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Título original: Night of Knives

Copyright © Bantam Press 2007.


Todos os direitos de publicação da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Ae-
roplano Editora Ltda. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, no todo ou em par-
te, em qualquer meio ou formato, sem prévia autorização da editora.
Texto revisto pelo Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Direção geral
Ednaldo Varela (Ado)
Cláudio Varela
Editor responsável
Ednaldo Varela (Ado)
Revisão de Texto
Marsely de Marco
Josias A. de Andrad
Revisão de Tradução
Marsely de Marco
Comercial
Guilherme Varela
Projeto gráfico e diagramação
Claudio Braghini Junior
Projeto gráfico de capa
Inkstand Studios
Tradutora
Sandra Martha Dolinsky
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Elaboração: Aglaé de Lima Fierli – CRB9 – 412
E82n
Esslemont, Ian Cameron, 1962
Noite das Facas: romance de aventura inglês / Ian Cameron Esslemont; tradução de San-
dra Martha Dolinsky. – São Paulo: Cavaleiro Negro, 2016.
320 p.; 16x23 cm.
Titulo Original: Night of Knives
ISBN: 978-85-92594-00-8
1. Literatura inglesa – Romance. 2. Ficção inglesa. I. Título. II. Dolinsky, Sandra Martha,
trad.
CDD – 823
Índice para catálogo sistemático:
Literatura inglesa : Romance – 823
Ficção inglesa : Aventuras – 823
A Cavaleiro Negro é um selo editorial da Aeroplano Editora Ltda.
www.aeroplanoeditora.com.br
www.cavaleironegroeditora.com.br
eBook: Argon
Versão 1.0
Sumário

Página de título
Créditos
Agradecimento
Introdução
Mapas
Dramatis Personae

Prólogo
Um Caminho nas Sombras
Capítulo I: Presságios e Chegadas
Capítulo II: Atribuições
Capítulo III: Cães das Sombras
Capítulo IV: Velhos Inimigos, Velhos Amigos
Capítulo V: Estratégias e Destinos
Capítulo VI: Resoluções
Epílogo

Glossário
Sobre o autor
Agradecimento

A longa jornada deste trabalho, desde a concepção até a impressão,


foi plena de ajuda proveniente de muitas direções inesperadas. Foi
crescendo de uma colaboração de muitos anos com Steven Erikson,
ainda rica e gratificante, tanto no campo criativo quanto no da ami-
zade. Devo a ele minha maior gratidão por nossa parceria na cria-
ção do mundo de Malaz.
Também gostaria de agradecer a Simon Taylor, por sua generosi-
dade de espírito; a William Thompson, por me encorajar e por suas
habilidades de edição; a meu agente, John Jarrold, e a Gerri Brigh-
twell por seu eterno apoio e suas observações perspicazes. E, por
fim, um excepcional obrigado a Peter Crowther, por ter dado uma
chance a um desconhecido.
Este livro é dedicado a Steve, que tornou o mundo real.
Introdução

O mundo de Malaz nasceu em 1982, e desse momento em diante,


sua história foi lentamente tomando forma – durante escavações ar-
queológicas de verão, durante os invernos em Victoria, na Columbia
Britânica, no curso de escrita criativa, em Winnipeg e Saltspring Is-
land –, em qualquer lugar em que Ian (Cam) Esslemont e eu nos en-
contrássemos, durante o tempo que fosse necessário. Havíamos si-
do coautores de uma série de roteiros de longa-metragem, e ficou
evidente que nossas criatividades individuais eram complementares.
E, durante nossos intervalos da escrita, mergulhávamos no mundo
de Malaz.
Quando abordamos pela primeira vez a ideia de escrever uma
ficção situada nesse mundo, ficou óbvio que dividiríamos a grande
história que havíamos construído ao longo dos anos. E foi o que fi-
zemos. Desde a publicação de Gardens of the Moon, fãs falavam e
escreviam querendo saber sobre o antigo império, o império de Kel-
lanved e seu comparsa, Dançarino. E o tempo todo me pergunta-
vam: você vai escrever sobre os primeiros tempos do Império? Ou,
vai escrever sobre a Guarda Rubra? E eu sempre fui firme na res-
posta: não. A razão deve ser óbvia agora.
Trata-se de um mundo imaginário enorme, grande demais para
um único escritor em uma única vida. Mas dois escritores… bem, aí
é outra história. A dedicatória em Gardens of the Moon foi para Ian
C. Esslemont. Mundos a conquistar, mundos a compartilhar. Acho
que não poderia ter deixado meu desejo e intenção mais claros. Deu
certo. Levou um tempo, mas o primeiro trabalho de Cam situado em
Malaz chegou. Nossas jornadas de vida divergiram por um tempo, e
outras demandas ocuparam Cam – família, pós-graduação etc. –,
mas eu sempre tive fé, sempre soube que havia uma surpresa e um
presente a caminho, e este livro, Noite das facas, marca a primeira
parte disso: o mundo compartilhado que lautos anos antes havía-
mos imaginado.
Noite das facas não é uma fanfic. Nós modelamos o mundo de
Malaz por meio do diálogo; nosso jogo era romanesco, com temas
que eram, na maioria das vezes, brutalmente trágicos. Em outros
momentos tinha comédia, em geral do tipo engraçado. Duelamos
entre as meias palavras e o absurdo, e fizemos questão de confun-
dir os excessivamente usados tropos de gênero. Esse espírito infun-
diu cada um dos meus livros situados no mundo Malazan. E infunde
a escrita de Ian Esslemont no mesmo mundo imaginário. O livro nas
mãos de vocês tem seu próprio estilo, sua própria voz. Toda a histó-
ria se passa no espaço de um único dia e uma única noite, e é re-
quintada. Os leitores de meu trabalho vão reconhecer o mundo, sua
atmosfera, sua escuridão; vão ver os personagens de Noite das fa-
cas simplesmente como outros jogadores entretecidos na mesma
emaranhada tapeçaria; vão ver a história como mais uma peça man-
chada de sangue da história imaginada. E há muito mais por vir.
Para isso, continuamos trabalhando na história do mundo Mala-
zan, debruçando-nos sobre seus detalhes, verificando a sequência
de eventos, discutindo os temas, as entrelinhas, e assegurando a
consistência dos personagens. Nós nos dedicamos à cronologia e
ao destino de inúmeros personagens, muitos dos quais ainda nin-
guém conhece. E discutimos inescrupulosamente, e como bem sa-
bem os leitores de Malazan Book of the Fallen, falta de escrúpulos
há de sobra.
Desde o início da série Malazan venho escrevendo para uma
pessoa: Cam. E ele tem correspondido. Assim, o diálogo continua;
só que agora há outras pessoas, e elas estão ouvindo. Por fim, os
dois lados da conversa.
Espero que se divirtam.
Steven Erikson
Winnipeg, Canadá, 2004
Dramatis Personae

Malazans
Imperador Kellanved, governante ausente do Império Malazan
Dançarino, mestre-assassino e guarda-costas de Kellanved
Surly, senhora do corpo assassino imperial, os Garras
Tayschrenn, alto mago imperial
Temper, soldado Malazan
Corinn, maga, membro da brigada Bridgeburner
Ash, ex-oficial da brigada Bridgeburner
Seal, curandeiro exclusivo do Exército Malazan
Dassem Ultor, campeão e Primeira Espada do Império
Chase, oficial das tropas do Forte de Mock
Hattar, guarda-costas de Tayschrenn
Ferrule, membro da guarda pessoal de Dassem, a Espada
Possuiu, assassino imperial, membro dos Garras
Habitantes da ilha de Malaz
Coop, proprietário da Pousada do Enforcado
Anji, empregada da Pousada do Enforcado
Kiska, jovem com a esperança de entrar para o serviço imperial
Lubben, porteiro do Forte de Mock
Pescador, mago da ilha de Malaz
Agayla, comerciante de especiarias e maga da ilha de Malaz
Trenech, cliente da Pousada do Enforcado
Faro Balkat, cliente da Pousada do Enforcado
Obo, mago da ilha de Malaz
Outros
Edgewalker, o mais velho habitante do Reino das Sombras
Jhedel, prisioneiro do Reino das Sombras
Oleg Vikat, erudito de Warrens
Surgen Ress, último campeão da Cidade Sagrada
Pralt, líder do culto das Sombras
Jhenna, guardiã Jaghut da Casa Morta
Prólogo

Mar das Tormentas, sul da ilha de Malaz


Estação Osserc
Ano 1154 do Sono Ardente
96º Ano do Império Malazan
Último ano do governo do imperador Kellanved
O navio pirata de dois mastros Rheni’s Dream corria para o nordeste
sob velas que lutavam, totalmente abertas. O capitão Murl segura-
va-se firme na amurada da popa e observava a tempestade que ca-
ía sobre seu navio. Forçado em seu limite, o casco gemia de forma
ameaçadora, enquanto as cordas emitiam notas altas, que Murl nun-
ca havia ouvido antes.
A tempestade que provinha do Sul erguia-se como um muro de
escuridão, uma frente sólida de ondulantes nuvens negras sobre on-
das açoitadas pelo vento. Mas não era a tempestade que preocupa-
va o capitão Murl, mesmo com sua ascensão tão antinatural. O Rhe-
ni’s Dream já havia encarado as mais altas ondas conhecidas pelos
pilotos Jakatans, do mar de Kalt, ao Norte, aos fortes ventos de Re-
ach, ao sul de Stratem. Não, o que deixava seu coração apertado de
medo eram os flashes azuis que brilhavam como cacos de gelo em
meio às ondas na base da agitada frente de nuvens. Ninguém ja-
mais dissera tê-los visto tão de perto. Ninguém que houvesse volta-
do.
Murl e seus colegas pilotos os chamavam de Cavaleiros. Demô-
nios do Mar e Cavaleiros da Tormenta para outros. Seres de mar e
gelo que reivindicavam essa parte estreita como sua, pela qual nin-
guém passava. Somente os antepassados Jakatans de Murl conhe-
ciam as oferendas adequadas para subornar a passagem mais rápi-
da ao sul da ilha de Malaz. Por que, então, os Cavaleiros prossegui-
am? O que poderia seduzi-los tão ao Norte?
Murl deu as costas ao vento que o fustigava. Seu primo, Caolho,
lutava para controlar o leme; mantinha as pernas abertas, e seus
braços tremiam na ampla roda de direção. Quando o navio se incli-
nou para frente rumo a uma depressão, Murl agarrou-se ainda mais,
pronto para a queda e o impacto estrondoso.
– Será que esquecemos alguma oferenda? – gritou ele por cima
do barulho do vento.
Olhando fixamente para a proa à frente, Caolho balançou a ca-
beça.
– Nenhuma – disse. – Tentamos todas.
Ele olhou por cima de seu ombro com o único olho azul pálido.
– Todas, menos a última.
Murl vacilou. Foi se arrastando até meia-nau, mão ante mão pe-
las cordas guia. O deque, coberto por uma camada de gelo, era trai-
çoeiro. A geada arrastada pelo vento, afiada como agulha, arranca-
va sangue de seu pescoço e mãos. Todas, menos a última. Mas es-
se rito nunca havia sido promulgado. Pois, pelo frio abraço de
Chem, cada alma do Rheni era um irmão de sangue para ele! Murl
relembrou a única vez que havia testemunhado o rito: a cabeleira
negra do pobre rapaz balançando sobre as ondas, os pálidos braços
debatendo-se desesperadamente na água. Ele estremeceu não só
de frio, mas por sentir algo ruim. Não, ele não seria obrigado a fazer
aquilo.
Murl agachou-se ao lado de um corpo esguio amarrado ao mas-
tro principal, caído como se estivesse dormindo. Ele estendeu a
mão dormente pela espuma salgada congelada e acariciou a boche-
cha pálida. Ah, Rheni querida, sinto muito. Foi demais para você.
Quem poderia esperar aplacar uma tempestade como esta?
O gelo estalou próximo a Murl quando o suboficial, Hoggen, ba-
teu contra o mastro e agarrou-se a ele.
– Devo preparar as armas?
Murl abafou uma vontade louca de cair na gargalhada. Olhou
atentamente para Hoggen para ver se o homem falava sério. Infeliz-
mente, era o que parecia. A geada brilhava branca em sua barba, e
seus olhos eram murchos e sem brilho. Era como se o sujeito já es-
tivesse morto. Murl gemeu por dentro.
– Vá em frente, se for preciso.
Olhou para o topo do mastro com os olhos apertados. Havia al-
guém montado na trave ali em cima. Algo brilhava em sua calça, ca-
misa e braços: uma camada de gelo sepultante.
– E faça o jovem Mole descer dali.
– O garoto não vai responder. Acho que o frio o pegou de jeito.
Murl fechou os olhos para se proteger dos respingos e abraçou o
mastro.
– Estamos desacelerando – observou Hoggen com voz inexpres-
siva.
Murl mal o ouvia por causa do gemido do vento. Sentia que suas
roupas encharcadas drenavam-lhe o calor de vida. Tremia incontro-
lavelmente.
– Há gelo nas velas. Vão se rasgar em breve.
– Temos que martelar para arrancá-lo.
– Tente o que quiser.
Com uma tosse rouca, Hoggen esforçou-se para se afastar do
mastro. Murl ficou. Decidiu que era conveniente encontrar seu fim
ali, com Rheni, a bordo do navio que havia batizado em homenagem
a ela. Estava praticamente cercado pela família; até mesmo o vaga-
roso e leal Hoggen era seu parente pelo casamento. Murl baixou os
olhos. Como ansiava acariciar os longos cabelos pretos que tremi-
am e tilintavam como um punhado de pingentes de gelo!
– Forte Cavaleiro a bombordo! – gritou alguém.
Atordoado, Murl ficou surpreso ao ver que um tripulante perma-
necia consciente o suficiente para dar o aviso. Virou o olhar para lá,
através da espuma que respingava por cima das amuradas.
Ondas duas vezes mais altas que o mastro passaram espuman-
do gelo e geada. E então, Murl viu uma deslumbrante figura de safi-
ra rompendo a superfície: firme, blindado, com uma longa lança de
gelo escondida no quadril. A cavalgadura parecia meio animal e
meio onda turva. Imaginou o olhar escuro e inescrutável da besta
por detrás dos antolhos de placas de gelo. Então, também repenti-
namente, o cavaleiro mergulhou, voltando ao mar agitado. Isso fez
Murl se lembrar das baleias azuis brincalhonas saltando à frente da
proa. Outra subira à superfície mais além. E mais outra. Elas subiam
as ondas à altura do Rheni’s Dream, e pareciam alheias a ele. Seri-
am homens, ou a antiga raça Jaghut, como defendiam alguns?
Ele observava, sentindo-se estranhamente imparcial, como se
tudo estivesse acontecendo com outra pessoa. Um tripulante, Larl,
firmou-se na amurada e ergueu uma besta para o Cavaleiro mais
próximo. O tiro se extraviou descontroladamente. Murl balançou a
cabeça negativamente. Para que isso? Já estavam mortos mesmo.
Não havia nada que pudessem fazer. E então, como um escorpião,
largou o mastro e correu para a popa. Caolho ainda estava firme ao
leme, de braços abertos, olhando para frente. Murl envolveu com o
braço dormente a arma em seu tripé e tomou a manivela. O ferro in-
candescente queimou sua carne, rasgando a pele da palma de sua
mão enquanto ele lutava com o mecanismo.
– O que é que eles querem? – gritou Murl a Caolho.
Lágrimas congelaram em seus olhos, cegando-o. O escorpião
não se mexia. Ele tirou a mão do ferro ardente. Seu sangue conge-
lou como farrapos de um pano vermelho. Caolho não respondeu;
nem mesmo virou-se para ele. Atirando-se sobre o leme, Murl enfiou
o braço entre os raios.
Caolho nunca mais responderia. Em pé, rígido, ao leme do Rhe-
ni’s Dream, o timoneiro olhava para frente, fitava a noite, com seu
único olho restante branco de geada. A camisa e calça batiam ao
vento, congeladas, duras como lâminas de madeira.
Murl o fitou horrorizado, e no olhar indiferente de Caolho, dirigido
à frente, a distâncias desconhecidas, obteve a resposta que procu-
rava. Os cavaleiros não estavam interessados neles. Estavam ali
por outro motivo, respondendo a alguma convocação desumana, ru-
mando para o Norte. Um exército invasor arremessando seu poder
contra a única coisa que os havia confinado por tanto tempo à pas-
sagem estreita: a ilha de Malaz.
O navio gemeu como um animal torturado. A proa arquejou, pe-
sada de gelo, afundando debaixo da onda. O golpe arrancou Murl
do leme. Quando os respingos clarearam, Caolho estava sozinho,
pilotando o túmulo congelado rumo ao norte. As velas caíram duras,
e se despedaçaram nas plataformas. O gelo cobria os mastros e os
deques, obstringindo o navio como um coração negro dentro de um
rochedo congelado que corria gemendo, intumescido.
A tempestade ainda corria para o Norte como uma maré monóto-
na tomando o horizonte. Da escuridão emergia uma flotilha de mon-
tanhas cor de esmeralda com profundas fendas engastadas; a neve
em seus picos brilhava com as últimas luzes.
Como incontroláveis máquinas de cerco construídas para conti-
nentes humildes, elas explodiram à frente. Em seus flancos, os Ca-
valeiros investiram para frente, lanças em riste, apontando para o
Norte.
Um Caminho nas
Sombras

Um vento fraco gemia sobre a vasta planície de areias duras, com


pedras vulcânicas pretas dispersas, onde remoinhos de poeira dan-
çavam e vagavam erguendo plumas ocre, desaparecendo em segui-
da, só para repentinamente sair rodopiando em direção a outro lu-
gar. Atravessando a planície, onde todas as direções se estendiam
até o horizonte sem graça, idêntico, monótono, uma figura mancava
lentamente.
Como um seguidor brincalhão, um turbilhão erguia-se sobre a fi-
gura, engolfando-a em uma mortalha giratória de poeira ferruginosa.
A figura andava sem vacilar, sem levantar a mão ou virar a cabeça.
O remoinho de poeira girava, rapidamente traçando uma rota espira-
lada sem rumo. A figura seguia pesadamente uma linha reta, e a
perna direita torta escavava a areia a cada passo.
Vestia os restos esfarrapados de algo que poderia ter sido um
pano grosso sobre uma armadura de couro e escamas. Os braços
nus pendiam secos e curtidos, como pouco mais que ossos vestidos
de couro. Dentro de um elmo bronze cinza-esverdeado, a face reve-
lava apenas poços vazios; o nariz era uma caverna aberta, os lábios
secos e retraídos expunham os dentes cariados. Uma espada roída
pela ferrugem pendia cruzada em suas costas.
Ao longe surgiu uma mancha escura, mas a figura continuou a
marcha laboriosa sob um céu que permanecia obscuro e sombrio,
onde formas que lembravam pássaros subiam para as nuvens. So-
mente uma vez a figura hesitou. Olhando para o lado, parou por um
momento, permanecendo imóvel. Ao longe, o horizonte se havia al-
terado. Uma suave luz prateada brilhava sobre o azul mais escuro
como a miragem de montanhas distantes. A figura olhou, e então
seguiu em frente.
A mancha distante tornou-se um monte, e o monte um menir. A
figura mancou diretamente para o pé da lâmina de granito, duas ve-
zes mais alta que ela, e parou. Esperou, de frente para o menir, en-
quanto os remoinhos de poeira cruzavam a planície, escavando nas
pedras estrias verticais, como as marcas das garras de um animal
feroz. Espiralando sobre e ao redor da pedra ferida, havia símbolos
prateados finos como um fio de cabelo. Rigidamente, a figura ajoe-
lhou-se para olhar mais de perto – não para os glifos, mas para uma
forma marrom e mogno, curvada na base do menir.
A corcova moveu-se; levantou a cabeça calva cheia de escamas
quitinosas. Os olhos amendoados, de um dourado ardente, pisca-
ram vivos. Um peito largo de placas angulares intumesceu-se com a
respiração.
– Ainda conosco, afinal, Jhedel – observou a figura agachada.
A voz era como o seco alento do túmulo. Endireitou-se.
– É bom ver você também, Edgewalker.
Edgewalker deu meia-volta e examinou a planície pelas órbitas
vazias, fitando as manchas azuis e prateadas.
Jhedel virou a cabeça, resmungando. Estendeu uma perna co-
berta de placas blindadas e esporas pontiagudas letais; flexionou os
ombros largos. Retesou-se e tentou se levantar, mas não conseguiu.
Os braços desapareceram atrás das costas, afundando até os pul-
sos no granito nu do menir.
– O que faz por aqui?
Edgewalker virou-se, indagando:
– Alguma coisa passou por aqui, Jhedel?
As presas amarelas de Jhedel brilharam no que parecia ser um
divertimento abafado.
– Vento. Poeira. Tempo.
– Pergunto, porque algo está vindo. Eu sinto. Você…
Os olhos cor de âmbar estreitaram-se.
– Você sabe que este pequeno círculo é meu mundo agora. Você
veio para me insultar?
– Você sabe que eu estou preso também.
Jhedel olhou para Edgewalker de cima a baixo.
– Não do meu ponto de vista. Pobre Edgewalker, lamentando a
escravidão. No entanto, você estava aqui muito antes daqueles que
eu matei para tomar-lhes o trono. E aqui ficou depois que os que me
prenderam, por sua vez, já estavam muito longe e esquecidos. Eu
ouvi coisas sobre você… rumores.
– A força que sinto é nova – disse Edgewalker, como se o outro
não houvesse dito nada.
– Algo novo?
– É bem possível.
Jhedel franziu a testa, como se não soubesse o que pensar.
– Testando o reino?
– Sim. O que você acha disso?
Erguendo a cabeça, Jhedel farejou o ar com as fendas nas nari-
nas:
– Alguma coisa com um coração de gelo, e algo mais… algo as-
tucioso, escondido, como um reflexo embaçado.
– De olho no trono, imagino.
Jhedel bufou:
– Não é provável. Não depois de todo esse tempo.
– Uma Conjunção se aproxima. Sou a favor da Casa. Pode ha-
ver um atentado contra ela. Quem sabe… talvez você seja libertado.
– Libertado? – reagiu Jhedel. – Vou mostrar-lhe minha libertação!
Ele se levantou sobre as patas traseiras, erguidas e retesadas;
cravou os pés com garras na poeira. Os ombros tremeram. As pla-
cas quitinosas dos braços rangiam e gemiam.
Por um tempo nada aconteceu. Edgewalker observava em silên-
cio. A poeira escapava das laterais cinzeladas do menir, que parecia
vibrar. Subitamente, uma explosão de luz prateada no topo do mo-
nólito cegou Edgewalker. A luz girou como um relâmpago pela espi-
ral de glifos prateados, cintilando, ganhando velocidade e tamanho,
enquanto Edgewalker desviava o rosto do fogo ardente.
Jhedel soltou uma gargalhada insana:
– Aqui está – gritou ele acima do rugido da cachoeira de poder
intumescido, coalescente.
A bola de poder voltou para dentro de Jhedel, que gritou. A terra
cedeu. Edgewalker foi lançado para longe. Poeira e areia revolutea-
vam preguiçosamente no vento fraco. Quando clareou, Jhedel ficou
imóvel, esparramado na base do menir. Saía fumaça das fendas dos
olhos e da boca aberta.
O rosto esquelético de Edgewalker permanecia impassível. Ele
ficou em silêncio por um tempo, até que endireitou o corpo e aga-
chou-se.
– Jhedel? Está me ouvindo? Jhedel!
Jhedel gemeu.
– Você se lembra?
Debruçada, a criatura concordou, pensativa:
– Sim. Esse é meu nome: Jhedel – e deu de ombros na poeira.
– Você lembra quem o prendeu?
– Quem quer que tenha sido, está muito longe agora.
– Eu me lembro deles. Eles eram…
– Não me diga! – Jhedel levantou-se rapidamente. – Eu quero
lembrar. Assim, terei algo para fazer. Espere… eu me lembro de al-
guma coisa…
Afastou-se rapidamente de Edgewalker e sussurrou, suspirando:
– Um boato sobre você!
Edgewalker afastou-se alguns passos do menir, mancando. Ins-
tantes depois, Jhedel o chamou:
– Volte. Por favor, liberte-me. Você tem poder para isso. Eu sei
que tem!
Edgewalker não respondeu. Continuou andando.
– Solte-me, maldito! Você tem que me soltar! Maldito!
Jhedel retorcia violentamente os braços. A poeira agitava-se co-
mo um lenço saindo do menir. Através dela, os glifos brilhavam co-
mo fina filigrana queimando.
– Eu vou destruir você! – berrou Jhedel. – Você e todos os que
vieram depois! Todos!
Ele se retorceu novamente, gritando de raiva e dor. Quando o
chão tremeu, Edgewalker cambaleou. Olhou de novo para o menir.
Algo agitava-se e arfava no meio de uma nuvem de terra que subia
da base. Uma nuvem de poeira subiu ao céu. Edgewalker conti-
nuou. Estava atrasado, e o tempo e a dança celestial dos reinos não
esperavam por ninguém. Nem mesmo por entidades loucas e pode-
rosas como aquela, presa atrás dele. Quando conversaram, durante
os momentos mais lúcidos, a entidade conseguira se lembrar de seu
nome completo: Jhe’Delekaaran, que certa vez comandara todo o
reino como rei. Soberano dos Que’tezani, habitantes das regiões
mais distantes das Sombras. E por mais louco que fosse, Jhedel es-
tava certo em relação a uma coisa: fazia muito tempo desde que o
Trono detivera um ocupante pela última vez. Com a chegada de ca-
da Conjunção, essa ausência preocupava Edgewalker. Mas, dessa
vez, o que mais o intrigava era algo tão raro, que ele quase não con-
seguia reconhecer: o espiralado potencial para a mudança.
Capítulo I
Presságios e Chegadas

Em meio às ondas cortantes do Estreito dos Ventos, as velas de um


barco mensageiro que se aproximava queimavam como carmim
sangrento na luz do fim do dia. Temper pôs a lança contra a parede
da ameia do Forte de Mock e olhou sobre a borda da crena de pe-
dra. Cem braças abaixo, o precipício mergulhava em espuma e on-
das. Por cima do ombro, ele olhou para o muro cinza da fortaleza in-
terna: as janelas fendidas brilhavam como ouro. Sombras moviam-
se ali dentro.
Temper murmurou contra o vento:
– Preso entre Hood e o maldito Abismo.
O que poderia haver para um oficial imperial – uma mulher, um
Punho Imperial – naquele fim de mundo? Ele quase pulara do pri-
meiro navio quando ela chegara à ilha, três dias antes. Mas Temper
conseguira afogar a urgência na cerveja preta na Pousada do Enfor-
cado, em Coop. Nada disso, disse a si mesmo várias vezes, tinha
mais nada a ver com ele.
Espreguiçou-se e estremeceu. A noite surpreendentemente fria
havia reavivado a dor de um antigo ferimento em suas costas: um
dardo fincara-se ali muitos anos antes. Um sujeito na escaramuça
de Sete Cidades havia estragado a melhor cota que já possuira,
além de quase tê-lo matado. A ferida nunca cicatrizara direito. Tal-
vez fosse hora de consultar de novo aquele jovem médico do exérci-
to, Seal. Temper coçou o queixo e se perguntou se dava azar recor-
dar o hálito da morte quando o sol estava se pondo. Perguntaria a
Corinn, se a visse.
Apenas três dias antes ele estava com centenas de outros no
muro do porto para assistir ao desembarque da oficial imperial. Gri-
tos de surpresa ecoavam por todo lado pelas ruas quando as primei-
ras luzes revelaram as velas azul-escuras e o igualmente escuro
casco de um navio de guerra Malazan ancorado na baía. Os ho-
mens e mulheres da cidade lembravam-se muito bem de seus últi-
mos visitantes: elementos do Terceiro Exército encontrando-se com
recrutas e fazendo cumprir o novo édito da regente imperial contra
magia. As rebeliões que se seguiram fizeram um quarto da cidade
ser engolida pelas chamas.
A notícia da chegada do navio havia levado Temper até a estreita
escadaria de Coop. Quando acabara de se barbear, jogara uma toa-
lha por cima do ombro e caminhara até a Via Front. Entre armazéns,
observara o porto e a baía à frente. Anji, empregada de Coop, e às
vezes amante, subia a Via Front carregando dois baldes de água.
Ela os deixara sobre o pavimento, afastara os longos cabelos casta-
nhos do rosto corado e fizera uma careta em direção ao porto:
– Deuses, o que é isso agora?
Temper franzira a testa:
– Um navio de guerra. Navio da linha de frente. Construído para
combates navais, escolta de comboios, bloqueios. Não costuma fa-
zer transporte de tropas ou de balsas comerciais.
E pelas tetas de Togg, o que estava fazendo ali?
– Deve estar a caminho do sul de Korel – respondeu Anji.
Com uma das mãos protegendo os olhos, ela virou o olhar para
ele e disse:
– Por causa da guerra e tudo o mais.
Temper puxara da garganta um punhado de catarro e cuspira pa-
ra o lado. Ninguém mandaria um navio de guerra até Korel sozinho.
E pelo que ouvira, Hood sabia que seria necessário mais que um
navio de guerra para virar a maré a favor do sul.
Botes eram lançados do cais. Longas remadas os impulsiona-
vam ao redor da enorme embarcação. Temper apostara que o co-
mandante das tropas, Pell, da honorária categoria Subpunho, devia
estar enjoando em um deles. Inspirou fundo, sentindo o ar frio da
manhã e disse:
– Acho que vou dar uma olhada.
Anji novamente jogara para trás seus longos cabelos:
– Para quê? Com certeza isso significa mais sangue nosso der-
ramado – e erguendo os baldes continuou a dizer: – Como se já não
houvéssemos pago o suficiente.
A vista do porto não era nada esclarecedora. No distrito dos ar-
mazéns, Temper ouvira rumores de que o navio devia aguardar um
novo comandante de tropas, ou que o Forte havia sido reativado co-
mo base de comando para uma nova campanha contra Korel. Mas
ele também ouvira o oposto: que o navio trazia de Korel o comando
imperial em plena retirada. Um velho pescador expressara a opinião
de que poderia ser o próprio imperador voltando. Homens e mulhe-
res levantaram as mãos para afastar o mal e recuaram. O pescador
piscara para Temper.
Caixas de carga surgiram no lado mais alto do navio, e a tripula-
ção baixara-as aos botes, que balançavam ao redor da embarcação
como insetos em volta de uma tartaruga-marinha. Os rumores da re-
tirada de Korel eram interessantes. Notícias do sul diziam que havia
sido um dos locais de resistência feroz, com número de baixas sufi-
cientemente alto para uma negação oficial, e quase sem avanços
desde o desembarque inicial, meia década atrás.
Em outras campanhas em continentes distantes, Temper havia
viajado a bordo de navios idênticos àquele. Todos levavam o emble-
ma em suas velas: o cetro de três garras no alto trazia a esfera im-
perial. Ele havia testemunhado assaltos ao porto, durante os quais
essas esferas brilhavam como sóis pálidos, explodindo os muros e
os quebra-mares até virarem escombros. Durante as batalhas em
alto-mar, as esferas faziam ferver as ondas, explodiam os cascos
em chamas, e suas chicotadas convocavam os demônios marinhos.
Talvez esse navio houvesse retornado da guerra naquele fronte.
Korel era tida como uma série de arquipélagos onde as forças na-
vais fariam ou quebrariam qualquer campanha. Isso explicaria seu
aparecimento ali.
O primeiro bote retornara ao cais militar abaixo do Forte de
Mock. Levava apenas pessoas. Figuras escuras e ricamente camu-
fladas pisavam nas docas flutuantes. Temper apertava os olhos en-
quanto observava os homens e mulheres encapuzados surgirem em
fila por entre as defesas. Aquilo não lhe agradava; nem um pouco.
Eram figuras muito familiares, com escuras botas e luvas de couro.
Com uma sensação de mal-estar, Temper relembrara outro forte no
qual poderiam ser encontrados navios como aquele. Unta, do outro
lado do estreito: a capital imperial.
O pescador erguera o queixo em direção ao cais e comentou:
– Viu? Eu tinha razão.
E dera uma gargalhada rouca, batendo no punho.
E agora, tremendo no ar frio da noite, Temper lembrava-se de
quando observara aquele navio de guerra e se perguntara: estão
aqui por causa dele? Eles o teriam rastreado por três mil léguas? Se
assim fosse, estavam fazendo daquilo um espetáculo. E consideran-
do-se tudo, aquilo havia sido um descuido.
•••
No alto das ameias, o sino encerrava o dia. O fim do turno de Tem-
per tocou aguda e profundamente na torre de Mock. Em seu pico,
ao lado de Temper, o cata-vento de Mock, em forma de demônio
alado, balançava e zumbia como se estivesse preso em um venda-
val constante. Temper franziu o cenho para aquela relíquia; os ven-
tos estavam calmos naquela noite.
Momentos depois, ouviu seu superior, tenente Chase, subir pe-
sadamente os degraus da muralha. Suspirou diante do ritmo pesa-
do. Um dia desses, alguém teria que chamar o jovem novato de lado
e explicar-lhe que não estava mais marchando para cima e para bai-
xo no campo de treinamento. Mas ser tão inexperiente também sig-
nificava ser pontual – e a longa tarde faz secar a garganta de um
homem.
Chase parou logo atrás de Temper, que o ignorou. Ele ouvia a ar-
rebentação, observava um ágil barco mensageiro arremeter como
uma gaivota por entre a crista espumosa, perigosamente na direção
do vento dos recifes da ilha da Velha Sentinela. O vento comandava
a navegação. Ou então, um timoneiro endemoniado em uma corrida
profana contra Hood.
Uma ponta de espada cutucou seu cóccix.
– Vire-se para o reconhecimento, soldado.
– Reconhecimento? Chase, às vezes desejo nunca tê-lo conhe-
cido.
Temper virou-se e plantou os cotovelos sobre a arenosa crena
de calcário.
Chase embainhou a espada e endireitou-se, como se estivesse
no campo de treinamento. Longas penas de algum pássaro colorido
vibraram no topo do elmo de ferro. O latão e o cobre dourados do
peitoral da armadura recém-polida brilhavam. Só as botas de couro
do jovem pareciam custar mais do que Temper ganhava em um ano,
e ele olhou para as próprias sandálias remendadas, o tecido esfarra-
pado que envolvia as próprias pernas, e o puído manto preto e dou-
rado de uma tropa Malazan regular.
– Comporte-se como um guarda real, velho – advertiu Chase. –
Pelo menos enquanto o oficial estiver aqui. Mistérios de D’rek, cara.
Eu poderia ser um dos dela! – Chase ergueu os olhos para a torre,
dizendo: – Eles arrancariam seu coração, como um aviso.
Temper ficou rígido ao ouvir um dos dela. De onde o rapaz havia
tirado aquilo? Fazia muito tempo desde a última vez que ouvira
aquele termo antigo relativo ao quadro de segurança imperial, os
Garras. Claro que um Punho Imperial teria um destacamento de
Garras – para proteção, coleta de informações, e tarefas mais obs-
curas e desagradáveis. De soslaio, ele observou o tenente e se per-
guntou se ele o estaria sondando. Mas os olhos castanho-claros do
jovem, e as faces lisas por trás de seu elmo não pareciam mais trai-
çoeiros que um calmo regato de águas claras. Temper se recompôs,
engoliu sua paranoia e agradeceu aos deuses gêmeos pela sorte de
Chase não ter percebido.
Ele cuspiu nos blocos arruinados de pedra calcária.
– Em primeiro lugar, rapaz, eu o ouvi chegando. E ninguém nun-
ca ouve os dela. E em segundo lugar, quando eles vêm – Temper
bateu com o dedo em seu nariz achatado –, dá para sentir pelo chei-
ro.
Chase bufou, descrente.
– Pelos deuses, barba branca! Eu ouvi falar de toda a maldita
ação que você já presenciou, mas não finja que aqueles Garras não
lhe gelam o sangue.
Temper rangeu os dentes e reprimiu o desejo de algemar o jo-
vem. O que aquele novato poderia saber de coisas que reviravam o
estômago dos veteranos mais endurecidos? Temper conhecera as
campanhas de Sete Cidades; estava lá quando tomaram Ubaryd.
Haviam chegado ao Palácio à noite. Os salões de mármore haviam
sido esvaziados, mas graças aos corpos de oficiais e guardas lentos
demais para fugir, o imperador esmagara o poder de Falah’d. No an-
dar de cima, encontraram as câmaras privadas e a própria Sagrada
amarrada com cordas de seda a uma cadeira. Três Garras estavam
sobre ela, de facas em punho. Sangue ainda úmido brilhava nas lâ-
minas e pingava das amarras molhadas dos pulsos e tornozelos de
Falah’d, formando uma poça no mármore coral. Ele e Point não fize-
ram nada, inseguros, mas Dassem saltara à frente e afastara o Gar-
ra que estava diante da mulher. Ela levantara a cabeça; longos ca-
chos esvoaçavam, e embora os olhos houvessem sido arrancados,
a boca estivesse aberta, sem língua, e sangue escorresse pelo quei-
xo, ela parecia olhar diretamente para Dassem. Os Garras, dois ho-
mens e uma mulher, entreolharam-se. Um recuara e levantara a fa-
ca ensanguentada ao perceber o olhar de Dassem. Os lábios de Fa-
lah’d moviam-se silentes, murmurando uma mensagem, ou uma sú-
plica. O Garra feminino arregalara os olhos ao subitamente com-
preender, e abrira a boca para gritar; mas era tarde demais. Aconte-
cera tão rápido, como se Dassem houvesse simplesmente dado de
ombros. Subitamente a cabeça de Falah’d rodara; sangue jorrava de
seu torso. A cabeça tombara nos ladrilhos de mármore, e os longos
cachos negros se emaranharam no sangue enquanto rolava.
Temper não tinha certeza, mas parecia que as palavras que ela
murmurara haviam sido liberte-me. Aquele fora o fim da última Sa-
grada Falah’d de Ubaryd.
Temper esfregou a cicatriz de lua minguante que descia da têm-
pora esquerda até o queixo e respirou fundo para se acalmar. For-
çou-se a pensar no que Chase via quando olhava para ele: um vete-
rano alquebrado, incompetente ou estúpido demais para passar da
categoria de soldado. Era esse, afinal, exatamente o papel que cria-
ra para si mesmo. Disse, baixinho:
– Eles me dão nojo.
Chase o encarou, inquieto com a emoção na voz de Temper. A
seguir, fez uma careta diante da implícita crítica ao trono imperial.
Apontou para uma barbacã a um canto e disse:
– Pode ir, velho.
•••
De folga, Temper pendurou a lança, a túnica e a cota de couro fervi-
do no barracão das armas. Ajustou as bandagens de pano nas per-
nas e passou de novo as correias de couro das sandálias militares
sobre elas.
Procurou a única extravagância: um manto de feltro forrado e es-
covado de Falar. Estava na sala da guarda, enrolado em um banco,
debaixo do enorme traseiro de Larkin. Vendo aquilo, Temper quase
deu meia-volta e saiu. Larkin sabia muito bem quando o turno termi-
nava, e havia se sentado na capa como um desafio. Temper não ti-
nha escolha senão responder.
Larkin estava conversando ao redor de uma mesa; os outros
guardas amontoavam-se, ombro a ombro, ao longo das tábuas nuas
e cruas, onde as peças esmaltadas – os Ossos – de um jogo jaziam
dispostas. Ninguém prestava atenção ao jogo, pois Larkin chegava
ao clímax de mais uma de suas longas histórias.
Temper encostou-se na madeira quadrada que representava o
batente da porta; cruzou os braços. Ali estava Larkin; voltara havia
apenas um mês do fronte Genabackan – tivera baixa da guarnição
devido a um ferimento na perna –, e Temper achava que já conse-
guia recitar de cor cada uma das batalhas do homem.
– Foi na floresta Black Dog – disse demoradamente, arrastando
a história, claramente uma de suas favoritas.
Os guardas assentiram, à espera, sabendo o que estava por vir,
mas saboreando a expectativa mesmo assim.
– A Guarda Rubra…
A tropa – jovens impacientes em uma guarnição postada longe
de qualquer ação – entreolhava-se. Alguns balançavam a cabeça
em reverência. Até mesmo Temper tinha que admitir que sentia um
tremor de reconhecimento e medo ao ouvir aquele nome. A empre-
sa mercenária que havia jurado destruir o Império. A força que dera
a Malaz sua primeira grande derrota, repelindo a invasão de Stra-
tem, e que agora se opunha ao Império em quatro continentes.
– Quem você viu? – perguntou um guarda.
Era Cullen, nativo da ilha, que afirmava ter sido pirata ao longo
da costa de Stratem na juventude.
Larkin anuiu, assim como Temper. Era uma boa pergunta, feita
por aqueles que sabiam o suficiente para perguntar.
Larkin pigarreou, voltando calmamente à história:
– Foi um avanço geral; uma investida para forçá-los a sair da flo-
resta e abrir um caminho para Rhivi Plain, ao Sul. O comandante,
um nobre Subpunho de Dal Hon, colocou-nos em três colunas para
espremê-los; éramos superiores em número. A Guarda foi engros-
sada por recrutas locais, tribais Genabackans chamados Barghasts,
citadinos, milícia, couteiros e outras porcarias. O dia foi bom, uma
campanha fácil. Durante cinco dias avançamos enquanto eles se
derretiam à nossa frente. Bom demais para a Guarda invencível!
Claro que alguns Barghasts e homens da mata atiraram em nós
quando atravessávamos riachos e terreno irregular, mas fugiam co-
mo covardes sempre que contra-atacávamos. Então, veio a sexta
noite…
Temper só conseguia balançar a cabeça diante da imensa estu-
pidez de um avanço em colunas dentro da perigosa floresta profun-
da. Claro que haviam sido autorizados a avançar. Claro que a Guar-
da, em menor número, evitaria um ataque direto. E, por fim, uma
vez que as colunas foram isoladas, suficientemente longe para evi-
tar qualquer esperança de um possível reforço, chegara o ataque.
Os guardas balançaram a cabeça indignados diante da estraté-
gia vergonhosa, e Temper queria gritar: não ouçam esse tolo! Mas
ele era minoria ali. Apesar de ser um cretino pomposo, Larkin era
popular, havia presenciado ação recente em terras distantes e gos-
tava de ser o centro das atenções. Temper sabia que os guardas
mais jovens não gostavam de seu silêncio, nem o entendiam, e que
por isso alguns até duvidavam que ele tivesse experiência para fa-
lar. Qualquer reclamação de Temper seria rejeitada como simples
resmungo azedo.
– Eles atacaram à noite como meros ladrões – disse Larkin, eno-
jado dessas táticas desleais.
Temper controlou-se para não rir em voz alta quando se lembrou
de batalhas similares ao luar em que os próprios Malazans eram os
atacantes!
– Foi um caos total. Barghasts gritavam e saíam correndo da es-
curidão. Estavam atrás de nós, à frente, rodeando nossos flancos.
Estávamos totalmente cercados. Não havia para onde ir. Juntei-me
a um grupo de homens sobre uma pedra alta, iluminada pela luz do
fogo na mata. Juntos, delimitamos um perímetro, feridos na reta-
guarda. Repelimos três ataques dos Barghasts.
Larkin tossiu, fez uma careta e ficou em silêncio. Temper lançou-
lhe um olhar duro. Teria sido o horror, a lembrança de amigos perdi-
dos? Então, por que sentia tanta ansiedade ao reviver tudo aquilo
quase todas as noites?
– Eu vi três Guardas ao longe por entre a vegetação rasteira.
Não reconheci nenhum deles. A seguir, Halfdan passou correndo.
Eu o reconheci por seu tamanho. Meio tamanho, na verdade!
Os guardas riram do comentário.
– Dizem que ele serviu sob as ordens de Skinner – acrescentou
Cullen.
Larkin assentiu.
– E então, outro Guarda apareceu do nada naquela noite escura.
Nunca vou me esquecer da maneira como ele saiu da escuridão…
como um demônio saindo do caminho do próprio Hood. A túnica bri-
lhava nas chamas como sangue fresco. Era Lazar, com o elmo de
viseira e o escudo preto. Nós lutamos, mas foi inútil…
Larkin deu um tapa na perna ferida e sacudiu a cabeça.
Temper saiu da sala. Refrescou a nuca contra a parede de pedra
úmida. Pelos ossos de Fener! Mentiroso maldito! Enfrentou Lazar!
Temper mesmo nunca havia enfrentado a Guarda, mas Dassem os
confrontara com eles durante décadas – o que era suficiente para
qualquer um deixar de alardear as próprias proezas. Dassem nunca
falara dessas batalhas. Diziam que Avowed era incontrolável, mas
Dassem havia matado todos aqueles que o haviam desafiado: Shir-
dar, Keal, Bartok. Somente Skinner, dizem, saiu vivo do confronto
com Dassem.
Risos chamaram a atenção de Temper. As peças entalhadas dos
Ossos estalaram contra a madeira. Ele respirou fundo e entrou.
– Larkin. Você sentou no meu casaco.
Larkin olhou para cima, batendo a peça na mesa. Recostou o
braço musculoso no apoio para os ombros e apontou para a mesa,
onde as peças jaziam como um mapa confuso de caminhos sinaliza-
dos por bandeiras. A tinta dos símbolos estava descascada, e as
peças, sujas devido a gerações de dedos sujos dos soldados.
– Estou jogando – grunhiu, e baixou a cabeça.
– É só levantar a bunda gorda para que eu possa pegar meu ca-
saco.
Larkin não respondeu. Dois dos guardas deram de ombros, aper-
taram os lábios e olharam para Temper com olhar de desculpas.
Larkin depositou a peça, pressionando-a no lugar com a ponta de
um dedo grosso. Temper avançou e a arrancou da mesa. Cinco pa-
res de olhos seguiram a mão de Temper, e então, voltaram-se para
Larkin.
Larkin deixou escapar sua versão peculiar de um longo e sofrido
suspiro.
– Você não sabe que dá azar interromper um jogo?
Os dois entreolharam-se. Era evidente que o tolo tinha a inten-
ção de colocar Temper – o único outro veterano ali – em seu lugar.
Foi justamente por isso que o evitara: perguntas sobre onde ele ha-
via lutado, e com quem, eram a última coisa a que Temper queria
responder. Ele estava se esforçando ao máximo para permanecer
anônimo, mas aquilo já era demais para seu estômago. Não podia
deixar aquele idiota dominá-lo como o valentão do quartel.
– Dê-me essa maldita peça – disse Larkin, e afastou-se da me-
sa. – Ou vou ter que tirá-la de você, velho veterano.
Os sorrisos abafados e os olhares divertidos dos guardas imedi-
atamente desapareceram. Um soltou um suspiro, como se já esti-
vesse arrependido do que estava prestes a acontecer. Temper es-
tendeu a mão com a peça na palma aberta.
– Pegue-a.
Uma parte de si, que Temper não ouvia fazia um ano, provocou o
homem. Tente, incitava a voz, suave e cortante ao mesmo tempo.
Experimente.
Os olhos de Larkin, pequenos e escondidos em seu rosto largo,
varreram a sala como se perguntassem o que estava acontecendo,
quem estava provocando quem. Claramente, a coisa não estava
saindo do jeito que ele havia imaginado. Mas então, ele contraiu os
ombros redondos, e os lábios se curvaram para baixo, denotando
confiança e tédio, Temper viu a reação de um homem muito cheio
de si, demais até para dar ouvidos a alguém.
Balançando a cabeça como se estivesse diante das bizarrices
senis dos idosos, Larkin estendeu a mão para pegar a peça, mas
Temper pegou-lhe o pulso grosso e o apertou. A peça caiu na mesa.
Larkin se sacudia como se houvesse sido mordido por uma ser-
pente. Apertou os lábios de surpresa e dor. Os guardas prenderam a
respiração. Larkin tentou puxar o braço para trás, mas ele não se
mexeu.
Temper sorriu para Larkin, e o homem deve ter lido algo naquele
sorriso, porque a mão livre foi para o punhal na cintura. A faca de lâ-
mina curta surgiu da mesa, e a outra mão de Temper rapidamente
deu-lhe um tapa e apertou o outro pulso.
A respiração difícil de Larkin encheu a sala. A lâmina retorcia-se
incansavelmente para o lado, em direção ao antebraço. Ofegante,
com o rosto vermelho pelo esforço, ele caiu sobre os pés, derruban-
do o banco. A lâmina tocou o antebraço e começou a cortar, para
frente e para trás, partindo do pulso. O tempo todo Temper manteve
os olhos do homem nos seus. O sangue brotava e escorria na me-
sa, fazendo um barulhinho.
Puxando-o pelos pulsos, Temper aproximou Larkin e sussurrou
em seu ouvido:
– Lazar teria aberto você ao meio como um porco.
Mãos e braços apertaram-se em torno de Temper. Puxavam, ur-
giam. Os guardas gritavam, mas Temper não ouvia. Larkin jogou a
cabeça para trás e rugiu. Então, Temper o soltou. Larkin cambaleou
para trás, no chão de pedra, e sentou-se, embalando o braço. Os
guardas puxaram Temper para o corredor, onde sussurrando o es-
panto, observando-o cautelosamente. Um deles devolveu um casse-
tete ao suporte na parede.
Depois de alguns minutos, outro saiu com a capa enrolada de
Temper. Ele os ouvia sussurrar como nunca antes, mas estava preo-
cupado com as terríveis consequências do que havia acabado de fa-
zer. Ao lado da mesa, havia visto gotas de sangue respingarem os
Ossos.
O Soldado, a Donzela, o Rei e a runa do Obelisco. Sem sombra
de dúvidas aquilo significava um navio cheio de azar prestes a cru-
zar sua proa.
•••
Pelo que Kiska percebia, a tripulação do barco mensageiro agira co-
mo o esperado durante a atracação: equipamento de estivagem, fir-
mando o navio para a primeira tempestade gelada de Osserc que
soprava do Sul sobre a ilha. Mas os detalhes os traíram. Onde esta-
vam a repreensão, as queixas, as brincadeiras de uma tripulação no
porto? A ânsia de estar em terra? E ninguém ali fingia-se de doente.
A mão que supostamente fazia exatamente isso – vadiava na pran-
cha de embarque – varria com os olhos o cais, com a indiferença
preguiçosa de uma sentinela. E ela reconhecia a pose; havia treina-
do essa mesma postura.
Parada no convés do navio ao lado na outra parte do cais, Kiska
apoiou o queixo no punho enluvado e observou em silêncio. Caía
uma garoa fina, colando os cabelos no rosto, mas ela não se me-
xeu. Os homens estavam só passando o tempo: enrolando cordas
de novo, amarrando a bagagem. Esperando. Esperando uma pes-
soa, uma ação. Isso significava que todos trabalhavam para o mes-
mo indivíduo.
Esquisito. Um barco mensageiro imperial tripulado por marinhei-
ros que pareciam ser guardas de alguém que havia contratado o na-
vio. Kiska havia crescido escalando aqueles ancoradouros. Para ela,
tal arranjo cheirava a poder, a influência grande o suficiente para
conseguir uma daquelas embarcações – um feito por si só –, e para
arrematar, com autoridade para substituir a tripulação regular por
seu próprio pessoal.
A questão era: o que fazer com a descoberta? Ela olhou para o
muro manchado do Forte de Mock que se erguia acima do porto.
Reportar aos Garras? Por que ela deveria procurá-los depois de
eles terem deixado tão claro que ela não tinha nenhuma utilidade
para eles? Ela relembrou como se sentira quando o amanhecer,
poucos dias antes, havia revelado o inexorável navio de guerra im-
perial ancorado no porto. Parecera o dia mais importante de sua vi-
da, uma segunda chance inesperada. Mas já se sentia como se
houvesse envelhecido uma vida. Não era mais a menina que esca-
lava os altos muros de pedra que encerravam o cais militar; que se
esgueirava pelo telhado plano de um armazém do governo para ver
as docas. Teria perdido algo que a criança possuía? Ou teria ganho
algo? Algo que todos acabavam aprendendo em algum momento da
vida.
Naquela manhã, ela havia visto o primeiro bote voltar do navio
sobrecarregado com sete figuras encapuzadas. Oficiais imperiais da
capital, tinha certeza. De onde mais poderiam provir, senão de Unta,
em todo o estreito? Subiram ao cais e tiraram as capas de viagem,
dobrando-as sobre braços e ombros. No início, ela ficara desaponta-
da. Havia comerciantes em Malaz que se vestiam mais ricamente
que eles: simples camisas de seda, cintos largos, calças largas. No
entanto, uma figura menor não conseguira despojar-se de seu man-
to. Esse simples gesto fizera Kiska emocionar-se ao ver os outros
seis se espalharem. Guarda-costas!
Quem era aquele? Um novo comandante de tropas? Ou um ins-
petor imperial despachado da capital para designar uma tarefa a
Pell? Se assim fosse, que os deuses tivessem piedade do Subpu-
nho pelo que o oficial encontraria no Forte de Mock: galinhas caca-
rejando no pátio, porcos instalados no reservatório rachado e vazio.
Kiska abaixara-se quando o grupo tomara a rota principal para o in-
terior, subindo uma suave colina. Saltara de telhado em telhado e
equilibrara-se sobre a borda de um muro para chegar a um mirante
sob o qual o grupo deveria passar. Gaivotas saíram do caminho gri-
tando de indignação.
Ela descobrira. Iria à presença do representante. Ofereceria seus
serviços. Talvez ela ganhasse uma comissão. Um oficial imperial co-
mo aquele certamente veria que talentos como os de Kiska seriam
desperdiçados naquela ilha miserável.
À altura da estreita estrada murada, o grupo aproximara-se.
Kiska inclinara-se para frente para ver. Os dois primeiros, um ho-
mem magro e uma mulher mais pesada, caminhavam calmamente,
com as mãos cruzadas atrás das costas. Kiska não vira armas. Que
tipo de guarda-costas podiam ser? Ajudantes, talvez, ou funcioná-
rios. Nobres caminhando entre os camponeses. Esse último pensa-
mento fizera subir um gosto amargo em sua garganta. A figura mais
baixa aparecera; o enorme capuz cobria o rosto, as mãos escondi-
am-se nas mangas compridas. Kiska esticara-se para discernir al-
gum detalhe nas dobras do manto. Era preto? Ou carmim escuro?
Alguma coisa puxara-lhe o cinto por trás, tirando-a de seu polei-
ro. Ela virou-se com os lábios abertos para gritar, mas a mão enlu-
vada pressionara sua boca. Fitou os olhos cor de avelã. Era o rosto
de um homem, angular, escuro, com tons azulados. Os cachos dos
cabelos brilhavam na luz da aurora. Um Napan, percebera Kiska.
– Quem é você? – perguntara ele.
Kiska não o reconhecera dentre os que haviam desembarcado.
Na verdade, ela nunca havia visto aquele homem antes. E o teria re-
conhecido se alguém como ele vivesse na ilha.
Ele retirara a mão. Kiska limpara a garganta, engolindo em seco.
Olhos impressionantes, desprovidos de expressão, pareciam olhar
através dela. Como olhos de vidro.
– Eu… Eu moro aqui.
– Sim. E…?
Kiska engolira em seco novamente.
– Eu…
Seu olhar captara um broche do lado esquerdo do peito do ho-
mem: a garra de um pássaro prateado segurava uma semente pero-
lada. Um Garra! Oficiais imperiais de inteligência, magos, executo-
res da vontade do imperador. Essa havia sido uma descoberta maior
do que ela havia imaginado. Não meros inspetores. Simplesmente
os oficiais mais graduados dentre os guarda-costas Garras. O visi-
tante poderia até ser um Punho Imperial.
– Eu não quero fazer mal algum! – dissera ela num suspiro,
amaldiçoando-se por parecer tão… tão inexperiente.
O Garra apertara os lábios, uma expressão que Kiska interpreta-
ra como repugnância.
– Eu sei que não.
E afastara-se. Muda, ela ficara maravilhada, mesmo observando
as telhas quebradas manchadas de excrementos de pássaros. En-
tão dissera, lembrando-se:
– Espere! Senhor!
Na borda do muro, ele parara.
– Pois não?
– Por favor. Eu quero… isto é, eu poderia conhecer esse, ou es-
sa, oficial?
O homem contraíra as mãos como se fossem asas, e levara-as à
faixa em sua cintura:
– Por quê?
Kiska contivera-se para não apertar as mãos; respirara fundo:
– Quero ser contratada. Quero uma oportunidade. Por favor! Eu
tenho talento, de verdade. Vocês vão ver. Tudo que necessito é uma
chance.
O Garra deslizara as mãos da faixa e juntara-as às costas. Dera
um sorriso torto que não o fizera parecer nada divertido.
– Muito bem. Então, você tem talento?
O coração de Kiska dera um pulo. Ela hesitara, mas dissera, ga-
guejando:
– Sim. Sim, eu tenho.
O Garra dera de ombros.
– Esse é um assunto para o comandante local. Subpunho Pell,
acho. Você tem que falar com ele.
– Sim, tenho, mas ele…
O homem descera silenciosamente do muro e desaparecera.
Kiska avançara até a borda. Nada. Uma boa queda da altura de três
homens para uma estrada pavimentada; vazia. Seu sangue fervera.
Abraçara a si mesma, emocionada pelo encontro. Incrível! Os rudes
muros manchados do Forte de Mock acenaram acima dela, e Kiska
erguera o punho.
Ela chegaria lá. O mais alto que pudesse! Como poderiam recu-
sá-la?
•••
Atravessando o pátio interno do Forte de Mock, Temper sacudiu o
manto e o jogou sobre os ombros. O pátio estava vazio. Todo o pes-
soal não essencial havia sido removido do Forte. A guarda comple-
mentar ou estava em seus postos ou dormindo no quartel. Todos do-
bravam turnos desde que a inominável Alta Oficial Imperial havia
chegado. Ela e sua comitiva haviam tomado os três primeiros anda-
res da torre de menagem interna, expulsando o comandante da
guarnição, Pell, que agora dormia no depósito de armas, bebendo
ainda mais do que era seu costume.
Por que a visita? Temper havia ouvido vinte opiniões. As conver-
sas no Enforcado defendiam que o comando em Unta estava pen-
sando em finalmente fechar a guarnição e abandonar a ilha, deixan-
do-a aos pescadores, às gralhas nos penhascos e à colônia de fo-
cas ao sul de Benaress Rocks. Enquanto isso, nada de turnos ex-
tras para ele. A idade acarretava alguns privilégios. Ele sorriu, ante-
cipando uma noite de degustação da velha cerveja preta Malazan
de Coop.
Na guarita fortificada, Lubben, o porteiro, saiu mancando da es-
curidão interna. A enorme argola de ferro cheia de chaves balança-
va a seu lado. A corcunda em suas costas parecia pior que o habitu-
al, e o olho bom brilhava enquanto examinava o pátio. Temper ia
perguntar que calamidade o fizera sair de seu posto habitual, ron-
cando ao pé do braseiro da guarita, quando um movimento de mão
o advertiu a se afastar.
– O portão está fechado por hoje, soldado.
– Soldado? O que aconteceu, Lubben? Ficou cego de tanto be-
ber?
Lubben apontou com o polegar para o corredor escuro à sua re-
taguarda, murmurando algo que Temper não conseguiu ouvir.
– Pelos olhos insones da Feiticeira, o que está acont…
Temper parou de falar quando alguém surgiu silenciosamente
das sombras. Um Garra Imperial com um manto preto à altura dos
tornozelos e o capuz erguido. Lubben fez uma careta, oferecendo a
Temper um impotente dar de ombros como pedido de desculpas. O
capuz do Garra revelava apenas a metade inferior de um rosto enru-
gado e magro tatuado com caracteres cabalísticos. Símbolos que
olhavam para Temper como o roteiro angular daqueles que busca-
vam o Labirinto de Rashan, o Caminho da Escuridão.
O Garra virou-se para Lubben e indagou:
– Algum problema, porteiro?
Lubben curvou-se profundamente, retrucando:
– Não, senhor. Nenhum problema.
O capuz virou-se para Temper, que imediatamente abaixou a ca-
beça. Talvez estivesse sendo cuidadoso demais, mas o Garra pode-
ria interpretar o ato como deferência. Ele já havia visto, no passado,
como a deferência lhes agradava.
– O que quer, soldado?
Temper apertou o cinto com as duas mãos, até que sentiu os de-
dos anestesiados. Olhando para as lajotas do pátio – duas partidas,
quatro lascadas –, disse com cautela:
– Bem, senhor, eu estou praticamente aposentado, e tenho um
quarto só para mim na cidade. Eu só fui chamado por causa da visi-
ta. Pediram guardas extras.
– Porteiro. Comprova o que diz este homem?
Lubben piscou para Temper.
– Ah, sim, senhor. É exatamente como o homem disse.
– Entendo.
O Garra aproximou-se. Temper levantou a cabeça, mas evitou o
olhar do homem. De soslaio, observava enquanto o Garra o exami-
nava. A última vez que ficara tão perto de um daqueles assassinos
havia sido um ano antes, e naquela época, eles estavam tentando
matá-lo.
Ele se preparara desde então; estava pronto para a luta. Tudo
que ele sentia agora era espanto por ter dado de cara com uma das
escoltas do oficial. Estavam patrulhando, como Chase sugerira? Por
que naquela noite?
– Você é um veterano. Onde estão suas insígnias de campanha?
– Eu não as uso, senhor.
– Tem vergonha?
– Não, senhor. Simplesmente considero-me aposentado.
– Está com pressa de deixar o serviço imperial?
– Não, senhor. Eu trabalho duro para minha pensão.
Temper respirou fundo e disse apressadamente:
– Estou construindo um barco. É a coisa mais bonita que o se-
nhor já deve…
Uma das mãos saiu de dentro do manto, erguendo-se para orde-
nar silêncio.
– Muito bem. Porteiro, permita que o homem entre.
– Sim, senhor.
Na outra extremidade da entrada Lubben ergueu o molho de
chaves e abriu as portinholas do portão principal. Temper entrou.
Lubben assomou a cabeça atrás dele e deu um sorriso torto.
– Você nunca me contou que estava construindo um barquinho.
– Não amole, seu corcunda.
Rindo silenciosamente, Lubben respondeu com um gesto que
não precisava de palavras, e a seguir, bateu a porta. O cadeado
chacoalhou ao se fechar. Temper começou a descer a ladeira íngre-
me do Caminho de Rampart. Era uma escadaria recortada na pró-
pria pedra do penhasco, que dava quatro voltas descendo a lateral
do promontório. Cada passo o deixava mais perto dos mecanismos
de artilharia e das catapultas, voltados para a cidade. Acima, nuvens
rolavam sobre a ilha, subindo do Mar das Tormentas. A noite parecia
ter sido moldada dentro de uma delas. A superstição da ilha dizia
que os próprios Cavaleiros da Tormenta haviam sido responsáveis
pelo pior turbilhão sazonal de gelo que chegara do sul em fúria.
O penhasco subia como a ponta de uma faca, demarcando a
fronteira norte da cidade portuária de Malaz. Abraçando a base, fica-
va Lightings, o rico distrito residencial, tendo toda a segurança pos-
sível dada pela sombra do Forte acima. O sul e oeste da cidade cur-
vavam-se em um emaranhado de ruas sinuosas ao redor do rio e da
costa pantanosa da Baía de Malaz. No interior, modestas colinas es-
tendiam-se ao longe. Fumaça de madeira pairava sobre os telhados
de ardósia e pedra. Algumas lanternas brilhavam aqui e ali. Uma ga-
roa fraca caía das nuvens, obscurecendo a visão do porto para Tem-
per. Gotas roçavam seu pescoço como saliva fria.
Ultimamente o porto servia principalmente como ponto de trânsi-
to militar, mas ainda mantinha algum comércio, uma parte até legíti-
ma. De qualquer forma, era uma parca sombra do que havia sido.
Casas abandonadas voltadas para armazéns velhos e cambalean-
tes com atracadouros corroídos pelas ondas. Primeiro fora um porto
de origem de uma marinha pirata, depois uma talassocracia e mais
tarde um império, a cidade agora parecia ter mais fantasmas que
pessoas. Ela dera nome ao império, mas havia perdido todo o valor
tático e estratégico, exceto como ponto de concentração de tropas
agora que as fronteiras do império haviam se estendido para mares
distantes.
Por um tempo a invasão Korelan mudou essa situação, claro, e
os moradores haviam despertado uma renovada promessa para a
ilha. Mas a campanha mostrara-se um desastre, um abismo de ho-
mens e recursos que era melhor deixar de lado. A cidade, a ilha,
agora carregava a mal-assombrada sensação de abandono. E pen-
sando nisso, Temper percebeu por que a espinha nas costas do im-
pério deveria agora receber o primeiro barco mensageiro já visto por
ali: era uma missiva para o oficial. A máquina do governo imperial
havia retornado, mesmo que brevemente, para onde havia começa-
do. Na última volta da escadaria, Temper encolheu-se e saiu na chu-
va fina. Por uma abertura nas nuvens baixas, o Forte de Mock pare-
cia cavalgar um mar agitado; parecia desequilibrar-se, prestes a vi-
rar.
Temper passou a palma da mão sobre os cabelos curtos para
enxugar a garoa e prosseguiu. Ficou imaginando se aquela seria
uma noite para bebidas ainda mais fortes que a cerveja preta de Co-
op.
Deitada nas frias pranchas de um navio, a lembrança de seus
grandes sonhos tão vividos poucos dias antes fez Kiska, mais uma
vez, sentir o calor da vergonha no rosto e na garganta. Como havia
sido infantil! Que tola! Mais que tudo, ela relembrava como ficara em
choque, como uma idiota, confusa, muda de surpresa quando, na
entrada do Forte, outro guarda-costas – um Garra, sem dúvida – a
puxara de lado pelo braço. Pelo braço! Como uma criança.
Vá brincar em outro lugar. Não vamos precisar de seus serviços.
Relembrar aquilo repetidas vezes era quase o suficiente para fa-
zê-la esmurrar o deque. Mas ela se recompôs; mordeu o lábio, e
sentiu o gosto salgado de sangue na língua.
Como puderam fazer aquilo? Aquele era território dela! Ela havia
crescido fuçando em cada prédio e armazém da cidade. Sabia de
cor cada curva e cada beco sem saída das estreitas vias muradas.
Pell até dissera-lhe que, se pudesse conceder comissões, ele a teria
anexado à guarnição como oficial de inteligência. Não havia nada na
ilha que ela não pudesse roubar, se quisesse.
O problema era que não havia absolutamente nada na ilha que
valesse a pena roubar. Assim, ocupava-se ficando de olho nos la-
drões e bandidos insignificantes: a equipe de Spender, que operava
na orla; os piratas Jakatans, que de vez em quando rapinavam navi-
os na costa; qualquer um que chegasse ao porto e saísse dele.
Ela havia sido simplesmente jogada de lado. Talvez fosse isso o
que mais lhe doía, pois fora desnecessário e rude; porque ela espe-
rava de verdade que eles… controlou-se para não pensar em tudo
aquilo de novo. Não suportava mais lembrar-se das esperanças in-
gênuas, das coisas das quais se gabava para as pessoas. Eles
eram, de fato, Garras Imperiais. E estavam escoltando, de fato, um
Punho Imperial. Talvez um das centenas de administradores, gover-
nadores, e até generais dos exércitos.
Kiska apertou os dentes até senti-los doer. E daí, se ela não se
formou em uma dessas escolas de oficiais chiques de Unta, Li Heng
ou Tali? E daí, se ela não tinha acesso a nenhum tipo de magia
Warren? Ela era boa o suficiente para fazer o trabalho sem nada
disso. Tia Agayla sempre dissera que ela tinha um talento natural
para o trabalho. Tão boa quanto qualquer oficial de inteligência – ou
assim acreditava Kiska.
A visita daquele oficial era uma segunda chance que os deuses
lhe enviavam, não podia ser perdida, depois do que acontecera no
transporte de tropas do ano passado. Durante o reabastecimento, o
exército havia tentado fazer cumprir o novo edital da regente contra
magia, e tudo ficara fora de controle. Então, Agayla a trancara, di-
zendo que era para protegê-la, justo quando seus talentos e conhe-
cimento local poderiam ter sido mais úteis. Aquela era a oportunida-
de perfeita de provar seu valor, chamar a atenção de alguém com
autoridade que reconhecesse sua utilidade. Kiska havia jurado, en-
tão, que nunca mais permitiria que aquela mulher interferisse em su-
as chances de sair da ilha. Porém, conforme as chamas se espalha-
vam e as rebeliões acabavam em matança indiscriminada, a contra-
gosto ela admitira que Agayla poderia ter salvado sua vida, sim. Mas
enquanto todos os outros na ilha gritavam aos soldados “Já vão tar-
de!”, e os urgiam com obscenidades e maldições, Kiska observara
os enormes e malfeitos transportes deixando a baía com um senti-
mento de desolação. Naquele momento, ela acreditava que nunca
sairia da prisão que era aquela ilha, apesar de seu talento.
E foi esse talento que lhe permitira detectar a estranheza da ati-
vidade daquele barco mensageiro, mesmo tendo que admitir que ela
só havia ido ao porto para remoer o mau humor. Ela farejara a ação
imediatamente. Aquilo deveria justificar a presença do oficial. Ape-
nas uma simples mensagem? Por que tanto segredo? E não é es-
tranho que nenhuma mensagem – ou mensageiro – teria saído do
navio ainda? O que estavam esperando? Gotas geladas faziam có-
cegas nas costas de Kiska, mas ela as ignorava. O barco, na pressa
de chegar ao porto, quase batera, e agora eles ficam sent…
Ah! Movimento! Um de cada vez, quatro tripulantes desceram a
prancha para o cais, que ficava ligeiramente mais baixo que o con-
vés do navio. Eles usavam ponchos de pele de foca e mantinham os
braços escondido debaixo das largas dobras de couro. Postaram-se
ao pé do caminho encordoado. Kiska imaginava que debaixo dos
ponchos cada homem segurava uma besta engatilhada, possivel-
mente do tipo usado pelos Garras: de parafuso, sem arco. Uma ar-
ma semelhante estava atada em seu flanco direito, comprada com
todo o dinheiro que Kiska possuía no mundo, de um comerciante
que não tinha ideia de como funcionava aquele mecanismo desco-
nhecido.
Depois de apertar os olhos por causa da garoa que engrossava,
e observar a carga empilhada, um dos homens sinalizou o navio.
Ele usava um chapéu de pelo e ostentava o bigode longo e cachea-
do das tribos Seti. Ele balançou a cabeça e cuspiu no tablado. O no-
jo que sentia da doca lotada e a má visibilidade eram óbvios, mes-
mo da distância em que Kiska estava.
Um quinto homem, estatura média, magro, desceu a prancha.
Usava uma capa escura com o capuz erguido, e luvas e botas de
couro. Ele parou e olhou em volta. As rajadas de vento inflavam-lhe
o capuz, e Kiska vislumbrou um rosto dolorosamente estreito, cor de
mogno, liso, e uma visão surpreendente do couro cabeludo brilhan-
te.
O guarda Seti acenou de novo, sinalizando. Os outros três apro-
ximaram-se ainda mais do homem. Kiska reconheceu uma variação
da linguagem de sinais desenvolvida pelos esquadrões de comando
da Marinha e posteriormente adotada por quase todos os outros cor-
pos imperiais, inclusive os Garras. Ela ainda tinha que encontrar um
professor que lhe ensinasse essa linguagem.
Começaram a subir o cais. A chuva apertava; a visão dos cinco
homens confundia-se no fundo de muros e na escuridão da noite
nublada. No entanto, ela não subiu para ir atrás deles. Lembrando
seus ensinamentos, ela suspeitava que outros podiam ter ficado pa-
ra trás com ordens de seguir a distância.
Era seu estilo dar bastante espaço para respirar, especialmente
se eles acreditavam não estar sendo observados. Ela gostava de
pensar que tinha instinto para saber a rota de seus alvos, como
sempre teve quando criança, com os olhos vendados, nas brincadei-
ras de esconde-esconde. Ela gostava de brincar; simplesmente se-
guia os rastros deixados. Enfim, ela quase gritou de surpresa quan-
do um homem vestido de cinza surgiu de trás de uma dúzia de bar-
ris manchados pela intempérie. Abaixando-se, Kiska observou. Ela
estava prestes a subir no costado do navio. Pelos Mistérios da Rai-
nha, de onde ele saiu? Enquanto ela mordia o lábio, o homem espi-
ava ao redor dos barris; a seguir, prosseguiu com um ar quase gar-
boso, com as mãos cruzadas nas costas, a passos largos.
Outro guarda-costas? Ninguém mais havia deixado o navio, ela
tinha certeza. Um rendezvous? Então, por que ficar para trás? Ela
decidiu seguir o conselho de Agayla: considerar que qualquer pes-
soa, até prova em contrário, poderia ser um inimigo.
Kiska esperou enquanto ele seguia em frente, e então, foi sorra-
teiramente para a doca. Concluindo que o sujeito, fosse quem fosse,
não perderia de vista o homem do navio, ela o seguiu. Na cabana
da guarda olhou para os barris, percebendo o que a havia incomo-
dado em relação à repentina aparição do sujeito. Ela deu uma boa
vasculhada na carga antes. A bolsa que estava entre os barris havia
sido esvaziada fora de sua linha de visão.
Isso só deixava uma opção: uma que estava além das possibili-
dades dela, mas que esse sujeito, obviamente, havia utilizado livre-
mente. O fedor de magia Warren a advertiu. Talvez ela realmente
devesse relatar isso. Mas, a quem? Os Garras haviam assumido o
comando do Forte, em nome de algum oficial desconhecido. A ideia
de humildemente apresentar um relatório aos Garras, que ela já ha-
via conhecido – ou pelo menos um de seus irmãos –, fez sua gar-
ganta arder. Malditos sejam nos eternos labirintos da própria Rai-
nha! Ela continuou seguindo o sujeito por um tempo para ver o que
aparecia.
•••
Na parte inferior da Via Cormorant, Temper viu o velho Rengel, com
um cachimbo apertado entre os dentes, fazendo estardalhaço nas
persianas de uma janela do térreo. O velho estava resmungando pa-
ra si mesmo, como de costume.
A estrada estava vazia, exceto pelo marinheiro e veleiro aposen-
tado, o que deixou Temper surpreso, visto que ainda não havia soa-
do o primeiro sino da noite.
– Boa noite.
Rengel virou-se e indagou, surpreso:
– Ei! Noite?
Ele forçou as palavras por entre dentes. Apertando os olhos, as-
sentiu com azedume, depois virou-se para a veneziana e disse:
– Isso mesmo. E das terríveis. Estou surpreso de vê-lo aqui.
Pensei que você soubesse.
Temper sorriu. A conversa de Rengel era enjoativamente nostál-
gica ou sombriamente cínica, dependendo do nível de sobriedade.
Temper julgou-o levemente embriagado naquele momento, mas a
noite ainda era uma criança. Inspecionou as nuvens baixas acima
da cabeça.
– Não parece tão ruim assim.
– Ei! Ruim? – Rengel olhou para cima e fez uma careta. – Não é
o maldito tempo, idiota. – Ele puxou a veneziana e disse: – Maldita
janela enferrujada, Togg amaldiçoado por Hood…
Temper aproximou-se e disse:
– Vamos dar uma olhada.
Rengel lhe deu passagem, soprando furiosamente o cachimbo.
– De onde você é, rapaz?
Observando o fecho da veneziana, Temper sorriu. Quando fora a
última vez que alguém o chamara de rapaz?
– Itko Kan, mais ou menos. Por quê?
Temper ouviu Rengel bufar atrás de si.
– Se você houvesse nascido aqui, ficaria quieto hoje, acredite.
Você saberia. As rebeliões e matanças a profetizaram este ano. Tal-
vez até a convocaram. Uma Lua Sombria. As almas dos mortos
aparecem sob uma Lua Sombria. Elas e coisa pior.
Temper conseguiu destravar a veneziana, girou-a e a fechou.
– Lua Sombria? Já ouvi falar. Mas sou novo aqui.
– São raras, graças aos deuses.
Rengel aproximou-se. Cheiro de ferrugem, cola, suor e gim inva-
diu o nariz de Temper. O velho balançou um pouco, como se esti-
vesse recebendo um vento lateral, e exalou um grande sopro de fu-
maça.
– Eu estava fora da ilha na última, servindo em Stormdriver. Mas
na única que houve antes dessa eu era só um rapaz, cerca de cin-
quenta anos atrás. Poços de sombras se abriram. Almas penadas
escaparam e novas foram pegas. Os demônios corriam soltos pelas
ruas. Eu os ouvi. Eles uivavam como se estivessem atrás da alma
das pessoas – ele cutucou o peito de Temper com o cachimbo e dis-
se: – E não chegue perto dos tocados. Eles serão arrebatados, tão
certo como eu estou aqui em pé agora.
Tocado. Gíria comum para quem conhecia os Warrens.
As habilidades para distingui-los podiam ser aprendidas, mas
eram muito mais comuns para alguém que houvesse nascido com
ele – o Talento. Sem dúvida, nos velhos tempos, pessoas suspeitas
de ter tal mácula desapareciam em noites estranhas. Na opinião de
Temper, provavelmente haviam sido arrastadas por uma multidão
supersticiosa para ser queimadas ou enforcadas.
Acenou brevemente para Rengel; o velho retribuiu profundamen-
te. Uma mulher gritou acima.
– Rengel!
A viúva Teal olhou para baixo, apoiada no fino parapeito de uma
janela do segundo andar. Temper sorriu, saudando-a. Ele sempre se
impressionara com a semelhança dela com um abutre gordo coberto
por um xale preto. Ela desapareceu batendo as persianas para fe-
chá-las.
Rengel apertou o cachimbo, resmungando baixinho. Temper ba-
teu nas ripas de madeira manchadas da veneziana.
– Sólido como rocha, eu diria. E pretendo ficar dentro a noite to-
da, de modo que não se preocupe. Vou experimentar a bebida do
Enforcado.
As sobrancelhas do velho tremeram interessadas.
– Como assim? Testar? – ele sorriu, soltando mais fumaça. –
Bem, não tenha pressa para dar seu parecer.
Temper riu.
– Pelos deuses, não. Provavelmente vou levar até amanhã de
manhã.
Na porta, Rengel hesitou; puxou Temper para perto com um de-
do torto. Rosnou baixinho:
– O que você sabe sobre o Retomo?
Temper balançou a cabeça perplexo.
Impaciente, ou talvez aborrecido, o velho acenou para Temper:
– Fique em casa, amigo. Demônios e coisa pior vão governar na
noite de hoje.
Temper recuou, sem saber o que fazer com a advertência.
Rengel deu um tapa na porta, indicando alguma coisa – uma
marca na madeira –, e a seguir, fechou-a. O barulho da porta ecoou
pela rua estreita.
•••
O letreiro da Pousada do Enforcado era apenas a pintura de um ho-
mem enforcado, com os braços amarrados atrás das costas e a ca-
beça inclinada em um ângulo repugnante. A chuva caía livremente,
agora em rajadas. O manto de Temper pesava, frio, em seus om-
bros. Ele ouviu a arrebentação batendo nas estacas do atracadouro
algumas ruas abaixo, enquanto a baía brilhava ao longe, como uma
extensão da chuva.
As nuvens ainda retinham parte da luz do dia, mas a escuridão
obscurecia qualquer coisa à distância de um tiro de pedra. O fim de
tarde foi se transformando em uma noite de gelar os ossos e entor-
pecer o espírito. Ele mal podia esperar para se sentar em seu banco
regular, bem perto da enorme lareira da pousada. Também esperava
que Corinn aparecesse, para que ele pudesse perguntar-lhe sobre
Luas Sombrias e aquele negócio de profecia. Mas fazia quase uma
semana que a vira pela última vez, e, verdade seja dita, preocupa-
va-se, pensando se não a veria de novo. Ele havia chegado a algu-
mas conclusões próprias. O Retomo cheirava ao culto que adorava
Kellanved, o homem que, junto com seu parceiro, Dançarino, havia
fundado e construído o Império. Eles desapareceram havia anos. Al-
guns pensavam que ambos estavam mortos, outros que haviam de-
saparecido em algum tipo de retiro taumatúrgico.
Em frente ao Enforcado, atravessando os paralelepípedos mo-
lhados, estava o baixo muro de pedra daquele que supostamente
era o edifício mais antigo da cidade. Era uma casa de pedra aban-
donada havia tempo demais para ser reformada. Temper nunca ha-
via prestado muita atenção nela, mas a história do velho Rengel lhe
lembrara outra superstição local: dizia que a casa era anterior à ci-
dade, e que suas paredes em ruínas e salões abandonados sempre
haviam sido assombrados.
Rumores também diziam que havia sido lá que Kellanved e Dan-
çarino, além de outros, incluindo Dassem e a atual regente, Surly,
haviam vivido e tramado tudo que se seguiu. Olhando para ela ago-
ra, em uma noite escura e úmida, com os negros troncos de árvores
mortas delineados ao redor e os pisos nus com aparência de túmu-
lo, parecia sinistra. Os habitantes locais preferiam pensar que ela
não existia, mas sempre que a tinham que mencionar, chamavam-
na Casa Morta. Pessoalmente, Temper não podia acreditar que al-
guém em sã consciência poderia ter vivido ali – o que significava
que Kellanved e Dançarino poderiam muito bem já ter olhado para
fora de suas janelas abertas e vazias. Ele deu de ombros e virou-se.
Claro que era assombrada. Para ele, todo o Império era assombra-
do, de uma forma ou de outra.
Havia dois homens parados na chuva em frente ao Enforcado,
encostados nas paredes sem janelas. Estavam suficientemente per-
to de cada lado da entrada para que Temper ouvisse o tamborilar
das gotículas de água que escorriam de seus casacos de couro.
Sentiu os olhos dos homens sobre si enquanto se aproximava. Ago-
ra que estava perto, eles o ignoravam.
– Maldita noite para ficar de vigia – disse Temper, sorrindo para o
da direita.
O homem pestanejou, olhando-o de cima a baixo, e a seguir, vol-
tou a olhar a chuva.
– Estamos esperando um amigo.
Temper parou nos degraus da entrada. Todo o mundo sabia que
o Enforcado era um bar de veteranos, de modo que não havia muita
necessidade de os dois fingirem que não estavam vigiando a pedido
de amigos lá dentro. Ele quase comentou isso, mas não o fez; pare-
ciam novos. Talvez eles não soubessem o que fazer. Sentindo-se
velho, desceu os degraus.
A pousada era o outro edifício mais antigo da cidade de Malaz,
ou pelo menos assim dizia Coop. Verdade ou não, o edifício ficava
bem abaixo do nível da rua, e as paredes externas eram grandes
blocos de pedra calcária entalhada à mão – do mesmo tipo de mui-
tas outras ruínas por toda a ilha. O salão comunal da pousada ficava
tão abaixo do nível da rua, que a escada íngreme que conduzia a
ele parecia-se sinistramente com aquelas que levam ao porão de
um navio. A água da chuva correra pelos degraus gastos e empoça-
ra no limiar. O manto de Temper pingou na poça quando ele chacoa-
lhou a umidade da cabeça. Pegou a maçaneta de ferro da porta de
carvalho e estendeu a outra mão para as ranhuras cinzeladas que
marcavam o baixo lintel de forma tão fraca como teias de aranha.
Ele acreditava que cada um tinha suas próprias superstições, e sol-
dados e marinheiros mais que a maioria das pessoas. Aquela era
uma das suas. Ele a via como agradecimento ao povo esquecido
que havia levantado as pedras antes. Uma espécie de bênção – da-
da ou recebida, ele não tinha certeza –, como um gesto em direção
à própria segurança contínua. Afinal, ele vivia no andar de cima. Ou
melhor, vivia ao nível do solo. A estreita fenda que era sua janela fi-
cava quase um braço acima de um beco entre a pousada e a casa
caiada de tijolo e madeira de Seal, atrás.
O salão comunal do Enforcado era grande e amplo, e as vigas
do teto baixas o suficiente para se tocar, ou, se alguém não prestas-
se atenção, para machucar seriamente a cabeça. Aquelas vigas já
haviam levado a noite de mais de um bêbado a um fim abrupto e do-
loroso. Uma fileira dupla de grossos pilares de pedra descia para o
centro da câmara, como se marcasse o caminho da entrada até a
lareira crepitante, do tamanho de um barco a remo, logo em frente.
Longas mesas de carvalho estendiam-se de ambos os lados do ca-
minho central, a diferentes distâncias do fogo. As paredes de pedra
eram inóspitas, interrompidas apenas por mínimas e ocasionais
reentrâncias abobadadas, cada uma agora vagamente iluminada
por uma lâmpada. A maior parte da luz do salão, no entanto, provi-
nha de lamparinas a petróleo, de bronze, penduradas em ganchos
enferrujados profundamente encravados nos pilares e paredes. A
enorme lareira acesa na extremidade da sala, com a luz âmbar bru-
xuleante, expulsava o ar frio e se somava, sombria, à iluminação.
Havia fumaça suficiente para enevoar o aposento, mas pelo me-
nos era quente e seca. Temper afrouxou a capa. De ambos os lados
homens conversavam, riam e bebiam. Uma multidão muito maior
que a habitual; e mais jovem, mais agitada. Anji passou com um jar-
ro de arenito vermelho apoiado no quadril, enchendo as canecas.
Acenou para Temper, atormentada, já cansada. Ele sorriu, mas ela
passou. Pobre garota, acostumada à multidão regular de velhos
tranquilos e incompetentes que mamavam um copo de licor por dois
ou três sinos cada. Naquela noite ela faria mais que jus a seu paga-
mento.
Ao passar por entre as longas mesas, Temper sentiu o peso de
inúmeros olhos; parou, mas ninguém olhou para ele. Olhavam para
seus copos ou para a mesa arranhada, murmurando, como se espe-
rassem que ele seguisse em frente como qualquer convidado inde-
sejado. Era um comportamento incomum para homens duros e es-
farrapados, que pareciam ter saído de um navio prisão, ou selecio-
nados dentre as gangues que supriam a constante necessidade do
Império de reabastecer os remos da Marinha.
Temper dirigiu-se a seu banco de costume, sentindo a estranha
tensão que carregava o ar.
Passando pelas últimas mesas, ele vislumbrou um grande grupo
de sujeitos com cara de sarnentos, que vestiam túnicas surradas e
mantos, dando-lhe a impressão de nada mais que mendigos. Os ho-
mens sentavam-se ao lado de outros com ar de quem prestava ser-
viço militar, com as cicatrizes e os corpos robustos. Uma clientela in-
comum para Coop. Mas o velho Rengel o havia alertado a esperar
uma noite de estranhezas.
Alguém havia tomado seu banco de costume, ao longo da pare-
de dos fundos. Considerando a lotação da casa, Temper até que es-
perava isso, mas não conseguiu evitar a irritação. Coop não poderia
tê-lo reservado para ele? Para que ele pagava o aluguel do maldito
cervejeiro? Pela minúscula cela no andar de cima? Pela comida mi-
serável?
O homem que ocupara seu lugar usava um colete de couro so-
bre uma camisa de linho acolchoado que pendia em farrapos sobre
o banco, e calça justa de couro cravejada de ferro.
Punhos engordurados de couro cobriam pela metade os antebra-
ços, cobertos de cicatrizes – restos enrugados de carne esfregada,
semicírculos finos e pálidos feitos pelo fio das lâminas, e o rosa es-
curo de queimaduras cicatrizadas. De cabeça baixa, ele falava com
um sujeito envolto em sombras.
Por um momento Temper hesitou. Pensou em abordar o homem.
Não que ele esperasse recuperar seu lugar, mas só para desafiá-lo
o suficiente para vislumbrar melhor suas feições. Ele mantinha a ca-
beça baixa. De certo modo, parecia-se com Temper. De forma intan-
gível, o espaço entre os dois momentaneamente pareceu contrair-
se. Coop apareceu, entrando por uma estreita porta traseira. Exami-
nou o salão com as mãos atrás do avental de couro. Indicou uma
única mesa vazia, e Temper dirigiu-se a ela. Havia ficado metade do
dia de vigia, e por nada no mundo ficaria em pé por mais um instan-
te.
Coop sentou-se com ele.
– Desculpe, Temp.
E ergueu um decantador com conhaque de pêssego.
Temper assentiu.
– Muito cheio – disse.
Mas Coop simplesmente o serviu. Ele deu de ombros e levantou
o copo para fazer um brinde.
– Ao Império – disse Coop, erguendo o copo.
– Ao fundo do mar – completou Temper, e bebeu.
Sugando os dentes, Coop empurrou a cadeira para trás, contra a
parede, para ver melhor o salão.
– Sim, é um pessoal diferente. Mas é só uma noite, você sabe…
– A Lua Sombria.
Coop ergueu os olhos.
– Sim, isso mesmo. Apesar de que é a primeira vez que ouço fa-
lar nisso.
Coop pegou um pano de trás de seu avental e o usou para enxu-
gar a testa brilhante, e a seguir, os ondulados cabelos ruivos que es-
tavam presos para trás.
Temper deslizou o braço por cima da mesa e inclinou a cabeça
para o salão.
– Uns brutos…
Coop discordou:
– Um grupo tranquilo, considerando-se que são todos sangue jo-
vem. Não quebraram nada ainda, exceto os lacres de dois barris de
cerveja preta.
Ele riu, compreendendo.
Temper suspirou. A seus olhos, o principal defeito de Coop era o
otimismo inabalável. E isso o teria feito suspeitar de sua ingenuida-
de se não houvesse conhecido o outro lado. Talvez, pensou, Coop
fosse inclinado ao otimismo devido a tudo que já havia visto.
Ele pensou em ir ver Seal mais tarde. Os deuses bem sabiam
que o jovem médico do exército provavelmente aproveitaria a com-
panhia naquela noite.
Mas o rapaz provavelmente já estaria até o pescoço com a pró-
pria caixa de remédios. Então, ele pensou em algo melhor e fez um
gesto para que Coop se aproximasse.
– Não tenho visto Corinn, e você?
O cervejeiro abriu um largo sorriso e teria dado uma cotovelada
em Temper se a carranca do velho não prometesse lhe quebrar a
cara. Mas seu sorriso se desfez ao pensar na pergunta:
– Não, acho que não. Lamento, Temp.
Dando de ombros, Temper voltou a sentar-se.
– Pensei que pelo menos ela fosse se despedir.
– O velho Temp de sempre… sempre pensando o pior. Vou lhe
mandar uma caneca de cerveja preta.
Levantando-se, deu um tapinha no ombro de Temper.
Temper acenou, dispensando Coop, e virou a cadeira para re-
costar-se na parede. Nas mesas mais próximas, todas cheias, ape-
nas dois rostos familiares destacavam-se. Pertenciam aos dois ou-
tros homens que alugavam quartos no Enforcado: Faro Balkat, uma
vara velha frágil e seca que bebia água Paralt como se não fosse o
veneno que era, e que raramente sabia se era dia ou noite; e Trene-
ch. Um sujeito gigante, tão grande e aparentemente brilhante quanto
um Bhederin, que de vez em quando trabalhava como carregador e
guarda para Coop em troca de cerveja grátis.
Embora Coop não houvesse dado ouvidos a suas previsões
amargas – e Temper não queria admitir isso –, ele receava talvez ter
visto Corinn pela última vez. Apesar de sua língua mais afiada que
um punhal Talian. Ele a conhecera havia menos de um mês, e nes-
se tempo, surpreendera-se com o fato de ficar tão ansioso para ou-
vir suas histórias regadas a vinho sobre campanhas lendárias. Ten-
tou se lembrar da última conversa: e se ele houvesse dito algo pior
que suas habituais sugestões estúpidas? Algo grosseiro, como uma
piada sobre dois velhos cavalos de guerra juntos na cocheira para
se aquecer? Embora ambos fossem veteranos e vissem o mundo
com os mesmos olhos cínicos, ela o tratava como o mero subalterno
que ele fingia ser. Talvez fosse apenas um sonho, mas seria possí-
vel que ela houvesse visto nele mais que isso?
Anji empurrou a porta de serviço ao lado da mesa, deixando uma
caneca de estanho de Malazan escura ao passar. Ele acenou; ela
revirou os olhos imaginando a noite que tinha pela frente. Quando
passou por uma mesa próxima, um sujeito agarrou-lhe a bunda. Ela
virou-se e jogou uma grande caneca de cerveja no colo dele, e teve
que se controlar para não a quebrar na cabeça do sujeito. Todos a
ovacionaram e gritaram de deleite.
A explosão atraiu o olhar do sujeito que havia tomado o banco
de Temper. As queimaduras em seus antebraços estendiam-se para
seu rosto, e imediatamente Temper reconheceu a causa: munição
alquímica imperial. Provavelmente o sujeito era um incendiário.
A multidão acalmou-se sob o olhar do homem, o que deixou
Temper surpreso. Nos soldados que ele conhecia, um olhar daque-
les teria feito que lhe jogassem um banco, uma caneca ou o que
quer que fosse que estivesse à mão. Ele observou de soslaio e viu o
sujeito virar-se para seus companheiros. O homem fez um gesto
amplo, imitando um corte de espada, e uma tatuagem surgiu breve-
mente por baixo da manga curta de sua túnica. Uma ponte em arco
em um fundo em chamas: o emblema dos Bridgeburners.
Temper sentiu como se chamas queimassem-lhe o próprio cora-
ção. Do outro lado da câmara, estava sentado um homem que tal-
vez ele conhecesse de dias anteriores – de uma vida diferente. A
vontade de fugir dali fez seus braços se contorcerem. Forçou a ca-
beça para baixo, como se estudasse as profundezas da bebida. Era
provável que nunca se enfrentassem; Temper sabia disso. E mais, o
Bridgeburner provavelmente nem o notaria, e tudo isso seria nada
mais que outro encontro angustiante, mas fugaz, com seu passado.
Temper forçou-se a pegar outra bebida. O Malazan quente e escuro
aqueceu-lhe a garganta. Ele quase riu alto de tão nervoso. Pelos
deuses! Um ano apenas longe da ação e já se comportava como um
potro arisco!
Mal levantando a cabeça, observou o salão esfumaçado. Era
uma fria noite chuvosa; seu lugar favorito estava ocupado; seu pas-
sado lhe sorrira como a cabeça da morte na mesa vizinha, e mais
uma vez Corinn o deixara esperando à toa, depois de nos últimos
tempos ter passado quase todas as noites com ele, trocando histó-
rias e, talvez, no fim, ter lhe dedicado certo olhar… Enfim, a noite
pedia uma retirada digna. Ele tinha uma garrafa de vinho tinto de
sua terra natal escondida debaixo do catre justamente para uma noi-
te malfadada como aquela.
Levantando-se, empurrou a cadeira para trás. Sentiu todos os
olhos do salão rastejando sobre suas costas. Abriu a porta de servi-
ço, abaixou-se e entrou na antecâmara que Coop havia adaptado
como despensa improvisada, acrescentando algumas prateleiras. O
aposento era escuro, frio e apertado. Temper podia tocar ambas as
paredes sem esticar os braços. Na parede recortava-se uma porta
por onde mal passavam os ombros largos – eram mais largos que
os da maioria. A porta dava para a escada circular que levava para
a cozinha e os quartos alugados, bem como para os porões mais
baixos.
Temper começou a subir os degraus, sentindo em suas costas a
eterna corrente de ar frio que subia constantemente das profunde-
zas do edifício. Pensava no mistério de um Bridgeburner estar ali na
ilha. Já a caminho do quarto, sentiu um desejo de se sentar com o
homem e conversar sobre os velhos tempos. Mas as histórias sobre
as andanças de veteranos aposentados ou desligados eram normal-
mente tristes ou desinteressantes. Ele podia imaginar o destino de
um soldado daqueles fora dos esquadrões dos Bridgeburners: ne-
nhum outro posto seria desejável. Mesmo a Marinha seria um confi-
namento, e frustrante. A demissão direta do serviço era preferível. E
depois, viver sem rumo a perplexidade da vida civil.
Temper solidarizava-se com o sujeito: quando lhe haviam tirado
seu lugar nas fileiras, ele sentira algo bem parecido. Até se apresen-
tara com documentos falsos para a guarnição local, a fim de retornar
à única vida que lhe parecia sua.
No entanto, havia mais nesse mistério que apenas um homem.
Passando pela cozinha, Temper acenou para Sallil, o cozinheiro,
que retribuiu. A seguir, prosseguiu para os degraus íngremes da
porta dos fundos que levaram ao beco. Na escuridão da escada,
Temper subiu tateando para os quartos superiores, alguns alugados
por Anji e algumas amigas para prostituição ocasional, e um ocupa-
do pelo próprio Coop. No corredor estreito, ocorreu-lhe que já havia
visto antes um grupo de esfarrapados como os lá de baixo. Haviam
desembarcado de uma galera proveniente de outro assentamento
da ilha, Jakata, que atracara à noite no cais público.
Diante de sua porta ele parou, e o mistério estava resolvido. Em-
barcações Jakatans usufruíam de um dos raros alvarás que permiti-
am “interceptação” de transporte não imperial ao largo das costas
de Quon Tali. Em suma, a longa tradição da pirataria sobrevivera em
Jakata. Aquele homem, um ex-Bridgeburner, sentir-se-ia bastante à
vontade entre um grupo de foras da lei.
Eles deviam ter parado devido à tempestade que se aproximava;
não admirava que houvessem postado dois homens para ficar de
olho lá fora. Provavelmente havia cartéis mercantes ali representa-
dos cujas remessas haviam sido liberadas por esses mesmos ho-
mens.
Temper pegou as chaves que levava penduradas no pescoço por
uma tira de couro. Ele tinha razoável certeza de que havia desco-
berto quem era a multidão lá embaixo e por que estavam ali. Já po-
dia beber seu vinho e não pensar mais neles. O que restava ver era
se algo viria junto com o tal absurdo de Lua Sombria.
Capítulo II
Atribuições

O pescador largou a casca do pão e deixou a tigela de sopa fume-


gante na mesa. Foi até a janela, onde um pedaço de pano agitava-
se ao gelado vento sul. Ao lado do fogo, a esposa virou-se para ele
e disse:
– O que foi, Toben?
Ele afastou o pano e olhou para o sul por um instante. Quando
virou-se para ela novamente, seus olhos estavam sem brilho.
– Tenho que sair, amor.
– Agora? – ela indagou, pondo no colo o suéter que estava re-
mendando.
– Sim.
– Não há nenhum peixe para pegar com a luz dessa lua.
– É verdade… ela atrai outras coisas.
– Você não teve que sair das outras vezes.
– Não.
Ele foi até ela e gentilmente tirou-lhe o suéter das mãos.
– As coisas não são como eram antes. Está tudo em desequilí-
brio.
Ela levantou a mão; ele a tomou e ela apertou com força:
– Não saia – ela sussurrou, feroz. – Por favor, não. Tenho medo.
Ele se curvou para beijar-lhe os olhos; cegos, fixos.
– Desculpe, querida, mas tenho que ir.
– Você sabe que vai com meu amor, não é?
– Sim, minha querida.
O pescador vestiu o suéter. Com uma pá, jogou brasas da lareira
em um braseiro, e a seguir, encheu um pequeno cachimbo de barro
e o acendeu com uma brasa.
– Boa noite, amor – disse ele, sorrindo. – Você vai cantar para
mim?
Ela levantou uma das mãos.
– Você sabe que sim. Volte logo.
– Volto, sim. Assim que puder.
Ela virou a cabeça para ouvir a porta; ouviu o vento gemendo por
entre as rochas, o mar se erguendo contra a costa em uma pressão
lenta e insistente. Aporta foi fechada. Ela baixou a cabeça e cruzou
as mãos no colo.
•••
O vento soprava constante e frio. Nuvens corriam acima como arau-
tos da frente sólida que preenchia todo o horizonte sul. Sob o olhar
de prata da lua recém-nascida, nada se movia entre os barracos
empoleirados na árida costa sul da ilha de Malaz, exceto o pescador
seguindo cuidadosamente até a trilha de seixos castigada pelas on-
das. No vento que o açoitava, o braseiro inflamou-se como um farol.
Por um instante, ele parou para ouvir; julgou ter escutado no vento o
latido de um cão. Apertando os olhos em direção ao sul, fez uma ca-
reta: no escuro horizonte de nuvens e mar, luzes azuis esverdeadas
brilhavam como um mastro em chamas. Luzes que os marinheiros
diziam que atraíam homens para a morte.
Ele viu que a maré havia subido quase até seu bote encalhado.
Colocou o braseiro em um suporte de ferro no banco central, apoiou
o ombro na proa, e então, deu um pulo, como se houvesse sido pi-
cado: escamas de gelo cobriam a madeira como uma segunda pele.
Ele praguejou e colocou a mão na madeira. O gelo derreteu, borbu-
lhou condensando-se sobre a velha madeira polida e tornando-se
vapor, que o vento levou para longe. Cantando baixinho, o pescador
empurrou a proa. O bote deslizou sobre as pedras e ele empurrou
mais, entrando na água até as coxas, e a seguir, subiu na embarca-
ção.
Enquanto puxava os grossos remos de madeira, entoava uma
canção que já era antiga quando os primeiros homens e mulheres
pisaram na ilha. As colinas basilares desgastadas pelo tempo enco-
lhiam-se ao longe, como se o vento em fúria afastasse cada vez
mais a ilha. Com um remo, ele virou o barco no meio das ondas, e a
seguir, virou-se de frente para a popa, com a proa rumo ao sul. En-
tre o bote e Malaz, como uma distante linha escura no horizonte nor-
te, o mar subia em lentas ondas pesadas, suaves como as antigas
colinas da ilha. Granizo açoitava as ondas de crista branca ao redor,
mas nada tocou os cabelos grisalhos do pescador, agitados ao ven-
to. Uma vaga profunda, alta como um navio, abateu-se sobre ele,
em uma mistura de gelo e espuma. Mas rolou debaixo da proa sua-
vemente, como uma pequena ladeira no prado, enquanto cantava
ao vento.
Do sul, a tempestade avançava, engrossando e formando uma
sólida linha de nuvens agitadas. Neve e granizo derretiam-se na
chuva, que se dissipava muito antes de atingir o barco. Um relâmpa-
go estalou entre as nuvens, enquanto embaixo, esmeralda e azul
profundos brilhavam como pedras preciosas levadas pelas ondas. O
pescador não viu nada disso; virado para o norte, apertando o ca-
chimbo com os dentes, ele emitia o canto monótono enquanto o
vento levava longe as palavras.
•••
Kiska logo perdeu o rastro do sujeito que havia aparecido tão subita-
mente diante dela no cais. Mais uma vez, ela sentia o cheiro de
Warren naquilo, e esperava que não lhe ocorresse a possibilidade
de segui-la. Se tivesse ocorrido, ele estaria bem atrás dela naquele
momento, esperando, observando na Escuridão de Rashan Warren,
ou talvez nos Domínios de Hood, as Sendas dos Mortos. Apesar de
que, em uma noite como aquela, acessar qualquer um dos dois pa-
recia imprudente até mesmo para ela.
O rastro de seu alvo e guardas levaram-na ao interior pelo distri-
to de armazéns, seguindo pelos bairros mais pobres de lojas de tra-
pos, provedores de ossos, usurários e curtumes. Se sua presa conti-
nuasse naquela direção, em breve enfrentaria um bairro ainda mais
fétido – o Bairro do Rato, o lugar mais sujo, mais baixo e mais infes-
tado de doenças da cidade.
Na primeira travessa enlameada cortada por passarelas de tábu-
as, o rastro de seu alvo virou abruptamente para o norte. Kiska não
se surpreendeu pela súbita mudança de direção; imaginou o nojo
deles por causa do esgoto fedorento e dos restos podres das cozi-
nhas lavados na água estagnada que subia de um pântano nas pro-
ximidades. Ela poderia tê-los perseguido com bastante facilidade
pelo labirinto de becos, especialmente naquele momento, que mui-
tas das ruas eram nada mais que caminhos viscosos devido aos
destroços enegrecidos deixados pelos tumultos do último verão.
Mas, justamente por ter crescido naquele bairro, por ter passado a
vida tentando manter-se longe dele, que ela sempre ficava relutante
de entrar em suas ruas de novo.
O rastro levava a uma subida suave que conduzia ao rico centro
comercial. Atravessava as pistas do mercado e fazia um ângulo
mais ou menos direto para o norte até os arcos de pedra atrás das
fachadas das lojas, fechadas agora com a chegada da noite. Atra-
vessando o distrito do comércio de tecidos, o rastro seguia em fren-
te, subindo colinas a noroeste e chegando a Lightings, o antigo bair-
ro residencial. A maioria das casas senhoriais estava vazia por trás
de seus altos portões. Agora serviam apenas como retiros provinci-
ais para as famílias aristocráticas que haviam transferido seus inte-
resses no norte para a corte imperial, em Unta, do outro lado do Es-
treito dos Ventos.
A noite havia esfriado rapidamente. Um vento sul gelado, prove-
niente do Mar das Tormentas, soprava dos parcos promontórios da
ilha. A cobertura de nuvens permanecia intacta, seguindo em dire-
ção ao norte como fumaça. A pesada capa inflava, atrapalhando-a
enquanto seguia as cercas de ferro cobertas de hera que delinea-
vam as avenidas do distrito. Mas um lado da capa mantinha-se cola-
do ao flanco: o lado direito, mantido reto pela besta disfarçada den-
tro dela.
Kiska fez uma pausa à sombra de um pilar antigo, o pedestal da
estátua de mármore de um Nacht, criatura com asas e presas que
diziam que já havia habitado a ilha. As ruas estavam desertas. As
últimas almas que havia visto, com exceção dos vislumbres de seu
alvo e escolta, eram alguns retardatários. Encolhidos debaixo de xa-
les e cachecóis, corriam para casa enquanto caía a noite.
Aquela noite. A noite de todas as noites possíveis. Lua Sombria;
Festa dos Mortos; a Noite das Sombras. Os títulos pareciam não ter
fim. Kiska havia crescido ouvindo todas as antigas lendas, contos
tão imaginativos e fabulosos, que ela revirava os olhos quando a
mãe os contava. Isso até poucos dias antes, quando a ouvira que
por algum meio misterioso e indeterminado a Lua Sombria estava
prevista para aquela noite. Desde então, havia sorrateiramente es-
cutado conversas sobre histórias horríveis de cães monstruosos,
sombras vingativas e aquele lugar mal-assombrado, a Casa Morta.
Qualquer menção àquele lugar despertava alertas e sussurros sobre
lendas ainda mais obscuras; contos de demônios malévolos que um
dia o habitaram, como se tomassem emprestado algo de sua antiga
e taciturna essência: Kellanved, Dançarino, Surly, e o coração escu-
ro do Império que viria.
Pelas histórias que havia ouvido, parecia que todos tinham um
antepassado ou parente que havia desaparecido durante uma Lua
Sombria. Kiska imaginou cinicamente que era uma noite tão boa
quanto qualquer outra para sumir com uma esposa chata ou um
péssimo marido.
Naquele momento, a própria mãe estaria, sem dúvida, abrigada
em seu quarto, de olhos fechados, murmurando orações para Chem
– o velho culto marinho local – para sua segurança e de sua filha.
Se ela houvesse falado com Kiska nos últimos dias, provavelmente
teria tentado mantê-la dentro de casa naquela noite, assim como
Agayla havia feito durante os tumultos causados pelas novas leis da
regente. Mas ela havia crescido ignorando praticamente todas as
proibições da mãe, então, por que lhe dar ouvidos agora? Ainda
mais sendo a primeira Lua Sombria de sua vida.
Aqueles que ela seguia andavam corajosamente pelas ruas de-
sertas. Para eles, aquela noite não representava nenhum perigo. Se
conheciam as lendas – o que era duvidoso –, deviam vê-las como
nada mais que um pitoresco costume local durante o qual, suposta-
mente, almas, monstros e demônios tomavam as ruas. Kiska tinha
vergonha da superstição daquele fim de mundo onde vivia. Mas, e
se ela abandonasse a vigilância? Se fosse correndo se esconder em
um local sagrado, ou templo? Se ela abandonasse a busca agora, já
podia imaginar o desprezo do comandante dos Garras. Afinal de
contas, o que mais se poderia esperar de talentos locais?
À frente, a distância, apagados pela escuridão nublada, sua pre-
sa e os guardas continuavam subindo a rua de paralelepípedos.
Uma neblina baixa e densa formou-se, girando ao vento, quando
seu alvo virou uma esquina e desapareceu. Kiska manteve-se ocul-
ta. Pelo que ela sabia, eles poderiam estar à espera logo à frente.
Ela poderia passar direto por eles e só saber quando o frio ferro
deslizasse entre suas costelas. Ou, mais provavelmente, uma corda
de seda caísse ao redor de seu pescoço como uma forca.
Kiska apertou o manto contra o corpo, tentando livrar-se tanto do
medo quanto da chuva na trama oleada do tecido. Teria simples-
mente que proceder supondo que ainda não havia sido vista. Se não
agisse assim, o nervosismo a dominaria.
A esquina revelou uma trilha de carruagem; séculos de rodas
passando marcavam dois sulcos iguais nas pedras. O grupo havia
desaparecido. Mais abaixo, entre os muros altos, havia um portão
maciço de folhas de madeira entalhada. Kiska sabia o que havia
atrás dele. A mansão da família E’Karial. Pequena, se comparada a
algumas das propriedades mais grandiosas da cidade, mas confor-
tável. Ou assim lhe parecera de fora em suas andanças noturnas.
Também estava abandonada havia muito tempo. Se fosse para uma
reunião, Kiska imaginou que seus participantes não poderiam ter es-
colhido um local mais isolado. Claro, também podia ser que algum
terrivelmente mal informado descendente da família E’Karial hou-
vesse chegado para inspecionar a herança. Ela respirou pausada-
mente várias vezes e atravessou a trilha de carroças até o lado
oposto, onde a hera era tão espessa, que Kiska mal podia ver atra-
vés dela. A cada passo suas costas arrepiavam-se sob punhaladas
imaginárias. Mas os muros cobertos de hera a deixaram entrar sem
incidentes. Ela correu para outro beco, de lama pura, que sabia que
levava a um portão aos fundos da propriedade. Contornando as po-
ças de água da chuva e lutando contra a sebe espinhosa que se en-
roscava em sua capa, ela quase não percebeu a entrada escondida
nas sombras.
Ajoelhou-se diante da porta coberta de musgo, ajeitou o manto e
escutou. Pingos de chuva tamborilavam, caindo das pontas das fo-
lhas. O vento agitava os galhos, e como não mais que um murmúrio
distante, a eterna arrebentação castigava a costa da ilha. A porta
cheirava a podridão, e o recuo arqueado retinha o húmus necessá-
rio e úmido. Ela não pretendia abrir a porta, claro. Um olhar foi sufi-
ciente para dizer que não seria possível: uma parte da parede cede-
ra sobre o batente. Se ela empurrasse as tábuas podres, provavel-
mente cairia direto no jardim dos fundos. Achou mais discreto ouvir
que assomar a cabeça por cima do muro. Não ouviu ninguém por
tempo suficiente, ou seja, a contagem de cinquenta batimentos car-
díacos.
Muito provavelmente eles estavam dentro da propriedade. Era
hora de tentar o muro. Ela deu um passo para fora do recuo e anali-
sou os blocos e as vinhas que lhe sufocavam a superfície áspera.
Sem problemas. Para se camuflar, ela escalou até onde três ruscos
subiam como um só dentro da propriedade. Com a cabeça e os om-
bros acima do topo, ela estudou o jardim planejado. Parecia ainda
pior que da última vez que o vira. Os canteiros agora tinham apenas
talos mortos e ervas daninhas. Um pátio central, de lajotas, brilhava
estupidamente sob uma camada de folhas mortas. E ali, lado a lado,
em um banco de mármore tão branco que brilhava na noite, esta-
vam dois homens sentados. Kiska ficou paralisada.
Ela não havia ouvido nada porque nenhum dos dois falava. Am-
bos olhavam para o céu do sul. Ao que parecia, eles estavam cal-
mamente observando as nuvens. O da direita era o homem que ela
havia seguido; sem capuz, cabeça raspada, escura como argila rica,
e uma longa trança sobre um dos ombros. O outro era um homem
idoso, fantasmagoricamente pálido, de cabelos brancos, ombros
magros curvados como asas dobradas e a cabeça inclinada em ân-
gulo. Ficaram sentados assim, quase como estátuas, e o tempo pa-
recia eterno. Não podiam se mexer, falar ou fazer alguma coisa? Ela
ficou imaginando quanto tempo conseguiria ficar pendurada no mu-
ro, com os dedos dos pés encaixados em uma fenda.
Logo, depois do que pareceu o tempo de um sino completo –
mas que haviam sido apenas cento e cinquenta batimentos cardía-
cos –, uma luz prateada atravessou a noite quando a lua brilhou
através de uma abertura nas nuvens. O velho jogou a cabeça para
trás e soltou uma risada áspera. Parecia vingado. O homem do bar-
co mensageiro respondeu em um tom relutante, sem comprometi-
mento; ele ainda estudava o céu noturno. Kiska esforçou-se para
captar as palavras, mas os galhos agitavam-se acima de sua cabe-
ça.
Depois de mais algum diálogo, o velho pegou o braço do outro e
rosnou alguma coisa. O segundo levantou-se e afastou a mão do
velho. Falou algo baixinho, mas ficou sem resposta, e então, afas-
tou-se. O velho ficou sentado, com a cabeça afundada, como se fos-
se um vidente em busca de padrões nas lajotas rachadas e nas fo-
lhas girando em torno delas. Kiska desceu do muro. O que ela havia
acabado de testemunhar? Nada mais que uma simples reunião en-
tre parentes distantes, ou dois velhos amigos? Clandestino, sim,
mas só aquilo não era crime. O rendezvous teve um aspecto de ritu-
al, uma observância de algum tipo. O velho podia ser um parente
afastado. Talvez ela houvesse tropeçado em negócios que a família
E’Karial quisesse manter ocultos, como um esqueleto no jardim, por
assim dizer. Ela tinha que fazer algumas perguntas. Afinal, coletar
vantagens fazia parte do trabalho. Em algum lugar muito distante,
na cidade, um cão uivou para a lua agora brilhante. A ferocidade do
uivo fez Kiska gelar ao lembrar os cães demoníacos que faziam par-
te tão proeminente das lendas da Lua Sombria. Se aquela maldita
baía havia ficado acordada a noite inteira – coisa que provavelmente
havia acontecido –, ela já podia imaginar as histórias do dia seguinte
no mercado, contos sobre fugas e terríveis visitas de enormes feras
sobrenaturais. As pessoas acreditam no que querem acreditar.
Ela estava prestes a voltar por entre as folhas molhadas até a
boca do beco quando um ruído atrás do muro lhe chamou a aten-
ção: piso rangendo. Ela hesitou, questionou a si mesma se não teria
sido imaginação, e então, subiu de novo para dar mais uma olhada.
O banco estava vazio, mas perto dele ajoelhava-se o intruso do
cais, o homem que a surpreendera de manhã. Ele se endireitou,
afastando-se de um vulto a seus pés, e desapareceu no nada, como
se as sombras o houvessem engolido. Kiska ficou olhando, pasma-
da. Magia Warren. Ela demorou alguns momentos para reconhecer
aquilo que ele havia deixado para trás, contorcido, no pátio: o velho,
deitado de bruços.
Kiska pulou e virou-se de costas para as vinhas na parede. Esta-
va coberta de gotículas de suor. E se ele a houvesse visto? Seria a
próxima? Ela puxou a longa faca. Empunhada para defesa, era a ar-
ma mais pesada que carregava além da besta, que agora tirava do
quadril para observar o beco. Um adepto, isso era evidente. Mas de
qual Warren? O desaparecimento parecera a Escuridão de Rashan,
só um pouco diferente. E mais assustador. Um pensamento terrível
lhe ocorreu: e se esse homem fosse um Garra? Ele parecia bastan-
te hábil. O terror a dominou: a chegada de um alto oficial desconhe-
cido, guarda-costas Garra, um visitante secreto… teria ela tropeça-
do com a faxina da regente imperial? Se assim fosse, Kiska estava
acabada. Qual era mesmo o velho ditado? Garras só viajam a negó-
cios! Ela quase riu em voz alta, mas confortou-se com a sensação
da luva envolvendo fortemente o punho da faca.
O tempo passou, e embora com uma estranha relutância, Kiska
teve que admitir que ela não estava prestes a ser assassinada. Ela
poderia muito bem descobrir o máximo que pudesse sobre o que
havia acontecido ali. Kiska embainhou a faca e pulou mais uma vez
sobre o muro. O corpo do velho homem ainda estava atrás do ban-
co. Não havia ninguém por perto. O luar brincava, esfarrapado, so-
bre os jardins em ruínas. Um segundo uivo explodiu na noite, fazen-
do-a recuar. Meus deuses! Era como se o uivo do animal houvesse
explodido sobre seu ombro!
Quem teria um animal como aquele? Kiska decidiu que antes do
amanhecer esfaquearia o cão, se alguém não fizesse isso primeiro.
Cautelosa, entrou no pátio fechado.
O velho havia sido esfaqueado duas vezes nas costas. Ela se
perguntou se aquele trabalho havia sido ordem de seu alvo. Teria
ele feito uma proposta ao velho? Que não poderia ser recusada?
Talvez ele não soubesse do assassinato. Os Garras, ou outra pes-
soa, poderiam pensar que aquilo nunca deveria ter ocorrido.
Ela cutucou o corpo e começou a vasculhar entre as roupas. En-
fiou a mão dentro da túnica, ainda quente de sangue. O homem
agarrou o pulso dela e abriu os olhos. Automaticamente, ela puxou a
faca e a enfiou no peito do homem, pondo todo seu peso no golpe.
Era um golpe mortal, ela tinha certeza disso, mas, ainda assim, ele
a encarava e apertava mais. Seria um rito de morte? Horrivelmente,
ele sorriu e abriu a boca. Sangue jorrou para fora dela, escurecen-
do-lhe o queixo. Uma pressão constante, antinatural, puxou-a para
mais perto. Com os lábios ensanguentados, curvados para baixo em
reprovação, ele disse em um sussurro úmido:
– Mas eu estou morto, e a Lua Sombria está subindo.
Diante de um horror do qual havia sido alertada, mas em que
nunca acreditara, o treinamento de Kiska – improvisado, informal –
desmoronou e ela gritou.
•••
Temper estava brigando com o cadeado corroído de sua porta quan-
do alguém no corredor murmurou seu nome. Ele abandonou o cade-
ado teimoso. Corinn acenou por trás de uma porta entreaberta. Ele
endireitou-se; teria gritado um olá, mas algo na expressão tensa de-
la o silenciou. Ela acenou de novo, impaciente, e ele seguiu pelo
corredor. Na porta, deu um sorriso forçado, tentando olhar para den-
tro. Era o quarto que Anji e outras garotas usavam para se prostituir.
Ele arqueou uma sobrancelha:
– Ora, achei que você nunca…
– Entre, maldição – sussurrou, abrindo a porta e puxando-o para
dentro.
Apesar da óbvia irritação da mulher, Temper ficou ali sorrindo co-
mo um idiota. Estavam bem próximos no quarto apertado. A língua
dela, afiada como uma espada Darujhistan, cortaria qualquer um
que se atrevesse a chegar tão perto dela. Mas Temper, ali, quase to-
cando-a, de repente teve ciência das profundezas de seus olhos
castanhos e dos detalhes de filigrana na tatuagem preta que corria
da ponta do nariz até a testa dela.
Algumas vezes ele havia imaginado captar interesse naqueles
olhos alongados, escondidos, apertando diante da preocupação
com o que poderia acontecer naquela noite. Ele sonhava com um
encontro como aquele, em geral quando a bebida suavizava seu jul-
gamento ou a solidão deixava seu peito vazio e Temper desejava al-
guém para conversar. Mas, naquele momento, ele se sentia estra-
nho e constrangido enquanto ela o fitava e balançava a cabeça.
– Você tinha que aparecer justo hoje?
Por um instante, Temper sentiu-se como um marido rebelde vol-
tando para casa depois de uma farra de três dias. Ele riu, apontando
em direção a seu quarto.
– Corinn, eu moro aqui. Aonde mais deveria ir?
– À caserna! Você devia ter ficado lá. Por que você não… Ah,
não importa – ela pediu silêncio com um aceno. – Escute, temos só
um minuto. O que vou dizer e fazer será para salvar sua vida, enten-
deu?
Tão perto dela, ele sentiu seu cheiro obscuro. Seria o perfume
de uma flor desconhecida? De especiarias estrangeiras? Incenso?
Alguém dissera-lhe que ela era meio Napan; metade escura. Tem-
per pestanejou, engolindo em seco. Ali estava ele, um velho e vete-
rano cavalo de batalha cujas narinas ainda se abriam quando uma
égua passava.
– Para salvar minha vida? Corinn, estou indo para a cama com
uma garrafa de Kanese vermelho. A menos que você tenha outra
coisa em mente.
Os olhos dela brilharam de ira.
– Maldito idiota, estou tentando salvar sua pele sem valor!
Ela ergueu o punho e o abriu com a palma para cima. Um pe-
queno emblema jazia na pálida carne marcada; tinta metalizada e
esmalte no sigilo de um arco de pedra em um campo em chamas. O
emblema dos Bridgeburners, o regimento do homem lá embaixo,
que já havia sido o do Terceiro Exército. Um exército que Dassem,
com Temper ao seu lado, havia levado a Falar e às Setes Cidades.
Tudo que ele conseguia pensar era: ah, é o cheiro de fumaça
que a cerca. Um cheiro obscuro que assumia um toque letal em face
daquele pequeno emblema.
– Ah, não – gemeu ele. – Por Hood, não. Por quê? O que você
quer?
Ouviram passos provenientes do salão. Corinn aproximou-se e
disse:
– Quero que você faça o que eu disser, porque sei quem você é.
Eu o reconheci. Eu estava em Y’Ghatan. Vi a Espada quebrada. Eu
sei.
Ela o pegou pelo braço. Ele sentiu-lhe a mão quente e firme atra-
vés da camisa.
– Fique quieto hoje e esse continuará sendo nosso segredo. Fi-
que quieto.
A porta abriu-se atrás de Temper. Ele se virou. O homem com as
cicatrizes de queimaduras estava no hall, além dos dois homens
que estavam sentados com ele, bestas em punho. O homem olhou
para Corinn, que respondeu ao olhar com um leve aceno.
– Ele está desarmado – disse a eles.
Temper só conseguia pensar nas palavras dela: eu sei quem vo-
cê é. Isso significava que ela havia sido enviada? Para observá-lo?
Ele estava atordoado, como se tudo que havia escondido desde o
último ano desabasse sobre ele como um muro em ruínas.
O olhar do homem era enganosamente brando.
– Meu nome é Ash – disse ele com voz suave. – Sargento Ash.
E você é meu prisioneiro.
•••
Eles o fizeram sentar em um reservado ao lado de Coop, em frente
a Trenech e ao velho Faro Balkat. O velho parecia adormecido, en-
costado na parede com os olhos fitando cegamente. Uma gota de
saliva pendia de seus lábios manchados de roxo. Estranhamente,
Trenech o sustentava com gentileza, com sua mão enorme. Temper
olhou para Coop, que parecia mais confuso que preocupado, e a se-
guir, virou-se para observar Ash. Ele havia alegado ser um sargento,
mas provavelmente era um oficial. No centro da sala, ele falava com
Corinn e alguns outros.
– O que eles vão fazer? – sussurrou Coop.
– Não sei.
O primeiro pensamento de Temper foi que haviam ido atrás dele,
que finalmente haviam chegado a seu nome na longa lista de inimi-
gos de Surly. Mas já não sabia.
– O que aconteceu? – perguntou Coop.
O cervejeiro puxou um pano e enxugou o rosto e a testa que bri-
lhavam de suor.
– A culpa é minha – gaguejou. – Não posso acreditar. Eles me fi-
zeram dispensar todos os funcionários. Como eu fui cair nessa?
– Cair no que, homem? Do que você está falando?
Coop pestanejou.
– Ladrões, claro. Um maldito bando de ladrões!
Temper engoliu uma risada. Virou-se, tentando chamar a aten-
ção de Corinn.
– Não, Coop. Acho que é mais que isso.
Corinn encontrou seu olhar, mas o rosto permaneceu impassível,
como se não o conhecesse. Ele balançou imperceptivelmente a ca-
beça e desviou o olhar, diretamente para os olhos de Trenech. O su-
jeito corpulento olhou para ele, ou melhor, através dele. O suor es-
corria-lhe da testa. Com a mão direita, apertou a mesa até ficar com
os nós dos dedos brancos.
Temper havia falado com o sujeito poucas vezes. Achava que ti-
nha raciocínio lento, como uma criança no corpo de um gigante. Es-
tava aterrorizado com tudo aquilo, ou irracionalmente enfurecido?
Temper imaginou que devia dizer algo reconfortante, mas não sabia
o quê.
Virando a cabeça ligeiramente, observou os homens. A maioria,
cerca de trinta, estava reunida em frente à porta, sussurrando entre
si. Mais perto, à luz bruxuleante da lareira, Ash, Corinn, e uma dúzia
de outros se sentavam a duas mesas. Temper imaginou que a mé-
dia de idade deles seria trinta e poucos anos. Eles ajustavam as ti-
ras das armaduras e o cinturão de armas. Alguns fumavam cachim-
bos de barro. Ninguém falava. Temper identificou três homens de bi-
gode das tribos Wickan, que usavam cotas de couro fervido tacho-
nadas e mangas de escamas; dois escuros Dal Honeses, um com
cortes de escarificação facial nas bochechas. O olho direito do outro
era uma pálida esfera leitosa; um Napan, baixo e grosso como um
cepo, de pele azulada desbotada até um verde siltoso; dois homens
pardos das Sete Cidades com camisas de escamas debaixo das
longas túnicas ajustadas com um cinto; e o restante provavelmente
Quon Talians, com cotas de malha do Exército Malazan, um com
uma fileira de losangos azulados de aço rebitados sobre o couro.
Cada um deles tinha uma besta, fosse nas costas, fosse em cima da
mesa ou no banco ao lado. Espadas curtas pendiam embainhadas
em cintos e arneses. Veteranos, e provavelmente todos Bridgebur-
ners.
Os outros eram os esfarrapados e bandidos que Temper havia
identificado anteriormente. Muitos portavam curtas espadas curvas
embainhadas com a empunhadura para frente, ao estilo Jakatan,
enquanto em outros Temper identificou simples facas longas Talians,
punhais curvos Dal Honeses, e em dois, longas espadas de duelo,
de dois gumes, de Untan. Vestiam uma miscelânea de armaduras,
sendo a mais pesada nada mais que um colete de couro fervido ou
um camisão acolchoado.
Alguns puxavam o couro, obviamente desconfortável. Temper
desviou o olhar com repugnância: valentões da cidade, nenhum ve-
terano entre eles. O que Ash esperava realizar com aquilo? E Co-
rinn? Cabisbaixa, ela falava com o sargento. Temper olhou para ela
firmemente, na esperança de fazê-la levantar a cabeça com o calor
do olhar. Ele sabia que ela era maga, mas seria mesmo uma maga
Bridgeburner? Ele achava que todos os magos militares haviam
morrido nas campanhas de Sete Cidades e Genabackis.
Ele suspirou, esfregando os olhos. Por todos os deuses de cima
e de baixo! Sete Cidades… Y’Ghatan… Era quase possível sentir o
suave aroma de canela do deserto, o calor cruel. Aquele dia, aquela
traição… tudo voltou como uma facada no peito, e ele estremeceu.
•••
Ele se lembrava da poeira asfixiante subindo como nuvens, arra-
nhando-lhe garganta e cegando-o; as hordas de defensores das Se-
te Cidade com suas túnicas. Ele viu Dassem, inacreditavelmente es-
faqueado, sustentado por Hilt. Relembrou os vislumbres de Dassem
cambaleando, segurando o peito. Ele dissera algo a Temper, uma pi-
ada ou despedida perdida entre os gritos e choques da batalha.
Temper abriu a boca e aliviou a tensão com uma expiração longa
e lenta. Agora, tanto ele quanto Corinn sabiam um do outro. O que
ela queria dele? Talvez nada. Talvez houvesse sido apenas um avi-
so para ele manter a cabeça baixa e não interferir, ou ela revelaria
quem Temper era. Ou, como ela dissera, talvez só estivesse tentan-
do salvar sua pele. Inclinando-se para frente, tentou captar os olhos
dela do outro lado do aposento.
O uivo de um cão atravessou as paredes de pedra como o cho-
que da Munição Moranth. Ergueu-se e caiu, profundo, retumbante, o
chamado mais selvagem e lascivo que Temper já havia ouvido. Co-
rinn encolheu-se como se houvesse sido mordida e lançou um olhar
de pânico para Temper. Em seguida, virou-se. Os jovens valentões
espreitaram de olhos arregalados. Os veteranos apertaram suas
bestas.
De canto de olho, Temper notou um sorriso malicioso, perturba-
doramente cretino, crescer nos grossos lábios de Trenech. Temper
engoliu em seco, tentando molhar a boca, subitamente seca. Ali es-
tava ele, prisioneiro de uma gangue de cruéis criminosos ou deser-
tores, traído por uma mulher, ao lado de um tolo, um velho babão in-
consciente e um imbecil do tamanho de um Bhederin, na noite mais
temida dessa geração. Poderia piorar?
Faro Balkat abriu as pálpebras, revelando órbitas brancas. Cal-
mamente, como se pedisse outra bebida, ele anunciou no silêncio:
– A Lua Sombria está subindo.
•••
Kiska se perguntava se estava tendo alucinações, porque de repen-
te se viu deitada no fundo estreito de um profundo desfiladeiro. Tiras
de nuvens passavam por uma faixa de céu lá no alto.
O vento lançava poeira quente em seu rosto enquanto murmura-
va nas curvas do cânion. Ela esfregou os olhos. O que havia aconte-
cido?
Um riso brusco a fez levantar-se prontamente. Um homem desli-
zou pela parede do cânion usando as mãos e os pés, enterrando os
cotovelos para frear a descida. Já no fundo, ele caiu, tropeçando, e
a túnica esvoaçava ao redor das canelas pálidas. Era o velho morto.
Ele levantou-se perto dela. Kiska correu. Ele gritou uma palavra e
ela parou, com as pernas dormentes. Ele deu a volta para ficar dian-
te dela, sorrindo como uma das estátuas Nacht dos jardins e becos
de Malaz. Kiska ainda podia mover os braços, de modo que deu um
soco na boca do velho, que caiu para trás, surpreso. Com isso ela
se libertou, e saiu correndo pela curva do cânion.
Duas curvas sinuosas depois e o canal acabou em um beco sem
saída, com camadas de pedra como um pano dobrado. Rosnando,
Kiska atirou-se nele. Ela escavou para obter apoio para mão e pés.
Depois de subir apenas o comprimento de um braço, as camadas
podres ruíram debaixo dela como velho couro frágil, e ela deslizou,
raspando o flanco e o queixo. Ficou deitada, ofegante, na poeira.
Nada é tão fácil como parece, não é? Eu devia me lembrar disso.
Kiska gritou e levantou-se, puxando a faca.
O velho deu um sorriso desdenhoso e tirou a terra de suas ves-
tes.
– Eu estou morto, lembra?
Kiska não permitiu que a ponta de sua lâmina vacilasse.
– Onde estamos? O que está acontecendo?
O sorriso largo e maníaco do homem retornou. Ele abriu os bra-
ços e olhou em volta.
– Magnífico este lugar, não é?
– O que você fez comigo?
– É um lugar – prosseguiu o velho –, cuja existência foi teorizada
durante os últimos milênios. Um lugar cujas características eu dedu-
zi de fontes antigas. Um lugar, um reino, que não deve pertencer a
ninguém. Pertence a mim. Meu reino, que eu deveria governar, co-
mo suserano. O Caminho das Sombras.
Esse homem é completamente louco.
– Mande-me de volta. Não quero ficar aqui. Quero voltar para ca-
sa, em Malaz.
Ele ergueu um dedo torto:
– Ah! Mas você está em Malaz. Você ainda está em sua ilhota
miserável. E, ao mesmo tempo, está aqui. Dois domínios que se so-
brepõem. Dois lugares ao mesmo tempo. Isso é chamado de Con-
vergência.
– Não me interessa como se chama. Mande-me de volta!
O homem mexeu os lábios, mas suas palavras foram abafadas
pelo bramido de uma fera que ecoou pelo labirinto de cânions ao re-
dor. Fragmentos de pedra caíram em volta deles. Os pelos dos bra-
ços e do pescoço de Kiska arrepiaram-se. Isso não foi um cachor-
ro…
O homem lançou um olhar aos lados do cânion, preocupado.
– Temos menos tempo do que eu esperava.
A lâmina tremeu na mão de Kiska. Ela queria correr, gritar, implo-
rar por ajuda.
– Tempo para quê? O que é que…
O homem a silenciou com um movimento de mão.
– Escute. Meu nome é Oleg. Muitos anos atrás, um homem me
procurou. Ele alegou estar interessado no mistério de minha pesqui-
sa. Nós trabalhamos juntos, compartilhamos conhecimento. A des-
treza e a compreensão da manipulação Warren supreenderam-me.
A mim, que não admito iguais nesse domínio. Ele…
O velho apertou as mãos sobre os olhos e soltou um grito mudo
de raiva.
– Ele me traiu! Ele roubou meu trabalho e me deixou para mor-
rer! – levou os punhos à boca e continuou: – O trabalho de uma vida
– gemeu ele, olhando para o nada. – Acabado. Obliterado. Arranca-
do de mim como um membro. Minha vista. Meu poder de expressão.
– Faça-me voltar, Oleg – sussurrou Kiska. – Por favor.
Voltando o rosto para o céu, ele gritou:
– Vocês… não… vão… triunfar!
Kiska o encarava, atordoada com a extravagância da loucura do
velho.
Ignorando sua adaga, ele a pegou pelos ombros, olhou-a com
olhos que pareciam dois poços com coisas que se retorciam dentro.
– Aquele homem era Kellanved, imperador de Malaz. Ele retorna
hoje à noite para esta ilha. Os Garras e sua Senhora, sem dúvida,
pensam que ele retorna para recuperar o trono, mas todos que acre-
ditam nisso são tolos. Ele volta para tentar entrar novamente na Ca-
sa Morta. Eles estão atrás de outra pessoa, um prêmio muito maior.
Ele e Dançarino.
As mãos de Oleg queimavam nos ombros de Kiska. Ela se deba-
teu, mas ele a segurava como uma fera. Por alguma razão, ela não
teve coragem de usar a arma que tinha na mão – talvez porque não
queria saber como era inútil.
Oleg prosseguiu, olhando com seus olhos brancos:
– Se eles triunfarem, este reino onde estamos, o Reino das Som-
bras, será deles! Há muito tempo Kellanved e Dançarino entraram
naquele lugar amaldiçoado que vocês chamam de Casa Morta, e ali
descobriram uma coisa estranha. Descobertas estranhas que leva-
ram cem anos para compreender.
Ele baixou a cabeça com um sorriso mordaz.
– Era o meu trabalho, claro. Mas agora eles estão prontos. E têm
que ser detidos. Diga! Diga ao homem com quem eu estava, o cego
tolo! Diga-lhe que agora eu entrei nas Sombras, que eu vi tudo. Eu
tinha razão!
Kiska libertou-se dele e recuou.
– Mas, como posso fazer isso?
Oleg abriu a boca, mas o uivo de um cão, titânico, penetrante,
engoliu suas palavras. Kiska olhou para trás rapidamente, esperan-
do ver a fera prestes a fechar as mandíbulas em seu pescoço. Ela
viu que o que havia atrás dela agora não era um íngreme beco sem
saída, e sim dois caminhos sinuosos que se bifurcam em uma rocha
esculpida pelo vento em forma de árvore. Virou-se para Oleg e inda-
gou:
– O que está acontecendo?
Oleg passou as mãos pelos cabelos rebeldes.
– A tensão de evitá-los é desgastante.
Ele falava como se estivesse sozinho.
– Não há muito mais tempo agora.
Ele fixou os olhos em Kiska.
– Diga àquele homem que a transubstanciação deve ser um mo-
mento marcante. A inumação é o caminho para acabar com alguém
como ele! Diga-lhe que Kellanved tem planos de perder tudo para
ganhar tudo. Eu posso prever agora que sua vitória será selada pela
derrota. Diga-lhe exatamente como estou dizendo.
– Pela sabedoria da Rainha, o que significa isso?
Oleg estremeceu convulsivamente.
– Ele não pode triunfar! O trono é meu! Nosso tempo acabou.
– Mas, espere, eu…
A visão de Kiska ficou turva, a paisagem escureceu. Ela camba-
leou e caiu. Um vento úmido roçava-lhe o rosto e a arrebentação
distante pulsava como lentos batimentos cardíacos. O corpo inerte
de Oleg estava a seus pés em meio aos cacos de lajotas quebra-
das. Ela apertou a cabeça, que doía, com as mãos. O que havia
acontecido? Acontecera de fato alguma coisa? Ajoelhou-se ao lado
do corpo e tocou o sangue nas roupas encharcadas. Ainda úmido e
pegajoso. O que havia sido tudo aquilo? Algum tipo de feitiço, uma
ilusão? Bobagens de um louco?
– Seu maldito! – sussurrou para o corpo que jazia inanimado. –
O que você fez comigo?
Ela olhou ao redor. Quanto tempo havia ficado em transe? Nu-
vens dispersas rolavam no céu e a chuva caía ferozmente fria. De
vez em quando estrelas brilhavam através delas, mas debilmente,
como se intimidadas pela gorda lua de prata que se agachava um
pouco acima do horizonte. Ela deu as costas para a lua, abalada pe-
las palavras do velho.
Deveria esperar o resto da noite na sebe ao lado do muro da
propriedade, ou correr para dizer a alguém o que havia ouvido?
Mas, a quem? Aos Garras no Forte de Mock? Dificilmente. De acor-
do com Oleg, eles eram um dos poderes em luta naquela noite. Um
grupo entre muitos em um campo muito mais lotado do que até eles
mesmos sabiam. E naquele momento, ela não tinha certeza de que-
rer abordá-los às cegas. A quem, então? Ao Subpunho Pell? Ele ha-
via entregado toda a autoridade aos Garras sem nem sequer levan-
tar a bunda gorda da cadeira! Não; havia uma única pessoa na ilha
que poderia entender tudo aquilo: a tia Agayla. Ela saberia o que fa-
zer. Mas, mesmo assim…
Ela observou o corpo. Parecia obscenamente achatado, como
que esvaziado pela perda de sangue e segredos. Talvez toda aquela
conversa houvesse sido apenas a última efusão reflexiva de um lou-
co, conspirador lunático até o fim. Era um pensamento reconfortan-
te. Sim, aquilo era o mais provável. Qualquer outra coisa seria…
muito extravagante.
Ela voltou os olhos para as colinas da ilha. Nuvens baixas as
abraçavam. A tempestade parecia prometer apenas sombras esvoa-
çantes e chuva entorpecente. Tremendo, exausta, Kiska ajeitou as
roupas molhadas e puxou os cabelos achatados para trás das ore-
lhas. Esse era exatamente o tipo de noite triste que sempre a deixa-
va deprimida. Ela imaginava quanto tempo teria se passado e se
conseguiria vislumbrar sua presa – o homem de quem Oleg exigira
que ela se aproximasse – entre onde estava e a casa de Agayla.
Poderia ser que sim. E se ela conseguisse encontrá-lo de novo? O
que devia fazer? Ir até ele e dizer que tinha uma mensagem de um
fantasma?
Ela virou-se e grunhiu ao ver o que viu atrás de si. Ali estava o
homem de casaco cinza fosco, de cabeça inclinada, observando-a.
Ele deu um passo à frente. De perto, era um pouco mais baixo do
que ela havia imaginado. Ela enfiou a mão direita dentro da capa e
segurou a besta. Ele ergueu as mãos fechadas diante de si, separa-
das à largura dos ombros. Kiska não viu nada entre elas, mas reco-
nheceu a posição de quem segurava um garrote.
– Quem é você? – perguntou ela baixinho.
Kiska controlou o impulso de levar a mão à garganta. Ele avan-
çou, em silêncio. Ela deu um passo atrás, avaliando as opções: qual
seria a distância até o muro? Que proteção havia ali? Será que
aquele homem era rápido?
O banco de mármore e o corpo de Oleg passaram à sua esquer-
da quando ela recuou.
– Quem é você? – gritou ela, já não se importando em manter
segredo.
Ele deu um sorriso duro, predatório, e continuou avançando. O
que fazia o assassino ser tão petulante?
Erguendo os braços acima da cabeça, como se pudesse avançar
e estrangulá-la, ele passou por cima do corpo de Oleg. Ou melhor,
passou pisando nele. Seu pé desapareceu. Ela sacou da besta e
disparou, mas o parafuso que lançou transformou-se em uma ima-
gem evaporando nas sombras.
Um “merda” foi tudo que ela conseguiu dizer antes que o fio se
fechasse ao redor de seu pescoço por trás. Uma dor gelada cortava
sua carne. Ela não conseguia respirar. Queria gritar, suplicar, chorar,
qualquer coisa. Mas nada conseguia sair de sua garganta.
O assassino aproximou-se, apoiando o queixo no ombro dela.
– Eu ia seguir adiante – ele respirou no ouvido dela –, mas você
persistiu. Nada disso lhe diz respeito. Você era um mero estorvo.
Agora, vou mandá-la a meu mestre.
Ela sentiu os punhos de ambos os lados do pescoço se retesa-
rem para o puxão final. Kiska arqueou as costas, agitou os braços,
chutou, mas nada o fez soltá-la.
Então, algo surgiu diante dela como um peixe subindo de profun-
dezas escuras. Um corpo e um rosto tomaram forma: Oleg. A som-
bra apontou por sobre o ombro de Kiska e moveu os lábios. O vento
suspirou palavras em uma linguagem gutural. Um grito explodiu e al-
go irrompeu ao lado dela. Ela girou na escuridão, sentindo o corpo
descontroladamente. Gritos encheram o ar, e Kiska bateu no solo
argiloso molhado.
Ela abriu os olhos lentamente. Sentiu as roupas quentes e úmi-
das. Estava tonta; as orelhas zumbiam e latejavam. Havia desmaia-
do? Não; o eco estrondoso do trovão ainda reverberava enquanto
vapor subia de sua capa. Ela estava no campo de plantação ao nor-
te da propriedade de E’Karial, viva, ilesa; ou assim parecia. Ficando
de quatro, a seguir ela se levantou; cambaleou, tonta, e a seguir,
abriu caminho entre os troncos frágeis e as gramíneas rumo ao pá-
tio.
O banco de mármore estava ao lado dela. Ao lado dele havia um
buraco nas lajotas pelo qual o vapor saía em meio à chuva fina. Ha-
via sido um relâmpago de verdade, ou magia? O corpo estava no
mesmo lugar. Nem rastro do assassino.
Ela praguejou, ou pelo menos tentou. Um misto de tosse e gras-
nido foi tudo que conseguiu. Apalpou o tecido quente da capa. Co-
mo pôde ter sobrevivido? Levando os cabelos para trás, ela camba-
leou até o banco, virado de cabeça para baixo. Era pesado demais
para ela levantar, de modo que simplesmente se deixou cair sobre o
mármore esculpido. Passou os dedos pelo corte na garganta. Suspi-
rando, retirou a mão e observou a luva. Sangue escuro, úmido, bri-
lhando ao luar. Talvez ela não houvesse sobrevivido.
Aquilo lhe pareceu hilário. Riu, mas engasgou de dor. Por Hood!
Doía só de engolir. Talvez fosse um bom sinal. Afinal, sombras senti-
am dor?
Ela respirou longa e lentamente, sentindo o ar raspar a crua car-
ne da garganta como uma escova de aço. Isso, definitivamente, ela
tinha que contar a Agayla. A capa da Lua Sombria estava sendo
usada para acertar velhas contas. Ela teria que prosseguir; alguém
tinha que investigar. Afinal, aquele havia sido um bairro aristocrático.
Lentamente sua audição voltou. Ela julgou ter captado sons dis-
tantes: o ladrar de um cão. Sim, rugidos ferozes. E mais longe, sons
agudos que podiam ser gritos. A dor desapareceu quando pensou
que talvez naquela noite todo o mundo estivesse ocupado demais
para se importar.
•••
Quando Faro falou, o sargento Ash olhou para onde estava Temper.
O olhar encapuzado mal fitou um de seus homens e voltou ao per-
gaminho que estava analisando com Corinn e alguns outros. O ho-
mem, outro veterano Bridgeburner, como Temper descobrira, levan-
tou-se da mesa e atravessou o salão, e o som de seus passos pare-
ceu alto no silêncio.
– Cale o velho.
Ele vestia uma cota de losangos de ferro rebitados no couro fer-
vido e um elmo nu de aço enegrecido. A ponta do nariz havia sido
arrancada havia muito tempo. Um bigode fino descia pelo queixo.
Ele parecia entediado, como se nada daquilo lhe importasse muito.
Naquele caso, Temper poderia dizer que as aparências não engana-
vam. O homem cortaria a garganta de Faro se ele falasse de novo.
Ao lado do velho, Coop estava boquiaberto, mudo de choque. Tre-
nech fitava o nada. A mão do homem fechou-se no cabo de chifre
do punhal que levava na cintura.
– Vamos mantê-lo quieto – disse Temper rapidamente.
O homem hesitou, olhou para eles, e a seguir, resmungou e
afastou-se. Coop olhava para ele.
– Meu Deus! Você acha que ele…
– Cale a boca, Coop.
Coop encolheu-se, magoado. Temper olhou de soslaio para Ash
e os outros que estavam reunidos ao redor da mesa naquele mo-
mento. Estavam estudando alguma coisa. Seria um mapa?
O uivo ecoou novamente, dessa vez mais longe. Os homens
olharam em volta, para as paredes, uns aos outros. Para Temper, a
tensão na sala parecia tão densa quanto a cortina de fumaça no ar.
Faro agitou-se de novo, como se estivesse sonhando, inquieto.
Gentilmente, Trenech apertou-lhe o ombro e o velho murmurou algu-
ma coisa: uma bobagem sem sentido, ou algo em outra língua. Tre-
nech parecia entender. Apertou-lhe o ombro de novo, assentindo.
A atenção de Temper foi desviada por bancos arrastando-se e
botas batendo no chão de pedra. Os homens estavam preparando-
se para sair. Ash estava perto da porta, dando ordens a cinco ho-
mens. Sargentos, concluiu Temper. Com doze veteranos e outros
trinta ou mais mercenários contratados, eles tinham uma força de
cerca de quarenta homens. Além de Corinn; um verdadeiro mago no
grupo seria inestimável. Mas o que esperavam conquistar? Um obje-
tivo tático limitado? Mas qual poderia ser nessa ilha? Tudo que ele
pôde imaginar foi o Forte, mas não fazia sentido. Nada que valesse
a pena para ninguém seria encontrado lá. A menos que não fosse
algo o que eles procuravam, e sim alguém… O oficial visitante. As-
sassinato? Ninguém levaria quarenta homens armados para uma
tentativa de assassinato. Só restava… sequestro? Temper sacudiu a
cabeça. Ridículo!
Ash, seguido por Corinn, aproximou-se de onde estava Temper e
os outros. Parando perto deles, o homem concentrava-se em ajustar
as luvas de couro encouraçadas.
– Vocês têm minha palavra de que verão o amanhecer se fica-
rem sentados aqui sem criar confusão – ergueu os olhos, indagan-
do: – Entenderam?
Somente Temper assentiu. Coop apertou o pano com as duas
mãos e Trenech olhou para Corinn, atrás de Ash. Parecia querer lhe
fazer uma pergunta.
– Muito bem – e Ash afastou-se.
Corinn ficou, e olhou para Temper dizendo com o olhar: faça o
que ele disse. Temper olhou para ela sem saber bem como respon-
der. Ela lançou um último olhar interrogativo para Faro, como se o
estivesse vendo pela primeira vez.
Temper observou os esquadrões saírem. As chamas do braseiro
saltaram em rajadas no ar úmido que soprou da porta. Corinn ficou
para trás até que quase todos saíram. Eles entreolharam-se na sala
cheia de fumaça. Ela contraiu levemente os ombros, desculpando-
se, e saiu. Quatro homens permaneceram ali. Pareciam meros con-
tratados, refugos de rua, pelo que Temper pôde discernir. Provavel-
mente havia mais dois guardas do lado de fora, e seriam substituí-
dos conforme a noite avançasse. Os quatro estavam sentados a
uma mesa aproximadamente a meio caminho entre a porta da frente
e o reservado aos fundos. Pegaram as pedras de um jogo. Por um
tempo, tudo que se ouvia era o vento lá fora, o crepitar das chamas,
o ruídos dos Ossos sendo jogados e a conversa baixinha dos guar-
das. Temper estudou os homens. Quais seriam suas chances? Po-
deria contar com Coop? E com Trenech?
Ele já havia visto o grandalhão brigar por Coop. Pusera um bê-
bado debaixo de cada braço e os jogara para fora. Mas espadas
contratados? Ele olhou para Trenech e quase soltou um palavrão; o
tolo estava cochilando! De boca aberta e úmida, olhos fechados,
respirava longa e profundamente; seu largo peito subia e descia co-
mo um fole de ferreiro. Temper exalava irritação. Todos pareciam
loucos hoje.
Os guardas riram, inclinando-se para trás. Um deles, o mais jo-
vem, levantou-se da mesa e rumou para o reservado, todo arrogan-
te. Era um rapaz magro, com uma longa cota de couro cortada nas
laterais que suas pernas chutavam enquanto ele andava. Os cabe-
los grossos eram pretos e encaracolados e estavam presos por um
elmo pequeno demais para eles. Ele enfiou os polegares no cinturão
e deu um sorriso de desdém. É só um jovem, refletiu Temper com
amargura. Mas gente daquele tipo era perigosa, tinha muito a provar
para si mesma.
– Onde está a bebida boa, taberneiro?
Coop olhou para ele com os olhos arregalados. O jovem fez uma
carranca e deslizou a mão para a faca no cinturão.
– Não tente me enganar, ou vou usar isto aqui.
Temper cutucou Coop, que falou como se estivesse acordando
de um sonho:
– Na despensa – suspirou –, por aquela porta. As garrafas de vi-
dro.
O jovem foi até a porta, abriu-a e voltou com uma garrafa mar-
rom. Parou no reservado.
– Você guarda gelo na cozinha, velho?
Franzindo a testa de perplexidade, Coop balançou a cabeça.
Carrancudo, o guarda voltou para sua mesa.
– O que é aquilo? – sussurrou Temper para Coop.
– Moranth destilada.
Temper olhou para o taberneiro.
– Meus deuses, homem! Isso é álcool puro. Há quanto tempo vo-
cê esconde isso?
Coop baixou os olhos.
– Desculpe, Temp. Eu o uso para fortalecer as bebidas.
– Eles vão estar cegos em poucas horas, mas não posso espe-
rar tanto tempo.
Coop abriu a boca, mas um dos guardas gritou:
– Fiquem quietos, malditos! Nada de sussurros.
Coop fechou a boca. Temper ameaçou levantar-se, mas decidiu
não atacar às cegas, e recostou-se novamente. Ele esperou e ob-
servou mais alguns minutos.
Enquanto jogavam Ossos, os guardas iam virando copos de be-
bida, arquejando ao senti-la descer queimando a garganta. Temper
silenciosamente praguejou: que tolos amadores, as mãos mais inú-
teis de um lote ruim. Naturalmente, Ash não reservaria bons homens
para aquele dever; ele precisava de todos que conseguisse reunir
para o que quer que estivesse por vir. Com os punhos cerrados so-
bre a mesa, Temper não pôde mais suportar a inação e falou alto
para o outro lado do salão:
– Você não acha que Ash vai voltar, não é?
Coop ficou boquiaberto.
Os quatro guardas viraram-se. Seus olhos brilhavam na fumaça
do braseiro que enchia o ar.
– Cale essa boca amaldiçoada, por Hood!
– Vocês já foram pagos, não foram?
O mais jovem levantou-se da mesa. Outro o puxou para baixo,
rosnando:
– Cale essa boca ou vou prender sua língua na mandíbula.
Temper fez uma careta. Sentiu-se quase decepcionado por não
os ter incitado à ação. Pelo menos, tudo teria acabado, de uma for-
ma ou de outra. Esperar não era seu forte. Mais cinquenta batimen-
tos cardíacos e ele atacaria. Aquela garrafa serviria bem como ar-
ma. Ele tinha que se mexer; não tinha certeza do lugar para onde
Ash e sua turma estavam indo.
As botas de Coop cutucaram as de Temper, que ergueu os
olhos. O taberneiro, pálido, de olhos arregalados, olhou para o chão.
Temper seguiu seu olhar. Uma grossa camada de fumaça, da largu-
ra de um polegar, subia como a maré, cobrindo o chão de pedra.
Brotava de trás da porta da pequena despensa. Aquela escada es-
cura que descia para o frio porão onde nunca ninguém entrava. Mi-
sericórdia de Soleil! A tempestade lá fora não era nada! O que era
aquilo que se reunia ali em torno deles?
Faro levantou-se de repente, fazendo Coop gritar. Seus olhos,
claros e conscientes, fizeram Temper olhar ao longe; eles se abriam
para profundezas muito maiores que qualquer porão. Faro murmu-
rou para Trenech:
– Shtol eg’nah lemal.
Era uma língua que Temper nunca havia ouvido, mas o fez lem-
brar um pouco o velho Talian. Mas Trenech entendeu. Ele olhou pa-
ra a frente da sala.
O jovem guarda levantou-se:
– Faça esse velh…
O latido de um cão atravessou o ar da sala, explodindo do lado
de fora da porta. Os guardas ficaram paralisados; olharam para a
porta, e a seguir, um para o outro. Os olhos arregalados brilhavam à
luz do fogo. Ouviu-se um grito então; um grito de absoluto horror e
desesperança, acabando em soluços. Foi quando os guardas irrom-
peram de suas cadeiras. Retiraram as armas das bainhas e sussur-
raram entre si; o mais velho deles rumou para a porta. A mão livre
pairou sobre a tranca.
– Bell? – chamou. – Bell? Você está aí?
A tranca soltou-se quando ele a abriu. Puxou a porta e olhou pa-
ra fora. Soprava um vento frio que agitava as chamas e lançava re-
moinhos de nuvens de fumaça. Temper ouviu a chuva sibilando.
O guarda gritou em direção à escada:
– Bell! Theo!
Um suspiro do outro lado da mesa chamou a atenção de Temper.
Faro murmurou para Trenech:
– Em breve, meu amigo. Muito em breve.
Dessa vez, o homem falava com um forte sotaque Talian.
Trenech assentiu. Eles ignoravam Temper e Coop, que estava
sentado ali, com os olhos esbugalhados e o pano pressionado con-
tra a boca.
Do outro lado da sala, o jovem aproximou-se deles rosnando, de
faca em punho. O rosto pálido brilhava de suor. Ele brandiu a faca
primeiro para Trenech e depois para Temper, mas como eles não se
intimidaram, voltou a atenção para Faro. Para chegar a ele o jovem
tinha que passar por Trenech, e Temper notou que o guarda não es-
tava disposto. A faca tremia em sua mão. De nervosismo, frustração
e medo. Temper sabia que aquele era o momento em que um ho-
mem podia explodir.
– Pelos deuses, façam esse homem se calar, ou juro que vou
matar o desgraçado. Vou matá-lo!
Temper assentiu. Trenech e Faro agiam como se ninguém hou-
vesse dito nada.
– Eli! – chamou o guarda mais velho. – Eli, volte aqui, maldito!
Encolhendo-se, o jovem afastou-se, arrastando as botas no
chão. A porta foi fechada com cuidado e os quatro ficaram conferen-
ciando. Temper julgou que estavam discutindo para ver quem sairia
para checar os companheiros.
O fogo baixo da enorme lareira foi minguando e apagou-se. Nin-
guém disse uma palavra. Só os braseiros e as tochas baixas forne-
ciam a luz turva e amarelada pela fumaça. O fogo não havia sido
apagado nem abafado. Pelo contrário, parecia a Temper que as cha-
mas haviam sido sugadas para baixo da pedra. A fria umidade mor-
dia-lhe os tornozelos. Havia feitiçaria ali, reunindo-se como se res-
pondesse a uma lenta convocação, uma ressurgência, como a pres-
são por trás de um gêiser. Temper havia sentido o mesmo em uma
centena de campos de batalha; sabia que em breve estouraria.
Baixinho, Temper sussurrou para Faro:
– Pare com isso. Não faz sentido piorar as coisas.
O velho piscou os olhos remelentos, como se estivesse esqui-
vando-se de sua própria faca.
– As coisas – anunciou – vão ficar muito piores se você não sair
daqui de uma vez.
Temper ficou boquiaberto e afastou-se bruscamente da mesa. O
que o velho estava aprontando?
Eli o ouvira.
– Muito bem – gritou, e atravessou o salão marchando.
Temper gritou, pedindo ajuda aos outros três guardas. Eles olha-
ram com uma indiferença preguiçosa. Ninguém se moveu para aju-
dar.
Eli brandiu a faca.
– Saia desse maldito reservado.
Faro nem sequer parecia tomar ciência da ameaça. Ele olhava
para o nada.
– Ora – disse Temper, tentando parecer razoável –, o velho está
bêbado.
O jovem virou a lâmina para Temper.
– Você pode fechar a boca desse homem! – bufou Eli com os
olhos dilatados.
Temper não disse nada. No começo, ele se sentira esperançoso
ao ver que nenhum veterano havia ficado ali. Mas, naquele momen-
to, desejava que houvesse um. Qualquer veterano de batalhas im-
periais, marinhas ou de outro tipo, sentiria o cheiro do perigo, a es-
tranheza, a atmosfera carregada. Aquilo cheirava a Warrens; a feiti-
çaria. E tudo que qualquer soldado de infantaria poderia fazer em fa-
ce daquilo era correr para se esconder.
Faro resolveu o impasse. Anunciou inesperadamente:
– Vocês foram avisados.
Eli avançou para o reservado, mas a mão de Trenech segurou-
lhe o braço. Torceu-o, e Temper ouviu o estalo de ossos, e a seguir,
o grito de Coop. Trenech soltou o braço e Eli endireitou-se, olhando
atônito para a ponta irregular do osso saindo da carne de seu ante-
braço. Jogou a cabeça para trás e soltou um grito, que acabou
quando Trenech colocou a faca em sua garganta. Um jorro de gotas
de sangue quente atravessou o reservado quando ele caiu para
trás.
Coop gritou de novo, mas Temper cobriu a boca do cervejeiro
com a mão. Manteve-se imóvel, olhando para os olhos vidrados de
Faro.
Houve uma pausa atordoada, e então, o estouro de botas dos
outros três guardas correndo na direção de Trenech. Palavrões, um
grito rouco, um barulho quando um corpo bateu em uma das mesas
pesadas de carvalho. E depois, silêncio. Mas durou somente um ins-
tante.
Coop tentou livrar-se da mão de Temper, mas ficou paralisado.
Faro fitava o outro lado da mesa. Os lábios abriram-se em um sorri-
so satisfeito. Temper soltou Coop, que apoiou a cabeça na mesa,
choramingando.
– Vá agora – disse Faro. – A Sombra e outros estão vindo. Os
Arautos anunciam. Devemos estar prontos.
Temper engoliu em seco e assentiu. Coop tomou fôlego para fa-
lar, mas Temper cobriu-lhe a boca de novo e saiu do reservado, ar-
rastando o homem atrás de si. Trenech ficou de costas para a sala,
bloqueando a entrada da frente como um obelisco de granito.
Temper puxou Coop para a porta dos fundos, mas no chão esta-
vam todos os guardas, mortos, esmagados por duros golpes. O cer-
vejeiro deu uma olhada nos corpos mutilados e desmaiou.
Capítulo III
Cães das Sombras

A pequena e solitária embarcação lutava, perdida em um oceano de


tempestade. No alto, um relâmpago atravessou o sólido telhado de
nuvem. O braseiro no banco central do barco brilhava; era o único
farol laranja contra a escuridão da noite. O pescador remava, guian-
do a proa do bote pelas ondas palpitantes. Ao redor, o granizo e a
chuva rasgavam as águas cinza ardósia, mas nenhum respingo to-
cava o barco, nem fazia o braseiro chiar, nem amassava os cabelos
agitados do pescador. Braceletes de bronze brilhavam nos pulsos
curtidos e o volume do suéter de lã escondia a força de seus braços.
Acima, as nuvens turvas pareciam estremecer a cada remada e a
cada movimento de suas costas largas. Ele cantava mais alto seu
lamento contra o vento furioso, apertando com os dentes na haste
do cachimbo:
Era verão, saí para remar com minha noiva radiante
Rimos e nos demoramos nas piscinas de seda.
Mais linda que a flor de lírio é meu amor,
Ela se move com graça sobre o brilho.
Seus olhos são mais profundos que o mar,
Seu coração é mais quente que todo o frio do frio mar.
No meio das ondas, Cavaleiros subiram à superfície. As armadu-
ras opalescentes brilhavam de prata e safira. Eles se recostaram, e
a seguir, arremessaram lanças de gelo. As armas reluzentes atra-
vessaram as ondas. Quando caíram no olho de calmaria ao redor do
bote, explodiram em névoa.
No sul distante, rasgando a cortina de granizo que se aproxima-
va, erguia-se um penhasco da mais profunda água-marinha e de ge-
ada prateada, que avançava sobre o barco com a majestade irresis-
tível de uma geleira. Mas o pescador lançou seus remos à frente.
Diante dele, o braseiro brilhava como um sol vermelho. Flâmulas de
vapor explodiram da face anterior do iceberg e os fragmentos voa-
ram longe, levantando uma nuvem de água.
Na ponta do iceberg as ondas batiam contra a espuma fervente
que corria em direção ao bote. Mas antes que chegasse perto dele,
afundava, sugada para as profundezas. A mancha cor de esmeralda
que restara na água escaldante desapareceu sob uma teia lodosa
de gelo.
Outras figuras brotavam do mar cercado de gelo. Eram de um ín-
digo profundo, e seus elmos de escamas revelavam apenas escuri-
dão dentro deles. Em vez de uma longa lança de gelo farpado, cada
um carregava curtas varinhas cegas de ametista e olivina, que
apontaram para o bote distante. De suas pontas saltaram relâmpa-
gos azuis, rachando o ar, mas se dissiparam diante da proa do bote.
Uma a uma as figuras submergiram segurando suas varinhas no al-
to.
Por um tempo o barco ficou sozinho nas ondas, subindo e des-
cendo como um destroço conforme o pescador remava. Mas logo
mais figuras apareceram, pálidas, opalescentes, nadando em círcu-
los ao redor do bote. Então, no nevoeiro, surgiu outra montanha de
gelo. O granizo rasgou as ondas ao redor, mas o pescador forçou os
remos, encurvado, com o cachimbo projetado dentre os dentes. Ele
cantou:
Seu coração é mais quente que todo o frio do mar frio.
•••
Kiska correu pela Riverwalk. De um lado, o rio Malaz fluía escuro e
gélido dentro dos bancos de pedra. As sandálias de couro não fazi-
am barulho nas pedras molhadas. Ela não havia visto o alvo desde
que deixara Lightings. Um nevoeiro baixo obscurecia a distância e
roçava os dedos frios no rosto e ombros de Kiska. Nuvens negras
corriam sobre sua cabeça; era como se as estrelas houvessem se
apagado. Só a lua, baixa no horizonte, lançava um brilho roto e páli-
do sobre as ruas brilhantes. Kiska esperava ver sua presa mais per-
to do centro da cidade, mas nem sinal dele até então. Teriam ele e
seus guarda-costas seguido aquele caminho? Talvez alguma missão
os houvesse levado para outro lugar. Mas, aonde mais ele poderia
ter ido? Ela se sentia como a última alma viva na ilha, e estremeceu
ao pensar nisso. Na Ponte de Pedra, ela parou para observar toda a
margem do rio. A chuva fina, que mais parecia vapor, suavizava a
distância. Nada se mexia; mas, ainda assim, coisas pareciam mo-
ver-se. Ela olhou para trás, de soslaio. Sombras. Sombras que cinti-
lavam como chamas sujas de fuligem.
Enquanto ela observava, a onda de sombras foi descendo a en-
costa. Engolfou os barracos ribeirinhos em suas palafitas e seguiu,
engolindo a água como um banho de melado. Em alguns instantes
passaria por onde ela estava. Tarde demais, ela urgiu as pernas a
se mexer. Ainda estava na ponte quando foi envolvida. Correu às
cegas, enxugando os olhos. Quando as pedras da ponte caíram sob
seus pés, ela gritou e caiu na água gelada.
No início, ela pensou que havia caído no rio, mas logo percebeu
que era apenas um fluxo superficial, um brilho fino sobre a areia mo-
lhada. Ela se endireitou, tentando puxar o ar e sentindo o coração
martelando. As sombras haviam se dissolvido, e a noite se iluminou.
Kiska viu que estava entre altas dunas de areia prateadas sob a luz
da lua.
Kiska não estava mais em Malaz – ela sabia disso –, mas sus-
peitava do local em que poderia estar. O céu era uma treva furiosa,
riscado por nuvens altas que ondulavam enquanto ela observava.
Dunas íngremes a rodeavam como ondas altas. Ela subiu uma e vi-
rou-se, maravilhada com o novo entorno. Suaves, quase sensuais,
as colinas de areia estendiam-se em todas as direções. A região pa-
recia o lugar em que Oleg a havia levado: o Warren de Sombras.
Mas um detalhe destoava: a fonte do brilho verde prateado que
dominava um horizonte. Uma geleira. Kiska nunca havia visto uma,
mas assemelhava-se às descrições que havia ouvido de viajantes:
uma montanha de gelo cintilante, como diziam. Ela filtrara as histó-
rias pensando que eram exageradas por lembranças confundidas
pela bebida. Mas ali estava a prova. Kiska refletiu amargamente so-
bre como sua ilha era pequena, como sua própria experiência era li-
mitada. Tentou imaginar o peso esmagador de todo aquele gelo, to-
das as dimensões. A que distância estava? A paisagem ao redor
não lhe deu pista alguma. Ela tirou com a mão a areia molhada das
roupas e estremeceu ao vento frio.
Uma voz ofegante disse atrás de Kiska:
– Eu havia me esquecido de que isso é impressionante à primei-
ra vista.
Ela girou, de facas em punho, e deu um salto para trás, gritando
de surpresa. Fosse o que fosse, estava morto. Ou melhor, era um
cadáver. Carne ressecada, órbitas vazias, sorriso de dentes amare-
lados. Farrapos de roupas pendiam da estrutura angular, expondo
trapos do que antes havia sido um grosso manto sobre o couro puí-
do e a armadura de bronze. O punho de uma espada em uma bai-
nha corroída projetava-se por trás de um ombro. Um horror gélido
tomou conta de Kiska.
– Você é de Malaz? – perguntou o cadáver em Talian arcaico.
– Sim – gaguejou ela. – Malaz. Ilha de Malaz.
A cabeça da criatura, aparentemente fundida com o elmo de
bronze corroído, assentiu lentamente:
– É uma ilha agora? Já andei muito por essas terras.
– Quem é você? Onde estou?
– Chamam-me de Edgewalker. Eu ando pelas fronteiras de Ku-
rald Emurlahn. O que vocês chamam de Sombras. E isto é parte
desse reino.
Kiska apontou com uma das facas para a distante montanha do
gelo:
– O que é aquilo?
– Algo que pertence a este lugar tanto quanto você.
– Ah… – Kiska abaixou o braço e estremeceu. – Bem, eu não
pedi para vir para cá.
– Você foi arrastada por uma Mutante, uma tempestade de som-
bras. Elas serão frequentes. Sugiro que fique em casa.
– Em casa? – Kiska deu uma gargalhada. – Onde? – perguntou,
e logo fechou a boca. – Quer dizer… que vai me mandar de volta?
– Sim, vou. Seu lugar não é aqui.
– Então, acho que devo lhe agradecer.
Kiska levou os cabelos para trás e olhou para as dunas.
– Isto aqui fica mesmo em Malaz? – e então lembrou-se. – Co-
nhece um homem chamado Oleg?
– Não. Não conheço ninguém com esse nome.
– E um governante? Se aqui é o Reino das Sombras, não há um
trono?
Edgewalker permaneceu em silêncio por um tempo; tempo sufici-
ente para Kiska chegar mais perto. A criatura teria morrido?
Mas, por fim, ele perguntou:
– O que é que tem o trono?
– Disseram-me que alguém tentaria tomá-lo hoje.
– Inúmeros já tentaram. Todos falharam. Mesmo aqueles que
conseguiram por um tempo. Eu inclusive, de certo modo. Agora, an-
do por suas fronteiras para sempre. E me saí melhor que a maioria.
Estranhamente, Kiska sentiu-se desapontada com a revelação.
Ela suspeitava, ou esperava, que Oleg fosse insano. Tentou lem-
brar-se mais do que ele balbuciara.
Um gemido baixo fez com que os pelos de seu pescoço se arre-
piassem. A criatura levantou um braço musculoso como um galho
retorcido de um carvalho, e apontou para o outro lado do riacho.
Anéis de ouro brilhavam nos dedos murchos.
– Um cão sentiu seu cheiro. Corra enquanto pode, filha.
Ele não precisava dizer duas vezes; mas, de repente, Kiska lem-
brou-se e indagou:
– O que é sepultamento?
– O preço do fracasso. Escravidão eterna na Casa Sombria.
O latido voltou, mais próximo dessa vez, ecoando na distante pa-
rede de gelo brilhante.
– Você não tem muito tempo – disse o ser, e sua voz não era
mais do que o arranhar de folhas. – Vá para a torre de Obo. Implore
a ele por proteção.
– A torre de Obo? Mas isso é só uma ruína vazia. Obo é apenas
um mito.
– Sem dúvida, havia certos cães há uma hora.
Kiska pestanejou, surpresa:
– Mas, e você? Vai ficar seguro?
A carne frágil do pescoço do ser rangeu quando ele inclinou a
cabeça para observá-la com suas órbitas vazias.
– Os cães e eu somos semelhantes. Escravos das Sombras, ca-
da um do seu jeito. Mas eu agradeço sua preocupação. Agora você
tem que ir.
A criatura acenou a mão cheia de garras, e o mundo escureceu.
Todas as sombras ao redor contorciam-se como asas negras. Por
um instante, ela pensou ter ouvido um coro de sussurros em uma
confusa diversidade de línguas. E a seguir, as sombras sumiram na
distância, e ela reconheceu onde estava: Riverwalk, ao sul do rio
Malaz.
Imediatamente um uivo atravessou a noite, tão alto, que Kiska
deu um pulo, como se o cachorro estivesse ao seu lado pronto para
mordê-la. Ela saiu voando, sem se atrever a olhar para trás. À fren-
te, apenas algumas quadras adiante, o topo irregular da torre em ru-
ínas de Obo empurrado penetravam as nuvens como um punhal
partido. Outro rugido, alto como um trovão, e ela tropeçou. Os gritos
cresciam ao seu redor, arrancados da garganta dos cidadãos aterro-
rizados trancados em suas casas. Ela correu virando a esquina e
saiu em uma praça aberta, e a seguir, mergulhou no muro baixo de
pedras nos alicerces da torre. Ficou tremendo ali, entre as folhas e o
lixo do pátio abandonado, esforçando-se para ouvir.
Mas ela não ouviu nada mais que a arrebentação, estranhamen-
te distante, e as rajadas de vento. Lentamente, conseguiu controlar
a respiração, e a pulsação acalmou-se. Algo se mexeu entre os ga-
lhos caídos e ela sufocou um grito. Levantou um pouquinho só a ca-
beça: um pé fino em sandálias de couro. Ergueu os olhos. Viu um
homem idoso em vestes esfarrapadas de lã marrom, usando um ga-
lho de árvore como bengala. Era careca, mas tinha longos fios de
cabelo branco revirados como uma franja sobre as orelhas.
Ele lançou-lhe um olhar carrancudo por baixo de seu longo nariz
adunco:
– O que é isso? – murmurou, como se houvesse pisado em bos-
ta de vaca.
Kiska pestanejou. Quem era aquele velho trêmulo? Certamente
não Obo, o ogro malvado da lenda.
– Pela sabedoria da Rainha, quem é você? – perguntou ela com
cautela, e levantou-se, observando o homem o tempo todo.
– Quem sou eu? – gritou o sujeito. – Quem sou eu? Um miserá-
vel invade minha casa e me questiona?
– Sua casa?
– Sim, minha casa.
O velho apontou com a bengala a torre, e Kiska notou que agora
erguia-se maciça e sem danos para um céu noturno brilhante de es-
trelas, mas sem lua. Ela olhou ao redor. As encostas familiares corri-
am para o mar, enquanto ao norte os penhascos subiam como uma
parede – ainda nenhuma cidade os cercava. Nem um único edifício
estragava a vegetação pantanosa varrida pelo vento e as tifas ba-
louçantes.
– Onde estamos?
O velho espetou o braço de Kiska com a bengala.
– Você é lesa? Minha torre.
– Você é Obo?
O velho torceu os lábios irado, e levantou sua bengala.
Kiska arrancou-a das mãos dele e a atirou de lado.
O velho olhou para ela boquiaberto:
– Por que você… Era minha vara!
Kiska ficou tensa, esperando uma explosão de magia ou uma
maldição que fizesse sua carne apodrecer. Mas o velho virou-se
bruscamente e seguiu até os degraus de pedra que levavam à única
porta da torre.
– Espere! Ei, espere!
O velho bateu a porta. Kiska subiu as escadas correndo e bateu
com os punhos na madeira.
– Abra! O que eu devo fazer?
Uma fresta não maior que a palma de uma das mãos abriu-se.
– Vá embora.
– Mas há um cão aqui fora! Você não pode me deixar aqui fora.
Os olhos estrábicos e marejados fitaram ao longe, e ele disse:
– Ele foi embora. Pode ir.
Kiska acenou, indicando para o brejo.
– Ir para onde? Não há nada ali!
O velho, Kiska não conseguia identificá-lo como Obo, o nome
lendário, assustador, de um feiticeiro de eras passadas. Outra favo-
rita das histórias salpicadas de sangue que sua mãe contava, ros-
nou exasperado.
– Não aqui. Aqui não é seu lugar. Volte para o lugar de onde
veio.
Ela assentiu com a cabeça.
– Ótimo. É isso que eu quero.
– Então, vá embora e pare de me incomodar.
E bateu a porta.
Ela desceu a escada.
– Muito bem, eu vou – gritou ela. – Obrigada por nada.
No muro baixo, ela parou e escutou. O que exatamente, ela não
tinha certeza. O grito de um cão, supôs. Mas havia apenas o vento
assobiando pela grama alta e o ruído da arrebentação. Luzes cha-
maram sua atenção, e ela virou-se, olhando para o céu do extremo
sul. Flashes azuis esverdeados brincavam como faixas coloridas no
meio da noite. Kiska estremeceu, relembrando lendas que diziam
que as luzes eram reflexos dos Cavaleiros da Tormenta, que emer-
giam para arrastar navios para o gelado reino submerso. Eram his-
tórias que sempre lhe causaram risos. Mas, agora… agora ela não
sabia o que pensar. Limpou as mãos nas coxas das calças enchar-
cadas e as soprou. O que o velho quisera dizer com “Volte para o lu-
gar de onde veio”? Como? O que ia fazer?
Na escuridão, ela pôde distinguir umas pedras verticais, um tipo
de estrutura rodeada por um bosque de árvores raquíticas e morros
baixos. Parecia estar bem no local onde, na cidade de Malaz…
Kiska prendeu a respiração e recuou. Que Bum preserve minha al-
ma. Ficava exatamente onde a Casa Morta estava, ou estivera. Só
que agora era uma tumba.
Ela abraçou a si mesma, estremecendo. Nem tanto pelo frio,
mas sim pelo choque do reconhecimento. Era mesmo a casa, ou se-
ria. Sentiu-se subitamente muito insignificante, tola até. Durante to-
da a sua vida ela tivera certeza de que nada nunca mudaria por ali.
Kiska se perguntou se poderia confiar no que aquele homem dera a
entender: que ela, de alguma maneira, deveria voltar para a cidade.
Mas, que escolha ela tinha?
Kiska jurou que se conseguisse voltar, iria direto para a casa de
Agayla. Se alguém sabia o que estava acontecendo, e o que fazer,
era ela. Não importava toda aquela baboseira insana de Retorno,
Casa Morta e Sombras. Que história ela tinha para contar à tia!
Kiska respirou fundo, subiu no muro e imediatamente perdeu o
equilíbrio. Estrelas rolavam acima de sua cabeça, enquanto nuvens
que pareciam pedaços escuros de pano esvoaçavam diante de seus
olhos, apagando-as. Agora a lua brilhava por trás das nuvens como
o olho de um antigo gigante. As faixas de névoa pairavam sobre ela.
Estremecendo, Kiska levantou-se, esfregando o cotovelo machuca-
do. Virando-se, olhou para as paredes despedaçadas da torre de
Obo: ruínas, mais uma vez. Ela estava de volta a Malaz – a Malaz
que ela conhecia. Ele havia feito aquilo; ou, talvez, ele não tivesse
feito nada, e simplesmente sair do terreno da Torre tivesse feito com
que ela retornasse. Quem sabia como aquilo funcionava? Talvez
Agayla pudesse explicar. De qualquer maneira, ela estava de volta,
e tinha que chegar à casa da tia o mais rápido possível, o que impli-
cava enfrentar as ruas de novo.
Automaticamente, Kiska deslizou para a proteção de um muro
próximo. No entanto, olhou para trás, para a torre despedaçada de
Obo. Talvez pudesse se esconder na propriedade até o amanhecer.
Afinal de contas, a quem queria enganar? Kiska sabia que havia si-
do sobrepujada. Quem poderia culpá-la? Kiska quase rosnou de
frustração. Agayla devia saber o que estava acontecendo. Tinha que
falar com ela.
Um rugido eclodiu ao longe. Kiska encolheu-se. Pelos deuses! E
saiu correndo do abrigo do muro para descer a rua estreita.
O segundo sino da noite soou apático quando Kiska chegou à
casa de Agayla. A tia morava sozinha atrás de sua loja em Reach
Lane, uma rua tão estreita, que as varandas do segundo andar das
casas entrelaçavam-se, ocultando o luar.
Kiska jogou-se sobre a porta e bateu com o punho em suas sóli-
das vigas – pranchas de um naufrágio, dissera-lhe Agayla certa vez.
Os golpes de Kiska mal faziam a porta tremer. Ela recuou, enchar-
cada de chuva e exausta. Guirlandas de hera e ervas retorcidas
pendiam sobre o lintel e desciam pelas ombreiras da porta. Quando
puseram aquilo ali? Sob a pequena cumeeira, a porta tinha faixas
escuras como o alcatrão, como se um punhado de folhas houvesse
sido moído sobre ela. Kiska sentiu um forte cheiro apimentado. Can-
sada demais para pensar, ela colou o corpo na madeira. Sussurrou:
– Tia? Sou eu. Abra, por favor. Abra, por favor.
– Quem está implorando e arranhando minha porta? Que alma
perdida?
– Sou eu! Abra.
– Eu? Rá! Qualquer sombra vai ter que fazer melhor que isso pa-
ra atravessar meu umbral. Vá importunar outra pessoa.
– Tia! Por favor! Há coisas aqui fora! Deixe-me entrar!
Com um barulho de chocalho, a porta abriu-se para dentro.
Agayla estava no umbral estreito, com uma vela na mão, o que fazia
suas feições parecerem afiladas nas duras sombras e luzes.
– Eu sei que há, querida. É por isso que você não deve ficar aí
fora.
Kiska entrou rapidamente e bateu a porta. Ofegante, congelada
até os ossos, ela recostou-se na porta e passou-lhe o ferrolho.
Agayla sacudiu a cabeça, como se Kiska houvesse ficado lá fora
brincando na lama.
Ainda ofegante, Kiska apontou para a porta.
– Não fique aí parada! Há monstros lá fora. Fantasmas! Demô-
nios! Eu os vi. Eu quase morri.
Agayla apertou os lábios.
– Todo o mundo sabe, querida. E todo mundo tem o bom senso
de ficar dentro de casa.
As longas saias farfalhavam enquanto ela se retirava para a loja,
acrescentando por cima do ombro:
– Todos exceto você, ao que parece. Agora vamos, é melhor vo-
cê se limpar.
Kiska ficou boquiaberta. Como assim? Depois de tudo que havia
acontecido com ela, nem sequer uma palavra de… compaixão? Cu-
riosidade? Nem mesmo um Que bom ver você?
•••
Enquanto Agayla a envolvia em cobertores e secava-lhe os cabelos,
Kiska contou tudo que havia encontrado: os homens do barco men-
sageiro, a reunião, o assassinato de Oleg, o Reino das Sombras e o
cão. Ou quase tudo. Ela omitiu o encontro com a antiga criatura das
Sombras, Edgewalker. E Obo; não fazia sentido deixar as coisas pa-
recerem ainda mais inacreditáveis do que já eram.
Durante a narrativa, Agayla não disse nada. Deixou-a falar em si-
lêncio. Quando Kiska gaguejou e parou de falar, Agayla colocou a
mão sob o queixo da garota e levantou-lhe o rosto. Recuou.
– Isso é tudo? – perguntou, levando as mechas úmidas dos ca-
belos de Kiska para trás da orelha dela. – Tudo?
Mas Kiska assentiu.
Com os lábios apertados, Agayla sacudiu as saias e levantou-se:
– Vou buscar um remédio para essa ferida no pescoço.
Ela foi para frente, desaparecendo entre as fileiras de prateleiras
salpicadas de pequenas gavetas contendo uma variedade infinita de
ervas.
Kiska cochilou no calor do grosso cobertor e das chamas do fogo
que ardia em uma pequena lareira na parede do fundo. Sombras
tremeluziam sobre ela enquanto Agayla se movimentava na parte da
frente da loja. Kiska ouviu o barulho de gavetas se abrindo e de fras-
cos de vidro batendo uns nos outros. Acima de sua cabeça havia
cestas de arame penduradas nas vigas, como cachos de frutas. Raí-
zes secas, folhas e plantas inteiras pendiam como mãos. Fileiras de
armários de parede subiam até o teto, contendo centenas de gave-
tas finas etiquetadas com tiras de pergaminho amarelo. Ao longo
dos anos, Kiska havia olhado quase todos os cubículos, cheirando e
estudando as pimentas secas, flores em pó, raízes, bulbos, folhas e
caules em conserva de álcool e vinagre – e todos os tipos de fluidos
bizarros – em garrafas, barris, decantadores, frascos, presas de
marfim seladas com cera e até chifres, alguns de tal tamanho que a
faziam imaginar de que tipo de animal poderiam ter saído.
Agora, a miscelânea de aromas exalava acima dela, mais forte
que nunca. Pela primeira vez desde que pisou nas docas, Kiska ali-
viou a tensão reprimida de seus membros e permitiu-se relaxar.
Agayla voltou carregando uma bandeja com uma bacia grande e
panos dobrados. Suas saias varriam o chão. Ela havia arregaçado
as mangas da blusa e amarrado os longos cabelos negros. Deixan-
do a bandeja, ela tirou uma chaleira do fogo e derramou água fer-
vente na bacia. Pétalas flutuavam e rodopiavam na água.
Imperiosa, Agayla levou para trás a testa de Kiska e começou a
limpar-lhe o pescoço, como se fosse uma criança suja de lama.
Kiska estremeceu de novo.
– Agora – começou Agayla –, o que você andou balbuciando é
muito confuso, mas acho que posso resumir: parece que você enfi-
ou o nariz onde não foi chamada e quase levou uma mordida. E
com razão.
– Tia!
– Sshhh, querida. Escute-me. O assassino estava certo. Nada do
que está acontecendo diz respeito a você. Quanto a Oleg, ele nunca
deveria ter falado com você. Francamente, estou muito desapontada
com a falta de discernimento dele.
Kiska empurrou para longe a mão de Agayla.
– Você sabe quem ele é? Era?
Agayla levantou o queixo de Kiska.
– Sim. Eu sei quem ele foi há muito tempo.
– Então, e o…
Kiska tentou se levantar, mas Agayla a manteve no lugar:
– Sente-se! – ordenou. E acrescentou mais suavemente. – Por
favor, sente-se.
Muda de susto, Kiska sentou-se de novo. Agayla sempre havia
sido autoritária, mas raramente com Kiska.
Agayla suspirou e secou a própria testa.
– Desculpe, esta é uma noite difícil para todos nós. Eu… – ela se
calou, tentando escutar.
Lentamente, virou-se para frente.
Kiska ouviu também. Garras arranhando a pedra, de um jeito es-
tranhamente alto. E a seguir, algo ofegante bufava na porta. Houve
um momento de silêncio, quebrado pelo latido de gelar o sangue.
Kiska levou as mãos aos ouvidos. Agayla levantou-se imediatamen-
te com as mãos erguidas. E então, o grito foi diminuindo conforme a
fera se afastava.
Kiska tentou engolir em seco. Por Burn, o Preservador! Seria
aquele que a havia seguido? Estava seguindo seu cheiro? Ela olhou
para Agayla. A tia estava pálida. As mãos, erguidas, tremiam. Kiska
não podia acreditar em seus olhos; aquela mulher, que parecia não
temer nada, estava apavorada.
Kiska estendeu a mão e tocou-lhe o antebraço surpreendente-
mente gelado, sussurrando:
– Agayla, conte-me o que está acontecendo.
Pestanejando, como se voltasse de algum lugar distante, Agayla
franziu os lábios. Observou Kiska, e a seguir deu um sorriso tenso.
– Muito bem. Vou lhe contar uma história, mas só se você pro-
meter seguir meu conselho. Promete?
Kiska hesitou. Ela não tentaria lhe pedir algo que ela não pudes-
se cumprir, não é? Agayla sempre havia sido severa, mas nunca ir-
racional. E ela sempre parecia tão bem informada sobre tudo… Para
descobrir todos os segredos, Kiska assentiu.
– Ótimo.
Agayla levou a cabeça de Kiska para trás e voltou a secar a feri-
da. Dessa vez ardeu, e Kiska encolheu-se.
– Você conhece as lendas sobre o Imperador: Dançarino, seu
parceiro e guarda-costas; Surly, criadora dos Garras e agora regen-
te imperial; Dassem, Espada do Império; Tayschrenn e todos os ou-
tros. Bem, agora vou lhe dar uma versão que nunca deverá ser re-
petida.
Agayla segurou firme o queixo de Kiska por entre as mãos e lan-
çou-lhe um olhar de advertência. Kiska assentiu de novo.
– Ótimo. A Espada do Império foi quebrada justamente este ano,
ao norte de Sete Cidades. Você ouviu falar sobre isso?
– Ouvi rumores que vieram com o exército.
– Bem, a quebra da Espada deixa Surly mais perto na linha de
sucessão. Dassem e as outras duas Espadas que sobreviveram à
batalha morreram naquela noite. Alguns dizem que a mão de Surly,
ou a garra dela, esteve nessa quebra e nessas mortes, mas não im-
porta. Talvez você não saiba que, ultimamente, Kellanved e Dançari-
no têm sido vistos cada vez menos. Ouvi dizer que estão absortos
em suas próprias pesquisas arcanas. Os generais imperiais, gover-
nadores e punhos têm se queixado a Surly que Kellanved está negli-
genciando seus deveres. Sem dúvida, os Garras agitam as bandei-
ras do descontentamento enquanto eliminam a concorrência, os Ta-
lons. Muitos dizem que Kellanved e Dançarino estão mortos, consu-
midos por um experimento sobre a natureza dos Warrens que deu
errado. Oleg julgava saber a verdade sobre isso. De qualquer ma-
neira, surgiu uma profecia que dizia que Kellanved voltaria para a
ilha de Malaz, onde tudo começou, há muito tempo. E eis que, al-
guns anos depois, uma Lua Sombria chega a Malaz. Então, vários
partidos e interesses reuniram-se nos apertados confins desta ilho-
ta, apostando que o futuro do Império tomaria um rumo radical nesta
noite de hoje. Como se as coisas já não fossem suficientemente pe-
rigosas com uma Lua Sombria… e todo o resto.
Agayla espremeu o pano sobre a bacia. Kiska endireitou o corpo
e disse:
– Isso é praticamente o que Oleg disse, que ele estava vindo –
mas ela se lembrou de outra coisa. – Oleg disse que ele ia reivindi-
car o Reino. Mas o que a Casa Morta tem a ver com as Sombras? O
que o velho quis dizer?
Tudo parecia tão tolo naquele momento. Transubstanciação, se-
pultamento… até Edgewalker reconhecera aquilo. E quem, e o que,
era ele, afinal? E o enigma de Oleg? Pura bobagem: sua vitória se-
ria selada pela derrota.
Kiska olhou fixamente para sua tia:
– E todo o resto?
– Oleg Vikat – prosseguiu Agayla, preparando uma bandagem
branca. – Um ex-acólito de Hood e um estudioso teúrgico. Afirma ter
descoberto uma compreensão basilar dos Warrens, e até mais que
isso – ela suspirou. – Um maluco, talvez. Mas o próprio Alto Mago
Imperial, Tayschrenn, reconheceu certa lógica bizarra assombrando
o emaranhado de suas teorias. O homem anda escondido nas últi-
mas décadas – ela balançou a cabeça de novo. – E pensar que ele
temia a morte pelas facas dos Garras…
– O homem de cinza não era um Garra enviado para silenciar
Oleg?
Agayla levantou-se para pôr o curativo no pescoço de Kiska. Do-
brou-o, apertado, por trás.
– Não, querida. Ele era um cultista. Um adorador do Warren das
Sombras. Todos assassinos. Eles estão aqui também, reunidos para
sua adoração e ritos de sangue, sob a Lua Sombria.
Kiska tocou o pano áspero do curativo. Quando engolia, ficava
quase apertado demais.
– Sim… ele disse que ia me mandar para seu Mestre. Mas, e as
outras coisas? As sombras mutantes, as outras visões?
Dando de ombros, a tia deixou claro que considerava que a ex-
plicação completa extrapolava o próprio conhecimento.
– Você viu essas coisas simplesmente porque hoje, dentre todas
as noites, cada portal, cada portão, cada problema entre os War-
rens, enfim tudo isso abrirá uma fresta. Cada fantasma, cada alma
penada ou deus pode tocar o mundo, mesmo que de forma tênue.
Até agora você teve uma sorte extraordinária em seus encontros,
em vista de onde se intrometeu, é por isso… – Agayla parou de fa-
lar, secando as mãos. – Bem, podemos falar sobre isso depois.
Ela se sentou ao lado de Kiska, pegou suas mãos e as apertou
com uma força surpreendente.
– Entenda uma coisa: isso tudo é demais para qualquer um. Hoje
é uma noite de vingança longamente esperada e de jogadas deses-
peradas. Uma oportunidade rara para acertos de contas antigas,
quando as paredes entre este mundo e outros enfraquecem… quan-
do as sombras conseguem passar. Mas virá o amanhecer, indepen-
dentemente do que ocorra hoje. Virá, independentemente de quem
viva ou morra. Amanhã ainda haverá necessidade de especiarias e
ervas, e de agentes de inteligência intrometidos, não comissiona-
dos, que conhecem a cidade. Até mesmo o velho e gordo Subpunho
Pell provavelmente ainda vai comandar a guarnição. A vida conti-
nua, entende?
Kiska soltou as mãos e comentou:
– Eu sei onde você quer chegar. Mas não posso ficar aqui. De
novo não. Não depois das rebeliões.
Agayla apertou os lábios.
– É bem provável que eu tenha salvado sua vida, minha criança.
– Eu não sou criança. Não vou ficar trancada nem hoje, nem
nunca. Não posso. Eu ficaria louca. De qualquer maneira, estou en-
volvida nisso. Tenho uma mensagem a entregar.
Bufando levemente, Agayla acenou com a mão.
– Predições insanas de um tolo egoísta, faminto de poder!
Dito daquela forma parecia ridículo, mas aquela criatura antiga,
Edgewalker, as aceitava. Kiska respeitava Agayla estritamente.
Quanto realmente sabia sobre ela? Ela a chamava de tia, embora
não houvesse nenhum laço de sangue entre elas. Às vezes, parecia
que metade das pessoas na ilha a chamavam assim. Durante a exe-
cução do decreto da regente contra magia, Agayla havia feito o me-
lhor para mantê-la em casa, mas Kiska conseguira sair na maioria
dos distúrbios. Somente no pior, durante as prisões indiscriminadas
de qualquer pessoa suspeita de possuir o Talento, ela a mantivera
trancada no andar de cima.
Que noite havia sido aquela! Ela chorara, implorara à mulher,
tentara forçar as janelas, mas as encontrara, de algum modo, imu-
nes a seus socos. Tivera que se contentar em observar e ouvir pela
janelinha superior. Quem poderia saber que o barulho dos incêndios
podia ser tão alto? O rugido das chamas, o crepitar de ventos arden-
tes em forma de tornado… o fedor de carne queimada; os gritos.
Homens e mulheres atacando para todo lado nas ruas escuras. E as
explosões – magia! Mais tarde, ela espiara do topo da escada, en-
quanto Agayla, na porta, enfrentava uma multidão de soldados re-
beldes. O líder dissera bruscamente: você está presa, bruxa maldita!
A túnica e o casaco cinza dele pareciam pretos de tão novos. Era
um recruta da Marinha imperial. Agayla apenas cruzara os braços.
Kiska havia imaginado o duro olhar de reprovação. Um olhar que
parecia capaz de derreter pedra.
O soldado apressadamente levantara a mão contra o mau-olha-
do e sacara sua espada.
– Você ia me amaldiçoar! – rosnara ele.
Outro soldado o empurrara de lado. Ele também usava uniforme
cinza, mas largo, frouxo, puído e desbotado. Kiska captara o lampe-
jo de listras prateadas regimentais e de campanha no peito dele. Era
um veterano imperial.
– Há um monte de magos da cera e vendedores de poções do
amor por aí – dissera Agayla a esse. – Vocês não vão me atormen-
tar, não é, sargento?
O soldado tirara suas luvas e as batera contra a capa. Um pó
vermelho ferruginoso subiu do tecido. Poeira ocre! As areias das Se-
te Cidades ainda estavam endurecidas no manto daquele homem?
O veterano e Agayla entreolharam-se. Depois de um instante, ele
cuspira para o lado, murmurando:
– Nós temos cinco magos em nosso quadro, para quando a coi-
sa aperta.
– Vá em frente, chame-os. Mas pense em sua missão aqui, Sar-
gento. Seria treinar esses homens, ou perdê-los?
O soldado bufara e dissera em voz baixa:
– Treiná-los o caralho.
Inclinara a cabeça com o elmo para Agayla e acenara para a tro-
pa de soldados:
– Mexam-se, seus bostas inúteis.
Aquele que havia sido deixado de lado erguera a espada:
– Mas, Aragan, ela é uma deles. E disseram que ela…
Ele se aproximara do sargento, sussurrando algo.
Kiska julgara ter ouvido a palavra rica. O veterano tirara a espa-
da do homem e batera a parte plana da lâmina no ombro do sujeito.
O homem gritara e sumira do campo de visão de Kiska.
O sargento gritara para ele:
– Eu mandei começarem a se mexer! Malditos inúteis.
Ele virou-se para Agayla, apontando-lhe o dedo.
– Você – ordenara o sujeito –, mantenha essa maldita porta fe-
chada, ou vou voltar aqui e arrastá-la para fora pelos cabelos.
Agayla inclinara a cabeça gentilmente.
– Sim, sargento. Farei isso.
Quando Agayla voltara ao andar de cima, Kiska dissera-lhe que
nunca a perdoaria por trancá-la em casa no dia mais emocionante
que já havia presenciado. Agayla apenas arqueara a sobrancelha e
dissera:
– Emocionante?
E agora, ali estava ela, mais uma vez na casa de Agayla, em ou-
tra noite similar. Mais uma vez, ela entregara-se à proteção – e ao
julgamento – daquela mulher.
Kiska limpou a garganta:
– É isso que eu venho desejando por toda a vida. Por favor, dei-
xe-me fazer alguma coisa.
Ela desviou os olhos, sem se atrever a fitar Agayla, com medo
de parecer uma criança mimada. No ar que pairava sobre a bacia de
água ela viu uma ondulação de vapor. Vapor?
Agayla permaneceu em silêncio.
– Tia, o que é isso?
Agayla olhou para baixo. Ficou imóvel, e a seguir, sussurrou:
– Meus deuses…
Aquilo que momentos antes havia sido uma bacia de água quen-
te era agora um hemisfério congelado de vapor de gelo ao lado do
fogo. Kiska disse baixinho:
– O que está acontecendo?
Com uma expressão rígida no rosto, Agayla levantou-se. O teci-
do de suas saias sussurrou quando ela se dirigiu a uma velha mesa
abarrotada de rolos de pergaminho.
– Muito bem – disse ela bruscamente –, tenho que admitir que
prefiro mantê-la aqui contra sua vontade – ela olhou por cima do
ombro e disse: – Mas você nunca me perdoaria, não é?
Kiska apenas balançou a cabeça, lutando contra um sorriso e a
vontade de se jogar aos pés da mulher.
Agayla fungou e tirou um pergaminho de um cubículo.
– Sim, todos esses anos ansiando por ação, abandonada neste
recanto esquecido do Império, e agora você tem isso e muito mais
do que você ou eu esperávamos, imagino – ela rabiscou uma men-
sagem em uma folha amarela. – Já que tem que fazer alguma coisa,
ou nunca se perdoaria… ou me perdoaria…, vou lhe dar algo para
fazer.
Ela enrolou o pergaminho, selou-o com uma gota derretida de
vela e pressionou um anel na cera.
– Muito bem – ela acenou, chamando Kiska –, venha aqui. Ago-
ra, leve isto ao homem que você chama de alvo. Faça o que ele dis-
ser depois que o ler, está bem?
Kiska enfiou o pergaminho dentro da camisa.
– Sim, tia. Muito obrigada. Mas, quem é ele? Onde ele está?
Agayla ignorou as perguntas.
– Ele não gostaria se eu lhe dissesse. Mas se há alguém que po-
de cuidar de você hoje, é ele. Você vai encontrá-lo em algum lugar
entre esta casa e o Forte de Mock. E, menina, se ele chegar ao For-
te antes que o alcance, não entre lá. Prometa!
– Sim, tia, eu prometo.
Ela abraçou Agayla, inalando seu aroma de especiarias.
– Minha criança – alertou ela, afastando-se –, talvez você não
me agradeça mais tarde. Eu prefiro que você fique. Mas, se de algu-
ma forma se enroscou em tudo isso, não devo interferir.
Kiska assentiu, ajeitou a camisa, o colete e a capa. Tocou caute-
losamente o curativo no pescoço e descobriu que a dor havia desa-
parecido.
Agayla tomou uma das mãos de Kiska, que ergueu os olhos e se
surpreendeu com o modo como a mulher a observava, com olhos
calorosos, mas com um toque de dureza.
– Existem coisas lá fora que a esmagariam sem contemplações.
Se você encontrar um desses animais, fique parada como se fosse
qualquer animal selvagem normal. – Agayla respirou lentamente. –
Assim, ele deve ignorá-la.
Agora que estava livre para sair sob aquela lua, Kiska ficou imó-
vel. Aquele uivo… as garras raspando as pedras… O medo voltou.
Ela se aventurou, com voz fraca:
– Sim, tia.
– Ótimo. Agora, antes que vá, vou preparar algumas coisas para
você.
E dirigou-se à frente da loja.
•••
Temper carregava Coop nos ombros, fazendo arrastar suas botas
atrás deles, deixando duas trilhas paralelas na lama. Um dos braços
musculosos do cervejeiro estava rígido apoiado no pescoço de Tem-
per. O outro Temper segurava com a mão esquerda, e na direita,
uma das maiores facas de cozinha de Sallil. Coop era um homem
pesado, mas Temper ignorava o peso, concentrando em observar a
rua Back e pisar com cuidado no beco coberto de lixo. O luar brilha-
va, ondulando e mudando conforme as nuvens o encobriam. O ca-
minho parecia vazio.
Com os joelhos flexionados, ele adentrou o beco. O corpo largo
de Coop raspava nas paredes de ambos os lados, até que chega-
ram à rua. Ele parou diante da primeira porta à direita: a casa de Se-
al.
– Seal! – chamou, tentando abafar o som. – Abra, Seal.
Um uivo trovejou na cidade, parecendo eclodir de todos os becos
e ruas. Temper perdeu o equilíbrio e quase deixou Coop cair.
– Que Hood o leve!
Grunhindo pelo esforço, Temper levantou um pé e chutou a por-
ta, que se abriu, fazendo o batente se estilhaçar. Entrou, largou Co-
op, e depois recolocou a porta no batente. Brasas brilhavam em
uma lareira de pedra em uma das paredes, mas afora isso, a única
outra fonte de luz era o luar que entrava pela porta quebrada. Ele
viu uma cadeira e a chutou para calçar a porta.
– Não se mova! – ordenou uma voz atrás e acima dele.
De frente para a porta, Temper ficou imóvel, levantando os bra-
ços na lateral do corpo.
– Sou eu, Seal, Temper.
– Vire-se!
Temper virou-se, apertando os olhos. No escuro, ele podia ape-
nas imaginar Seal parado no topo da escada vestindo um camiso-
lão. Ele segurava alguma coisa; uma enorme besta que equilibrava
no parapeito do andar de cima.
– Sou eu, caramba! – rosnou Temper.
Seal não se mexeu.
– Sim, estou vendo. Você tem uma faca. Corte-se.
– O quê?
– Corte-se. Na mão, onde eu possa ver.
– Eu não tenho tempo para…
Seal apontou a besta.
– Ande logo.
Coop gemeu ali onde jazia, agitando-se lentamente.
Temper apertou os dentes, e a seguir pressionou a lâmina afiada
da faca de cozinha na carne da base de seu polegar. O sangue jor-
rou, escorrendo por sua mão e antebraço. Ele levantou o polegar di-
lacerado.
– Está vendo?
Seal grunhiu e deu alguns passos, com a besta ainda apontada.
De perto, Temper viu que a arma era uma antiga balestra de arco
usada para cercos. Uma das mais pesadas e feias armas de tiro do
Império. Seal mal conseguia segurá-la na vertical e a apoiava no
corrimão. Temper lutou contra o impulso de dar um pulo para o lado,
com medo de um disparo acidental. Se isso acontecesse, ele e a
porta sofreriam grandes buracos.
– Cuidado… – disse, suspirando e sentindo um nó no estômago.
Seal pareceu surpreso. A seguir, olhou para a arma e a baixou.
– Desculpe.
Não estava carregada. Temper soltou um suspiro e balançou a
cabeça. Ele deveria ter notado isso.
Seal largou a besta sobre uma mesa e ajoelhou-se ao lado de
Coop.
– Ele está ferido?
– Não – Temper riu. – Só morrendo de medo.
Indo em direção à lareira, Seal jogou um pedaço de madeira nas
brasas e acendeu uma lamparina.
– O que aconteceu?
Temper observou a rua pela porta escorada.
– Deixe que ele lhe explique quando chegar. Eu não tenho tempo
– virou-se, indagando: – Você ainda está com meu equipamento?
Seal assentiu. Os longos cachos soltos dos cabelos pretos derra-
maram-se para frente, sobre seu rosto. Ele apontou para os fundos.
– Na despensa.
– Certo.
Temper passou por cima de Coop.
– Espere, caramba – disse Seal, acenando impotente para Coop.
– Ajuda-me a levá-lo até um banco.
Com um suspiro, Temper afastou uma mesa para o lado. Pegou
o homem inconsciente pelos ombros, enquanto Seal o pegava pelos
pés. Juntos, deixaram-no sobre um dos vários bancos encostados
nas paredes da sala. Dispensando Temper, Seal começou a desa-
marrar o avental de Coop.
Temper acendeu outra lâmpada a óleo.
– Por que o corte?
Seal estava inclinado sobre a cabeça de Coop, examinando-lhe
os olhos.
– O quê?
Temper levantou o polegar manchado de sangue.
– Minha mão. Por que você me fez cortar a mão?
Seal levantou a cabeça e sorriu.
– Fantasmas não sangram, Temper.
– Aquela maldita besta não seria muito útil contra uma sombra.
Seal deu de ombros.
– Bem, eu não consegui carregá-la mesmo.
– Pelas presas de Fener, Seal! Você precisa se organizar.
Quando chegou à porta da despensa, Temper julgou ouvir uma
voz de mulher chamando Seal, e o médico respondendo.
Na despensa, atrás de um baú de viagem, ele encontrou o paco-
te com as posses que não se atrevia a guardar em seu quarto. Esta-
vam embrulhadas em uma grande lona. Ele colocou o embrulho so-
bre o baú e começou a desafivelar os dois cintos de couro que o
prendiam. Jogando para trás a lona oleada, ele pegou duas espadas
embainhadas. Pendurou-as nos ombros, deixando as lâminas pen-
dendo nas costas. E de cada lado dos quadris, curtos punhais de
combate sem ponta.
Ele tateou atrás do baú de viagem de novo e pegou outro paco-
te, do tamanho de uma cabeça. Segurando-o na mão, foi removen-
do o couro macio. Um elmo o encarou. Era de aço enegrecido, com
uma touca de malha de ferro que parecia renda esfarrapada, e um
protetor de pescoço articulado. A fenda para os olhos, em forma de
T, e os protetores laterais, olhavam para ele como um fantasma do
passado: a cabeça decepada de seu alter ego. Temper prendeu a
respiração; durante tanto tempo não se atrevera sequer a olhar para
aquilo. Encontrou as manoplas encouraçadas ainda com o formato
das mãos no espaço interno almofadado. O fedor de suor, óleo, e –
supôs ele – sangue era marcante. Era quase possível ouvir o cho-
que e os gritos de batalha. Chacoalhou a cabeça, afastando os reta-
lhos de memória, e enfiou o elmo debaixo do braço. Pegando o lam-
pião, riu com desdém ao observar a camisa de musselina acolchoa-
da e o colete de couro que usava. Parecia um idiota ostentando a
simples camisa acolchoada, armado até os dentes e coroado com
um elmo!
Embaixo, Coop gemia; um pano molhado cobria-lhe o rosto. Seal
estava agachado em frente à lareira de pedra, alimentando um fogo
crescente. Havia uma panela preta sobre as chamas.
– Que tipo de veneno você está cozinhando? – perguntou Tem-
per, largando o elmo em cima da mesa.
Seal virou-se. O olhar foi das armas de Temper ao elmo em cima
da mesa. A resposta morreu em seus lábios. Ainda olhando tudo
aquilo, sacudiu-se.
– Só um pouco de sopa de cevada. Estou com fome.
Temper sentiu os próprios olhos seguindo a mesma direção. O
elmo parecia um troféu macabro. Ele limpou a garganta e indagou:
– Seal, por acaso você não teria uma armadura por aqui?
Cutucando as brasas, Seal bufou.
– Você não está pretendendo sair de novo, não é?
Temper respondeu, irritado:
– Sim.
– Seja o que for, não pode ser tão importante, Temp.
– Eu nem sei se é, mas tenho que descobrir.
Seal ergueu o braço, apontando para um baú de ferro encostado
na parede oposta.
– Era do meu tio-avô, das guerras de fronteira Grist-Khemst, há
muito tempo. É tudo que eu tenho.
Temper destrancou e abriu o baú.
– Pelos dentes de Togg! – suspirou.
Dentro havia um amontoado de embrulhos, sacos, pedaços e
restos de armadura: amostras de malha de ferro, grebas, braços de
couro fervido articulados com argolas de aço. Dentre esse emara-
nhado, ele encontrou uma couraça com escarcela tão comprida, que
podia cobrir-lhe até os joelhos. Consistia de um peitoral e um dorsal
com ombros e cintas laterais, e ásperas mangas escamadas. A ves-
te interna, de couro quase tão grosso quanto seu polegar, amaciada
por anos de uso, sustentava camadas misturadas de malha de ferro,
pedaços de ossos, pregos e aço horizontal, com nervuras na frente
e atrás. Anéis de ferro entrelaçados haviam sido costurados da cin-
tura para baixo e sobre a escarcela de couro. Temper levantou-a,
assobiando. Quem quer que houvesse carregado aquilo no campo
de batalha era um touro em forma de homem.
Temper examinou as correias.
– Eles não sabiam que a ponta fica para cima?
– Eles não davam muita atenção aos detalhes no norte naquela
época.
Temper assentiu, pensando em tudo que havia ouvido falar das
guerras sangrentas entre os nobres menores Gristan e sua confu-
são de principados, protetorados, baronias e alodialidades. Ele ha-
via entrado em serviço muito tempo depois de o imperador os ter
embolsado como moedas sem valor.
Ele olhou para Seal.
– Posso usar isto?
Seal acenou, querendo dizer “fique à vontade”.
Temper tirou os cinturões de armas e começou a ajeitar a coura-
ça. Enquanto trabalhava, Coop soltou um gemido, e a seguir, afas-
tou o pano molhado do rosto e levantou a cabeça. Pestanejou,
olhando para Temper.
– O que aconteceu? O que você está fazendo?
– Vou atrás daqueles ladrões, Coop.
Temper levantou a escarcela de baixo e começou a vesti-la.
– Ladrões? Mas, Trenech… ele, e depois ele…
Coop gemeu de novo e fechou os olhos.
– Que Burn nos preserve.
Seal arqueou a sobrancelha, murmurando:
– Ladrões?
Temper deu de ombros. Estava lutando com as fivelas laterais, e
por um minuto Seal ficou só observando. A seguir, atravessou a sa-
la, afastou as mãos de Temper e habilmente começou a ajustar as
tiras de couro. Temper observava-lhe os dedos hábeis.
– Você já fez isso antes! – caçoou.
Seal ergueu os olhos, com os lábios apertados, e a seguir voltou
ao trabalho. A raiva nos olhos fez Temper se espantar.
– Normalmente eu desmonto as armaduras. E, em geral, o sol-
dado está deitado, cuspindo sangue e sem um membro ou dois.
Temper engoliu em seco ao ouvir o tom amargo, mas não disse
mais nada enquanto Seal ajustava a couraça da melhor maneira
possível. Quando acabou, Seal deu um tapinha nas costas de Tem-
per e retrucou no mesmo tom amargo:
– Aí está. Pronto para a Legião de Ferro agora.
– Obrigado – disse Temper, sem se importar se Seal havia se
ofendido.
No entanto, de seu jeito peculiar, Seal havia tanto elogiado quan-
to criticado a Legião de Ferro, pois, embora houvesse sido um regi-
mento de infantaria pesada de elite, havia sido aniquilada durante a
invasão de Kellanved ao então independente Reino de Unta.
Fosse o que fosse que Seal havia visto ou vivido durante sua
carreira de médico do Exército Malazan, devia ter sido de cortar a
alma para ter deixado tanto escárnio em alguém ainda tão jovem.
Quando Temper chegara, conhecera o jovem erudito no Enforca-
do, e muitas vezes haviam conversado. Mas embora Seal pareces-
se ansiar pela companhia, também parecia impaciente, condenando
tudo que Temper dizia. O jovem também havia se viciado na entor-
pecente papoula D’bayan durante as viagens com o exército. Esse
hábito enojava Temper. Uma vez eles discutiram, e Seal deixara de
procurá-lo.
Temper contara com que Seal estivesse consciente hoje, mas
quase esperava encontrá-lo insensível, embalsamado em uma sufo-
cante nuvem de fumaça ictérica, sorrindo como um idiota enquanto
a cidade ia para os braços de Hood ao seu redor.
Seal afastou-se da mesa, recuando diante do elmo. Subitamen-
te, riu.
– Acho que amanhã vão clamar por meus serviços. Ricas viúvas
trêmulas precisando de vapores para acalmar os distúrbios do siste-
ma nervoso para diagnosticar.
Olhou rapidamente para Temper e encarou Coop.
– Não deixe que nada lhe aconteça, senão não vai poder me pa-
gar.
E deu um sorriso amargo, autodepreciativo.
Temper enfiou o elmo debaixo do braço.
– Desculpe pela porta.
Olhos fechados, Seal deu de ombros.
– Acho que vai ficar aberta a partir de agora. Passe por aqui de-
pois para me mostrar o que sobrou de você.
Temper ergueu a porta para o lado.
– Farei isso.
E fez uma saudação – o velho punho Imperial no peito.
– Obrigado pela armadura, e fique longe desse fumo maldito.
Suspirando, Seal respondeu à saudação.
Temper correu até a rua Back, em direção à ponte Old Stone,
perto da boca pantanosa do rio Malaz. A três quadras do Enforcado,
ele chegou a uma poça escura nos paralelepípedos, em volta de
uma pilha de vísceras. Parou e tentou escutar. A noite era ainda si-
lente. A arrebentação gemia estranhamente muda, enquanto o ven-
to soprava e sussurrava. Nas ruas circundantes não havia outro si-
nal de violência. Ele se agachou, olhou mais de perto. Vísceras hu-
manas exalavam vapor no ar úmido. Aquilo era o que restava de
Bell, o último guarda no Enforcado? Havia sido trabalho de um cão?
Parecia mais o ataque de um gato predador, como os pumas das
planícies Seti, ou o leopardo das neves de Fenn Ranges, em Quon
Tali, ao norte. Aquele maldito latido ainda se ouvia, como se rever-
berasse de um animal do tamanho de um Bhederin.
Temper levantou-se; olhou para a face carrancuda do Forte de
Mock, situado acima como um escuro cúmulo-nimbo. Nenhuma luz
brilhava, nenhum fogo queimava ao longo das paredes. Era como
se a fortaleza fosse sem vida, como uma cripta. No entanto, Temper
tinha certeza de que encontraria as respostas para os mistérios da-
quela noite escondidos dentro de seus salões. Pelo menos era o
que esperava; ele não tinha mais ideia de onde procurar. Saiu cor-
rendo em direção ao centro da cidade.
Kiska havia esperado à porta de Agayla, encerrada em um abra-
ço que parecera eterno. Soltando-a, por fim Agayla se afastara, ain-
da segurando as mãos de Kiska enquanto ela fitava a escuridão.
Por um momento aterrorizante, Kiska pensara que Agayla a proibiria
de sair. Ela revivera a visão mal-assombrada de si mesma, desper-
diçada naquela ilha remota, andando em círculos por suas margens
estreitas. Mas no instante em que a velha murmurara “Que Burn a
acompanhe”, os pensamentos de Kiska ficaram livres para voar na
noite. Ela acenara em despedida, mas sua mente já estava no Es-
treito de Cutter, o principal corredor norte-sul que dividia a cidade
velha da nova.
Agora, agachada nas profundezas da sombra de uma chaminé,
com os dedos agarrando as bordas das telhas molhadas e de cos-
tas para o tijolo quente, ela olhava as ruas desertas. Dali, a cidade
parecia morta – todas as janelas fechadas, panos pendurados para
disfarçar qualquer sinal de vida. A lua olhava para baixo de soslaio,
como um olho zombeteiro.
Ela apertou a besta sobre os joelhos, tentando obter segurança
com seu peso e resiliência. Naquela noite, pouquíssimas pessoas
estavam nas ruas, e ela já não sabia onde estava. A experiência a
abalara profundamente. Era como se de repente estivesse em outra
cidade. Não sabia que direção tomar nem como voltar. No entanto,
as ruas possuíam uma familiaridade estranha. Aquela parecia ser
perto de onde ela havia corrido durante os distúrbios que eclodiram
em resposta à proibição da regente contra a feitiçaria.
Fora na primeira noite do protesto, antes que a mera multidão
dispersa se transformasse instantaneamente em saques, incêndios
e extorsão; antes que Agayla a trancasse. Ela havia visto nos telha-
dos os soldados inexperientes correndo com selvageria, embriaga-
dos com seu novo poder, comportando-se como ladrões do cais. Os
poucos veteranos pareciam incapazes de contê-los – ou não queri-
am fazê-lo. Ela voltava, enjoada, por um caminho nos telhados, cui-
dadosamente afastando-se do pior dos ataques a lojas e incêndios
rugientes, quando um grito chamara sua atenção dentro dos limites
de um beco escuro. Três soldados atacavam um velho grisalho e
magro. Um pescador, pela aparência da camisa surrada e das cal-
ças engorduradas. Rindo, eles lhe davam socos e pontapés enquan-
to ele tentava recuar no beco. A visão a enfurecera, e sem pensar,
ela arrancara a maior telha que pudera encontrar e a soltara no
meio dos soldados.
Um homem caíra imediatamente, acertado pela cerâmica pesa-
da. Seus amigos gritaram de espanto e saíram correndo do beco. O
velho cambaleara. Kiska correra para um canto do telhado, sobre
uma janela gradeada, e descera. Dali, segurando-se nas grades da
janela, colocara os pés em cima de uma cerca e descera para o pa-
vimento coberto de lixo.
O soldado estava atordoado, talvez até morto. Seus amigos havi-
am desaparecido. Ela procurara o velho, mas não encontrara sinal
dele. Ele devia ter fugido enquanto ela descia. Balançando a cabe-
ça, virou-se para ir embora, mas descobrira que os outros dois sol-
dados não haviam fugido para tão longe quanto ela esperava. Eles
bloquearam a única saída – a menos que ela tentasse subir de no-
vo. E ela achava que não lhe dariam tempo para isso.
Ela ouvira passos raspando as pedras atrás de si e virou-se de
costas para o muro. Era o soldado caído, já em pé. Ele tinha man-
chas de sangue em um lado do rosto e o elmo de couro torto. A fúria
brilhava em seus olhos fixos e escuros.
As mãos de Kiska voaram para as facas, mas o soldado prende-
ra-lhe os braços ao lado do corpo com um abraço de urso esmaga-
dor.
– Venham, rapazes! – gritara ele, rindo.
Ele colara o rosto manchado de sangue contra o dela em busca
de sua boca, sussurrando com voz rouca:
– Fizemos uma ótima troca.
Ele pegara os dois pulsos dela e os segurara com uma só mão.
A outra mão levara até o peito dela, rasgando o laço de sua camisa
sob o colete. Seus amigos gritavam, estimulando-o, enquanto ao re-
dor ouvia-se o rugido da multidão nas ruas.
Kiska ficara paralisada quando se dera conta do horror de sua
posição. Como podia ter se metido naquilo? Ela quase abrira a boca
para implorar, mas lembrara-se do treinamento de Agayla. Com os
braços presos, ela levara a cabeça para trás o máximo que pudera,
e então, batera-a na testa do soldado com toda força. Ele gritara,
soltara-a e saíra cambaleando. Ela pestanejara para conter as lágri-
mas. As estrelas ofuscavam-lhe a visão.
– Sua vadia! – ele se aproximou, rosnando.
A voz era quase inaudível em meio aos gritos e berros dos en-
frentamentos ao redor. Kiska se segurara na barra de aço, liberando
a faca da bainha. Balançara a cabeça, piscara para conter as lágri-
mas e atacara com o pomo do punhal. Acertara o homem do lado
ferido da cabeça, e ele caíra sem emitir som algum.
Na entrada do beco, um de seus amigos gritara:
– Puta maldita!
Movendo-se rapidamente, ele se aproximara dela com os braços
abertos para impedi-la de passar.
Ela observara a aproximação, espantada. Ele realmente pensava
que ela havia tentado fugir? Será que o tolo não via o rumo que as
coisas haviam tomado? Que ele e seu amigo é que deveriam fugir?
Ela se encolhera, como se estivesse apavorada, e o sujeito imedia-
tamente avançara. Ela lhe chutara a virilha. Ele curvou o corpo de
dor, enquanto o fôlego explodira com um som sibilante. Ela invertera
o punhal e batera na têmpora do soldado, que tombara. Kiska er-
guera os olhos para ver o soldado que sobrara. Ele estava parado, e
o brilho das tochas recortava-lhe a silhueta na boca do beco. Eufóri-
ca, ofegante, Kiska provocara-o com um aceno. Venha ver o que vo-
cê vai ganhar. E ele fugira como um coelho assustado.
Ela se sentara pesadamente na imundície do beco. O ruído da
rebelião parecia recuar, junto com seu brilho laranja e amarelo.
Sentira os membros tremerem, e ela se inclinara, vomitando.
Limpara a boca com o braço. Pelo abraço de Burn! Por pouco, não
teria valido a pena – e pelo quê, afinal? Por salvar um velho sendo
chutado? Ela se sentara um pouco, enjoada e com raiva de si mes-
ma, e a seguir, levantara-se. Embainhara os punhais e subira a cer-
ca. E prometera a si mesma que aquela havia sido a última vez que
arriscava seu pescoço por alguém.
No entanto, ali estava ela, no meio da noite, com a pele arrepia-
da de medo. A cidade parecia mudar diante de seus olhos. Sombras
moviam-se. Ruas e edifícios desconhecidos surgiam e imediatamen-
te se dissipavam e reapareciam em outro lugar. Até os sons da noite
pareciam distorcidos. Onde estava a arrebentação? Kiska havia
crescido naquele porto, e não podia se lembrar de um único dia sem
o pulso firme do mar. Agora, ele havia desaparecido. Em qualquer
outro dia ou noite, ela saberia exatamente onde estava apenas chei-
rando o ar e ouvindo a voz das ondas. Mas tudo por ali parecia dis-
torcido. Ela não conseguia ter certeza da direção em que ficava o
Forte de Mock. Como naquela noite poucos meses antes, aquilo era
mais do que ela havia pedido. Naquela noite havia sido um ataque
contra seu corpo; mas hoje, ela sentia que muito mais que sua car-
ne estava em jogo. Ela se odiava por isso, mas sentia que devia se
esconder ali até o amanhecer. Nem mesmo a possibilidade de um
cão de caça farejando seu rastro a faria sair dali.
Pestanejando, enxugando a névoa gelada do rosto, ela observa-
va as finas nuvens rodopiando e turvando a cidade como pássaros
raivosos. Faixas de vapor prata opalescente abraçavam o telhado,
disparando de repente por entre os edifícios à direita de Kiska. Ao
formar um arco para baixo, assumiram a aparência de um cão gi-
gante em pleno ataque, com as patas dianteiras estendidas. Um ins-
tante depois, um uivo ensurdecedor sacudiu as paredes e a fez dar
um salto, como se um punhal houvesse mergulhado em suas cos-
tas.
Ela gritou, e sua voz fundiu-se com as das pessoas trancadas
em suas casas abaixo dela. Ela subiu, correndo de telhado em te-
lhado, sem atentar para as telhas escorregadias molhadas pela chu-
va.
Kiska saltou para varandas do segundo andar, equilibrando-se
nas grades frágeis de madeira, e jogou-se nas saliências e gabletes
do lado oposto. Escalou pelas telhas de barro, e ouviu-as cair ruido-
samente abaixo, sobre coberturas rústicas acima dos becos, e atra-
vessou os telhados planos de tijolo e pedra dos edifícios do gover-
no. Do gablete sem graça de um edifício ela saltou por sobre uma
pista, e aterrissou sobre um templo dedicado a Fener. Com a mão
enluvada, ela se segurou na guarnição de uma calha que tinha o for-
mato de uma cabeça de javali. Grunhindo, içou o corpo até a passa-
rela de atrás e agachou-se, com as mãos nos joelhos, puxando o ar
profundamente para os pulmões em brasa.
Certamente ele não poderia segui-la até ali. Não em um recinto
sagrado. Agora ela devia estar segura. Kiska levantou a cabeça pa-
ra olhar sobre a borda de pedra. Sombras rodavam como véus varri-
dos pelo vento. Ela desviou o olhar, tonta, e levou os cabelos para
trás. Provavelmente não havia ninguém atrás dela ali embaixo, mas
quem iria esperar para descobrir?
Um homem surgiu sob um arco. Um sacerdote de Fener; tatua-
gens de presas de javali cobriam-lhe a face. Ele sorriu ao vê-la.
– Então, essa é a nossa temível invasora.
Kiska recuou na passarela.
– Espere! Fique!
Ela o ouviu aproximar-se e deu um passo e subiu em outro re-
mate de cabeça de javali, onde o vento fazia suas roupas molhadas
colarem-se ao seu corpo.
– Pelo sangue de Fener, criança, não!
Ela se impulsionou com as pernas o mais forte que pôde. As
mãos estendidas bateram contra a borda do edifício em frente. Ras-
pou um dos joelhos no revestimento de pedra e quase perdeu o
controle por causa da dor aguda. Conseguiu içar o corpo e agrade-
ceu aos deuses pela arquitetura de edificações amontoadas da cida-
de, bem como pela avareza de seus conterrâneos Malazans, sovi-
nas demais para derrubar tudo e construir tudo de novo.
Prostrada no telhado escorregadio por causa da chuva, Kiska viu
que o sacerdote ainda a observava, franzindo o rosto de preocupa-
ção. Arrastou-se para se levantar e acenou.
O velho levou as mãos à boca, e gritou em meio às rajadas de
vento:
– Vou rezar por você!
Ela acenou, agradecendo, e seguiu mancando, apesar do joelho
que queimava.
A parte final do telhado fez com que ela parasse. Sugando aos
goles o ar frio da noite, ela parou bem na borda de um gablete em
um terceiro andar, com vista para a faixa de bosques e prados mon-
tanhosos espalhados pelas ruínas que todos chamavam de Roche-
dos de Musgo.
Ela estudou os telhados atrás de si. Que tola havia sido! Imagi-
nar que estaria segura em qualquer lugar ao ar livre! Pelos deuses!
Havia ali alta feitiçaria, como ela nunca sonhara ver. Era como as
histórias das grandes batalhas, quando o mago do exército Malazan
esmagara a Protetora de Heng; a quebra das defesas da lendária
ilha de Kartool; o cerco às cidades santas; ou as batalhas multitudi-
nárias de além-mar, no continente Genabackan.
Conforme o medo foi gradualmente sendo drenado e o coração
desacelerava, ela foi conseguindo controlar a respiração. O medo
transformou-se em excitação, uma descarga de adrenalina como
nunca havia sentido. Os membros vibraram e retesaram-se para
agir; ela se sentia potente, competente. Podia sentir o cheiro do po-
der lá fora, e o queria para si. Kiska estudou os estreitos terrenos de
floresta. Talvez o voo não houvesse sido tão cego quanto ela pensa-
va. Havia algo ali fora, entre as árvores. Deitou-se de bruços ao lado
do gablete. Observou durante um tempo, imóvel. O luar esfarrapado
brilhava no mato; troncos de ruscos cintilavam à luz monocromática,
como se estivessem em chamas.
E então, um movimento. O que ela havia pensado que eram
sombras de galhos chacoalhados pelo vento irregular transformou-
se em formas esvoaçando entre um abrigo e outro. Figuras de ca-
pas cinza, como fantasmas, rastejando rapidamente, aproximando-
se do maior dos morros de pedras cobertas de musgo. Por entre os
altos galhos de dois cedros um flash brilhou, e logo desapareceu;
poderia ter sido o fugaz reflexo do luar em metal polido.
Bem, os cultistas haviam seguido seu alvo antes, então, por que
não agora? Afinal de contas, quem mais poderia ser estúpido o sufi-
ciente para estar na rua em uma noite como aquela, além de ela
mesma? Kiska virou-se para procurar uma rota para baixo.
Depois de correr por uma pista e atravessar arbustos fechados,
Kiska esgueirou-se de árvore em árvore. Cerca do meio da mata,
ela tropeçou em um corpo. Quem quer que fosse aquela… cultista
das Sombras, não podia ser muito mais velha que ela. O corpo esta-
va tombado para um lado, apoiado na base de um solitário carvalho
sem folhas. Kiska ajoelhou-se para inspecionar o corpo. As vestes
eram de linho fino fiado, e pelo estado em que as roupas estavam,
Kiska imaginou que o corpo havia sido revistado. Alguém a matara
rápida e profissionalmente, com um único golpe de uma grande ar-
ma, de frente. Sangue acumulava-se no colo da garota, escurecen-
do as raízes emaranhadas das árvores debaixo dela.
De luvas, Kiska pegou um punhado dos longos cabelos cor de
areia e levantou a cabeça. Não a reconheceu. Mas isso não significa
nada, se a sociedade fosse tão secreta quanto Agayla dizia ser. Pe-
lo que Kiska sabia, a mulher poderia provir das ditas Confederações
Livres no extremo sul de Genabackis.
Deixando a cabeça pendendo para frente, Kiska vislumbrou uma
descoloração no peito da mulher. A fina túnica sob suas vestes ha-
via sido rasgada. Ela cuidadosamente abriu a dobra de pano. Uma
tatuagem apresentava-se, alta, no peito da mulher: a imagem de um
pé de pássaro cortado. Uma ave de rapina, talvez um falcão ou um
gavião. Kiska estudou a tatuagem, tentando imaginar o significado.
Agayla havia mencionado os Talons, velhos rivais dos Garras, mas
aquela era a primeira que via. A chuva, arrastada pelo vento, tambo-
rilava no chão e gotas caíam dos cabelos da mulher. Molharam a ta-
tuagem e as cores se borraram. Fascinada, Kiska esfregou-a com
dois dedos. Transformou-se em uma mistura de pigmentos.
Kiska ficou de cócoras. Muito bem. Seria algum tipo de sinal de
reconhecimento? Um passe? Por que um pé de pássaro? Pensou
nos Garras, mas conhecia o sinal deles, e não era aquele. Mais um
mistério em uma noite em que praticamente choviam mistérios. Ela
arquivou aquele na mente para posterior investigação; já havia se
demorado o suficiente.
O carvalho sob o qual o corpo repousava erguia-se de uma cavi-
dade entre dois muros baixos de pedra, enterrado em úmidas man-
tas de musgo, parecendo não mais que dois caroços paralelos. A
cultista poderia estar guardando aquela rota porque levava a um ou-
teiro de blocos que, se a memória de Kiska não lhe falhasse, devia
se situar em uma das laterais da formação principal. Observando a
mata, Kiska percebeu que a irritante sombra mutante havia desapa-
recido. A noite era silente mais uma vez. Ou os fenômenos haviam
surgido e desaparecido, ou, de alguma forma, aquela área não ha-
via sido afetada. Agachando-se e rastejando alternadamente, ela
chegou a um muro que julgava lhe oferecer uma visão das ruínas
principais. Encostou-se nele, levantou-se, verificou o arco e espiou
por cima.
Kiska viu o que buscava quase instantaneamente. Ele estava
sentado, encostado em uma pedra, com as pernas esticadas, os
braços cruzados, e o capuz puxado para trás. O longo rabo de cava-
lo preto pendia para frente, sobre um dos ombros. Erguendo o rosto
escuro e inclinado para o céu da noite, ele fez uma careta, não gos-
tando do que viu. Os quatro guarda-costas ocupavam suas posições
em torno dele: dois agachados atrás de blocos, dois em pé, apoia-
dos em pilares de pedra incrustados de vinhas e musgo. Mais adian-
te, contornando o morro antigo, esperavam formas camufladas, imó-
veis como as rochas. Cinquenta, no mínimo. Eles haviam encurrala-
do seu alvo ali, era óbvio. E agora, estavam esperando. Mas, o quê?
Embora estivesse de luvas, Kiska esfregou a mão na coxa, como
se quisesse secar o suor da palma. Sem dúvida, eles pretendiam le-
var o homem ao mestre deles, assim como haviam tentado com ela.
No entanto, pareciam estar esperando por alguém, ou algo… algum
sinal. Kiska amaldiçoou sua sorte. Ali estava ela, com seu alvo à vis-
ta, mas ele permanecia mais inacessível que nunca. Maldito Destino
e Gêmeos irresponsáveis! Causaram estragos naquela noite!
O guarda-costas de longo bigode e chapéu de pelo aproximou-
se do homem e indicou o norte. O Forte de Mock? Ele balançou a
cabeça, levantou-se e passou as mãos pelas calças largas. Cobriu-
se com seu manto. Os guardas foram em fila em direção a ele.
Alguns cultistas agitaram-se, aproximando-se da massa rochosa.
Kiska contou quinze. Ela queria alertá-lo, mas o homem devia saber.
Então, ela olhou por cima do cerco e ficou paralisada. Três cultistas
extraordinariamente altos e magros, de vestes cinza pálido, posta-
ram-se de um dos lados. Pelos Mistérios da Rainha, de onde saí-
ram? Era como se houvessem brotado da noite.
Um levantou a mão enluvada, em um gesto negligente, e os cul-
tistas atacaram.
Kiska correu para outro esconderijo para manter a presa à vista.
Ele e seus guardas mantinham-se recuados e juntos. Os cultistas
corriam, facas brilhavam, túnicas retorcidas esvoaçavam, e o ho-
mem e seus companheiros continuavam recuando, deixando os
mortos para trás. Os três comandantes, ou sacerdotes, seguiam-no
ao longe, observando. Kiska movia-se paralelamente à luta, vislum-
brando por entre as árvores. Os guardas duelavam, desvencilha-
vam-se, sempre indo em direção a seu alvo. A habilidade deles a
surpreendeu.
Um grupo maior de cultistas coordenou um ataque por todos os
lados. Cada guarda foi atacado por mais de um homem; o coração
de Kiska batia na garganta. Aquele era o homem que Agayla a man-
dara encontrar! Aquele era o homem que Oleg dissera que devia
agir hoje à noite! E ali estava ele, prestes a ser massacrado por
aqueles assassinos, e não havia nada que ela pudesse fazer. Ela
havia chegado tarde demais! Kiska quase soltou um grito de frustra-
ção.
Enquanto ela observava, dois guardas caíram, e os cultistas lan-
çaram-se contra o homem. Ele fez um gesto com a mão e um flash
cegou Kiska. Um trovão explodiu enquanto ela piscava e esfregava
os olhos. Ela olhou para trás. Onde um grupo de cerca de dez ho-
mens havia se debatido e lutado, agora só restavam três: o homem
e seus dois guarda-costas restantes. Ele estava de frente com os
três cultistas altos. Eles pararam.
O do centro levantou a mão, como se afastasse teias de aranha
em seu caminho.
Os cultistas menores esperavam de armas em punho.
Embora não fosse um talento, Kiska conhecia-se bem, e podia
sentir essas coisas; mesmo que estivesse a centenas de jardas de
distância, ela podia sentir as forças que se reuniam entre os dois ho-
mens. Era como estar no fundo do casco de um navio sabendo que
as forças obscuras e incompreensíveis agitavam-se a poucas pole-
gadas de distância; forças que poderiam levar uma pessoa à não
existência em um instante. Ela prendeu a respiração, esperando o
menor movimento que liberaria o poder que crescia entre eles.
Subitamente, a mão enluvada em couro áspero cobriu a boca de
Kiska, e um braço a tomou pela cintura e a levou para longe das pe-
dras.
Kiska largou a besta, debateu-se e começou a dar pontapés. En-
quanto isso, lentamente puxava a faca mais fina com a mão direita.
Quando desembainhou o punhal, o homem torceu-lhe a cabeça vio-
lentamente. Ela viu faíscas e sentiu correntes abrasadoras corren-
do-lhe a espinha.
– Largue isso, garota – rosnou uma voz baixa –, ou vou quebrar
seu pescoço como se fosse um galho.
Paralisada, Kiska largou o punhal no chão.
O homem a pegou, carregando-a nos ombros, sem dificuldade
alguma. O coração palpitava enquanto era carregada por entre os
sulcos paralelos, passando pelos cultistas mortos que Kiska con-
cluiu que ele devia ter matado. Ela praguejou contra si mesma por
não suspeitar que o assassino podia estar por ali ainda. E agora, es-
tava sendo levada cada vez mais longe das ruínas. Ela se esforçou
para ouvir sons de batalha, mas não ouviu nada. Uma vez que seu
captor adentrou a mata mais densa, dois homens juntaram-se a ele.
Eram soldados ou simples bandidos, difícil dizer. Mas mantinham a
disciplina dos veteranos. Um ficou de frente para ela; tirou um pano
preto de seu cinturão, enquanto o que a segurava tirou-lhe a mão da
boca.
– Quieta – ameaçou.
Puseram uma mordaça sobre a boca antes que ela pudesse se
recuperar, e o pano, um saco, foi jogado sobre sua cabeça. Ela ten-
tou gritar, estupidamente tarde, e lutou enquanto eles amarravam
seus pulsos à frente, e depois seus tornozelos.
O homem a jogou de novo sobre o ombro e a carregou como se
fosse um saco, enquanto corria pela floresta. Ela parou de se deba-
ter e deixou-se consumir pela indignação.
Ela havia se enganado a respeito de uma coisa. Havia outra pes-
soa estúpida o suficiente para estar na rua naquela noite. E ela fica-
ra tão absorta assistindo à luta, que baixara completamente a guar-
da.
Contrariada, concluiu que merecia o que estivesse por vir.
Depois de uma verdadeira marcha, foi levada a uma sala e larga-
da em uma cadeira, o que fez seu quadril doer. Pessoas – homens –
movimentavam-se, sussurrando. Mãos a revistaram e encontraram
suas lanças e punhais. Mas a revista foi apressada, e deixou passar
uma faca de arremesso escondida em uma aba do colarinho de seu
manto. Mãos impacientes subiram suas mangas, viraram seus bra-
ços, abriram seu gibão, seu colete acolchoado, e rasgaram os cor-
dões da gola de sua camisa de linho. Se não estivesse amordaçada,
Kiska teria rido, pois sabia exatamente o que estavam procurando:
tatuagens – verdadeiras ou falsas – de um pé de pássaro cortado ou
de uma garra.
Ao não encontrar nenhum dos dois, as mãos fecharam sua rou-
pa de novo. Ela ouviu uma voz masculina, próxima:
– Malditos tolos!
Arrancaram-lhe o capuz, e a seguir a mordaça. Kiska pestanejou
e sacudiu os cabelos para tirá-los dos olhos. Olhou feio para o ho-
mem musculoso, de ombros largos, cujo rosto curtido ostentava um
padrão surpreendente de cicatrizes de queimaduras com soda cáus-
tica ou óleo fervente.
Ele deu um passo para trás, olhando para a mesa na qual o ho-
mem que a pegara estava sentado, com os pés em cima de uma ca-
deira. Kiska o reconheceu pela cota de couro com faixas de losan-
gos de ferro rebitados e o elmo liso de ferro escurecido. Ele tinha
um bigode que passava do queixo, e tecido cicatricial que transfor-
mara seu nariz em um calombo.
O homem deu de ombros.
– Você mandou pegar alguém. Eu tinha um daqueles de túnica
cinza, mas ela estava causando mais problemas. Então a peguei.
Ela estava olhando a luta.
Eles estavam em uma pousada. Kiska a reconheceu: Crescente
Sul. Havia homens ali, olhando-a com indiferença ou observando a
rua pelas janelas e porta. Ela contou cerca de quarenta.
O homem das cicatrizes virou-se para ela e disse:
– Muito bem, o que tem a dizer? Para quem você trabalha?
– E você, para quem trabalha?
O homem deu-lhe um tapa. Foi como se houvesse acertado o
queixo com um pedaço de ferro. Ela pestanejou para conter as lágri-
mas, sacudiu a cabeça, atordoada mais pela brutalidade fortuita do
ato que pela dor.
Os olhos dele eram assustadoramente inexpressivos, apenas
avaliando a eficácia do golpe. E então, alguma coisa chamou a
atenção dele por trás de Kiska, e ele grunhiu, virando-se. Uma mu-
lher surgiu de trás dela. Baixa, escura, com finas linhas e espirais ta-
tuadas desde a testa, na raiz dos cabelos, até a ponta do nariz. Ela
levantou o queixo de Kiska, em um gesto estranhamente semelhan-
te ao de Agayla. Kiska já havia visto aquela mulher. Carla? Catin?
Estudando-a, a mulher apertou os lábios carnudos e assentiu, como
se a reconhecesse também. Kiska estremeceu ao ver remorso após
o reconhecimento – ela não sobreviveria. Kiska havia sido condena-
da a partir do momento que lhe tiraram o capuz da cabeça.
A mulher estava se afastando quando seu olhar parou no peito
de Kiska. Ela estendeu a mão, e Kiska sentiu as pontas dos dedos
tocarem o pergaminho amassado de Agayla. Kiska olhou nos olhos
da mulher, implorando em silêncio. A mulher encontrou seu olhar,
solidário, mas pesaroso também, como se Kiska já estivesse morta.
Ela se aproximou do homem cheio de cicatrizes.
– Ela é um talento local – disse baixinho. – Independente. Repor-
ta-se somente a Pell.
O homem deu de ombros, como se não se importasse mais.
Com o dedo, ele traçou uma curva em um pergaminho aberto sobre
a mesa.
– Vamos sair por aí, ignorando a multidão.
– E se acabarmos no meio deles de novo?
O homem ergueu os olhos, fitando-a de seu jeito insosso:
– Seu trabalho é impedir que isso aconteça.
As amarras cortavam os pulsos de Kiska. Ela ansiava falar em
sua defesa, implorar, ganhar tempo… qualquer coisa. Mas as pala-
vras estavam presas em sua garganta, constritas pela intuição de
que se falasse, eles a matariam só para acabar com aquilo. Então,
ficou em silêncio, escutando. O que aquele bando havia feito? Sa-
ques, protegidos pelo caos da noite? Se assim fosse, o que os cul-
tistas tinham a ver com isso? Teriam se confrontado?
A mulher olhou para ela de novo, inspirou e inclinou-se para sus-
surrar algo ao homem das cicatrizes. Ele deu um sorriso com os lá-
bios levemente apertados sobre os dentes, totalmente vazio de hu-
mor.
– Vai fraquejar? – respondeu ele sem erguer os olhos.
Ajeitando a túnica, a mulher lançou a Kiska um leve encolher de
ombros, para transmitir que havia feito tudo que podia. Apesar de ter
sido sua vida que o homem acabara de dispensar, Kiska forçou-se a
responder com um leve aceno de cabeça. O medo não apertava
mais sua garganta. Ela queria chorar. De uma forma grotesca, o que
a impediu foi algo que ela nunca teria suspeitado: orgulho.
O pergaminho fez barulho quando o homem o enrolou. Ele o en-
tregou a um de seus seguidores e chamou os outros. Kiska ficou
tensa, respirando curto; eles estavam se preparando para sair, e ela
não iria junto.
O homem das cicatrizes falou com quatro outros, um dos quais
era o que a pegara. Eram todos mais velhos, mais endurecidos e
menos tensos que os outros. Kiska sabia que não estavam discutin-
do sobre ela; seu destino já estava decidido.
Um jovem que estava na janela da frente gritou, e a seguir, pulou
para longe da parede.
– Um fantasma gerado por Hood! Uma sombra! Na porta!
O comandante das cicatrizes e seu pelotão começaram a se mo-
vimentar, sem ordens ou comentários, confirmando a Kiska que
eram uma equipe de veteranos, talvez parte de uma unidade da ma-
rinha imperial.
O homem com a armadura de losango sacou duas espadas cur-
vas e foi para a porta. Com uma forte cotovelada, empurrou de lado
o jovem que estava de guarda. Atrás da porta, dois veteranos esta-
vam ajoelhados, fazendo mira com as bestas. O soldado restante,
junto com o comandante e a mulher, posicionaram-se mais para
trás. Todos esperavam, tensos, de olho na porta. Em sua cadeira
aos fundos, perto da escada que dava para uma sala menor, Kiska
observava também. Estranhamente, ela também sentira algo na por-
ta: uma sensação irritante, como uma leve coceira.
Um dos outros, que Kiska supunha ser um soldado mercenário,
rastejou para longe da porta, passando por Kiska, até chegar perto
do comandante.
– O que é isso? – sussurrou.
Fitando-o de forma selvagem, o comandante o mandou de volta
a seu posto. O veterano à porta agachou-se e olhou para a mulher,
que assentiu. Sorrindo como um tolo, ele abriu a porta.
A porta abriu-se para dentro, revelando uma rua vazia de parale-
lepípedos reluzentes e escorregadios por causa da chuva; e mal vi-
síveis por entre a névoa e as sombras, os Rochedos de Musgo do
outro lado. O homem assomou a cabeça para fora, mas recuou de
repente e afastou-se tropeçando.
Uma luz cintilava sobre a sólida porta, desenhando curvas inqui-
etas de sombra e fosforescência. A mulher avançou, estudando o
brilho inquieto. Depois de alguns segundos, ela recuou.
– E então? – perguntou o comandante.
A mulher fechou e abriu as mãos, como se quisesse fazer algo
com elas, mas não se atrevesse.
– É um maldito convite. Uma convocação. Temos que ir. Agora!
– Por mim, tudo bem.
Ele fez um sinal com a mão para que seus homens se afastas-
sem da porta.
– Vamos sair! – gritou o soldado de armadura de losangos.
Os homens que estavam perto das janelas e às mesas pestane-
jaram. Seus olhares deslocaram-se para a rua.
– É isso mesmo, rapazes – disse ele alegremente, como se fos-
se um lindo dia de verão. – Vamos enfrentá-lo!
Kiska olhou para o homem. Ele era louco?
O sargento – Kiska concluiu que devia ser sargento – levou os
punhos ao cinturão nos quadris, avaliando a sala, como se farejasse
algo desagradável.
– Pegue seu…
Um uivo agudo como o maior sino do templo rasgou a noite. A
madeira da parede e do chão vibrou tão alto e próximo, que parecia
o próprio uivo. Kiska estremeceu violentamente, fazendo a cadeira
pular e quase virar. Os homens ficaram paralisados, de olhos arre-
galados. Somente o comandante e a mulher pareciam não se afetar.
– Feche a porta! – rosnou ele.
O sargento foi obedecer, mas, com a mão na porta, ficou imóvel.
– Pelos demônios de Hood! – disse, pasmado.
De onde estava, Kiska não podia ver a rua. Tudo que viu foi um
jovem mercenário perto de uma janela gritando, sufocando, vomitan-
do, enquanto o comandante sacava da lâmina. Com toda força, o
sargento fechou a porta e pulou para o lado.
– Preparar bestas! – gritou.
E os homens, atrapalhados, levantaram suas armas.
Naquele instante, a porta explodiu em lascas, que voaram longe
como cacos de vidro. Um cão assomou a cabeça e ombros pela por-
ta. Era maior do que Kiska imaginara. Do tamanho de uma mula, ti-
nha o pelo desgrenhado, sarapintado de castanho claro e cinza. Vi-
rou a cabeça maciça de lado a lado, como se observasse todos, pri-
meiro com um olho marrom, e a seguir, cinza claro. Houve uma sa-
raivada de disparos, que acertaram o batente ou mal roçaram a car-
ne. Ele continuou entrando, encolhendo os ombros musculosos. O
batente despedaçou-se dos dois lados.
A sala irrompeu em gritos. Móveis desabaram; o rosnado e o bu-
fo do cão pareciam explosões. O hálito quente e úmido enchia a sa-
la. Homens atacavam a criatura, mas sem efeito, pelo que Kiska po-
dia discernir. A maioria apenas tentou fugir pelas janelas ou se es-
condeu debaixo das mesas. Inclinando a cadeira, ela se jogou no
chão bem a tempo de ver o comandante correndo escada acima. A
mulher já havia desaparecido. A poucos passos de distância, o sar-
gento agarrou pela cota um dos mercenários, que gritava, e o jogou
para o cão, e a seguir, pulou por uma janela fechada. Kiska levou a
mão para trás e conseguiu tirar a faca da gola de sua capa. Cortou
furiosamente a corda em seus tornozelos e deu graças aos Gêmeos
por suas mãos terem sido amarradas somente nos pulsos.
Rolando para baixo de uma mesa em um reservado, ela obser-
vou enquanto a fera invadia a sala, virando-se para esquerda e di-
reita, jogando longe os homens que atacava. Pegando um homem
pela cintura, ele o jogou longe como se fosse um osso. Sangue res-
pingou nas paredes de gesso, nas vigas alcatroadas, salpicando-lhe
as patas maciças conforme ele atravessava o piso coberto de palha.
Rosnando como um desmoronamento de pedras, ele espreitava a
sala, passando por cima de mesas tombadas, enfiando o focinho
ensanguentado nos reservados. O ranço quente de seu hálito alcan-
çou Kiska quando ele se aproximou.
De onde ela estava, paralisada, Kiska podia ver que três homens
permaneciam em pé. Um estava encolhido dentro do reservado da
frente, com a respiração curta e áspera. Ele olhava para a fera como
se olhasse para a morte. Na porta, o segundo chorava incontrolavel-
mente, todo atrapalhado com sua arma. O último era um veterano,
acocorado em um canto, com uma espada curta em punho.
O rosnado cessou e a sala ficou em silêncio. Deitada, imóvel,
Kiska viu uma pata encharcada de sangue parar em frente a seu re-
servado. As garras arrancaram lascas do piso de madeira. Ela des-
cobriu que não podia se mexer, não conseguia respirar para gritar,
por mais que quisesse. Um odor picante e desolador parecia encher
o ar. Kiska imaginou o enorme focinho acima dela, abaixando-se.
Fechou os olhos e cobriu a cabeça com os braços.
Perto, alguém tossiu e a fera afastou-se. Kiska ouviu barulho de
madeira caindo, golpes, e a seguir, o ruído úmido de ossos quebra-
dos. Espreitando, Kiska viu o cão retirar o focinho molhado de um
corpo para encarar o homem desastrado que armava a besta. Sen-
tindo a atenção da fera, ele parou. Ao olhar para cima, os olhos ar-
regalaram-se. O cão pulou para frente, pegou um braço entre suas
mandíbulas e sacudiu o homem violentamente. Depois do som sua-
ve e úmido de um rasgo, seu corpo foi arremessado, girando no ar
por um instante antes de bater com força contra um pilar.
O segundo homem – um jovem – chorava de terror. Quando o
cão rosnou, inopinadamente ele correu e ajoelhou-se no chão, de
cabeça baixa. E a seguir, abriu os braços e gritou:
– Kellanved, proteja-me! Eu invoco seu nome!
E então, Kiska lembrou-se das amarras e começou a cortar fre-
neticamente. Liberou os tornozelos. Sem saber bem o que estava
fazendo, ela inverteu a lâmina para cortar febrilmente a corda dos
pulsos.
Do outro lado da sala, ouviu o som de garras arranhando o chão
quando o cão saltou para frente como uma catapulta. Ele fechou as
presas sobre a cabeça do homem e apertou. Som de ossos tritura-
dos. Sangue e carne voaram da bocarra do cão. Balançando a ca-
beça, o cão sacudiu e jogou longe o torso decapitado do homem.
Ele rolou até parar perto do reservado de Kiska, jorrando sangue pe-
lo chão. Kiska tentou controlar uma onda de bile que subia por sua
garganta.
No silêncio que se seguiu, o veterano disse, de modo arrastado:
– Bem, acho que o velho não me ouviu.
Jogou a espada e ficou de mãos vazias.
O cão virou-se para avaliá-lo. Kiska também olhava, fascinada
com a calma do homem. De uma bolsa no flanco ele tirou um objeto
redondo, do tamanho de uma fruta grande, verde-escura e brilhante.
Seu olhar cruzou com o de Kiska, e ele acenou, indicando a escada
dos fundos.
Ele ergueu o objeto para o cão e apontou:
– Somos só eu você agora, garoto.
Kiska prendeu a respiração. Ela havia ouvido histórias… Mergu-
lhou na pequena escada até chegar rolando a uma sala menor, e le-
vantou-se, correndo. No escuro, bateu contra uma mesa e ficou sem
ar. Mal conseguindo endireitar-se, olhou em volta e viu um raio de
luar perto de uma parede iluminando a escada de serviço.
Da sala de cima, ouviu o grito de um homem, pura raiva e ódio.
Kiska cambaleou até a escada, chutou a porta trancada no final de
uma despensa e correu para fora, tropeçando e caindo na rua de
cascalho, torcendo o ombro e rasgando o joelho. Jazia ali, semi-
consciente, quando uma explosão de luz e calor a fez soltar um sus-
piro de dor no estômago. Uma explosão de chamas a cegou; frag-
mentos de madeira voavam e pedaços maiores flamejantes caíam
ao redor. Kiska ouviu um longo berro de dor, que desapareceu quan-
do o cão fugiu. Dirigia-se para a água, talvez.
Sem sentir mais nada, como se seus nervos houvessem estoura-
do de tensão, Kiska levantou-se e foi descendo o beco, mancando.
Mesmo que houvesse quebrado as costas, ela sabia que teria que
se arrastar para longe do horror daquele matadouro. Atrás dela, o
que restava da pousada ardia na noite. A madeira e os detritos em
chamas iluminavam seu caminho pelo beco.
•••
Um grito mudo fez Temper parar. Ecoou por um labirinto de vielas à
direita. Uma jovem gritava como se sua alma estivesse em jogo. Ele
ficou paralisado, escrutando as aberturas escuras. Das sombras,
saiu correndo uma garota de vestes escuras, com com os cabelos
longos e pretos revirados sobre sua face.
Ela o viu e hesitou, mas disse:
– Por favor, ajude-me. Por favor.
Ele acenou para que ela se aproximasse.
– Pelos demônios, criança, você está ferida? Onde fica sua ca-
sa? É perto daqui?
Ela se jogou nos braços dele; era apenas punhado de ossos. Ela
soluçou, dizendo alguma coisa, apavorada.
Ele apertou os olhos na escuridão e perguntou:
– O quê?
Com uma das mãos segurou o braço de Temper, enquanto es-
condia o rosto em seu ombro.
Ele se aproximou:
– O que é, criança?
Ele sentiu uma dor aguda no pescoço. O braço da menina con-
torcia-se em volta dele como um torno. As pernas retorciam-se e
chutavam, cruzando-se por trás das costas dele. Temper cambale-
ou, empurrando-a pelos ombros para tirar a cabeça dela do pesco-
ço.
– Pelo maldito nome de Rikkter!
A menina jogou a cabeça para trás. Olhos negros como a noite o
observavam. Ela sorriu maliciosamente, revelando dentes pontudos.
Temper levou a mão ao pescoço dela, bem abaixo do queixo, e a
segurou.
Ela deu um sorriso ainda mais amplo por sobre a mão dele:
– Não vai me deixar sozinha na noite, não é, meu bom senhor?
Com a mão livre, Temper sacou sua faca e a golpeou. Ela pe-
gou-lhe o pulso e torceu. Ele gritou, lutou, debateu-se, mas a mão
entorpecida deixou a lâmina cair.
Ele caiu, tentou rolar, mas ela estava em cima dele, envolvendo-
o firmemente, como uma mortalha. Olhando para baixo, Temper viu
horrorizado que não eram mais duas pernas que lhe oprimiam a res-
piração, mas sim um único membro, que parecia uma cobra, que o
circundava do peito até os joelhos. As costelas já estavam esmaga-
das pela pressão. O luar brilhava em escamas cintilantes. Ele teria
gritado, se tivesse fôlego. Tentando segurar a cabeça dela longe de
seu pescoço, sentia o braço e a mão queimar como se estivessem
em chamas. Pouco a pouco o rosto dela se aproximava, com os lá-
bios escondidos atrás de pequenas presas serrilhadas. Os olhos de-
la debochavam da força dele.
Ofegante, ele conteve uma respiração curta para gritar:
– Ajudem-me!
Ela soltou uma risadinha infantil.
– Nada vai ajudá-lo hoje. A noite de hoje pertence aos caçadores
das Sombras. Não está ouvindo os gritos de fome?
Forçando para se aproximar, ela colocou uma das mãos atrás do
pescoço de Temper.
– Agora, deixe-me mostrar minha fome. Você vai gostar muito
mais que da deles, prometo.
Temper aplicou toda a força no braço, mas os cabelos engordu-
rados dela roçavam-lhe o rosto. O próprio sangue escorria da boca
da garota e pingava em seu rosto, queimando como se fosse ácido.
Um silvo gargarejou da garganta da criatura. Temper virou o rosto,
tanto quanto humanamente possível.
A coisa rosnou e foi subitamente arrancada de cima dele. Os ca-
belos foram puxados do rosto. Temper olhou para trás: um punho
segurava os cabelos da criatura e puxava-lhe a cabeça para trás. A
coisa sibilou, contorcendo-se e cuspindo sem palavras. O pescoço
estava curvado para trás, para um ângulo impossível. Os olhos emi-
tiam a mais negra fúria. Uma longa lâmina oxidada, de gume irregu-
lar, mais parecida com uma barra de ferro antiga do que com uma
espada, caiu sobre o pescoço dela. Serrava a carne pálida a poucos
centímetros do rosto de Temper. O pescoço partiu-se com um estalo
úmido e áspero, como uma fruta podre arrancada do galho, e o san-
gue quente e fétido jorrou sobre Temper. A coisa teve um espasmo,
afastou-se, agitando os braços para ele, enquanto o braço que pare-
cia uma cobra chicoteava as pedras.
Temper jogou-se de lado, passando a mão no rosto e nos olhos,
onde o sangue corrupto ardia como veneno.
– Meus deuses! Meus deuses!
De joelhos, ele vomitou, gemeu, limpou a boca e ficou se arras-
tando, sugando grandes golfadas de ar.
Quem quer que o houvesse resgatado estava sobre o cadáver
massacrado. Decapitado, o corpo ainda se contraía. Como uma
sanguessuga, pensou Temper, quase vomitando novamente. Lenta-
mente, ele se levantou e cuspiu para limpar a boca.
– Meus agradecimentos, estranho.
O homem não disse nada. Ao luar mutante, Temper viu que tal-
vez as coisas houvessem piorado. Quem – ou o que – quer que fos-
se seu salvador, não era vivo. Era um cadáver ambulante, seco,
vestindo uma armadura esfarrapada. A carne ressecada enrolava-se
ao redor de dentes amarelados, e as órbitas eram vazias e escuras.
Em uma das mãos ele segurava a cabeça com os cabelos negros
emaranhados, pingando sangue.
– Parasitas nojentos – disse a coisa com uma voz seca como
areia.
Ele jogou a cabeça para o lado, e ela rolou para baixo da carroça
vazia de um vendedor.
Temper desviou o olhar do local em que a cabeça havia desapa-
recido.
– Sim, malditos nojentos.
– Por favor, não pense que eles pertencem às Sombras. Eles
são intrusos. Como você.
– Como eu?
Temper olhou para a coisa. Parecia um guerreiro Imass, só que
mais alto e mais magro. Temper perguntava-se por que ele havia in-
tercedido.
– A quem devo agradecer por salvar minha vida?
O ser inclinou levemente a cabeça. Temper ouviu a carne seca
ranger como couro.
– Edgewalker.
– Temper. Muito bem, agora?
Edgewalker gesticulou com a mão esquelética indicando as lojas
e casas que se alinhavam no caminho.
– É melhor permanecer dentro de casa. A maioria das habita-
ções será respeitada.
– Desculpe, mas eu não posso fazer isso.
Edgewalker deu de ombros levemente.
– Então, eu lhe desejo boa sorte.
– Muito obrigado.
Temper afastou-se. O ser, quem ou o que quer que fosse, per-
maneceu onde estava. No final da rua, Temper parou para olhar pa-
ra trás, mas ele, ou aquilo, havia desaparecido. Ele deu de ombros e
dirigiu-se a um poço público que ficava nas proximidades. Tinha que
se livrar daquela sujeira.
•••
Na fonte quebrada dedicada a Poliel, Temper jogou balde após bal-
de de água gelada sobre a cabeça. A seguir, correu para a rua Toc,
mas logo reduziu a velocidade e olhou em volta. Stone Lane não de-
via estar ali em frente? Apertou os olhos para enxergar melhor na
noite densa. As fileiras de casas e fachadas de lojas não pareciam
familiares. Alguma coisa naquela noite parecia estar enganando seu
senso de direção, fazendo-o não saber bem onde estava.
Ele retirou o elmo de novo, levou para trás os cabelos molhados
e secou o resto de água fria do rosto. Teria, de algum modo, virado
em outro lugar? Mas, onde? A rua dava voltas entre as paredes inin-
terruptas de lojas e casas. Uma brisa surpreendentemente revigo-
rante soprou e ele ouviu inúmeros galhos arranhando e rangendo ao
vento. No entanto, a ilha era praticamente desmatada. O barulho da
arrebentação… onde estava? Durante os últimos meses ele havia
trabalhado, comido e dormido ao seu ritmo tranquilizador. A névoa
pesada a estava abafando? No entanto, os ventos eram ferozes na-
quela noite; contrários.
Começou a subir uma ladeira de paralelepípedos. Não importa-
vam as quebradas e curvas: subir sempre levava ao Forte de Mock,
e ele tinha que ser alvo dos mercenários. Não havia outra coisa que
os pudesse interessar na ilha.
Após uma série de curvas no solo elevado, Temper perdeu-se
em um labirinto de ruas estreitas que nunca havia visto antes. Finos
farrapos de nuvens corriam no céu, e a lua cheia, como uma poça
de mercúrio suspensa, ofuscava-lhe a visão. Somente o Forte de
Mock destacava-se acima do despenhadeiro, prata e preto sobre o
brilho monocromático, assegurava-lhe que ainda estava em Malaz.
Não fosse isso, ele teria jurado que estava em outra cidade, outro
país.
O ar quente e seco fez-lhe cócegas na nuca, e ele a esfregou; a
mão ficou cheia de areia. Areia? De onde havia surgido aquilo? Ele
ficou parado, esfregando os grãos entre o polegar e o indicador en-
quanto olhava em volta. A lua não estava à esquerda do penhasco
um momento antes? Algo que parecia um touro bufando, profundo,
reverberou até o caminho estreito atrás dele; o ruído distante de um
animal farejando um rastro. A seguir, ouviu garras raspando sobre a
pedra. Temper engoliu em seco, apoiando-se em uma parede. Auto-
maticamente, as mãos verificaram suas armas. Havia uma porta à
direita, e ele bateu.
Não houve resposta. Ele bateu nas pranchas resistentes de no-
vo. Uma voz falou, mas em uma linguagem que Temper jamais ouvi-
ra.
– Abra – ele rosnou.
A voz resmungou de novo, e dessa vez Temper reconheceu uma
palavra: hrin. Hrin? Alguém já não lhe dissera que essa era uma pa-
lavra antiga que significava alma penada?
Sentiu a boca seca por causa de um novo tipo de medo – o me-
do de perder a lucidez. Aquilo era o que mais temia dos Warrens: o
jeito como eles podiam distorcer a mente. Um inimigo físico ele po-
deria enfrentar, mas, a demência? Como se luta contra isso? O aler-
ta do velho Rengel ecoou: A matança a convocou. Demônios e coi-
sa pior vão governar hoje à noite!
Ele virou-se e correu. Lascas de pedras voavam sob seus pés.
Passou por fachadas de lojas, cegas e ameaçadoras. Ao longe, um
sino tocou abafado, como se proviesse de um navio ao mar. Ele pa-
rou, escutando. O terceiro sino da noite. À esquerda, uma rua curva-
ra-se abruptamente para baixo. Os telhados dos armazéns eram
apenas visíveis além – à beira-mar, notou Temper –, mas envoltos
na névoa. Enquanto ele observava, a densa maré subia de uma for-
ma antinatural, lavando os armazéns e rastejando até a rua.
Ele recuou, deu meia-volta e correu ladeira acima. Para cima,
sempre para cima. Era onde ele iria encontrá-los. Mas, e depois? O
que ele poderia…
Uma explosão, um grito de gelar o sangue o fez tropeçar e levar
as mãos aos ouvidos. O grito de agonia crescia e diminuía como o
lamento inconsolável dos mortos. Temper pegou as armas, mas não
conseguia ver nada além da besta – nem esperava conseguir algu-
ma coisa contra um monstro daqueles.
Que Togg o protegesse. Teria sentido seu cheiro? E a coisa sen-
tia cheiro, afinal? Talvez estivesse seguindo algum outro tipo de ras-
tro menos mundano. Ele viu que o nevoeiro continuava aumentando
e correu.
A trilha esburacada que ele seguia atravessava uma escadaria
estreita. Começou a subir, mas parou. Ouviu barulhos provindos de
baixo: algo se arrastava na névoa que obscurecia a trilha. O primei-
ro impulso foi postar-se no cruzamento; pôr fim a esse medo e ex-
pectativa desumanos, de um jeito ou de outro. No entanto, a expe-
riência, a sabedoria acumulada por décadas em meio ao tumulto fu-
megante da batalha, o advertiu contra isso. Que razão tinha ele para
acreditar que aquilo que estava ali embaixo sabia de sua existência,
ou que o procurava? Por que forçar um confronto bloqueando a pas-
sagem estreita? Rosnando baixinho, ele recuou até a escadaria com
as armas prontas.
Os passos cansados acabaram em uma fresta da largura dos
ombros de um homem entre os edifícios de frente para a praça
Jakani. Temper foi tateando as paredes até a praça. Era um mar
mutante de névoa e paralelepípedos traiçoeiros sob seus pés. Os
ecos de seus passos voltavam distorcidos e vazios. Uma rajada de
vento arrefeceu-lhe o rosto, e pela névoa ele vislumbrou casas que
se erguiam, escuras; sombras que passavam tão rápido, que ele
não as poderia seguir.
Na escuridão, ouviu um miado. Segurou firme as armas e tentou
acalmar a respiração. Ouviu algo arranhando e brigando no beco, e
uma forma encurvada avançava com uma lentidão agonizante.
Ele se preparou: uma lâmina erguida, a outra baixa. No entanto,
hesitou em atacar; havia algo errado ali. A figura avançou vacilante,
cambaleando de um lado a outro, arrastando-se. Temper já havia
ouvido suficientes gritos animalescos de homens feridos, e os co-
nhecia bem. O homem – pois era um homem – abraçava a si mes-
mo enquanto mancava. Tinha os braços cruzados ao redor do estô-
mago, como se carregasse um presente precioso. Temper baixou as
armas. O que era aquilo? Alguma brincadeira idiota?
Já mais perto agora, o homem continuava se aproximando, e
Temper recuou, gritando:
– Parado aí!
O homem parou, inclinando a cabeça. Mexeu a boca, que era
um vazio mudo e negro na noite. Levantou o braço, estendendo a
mão para Temper. Ele ouviu o som viscoso de sangue ainda úmido,
e a seguir, uma massa derramou-se do estômago do homem para o
pavimento – eram suas vísceras, suas entranhas. O homem des-
maiou.
Temper tentou umedecer a boca, mas não conseguiu mexer a
língua. Avançou, e cutucou o corpo com a ponta de sua arma. Mor-
to. Morto havia muito tempo, pelo menos era o que parecia.
– Ouça-me – sussurrou o cadáver.
Temper ergueu a espada em posição de guarda.
A mão manchada de sangue coagulado sinalizou para que se
aproximasse.
– O cão – gemeu a mão.
Temper inclinou-se para frente. Não detectou ar nenhum saindo
da boca do homem.
– Ele me matou. Matou todos nós.
Temper se deu conta de que aquele homem era da gangue de
mercenários que o haviam capturado.
– E ele… ele…
A mão pediu a Temper que se aproximasse ainda mais. Ele abai-
xou a cabeça e ela o agarrou pela manga. Temper tentou se livrar
dela, mas os dedos se agarravam a ele como ganchos.
No rosto morto, um sorriso malicioso e cariado.
– E… ele está me seguindo.
– O quê?
– Agora… você está morto também.
Temper ergueu os olhos e viu a trilha vermelha de sangue úmido
que o cadáver deixara. Era uma faixa que dava voltas pela escada
que ele havia acabado de subir.
– Desgraçado!
O cadáver soltou uma risada zombeteira.
Temper tentou se levantar, mas a mão ainda o agarrava.
– Escória!
Temper conseguiu tirar a mão de seu braço. Deu meia-volta,
equilibrando-se ainda meio agachado, e a seguir, caiu nas pedras.
Ouviu um resfolegar baixo subindo a escada estreita. Temper re-
cuou, observando o que pôde da praça. Tinha cerca de sete trilhas
principais que irradiavam dela. Antes mesmo de pensar, ele estava
correndo para a saída mais próxima.
Subindo as trilhas estreitas uma a uma, Temper fugiu, em pâni-
co. Os pulmões ardiam e sua garganta arranhava. Diminuindo o
passo, tentando recuperar o fôlego, admitiu o erro. Idiota! Você não
pode fugir dessa maldita coisa. Fique e lute. Então, virou-se e en-
costou-se em uma parede de pedras cinzeladas, que gelaram a cota
de aço de seu protetor de nuca. Engolindo grandes bocados de ar,
tentou se acalmar. Não se esgote antes de uma luta; conserve ener-
gia. Ah, tarde demais. Ele estava agindo como um recruta espinhen-
to enfrentando a primeira batalha.
Ao longo do caminho, feixes de luar dividiam ao meio os edifícios
fechados. Em uma casa vizinha, uma velha murmurava orações pa-
ra Burn, a Preservadora. Soou um grito distante, que logo cessou.
Temper enxugou o rosto e encostou na parede. Aquele não era o
melhor local para o que tinha em mente; precisava de mais espaço
para manobras.
•••
Duas esquinas o levaram a uma ampla esplanada que servia como
mercado matinal. Temper já sabia onde estava: perto do pátio que
levava à Via Reacher. Os ratos fugiram quando ele escolheu um lu-
gar, perto do bueiro, e começou a chutar o lixo podre sob seus pés.
Agachado, ele balançou os braços e girou os ombros.
Ele podia ouvi-lo ali, por trás das rajadas de vento, farejando e
bufando. Pelos deuses! Parecia grande como um cavalo! Um impul-
so o fez chutar uma porta e ficar atrás de paredes sólidas. No entan-
to, o que ele poderia fazer dentro de uma daquelas pequenas lojas?
Esconder-se debaixo de uma mesa? A fera o encurralaria como a
um rato.
Um uivo agudo rolou no vento, aumentando e diminuindo como o
lamento de um lobo. Temper inclinou a cabeça e escutou. Teria ido
embora? Não, do alto da trilha, ele ouviu o som de garras sobre pe-
dra. Pelos dentes de Hood! Outra fera!
Observou enquanto as sombras rolavam sob a cobertura de nu-
vens e orou para que o ferro pudesse ferir os demônios. Poderia,
desde que apoiado por força suficiente. Como quando Urko, um co-
mandante famoso por sua força muscular, desmembrara um
Enk’aral durante as campanhas ao norte de Falar. Mas ele não era
Urko, só podia torcer por um tiro certeiro. Era uma pena… Ele sem-
pre pensara em morrer lutando, mas teria desejado um jogo mais
equilibrado.
Tudo ficou silencioso. Ele havia perdido o rastro da coisa nas
sombras – supondo que o barulho que ouvira havia sido a fera. Apu-
rou os ouvidos, com os braços retesados, esperando por ela.
Garras raspavam a pedra, atrás e à esquerda. Temper arriscou
um olhar, mas não viu nada.
Então, viu as garras afiadas e jogou-se para o lado, raspando a
espada nas pedras para provocar faíscas. Ao cair, viu um cão maior
que um leão da montanha Fenn fechando a boca bem onde ele es-
tava um momento antes. A fera saiu galopando, raspando as unhas
nas pedras. Temper vislumbrou uma pele marrom desgrenhada e
um membro posterior marcado por uma cicatriz antes que a fera pu-
lasse de novo, dissolvendo-se nas sombras. Rastejando para se le-
vantar, ele olhou para a escuridão onde o cão havia desaparecido.
Não era justo. Nem um pouco justo, meu amigo. E então, ele jurou
ferir a coisa antes que ela o rasgasse todo, membro a membro, ape-
sar de não ter muita esperança de um dia poder fazer isso.
Por todo lado agora se ouvia o som de garras bestiais. Um vento
frio varria a névoa da praça, mas ele ainda não podia espiar por ali.
Do outro lado do caminho, viu uma sombra ainda mais profunda na
escuridão. Olhos cor de âmbar aquecido se abriram, e Temper ouviu
um rosnado que fez as janelas balançarem nas esquadrias. Sentiu
os pelos da nuca arrepiarem-se, mas ao menos agora ele sabia: se-
ria um ataque frontal.
A fera correu em sua direção a uma velocidade surpreendente.
Estava sobre Temper antes que ele pudesse decidir se era real ou
uma ilusão.
Ele conseguiu bater com a mão e a arma, primeiro com o cabo,
na bocarra do animal, mas o ataque da fera o fez voar, quicar e cair
sob seu peito enorme. As escamas de ferro dos ombros de sua ar-
madura foram arrancadas. O monstro fechou as presas no antebra-
ço de Temper, apertando os ossos. Temper rugiu de dor lancinante.
A fera o arrastou até uma parede e o sacudiu como um cachorri-
nho sacudiria um rato. Ela arrancaria seu braço a qualquer momen-
to. Canalizando toda a dor em um esforço feroz, ele balançou a mão
livre e quebrou a empunhadura de ferro de sua arma no crânio do
demônio, que tangeu como um sino, e a fera retraiu-se e bufou co-
mo se fosse abrir a boca. Mas só tossiu, lançando uma rajada de ar
fétido e quente no rosto de Temper. Ele se lançou à frente, arrastan-
do Temper sobre os paralelepípedos, fazendo-o bater nas paredes e
nas madeiras enquanto corria pelo labirinto de vielas. Degraus de
pedra machucaram-lhe as costas e arranharam-lhe os joelhos. Ele
vomitou espuma e sangue. Gritos se seguiram, e quando sentiu a
boca cheia de vômito ensanguentado, Temper soube que não eram
só os dele.
Por fim a fera cansou-se da brincadeira e o deixou rolar para lon-
ge. Com o braço quebrado e mutilado, Temper estava já além da dor
e do medo. Estava em um lugar que não via desde a última batalha,
quase um ano antes, e foi como um estranho reencontro. Estava flu-
tuando, eufórico. Era o lugar para onde se retirara durante a pior ba-
talha. Onde toda a força e resiliência fluíam livres. Onde o corpo mo-
via-se como um autômato de carne e osso; onde nenhum ferimento
o poderia alcançar. Caído ali, ferido e sujo, ele mostrou os dentes ao
cão.
A fera elevou-se acima dele, soltando grandes baforadas de ar
quente. O pelo sarnento marrom avermelhado crescia emaranhado
sobre as cicatrizes de inúmeras batalhas. Os olhos brilhavam.
Com a mão boa, Temper tirou uma adaga da bainha que levava
no quadril. Acabe com isso!, rogaram os olhos brilhantes. Agora!
A fera lançou-se de cabeça sobre o peito de Temper. Ele enfiou a
adaga na boca aberta. O animal recuou, tossindo e rosnando. Sacu-
diu o focinho, espirrando sangue e saliva.
Temper tentou rir, mas só conseguiu engasgar. Segurou a lâmina
para cima. Peguei você! Eu o feri, seu bastardo filho de Hood!
Passando as patas na boca e bufando, a fera corria em círculos,
sacudindo a enorme cabeça, até que bateu em uma parede de ges-
so caiado, que se quebrou. O animal virou-se para Temper. Havia si-
do uma mera picada de vespa, admitiu Temper tristemente. Abaixou
o braço e sua arma caiu nas pedras. Tontura e um vento negro obs-
cureceram-lhe os sentidos. De uma grande distância, ele observou a
fera se preparar para outro bote.
Ele devia ter perdido a consciência quando viu que o rosto que
ele evitara em cada batalha e duelo agora o encarava. O próprio Ho-
od finalmente ia buscar seu espírito. Temper desejava ter forças pa-
ra cuspir nele. Um capuz de escuridão caiu sobre ele, e Temper se
sentiu caindo, caindo, caindo… até que foi envolvido em noite e não
soube mais nada.
•••
Você não pode me encontrar. Você não vai me encontrar. Você nun-
ca vai me encontrar. Com os braços apertados em volta dos joelhos,
Kiska balançava-se para frente e para trás, para frente e para trás.
Nunca vai me encontrar, nunca vai me encontrar. Ela estava senta-
da dentro de uma pequena cabana, enquanto uma chuva silenciosa
caía ao redor. Esfregava o queixo no joelho machucado.
Quem não pode encontrá-la?, perguntou a si mesma.
Ninguém. Nenhuma pessoa, nunca. Nenhuma das crianças que
brincavam de esconde-esconde com ela. Nenhum dos ladrões lo-
cais com quem competia. Nem mesmo a tia, quando ela tentara a
magia. Mas ela podia encontrar qualquer um. Ela sempre conse-
guia. A tia dissera que ela tinha um talento para isso.
E o que mais não pode encontrar você?
Kiska ficou se balançando por um tempo, cantarolando Ninguém.
Ninguém. Ela ouviu um gemido a seu lado e olhou para baixo. Um
cão estava deitado, enrolado e encostado em sua coxa. Um grande
cão. Ele olhava para ela com olhos tristes cheios de medo.
Kiska suspirou, tirou um braço dos joelhos e acariciou o cão. Ele
choramingou de novo e aconchegou-se mais perto. Ela balançou a
cabeça.
Acho que eles poderiam encontrar você, menina, disse a si mes-
ma. Se quisessem.
Ela suspirou de novo e massageou o joelho, onde suas calças
pretas haviam se rasgado e o sangue secara, formando uma crosta
áspera. Ela flexionou a perna e fez uma careta de dor. O cão ganiu.
Não posso ficar aqui para sempre.
Ela esfregou os olhos. Ficar aqui. Nesta ilha? Para sempre?
– É a morte em vida – sussurrou Kiska no escuro.
O cão levantou uma orelha. Ela olhou para ele. Desculpe, rapaz.
Não posso me esconder mais.
Ela se levantou. Havia cambaleado até uma casa anexa, um bar-
raco de madeira pouco maior que um caixão na vertical. Olhou para
a meia porta. Tábuas cobriam as janelas dos fundos de uma casa
que pertencia a uma jovem família que Kiska conhecia. Eles expor-
tavam peixe seco e estavam muito bem de vida. Tinham até um bar-
raco na horta.
E ali estava ela. A maior noite de sua vida e ela estava se escon-
dendo em um buraco. Tudo que ela havia desejado durante toda a
vida se materializara, e o que ela fizera? Fugira!
O cão descansou a cabeça em um dos sapatos enlameados de
Kiska e olhou para ela. Ela revirou seus bolsos e bainhas – um pe-
daço de corda e um cachecol, agulhas, panos embebidos em un-
guentos que Agayla lhe dera. Era tudo que restava. Abriu um pano e
o apertou contra seu joelho. Sibilou de dor. No entanto, quem pode-
ria adivinhar a grande diferença entre ansiar por ação, e ver a cabe-
ça de um homem explodir como um melão na boca de um monstro
de outro reino? Não era de admirar que estivesse vomitando em um
beco.
Aquele homem do barco imperial não tinha medo de andar nas
ruas. Ele havia enfrentado um ninho inteiro de cultistas.
E ele devia saber onde estava se metendo. Ela tinha certeza dis-
so. No entanto, ele havia ido até lá. Oleg dissera que sua mensa-
gem tinha que chegar ao homem, uma mensagem que ele acredita-
va ser de vital importância. Mas ele era louco. Já Agayla… ela tam-
bém mandara Kiska atrás dele.
A mão encontrou o rolo achatado em seu peito. Era para ele. Te-
ria chegado ao Forte já? Talvez sim. Mas quem poderia ter certeza
em uma noite como aquela? E o porteiro, Lubben, lhe avisaria se ele
chegasse. Talvez até a deixasse entrar, se ela agisse direitinho.
Kiska abriu a porta. O cão choramingou de novo. Olhando para
trás, ela o viu ainda enrolado no chão, sem vontade de ao menos
pôr o focinho para fora da porta. Ela deu-lhe adeus e se dirigiu a um
atalho que conhecia para o Caminho de Rampart.
•••
A noite era mais sobrenatural ainda. Até as sandálias e o sussurro
de sua respiração pareciam ensurdecedores. Então, de repente, ale-
atoriamente, o latido de um cão quebrou a calma, fazendo-a se en-
colher. Mas afora esses momentos terríveis – cada um dos quais
Kiska tinha certeza de que seria o último para ela –, era como se a
noite houvesse congelado. Só a lua parecia se mover, olhando para
ela com o olho de prata enquanto ia para a orla, onde a maré ba-
nhava as falésias e os cais mais antigos eram restos de pilares po-
dres.
Ela subiu pelas pedras escorregadias amontoadas na base do
penhasco. A água salgada espirrava na camisa e as ondas abaixo
murmuravam, estranhamente subjugadas. Suas sandálias de sola
de corda se agarravam à pedra lascada, mas suas mãos escorrega-
vam, cortando-se nas bordas afiadas.
Logo ela chegou à borda nua das pedras irregulares – uma trilha
de animais que remontava várias gerações, quando cabras selva-
gens ainda passavam pela ilha. A trilha estava esquecida havia mui-
to tempo, invisível de baixo e de cima. Ela ficou imaginando se não
seria esse o mistério por trás das inadvertidas partidas e chegadas
de piratas da ilha.
Ela subiu com cuidado até as bordas de pedra lisa, a maioria não
maior que seu pé. A sebe espinhosa sufocava a rota, forçando Kiska
a subir por trás ou sobre os arbustos. Mas ela conhecia o caminho
de olhos fechados, pois muitas vezes subira à noite. A trilha a leva-
va a seu ponto favorito na ilha – depois das salas de Agayla, claro.
A neblina a envolvia como uma mortalha. A baía, algumas cente-
nas de jardas abaixo, jazia sufocada no baixo nevoeiro. No céu, ao
sul, luzes verdes e rosa piscavam, fazendo Kiska relembrar as len-
das dos Cavaleiros que surgiam no inverno para rebocar marinhei-
ros rumo à morte. Ela também se lembrou das histórias de fantas-
mas e almas penadas que, diziam, assombravam o Forte, acima.
Até mesmo os penhascos guardavam uma hoste de espíritos – ma-
rinheiros afogados atraídos para perto demais dos bancos de areia,
ludibriados por seus antepassados, todos sabotadores e piratas. Di-
zia-se que ainda se ouviam os lamentos à noite, em busca de vin-
gança contra seus assassinos. Ela havia crescido com aquelas his-
tórias, e não acreditava em nenhuma. Incluindo as de certa Lua
Sombria assombrada por demônios…
Quando a mão estendida disse a Kiska que havia atingido uma
depressão no granito veiado, ela se jogou no vão que sabia que a
aguardava à frente. Respirou, ofegante, e não só por causa do es-
forço da subida. As roupas se colavam a seu corpo, pesadas e úmi-
das. O ar exalava o rico odor de húmus podre e excrementos de
pássaros. Kiska encostou-se em uma parede inclinada para dentro
para normalizar a respiração. A fenda onde estava não poderia ser
chamada de caverna: era mais como uma fissura irregular na rocha
viva da ilha, uma rachadura que caía direto no precipício. O calca-
nhar deslocou lascas de pedras, que rangeram. Ela havia encontra-
do lugares ali dentro onde não havia onde pisar, só uma fina espu-
ma que ia afinando na escuridão descendente direto até o vazio da
largura de uma unha.
Ela brincava ali quando era criança. Era seu esconderijo secreto,
mas tinha a sensação de que Agayla sabia de sua existência. Ela
havia explorado cada polegada daquelas fissuras, das galerias de
fendas estreitas e verticais. E apesar de as lendas da ilha falarem
de cavernas secretas e tesouros escondidos de ouro e pedras preci-
osas, ela não encontrara nenhum vestígio disso. Lâminas podres e
quebradas e pedaços de ferro corroídos pelo sal espalhados aqui e
ali eram tudo o que ela havia encontrado como recompensa por
seus esforços.
Acima de sua cabeça passava um trecho do Caminho de Ram-
part; seria uma subida final difícil. Ela esfregou as mãos para aque-
cê-las e sentiu o ardor dos cortes quando o sangue circulou pelas
feridas incrustadas de sal. Talvez devesse enrolá-las em um pedaço
de pano. Mas o que aconteceria se escorregassem ou se soltas-
sem?
Kiska ouviu ruídos. Apertou-se contra a parede do penhasco e
prestou atenção: tecido raspando a pedra, seixos caindo. Alguém
escalando. Ela adentrou mais a caverna. Ao fazê-lo, uma forma apa-
receu dentro, nos confins estreitos de pedra, como uma das almas
penadas das quais ela ouvira falar.
Um instante de medo de gelar a alma a paralisou por tempo sufi-
ciente para que a figura – um homem de carne e osso – pegasse
sua mão. Ela quase sorriu pelo movimento equivocado, e usou o
apoio dele para dar-lhe um pontapé do lado oposto da cabeça.
O homem grunhiu, mas continuou segurando-a. O sorriso de
Kiska esvaiu-se.
Um pé foi lançado contra o joelho ferido. Ela abafou um grito de
dor aguda quando a perna cedeu. Ele soltou-lhe a mão quando ela
caiu.
– Não lute – disse ele.
Ela olhou para ele; no escuro, ele era essencialmente uma som-
bra, mas havia algo de familiar nele.
Ele pegou um pedaço de cordão fino e se aproximou. O instinto
de Kiska rebelou-se contra ser amarrada de novo, e ela atacou com
a perna boa, acertando-o na parte interna da coxa.
Um assobio alto escapou dos lábios do homem, mas ele se incli-
nou sobre ela de novo.
Kiska cobriu o rosto, gritando:
– Não, por favor!
Ela puxou a faca que levava atrás do colarinho. Antes que pu-
desse usá-la, a bota do homem caiu sobre seu pulso e algo duro co-
mo um chicote de ferro bateu em sua têmpora. A escuridão da ca-
verna explodiu em pontos vermelhos e amarelos que a ofuscaram,
brilhando e apagando-se lentamente.
– Você pode fazer alguns movimentos – disse ele, relutante –,
mas está fora de seu ambiente aqui, criança. Não me faça matá-la.
Kiska pestanejou diante das luzes que confundiam sua visão.
– Pelos deuses, quem é você?
O homem a ignorou.
– Vire de costas – disse.
Ela obedeceu, e ele amarrou-lhe os pulsos. Outra figura subiu
até a fenda, e o homem se postou ao lado dele. Conversaram, e
contra a luz da lua Kiska o reconheceu. O homem do rosto inexpres-
sivo cheio de cicatrizes e bigodes de gato: o guarda-costas do ho-
mem que ela procurava.
Ela riu. Os homens a ignoraram e continuaram a conversar em
voz baixa, e ela não pôde ouvi-los. O recém-chegado saiu de novo.
O homem da tribo Seti voltou para ela. Tirou um pano preto de den-
tro da capa. Kiska reconheceu o pano e soube onde seria jogada.
– Eu tenho uma mensagem para seu mestre – disse Kiska en-
quanto ele preparava o pano para a cabeça dela.
As mãos hesitaram por uma fração de batimento cardíaco, para-
das.
Mas a escuridão envolveu Kiska.
– O homem que ele encontrou no jardim está morto – disse ela,
rápido e alto demais para seu gosto.
O coração batia forte.
Silêncio. Só se ouvia o taciturno movimento das ondas abaixo.
Kiska prestou atenção: nem mesmo o som de cascalho sob pés. Na-
da. Ele ainda estava lá? Havia alguém ali? Haviam-na deixado ali?
Talvez fosse uma espécie de bondade distorcida. Afinal, ela estaria
mais segura amarrada ali que percorrendo as ruas naquela noite.
A mão segurou o capuz pela parte superior. Gentilmente tirou-o
de sua cabeça. Os cabelos emaranharam-se no tecido grosso.
Um homem estava agachado à sua frente. Tinha um rosto com-
prido, fino, cor de mogno curtido, que parecia estranhamente insos-
so. Olhos fundos, escuros, contornados de preto; Cabeça marrom
raspada, mas com uma longa trança por sobre o ombro; uma fenda
reta como boca. Kiska imaginou os lábios rachando se ele fosse for-
çado a sorrir. Era seu alvo.
– Disseram-me que você tem uma mensagem para mim.
Ele falou em Talian aristocrático com uma pontinha de sotaque
que Kiska não conseguiu identificar. Tão fora de lugar naquela ilha
quanto ouro na boca de um peixe.
Ele esperava, sem expressão alguma. Kiska conseguiu falar:
– Em minha camisa.
Ela tentou levantar o braço, mas só conseguiu torcer o pulso.
Ele ergueu a mão.
– Posso?
– Sim… sim.
Ele usava luvas de couro preto; tinha dedos longos e finos.
– Não! – gritou o guarda-costas.
Ele a puxou para longe pela parte de trás do colarinho, e a se-
guir, revistou-lhe a camisa. A mão roçou-lhe o seio pequeno. Ela
sorriu para irritá-lo, mas os olhos dele permaneciam vazios de emo-
ção.
– Hattar… – murmurou seu alvo em tom de reprovação.
Ela olhou para ele.
– Ah, sim… Hattar.
Ele encontrou o pergaminho, e a seguir, virou-a e pressionou-lhe
o ombro com o joelho. O peso arrancou todo o ar do peito de Kiska.
O pergaminho estalou quando ele foi pegá-lo.
– Hattar – suspirou o homem –, você não sabe ler.
Hattar resmungou alguma coisa.
– Deixe-a levantar.
Contra a vontade, ele aliviou o peso. Ela puxou ar profundamen-
te, engasgando com a poeira e terra que aspirou. O flanco doía,
pressionado firmemente nas pedras irregulares.
– Vou falar com ela.
– Como?
– Levante-a.
– Meu senhor…
Silêncio. Kiska esperou, talvez por um olhar do Senhor. Ou um
gesto. Hattar ajoelhou-se dentro de seu campo de visão. Ele segura-
va uma terrível lâmina curva próxima ao rosto dela. A outra mão pu-
xava os cabelos de Kiska. Ele levou o rosto castanho e marcado pa-
ra perto do dela.
– Você e meu senhor vão conversar – sussurrou ele –, mas este
punhal – ele o balançou diante dos olhos dela –, se você se mexer,
vai entrar em seu coração pelas costas antes que sinta as cócegas
em sua linda pele macia, entendeu?
Ela assentiu com a cabeça, de olhos arregalados.
Hattar assentiu também. Ele se levantou, trazendo-a junto. Seu
mestre segurava o pergaminho com uma da mãos, batendo-o contra
a outra. Tinha os lábios levemente curvados para baixo.
– Peço desculpas por Hattar. Ele leva muito a sério suas fun-
ções.
Kiska ia assentir, mas decidiu não dizer nada.
– É verdade.
O homem suspirou, esfregando os olhos com os dedos.
– Qual é o nome de sua tia? – perguntou de repente.
– Agayla.
– O que ela faz em Winter’s Turn, ou Retiro do Cavaleiro, como
vocês dizem por aqui?
Kiska o fitava. Teria ouvido direito? Winter’s Turn? Ela quase deu
de ombros, mas sentiu uma picada de um lado da coluna e ficou rí-
gida.
– Ah, ela… ela lê o baralho dos Dragões para o ano seguinte.
– Sim, muitos fazem isso. E o que mais?
Um teste. Ele a estava desafiando, obviamente. Por que Winter’s
Turn? O que seria assim… E então, ela se lembrou. Um dia, ela
descera sorrateiramente a escada e vira, protegida pelo patamar,
Agayla ficar acordada a noite toda, desde o sino da meia-noite até a
luz do amanhecer. Tecendo. A noite toda. Kiska lambeu os lábios
secos.
– Ela tece.
O alvo assentiu.
– E qual é seu nome?
– Kiska.
Ele arqueou a sobrancelha.
– Seu nome verdadeiro.
– Como?
Ele esperou pacientemente. Kiska podia sentir Hattar às suas
costas ansiosamente tenso para desferir o golpe mortal.
– Kiskatia Silamon Tenesh.
Ele balançou a cabeça de novo.
– Muito bem, Kiska. Pode me chamar de… Artan.
– Artan? Não é seu nome de verdade.
– Não, não é.
– Ah, entendo.
Kiska não se permitiu imaginar qual seria o nome verdadeiro de-
le. Ele não lhe diria, de qualquer maneira.
Artan abriu o pergaminho. Ele se sobressaltou, levemente sur-
preso, e Kiska concluiu que o que quer que estivesse escrito, devia
ser muito surpreendente mesmo para quebrar o controle de ferro.
Ele soltou um longo suspiro enquanto batia o rolo contra as pontas
dos dedos.
– Ela disse como eu vi seu encontro? – perguntou Kiska.
Artan não respondeu. Para Kiska, o olhar dele fitava a distância,
e ao mesmo tempo, voltava-se para dentro, meditando.
– Artan?
Ele pestanejou e esfregou de novo os olhos cansados e antigos.
Como se houvesse pensado algo novo, ele a observou.
– Não. Não é essa a mensagem.
– Então, o que diz?
Ele a estendeu para Kiska, aberta.
– Isso significa alguma coisa para você?
Não havia nada escrito no pergaminho. Apenas um retângulo es-
boçado apressadamente no pergaminho. Dentro do retângulo esta-
va desenhada uma figura estilizada. Kiska não conseguiu identificar
o que era. Um guerreiro montado? Um homem nadando?
Curiosa, ela olhou mais de perto: viu a cor azul. Cores brilhantes
opalescentes. Placas de armadura brilhante, lisas como o interior
das conchas. E gelo, um volume crescente de escamas congeladas.
– Eu vejo gelo – disse ela, pasmada.
– É mesmo?
Artan pegou o pergaminho de volta, que murchou em suas mãos
enluvadas. Ele esfregou as mãos. O gesto incomodou Kiska; ela ha-
via visto pobres ilusionistas de rua usarem o mesmo truque.
– Muito bem. E sua mensagem? – perguntou ele.
Kiska o fitou.
– Não era isso…
Artan ergueu uma sobrancelha e Kiska viu que ela estava certa:
a boca do homem continuava sendo pouco mais que uma linha reta.
– Não. Essa era a mensagem dela. Não sua.
– Você a conhece?
– Nós nos encontramos algumas vezes… há muito tempo.
– É mesmo? Bem, minha mensagem é sobre Oleg.
Ele arqueou as duas finas sobrancelhas.
– Você sabe o nome dele?
– Ele me disse.
– Entendo. Continue.
– Eu… eu o segui em seu encontro com ele.
Artan lançou um olhar para Hattar por cima do ombro de Kiska.
Pesaroso? Acusador?
Ela ouviu um rosnado atrás de si. Apressou-se:
– Depois que você saiu, ele foi morto por um homem com vestes
cinzentas.
Artan quase franziu os lábios, e seus olhos escuros estreitaram-
se.
– Então, como ele lhe disse seu nome?
– Bem… eu esperei, e então entrei no jardim para vê-lo.
– E ele falou com você?
– Sim.
Artan suspirou.
– A Lua Sombria, claro… O que ele disse?
Kiska franziu a testa:
– Bem, coisas estranhas e desconexas. E as palavras… não sei
o que significam. De qualquer maneira, Oleg disse que a mensagem
era para você.
Artan estremeceu surpreso.
– Ele disse meu nome?
– Não. Ele disse que era para o homem que estava com ele. E
ele… bem, ele o chamou de idiota irresponsável.
Artan permitiu que seus lábios se curvassem sutil e friamente em
algo que poderia generosamente ser chamado de sorriso. Tocou os
lábios com os dedos enluvados.
– Continue.
– Ele disse que… que agora que estava morto, podia ver que ti-
nha razão o tempo todo.
– Essa é uma posição bastante inatacável – observou Artan se-
camente.
Kiska prosseguiu:
– Ele disse que Kellan…
Algo acertou a cabeça de Kiska por trás.
– Hattar!
Os olhos de Kiska encheram-se de lágrimas.
– Mil desculpas – disse Artan. – Eu devia ter lhe dito… nós não
pronunciamos esse nome.
– É, parece óbvio… Bem, o que eu estava tentando dizer era
que ele, ou seja, Oleg, disse que só os tolos achavam que aquele
está retornando para o trono imperial.
Por sobre o ombro de Kiska, Artan olhou para Hattar.
– Então, para que ele está voltando?
– Para outro trono. O trono das Sombras.
Artan apertou as mandíbulas – a expressão mascarada de uma
vida guardava os pensamentos para si.
– Lamento, mas não é novidade que Oleg pense assim.
Ele se levantou, limpando as calças com as mãos.
– É verdade!
– Sinto muito, Kiska. Mas, como você sabe?
– Porque outra pessoa confirmou.
Artan parou. Seu rosto não se alterou, mas Kiska pôde perceber
que captara seu interesse.
– Quem confirmou?
– Enquanto eu estava na cidade, fiquei presa em alguma coisa…
uma Mutante, nas Sombras. Conheci uma pessoa lá. Uma velha cri-
atura, como um cadáver ambulante, ou como um Imass, chamado
Edgewalker. Ele disse que muitas pessoas têm tentado tomar o tro-
no das Sombras.
Ela esperou, ansiosa, mas a informação não parecia significar al-
guma coisa para Artan.
– E ele disse que… o imperador… iria…?
– Bem, não. Ele apenas não se surpreendeu.
Kiska sentiu uma pancada no ombro. Droga! Ela não dissera o
nome dele!
– Lamento, mas preciso de mais provas que isso.
Artan estava certo, claro. Tudo havia sido bobagem de um ho-
mem que admitira odiar Kellanved. Ela era uma tola por ter acredita-
do nele.
– Temos que ir.
– Espere! Ele disse que durante a Conjunção, os caminhos entre
os reinos são acessíveis.
Artan assentiu.
– Sim, isso não é controverso. Eu sei disso, em teoria.
– Ah… Bem, Oleg disse que durante a transubstanciação existia
maior possibilidade de… ãhn… de sepultamento. E que essa é a
maior oportunidade de capturá-lo. Disse que você deve agir nesse
momento – Kiska franziu a testa. – Sabe o que isso quer dizer?
Artan suspirou.
– É tudo teoria taumatúrgica. Pesquisas que ele fazia. Eu mesmo
não tenho tanta certeza. Foi só isso?
– Não. Outra coisa.
– O quê?
– Bem, essa última parte parece meio boba para mim.
– Só a última parte?
Kiska deu um riso nervoso.
– Sim, bem… Ele disse para você não se deixar enganar pelas
aparências. Que ele planeja perder tudo para ganhar tudo. Que es-
sa derrota selará sua vitória.
Artan esfregou os olhos fundos com o polegar e o indicador.
Kiska ficou imaginando se aquele gesto seria um hábito inconscien-
te do homem.
– Pobre velho Oleg – suspirou Artan –, evasivo e oracular até o
fim. Obrigado, Kiska. Vou me lembrar dessas especulações.
– Mas eu vou com você, não vou?
– Pelos deuses, não!
– Como é?
– Hattar, amarre-a de uma forma mais segura.
– Agora mesmo.
– Espere!
Uma mordaça foi posta sobre sua boca de forma bem apertada.
O homem amarrou-lhe os cotovelos para os lados, abaixou-a e
amarrou suas pernas.
Na entrada da caverna, Artan disse:
– Adeus. Mande lembranças à sua tia.
Kiska praguejou pela mordaça. Hattar estava sobre ela, estudan-
do a obra. Estavam sozinhos na caverna.
Ajoelhou-se ao lado dela e tirou o chapéu de pelo de sobre os
longos cabelos ensebados.
– Se você for boa, vai conseguir se livrar destas amarras. Se
conseguir, não nos siga. Se eu a encontrar nos perseguindo de no-
vo, vou cortar suas penas, passarinho. Entendeu?
Ela o amaldiçoou até o mais distante Caminho de Hood. Ele riu –
por ouvi-la praguejar, imaginou ela – e saiu. Kiska ficou sozinha.
Por alguns momentos ela ficou deitada ali, ouvindo, para ter cer-
teza de que de fato estava sozinha e que ele não estava a obser-
vando na entrada. A seguir, Kiska concluiu que era uma tolice, que
ele não ficaria ali, pois seu mestre já fora, e começou a se contorcer.
Ela torceu e balançou as mãos para posicionar o polegar no ângulo
certo contra uma rocha, e então pressionou. Deslocou-o, com o es-
talo e a dor familiares. A seguir, usando as bordas das pedras – e as
próprias paredes –, ela arrastou, arrancou e forçou a corda do pulso
para baixo em direção aos dedos. Depois disso, foi fácil fazer o res-
to.
Tirando a corda das pernas, ficou livre. E em muito menos tempo
do que aquele bastardo Hattar havia pensado, ela tinha certeza.
Não os perseguir? Tudo bem. Ela ficaria à frente deles! Kiska lhes
mostraria do que era capaz. Ninguém a abandonava amarrada co-
mo um porco em um banquete.
Ela subiria até o Caminho de Rampart, e a seguir, esgueirar-se-
ia para dentro do Forte. Escalaria a parede, se fosse preciso. Assim
como fizera anos atrás, só para ver se era capaz. O alerta da tia
Agayla cintilou em seus pensamentos: Não entre no Forte! Mas Ar-
tan estaria lá. E, além disso, se houvesse grandes coisas aconte-
cendo, e maiores poderes em contenda, ninguém a deixaria de fora.
Capítulo IV
Velhos Inimigos, Velhos
Amigos

Uma única brasa cor de laranja piscava sombriamente no turbilhão,


no seio de um oceano gelado. Balançava e subia cada vez que o
pescador alçava o remo, que rachava e arrancava ruidosamente pe-
daços de gelo. Circulando ao longe, os Cavaleiros mergulhavam e
subiam juntos, e tornavam a submergir. Os dardos de gelo arremes-
sados contra o bote explodiam em nuvens de névoa. O pescador
forçava o cântico a sair dos lábios congelados.
Um Cavaleiro atreveu-se a arremeter no círculo de calma em tor-
no ao pescador. Carregado por uma onda, ele subiu perto, mas sol-
tou um uivo e começou a bater os braços enquanto a armadura pe-
rolada reluzente derretia-se. A seguir, mergulhou sob a superfície
em ebulição. Ao longe, no meio à espuma das ondas e às jangadas
de gelo, cinco Cavaleiros vestidos de índigo observavam, discutin-
do. No peito, eles embalavam varinhas de ametista. O frio pulsava
deles como uma esfera em expansão. Montados em suas ondas
agitadas, eles se dispersaram. Um deles elevou sua varinha para o
sul.
Acima das distantes águas arfantes, sob as nuvens, surgiu mais
um rochedo de gelo, o menor da flotilha. Cavaleiros de todos os la-
dos guiavam seu avanço. O pescador remava, alheio, com as cos-
tas curvadas, com todo seu ser focado no esforço de remar e em
sua canção. O iceberg erguia-se mais próximo, como uma forma es-
cura congelada até o âmago.
Vapor instantâneo explodia na frente do iceberg, estimulando os
Cavaleiros a nadar abaixo da superfície adubada com gelo. A água
derramava-se em torrentes pelos ombros do penhasco enquanto o
vendaval arrancava serpentinas de geada de seu pico. Quando um
caco de esmeralda glacial despontou na parte da frente do rochedo,
levantou uma fonte de respingos que rolou para o norte, em direção
ao barco, e desapareceu sob a proa. Agora, do coração do iceberg
projetava-se uma proa de madeira. A água fluía dela, jogando fiapos
de nuvens ao vento. Presa em uma montanha de gelo, abateu-se
sobre o pequeno barco.
O pescador, de costas para o vento que o castigava, continuava
remando enquanto o iceberg sepultava o Rheni’s Dream partido e
deslizava nas ondas. Ele continuou cantando mesmo quando a proa
do Rheni’s Dream pairava sobre seu barco. Estava remando quando
o barco foi esmigalhado e o braseiro incandescente se extinguiu em
uma explosão de vapor ao ser conduzido sob as ondas. O Rheni’s
Dream resistiu, inclinando-se, e as pranchas se soltaram e deforma-
ram. Foi pego de costado por uma onda enorme e rolou para longe;
pareceu hesitar, e então virou no mar. No meio dos destroços deixa-
dos para trás um dos remos flutuava. Uma bainha de gelo já brilha-
va sobre ele. Os Cavaleiros da Tormenta passaram pelos destroços.
Alguns ergueram suas lanças de gelo e a seguir as abaixaram,
apontando para o norte. No horizonte de nuvem e tempestade, um
relâmpago revelou uma mancha escura de terra.
•••
Altos vagalhões lançavam-se contra a costa sul, levados por um
vento gelado. Uma mulher, cujos longos cabelos pretos e saias em
camadas se debatiam, descia encolhida a costa pedregosa. Ela se-
gurava um xale nos ombros enquanto tomava a trilha que levava a
uma cabana de troncos, em um gramado logo acima da vertente.
Abrindo a porta de madeira, ela olhou para o interior escuro. Dentro
estava sentada uma mulher, imóvel, de frente para a porta, com o
tricô esquecido no colo. Os olhos brancos brilhavam na escuridão.
A mulher à porta estremeceu.
– Sou eu, Agayla.
A respiração pairava no ar gelado da casa de campo. Ela se
aproximou; a geada estalava sob seus sapatos. Cristais de gelo bri-
lhavam na lenha enegrecida na lareira. Os lábios e olhos da mulher
sentada estavam cobertos de geada.
Agayla estendeu a mão para pegar o tricô, mas a lã se quebrou.
•••
Sob a parca luz do luar que se infiltrava pelas nuvens agitadas,
Agayla andava pela borda da vertente onde velhos troncos e tábuas
jaziam encalhados, levados pelas altas ondas. Vapor subia dos de-
jetos mais frescos de peixes mortos e algas marinhas. Ela olhava fi-
xamente para o sul, para o horizonte de mar e nuvens por trás das
cristas espumantes que emitiam lampejos esmeralda e azuis. Sua
rota a levou ao alto de uma rocha com vista para a costa. Outra figu-
ra já estava ali: um velho com largas vestes marrons, calvo, exceto
por uma longa franja de cabelos brancos que açoitava ao vento. De
braços cruzados, ele fitava sério o sul.
– Já viu algo parecido com isto, Agayla? – disse ele sem se virar
enquanto ela se aproximava.
As palavras chegaram a ela com facilidade, apesar do vento ru-
giente.
Erguendo as saias com uma das mãos, Agayla pisava com cui-
dado nas rochas.
– Nunca houve nada semelhante desde os primeiros ataques,
Obo.
Ela parou ao lado dele e puxou mais o xale sobre seus ombros.
Ele resmungou, com uma carranca ainda mais profunda.
– E o pescador? – perguntou Obo, erguendo uma sobrancelha
para ela.
– Vencido. Ele estava lá fora sozinho. Eles sabiam como esta-
mos nus. Podiam sentir.
– E aquela idiota, Surly, tentando proibir magia na ilha. Por que
ela não parou para pensar por que esta ilha é uma incubadora de ta-
lentos? Sopradores de vento, amansadores do mar, magos da cera,
feiticeiros, leitores das Cartas dos Dragões. Pode escolher. Os cava-
leiros não se atreveriam a vir com centenas de ligas.
– Ela não sabia porque ninguém sabia, Obo – observou Agayla.
Ele cuspiu para o lado.
– Vou embora. Não podemos conter isso.
Ela lhe lançou um olhar.
– Claro. Corra de volta para sua torre. Nós dois sabemos que vo-
cê poderia mantê-la segura. Mas, o que dizer da ilha? Você gostaria
de viver em uma rocha sem vida continuamente sitiada pelos Cava-
leiros?
Ele bufou.
– Poderia ter suas vantagens.
Desdenhosa, ela balançou a cabeça.
– Nem tente isso. Você se ancorou aqui com sua torre, nesta
ilha. Tem que se comprometer. Não tem escolha.
Obo enrugou os lábios, como se houvesse provado algo repug-
nante. Ele levantou o queixo para o sul.
– De qualquer maneira, não podemos ganhar. Dois de nós não
são suficientes.
– Eu sei. Por isso convoquei mais alguém.
– Como? – Obo virou-se para ela. – Como você ousa! Quem?
Quem é? Quem está vindo? Não é aquele doido varrido, é?
– Pelos poderes, não! Ele não. Ele escolheu outro caminho. Não,
é outra pessoa.
– Não estou gostando disso.
– Eu sabia que não ia gostar – suspirou Agayla. – Nesse meio-
tempo, temos que resistir.
– Se eu não gostar de quem você chamou, vou embora. Juro.
– Sim, Obo.
Como se fosse atingida por uma súbita rajada de vento, Agayla
vacilou, deu um passo para trás para se firmar contra uma pressão
invisível. Postou-se atrás de uma rocha à altura de sua cintura para
se segurar; encostou-se nela, massageando a testa.
– Pelos deuses, nunca senti nada tão forte.
Anuindo, Obo cruzou os braços de novo.
– Bastardos obstinados!
•••
Temper abriu os olhos e viu que estava novamente no cerco de
Y’Ghatan. Aquele era seu velho pesadelo, que ele revivia sem parar,
dormindo e acordado. No entanto, fazia muito tempo que o pesadelo
não voltava, e ele ficou perturbado ao ver-se naquela situação uma
vez mais.
Ele ouviu som de pano chicoteando e estalando ao vento inces-
sante, ordens dadas em algum lugar próximo. O ar cheirava a couro
queimado e carne podre. As dúvidas e a persistente sensação de
mal-estar dispersaram-se como uma panela de água deixada sob o
sol escaldante das Sete Cidades. Havia densas fileiras de Mala-
zans, de costas para ele, diante de um campo lavado por tempesta-
des de areia. Corpos pontilhavam a planície, e uma floresta de lan-
ças e dardos projetava-se do solo em ângulos repugnantes. Pela
poeira erguiam-se as pardas paredes da primeira escarpa que leva-
va aos quatro níveis das antigas ruínas. Para Temper, as fortifica-
ções não pareciam mais sólidas que simples taipa. Mais além, os
sulcos irregulares como dentes das montanhas Thalas escureciam o
horizonte norte.
Bandeiras agitavam-se no vento forte. Ordens eram carregadas
e distorcidas pela voz do vento. Soldados marchavam. Temper ob-
servou a poeira, empurrou o elmo para trás e sentiu a garganta
cheia de areia. Um cantil bateu no peito de sua cota de escamas.
Ele o pegou, acenando para o homem barbado e encouraçado a
seu lado.
– Obrigado, Point.
– Pela Sabedoria de Burn, o que estamos fazendo neste buraco
abandonados por Deus? – resmungou Point ao pôr o elmo, uma pa-
nela de ferro com protetores laterais que se assemelhavam às man-
díbulas de um leão rugiente.
Temper não disse nada. Havia pouco a dizer. Point resmungava
de tudo; era seu jeito de ser. Nas linhas mistas, Gral, Debrahl e
Tregyn, da guarda Y’Ghatan, andavam para frente e para trás gri-
tando insultos roucos e ininteligíveis na distância, chocando as es-
padas contra escudos circulares de bronze. Temper virou-se para
examinar as paredes brancas ondulantes da tenda de comando.
– É a última – disse.
Point bufou.
– Não neste ninho de rato. Sempre haverá outra, e outra. Essas
pessoas nunca vão enfrentar a verdade.
Temper observava o pano balançando, os soldados da Marinha
montando guarda na entrada, e seus quatro irmãos guarda-costas
esperando ao lado deles.
– Talvez sim. Mas ele disse que é a última.
Point olhou para Temper com os olhos apertados por trás da
sombra do elmo.
– Você não acredita nisso de verdade. Ele está sempre dizendo
isso.
– Não sei. Você ouviu o que aquele sacerdote Bloorgian, Lanesh,
anda vociferando.
Point deu um tapa na bainha da espada em seu flanco.
– Aquele porco! Ele não consegue engolir que Dassem está mais
perto de Hood do que ele jamais estará. Ferrule disse que vamos ter
que matá-lo, e pela primeira vez eu concordo com um assassinato
brutal.
Temper se endireitou quando a aba da tenda foi jogada para trás
e os oficiais saíram.
– Lá vêm eles.
Dassem saiu com o elmo adornado com crina de cavalo debaixo
do braço. Os outros quatro guarda-costas juntaram-se a ele. Os sol-
dados enfileirados nas proximidades gritaram:
– Salve a Espada!
Dassem levantou a mão enluvada como resposta. Saíram tam-
bém alguns dos magos militares: o velho A’Karonys, com o bastão
maior que ele; o gigante Bedurian; a mulher, Nightchill; e o baixinho
careca e troncudo, Hairlock.
Point murmurou:
– Queria que o velho ogro ainda estivesse por aqui. Ele sempre
manteve aquela cadela sob controle.
Temper grunhiu, anuindo. A cadela, Surly, permanecia escondida
dentro da tenda. Os Subpunhos e comandantes Talians e Falarans
saíram e se dirigiram a seus postos. Em seu rastro, deixaram men-
sageiros correndo com ordens de última hora. Por trás das muralhas
da cidade, o som das trompas davam o alarme distante. Depois de
um último passe sufocado em poeira e os arremessos de dardos fi-
nais, a atormentada cavalaria de Y’Ghatan retirou-se.
O ataque durou o dia todo. Os trovões e rugidos da batalha subi-
am e desciam enquanto os comandantes do flanco sondavam as
defesas em busca de alguma fraqueza. A fumaça e o cheiro de car-
ne queimada tomaram conta de Temper quando A’Karonys atacou
os muros com chamas, mas foi repelido pelo que restava da Sagra-
da Falah’d. Ao redor de Dassem, Espada do Império e comandante
das forças imperiais, Temper e seus irmãos observavam e espera-
vam no calor fustigante do dia o momento em que a Espada entraria
em campo. Corredores iam e vinham, transmitindo informações para
Dassem e levando suas ordens. Uma companhia de sabotadores
surgiu dos ventos agitados. Endurecidos na poeira, mas sorrindo,
saudaram Dassem. Em algum lugar, as defesas haviam sido viola-
das.
Lentamente, passo a passo, a infantaria avançou. Escalaram o
primeiro aclive do terraço menor rumo ao primeiro anel de paredes.
Ali, os sapadores imperiais haviam feito seu trabalho, minando e ex-
plodindo seções inteiras. Até aquele momento, os defensores guar-
davam com unhas e dentes aquelas brechas. Barreiras de barris
empilhados e madeira eram erguidas durante a noite, e todos os di-
as os Malazans as derrubavam. Escalando uma rampa de cerco,
Temper calculou que cada passo pelo aclive corroído pela terra cus-
taria a vida de mil homens. Uma nuvem impenetrável de poeira
avermelhada escurecia tudo. À frente, gritos abafados e o som tro-
vejante de armas chegavam a ele com as rajadas de vento.
Temper observou as próximas paredes: não mais que um amon-
toado de tijolos enlameados cozidos pelo sol. Por que ali, naquele
remanso patético? Por que os restos esfarrapados dos sobreviven-
tes dos exércitos rebeldes e uns poucos últimos ungidos por Falah’d
convergiram ali? Os prisioneiros orgulhavam-se da extraordinária
antiguidade do lugar e o chamavam de progenitor escondido de to-
das as Cidades Sagradas. Uma afirmação conveniente agora que
todo o resto havia caído; e triste também, mostrando o pouco a que
uma orgulhosa nação havia sido reduzida. A última indigna batalha
de um povo derrotado.
Dassem fez um gesto para o batalhão de comunicações e os
mensageiros se detiveram; ele havia entregado a batalha aos sub-
comandantes do Terceiro Exército: Amaron, Choss e Whiskeyjack.
Temper se aproximou.
– A última, então?
Dassem ergueu os olhos escuros suavizados.
– Sim. A última.
Temper pensou em tudo que já havia ouvido de tantas fontes –
de pactos e juramentos feitos a Hood. Endurecendo-se, ele arriscou:
– Você não pode simplesmente ir embora.
Dassem deu um tapa na poeira que cobria a longa túnica cor de
vinho e cinza com o cetro imperial gravado no peito.
– Essa é minha última preocupação, Temper. Há muitos outros
bastante ansiosos para fazer seu trabalho. A Senhora sabe que eles
estão praticamente alinhados.
– Não pode ser assim tão fácil.
– Fácil?!
Os negros olhos da Primeira Espada brilharam, e Temper deu
um passo para trás. Dassem passou a mão enluvada sobre os
olhos, como se quisesse afastar a visão do horror. Os cabelos ne-
gros e compridos, trançados e presos para trás na nuca, agitavam-
se ao vento como a crina de cavalo de seu elmo, debaixo do braço.
Ele protegeu os olhos para observar a batalha.
– Ele cometeu um erro – disse em voz alta.
Temper perguntou-se o que aquilo queria dizer.
– Tudo que importava para mim me foi tirado. Não tenho nada a
perder.
Embora quisesse pegar o comandante pelos ombros e gritar:
Mas, pela sua alma, por que, Dassem?, Temper segurou a língua.
Ele já havia forçado o máximo que ousava, havia recebido da-
quele homem tudo que ele estava preparado para dar. Além disso, o
que Temper sabia de pactos feitos nos tempos de seu avô? Ou das
intenções obscuras de Hood, afinal?
Um rugido explodiu em milhares de gargantas quando os solda-
dos do Terceiro Exército Malazan avançaram para o próximo nível
das defesas.
– Falta pouco agora. Vamos ver Surgen em breve – disse Das-
sem em voz baixa.
Ele retraiu os lábios. Estava tenso e ansioso. Embora fossem ini-
migos, Temper sentiu pena dos soldados contrários. Dassem colo-
cou o elmo e começou a avançar. Temper e o resto da Espada – Po-
int, Ferrule, Quillion, Hilt e Edge – reuniram-se a seu redor.
À medida que avançavam, Temper procurava Surgen – Surgen
Ress, o homem que se dizia o último dos campeões patrocinados e
ungidos da Cidade Sagrada. Não importava que houvessem apenas
Sete Cidades Sagradas e que todos os sete campeões houvessem
tombado sob a espada de Dassem. Ele dera vida à alegação de que
Y’Ghatan era a oitava Cidade Sagrada, escondida, mas a mais ve-
lha. Temper se perguntava quanto tempo aquela pretensão poderia
durar.
Soldados feridos, alguns carregados, outros cambaleando, surgi-
ram no pó levantado pelo vento como se fossem espíritos convoca-
dos. Tudo parou à visão da crina negra de Dassem. Os que pude-
ram, saudaram-no; a maioria simplesmente o viu passar com os
olhos embotados de batalha.
Eles chegaram a uma segunda seteira alta de barro e sua ram-
pa. Cadáveres jaziam amontoados: infantaria Malazan com armadu-
ras escamadas sob túnicas cinza; defensores das Sete Cidades que
jaziam em massa, com as roupas e lenços de cabeça balançando
ao vento e os membros marrons retorcidos. Cruzando o segundo
muro de defesa, Temper e seus irmãos apertaram o círculo de prote-
ção.
O suor encharcava o enchimento da armadura de Temper e pin-
gava de suas sobrancelhas. A areia arranhava sua boca seca como
pedra cozida. Ele piscou, e os olhos arderam e lacrimejaram por
causa da poeira. Os gritos e choque de armas o ensurdeciam, como
sempre, mas ele estava mais relaxado que nas batalhas anteriores.
Ele sabia que os sobreviventes sacerdotes-magos das Sete Cida-
des, o Falah’d, não poderiam atacar enquanto fossem mantidos sob
controle pelos magos militares de Malazan.
Um corredor os alcançou e fez uma saudação.
Surgen tomou o campo. Pelo flanco direito.
Dassem o dispensou e olhou para o guarda-costas.
– Vou tentar não deixá-lo escapar desta vez.
Temper e seus irmãos sorriram quando Dassem desembainhou a
espada. Eles avançaram para a direita.
Os soldados regulares se separaram para lhes dar passagem.
Dassem tomou a frente, enquanto Point se pôs a seus flancos. Tem-
per, Hilt, Ferrule e Quillion ficaram para proteger sua retaguarda.
Chegaram às linhas de frente. Sargentos guiaram Dassem por
entre o turbilhão de poeira e de corpos lutando, até a posição de
Surgen nas linhas. Ao ver a crina do elmo de Dassem, os soldados
de Y’Ghatan uivaram, subitamente tomados de fúria. Lançaram-se
para frente em frenesi, como se aquilo significasse enterrar os sol-
dados enfileirados. Temper sabia que aqueles que haviam enfrenta-
do Dassem e tombado, haviam recebido a promessa de um martírio
abençoado. Então, em meio à poeira, surgiu a escolta de Surgen;
vinte guarda-costas escolhidos a dedo, com lenços vermelhos e li-
nhas pintadas no rosto. Dassem seguiu para a frente de batalha. A
infantaria de Y’Ghatan forçava passagem fechando-se como uma
parede. Logo Temper ficou ilhado pelos defensores das Sete Cida-
des nas voltas e movimentos da batalha.
De início, Temper não ficou preocupado. Aquilo já havia aconte-
cido antes, e, sem dúvida, aconteceria de novo. Ele tinha certeza,
inclusive, de que soldados regulares Malazans contra-atacariam pa-
ra alcançá-los. Surgen apareceu, entrou em confronto brevemente
com Edge, mas era evidente que ele não era o homem que Surgen
queria, e por isso ele se afastou, indo para Dassem, que estava so-
zinho; ninguém ousava enfrentá-lo, e aqueles que ousaram, não du-
raram mais que um movimento.
As lâminas se encontraram, tangendo continuamente. A escolta
de Surgen apertava ao redor de Temper, ansiosa para talhar a ele e
a seus irmãos que cercavam Dassem. Mas aquelas táticas haviam
sido tentadas com frequência. Temper travava um duelo cuidadoso
e defensivo com espada e escudo. Fortemente blindado, ele não se
esforçava, só ganhava tempo à espera de uma abertura para derru-
bar o oponente. E por fim, secretamente, sua vantagem era que ele
sabia: tinha só que durar o suficiente para que Dassem acabasse
com seu homem. No início, as coisas foram mal para os defensores.
Dassem investiu contra as costas de Surgen e a Espada avançou
com ele, cobrindo-o por todos os lados. Aparentemente subjugado,
o último campeão das Sete Cidades continuou a recuar, passo a
passo. Temper ainda esperava que os regulares Malazans o alcan-
çassem. Ainda hoje, os defensores de Y’Ghatan, cidadãos-soldados
reforçados por veteranos de todos os outros exércitos nativos esma-
gados, estão onde antes foram derrotados.
Dassem avançou e Temper acabou com o último guarda da es-
colta que enfrentava e dirigiu-se ao flanco para fechar a brecha.
Surgen atacou com as duas espadas e Dassem rebateu com a
lâmina a toda velocidade. A seguir, um flash passou diante dos
olhos de Temper e Dassem arfou, curvado para frente como se em-
balasse algo. Outro ataque? Uma seta ou parafuso? Temper não ti-
nha certeza do que vira. Surgen também se surpreendeu, mas ins-
tantaneamente aproveitou a vantagem. Com apenas uma das mãos,
Dassem rechaçou os golpes, ainda agarrando seu peito. Quillion e
Edge quebraram a formação e se interpuseram.
Então, o Caminho de Hood abriu-se sobre eles.
Sentindo o cheiro de sangue do campeão que resistira por mais
tempo do que qualquer um podia se lembrar, Surgen, sua escolta
restante e os regulares lançaram-se sobre eles. Quillion e Hilt luta-
ram como fanáticos enquanto a Espada tentava recuar em conjunto.
Mas só Dassem era páreo para Surgen, e também Quillion caiu sob
as espadas gêmeas do campeão ungido e patrocinado pelo Sagra-
do.
Temper berrou em busca de alívio, mas sua voz se perdeu entre
os gritos frenéticos dos defensores. Dassem lutou com a cabeça ba-
lançando, cambaleando. Nem Temper nem nenhum dos seus ir-
mãos remanescentes poderia deixar a concentração por um instante
para ajudá-lo. Torturava Temper sentir o homem cambalear atrás de-
le enquanto se retiravam, passo a passo, pelo terreno irregular.
O que foi que o acertou?, perguntava-se Temper, furioso. Quem
poderia tê-lo atingido? Como era possível que naquele dia, àquela
hora, soldados-cidadãos de Y’Ghatan derrotassem profissionais Ma-
lazans? O que lhes dera estrutura?
Cercados, lutavam para recuar. Temper só podia bater com o es-
cudo constantemente, cortando qualquer mão que segurasse as
bordas afiadas de seu escudo de ferro. Por um momento, os cinco
emergiram intactos como destroços jogados pelas ondas. Logo
eram quatro: ele, Dassem, Point e Ferrule. Suportaram até que Sur-
gen atacou a multidão como um urso dispersando uma matilha de
cães. Embora aparentemente ferido de morte, Dassem ainda facil-
mente defendia-se e abatia os regulares. Point moveu-se para inter-
ceptar Surgen enquanto Temper e Ferrule quebravam o cerco.
E ainda assim, os regulares Malazans forçavam passagem. Point
enfrentou Surgen. Temper viu um pouco do duelo – estava muito
ocupado atacando a infantaria das Sete Cidades que se jogava con-
tra ele em uma tentativa desesperada de derrubá-lo. Vislumbres o
convenceram da excelência de Point: o homem se superou, supor-
tando mais movimentos do que Temper julgara possível contra um
campeão patrocinado. Temper gritou de novo para os regulares Ma-
lazans. Mesmo que forças amigas os resgatassem, ele sabia que
cada um deles morreria sob as lâminas de Surgen.
Point caiu. Temper rugiu de raiva, pois Point havia lutado linda-
mente; não havia justiça em sua derrota. Ele usou a fúria caustican-
te para invadir a brecha. Do duelo que se seguiu, Temper nunca es-
queceu os olhos ardentes de Surgen fixos em um ponto além de seu
ombro… Dassem aleijado, fora de alcance.
Sentindo que o fim se aproximava, os regulares das Sete Cida-
des recuaram para dar espaço a Surgen. Ele forçou à frente com
confiança, com desdém até, e isso fez com que Temper se obstinas-
se ainda mais. Choveram golpes. Temper simplesmente curvou-se
como um barraco em uma avalanche, determinado a permanecer
em pé independentemente do que jogassem contra ele.
Surgen o castigou por sua temeridade. No entanto, Temper
aguentou. Surgen era incrivelmente habilidoso, quase tão forte
quanto Temper, e muito mais rápido. De frente aos olhos ferozes do
campeão e a boca aberta como se já estivesse sentindo o gosto de
sangue de Dassem, Temper abandonou toda esperança de sobrevi-
ver. Entregou-se como se já estivesse morto, determinado a perma-
necer em pé só o tempo suficiente para negar a Surgen a satisfação
da vitória. Ele se defendeu do homem usando sua força de touro pa-
ra fazer Surgen recuar sempre que possível. Reunindo forças, Tem-
per resmungou e investiu contra a cabeça de Surgen. Mas tal era a
velocidade do guerreiro, que Surgen simplesmente jogou a cabeça
para trás, ganhando apenas um corte na ponta do nariz. Surgen
afastou-se por um instante – atordoado, esperava Temper, pois já
não podia ver claramente em meio à névoa rosa de suor e sangue
que obnubilava seus olhos.
Ele esperou ofegante, ainda recuando, enquanto Ferrule, gritan-
do, atacava por todos os lados, entregue à luxúria da batalha cega.
Dassem cambaleou, aparando os ataques como um bêbado, mas
ainda era capaz de se defender contra os soldados comuns.
Surgen uivou de indignação e investiu contra Temper de novo. A
lâmina que atacava era extremamente veloz. Temper só podia espe-
rar para ver o estrago que o homem havia causado. Ele podia sentir
a vida escorrendo por suas pernas em uma maré quente e úmida. O
escudo quebrou-se sob o ataque de Surgen e Temper soltou sua es-
pada, pegando o pulso do homem. O campeão gritou em seu rosto:
– Morra! Morra!
Temper sorriu com olhos turvos para ele.
– Não estou com pressa, amigo.
Enfurecido, Surgen investiu contra ele de novo, lutou para liberar
o braço, mas ninguém, nem mesmo Dassem, poderia vencer o aper-
to de ferro de Temper.
Surgen olhou por Temper; seus olhos se arregalaram; ele gritou,
incoerente. Temper, com a visão escurecida, sentiu o aperto enfra-
quecer. Surgen libertou-se e recuou. Uma maré de regulares Mala-
zans juntou-se sobre eles. Braços tomaram Temper e o tiraram do
campo. Deixou-se levar por eles, e a seguir pela escuridão, sabendo
que havia ganho a última batalha – que, mais uma vez, resistira o
tempo suficiente…
Temper esperou que o velho pesadelo terminasse. Sempre acor-
dava depois daquele momento com o coração batendo forte e com
falta de ar. Mas, dessa vez, não houve escuridão. Surgen ainda foi
para cima dele como um operário, como se retalhasse um pedaço
de carne. E dessa vez, em vez de um elmo de bronze dourado, ele
usava um capuz cinza. A certeza da morte apertou a garganta de
Temper. A forma encapuzada inclinou-se sobre ele, sufocando-o em
um tipo diferente de escuridão. Temper não conseguia respirar. A
morte o pressionava como um grande peso, esmagando-lhe coste-
las, mais pesada ainda, até que sentiu que nada restava de si mes-
mo. Ainda assim, esforçou-se para lutar. Mesmo que fosse só para
mexer um dedo para cuspir no rosto dentro do capuz.
•••
Temper inspirou. O ar frio fez seus dentes tremerem. O peito se ex-
pandiu, murchou e se encheu de novo. A luz trouxe-lhe de volta a vi-
são, desfocada primeiro, e a seguir, limpa: mais uma vez, ele viu nu-
vens encobrindo as estrelas frias de um céu noturno.
Alguém falou fora de seu campo de visão, dizendo secamente:
– Você é um homem muito teimoso.
Gemendo, ele virou a cabeça. Um homem de capuz e vestes cin-
za claro estava sentado em um bloco de pedra. Temper umedeceu
os lábios e resmungou:
– Em nome de Fener, quem é você?
– Eu lhe faço a mesma pergunta, mas acredito que já tenho a
resposta.
O homem ergueu um objeto: o elmo de Temper. Girou-o em suas
mãos enluvadas como se criticasse o acabamento.
Temper gemeu, deixando a cabeça cair para trás.
– Meu povo viu seu duelo com Rood. Ficaram impressionados.
Eles… intervieram, e o trouxeram para cá.
Temper levantou o braço direito. Observou sua mão e esfregou
os olhos.
– Rood?
– O Cão das Sombras. Você o surpreendeu. Há presas fáceis
demais ultimamente, imagino.
Temper tentou se sentar, mas gemeu de novo. Ficou imaginando
como alguém interviria contra um demônio daqueles.
– Eu tinha que curar você depois que vi isto – disse o homem,
dando um tapa no elmo. – Tem um desenho bastante incomum.
O homem jogou o elmo no estômago de Temper. Com um suspi-
ro, ele se sentou.
O homem se levantou.
– Tem que se livrar dele. É muito marcante.
Temper fez uma careta.
– É o único que eu tenho. E a pergunta ainda permanece: quem
é você?
O homem o ignorou. Estudou algo ao longe, e a seguir, acenou
com a mão para que Temper se levantasse.
– O tempo é curto. É suficiente dizer que temos um inimigo co-
mum entre os Garras.
Temper grunhiu. Com cuidado, ficou na vertical. Examinou seus
braços e imaginou a carne curada sob as articulações partidas de
ferro e o couro retalhado do enchimento. Uma cura forçada daquela
magnitude o surpreendeu. Era algo inédito. Ele devia estar prostra-
do, em estado de choque, e o corpo convencido de que estava alei-
jado, se não morto. O que haviam feito com ele? Ao seu lado esta-
vam todas as armas e ambas as luvas, uma mutilada e esfarrapada.
Colocou de volta o cinto, sibilando e encolhendo-se por causa dos
membros rígidos e entorpecidos que emitiam choques de dor de ca-
da articulação. O homem apenas observava com o rosto incógnito
na escuridão.
Estavam nos Rochedos de Musgo, em uma clareira que a cidade
havia invadido à medida que crescia. Temper viu outras pessoas,
homens ou mulheres, usando as mesmas túnicas sem forma, mon-
tando guarda entre os bosques de bétulas e pedras.
– Bem… quem quer que seja – ele admitiu a contragosto –, você
está bem preparado.
– Sim. Esta noite é nossa. Nós controlamos a ilha duas ou três
noites a cada século.
Temper tentou vislumbrar nas sombras dentro do capuz do ho-
mem. Havia algo muito estranho em seu sotaque. Mas era como se
o capuz estivesse vazio. Aquilo o deixou chocado: muitas reminis-
cências dos Garras… e de seu sonho.
Outra figura aproximou-se, quase idêntica à primeira, e os dois
conversaram. Os capuzes quase se tocavam de tão próximos. Am-
bos ficavam anormalmente altos e magros dentro de suas vestes, e
conversavam em uma língua estrangeira cadenciada que deixou
Temper inquieto. Ele já havia encontrado uma grande quantidade de
idiomas em suas viagens, mas não aquele. Isso, a cura, o fato ine-
gável de que eles deviam ter feito algo para arrancá-lo das garras
do cão e a alegação do homem de que governavam esta noite fize-
ram Temper pensar no que havia ouvido falar sobre o culto de ado-
ração das Sombras. Uma seita impregnada de feitiçaria e patronos
de assassinos. E, evidentemente, uma organização caçada pelos
Garras. Fazia sentido. Rivalidade profissional, imaginou. Ele recor-
dou outra organização de assassinos criada por Dançarino no início
do Império: os Talons. Os Garras de Surly, diziam, começaram mais
tarde como uma pálida imitação dessa outra sociedade secreta. Ele
também ouvira murmúrios de que desde a ausência de Kellanved e
Dançarino, a organização de Surly havia se esforçado para preen-
cher o vazio. Que as pessoas leais à velha guarda foram desapare-
cendo.
Ele nunca se considerara particularmente leal a Kellanved ou
Dançarino; fora a Dassem que ele se recusara a trair aquele dia em
Y’Ghatan. Ele havia sobrevivido, ido para a sombra. Observando
aqueles dois, Temper se perguntava se eles também haviam servi-
do; mas, por Hood, com certeza não perguntaria.
Temper limpou a garganta. Aquele que havia se dirigido a ele an-
tes voltou-se para examiná-lo:
– Venha – disse, acenando para que Temper o seguisse.
E, de repente, começaram a atravessar o prado coberto de pe-
dras. Surpreso, Temper ficou paralisado até que outros dois usando
a mesma túnica sem forma o abordaram de ambos os lados. O mais
magro dos dois andava com um meneio arrogante, convencido, que
fez Temper querer estapeá-lo. Marcas de queimaduras maculavam
suas roupas na frente e na borda da capa, como se o tecido houves-
se sido jogado no fogo. O mais forte lhe fez sinal para seguir em
frente, com a mão peluda, de articulações largas, como as mãos de
um ferreiro ou de um estrangulador.
Ele foi levado a uma colina com vista para o distrito ao leste da
cidade velha.
– O que está vendo? – perguntou aquele que o havia acordado.
Temper hesitou. O que aquele homem queria dele? A seguir,
com relutância, examinou o quarteirão. Névoa densa como nuvens
baixas aderia aos telhados e serpeava pelas ruas. Parecia convergir
na Pousada do Enforcado – e na vizinha Casa Morta também.
Olhando bem, pôde distinguir luzes; um misterioso nimbo azul
esverdeado que às vezes acompanhava a manipulação dos War-
rens. Quantas vezes ele testemunhara aquele mesmo brilho, como
um espírito, explodindo sobre as batalhas? E quantas vezes ele se
abaixara, sentindo o mesmo frio no estômago, porque aquilo era al-
go que toda sua habilidade não poderia combater? Daquele mesmo
quarteirão, como uma explosão distante de munição alquímica, ou-
viu o chamado profundo de um cão.
– O que é isso? – perguntou Temper.
– Alguns dizem que é um portal – disse o homem em tom pensa-
tivo. – Uma entrada para o reino das Sombras. E aquele que passa,
comanda esse Warren como rei. Uma possibilidade impressionante,
não é?
Temper anuiu.
– Então, é isso. Você vai entrar lá.
Um riso sedoso saiu sussurrado de dentro do capuz.
– Não, eu não. Eu não tenho o poder. E é muito bem defendido.
Os cães são somente os primeiros guardiães. Mas outro pode tentar
antes do amanhecer, e por isso estamos nos preparando.
– E o que isso tem a ver comigo?
– Você poderia ajudar.
Temper balançou a cabeça de novo, desta vez com desprezo.
– E se eu me recusar?
O capuz olhou para Temper, e ele olhou para dentro tentando en-
contrar os olhos do homem na escuridão. O silêncio cresceu em du-
ração e desconforto. Temper esfregou a cicatriz que lhe atravessava
o queixo.
– Pode ir embora – disse o homem.
Temper disse em tom de zombaria:
– Como é? Simplesmente ir embora?
– Sim, simplesmente. Dois companheiros vão acompanhá-lo
aonde quiser.
Ele indicou algo atrás de Temper.
Olhando para um dos lados, Temper viu os guardas de antes es-
perando nas proximidades, ao longo de uma parede de musgo.
– A qualquer lugar?
– Sim.
– Então, acho que vou aceitar a oferta.
– Muito bem, soldado.
E o homem fez uma saudação levando a mão ao peito – o velho
sinal do Cetro imperial.
Temper tirou a mão da cicatriz que lhe cortava o rosto até o quei-
xo.
– Imagino que não quer saber o que eu penso sobre suas chan-
ces.
O capuz inclinou-se para o lado.
– Não seja tolo, Temper.
– Sim, tem razão. Meus agradecimentos pela cura.
O capuz inclinou-se em um adeus. Temper recuou alguns pas-
sos, como se temesse que no último momento eles mudassem de
ideia, e a seguir, seguiu para Riverwalk. Seus dois acompanhantes
seguiram seus passos.
•••
Durante todo o caminho até Riverwalk as costas de Temper coça-
vam, como se estivesse sendo observado pelos Gêmeos. Ele não
conseguia afastar a suspeita de que aqueles dois haviam sido envi-
ados para matá-lo e deixá-lo em uma vala. Estupidez, claro; eles po-
deriam tê-lo simplesmente deixado para o cão. Mas o velho hábito
de uma paranoia saudável não o abandonaria.
Por fim, não aguentou mais; parou abruptamente e virou-se. Re-
tornou cerca de dez passos; a dupla parou também. O magro fez
uma pose, cruzando os braços, como se estivesse entediado com
tudo aquilo. O mais encorpado acenou.
– Não têm nada a dizer, não é? – provocou Temper.
Mas, a seguir, retomou sua caminhada. Maldita profecia do Re-
torno, disse a si mesmo. Era isso; não essa bobagem de portal das
Sombras. Eles se reuniram por ele esta noite. Para que Kellanved
volte e reclame o trono do Império. Afinal, ainda era dele. E Temper
teve que admitir que era difícil engolir que ele havia desaparecido e
deixado que Surly – ou qualquer outro – usurpasse o trono. Se ain-
da estivesse vivo.
Pura merda. Neste caso, pura merda de cachorro. Com o ama-
nhecer, o milênio que previram não vai surgir e eles desaparecerão,
como tantos cultos antes deles. Temper nunca havia sido um ho-
mem religioso. Os velhos deuses padroeiros dos soldados, Togg e
Fener, sempre haviam sido mais que suficientes para ele. O resto
dessa teologia empoeirada só deixava sua cabeça entorpecida. Ve-
lho contra Novo; ascensão e queda de casas de influência; a eterna
caça à Ascensão. Ainda assim, era complicado ver que alguém tão
claramente inteligente e organizado como aquele sujeito de túnica
engolia tudo isso.
Ele virou para o norte, rumo ao Pântano de Grinner. O Caminho
de Rampart se ergueu na neblina, fazendo Temper sorrir. Isso, e o
pensamento de que ele tinha um navio de carga cheio de perguntas
para Corinn quando a encontrasse. Contava com obter respostas
dela. Pelos ossos de Hood, que lhe devia uma explicação. Eu vi, ela
disse; havia visto a quebra da Espada. Por quê? Para fazê-lo coope-
rar? Ele fez uma breve oração a Togg para que de alguma forma ela
conseguisse escapar de tudo aquilo.
Ao pôr a mão na parede fria de granito do Caminho de Rampart,
ele virou-se para seus dois acompanhantes. Eles haviam parado al-
guns passos para trás, lado a lado.
– Vocês não vêm?
O capuz do magro levantou-se quando ele ergueu os olhos para
o Forte.
– Você só vai encontrar a morte hoje ali.
Temper teve vontade de rir, mas as palavras do homem o fize-
ram sentir um frio na espinha. Dispensou-os com um aceno.
– Talvez. Corram de volta para seu mestre para ele saber onde
estou.
– Ele sabe.
Temper os observou. Eles permaneceram imóveis. Ele ficou
olhando por um longo tempo, até que, bufando de impaciência, co-
meçou a subir os degraus.
Resmungando, Temper subiu as pedras molhadas. Que bando
de lunáticos, tolos! Como se existisse algo de todo esse papo-furado
dos charlatães sobre um Retomo. Era embaraço, isso sim. Provavel-
mente um grupo de aristocratas mimados, nenhum dos quais jamais
havia derramado uma gota de sangue nos campos. Que nunca vi-
ram Kellanved assassinar milhares quando derrubara o muro da ci-
dade; ou seus animais de estimação, os guerreiros T’lan Imass,
abatendo cidades inteiras. Já vão tarde os dois, esse Dal Honese e
seu parceiro espião, Dançarino!
Em sua carreira, Temper encontrara um monte de homens, e lu-
tara com muitos, e podia dizer honestamente: nenhum o assustara
tanto quanto aqueles dois.
Dassem raramente falava do imperador, mas quando o fazia, era
sempre com o maior cuidado e cautela. Ele contava que uma vez
entrara em uma escura tenda de comando, durante as pacificações
Delanss, para informar Kellanved sobre a dispersão das tropas. En-
quanto os dois conversavam, um auxiliar levara uma lamparina ace-
sa para a tenda sombria, e Dassem ficou sozinho. Mais tarde, ele
soubera pelo almirante Nok que naquele dia o imperador estava no
mar, a bordo do Twisted. Dassem dizia que aquilo era característico
no velho: ninguém nunca devia ter certeza de onde Kellanved esta-
va.
Temper o vira de vez em quando, e mais tarde, de longe, durante
o recrutamento das tropas. Era negro, pequeno, com membros no-
dosos e cabelos grisalhos curtos. Ou essa era sua pretensão. À pri-
meira vista, parecia nada mais que um gnomo velho e seco. No en-
tanto, um olhar dele era suficiente para fazer alguém voar longe, co-
mo se houvesse sido atingido; ou, se quisesse, para esmagar joe-
lhos. Isso Temper tinha que admitir.
Mas Dassem, Espada do Império, cuidava de seus homens. Pela
Rainha, o exército literalmente o adorava! Todos esses outros –
Surly e os demais – também sabiam disso. Temper havia visto isso
em seus olhos nas vezes que acompanhara Dassem às reuniões.
Surly e os outros lacaios só conheciam a regra do medo. Mas Das-
sem, com um elogio aqui ou uma palavra de repreensão acolá, con-
seguia conquistar o coração de um homem. E ele os conduzia no
fronte; em cada batalha. Os soldados se empurravam só para ter a
chance de lutar perto dele.
Em um ponto da subida em ziguezague, Temper parou. A noite
se fechava sobre ele, negra, oca e surpreendentemente fria – um
frio que parecia chegar à sua alma. Abaixo, a névoa obscurecia as
encostas e pairava sobre a cidade. Caía uma chuva gelada; ele en-
xugou o rosto. Droga, estou esfolado! Seus ossos doíam. Que horas
seriam? Quatro sinos, ou cinco? Ele não conseguia se lembrar de
ter ouvido o farol no quebra-mar. Pelos deuses, estava cansado. En-
costado na parede, ele se perguntava o que pretendia. Olhou para
os tufos preguiçosos de névoa e as estrelas estranhamente monóto-
nas, e se lembrou daquela outra noite. A noite em que ele e Dassem
morreram, cerca de um ano atrás.
•••
Ele havia despertado na tenda de uma enfermaria. Era uma instala-
ção para oficiais, pequena e vazia, ao contrário das lotadas com sol-
dados regulares; e o excedente simplesmente empilhava-se do lado
de fora. Ferrule estava sentado ao seu lado, em um baú de viagem,
mais baixo, mais peludo e com mais cara de cruel do que nunca. Ele
usava um colete de couro grosso sobre um gibão de pano. Duas for-
mas escuras postavam-se diante da entrada fechada da tenda: Gar-
ras.
– Você voltou – dissera Ferrule sorrindo, dando um tapa na per-
na.
Com a mão esquerda, escondida pelo corpo, ele fizera um sinal:
eles fizeram sua jogada.
Temper respondera com um débil aceno de cabeça e sorrira.
– É. Inteiro de novo. Sua jogada. Eles, os seis, sempre soube-
ram que isso aconteceria. Haviam falado sobre isso, haviam se pla-
nejado, temerosos. E agora, eram apenas dois. Dois contra os Gar-
ras de Surly.
– Onde ele está?
Ferrule apontara com a cabeça para a entrada.
– Levaram-no para tratamento especial. Eu tentei detê-los,
mas… – e dera de ombros.
– E o ferimento?
– Feio. Pior ainda.
Ferrule abrira levemente o colete, revelando os punhos de duas
facas.
Temos que chegar até ele.
– Como está se sentindo? Fiz que o curassem. Pelo fedor de
Togg, fiz mesmo – rira ele.
Você pode fazer isso?
Temper sinalizou para Ferrule: conte comigo.
– Eu me sinto como um gatinho recém-nascido. Ajuda-me a le-
vantar. Temos que ver como ele está.
Ferrule havia exagerado só um pouquinho. Surgen praticamente
o transformara em um cadáver ambulante. A cura forçada e a tessi-
tura óssea haviam sido maravilhosas, mas tão traumáticas quanto
os próprios ferimentos; durante semanas sentira-se como se hou-
vesse sido torturado. Temper engolira vômito azedo. O suor escorria
por todo seu corpo e rosto. No entanto, estava vivo, e havia jurado
sua vida a Dassem. Se os Garras estavam por trás daquele ataque,
então, no que lhe dizia respeito, haviam cometido um enorme erro
não matando todos eles imediatamente. As mãos de Surly provavel-
mente estavam atadas, visto que muitos deviam ter testemunhado a
sobrevivência deles.
Ferrule grunhira:
– Não desmaie em mim – e passara-lhe uma faca enquanto o
ajudava a sair do leito.
Temper apoiara-se no ombro de Ferrule, meio por encenação e
meio porque seus joelhos tremiam, mal capazes de sustentá-lo.
Ladeando a entrada, os Garras trocaram olhares. Ambos eram
do sexo masculino e estavam vestidos para combate, e não com os
mantos negros e soltos com que sempre se envolviam quando se
permitiam ser vistos. O uniforme não oficial consistia de um tecido
escuro tingido, botas de couro altas, calças, jaquetas largas, coletes
e luvas. Os longos cabelos presos pendiam em suas costas. Cada
um deles carregava um arsenal, mas escondido em bolsos e do-
bras. As minúsculas garras de prata brilhavam no peitoral esquerdo
deles.
Temper cambaleava pela tenda apoiado no braço de Ferrule,
exagerando sua fraqueza; mas provavelmente não enganava nin-
guém. A solidez de rocha de Ferrule dava-lhe segurança. Seria bom
tê-lo ao seu lado em vista do que o esperava. Eles deram ao Seti,
peludo e musculoso, o apelido de Ferrule. Ele preferia lutar de perto,
e depois de uma batalha, o sangue literalmente escorria dele.
Os Garras puseram-se lado a lado.
– Você vai ficar. Recuperar-se. Ordens do regente.
Ferrule diminuira o passo.
– Estamos indo embora, rapazes. Afastem-se.
– São ordens, soldado. Não desafie a autoridade dela.
Temper sentira o braço de Ferrule, que o sustentava, flexionar-
se, preparando-se para a ação.
– Afastem-se – advertira, elevando a voz –, ou vamos passar por
cima de vocês como fizemos com a Guarda Sagrada.
Os Garras trocaram um rápido olhar. O que havia falado acenara
com a mão.
– Feitiço! – rosnara Ferrule.
Ele puxara a mão com que apoiava as costas de Temper e uma
faca voara. Temper atirara-se para frente e para o lado. Algo cortara
seu braço, rasgando o curativo. Ele rolara até onde os Garras esta-
vam antes, e apesar de tonto, lançara-se a tempo de pegar o torno-
zelo de um quando tentava invocar seu Warren. Desequilibrando-se,
o homem caíra e perdera o controle das forças que tentava convo-
car. Torturado pela dor lancinante, com a visão escurecendo e furio-
so, Temper esfaqueara a virilha do homem, e a seguir, pulara e lan-
çara um golpe letal na garganta. Mas o Garra desviara, e a lâmina
de Temper acertara o queixo do homem.
Surpreendentemente, o Garra ficara firme. Temper se retardara
porque descobrira que o flanco direito estava manchado de sangue
fresco e algo longo e afiado inteiramente preso em seu braço. Em
nome de Hood, como aquilo havia chegado até ali?
Uma faca surgira na mão enluvada do Garra. Temper tentara
atacar-lhe as pernas, mas fora um esforço débil. Quando o Garra in-
clinara o pulso para trás para atacar, Ferrule o acertara. Caíram jun-
tos, com os membros embaraçados, balançando, chutando, pelejan-
do. E embora houvessem sido trocados mais golpes do que Temper
era capaz de acompanhar, tudo acabara em poucos segundos.
Ferrule levantara-se com um sorriso forçado. Tinha uma orelha
pendurada, quase arrancada. A camisa estava rasgada e os curati-
vos do peito em farrapos.
– Graças ao Vento – dissera, suspirando como se houvesse aca-
bado de virar uma caneca de cerveja –, morro de vontade de fazer
isso há anos.
Temper gemera e levantara-se, cutucando-lhe o braço.
– Será possível que hoje sou o alvo de todo o mundo?
Ferrule examinara o ferimento, e a seguir, arrancara a lâmina.
Temper sufocara um grito de dor, segurando-se no ombro do ho-
mem para não cair. Ferrule, admirando o longo punhal letal, assobi-
ara.
– Poderia tê-lo acertado no coração.
– Muito obrigado.
Ferrule sentara-se e começara a ajeitar o braço. Temper obser-
vava o grande homem trabalhar, sentindo-se envergonhado pela
própria atuação naquela briga rápida e suja. Achava que não seria
muito útil no que estava por vir.
Ferrule verificara a entrada e relatara que parecia que estavam
sob quarentena não oficial naquela noite. Dissera que vira aonde
haviam levado Dassem, e a seguir, limpara-se e recolhera as armas
úteis dos Garras. Temper sentara-se, balançando a cabeça. Limpan-
do a garganta, dissera:
– Ouça, Ferrule, parece que não serei muito útil. Talvez você de-
va ir sozinho.
Ferrule afastara os olhos do Garra morto. Havia algo em seus
olhos: espanto? Descrença? Aproximara-se de Temper.
– Não será útil? É um milagre você estar vivo. Sabe o que fez?
Temper balançara a cabeça, em dúvida.
– Você encarou Surgen! Foi incrível! Eu não vi metade, mas todo
o mundo está dizendo. Eu os ouvi na tenda. Ele era um campeão
patrocinado pelas Cidades Sagradas! Incitado por magia. Ungido
pelo templo. E você o encarou! Pensei que havíamos conseguido,
mas você salvou nossa pele. Até ouvi rumores de que talvez você ti-
vesse um patrono na manga.
Temper rira.
– Estou falando sério. Você sai desta tenda parecendo um bloco
de granito, como sempre, e todo o mundo recua. É sério – Ferrule
indicara os cadáveres. – Não lhe pareceu estranho que os dois en-
traram em pânico? Você… nós impressionamos algumas pessoas
hoje. Pessoas que pensavam que certamente estaríamos mortos.
Aquilo havia incomodado Temper também. Havia sido fácil de-
mais. Os Garras agiram como se estivessem enfrentando adversá-
rios de potencial desconhecido. Esforçaram-se muito para manter
distância. Temper balançara a cabeça e apertara o braço de Ferrule.
– Muito bem. Salve a Espada!
Ferrule sorrira, tomado de uma alegria selvagem.
– Somos só três agora, mas três vezes o suficiente.
•••
Vestidos e limpos, afastaram-se da entrada da tenda e corajosa-
mente atravessaram a enfermaria do acampamento. A noite era
quente e seca. Os galhos de um olival nas proximidades sussurra-
vam ao vento fraco, e uma lasca de lua brilhava como a lâmina
amarela de uma cimitarra. Tochas queimavam em cada cruzamento
importante da cidade de tendas, mas poucos soldados movimenta-
vam-se por lá. Cumprimentaram cada sentinela, e alguns, reconhe-
cendo-os, gritavam:
– Salve a Espada.
E Ferrule erguia o punho em resposta.
– Eles sabem que estamos chegando – queixara-se Temper.
– Quanto mais testemunhas, melhor.
Temper grunhira ao ficar ciente do que estava acontecendo. Fer-
rule dirigira-se a uma tenda privada perto do limite da enfermaria.
Luzes brilhavam ali dentro, e dois Garras se situavam na entrada fe-
chada. Quando se aproximaram, ver a surpresa escancarada e a
confusão tomar conta daqueles lendários assassinos aquecera o co-
ração de Temper.
Lado a lado, foram até os Garras que guardavam a entrada.
– Viemos ver Dassem – anunciara Ferrule sem diminuir o passo,
e acenara para os soldados que observavam nas tendas próximas.
Após uma breve hesitação, um Garra inclinara a cabeça e se pu-
sera de lado, abrindo a entrada da tenda. Ferrule olhara pela abertu-
ra escura, talvez contrariado com tanta cooperação. Temper sentira
uma pontada de dúvida. E se eles simplesmente haviam mudado
Dassem de lugar?
Lamparinas de argila davam ao interior uma luz fraca e vulgar.
Dassem jazia sobre uma cama como se estivesse morto, com ban-
dagens no torso. A luz âmbar dava à sua pele escura um brilho rico,
como se fosse uma estátua de bronze. Temper parara, sentindo a
presença de outra pessoa nos recessos escuros da tenda.
Ouvira tecido sussurrando no escuro.
– Salve a Espada – dissera uma voz de mulher.
Surly saíra das sombras com três Garras logo atrás. Temper ra-
ramente a vira tão de perto. Ela usava suas vestes típicas: camisa,
faixa, calças, e pés descalços. O rosto liso da mulher era plano e es-
treito, tenso de concentração. Os cabelos estavam curtos, no estilo
comum a muitas mulheres que serviam nas forças armadas de Ma-
lazan, e suas mãos ostentavam calos escuros. Seu olhar atingira
Temper como duras arestas. Como a terceira pessoa mais poderosa
do Império, Temper supusera que ela tinha que ser assim.
Temper conhecia de nome e reputação os três Garras que esta-
vam com ela: segundo em comando Topper, vestido com seda verde
– sua assinatura; Possum, de olhos esbugalhados e rosto estreito
como o animal que deu o nome; e Jade, uma Dal Honese de tons
escuros, uma das mais cruéis da equipe.
Ferrule e Temper ignoraram Surly e seus assessores e se dirigi-
ram ao leito de Dassem. Temper tentara tomar-lhe o pulso, mas não
sentira nada.
– Ele está vivo?
– Por enquanto – respondera Surly. – Está pairando na fronteira
do reino de seu patrono. Parece que Hood está ansioso para tomá-
lo em seus braços.
Ferrule e Temper trocaram olhares e viraram-se para Surly. Tem-
per vira Ferrule avaliando Possum. Balançando sobre seus pés, Ja-
de parecia pronta para voar sobre Temper.
Surly levantara a mão apaziguadora.
– Uma mudança foi decidida. Choss foi promovido a Alto Punho
e comandante interino do Terceiro.
Ferrule zombara da notícia, mas Temper soltara um longo suspi-
ro, pensativo. Choss era um nome que poderia agradar a maioria.
Os oficiais o respeitavam, e era um estrategista habilidoso. Também
não tinha patrono. Era só um soldado regular – nenhuma ameaça
para Surly.
Temper umedecera os lábios.
– Mas você ainda precisa de Dassem. Choss não é campeão.
Surly franzira a testa, negando com a cabeça.
– Não, Temper, você ainda não entendeu. As coisas são diferen-
tes agora. Enquanto estamos falando, Surgen sucumbe a seus feri-
mentos. Não é a vitória mais decisiva, mas será uma vitória. E desa-
nimada, sem tempo para um novo ritual de unção, Y’Ghatan vai cair.
Chega de campeões, são muito caros. Muito… vulneráveis.
Rosnando, Ferrule teria atacado, mas Temper o segurara pelo
ombro.
– E nós?
Surly erguera as sobrancelhas, surpresa e impressionada com o
pragmatismo de Temper.
– O que desejam? Promoção? Títulos? Um governo regional?
Ferrule apertara ferozmente o braço ferido de Temper, que mor-
dera os lábios para não gritar. Com a mão nas costas de Ferrule, fi-
zera com os dedos um sinal: espere.
Temper dissera com a voz controlada:
– A vida de Dassem.
Surly assentira.
– Isso pode ser arranjado.
Sua resposta decidira a noite para Temper. Parecia que nenhum
deles tinha a intenção de manter a palavra. “Sem testemunhas”, era
quase o credo de Surly. Os Garras nunca deixavam ninguém vivo.
Era parte de suas táticas de terror. Temper também acreditava que
ela sabia que ele não se venderia, ou não se importava. No entanto,
tinham papéis a desempenhar, uma charada a resolver.
– Tudo bem – dissera, respirando longa e lentamente. – Vamos
ficar com ele por enquanto.
Surly franzira os lábios. Temper quase podia ver os planos e as
várias opções dando voltas nos pensamentos dela quando Surly
olhara para os dois. O olhar dela permanecia no braço ferido de
Temper, e algo mudara nos ombros da mulher. Ela inclinara leve-
mente a cabeça.
– Muito bem. Podem discutir os detalhes com estes dois repre-
sentantes. Possum, Jade, cuidem destes cavalheiros. Topper, acom-
panhe-me.
Os dois Garras avançaram meio passo. Surly dirigira-se à entra-
da; o tecido de sua calça farfalhava silenciosamente. Quando ela se
virou, Temper olhara para o próprio braço: sangue fresco ensopava
as novas bandagens. Muito bem. Ela achara que poderia dar uma
ajudinha para terminar o trabalho.
Topper abrira a entrada da tenda, e com um gesto de despedida
em semicírculo, Surly saíra. Ferrule e Temper trocaram olhares. O
primeiro, de pernas flexionadas e braços torcidos, parecia um urso
pronto para atacar; pestanejara. Era o velho brigão extremamente
confiante de sempre.
Temper não podia mostrar o mesmo apreço pela briga. E seus
temores se confirmaram quando os dois Garras que guardavam o
acesso entraram assim que a comandante saíra. Possum fizera um
movimento, como se jogasse algo para baixo, e de repente, os sons
externos às paredes da tenda cessaram, como se houvessem sido
arrancados.
Merda, bufara Temper; isso garante a privacidade. Ele decidira
arriscar a única chance louca que havia pensado enquanto Surly fa-
zia sua própria avaliação da situação.
– Dê-me cobertura – dissera a Ferrule.
Com um único movimento, pusera um pé à frente, ajoelhara-se e
empunhara a faca com as duas mãos sobre o peito de Dassem. Pai-
rando às portas da morte, dissera Surly. Ele orara para que aquilo
fosse uma verdade não intencional, pois Hood era o deus patrono a
quem Dassem jurara sua alma – jurado, e a seguir rejeitado.
Atrás de si, ele ouvira Ferrule defender os primeiros ataques, en-
quanto, no mesmo movimento, mergulhara a faca com toda sua for-
ça.
– Detenham-no – rosnara Possum.
Alguma coisa acertara a cabeça de Temper.
Dassem rapidamente pegara o braço de Temper e o jogara de la-
do. Sentara-se. Temper batera em um leito e caíra no chão de terra
batida. O sangue cegava-lhe um olho e aquecia seu rosto. Ele assis-
tira ao resto da luta corpo a corpo ao seu lado, atordoado, brigando
contra a inconsciência.
De forma tola, talvez enganados pela vantagem numérica e a
condição enfraquecida de Dassem, os Garras decidiram terminar as
coisas ali. Temper não os poderia culpar. Afinal de contas, eles não
haviam lutado lado a lado com Dassem como ele e Ferrule. Eles
nunca haviam visto de perto do que a Primeira Espada era capaz.
Além do quê, os Garras tendiam a ser excessivamente confiantes.
Tudo parecia passos de dança lentos e deliberados para a visão
ofuscada de Temper. Ferrule girara para o lado, repelido por Pos-
sum. O sangue jorrava de seus ferimentos quando ele caíra. Os ou-
tros três foram para cima de Dassem, que se jogara sobre o mais
próximo. Em um único movimento, ele simplesmente estendera a
mão e esmagara a garganta do homem, e voltando-se, segurara o
cadáver à sua frente.
Apesar disso, Jade e outro se aproximaram. Possum – sábia,
mas tardiamente – recuara. Em vez de usar o corpo como escudo,
Dassem o arremessara, facilmente, como uma ferradura, nos dois
Garras que se aproximavam. Caíram empilhados. Temper podia no-
tar a irritação de Dassem na extravagância de seus gestos e em sua
careta de nojo.
Ele chutara a cabeça de Jade, arrancara a arma de sua mão e a
puxara pela garganta. O outro Garra estava onde havia caído, ator-
doado.
Possum tentara acessar seu Warren, mas se interrompera para
se esquivar da faca que Dassem jogara. Os dois se aproximaram, e
Possum encontrara Dassem com adagas nas duas mãos. Movimen-
taram-se em círculos. Possum fazia finta e Dassem ziguezagueava,
esquivando-se. Temper tivera que admirar o preparo de Possum;
era o melhor que havia visto. Mas o homem havia cometido um erro
fatal ao não recuar no instante em que Dassem revivera. Por arro-
gância, talvez.
Dassem aproximara-se, causando um corte em seu flanco para
agarrar uma das mãos. Eles giraram, pivotando, e de novo Temper
ficara impressionado com os movimentos de Possum. Mas a habili-
dade, força e velocidade de Dassem, embora minadas, ainda eram
grandes demais para a vontade e aperfeiçoamento de Possum.
Dassem quebrara-lhe o pulso, torcera-lhe o braço e encravara a pró-
pria lâmina de Possum em seu peito. Ele desabara, e os sons do
acampamento voltaram para a tenda.
Temper sorrira pela vitória de Dassem, cedendo à escuridão fria
e dura que o puxava como o abraço de águas profundas.
•••
À medida que a noite avançava, ele pairava entre a consciência e a
inconsciência. Uma dor no estômago o fizera acordar uma vez, e
Ferrule, com o rosto perto, tenso e pálido, fizera sinal de silêncio.
Ele vira tendas e carroças uma vez, escuras, vazias. Depois, um
campo de relva alta sussurrava e assobiava quando a dor o acorda-
ra de novo. Dassem, vestindo uma capa ampla, examinara-o e sorri-
ra, encorajando-o.
Viajando apenas algumas léguas por noite, escaparam. Segui-
ram para o norte pela Faixa de Thalas rumo à costa e roubaram
uma lancha de pesca pequena. Navegaram por turnos, dia e noite,
na direção norte-leste rumo ao Mar de Dryjina, e depois para o sul.
Um mês depois aportaram, magros, bronzeados, barbudos, na costa
sul de Aren, Sete Cidades. Ali se separaram. Temper e Ferrule pla-
nejavam seguir de barco para o sul, até Falar. Dassem não tinha in-
tenção de ir com eles.
Estavam na costa rochosa; nenhum deles desejava falar. Usa-
vam capas largas sobre calças e túnicas. Brancos lenços de tecido
caseiro lhes envolviam a cabeça e escondiam o rosto. De sua vida
anterior, Temper levava apenas o elmo enrolado em seu cobertor,
que Dassem lhe entregara quando acordara.
Temper estava de braços cruzados, com a vista fixa em uma cor-
dilheira distante.
– Então – dissera a Dassem –, tem que ser sozinho, não é?
Dassem anuira, cansado. Era uma discussão antiga.
– O que você vai fazer?
– Viajar. Seguir para o oeste.
– Em nome de Togg, o que pode haver por lá? – dissera Ferrule,
furioso, como de costume quando era contrariado.
O sorriso de Dassem tocara a alma invernal de Temper.
– Alguma coisa. Há algo lá. Talvez seja o que estou procurando.
Temper limpara a garganta. Pensara nas palavras sussurradas
de Dassem e nos rumores que ele, Point e Edge seguiram sobre um
expurgo entre os mais altos níveis do culto de Hood.
– Eu lhe desejo boa sorte, mas não sei se deveria encontrar o
que está procurando.
Recebera um olhar cortante, mas Dassem abrandara, com uma
expressão de dor que parecia quase aceitação.
– Vamos ver…
– À merda com tudo isso! – rosnara Ferrule, pulando na arreben-
tação.
Dera uma guinada e seguira para o barco ancorado. Agarrando-
se à borda, gritara:
– Se tiver que viajar metade da criação, procure-me nas planíci-
es de Seti!
Dassem acenara um adeus.
Temper dera um passo à frente; abraçaram-se. Na costa, tentara
um último recurso, mesmo sabendo que seria inútil.
– Retire-se conosco, descanse.
– Tenho umas coisas para fazer.
– Tudo bem. Tome cuidado.
Dassem rira.
– Tomarei.
– Você não nos terá mais dando-lhe cobertura.
– Eu sei.
Temper não conseguia se afastar do homem a quem havia jura-
do dar sua vida.
– Eu poderia recusar. Ir com você.
Mais uma vez, o sorriso triste.
– Eu sei – Dassem apertara o ombro de Temper –, mas você vai
morrer se ficar comigo. Disso eu sei. Continue lutando, Temper. Há
uma boa chance de você viver muito tempo ainda.
Temper sentira o peito apertar.
– Você viu isso?
Dassem soltara o ombro de Temper e fizera-lhe um sinal para
que partisse.
– Vá. É uma ordem.
Temper nadara na arrebentação. Ferrule e ele colocaram a vela.
Quando o crepúsculo caíra entre o barco e a costa rochosa, acena-
ram em despedida. Dassem erguera o braço em uma saudação lon-
ga e contínua. Por fim, a figura escura afastara-se da margem e de-
saparecera entre as árvores.
Depois de um tempo, enquanto navegavam ao longo da costa,
Ferrule perguntara:
– Pelas presas de Fener, que diabos é tão importante? Por que
não podemos ir com ele?
– Acho que ele vai para onde não podemos segui-lo.
Ferrule olhara para Temper por cima do ombro, como se imagi-
nasse se estava falando sério. Temper mesmo não tinha certeza.
•••
Somente semanas depois, na ilha de Strike, eles ouviram a versão
oficial daquele dia final em Y’Ghatan. Ao que parecia, os três mem-
bros sobreviventes da Espada, enfraquecidos por seus ferimentos,
haviam morrido em um ataque noturno dos fanáticos Falah’d, da Ci-
dade Sagrada, que depois se retiraram para a cidade levando o cor-
po de Dassem.
Naquela mesma noite, Surgen morrera de uma maneira que nin-
guém nunca explicara totalmente. Três dias depois, a cidade caíra.
Ao que tudo indicava, o Alto Punho Choss se saíra bem. O corpo de
Dassem não fora conclusivamente identificado e o Império nunca se
preocupara em nomear outra Primeira Espada.
•••
No topo do Caminho de Rampart, Kiska encontrou fechados os ele-
vados portões cravejados de ferro do Forte. Nenhuma lamparina ou
tocha brilhava pelas fendas das seteiras de ambos os lados. Nor-
malmente, as pontas brilhantes e pungentes dos parafusos das bes-
tas teriam rastreado seus movimentos, e o capitão da vigia já a teria
saudado.
Cortadas na madeira da porta do lado esquerdo havia minúscu-
las portinholas, que estavam entreabertas. Havia algo preso na par-
te inferior. Kiska deslizou pela madeira até o nível da abertura. Viu
um antebraço e a mão ensanguentada virada para cima, presos ali
como uma saudação macabra. Ela olhou pela fresta; o braço perten-
cia a um dos mercenários que a haviam sequestrado. Ele estava
morto, e a armadura de couro marcada de cortes nas costas. Do jei-
to que estava, devia ter tentado escapar. O negror obscurecia o tú-
nel de entrada, e Kiska sabia que agora estava delineada pela luz
da lua que brilhava atrás dela. Deslizando, deu um passo para o la-
do e parou, tentando escutar.
Nada além da fraca arrebentação distante. O cheiro de sangue e
entranhas enchia o recinto. Quando seus olhos se adaptaram à es-
curidão, pôde distinguir no caminho de pedras as formas retorcidas
de dois outros mercenários. Talvez houvessem sido deixados para
trás para proteger o portão, e então, alguém chegara e fizera um tra-
balho rápido com eles. Kiska ajoelhou-se; viu um rastro escuro de
sangue, ainda pegajoso, que levava a um dos homens que haviam
se arrastado para uma pequena porta lateral do túnel: a entrada aos
aposentos de Lubben, o porteiro. Ela seguiu o rastro, parada ao lado
do corpo, e tentou ouvir na porta. Depois de alguns instantes, estava
prestes a se afastar quando ouviu o som de sandálias se deslocan-
do. Alguém estava ali dentro, talvez ouvindo, assim como ela. Que-
ria saber se era o corcunda ou seu assassino? Não, ela deixaria pa-
ra lá. Em algum lugar Artan devia estar…
A porta abriu-se subitamente. Um braço grosso e a mão do ta-
manho de um pequeno escudo agarrou a frente de sua camisa e a
puxou para dentro. Uma lâmina de machado pressionou sob seu
queixo, prendendo-a contra a parede. Um hálito quente, cheirando a
vinho aproximou-se dela.
– Ah, é você, garota – rosnou Lubben.
Ele a olhou com o olho bom, soltou-a e se afastou.
– Desculpe.
Kiska prendeu a respiração, ajeitando a camisa e o colete. A sala
não era mais que uma brecha; um buraco esquecido durante a
construção da fortaleza, baixo demais para ela se endireitar, mas al-
to o suficiente para o porteiro corcunda.
– Pelos Anciãos, criança! Pensei que você teria mais juízo para
não vir aqui hoje.
Ele a empurrou de lado, fechou a porta e a trancou.
– O que está acontecendo lá em cima?
Lubben jogou-se em uma cadeira ao lado de um braseiro de car-
vão em brasa. Tomou um gole de algo contido em um odre e limpou
a boca com a manga da jaqueta de couro manchada.
– Não sei, e não me interessa.
Kiska estava perto da porta, tremendo devido ao ar úmido.
– Mas você deve ter alguma ideia.
Lubben riu e tossiu, rouco.
– Garota, tenho ideias, sim. Muitas. Mas vão ficar aqui – disse
batendo com um dedo grosso na têmpora.
– Bem, eu vou descobrir.
Com a cabeça inclinada, ele olhou para Kiska como se avaliasse
o grau de sua insanidade. Apontou para a porta:
– Fique à vontade.
Kiska hesitou.
– Quer dizer que vai ficar só sentado aqui?
– Isso mesmo.
Sorrindo, ele tomou outro gole do conteúdo do odre.
– Ouça, há uma guerra lá em cima, sem prisioneiros, entende?
– Isso não é assunto seu.
– Muito bem, eu vou sozinha.
Lubben franziu a testa, colocou um tampão de madeira no odre e
o deixou no chão. Pigarreou e cuspiu em um canto.
– Você pode passar a noite aqui, ficar segura.
Movendo-se para aquecer as mãos sobre o braseiro, Kiska ba-
lançou a cabeça.
– Não, obrigada. Tenho que dar uma olhada nisso. Ah… – ela se
interrompeu, decidindo não revelar nomes ou o que poderia estar
em jogo. – É importante. Eu tenho que saber o que está acontecen-
do.
Lubben soltou uma risada gutural que o fez chacoalhar.
– Fico imaginando o que é que todo o mundo gostaria de saber.
Kiska teve a sensação de que Lubben sabia mais do que estava
revelando. Ele era porteiro do Forte desde sempre. Quando criança,
ela e seus amigos muitas vezes se reuniram diante do portão aber-
to, desafiando uns aos outros para debochar do andar de carangue-
jo do “corcunda” e seu grande molho de chaves chacoalhando ao
seu lado. Relembrando isso, Kiska sentiu o rosto subitamente quei-
mar de vergonha. E pensar que ela quase o chamara de covarde
por se esconder em seu quarto. Quem era ela para julgar?
Kiska suspirou.
– Muito bem. Vou lá.
Lubben balançou a cabeça, olhando para os carvões soturnos,
como se revivesse suas próprias memórias dolorosas. Pensando al-
go, ela se afastou da porta.
– Pode me dar uma arma?
Ele resmungou, tirou uma adaga de seu cinto largo e a entregou
a ela. Kiska a pegou; era uma das lâminas mais cruéis que ela já
havia visto em uma faca, curvadas como uma foice.
– Obrigada.
Ele grunhiu de novo e desviou o olhar. Ela abriu o ferrolho da
porta.
– Garota…
Ela se virou.
– Sim?
– Mantenha as costas contra as paredes, ouviu?
– Sim, farei isso.
Deslizando pela porta, ela a fechou atrás de si.
•••
O pátio estava vazio, sem vigias. Mas passando a entrada fortificada
do castelo principal, encontrou mais quatro mercenários mortos. En-
tre eles estava um dos veteranos escolhidos pelo comandante cheio
de cicatrizes. Sem ferimentos visíveis; era como se houvesse sim-
plesmente caído morto. Sentiu as costas se arrepiarem com a possi-
bilidade de uma armadilha Warren. Se assim fosse, ela orou para
que já houvesse se consumido. Kiska não sabia quantos homens
haviam escapado do ataque do cão: talvez quinze ou vinte. Na con-
ta grosseira, teriam sobrado dez homens, incluindo o comandante
deles e a mulher que Kiska acreditava ser uma maga militar.
Na recepção, a luz era fraca. As velas haviam se queimado, dei-
xando apenas lamparinas a óleo aqui e ali ao longo das paredes.
Sombras profundas engoliam a maior parte da câmara, vãos tão es-
curos, que se alguém estivesse ali dentro, ela jamais saberia. Uma
escada de pedra circular que abraçava a parede começava à sua di-
reita. O alto oficial e seus Garras haviam subido até a torre de me-
nagem.
Com o alerta de Lubben em mente, ela foi deslizando encostada
na parede. Na escuridão, seu pé bateu em algo na base da escada.
Ela se agachou. Era um dos dois guardas restantes de Artan, morto,
com um dardo preso na garganta. Por Hood! Desse jeito, não sobra-
ria ninguém vivo. E quem estava promovendo toda aquela matança?
Até agora, os assassinatos fediam a Garras.
No patamar do segundo andar, uma única lamparina a óleo lan-
çava um brilho fraco sobre uma cena pior que seus piores pesade-
los. Havia montanhas de mortos, a maioria deles do bando de mer-
cenários. Tapeçarias e móveis queimados lançavam nuvens de fu-
maça no ar. Ela se sentiu sufocar no doce odor de carne queimada.
Eviscerada e enegrecida, a cabeça e parte superior do tronco de um
Garra pendia de uma porta estraçalhada. Outro Garra jazia no meio
da maior pilha de mortos, praticamente cortado em pedaços. Pare-
cia que mais uma daquelas bombas alquímicas – munições Moranth
– havia sido jogada nos aposentos fechados.
Com uma parte do manto sobre o nariz e boca para evitar o pior
do mau cheiro, Kiska passou por cima dos corpos para atravessar o
patamar. Um hall levava a um segundo lance de escadas. Outro ve-
terano jazia no chão, caído em uma poça de sangue, com a gargan-
ta cortada. Pelo número de cadáveres, o comandante não poderia
ter ficado com mais que alguns sobreviventes, no máximo. A mulher
não parecia estar entre os corpos, nem Artan ou Hattar.
O sangue escorria pelos degraus desgastados, grudando nas
sandálias de Kiska, enquanto ela seguia a curva da parede interna.
Ela parou um pouco abaixo do topo, atrás do corpo de um homem
que havia se arrastado para longe da carnificina abaixo. Kiska reco-
nheceu a armadura de losangos: era o sargento que a havia captu-
rado nos Rochedos de Musgo. Ela passou por cima dele e se aga-
chou, mantendo a cabeça nivelada com o patamar de cima. Fez
uma pausa para tentar ouvir. Silêncio. Silêncio profundo e absoluto,
que suas costas coçaram. Estariam todos mortos?
Ouviu um murmúrio e um ruído de pano abaixo dela. Ela olhou
para baixo e sua nuca se arrepiou. O mercenário não estava morto.
Enquanto ela observava, percebeu a mão levantar-se, e a seguir, vi-
rou para o tornozelo de Kiska. Ela quase gritou alto. Ele puxou, e ela
caiu sobre o homem, batendo a cabeça na escada. As estrelas e as
lágrimas de dor a cegaram. O braço do mercenário se levantou, e
ela bloqueou seu golpe fraco, mas o esforço a fez escorregar esca-
da abaixo.
O aperto em seu tornozelo enfraqueceu, e ela liberou a perna. O
mercenário caiu de costas. Metade de seu rosto estava queimada.
Ele olhou para ela.
– Você de novo – riu ele.
Estranhamente, só parecia cansado.
Kiska rosnou:
– Por K’rul, o que você está tentando fazer?
Aquilo o fez despertar. Ele fez uma careta, espumando pelos lá-
bios rasgados.
– O que nós estamos tentando fazer. Trazer de volta a antiga
glória! Pôr Malaz de volta em seu verdadeiro caminho! Você não sa-
be como era aqui. Ele veio a nós. Ele nos prometeu!
O homem cuspiu sangue, os olhos perderam o foco, e a seguir
encontraram-no de novo. Kiska não precisou perguntar quem era
esse ele.
– E o que aconteceu – sussurrou ela.
– Uma maldita batalha, foi o que aconteceu! Garras saindo da to-
ca como baratas. Não sei quantos sobraram. Aposto que demais.
Ela veio pronta para tudo.
– Ela? Quem é ela? Diga-me.
Kiska o sacudiu, mas os olhos do homem fecharam-se e sua ca-
beça tombou no degrau. Em seu último suspiro, ele sussurrou:
– Surly.
Então, era isso. No entanto, ele poderia estar errado. Poderia es-
tar enganado. Isso era, possivelmente, a confirmação do que ela
suspeitava, mas não se atrevia a acreditar. E agora que sabia, ou
suspeitava que sabia, o medo substituiu a curiosidade. Agayla, Ar-
tan, até Lubben tinham razão: ela não devia estar ali. Aquilo era pa-
ra o que todos no serviço imperial chamavam de Velha Guarda. Ela
– e qualquer outra pessoa – seria morta como testemunha indeseja-
da de velhos rancores.
Kiska encolheu-se para descer a escada. Embaixo, ela saltou
para a sombra ao ver alguém subindo pelo corredor. A fumaça ainda
era densa no ar, e as lamparinas lançavam pouca luz, mas mesmo
ao meio-dia de um dia claro aquela figura a teria feito se arrepiar de
pavor. Parecia uma forma grisalha saída do passado lendário arran-
cada de sua sepultura pela Lua Sombria.
Com duas espadas de duas mãos curvas, agachada, a aparição
avançava pesadamente pelos destroços com a armadura arcaica
que poderia ter sido usada havia décadas pela Guarda de Ferro ou
pela Legião de Heng Lion, com uma cauda maltratada e um elmo de
viseira que lhe cobria a cabeça. E Kiska agradeceu por isso, porque
ninguém poderia ter sobrevivido às feridas ferozes que a armadura
mutilada escondia. As escamas de aço pendiam soltas do couro ras-
gado e do enchimento. Argolas de ferro caíam no chão de pedra
conforme ele se arrastava para frente. Certamente esse era um dos
horrores insinuados nas lendas da Lua Sombria. Um demônio, ou
um tirano Jaghut desumano arrancado de seu descanso querendo
corrigir erros antigos.
Kiska não podia se mexer: não havia caminho à frente, e ela não
poderia subir. Enquanto observava o avanço implacável da criatura,
uma sombra cintilou em sua visão periférica. Ouviu um baque prove-
niente da figura de armadura, que resmungou, voltando-se de um
jeito estranho para o lado no corredor, como uma torre de cerco fus-
tigada, com uma arma à frente e outro para trás.
Duas formas emergiram das sombras, à frente e atrás da figura.
Garras. Lâminas finas como agulhas brilhavam em suas mãos. A
figura olhou para trás, e a seguir voltou sua atenção para frente.
Kiska observava horrorizada enquanto aquela coisa, o que quer
que fosse, virava-se para avançar lentamente. A linguagem corporal
gritava “Atacar!”, e o Garra à frente recuou meio passo. Incrivelmen-
te, naquele instante o gigante encouraçado girou, e então, disparou
para trás rápido como um corredor nu. O Garra de trás aparou um
borrão de golpes. A figura forçou, golpeando a cabeça do Garra com
o elmo de aço. Atordoado, o Garra cambaleou para trás, e a seguir,
quando caiu, a figura o cortou, rasgando suas entranhas.
Uma lâmina arremessada acertou as costas do encouraçado e fi-
cou presa. Rosnando, o guerreiro virou-se. Ele e o Garra ficaram
frente a frente, em posição. Como um javali se preparando para ata-
car, o guerreiro girou os ombros. Apontou para o Garra com a mão
mutilada e enluvada.
– Vou cortar sua cabeça desta vez, Possum.
Kiska sentiu um arrepio do couro cabeludo até os dedos dos pés.
Claramente, aquele demônio convocado pelas Sombras não poderia
ser detido. Nenhum soldado ameaçaria um Garra, prometendo sua
destruição. Talvez fosse um guerreiro das terríveis legiões do Impe-
rador, T’lan Imass. Diziam que suas armaduras antigas eram esfar-
rapadas e que eram invencíveis como um tufão.
O Garra riu.
– Então venha. Espero você lá em cima.
Ele deu um passo para trás e desapareceu na escuridão.
Sozinha, a figura bufou, contrariada. Esfregou as costas na pare-
de como um Bhederin se coçando. A faca caiu nas pedras do chão.
A seguir, o guerreiro girou os ombros mais uma vez e bateu as es-
padas uma na outra, como se estivesse se preparando para abater
qualquer um que encontrasse.
Kiska correu para as escadas que ficavam depois do mercenário
morto.
Em cima, havia outro hall como o de baixo. Contudo, não exibia
nenhum traço de conflito. Ela sabia que ali ficavam os quartos de
oficiais superiores, o tribunal militar presidido pelo Subpunho Pell, e
uma sala de jantar privada. A mobília era austera, condizente com
uma guarnição militar: lamparinas de parede, de barro, algumas
bandeiras e estandartes comidos pelas traças. Mesas estreitas no
corredor ostentavam urnas funerárias, velas gastas e estatuetas de
pedra de soldados. Ver aquilo fez Kiska se lembrar do guerreiro de-
moníaco atrás dela. A porta mais distante estava entreaberta. Ela a
empurrou e entrou na escuridão.
Embora nunca houvesse entrado ali, Kiska reconheceu o lugar
como a sala de jantar privada onde o Subpunho Pell entretinha os
capitães de navios e outros oficiais visitantes, e onde antigamente
almirantes piratas bebiam com reféns importantes retirados das
masmorras, embaixo.
Ela entrou lentamente no aposento. Vagos contornos de cadeiras
de encosto alto surgiam ao longo das paredes. Tentando acalmar
seu coração, que batia forte, Kiska respirou fundo. Obviamente,
aquela era a maior sala desse andar, mas ela a sentia cheia, como
se não estivesse sozinha. Kiska parou, pronta para sair correndo.
Sentindo algo atrás de si, virou-se e viu o rosto achatado e raivoso
de Hattar. Como um aviso, ele levantou um dedo pedindo silêncio, e
a seguir, mandou-a para o fundo da sala com um aceno de mão.
Recuando, ela bateu contra alguém, que a segurou para não cair.
Era Artan.
Ela virou-se para ele, começou a falar, mas ele levou um dedo
enluvado aos lábios. Ela fechou a boca e assentiu.
Ele aproximou a boca do ouvido dela e sussurrou:
– Você não deveria ter vindo.
– Algo está vindo. Um demônio encouraçado como um T’lan
Imass. Incontrolável. Ele derrotou dois Garras.
Seus olhos adaptaram-se à escuridão, e ela viu Artan erguer as
sobrancelhas, descrente ou surpreso. Ela também captou sinais en-
tre Artan e Hattar. Aquilo a assustou; antes, a visão noturna de Hat-
tar lhe parecera pobre. Devia ter aumentado. Por Warren, talvez.
Com duas longas facas na mão, o homem posicionou-se atrás da
porta. Artan puxou Kiska mais para trás, a um canto, onde, pela por-
ta aberta, podiam ver uma parte do salão iluminado por lamparinas
e o fundo dos degraus que levavam para o andar mais alto, ocupado
pela Alta Oficial, Surly.
Ouviram o demônio encouraçado muito antes de vê-lo: passos
lentos e pesados, escamas rasgadas e fortes sacudidas nas pare-
des.
Quando ele apareceu em seu campo de visão, Artan prendeu a
respiração. Kiska se perguntou se era por reconhecimento, medo,
ou ambos.
– Você tinha razão – murmurou Artan em um sussurro. – É um
fantasma do passado, de fato.
Enchendo o hall como uma estátua animada, a forma virou-se
para a escada. Girou a cabeça com o grande elmo e cortou o ar
com uma lâmina na base da estreita escada curva. E a seguir, cho-
cando as espadas, em guarda, afastou-se.
Alguém desceu as escadas e entrou em seu campo de visão –
uma figura esguia, com um manto cinza ferro. Uma cultista! Kiska
lançou a Artan um olhar interrogativo, mas os olhos dele estavam
arregalados de espanto. Ela virou-se para a porta.
Os dois pareciam negociar. Claramente eles se conheciam, mas
havia animosidade entre eles. A voz do cultista era um murmúrio su-
ave; a o guerreiro, um ruído surdo, ambos ecoando na quietude do
hall, até que, por fim, pareciam ter chegado a algum tipo de acordo.
O cultista preguiçosamente acenou com a mão e uma terceira forma
apareceu, de bruços no chão. O ser encouraçado, não tirando os
olhos do cultista, cutucou a figura com o pé. O recém-chegado res-
pondeu, grogue. Era a mulher escura, a maga mercenária, com sua
camisa de seda preta e colete de brocado. Depois de mais um tem-
po, a figura encouraçada embainhou as armas e levantou a mulher,
colocando-a em seu ombro. Ele voltou pelo hall, fora do campo de
visão.
Por que levar a mulher?, perguntou-se Kiska. Para algum tipo de
sacrifício? Ela inspirou. Era o fim. O velho fantasma havia desapare-
cido. Artan, porém, deu-lhe um aperto doloroso no braço. Ela ergueu
os olhos.
Com os olhos pregados na porta, ele mexeu a boca querendo di-
zer: Fique quieta.
Ela olhou. Fosse quem fosse o cultista, ele virara-se e agora
olhava diretamente para eles pela estreita abertura da porta. No en-
tanto, estando sob a luz do lampião, devia ser impossível para ele
vê-los escondidos no escuro. Ao seu lado, Artan ficou tenso como
um arco retesado. Engoliu em seco e suspirou alto, espantado.
– Pelo Verme de Outono. É ele.
•••
Quando entrou pelo portão principal do Forte, Temper empunhara as
longas e curvas espadas de duas mãos ao ver os quatro cadáveres.
Reconheceu-os como chusma do pelotão de Ash, e notou que não
havia ex-Bridgeburner entre eles. Obviamente Ash mantinha o que
tinha de melhor à mão. Temper esperava fervorosamente que Co-
rinn fosse uma dentre eles.
Ele parou na porta dos aposentos de Lubben, querendo ver se o
corcunda ainda vivia, mas reconsiderou. Se estivesse vivo, havia
uma chance de Lubben reconhecer seu elmo. Não dava para saber;
o velho beberrão era extremamente prudente, de seu próprio jeito.
De modo que Temper passou direto pela porta e saiu ao pátio vazio.
Pensou em verificar o quartel, mas o medo do que poderia descobrir
urgiu-o a se afastar. Os Garras já haviam perpetrado em sua história
atrocidades piores que o abate de uma pequena guarnição. Depois
de atravessar o pátio correndo, ele abriu a porta da torre com a pon-
ta de uma espada. Mais mortos amontoados ali. Os Garras, e talvez
até Ash, foram diluindo as fileiras de descartáveis. Ele até podia
imaginar Ash pensando que os rapazes até poderiam ter a sorte de
matar um Garra ou dois. Detendo-se, ele apertou a correia de seu
elmo, ajustou as pontas puídas e desfiadas das manoplas e sacudiu
os ombros. Pronto. No andar superior estava a Alta Oficial, seu
guarda-costas Garra, possivelmente um amigo, e talvez dois espec-
tros do passado de Temper que ainda tinham que responder por
uma traição que não fizeram nada para impedir. Ele se concentrou,
esvaziou a mente de tudo menos do objetivo no topo da torre.
Dez pulsações depois, a antiga calma de combate recaiu sobre
ele como uma capa protetora e familiar. Sentia-se bem. Dolorido,
mas forte. Passou a atravessar o hall de entrada, de joelhos flexio-
nados e armas prontas. Não precisou ir muito longe. Na câmara de
recepção principal, sentiu um formigamento de advertência e jogou-
se contra a parede. Algo perturbou o ar, e a seguir, desapareceu,
engolido pelas sombras. Temper foi deslizando pela parede rumo a
um corredor que levava para as escadas. Uma forma apareceu no
centro da câmara. Uma Garra, com o peito cortado por ferimentos
selvagens e a calça encharcada de sangue. Ela estava diante dele
com as mãos vazias e os olhos vidrados.
Por baixo da proteção do elmo, Temper franziu a testa. Enquanto
seguia se esgueirando pela parede, imaginava se ela o teria visto.
Quando apenas alguns passos os separavam, a Garra começou a
agitar as mãos. As chamas distantes das lamparinas cresceram e
um vento frio roçou o rosto de Temper, enquanto uma poça de noite
impenetrável crescia diante da mulher. Horrorizado, ele reconheceu
a convocação do Warren imperial. A qualquer momento, qualquer
coisa poderia surgir: Garras, um exército ou um demônio. Temper jo-
gou-se no chão e cortou os pés da Garra. Ela caiu, e o portal se fe-
chou. Rolando, ele se endireitou e tomou impulso. As duas lâminas
rasgaram o peito ensanguentado da Garra. Ainda silente, ela batia
inutilmente nas lâminas de Temper, cada vez mais fraco, até que
suspirou e seus braços caíram.
Com o coração acelerado, Temper levantou-se. Pelos deuses!
Aquela Garra semimorta quase acabara com ele. Ele girou para ob-
servar a câmara. Por que não uma utilização mais ativa dos War-
rens? Ocorreu-lhe que talvez naquela noite, durante a Lua Sombria,
invocá-los poderia ser mais arriscado. Sentindo que estava sozinho,
ele limpou as lâminas no corpo e prosseguiu.
•••
Carregado pela pálida fumaça, um fedor familiar provinha da esca-
da. Transportou Temper de volta aos inúmeros campos de batalha
que ele atravessara a passos largos. Não importava onde fosse a
guerra – na floresta ou no deserto –, o cheiro de morte era sempre o
mesmo. Ao subir o patamar, sentiu como se houvesse chegado à
casa. Como se a fraternidade não houvesse sido rompida. Como se
ainda participasse das campanhas com a Espada. Quase pôde sen-
tir sua presença às suas costas, como a mão firme urgindo-o.
Mais dois Garras mortos jaziam entre o que parecia ser a maior
parte do que restara da companhia de Ash. Devia ter sido uma luta
feia à faca que terminara quando um dos veteranos Bridgeburner
desencadeara um alquímico antipessoal mais lancinante, ou uma
explosão direto no rosto de todos. Aqueles rapazes sempre haviam
jogado duro. Temper não viu Corinn ou Ash entre os corpos.
Mais além dos corpos, Temper julgou ter visto um movimento
nas escadas adiante, mas poderia ter sido a chama bruxuleante da
lamparina a óleo. Ele parou, flexionado e pronto para a ação: os
Garras haviam disputado aquele trecho do corredor antes, de modo
que talvez eles…
A arma de arremesso bateu e deslizou por suas costas. Ele as-
sumiu a posição de guarda: uma espada alta para frente, a outra
baixa para trás. Quantos malditos assassinos podiam ter sobrado?
Uma célula Garra normal tinha cinco membros. Como acompanhan-
tes, dois. Mas se quem estava no andar de cima era um Punho, ou
alguém de categoria superior, não teria viajado com menos de duas
células.
Uma Garra surgiu à sua frente, e Temper sabia instintivamente
que outro estaria atrás. Mas olhou para trás, de qualquer maneira,
confirmando, porque não queria que suspeitassem que ele tinha co-
nhecimento de suas táticas.
O da frente se aproximou alguns passos, com suas facas em pu-
nho. Havia algo estranhamente familiar em seu jeito de andar e em-
punhar a arma, mas Temper ignorou o fato naquele momento, pen-
sando em suas opções. Pensando nas consequências de uma longa
briga no velho estilo, sentiu-se inspirado. Aqueles dois provavelmen-
te esperavam uma investida obsessiva no meio, de modo que lhes
fez esse favor. Investiu, e a seguir, inverteu, atacando com tudo. O
Garra de trás hesitou, caído. Temper passou por cima dele, cortou-o
ao meio e voltou no mesmo movimento, mas não foi rápido o sufici-
ente. Um punhal arremessado o acertou.
O ferimento o assustou, mas exibiu-se, chacoalhando os om-
bros. Devia estar diante de um comandante Garra; poucas pessoas
poderiam lançar uma arma que atravessasse camadas da espessu-
ra de um dedo de couro fervido e osso.
Um comandante, e familiar! Ele ouvira dizer que aquele bastardo
de olhos esbugalhados ainda estava vivo. Temper girou os ombros,
em parte para tentar desalojar a faca, em parte para pensar em seu
próximo movimento. Ele precisava de tempo, de modo que, em no-
me dos Gêmeos, ele poderia muito bem tentar. Apontou para o Gar-
ra.
– Vou cortar sua cabeça desta vez, Possum.
A Garra riu pelo reconhecimento mútuo.
– Então venha. Espero você lá em cima.
Pelos deuses, ele apostara certo.
Possum deu um passo para trás, como se encostasse na pare-
de, e a seguir, deslizou para a escuridão e desapareceu.
Temper ficou completamente imóvel. Havia sido uma mera dis-
tração? Viria atrás dele em outra sombra, como aquele maldito cão?
Expirou por entre os dentes. Não fazia sentido se preocupar. O que
tivesse que ser, seria. Foi mancando até uma parede para tentar re-
tirar a maldita faca. Felizmente, a armadura havia absorvido a maior
parte do impacto. A empunhadura bateu no canto da parede de pe-
dra. Ele deslizou para o lado e sufocou um grito ao arrancar a faca.
Maldição, como dói!
Temper pensou ter ouvido passos na escada e se perguntou se
aquele ato de desaparição não teria sido um show, e só então Pos-
sum correra até os degraus. Seria engraçado: Possum fugindo co-
mo um rato. Temper riu, puxando ar; o suor pingava da ponta de seu
nariz. Ele bateu as espadas uma na outra para apressar o bastardo.
Respirando fundo, endireitou o corpo, atravessou o corredor e
subiu as escadas, checando com uma lâmina ao mesmo tempo to-
dos os espaços à sua frente. Hesitou no patamar. Até então, ele tor-
cera para não encontrar ninguém pelo caminho. Mas pensou que já
deveria ter se deparado com Corinn, viva ou morta. Ash e sua com-
panhia teriam conseguido chegar aos andares superiores? Teve que
admitir que achava improvável. Estariam se escondendo em alguma
sala? Provavelmente não. Ash o havia golpeado como um fanático,
nem um pouco preocupado com suas chances.
Nada satisfeito, Temper decidiu seguir em frente. Preocupado
com armadilhas Warren, foi cortando o ar até a próxima escadaria.
Sombras sobre os degraus agitavam-se como ondas de calor. Tem-
per recuou, com as espadas em riste. Orou a Fener para que não
fosse outro cão.
Algo tomou forma; um corpo esguio, masculino ou feminino, de
túnica com capuz, como os cultistas das Sombras da cidade, de um
material finíssimo que parecia brilhar. Foi descendo preguiçosamen-
te a escada, e nesses poucos movimentos, Temper o reconheceu.
Raramente haviam se encontrado, mas Temper conhecia, sem som-
bra de dúvida, a postura cansada, quase entediada, a arrogância
absoluta. Era Dançarino, o co-conspirador de Kellanved, guarda-
costas e o maior assassino do Império.
Ninguém se equiparava a Dançarino. O homem era um artista no
assassinato. Na verdade, era tão sutil que muitos haviam esquecido
que Kellanved tinha um parceiro. Era o pior tipo de assassino: o que
ninguém percebe. E o bastardo evasivo deveria estar morto tam-
bém.
Temper decidiu quebrar o impasse.
– Que tal uma rodada?
Dançarino acenou com tanta indiferença, que fez Temper consi-
derar se valia a pena e lembrar que ele tinha assuntos muito mais
importantes para tratar.
– Você não concorda, Temper – disse ele com sua voz suave –,
mas estamos do mesmo lado.
Temper decidiu não ser irônico, mas sim cauteloso. Dançarino
era como uma víbora, podia passar pela menor brecha. Não disse
nada, só esperou, observando.
– Uma série de cuidados e energia foi necessária para organizar
o drama de hoje à noite. É só para convidados, e eu sou o porteiro.
Temper umedeceu os lábios, pensado em Corinn.
– Uma mulher me procurou, ex-maga militar. Onde ela está?
– Comigo.
– Com você?
– Sim. Ela e Ash. Eles permaneceram fiéis e vieram para servir.
– Entregue-a a mim e vou embora.
A risada de Dançarino parecia areia escorrendo.
– Por que eu deveria? Você vai embora de qualquer maneira,
Temper, não tem escolha.
Temper curvou as costas, apertando suas armas.
– Desista dela, Dançarino.
– Não seja tolo!
Maldito manipulador! Temper decidiu tentar negociar.
– Não sou eu o tolo aqui, Dançarino. Você está me deixando
sem escolhas, e isso não é inteligente. Todo mundo tem seu orgu-
lho. Eu não posso simplesmente ir embora agora.
– Veja, Temper – sussurrou Dançarino –, você tem escolha.
Temper gemeu por dentro. Dançarino estava simplesmente de-
monstrando a força de sua posição. Corinn não significava nada pa-
ra ele; queria algo em troca. Com os dentes cerrados, Temper disse:
– Qual?
– Uma última luta, Temper. Um último serviço do último fragmen-
to da Espada quebrada.
Último? Temper sentiu como uma faca no peito. Seria mesmo o
último? Ele não conseguia respirar. Então Ferrule e Dassem esta-
vam mortos?
– Como? – murmurou Temper, vagamente consciente de que ha-
via abaixado suas armas.
– Eu renuncio à mulher. Você retorna a Pralt, que comanda meus
servidores na cidade. Sei que vocês dois já se conhecem, o que de-
ve facilitar as coisas. Lá, você fará o que ele disser. Entendeu?
Temper assentiu. Talvez Dançarino estivesse mentindo, mas por
que se preocupar? Pelo que sabia, talvez ele fosse o último.
– E o que seria? – perguntou Temper bruscamente, de repente
recordando onde estava e com quem negociava.
– Nada desagradável. Uma batalha, Temper. O que você faz de
melhor.
Temper grunhiu.
– Muito bem. Onde ela está?
Dançarino apontou para o chão.
– Bem aqui.
Corinn apareceu das sombras a seus pés, como se um cobertor
negro houvesse sido puxado dela. Temper estendeu o pé encoura-
çado e a cutucou. Durante o tempo todo mantinha os olhos em Dan-
çarino. Corinn gemeu, agitou-se, grogue.
Irritado consigo mesmo e com sua posição, Temper guardou su-
as armas e pôs Corinn sobre seu ombro. Olhou para Dançarino.
– Vocês dois pretendem retomar o trono?
A cabeça encapuzada inclinou-se para o lado. Temper imaginou
um sorriso sardônico.
– Nós não estamos aqui para brincadeira, você sabe disso. Mas,
desde o início, não queríamos uma entidade tão difícil de manejar.
Um reino, um império… são apenas símbolos. Kellanved e eu en-
xergamos muito mais longe. Sempre fomos atrás de coisas maiores.
Dançarino acenou com a mão, dispensando-o.
– Vá. Há uma pequena e desagradável batalha na cidade. Acho
que para você será divertido.
Temper se afastou; queria perguntar sobre a batalha, mas tinha
medo da resposta. Subindo a escada, Dançarino se dissolveu entre
as sombras e desapareceu.
A carne de Corinn era fria ao toque. Ele a ajeitou no ombro e co-
meçou a descer pelo corredor. O que Dançarino lhe dissera estava
mais ou menos de acordo com suas próprias conclusões sobre o
Imperador e sua corte. Para ele, a maioria das pessoas, como Surly,
via o controle – político ou pessoal – como a mais alta ambição. Mas
homens como Kellanved e Dançarino estavam atrás do Poder, a
qualidade inefável. Gerir um reino ou um império era apenas uma
expressão dele. Eles haviam feito aquilo, e agora queriam mais. O
que dissera mesmo Pralt, o cultista? Que o controle de um Warren
era iminente? Agora, havia um prêmio!
Temper parou quando chegou ao pátio iluminado pela lua. Pôs a
mão no rosto de Corinn. Sua carne parecia argila úmida. Que horas
seriam? Ele observou o céu: a lua logo mergulharia atrás dos mu-
ros. Isso se as leis dos movimentos celestes ainda vigorassem. Tal-
vez estivessem perto do sexto sino. Temper não tinha dúvida de que
tinha que cumprir sua palavra. Se naquela noite a ilha pertencia aos
cultistas, e eles pertenciam a Dançarino, nenhum lugar seria seguro
para ele. E ele tinha que admitir que estava curioso. Pena que não
podia simplesmente ir como espectador. Ele ajeitou Corinn sobre
seu ombro; tinha que levá-la a algum lugar seguro rapidamente,
mas o local mais próximo era um que ele preferia não visitar. Mas
parecia que não tinha escolha.
Temper parou no túnel do portão principal e deu um pontapé na
porta de Lubben:
– Abra!
Ouviu uma voz, igualmente impaciente:
– Vá embora!
– Abra, Lubben, seu devasso sifilítico!
– Ei, o que é isso?
Passos irregulares culminaram na porta.
– Eu conheço essa voz. Quem é que está falando de devassi-
dão, se é velho demais para lembrar o que é isso?
– Velho? – Temper abaixou a cabeça, olhou pelo túnel, e a se-
guir, encostou-se na porta.
– Abra, seu corcunda, aberração da natureza. Não é hora de
sentir vergonha.
– Vergonha?
A porta abriu-se bruscamente. Lubben olhou para fora com os
olhos turvos e um odre de vinho na mão. Pestanejou, olhou para o
elmo de Temper, para sua carga, e afastou-se da porta. Temper en-
trou, curvado sob o teto baixo, e despejou Corinn no colchão de pa-
lha. Vapores de vinho rodopiavam no quarto fechado, tão fortes co-
mo no Enforcado em uma noite movimentada.
Cambaleando, Lubben coçou o queixo de barba por fazer.
– Quem é essa?
– Uma veterana, ex-maga militar.
Temper tirou o elmo e apertou os ombros de Lubben.
– Portanto, mantenha suas mãos longe dela.
Lubben bufou e desabou na cadeira. Olhou para Temper, des-
confiado.
– No que está se metendo agora?
– Em nada.
– Não me venha com “nada”! – disse, apontando o dedo torto pa-
ra o elmo debaixo do braço de Temper. – Você manteve a cabeça
baixa por muito tempo, amigo. Se a levantar agora, vão cortá-la.
Temper respondeu dando de ombros, fatalista, e disse:
– Você é a segunda pessoa que me diz isso hoje.
Lubben balançou a cabeça tristemente. Balançou o odre, e o vi-
nho espirrou.
– Bem, acabe com você, então, seu tolo. Ouça – disse Lubben
erguendo os olhos injetados de sangue, quase fechados –, pensei
que tínhamos um acordo, que você e eu íamos ficar por aqui muito
tempo, para mijar nas sepulturas de todos eles.
Apontou com o odre para o teto.
Temper riu.
– E ainda pretendo fazer isso.
Lubben bufou com desprezo, meneando a cabeça.
– Você está sendo usado de novo – apontou o odre para Temper.
– Usado como antes. Eles não se importam se você viver ou morrer,
então, por que você deve dar a mínima para eles?
Esvaziou o odre e o jogou, flácido, em um canto.
Temper não tinha nada a dizer. Ele sabia disso. Colocou um co-
bertor sujo de lã sobre Corinn.
– Mantenha-a aqui, Lubben. Até o amanhecer.
Lubben assentiu, desgostoso.
Temper virou-se para a porta.
– Até logo.
– Você disse que ela é uma maga militar?
Temper voltou.
Lubben estava sentado coçando o queixo, olhando para Corinn.
– Sim.
– De que companhia?
– Bridgeburners.
Lubben arqueou a sobrancelha grisalha sobre seu olho bom.
– Bem, eu vou ser amaldiçoado.
Temper hesitou, imaginando o que o velho corcunda estaria insi-
nuando. Mas deu de ombros.
– Muito bem. Então, cuide-se.
Recostando-se na cadeira rangente, Lubben respondeu com um
sorriso torto.
– Ah, sim. É o que pretendo.
Temper apontou para Lubben, como uma última advertência a, e
a seguir, saiu pela porta baixa.
Capítulo V
Estratégias e Destinos

Ao lado de Kiska, Artan fez um sinal para Hattar na escuridão. O gi-


gante, obviamente, não podia acreditar no que lhe estava dizendo.
Artan sinalizou de novo, insistente. Furioso, Hattar devolveu as ar-
mas às bainhas e afastou-se da porta.
Um riso suave ecoou por toda a sala; sussurrou em cada som-
bra. Kiska sentiu um formigamento familiar no pescoço e reconhe-
ceu o que devia ser: o acesso de um Warren. Ela havia sentido aqui-
lo inúmeras vezes com Agayla, quando a tia sentava-se em cima
das pernas dobradas lendo as cartas dos Dragões. Dessa vez, no
entanto, a sensação era muito mais intensa. Deslocadora e estra-
nhamente perceptível.
Ao lado dela, Artan respirou profundamente e mudou de posição,
obviamente preparando-se para um confronto que não esperava ou
não desejava.
– Sábia decisão, Tay – murmurou uma voz como o farfalhar de
um fino tecido.
Kiska reprimiu um grito; a voz parecia sussurrar em cada som-
bra, inclusive em cima de seu ombro, embora as costas tocassem a
parede de pedra fria.
No hall aberto, o cultista tirou o capuz. O rosto e a cabeça eram
normais: cabelos pretos curtos eriçados, traços finos e estreitos. Ne-
nhuma cicatriz. Os olhos, porém, brilhavam como joias jet. Ele en-
trou na sala, olhou para Hattar e sorriu. A expressão de desprezo
deixou Kiska irada.
Artan – ou Tay? – apertou os punhos na lateral do corpo.
– Boa-noite, Tay.
– Boa-noite.
Kiska lançou um olhar para Artan. Tay? Seria Tay de Tayschrenn,
o Alto Mago Imperial, o maior de todos os talentos alinhados com o
Império?
O homem de túnica riu levemente. O sorriso torto ampliou-se.
Parecia mal conseguir se conter, como se a qualquer momento fos-
se cair na gargalhada por causa de uma piada que só ele conhecia.
– O que o traz aqui hoje à noite?
– O de sempre – respondeu Artan. – Preocupação com o Impé-
rio.
O homem arqueou a sobrancelha.
– Você ainda se apega a esse desgastado conceito de neutrali-
dade… Sempre zeloso.
– Eu sirvo à permanência, como sempre.
– À permanência? Você serve a si mesmo, Tay – disse o homem,
voltando os olhos para Kiska. – E quem é essa?
Os olhos, dois poços escuros, deixaram Kiska fascinada. Ela
queria responder. De repente, queria dizer a esse homem tudo so-
bre si mesma. Artan apertou dolorosamente o antebraço. Ela estre-
meceu e ficou em silêncio.
– Ela está comigo.
O sorriso se alargou.
– Sempre de olho em um talento, não é, Tay?
Artan permaneceu em silêncio, apertando a mandíbula, como se
evitasse morder a isca.
O sorriso do homem atenuou-se até se transformar em uma ex-
pressão de tédio e desapontamento. Ele suspirou.
– Fique aqui se quiser ficar de fora, Tay. Não se mexa até que tu-
do esteja terminado. Todos que estão no andar de cima são partici-
pantes, entendeu?
Artan assentiu. O homem inclinou a cabeça.
– Vejo você de manhã, então.
– Possivelmente.
O sorriso secreto reapareceu.
– Sim, claro. Talvez.
Virou-se e saiu pela porta, dobrando a esquina como se fosse
subir escadas.
Kiska ficou olhando para o local em que ele havia desaparecido.
Ansiava verificar se ele havia realmente ido.
– Era mesmo ele? – sussurrou para Artan.
Fazendo um sinal para Hattar, Artan puxou uma cadeira e se
sentou, exausto, à longa mesa de jantar. Hattar fechou a porta.
– Creio que estaremos seguros aqui – disse enquanto massage-
ava a testa.
O confronto parecia tê-lo deixado exausto, o que surpreendeu
Kiska, visto que antes ela testemunhara mera irritação e desprezo
quando ele confrontara mais de cinquenta cultistas.
Ele fez um gesto para Kiska se sentar.
– Se é mesmo ele? – repetiu Artan. – Não em carne e osso, se é
o que quer dizer. Aquilo foi um envio… uma imagem. Ele obviamen-
te está bem tenso hoje à noite, o que é compreensível.
– Ele o chamou de Tay.
– Sim.
Kiska umedeceu os lábios.
– Tay, de Tayschrenn?
– Não! – rosnou Hattar.
Artan – Tay – acenou com a mão para Hattar, cansado.
– Sim.
Pelos deuses! Ali estava ela, sentada ao lado de um dos maiores
feiticeiros da época. Maior, diziam muitos, que o próprio Imperador.
Havia tanta coisa que queria perguntar, mas como ela, um ninguém
de lugar nenhum, poderia atrever-se a dirigir-se a tal personagem?
Com crescente horror, Kiska refletiu sobre seu comportamento em
relação a ele. Como ele pôde aceitá-la? Ela o observou de soslaio:
de repente, ele se tornara algo estranho, completamente afastado
da vida de Kiska.
Uma vela acendeu na porta. Hattar a levou até um candelabro na
mesa de jantar e a luz quente deu vida ao centro da sala. Largas ta-
peçarias – butim de guerra, provavelmente – isolavam das paredes,
intercaladas com escudos, estandartes e uma grande quantidade de
bandeiras dos navios pré-imperiais com sua profusão de cores e de-
senhos. Tayschrenn sentou-se à ponta mais longe da porta, em uma
cadeira de espaldar alto e madeira escura. Kiska pegou uma cadeira
da lateral, situada entre a mesa e a parede. Hattar voltou a vigiar a
porta.
Kiska limpou a garganta e sussurrou:
– E agora?
– Agora?
Tayschrenn recostou-se e expirou longa e lentamente. Os olhos
pareciam machucados e afundados.
– Agora vamos esperar.
Kiska balançou a cabeça e olhou para o teto.
– Está tudo silencioso.
Os ombros de Tayschrenn retesaram-se.
– É o jeito Malazan – suspirou. – O toque do assassino. Um teci-
do farfalhando. Um gole de vinho. O brilho de uma lâmina fina como
um dente de cobra. Seu nome sussurrado assim que você cai no so-
no.
Ele balançou a cabeça, como se estivesse triste ou arrependido.
A luz da vela refletia o dourado de seus olhos. Ele perguntou abrup-
tamente:
– E você?
– O quê? Eu? – disse Kiska.
– Fale-me sobre você.
Kiska sentiu as bochechas queimarem de vergonha. Abaixou a
cabeça. Como ele podia estar tão relaxado se, logo acima deles, o
próprio Abismo parecia pronto para se abrir?
– Eu? Nada, não há nada para contar. Eu nasci aqui. Meu pai
morreu no mar quando eu era jovem. Eu mal o conheci. Ele era ma-
rinheiro. Minha mãe é costureira.
Kiska ergueu os olhos. Tayschrenn olhava para ela por sobre os
dedos cruzados à frente, e Kiska sentiu a garganta seca.
– E a sua instrução – perguntou ele –, como começou?
Ela engoliu em seco, corando de novo, mas não pôde deixar de
sorrir.
– Por acaso, pode se dizer. Eu invadi a loja de Agayla e ela me
pegou.
Tayschrenn inclinou-se para trás e riu. Os ombros afrouxaram ao
liberar a tensão. Sorriu, e de repente Kiska não tinha certeza de que
idade ele tinha. Os traços misteriosos revelavam uma vida de vigi-
lância e cálculo. O riso e o sorriso derreteram décadas do homem.
– Eu era muito nova – acrescentou Kiska, animada.
– Devia ser, para tentar roubá-la.
– Você disse que a conhece. Como?
A ideia fascinava Kiska. Agayla familiarizada com tais inebriantes
círculos de poder, como se tivesse outra vida, secreta.
Tayschrenn sacudiu a cabeça.
– Só de reputação. Pode se dizer que somos colegas.
Kiska recostou-se. Colegas… demais! Incrível que ela conheces-
se alguém que Tayschrenn considerava uma colega. O que Agayla
acharia de ser chamada de associada? Na verdade, conhecendo-a,
ela não ficaria satisfeita. Ela raramente falava de política, mas sem-
pre que o assunto vinha à tona, o calor de seu desprezo podia fazer
enrolar as raízes secas que pendiam das vigas.
Com o canto dos olhos, Kiska observava o homem ali sentado,
separado por uma laje de pedra do encontro que poderia muito bem
decidir seu destino. Ele parecia artificialmente calmo, contemplativo,
até. Com o longo dedo indicador, ele acariciou o nariz adunco. O
olhar parecia voltado para dentro. Talvez estivesse ponderando o re-
sultado e as fortunas pessoais. Mas talvez não; ele se declarara
neutro no assunto. Agayla às vezes chamava o quadro de magos
imperiais – que Tayschrenn verdadeiramente dirigia – de funcioná-
rios glorificados do Império. Como tal, ele devia ser indiferente a
quem ocupasse o trono. Ou seja, não tinha ambições pessoais.
Apesar da tensão, Kiska sentia-se cada vez mais inquieta. Luta-
va contra o impulso de se remexer; olhou para Hattar. Até ele, o sel-
vagem, filho atarracado das estepes, havia sucumbido à atmosfera
carregada. Kiska viu-o elevar o olhar para as pedras quadradas aci-
ma deles. Os olhos brilhavam enquanto ele examinava as rachadu-
ras em busca de algum indício do que estava acontecendo ali.
Kiska umedeceu os lábios secos e limpou a garganta.
– Em que está pensando – sussurrou para o Alto Mago.
Os olhos de Tayschrenn, dourados à luz das velas, voltaram-se
para ela. Do fundo deles, a consciência subiu à superfície.
– Estou imaginando – disse em voz baixa e perplexo –, quem es-
tá prendendo quem. Surly fez uma armadilha ali em cima para Kel-
lanved. Mas ele escolheu o momento e o lugar há muito tempo.
Quem sabe há quanto tempo… E vem se preparando desde então.
Assim, talvez essa armadilha seja para ela. Ela provavelmente a re-
conhece, mas não pode evitar. Ela tinha que vir. Ambos tinham que
vir – ele franziu a testa, e as linhas que delimitavam sua boca se tor-
naram sulcos profundos. – E o que ele e Dançarino esperam ga-
nhar? Seus seguidores foram mortos ou dispersados. Não há mais
apoio organizado além do Culto das Sombras de Dançarino, e eles
vão cair. A autoridade deles não seria aceita pelos Garras – nem pe-
los Punhos governantes – se eles retornassem.
– E quanto a Oleg e sua mensagem?
O mago fez uma careta e tocou a têmpora como se sentisse uma
veia pulsando.
– Sim, Oleg, nosso místico eremita. Torturado e flagelado por au-
toimposição. Levado à loucura, talvez, pela própria ambição embo-
tada. Ou seria um profeta estupidamente ignorado? – ele suspirou. –
Se eu seguir as linhas de seu raciocínio com precisão, elas levarão
ao suicídio de Kellanved e Dançarino. Coisa que eu simplesmente
não posso aceitar. Eu conheço os dois, e eles não permitiriam isso.
Suicídio? Não, ela também não podia imaginar isso. Não daque-
les dois. Kellanved havia superado muitos obstáculos no caminho
do poder, e destruiria qualquer um, ou qualquer coisa que se inter-
pusesse em seu caminho. Aquela era a assinatura deles.
Tayschrenn agitou-se, erguendo a cabeça como um cão farejan-
do.
– Ouça – sussurrou, olhando para cima.
Kiska mordeu o lábio, examinando o teto. A espera, o medo e a
incerteza haviam deixado os ombros e pescoço duros. Imóvel por
tanto tempo, a perna machucada parecia fundida com o joelho. Mu-
dando de posição, ela o flexionou e aliviou a tensão das costas. O
que estava acontecendo? Com a visão periférica, notou Hattar desli-
zando como um gato, protetor, cada vez mais próximo deles, com as
armas à mostra.
– Como vam…
Tayschrenn levou um dedo aos lábios.
– Ouça.
Kiska retesou-se para penetrar o silêncio. A sutil pulsação da ar-
rebentação refletia na pedra. Poeira caía, e as pedras que haviam
perdido o calor à noite mostravam os carrapatos e as manchas de
pingos nas paredes.
E então, ela ouviu. Uma batida clara e um fraco arrasto – batida-
arrasto-batida-arrasto – atravessando o teto de lado a lado.
Kellanved.
Ela nunca o havia visto, claro, mas ouvira muitas descrições – al-
gumas contraditórias, a maioria vaga. Muitos mencionavam a ben-
gala e o andar lento, mas todos falavam de sua idade extremamente
avançada, da pele negra e dos cabelos prateados e cacheados de
ancião Dal Honese da savana da sul-ocidental Quon Tali. E, claro,
do gosto por roupas cinza e pretas.
Como se confirmassem as suspeitas de Kiska, Tayschrenn e
Hattar trocaram olhares.
Uma pressão esmagadora abateu-se sobre ela como uma força
invisível. Ela sentiu algo enorme nas proximidades, silente no escu-
ro, como um navio de guerra Talian passando ali mesmo. Era uma
gravídica presença mortal grande demais para passar despercebida.
Ela olhou para Tayschrenn e viu-o fazer caretas, pressionando as
têmporas com os dedos. Uma gota de sangue escorria do nariz de-
le.
É ele, pensou ela, espantada. Até eu posso sentir.
O ritmo – pois é o que parecia – parou abruptamente. Houve um
longo silêncio. Kiska imaginou uma conversa, e se perguntou de que
forma desesperadora Tayschrenn gostaria de saber seu conteúdo.
Mas lembrou, de novo, que um homem como ele ficaria entediado
com o que poderia ser pouco mais que uma troca de advertências e
ameaças.
Os blocos de pedra calcária do teto balançaram, como brinque-
dos de criança, e poeira caiu. O impacto silencioso fez Kiska correr
para baixo de sua cadeira e estourou-lhe os tímpanos. As velas se
apagaram. Ouviram som de metal nas pedras acima. Armas, pen-
sou Kiska. Som de corpos caindo. Um grito – de raiva – que desapa-
receu no silêncio. Na calma carregada que se seguiu, ela mal respi-
rava.
Fez-se a luz. Hattar, calmo e fleumático, reacendeu as velas.
Kiska não podia acreditar no aprumo do homem.
E então, o grito agudo de uma mulher atravessou a pedra sólida
e Kiska saltou da cadeira. Ela olhou para Tayschrenn, mas as fei-
ções fechadas não revelavam nada. Seria o fim de Surly? Kellanved
e Dançarino haviam ganho? No entanto, o grito não continha nenhu-
ma nota de desespero ou morte. Carregava frustração e peçonha.
Tayschrenn limpou a garganta. Passou um pano no nariz e afastou a
cadeira da mesa. Levantou-se, ajeitou o manto em seus ombros e
fez um sinal para Hattar. O Seti olhou para ela com a boca fina sob
o nariz achatado retorcida em um sorriso de escárnio. Tayschrenn,
dirigindo-se à porta, não percebeu a reação de seu guarda.
Hattar deu um passo para bloquear a porta e Tayschrenn parou
surpreso. Sinalizou de novo. À mesa, Kiska perguntava-se o que es-
tava acontecendo e se aquilo poderia significar uma ameaça para
ela. Subitamente, sentiu o peso da faca curva de Lubben no flanco.
Mas aqueles dois não pretendiam machucá-la, não é?
Hattar, levando as mãos às facas embainhadas, olhou para
Kiska e rosnou:
– Não.
Kiska levantou-se, indo para o centro da mesa entre os dois e
ela. Massageou o quadril, onde havia batido. O que era aquilo? Fa-
xina geral? Iriam silenciá-la? Mas por que Hattar se recusaria? Ela
imaginava que ele apreciaria a oportunidade. No entanto, por que
esperaram até agora?
Tayschrenn sinalizou furiosamente. Hattar apenas sorriu, mos-
trando os dentes amarelados. Ele balançou a cabeça. Tayschrenn
deu meia-volta e ficou de frente para ela. Parecia confuso e irritado.
– Bem – observou, olhando para ela. – Estou em um dilema.
Preciso ir lá para cima, mas Hattar recusa-se a ficar aqui para prote-
ger você. E eu acho que ainda é muito perigoso deixá-la sozinha.
Ele fechou a mão em punho e tossiu, arqueando a sobrancelha
fina. Era como se estivesse adivinhando-lhe os pensamentos.
– Como você sugere que resolvamos isso?
Kiska umedeceu os lábios.
– Leve-me com você.
Tayschrenn virou-se para Hattar como se isso resolvesse a ques-
tão. Hattar franziu o cenho ferozmente. Fez um sinal: negativo, ima-
ginou Kiska. Tayschrenn respondeu dando de ombros, o que signifi-
cava que estava tudo resolvido. Chamou Kiska com um aceno de
mão.
– Você vai ficar comigo. Fique de lado e dois passos atrás. Não
diga nada e faça o que Hattar ou eu dissermos. Está de acordo?
Quase sem conseguir respirar, Kiska assentiu.
– Ótimo.
Ele olhou para Hattar. De má vontade, o homem deu um passo
para o lado na porta. Tayschrenn passou. Kiska aproximou-se. O
guerreiro Seti não disse nada, mas o olhar abrasador fervia dentro
de sua cabeça.
Lado a lado, ela e Hattar subiram as escadas atrás de Taysch-
renn. Ela se sentia como se houvesse sido recrutada como guarda-
costas do mago. E não importava o que acontecesse, subitamente
percebeu que daria seu melhor para honrar tal confiança. Kiska re-
zou para que não houvesse necessidade disso.
Hattar a observava de soslaio. Os lábios curvavam-se para longe
de seus dentes afiados, em uma careta de desprezo. Ela olhou para
trás. Desviando o olhar, ele soltou uma risada que dizia: sua hora
vai chegar.
•••
Uma Luz cintilava à frente. As salas haviam sido mais quentes,
aconchegantes e habitadas. Entraram em um hall ricamente decora-
do onde havia algumas portas de madeira polida. O Subpunho Pell
e seu círculo íntimo haviam ocupado aqueles aposentos durante os
últimos sete anos, mas não naquela noite. Ela se perguntava, indo-
lente, onde ele poderia estar, mas logo descartou o pensamento.
Estaria provavelmente trancado lá embaixo, na adega, ou desmaia-
do em seu beliche.
Tayschrenn caminhava de forma constante, sem pressa, pelo
corredor. Passaram espelhos prateados e retratos de homens e mu-
lheres que ela não reconheceu; cabeças de javali, troféus e insíg-
nias como Kiska jamais havia visto antes, exceto pela barra vertical
preta e a onda azul-claro de Korelri, no extremo sul. Luz quente de
fogo provinha de uma porta aberta no fim do hall, lançando sombras
que ondulavam e dançavam loucamente. Uma corrente de ar fresco
roçou as faces de Kiska, e ela ouviu, de longe, a arrebentação mur-
murando muito abaixo.
Na entrada, Tayschrenn parou, bloqueando a visão de Kiska. A
corrente de ar, mais forte ali, ondulava-lhe a capa. Ele fez um sinal a
Hattar e entrou. Hattar grunhiu, segurou Kiska pela manga e fez um
sinal para que ela ficasse perto dele. Kiska engoliu em seco e con-
trolou a respiração. Hattar curvou os lábios de novo, como se espe-
rasse que ela desmaiasse ali.
Na porta, o calor a atingiu como a explosão de um fogão ao se
acender. E além disso, o fedor de fumaça misturada com o cheiro de
ferro azedo do sangue derramado. Hattar posicionou-se a um lado
da porta. Kiska foi para o outro e encostou nas pedras quentes.
Era uma longa sala retangular. Ela se perguntou se seria uma
espécie de câmara de recepção. Estava desprovida de móveis e or-
namentos. Fogo enchia a enorme lareira na parede interna esquer-
da. Pelo chão, aqui e ali, cadáveres jaziam como roupas descarta-
das. Perto das portas quebradas que davam para uma varanda, es-
tavam reunidos mais densamente. Garras, todos eles. Kiska contou
doze.
No centro da sala, uma mulher estava sentada no único móvel
da câmara: uma simples cadeira de madeira. Os cabelos castanhos
eram curtos, no estilo militar. A coloração azulada da pele a distin-
guia como Napan. Usava camisa de seda verde rasgada e mancha-
da de sangue, uma faixa larga verde-esmeralda e calças largas que
se ajustavam à altura dos tornozelos. Os pés eram escuros e caleja-
dos, como se andasse sempre descalça. Um Garra, ajoelhado ao
seu lado, enrolava bandagens nas mãos dela. Kiska o reconheceu:
era o do duelo com o colosso encouraçado: Possum.
Surly. Kiska ficou impressionada ao ver como era pequena, cal-
ma e segura de si. Dificilmente se poderia adivinhar que ela acabara
de confrontar as duas figuras mais temidas da história recente de
Quon Talian. Mas, assim, ela ficava em terceiro lugar na lista.
Tayschrenn atravessou a sala comprida até ela. Ela observava
com um sorriso torto irônico. No meio do caminho, o mago parou e
olhou para o chão de pedra nua. Kiska olhou também, mas não viu
nada além de um pequeno remoinho de pó vermelho. Ao lado de
Kiska, Hattar sibilou. Ele travou as mandíbulas; as mãos eram pu-
nhos brancos segurando os cabos de osso das longas facas. Deva-
gar, com cuidado, Tayschrenn recolheu o manto e sacudiu a poeira
da borda. Prosseguiu, pisando nos corpos como se não fossem
mais que poças em uma rua enlameada. Perto de Surly, ele se incli-
nou para o cadáver mais próximo da cadeira e levantou-lhe a cabe-
ça. Kiska reconheceu o corpo.
– Ash – disse Surly – ex-tenente dos Bridgeburners, e um ho-
mem muito determinado. – Ele ergueu a mão enfaixada – ácido.
Tayschrenn endireitou o corpo e virou-se para as portas arreben-
tadas da varanda. Olhou para fora.
– Está morto, então?
Surly assentiu, mas bruscamente, como se as coisas não hou-
vessem saído exatamente como ela desejava. No chão, um pouco
antes da varanda, jazia um bastão em meio ao sangue respingado.
Uma bengala de madeira escura, ébano, talvez, com punho de pra-
ta. Kiska fitou aquilo. Pelos deuses! Era isso, então? Ele estava
morto?
Um segundo Garra sobrevivente saiu da varanda repleta de
sombras. Estranhamente alto, ele arrastava uma perna e segurava o
braço direito contra o peito, úmido do sangue que pingava. Estava
sem capuz, revelando os cabelos longos surpreendentemente bran-
cos, a face escura, o nariz adunco, cavanhaque e olhos pretos bri-
lhantes. Kiska nunca o havia visto antes.
– Organize uma busca pelos corpos – disse Surly a Possum.
Ele se curvou e recuou até a porta. Kiska o observou de soslaio
ao passar, e viu que ele tinha um corte na frente da camisa e que o
sangue manchava-lhe a capa. Mas com o rosto coberto pelo capuz,
ele não se virou para olhar para ela. O homem tinha uma missão, e
era como se tudo o mais fosse mera escória.
Tayschrenn saiu à varanda. O parapeito baixo de pedra em arco
havia sido quebrado ou explodido, deixando um grande vão para o
ar livre. Ele olhou para baixo, apoiando a mão enluvada na borda
quebrada. Ao vento, o manto inflava e se agitava, e de baixo provi-
nha o golpe surdo da arrebentação.
Ele voltou para Surly, raspando com as botas o chão entulhado.
– Você não pode ter certeza.
– Tenho certeza o suficiente – retrucou ela. – Absoluta. Acabou,
está feito. Acabou. Estou surpresa por você ter se preocupado em
vir.
Olhando de novo para a varanda, Tayschrenn murmurou:
– Na verdade, se quer saber, eu estava aqui por outra razão.
A raiva queimava como um fogo escuro nos olhos de Surly, e ela
disparou a mão boa para o Alto Mago, como se fosse esmagá-lo
com o punho. Kiska quase gritou, alertando-o, mas tão rápido quan-
to surgiu, o fogo se apagou. Ela riu baixinho.
– Dê uma de senhor pomposo com seus subordinados, Tay, não
comigo. O fato de estar aqui desmente suas palavras.
O mago virou-se para ela. Kiska o viu pestanejar como se não ti-
vesse a menor ciência da reação da mulher. Mas, como era possí-
vel? Os dois haviam trabalhado, lutado e planejado juntos por gera-
ções. Eles deviam saber até que ponto podiam se provocar mutua-
mente. Era óbvio que Tayschrenn queria lembrar algo a Surly.
Ele deu de ombros lenta e indiferentemente.
– Se você insiste… Ainda assim, parece que…
– Não me interessa o que você pensa.
Ela observou a mão dele, enfaixada.
– Acabou. Não sou mais a Regente Imperial. Vou assumir o Tro-
no e meu novo nome para governá-lo. O que acha disso?
Ele não disse nada. Kiska imaginou que ele já havia cuidadosa-
mente avaliado todos os resultados possíveis.
– Salve a Imperatriz! – disse um Garra irrompendo da varanda,
esfregando o pescoço com a mão de luva de couro verde.
Tayschrenn olhou para o homem, que lhe ofereceu um sorriso
predatório. Havia aversão declarada entre Tayschrenn e aqueles
servos preferidos do trono. Kiska perguntava-se como uma reunião
como aquela teria se desenrolado anos atrás com Kellanved e Dan-
çarino também presentes. Provavelmente teria sido um ninho de ví-
boras.
Tayschrenn inclinou-se levemente. Kiska não soube dizer se o
gesto era genuíno ou zombaria.
– Sim, Salve – repetiu.
Surly respondeu com um breve aceno de cabeça, toda formal.
– Ótimo. Agora, temos muito a discutir.
Ela inclinou a cabeça para Hattar e Kiska, cujo coração disparou.
Tayschrenn apontou para o Garra.
– E quanto a ele?
Um sorriso fino fez os lábios de Surly apertarem-se.
– Os Garras agora fazem parte da estrutura de comando, Tay.
Cada um deles fala em nome de minha autoridade pessoal; cada
um deles será, em certa medida, meu representante. Topper fica.
Tayschrenn inclinou-se brevemente como antes e recuou. Disse
a Hattar:
– Sua tarefa está concluída por hoje. Leve-a de volta para a sala
de jantar. Durma um pouco. Estarei lá mais tarde.
Hattar apertou a mandíbula, contrariado, mas anuiu. Despedin-
do-se de Kiska com um aceno brusco, Tayschrenn virou-se. Hattar
seguiu para o corredor, empurrando Kiska à sua frente. Assustada
com o gesto brusco, ela olhou por cima do ombro. Só isso? Nem
mesmo um adeus? Hattar a urgiu com um soco nas costas.
No corredor, Kiska sussurrou:
– Eu queria ter falado com ele.
O rosto do homem permanecia impassível.
– Agora não. Amanhã.
Kiska relaxou, deixou de resistir.
– Tudo bem – e foi andando. – Só não quero que ele se livre de
mim. Enfrentei um monte de problemas para falar com ele – ela riu
ao pensar nisso. – Enfrentei o próprio Hood.
Mas Hattar olhava para frente, ignorando-a. Kiska se calou. Ali
estava ela reclamando com um sujeito que não lhe dava a mínima.
•••
Na sala de jantar, Kiska observava enquanto Hattar bloqueava a
porta com uma cadeira, acendia as velas e se sentava. Jogou as
pernas sobre a mesa, e a seguir, desatou o cinturão e o colocou di-
ante de si, para que as facas embainhadas ficassem ao seu alcan-
ce.
Kiska jogou-se em uma cadeira do outro lado da mesa.
– E aquela poeira vermelha lá em cima, o que era? Veneno?
Hattar olhava para o teto. Baixou os olhos entreabertos, ilegíveis,
para ela.
– Já ouviu falar de minério de Otataral?
– Tem a ver com magia?
– Magia de amortecimento – explicou, olhando para o teto. – Lá
em cima, naquela sala, ele é impotente.
Ela disse subitamente:
– Então, Surly deve ter polvilhado a sala, ou jogado o veneno, e
Kellanved…
Hattar anuiu de um jeito selvagem.
– É um grande nivelador. Depois disso, somente facas e núme-
ros absolutos.
Kiska ficou em silêncio, tentando imaginar como devia ter sido:
Kellanved, aleijado, era um fardo inútil em uma batalha mundana.
Dançarino devia ter lutado pelos dois para protegê-lo. Os dois foram
para a varanda, desesperados para escapar. Quantos mortos ela
havia visto? Doze? Ela balançou a cabeça, admirada.
– E agora?
– Agora nada. Vamos esperar.
Mordendo o lábio, Kiska observava Hattar enquanto ele fitava a
escuridão. Depois de um tempo, ela perguntou:
– Você não gostou de mim desde o início. O que tem contra
mim?
Uma leve tensão na boca parecia indicar que ele estava pensan-
do se devia responder ou não. E então, ele rosnou:
– Eu perdi três bons amigos hoje à noite. Você se tem em muito
alto conceito se acha que tem algo a ver com o meu humor, garota.
Ela baixou os olhos, corando. Quem ele pensava que era?
Mas… quem ela pensava que era? Do ponto de vista dele, ela era
apenas uma civil intrometida, e uma garota; nada mais que um risco
para a segurança e um estorvo para sua tarefa.
Ela juntou as mãos, observando a mesa empoeirada.
– Desculpe. Você está cumprindo seu dever. Entendo. Mas eu
não vou desaparecer só para sua conveniência. Droga, já passei por
muita coisa hoje. Tanto quanto você, talvez. Tem que haver uma ra-
zão para tudo isso!
Olhando para cima, ela enxugou os olhos, praguejando pelas lá-
grimas de frustração. Olhou para Hattar, desafiando-o a ignorá-la, e
a seguir, ficou boquiaberta, em descrença absoluta: a cabeça do ho-
mem pendia para trás, de boca aberta, e seu peito subia e descia
compassadamente. Estava dormindo! Para o Abismo com ele! Co-
mo conseguia?
Observando-o cochilar, ela sentiu os próprios olhos se fechando.
O joelho, ombro e flanco doíam terrivelmente, pedindo descanso.
Suspirando, ela afastou a cadeira da mesa e foi acender o fogo, em-
pilhando lenha e troncos em um dos lados. O fogo logo pegou, e ela
se cobriu com o manto, sentada com as costas na parede. A incerte-
za quanto à segurança ainda a incomodava, mas a exaustão venceu
a preocupação, e o queixo acabou afundando sobre o peito.
•••
No fim do Caminho de Rampart, os dois cultistas que haviam escol-
tado Temper até a escadaria saíram da escuridão para encontrá-lo.
Ele os ignorou. O magro soltou um riso débil quando Temper pas-
sou, como se ele tivesse, pessoalmente, participação na matança e
conhecesse todos os segredos que aqueles lábios selados deviam
proteger. A presunção deixou Temper enfurecido. Ele se aproximou
e se voltou para eles; eles não tinham esse direito.
Eles se detiveram, mas muito mais perto que antes – ao alcance
do braço, de fato. O magro indicou o Forte com a cabeça encapuza-
da.
– Perda de tempo, não é? Como eu disse, agora você serve a
meu mestre.
– Você precisa aprender um pouco de respeito.
O homem olhou para o companheiro, rindo abertamente.
– Você foi enviado por nosso mestre para executar uma missão,
soldado. Cumpra-a e cale a boca.
– Se Dançarino for seu mestre, sim, eu fiz um acordo. Mas isso
não inclui ter que aguentar tagarelas como vocês.
Temper atacou, e o punho acertou a lateral da cabeça do cultista.
O capuz chamuscado voou para trás, revelando um jovem de ca-
belos e barba loiros e aparados. Ele ficou olhando, sem palavras,
enquanto o sangue jorrava da carne rasgada da bochecha. Puxou
uma faca da túnica. Sem dizer nada, o parceiro encorpado afastou-
se. O jovem brandiu a arma inclinada diante de si.
– Pralt nos avisou que você é um homem perigoso, soldado. Eu
digo que você é apenas uma relíquia velha e cansada. Vou mandá-
lo para meu mestre.
– Você fala demais para me preocupar, garoto.
Rosnando, o cultista arremeteu. Temper quase foi pego de sur-
presa. Ele não acreditava que o jovem atacaria de verdade. A lâmi-
na pegou a ponta de uma escama de ferro rachada, quase atingindo
a fenda na axila da cota. Temper apertou com a mão enluvada o
pescoço do sujeito. A faca feriu-lhe o flanco. Ele pegou a mão do su-
jeito e torceu a lâmina, e a seguir, enfiou-a no estômago do jovem. A
faca entrou logo abaixo das costelas. O cultista estremeceu, sufo-
cando um grito estrangulado. Temper apertou-lhe o pescoço, e en-
tão, deixou-o cair no chão.
O jovem jazia enrolado na faca como um inseto empalado. Ge-
mia. Temper virou-se para o outro.
– Vamos.
E começou a descer em direção ao Estreito de Cutter. Depois de
alguns momentos, passos anunciavam que o encorpado o seguia.
•••
Muito antes de Temper chegar às casas do antigo bairro que cerca-
va a Casa Morta e a Pousada do Enforcado, viu sinais da batalha
que se travava adiante. O frio nevoeiro noturno havia engrossado –
estranhamente –, mas viam-se rajadas fosforescentes piscando. Es-
condidos mais além, os cães uivavam, muitos, abafando o crepitar
frágil de energia pura e pequenas erupções.
Aquilo fez Temper relembrar o pior tipo de batalha que conhecia:
duelo de magos, nos quais mais morriam pelas explosões colaterais
de Warrens que pelo ferro afiado. À frente, um cultista emergiu da
neblina e ficou imóvel, aparentemente, esperando por ele. A figura
fez-lhe um sinal para que se aproximasse do muro de névoa. Aper-
tando a mandíbula, Temper seguiu, e o cultista seguiu ao seu lado.
Sua velha escolta parou antes da barreira, o que implicava uma hie-
rarquia dentro da organização. Talvez as pessoas ali dentro fossem
iniciadas nos segredos mais elevados. Ou, refletiu Temper, talvez
fossem aqueles que o culto não se importaria se aquele ardil levas-
se ao Abismo.
A neblina opaca obscurecia tudo. Edifícios desapareceram, as-
sim como o cultista ao seu lado. Temper perguntava-se se não havia
acabado de ser escoltado até uma parte do próprio Warren. Medi-
tando sobre aquilo, não estava preparado quando algo como um
morcego saiu da névoa. Ele gritou, abaixando-se, e a forma fantas-
magórica da escolta apareceu ao seu lado, gesticulando. A coisa
dobrou-se sobre si mesma e foi embora. Temper ficou chocado;
aquilo parecia nada mais que um pedaço de sombra vibrando. Ele
inclinou-se para perto do cultista, que sorriu por baixo do capuz.
– Onde estamos – rosnou Temper.
A escolta deu de ombros.
– Em lugar nenhum, estritamente falando – e acenou, chamando
Temper. – Venha, não temos muito tempo.
Enquanto entravam, Temper surpreendeu-se ao perceber que
estava subindo o lento aclive de uma estrada empedrada. A névoa
era mais fina ali, e depois de mais alguns passos, ele e a escolta
emergiram do pior do nevoeiro. Mais à frente, no topo da planície,
estava a Casa Morta e o muro em ruínas em torno dela. Ao redor,
cultistas esperavam. Quanto ao resto da cidade, não estava à vista,
apagado pela neblina. Era como se ele, os assassinos e a casa hou-
vessem sido transportados para outra ilha.
Nuvens altas mascaravam o céu, tornando a luz misteriosa e di-
fusa como a madrugada, proveniente de direções não discerníveis.
No portão da frente, um grupo de cultistas se reunia, e a escolta o
levou a eles.
Temper olhou para a Casa Morta. As janelas escuras fechadas
não davam nenhum indício do que poderia estar acontecendo lá
dentro. Mas foi o terreno que chamou a atenção de Temper: os ga-
lhos negros e mortos das árvores contraíam-se como dedos repuxa-
dos, e a terra nua inchava e murchava, como se algo se agitasse
embaixo. Temper sentiu o cheiro de sujeira no ar proveniente de
uma cripta havia muito tempo selada, e sobre ele o fedor a ozônio
do poder, como a descarga baixa e constante de uma magia Warren
canalizada.
Um cultista em vestes pálidas se separou do grupo e se aproxi-
mou de Temper. Dispensou a escolta.
– Pralt? – perguntou Temper.
Ele balançou a cabeça, convidando Temper a acompanhá-lo até
o muro de pedras amontoadas.
– Então, isto é a Sombra?
– Não, não exatamente. É mais uma ponte. Uma plataforma a
meio caminho criada pelas condições especiais da noite de hoje.
– E os cães?
– Nós os deixamos para trás. Não precisa se preocupar com
eles. Temos outras coisas com que nos ocupar.
Temper detectou a ironia de um grande eufemismo. Deteve-se,
levando os punhos às armas.
– Muito bem, eu fingi cooperar até agora, mas já que estou aqui,
qual é o acordo?
Pralt olhou para o terreno, e a seguir, virou-se para Temper. Mes-
mo tão perto, Temper via apenas a escuridão preenchendo o capuz,
e que o deixou irritado. O assassino cruzou os braços, deslizando as
mãos enluvadas dentro das mangas largas do manto, como se fos-
se uma espécie de sacerdote.
– Um assalto à Casa. Simples assim.
Temper fez uma careta.
– E as defesas?
– Ah, sim. Você tocou na preocupação principal. Ninguém sabe
exatamente o que é a Casa. Alguns dizem que é simplesmente um
portal. Outros dizem que é uma entidade própria, que está nos dois
reinos. Seja qual for o caso, não somos, de modo algum, os primei-
ros a tentar dominá-la. Através dos tempos, um número incontável
de pessoas tentou, e todas falharam. E as que falharam, foram es-
cravizadas pela Casa para sua defesa.
Pralt ficou em silêncio por um tempo, deixando que o fato cau-
sasse efeito.
– Engenhoso, não é? Com o passar do tempo, as defesas real-
mente ganharam força. É impressionante.
Temper o fitou, sem palavras, e a seguir, riu, em descrença abso-
luta.
– Pode esquecer, Pralt. Não há jeito de esse grupo desprezível
ganhar dela. Você está encrencado.
O capuz balançou a cabeça, como se concordasse.
– Ah, sim, não temos poder de fogo para derrotar a Casa. Mas
esse nunca foi nosso objetivo.
Temper franziu a testa. Ele já não gostava das coisas antes, ago-
ra tinha certeza de que odiaria.
– Eu não vou servir de chamariz.
O encapuzado olhou diretamente para Temper. Depois de um
momento, Pralt disse gentilmente:
– Isso é o que você sempre foi, Temper. Até mesmo a Espada
não era nada mais que isso: um estandarte para atrair o inimigo
mais forte. Uma isca para tentá-los.
Em um reflexo, Temper apertou os punhos, mas respirou fundo,
deixando o comentário para lá. Dassem costumava dizer isso. Cha-
mava a si mesmo de para-raios do exército. E todos eles sabiam
disso também: ele, Ferrule, Point e os demais. Mas não se importa-
vam, porque eram jovens e acreditavam que Dassem não poderia
ser vencido por ninguém. Então, qual era o problema? Que todos
tentassem; a Espada sempre prevaleceria. Pouca atenção ou impor-
tância davam àqueles que lucravam com seu sangue e sua vida.
– Palavras fortes, essas – disse Temper por fim, olhando para a
Casa – de alguém que espera minha cooperação.
– Nada que digamos agora poderá mudar o passado. E você deu
sua palavra.
Temper bufou e pegou a manopla rasgada pelos dentes do cão.
Passou o dedo indicador sobre a cicatriz enrugada no queixo e as-
sentiu.
– Sim, parece que eu dei minha palavra. Muito bem, vamos lá.
Pralt o convidou para seguir até o portão. Temper bateu a mano-
pla na coxa, pensando: muito bem, uma manobra diversionista. En-
trar e sair rapidamente. Isso significava que o verdadeiro assalto
proviria de outra direção, e seria muito mais discreto. Temper pen-
sou que sabia como seria.
Antes de chegar à porta, juntaram-se aos outros cultistas. Tem-
per os observou. Só isso? Só seis? Pralt e seu acompanhante con-
versaram mais uma vez; as cabeças encapuzadas quase se toca-
vam. Temper, inquieto, descansou as mãos sobre os pomos de ferro
de suas espadas. Era apenas uma ajuda extra, ou seria outra coisa
no futuro próximo? Temper não se tinha em tão alta conta para acre-
ditar que eles precisavam de sua participação. Ou que nem sequer
haviam planejado isso. Não, aquilo dava a sensação de que não ha-
via sido planejado; uma mudança de última hora. Agora, Temper ti-
nha certeza de que odiava aquilo. Mas dera sua palavra; pelo me-
nos, tinha sua honra. Ele entraria, mas sairia se as coisas esquen-
tassem demais para seu gosto. E Temper tinha a sensação de que
não levaria muito tempo para atrair aquele tipo de calor.
Pralt e seus amigos interromperam a conversa. Trocaram sinais
de mão. Temper não pôde interpretar a linguagem de sinais – não
era padrão Malazan. Não gostou nada disso; fez sua nuca coçar.
Pralt virou-se para ele.
– Prepare-se. Você vai tomar o ponto central, entre Jasmine e
eu.
Temper acenou para Jasmine, que respondeu com uma leve in-
clinação do capuz. Puxou as espadas de duas mãos, abaixando os
ombros para soltá-las. Pralt aproximou-se do portão simples de ferro
fundido.
Um grito proveniente de trás fez Temper se assustar.
– Não entre nessa propriedade!
Ele virou-se. Lá estavam Faro Balkat e Trenech. Estavam iguais
como sempre: Faro frágil, de olhos remelentos; e Trench indiferente,
parecendo um Bhederin. Só que, dessa vez, Trenech carregava
uma picareta, com o cabo no chão, e Faro claramente havia se livra-
do do torpor causado pela droga. Diversos cultistas correram para
eles, cercando-os. Faro os ignorou, como ignorara antes os solda-
dos na Pousada do Enforcado.
Pralt virou-se para eles com o arco retesado.
– Nossa missão não atrapalha a sua – disse. – Por que estão
aqui?
Faro sentiu a boca seca, enojado. Temper nunca vira o homem
tão animado.
– Não brinque comigo, escravo das Sombras. Cruzando as bar-
reiras, você os enfraquece, e isso não é de nosso agrado.
Pralt deu de ombros.
– É uma pena, mas eu conheço os limites de suas funções, e vo-
cês não podem impedir ninguém de entrar na propriedade.
Faro apertou as mãos nodosas nas laterais do corpo.
– Isso é verdade – ele se aproximou. – Estou lhe pedindo para
não fazer isso. Vocês estão brincando com forças que desconhe-
cem.
Sacudindo a cabeça encapuzada, Pralt deu meia-volta. Temper
olhou para o homem durão. Por que dera sua palavra?
– Eles estão esperando – sussurrou Jasmine com urgência. –
Temos que agir agora.
Pralt ficou de frente para o portão.
– Soldado – gritou Faro.
Temper virou-se.
– Não entre. Você não vai voltar.
Temper levantou uma espada em despedida.
– Lamento, Faro. Eu dei minha palavra.
Ele falou com toda a bravura que conseguiu reunir, mas sentia
um nó no estômago pela certeza de que já estava mais comprometi-
do do que desejava.
O portão rangeu na mão de Pralt, enferrujado pela falta de uso.
Faro ficou em silêncio. Trenech ergueu a longa picareta.
Um caminho de lajotas de ardósia levava aos degraus da frente,
depois dos morros nus que faziam Temper recordar as sepulturas
apressadamente cavadas nas batalhas. Estava tudo tranquilo até
então; a Casa, escura e sem vida. Pralt e Jasmine avançavam, e
Temper os seguia. Eles pareciam estranhamente descontraídos,
sem quaisquer armas em evidência. No meio do caminho, pararam.
Pralt virou-se para Temper.
Temper o encarou, em dúvida. Umedeceu os lábios secos.
– Nós vamos só até aqui – disse Pralt, estranhamente solene. –
Não era o que eu tinha em mente, lamento. São ordens de Dançari-
no. Adeus, soldado.
Pralt e Jasmine desapareceram. Temper girou sobre seus pés;
os outros três também haviam desaparecido. Era como se ele hou-
vesse entrado sozinho. O solo de cada lado do caminho inflou. A
terra nua, úmida, desmoronou e ferveu, enquanto, acima, os galhos
das árvores debatiam-se, rangendo. Chamas azuis esverdeadas,
como um mastro de fogo, dançavam sobre as árvores e ao longo
dos baixos muros de pedra. Trenech bloqueava o portão, com a pi-
careta abaixada. Faro estava atrás. Mais além, reunidos mais uma
vez, estavam os cultistas, Pralt e Jasmine inclusive, observando, de
braços cruzados.
Temper apontou uma espada para eles e gritou que lhes arran-
caria o coração, quando um alto fragor retumbou na Casa. Ele virou-
se, flexionando os joelhos, de armas prontas. A porta se abriu ran-
gendo, e a poeira caiu de seu batente. A escuridão bocejou lá den-
tro, e a seguir, foi preenchida pelo avanço de uma figura gigante.
Ele fora traído. O último assalto a Y’Ghatan mais uma vez. Ele
não havia aprendido absolutamente nada! Temper jogou a cabeça
para trás e uivou com uma fúria incandescente tão consumidora,
que cada fibra de seu corpo parecia em chamas.
•••
Agayla e Obo ocupavam um lugar na rocha suspensa dentro de um
verdadeiro canal de poder. A maré havia subido sobre a costa, pu-
nindo as rochas acima. O vento lançava granizo, mas desaparecia
antes de atingir o pequeno círculo de calma, como poeira espanada.
Acima, um teto de nuvens cobria o topo das montanhas, causando
um eclipse no céu, e estendendo-se para o interior, encobrindo a
ilha. No sul distante, cúmulos-nimbos erguiam-se cada vez mais al-
tos, agitados e ondulantes, lancetando os mares com uma descarga
constante de relâmpagos que iluminavam a dança dos ataques dos
Cavaleiros distantes.
A sensação de uma presença atrás dele fez Obo voltar a cabeça
ao redor. Fixou o olhar na encosta nua, onde duas figuras desciam.
Uma fez sinal à outra para ficar entre as rochas e continuou descen-
do sozinha. As vestes escuras agitavam-se ao vento.
A outra dirigiu-se ao abrigo, a sotavento, de um alto pedestal de
rocha e se agachou, apoiando os cotovelos nos joelhos. A camisa
brilhava molhada.
– Alguém está vindo.
Agayla não respondeu. Obo virou-se para ela; estava sentada
curvada para frente, segurando a cabeça com as mãos como se qui-
sesse evitar que estourasse.
– Seu garoto, Agayla. Parece que eu perdi a aposta.
Ela ergue os olhos vazios de entendimento. Lentamente, a cons-
ciência despertou. Ela pestanejou, endireitou os ombros e levantou-
se.
– Ótimo. Muito bom.
Quando a figura se aproximou com seu couro cabeludo liso e re-
luzente, Obo murmurou uma maldição.
– Muito bem… é ele. Eu não confio nele. O fedor do Verme o im-
pregna.
– Ele não tem amarras, Obo. Senão, eu não o teria procurado.
Ela curvou-se para o recém-chegado.
– Saudações, Tayschrenn.
Tayschrenn correspondeu à cortesia.
– Obo – saudou.
Obo voltou-lhe as costas. Tayschrenn apontou para o sul.
– Isto é incalculavelmente pior do que eu imaginava.
Agayla assentiu.
– Nós estamos mascarando a maior parte da ilha. Terrível, não
é?
– Lembra-me do Imperador de modo mais brutal.
Obo disse bruscamente:
– Ele era um tolo com uma vara afiada em comparação com is-
so!
Obo olhou para os dois. Quando Tayschrenn voltou-lhe o olhar,
ele afastou-se para olhar para o sul mais uma vez. O que viu o fez
se encolher.
Tayschrenn entendeu a exaustão de Agayla e a postura rígida de
Obo; ele o convidou a se sentar.
– Você está perdendo.
Agayla simplesmente anuiu, cansada, exausta demais para fin-
gir.
– Sim… Antes do amanhecer vamos fracassar. Isto é… a menos
que você se comprometa.
– Mas alguma força já previu isso. Onde eles estão?
– Ele foi vencido.
– Ele? Um contra tudo isso?
– Não há ninguém. Osserc, talvez…
Obo bufou de novo.
Agayla apenas massageava a testa com os dedos.
– Tay, você, mais que todos, deve saber que há poderes antigos,
aqueles que veem a construção do império e de Kellanved apenas
como mais uma mudança de estação. Os caminhos da Ascendência
são muito mais variados do que você imagina – suspirando, Agayla
se endireitou. – Mas agora não é o momento para isso. A campanha
de Surly contra a magia o deixou extremamente amortecido. Só so-
brou uma fração do talento para usar, e assim, ele foi dominado.
– Ela não tinha como prever as consequências mais profundas
de suas ações.
– Você tinha.
Obo virou-se.
– É verdade?
Inexpressivo, Tayschrenn cruzou as mãos sobre os joelhos.
– Eu tinha um pressentimento, sim. Um mal-estar em relação à
alteração de um equilíbrio milenar de poder – ele encontrou o olhar
de Obo. – Mas juro pelos Inomináveis que não suspeitava desse tão
profundo… esse… perigo.
Olhando para Agayla, Obo disse com brusquidão:
– E esse era a pessoa que você ia procurar.
A força da raiva que tomou o peito de Tayschrenn em resposta
ao desprezo de Obo o surpreendeu; ninguém o tratava dessa ma-
neira. Ele havia tolerado zombarias de Kellanved e ignorado a rivali-
dade equivocada de Surly, mas ninguém nunca o rejeitara com des-
prezo. De um bolso no forro da capa ele tirou um par de luvas de
pelica molhadas e lutou para calçá-las. Abrindo e fechando os de-
dos, ele refletiu; afinal, Obo era simplesmente Obo. O homem bate-
ria a porta na cara do próprio Hood.
Agayla só observava com pesar. Tayschrenn ignorou a sensação
desconfortável de ser julgado – e criticado.
– No entanto, você permitiu isso – Agayla observou especulativa-
mente.
Tayschrenn aceitou a abertura para explicar:
– Opor-me às ordens de Surly teria despertado suspeitas desne-
cessárias.
– Suspeitas de…?
– Conluio, comunicação, simpatia para com ele.
– Ah, entendo.
Ela afastou as mechas de cabelos molhados do rosto e passou a
mão pela testa. Tayschrenn teria lhe oferecido um pano se tivesse
qualquer coisa ainda não encharcada. Ela suspirou, olhando para
ele.
– Pobre Tayschrenn. Um dia você vai acordar e abandonar essa
politicagem e manobras mesquinhas. Isso vai queimá-lo muitas ve-
zes, e você vai escaldar muitos outros antes de encontrar a sabedo-
ria.
Os olhos escuros da mulher sondavam a consciência dele. Ela
sussurrou:
– Você ainda nem sequer foi longe o suficiente para perguntar
pelo preço, não é?
Tayschrenn olhou para ela. Nunca, desde o treinamento no tem-
plo, alguém havia baixado as defesas com tanta facilidade. Ele es-
tremeceu.
– Vai querer minha ajuda ou não?
– Justamente, podemos não querer seu auxílio.
Espantado, Tayschrenn passou a mão pela boca. Ali estavam
dois poderes – sim, ele podia admitir isso, poderes – diante da ani-
quilação pelas mãos de um inimigo de poder incalculável, e que iam
rejeitar sua ajuda?
– Mas, a ilha… milhares de almas…
– Ora, por favor! Mais morreram só com a queda de Unta. Não
finja que o destino deles lhe diz respeito. Não, se cairmos, você teria
que se comprometer, não é?
– Teria? Você diz que não me importo com essas vidas, mas me
comprometeria com sua defesa? Lamento desapontá-la, Agayla.
Gostaria de ficar à parte.
Obo, depois de um silêncio prolongado, bufou de escárnio.
– Ah! – Agayla suspirou, voltando o rosto para o sul. – Gostaria?
O olhar atraiu o de Tayschrenn. O que ele viu apagou todos os
pensamentos conscientes de sua mente, como se um véu houvesse
sido rasgado e só então ele visse pela primeira vez a terrível verda-
de que, aos olhos normais, parecia uma tempestade de uma escala
sem precedentes. O clima era o mero efeito colateral de uma bata-
lha muito mais profunda entre os reinos rivais. Convocando sua Thyr
Warren, ele sondou a obra dos misteriosos feiticeiros Cavaleiros das
Tormentas, os Wandwielders. Era como uma cortina de energia,
uma réplica da luz cintilante que às vezes brincava no céu noturno
do norte. Descendo das alturas da atmosfera, marcava uma linha di-
visória, que, ao contrário da maioria das manipulações teúrgicas hu-
manas, não acabava na água, continuava abaixo dela. Com o olho
interior, Tayschrenn seguiu a descida vertiginosa e ficou horrorizado
ao vê-la continuar ininterruptamente pelas profundezas, em fendas
insondáveis, até que vislumbrou um coração incandescente de gelo
de outro mundo. Um coração que, enquanto ele olhava, pulsava e
inchava. Ele quebrou a conexão, ofuscado por uma sensação verti-
ginosa de poder que ele havia visto somente uma vez antes – como
um suplicante diante de seu antigo mestre, D’rek, o Verme do Outo-
no que atormenta o mundo.
– Você pode optar por ficar à parte, Tayschrenn – observou
Agayla. – Malaz cairia, uma barreira não evitaria por muito mais
tempo a expansão dos Cavaleiros. Afinal, essa é a antiga preocupa-
ção, não é? Que livres dos limites do estreito, eles dominem os ma-
res, sendo uma ameaça para todos?
Tayschrenn assentiu com cautela, sem saber ao certo onde ela
queria chegar.
– Sim. Claro.
Tremendo, ela cruzou os braços, e olhou diretamente nos olhos
de Tayschrenn.
– Mas se não fosse a ilha, o que eles procuram? Pense nisso. O
que se encontra em Malaz, à distância de um tiro de pedra da praia?
E se isso não for uma tempestade sem sentido tentando escapar, e
sim uma busca calculada de poder, de influência? – ela abriu o bra-
ço indicando o cataclismo que tomava o horizonte do céu e do mar.
– Diga-me, Tayschrenn, a Casa poderia suportar tudo isso?
Ele olhou para ela fixamente, atordoado. A Casa? O que ela po-
deria significar para aqueles alienígenas? E o que eles eram? Um
enigma. Um ponto focal de poder e potencialidades. Isso era certo:
era possível. Talvez a ilha não estivesse simplesmente em seu ca-
minho. Talvez eles a quisessem; quisessem o prêmio que ela deti-
nha. Tayschrenn amaldiçoou a bruxa; ela e todos os outros alinha-
dos com a Feiticeira. Os olhos viam tudo. No entanto, ele tinha que
ajudar. Não podia arriscar a alternativa que ela havia apontado e
que, com certeza, ela sabia o tempo todo.
– Muito bem, Agayla – ele baixou a cabeça –, você ganhou. Eu
lhe darei toda minha força. Cada gota dela. Os Cavaleiros precisam
ser contidos.
– Não espere que eu me derreta de emoção – murmurou Obo.
•••
De início, Kiska pensou que fosse um sonho. A pele se arrepiou; pa-
recia que alguém a estava observando. Lentamente, a consciência
de exatamente onde estava dormindo esgueirou-se em seus pensa-
mentos e ela acordou bruscamente.
Uma mulher negra inclinava-se sobre ela com as mãos estica-
das, como se quisesse pegá-la. Kiska levantou-se correndo e a mu-
lher se afastou, assustada. Em um reflexo, as mãos de Kiska voa-
ram para sua cintura, mangas e gola, mas voltaram vazias. Ela ros-
nou, e levantou as mãos.
A mulher endireitou-se, estendendo as mãos abertas.
– Calma, criança. Você me assustou.
Kiska olhou ao redor. Hattar não estava mais, assim como seu
cinturão de armas. As brasas brilhavam na lareira e as velas eram
só tocos. A própria lâmina jazia embainhada sobre a mesa. Alguém
estava na porta: era o corcunda, o homem que lhe havia empresta-
do a arma.
– Eu a assustei? – disse Kiska, rindo.
Kiska endireitou-se, estremecendo com as pontadas de dor no
flanco e no joelho.
A mulher era uma maga mercenária Napan. Ela assentiu com a
cabeça.
– Sim. Você estava sob uma luz curadora; um sono de cura. Eu
só estava testando sua força, mas você acordou e o quebrou facil-
mente. Sua resistência é excepcionalmente forte.
Kiska bufou, dando pouca importância às palavras da mulher. O
que ela pretendia realmente? Onde estava Hattar? E falando nisso,
e Tayschrenn?
– Onde está todo o mundo? Que horas são?
A mulher ajoelhou-se para aquecer as mãos na lareira e – imagi-
nou Kiska – para tranquilizá-la.
– Esperávamos que você pudesse nos dizer. Não há ninguém
aqui. O porão está vazio.
– E que horas são?
A mulher deu de ombros.
– Já passa do décimo sino da noite, creio.
Kiska pegou a arma e a ajeitou no flanco.
– Se quiser respostas, basta ir lá em cima. Tenho certeza de que
os Garras ficarão felizes em ajudá-la.
O tilintar do aço anunciou antecipadamente a movimentação do
corcunda. Ao fraco brilho da lareira Kiska viu que ele usava um elmo
de aço enferrujado e maltratado. Uma armadura folgada para ele ca-
ía em camadas de malha de ferro com escamas de aço na altura
dos ombros, peito, estômago e braços. Ele também carregava um
machado de cabo longo. Kiska olhou para ele em choque, certa de
que qualquer homem normal desabaria sob aquela carga.
– Ela quis dizer que você não corre perigo, moça – rosnou ele. –
Todo o mundo se foi. O que você sabe a respeito disso?
Ela olhou de um para o outro.
– O que importa? Acabou. Surly venceu.
A mulher encolheu-se.
– Você estava lá? Você viu tudo?
Então, Kiska se lembrou de com quem estava falando e prendeu
a respiração.
– Ah, e Ash… Eu o vi. Ele está morto. Sinto muito.
A mulher jogou para trás os cabelos longos e suspirou.
– Eu não. É melhor que esteja morto. Ele deveria ter morrido há
muito tempo. Estes tempos não eram de seu agrado. Ainda assim,
eu tinha uma grande dívida para com ele.
Kiska desviou o olhar.
– Bem, fico feliz que esteja bem.
– E você o viu também? Ele?
Kiska esfregou os braços para aquecê-los. Fazia um frio inco-
mum. Estava gelada e faminta, mas revigorada, como se houvesse
dormido uma noite inteira. Até seu joelho parecia forte; latejante e
duro, mas firme.
– Não. Eu não o vi. Mas cheguei logo depois. Surly disse que
Kell… que eles caíram da varanda, no penhasco. Ninguém poderia
sobreviver a uma queda daquelas. São cem braças.
Lubben e a mulher entreolharam-se, claramente céticos. Impres-
sionada, Kiska afastou-se.
– Para Surly, foi o suficiente. Ela disse que estava tudo acabado.
Inclusive – deteve-se, engolindo em seco. – Bem, todos concorda-
ram.
Mas ao dizer isso, perguntou-se: onde estavam Hattar e Taysch-
renn? E Surly? Tayschrenn teria lançado o feitiço de cura sobre ela?
Se fosse mesmo um feitiço, como alegava a mulher. Se eles hou-
vessem mentido sobre o fim de tudo? Se assim fosse, não poderia
ter sido por causa de sua presença. Não, eles deviam ter tido outras
razões, sem dúvida diferentes. Eles poderiam ter mentido um para o
outro por força do hábito. O estilo Malazan, como sussurrara Tays-
chrenn com ironia. E agora, nas palavras do Grande Mago, Kiska
captava certo desgosto consigo própria. Esfregando os flancos com
as mãos, ela desviou o olhar.
– Acho que não sei. Eu achava que tudo havia acabado.
– Bem, não acabou – disse a mulher, parecendo estranhamente
irritada. – Pode ter certeza.
Kiska olhou para ela, intrigada.
– Há uma imensa perturbação entre os Warrens aqui – explicou
a mulher. – Eu posso sentir isso, tão forte quanto a tempestade que
cai sobre a ilha. Provavelmente, foi para lá que foram todos.
– A Casa Morta – Kiska suspirou, relembrando as palavras de
Oleg.
A mulher olhou-a bruscamente, observando-a mais uma vez.
– Sim. A Casa Morta. Tudo isto – disse, indicando o andar de ci-
ma –, provavelmente foi nada mais que uma distração. Um espetá-
culo paralelo.
– Mas, e todos os mortos? E Ash?
A mulher virou-se para as brasas.
– Nada como um massacre para confirmar as aparições.
Ela pegou um atiçador de um aparador ao lado da lareira e re-
mexeu as brasas que sobravam, espalhando-as entre as cinzas.
– Não há nada mais a descobrir aqui, Lubben – disse ela, com
uma força de comando que surpreendeu Kiska. – Vamos para a Ca-
sa.
Lubben grunhiu, consentindo, e abraçou o machado. O fato de o
corcunda independente e cínico se submeter tão facilmente às or-
dens da mulher pareceu bastante revelador a Kiska. Na pousada, a
mulher agira como se fosse a segunda no comando de Ash, que,
segundo Surly, havia sido oficial dos Bridgeburners. Ela poderia ser
o equivalente a uma comandante.
– Levem-me junto – Kiska falou sem pensar.
A mulher sorriu diante do entusiasmo de Kiska, mas balançou a
cabeça.
– Não, é muito perigoso.
– Eu posso ser útil. Eu sei certas coisas.
A mulher olhou para ela, inclinando a cabeça.
– Tais como…
Kiska umedeceu os lábios, tentando recordar tudo que de impor-
tante Oleg lhe dissera, além de tudo de que ela própria suspeitava.
– Eu sei que teríamos que chegar lá antes do amanhecer, mas
que o uso de um Warren seria perigoso, porque os cães são sensí-
veis a eles e podem atravessá-los à vontade. Eu sei que há um
evento acontecendo focado na Casa. E que ela – Kiska fez uma
pausa, tentando se lembrar da palavra que Oleg havia usado – po-
deria ser um portal para as Sombras.
– Chega!
Kiska se calou, surpresa. A mulher levantou a mão, pedindo des-
culpas.
– Desculpe, mas certos conhecimentos é melhor não insinuar a
ninguém, nunca.
Ela virou-se e começou a se afastar. Kiska a observava, tensa,
desesperada para convencê-la, mas com medo de que isso só a irri-
tasse.
– Vou ficar de olho nela – disse Lubben na escuridão mais além
do brilho escasso da lareira.
Por trás do manto, a mulher estudou Kiska.
– Tudo bem – disse. – Se você quiser vir, tudo bem. Mas vai ter
que fazer o que eu disser.
– Certo.
– Seu nome é Kiska, certo?
– E o seu?
Ela respondeu com um sorriso maroto, fazendo a tatuagem preta
que tinha na testa enrugar-se.
– Corinn. Muito bem, Kiska, você já viajou por Warren?
O primeiro impulso de Kiska foi mentir, temendo que tal falta aca-
basse com suas chances. Mas negou com a cabeça, frustrada pela
inexperiência.
Corinn franziu os lábios por um instante, fazendo o coração de
Kiska apertar-se; mas, a seguir, deu de ombros. – Deixe para lá.
Basta ficar perto de mim. Lubben, vá atrás.
Ele resmungou impaciente.
– Mas, e os cães? – perguntou Kiska.
Mais uma vez o sorriso ousado e espirituoso.
– Teremos que ser rápidos.
Ela agitou a mão. Um brilho surgiu diante da lareira, como se ar
quente se erguesse ali. Faixas cinza surgiram, brilhantes como a
mais pura prata. Encontraram-se e se fundiram, criando um espelho
flutuante de mercúrio que ondulava como água.
Pelas dicas de Agayla, jogadas aqui e ali, Kiska reconheceu o
Warren: Thyr, o Caminho da Luz. Ela havia ouvido dizer que a Feiti-
ceira, a Rainha dos Sonhos, era praticante de Thyr.
Corinn adiantou-se e desapareceu no oval flutuante de mercúrio,
como se submergisse.
Kiska hesitou, com medo, apesar do fascínio.
– Depressa, garota – urgiu Lubben. – Senão, vamos perdê-la e
vagar sozinhos pelos caminhos para sempre.
Incitada pelo horror da perspectiva, Kiska mergulhou. Se Lubben
a seguia, ela não tinha ideia. Foi como se houvesse entrado em
uma sala de espelhos. Reflexos de si mesma e de Corinn enfileira-
vam-se até distâncias infinitas. Centenas de Corinns viraram-se e
estenderam-lhe a mão. Ela ficou paralisada, incapaz de se mexer,
com o coração batendo em pânico. Qual era a real? A qual deveria
responder?
Como um nadador emergindo em um lago, uma nova Corinn sur-
giu de uma imagem de si mesma. Kiska estendeu a mão e suspirou
de alívio quando tocou carne.
– Onde está Lubben?
Corinn puxou Kiska.
– Cada um segue o próprio caminho no Thyr. Agora, fique perto
de mim.
Elas caminhavam sem se mexer, ou pelo menos era o que pare-
cia a Kiska. Ela não podia discernir qualquer avanço, mas, ainda as-
sim, Corinn a puxava para frente. Então, conforme observava as
imagens de si mesma que passavam, começou a ver as diferenças;
algumas leves, outras surpreendentes. Em uma, ela aparecia dolo-
rosamente magra e usava roupas não melhores que trapos; em ou-
tra, o braço havia sido mutilado à altura do cotovelo. Isso a fez sentir
um arrepio no braço, relembrando um ferimento causado por uma
queda na infância. Em outra, ainda, ela usava as vestes escuras dos
Garras. Ela quase gritou de espanto.
– O que está acontecendo? – gritou para Corinn, puxando-a e fa-
zendo-a parar. – O que significam todas essas imagens?
Corinn virou-se; a irritação escurecia as tatuagens em sua fronte.
– Você está vendo as imagens?
– Sim. Você não?
Corinn ergueu as sobrancelhas, impressionada.
– Muito bem… Você tem um talento natural. Thyr deve servir pa-
ra você.
Ela urgiu Kiska, dizendo por cima do ombro:
– Isso são apenas possibilidades; fantasmas. Não dê atenção a
elas. Não é por isso que estamos aqui.
– O que você vê?
Corinn respondeu sem se virar:
– Eu estou andando em uma ponte de pedra, sobre o vazio, com
o céu azul límpido ao redor.
Kiska olhou para as paredes prateadas confusas que se desloca-
vam com imagens dela – inclusive acima e abaixo.
– Por quê? Por que uma ponte sobre o vazio? Como?
Corinn olhou para trás com aquele mesmo sorriso misterioso.
– Eu gosto de pensar em coisas assim. É mais seguro. Quanto
ao como, bem, isso levaria anos.
Kiska anuiu, fazendo uma careta. Sim… anos de estudo e práti-
ca. Os mesmos velhos exercícios mentais e meditação que Agayla
tentara lhe impor havia muito tempo, desistindo somente no dia em
que Kiska abrira uma claraboia e arriscara uma perigosa subida ao
terceiro andar, em vez de ficar sentada durante horas e – em suas
próprias palavras – tentar ficar vesga. Depois disso, Agayla havia si-
do boazinha: fornecia-lhe todas as outras formas de instrução sem
pressioná-la a qualquer formação arcana. Ela simplesmente avisara
que Kiska lamentaria a escolha mais tarde na vida.
E quase imediatamente ela lamentou, mas o orgulho não lhe per-
mitiria admitir. O orgulho obstinado que transformava tudo em fra-
casso; e ela realmente gabava-se da ignorância! Tudo o que ela
sentia naquele momento era vergonha daquela obstinação infantil.
Depois daquela noite, ela imploraria a Agayla que a perdoasse.
Pensar em Agayla, no roçar de seus ricos vestidos bordados e
na densa juba de cabelos ruivos, fez a nuca de Kiska arrepiar-se.
Ela desacelerou, tonta, e a seguir, parou com um solavanco quando
uma de suas imagens ondulou como a superfície de uma piscina.
Ela mudou, escureceu, até se assemelhar a uma mulher sentada à
margem da água, açoitada pelo vento e ameaçada por nuvens bai-
xas. A mulher levantou a cabeça e Kiska viu Agayla como nunca a
vira antes: esgotada, abatida, com o rosto contraído e pálido, com
os cabelos encharcados e açoitados pelo vento. Agayla olhou para
cima, confusa, e a seguir alarmada.
– Aqui não, criança – disse rouca e distraída.
Kiska pulou para frente.
– Agayla!
Mas a imagem ondulou para longe e Corinn emergiu de novo. O
olhar que ela lançou a Kiska a fez se sentir culpada. A filigrana tatu-
ada em sua testa parecia pulsar.
– Em nome dos Anciãos, o que você pensa que está fazendo?
Kiska gaguejou:
– Pensei ter visto alguém. Alguém que eu conheço. Ela está com
problemas. Eu tenho que ir até ela!
Corinn murmurou algo e gesticulou bruscamente. Qualquer insi-
nuação de seus sorrisos travessos havia desaparecido.
– Não sinta nada. Fique comigo. Aqui não é lugar para brincadei-
ra.
Atordoada, Kiska abriu a boca para explicar, mas a mulher pros-
seguiu sem a esperar. Kiska correu atrás, esforçando-se para ficar
perto dela.
– Temos que alcançar nosso objetivo – disse Corinn por cima do
ombro. – Há algo bloqueando o caminho, está vendo?
A visão de Kiska não ia mais longe que a própria imagem um
pouco à frente de Corinn. Era como se ela caminhasse em direção a
si mesma, embora cada passo não a aproximasse mais.
– Não vejo nada diferente de antes – disse Kiska.
Mas Corinn não respondeu. Ela havia desaparecido.
Um grito morreu nos lábios de Kiska quando a prata reflexiva do
Warren embotou-se e engrossou até se transformar em um nevoeiro
opaco. O treinamento a fez fechar a boca antes que se traísse, pois
reconhecia onde estava. Era sua terceira visita ao Reino das Som-
bras.
•••
Ela estava no topo de uma planície de poeira e terra levada pelo
vento. Um céu chumbo claro formava mais uma. Ao longe, bem dis-
tante, erguia-se um gemido prolongado – o vento ou um cão.
Em frente a ela erguia-se um afloramento de rocha, como Kiska
nunca havia visto antes. Assemelhava-se a uma pilha confusa de
enormes lâminas cristalinas, pretas, manchadas, como fumaça con-
gelada. Ela pensou nas pedras que Agayla possuía na loja, os aglo-
merados de cristais de quartzo e sal. Quartzo fumê! Era isso que a
fazia lembrar! E ia mudando. Enquanto ela observava, lâminas indi-
viduais se alteraram, rodaram, desapareceram ou mudaram a trans-
lucidez. Toda a estrutura parecia indefinida e variável. Ela não tinha
certeza sequer do tamanho daquilo. Era bonito, parecia falar com
ela, e Kiska sentiu que aquilo devia guardar as soluções para cada
mistério sobre o qual ela já se perguntara, todas as respostas para
qualquer perguntas sobre Agayla. Tudo que ela tinha a fazer era en-
trar, e saberia como Agayla estava naquele exato momento. Inclusi-
ve onde Tayschrenn estava. Qualquer pergunta. O destino de seu
pai. Quem seria seu amante. Kiska deu um passo em direção àqui-
lo.
Algo bloqueou seu caminho. A mão dura como pedra a empurrou
para trás.
– Não é bom olhar tão de perto – disse uma voz murmurada.
Era o ser da ponte, Edgewalker. Atordoada, Kiska pestanejou e
esfregou os olhos com as palmas das mãos. O que havia aconteci-
do? Não havia acon… Ela poderia jurar que algo estranho havia
ocorrido. Deu de ombros, mas desviou o rosto do afloramento de
cristal.
Mais além, as areias davam lugar a uma colina de granito nu que
descia até um lago de águas calmas, que como um espelho refletia
o céu carregado. Uma imensa parede de gelo se erguia na margem
oposta; a geleira que antes havia sido nada mais que uma linha dis-
tante no horizonte. Agora, o gelo se esticava como uma vasta planí-
cie. As luzes brincavam sobre ele, como ela havia visto nos céus no-
turnos do sul: faixas de arco-íris e cortinas que piscavam, dançando.
Ela se movera, ou fora o gelo?
– Aqui é a Sombra – disse o ser.
Ela inclinou a cabeça dissecada, anuindo.
– Eu não deveria estar aqui.
– No entanto, está, e parece mais persistente.
Ela estudou as órbitas escuras e vazias do ser, onde deveriam
ser seus olhos; aquilo era uma brincadeira?
– E você pode me mandar de volta de novo?
– Digamos que esse é meu dever.
– Antes disso… o que é aquilo? – Kiska perguntou, indicando a
pilha do que parecia ser cristais de quartzo.
– É a Casa Sombria. O coração das Sombras, por assim dizer.
– É mesmo? Isso? Mas está…
– Vivo? Bastante. E é muito perigoso.
– Perigoso? Mas, e aqueles que o reivindicam?
Ele ergueu os ombros magros.
– Os ocupantes do trono vêm e vão – ele levantou a mão encur-
vada, apontando para a geleira pelo lago de água derretida. – Mas
isso… esse é o verdadeiro perigo.
– O que é isso?
– É alheio a este reino. Isso me lembra dos Jaghuts, mas profun-
damente mais alienígena. Eles, pelo menos, não eram tão diferentes
de você. Diz-se que, há muito tempo, os Jaghuts inadvertidamente
permitiram que isto entrasse neste mundo quando operaram sua ex-
tremamente forte magia de gelo.
– Mas há um louco, um assassino, que pode tomar o trono. Você
não vai fazer alguma coisa? Ele também não pertence a este lugar!
A criatura continuou voltada para o penhasco glacial.
– É verdade. Mas esta é a ameaça mais mortal. Eu tenho que
estar pronto caso isto se rompa e chegue à Casa.
– Caso se rompa?
– Está resistindo. Mas pode mudar a qualquer momento. Os que
o enfrentam enfraquecem enquanto conversamos.
Kiska lamentou-se, indagando:
– Mas, e Kell… e o trono?
– Sinto muito. Essa é uma preocupação menor, dado tudo que
está em jogo nesta Conjunção.
– Menor?!
Kiska julgou ter ouvido a carne seca do pescoço do ser ranger
quando ele virou a cabeça para ela.
– Sim, no contexto maior. Sinto muito. Agora, você deve ir.
– Mas, espere! Tenho muitas perguntas. Eu…
Um cinza opalescente fechou-se sobre Kiska, obscurecendo sua
visão como fumaça. Perto, ela ouviu gritos e o embate de armas.
Ouviu uma mulher gritar alguma coisa. Seu nome?
Ela se curvou, pronta para o combate, tateando as cortinas on-
dulantes com uma das mãos.
– Corinn?
– Aqui!
Kiska girou; não podia discernir nada além de névoa. Estava de
volta a Malaz? Mas, onde? Girou de novo, inutilmente tentando ver
algo.
– Corinn? – pouco mais alto.
Com cuidado, puxou a faca curva de combate.
– Quieta – advertiu uma voz distante.
Teria sido Corinn? Que tipo de jogo era aquele?
– Onde está você? Apareça!
– Logo atrás de você – Kiska ouviu a provocação em sua orelha.
Ela virou-se: o vapor vazio se agitava e se enrolava. Kiska tentou
controlar o pânico apertando as mãos com tanta força, que suas
unhas se cravaram em suas palmas. Não importa o que possa ou
não acontecer: mantenha a calma. Era uma guerra de nervos, e ela
estava perdendo. Ouça, garota, desafiou a si mesma. Ouça. O que
está ouvindo?
Ela se esforçou, tentando discernir no fundo de gritos abafados
ruídos próximos, arranhões e sussurros. Ali! Um passo para a direi-
ta. E bem distante, ou de alguma forma abafado, um rugido de indig-
nação. Lubben?
De novo, o som de couro sobre pedra. Atrás dela agora, mais
perto. Sem esperar outro sussurro zombeteiro, Kiska lançou-se com
os braços estendidos. Com a mão direita, roçou um tecido áspero.
Agarrou-o, puxando-o para perto.
O pano era de trama aberta, tingido de cinza. Um cultista.
Uma lâmina fria mordeu o ombro de Kiska quando a manga do
assassino roçou seu pescoço. Reconhecendo o golpe e a postura
de seu oponente, ela reagiu automaticamente. Pegou o braço, enfi-
ou seu cotovelo na garganta do agressor e golpeou-o no peito. Seu
oponente caiu no chão.
Kiska jogou-se sobre o corpo, cobrindo-lhe a boca. Prestou aten-
ção. Satisfeita por estarem sozinhos, ou pelo menos desistindo de
tentar detectar a presença de outro, ela baixou o rosto. Era uma mu-
lher jovem. Talvez seu golpe houvesse quebrado o feitiço de disfar-
ce, ou talvez houvesse sido a queda, mas, de qualquer forma, o ros-
to da mulher estava nu e o capuz caído na rua de paralelepípedos.
Pequenas bolhas nasciam e morriam sobre os lábios da mulher
enquanto ela lutava para respirar. Os cabelos e pele eram claros, as
maçãs do rosto altas e finas – refinada. Uma Talian, talvez; parecia
rica. Kiska gentilmente tirou a adaga da mão da jovem. As unhas
eram limpas, bem cuidadas, e a palma da mão macia. Os olhos da
mulher seguiram a lâmina fina quando Kiska a postou entre o rosto
das duas.
– Por quê? – sussurrou Kiska.
A respiração da mulher era ofegante, curta e úmida. Um uivo
rasgou a névoa, como um grito no ouvido de Kiska. Ela não pôde
evitar a contração de seus músculos. A mulher sorriu. O sorriso re-
velava uma vitória sobre Kiska, o triunfo diante da demonstração de
medo.
Rosnando, Kiska levantou-se e examinou as cortinas que se agi-
tavam, à procura do cão. Estaria atrás dela? Talvez a missão da cul-
tista fosse retardá-la o tempo suficiente para ele chegar. Assim co-
mo os jogos, o esconde-esconde. Kiska se amaldiçoou por ter coo-
perado, rondando como uma tola, reagindo em vez de tomar iniciati-
va. Ela havia feito o jogo da cultista.
Kiska ouviu um bufo baixinho. Ali, na névoa, dois olhos verdes a
encaravam. Verdes – diferentes dessa vez. Não que isso importas-
se. Tendo visto um deles de perto, Kiska desesperou-se. A fera ha-
via arrebentado uma porta e mastigado homens encouraçados. Ago-
ra, a única opção que restava a Kiska era ser puxada por trás en-
quanto corria, ou cair lutando. Gritando de raiva pela injustiça, com a
lâmina nua em sua mão, ela atacou os olhos.
No sexto passo, tropeçou. O pé levantado enroscou em um tre-
cho de terreno em desnível. Ela rolou para frente em uma explosão
de ruído – um tiroteio ensurdecedor de poder crepitante, gritado em
uma infinidade de línguas –, batendo a cabeça contra uma parede.
Ficou ali, atordoada, enquanto ondas de energia fosforescente dan-
çavam acima dela.
•••
Saindo da Casa, o gigante inclinou-se para passar pelo umbral.
Uma armadura estranha, ornamentada de placas de bronze e couro
entalhado em relevo, brilhava em seu peito, braços e pernas. Uma
faixa do ouro envolvia-lhe os ombros desumanamente largos, e de
outra, na cintura, pendiam duas espadas. O rosto estava escondido
por um elmo de guerra, de ferro dourado polido em espirais de bron-
ze, e luvas de escamas de bronze cobriam suas mãos.
Temper recuou, lançando um olhar rápido para a retaguarda.
Trenech bloqueava a porta frágil, com a picareta erguida. Quando a
aparição desceu da varanda, as pedras da calçada afundaram sob
seus pés. Temper ouviu gritos de desespero atrás de si, cortados
pelo riso causticante de Faro.
– Veja! – gritou o velho com voz rude. – Tolos! Vocês trouxeram
o Jaghut. O maior dentre os que caíram tentando dominar a Casa.
Agora, vejam o que têm que encarar!
Temper recuou para o portão, mas parou quando Trenech apon-
tou a picareta para ele.
– Deixe-me sair, maldito!
Atrás de Trenech e Faro, os cultistas espalharam-se; inclusive
Pralt e Jasmine, correndo pelo muro baixo.
– Soldado – disse Faro a Temper –, você entrou por sua própria
vontade.
A cintilação fosforescente de energias Warrens dançava sobre
seus braços emaciados.
– Lamento, mas não podemos permitir que ninguém deixe estas
terras. Você fez sua escolha.
O quê? Mas ele havia acabado de entrar. Bem, para o Abismo
com eles! Os muros eram baixos o suficiente para pular. Um choque
de espadas fez Temper girar. O Jaghut empunhava as lâminas,
pronto. Elas brilhavam; a luz ondulava por todo seu comprimento.
Sobre a Casa, explodiu um trovão.
O solo inflou-se e centenas de mãos e braços de esqueletos sur-
giram, cavando e arranhando, como cadáveres lutando para sair da
terra. Energias azuis cintilavam nos muros, enquanto os galhos das
árvores contraíam-se e retorciam-se. Todo aquele barulho, o brami-
do e a crepitação, os gritos aterrorizados dos cultistas, ensurdece-
ram Temper.
Por todo o caminho, mãos vigorosas, cuja carne era seca como
couro, agarravam o ar. Ele chutou a mais próxima, que lhe agarrou o
pé, e ele precisou de toda sua força para se soltar. Elas se debatiam
entre ele e o muro, como ervas daninhas sendo puxadas de volta
para baixo. Temper perguntou-se como suas lâminas se sairiam
contra eles, mas o Jaghut estava quase em cima dele, em tal posi-
ção de prontidão que ele duvidava que sobreviveria a um único gol-
pe. No entanto, como Surgen Ress, o Jaghut não o notara; a viseira
estava fixa no portão mais além. Somente as pernas se moviam, ba-
tendo fortemente os pés em direção à calçada. Então, piscando co-
mo luz líquida, as lâminas atacaram. Temper mal conseguiu reagir.
Ele bloqueou, mas a força do segundo golpe o acertou de lado co-
mo um aríete. Ele rolou e foi parar na fria terra solta do terreno. De
bruços, lutou para recuperar o fôlego, engasgando com a poeira e a
terra. Distante, em meio ao tumulto, ele ouviu os passos pesados do
Jaghut caminhando até o portão. Coisas contorciam-se e desloca-
vam-se abaixo dele como cobras. Uma voz gritou em meio a pensa-
mentos atordoados: mexa-se, homem! Vá para a parede!
– Certo – disse em voz alta, cuspindo sujeira.
Com as espadas ainda firmes em seus punhos, ele se arrastou
como um nadador exausto visando a uma costa muito distante. Atra-
vessou um mar de mãos murchas que tentavam pegá-lo e braços
que o açoitavam; até então, os mortos pareciam mais preocupados
em se libertar que em atacá-lo. Uma nova nota de urgência introdu-
ziu-se com o que parecia o som de uma bigorna e uma reverbera-
ção provenientes do portão.
Ele se arrastou. O muro bruto erguia-se quase a seu alcance, ri-
diculamente baixo, quase inútil. Atrás dele, um cultista passou cor-
rendo sem nem sequer olhar para onde ele estava. À frente, cadá-
veres inteiros encouraçados haviam se libertado. Algo pegou o pé
de Temper. Ele chutou, mas a coisa o segurou. Temper rolou para o
lado e olhou para baixo, encontrando a mão esquelética em volta de
seu tornozelo. O terror o fez gritar, e ele girou, cortando a coisa re-
petidamente. Outras mãos o agarravam. Os tendões se separaram
como madeira seca, e ele libertou seu pé. Com o frio de horror ainda
sobre si, Temper rastejou freneticamente, mas debaixo dele a terra
se moveu e se abriu. O fedor rançoso de carne morta havia muito
tempo escoou para fora, e então, dedos com longas unhas saíram
pelas rachaduras. No muro, os corpos libertos subiam as pedras,
lançando-se sobre os cultistas além. Pegaram um pela manga e o
puxaram para dentro. Mergulharam com ele envolto em seus finos
braços ósseos, e os gritos cessaram quando a cabeça afundou de-
baixo da terra.
Temper olhava aquilo, horrorizado. Que Bum o ajudasse, ele se-
ria o próximo! Ele saltou para o muro, mas algo puxou sua perna e
ele caiu, e suas lâminas roçaram as pedras. Um cadáver o segura-
va. A caveira despedaçada vacilou quando Temper a chutou. Ele
atacou, quebrando-lhe o torso, e a coisa quebrada se afastou. A bile
ácida e quente pulsava na garganta de Temper. Ele podia enfrentar
qualquer guerreiro de qualquer terra, mas aquilo?! Ele se levantou, e
estava prestes a pular o muro quando algo bateu em seu flanco e o
fez cair mais para dentro do pátio.
Caído no chão, Temper virou-se de frente para o muro. Lá estava
um Garra vestido de preto com uma equipe ao lado. Maldito Fener,
o que um Garra estava fazendo ali? Os gritos e as explosões de
energia Warren além dos muros responderam à sua pergunta. Em
meio a um caos de fumaça, névoa, fogo Warren e remoinhos, com
as vestes ao vento, preto lutava contra cinza. No portão, Trenech e
Faro lutavam contra o Jaghut, e ninguém, em sã consciência, pare-
cia disposto a participar daquele duelo titânico. Em outros pontos do
muro, cultistas e Garras lutavam lado a lado contra os mortos, que
pareciam menos inclinados a defender os muros que a escalá-los.
O Garra que o havia atingido puxou o capuz para trás, revelando
longos cabelos pretos e um rosto estreito. Ele conhecia aquele Gar-
ra. O nome dele era Possum. O homem parecia ter saído de uma lu-
ta, com as vestes rasgadas e ensanguentadas. Possum sorriu para
Temper do mesmo jeito que um homem faminto olha para um boi
assado.
Temper o provocou com um aceno. Possum sacudiu a cabeça.
Temper levantou-se para apressar o bastardo, mas caiu; como a
mandíbula de um cão, outra coisa segurou seu tornozelo. Seu pé já
havia sido puxado para dentro da terra.
– Que o Abismo de Hood o leve! – gritou.
– Depois de você! – respondeu Possum em meio às explosões
de magia.
Enfurecido, Temper jogou uma de suas espadas no Garra, acer-
tando de lado sua equipe. Rindo, Possum acenou, deu um passo
atrás e desapareceu.
Temper lutou para se levantar, quase chorando de frustração. Ele
quase conseguira! Não fosse por aquele bastardo, ele teria escapa-
do. Com um grito, ele estendeu a mão para a terra solta e vasculhou
cegamente. Não era a mão, e sim uma videira ou algum tipo de raiz,
apertando-o como ferro. Ele puxou, mas era firme como uma corda.
Abaixo da encosta, uma luta particularmente feroz de energia
Warren chamou sua atenção. Parecia ser uma reunião entre os pou-
cos cultistas que restavam, batendo-se em retirada contra os Gar-
ras. Trenech e Faro ainda protegiam o portão contra o enorme Jag-
hut que berrava. Nos muros, Garras haviam substituído os cultistas,
mas por seus gritos de pânico, não pareciam estar se saindo me-
lhor.
Temper ouviu um rangido seco atrás de si e se voltou. Lá estava
uma das árvores mirradas do pátio estendendo os ramos para ele. A
árvore! A árvore o segurava! Um horror inóspito tomou conta de to-
do seu pensamento coerente. Jogando a segunda espada por cima
do muro, ele puxou suas duas facas de combate e com suas curtas
lâminas pesadas golpeou a terra.
Ao primeiro toque do ferro a raiz se retraiu e a árvore estreme-
ceu de baixo para cima. Temper pensou que havia se livrado dela,
mas, a seguir, a raiz apertou seu tornozelo e puxou sua perna mais
para dentro da terra, até o joelho. Ele grunhiu de dor e terror e gol-
peou sem parar. Passou a sentir dor na outra perna, que também foi
puxada para a terra. Frenético, ele golpeou com as duas lâminas o
mais profundamente que ousou alcançar. No entanto, mal cortava
uma raiz, outra se enrolava em volta dele. Gavinhas prendiam seus
braços. Uma das laterais de seu elmo estava pressionada contra a
terra, e ele sabia que a qualquer momento uma raiz pegaria seu
pescoço. De onde estava, podia ver a árvore escura recortada con-
tra o céu. Olhou para ela. Era uma coisa magrela, atrofiada e retorci-
da; o tronco tinha a espessura de seu pulso, e quase sua altura. Ele
sorriu, pensando: Parece que você está ao meu alcance, bastarda.
Com um grito de raiva, arrancou suas armas da terra e atacou.
•••
Kiska devia ter ficado atordoada por algum tempo; ela não sabia.
Simplesmente tomou consciência de algo oscilando em visão perifé-
rica e uma voz familiar e próxima dizendo:
– Estou muito surpreso por vê-la aqui.
Tentando contar lágrimas de dor, Kiska apertou os olhos para
olhar o cenho franzido e louco de Oleg Vikat. A sombra dele parecia
notavelmente sólida ali, onde quer que fosse aquele lugar. Ao lado
dela havia uma parede de blocos de granito e calcário empilhados a
esmo; contra ela Kiska havia batido a cabeça.
– Onde estamos? – sussurrou ela, estremecendo e esfregando a
cabeça atrás de uma das orelhas.
Oleg passou a mão debaixo do braço de Kiska para levantá-la e
apontou por sobre o muro.
– No olho da tempestade.
Gemendo, Kiska apoiou o queixo no muro baixo. Estavam em
um edifício de Malaz no qual ela nunca ousara entrar: o antigo edifí-
cio com seu nome ridículo, a Casa Morta. Talvez fosse superstição
de sua parte, mas ela nunca vira ninguém entrar ou sair do local, e
usava isso como desculpa para não a observar mais de perto. Um
edifício abandonado não lhe despertava nenhum interesse.
Eles estavam atrás da casa, no muro dos fundos que corria des-
nivelado mais ou menos na altura de sua cintura. Além dele, no ter-
reno da propriedade, erguiam-se quatro grandes colinas, como mon-
tes de lixo soltando vapor como se houvessem sido recentemente
despejados. Árvores retorcidas agachadas, enegrecidas, cresciam
aqui e ali, aparentemente sem ordem alguma. Em um canto havia
um monte de placas de granito empilhadas como cartas e sufocadas
sob videiras que serpeavam por toda a propriedade. Como a Casa,
as janelas eram escuras e vazias. O único acesso era pelos fundos
– uma entrada de serviço estreita na parte inferior da escadaria, su-
focada pelas ervas daninhas.
Nada se movia, exceto os galhos das árvores, em espasmos. À
frente da casa ela ouviu o choque de armas. Camadas de neblina
envolviam a distância, mas ela podia ver cadáveres caídos aqui e ali
contra a parede. De Corinn ou Lubben, nem notícias. Onde esta-
vam?
Um assobio baixo de Oleg chamou sua atenção de volta. Ele
olhava por cima do muro, curvado, mas tenso, como um gato arque-
ado. Não vendo nada, ela sussurrou:
– O que é?
– Você não os vê?
– Não. Quem? Onde?
Kiska perguntou quem, mas pelo veneno na voz de Oleg, ela po-
dia adivinhar.
– Olhe entre as duas colinas mais distantes. Vê as vinhas se me-
xendo?
Kiska observou, e depois de um momento, viu o emaranhado de
folhagem se agitar levemente, virar e se esticar, como se retorcesse
atrás de alguma coisa. E a seguir, as folhas se tornaram negras, es-
fumaçadas, e caíram em cinzas.
Oleg, com o queixo apoiado nos punhos, gemeu:
– Não! Ele está fugindo!
Voltou-se para ela.
– Você esteve nas Sombras. Conheceu o Ancião?
– Ancião?
Oleg bufou exasperado:
– A pessoa que guarda suas fronteiras.
– Ah, sim… Eu o conheci.
– E então? O que ele disse? Onde ele está? Ele vai agir?
Kiska gemeu por dentro.
– Ele não pode, isto é, ele não vai agir. Lamento.
Oleg lançou as mãos de espírito na garganta de Kiska, mas de-
sistiu no último instante. Ela se encolheu. Fitando tudo descontrola-
damente, ele murmurou para si mesmo e esfregou as mãos no muro
com movimentos rápidos, como se estivesse quente e queimasse
seus dedos.
– Eu tenho que agir – choramingou ele. – Ele vai ficar escraviza-
do por uma eternidade! Isto deve ser meu!
Energias Warren explodiram, cegando-a. Quando Kiska olhou
para trás, Oleg estava dentro do muro, escavando o solo, de quatro.
As vinhas lançaram-se para ele, mas também enegreceram e se
desmancharam em cinzas. Logo ele chegou onde estavam as vi-
nhas estremecendo e se retorcendo. Kiska ouviu um grito; um desa-
fio ou advertência. Perto de Oleg arrastava-se outro homem, mas
ela mal o havia visto quando houve uma explosão de energia, ouro
e violeta entre eles, partindo árvores próximas e lançando nuvens
de terra de uma colina. A força do impacto sacudiu o muro e arre-
messou Kiska longe. Ela caiu de costas, enquanto pedras e areia
choviam em torno dela. Ficando de joelhos, Kiska olhou por cima do
muro, protegendo os olhos contra o brilho do poder. Oleg estava de
joelhos, lançando um fluxo de energia malva de suas mãos nas cos-
tas de um homem. Apesar da punição, o homem arrastava-se para
a casa. Então, enquanto rápida e surpreendentemente ele se movia,
outra figura – esta em trapos, como um magro espantalho de mem-
bros alongados e estranhamente proporcionais – surgiu, como uma
cobra impressionante, proveniente do morro devastado, e envolveu
a presa de Oleg.
Oleg gritou, triunfante, e rompeu as energias que havia convoca-
do. No silêncio resultante, os ouvidos de Kiska vibravam. O homem
capturado escavava e se debatia na terra solta enquanto era arras-
tado para o morro. Kiska já podia vê-lo mais claramente: era um Dal
Honese baixo, de cabelos grisalhos, com a roupa rasgada e man-
chada de terra. Kellanved – ou o que restara dele – arrebatado tão
perto de seu objetivo. Ele soltou um grito dilacerante quando tentou
agarrar-se inutilmente ao solo. Ajoelhado na terra aberta e fumegan-
te, Oleg gargalhou por sua vitória.
Uma terceira figura apareceu, fazendo Kiska prender a respira-
ção. Dançarino! Ele cambaleava, sem capa, e com a camisa escura
esfarrapada. Sangue riscava-lhe o torso e os braços, pingando na
terra rasgada. Antes que Kiska pudesse gritar para avisar, ele pegou
Oleg como se fosse uma trouxa de trapos e o jogou sobre as figuras
que se contorciam. Imediatamente, o pálido esqueleto soltou Kellan-
ved e agarrou Oleg. Eles lutaram, Oleg gritando e o outro preocu-
pantemente silente. Dançarino entrou e arrastou Kellanved para fo-
ra. Juntos, cobriram os últimos passos até a Casa e se lançaram
contra o muro dos fundos; Oleg se debatia e gritava, lançando terra,
enquanto a criatura o puxava lentamente para sua colina.
Oleg foi desaparecendo aos poucos. Mas ele já estava morto –
um espírito –, pensou Kiska. Como era possível? A menos que ali,
na propriedade, não houvesse distinção entre carne e espírito. Ali, a
Casa capturava tudo que entrasse.
Logo as súplicas roucas de Oleg cessaram. Ela olhou para a co-
lina. Só o que se movia era o monte nu de terra, caindo um pouco
para um dos lados. Nos fundos da casa, Kellanved e Dançarino luta-
vam com uma porta estreita e empenada. Dançarino abriu-a, e en-
trou tão rápido, que parecia que havia sido puxado para dentro. Kel-
lanved esperou. Como se sentisse o olhar de Kiska, ele virou-se pa-
ra ela. Ela ia se esconder atrás do muro, mas algo a atraiu, seduziu-
a a se levantar. Kellanved esboçou um sorriso cansado, como se o
divertisse o fato de ainda manter a energia. Kiska se sentiu convo-
cada a passar por cima do muro. Ela simplesmente levantou o quei-
xo e foi compelida a entrar. Ela pôs o pé, em sua sandália de couro
macio, em cima do muro. Um choque proveniente das pedras, como
uma faísca de estática, a fez estremecer, e ela gritou, quase caindo
para trás.
Uma maldição irada saiu de dentro da terra, e a seguir, algo co-
mo um punho gigante socou o muro. Pedras picaram suas costas e
chamas a lamberam. Ela deu um pulo, bateu nos cabelos e nas rou-
pas enquanto ouvia uma risada zombeteira. Tudo acabou abrupta-
mente quando uma porta se fechou.
Kiska correu. Ela queria correr para sempre pela névoa, para
longe de todos aqueles horrores, mas o caminho foi bloqueado por
uma figura cinza. Ela gritou, pensando que era Dançarino indo atrás
dela. Mas a figura passou correndo como um animal ferido e caiu
contra o muro com um suspiro. Ficou ali, tremendo e chorando.
Kiska estendeu a mão, sentindo uma estranha compaixão, mas um
bramido profundo e o barulho de aço se chocando chamaram sua
atenção para frente. Ali, um gigante encouraçado duelava com um
homem armado com uma picareta empunhada por um velho de apa-
rência frágil. As energias Warren que explodiam entre eles haviam
deixado a terra queimada e esfumaçada. Ouviu risos, e Kiska olhou
para baixo, onde estava o cultista. Era um homem jovem, de olhos
claros cheios de desespero, apesar do riso suave. Ele limpou a bo-
ca, deixando uma mancha de sangue no rosto.
– Acabou – disse ele, e estremeceu. – Ganhando ou perdendo,
acabou.
O punhal deslizou de sua mão ensanguentada, e sua cabeça
tombou.
Kiska olhou para ele.
– Acabou? – repetiu.
Ele balançou a cabeça, exausto demais para se preocupar. Kiska
queria perguntar o que exatamente havia acabado, mas afastou-se
quando a mão encouraçada suja de terra surgiu de trás das pedras.
A mão pegou o pescoço do jovem e o arrastou para cima do muro.
Ele não parecia assustado. Sem resistência, ele simplesmente de-
sapareceu.
A mão apareceu de novo, arranhando o muro. Uma cabeça e um
par de ombros se seguiram. A cabeça escondia-se dentro de um el-
mo de guerra com proteção lateral e de pescoço, articulada. A cria-
tura arquejou; a respiração era irregular e úmida. Ela balbuciava pa-
ra si mesma. Olhos selvagens, totalmente brancos, brilhavam dentro
da escuridão do elmo. Kiska recuou. Ela havia visto isso – ou outro
igual a ele – pelo Forte de Mock. Talvez aquele houvesse escapado
dali. Ele rolou por sobre o muro e caiu no chão, fazendo barulho
com a armadura e arrancando pedaços do solo. Kiska pensou que a
coisa havia se arrastado para fora da sepultura. Mas, curiosamente,
na outra mão segurava um galho de árvore quebrado.
A criatura jazia ali, arfante – Arfante? Estava viva? –, e Kiska
tentou decidir se a esfaqueava agora, enquanto parecia impotente,
ou corria. Enquanto ela hesitava, a coisa se deslocava, desajeitada,
no chão. Respirava com estridência enquanto se arrastava. Kiska se
deu conta de que aquele era o único som que havia. Reinava o si-
lêncio. Os ouvidos ecoavam na ausência de luta e explosão de ma-
gia Warren. Ela contornou o muro até a frente da Casa. O homem
da picareta encarava o adversário gigante, e de repente Kiska o re-
conheceu: o bêbado da hospedaria de Coop! Mas, como era possí-
vel? Tudo estava louco naquela noite? Os braços do gigante encou-
raçado pendiam nas laterais de seu corpo. Não parecia derrotado
nem ferido, apenas atento, paciente. O velho chamou-o em uma lin-
guagem de flauta, de vogais musicais. Depois de um momento, o gi-
gante respondeu da mesma forma.
Era o fim das hostilidades daquela noite? Kiska olhou em volta. A
terra parecia um campo de batalha de cadáveres revirados. Mas
sempre tivera algo daquela atmosfera. Não parecia haver mais nin-
guém ali. O nevoeiro ainda obscurecia a distância, anônimo como
sempre. Kiska se perguntou se ainda amanheceria sobre a cidade.
Sentiu frio, como se a névoa e a escuridão pertencessem a uma típi-
ca manhã de meados de inverno de Malaz, quando os barcos de
pesca estalavam e gemiam com a geada marítima.
Do portão, ela via figuras sombrias cintilando e desaparecendo
no porão. Mais luta? As batalhas selvagens finais? Mas não ouviu
som algum. Talvez fosse apenas mais um dos truques da névoa mu-
tante. No entanto, ela se sentia exposta parada ali. De além do ne-
voeiro umas formas iam em sua direção. Pareciam familiares, e
quando Kiska teve certeza de quem eram, cruzou os braços e sor-
riu, à espera.
Tayschrenn e Hattar subiam a encosta rasa pelo nevoeiro. O
guarda-costas dava apoio ao mago, curvado ao seu lado. Estava fe-
rido? Ela não viu nenhuma ferida. Ele parecia apenas pálido, abati-
do, exausto. Tayschrenn balançou lentamente a cabeça quando a
reconheceu. Hattar fez uma careta, como se um gato que houvesse
jogado no rio acabasse de reaparecer.
Kiska tentou esconder o imenso alívio que a presença do Alto
Mago lhe provocava. Lembrou-se de como havia sido arrogante an-
tes. A garota que o havia seguido até o Forte de Mock – parecia que
havia sido há tanto tempo…
Ela gritou:
– Você está bem? O que está fazendo aqui?
Tayschrenn gritou, mas com voz fraca:
– E você, como chegou aqui?
– Uma amiga me trouxe.
– Sua amiga demonstra não ter muito juízo.
Ela morria de vontade de lhe contar tudo que havia visto, mas se
aquela noite havia lhe ensinado alguma coisa, fora a necessidade
de ser cuidadosa com informações. Quando se aproximaram mais,
ela notou um frio desagradável que emanava dele, como uma aura
de inverno. Vapor subia em espirais de seus ombros.
– O que aconteceu lá?
Tayschrenn hesitou. Depois, com um suspiro, disse:
– Surly já suspeitava havia muito tempo que os renegados de
sua ordem haviam se unido ao culto das Sombras. Estão apenas fa-
zendo a limpeza agora.
Kiska bufou.
– Limpeza? Por que ser tão delicado? Eles estão é acabando
com o culto. Eles são rivais, não são?
– Mais ou menos. Velhos rivais.
– De qualquer forma, agora é tarde demais para isso.
Kiska teve a impressão de que a expressão esgotada dele se
tornara frágil.
– O que quer dizer com isso? – perguntou ele.
– Quero dizer que enquanto os cultistas se sacrificavam para
conduzir os Garras a uma perseguição inútil, eu vi dois homens che-
garem à Casa pelos fundos. Os dois que Surly alegara estarem mor-
tos.
Tayschrenn estremeceu como se as palavras dela o ferissem fisi-
camente. Balançou a cabeça:
– Não… Você está enganada.
– Enganada? Eu os vi!
O mago engoliu uma réplica irada e respirou lentamente para se
acalmar.
– Kiska – disse ele com cuidado, mas enfático –, você deve estar
enganada, porque Surly e eu concordamos que aqueles dois estão
mortos e enterrados, entende?
Pela terceira vez naquela noite Kiska quis se opor, dizer “mas”, e
pela terceira vez suspeitou que ficar em silêncio, resistir à vontade,
poderia salvar sua vida. Ela simplesmente assentiu diante da afirma-
ção de Tayschrenn, fechando a boca. Hattar repetiu o gesto, acentu-
ando-o como um aviso.
Tayschrenn fez um aceno com a mão, como se quisesse dizer
que tudo havia ficado para trás.
– Vou ver se o Guardião vai falar comigo, e depois vamos voltar
para o Forte de Mock. Você deveria nos acompanhar.
Kiska olhou ao redor. Ainda não havia sinal de Corinn ou Lub-
ben. Ela concordou; não tinha ideia de como sair dali de outra for-
ma, onde quer que estivesse.
Tayschrenn deixou o apoio de Hattar, e deixando-o para trás, se-
guiu, instável, até a porta. Parou a uma distância respeitosa do ve-
lho homem e dirigiu-se a ele. Kiska estava longe demais para ouvir
direito. O velho respondeu secamente. O olhar de Tayschrenn não
vacilou diante do gigante encouraçado postado como uma sólida es-
tátua de bronze por dentro do portão aberto. Ninguém mais atacava,
mas também não davam nenhuma impressão de derrota. Em vez
disso, como Kiska percebeu, eles estavam esperando alguma coisa,
reunindo forças para um novo ataque. A poucos passos de distância
o guarda permanecia pronto, com a picareta erguida. Em altura,
Tayschrenn mal chegava aos ombros do gigante. Mas era quase tão
largo quanto, em forma de esporão rombo de pedra. Um rival do
mesmo nível até agora.
Os dois homens falaram, diferentes na aparência, mas, de algu-
ma forma, irmãos aos olhos de Kiska. Então, aquele era o fim do en-
contro? Um diálogo civilizado sobre um tapete de corpos, e a seguir,
um fogo aconchegante e partir para outra missão amanhã? E quan-
to a ela? Ela poderia voltar para as rondas habituais de espionagem
e pequenos furtos depois de ter visto o que vira? Tendo provado um
pouco do que poderia ser? Como se a ilha já não parecesse peque-
na e provincial antes!
Hattar de repente se retesou, soltando um grito eletrizante. Kiska
captou por um instante a visão de um cultista das Sombras atrás do
guarda, que sofreu um espasmo e caiu de lado sem emitir nenhum
som. Morto instantaneamente, parecia.
O gigante lançou-se ao limiar do portão. Energias Warren explo-
diram em uma cortina de chamas vermelhas e prateadas, fazendo o
chão balançar e derrubando Kiska. O gigante gritou, jogado sobre a
barreira, enquanto o velho levantava os braços, inclinando-se com
toda sua força.
Kiska arrastou-se para longe com um braço levantado sobre o
rosto para se proteger do clarão do inferno. Quando o gigante pas-
sou o braço pela barreira, Tayschrenn juntou-se à batalha. Um arco
de puro poder formou-se sobre a encosta, com explosões aleatórias
de raios. De novo Kiska caiu, esforçando-se contra a pressão esma-
gadora para se levantar. Ela ouviu o grunhido desesperado de raiva
de Hattar enquanto ele corria em direção ao portão. Ele desapare-
ceu no meio da pura energia incandescente.
Momentos depois, saindo da fornalha ofuscante, surgiu Hattar,
arrastando Tayschrenn consigo. Ele largou o mago ao lado de Kiska.
Uma das laterais dos cabelos do guarda-costas desaparecera, e sa-
ía fumaça da bochecha e da orelha. O braço direito pendia frouxo,
enegrecido, e sangue jorrava de um corte lívido.
Que Kiska pudesse ver, o Alto Mago não estava ferido. O corpo
e membros pareciam inteiros, mas escorria sangue do nariz e ore-
lhas, e nuvens cor-de-rosa descoloriam-lhe os olhos.
– Temos que levá-lo para tratamento – gritou Hattar para Kiska.
Ele parecia um louco, e Kiska ficou chocada ao ver o desespero
enchendo-lhe os olhos.
– Ajude-me!
– Mas, o demônio… vai escapar?
– Só ele pode detê-lo se escapar! Carregue-o!
– Mas…
– Levante-o!
Hattar deixou escapar um soluço, atrapalhando-se com uma das
bainhas das facas de sua cintura.
Kiska engoliu qualquer outra objeção. Ela levantou o mago, pôs
os braços dele ao redor de seu pescoço e seu peso sobre as costas.
Com a ajuda de Hattar, ela segurou-lhe os braços e o puxou para
frente, cambaleando, arrastando as pernas do mago atrás. Hattar a
empurrava encosta abaixo. Ela ia tropeçando, e a cada passo seus
joelhos rangiam. Kiska receava cair precipitadamente no meio da
névoa. Alcançando-a, Hattar usou o braço bom para firmar Taysch-
renn nas costas dela. Seguiram assim por um tempo, lado a lado, e
então, Hattar foi à frente.
– Siga-me – murmurou ele, mancando à frente.
O sangue escorria como água de seu braço rasgado. Embora o
peso em suas costas ameaçasse derrubá-la, ela seguiu o mais rápi-
do possível, tirando forças do exemplo de Hattar.
Ela quase caiu quando pisou nos paralelepípedos molhados.
Hattar se pôs de um dos lados, encostado a uma forma escura na
névoa: uma parede de tijolos. Ele pressionou a cabeça contra a pa-
rede, de olhos fechados. Na distância, o nevoeiro se diluía, retalhan-
do-se em tufos. Kiska reconheceu onde estavam.
– Você conhece a cidade? – perguntou Hattar.
– Sim.
– Sabe onde fica o médico ou curandeiro mais próximo?
Ele lambeu os lábios, forçando-se a manter os olhos abertos. A
pele tinha cor de couro curado, mas agora o rosto estava tão pálido
quanto o nevoeiro.
Kiska olhou ao redor, pensando. Eles estavam na parte antiga da
cidade, não muito distante da Casa Morta, de fato. Ela pensou um
pouco mais, e a seguir, fez um gesto para a esquerda com o queixo.
– Por aqui.
•••
Temper sentia um prazer sombrio pelo fato de nem uma vez ter per-
dido a consciência – nem mesmo quando a árvore sussurrara para
ele. E ninguém o teria culpado se desmaiasse com a promessa na
voz rangente da árvore de lançar brotos em sua garganta para se
alimentarem do sangue de seu coração; ou de rasgar a alma por to-
da a eternidade, crescendo cada vez mais forte, alimentando-se de-
le.
Mas ele a vencera! Ele a arrancara e a partira em pedaços! Ele
não se alquebrou. Ele nunca se alquebrara. Ele havia sido tempera-
do na fúria do último Talian, Falar, e nas campanhas das Sete Cida-
des. Dassem pessoalmente o escolhera das fileiras: por ser um
conspícuo cabeça-dura, dissera o campeão, brincando. Por mais de
uma década ele havia servido à Espada. Mas, agora, todos estavam
mortos, e ele era o último. Ferrule e Dassem estavam mortos. Seri-
am essas as boas-vindas de Hood?
Algumas mãos o agarraram, fazendo-o se voltar. Um rosto olhou
para ele. Uma mulher tatuada. Corinn. Seu olhar procurou o rosto
dele; ele não gostou do jeito como ela mordeu o lábio ao vê-lo.
– Como estou? – disse, rouco.
Ela engasgou, espantada por ele ainda ser capaz de falar.
– Tão ruim assim?
– Como o próprio Hood. Consegue se levantar?
– Não sei. Não precisei recentemente – respondeu ele, e tentou
rir, mas apenas cuspiu determinação e sangue.
Outro rosto apareceu: comprido, ansioso. Lubben.
– Você parece um refugo Imass.
– Ajude-me a levantar que vou chicoteá-lo por isso.
Eles pegaram-no pelos braços, levantando-o.
– Depois – retumbou Lubben. – Agora temos que ir. Os Garras e
os rapazes de cinza estão ocupados se perseguindo mutuamente.
Nós vamos sair de fininho pelos fundos.
Temper viu que o corcunda havia recuperado suas espadas. Ele
não respondeu. Manteve as mandíbulas apertadas enquanto a ago-
nia da vida voltava para suas pernas. Corinn observava como se ele
fosse feito de vidro e pudesse se despedaçar a qualquer momento.
Ouviram um grito proveniente do portão. Lubben virou-se e gru-
nhiu, surpreso. A detonação súbita fez dobrar as pernas dormentes
de Temper e ele caiu de novo. A explosão o fez lembrar-se das al-
químicas Moranth que havia sofrido. O solo se dobrou e soltou, e
uma rajada de ar quente queimou seus pulmões. Ele rolou, ajeitan-
do o elmo. Energias vermelhas e prateadas trovejavam e corriam do
portão como uma enorme cachoeira. Dentro, a figura sombria do
Jaghut lutava.
Temper virou-se para Lubben, gritando acima das detonações:
– A coisa está feia como imagino?
Lubben assentiu, fazendo uma careta de repulsa.
– O cinza derrubou o homem do machado. Acho que o velho e
outro sujeito também!
Ele se arrastou até Temper e o tomou pelo braço.
– Hood em pessoa está prestes a chegar. Vamos indo!
Temper tomou suas espadas de Lubben, soltando-se.
– Não. Esses dois guardavam a porta por uma razão. Não pode-
mos permitir que essa coisa saia.
– Droga, Temper! Essa luta não é sua! Deixe isso para os Gar-
ras.
Temper riu.
– Eles são bem espertos. Já fugiram.
Corinn jogou-se ao lado deles.
– O que estão esperando? Vamos sair daqui!
Temper apontou:
– Veja.
Uma figura enegrecida e esfumaçada arrastava-se para fora das
ondas de energias cegantes. Temper levantou-se, cambaleando em
direção a ela. Depois de alguns passos, Lubben posicionou-se ao
lado dele, firmando-o. Quando se aproximaram, o corcunda soltou
um assobio diante do cadáver devastado antes deles. As energias o
haviam limpado, queimado para além do reconhecimento. As mãos
estavam ausentes e os antebraços reduzidos a ossos brancos ra-
chados.
Temper virou o rosto para longe da fumaça e cheiro de carne
queimada.
– Faro – sussurrou.
Um trovão irrompeu de novo do portão. A cortina de poder vaci-
lou, ondulando como uma poça atingida por uma pedra, e logo se
recompôs.
– Soldado… – sussurrou uma voz de mandíbulas descarnadas.
– Pela misericórdia de Soliel! – disse Lubben, arquejando, e
cambaleou para longe com ânsia de vômito.
– Soldado…
Temper ajoelhou-se diante do cadáver cauterizado.
– Faro?
– Entre na brecha, soldado – disse ofegante, como se o próprio
solo falasse. – Aceite o fardo.
– De qual fogo?
Horrivelmente, a figura levantou o antebraço enegrecido e carbo-
nizado, suplicando.
– Receba a Custódia!
Temper sentiu-se espremido e totalmente gasto. Descansou as
mãos sobre os joelhos. Por que isso sempre acontecia com ele? Já
não havia feito o suficiente?
– Eu aceito – respondeu, como se aquela fosse a única resposta
que podia dar, como se aquilo o houvesse atraído para a ilha desde
o início.
Ele olhou as energias em curso e coçou o queixo com as costas
da luva.
– Qual dessas chamas?
Não houve resposta. Ele olhou para baixo. O cadáver estava
imóvel. Temper sentiu que o que mantinha Faro inteiro havia desa-
parecido. Sentiu o pavor secar sua garganta. O que o havia feito
prometer?
Corinn chegou, agachada.
– O velho?
Temper assentiu, olhando a tempestade de fogo pulsante; mais
além, ele julgou ter visto figuras se retirando para o nevoeiro.
– Não importa mais.
Ele sentiu a mão de Corinn em seu ombro.
– Temos que ir agora.
– Corinn, você poderia me proteger dessas energias?
– Como?
– Você poderia me dar cobertura?
Corinn olhou para ele em choque.
– Você está louco!
– Poderia?
Ela lançou o olhar para o portão e voltou a Temper. Ele captou
algo nos olhos dela; um brilho de luta, de espírito, até que o medo o
sufocou. Ela balançou a cabeça.
– Esqueça.
Ele olhou para o colete dela, onde estava o símbolo da ponte e a
chama.
Corinn captou seu olhar e corou instantaneamente.
– Maldito! Como se atreve!
Ele olhou para ela à espera. Ela suspirou, olhou para a barreira
mais uma vez.
– Talvez, por um momento.
Ele balançou a cabeça, respirou fundo e dirigiu-se ao portão.
– Só por um batimento cardíaco!
Temper prosseguiu.
– É o suficiente – murmurou. – É provavelmente tudo que terei.
Ele parou do lado de fora da enxurrada de energias, protegendo
os olhos. A forma indistinta do Jaghut cintilou um pouco além.
A barreira parecia mais fina, menos opaca que antes. Temper
desejou saber quão perto estava do colapso, mas havia sido convi-
dado a entrar na brecha mais uma vez, assim como fora por Das-
sem, e não podia recusar.
Lubben surgiu ao seu lado. Ele nem sequer virou a cabeça para
ver o que Temper achava daquilo; era seu lado cego, de qualquer
maneira. Temper olhou para Corinn, que ergueu os braços. Ela bal-
buciou: por pouco tempo.
Temper assentiu, ajustando as luvas e relaxando os ombros.
Acalmou a respiração e as batidas do coração. Gritou para Lubben:
– Entre rápido. Você abaixado, eu levantado.
Lubben balançou bruscamente a cabeça e ergueu o machado.
Temper ajeitou o elmo.
– Agora! – gritou Corinn.
Pulando para dentro da cortina de energias, Temper sentiu os
cabelos chamuscarem e sua armadura queimar como se houvesse
sido jogado em uma fornalha. Mas não se queimou, embora a ener-
gia da barreira guinchasse e se agitasse em volta dele. O caminho
que havia percorrido soltava fumaça e assobiava sob seus pés. Ele
sentia Lubben ao seu lado.
Com três passos chegou ao Jaghut. A criatura lutava para esca-
par dos jardins da Casa, que pareciam castigá-lo por isso e por Fa-
ro. Saía fumaça dos ombros e peito de sua armadura de bronze. O
banho de ouro havia desaparecido, enegrecido. Mas as espadas bri-
lhavam ainda mais intensamente que antes, como se estivessem
imersas nos fogos ferozes.
Temper saltou e atacou alto. Uma lâmina pegou a placa de um
ombro, torceu-a para cima e a fez ricochetear no elmo. Lubben fin-
tou um golpe baixo, e a seguir, atacou com o ferrão mortal da cabe-
ça do machado.
O Jaghut virou-se, esquivando-se do ataque, cortou Lubben do
ombro à coluna vertebral. Lubben caiu, afastando-se de Temper.
Eles tinham perdido a primeira e melhor chance. Na fração se-
guinte de um batimento cardíaco, Temper optou por novas táticas.
Soltou um grito e se lançou com o que esperava que parecesse ser
fúria frenética e indiscutível. Depois de dois golpes, o Jaghut acredi-
tou; ele cedeu terreno, à espera de uma abertura na raiva cega de
Temper. Ele chegara ao limiar do portão. A barreira de energia cana-
lizada desapareceu como se uma porta se fechasse.
Temper deixou de atacar. Foi recompensado por uma mínima he-
sitação de seu adversário, o que traiu seu tropeço no ritmo. Naquele
instante, Temper sentiu o brilho do sucesso de uma jogada e algo
mais: uma força renovada subindo do solo para suas pernas. O pe-
so da exaustão e da dor foi tirado dele como uma camada de sujeira
em um rio revigorante. A calma de guerreiro e a paz interior que o
fazia atravessar todo o caos das batalhas passadas estabeleceram-
se sobre ele como uma afirmação. Ele se permitiu um sorriso feroz,
tenso.
O Jaghut bateu as lâminas uma na outra e avançou mais uma
vez. Temper não podia ver seu rosto, mas imaginou que reavaliava
o duelo, determinado a cortá-lo em pedaços por se atrever a se opor
a ele. O ataque rolou contra Temper como as ondas de uma tem-
pestade. Ele segurou o portão, agachando-se sob os golpes, como
uma pedra que não poderia ser quebrada, enquanto ouvia o clangor
das espadas. Defendeu-se o mais cuidadosamente possível para
poupar as próprias lâminas, muito mais leves. O Jaghut lhe deu
aberturas, mas Temper as ignorou, recusando-se a ceder sua posi-
ção.
Logo Temper percebeu que não estava enfrentando arte letal co-
mo a de Surgen ou Dassem, espadachins que nunca se podia pre-
ver, porque ninguém nunca durava tempo suficiente para compreen-
der seu estilo. O que tinha ali era força bruta, como o ataque irresis-
tível e direto de um maremoto. As lâminas do Jaghut esmagavam as
pedras dos dois lados, jogando-as pela terra.
Temper pensava que seria impossível virar o jogo. Mas algo lhe
deu forças, jorrou da terra para empoderá-lo, e ele se perguntou: te-
ria sido um patrono? Se assim fosse, a quem – ou a quê – ele esta-
va servindo?
O estilo do ataque mudou, então, tornando-se regular; a criatura
havia abandonado o golpe decisivo e rápido e queria triturá-lo. Aqui-
lo levaria mais tempo – o Jaghut devia ter pensado –, mas era mais
seguro. E Temper teve que concordar. Ele já havia esgotado a reser-
va revigorante que chegara a ele como uma bênção quando o por-
tão batera. Ele foi se reduzindo a pura obstinação cega e desacele-
rando, cansado. As lâminas sibilavam cada vez mais perto. E então,
pararam.
Temper endireitou o corpo, espantado.
O Jaghut havia recuado um passo. Temper arriscou um vislum-
bre ao longe. Estava sozinho. Todos e tudo havia desaparecido. Nu-
as colinas arredondadas erguiam-se ao redor. E a Casa não era
mais uma casa. No lugar dela encontrava-se uma pilha de blocos
megalíticos, como um monte de pedras que houvesse desabado.
Até as árvores e colinas do pátio haviam desaparecido. O Jaghut
estava a um lado, com o elmo levantado, olhando para o sudoeste.
As luzes do arco-íris brilhavam em um céu claro. Acima, uma
abóbada escurecida de constelações estranhamente distorcidas. No
horizonte estendia-se um brilho azul-esverdeado, como Temper vira
uma vez no mar, quando o navio passara perto das margens das
montanhas Fenn, dominadas pelo gelo. Ele notou que a respiração
saía do elmo como fumaça, e um frio terrível gelava-lhe os mem-
bros. Pela sabedoria de Bum, onde estava?
O Jaghut virou o elmo para Temper e apontou a espada para o
sul.
– Eles fracassaram – disse em Talian perfeito.
– Quem fracassou? – perguntou Temper, surpreso pelo fato de o
outro falar com ele.
O Jaghut falou como se Temper não houvesse dito nada:
– Nunca conte com aliados incertos, humano. Eles sempre o de-
cepcionarão.
Temper lembrou-se de não baixar a guarda. O jogo havia muda-
do, talvez para um ainda mais perigoso. Ele já havia ouvido muitas
lendas e contos de Jaghuts que ofereciam argumentos sutis e pre-
sentes envenenados. Fisicamente, ele se sentia forte. Fosse qual
fosse o poder a que servia agora, haviam-no considerado suficiente
para a tarefa de estar diante do ataque violento daquele ser. Talvez
o Jaghut também soubesse disso, e por isso ele agora estava ali.
Uma mudança de estratégia. Ele sentiu o poder da consideração do
ser como a mão de um gigante o empurrando.
– Você sabe quem sou eu, humano?
Temper esforçou-se para encontrar sua voz:
– Não.
– Eu sou Jhenna. Conhece esse nome?
Jhenna? Ele estava enfrentando uma fêmea o tempo todo?
– Não.
– Não mesmo? – ela balançou a cabeça. – Em que profunda ig-
norância vocês, humanos, têm caído! Eu fui uma de suas gentis pro-
fessoras há muito tempo. Nós os tiramos da lama, sabia?
Temper bateu os punhos nas laterais do corpo para aquecê-los.
– Não.
– Fomos poderosos sobre o mundo enquanto seus antepassa-
dos vestiam peles e se agachavam na própria imundície. Nós lhes
demos o fogo! Nós os blindamos contra o K’Chain!
Temper deu de ombros. Ele não era um erudito, só um soldado.
– O que estou dizendo, humano, é: qual é seu preço?
– Como?
– O que você deseja? Diga qualquer coisa. Basta ficar de fora.
Nada no mundo da sua era está fora de meu alcance. É regência o
que almeja? Vou esculpir um reino do tamanho de um continente
para você. Poder? Vou instruí-lo em mistérios totalmente esquecidos
pelos praticantes de sua era. Riquezas? A localização de tesouros
além de sua imaginação é conhecida por mim. Imortalidade? Co-
nheço artes que endurecerão sua carne contra a passagem do tem-
po. Fique de fora e isso, ou qualquer coisa que deseje, poderá ser
seu. O que me diz?
Temper bufou com desprezo. Algumas coisas nunca mudam. Era
como se o velho ogro em pessoa estivesse diante dele prometendo-
lhe a fortaleza Moon’s Spawn. Lembrou-se do fim que levara o con-
selho de nobres da província de Quon Tali depois de selar um acor-
do com Kellanved. Foram presos e decapitados. E havia uma frase
atemporal para se referir à enganação e traição: era “lidando com
um Jaghut”.
Pôs-se em prontidão, retesando os braços para aquecê-los.
– O que me interessa é ver você presa de novo em seu buraco.
A Jaghut balançou a cabeça, como se sentisse piedade.
– Vejo que lhe falta a imaginação necessária para aproveitar a
oportunidade sem precedentes que está diante de você. Estou de-
sapontada… mas não surpresa.
Temper esperava um novo ataque violento depois da rejeição,
mas Jhenna não fez nenhum movimento em direção a ele. Ela
apontou a espada para o sul de novo.
– Aí vem outra decepção.
Com os olhos atentos em Jhenna, Temper se permitiu um olhar
rápido. Alguém aproximava-se lentamente pela encosta de pedra
nua; alguém ferido ou incapacitado. Temper esperou com as armas
prontas. Jhenna falou, como se quisesse ser amigável:
– Já começou a se preocupar com o tempo aqui, humano?
Quanto já passou da noite? Algum tempo já se passou realmente?
Sua imaginação limitada já começou a sondar esse problema espi-
nhoso?
Na verdade, ele não havia pensado, mas não estava disposto a
admitir diante de Jhenna. O que aquele demônio pretendia? Poderia
mantê-lo ali – onde quer que fosse – para sempre? Seria possível?
Temper teria que ficar de guarda ali por toda a eternidade? Ele aper-
tou as armas por entre as luvas rasgadas. A geada cobria os elos de
ferro de suas mangas.
Jhenna deu meia-volta.
– Eu trouxe você a Omtose Phellack. É a casa de minha espécie.
Nosso Warren, como vocês dizem. Isto somos nós, e nós somos is-
to. Esta noite de Conjunção me permitiu pelo menos esta pequena
dádiva: visitar de novo minha antiga casa – ela virou a cabeça para
Temper. – O mais importante, humano, é que o tempo como você o
conhece não passa aqui. Eu poderia mantê-lo aqui por uma era, e
voltaríamos um instante depois do que saímos.
Ela levou as armas para a faixa da cintura, e a seguir, tirou o el-
mo e o segurou de forma negligente. Olhou para Temper com olhos
bruxuleantes, que brilhavam de emoção desumana. Presas como
dentes caninos emergiam de suas mandíbulas largas, mas afora is-
so, Temper viu feições quase humanas, apenas grandes demais:
testa como o cume de um penhasco, larga e inclinada, e pômulos
largos. A juba leonina estava emaranhada e oleosa. Fios dourados
retorcidos e tiras de couro amarravam-se em uma infinidade de tran-
cinhas – rabos de rato, como diziam os soldados.
– Pense um pouco mais em minha oferta, humano – disse ela,
cruzando os braços longos. – Nós temos tempo.
O mundo começou a desmoronar para Temper. Estaria condena-
do a enfrentar aquele monstro durante séculos? Certamente, um dia
ele seria derrotado ou levado à loucura. Que os poços de D’rek le-
vem Faro! Ele saberia como combater aquela tática. Por que não o
avisara? O que faria? Ele era apenas um soldado. Depois do que
parecia sua própria eternidade, Jhenna falou com alguém atrás de
Temper.
– E que presentes você traz, andarilho esquivo?
Temper virou-se até que pôde ver os dois seres ao mesmo tem-
po. Ficou surpreso ao descobrir que o recém-chegado era a criatura
que o havia resgatado mais cedo: Edgewalker. O ser seco embalava
em seu peito um longo objeto enrolado em panos que emanavam
vapor.
Do outro lado do muro baixo Edgewalker parou e jogou a carga
para dentro. Ela rolou, livre de seus trapos. Uma névoa irrompeu co-
mo a fumaça resultante da queima de folhas verdes. A coisa se
afastou, revelando algo como uma haste que parecia esculpida em
uma pedra preciosa: cristal atravessado por veios roxos, azul bri-
lhante e um verde surpreendente. Espumou diante de seus olhos,
dissipando-se; não restou nada.
– Eu trago o sinal de seu fracasso, Jhenna. Os Cavaleiros foram
repelidos. Nenhuma libertação virá dessa Conjunção. Os cultistas
das Sombras se retiraram. E mais: eu estou aqui para negar-lhe
acesso à sombra caso tente esse caminho, enquanto ele bloqueia
sua saída principal. Suas opções estão acabando rapidamente. O
que você vai fazer?
A gigante virou-se para Temper.
– Ouviu isso, humano? Está tudo em suas mãos agora. Só você
resta em meu caminho. Certamente deve ver a sabedoria de aceitar
minha oferta. Não é óbvio que eu vou vencê-lo?
Temper ergueu suas espadas; não se lembrava de tê-las baixa-
do. Dirigiu-se a Edgewalker:
– Ela disse que pode me manter aqui para sempre. É verdade?
A criatura ficou imóvel por um tempo, até que respirou.
– Meia verdade. Contudo, o que é tempo para você ou para
mim? Eu posso esperar. O tempo não é nada para mim.
Temper soltou um bufo de raiva.
– Eu não posso esperar. Não posso ficar aqui para sempre! O
que você quer dizer? É verdade ou não é?
– Você está falando com um Jaghut, humano. A Conjunção é co-
mo um eclipse entre os reinos. Mesmo aqui, o tempo passa enquan-
to falamos. O tempo de Jhenna ainda é limitado.
A mulher Jaghut riu com desprezo. Apontou para a criatura.
– Ele fala em interesse próprio, humano. Nós somos velhos ini-
migos, e ele sabe que se você ficar de fora, será papel dele ser o
próximo defensor do caminho. Ele terá que entrar na brecha, e teme
ser destruído. Ele é um covarde que pretende se beneficiar de seu
sacrifício. Não jogue sua vida fora desnecessariamente; deixe-o fi-
car onde deveria: em seu lugar.
Temper tentou soprar suas mãos. Arriscou olhar para Ed-
gewalker.
– É verdade?
– Mais uma vez, uma meia verdade, Jaghut. É verdade que es-
tou aqui para disputar a liberdade de Jhenna; para ficar em seu ca-
minho, como você está. Mas eu só lhe negaria acesso à Sombra.
Todos os outros caminhos permaneceriam abertos, incluindo o cami-
nho para seu mundo.
– Impostor! – gritou Jhenna. – Ou ele está onde você está, ou
não! Não o deixe fugir com tal equívoco.
Temper curvou os ombros.
– Não cabe a mim dizer.
Jhenna aproximou-se e Temper lutou contra o impulso de recuar.
Ele ergueu as armas o mais alto que ousou, embora a mulher não
empunhasse nenhuma – afinal, havia muitos tipos de armas.
– Pobre homem… Estou fazendo tudo que posso para poupar
sua vida, mas você não está cooperando.
Os olhos dela brilhavam como lanternas douradas; Temper estre-
meceu. Ele fixou o olhar bem no centro do torso da Jaghut, apertou
os dentes e esperou.
– Temper, não é? – perguntou Jhenna, e balançou a cabeça por
não o ter reconhecido. – Mas é claro! Temper, da Espada! – ela
abriu os braços. – Que tola eu fui! Quem mais poderia ficar contra
um Jaghut? Mas isso é maravilhoso!
Temper estremeceu sob uma súbita rajada de ar frio. Descobriu
que não conseguia abrir as mãos; estavam congeladas apertando
as armas. Os pés estavam dormentes e os pensamentos densos e
lentos. Ele piscou para tirar o gelo que se acumulava sobre seus cí-
lios.
– O que quer dizer com isso?
Jhenna baixou a voz até sussurrar:
– Quero dizer que é maravilhoso, porque eu sei que Dassem Ul-
tor ainda está vivo.
Temper endireitou-se de súbito.
– O quê?
– Sim, é verdade. Ele está vivo. E eu posso encontrá-lo! Certa-
mente o próprio destino conspirou para que nós nos encontrásse-
mos. Você, seu último e mais verdadeiro companheiro, e eu, a única
que pode levá-lo a ele.
Fazendo uma careta por causa do frio que lhe entorpecia os lá-
bios e fazia os dentes doerem, Temper sussurrou:
– Você está mentindo.
– Não. Sobre esse assunto, eu não preciso encobrir os fatos. Ele
ainda está vivo.
A cabeça da Jaghut agora pairava quase ao alcance do braço de
Temper, e ele sentiu disparar um alarme sutil.
– Não é verdade, Rastreador das Fronteiras? – perguntou Jhen-
na.
– Eu não sei dizer se esse homem está vivo ou não.
– Rá! Não sabe ou não quer? Veja como este aqui é econômico
com sua sabedoria agora, humano.
Os pensamentos de Temper arrastavam-se, gelados e viscosos,
como se estivessem congelados. Dassem vivo? De verdade? Por
que ele deveria jogar sua vida fora agora?
– Minha sabedoria eu limito a um último comentário, mortal – dis-
se Edgewalker com voz ofegante, parcimoniosa.
– O que é? – rosnou Temper, irritado com as palavras secas e
murmurantes da coisa.
– Cuidado com o frio, humano. Cuidado com o gelo, que agarra.
Com a geada, que silencia.
Temper ouviu, ao longe, um rosnado da Jaghut, seguido de uma
explosão, como se a barreira estivesse sob ataque outra vez. A ca-
beça pesava e o queixo afundara em seu esterno. Ele abriu os olhos
e viu que uma camada de gelo cobria suas pernas até os joelhos, e
que seus pés haviam desaparecido dentro de um bloco de gelo ne-
gro que parecia ter crescido como um cristal das fissuras da própria
rocha.
Algo dentro de Temper reagiu a um terror antigo. Uma tempesta-
de de energias explodiu sobre ele. Em vez de queimar sua carne e
descamar o metal de sua armadura, fez seus membros cantarem, e
Temper ergueu as lâminas até aparar os golpes duplos de Jhenna
que se abatiam sobre ele incessantemente. O elmo dela rolava nas
pedras atrás. O gelo das pernas de Temper explodiu em vapor e de-
sapareceu nas energias crepitantes.
Jhenna rugiu, brandindo as armas repetidamente, tentando levar
Temper ao chão. Mas ele aguentou; força fluía da rocha para encon-
trar o poder nu que martelava contra ele. Eles lutaram, até que a
Jaghut levantou uma lâmina para golpear a cortina de energia. A au-
ra desapareceu como se houvesse sido arrancada, e deixou em seu
rastro um trovão ecoando sobre as colinas. Jhenna tropeçou, ros-
nando e cuspindo, totalmente fora de si, e Temper estava em cho-
que por ter ouvido o monstro espumante à sua frente.
A paisagem brilhava com o céu noturno iluminando uma pálida
ardósia. Por trás da Jaghut as colinas e árvores reapareceram, e a
Casa ostentou a carranca mais uma vez diante de Temper.
Distraído, ele quase foi decapitado por um ataque relâmpago.
Um golpe de cabeça acertou-lhe o topo do elmo. Amassou o ferro e
jogou sua cabeça para trás, deslumbrando-o com as faíscas. Ator-
doado, ele conseguiu aparar os golpes mais mortais, mas foi ficando
mais lento. O golpe seguinte arrancou escamas de seu ombro. Ele
teve um espasmo quando um ataque cortou sua coxa direita. Sua
defesa estava desmoronando. Havia durado o suficiente? Aguentar
por tão pouco tempo faria alguma diferença?
Jhenna contorceu-se, afastando-se, defendendo-se de uma ar-
ma arremessada: um machado, que atingiu seu braço de raspão, fa-
zendo-a berrar.
Nessa fração de segundo Temper abaixou-se e conseguiu se re-
cuperar. Jhenna flexionou o braço, mas outra coisa voou para ela
por cima do ombro de Temper. Uma energia branca crepitante bateu
nas placas do peito dela. A Jaghut deu um passo para trás, cuspin-
do maldições roucas. Ela avançou de novo, inexorável como uma
força da natureza. Tal poder impressionou Temper. Talvez ela nunca
se cansasse. Ele já estava além da exaustão. Pensou ter ouvido gri-
tos, abafados em seus ouvidos pela cachoeira trovejante da barrei-
ra. O próximo ataque chegou como uma rajada de fúria, desequili-
brada e desesperada. Temper esquivou-se dos golpes; os braços
queimavam pela agonia pungente da fadiga. Gritando aos céus de
frustração, Jhenna levou o braço para trás para lançar uma espada,
com a ponta para frente.
Temper sabia que estava morto. Involuntariamente, ficou tenso e
prendeu a respiração. Mas a lâmina não o tocou. Em vez disso,
Jhenna cambaleou, e a seguir, caiu de joelhos, arrancando clango-
res de sua armadura.
Ela ficou imóvel por um tempo, com as lâminas no chão.
– Estou acabada, humano – disse ela com voz arrastada. – Nada
mais me resta – ela soltou um riso baixo e rouco. – Agora você vai
ver como a Casa recompensa a traição de seus servidores.
Lentamente raízes foram se reunindo, retorcendo-se e subindo
do solo. Enrolaram-se nas pernas da Jaghut. Ela lutou, mas as cor-
das apertadas a arrastaram. Raízes da espessura de um punho en-
volveram seu torso. Enquanto era arrastada cada vez mais fundo na
terra fumegante, ela lançou a Temper um sorriso zombeteiro.
– Cuidado, humano, ou este também será seu destino.
Ela manteve os olhos dourados nos dele, como se o puxasse
também, até que sua cabeça afundou sob a terra que se desintegra-
va. Os braços e mãos desapareceram por último, ainda segurando
as espadas fumegantes.
Temper pestanejou para afastar o suor que escorria sobre seus
olhos. Tentou engolir, mas a boca estava seca. Puxando o ar fresco
para seus pulmões, observou que o nevoeiro se dispersava, não re-
velando vestígio algum dos corpos mutilados, das vestes rasgadas
ou armas espalhadas. A Casa olhava para ele cegamente, e agora
os edifícios vizinhos a cercavam de novo. Ele ficou parado, com os
punhos entorpecidos em torno de suas espadas, ofegante. O corpo
retorcia-se de exaustão. Sentiu a mão tocar seu ombro e deu um
pulo, cambaleando. Caiu como um cadáver, batendo as costas no
muro baixo de pedra.
– Chegou o amanhecer – disse Corinn, amparando-o. – Estáva-
mos tentando lhe dizer…
Lubben estava atrás dela, dando-lhe cobertura, como se espe-
rasse um ataque de última hora do cultista das Sombras.
– Amanhecer? – disse Temper rouco.
Ele pronunciou a palavra sem compreendê-la. Amanhecer. Co-
rinn agiu rapidamente para ampará-lo quando ele caiu no chão que
brilhava com o orvalho da manhã.
Capítulo VI
Resoluções

O delicioso cheiro de caldo fervente adentrou os sonhos de Kiska.


Ela sorriu, espreguiçando-se, e sibilou quando sentiu a dor queiman-
do em quase todos os membros. Sentiu um toque no ombro e des-
pertou totalmente. Um homem pálido e gordo gritava, empurrando-a.
– O que você quer? – perguntou ela.
Com um sorriso nervoso, ele apontou para baixo dela.
– Meu avental. Você está deitada em meu avental.
Ela o reconheceu: Coop, taberneiro da Pousada do Enforcado.
Ela olhou para baixo e viu que estava dormindo em um banco forra-
do de cobertores, uma colcha esfarrapada e uma trouxa de roupas.
– Desculpe.
Ela moveu o braço e o homem puxou o avental.
– Eu disse que ela ia acordar – comentou alguém do outro lado
da sala.
Kiska percebeu que estava usando roupas de outra pessoa: uma
blusa de lã grossa, do tipo que odiava, porque a fazia parecer uma
criança; e uma saia longa em camadas, de linho remendado. Sen-
tou-se e esfregou os olhos. Estava em uma residência privada, tér-
rea. A porta parecia ter sido arrancada. Lá fora, a rua ensolarada es-
tava vazia. Um menino de pés descalços e sujos esfregava as man-
chas escuras no chão de madeira, enquanto ali perto um homem
sentava-se à mesa; com os cabelos pretos e crespos sobre os
olhos, ele molhava um pedaço de pão no ensopado. Coop voltou à
porta, curvando-se para agradecer pelo avental.
– Até mais, Coop – disse o homem, acenando com o pão en-
charcado.
Coop curvou-se novamente. Soltou um riso nervoso e correu
porta afora.
Kiska tentou se levantar, mas gemeu de dor. O joelho queimava,
e ela caiu de volta no banco. Foi mancando até a mesa e agarrou-se
nela para ficar em pé. A visão estava turva e o coração disparado.
Ela apertou o flanco. A dor quase a fez dobrar o corpo.
O homem levantou-se rapidamente e a levou até uma cadeira.
– Tome cuidado – advertiu.
Tarde demais, pensou ela.
Ela se sentou, estremecendo.
– Obrigada. O que há com ele?
– Ah… quando você chegou aqui, a noite passada, deu-lhe um
susto. Entendo que você estava meio assustada também.
Ela riu.
– Sim, eu… – ela parou de falar, olhando ao redor. – Onde estão
eles?
– Quem?
– Tay, os homens com quem eu vim.
Ela deu um pulo, e um gemido quando o flanco latejou.
– Eles foram embora?
O homem a puxou para baixo outra vez com um toque.
– Relaxe. Eu tenho uma mensagem para você, e um ensopado
quente em cima da lareira. Quer um pouco?
– Quem é você? Ah, você é o médico, não é? Sim, quero um
pouco.
– Meu nome é Seal. E o seu?
– Kiska – ela puxou o suéter. – Por que as roupas?
– Ah, desculpe – Seal encolheu-se, desculpando-se. – Foi o me-
lhor que pude arranjar. Tive que queimar suas roupas velhas.
Ele se inclinou sobre uma panela preta e verteu o ensopado em
uma tigela.
– Queimar? – perguntou Kiska.
Ele teve que as queimar de verdade?
– Bem, Kiska. Falando em susto, você me deu um bem feio à
noite passada.
Ela pegou o pote de ensopado, arrancou um pedaço de pão e o
enfiou na boca. Não tinha se dado conta de como estava faminta.
Com um sorriso, Seal a observava comer.
– Onde, e como estão eles? – perguntou de boca cheia.
– Tivemos tempo, e eles vão sobreviver. Por um deles, o mem-
bro da tribo Seti, acho, assumo o crédito. O outro, bem… ele prati-
camente curou-se sozinho. E levo o crédito por você também, claro.
– Eu?
– Sim. Torcedura e contusão nos ossos do joelho. Diversos cor-
tes e contusões. E o pior: um rim machucado e a musculatura ras-
gada, possivelmente resultado de um sério impacto ou golpe.
Kiska fez uma careta, relembrando. Ela se sentia como se aque-
la mesa a houvesse cortado ao meio, mas havia conseguido, enfim.
Incrível o que uma pessoa assustada e fora de si pode fazer. Ela en-
goliu em seco, forçando a comida para baixo contra uma crescente
onda de náusea.
– E?
– E o quê?
– Qual é a mensagem? Onde eles estão?
Seal endireitou o corpo e disse:
– Ah! Está perguntando o que deve fazer em relação às várias
lesões infligidas a seu corpo? Bem, eu recomendo uma refeição
saudável. E se você sentir enjoo hoje, sugiro que vomite. Chá de fo-
lhas de amieiro funciona bem para isso. Além disso, recomendo que
pegue leve nas próximas semanas. Descanse; nada de tensão. De-
finitivamente, nada de luta ou corrida. Entendeu?
Kiska encarou o homem; observou o rosto contraído, os olhos
afundados em círculos escuros e o tremor das mãos na tigela. Ele
captou o olhar e acenou languidamente.
– Não precisa me agradecer.
O homem estava um caco. Obviamente ele havia usado a Denul
Warren ao máximo para fazer o que havia sido necessário na noite
passada. Ela suspeitava que lhe devia muito mais do que ele sugeri-
ra. Remexendo o ensopado no pote por um momento, ela limpou a
garganta.
– Então, tem uma mensagem para mim ou não?
– Ah, sim – ele sorriu discretamente, satisfeito consigo mesmo.
– E qual é?
Ele ergueu um dedo.
– Ah! O tratamento em primeiro lugar. Termine a refeição.
O garoto aproximou-se e entregou-lhe uma concha de água.
Distraída, Kiska a pegou e bebeu. A água era doce, refrescante,
saída diretamente do poço. Ela agradeceu. Ele olhou para ela com
os grandes olhos castanhos cheios de curiosidade.
– Obrigado, Jonat – disse Seal.
O garoto voltou para a limpeza.
– Meu filho, Jonat – disse a Kiska.
Ela assentiu, e então, lembrando-se de si mesma, fitou-o. Pegou
mais pão e disse de boca cheia:
– Acho que sei qual é a mensagem.
Seal sorriu simplesmente, observando-a comer.
– Você estava um caco na noite passada. Não lembra?
– Não. Acho que a mensagem é que eles estão no cais.
Seal espantou-se, arregalando os olhos. A seguir, tossiu e riu ao
mesmo tempo, bateu com o punho no peito e balançou na cadeira.
Kiska já estava em pé. Deu a ele um sorriso presunçoso e ele
acenou com as costas da mão.
– Muito bem – conseguiu dizer. – Muito bem, de fato.
Ela saiu mancando para o Caminho da Enguia.
•••
Os habitantes de Malaz deram as boas-vindas ao amanhecer ator-
doados, como sobreviventes de um tufão e um terremoto combina-
dos. Rostos espiavam a manhã por trás de persianas e portas que
se abriam apenas em frestas. O sol já brilhava próximo ao meio-dia,
e apenas nuvens finas marcavam a abóbada perfeita do céu; a mai-
oria dos habitantes parecia convencida de que o pesadelo da noite
anterior havia chegado ao fim.
Andando pelas ruas, Kiska encontrou rostos cautelosos que a
espionavam. Percebeu que devia estar péssima com o suéter enor-
me e as saias longas que ela reunia com uma das mãos. Seal pare-
cia ter selecionado a pior miscelânea de roupas que pôde encontrar.
Ainda assim, ela sabia que devia agradecer pelo fato de o homem
ter algumas coisas femininas em casa.
No início os olhares a incomodaram. Mas então, ela decidiu não
dar a mínima. Como ela conhecia um monte de cidadãos suspeitos
– em geral amontoados perto de um local com destroços, ou em um
círculo de pedras estranhamente manchadas, sussurrando, compa-
rando histórias –, continuou andando; mancando, na verdade, com
os dentes cerrados, segurando o flanco. Eles paravam de sussurrar
e bocejavam abertamente, e quando ela passava, começavam de
novo. Pelo menos não apontavam para ela, disse a si mesma.
Logo ela chegou ao passeio marítimo e viu movimento no con-
vés e na prancha de embarque do barco mensageiro. Figuras iam e
vinham na estiva de equipamentos e suprimentos. Ela desceu as es-
cadas mancando até o cais.
Na doca, viu que a maioria dos trabalhadores eram estivadores
locais. Os poucos homens a bordo pareciam reguladores de vela;
inspecionavam o equipamento e carregavam as bagagens. Hattar,
com o braço enfaixado com um pano branco e fixo sobre o peito, es-
tava sentado no telhado dos alojamentos a meia-nau, examinando-
se em um espelho de prata polida que pendia de uma corda. A ca-
beça avermelhada brilhava, como se a houvesse raspado, assim co-
mo metade do rosto, empolado e reluzente do unguento gorduroso.
Ao lado dele havia um balde, e o queixo estava ensaboado. O idiota
estava tentando fazer a barba apenas com uma das mãos.
– Ei, barco mensageiro! – gritou Kiska no cais.
Hattar ergueu os olhos; não disse nada nem a cumprimentou.
Ele bateu com o punho no telhado, e a seguir, voltou a estudar o
queixo, torcendo a boca para um lado e outro. Os lábios pareceram
estranhos para Kiska, até que percebeu que o bigode do homem ha-
via sumido. Ele havia perdido metade na noite passada, e agora
acabara de tirá-lo. Depois de um momento, Tayschrenn apareceu,
subindo a escada das cabines. Usava calças largas e uma longa tú-
nica azul. O rabo de cavalo estava puxado para trás, havia acabado
de passar óleo nos cabelos. Ele parecia ter dormido uma noite intei-
ra em um colchão de penas.
– Saudações! – gritou ele.
– Vocês estão partindo?
– Sim. Em breve.
Kiska assentiu – estupidamente, pensou. Umedeceu os lábios
com a ponta da língua. Era o fim; a oportunidade prestes a zarpar.
Poderia deixá-lo escapar?
– Leve-me com você – falou de uma vez, aliviada e apavorada
por ter finalmente dito o que queria ter pedido a noite toda.
Tayschrenn passou o dedo sobre os lábios.
– Sério? Você está formalmente oferecendo seus serviços?
Kiska anuiu tensa.
– Bem, você vai ter que falar com meu chefe de gabinete aqui –
disse, indicando Hattar com o braço.
Kiska ficou desolada. Agayla sempre insistira em dizer que Kiska
deveria disfarçar as emoções, mas ela não pôde evitar olhar para o
céu e deixar os ombros caírem. Ela rezara para que ele a levasse,
mas não se atrevia a arriscar. Tinha certeza de que se ela saltasse
para o navio, Hattar simplesmente a jogaria no mar – mesmo com
um braço só.
– O que me diz, Hattar? – perguntou Tayschrenn.
O homem continuou a inspecionar o queixo.
– Ela tem potencial – admitiu. – Mas pouca disciplina.
– Disciplina! – Kiska gritou, sem conseguir acreditar.
Hattar parou com a faca na garganta. Olhou para ela, e mesmo
no cais Kiska sentiu a gelada desaprovação em seu olhar. Ela engo-
liu em seco, balançando a cabeça como um pedido de desculpas.
– Como eu disse, muito pouca disciplina.
– Talvez estudo – sugeriu Tayschrenn. – Treinamento pode resol-
ver isso.
Hattar franziu a testa.
– Talvez – assentiu Hattar. – Sim. Talvez depois de alguns anos
ela possa…
– Alguns anos?!
Hattar levantou-se de um pulo e lançou o braço à frente. Uma fa-
ca surgiu, tremendo, encravada na madeira do cais pouco antes dos
pés de Kiska.
– Talvez em alguns anos ela aprenda a não interromper!
Kiska fez uma careta. Maldita boca grande que tinha ela! Que
impaciência! Queria pedir desculpas, apenas explicar que aquilo era
muito importante para ela. Mas, dessa vez, ela se conteve. Mais
uma explosão e eles provavelmente a mandariam embora. Ela se
ajoelhou, arrancou a faca e a jogou de volta para Hattar. Ele a pe-
gou e sorriu diante do arremesso.
– Muito bom.
Ele voltou a seu barbear, encarando-se no espelho. Ela queria
rir: ele nunca devia ter se visto sem bigode. Tayschrenn, meio curva-
do, retirou-se para a cabine.
Kiska encostou-se em um barril para acariciar o flanco enquanto
os estivadores entravam e saíam da prancha de embarque levando
barris de água e suprimentos. Ela olhou para Hattar. Aquilo havia si-
do um sim ou um não? Qual era a decisão? Mais tratamento silenci-
oso? Ela deveria falar?
– E então?
Hattar ergueu os olhos.
– Hhmm?
– E então? Qual é sua resposta? Eu ofereci meus serviços, você
aceita?
Hattar olhou para o espelho e passou a lâmina pelo queixo.
– Partimos daqui a dois sinos. Com ou sem você – ele ergueu a
faca. – Entendeu?
– Sim! Ah, sim!
Ela começou a subir pela doca, mas parou, voltando-se como se
quisesse impedi-los de partir naquele instante.
– Sim. Estarei aqui. Com certeza. Obrigada. Você vai ver!
Kiska correu até metade da escada antes de uma cãibra no flan-
co tirar-lhe o fôlego e a deixar ofegante, pendurada na ameia cinze-
lada para evitar cair. Devagar, garota, disse a si mesma. Não des-
maie agora. Fique firme. Ela falaria com Agayla primeiro, e depois
iria para casa para dar a notícia à mãe. Ela ficaria feliz, não é? Sim,
ficaria. Agayla a apoiaria. E mandaria notícias assim que pudesse.
Subiu a ladeira da rua Coral. O sol aquecia-lhe o pescoço e ros-
to, drenando a tensão, aliviando a dor de seus músculos e o ardor
dos cortes. Sentia-se mais relaxada, mais confortável que nunca. A
deliciosa sensação proviria do conhecimento que muito em breve
estaria dando as costas para a ilha, talvez para nunca mais voltar?
Kiska saboreou o pensamento.
Ela passou pelas pessoas que vagavam aturdidas pelas ruas,
olhando os destroços deixados pela batalha, as janelas quebradas e
fachadas de lojas despedaçadas. Pareciam se estudar mutuamente
como se procurassem alguma tranquilidade que provasse que a noi-
te havia sido nada mais que um tolo pesadelo.
•••
Kiska percebeu que a Reach Lane estava estranhamente deserta.
Em qualquer outro dia do ano a teria visto lotada de vendedores em
charretes, de cócoras em esteiras estendidas no chão, ou em pé,
com os produtos transbordando de cestas. Os vira-latas, que deveri-
am estar correndo sob os pés, estavam longe dali; aterrorizados pe-
los aromas persistentes, imaginou Kiska. Ela bateu na porta de
Agayla. As guirlandas de flores secas pendiam frouxas; o pungente
odor almiscarado surpreendeu Kiska.
– Tia! Olá! Você está aí?
Enquanto Kiska esperava, uma velha puxava uma carroça de
pão doce pela rua. Ela a manobrou até encostar na parede, e a se-
guir, tirou o cachimbo da boca e acenou.
– Bom-dia – respondeu Kiska.
– Graças a Burn e à Santíssima Senhora!
– Sim. Graças a eles.
Expirando a fumaça, ela anunciou:
– Eu quase fui comida por um dos demônios.
– É mesmo?
– Ah, sim. Mas eu orei a Hood a noite toda e os demônios passa-
ram reto.
– A Hood? – repetiu Kiska, espantada.
– Ah, sim. Orei a Hood. “Oh, Cascavel de Ossos, por favor, pas-
se reto por minha pobre e fina alma desgastada. Pegue meu vizinho
em vez de mim.” E com certeza ele levou meu vizinho.
A velha gargalhou e deu uma piscada.
Kiska riu, constrangida. Que Oponn a livrasse daquela ilha malu-
ca! Ela bateu de novo na porta enquanto a velha enxotava moscas
dos pães doces.
– Agayla! Abra! Sou eu, Kiska.
Silêncio. Kiska empurrou a porta pesada, que se abriu. Surpresa,
ela olhou por um tempo a loja escura. Assomando-se, chamou:
– Agayla?
– Pode entrar, moça – disse a velha. – Ninguém que ela não
queira entra aí. Pode entrar.
Kiska entrou e fechou a porta. Por via das dúvidas, trancou-a.
– Tia?
Ninguém respondeu. Ela passou por entre as prateleiras. Nos
fundos, encontrou Agayla sentada diante de um banco com a cabe-
ça curvada sob uma toalha.
– Tia?
Agayla levantou a toalha, erguendo os olhos turvos.
– Ah! Olá, criança.
– Tia, o que está fazendo?
Agayla sentou-se, pressionando a toalha no rosto. De uma tigela
de água no banco subia um vapor aromático.
– Peguei uma gripe terrível.
– Ah! Você está bem?
– Sim, sim. Só cansada. Muito, muito cansada – ela levantou a
mão para Kiska e indagou: – E você? Sã e salva, como posso ver.
Kiska puxou uma cadeira ao lado da tia.
– Sim, tia, e aconteceu uma coisa maravilhosa. Hoje é o melhor
dia de minha vida.
– Você vai embora de Malaz.
– Tia! Como você sabe?
– Só isso poderia deixá-la tão feliz.
Kiska segurou o braço de Agayla.
– Ah, tia! Não é que eu queira abandonar você. É que eu tenho
que sair desta ilha. Você entende, não é?
Ela cobriu a mão de Kiska com a sua e sorriu levemente.
– Sim, filha. Eu entendo.
A seguir, teve um acesso de tosse e pressionou a toalha contra a
boca.
Kiska a observava ansiosa; em todo o tempo que a conhecia,
Agayla nunca mostrara o menor sinal de doença.
– Você está bem mesmo?
– Sim, sim. Foi uma noite muito difícil para mim. Uma das mais
difíceis que já passei.
Kiska a observou.
– Acho que vi você.
– Foi apenas um sonho, criança. Uma visão em uma noite de vi-
sões.
– Ainda assim, algo aconteceu…
O esboço de um sorriso fez os lábios de Agayla curvarem-se.
– Meras sombras.
Kiska não acreditava nela, mas o tempo foi passando. Ela se le-
vantou:
– Tenho que ir; não posso esperar.
Agayla apoiou-se na cadeira para se levantar. Kiska segurou seu
braço.
– Sim, sim – urgiu Agayla. – Claro, vá. Corra para sua querida
mãe, mostre a ela que você está bem.
– Sim, eu vou. Obrigada, tia. Obrigada por tudo.
Agayla tomou-a nos braços e a abraçou, beijando-lhe a testa.
– Mande notícias logo, ou juro que vou lhe mandar uma maldi-
ção.
– Mando, sim.
– Ótimo. Agora corra. Não deixe Artan esperando.
Kiska estava no meio de Reach Lane quando lhe ocorreu um
pensamento: como diabos Agayla conhecia aquele nome? Ela pa-
rou, quase dando meia-volta. Mas o tempo urgia, e ela suspeitava
que se despedir da mãe demoraria muito mais do que ela achava
que poderia.
Embora a visão oscilasse e ele tivesse que descansar a cada pa-
tamar para evitar desmaiar, Temper subiu o Caminho de Rampart
até o Forte. Andar era uma loucura para ele, mas de jeito nenhum
perderia toda a excitação matinal no castelo. Uma multidão já se
aglomerava na entrada principal – comerciantes e cidadãos em pâ-
nico com pedidos e reclamações para o Subpunho Pell. Vestindo um
casaco grosso que pegara no Enforcado, Temper abriu caminho pa-
ra passar. Encontrou Lubben roncando em uma cadeira inclinada
para trás e encostada na parede úmida, com o peito enfaixado sob o
gibão aberto.
– Acorde, maldito preguiçoso!
O corcunda abriu o olho. Temper se surpreendeu ao ver como
estava vermelho. Lubben o olhou de cima a baixo. Estalou os lábios
e fez uma careta ao sentir seu gosto.
– Pelo túmulo de Hood, o que você está fazendo aqui?
– A vigia do dia.
– O quê? A vigia do dia? Pelos deuses, dê um tempo! Eu me sin-
to velho só de olhar para você. Diga que está doente.
– E perder toda a diversão?
Lubben revirou os olhos.
– Bem… se precisar – ergueu um frasco de estanho para Tem-
per –, um pouco de fortificante para o que tem pela frente.
Temper guardou o frasco sob a camisa.
– Obrigado. Até logo.
Lubben virou a cadeira e sibilou de dor ao flexionar as costas.
– Acho que sim. Não posso evitar.
•••
Antes mesmo de chegar à caserna, Temper foi desafiado quatro ve-
zes. No Forte havia mais gente se acotovelando, mais sussurros e
rostos pálidos que nunca. Ele riu enquanto cuidadosamente vestia a
cota e o uniforme de guarda. Riu, sim, mas cerrou os dentes ao fle-
xionar os braços rígidos e esticar as costas feridas. Guardas corriam
para dentro e para fora, e Temper teve o prazer de ver que a maioria
estava viva e bem. Mas nenhum deles fez as brincadeiras de costu-
me. O único rosto que ele não viu foi o daquele presunçoso, Larkin.
Temper parou Wess, um jovem recruta das planícies ao sul de Li
Heng.
– Onde está Larkin?
O jovem o olhou com os olhos arregalados de espanto.
– Você não soube?
Temper sentiu um nó no estômago.
– Soube o quê?
– Ele está preso. Recusou-se a ficar no posto na noite passada.
Desafiou as ordens.
A gargalhada de Temper fez Wess dar um salto, boquiaberto.
– É uma acusação grave.
Temper acenou, dispensando-o. O jovem lançou-lhe um último
olhar interrogativo antes de sair.
Rindo, Temper pegou a lança do lado de fora da caserna e diri-
giu-se às escadas internas. De certo modo, sentia-se de humor me-
lhor que nos últimos tempos. Chase estava nas ameias. Temper
nunca pensou que ficaria feliz ao ver o oficial inexperiente, mas ficou
naquela manhã. Pela primeira vez, os Garras haviam mantido as
coisas inteiramente entre si e ignoraram a guarnição local.
Chase voltou-se para ele.
– Você está atrasado, soldado.
Ele parecia mais distraído que irritado.
– Tive uma pequena luta com uma garrafa na noite passada. Eu
perdi.
Temper apoiou os cotovelos em uma crena.
– Por que isso não me surpreende? – debochou Chase.
– E então – disse Temper indicando o pátio interno e os homens
que entravam e saíam –, que comoção é essa?
– Quer dizer que você não sabe?
– Não – disse Temper –, não tenho certeza.
– Pelos ossos de Hood, homem! E você é um guarda daqui!
Chase conteve a indignação. Ele parecia incapaz de compreen-
der a falta de preocupação de Temper. Quase foi embora, conside-
rando-o uma causa absolutamente perdida, mas suspirou.
– Enquanto você estava bêbado na noite passada, houve uma
tentativa de assassinato do oficial visitante – ele se inclinou para
baixar a voz. – Foi uma luta bem rápida e feia, pelo que ouvi.
– Você ouviu? Quer dizer que a guarnição não foi provocada?
Chase limpou a garganta, desconfortável. Olhou ao longe.
– Não. Tudo aconteceu lá em cima, dentro da torre. Nós não ou-
vimos nada.
Temper disfarçou um sorriso. O sujeito estava realmente desa-
pontado.
Ele coçou o queixo.
– E o turno da noite?
Chase aproximou-se de Temper, esquecendo qualquer contrarie-
dade ou desaprovação.
– Essa é a questão! Ouvi dizer que o turno da noite não viu na-
da! Então, foi isso.
Temper pestanejou:
– Como?
– Os Warrens – sussurrou Chase, confiante. – Nós não tivemos
chance.
– Ah – Temper anuiu compreensivo. – Que injusto da parte de-
les, não é?
Chase afastou-se. Os olhos castanhos brilhavam de raiva.
– Lá vem você de novo! Todo arrogante, sempre debochando.
Foi só um acaso. Os Gêmeos do Acaso. Você simplesmente teve
mais sorte. Que Hood o leve! Onde você estava quando as coisas
pegaram fogo aqui, hein? Estava com o nariz enfiado em uma garra-
fa! E parece que entrou em uma briga de bêbados, também!
Chase foi embora, e Temper o observou enquanto ia. Ele não sa-
bia bem o que fazer com tudo aquilo, de modo que riu baixinho, para
si mesmo. Ah, os jovens! Tão seguros, e ainda assim tão incertos.
Ele apoiou mais o peso na crena, encostando a cabeça no merlão
de pedra. Parecia que havia sido arrastado por cavalos pelas pedras
quebradas – o que, refletiu, não estava muito longe da verdade. Mas
Temper não conseguia tirar o sorriso satisfeito de seus lábios; ele
havia conseguido de novo: entrara na brecha. Segurara o muro.
Durante todo o último ano ele não havia feito nada além de cor-
rer. E a desconfiança o havia assombrado: ainda tinha o que havia
tomado? Ainda poderia defender algo? Ou, mais importante, havia
ainda alguma coisa pela qual valia a pena lutar? Bem, agora ele sa-
bia, e se sentia mais confortável por isso. Mais à vontade consigo
mesmo. Sentia até certa gratidão por tudo que havia acontecido.
Por Corinn, especialmente. Ele não poderia ter conseguido sem
ela. Teria que dizer isso a ela à noite, e perguntar se iria embora
agora que aquilo que a levara até ali havia terminado. Talvez até pu-
desse lhe dizer que esperava que ela não fosse embora, porque ele
suspeitava que passaria muito tempo ainda na ilha. Por muito tempo
ainda iria à Pousada do Enforcado.
Ele esfregou o ombro e flexionou a perna, fazendo caretas. Pelo
menos não corria o risco de cair no sono, pois metade de seu corpo
gritava de dor. Abaixo do muro, o cata-vento de Mock estava silente
sobre o eixo. Temper olhou para aquela maldita coisa que parecia
congelada contra o vento. Voltou-se de costas para o brilho diurno e
de frente para o que sempre o fizera suportar o dia: a visão do mar.
Embaixo, a baía cintilava, calma. O estreito parecia prender a
respiração. Na distância cintilante, alguns navios de guerra passa-
vam. Mais perto, ancoradas na baía, caravelas mercantes e navios
agitavam-se suavemente a sotavento no porto. O barco mensageiro
chamou a atenção de Temper. De velas abertas, afastava-se da ba-
ía a uma boa velocidade – mesmo em sua relativa calma. Ele o vira
chegar pouco antes do anoitecer do dia anterior, e agora, perto do
sino do meio-dia, seguia de novo seu caminho. Mensagem entre-
gue, supôs Temper.
Que noite para ter ficado ali! Indolentemente, ele especulou so-
bre a coincidência. Poderia ser Surly, ou outro, voltando para Unta
ou além? Provavelmente não. Mundano demais. Surly e os outros já
deveriam ter partido pelo caminho dos Warrens. De qualquer manei-
ra, ele lhes desejou boa viagem, e acrescentou o desejo sincero de
que nenhum deles jamais pusesse os pés na ilha de novo.
Bebeu um gole do frasco para brindar àquele pensamento.
Epílogo

Com o passo aleijado, Edgewalker atravessava a câmara de pare-


des inclinadas, escura como a noite vitrificada. Ele seguia por um
caminho sujo, por uma camada de pó da espessura de um dedo. A
trilha acabava em dois homens parados, imóveis como o próprio pó.
Ele parou, observando-os por mais tempo, como se procurasse si-
nais de vida.
– Em nome do Inominável, o que você quer? – resmungou um
deles.
Edgewalker inclinou levemente a cabeça.
– Saudações, e bem-vindo, senhor, à Casa das Sombras.
O homem que havia falado se sentou. De lado, como se indicas-
se um terceiro, ele estendeu dois dedos de sua mão esquerda. Ed-
gewalker virou-se para trás, onde o gêmeo do outro homem estava,
com as lâminas erguidas. Quando se virou para estudar a forma no
chão, ela desapareceu.
O que estava sentado riu.
– Desculpe. Velhos hábitos. Você é…?
– Edgewalker.
O homem acenou com a cabeça, pensativo.
– Ah, sim. Eu me lembro do nome. Você é mencionado aqui e ali
– o homem ergueu um braço. – Ajude-me… ah, este é Cotillion.
As armas nas mãos de Cotillion desapareceram e Edgewalker
viu que, na verdade, não eram armas reais, e sim sombras de ar-
mas. Aqueles dois podiam criar o que quisessem com a matéria-pri-
ma que tivessem à disposição.
Em pé, o homem mal chegava ao peito de Edgwalker. Encurvado
e grisalho, dava a impressão de ser um velho, mas os movimentos
não demonstravam hesitação. Ele observou as dimensões angula-
res e inclinadas da câmara e fez uma careta de desgosto.
– Não – concluiu. – Não me agrada em absoluto.
Ele acenou e a câmara ficou turva e modificou-se. Edgewalker
agora estava no salão principal do castelo. Havia piso de pedra sob
seus pés descalços e uma lareira, também de pedra, ardia em uma
parede. Acima, madeiras enegrecidas atravessavam a escuridão. O
homem lançou um olhar afiado à esquerda e à direita, e a seguir,
balançou a cabeça, satisfeito consigo mesmo.
– Isto vai servir para a ocasião. Agora, Cotillion, gostaria de dar
uma volta pelo reino?
– E quanto a este aqui?
– Ah… Edgewalker, você pode ser nosso guia.
– Acho que não.
O velho fez uma pausa, pestanejando.
– Desculpe. Você estava dizendo…
– Eu não acato suas ordens.
O homem cutucou o peito de Edgewalker com a bengala. Ele
não conseguia se lembrar de exatamente quando ela aparecera na
mão do velho.
– Talvez eu deva chamar os cães para rasgá-lo membro a mem-
bro.
– Eles não fariam isso.
– É mesmo? Por quê?
– Porque somos parentes. Escravos das Sombras.
O velho olhou atentamente para ele, arqueando as sobrance-
lhas.
– Ah, entendo. Você foi tomado pelas Sombras. É um escravo da
Casa. Muito bem. Vou permitir suas pequenas impertinências. Mas,
lembre-se, enquanto for escravo das Sombras, eu estou no coman-
do delas. Lembre-se disso.
Edgewalker não disse nada.
O velho apoiou as duas mãos na empunhadura de prata – uma
cabeça de cão – da bengala. Ele e seu companheiro Cotillion foram
se afastando, como sombras proverbiais reunidas sob o luar, até
que por fim desapareceram de vista.
Edgewalker virou-se e saiu mancando da Casa. Fora, na planície
aberta, tomou a direção do horizonte monótono. Remoinhos perse-
guiam-lhe os calcanhares. Quantas vezes, perguntou-se, ele havia
ouvido a mesma reivindicação de um pretendente ao Trono? Eles
nunca aprendiam? Quanto tempo duraria o último? Por que ninguém
da longa cadeia de aspirantes jamais se preocupou em perguntar
por que o Trono estava sempre vazio? Afinal de contas, talvez hou-
vesse uma razão.
Ainda assim, a residência devia augurar tempos novos e interes-
santes para as Sombras. Ele devia ser grato àqueles homens, pois,
no final, a única coisa que sua presença poderia trazer para a per-
sistente eternidade do Reino era o potencial de mudança, e, portan-
to, a contínua possibilidade de… progressão.
•••
A estranha coisa não se parecia com nada que o garoto ou sua irmã
já haviam visto antes. Escavando durante a maré baixa noturna,
eles a encontraram encravada entre pedras incrustadas de lapa,
meio enterrada na areia. Contra a insistência silenciosa de sua irmã
para se afastar, o garoto usou uma vara para cutucar a forma pálida.
– É um homem afogado – sussurrou a garota.
– Não – respondeu o rapaz, desdenhando a falta de conheci-
mento da irmã sobre pesca, ou sobre qualquer outra coisa. – Tem
escamas. É um peixe.
A menina olhou para onde o irmão se ajoelhava e jazia a pálida
sombra a seus pés. Seu brilho à luz fraca a fez lembrar o esplendor
que às vezes ela via à noite nas cristas das ondas. Para provocar o
irmão, ela perguntou:
– Ah, é? E que tipo de peixe, então?
O garoto franziu o cenho, incomodado com as perguntas tolas
das meninas.
– Não sei. Um grande. Com certeza fede como um peixe.
O cheiro era inegável. No entanto, a menina estava inquieta. Ela
julgou ver um dos olhos brilhar, observando-os por trás de um ema-
ranhado de algas enroscadas em uma das extremidades do corpo.
Na esperança de assustar o irmão mais novo e afastá-lo da coisa,
ela sussurrou:
– É um cadáver. Um homem afogado. Afaste-se, ou seu fantas-
ma vai assombrá-lo.
O menino olhou para trás.
– Eu não tenho medo.
A menina não respondeu; atrás do irmão, a forma pálida se mo-
veu. Um braço, brilhante no escuro, deslizou de baixo do corpo. A
alga caiu de um rosto de linhas angulares como faca e olhos doura-
dos derretidos.
A menina gritou. O menino gritou quando a mão fria apertou seu
tornozelo. Ambos gritaram no crepúsculo vazio enquanto a boca da
coisa se mexia. Mas a mensagem perdia-se sob os gritos dos dois.
Então, a coisa soltou o tornozelo do rapaz.
Soluçando, o menino afastou-se correndo, de quatro, com sua ir-
mã puxando-lhe pela túnica, incitando-o, como se ele ainda estives-
se preso. Atrás deles, a forma desabou entre as sombras das ro-
chas.
•••
Depois do pôr do sol, uma tocha aproximou-se das rochas. A maré
bateu e espirrou em seus dentes pretos, reluzentes. Com a tocha er-
guida, um velho caminhava por entre poças e fendas. Os cabelos
compridos e a barba, ambos brancos, brilhavam, açoitados pelos
ventos contrários. Na praia, uma lamparina revelou o irmão e a irmã
de mãos dadas.
Metodicamente, o velho avançava. Passou a tocha à sua frente,
nas fendas entre pedregulhos e na água que subia. Voltou-se para
as crianças e gritou:
– Aqui?
– Mais adiante – respondeu a garota com um suspiro.
O velho tirou uma faca da cintura. A lâmina era fina, afiada e cur-
va. Ele trocou de mão a tocha e a faca e entrou na arrebentação.
Com a água gelada à altura da cintura, ele resolveu que já havia ido
longe o suficiente. Ele subiria até as últimas rochas altas que resta-
vam como um bastião antes das ondas, e a seguir, voltaria para di-
zer aos netos que o fantasma havia voltado para seu descanso sal-
gado.
Irmã e irmão observaram o avô subir desajeitadamente as pe-
dras altas em meio ao respingo da maré que batia, e depois desapa-
recer em seus recessos. Eles esperavam em silêncio; não se atrevi-
am a falar. A garota tinha a impressão de que o avô havia ido embo-
ra havia muito tempo quando o irmão limpou a garganta e sussur-
rou, hesitante:
– Você acha que a coisa o pegou?
– Ssshhh! Claro que não – acalmou-o a garota.
Mas ela se perguntava se era verdade. E se o houvesse pegado,
o que fariam? Aonde poderiam ir? À cidade? Pyre ficava a um dia
de caminhada. E, além disso, que ajuda conseguiriam lá?
A menina voltou à realidade quando ouviu o irmão inspirar, aper-
tando-lhe a mão úmida. Ela olhou para cima e viu o fantasma abai-
xando-se nas pedras. Mas não era um fantasma, porque carregava
uma tocha, e nenhum fantasma levaria uma tocha, por mais escura
que fosse a sombra. Observando o avô cautelosamente subir pedra
por pedra, um pensamento novo e perturbador lhe ocorreu: mesmo
que o avô voltasse são e salvo, como ela poderia ter certeza de que
o fantasma não o havia pegado? Ela ouvira muita gente dizer que
assombrações eram notoriamente coisas escorregadias, e quem po-
deria dizer o que havia acontecido ali, na escuridão, ao abrigo das
rochas, da espuma e do mar?
Quando o avô saiu da arrebentação sorrindo, disse ao garoto
que o espírito havia voltado para sua casa, no mar. A menina sabia
que ele estava mentindo. O fantasma o pegara, sim. Ela via isso nos
olhos do avô – algo novo que não estava lá quando ele saíra. O ir-
mão era novo demais para ver. O fantasma estava lá, e não havia
ido embora, mesmo o avô tendo dito a eles que os espíritos do mar
podem visitar a praia de vez em quando, mas que todos devem vol-
tar para as profundezas, assim como esse voltara. Ela assentiu,
mas não se deixou enganar. Ficaria de olho nele.
•••
A caminho de casa, o velho não notou que o neto apertava sua
mão, nem a expressão pensativa da neta enquanto ela seguia atrás
com a lamparina. Ele só viu os olhos cor de âmbar, agitados, do ho-
mem do mar, com cabelo como ervas daninhas – o Cavaleiro das
Tormentas. O Cavaleiro havia lhe falado, e para sua surpresa, ele
havia entendido. Havia falado em um hesitante Korelan, língua das
ilhas ao sul de Cut onde os Cavaleiros e os habitantes de Korel
constantemente guerreavam sobre o Muro da Tormenta – uma barri-
cada erguida pelos humanos, situada entre terra e mar. O próprio
avô dizia que a família havia saído de Korel eras atrás, e ensinara-
lhe um pouco da língua quando ele era jovem; o suficiente para en-
tender a tosca pronúncia do Cavaleiro. Isso o fez perceber que os
Cavaleiros deviam supor que o Korelan era a língua humana.
Caído semimorto na espuma, o Cavaleiro fizera uma pergunta.
Uma única e simples pergunta que desencadeara uma avalanche de
questões nos pensamentos do velho.
– Por que estão nos matando? – perguntou o Cavaleiro.
E o velho ficou olhando-o, pensando que o alienígena não devia
entender o que estava perguntando. Nós os estávamos matando? A
eles? Eles eram os demônios que rachavam ao meio navios e lan-
çavam homens à morte. Mas mais de três vezes o Cavaleiro per-
guntara antes que ele conseguisse forças suficientes para se aproxi-
mar e passar a lâmina na garganta da criatura. Ele nunca se esque-
ceria da surpresa ao ver o sangue do Cavaleiro jorrar, quente e ver-
melho, sobre sua mão.
Glossário

Títulos e Grupos
Primeira Espada do Império: Malazans e T’lan Imass, título que
denota um campeão imperial
A Espada: guarda-costas autonomeado de Dassem Ultor, Primeira
Espada do Império
Punho: governador militar do Império Malazan
Alto Punho: comandante dos exércitos dentro de Império Malazan
T’lan Imass: antigo exército de mortos-vivos comandado pelo Impe-
rador
Bridgeburners: divisão de elite do lendário Segundo Exército Mala-
zan
Guarda Rubra: famosa companhia mercenária contrária ao Império
Malazan
Garras: organização secreta do Império Malazan
Talon: suposta organização secreta imperial anterior aos Garras
Cultistas das Sombras: adoradores do Reino das Sombras
Povos e lugares
Cavaleiros da tormenta: habitantes não humanos do Mar das Tor-
mentas
Mar das Tormentas: oceano estreito entre a ilha de Malaz e o sub-
continente Korel, habitado pelos Cavaleiros da Tormenta
Y’Ghatan: antiga cidade da região das Sete Cidades
Korel: nome de um arquipélago e subcontinente ao sul de Quon Ta-
li. Também conhecido como Fist
Forte de Mock: velho forte com vista para a cidade de Malaz
Cães das Sombras: guardiães do Reino das Sombras
Feitiçaria
Warrens: Outros reinos/mundos dos quais os magos recebem poder
Denul: Caminho da Cura
D’riss: Caminho do Caminho
Caminho de Hood: Caminho da Morte
Meanas: Caminho das Sombras e da Ilusão
Ruse: Caminho do Mar
Rashan: Caminho da Escuridão
Serc: Caminho do Céu
Sombra: Caminho das Sombras
Thyr: Caminho da Luz
Telas: Caminho do Fogo
Anciãos Warrens
Kurald Galain: Ancião Warren da Escuridão
Kurald Emurlahn: Ancião Warren das Sombras
Omtose Phellack: Ancião Jaghut Warren do Gelo
Sobre o autor

Nascido em Winnipeg em 1962, Ian Cameron Esslemont estudou e


trabalhou como arqueólogo, viajou extensivamente no sudeste da
Ásia e viveu na Tailândia e no Japão por vários anos. Ele agora vive
em Fairbanks, no Alasca, com sua esposa e filhos. Ele é formado
em escrita criativa e seus romances, Night of Knives (Noite das fa-
cas), Return of the Crimson Guard, Stonewielder, Orb Sceptre Thro-
ne, Blood and Bone e Assail estão todos ambientados no mundo de
fantasia de Malaz, que ele co-criou com Steven Erikson.

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