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Resumo: O artigo pretende discutir o processo de Abstract: The article seeks to discuss the process
invisibilização da crítica ao saber/poder psiquiá- of invisibilization of the critique of the psychia-
trico como objeto de estudo criminológico. Para try knowledge/power as an object of the crimi-
tanto, serão problematizadas algumas ideias e nological investigation. Therefore, some ideas
hipóteses extraídas da abordagem teórica an- and hypotheses drawn from the antipsychiatric
tipsiquiátrica. No intuito de mais claramente theoretical approach will be problematized. In
descrever e melhor explicar os problemas identi- order to clearly describe and better explain the
ficados ao longo da análise do referido processo problems identified during the analysis of the afo-
de invisibilização, o artigo discutirá, mediante a rementioned process of invisibilization, the article
realização de uma revisão bibliográfica de cará- will address, through an interdisciplinary bi-
ter interdisciplinar, a relação estabelecida entre o bliography review, the relationship established
saber/poder psiquiátrico, a revolução farmacêu- between psychiatric knowledge/power, the phar-
tica (e sua lógica mercantil) e a ética neoliberal, maceutical revolution (and its merchant logic)
um tipo de relacionamento que, conforme se and the neoliberal ethics, a type of relationship
argumenta, sugere a existência de uma lógica which, as argued, suggests the existence of a
transcarcerária de controle. transcarceral logic of control.
1. Introdução
O discurso da criminologia crítica, formalmente construído a partir de
determinadas conexões epistêmicas, possui, em seus traços genealógicos, certa
dívida para com a antipsiquiatria.
De regra, a antipsiquiatria costuma ser representada de forma ambígua na
seara dos estudos criminológicos, sendo considerada: ora como um dos pri-
meiros capítulos da história das teorias da reação social, ora como uma cor-
rente do pensamento posicionada contiguamente às denominadas sociologias
do conflito.
Seja como for, o saber antipsiquiátrico, ao menos no que diz respeito às
suas relações com o saber criminológico crítico, foi estabelecido a partir de
um conjunto de escritos emblemáticos, escritos que problematizam a natu-
reza violenta dos tratamentos prescritos aos internados, bem como o caráter
extremamente artificial de uma linguagem capaz de recolher fragmentos de
experiências quotidianas e, em certos casos, transformá-las em sintomas cons-
tituintes de quadro patológico a reclamar pela pronta intervenção médica. Para
além dessas contribuições, o saber antipsiquiátrico notabilizou-se pela afir-
mação de que o ato de configuração das doenças mentais constitui um fenô-
meno político. Não por outra razão, tal vertente teórica enfatiza a importância
do estudo da relação de poder estabelecida entre o médico psiquiatra e o seu
paciente.
As várias formas de se conceber a doença mental e o conjunto de reflexos
decorrentes da caracterização de determinados comportamentos sociais à luz de
tal categoria serão mais claramente desenvolvidos no percurso exploratório
que se pretende realizar a seguir. Não obstante, algo, desde logo, pode ser afir-
mado: é por demais evidente que a análise do movimento antipsiquiátrico, isto
é, das suas injunções relativamente ao poder psiquiátrico e ao discurso crimi-
nológico, deve ser inserida no contexto da contemporaneidade. Nesse sentido,
9. A utilização das aspas em certos termos neste artigo tem por objeto performar uma
estratégia retórica bastante específica: “As aspas mostram que eles [os termos desta-
cados] estão sob crítica, disponíveis para iniciar a disputa, questionar sua disposição
tradicional, e pedir por algum outro termo (...). O efeito das aspas é desnaturalizar
os termos, designar esses significantes como lugares de debate político”. (BUTLER,
Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo.
Cadernos Pagu, n. 11. 1998. p. 28).
10. Cf BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3. ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2002.
11. Segundo o qual a sucessão de teorias haveria de ser compreendida como fato denota-
tivo do aprimoramento contínuo do pensamento teórico, no caso, o criminológico.
12. Cf MEAD, George H. Mind, self and society. Chicago: University of Chicago Press,
1934.
13. Cf BLUMER, Herbert. Symbolic interactionism: perspective and method. Berkeley:
University of California Press, 1986.
14. Cf BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
15. Cf GOFFMAN, Erwing. A representação do eu na vida cotidiana. 10 ed. Petrópolis:
Vozes, 2002.
16. Cf PARSONS, Talcott. The structure of social action. Glencoe: The Free Press, 1949.
17. Cf GARFINKEL, Harold. Studies in etnomethodology. Malden: Polity Press, 1984.
18. Cf DAHRENDORF, Ralf. Class and class conflict in industrial society. Stanford:
Stanford University Press, 1959.
19. Que costumam conceber as intervenções psiquiátricas como uma espécie de violência
praticada em detrimento de indivíduos rotulados como “anormais”.
20. A maior parte dos intelectuais que atuam no universo do saber antipsiquiátrico são
radicados nas ciências médicas e “psi”. Tal constatação indica, a um só tempo, a
relativa impermeabilidade do discurso médico às indagações provenientes das ciên-
cias sociais e a feição obtusa de parte considerável da discursividade criminológica
contemporânea que, ao se voltar para o estudo das violências (re)produzidas pelo
sistema de justiça criminal sobre uma massa carcerária imputável, parece não consi-
derar como algo válido, vale dizer, como algo digno de reflexão, o estudo do controle
social exercido pela psiquiatria sobre os “loucos” ditos inimputáveis.
21. Evidentemente, tem-se um quadro meramente exemplificativo. Tais obras compõem,
no campo criminológico brasileiro, importantes instrumentais utilizados na detecção
de um modelo de punitivismo brasileiro. As três obras, muito embora sejam seme-
lhantes entre si, partem de métodos distintos de trabalho, o que permite destacar o
afastamento da antipsiquiatria do quadro discursivo da criminologia crítica em geral.
22. WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos.
3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
27. SIMON, Jonathan. Governing through crime: how the war on crime transformed
American democracy and created a culture of fear. New York: Oxford University
Press, 2007.
28. Uma diferença que, conforme vem sendo sustentado, por décadas, pelos estudos cri-
minológicos de orientação crítica, foi construída a partir da naturalização das funções
declaradas da pena. Por todos, conferir: BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e
crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
29. Uma das hipóteses centrais apresentadas neste escrito reside no entendimento de que
tal dicotomia contribuiu para a ocultação e a invisibilização, durante largo período,
dos problemas enfrentados por internados no âmbito dos manicômios judiciários,
instituições totais por excelência.
30. Cf FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São
Paulo: Martins Fontes, 2010.
31. GOFFMAN, Erwing. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
32. Muitas das críticas referendadas pela antipsiquiatria podem ser encontradas no
paradigmático trabalho de Georges Ganguilhem, O normal e o patológico. Ilustra tal
entendimento o comentário realizado pelo autor acerca da suposta objetividade das
condições ditas patológicas: “(...) a qualidade de patológica, porém, é uma noção de
origem técnica e, por isso, de ordem subjetiva. Não há patologia objetiva. Podem-
-se descrever objetivamente estruturas ou comportamentos, mas não se podem cha-
má-los de “patológicos” com base em nenhum critério puramente objetivo”. Cf.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Trad. Maria Theresa Barrocas.
7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 164.
33. Cf COOPER, David. Psiquiatría y antipsiquiatría. Buenos Aires: Locus Hypocampus,
1976.
34. Cf COOPER, David. The death of the family. London: Penguin, 1971.
35. Impossível não notar a existência de uma certa proximidade entre as postulações
de Cooper e aquelas que constituem a teoria do labelling approach, tal como apresen-
tada na obra Social Pathology, de Edwin Lemert, onde se verifica que o processo de
atribuição do rótulo de “desviante” tem como ponto de partida, justamente, a intera-
ção social. Cf LEMERT, Edwin. Social pathology: a systematic approach to the theory
os sociopatic behaviour. New York: McGraw-Hill, 1951.
36. Cf LAING, Ronald D. The divided self: an existential study in sanity and madness.
London: Penguin, 1960.
40. Cf SZASZ, Thomas. O mito da doença mental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
conferidos aos psiquiatras – que, para além de atuar sobre os sinais de mau
funcionamento do corpo, também foram incumbidos da correção moral dos
seus “pacientes” – daria ensejo a uma miríade de violações dos direitos huma-
nos das pessoas submetidas ao tratamento proposto pela psiquiatria conven-
cional. É nesse contexto, portanto, que o próprio conceito de diagnóstico será
ressignificado, por Szasz, e reinterpretado como procedimento de aplicação
de uma etiqueta, de um estigma a um sujeito desviante, um procedimento
cuja função primária será a de constituir a própria identidade do doente men-
tal, o que acabaria por autorizar a retirada de sua liberdade. Szasz chegará a
afirmar que: se a teocracia é um sistema de governo baseado no poder religioso
e se a democracia consiste no governo do povo pelo povo, a “farmacocracia”
designaria, claramente, um governo fundado na autoridade da medicina e dos
médicos.
Para Szasz, a doença mental é, no limite, uma metáfora que descreverá ofen-
sas, distúrbios, atitudes vexatórias etc. Daí a importância da distinção entre
doença mental e comportamento desviante, pois: na medida em que a expres-
são “doença” aspira designar algo que a pessoa tem, seus comportamentos
refletem ações e opções que, consideradas isoladamente, não autorizam afir-
mar aquilo que a pessoa é. Dessa forma, por exemplo, uma mulher que não
atende aos desejos de seu marido poderia ser “diagnosticada”, do ponto de
vista psiquiátrico, como “histérica”. A classificação “doente mental” consisti-
ria, desse modo, em um rótulo que extrai do sujeito todo e qualquer vestígio de
responsabilidade, o que, por via de consequência, lhe qualifica para ser visto e
tratado como um sujeito incapaz e dependente cuja redenção jaz nas prescri-
ções do discurso psiquiátrico.
Não obstante, é interessante observar que a classificação das doenças men-
tais, bem como dos sintomas que lhes são associados, é tratada como uma
atividade efetivamente científica. Todavia, escreve Szasz, tais classificações se
confundem com julgamentos morais, cujo escopo é assegurar o poder dos psi-
quiatras. Dessa forma, a esquizofrenia não se constitui como uma “doença”
dotada de uma realidade objetiva, sendo, antes, um julgamento baseado em
juízos híbridos, parte social, parte psiquiátrico, de reprovação. A esquizofre-
nia, para Szasz, será considerada o “símbolo sagrado da psiquiatria”, vez que
serão justamente os portadores desse rótulo aqueles que conferirão a legiti-
midade necessária para que a psiquiatria continue expandindo os seus pode-
res. Mas o autor vai além: afirma, com efeito, que a psiquiatria não passa
de uma “pseudociência”, que imita a medicina por intermédio do uso de pala-
vras belas e complexas, inventadas em tempo não superior a cem anos. Os psi-
quiatras seriam, de acordo com essa linha compreensiva, sucessores diretos de
41. Cf SZASZ, Thomas. Ceremonial chemistry: the ritual persecution of drugs, addicts,
and pushers. Syracuse: Syracuse University Press, 2003.
42. Cf SZASZ, Thomas. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976.
44. O sentido que neste escrito se atribui à expressão “crítica institucional” encontra fun-
damento no pensamento de Michel Foucault: “A crítica institucional – hesito dizer
‘antipsiquiátrica’, enfim, certa forma de crítica que se desenvolveu a partir dos anos
1930-1940 partiu, ao contrário, não de um discurso psiquiátrico que se supõe ver-
dadeiro para dele deduzir a necessidade de uma instituição e de um poder médico,
mas sim do fato da instituição, da crítica da instituição, para evidenciar, por um
lado, a violência do poder médico que nela se exercia e, por outro lado, os efeitos de
desconhecimento que perturbavam logo de saída a suposta verdade desse discurso
médico”. (FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso no Collège de France
(1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 49).
45. BURSTOW, Bonnie. Psychiatry and the business of madness: an ethical and epistemo-
logical accounting. New York: Palgrave Macmillan, 2015. p. 62.
46. Ibidem, p. 63.
47. BREGGIN, Peter. Brain-disabling treatments in psychiatry: drugs, electroshock, and
the psycopharmaceutical complex. New York: St. Martin’s, 2001.
48. WHITAKER, Robert. Anatomy of an epidemic. New York: Broadway Paperbacks, 2010.
p. 133.
49. Lembrando com Dardot e Laval que “se é verdade que a crise do liberalismo teve
como sintoma um reformismo social cada vez mais pronunciado a partir do fim do
século XIX, o neoliberalismo é uma resposta a esse sintoma, ou ainda, uma tentativa
de entravar essa orientação às políticas redistributivas, assistenciais, planificadoras,
reguladoras e protecionistas que se desenvolveram desde o fim do século XIX, uma
orientação vista como uma degradação que conduzia diretamente ao coletivismo.
A criação da Sociedade Mont-Pèlerin, em 1947, é citada com frequência, e erronea-
mente, como o registro do nascimento do neoliberalismo. Na realidade, o momento
fundador do neoliberalismo situa-se antes, no Colóquio Walter Lippman, realizado
durante cinco dias em Paris, a partir de 26 de agosto de 1938”. (DARDOT, Pierre;
LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São
Paulo: Boitempo, 2016. p. 71).
50. O termo procura, no limite, retratar o desenvolvimento de uma postura mais ativa,
por parte de representantes da iniciativa privada, no âmbito dos processos de discussão
e definição de políticas públicas.
51. A sigla em comento trata do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders,
obra que compila os critérios concebidos pela Associação Americana de Psiquiatria
para a realização de diagnósticos em matéria de saúde mental.
52. O conceito que serve de inspiração para este termo provém da obra Mil platôs: capi-
talismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guatarri. Neste trabalho, os autores
apelam para a figura botânica do rizoma para ilustrar, dentre outras questões, a crise
dos paradigmas filosóficos fundados em certezas e verdades transcendentais, meta-
físicas. Associando o pensamento contemporâneo à imagem de uma raiz complexa,
cheia de hastes, porém carente de filamento (fundamento) comum, dirão: “o rizoma
se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conec-
tável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de
fuga. [...] unicamente definido por uma circulação de estados”. (DELEUZE, Gilles;
GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1995. v. 1. p. 32. O motivo que leva a associação do termo com o DSM parece ser
claro: em ambos os casos o que se tem é um sistema de pensamento fluido, baseado
em uma epistemologia maleável.
Dois registros podem ser considerados dignos de nota após a análise desse
conceito: primeiramente, constata-se que o “transtorno é uma síndrome” que,
por sua vez, “reflete uma disfunção”. Além disso, desvios de comportamento e
conflitos individuais (e sociais) não podem ser interpretados como transtornos
mentais, a menos que um ou outro possa ser considerado “resultado de uma
disfunção no indivíduo”.
A questão fundamental, nesses termos, consiste em perceber que a psi-
quiatria, historicamente, somente pôde exercer seu poder sobre os “loucos” à
medida que logrou estabelecer com aqueles que recebiam este rótulo uma rela-
ção muito similar àquela, de base nosográfica, estabelecida entre a medicina e
o seu principal objeto de estudo: a doença. Daí se infere que, para a psiquiatria, o
sujeito será um objeto onde se instala a doença, que, por sua vez, autoriza
o exercício do (plenipotenciário) poder médico. Interessante notar, neste sen-
tido, que a partir do século XIX é possível identificar, em relação ao exercício
Outro caso que ajuda a ilustrar o escopo dos argumentos até aqui desen-
volvidos: o “Transtorno de Personalidade Narcisista”. Para que esse transtorno
1. Tem uma sensação grandiosa da própria importância (p. ex. exagera con-
quistas e talentos, espera ser reconhecido como superior sem que tenha as
conquistas correspondentes); 2. É preocupado com fantasias de sucesso
ilimitado, poder, brilho ou amor ideal. 3. Acredita ser “especial” e único
e que pode ser somente compreendido por, ou associado a outras pessoas
(ou instituições) especiais ou com condição elevada. 4. Demanda admiração
excessiva. 5. Apresenta um sentimento de possuir direitos (i.e. expectativas
irracionais de tratamento especialmente favorável ou que estejam automa-
ticamente de acordo com as próprias expectativas). 6. É explorador em re-
lações interpessoais (i.e. tira vantagem de outros para atingir os próprios
fins). 7. Carece de empatia: reluta em reconhecer ou identificar-se com os
sentimentos e as necessidades dos outros. 8. É frequentemente invejoso em
relação aos outros ou acredita que os outros o invejam. 9. Demonstra com-
portamentos ou atitudes arrogantes e insolentes.63
Por fim, também parece ser digno de nota o “Transtorno de Ansiedade Gene-
ralizada”, “estado” cuja caracterização depende do fato de o paciente demons-
trar, ao longo de seis ou mais meses, ao menos três dos seguintes sintomas:64
Curioso notar, ademais disso, que os sintomas listados pelo DSM-V como
representativos dos três transtornos referidos anteriormente correspondem a
um conjunto de experiências, físicas e psíquicas, relacionadas à racionalidade
neoliberal, que, como lembrado por Pierre Dardot e Christian Laval, impele o
sujeito a perceber a si mesmo como um empresário, um “empresário de si”,
como um capital humano que precisa, a qualquer custo, render.66
Além da abstração das categorias que servem de base para o conceito de trans-
torno mental estampado no DSM-V, cabe ainda ressaltar a ubiquidade dos
próprios sintomas descritos pelo manual, circunstância que permite ao psi-
quiatra a realização de uma miríade de tipificações. Para se ter uma ideia da
“fecundidade etiológica” dos sintomas catalogados pela psiquiatria contem-
porânea, basta ter em vista a constatação de Kirk e Kutchins acerca do Trans-
torno de Estresse Pós-Traumático que, no entendimento dos autores, pode ser
diagnosticado em 174 cenários distintos, vale dizer, mediante a realização de
174 combinações diferentes de sintomas, sendo possível, inclusive, que dois
indivíduos que apresentam dois conjuntos distintos de sintomas sejam classi-
ficados como portadores deste transtorno.67
Além da natureza ubíqua dos sintomas listados pelo DSM-V, vale ressal-
tar que, desde a publicação DSM-III, a psiquiatria vem “descobrindo” e cata-
logando um número cada vez maior de transtornos mentais, gerando, assim,
a impressão geral de que a saúde mental dos indivíduos está a se deteriorar.
Nesse sentido, são sintomáticas as observações registradas ao final do DSM-V,
onde a equipe responsável pela sua edição sugere a necessidade de novas inves-
tigações relativamente ao que se chamou de “transtorno do jogo pela interne-
t”,68 ou, ainda, de “transtorno por uso de cafeína”.69 Fica claro, destarte, que
mesmo os aspectos mais triviais da vida e das relações sociais estão sendo
pouco a pouco capturados pelo saber (e poder) psiquiátrico, cujo apetite por
dados pueris do quotidiano – a fim de conformá-los em sintomas denotativos
de “síndromes” – não parece ter limites.70
66. Tese central do trabalho de Dardot e Laval, já citado neste artigo. Cf DARDOT, Pierre;
LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São
Paulo: Boitempo, 2016.
67. KIRK, S.; KUTCHINS, H. Making us Crazy: DSM: The psychiatric bible and the crea-
tion of mental disorders. New York: The Free Press, 1997. p. 124
68. ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA NORTE-AMERICANA. Manual diagnóstico e estatís-
tico de transtornos mentais: DSM-V. Porto Alegre: Artmed, 2014. p. 795-798.
69. Ibidem, p. 792-795.
70. Frente a esse cenário, a conclusão de Roudinesco é, sob muitos aspectos, revela-
dora: “Quanto ao DSM, permite doravante, graças à extensão crescente de suas
Eu não tenho muita escolha. Nós decidimos, como sociedade, que é muito
caro modificar o ambiente da criança. Então, devemos modificar a criança.
Nós talvez não possamos saber os efeitos de longo prazo, mas nós sabemos
os efeitos de curto prazo de uma reprovação escolar, que são reais. Eu estou
olhando para a pessoa individualmente considerada onde ela está agora. Eu
sou um médico para o paciente, não para a sociedade. 72
4. Considerações finais
O pensamento neoliberal sugere, em linhas gerais, a necessidade de uma
menor intervenção pública nos vários campos da vida social, providência que garan-
tiria uma maior liberdade aos indivíduos. Vale observar, no entanto, que uma
ideologia que prega uma menor ingerência, por parte do Estado, na vida dos
cidadãos não se confunde, em absoluto, com uma política baseada na ideia de
menos governo. Antes pelo contrário. A expressão “governo”, aqui interpretada
como “conduta de condutas”,79 designaria, na esteira da racionalidade neoli-
beral, um governo pela e para a liberdade. É preciso aduzir ressalva, contudo,
no sentido que tal liberdade é, antes de tudo, uma liberdade para consumir e
aderir às regras do livre mercado. Nesse contexto, o fenômeno de comoditiza-
ção da saúde condensa, em uma mesma identidade, as figuras do paciente e do
consumidor, e opera a partir de uma retórica que prega a “autonomia indivi-
dual” como paradigma que explica, ao menos parcialmente, a “normalização”
autoinduzida através do consumo “consciente” e “voluntário” de psicotrópi-
cos. No plano da ética neoliberal, lembra Foucault, o sujeito deve “cuidar de
si”. Assim, a psiquiatria e o universo farmacológico passam a determinar como
os indivíduos devem se relacionar com a sua liberdade. Com efeito, o indiví-
duo deve ser livre para decidir anular, quimicamente, o sofrimento psíquico
que lhe é causado pelo way of life capitalista. Nessa linha compreensiva, suge-
rem Esposito e Perez:
79. FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980).
São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 13.
82. CARTRIGHT, S. A Report on the diseases and physical pecularities of the negro race.
New Orleand Medical and Surgical Journal. 1851. p. 691-715.
83. MAUDSLEY, Charles. The phisiology of the mind. London: McMillan, 1876.
84. ARMSTRONG, L. And they call it help: the psychiatric policing of America’s Children.
Reading: MA: Addison-Wesley, 1993 p. 132.
85. Na realidade, Burstow afirma que o DSM não removeu o homossexualismo do seu
catálogo de transtornos mentais. Tal “condição” teria sido, com efeito, meramente
“escamoteada” por outras categorias mais atuais. (BURSTOW, Bonnie. Psychiatry
and the business of madness: an ethical and epistemological accounting. New York:
Palgrave Macmillan, 2015. p. 80).
86. BURSTOW, Bonnie. Psychiatry and the business of madness: an ethical and epistemo-
logical accounting. New York: Palgrave Macmillan, 2015. p. 80.
87. DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.
88. FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso no Collège de France (1973-1974).
São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 67.
89. BURSTOW, Bonnie. Psychiatry and the business of madness: na ethical and epistemo-
logical accounting. New York: Palgrave Macmillan, 2015. p. 134.
que se possa, nas palavras de Nikolas Rose, identificar a “genealogia das tecno-
logias políticas da individualidade”.90
Fundamental notar, portanto, que as técnicas de autocontrole social engen-
dradas pelo poder psiquiátrico produzem uma cadeia consensual de normali-
zação massiva que representa, em termos mais práticos, uma grande “terapia
da liberdade”,91 onde impera, como estratégia de governo, a obrigação de ser
livre.
Pontua o presente escrito a certeza de que a criminologia crítica não pode
continuar a desconsiderar os fenômenos transcarcerários que integram e orga-
nizam os castigos contemporâneos, que, como demonstrado, vão muito além
daqueles praticados no interior das prisões ou mesmo das relações das prisões
com o castigo.
5. Referências bibliográficas
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
ARMSTRONG, L. And they call it help: the psychiatric policing of America’s
Children. Reading: MA: Addison-Wesley, 1993.
ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA NORTE-AMERICANA. Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2002.
BASAGLIA, Franco. La institución negada: informe de un hospital psiquiátrico.
Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 1972.
BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
BLUMER, Herbert. Symbolic interactionism: perspective and method. Berkeley:
University of California Press, 1986.
BREGGIN, Peter. Brain-disabling treatments in psychiatry: drugs, electroshock,
and the psycopharmaceutical complex. New York: St Martins, 2001.
BREGGIN, Peter. Talking back to ritalin: what doctors aren’t telling you about
stimulants and ADHD. Cambridge: MA: Da Capo, 2001.
BURSTOW, Bonnie. Psychiatry and the business of madness: na ethical and epis-
temological accounting. New York: Palgrave Macmillan, 2015.
90. ROSE, Nikolas. Governing the soul: haping of the private self. 2. ed. London: New
York: Free Association Books, 1999. p. 221.
91. Ibidem, p. 261.
Pesquisas do Editorial