Quer dizer, a física nasceu como nascem as bananas?
A coisa mais apaixonante que existe em qualquer ciência é justamente ver isso: ver como ela se
formou. Porque se todos os objetos chegam para nós na realidade concreta, eles chegam sempre
misturado a milhões de coisas que não são eles, mas que tem algo a ver. Como é que se vai separando
e depois rearticulando? A história dessa separação, ou seja, da formação dos objetos de uma
determinada ciência, está mais ou menos documentada. Mas e a articulação dela com a realidade
concreta? Não existe nenhuma história disso; nunca ninguém fez. Quando vemos algum cientista que
é capaz de articular uma coisa com outra isso é explicado pelo talento pessoal dele ou pelas manias
dele. Qual era a relação que Newton via entre a teologia e a lei da gravitação universal? Ele via uma
e deduzia uma coisa da outra e a outra da uma. Podia ser loucura, mas que ele fez isso ele fez. Como
é que fizeram depois para separar? Se pensarmos bem, de onde surgiu a noção atual de cientista puro?
Newton não era um cientista puro. Ele era mil coisas misturadas. Leibniz também. Vocês conhecem
alguém que os ensinou isto: como é que se formou a ideia de cientista? Não. Isso não se ensina em
parte alguma. E como é que vamos entender ciências se não sabemos nem como isso apareceu, meu
Deus do Céu?
Então, existem duas maneiras básicas de fugir da realidade concreta. A primeira é o modo marxista
na qual já sabemos tudo e como tudo vai terminar, nós sabemos o todo e, portanto, o resto não
interessa. E a segunda é o kantismo na qual nós não podemos saber nada, só podemos saber
aparências. É claro que o nosso estudo aqui tem que passar por uma crítica aprofundada dessas duas
correntes, mas simplesmente a crítica delas não vai resolver nosso problema. Vamos ter de dar alguma
sugestão prática para que vocês, de algum modo, refaçam suas vidas intelectuais tendo como base
essa tensão permanente entre a realidade concreta e a abordagem científica. A realidade científica
sempre vai fugir da realidade concreta para tentar tornar o seu objeto manobrável intelectualmente,
pois, é claro, não podemos pensar tudo ao mesmo tempo, nós temos de fazer a abstração de algum
modo. O problema é saber de onde abstraímos as coisas e não esquecer o caminho para não achar que
aquele objeto abstrato existe e existe per si, que é uma coisa eterna que surge como, sei lá, as bananas
ou os movimentos da Terra.
Conhecer as coisas pela sua origem e de algum modo conseguir manipular a realidade concreta:
existem meios de se fazer isso e isso, na verdade, se faz. Mas, só é possível realizar isso se dermos
um giro de 180º no processo educacional onde vamos começar a privilegiar a percepção da realidade
concreta e não o domínio dessa ou daquela ciência ou arte particular.
Vamos fazer um intervalo e na segunda parte voltamos com as perguntas.

***
Aluno: Professor, o modelo de algumas universidades para enfatizar as questões práticas das
ciências, como a utilização de laboratórios ou com [inaudível] de matemática que possam prever o
comportamento de algumas teorias, isso de algum modo resgata de certo modo essa [inaudível] que
o senhor colocou?
Olavo: Não, de jeito nenhum. Veja, qualquer processo real que se desenvolve na natureza ou na
história é evidentemente um fato de ordem concreta, isto é, nele tem a confluência de um milhão de
fatores, inclusive acidentais, que ou você percebe como um conjunto ou você não percebe jeito
nenhum. Quer dizer, somando os vários fatores e por mais exatidão que você tenha nos detalhes você
não consegue [reproduzir a realidade].
Então, por exemplo, um dia eu tive a pachorra de ver: de todos os estudiosos de ciência e filosofia
política do mundo, quantos tinham previsto a queda da URSS? Só cinco. Os outros não tiveram a
menor ideia e três anos antes da queda da URSS, por volta de 86/87, foi publicado o livro do Paul
Kennedy, Ascensão e Queda das Grandes Potências, que previa que na década de 90 o EUA ia cair
e a URSS iria se tornaria a potência dominante. Em comparação com isso, as pessoas que haviam
previsto corretamente utilizaram métodos que os cientistas chamariam de impressionismo. Teve um
astrólogo que previu isso em 1956, ele ainda deu a data certa: “Neste dia o negócio cai”. Teve outros
também, mas não por procedimentos quantitativos, aliás, nenhum por procedimentos científicos
admitidos e assim por diante.
Vemos que ao longo da história a previsão certa requer uma certa habilidade que o ensino científico
mata. Nós vamos ver, nas próximas aulas, algumas técnicas utilizadas para manter essa capacidade
viva. Mas, notem bem, a realidade, portanto, a capacidade de previsão, é menos valorizada do que o
consenso científico, ou seja, o pessoal prefere errar com a maioria das ciências do que acertar com
um sujeito que acertou sozinho. Então, a realidade foi simplesmente rebaixada. Na verdade, tudo se
tornou um problema de autoridade, de prestígio científico, de privilégios corporativos e assim por
diante.
Nós vemos, por exemplo, que aconteceu no domínio das letras: a partir dos anos 60/70, a própria
atividade literária vai se integrando na academia e se tornando uma profissão especializada.
Resultado: a literatura acaba – exceto por camaradas que não foram infectados por isso. Na primeira
metade do século XX, a riqueza da literatura americana era de uma riqueza inteiramente absurda. Na
segunda metade, acaba tudo. Não há um autor hoje que possa ser comparado a William Faulkner, a
Nathaniel Hawthorne, a Herman Melville, simplesmente não há mais. O sujeito entra na universidade
para [simplesmente] aprender letras e ele vai tentar tornar aquilo cada vez mais científico. Eu não
nego que possa haver uma ciência da literatura, é evidente, porém se o sujeito passa o tempo todo
estudando teoria crítica, estruturalismo, desconstrucionismo, etc., ele simplesmente não tem tempo
para ler as obras literárias.
Se vocês lerem Balzac, vocês aprendem um monte de coisas sobre a arte da ficção. São coisas que
não se consegue expressar, não se consegue dizer, mas que se aprende a fazer. Ora, o que é um
romancista? Não é um sujeito que compreende tecnicamente a arte do romance, mas um sujeito que
sabe realizá-la. Assim como um pintor não é um teórico de pintura. Mas a partir da profissionalização
dessa atividade as coisas se confundiram entre o que era uma determinada prática e o que era o estudo
científico dela.
Por exemplo, o sujeito pode entender cientificamente todas as artes marciais e não saber bater num
cachorro, enquanto um outro, que não sabe nada, enche todo mundo de porrada. Quer dizer, o saber
fazer é uma coisa e o saber explicar é outra. É claro que pode haver pessoas que façam as duas coisas
ao mesmo tempo, é raridade, mas existe. Agora, normalmente, onde predomina a atividade teorizante,
a outra parte será prejudicada. Isso acontece na própria técnica.
Por exemplo, se vocês estudarem a vida do Nikola Tesla, verão um monte de coisas extraordinárias
que ele inventou que cientificamente eram impossíveis e, no entanto, ele fez. Bom, ele não sabia
justificar aquilo completamente, mas ele sabia fazer. Mas ninguém precisa provar que é capaz de
fazer aquilo que já fez e que é possível fazer – o real é, por definição, possível. Então, em vez de
partir da realidade do que ele tinha inventado e começar a buscar a explicação a partir daí, não,
simplesmente apagaram o que ele havia inventado. Por exemplo, a transmissão da eletricidade sem
[a necessidade de um] fio: houve uma usina que transmitia eletricidade para qualquer lugar do mundo,
e isso sem utilizar fios. Daí dizem: “Não, foi por interesses econômicos que eles bloquearam, o
Thomas Edison estava ligado às indústrias de eletricidade” – bom, pode até ter havido isso, mas eu
acho que o impacto intelectual foi muito mais desencorajador do que isso, simplesmente não havia
explicação para aquilo.
Eu estou bem na área do estudo histórico, sociológico, político, etc., e se nós queremos desenvolver
uma capacidade de compreensão da situação real e, portanto, de previsão correta, bom, nós teremos
que desistir da teorização de muitas coisas. Como é que o sujeito acertou aqui ou ali? Bom, às vezes
eu sei fazer, mas não sei explicar. Há muita coisa que é assim. Por exemplo, se um sujeito vai ensinar
o outro a tocar piano ou a cantar – eu já vi vários vídeos do assim como, por exemplo, o Giuseppe Di
Stefano treinando outro tenor. Como é que ele fazia? “Olha, é assim: [canta]”. E daí o outro imitava.
Não há aquela linguagem teórica, é só mostrando como se faz. [1:30]
Aluno: Professor, pensando na minha área de atuação profissional e também de estudos acadêmicos,
em relação a segurança pública no Brasil, o problema é quando a gente não encontra respostas nem
na teoria e nem na prática. Quanto mais nos aproximamos da realidade concreta, mais caos a gente
encontra. Quando vamos para a área acadêmica, de estudos, para a teoria, também não existe nada.
Só as conclusões dos estudiosos americanos da década de setenta que não funcionam absolutamente
para a realidade da segurança pública. Qual o motivo disso?
Olavo: Pensa bem a expressão “segurança pública”. Essa expressão quer dizer um grupo de sujeitos
que mantém a segurança para todo mundo – o conceito é autocontraditório. Não existe segurança
pública, só existe segurança individual. Alguém faz um roubo coletivo, rouba todos ao mesmo tempo?
Não. Alguém vende drogas para todo mundo ao mesmo tempo? Não. Vende de um por um. Então,
esse é o erro fundamental. Isso é patente à primeira vista. Ninguém pode garantir a segurança da
sociedade, isso é um conceito inteiramente absurdo.
Em primeiro lugar, um sujeito só pode garantir a segurança de alguém se ele está lá [fisicamente
presente]. Pode existir uma polícia onipresente? Ou que seja muito rápida? Aqui a polícia leva de
cinco a dez minutos para chegar ao lugar, mas cinco a dez minutos são suficientes para matar umas
trinta pessoas. Se elas não estiverem seguras, elas próprias, nada pode garantir a segurança delas. A
própria noção de segurança pública é inteiramente absurda. Eu uso também a expressão “segurança
pública”, mas eu sei que estou falando um contrassenso, eu a uso apenas por uma questão
convencional, porque convencionou-se chamar isso de segurança pública.
Aluno: A criminalidade como um [inaudível]...
Olavo: Também. O problema não é a criminalidade, o problema são os crimes. [risos]
Aluno: O sujeito [inaudível] e daí quando se leva isso para a realidade concreta há fatores tão
complexos e tão diferentes que é impossível determinar por que alguém comete um crime e como se
pode prevenir ou combater o crime. A não ser, é claro...
Olavo: Essa ideia de combater o crime pelas causas é outra coisa absolutamente ridícula. Quer dizer
então que precisa haver uma causa determinada para o sujeito cometer um crime? Por exemplo, sei
lá, o sujeito estrangulou a mulher. Você vai saber a causa? Você vai passar o resto da vida estudando
e não vai saber porque ele fez isso. Todo o problema de polícia está colocado de maneira abstrativa
e errada, ou seja, não há noção do aspecto caótico que é inerente à coisa mesma. Quanto mais caos,
mais crime, isso é evidente. O crime é o próprio caos. Então, é o que você quer: “Ah, não temos a
teoria do caos mas vamos controlá-lo” – ‘tá brincando? Por que eu tanto combato este negócio do
desarmamento civil? Porque só existem vítimas individuais de um crime. Existe alguém que tem o
poder de garantir segurança para todos esses ao mesmo tempo? Não. Então eles apelam a raciocínios
rebuscados para as possíveis causas e tentam eliminar as causas para eliminar o crime. Se houver
milhões de causas atuando, isso obriga que aconteça o crime? Também não.
Esse negócio abstratista já entrou profundamente na administração pública precisamente porque a
principal finalidade da ciência é dar suporte à administração pública. Por exemplo, todo projeto de
lei que os caras apresentam precisa apresentar uma justificativa científica ou pelo menos algo que
lhes pareça ser uma. Isso quer dizer que a administração pública se guia pela ciência porque a ciência
é um conhecimento público, é acessível a todos ao mesmo tempo, não é um negócio íntimo que só
um sujeito percebe e que não pode transmitir aos outros, não é assim. Agora, transponha isso para o
plano individual, pegue o indivíduo que na sua vida real e concreta pretenda se dirigir apenas pelos
conhecimentos científicos: todo mundo dirá que ele é um esquizofrênico. Por exemplo, a garota chega
para ele e diz que o ama: “Bom, agora vamos testar cientificamente para ver se é verdade. Prove isso
cientificamente”.
Em todas as decisões concretas da vida a gente precisa de outros critérios de guiamento que não seja
o científico – a ciência pode dar um subsídio, é claro. Isso nós normalmente chamamos de experiência
da vida, mas esse é um nome muito genérico e também não define nada. O cultivo da percepção
concreta, por assim dizer, é uma disciplina, é pelo menos uma arte, e pode ser ensinado, até certo
ponto, pelo menos para que possa haver um ensino que não o reprima, que não o troque por
conhecimento científico. Um dos objetivos deste curso é dar algumas dicas sobre isso.
Por exemplo, eu me lembro a primeira vez que o Leandro Ruschel veio me entrevistar aqui e a
primeira coisa que ele disse foi: “O senhor tem um track record formidável, porque tudo o que o
senhor previu, aconteceu”. Bom, o problema não é eu ter previsto as coisas, o problema é ninguém
mais ter previsto – isso é que é escandaloso. Porque havia coisas que eu via que era óbvio e patente
que era assim, mas que ninguém percebia. E não percebe por quê? Porque não tem a justificativa
científica daquilo. Quer dizer que a argumentação científica vale mais do que a realidade da
percepção? Isso aí, evidentemente, é loucura.
Os caras tentam usar métodos quantitativos. Muito bem, eu não tenho nada contra métodos
quantitativos, mas para quantificar, é preciso quantificar alguma coisa. E essa coisa o que é? Se nem
eles sabem o que é, então o que estão quantificando? Estão apenas se iludindo com números.
Essa fé que as pessoas têm nos números hoje é uma coisa de louco, quer dizer, põe lá uma estatística
e pronto. A estatística, evidentemente, sempre tem algum valor, mas o pessoal a usa como instrumento
de persuasão e com isso aí já estão enganando todo mundo. Sem contar que só faz estatística daquilo
que há interesse em saber. Quando não se quer saber uma coisa, não se faz estatística a respeito. Por
exemplo, quantas mortes existem por iatrogenia no EUA anualmente? Quantas pessoas foram mortas
pela medicina? Não há estatística para isso, pois ninguém quer saber.
Aluno: [inaudível] ...dependendo do que você está querendo.
Olavo: Sim. Também pode.
Aluno: Roberto Campos falava que estatística era como biquíni de mulher: mostrava tudo menos o
mais importante.
Olavo: Claro. Ela não foi feita para mostrar alguma coisa. Só existe estatística do efeito final. Não se
pode fazer estatística das causas profundas de alguma coisa. A estatística é sempre o fato consumado
quantificado. Ela pode ajudar a entender ou pode ajudar a complicar tudo. Depende do controle que
se tem do fato concreto.
Aluno: Mas professor, nesse caso concreto, digamos que você está numa posição, que é algum
dirigente, alguma autoridade que tem que tomar uma decisão em relação à segurança. Para isso,
você precisa ter um ponto de partida para as decisões que você vai tomar, você pode usar a pesquisa
científica, ou a sua própria experiência, ou a experiência de outras pessoas que fizeram coisas que
deram certo. Qual seria o ponto de partida e o melhor caminho para encontrar a solução?
Olavo: Em primeiro lugar, eu só consigo prever essas coisas porque eu não ocupo nenhum destes
cargos, se não, evidentemente, eu teria que primeiro justificar a minha presença no cargo e para isso
eu teria que usar o poder legitimador que tal ou qual disciplina científica ou tal ou qual partido me
dá. Então, em vez de resolver um problema, que é diagnosticar o negócio certo, eu tenho dois. Esta é
a teoria do Aleksandr Zinovyev: para qualquer tipo de profissão você tem que aprender dois tipos de
técnicas; o primeiro tipo é das técnicas que se referem àquilo que a profissão faz, por exemplo, se é
engraxar sapato, então você vai ter que saber alguma coisa a respeito de sapatos; o segundo tipo de
técnica que você precisa saber é como sobreviver e subir na profissão. Na maior parte dos casos, essa
segunda técnica se sobrepõe a primeira. Porque se você está fazendo a coisa direito ou não é um
problema secundário, o problema principal é as pessoas acharem que você está fazendo direito, é uma
coisa subjetiva, controlável até certo ponto. Então, você vai ver que muitas vezes os caras que sobem
na vida não são os melhores da área, mas os melhores nessa técnica. Da profissão mesma eles podem
até não saber nada. Essas coisas existem, esse são fatores sociológicos que precisam ser levados em
conta.
Por exemplo, um sujeito pode ser um gênio naquilo que faz, mas pode ser um sujeito antipático, que
não tem traquejo social, que não sabe se comunicar: ele está ferrado! Ele vai fazer tudo certo e vai
dar tudo errado. Aí chega outro bocó-de-mola que não sabe de nada, mas sabe agradar as pessoas,
sabe puxar saco, sabe manejar a circunstância social: este vai subir. Observe, por exemplo, a carreira
do Franklin Roosevelt: essa era a única técnica que ele sabia. Ele não entendia nada de economia, não
entendia nada de guerra, ele não entendia nada nem mesmo de política, mas ele sabia e entendia de
relações públicas e fez um sucesso desgraçado.
Aluno: Começou a usar o rádio.
Olavo: Sim, ele teve essa ideia. Nunca nenhum presidente havia feito isso.
Aluno: Mas este espaço está se esgotando na segurança pública, com a ressalva da palavra ali que
o senhor fez a pouco.
Olavo: Ah, sim! Todo mundo da segurança pública sobe assim, sobe fazendo bonito. Fazendo bonito
perante quem tem o poder de decisão, não perante o público, perante o usuário. O usuário sabe que
está ferrado de qualquer jeito. Como é que chegamos a este recorde de setenta mil homicídios por
ano? Isso aí é uma espécie de engenharia da inépcia. A inépcia natural não faz isso. É preciso haver
algum outro fator que mantém a inépcia no poder, por assim dizer. Bom, podem até dizer que esses
caras foram todos comprados pelo narcotráfico – é possível, existe esse fator, sem dúvida. Mas eu
acho que esse não é o principal, o narcotráfico não pode comprar todo mundo, desde o sargento de
polícia até o ministro da justiça, o comandante do exército, isso não é possível. Portanto, existe algum
fator estrutural permanente que corrompe o funcionário público.
O poder universitário no Brasil, por exemplo, é uma coisa absolutamente impressionante, eles
mandam em tudo. Todas as desgraças que aconteceram no Brasil, nos últimos cinquenta anos, foram
todas planejadas na USP. Onde nasceu o PT? Na USP. Foi tudo planejado para isso. Agora, não houve
nenhum sujeito para dizer para eles que, subindo pelos métodos do Antonio Gramsci o que seria
preciso fazer era ocupar o governo, ou seja, que eles iriam virar a classe dominante. O sistema
econômico mesmo não mudou nada. Ou seja, a estratégia do Gramsci é ótima, mas não para implantar
o socialismo. Eles não implantaram socialismo nenhum, na verdade, eles corromperam o capitalismo
apenas. Mas quem disse que do capitalismo corrupto irá nascer o socialismo? Não houve um que
explicasse isso para eles. Até no meu próprio filme, O Jardim das Aflições, eu falei isso, eles queriam
o ideal do Raymundo Faoro, que é destruir o estamento burocrático: muito bonito, só que para fazer
isso eles se transformaram no estamento burocrático. E agora? O que vão fazer? Vão se suicidar em
público? Como é possível alguém não perceber uma coisa dessa?
Toda e qualquer proposta ideológica tem dentro de si certos aspectos antagonísticos ou contraditórios
e são esses aspectos os primeiros que vão aparecer na prática. Porque são os que não estão sob
controle. Agora, em geral, as pessoas raciocinam sobre isso positivisticamente: “Tem aqui esse
projeto, o projeto será aplicado à realidade e dará tal e qual resultado” – um sujeito treinado no
marxismo sabe que as coisas não são assim. Mas, nem os marxistas e nem os positivistas perceberam
isso. Por quê? Eu acho, em primeiro lugar, porque eles não querem. Alguém disse – eu não sei quem
foi – que as pessoas acreditam na mentira não porque estão enganadas, mas porque eles querem.
Por exemplo, uma ideia, uma convicção, que o indivíduo tem: qual a função disso no conjunto de sua
existência? É orientar os atos? Na maior parte dos casos as condutas não têm nada a ver com a
convicção. É dar uma justificativa para si mesmo, o tranquilizar. “Estou aqui lidando com o problema
da segurança pública” – mas eu quero resolver o problema da segurança pública ou quero me
tranquilizar? Entendem? Ou seja, existe algumas condições psicológicas e morais que devem ser
cumpridas caso o indivíduo queira investigar a verdade. Uma delas é precisamente essa – ter de estar
totalmente disposto a arcar com qualquer consequência.
Eu tive a sorte de ter feito um voto para Deus quando eu era novo: “Deus, eu quero entender essas
coisas mesmo que eu não as consiga explicar para ninguém” – isso foi a minha salvação. No fim,
acabei conseguindo explicar para um monte de gente. Até que eu conseguisse os instrumentos verbais,
conseguisse dominar o aparato verbal para explicar certas coisas, porém não tudo, apenas uma fração
ínfima, durante muito tempo, eu só pude falar com as paredes, pois se eu tentasse explicar ninguém
iria entender.
Se você quer o conhecimento, você tem que querer o conhecimento. Agora, se você quer o
conhecimento, mas também quer um bom emprego, quer comer umas 150 mulheres, quer ser o
bonitão, quer isto, quer aquilo: “Epa! ‘Tá querendo muito”. É preciso escolher um e seguir nele. O
resto vem por acréscimo – ou não vem. Há um monte de camaradas que fizeram trabalhos
maravilhosos em ciência, em arte, etc., e nunca receberam um tratamento justo da sociedade. O
próprio Leibniz é um deles. Ele começou a ser lido e estudado apenas no século XX, quer dizer, dois
séculos depois de ter morrido. Durante sua vida inteira ele teve uma profissão modesta, ele era
bibliotecário dos duques etc., era o homem mais inteligente que já havia existido no ocidente, no
entanto, teve uma vida relativamente modesta. Porém, ele não se incomodava com isso, pois não era
isso o que ele estava querendo.
A busca da verdade é na verdade uma especialização que tem as suas exigências próprias, porém
essas, tanto no ensino universitário quanto na administração pública, não têm a menor importância,
pois aí sempre se está tratando de outra coisa.
Aluno: Professor, tem um psicólogo que está fazendo bastante sucesso, o Jordan Peterson, que sugere
que nós não temos controle absoluto sobre as áreas que nos interessam.
Olavo: Sem dúvida!
Aluno: Surgem como um instinto e que têm inclusive um reflexo físico no nosso corpo e que temos de
seguir essa conduta de identificar e ir atrás desse impulso. Isso tem a ver com a proximidade maior
com a realidade concreta? Seguir sistematicamente...
Olavo: Tem! Veja, o Jordan Peterson é um camarada que tem um notável senso da realidade concreta
– absolutamente notável – e o que eu acho mais incrível é que as influências intelectuais que pesam
sobre ele são completamente as opostas da minhas – ele segue Nietzsche e Jung, dois caras
inteligentes, mas que, comigo, não são – e ele acaba acertando, isto é, ele vai além do que ele
aprendeu, ele está se guiando pelo o que ele realmente percebe. Ele obtém um sucesso extraordinário
porque as coisas que ele fala todo mundo é obrigado a reconhecer: “Não é que é assim mesmo. Não
é que o desgraçado tem razão!”. Eu não vi ele inventar nenhuma estória da carochinha até hoje, tudo
o que ele fala é certo. Isso evidentemente é um talento dele e não depende das influências recebidas,
não depende do quadro teórico dele.
Aluno: Mas nesse aspecto da intuição, o senhor teria alguma dica de como melhorar essa
capacidade?
Olavo: Tenho sim, vou dar algumas nesse curso, pode deixar. Porém, a primeira coisa é um negócio
que se chama desejo: “O quê que você quer?”. Se você não estiver desesperadamente interessado em
compreender alguma coisa, você não vai compreender – mas aí é preciso desistir de tudo o mais.
Aluno: Ainda sobre esse [inaudível] de as pessoas pensarem e argumentarem muito baseado nos
sentimentos e não motivados pela busca da verdade. Por que o senhor acha que no Brasil isso é tão
mais evidente que no resto do mundo?
Olavo: Esse é outro ponto importantíssimo pelo seguinte: a sociedade brasileira é muito incerta.
Existem muitas incertezas quanto ao que é uma boa conduta, o que é uma má conduta etc. – as pessoas
não têm normas claras para nada. Tanto não tem normas morais, quanto não tem normas práticas de
ajustamento nos ambientes.
Por exemplo, o garoto que sai do ensino médio e entra na universidade. Ele sabe que ali vigoram
outras regras, que as pessoas querem outras coisas, que para ele ser aprovado ele vai precisar agir de
maneira diferente, porém ele não sabe quais são essas normas e ninguém lhe diz: “Olha, aqui, se você
quer que gostem de você, você tem de fazer assim, assim e assado” – ninguém diz; o cara tem que
descobrir tudo na prática, na esfera não-verbal, isso é dificílimo. Isso faz com que os brasileiros sejam
uma população de pessoas muito inseguras.
Aluno: Vai meio que de maneira animal, por instinto. Se adaptando conforme os ambientes que estão
em volta.
Olavo: Ele vai ter de aprender tudo pela experiência. Mas se alguém o diz que ele tem de fazer tudo
assim e assado, ora, ele pode gostar ou não gostar, mas pelo menos ele estará informado, estará mais
ou menos orientado – no Brasil simplesmente não há isso. Por exemplo, aquele negócio de saber se
as pessoas gostam de você ou não: existem certas condutas padrão que aqui nos EUA são muitas
claras; em certos ambientes as regras são claras no sentido do que pode ou não pode ser feito.
Vou lhes dar outro exemplo. O Bruno Tolentino, quando foi para a Inglaterra, ele entrou para Oxford
e, então, lhe convidaram para jantar na casa do professor – isso aí faz parte do ritual, quer dizer, além
das qualidades intelectuais, o sujeito precisa ser aprovado socialmente e tem de mostrar que é um
cara capaz de se deixar conduzir de acordo com as normas de educação da classe superior inglesa.
Ele disse que propositadamente na sobremesa lhe serviram algumas frutas com caroço, porém ele
sabia que uma das normas ali seguidas era a de que “o que entra na sua boca não sai mais”. O quê
que ele fez? Engoliu todos os caroços. Assim, acharam que ele era um rapaz muito educado.
Entendem? Ou seja, ele sabia: “Olha, isso aqui não se faz”.
Outro exemplo. Não se pode assoar o nariz na mesa na Inglaterra – coisa que aqui, no EUA e no
Brasil, todo mundo faz. Então, existe uma norma clara; o sujeito pode gostar dela ou não, mas se ele
quiser ser aprovado naquele ambiente ele vai ter de cumpri-la. Quanto mais antiga é uma sociedade,
mais essas normas são claras.
Por exemplo, na Alemanha. Lá não se passa manteiga, corta-se a manteiga – não se pode amassar a
manteiga, se você fizer isso, os caras já vão achar que você é um bárbaro –, porém lá, as pessoas
avisam. Por exemplo, se você for fazer um cursinho de alemão, no cursinho os caras dizem para você
que se você for para Alemanha não se deve fazer isso ou aquilo. Outra: batatas se comem com colher,
não se pode cortá-las com a faca – bom, é uma frescura, claro, mas é uma frescura estabelecida a
séculos.
Essas normas, que parecem ser opressivas, na verdade, elas libertam o cara. Porque se ele tiver que
sozinho ir descobrindo, quantas vezes ele não vai tomar na cabeça só para descobrir a norma? E no
Brasil é tudo assim, não tem norma para nada; as normas são arbitrárias.
Aluno: Na França existe uma disciplina nas escolas que se chama civilisation française que ensina...
Olavo: Sim, civilisation française, claro. Pelo fato das pessoas serem muito inseguras, elas precisam
se apegar ao que seja o símbolo de segurança psicológica para elas. Pode ser, por exemplo, repetir a
fala da maioria para se sentir integrada a um grupo: “Não, ele é um de nós. Ele não é do outro grupo”
– o sujeito começa a macaquear isso aí para ver se dá certo; às vezes dá, às vezes não dá, mas é tudo
na base experimental.
Então, eu acho que é o povo mais seguro do universo. Porque se vocês forem, sei lá, para a Zâmbia,
lá está cheio de sociedades tribais e nessas as normas são milenares – todo mundo sabe o que é para
fazer e o que não é para fazer.
Isso aí é o que favorece no Brasil a força tremenda que tem qualquer slogan de mídia. No Brasil, as
pessoas mudam de personalidade do dia para a noite porque a mídia mandou – se a mídia disser que
tal coisa é feia, todo mundo a segue.
Aluno: Faz como se estivesse mudado a regra para ser aceito no grupo.
Olavo: Mas é o simulacro de uma regra, não é uma regra desenvolvida pela própria sociedade. Foi
um maluco qualquer que a inventou, que pode ter sido importada anteontem e que as pessoas vão
obedecê-la como se fosse uma regra divina milenar, como se no tempo de Adão e Eva já estivesse
em vigor – eles vão confiar naquilo totalmente, mas também é por experiência que vão fazer isso.
Aluno: Que nem aquele cantor que era paparicado pela Globo, mas que apareceu praticando tiro
num stand e do dia para a noite passou a ser criticado, passou a ser um...
Olavo: Acabou! Esse horror que o brasileiro tem de arma foi inventado recentemente. Eu me lembro
de quando era moleque que todo mundo tinha arma. Meus primos tinham armas, eu tinha armas: eu
ganhei minha primeira espingarda de fogo com oito anos de idade e ninguém foi criticar meu pai por
causa disso.
Aluno: Parte de um sentimento inclusive, de olhar e não gostar ou de achar que é melhor não gostar
disso achando que será uma pessoa melhor, que será mais aceito pelo grupo.
Olavo: Mas isso foi uma norma implantada pela mídia muito recentemente. O sujeito ter medo de
armas: bom, eu também tenho, mas depende de qual lado eu estou, se do lado do cabo ou do lado do
cano. [risos] Mas os caras acham que a arma dá tiro até pelo lado do cabo, porra! Não dá! As pessoas
têm medo físico de tocar naquilo – isso não é normal.
Aluna: Mas esse medo físico de armas não vem de um medo cultivado antes, um medo que eles têm
de ser responsável pela própria defesa?
Olavo: Não. Pois eles têm medo da arma enquanto tal.
Aluna: Eu vejo no Brasil que as pessoas têm mais do que medo. Também o meu avô tinha arma, meu
pai tem arma, meu irmão também quando era criança, eu lembro que tinha um machismo, que era
negócio meio que de família, mas eu usava a do meu irmão. Tinha arma! Mas hoje em dia eu vejo
pessoas que dizem: “Ah, mas é muito bom eu não ter arma. Pois outro dia tive uma discussão no
trânsito e eu estava com minha filha no banco traseiro e minha esposa grávida. O fulano veio para
cima de mim. Foi uma discussão injusta, mas graças a Deus eu não estava armado, pois numa hora
dessas se eu estivesse armado eu poderia ter feito uma besteira!”.
Olavo: Isso: “Graças a Deus eu apanhei, fui para o hospital e fiquei todo quebrado!” – ótimo! [risos]
Aluna: Acham uma graça: “Quem bom que teve o desarmamento e eu não estou armado, senão eu
poderia ter matado alguém que ia me agredir, sendo que eu estava com minha família indefesa dentro
do carro”.
Olavo: Sim! “Que bom que foi ele quem me deu o tiro.”
Aluna: Isso não é mais medo de arma, isso é medo de ser...
Olavo: Mas veja, aí já é outra coisa. É medo do assalto, é medo do bandido. Porém as pessoas têm
medo de armas fisicamente e independentemente da circunstância de uso – já ficou o fetiche. Elas
não querem nem tocar naquilo. Isso realmente não era assim. Houve uma mudança muito rápida.
Aluno: Ou seja, isso demonstra que no Brasil é fácil colocar qualquer ideia na cabeça das pessoas.
Olavo: No Brasil, mudam a opinião das pessoas em 24 horas. Na verdade, não é que mudam a opinião,
mudam o sentimento das pessoas, as reações primárias delas mudam. Quer dizer, a mídia tem um
poder no Brasil que é uma coisa incalculável. No Brasil tem um fenômeno que se chama Rede Globo
que toma 80% da audiência. Aqui, no EUA, quando um canal de televisão pega 3% é uma festa. E
aqui há alguma variedade, até mesmo na televisão se tem, no rádio também tem. Aqui ainda existe
alguma concorrência entre os jornais. Eu comecei a trabalhar na época em que havia isso – quando
um jornal concorria com outro. Hoje não, eles todos dizem a mesma coisa igualzinho – é como se
fosse o mesmo jornal, só trocaram o logotipo; TV a mesma coisa.
Também esse apego a autoridade, que é uma coisa velha no Brasil – isso veio de Portugal e veio
também pelo mesmo motivo. Em Portugal, durante oito séculos, tinha dia que os muçulmanos
invadiam e daí eles tinham de obedecer aos muçulmanos, no dia seguinte, vinham os cristãos e
tiravam os muçulmanos, e aí eles tinham de obedecer aos cristãos. Então, essa insegurança já veio de
Portugal e isso está muito bem documentado no livro de Eça de Queiroz, A Ilustre Casa de Ramires.
O tal do Ramires está permanentemente inseguro quanto ao quê ele deve fazer. Tanto que em um
certo dia uns bandidos seguem ele e ele sai correndo acovardado, na semana seguinte, ele resolve
bater nos bandidos e bate em todos – ele não sabe o que está fazendo. Então, isso já veio de Portugal.
No Brasil, também o governo, o aparato governamental, se constituiu antes da sociedade civil. A
sociedade civil não tinha iniciativa alguma, só o governo era quem tinha. No Brasil, até a iniciativa
privado veio do governo, por causa do Getúlio Vargas. Alguém leu o livro do Mihail Manoilesco,
Teoria do Protecionismo e da Permuta Internacional, e deu para ele ler: “Ah então é isso! Então
vamos fazer uma medida protecionista aqui para aparecer a indústria” – e aí a apareceu a indústria.
Ou seja, o Estado sempre se antecipou a sociedade.
Todos esses fatores fazem com que o brasileiro seja muito inseguro, seja apegado a autoridade e,
assim, incapaz de se proteger e desejoso de ser protegido por outro. As pessoas não percebem a
imoralidade disso, isto é, o sujeito não defende a sua família e quer fazer com que outro se arrisque
para defender a sua família e não a do próprio – eu morreria de vergonha disso, mas é porque eu fui
educado em outra época. Só porque o cara está fardado – um policial que recebe, sei lá, duzentos
reais por mês – ele é quem tem de se arriscar pelo outro? Pelo amor de Deus! É imoral! Mas as pessoas
não percebem isso, elas acham que imoral é o cara ter de se defender.
Aluno: Ou às vezes nem se arrisca, como o policial da...
Olavo: Também pode, o sujeito simplesmente tira da seringa. Mas aqui, o país inteiro reclamou.
Aluno: O senhor enxerga esse movimento contra-revolucionário simbolizado por Trump, Brexit,
Bolsonaro, o senhor considera isso, apesar de ser um fenômeno político, porém, de alguma fora, o
início de um resgate a essa inteligência?
Olavo: Eu não sei, simplesmente não sei. Na verdade, eu não acredito. Porque vai fazer cem anos que
os caras estão cedendo tudo ao movimento revolucionário e de repente vocês elegem um cara e
querem que ele faça tudo voltar atrás? Isso é fetichismo. Que nem no Brasil: “Ah, vamos eleger o
Bolsonaro!” – bom, eu vou votar no Bolsonaro, mas e daí? Eu não acredito que ele possa fazer grande
coisa. Tem coisas que o povo assimilou e ele mesmo vai ter que dessassimilar, quer dizer, também
depende da gente.
Mas, a ideia de que as coisas dependem de você: isso não existe no Brasil, não faz parte da cultura
brasileira. Aqui no Estados Unidos eles ainda a tem – não nos grandes centros, [2:00] mas no interior
ainda tem – a noção de que você tem que resolver os seus próprios problemas. Por exemplo, aqui não
existe empregadas domésticas – a mulher é quem tem de limpar tudo, tem de se virar.
Aluno: Os maiores fenômenos da internet, pelo menos nos canais que eu tento acompanhar, são o
pessoal conservador. São o senhor, Jordan Peterson, Ben Shapiro etc. São os programas mais
assistidos.
Olavo: Sim, porque a gente está dizendo uma coisa óbvia que o povão sabe no fundo, mas eu acho
que isso começou muito tarde. Veja, quando eu publiquei o primeiro livro a respeito desse negócio,
Nova Era e A Revolução Cultural, em 1993, eu já estava atrasado – já estava atrasado vinte anos! Até
as pessoas começarem a ler aquilo, entender alguma coisa e alertarem os demais, passaram-se não sei
mais quantos anos. E para agir um pouco, mais vinte anos. Então, eu acho que tudo isso começou
muito tarde. Eu tenho a impressão que esse negócio de movimento revolucionário de fato dominou o
Ocidente, porque todo mundo está interessado nisso – o pessoal da esquerda está pelos motivos
clássicos deles e os grandes grupos bilionários estão também interessados porque isso aí dá a eles
controle da sociedade.
Um pouco disso aconteceu aqui, como no Brasil. Os caras da esquerda, nos anos 70/80, escreviam
horrores contra o negócio da sociedade administrada. É assim: tem o pessoal do governo aliado a
cinco grupos econômicos e eles mandam em tudo, modelam o comportamento da população e todo
mundo obedece – eu escutei horrores disso – hoje eles estão contribuindo para isso.
Aluno: E tem a liberdade de expressão. Eles lutavam pela da liberdade de expressão.
Olavo: Agora eles não querem mais. É claro, a explicação genérica disso aí é a estupidez humana,
mas simplesmente acusar a estupidez humana é acusar um negócio abstrato. É preciso compreender
o processo real que leva uma pessoa a ter essas reações – no Brasil, eu tenho certeza que é a
insegurança. Eu acho que o medo é o fator mais poderoso na conduta humana, sempre. Se pegarmos
o sexo, a cobiça, etc., tudo vem em segundo lugar, o medo é em primeiro lugar. Aliás, tudo isso existe
porque existe o medo.
Aluno: Agora o professor falou sobre a educação moderna. O senhor poderia falar um pouquinho
para nós – é uma coisa até difícil de encontrar (eu já tentei pesquisar) – como era a educação antes
dessa forma moderna de educar as pessoas.
Olavo: Em primeiro lugar, a educação se dirigia a muito menos pessoas, portanto o programa era
muito mais fácil, evidentemente. Se pegarmos alguns exemplos históricos de lugares onde a educação
funcionou maravilhosamente e deu exatamente os resultados esperados, esses casos existem, mas são
em lugares limitados, para pouca gente e dura pouco tempo. Existe um livro do Stephen Jaeger que
se chama The Envy of The Angels que é sobre o ensino nas chamadas escolas catedrais entre os séculos
X, XI e XII, em que o objetivo deles não era de ordem intelectual, mas era o de formar belas
personalidades, particularmente as dirigidas à vida monástica – e com um sucesso espetacular.
Depois, na fase seguinte, o ensino passa mais para as universidades e se torna um ensino mais
intelectual, mas ainda assim produz resultados extraordinários. Se pegarmos o florescimento
intelectual do século XIII é um negócio absolutamente inexplicável – mas era pouca gente.
Tem um autor que se chama Kenneth Minogue, ele escreveu The Concept of a University, é sobre o
que é uma universidade. Lá ele explica que hoje em dia o pessoal pensa que a universidade é para
formar a classe dominante, para formar os assessores da classe dominante, mas ele diz que não é nada
disso, as pessoas simplesmente queriam aprender e se sacrificavam para isso, faziam sacrifícios
extraordinários. Normalmente as universidades eram mantidas ou pelos próprios estudantes ou por
contribuições de quem jamais esperava receber aquilo de volta, não tinha, por exemplo, um
empresário [a dirigindo] – universidade capitalista não existia e também não existia universidade do
governo. As universidades eram como se fossem clubes de aficionados. As pessoas davam a vida
para aprender aquele negócio e por isso que funcionou, mas mesmo assim, apenas para pouquíssima
gente. Logo depois a universidade começa a ter funções secundárias. Ela se torna uma força política
e mais tarde se torna parte da indústria e comércio.
Se vocês verem no Brasil, as discussões sobre educação são um negócio impressionante. Durante
quase cem anos as pessoas discutem sobre se é melhor universidade pública ou privada. Quer dizer,
ou a universidade é um órgão do poder governamental ou é uma máquina de fazer dinheiro. Eu digo:
e se ela não for nada disso? E se ela for uma outra coisa? Essa hipótese simplesmente não existe no
Brasil. Outra coisa: quando o pessoal fala em educação no Brasil, a primeira expressão que surge é
“investimento em educação” – ‘peraí, parem para pensar, e se a educação estiver saindo muito cara?
E se estivermos gastando muito dinheiro com essa porcaria?”.
Vocês viram quando apareceu o Leonel Brizola com o Darcy Ribeiro fazendo esquemas de educação?
“Primeira coisa, vamos construir um monte de prédio” – uai, se vocês forem, sei lá, em países
mulçumanos, verão escolas funcionando na rua, garotos com uma lousa na mão etc. Vão ver escolas
lá na China: lá tem escolas que funcionam em barracos – e funciona. Eu mesmo vi isso quando era
moleque, pois minhas tias eram todas professoras de escolas do interior e o ensino funcionava muito
mais. Minha mãe só tinha o ensino primário e o que ela aprendeu no primário naquele tempo é um
negócio que hoje em dia só um cara com PHD sabe; e era uma escolinha do interior, uma escolinha
vagabunda, a escola dela. Então, levantem esta hipótese, pensem por um minuto: “Quem sabe não
estamos gastando dinheiro demais com educação? Devíamos fazer uma educação mais barata ao invés
de investir mais” – essa ideia eu nunca vi ninguém pensar. Por quê? Porque pega mal. Os professores
querem ganhar mais dinheiro, os diretores de escolas querem ganhar mais, todo mundo quer ganhar
mais dinheiro, precisamos arrumar emprego para um monte de vagabundo que saiu da universidade
etc. Então, escola não existe para ensinar ninguém, existe para dar emprego para quem não sabe fazer
mais nada – essa é uma finalidade social legítima, afinal algum emprego tem de ser dado para esses
caras. Por que não mandam eles cortar cana? E eles vão querer? Não vão querer.
A falta de dinheiro é usada como explicação da falta de dinheiro. Também tem esse aspecto
dinheirista da cultura brasileira. Os caras acham que a causa de tudo é o dinheiro – ou a falta dele.
Quando realmente as coisas não são assim.
Aluno: Então, eu diria que principal diferença é que a motivação do pessoal no passado era aprender
de fato.
Olavo: Onde deu certo, era. Mas, em geral, não era. Por exemplo, a partir do século XV/XVI, começa
a disputa para ver quem manda na universidade. A Igreja tinha fundado as universidades, mas aí
começa algumas agitações estudantis e essa coisa toda e os caras percebem que aquilo era uma fonte
de poder político. Então, começa a disputa entre os reis e a Igreja para ver quem manda nas
universidades. Então, aí elas já tinham uma finalidade secundária: elas são a massa de manobra para
a disputa de poder.
Aluno: Formação de consensos?
Olavo: Sim, formação de consensos. E aí, evidentemente, a coisa decai muito. Começa a decair desde
aquela época e vem decaindo até hoje – hoje chegou num nível indescritível. Outro dia me passaram
um vídeo de umas meninas fazendo um trabalho de sociologia sobre a obra de Max Weber, elas
fizeram uma musiquinha e estavam cantando: “Max Vébi [♫]” – mas já chegou a esse ponto? Quantos
anos elas têm? Três anos?
Aluno: Me parece, professor, que houve um desenvolvimento em paralelo, onde as ciências mais...
Engenharia, ArtScience, se desenvolveram muito e as ciências sociais fizeram o movimento
contrário?
Olavo: Não. Na verdade, hoje a gente gasta muito mais dinheiro em ciências sociais do que jamais
gastou. O investimento em ciências sociais é monstruoso.
Aluno: Investimento, sim. Mas o resultado final, parece que engenharia e outras ciências
conseguiram entregar...
Olavo: Na área das tecnologias as coisas simplesmente têm que funcionar. Pois deve cumprir a
finalidade que elas dizem que têm. Se não funciona, ninguém compra aquela porcaria, portanto o teste
é imediato. Mas o negócio das ciências sociais é de longuíssimo prazo. Por exemplo, eu tenho um
livro – até esqueci o nome do autor – que monstra especialistas em ciência política que foram testados
para prever coisas óbvias: todos erraram. Sabe o que é 100%? E, às vezes, consultam um astrólogo e
ele acerta.
Aluno: Professor, e quem tem filho novo no Brasil hoje? Qual o melhor caminho em relação ao
estudo?
Olavo: Primeira coisa, antes de pensar no filho, você tem de pensar em você mesmo: “Como é que
eu vou me educar?” – tem que pensar isso. Eu não acho que [educar] criar criança seja uma coisa
muito difícil, eu acho a coisa mais fácil do mundo, porque criança tem o instinto de imitar o pai e a
mãe. Então, o que ela ver você fazendo, ela vai fazer. Por exemplo, se você quer que seu filho seja
educado, em primeiro lugar, não grite com ele – essa é a coisa mais óbvia do mundo. Faça essa
experiência com um cachorro. O cachorro não entende a palavra, mas entende o tom. Portanto, se
você falar uma coisa doce para ele, mas num tom repressivo, ele vai entender que você está bravo e
vice-versa. Eu faço muito isso com o Big Mac, meu cachorro: “Ô seu filho da puta, veadinho” –
enquanto acaricio ele. Ele entende perfeitamente que a minha intenção é boa. Criança pequena é a
mesma coisa. Antes dela ter o domínio da linguagem, ela entende o tom. Então, se você grita com
ela, o conteúdo, o significado do grito, não interessa, mas ela vai aprender a gritar. Se você bate nela,
ela vai aprender a bater – isso eu vi com os meus netinhos aí.
Aluno: O senhor acha que a escola, por exemplo, é secundária ante a isso?
Olavo: Eu não sei. Eu sempre mandei os meus filhos para a escola, porque eu não tenho talento para
o homeschooling. Eu gosto de dar aula para gente adulta, no mínimo adolescente. Criança pequena,
se eu tivesse de pegar uma classe deles, para mim seria a maior infelicidade do mundo. Então, eu
mandava eles para a escola, mas eles diziam: “Por que eu tenho de ir para a escola, pai?” – e eu dizia:
“Olha, só por um motivo: pros caras não me mandarem para a cadeia. Então, isso é um favor que
você está fazendo para seu velho pai. Por favor, tenha paciência e aguente essa porcaria”. Eles
entendiam perfeitamente: “Eu não quero ficar sem pai não, então eu vou para a escola”. [risos] Porque
não tinha nenhum outro motivo para ir para a escola. Alguns se tornaram muito estudiosos, outros
não – isso foi de acordo com a cabeça deles.
Aluno: Eu tenho certeza que durante os quinze anos em que fui para a escola – eu larguei a escola
cedo – eu não aprendi nada esse tempo inteiro. Eu aprendi a ler antes de ir para a escola.
Olavo: Não se aprende nada. Eu digo que eu aprendi biologia e latim porque eu queria aprender.
Porque eu gostava desses professores. Se eu via que o professor tinha uma paixão por aquela coisa,
isso pegava na gente. Agora, se o cara está ali apenas cumprindo um dever burocrático, ele está me
desanimando logo. O resto simplesmente eu não aprendi. Tinha um professor de matemática que
quando ele entrava, eu saia. Eu falava: “Eu não quero aprender isso aí”. E ele respondia: “Ah, mas
você vai tirar zero”. “Pode me dar zero, é justo” – eu respondia. É que nem resistência civil: você
aceita a punição de bom grado – “Eu prefiro a punição”.
Eu estava contando para ela. Meu professor de biologia, na primeira aula dele, ele entrou, sentou e
começou a ler um jornal. Houve 15 minutos de silêncio e todo mundo se questionando o que ia
acontecer. Depois de 15 minutos ele leu uma notícia. A notícia era sobre a disputa que estava havendo
entre o Brasil e a França quanto a pesca de camarão nas costas do Brasil. Daí ele começou a falar do
camarão. Nós ficamos estudando camarão durante seis meses. A economia do camarão, a culinária
do camarão, a pesca do camarão, a anatomia do camarão, a fisiologia do camarão, poder nutritivo do
camarão, tudo, tudo, tudo. Em torno desse negócio, ele nos deu a biologia inteira – aí vale a pena.
Então, isso quer dizer que depois de seis meses nós realmente sabíamos alguma coisa. E o resto do
programa? Que se dane o resto do programa! Esse foi um exemplo que para mim.
Quando li o negócio do John Taylor Gatto, que para estudar alguma coisa o sujeito tem que saber
muito seriamente alguma coisa, por pequena que seja, daí eu entendi. Isso é uma das coisas que tenho
que dizer aqui para vocês. Tem que pegar um ponto no qual você saiba tudo, pode ser uma coisa
muito modesta, não tem importância: tudo vai se articular em torno daquilo.
Outro exemplo que peguei. O Hugo de São Vitor diz que quando ele era menino ele tinha a mania de
anotar tudo. Tudo o que ele via na rua, que diziam para ele, os nomes das coisas, tudo, tudo. Preenchia
cadernos e mais cadernos – e todo mundo ria da cara dele. Mais tarde, ele disse, quando ele escreveu
os seus livros, que tudo aquilo foi útil.
Então, vejam, o problema da inteligência e do desenvolvimento da inteligência não é um problema
realmente colocado pelo sistema de educação. O sistema de educação tem muitas finalidades
secundárias que predominam em cima dessa. Ninguém está interessado no desenvolvimento de suas
inteligências, estão interessados em adestrar vocês para uma profissão – o que não significa que irão
dominar essa profissão, apenas que terão acesso a ela ou que, pelo menos, não serão barrados. Eu já
disse que a educação brasileira não se caracteriza pelo o que ela dá a quem a tem, mas pelo o que ela
nega a quem não a tem. Quer dizer, se vocês não têm determinado diploma, então não têm acesso a
determinada profissão/atividade – nisso a educação funciona: como barreira. Agora, dizer que ela vai
dar acesso? Ela não vai dar acesso a coisa nenhuma. Moldar comportamentos, adaptar o sujeito aos
novos slogans da elite politicamente correta e assim por diante, tem milhares de funções. E a
inteligência do sujeito? Alguém está ligando para isso? Não. O simples fato de termos de cumprir um
programa constituído de várias coisas na qual uma que não tem absolutamente nada que ver com a
outra e que é impossível que alguém se interesse por tudo aquilo ao mesmo tempo, então, se o aluno
se interessa por uma coisa, a primeira obrigação do professor seria reforçar ele naquilo.
Aluno: Existem algumas escolas na Europa que têm o método de ensino muito individualizado,
baseado nisso. Determinada criança de três anos gosta, sei lá, de pintar: eles ensinam matemática,
biologia, tudo com base na pintura.
Olavo: Claro, eles ensinam o resto todo em função daquilo. É uma coisa simples, na verdade. Mas
nós temos que fazer isso conosco mesmos, ao invés de pensar no que vamos fazer com a criança.
Todo mundo se preocupa com a educação do filho, mas e a sua educação? Se adquirirmos realmente
uma educação sólida, frutífera e tal, vamos passar isso para nossos filhos, querendo ou não. Porque
não ensinamos nossos filhos só na hora em que estamos conscientemente ensinando eles. Estamos
ensinando eles vinte e quatro horas por dia. Afinal, eles observam a gente. Criança tem uma
curiosidade mórbida em relação ao pai e à mãe. Tudo o que fazemos, ela está aprendendo a fazer – o
que queremos e o que não queremos. Então, todo o nosso mau exemplo: a estamos ensinando
igualzinho.
Uma coisa que eu acho básica: é sempre ser gentil com a criança se quisermos que ela seja gentil –
isso é a coisa mais simples do mundo. Não é preciso proibir nada, não é preciso mandar nada. O que
fizermos com ela ela irá aprender a fazer igualzinho.
Aluno: Baseado naquela primeira resposta que o senhor deu, da falta de referência que a criança
tem nos pais. Ela tem a referência dos pais, pelo menos até determinada idade...
Olavo: Sim. Mas se o pai também não tem referência, o quê que ele vai passar para a cabeça da
criança? Ele vai passar o caos. Esse negócio, por exemplo, de o pai explodir com a criança porque
ela o desagradou: olha, desagradar alguém é pecado? Tem alguma lei que diga que é proibido encher
o saco de fulano? Então, só se pode passar uma reprimenda na criança se ela fizer algo objetivamente
errado – isso de acordo com cânones estabelecidos e claros. Por exemplo, se o filho maior bate no
menor: não é para ele fazer isso, evidentemente. Mas coisas simplesmente que incomodam? A maior
parte da educação brasileira é isto: proibir as crianças de incomodarem. O quê que é isso aí? É o caos.
É uma reação puramente orgânica que o sujeito tem e ele quer que a criança se adapte aos interesses
do seu organismo. O pior é que funciona – as crianças aprendem tudo isso direitinho.
Vemos pelo intercâmbio na internet como o brasileiro é um povo nervoso. Se ofendem por qualquer
coisa. Eles podem te adorar por vinte anos, a primeira coisa que o desagradar, no mais mínimo, eles
viram 180 graus – é muito impressionante isso. Existe algum estudo sobre isso? Não. Ninguém nunca
estudou. Está cheio de cientista social só para estudar o que não existe. Vão estudar estatística, as
causas gerais de não sei o quê etc. Mas, eu digo, e a vida brasileira real?
Aluno: O golpe de 2016...
Olavo: É, o golpe de 2016. Exatamente.
Aluno: Já tem disciplina agora na faculdade...
Aluno: Curso sobre o golpe.
Olavo: É, curso sobre o golpe. Estão servindo a um interesse partidário, ocasional e temporário –
porque daqui a uns anos ninguém vai falar nisso. Sem falar o golpe de 64, que até hoje é o assunto
que mais se fala no Brasil. A tal da ditadura acabou faz mais de 20 anos e ninguém percebeu isso
ainda. Quando vai ver, a ditadura foi muito ruim para umas duas mil pessoas. Para os outros, não
fedeu e nem cheirou ou foi até boa. Mas todo o ensino tem que refletir o quê? O umbigo dessas duas
mil pessoas! As pessoas não percebem que é um egoísmo infantil isso aí.
Se a maioria estava perfeitamente satisfeita, se sentia segura, estava progredindo, etc., então tem de
moderar – é claro que a gente é contra a ditadura, mas devemos moderar a crítica em função da
opinião geral, do sentimento geral da população e não dar a impressão de que aqueles caras lá foram
Josef Stalin ou Adolf Hitler, como eles querem. Mas o que que é isso também? É infantilidade. É
falta do senso das proporções. Essas pessoas todas não têm educação nenhuma. Não têm educação,
não têm ideia do que é, e querem-na dar aos outros.
Eu acho que isso aqui é a maior tragédia do Brasil. A educação desde o início da nossa república já
começa assim: uma educação do tipo cívico, em primeiro lugar, voltada para os interesses da classe
política dominante. O problema mesmo da inteligência individual e do desenvolvimento nunca foi
colocado seriamente. Agora, não adianta querer dar isso para as nossas crianças; temos de dar isso
para nós mesmos primeiro: “Quais foram os pontos deficientes? O que que eu deixei de aprender? O
que eu precisava aprender e no lugar disso coloquei um monte de minhoca?” – vamos tirar as
minhocas e aprender o que interessa.
Por exemplo, essa questão da percepção do fato concreto: tudo tem que começar aqui. Quer dizer, é
um aprendizado da própria percepção – não é uma coisa difícil. Nas próximas aulas eu vou dar alguns
exemplos para vocês. Por exemplo, como é que a gente perde a percepção com o mundo do fato
concreto? Também vou dar isso daí. Vou explicar como é que isso acontece e como é que faz para
resgatarmos isso.
Mais alguma pergunta aí?
Aluno: Só mais uma. Professor, nesse ambiente caótico que vivemos, muitas vezes a gente se depara
com situações em que a gente precisa corrigir alguém. Gostaria de alguma dica, algum critério,
sobre quão agressivo a gente deve ser e quais situações merecem uma reprimenda, uma exposição
ao ridículo ou coisa do tipo e quando deve ser feita de maneira mais suave?
Olavo: Olha, eu também não sei. Mas o primeiro critério é o seguinte: o que o sujeito fez é
objetivamente errado ou é alguma coisa que somente me desagradou? Se não, você não tem
autoridade para falar. Você vai ter que engolir muitas coisas incômodas. Mas também por que você
não pode engolir sapo? A capacidade de engolir sapo é uma coisa elementar, todo mundo precisa
disso na sociedade humana. Por exemplo, protestar conta tudo que o incomoda: você nunca cresce,
meu Deus do Céu!
Outra coisa que eu noto muito no Brasil: quando alguém fala de uma pessoa: todo mundo tem que
dizer “gosto” ou “não gosto” dela. Aqui no Estados Unidos ninguém fala isso. Aqui, eles podem
gostar ou não gostar e você não vai ficar sabendo tão fácil disso. Quer dizer, você tem que ser o juiz
de todas as pessoas agora? O gosto-ou-não-gosto é uma doença endêmica no Brasil – até mesmo com
relação a ideias. Se alguém perguntar o que o sujeito tem contra algo: o cara nem sabe, mas ele
simplesmente não gosta.
Então, o brasileiro está sendo deseducado desde o começo do século. De vez em quando eles fazem
uma reforma educacional. Pegando o quê? “Ah, vamos pegar os modelos dos países mais
desenvolvidos” – eles vão copiar todas as besteiras que eles fizeram. Se vocês verem a famosa
reforma pedagógica do Anísio Teixeira, é isto: ele pegou os erros todos do John Dewey e os copiou.
John Dewey foi o sujeito que matou a educação americana. Existe um livro que eu recomendo para
vocês, chama-se The Deliberate Dumbing Down of America, da Charlotte Iserbyt. Ela vai
documentando todos os decretos que foram modificando a educação americana, década por década,
que foram imbecilizando todo mundo.
Hoje a universidade americana o que é? É um centro de protestos subjetivos. As pessoas só sabem
reclamar daquilo que não gostam. Não interessa se isso tem base real ou não. Se vocês verem o
movimento negro americano, todo ele é loucura, da primeira à última linha. Por quê? Os pretos
americanos são a 18ª economia do mundo. Eles estão acima da Suécia, acima da Arábia Saudita etc.
Ora, quanto mais rico eles ficam, mais eles se sentem discriminados? Não é possível um treco desse!
Quer dizer, eles estão reclamando hoje de um problema que eles tinham há cem anos atrás – mas
como todo mundo fuma maconha, o tempo não passa, o sujeito sente que ainda está com o mesmo
problema. Dá vontade de pegar um cara desses e falar: “Está bem! Você vai passar uma semana lá no
Brasil. Lá você vai entender o quê que é”.
Aluno: O pensamento dos homens que influenciaram o método científico como Roger Bacon, John,
Beckham, Robert Grosseteste, tem mais semelhanças ou mais diferenças com o positivismo e com o
materialismo?
Olavo: Não. Isso foi tudo a origem do positivismo. Na medida em que vão definindo o campo e os
métodos da ciência, os objetivos de cada uma, vão recortando o fato concreto para tornar uma parte
dele acessível a determinados métodos. Então, só dispõem de certos métodos e, portanto, terão de
adaptar o objeto a eles – isso é inevitável, não tem como não fazer assim, portanto não tem sentido
criticar o método científico. O problema é, em primeiro lugar, levar o processo abstrativo longe
demais. E, à medida que vão criando novos instrumentos matemáticos, a coisa foi piorando ao ponto
de a exatidão matemática predominar sobre o senso da realidade e o sujeito já não saber mais se aquilo
que ele está estudando existe ou não e, pior, ele já não quer mais saber. E daí inventam ainda a
multidisciplinaridade para ver se juntando vários desses recortes eles recompõem [a realidade] – isso
é a mesma coisa que pegar vários aspectos de um gato e juntar para ver se isso recompõe um gato
real: não obtém. Obtém o quê? Obtém um Frankenstein – esse foi o problema. Agora, o fato é que
esses primeiros formuladores do método científico eram pessoas que tinham uma cultura geral e
humanística monstruosa; já os da geração seguinte, não têm.
Aluno: O senhor acha que eles não incorreram nisso?
Olavo: Mas de jeito nenhum. É o que eu estou falando para vocês, se o Newton, por exemplo, achava
que aquilo que ele estava fazendo se enquadrava dentro de uma teoria teológica que ele estava
desenvolvendo, então é porque ele sabia a conexão de uma coisa com a outra – a teoria poderia até
estar errada; como eu acho que estava. Mas e quando vemos um tipo como Leibniz? Que transitava
com a maior facilidade em todos os setores do conhecimento e em todos ele deu alguma contribuição
boa? Ele certamente não padecia desse estreitamento de visão.
Aluno: O próprio Leonardo da Vinci, por exemplo.
Olavo: O próprio Leonardo da Vinci – se bem que ele estava mais na tecnologia.
Aluno: Então a gente pode dizer que a ciência originalmente é algo muito diferente da ciência
moderna.
Olavo: Muitíssimo diferente. Hoje em dia se faz muito mais descobertas, mas elas têm muito menos
valor e são de muito menos duração. Todo ano surge novidades espetaculares na ciência que no ano
seguinte ninguém lembra mais. Agora, o que Bacon – digo o Roger Bacon, porque o Francis Bacon
era uma besta quadrada –, o Leibniz, o Newton descobriu: isso aí não, isso daí tem um valor
permanente, nós ainda nos baseamos nisso.
Outra coisa: além desse estreitamento de visão nas ciências, temos ainda a imagem popular da ciência
– essa é pior ainda, pois as pessoas acreditam nisso como se fosse verdade evangélica. No Brasil é
assim: se alguém diz uma coisa que os especialistas da área todos conhecem, mas não chegou na
imagem popular, as pessoas ficam escandalizadas. Ficam revoltadas, achando que esse cara é
fundamentalista, que é contra a ciência. O quê que é? É o poder da imagem pública da ciência, que é
passada, sobretudo, no ensino secundário. E daí, também, às vezes, para remediar isso, as pessoas
sentem que o negócio está malparado e decidem ensinar pensamento crítico – aí complica ainda mais
o negócio.
Tem que ter, vamos dizer, a ideia de um retorno ao senso do fato concreto. Agora, senso do fato
concreto toda pessoa tem, se não tivesse não conseguiria, sei lá, ir até o banheiro. Então, não se trata
de inventar alguma [2:30] coisa, mas de descobrir algo que já temos e que já exercemos. Só que não
fazemos a ponte entre esse conhecimento espontâneo e o conhecimento de mais alto nível que a gente
aprende na escola – a gente apaga o primeiro para ter o segundo, mas não é preciso fazer isso; não
precisa e não deve. Existe, então, instrumentos suficientes que a própria cultura criou, para isso. A
partir da próxima aula já começamos a ver alguns. Está bem?
Aluno: Professor Olavo, essa apreensão do fato concreto, essa aptidão para de mantê-la, parece que
não são só instrumentos da cultura, mas parece que o próprio organismo humano já é criado assim,
porque todo o nosso contato primário com o ambiente físico, quando a gente é criança, o uso da
boca, do tato, da língua, ou seja, são uma série de apreensões concretas, não estão interessadas em
abstrações. Nosso primeiro aprendizado...
Olavo: É o do fato concreto, sem dúvida. Por isso que eu digo que todo mundo tem, que durante a
infância todos desenvolveram isso aí, mas quando começa o ensino formal é que a coisa complica.
Quer dizer, ao invés de ser uma continuidade natural, não, há uma ruptura e a pessoa se adapta a ela
e acha que agora ela vai ser uma pessoa culta, pois agora ela está falando igual aos outros,
raciocinando igual ao professor, igual ao primeiro da classe, etc., e aí reprime um processo que é
natural. Por isso que eu estou falando: recuperar o senso do fato concreto não é difícil. Duas ou três
dicas vai ser suficiente para vocês pegarem isso para o resto da vida.
Aluno: Lembrei de um texto antigo do senhor que está lá no site: “O Fato Concreto e Depuração
Abstrativa”.
Olavo: Sim. Inclusive eu vou ler essa apostila para ver se ela serve aqui, para a gente usá-la um pouco.
Fazer essa ponte seria uma das tarefas da filosofia, mas a filosofia também se transformou numa
profissão especializada, uma profissão formalizada, burocratizada, sobretudo aqui no Estados Unidos.
E quando chega aqui um sujeito praticando a filosofia à maneira clássica eles não entendem o que o
sujeito está fazendo. É o caso do Eugen Rosenstock: ninguém sabia em que departamento colocar
ele: “Isso aqui é teologia, é direito, é sociologia, é o quê?” – isso aconteceu com muitos, às vezes, os
maiores gênios da área, são prejudicados por causa disso.
Então, filosofia aqui – e na Inglaterra também – é aquele negócio definido por Sir Michael Dummett:
“A filosofia é uma atividade para pessoas que gostam de argumentos abstratos”. Isto é, o sujeito vai
ficar estudando argumentos abstratos o resto da sua vida, poderá se tornar até um ás, um dominador
perfeito da argumentação abstrata, só que ele estará falando sobre nada. Eu pergunto: “Argumentação
abstrata sobre o quê?”.
É um formalismo crescente. E é por isso que quando chega na hora de dar palpite sobre alguma coisa
que está realmente acontecendo esses filósofos só falam besteira. O sr. Bertrand Russell: a primeira
ideia política dele foi um bombardeio nuclear preventivo na União Soviética: “Mata todo mundo” –
grande ideia essa, hein. São trezentos milhões de russos e ele queria já matar todos de uma vez para
resolver os problemas. Passa 20 anos daí e ele muda de lado, ele passa para a esquerda e começa:
“Não, nós temos que condenar o Estados Unidos pelo crime de guerra no Vietnã...” – essa porcaria
toda. Ou seja, ele não sabia o que estava falando antes e não sabia depois. É tudo um negócio
puramente emocional, quer dizer, o cara, talvez o maior lógico do século XX, quando se metia a
analisar alguma coisa real era perfeitamente ilógico.
Aluno: Quem é esse, professor?
Olavo: Bertrand Russell.
Bom, então, por hoje é só. Amanhã seis horas estamos aqui. [2:34:42]

Transcrição: Diego, Israel Kralco, Leonardo Yukio Afuso, Mariana Schurr, Neuton Silva, Rahul
Gusmão e Victor Fidel
Revisão: Rahul Gusmão

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