Sei sulla pagina 1di 34
FREI BOFF 0 neogalicanismo | _~ reja brasileira 39 323f ——— Sem a J. E. MARTINS TERRA, S.J. Tedlogo da Pontificia Comissao Biblica \ Tedlogo do CELAM uy Diretor do Instituto Bfblico Sao Luis | i FREI BOFF 4 DA IGREJA BRASILEIRA | 3 E O NEOGALICANISMO Sao Paulo - 1986 o 00 i es Sue eile. ek ial O QUE E GALICANISMO Galicanismo € uma doutrina teolégica e uma tendéncia politica que lutam pela autonomia da Igreja nacional em relagao Santa Sé Ao lado do galicanismo politico, expresso na “Declaragao da Igreja galicana” em 1682, que fazia depender do poder civil a apro- vacao das atas ¢ leis da Santa Sé, havia o galicanismo religioso, sus- tentado por muitos tedlogos, como Gerson, que pretendiam restringir ao minimo o poder do Papa, cuja func&o ficava reduzida ao papel genérico de inspecao e nao de plena e suprema jurisdicao sobre a Igreja inteira, pastores e fiéis. O galicanismo religioso nasceu no século XV e procurou, por escritos e movimentos politico-religiosos, solapar e corroer o relacionamento com a Santa Sé. Somente a pro- clamagao da infalibilidade papal no primeiro Concilio Vaticano (1870) logrou restabelecer o “principio” e fonte da unidade na Igreja ca- tlica. No Brasil, a hist6ria da Igreja ficou marcada profundamente pelo espirito do “galicanismo” ou regalismo decorrente do regime de Padroado portugués. Hoje ressurge com incrivel viruléncia um novo galicanismo em toda a Igreja catélica e, de modo especial, no Brasil. A acao da Santa Sé contra Frei Boff relacionada com o Do- cumento sobre a Teologia da Libertacéo provocou em todo o mundo uma onda de protestos contra o Papa Joao Paulo II e contra Roma em geral. A grande imprensa em Paris, Nova Iorque, Londres, Ale- manha, Itdlia, consagrou manchetes ao caso Boff, considerado vitima da repressao obscurantista e da tortura mental exercida pelos tribu- nais religiosos do Vaticano a mandado do Papa Joao Paulo II. Cada ‘vez que o caso Boff € mencionado pelos meios de comu- nicagao, faz-se questao de lembrar que a “Congregacao para a Dou- trina da Fé” € o antigo “Santo Officio”, o qual, por sua vez, é 0 antigo “Tribunal da Inquisicfo” que queimou vivos ‘milhGes’ de here- ges. Esse € 0 clima de terror propicio para aureolar a figura herdica do tedlogo brasileiro mostrado nos videos do mundo inteiro como o préximo candidato a mértir, vitima do obscurantismo intelectual e repressivo do Vaticano. = Na realidade, perante a opiniéo publica mundial, nao se trata de um processo contra um tedlogo, mas contra o proprio Vaticano. O Pe. Charboneau, numa frase feliz, resume a questéo: Roma contra Boff, ou Boff contra Roma? Essa frase diz tudo! Pelas repercussdes que 0 caso tomou na imprensa internacional, Roma est4 sendo jul- gada pelo mundo inteiro. Nunca antes a Santa Sé sofrera um pro- cesso mais desgastante e mais corrosivo; Boff logrou provocar uma tal desmitificagéo do Papa Joao Paulo IJ que todos os adversdrios da Igreja e do cristianismo juntos nao teriam a minima chance de conseguir. A revista Time relata o grande nimero de bispos que esto se posicionando ao lado de Boff contra a Congregacéo romana de Doutrina da Fé. O mesmo se passa com organismos religiosos de toda espécie. Participantes de encontros ecuménicos internacionais, membros de Provincias franciscanas de varios continentes, estudan- tes de varias Universidades Catélicas, seminaristas de varios recantos do Brasil, membros de Comunidades de Base e até mesmo varios professores de Teologia de Sao Paulo. A revista Time afirma que o cardeal franciscano Aloisio Lors- cheider tomaré a defesa de Boff, em Roma, contra o Cardeal Ratzinger. Todos os jornais brasileiros relatam que o Presidente da CNBB e outro Cardeal franciscano, D. Paulo Evaristo Arns, foram a Roma para defender o frei Boff. Alguns bispos chegaram a falar de um cisma do episcopado brasileiro se Boff sofrer alguma censura romana. Por toda parte se orquestra uma campanha fantdstica contra o Papa, cujo prestigio ficou reduzido a zero. A imagem do Papa Joao Paulo II foi queimada publicamente, e na PUC de Sao Paulo alguns profes- sores chegaram a rasgar ostensivamente o seu retrato. Nao seria exagero falar de um novo galicanismo que ressurge no Brasil e que ameaca conseqiiéncias imprevisiveis para a unidade e vitalidade da Igreja. Para se ter uma idéia do que foi o regalismo no Brasil colonial e imperial, vale a pena fazer uma pequena digres- sao histérica para recordar essa fase ingléria do catolicismo brasi- leiro. REGALISMO RELIGIOSO NO BRASIL O regalismo dos reis de Portugal, desde 0 comego da coloniza- ¢40, manteve a Igreja do Brasil separada da Santa Sé. Pelo direito de Padroado era o rei de Portugal quem escolhia os bispos e os parocos e fundava novas dioceses e pardquias. Era a fazenda real que recolhia os dizimos com os quais pagava depois (muito mal) os pérocos, que nao passavam de funcionérios reais. Embora o Concilio de Trento tivesse prescrito a criagio de semi- narios em cada diocese, os bispos*no Brasil nao tiveram permissao para fundé-los. O primeiro semindrio episcopal no Brasil foi fun- dado 200 anos depois da criag&o da diocese de Salvador em 1551. Durante o periodo colonial, a formagao oficial do clero devia ser feita na Universidade de Coimbra, que era o centro do regalismo e do jansenismo portugués. Por isso, o clero oficial era doutrinado sistematicamente na oposi¢fo a Roma e na defesa da supremacia absoluta do poder temporal-sobre o poder religioso. Além do clero oficial, parocos nomeados pelo rei, havia os capelaes rurais ¢ cape- laes das irmandades, que recebiam uma formacao rudimentar muito suméria. Essa é a causa da situacéo bem pouco edificante em que se encontrava o clero rural durante os trés séculos do periodo colonial. Somente os jesuitas, que eram economicamente independentes (pelo fato de possuirem fazendas e colégios), tiveram liberdade para a fundag&o de alguns seminérios. Assim, foi fundado em Belém da Cachoeira, no -Recéncavo da Bahia, em 1678, o primeiro seminério do Brasil. Em 1747 comegou a funcionar o seminério da Bahia, no Colégio dos Jesuitas, até a criagao do prédio préprio em 1756. Em Sao Paulo o jesufta Indcio Ribeiro inaugurava, a titulo precdrio, em 1746, o primeiro seminério, que sé foi erigido canonicamente, pelo provincial dos jesuitas, em 1757. Esses semindrios, fundados e sustentados por iniciativas parti- culares, ficavam livres da dependéncia econédmica da corte, das in- fluéncias regalistas do padroado, e lograram manter fidelidade cons- tante as prescricdes do Concilio de Trento. A autonomia econémica, a liberdade apostélica e a fidelidade dos jesuitas & Santa Sé despertaram a animosidade feroz e a perse- = oom guido devastadora de Pombal contra os jesuitas, o qual, em 1759, lavrou o decreto de expulsdéo dos jesuitas de Portugal e de todos ‘os seus dominios. Essa fidelidade absoluta dos jesuftas 4 Santa Sé levou as cortes bourbénicas, inspiradas pelo mais radical galicanismo, a extorquir do frdgil Papa franciscano Clemente XIV, em 1773, a supressdo da Companhia de Jesus. Desse modo, ficou também supressa a limitada influéncia que os Papas tiveram até entaéo no Brasil. Os 590 jesuftas expulsos do Brasil constituiam um tergo do clero brasileiro. Os jesuitas dirigiam entao 19 colégios e semindrios, 3 faculdades de filosofia e teologia, 3 noviciados, 3 Escolas Apost6- licas, 2 casas de retiro, 53 Residéncias Maiores, 111 miss6es (redu- g6es e aldeias). A sangria feita com a expulsdo dos jesuitas paralisou irreme- diavelmente a formacéo do clero brasileiro e deu inicio & sua “pombalizagao”. Sob a orientag&o direta de Pombal, comegou uma doutrinagao sistemdtica dos estudantes clérigos, com idéias liberais e regalistas junto com uma teologia jansenista que combatia feroz- mente o primado do Papa e a vinculacdo com a Santa Sé. A univer- sidade de Coimbra tornou-se o centro do regalismo, que assegurava o controle do Estado sobre a Igreja, e do jansenismo, que negava a jurisdigdio do Papa mesmo nos negécios doutrinais ¢ eclesiais. A influéncia dessas doutrinas anti-romanas atingiu diretamente o Brasil, pois os bispos eram escolhidos, pelo rei, dentre os que tinham estudado em Coimbra. Em 1800, o bispo D. Joaquim José da Cunha de Azeredo Coutinho (primo do reitor da Universidade de Coimbra) fundou o semindério de Olinda (orientado pelo liberalismo e regalismo da época), que produziu todos os lideres eclesidsticos das futuras revolugGes politicas, mas em nada contribuiu para a evangelizagao do povo. No comecgo do século XIX, a influéncia religiosa e crista da Igreja no Brasil era nula. Os padres, formados nas doutrinas rega- listas, no jansenismo violentamente anti-romano, e no liberalismo derivado da Revolugdo Francesa, se opunham a qualquer tentativa de reforma religiosa. Grande parte do clero e a metade do episco- pado nessa época eram magons, mais interessados em politica do que em religiéo. Quando D. Pedro I proclamou a independéncia em 1822, a primeira Assembléia Constituinte Nacional foi presidida pelo Bispo do Rio de Janeiro, Dom José Caetano da Silva Coutinho, Eram magons nao somente o Bispo mas também os 20 padres deputados, entre eles o Pe. Ant6énio Feij6 e o Frei Francisco de Mont’Alverne. 6 A consciéncie desse clero brasileiro era mais nacionalista do que eclesidstica (J. F. Hauck: HistSria da Igreja no Brasil 11/2, 1980, p. 86). Cultivava-se a independéncia da Santa Sé nes conventos e semindrios, como os de Olinda, viveiro de’ liberais e de revolucio- nérios. O liberalismo dos padres e frades nao era apenas no campo doutrinal, mas atingia também sua vida moral e social. A permissi- vidade da época penetrava também nos conyentos. O célebre Frei Caneca teve trés filhos que ele educou no préprio convento. “Coisa bastante normal na época” (Hauck, o.c., p. 131). Esse liberalismo evidentemente facilitou 0 aumento do clero. Em Salvador havia nessa época um padre para 70 leigos. Os deputados (padres e leigos) propunham para o Brasil a su- pressio do celibato sacerdotal’ e a aboligo das ordens religiosas “porque a maior parte dos eclesidsticos vivia maritalmente” (Hauck, 0.c., p. 88). Os Religiosos. A decadéncia moral decorrente do regalismo e da oposigao sistemética A Santa Sé atingiu também o clero religioso. Muitos conventos tornaram-se centro de reunides secretas onde se acendrava o radicalismo politico e grassava 0 laxismo moral. O des- calabro da vida religiosa suscitou a antipatia do povo. Para esvaziar os conventos, logo apés a Independéncia foi proibida a admissio de novigos nas Ordens Religiosas sem expressa licenga do governo. O governo de D. Pedro I caracterizou-se por atos do mais ver- gonhoso regalismo. Subordinou ao seu capricho o “placet” para as bulas pontiffcias. Procurou impedir que os Superiores gerais inspe- cionassem seus religiosos, ou que visitadores apost6licos visitassem seminérios. Fomentou a indisciplina dos religiosos que cairam no relaxamento. Tentou extorquir da Santa Sé que as Ordens religiosas no Brasil ficassem separadas dos respectivos Superiores Gerais da Europa. Como o Papa nao consentisse, 0 governo apropriou-se dos bens das Ordens e proibiu aceitar novicos. Suprimiu a Ordem agos- tiniana da Bahia (1824), a dos Carmelitas e dos Capuchinhos de Per- nambuco (1830). O espirito regalista e anti-romano tomou conta dos clérigos € deputados do novo império, que promulgou varios decretos plei- teando: a) maior autoridade e autonomia para os bispos, distanciando a Igreja do Brasil das influéncias romanas; b) combate aberto contra as Ordens Religiosas, empregando todos os meios para | sufocar as que ainda sobreviviam; ¢) hostilidade ao Ntincio Apostélico, consi- derado représentante de uma poténcia ou de um Governo temporal e nao do Pastor de todos os catélicos. —T— Em 1831, quando D. Pedro I abdicou o trono, um grupo de padres paulistas liderados por Diogo Ant6nio Feij6, Joaquim Manuel Amaral Gurgel, Idelfonso Xavier de Oliveira e outros, instaurou um movimento de reforma do clero, inspirada numa eclesiologia nacionalista, fruto do regalismo radical, e numa concep¢ao autocéfala da Igreja, na qual os bispos teriam ampla autonomia e plenos poderes em suas dioceses com um tipo de relacionamento mais de coorde- nag&o que de subordinagaéo com Roma. O Padre Feij6, Ministro da Justica, e depois Regente (1835-37), foi o maior inimigo da supremacia papal da Igreja no Brasil. Feijé utilizou todo seu poder para arrancar a jurisdigéo eclesial da Santa S€ € centralizé-la diretamente no episcopado brasileiro. Para conse- guir seus objetivos, Feij6 indicou para Bispo do Rio de Janeiro o Pe. Anténio Moura, professor de Direito em S. Paulo, fautor das idéias reformistas e um dos mais ardentes opositores da supremacia papal. A Santa Sé rejeitou o nome de Moura. A Regéncia nao aceitou a rejeigo da Santa Sé e ameacou romper a Igreja do Brasil com Roma. Para acelerar o cisma, Feij6, tinico Regente, em 1835, nomeou a si mesmo para bispo de Mariana. Somente a entronizacao de D. Pedro II, em 1840, logrou abortar o cisma da Igreja brasileira. O longo reinado de meio século de D. Pedro II (1840-1889) foi de total estagnago da Igreja. Durante os tltimos quarenta anos de seu reinado D. Pedro recusou a criac&o de novas dioceses “para nao aumentar o nimero dos militantes em favor da Curia Romana”. D. Pedro II continuou a politica pombalina e, inspirado pelo liberalismo da revolugao francesa, tentou eliminar as ordens religio- Sas para apossar-se de seus bens. Proibiu a vinda da Europa de novos membros das antigas Ordens. Proibiu a implantagZo de novas casas © a recepc&o de novigos. O decreto de 1855 visava & supressdo pro- gressiva das ordens. De fato, a decadéncia das Ordens religiosas foi dramética. Os franciscanos, que no século XVIII tinham chegado a contar com 1.200 professos, foram praticamente extintos. No fim do Império havia apenas dez franciscanos, todos octogendrios, em todo o Brasil. Em 1868 os onze mosteiros beneditinos no Brasil con- tavam com apenas quarenta monges idosos. A reforma catélica Foi nessa conjuntura dolorosa que o grande Papa Pio IX lutou corajosamente pela renovacéo da Igreja e do clero, promovendo a abertura de semindrios segundo 0 espirito do Concilio Tridentino. =—s— Ele mesmo deu o exemplo construindo em Roma, em 1851, 0 Colé- gio Pio Latino-Americano, cujos seminaristas, formados no Colégio Romano (Universidade Gregoriana) numa sadia ortodoxia e no amor e fidelidade ao Papa, haveriam de cimentar o fundamento s6lido do episcopado em toda a América Latina. Quase todos os bispos da América Latina e do Brasil seriam, desde entao, ex-alunos do Colégio Pio Latino-Americano. Inspirando-se no exemplo de Pio IX, fundou- se em S. Paulo, em 1856, o Seminario Diocesano Imaculada Conceigao e Santo Inacio de Loyola, Surgiram outros seminérios sob a orientagao direta da Santa Sé, Fortaleza (1864), Rio de Janeiro (nova orientagao 1869), Porto Alegre (1865), Sao Leopoldo (1913). Esses semindrios tornaram-se a matriz fecunda da renovagéo do clero e da romanizagao da Igreja no Brasil. A caracteristica da hierarquia catélica brasileira nesse periodo € sua vinculacao crescente com Roma e sua fidelidade incondicional ao Papa. Causa deste estreitamento de relagdes com a Santa Sé foi a tomada de consciéncia, por parte de nosso clero e episcopado, do sentido universal da Igreja e da importancia do Papa como vinculo e centro de unidade ortodoxa. Por ocasifio da celebragdo do Concilio Vaticano I (1869-1870) havia 50 seminaristas brasileiros no Colégio Pio Latino-Americano. Os sentimentos de nossos bispos em relac&o ao Papa ficaram expres- sos na unanimidade do episcopado brasileiro em defesa da infali- bilidade papal. O estreitamento de uniao com a Santa Sé e a centralizagao maior do episcopado em torno do Romano Pontifice ensejaram a reforma do clero e a revitalizagéo extraordinéria da Igreja, que viu florescer vigorosamente sua vocac&o missiondria. A proporgdo que nossos bispos iam-se vinculando mais profun- damente com a Sé Romana, crescia também o senso de comunhao e mitua solidariedade. A vinculacdo mais intima com Roma provocou dupla reacao oposta. Por um lado, a Igreja no Brasil tornou-se mais “romana” € menos laicizada; por outro, por causa de sua maior aproximacao com o Sumo Pontifice, a Igreja viu delinear-se com absoluta nitidez © campo de seus adversdrios liberais, que passaram a hostiliz4-la abertamente. Dentro da Igreja, essa maior identificagaéo com sua catolicidade Jevou a uma busca constante de maior independéncia da Igreja em face do Estado, a um discernimento mais nitido entre os problemas politicos ¢ religiosos, a uma autonomia espiritual do episcopado ¢, —-o2=— sobretudo, a uma formacao mais especifica do clero norteada pelo zelo apostélico e austeridade de vida. Desse modo, houve uma sensfvel melhora qualitativa na formagao religiosa, doutrinal e apostélica do clero brasileiro. Mas, quantitati- vamente, a situaco a que chegara o clero no fim do Império era alarmante. Em todo o territério nacional, que contava entéo 14 mi- Ihdes de habitantes, havia apenas doze dioceses e 700 padres, na maioria religiosos estrangeiros. Com a proclamacéo da Repiblica, que pés termo ao regime de padroado, pela primeira vez a Igreja brasileira péde experimentar sua autonomia e liberdade. O episcopado brasileiro teve liberdade para se reunir. A reuniao do episcopado nacional em Sao Paulo, em 1890, foi a primeira experiéncia de uma atividade colegial no Brasil. Nessa reuniao foi escrita a Pastoral Coletiva de 1890 e se planejou o “Concflio Plendério Latino-Americano”, o qual se reuniu em Roma, em 1899, no Colégio Pio Latino-Americano, para estudar a aplicagao do Concilio Vaticano I. Em 1900, Ledo XIII promulgou oficialmente os decretos do Concilio Plendrio, que estabelecia para toda a América Latina as célebres “conferéncias episcopais”. Em 1915, os bispos do Sul, reunidos em Nova Friburgo, elaboraram as “constituigdes das Provincias Eclesidsticas do Brasil” que orientaram toda a for- magao do clero brasileiro até a realizagéo do Concilio Plenério Bra- sileiro. Em 1939 realizou-se no Rio o Concflio Plendrio Brasileiro, cujos decretos, revistos e aprovados pela Santa Sé, orientaram toda a pas- toral e formacao do clero até o Concflio Vaticano II. Esta rapidissima evocacdo da histéria da Igreja no Brasil poe em evidéncia a influéncia decisiva do Concilio Vaticano I (1870) na renovagao religiosa do Brasil. © dogma do Primado papal logrou galvanizar, em torno do Pon- tifice Romano, toda a Igreja Catélica, dando-lhe extraordindria vita- lidade e renovado dinamismo. Foi a atuaco vigilante do magistério papal que preservou a Igreja, no fim do século passado e comeco deste, das heresias do racionalismo e do modernismo teolégico que dilaceraraia dramaticamente as igrejas protestantes. Ressurgir do liberalismo teoldgico Depois do Concilio Vaticano II, com a criagao do Sinodo dos Bispos e canonizagao definitiva das Conferéncias Episcopais nacio- nais, ressurgiu um novo anseio para a descentralizagéo do poder e do magistério eclesidsticos. —<3 10. Uma nova “Reforma” na Igreja Urs Von Balthasar escreve num artigo publicado no jornal ita- liano AVVENIRE (10 gennaio, i980, pag. 5) que visitando Karl Barth, pouco antes de sua morte, ele Ihe narrava que Hans Kiing (em cuja probidade cientifica nao mais confiava) The teria dito um dia, em tom de triunfo: “Teremos uma nova Reforma na Igreja”. E Barth Ihe tinha replicado: “Uma reforma j4 foi demais”. Para Hans Kiing o problema do modernismo e do liberalismo teolégico, que negavam a revelagéo e 0 sobrenatural, tinha sido recalcado pelo Magistério romano mas nao resolvido. Por isso, King ressuscitou todas essas teses da teologia do protestantismo liberal. As teses defendidas por Kiing atingiam a medula da revelagao crista: negavam a divindade de Cristo, o mistério da Trindade, a pessoa do Espirito Santo, a encarnacio do Verbo, a fundagio da Igreja por Cristo, a instituigdo da eucaristia, o sacerdécio ministerial, a infali- bilidade da Igreja... Em 1979, a Conferéncia Episcopal Alema publicou um volu- moso dossié, no qual se transcreviam todas as tentativas frustradas dos sucessivos presidentes da Conferéncia Episcopal alema, os emi- nentes tedlogos, Cardeais Julius Dépfner, Hermann Volk, Joseph Héffner e 0 Bispo de Rotenburgo, Georg Moser. Durante mais de dez anos, nao somente os presidentes da Conferéncia Episcopal alema, mas também da Conferéncia Episcopal sufga, tentaram convencer Kiing a corrigir seus erros. ‘A Congregaco para a Doutrina da Fé fez reparos a Kiing desde 1967 a propésito de seu livro “A Igreja”. Kiing respondeu em 1970 com um livro negando a infalibilidade da Igreja. Entao a Congre- gagio publicou em 1973, 1974, 1975 varias declaragdes e adver- téncias do proprio Papa Paulo VI para Kiing nao continuar a de- fender tais erros. A reacdo de Kiing foi a publicacfo de sua obra “Ser Cristio”, na qual acumula todos seus erros cristolégicos, trini- tarios, eclesiolégicos e sacramentérios. Por isso, a Sagrada Congre- gacdo pata a Doutrina da Fé se viu obrigada a publicar em 1979 uma Declaragdo verificando que Hans Kiing, nos seus escritos, nao manteve integralmente a verdade da f€ cat6lica, e portanto ja nao podia ser considerado tedlogo catdlico. Antes da “Declaragao” oficial da Santa Sé ja os principais te6logos europeus, tais como Yves Congar, K. Lehmann, W. Kasper, J. Ratzinger; e sobretudo K. Rahner, tinham. publicado reservas essenciais criticando varios aspectos dos escritos de H. Kiing. — i — Apesar dessa concordanci total dos tedlogos e das Conferén- cias Episcopais alema e suiga com a Santa Sé na condenacéo das obras de Kiing, a “Declaracao” da Congregacaéo da Fé provocou um desgaste do prestigio da Santa Sé. Numerosos protestos e abaixo- assinados foram apresentados a Santa Sé. Esta digressio sobre o caso de Hans Kiing ajuda a entender melhor o caso de Leonardo Boff. A questdo da ortodoxia de Boff tem certa analogia e grande dessemelhanga com a de Kiing. A semelhanga é que Boff, influenciado por Kiing, também acha que as questdes dogmaticas levantadas pelo. modernismo: e libera- lismo teolégico foram recalcadas: autoritariamente pelo Magistério, mas nao resolvidas. Por isso, elas devem ser retomadas novamente. Boff declara-se’ varias vezes um tedlogo liberal: A diferenca € que Boff, ao lado da sua opcao doutrinal, niti- damente européia, pelo liberalismo ‘teolégico, fez também outra op¢ao pela teologia latino-americana da libertacdo. Nesta segunda opcdo. Boff nao tem nada de original ou extra- vagante. Sua teologia da libertagao € absolutamente correta e nao dé margem a nenhuma censura. De fato, a Santa Sé nao condena nem critica nos escritos de Boff nenhum ponto tipicamente da teo- logia da libertagao. Todas as criticas da Congregacao para a Doutrina da Fé con- tra os escritos de Boff se referem exclusivamente a elementos da teologia liberal de caréter tipicamente alemao ou, mais precisamente, bultmanniano, que nada tem que ver com a teologia latino-americana. Esta duplicidade ou dualidade de escritos de Boff pertence a dois niveis distintos, a dois compartimentos estanques absolutamente incomunic4veis, Boff é cidadao de dois mundos, de duas galaxias de pensamento, de duas nacdes que nao mantém relagdes diploma- ticas. Ha dois frei Leonardo Boff. O frei Leonardo Boff da teologia da libertagao é absolutamente ortodoxo. Sua colaboracdo neste nivel s6 se salienta pela quantidade e pela extensdo ou difusdo."Qualita- tivamente, o pensamento de Boff sobre a teologia da libertacao nada tem de original ou de ‘extravagante. Seus numerosos escritos so orquestragdes variadas do mesmo tema. Nem nos escritos da linha latino-americana de caréter politico-social, nem nos escritos de indole liberal-individualista de cunho europeu-bultmanniano, Boff sofre a minima influéncia do marxismo. Em nenhum de seus escritos ele utiliza a andlise marxista. -—2— A Instrugéo da Santa Sé Sobre Alguns Aspectos da “Teologia da Libertagéo” nao visa, nem atinge, nem de Jonge, nenhum livro de Leonardo Boff. Para entender o “caso Boff” é indispensdvel ter presente a sua dicotomia: Boff 1, tedlogo liberal; Boff 2, tedlogo latino-ame- ticano. Boff 1. Além de uma inteligéncia alerta ¢ de um inegdvel talento poético, Boff é dotado de antenas sensibilissimas para captar os apelos do momento. Suas publicagdes revelam enorme senso de oportunidade ou oportunismo teoldgico. Sua tese doutoral, escrita em alemfo, depois de cinco anos de endoculturagéo germ4nica em Munique, versa sobre um dos temas centrais do Concilio Vaticano II, A Igreja como Sacramento. & ‘a tese predileta da recente teologia alema-holandesa: Semmelroth, Rahner, Schillebeeckx. ‘Ao retorniar ao Brasil em 1969, a polémica sobre Teilhard de Chardin estava no auge. Boff publicou seu primeiro livro, em cujo titulo j4 aflora sua proclividade pelos hibridismos literérios: O Evan- gelho do Cristo césmico. A realidade de um mito e o mito de uma realidade (1970). & um apanhado da cristologia teilhardiana, A principal questao que preocupava os tedlogos europeus ¢ norte-americanos na década de 70 era a questéo da secularizacao. A revolucdo tecnolégica provocou nas superpoténcias industriais a “experiéncia da morte de Deus”. Essa questao muito palpitante no hemisfério nérdico inspirou a segunda publicagao de Boff: A Oracao no mundo secular. Desafio e Chance (1971). Nessa mesma época os fautores da Teologia Dialética (Barth, Bultmann, Brunner, Gogarten) chegam ao impasse da “crise” (Christentum als Krisis). Bof{ trans- planta para o Brasil essa candente problematica “evangélica” no seu estudo A crise da Fé como chance de nova vida. Elementos de uma teologia da crise (1971). Quando Boff estudava na Alemanha, Bult- mann ainda nao tinha perdido seu prestigio, mas a polémica com os pés-bultmannianos ja esquentava. Reflexo dessa polémica é 0 livro de Boff: A Ressurreigéo de Cristo. A nossa Ressurreig@o na Morte. Dois grandes tedlogos, o catélico Rahner, com sua teologia trans- cendental, e o protestante Moltmann, ilustraram a Universidade de Miinchen, no periodo germanico da formagao de Boff. Boff presta- Ihes homenagem com sua obra: O Destino do Homem e do Mundo. © grande tema que explodiu na teologia pés-bultmanniana, no fim da década de 60, foi a “Nova Hermenéutica”, que inspira quase todos os estudos cristolégicos dos discfpulos de Bultmann. Boff, con- vidado a escrever uma série de artigos para uma revista de espiritua- —13.— lidade sobre as modernas correntes cristolégicas, assumiu esta nova perspectiva, No momento de incorporar esses estudos num livro, a teologia da libertagdo explodia na América Latina devido a tese doutoral de Gutierrez e aos estudos de Assmann. A idéia genial de Boff foi dar a esse livro o titulo de Jesus Cristo Libertador. Alias, esse nome Ihe foi sugerido por um artigo de C. Mesters. Um dos capitulos do livro j4 trazia esse titulo: Jesus Cristo, Libertador da Condiga@o Humana, Mas esse capitulo nada tinha que ver com a problematica latino-americana; trata-se de uma pura tradugao da Gesetzlosigkeit da teologia alema. Para dar um colorido latino-ame- ricano, Boff limitou-se a acrescentar, 4 tltima hora, quatro paginas, o item 4 do capitulo II: Para uma cristologia na América Latina. Esses cinco pontos, que Boff assinala como exclusividade da teologia latino-americana, nada tém que ver com a teologia da libertacao, e foram profundamente ironizados e rejeitados pela critica especiali- zada (ver L’Ami du Clergé, 18.12.1975, p. 750). O Cristo Libertador € 0 livro mais radicalmente alemao de todos os escritos de Boff. Nenhum “pobre” latino-americano reconheceria esse livro como expressao de sua fé. E uma obra de sintese genial. Os principais recenseadores desse livro, Romer, Zilles, Libanio (ale- mies ou recém-chegados da Alemanha), saudaram a contribui¢ao nova que essa sintese trazia para o Brasil. Juan Luis Segundo (sem nenhum favor, autoridade m4xima na teologia latino-americana da libertagao), na sua tltima obra classifica esse livro de Boff, junta- mente com outro de Jon Sobrino, como “Cristologia desde Alemafia para América Latina”. Por inerivel que parega, foi essa obra integralmente germnica e pés-bultmanniana, langada através de habilissima montagem pro- pagandistica numa revista popular de grande tiragem, que colocou em 6rbita o nome de Boff, como novo satélite da libertagéo, nos céus da América Latina. No livro que Boff publicou logo em seguida, Vida para além da Morte, ele ainda ignora toda a rica literatura latino-americana da teologia da libertagao sobre a escatologia cristé. Toda a sua biblio- grafia € européia, preferentemente alema e protestante; as tnicas excegdes sao, talvez, E. Bettencourt e B. Kloppenburg. De fato, tra- ta-se de um compéndio dos manuais europeus. O senso agudo do oportunismo teoldgico aparece em duas outras obras de Boff; a primeira é: Minima Sacramentalia. Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos. Ensaio de Teologia Narrativa. Francisco Taborda, numa longa recensdo, desmonta este livro, co- 14 — megando pelo préprio titulo (Perspectiva Teolégica 8 (1976), 99-102). Utilizando o mesmo processo de dar o titulo de Cristo Libertador a uma obra que nada tem que ver com a teologia da libertagao, Boff aproveita a onda norte-americana e européia da “Teologia Narra- tiva” e batiza seu livro com o titulo de “Teologia Narrativa”, Mas na obra de Boff trata-se de um puro rétulo postigo. Taborda critica também o gongorismo dos trocadilhos (ver o titulo!) e as pseudo- etimologias que chegam as vezes ao cimulo do ridiculo, como, por exemplo, a etimologia de Experiéncia: “que € a ciéncia ou conhe- cimento (ci-éncia) que o homem adquire quando sai de si mesmo (ex) e estuda um objeto por todos os lados (peri)”. Seré dificil reunir mais arbitrariamente elementos tao disparatados sob a pretensao de etimologia cientifica. Em todo’ caso, este livro nfo tem a minima relagao com a teologia latino-americana. E uma produgao cem por cento alema. O segundo livro que mostra o oportufiismo das publicagdes de Boff é sua mariologia, intitulada: O Rosto Materno de Deus. Ensaio interdisciplinar sobre o Feminino e suas Formas Religiosas. Boff aproveita o impacto do escdndalo provocado por uma frase do Papa Joao Paulo I, aproveita as ondas dos movimentos feministas e o interesse episddico pelos arquétipos jungnianos. Trata-se de outro bélide caido dos céus nérdicos em nosso hemisfério sul. Boff escreveu também varios artigos sobre a teologia da liberta- ¢40, artigos que foram depois duplicados ou triplicados ao serem editados em duas ou trés obras com nomes diversos. Esses artigos em geral sio muito equilibrados, mas repetem as teses jd classicas da teologia latino-americana. No todo, nao apresentam nenhuma novidade revolucionéria. Mas foram eles que granjearam ao frei Boff um renome irternacional e Ihe ensejaram um respaldo quase sa- grado por parte da hierarquia nacional. Nenhum desses escritos sobre a teologia da libertaco foi alvo de qualquer reparo por parte da Santa Sé. Todos os livros criticados pela Congregacao da Fé pertencem ao Boff 1, isto é, A teologia liberal pés-bultmanniana. Vale a pena ressaltar, em cada um desses livros, as teses impugnadas. JESUS CRISTO LIBERTADOR Citar alguma frase de Boff ¢ mostrar que ela é herética, pro- vocaria logo a acusagéo de que a frase fora do contexto muda de sentido. No entanto, nenhum contexto pode mudar uma proposi¢ao -— 15 — errada, mesmo que o contexto seja verdadeiro. Mas, para evitar tal acusag&o, vou seguir o penetrante estudo de Armando Bandera sobre este livro de Boff. As afirmagées do catedratico de cristologia da Universidade de Salamanca analisam as proposigdes de Boff dentro de seu contexto. (A. Bandera: La Muerte de Jesucristo en la Cristo- logia de L. Boff, em “Cristo Hijo de Dios.y Redentor del Hombre”, Pamplona, 1982, pp. 851-873). Negagfo da consciéncia de Jesus Para Boff, Jesus nao aceitou nenhum titulo messianico, Sobre o titulo de Servo, tao relevante em Isafas, Jesus nao tinha a menor idéia. Os evangelhos foram elaborados com uma mentalidade “mi- tica e acritica” (p. 46). Mais do que falar sobre Jesus, os evange- Ihos “retratam o desenvolvimento dogmético da Igreja primitiva” (p. 48). “Os evangelhos atuais representam a cristaliza¢o da dog- mética da Igreja primitiva” (p. 46). O processo de Boff é paradoxal. Ele aceita o postulado de Bultmann sobre o abismo entre o Cristo da f€ (apresentado nos evangelhos) e o Jesus histérico, que nos € quase inacessfvel: “os evangelhos nos contam pouco do Jesus his- t6rico”. No entanto, quando lhe convém, Boff aceita tranqiiilamente a jesuanidade dos textos evangélicos. Das 122 vezes que ocorre a expressio Reino de Deus, 90 sao do préprio Jesus histérico (p. 65). A Consciéncia de Jesus “Jesus moveu-se dentro do horizonte escatolégico. Porém, para Jesus Reino de Deus n@o é um outro mundo, mas este mundo trans- formado” (p. 66). Como seus contempordneos, Jesus achava que essa transformagao ia acontecer nos seus dias, dentro de sua geragao. Como todo mundo, ele acreditava na irruptura iminente do reino (p. 70). Jesus sofreu realmente a tentacéo do messianismo politico de seu tempo (p. 73). A tltima ceia nfo tem nenhum cardter sacri- fical, € apenas a celebracao de uma festa de amigos que aguardam para breve a irrupcéo da nova ordem. Jesus entdéo nao previa sua morte, nem celebrou a eucaristia, nem se imolou como vitima volun- téria de_um sacrificio? A todas estas questées, Boff responde nega- tivamente no seu artigo esclarecedor: La conciencia de Jestis: “Vida Nueva”, (9-11-1980), p. 24. “A grande tentagao de Jesus foi a cruz. Foi a tentacéo mais grave contra a fé, o desespero. Jesus se dé conta que vai morrer e -que Deus nfo intervém” (Boff, a.c., p.c., nota 6). “Jesus entrevia es a possibilidade da morte, mas nao tinha certeza dela.” Mesmo na cruz “Jesus achava que Deus nfo iria deix4-lo morrer, mas no tiltimo instante haveria de salvé-lo” (p. 130). No artigo citado antes, Boff esclarece o desespero de Jesus na cruz: “Jesus fundamentalmente ¢ fiel a Deus ¢ espera que Deus vai salvé-Io. Por isso pode contar com a morte, mas para ele nao é definitivo que v4 morrer. Somente na cruz cai na conta de que vai morrer e que o Pai nao intervém. Por isso, grita seu grande desespero: Por que me abandonaste? Tem que aceitar a morte” (ibid., n. 6). Bandera observa que a negacao da consciéncia messiénica e da oblagao voluntéria que Cristo fez de sua vida é muito mais radical is “Declaragdes” de Boff publicadas na revista “Vida Nueva” do que no livro Jesus Cristo Libertador. No entanto, essas “Declara- ges” sao a resposta de Boff & Congregacao para a Doutrina da Fé, que ja o tinha intimado a corrigir suas afirmag6es, como o préprio Boff revela (Cristo, Hijo de Dios y Redentor del Hombre, Pamplo- na, 1982, p. 861, nota 9). Se Jesus nado previu sua morte e nao ofereceu sua vida pela libertagao dos homens, entéo as profecias que Cristo fez de sua paixéo € morte, que constituem a estrutura arquiteténica dos trés Sinéticos, néo passam de profecias forjadas pela Igreja primitiva. “Sao vaticinia ex eventu, formuladas posteriormente... literaria- mente tatdias” (p. 128). Outra dificuldade maior provém da fé da Igreja na eucaristia. Se Cristo néo previu sua morte, nao péde também instituir a euca- ristia, na qual se renova sacramentalmente sua oblac&o sacrifical para a salvacéo de todos os homens. Boff escreve literalmente: “A discussao € ainda mais aguda acerca do contetido histérico dos textos eucaristicos de caréter sacrifical” (p. 128). Na sua Declaragao, ja mencionada antes, Boff revela que a Congregacdo para a Doutrina da Fé lhe pediu esclarecimentos sobre esta questao: “Alegam, diz Boff, que partindo da hipdtese [de que Jesus nao previu sua morte] nao se torna compreensivel a instituicfo da eucaristia”. Boff res- ponde afirmando que a eucaristia vem da pratica do Jesus histérico mas conforme a interpretagao que lhe deram os Apéstolos quando conferiram a eucaristia um sentido eclesial como sinal de unidade. “Para mim, diz Boff, nfo hé nenhum problema. A eucaristia tem sua origem em Jesus, mas partindo da histéria de Jesus... Ent&o me dizem que assim nao salvo suficientemente a instituigao da euca- ristia... E af estamos” (a.c., p. 24, nota 6). on Gy A resposta de Boff realmente nao poderia convencer a Con- gregagéo para a Doutrina da Fé. De fato, a resposta de Boff parece ser vélida: “A eucaristia tem sua origem em Jesus, partindo da his- t6ria de Jesus”, logo, nfo € invencio humana. Mas na perspectiva teolégica de Boff essa frase sobre a “hist6ria de Jesus” fica esva- ziada’ de sentido. Com efeito, segundo Boff, na histéria de Jesus nfo h4 base alguma para atribuir-Ihe a previséo da morte. Dentro da histéria de Jesus, entendida tal como Boff a defende, nao existe a minima possibilidade de atribuir-Ihe a instituic&o da eucaristia, tal como a entende a fé da Igreja, isto ¢, como o sacrificio-sacramento no qual sé renova sacramentalmente a morte redentora do Senhor. Boff elabora uma histéria de Jesus que exclui radicalmente a propria possibilidade da eucaristia. Portanto, carece de sentido dizer que a eucaristia tem sua origem em Jesus “partindo da histéria de Jesus”, porque esta formula, que parece tao realista, no pensamento de Boff, nao possui nem pode possuir contetido algum. Bandera analisa minuciosamente a insuficiéncia da anélise bi- blica que Boff faz sobre a consciéncia messianica e a morte de Jesus (o.c., pp. 863-873). Seria fastidioso resumir aqui todos esses numerosos textos convergentes, espalhados em todos os evangelhos, que supdem e confirmam a historicidade da previsao que Jesus tinha de sua morte, previamente conhecida e voluntariamente aceita. O préprio Papa Joao Paulo II, na Alocugéo Inaugural em Puebla (28.1.1979), lamenta essa reducgfo operada na cristologia: “cala-sea vontade de entrega do Senhor e a consciéncia de sua missdo reden- tora”. A divindade de Cristo Apesar de Boff admitir verbalmente a divindade de Cristo, per- manece sempre a conviccao de que esse Deus € bastante estranho. Nao sabe como terminaré sua vida, mesmo na cruz tem que lutar contra o desespero que se apossa dele e o faz gritar desoladamente: “Por que me abandonaste?”. A impecabilidade desse Deus que sofre crises e tentagGes contra a fé “nao consiste na pureza de suas ati- vidades éticas, na retidfo de seus atos individuais, mas na situagao fundamental de seu ser diante de Deus e unido a ele” (p. 219). Esta afirmagéo de que a santidade de Jesus “nao esta ligada a reti- dao de seus atos fundamentais” parece supor a possibilidade de pre- varica¢ao comio ato. Por isso, a Comissao Teoldgica Internacional volta a insistir na nog&o da “verdadeira divindade do Filho” (ver Grego- rianum, 61(1980), p. 629). — 18 — A Igreja Bandera analisa, por fim, a concepgao da Igreja e dos Sacra- mentos no livro Jesus Cristo Libertador de frei Boff. Se Jesus par- ticipava das expectativas apocalipticas e estava persuadido da imi- néncia da irrupgio do reino, nao poderia ter pensado em fundar uma Igreja e muito menos instituir sacramentos. Cristologia latino-americana? A conclusao de Bandera é 6bvia: Uma Cristologia inspirada na f€ do povo latino-americano seria diametralmente oposta & cristolo- gia exposta “en Cristo, el libertador, Ja cual lejos de ser Jatinoame- ricana, esté marcada ostensiblemente por el protestantismo liberal de origen germ4nico” (0.c., p. 873). Este estudo critico do livro de Boff, feito por um tedlogo caté- lico, concorda integralmente com a obra densa de dois tedlogos pro- testantes de Chicago que acaba. de ser traduzida em portugués, H. Conn/R. Sturz, Teologia da Libertagao, Ed. Mundo Cristao, S. Paulo, 1984. Esses tedlogos americanos fazem de inicio duas observacoes importantissimas. A primeira € a dependéncia de Boff do protestan- tismo alemao. De fato, o nome de Bultmann € citado seiscentas vezes por Boff. “Nomes e conceitos como os de Bultmann, Tillich, Barth, Moltmann e Pannenberg, junto com Kasemann e Bonhoeffer, apa- recem com freqiiéncia em seus-escritos. HA uma influéncia enorme de termos filosdficos sobre Boff derivados dos protestantes alemies: © liberalismo moderno de Harnack, o existencialismo de Barth e Tillich, 0 conceito de esperanga e hist6ria de Pannenberg e Moltmann e, sobretudo, a evolugao hegeliana” (0.c., p. 90). A segunda observagao importante é a chamada de atencao inicial para 0 artigo sobre a revelacio bfblica publicado por Boff em 1972: ‘A mensagem da Biblia Hoje. Para Boff, a atualidade da Biblia nao esté no texto original mas no contexto contempordneo do cristao de hoje. A £é emerge quando o homem em seu esforco sente-se limi- tado e sente sua impoténcia. A finalidade da Biblia nao é dizer algo sobre o passado mas “abrir nossos olhos para a realidade que esta- mos vivendo em vista de uma transformagao” (0.c., p. 91). Assim, no pensamento de Boff, “a Biblia nao é um livro que nos revela ver- dades a respeito de Deus, do homem e do nosso futuro. Ao contrario, é um livro humano que testemunha a busca do homem de uma expli- cago do mistério que ele vive neste mundo. A Biblia é um livro que aponta para uma atuagao neste mundo sem falar em termos de sal- —19— vagao” (ibid.). Esta tese de Boff é muito importante para entender a sua hermenéutica politica do texto biblico. H. Asmann repete este mesmo conceito de Boff quando diz que a revelacio nao esté na Biblia, mas na meméria viva do pobre de hoje. A revelacdo nao é algo passado, mas se processa dinamicamente hoje, na experiéncia de fé. “A pergunta central: Jesus era ou nao Deus? Ele sabia ou nao sabia que veio para morrer na cruz por nds? Para Boff, é evidente que nao sabia” (0.c., p. 92). Quanto a ressurreigao de Jesus, Boff nega que o cadaver tenha revivificado. Para Boff, o timulo vazio nao tem sentido. “As aparigdes de Jesus foram trans-subjetivas, isto 6, estérias geradas pelo impacto do ministério apostdlico dos discipulos” (0.c., p. 92). “Apés desmis- tificar a morte e ressurreicao de Cristo, vem a vez da soteriologia” (0.c., p. 92). Boff aceita as palavras de Kessler: “Jesus nao entendeu sua morte como sacrificio expiatério, nem como satisfagao, nem como resgate. Nem estava em sua intencao precisamente mediante sua morte redimir os homens” (0.c., p. 93). Para Boff, € claro que pode haver cristianismo sem Cristo. “O cristianismo se encontra onde o homem diz um ‘sim’ ao bem, & verdade e ao amor. E isso nos leva A questo de Deus. Em nenhum lugar do livro Boff declara o que ele quer dizer por ‘Deus’. Deus € a transcendéncia que encontramos no outro. Encarnar o mistério de Deus € tornar-se realmente humano” (0.c., p. 93). “O natal é a festa da secularizagdo. A encarnacdo é a realizacao radical de uma possibilidade humana. O homem é um modo de ser do préprio Deus. Hominizagao do homem explica sua divinizagéo” (ibid.). Nao se trata aqui de julgar sobre a f€ pessoal de Boff, nem sobre o sentido que ele queria dar as suas proposi¢6es. Trata-se do modo como seu livro € entendido pelos leitores, inclusive por dois professores de Teologia da Universidade de Chicago. Para Boff, Jesus nfo é Deus mas “subdivino”. Boff concebe Jesus como homem, to homem que é subdivino. E, naturalmente, © Reino de Deus, segundo Boff, realiza-se aqui e agora (0.c., p. 90). Os professores Harvie Conn e Richard Sturz analisam também as outras obras de Boff. Mas, por ora, vamos deter-nos neste primeiro livro que consagrou Boff como o pai da teologia latino-americana da libertacdo. E claro que se trata de um grande equivoco. O Cristo Liber- tador, como observa J. Luis Segundo, é um produto tipicamente ale- mio, escrito por alguém que tinha acabado de fazer uma aculturagao de cinco anos na teologia pés-bultmanniana germanica no fim da — 20— década de 60. Boff fala que lia a literatura protestante alema com olhos brasileiros. Pode ser. Mas, certamente, com dculos bem ger- manicos! Foi esse livro que provocou o primeiro processo da Santa Sé contra Boff. “Desde 1972, por intermédio do Nuincio Apostélico D. Umberto Mozzoni, 0 livro Jesus Cristo Libertador foi enviado a Congrega¢ao para a Doutrina da Fé. Em maio de 1973 dois tedlogos (Alfaro e Salguero) foram designados para o exame de more, Em abril de 1975 comegou o processo com trocas de correspondéncia entre Boff e a SCDF” (Cf. Jornal do Brasil, 5.01.80, p. 4). No dia 1.° de abril a SCDF escreveu ao Pe. Boff pedindo novas explicacdes e exigindo maior prudéncia em seus escritos futuros (J. B., 5.01.80, p. 4). Em fins de 1979 foi anunciado em Roma o processo contra Boff. O presidente da CNBB, D. Ivo Lorscheiter, que se achaya em Roma, dirigiu-se a Congregagao para a Doutrina da Fé a fim de colher infor- mag6es € assumiu em nome da CNBB o compromisso de ajudar a cla- rear a questdo a respeito de frei Boff e seu livro (Folha de S. Paulo, 13.01.80, p. 6; Jornal do Brasil, 13.01.80). D. Ivo garantiu que frei Boff Ihe prometera que nao tinha a minima intencao de criar qual- quer problema dentro da Igreja. O que a Igreja lhe pedisse (fosse a Santa Sé, fosse a CNBB) ele faria sem nenhuma dificuldade (FSP ibid., J.B. ibid.). Nesse mesmo. dia a imprensa anunciava que os dois cardeais franciscanos D. Alojsio e D. Arns e o presidente da CNBB, D. Ivo, jé se tinham pronunciado a favor de Boff (Globo, 29.01.80). Outros quatro cardeais brasileiros teriam pedido a conde- nagéo de Boff (Globo, ibid.). Numa entrevista dada nessa ocasiao, Boff afirma que “o processo do Vaticano nfo devia ser interpretado como uma interpelagaio de toda a Teologia da Libertacio”. “O tema que. originou este processo, diz Boff, nada tem a ver com a teologia da libertagio. Trata-se de um problema hermenéutico sofisticado e dificil da teologia em geral” (J.B., 01.02.80, p. 17). Final Feliz Por essa ocasido, Boff afirmou numa entrevista: “Desde que a Comissao representativa da CNBB tomou a minha defesa e D. Ivo explicou ao Papa minha fidelidade ao caminhar da Igreja e adesao teolégica ao magistério, parece que a situagao serenou e se suspen- deram os trémites em curso. Pessoalmente, nao dou importancia a essas questdes de politica eclesidstica. Nao julgo ser necessério man- —A— ter uma cAtedra académica.” Nessa mesma entrevista Boff nao deixa de criticar 0 conservadorismo do Papa Joao Paulo II: “Hoje, nos damos conta de que o tempo do grande campo aberto e livre para a reflexdo teolégica, que foi apandgio do pontificado de Paulo VI, de certa forma passou” (O Globo 12.03.80, p. 31). “O Vaticano esté adotando uma linha da igreja polaca” (Globo, 21.01.80). Frei Boff empenhou sua palavra de que haveria de corrigir seus escritos, mas, até hoje, esse penhor ainda nao foi resgatado. Reagao do Frei Boff Em: vez de corrigir os varios pontos contestaveis de seu livro Jesus Cristo Libertador, indicados pela SCDF, Boff elaborou o artigo “Consciéncia de Cristo” publicado na revista “Vida Nueva” (09.02.1980), no qual radicaliza suas posicdes. Analisando as obras de Boff, os tedlogos americanos H. Conn e R. Sturz afirmam que a raiz de suas posigdes julgadas heterodoxas é sua concepcao de revelacéo considerada como um processo sempre presente (0.c., p. 91). E essa mesma concepgao que inspira o livro de L, Boff sobre a escatologia crista: Vida para além da morte (1973). Boff coloca a pergunta: “Donde sabe a f€ crista acerca do futuro do homem e¢ do mundo, do céu, do purgat6rio, do inferno, do juizo?” (p. 26), € ele mesmo responde dizendo que o “recurso S. Escri- tura nfo € a resposta adequada e convincente” (p. 16). Afirma que a revelacdo se dé na historia vivida e refletida. “Portanto, € vendo e vivendo a vida que podemos descobrir o futuro da vida” (p. 16). “Analisando a dinaémica imanente da vida humana descobrimos ai © principio-esperanga, a prospectiva e a tendéncia para o futuro” (p. 26). Esta negacao de uma revelacao transcendente € fortemente assinalada: “o conhecimento da palavra de Deus se dé na histéria e dentro da palavra humana, a partir do homem e dos seus dina- mismos, da hist6ria e seus dinamismos” (ver a critica de C. Bins, Perspectiva Teoldgica, 6(1974) 124-127). £ esse mesmo principio que norteia Boff na sua interpretagdo da “Paixdo de Cristo — paixaéo do mundo” (1977). Aplicando 0 mé- todo bultmanniano da Critica das Formas, Boff afirma que os evan- gelistas fizeram uma leitura transcendente e religiosa do drama da paixdo. Essa leitura nada diz para o homem de hoje. “Nosso inte- resse € diferente daquele do Novo Testamento” (p. 19). “Devemos situar-nos na mesma situagéo que os evangelistas”. Mas nosso Sitz im Leben é profano e politico. Por isso, diz Boff, com o mesmo direito — i que os evangelistas, fazemos hoje nossa releitura politica do drama da paixao (pp. 18-19). Joao Paulo I] tem Presente esta “releitura politica” quando diz aos bispos, no Discurso Inaugural de Puebla: “Ocorrem hoje relei- turas do Evangelho, Em alguns casos se silencia a divindade de Cristo. Em outros casos se pretende mostrar Jesus como comprometido poli- ticamente, como um lutador contra a dominagao romana e contra os poderes, e inclusive implicado na luta de classes. Esta concepcao de Cristo como politico, revolucionario, como o subversivo de Nazaré, no se coaduna com a catequese da Igreja”. O Papa condena “tais releituras e suas hipéteses, brilhantes, talvez, mas frdgeis e incon- sistentes”, “que aduzem como causa da morte de Jesus o desenlace de um conflito politico e calam a vontade de entrega do Senhor e mesmo a consciéncia de sua missdo redentora”. No Documento de Puebla (179 € 559), os Bispos latino-americanos retomam essa adver- téncia do Papa. “Boff considera Hans Kiing um dos maiores intelectuais do mundo. A condenacao de Kiing revela a predominancia do Poder sobre a inteligéncia” (Globo, 21.01.80, p. 2). Por isso, Boff tomou @ seu cargo levar adiante cada uma das teses de Kiing, condenadas pela SCDF. Seu livro Eclesiogénese. As comunidades eclesiais de base reinventam a Igreja (1977) em certo sentido € uma releitura, com idiotismos latino-americanos, das principais invengdes eclesiolgicas de Kiing. Trés teses, sobretudo, so bastante tipicas. A primeira trata da fundacao da Igreja (pp. 51-72). Jesus pregou o Reino de Deus ¢ nao a Igreja. A Igreja surgiu da misséo aos gentios, totalmente fora da perspectiva de Jesus. A segunda tese € a possibilidade de um leigo celebrar validaments a eucaristia (73-81). Boff deriva a funcéo mi- nisterial da Igreja do sacerdécio universal de todos os batizados. Toda a comunidade é sacerdotal. A terceira tese de Kiing, assumida por Boff, trata do acesso da mulher ao Sacramento da ordem minis- terial (81-108). Boff fundamenta sua tese no fato de que “Maria possuia um sacerdécio ministerial muito mais eminente do que aquele dos ministros da Igreja” (p. 96). (Ver as criticas de F. Taborda, Perspectiva Teolégica: 10(1978) 338-339). O tinico livro verdadeiramente original e profundamente exé- tico de Boff € O rosto materno de Deus. Ensaio interdisciplinar sobre © Feminino e suas formas religiosas. F. Taborda critica longamente esta obra (Perspectiva Teoldgica, 14 (1982) 386-388). Quero salien- tar apenas algumas novidades de Boff. Taborda destaca a contradi- ~~ 35 Go entre Jesus Cristo Libertador e o presente livro. “O Cristo de Boff é um Cristo plenamente humano, tao humano que seus criticos chegam a suspeitar que ele nega a divindade de Cristo; tao humano que o préprio Boff infere a divindade a partir da humanidade: tao humano assim sé Deus”. “Em contraposicao, na figura de Maria, Boff acentua tanto o divino que parece cair no monofisitismo ou numa cristologia mitolégica. Assim, ao falar da concep¢ao virginal, Boff argumenta que Jesus, homem-Deus, foi concebido de forma humano-divina” (Taborda, o.c., p. 387). Com efeito, no § 4 da p. 158, Boff fala da “natureza humano-divina de Jesus”, 0 que, literalmente, é puro monofisitismo. Para explicar a maternidade divina, Boff escreve: “O Espirito Santo intervém no lugar do homem” (167). Colocar o Espirito Santo no lugar e no nivel do homem é nao somente fazer mitologia, mas fazer a terceira pessoa da Trindade pai do Cristo, que teria ent&o dois pais: a primeira e a terceira pessoas da Trindade. “A tese fundamental da mariologia de Boff € a uniao hipostd- tica de Maria ao Espirito Santo”, diz Taborda. Nao ha diivida, essa insisténcia. pesada e crassa em identificar Maria com o Espirito Santo, para mim, é inexplicdvel. Boff coloca no mesmo nivel a to- mada da natureza humana de Jesus pelo Verbo ¢ a tomada da rea- lidade humana de Maria pelo Espirito Santo. “O vir do Espirito significa assumir a realidade humana de Maria, assim como 0 Filho assumiu a realidade humana de Jesus” (173). Essa afirmacao de Boff nao € episddica. Ele a repete dezenas de vezes. Jé na p. 114, ele definia: “Maria, a partir do momento do fiat, vem hipostaticamente assumida pela Terceira Pessoa da SS, Trindade”. “Maria é elevada ao nivel de Deus para poder gerar Deus; s6 o Divino pode gerar o Divino”.. Em linguagem tradicional da Escola, 0 adjetivo “divino” indica a natureza, “divindade”. Logo, teria Maria (divina) gerado a natureza divina de Cristo? A insisténcia de Boff é desconcertante: “H4 um nexo causal entre a divinizag@o de Maria e a divinizagao do fruto concebido em seu seio, Jesus. Sendo Maria assumida pelo Espirito e assim alcada a altura de Deus, o fruto que dela nascer s6 poderd ser Deus” (p. 114-115). A partir da tese da “divinizagio de Maria”, Boff aplica integral- mente a Maria a tese da “intercomunicacao das propriedades” (peri- corese). Esta € a decorréncia da uniao hipostética do Espirito Santo com Maria: “tudo o que se pode atribuir ao Espirito Santo pode-se atribuir também a Maria e vice-versa, tudo o que se pode atribuir —24— a Maria pode-se stribuir também ao Espirito Santo, consoante & regra geral do discurso teolégicu concernente & pericorese” (p. 116). A primeira vista, esta tese extravagante (que contradiz todas as correntes teolégicas contemporaneas, da cristologia “de baixo”, ou das teologias polfticas latino-americanas) parece desenterrar velhas heresias dos coliridianos que adoravam a Virgem. Mas 0 tedlogo chi- leno Hernén Alessandri, numa impressionante andlise do livro de Boff feita em 1982 numa assembléia geral os Bispos do CELAM, pretendeu demonstrar que, de fato, a tese de Boff nao divinizava Maria, mas desdivinizava o Cristo. De fato, uma série de textos de Boff parece elevar Maria ao mesmo nivel da divindade que com- pete ao Filho. Desse modo, fica estabelecida a igualdade ontoldgica entre Maria e Cristo. Mas outra série de textos reduz Maria a con- digaéo puramente humana: toda a parte V do livro de Boff, “A Mito- logia”, demitiza completamente (a luz da mitologia paga do culto prestado as deusas-maes, As deusas virgens, e A luz dos arquétipos do feminino na psicologia e nos matriarcados) 0 culto prestado a Maria. Para Alessandri, a conseqiiéncia dessa reducfo de Maria a dimensGes puramente humanas, depois de ter sido equiparada ple- namente a Cristo, é bastante clara: Boff nega também a divindade de Cristo. i Esta releitura do tedlogo chileno tem pelo menos o valor de mostrar como o livro de Boff pode ser entendido pelos seus leitores, inclusive um professor de teologia. Igreja: Carisma e Poder. Ensaios ce Eclesiologia Militante, 1981. Sobre este livro de Boff, que esté sendo examinado agora pela SCDF em Roma, nada preciso dizer, A obra foi julgada e condenada pelo “tribunal” da Provincia eclesidstica & qual Boff pertence: a “Co- misséo Arquidiocesana para a Doutrina da Fé do Rio de Janeiro”. Dois eximios professores de Teologia, D. Romer e U. Zilles, fizeram uma leitura critica, indicando os pontos falhos do livro de Boff que deveriam ser corrigidos. ‘Outro grande tedlogo, D. Boaventura Klop- penburg, num minucioso estudo publicado na revista Communio 1(1982), 126-147, faz um substancioso estudo critico dessa obra. pondo em evidéncia, ao lado de seu valor, as numerosas falhas. Outro tedlogo bem conhecido, D. Estévao Bettencourt, faz, no n. 260 da revista “Pergunte e Responderemos” (1982), 15-26, uma andlise me- ticulosa, sugerindo algumas correcées. A reag&o de Boff contra a “Comisséo Arquidiocesana de Doutri- na” € lamentdvel. Em vez de procurar reformular, numa linguagem ay | menos ambigua, os pontos criticados, Boff logrou instrumentalizar toda a estrutura da Editora Vozes para uma desproporcionada auto- apologia. Um ntmero inteiro da Revisia Eclesidstica Brasileira, da qual Boff € diretor, foi intitulado com © mesmo nome do livro de Boff: Igreja: Carisma e Poder, REB 42(1982), fasc. 166. Nesse livro, Boff procura demonstrar que os professores de Teologia e Bispos que o censuram nao sabem ler. Somente 0 povo simples € capaz de entendé-lo. Outra revista franciscana, Grande Sinal, consagra tam- bém um nimero todinho em apologias a Boff. E uma pena que ne- nhum dos apologistas se tenha dado ao trabalho de explicar ou des- fazer os erros indicados. A impresséo que se tem ante essa incrivel artilharia pesada, ou verdadeiro rolo compressor usado por Boff, € de que foram acionados nao apenas para esmagar ¢ triturar seus criticos, mas para aterrorizar e dissuadir de antemao qualquer velei- dade de quem pensasse em criticé-lo. Todos os apologistas defendem a ortodoxia de Boff. Mas no Editorial da revista “Grande Sinal” Frei Neylor Tonin reconhece que “o proprio Boff admite que sua obra no é feita s6 de acertos”, isto €, Boff admite e sabe que ha muitos erros. “Hé também palha a ser jogada ao vento ou queimada na trilhagem das anélises mais demoradas” (0.c., p. 326). O que nos deixa perplexos € porque as obras (com tantos desacertos) continuam a ser reeditadas e traduzi- das, sem nenhuma corregio. Por que as corregdes sugeridas pela Santa Sé e pelos criticos nao s&o realizadas? Tentarei dar uma res- posta a estas questdes. E uma suposicao minha. Como ponto de partida, é absolutamente evidente que Boff nao herege. Boff € um homem inteligentfssimo e conhece muito bem a teologia catélica. Em todos os seus-escritos ele afirma a divindade de Cristo, a instituigao divina da Igreja, da eucaristia, do sacramento da ordem, etc. A tnica heresia de Boff seria talvez aquela que Bornkamm chama de heresia literéria perpetrada pelos “tedlogos que fazem poesia e poetas que fazem teologia”. Por isso, todas as frases de Boff que parecem negar algum dogma serao logo desmentidas por centenas de frases em contrdrio. Seré sempre fécil para Boff defender-se contra qualquer acusagéo de heterodoxia, citando uma profissdo explicita de fé. As frases criticéveis de Boff nao afetam o essencial de seus escritos. Sao meros condimentos picantes que visam a espicagar 0 gosto e des- pertar o apetite do leitor. As citagdes de Bultmann e de seus dis- cipulos tém a fungio de engodo e chamariz. Tem o mesmo valor — 2% — literério que os calemburs, trocadilhos e pseudo-etimologias pito- rescas: (utopia-topia, proposta-resposta, anunciar-denunciar, ortodoxia- ortopraxia). Boff poderia eliminar de seus livros todas as frases que deram margem a criticas (sobre a consciéncia messianica de Jesus, predigao de sua morte e ressurreigéo; oblagéo voluntéria do Senhor, a fundagdo da Igreja, a instituigaéo da eucaristia etc.) sem que hou- vesse qualquer mudanga substancial de seu contetido doutrinal, En- tao, por que Boff nao realiza essa poda? Porque entao seus livros perderiam a graca! Toda a mordéncia desses escritos, que os torna apetitosos e comercidveis, vem desses engodos pseudo-heréticos. Esta é uma das diferencas entre Kiing e Boff. Kiing nao pode renegar suas teses consideradas heréticas porque fazem parte de suas convicgdes profundas. E o drama doloroso de uma consciéncia pe- rante sua verdade. Boff diz repetidas vezes que nao teria dificuldade alguma em repudiar suas semi-verdades e slogans teolégicos: Boff ¢ a teologia da libertagao Cada vez que se fala de um “processo” romano contra Boff, toda a imprensa (clerical e civil) grita que é a teologia da libertacdo ou as Comunidades de Base que estdéo sendo agredidas. Criticar 0 Boff seria criticar a teologia latino-americana, a teologia do terceiro mundo que sé agora comeca a emergir, a teologia a partir do pobre. O préprio Boff usa e abusa desta identificagéo para se autodefender. Aqui também ha um grande equivoco. O melhor livro sobre a teologia da libertacao € o estudo histérico magistral de A. G. Rubio: Teologia da Libertagéo: Politica ou profetismo? Visto panoramica e critica da teologia politica Latino-americana, Ed. Loyola, S. Paulo, 1976, Esta tese doutoral de Rubio, resultado de quatro anos de pes- quisa, mostra que em 1972 a teologia da libertagéo no Brasil j4 tinha atingido sua maturidade. De fato, depois dela, apenas um livro trouxe uma contribuigéo nova: a tese doutoral de Clodovis Boff, ¢ o Documento de Puebla chamou a atengao para um aspecto novo: a opgao pelos pobres e pelas Comunidades Eclesiais de Base. Nesse tempo, Boff, que tinha acabado de regressar da Alema- nha, percebendo a grande carga promocional inerente no “comercial” libertagdo, deu ao seu livro o rétulo propagandistico: Cristo Liber- tador. Desse modo, Boff pegou o bonde andando, e usando, com grande habilidade, os meios de comunicagéo da Editora Vozes, que foram confiados a sua orientagao, conseguiu promover-se a expoente maximo da teologia da libertagéo no Brasil. O primeiro processo ao Se romano contra Boff nada tinha a ver com as teses da teologia da libertagao, mas a imprensa, naquela época, ligou a questao pessoal do te6logo com a teologia nacional. A partir de entio o préprio Boff comegou a utilizar a teologia da libertagéo como escudo nacional para sua promogao e defesa pessoal. A diferenga profunda entre Boff e os tedlogos da libertagao da “velha” estirpe é a autenticidade, o pudor e a auséncia de retérica. Dez anos antes que Boff comegasse a manipular autopromocional- mente a pobreza e as Comunidades de Base, j4 Carlos Mesters silen- ciosamente elaborava sua teologia a partir dos pobres e organizava as Comunidades de Base. O pudor € a caracterfstica dos tedlogos cuja teologia da libertagdéo € autobiografica ou expressao de sua vida profunda. Frei Beto nao precisa bagatelizar ou comercializar esse tema; sua vida, desde a adolescéncia como militante da JUC, é um querigma elogiiente da libertacao. Numa outra linha, mas com vital coeréncia, H. Assmann percorreu, no drama de sua vida, durante a ‘década de 60, todo o trajeto que desembocaria na teologia da libertagdo: sua tese doutoral sobre “o pecado social” (1961), teo- logia do desenvolvimento, teologia politica, teologia da revolucao, teologia da violéncia, teologia do questionamento, teologia da depen- déncia, teologia da libertagao. . . Evidentemente, todos esses te6logos da libertacdo tiveram tam- bém certa mobilidade internacional, mas nenhum deles se fez ve- dete cosmopolita da libertago. Opgao marxista Frei Leonardo Boff confessa que em toda sua formacéo nenhum de seus professores, tanto no Brasil (ele menciona expressamente Kloppenburg, Arns, Koser) como na Alemanha, nunca lhe falou da questao social, da dimensao polftica da religiéo, e muito menos do marxismo. Foi depois da publicacéo de seu livro Cristo Libertador que Boff ficou conhecendo (através dos movimentos latino-america- nos de “sacerdotes para o socialismo”, através de Assmann, e sobre- tudo através da tese doutoral de seu irmao Clodovis Boff “Teologia e pritica: a teologia do politico e suas mediacdes”) a necessidade da “mediacao sécio-analitica” para a teologizacao da realidade con- creta s6cio-politica. A partir de ent&o, Boff passou a falar do “mar- xismo na teologia para dar eficdécia & fé”. Nas tltimas publicagdes de Boff, as citagdes de Bultmann passaram a ser substituidas pelas — 2 — de “Marx et consortes”. Mas o marxismo para Boff nao passa de uma metateologia, uma linguagem teolégica sobre o marxismo, Em nenhum de seus escritos Boff aplica coerentemente a andlise mar- xista, Alids, 0 Gnico tedlogo catélico no Brasil capaz de tal empresa seria Hugo Assmann. Para Boff, as referéncias expressas a andlise marxista sio um puro recurso literdrio, para dar maior “mordéncia”, como ele diz, as expresses teolégicas. Os termos “cientifico” e “andlise marxista” exercem uma fascinagaéo mitica. Basta saber salpicar pitadas desse condimento sobre qualquer guizado teolégico, que ele ser4 consu- mido yorazmente. Boff ¢ a América Latina Este estudo nfo pretende desmitificar 0 mito-Boff. Seria muita pretenséo de minha parte. Trata-se apenas de um testemunho pes- soal. Durante cinco anos, como tedlogo do CELAM, participei das reunides ordindrias da comissio teolégica em quase todos os paises da América Latina. Por toda a parte vi a difusio das obras do Fr. Boff; constatei o bem que elas tém difundido. Mas, ao mesmo tempo, todos os bispos ¢ tedlogos deploravam as confusées que elas geravam sobretudo na formagéo dos seminaristas, Principais consumidores de Boff. Vérias Conferéncias episcopais latino-americanas pediram ex- Plicagdes sobre muitas teses de Fr. Boff. Em 1982, sob a presidén- cia de D. J. Hamer, secretdrio™.da “Sagrada Congregacao para a Doutrina da Fé”, reuniu-se em Bogoté a. “Comissio Teolégica do CELAM” para estudar a “Eclesiologia da América Latina”. O pre- sidente do CELAM fez uma penetrante critica do livro “Igreja: Carisma e Poder”, de Boff. Ainda em 1982, 0 CELAM convidou o Cardeal Ratzinger para vir 4 América Latina para uma semana de estudos sobre os estudos cristolégicos latino-americanos. O Cardeal Ratzinger sugeriu que a semana de estudos fosse no Brasil para haver maior participacao de nossos tedlogos e bispos. Além dos membros ordinérios da Co- missio Teolgica, foram convidados cinco tedlogos de varios paises, especialistas em Cristologia e em teologia da libertacdo; foram con- vidados também quatro eminentes crist6logos europeus. Do Brasil foram convidados quatro tedlogos, autores de estudos especializados sobre teologia da libertag&o e sobre Jesus Cristo. Convidados espe- ciais foram todos os Cardeais do Brasil, o presidente da CNBB e todos os membros da CED. De todos esses prelados convidados com- Pareceram apenas o Cardeal do Rio e trés membros da CED. Dos —QG to cardeais ausentes apenas D. Arns enviou telegrama explicando que naqueles dias deveria, acompanhado de frei Boff, ir 4 Alemanha assistir a um Katholikentag. O tema central desse congresso teoldé- gico foi a cristologia de Boff, analisada sobretudo pelo Presidente do CELAM. Todos esses estudos e encontros internacionais do CELAM, com varias Conferéncias Episcopais da América Latina, mostram o inte- resse que desperta a producdo teolégica de Boff e, ao mesmo tempo, a preocupagao que ela suscita nos bispos latino-americanos conscien- tes da responsabilidade do magistério que thes foi confiado por Cristo. Boff e a “Comissao de Doutrina” do Rio de Janeiro Atendendo ao convite da Santa Sé, foi criada no Rio de Janeiro uma Comisséo de Doutrina para as Provincias Eclesidsticas do Rio e Niter6i. Conforme o novo Cédigo de Direito Canénico, a liberdade de pesquisa dos peritos em teologia est4 submetida ao magistério da igreja particular (c. 218). Todos os outros canones que se referem ao minus dos tedlogos o subordinam ao Ordinério do lugar: outorgar ou retirar o “mandato” (Canones 812, 805-806); velar pela ortodoxia dos escritos (823-824); retidio de doutrina nas faculdades e Uni- versidades (810). Exercendo o direito e o dever prescritos por esses cAnones, a “Comisséo de Doutrina” do Rio de Janeiro censurou alguns erros teolégicos do livro de Boff que esté agora sendo julgado pela Santa Sé e retirou o “mandato” de alguns professores de teologia. Isso foi suficiente para que a CED se pronunciasse a favor dos tedlogos “cassados”, Trata-se de uma questao juridica interessante, porque nenhum cénone do Novo Cédigo de Direito Canénico legitima a ingeréncia da Conferéncia Episcopal no direito de Magistério epis- copal das igrejas particulares. Boff e a Diocese de Petrépolis Uma das frases que causaram maior impacto e contribuiram muito para aureolar a figura mistica de Boff foi sua declaracéo de “aceitar, de antemao, qualquer corregdo da Santa Sé porque prefere caminhar com.a lgreja em vez de isolar-se com sua teologia”. Pena que essa frase venha sendo repetida inoperantemente hd quase oito anos. Em 1979, Boff repetia a D. Ivo que acataria todas as retifi- cagoes das teses de seus livros que a Igreja lhe pedisse (J.B., 13.01.80). —30— Nesse mesmo ano renovava, em Madri, essa declaracéo: “Acatarei sempre a palavra da Igreja, Para mim a relacdo com a Igreja é mais importante que continuar ensinando teologia” (ESP, 30.01.80). Apesar dessas sucessivas declaragdes, Boff, de fato, nunca acei- tou nenhuma corregdo que a Igreja lhe pediu, H4 mais de quatro anos, seu Bispo diocesano recebeu uma lista de proposicSes heré- ticas que Boff estaria ensinando num curso em Petrépolis. Boff negou que ensinasse tais teses. O Bispo pediu entéo, para poder defendé-lo contra continuas acusagGes, que declarasse por escrito que nao ensi- nava tais teses. Boff pediu tempo para pensar e nunca mais retornou ao Bispo, preferindo antes ficar destituido de “mandato” do que submeter-se ao magistério episcopal como prescreve o cénone 218. Boff e os franciscanos O livro de Boff “Igreja: Carisma e Poder” foi analisado demo- radamente, mas com profunda angistia, pelo tedlogo franciscano, reitor do Instituto Pastoral de Medellin, atualmente bispo, D. Boa- ventura Kloppenburg. Boff fala de uma “critica cruel” (REB (1982), P. 231) e acusa Kloppenburg de desconhecer a “literatura séria” e de faltar & verdade quando diz que ele se propunha escrever uma eclesiologia subversiva. Boff distorce o pensamento de seu confrade. D. Kloppenburg relatou numa reunifio piblica do CELAM que antes de Boff escrever “Igreja: Carisma e Poder” ele tinha pedido ao autor que lhe concedesse uma audiéncia para resolver algumas dé- vidas angustiantes (relacionadas com a divindade de Cristo, a res- surreic¢ao, a instituicao da eucaristia e dos sacramentos) suscitadas por algumas obras de Boff. No dia do encontro, a primeira coisa que fez Boff foi mostrar-Ihe sucessivamente trés grossos volumes de tedlogos : protestantes alemaes, perguntando a respeito de cada um: “Vocé j leu este livro?” Ante a resposta negativa de Kloppenburg, Boff levantou-se e disse: “Nosso encontro termina aqui. Se vocé nao conhece a literatura “séria”, nfio poderd entender-me.” Em se- guida Boff anunciou que estava escrevendo uma “eclesiologia heré- tica”, Por que vocé nfo escreve uma eclesiologia “ortodoxa”? — perguntou Kloppenburg. “Porque quero fazer explodir todas as es- truturas atuais da Igreja.” Nao foi facil para Kloppenburg escrever a critica ao livro de seu irmao, E uma grande injustiga dizer que foi inspirado por um “animus condemnandi” que D. Kloppenburg fez suas criticas ao livro de Boff. Se ele condenou certas falhas ¢ porque j& nao podia calar. Seria um pecado por omissio. Boa parte dos franciscanos de sua Provincia concordou com ele. Por isso, o supe- =H= rior Provincial de Kloppenburg escreveu-lhe uma carta muito dura dizendo que ele tinha dividido a Provincia franciscana do Brasil. Por outro lado, nao é verdade também o que se afirmou, isto é, que cerca de 30 bispos franciscanos no Brasil teriam apoiado as teses de Boff. = O apoio macicgo a Boff foi dado pela Editora Vozes, cujas re- vistas séo controladas por ele através do exercicio de um verdadeiro patrulhamento ideolégico que sé admite a publicagao de estudos teoldgicos que concordem com sua linha de pensamento. Um artigo meu publicado na REB deste ano saiu drasticamente podado e des- figurado. Boff e o Colégio Cardinalicio No seu livro “Igreja: Carisma e Poder” Boff retoma literalmente a linguagem desabrida que Hans Kiing emprega para se referir & Santa Sé e & Ciiria Romana: “verdadeira estrutura capitalista de opressiio e discriminagao”. F. essa mesma linguagem que ele emprega em seus artigos para classificar os cardeais. “O cardeal Benelli tao maquiavélico quanto o cardeal Baggio. Sao perigosos, porque tém poucas luzes e usam o poder como instrumento” (FSP, 20. 08.1978). “Lépez Trujillo, extremamente astuto e cheio de fome do poder.” “Um Papa do poder da verdade, tipo Lopez Trujillo, seria sinistro para a Igreja. Nao hé mais lugar para o dominio da verdade, A ver- dade divide” (FSP, ibid). O Cardeal Vicente Sherer se queixa: “Boff disse de mim cobras ¢ lagartos, além de varias referéncias de- preciativas em varias oportunidades” (FSP, 05.01.80). Com a mesma desenvoltura, Boff qualifica as Conferéncias Episcopais Latino-ame- ticanas: “O episcopado da Colémbia é o mais reaciondrio do mundo; o da Venezuela, da Argentina e México, reaciondrios e medrosos; o do Uruguai, totalmente subserviente” (FSP, 20.08.78). Somente os dois cardeais franciscanos merecem a confianca irrestrita de Boff. “O Papa desejavel... seria Lorscheider, inteli- gente mas nao doutrinador, néo quer dominar pela verdade, mas pelo cora¢ao” (I.c.) “Frei Boff langou o nome do Cardeal Ars para sucessor de Joao Paulo I... corresponderia aos anseios de quase todos os catélicos” (Globo 30.09.78). Lendo essas apreciagdes do frei Boff sobre seus colegas, o Cardeal Ratzinger comentava no encontro do CELAM, no Rio de Janeiro: “Quanto a mim, tenho certeza de que Boff me deixara em paz; ele me deve muitos favores, foi por meu intermédio que ele conseguiu fazer publicar sua tese doutoral.” Apesar disso, Boff resolveu con- = 32 testar com intimeras espicacadas provocantes e desfiguradoras o es- tudo particular do Cardeal Ratzinger sobre a teologia da libertacio. Essa contestagao publicada nos jornais foi assumida pela revista franciscana “Grande Sinal” (maio, 1984). Boff © o Papa Joao Paulo II O Niincio Apostélico, D. Carmine Rocco, dizia que o Papa se Preocupava muito com os escritos de Boff. D. Boaventura Kloppenburg, na dltima vez que esteve’com o Papa, disse que durante meia hora o Papa conversou o tempo todo sobre as provocagées do frei Boff. O Papa disse textualmente: “Frei Boff esté fazendo tudo para ser o novo Hans Kiing da América La- tina”. O Papa sabia que qualquer acdo da Santa Sé haveria de redundar numa incrivel promogao do frei Boff ¢ num desgaste para a Igreja. Por isso, D. Kloppenburg sugeriu que o Papa escrevesse uma carta particular, pedindo, com carinho, que frei Boff corrigisse suas teses € policiasse mais suas expresses. Joao Paulo I respondeu: “Frei Boff haveria de levantar essa carta do Papa como uma bandeira para se promover”. Todos os epis6dios que relatei aqui foram revelados publica- mente pelos protagonistas, perante outras testemunhas, E nao me foi pedido nenhum segredo. Ja que frei Boff moveu céus e terras para que o seu caso tives- se uma tremenda divulgacéo de proporgdes internacionais, é neces- sdrio que se conhecam também outros aspectos que ele omitiu e que mostram uma configuracao bem diferente da questao. Frei Boff conseguiu, de fato, vingar a condenag&o de Hans Kiing. Apesar de ter assumido literalmente as mesmas teses de Kiing, o resultado foi diferente. Mudou a verdade? Mudaram as circunstan- cias. Hans Kiing nao € membro de uma Ordem poderosa, nao teve a chance de criar o mito de profeta de uma nova Igreja, nao apelou desbragadamente para todos os meios de comunicacao social para criar no povo um clima emocional em torno da vitima indefesa da moderna inquisicao romana, nao tentou instrumentalizar a estrutura hierdrquica e os tedlogos de sua Igreja contra a Santa Sé em seu favor; nao se apresentou como porta-voz das massas oprimidas e sobretudo nao péde aproveitar-se da desinformagao histérica de nos- sos intelectualoides que nao perderam a chance para deblaterar con- tra o terrorismo mental ¢ os abusos das estruturas de poder na Igreja Catélica. Sn SS ae “Quid est Veritas”? perguntou Pilatos. A hist6ria se repete. Boff nao estava sozinho em Roma. Levava seis quilos de cartas, 50.000 assinaturas ¢ todo o prestigio tremendo de uma estrutura de poder. Duzentos repérteres do mundo inteiro estavam com ele, Tudo isso para defender a sua verdade. Mais uma vez a Verdade foi crucificada. Naquele momento, Cristo, na pessoa do Cardeal Ratzinger, ouvia uma multidao, liderada pelos sumos- sacerdotes, escribas e fariseus, que gritava: crucifica-o, Conforme frei Boff, um quadro no’ “tribunal da inquisigao” resumia tudo: “Aos pés de S. Francisco prostrava-se um cardeal da cdria romana”. O' poder do carisma pisando a estrutura da Igreja. (Igreja: Carisma e Poder). A cena final do espetéculo romano televisionado para 0 mundo inteiro era digno de qualquer novela: o heréi risonho dizendo: “Foi o dia mais feliz de minha vida. No dia da independéncia politica do Brasil conseguimos proclamar nossa independéncia religiosa’’. (*) (*) Esta nova versac de meu artigo publicado na Folha de S. Paulo (14.09.84) corrige algumas inexctidoes resultantes da identificagao que fiz entre a CED e a equipe de tedlogos convidados. A CED consta exclusivamente de 5 Bispos. Nenhum tedlogo é membro da CED. Por isso, todas as rf-—=7-6es que supunham o contrério, ficam invalidadas. (N. do. A.). se see O9 O00 MESTRE-COP. GRAFICA R. Cons. Furtado, 746 - Tel. (Cxa. Postal 383 - CEP 01051 - S. Paulo

Potrebbero piacerti anche