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Dossiê América Latina

A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

A dança imóvel de Scorza e o


tempo como ferramenta
metodológica
Maria Luiza de Castro Muniz*

*
Bacharel em História pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO), mestranda em Ciência Política pelo Programa
de Pós-Graduação em Ciência Política da (PPGCP/UFF).

“O homem é uma metáfora provisoriamente vestida de


carne ou uma carne que se alimenta de metáforas?”
Manuel Scorza - A dança imóvel (1983)

I. Os primeiros passos...

A
dança imóvel começa com o impasse de um escritor. Acre-
dito que ele possa ser visto como o herdeiro, ainda que dis-
tante, do narrador de Walter Benjamin. Não duvido que o
escritor que, no restaurante La Coupole (A cúpula) tenta impres-
sionar um editor, seja o produto da soma de dois exemplos arcai-
cos dos primeiros mestres na “arte de narrar”: o “camponês
sedentário” e o “marinheiro comerciante”. Ambos são citados por
Benjamin em referência aos estilos de vida que resultaram, cada
um, em suas respectivas famílias de narradores.

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Um guerrilheiro que, enquanto está morrendo, recorda sua vida


e, mais concretamente, sua fuga pelos rios da selva amazônica. A
fuga do Comandante do Exército Revolucionário do Peru (ERP)
da Colônia Penal do Sepa deveria ter como desfecho a morte de
um delator, a salvação de companheiros prestes a serem entre-
gues à Polícia e o sucesso do próprio movimento. Termina, no
entanto, com a morte do guerrilheiro, devorado vivo por formi-
gas. Esse é o destino que o escritor reserva para seu personagem,
assim como em Cem anos de solidão o Melquíades de Gabriel García
Marques redigira em sânscrito o destino dos Buendía: “O primei-
ro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo
comido pelas formigas”. O escritor considera ainda algumas pro-
postas alternativas, caso a história de Nicolás Centenário não agra-
de ao editor.
Uma mulher interrompe o relato no La Coupole e sua presença
sugere que, a despeito da distância a separá-los no tempo, o narrador
benjaminiano e o escritor tem algo em comum: a “experiência co-
municável”. O exílio do personagem Santiago em Paris, a indeci-
são entre a suicida paixão revolucionária ou a perspectiva da
eternidade do amor de Marie Claire, a certeza da escolha e a desco-
berta de que a eternidade não era para sempre. Seria essa a expe-
riência do próprio escritor que a narra? De qualquer forma, a reação
desinteressada e por vezes sarcástica de Feliciano ou Vaca Sagrada,
diretor da Coleção Novo Mundo, demonstra que, a exemplo do diag-
nóstico de Benjamin, em alguns “desaparece o dom de ouvir, e
desaparece a comunidade de ouvintes” (BENJAMIN: 1994, p. 205).
Fica claro que o narrador benjaminiano e o personagem escritor de
A dança imóvel vivem em tempos diferentes. Feliciano, o colega da
juventude do escritor, se tornara uma espécie de carrasco literário
e desempenha esta função à mesa, enquanto o antigo amigo narra
a fuga do guerrilheiro Nicolás Centenário.
Através deste trabalho, me dedico a uma análise metodológica
do tempo, compreendendo que as diferentes formas de enxergá-lo
refletem no campo político e são determinantes para as análises
que se referem a este. Através da obra de Manuel Scorza (1928-
1983) e dos tempos que se entrecruzam na narrativa espero desen-

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volver uma análise que privilegie uma percepção da América Lati-


na orientada pela valorização das diversas temporalidades, da
pluralidade cultural, da diferenciação em relação à noção
mecanicista, racional-ocidental do tempo no sentido do progresso
ou ainda convertido em projetação, futurização e aceleração
(MARRAMAO: 1995, p. 282).
Esta abordagem não constitui uma novidade. Sequer seria cor-
reto imaginar que se trata de uma fórmula inovadora para alcançar
o que a “Era das Revoluções” e a “Era do Capital” projetaram e
não concretizaram na “Era da informação”, na “Era da imagem”
ou – para reuni-las em denominação abrangente – na “Era da técni-
ca”. Os pressupostos aqui trabalhados foram sendo moldados pa-
ralelamente ao processo que resultou nas formas hegemônicas
ocidentais de se conceber o tempo atualmente. Trata-se de um es-
forço – e como tal reconheço desde já os limites – de ruptura
metodológica em relação ao sentido progressista que a sociedade
ocidental imprimiu a seu desenvolvimento, reproduzindo a
“renaturalização da sociedade e da história”.
A violência com tendências homogeneizantes da conquista
europeia na América Latina é um dos episódios cujos efeitos ainda
hoje se fazem presentes. O romance de Scorza evidencia conflitos
que espelham a indecisão de Nicolás Centenário – o guerrilheiro
fugitivo e heróico – e de Santiago – exilado e prisioneiro da
idealização da misteriosa Marie Claire. Somados ao próprio autor
em sua subjetividade expressa no romance, os personagens apre-
sentam concepções diferentes do processo revolucionário que esta-
ria em curso no Peru, bem como em outros países da América Latina.
As referências ao passado como sombra, ao futuro como luz, ao
destino da morte, à Revolução como destino e vida, ao imperialis-
mo como a morte, a dualidade sexo versus disciplina revolucioná-
ria, à corrida contra o tempo e à dança no Museu do Louvre
imaginada por Santiago no momento ‘sem-tempo’; tudo isso con-
fere o ritmo de uma espécie de dança dos tempos marcada pela
indecisão em relação a extremos supostamente inconciliáveis.
Espelha-se assim a polarização característica dos anos 60 e 70 e da
própria biografia de Scorza. Ele próprio peruano e exilado.

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Antes de escrever A dança imóvel, publicado em 1983, Scorza havia


dedicado dois livros ao drama vivido pelos índios e mestiços falan-
tes do quechua na região da serra andina: Redoble por Rancas (1970)
e La tumba del relámpago (1979). O primeiro inaugurou o ciclo A
Guerra Silenciosa, formada por cinco romances publicados entre 1970
e 1979. Em texto autobiográfico, Scorza recorda episódios de sua
participação política como “erratas”, malentendidos relacionados a
situações cotidianas, como a amizade com a namorada de um ra-
paz asmático como ele, sem o caráter conspiratório que as autori-
dades imaginaram: “Yo no era um guerrillero sino um poeta extraviado
em la melancolia” (UAP: 2008, p. 61). A amiga era Hilda Gadea,
que se casaria com Ernesto Che Guevara. Tomo a liberdade de
interpretar que a forma de contar a própria história revela a
vivência de um homem que conheceu a dimensão cotidiana da
política. Scorza nasceu em Lima, em 1928, e passou parte de sua
infância em Huancavelica, já que seus pais eram oriundos das
serras peruanas.
Desde muito cedo envolvido com causas sociais, teve de exilar-
se por mais de uma vez, foi filiado a Aliança Popular Revolucioná-
ria Americana (APRA), mais tarde optou pelo Movimento Comunal
do Peru e passou a ter mais contato com as lutas dos mineiros e dos
comuneiros dos Andes Centrais (Cerro de Pasco, comunidades de
Yanacocha, Yanahuanca, entre outras). Talvez sua principal faça-
nha tenha sido a criação de Los Populibros através da participação
de grandes empresas no Patronato Del Libro Peruano. A iniciativa
que acabou se estendendo para outros países, além do Peru, consis-
tia na impressão de grandes tiragens de livros a preços populares
para um público massivo. No México, Scorza se exilou aos 20 anos
(à época da ditadura de Manuel Arturo Odría1), depois de ter pas-
sado pela Bolívia, Chile e Argentina; só regressou ao Peru em 1956,
com a eleição de Manuel Prado. Então já havia se desiludido com a
APRA, fundada por Victor Raúl Haya de La Torre, em 1924, após
conflito com a Terceira Internacional (ARAO: 2006, p. 64).

1 Odría (1897-1974) foi militar e político peruano, comandou as forças revolucionárias que assumi-
ram o poder em 1948 e foi presidente constitucional em 1950. Fundou a Unión Nacional Odriísta.

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Considere-se o provérbio árabe “Os homens se parecem mais


com sua época do que com seus pais” citado por Marc Bloch em
sua Apologia da História (2001). Daí a proposta de inserir o próprio
tempo do autor como objeto de análise, percebendo a relação com
a obra, a presença nesta de inúmeros elementos da cultura indígena,
os exemplos da miscigenação destacados, as características das rela-
ções de gênero e, por fim, a utilização da temática revolucionária
com um enfoque influenciado pelos rumos de uma esquerda que
chega aos anos 80 (e ainda mais após o fim do socialismo real nos
anos 90) buscando as margens de sua própria reestruturação. Não
posso deixar de reconhecer minha dívida com a disciplina Teoria
política e gramática dos sentimentos da América Latina. Os debates, os
comentários dos colegas em sala e todo o espaço para a reflexão
orientada pelo professor Gisálio Cerqueira Filho merecem o devi-
do crédito no processo de elaboração deste texto.

II. “O papa se casou!”

Marie Claire volta da cozinha com o jornal das mãos e anuncia a


manchete: “O papa se casou!” Os detalhes do matrimônio papal, a
cerimônia, a identidade da esposa – nada menos que a Miss Bra-
sil –, a repercussão no Vaticano. Todas as notícias exclusivas são
publicadas no A Verdade, “único jornal a serviço da mentira, ou
melhor, da fantasia...!” A amada de Santiago lê seu próprio jornal
com textos colados sobre uma página de jornal verdadeiro
(SCORZA: 1983, p. 94). O casal de amantes que fizeram o pacto de
não ter passado no dia em que se conheceram, ousavam forjar no-
vas verdades.
Ao diferenciar a narrativa da informação, Benjamin observa que
“a informação aspira a uma verificação imediata” e “é indispensá-
vel que a informação seja plausível”. O autor, em meados dos anos
30, afirma que apesar de recebermos pela manhã notícias de todo o
mundo, “somos pobres em histórias surpreendentes”, pois “os fa-
tos já nos chegam acompanhados de explicações”. Neste ponto es-
taria a diferença entre o episódio narrado e a informação, o primeiro
permitindo a livre interpretação (BENJAMIN: 1994, p. 203). Tan-

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to a passagem do casamento do Papa quanto à diferenciação


estabelecida tem profunda relação com a questão do tempo. Benja-
min se refere à extinção do narrador, intimamente relacionada à ace-
leração do tempo ao longo da “evolução (sic) secular das forças
produtivas”. Em um contraste com a imagem espiritual do mundo
do narrador é citado Paul Valery (1871-1945): “... já passou o tempo
em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que
não pode ser abreviado” (VALERY apud BENJAMIN: 1994, p. 206).
Para tornar mais clara as conexões entre as questões abordadas
a seguir com a obra de Scorza e, principalmente, com a possibilida-
de da percepção do tempo como ferramenta metodológica, será
preciso adotar a premissa do tempo como construção social, a qual
determina uma maneira específica de relacionamento com o passa-
do, conhecido e experimentado, e o futuro, campo das possibilida-
des e expectativas.
A história conceitual feita por Reinhart Koselleck (2006) eviden-
cia disputas no âmbito da linguagem que acabaram determinando a
prevalência da ideia de história como um processo inexorável de
progresso. Koselleck afirma que uma “singularização” semântica da
História expressa a inclusão de toda a humanidade em um único
processo temporal, de forma que este é fundamentado e mesmo le-
gitimado por teorias políticas e filosofias voltadas à apreensão do
passado, do presente e do futuro como uma totalidade dotada de
sentido previamente definido. Giacomo Marramao (1995), por sua
vez, destaca que o “bloqueio da sociedade de massa pós-liberal” cons-
titui o resultado de um longo processo que se inicia com a Revolução
Francesa e a decorrente instituição do sentido. Ao contrário de privi-
legiar a análise amparada na ideia de “crise de representação” ou
pela perspectiva que tenciona critérios sobre a base tradicional das
duas grandes sínteses políticas da era industrial – o liberalismo e o
marxismo –, Marramao busca “o fio da meada”. Ele percebe os
amplos efeitos do “empalidecimento do mito do crescimento” e
do “obscurecimento do mito da revolução” da seguinte forma:

“[como] efeito de uma política forçada a operar sobre o Sentido, a


dar conta não mais apenas do espaço social (o “estado de natu-

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reza” a ser normativizado e submetido à lei), mas também do


tempo social, da dinâmica dos movimentos coletivos que avançam
as próprias pretensões como já legitimadas pela História”.
(MARRAMAO: 1995, p. 285)

A definição e inviabilidade de alternativas ao paradigma traça-


do são responsáveis em última instância pela dificuldade de intro-
duzir fatores de inovação no processo político. Assim, para uma relação
com a passagem da obra de Scorza, vale dizer que qualquer ‘verda-
de’ estabelecida fora dos pressupostos em questão é percebida como
mentira ou ainda como fantasia. Aqui talvez repouse a
contemporaneidade do exemplo de Dom Quixote como alternati-
va e subversão à ‘realidade’ do tempo imutável. A partir de con-
cepções diferentes, Koselleck ressalta a impossibilidade de se
traduzir, de forma imediata, a universalidade de um tempo
mensurável e natural para um conceito único de tempo histórico.
Ao contrário, explica o autor, o tempo histórico, cujo ritmo é varian-
te, “está associado à ação social e política, a homens concretos que
agem e sofrem as consequências das ações, às instituições e organi-
zações” (KOSELLECK: 2006, p. 14).
O processo de transformação da ideia do tempo-estático, sus-
tentado na tradição de profecias apocalípticas controladas pela Igre-
ja, é ponto de partida para a definição da História humana como
campo da probabilidade e da inteligência humanas, sendo delinea-
do um novo horizonte para o futuro. Um tempo diferente e novo
foi sendo concebido. Com a virada do século XVIII, segundo
Koselleck, o prognóstico se consolida no mundo ocidental como o
momento consciente da ação política. Antes, a racionalidade
cartesiana inaugurada no século XVII por René Descartes, cuja pa-
ternidade sobre a matemática moderna é comumente conferida,
instituíra as bases matematicamente definidas da ciência como cer-
teza e verdade. A profecia apocalíptica apõe-se ao prognóstico raci-
onal. “O prognóstico”, observa Koselleck, “produz o tempo [do
progresso] que o engendra e em direção ao qual ele se projeta, ao
passo que a profecia apocalíptica destrói o tempo, de cujo fim ela
se alimenta” (KOSELLECK: 2006, p. 32).

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Portanto, o Iluminista não tolerava qualquer inclinação para o


passado. Esta postura, potencializada pela visão positivista ao lon-
go do século XIX, será criticada por Marc Bloch em referência a
história como ciência de laboratório: “[Assim como a “ciência”
cartesiana,] a crítica do testemunho histórico... procede essa im-
placável inversão de todas as bases antigas apenas a fim de conse-
guir com isso novas certezas (ou grandes probabilidades), agora
devidamente comprovadas”2 (BLOCH: 2001, p. 92). No início do
século XX, ao condenar a história política tradicional a École des Annales,
que teve Bloch e Lucien Lebvre como fundadores, introduziu uma
nova concepção de ciência histórica, representante de uma nova
ideia do passado (não mais tratado de maneira intocada e pura),
presente e futuro. Defendia-se que a história deixasse de ser uma
‘ciência do passado’ para ser vista como ‘ciência dos homens no
tempo’.
A abordagem metodológica deste trabalho ancorada no tempo e
em sua compreensão como ferramenta de análise, exige que seja
colocada uma questão: não teriam se convertido este prognóstico
racional e suas formas de controle temporal e político, sobre as
quais são lançadas as bases do cálculo político “maquiaveliano”3,
em um novo caminho para uma espécie de teologia da irreversi-
bilidade? Se não, o que mais explicaria ser o destino (ausência de
alternativas), onipresente e incontestável, a foz das prospecções
futurológicas inerentes ao “moderno par progresso-revolução”
(MARRAMAO: 1995, p.290)?
As relações entre estas questões e aquelas experimentadas pelos
personagens de Scorza, e acredito que pelo próprio autor, são inú-
meras. Uma amostra pode ser verificada no próprio título da obra,
A dança imóvel. O título, como fica evidente no capítulo O verdadei-
ro baile do Duque de Alençon é uma referência ao quadro Baile à Corte
de Henrique III ou Baile do Duque de Alençon4, em exposição no Mu-

2 Os trechos entre colchete e parênteses não foram incluídos por mim, mas são parte da citação.
3 Utilizo “maquiaveliano” para distinguir do sentido demais pejorativo preso ao termo
“maquiavélico”.
4 Ver quadro reproduzido neste artigo.

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seu do Louvre, em Paris. No romance, Santiago e Marie Claire (a


amada) passeiam pelo museu à procura de uma festa. Há apenas
dois quadros em todo o Louvre que possam atender à preferência
expressa, principalmente, por Marie Claire. Um deles é o quadro
da festa oferecida à Corte do rei francês. Mais adiante me dedicarei
a alguns comentários sobre a obra em si, mas por ora gostaria ape-
nas de destacar que, segundo Koselleck, Henrique III da França
dedicou-se, com a ajuda de Richelieu, a estancar de uma vez por
todas a fonte inesgotável de previsões religiosas no país, eliminadas
do campo da formação e da decisão da vontade política (KOSELLECK:
2006, p.29). Destaco ainda que, no quadro, um homem que seria
Henrique III aparece no canto direito, de onde vem uma iluminação
que preenche o salão. Ao fundo, perto da porta, parece ser o carde-
al, a julgar pelas vestes vermelhas. Em um mundo marcado pelos
símbolos, há de se dar o devido valor aos elementos da obra que
inspira o título do livro de Scorza.
Voltando a Benjamin, é a postura iluminista de não tolerância a
qualquer inclinação para o passado que destituirá o narrador de
sua prerrogativa no espaço tradicional da experiência. Na verdade,
é este espaço que, de certa forma, perde sua posição na sociedade.
Decorre da aceleração do tempo o deslocamento lexical desde a his-
tória como relato exemplar (Historie) à história como acontecimento
(Ereignis) ou como representação (Geschichte). Esta conclusão é re-
sultado da história conceitual de Koselleck, para quem o processo
antecedeu e preparou o terreno para uma revolução transcendental
que conduziu à filosofia da história, própria do Idealismo.
Em sua análise da não sistemática “filosofia da história de Walter
Benjamin”, Michel Löwy caracteriza o autor de O narrador como
um “crítico revolucionário da filosofia do progresso, um adversá-
rio marxista do “progressismo”, um nostálgico do passado que so-
nha com o futuro” (LÖWY: 2002) 5 . Löwy observa que,
contrariamente ao marxismo evolucionista vulgar, Benjamin não

5 LÖWY, M. A filosofia da história de Walter Benjamin. In: Estudos Avançados, vol. 16, nº 45, São
Paulo, maio/agosto de 2002. Capturado em 25/02/2009 no site http://www.scielo.br/pdf/ea/v16n45/
v16n45a13.pdf

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concebe a revolução como o resultado “natural” ou “inevitável”


do progresso econômico e técnico – ou da “contradição entre for-
ças e relações de produção” – “mas como a interrupção de uma
evolução histórica que conduz à catástrofe” (LÖWY: 2002, p. 3). A
catástrofe é o progresso e o progresso é a catástrofe, segundo acre-
ditava Benjamin. O significado histórico desta afirmação está no
ataque do autor à ideologia do progresso em todos seus compo-
nentes: “o evolucionismo darwinista, o determinismo de tipo cien-
tífico-natural, o otimismo cego – dogma da vitória “inevitável” do
partido – e a convicção de “nadar no sentido da corrente” (o de-
senvolvimento técnico)” (LÖWY: 2002, p. 8).
Löwy diz que nas manifestações múltiplas do progresso auto-
mático, contínuo, infinito, fundado na acumulação quantitativa,
no desenvolvimento das forças produtivas e no crescimento da
dominação sobre a natureza; Benjamin crê descobrir o fio condu-
tor de uma crítica radical da concepção homogênea, vazia e mecâ-
nica do tempo histórico. Solução benjaminiana: percepção
qualitativa da temporalidade com a rememoração e a interrupção
messiânica/revolucionária da continuidade.
Diferentemente, ao seu modo, o italiano Antonio Gramsci reali-
zou sua própria ruptura com as interpretações dominantes do ma-
terialismo histórico desenvolvidas no curso do século XX. Tratarei
mais adiante deste assunto e das relações com a concepção de tem-
po. Vale adiantar que, em sua Concepção dialética da História, Gramsci
defende que a ideia de progresso, formadora dos modernos esta-
dos constitucionais foi desenvolvida para que os homens se sentis-
sem mais seguros quanto ao seu futuro, podendo conceber
“racionalmente” planos globais para suas vidas. A crise dessa ideia,
continua Gramsci, “não é uma crise da ideia em si, mas uma crise
dos portadores dessa ideia, os quais se tornaram, eles mesmos, uma
“natureza” que deve ser dominada” (GRAMSCI: 1978, pp. 46-47).
Destaco a afirmação de que a “filosofia pessimista da história de
Benjamin se manifesta de maneira particularmente aguda em sua
visão do futuro europeu”. Reproduzindo as palavras do próprio
Benjamin, Löwy continua:

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“Pessimismo em toda a linha. Sim, na verdade, e totalmente. Des-


confiança quanto ao destino da literatura, desconfiança quando ao
destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do homem
europeu, mas sobretudo desconfiança tripla diante de qualquer aco-
modação: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. (...)”
(BENJAMIN apud LÖWY: 2002, p. 4)6

Os significados da citação acima são explicados pelo contexto


no qual ela se insere e o qual dá sentido ao pessimismo ativo, ‘orga-
nizado’ e prático defendido por Benjamin contra um ‘otimismo
sem consciência’ e inspirado pela ideologia do progresso linear dos
partidos burgueses e da social democracia contra os quais o autor
se posicionava em seus textos. A despeito destes sentidos e das pos-
síveis contestações, a desconfiança advogada por Benjamin
exemplifica e enriquece a análise da dança imóvel dos personagens
de Scorza. Estes, representantes de uma geração da segunda meta-
de do século XX, são confrontados dentro dos territórios das pró-
prias certezas revolucionárias. Não teriam se esquecido de
desconfiar das ‘verdades’ – no sentido de questionar os rumos –
que seguiam impulsivamente?
Assim sendo, percebo que o colapso da terceira década do sécu-
lo XX projeta para as décadas seguintes o desafio de reconstrução
das premissas, tendo em vista a crise das certezas ‘iluminadas’. As-
sumindo os riscos da generalização, questiono: as crises decor-
rentes deste processo – ou aquelas mais catastróficas ao menos –
não decorrem de crises de (des)confiança; no mercado, na capaci-
dade de produção, no ritmo do consumo, na estabilidade política,
na eficiência das instituições etc.? O drama das ditaduras na Améri-
ca Latina, ao qual farei referência mais adiante, não seriam fruto
dessas crises? No caso, de confiança cega em futuros projetados,
em sentidos irreversíveis. E ainda: quais pressupostos balizam as
confianças ou desconfianças que determinam as ações políticas na
sociedade? Conhecê-los, acredito, constitui o caminho metodológico
para a proposição de novas práticas.

6 BENJAMIN, W., “Le Surréalisme”, p. 312.

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“Não vivemos no presente, mas no passado.”


Antes de prosseguir, é preciso uma ponderação. Tendo em vista
as proposições ressaltadas neste trabalho, não posso deixar de obser-
var que as análises e considerações sobre a construção do tempo pres-
supõem determinados conceitos de progresso, modernidade e
desenvolvimento – só para citar alguns. Estes pertencem a uma mes-
ma visão de mundo e desconsideram outras civilizações e culturas
que não a ocidental. Conforme já destaquei em outros trabalhos, a
análise de Tzvetan Todorov é bastante proveitosa também para este
tema. O autor enfatiza o papel das estruturas temporais na conquis-
ta da América e caracteriza “um tempo cíclico, repetitivo, imobiliza-
do numa sequência inalterável, onde tudo é sempre previsto com
antecedência, onde o evento singular não passa de realização de pres-
ságios desde sempre presentes”. Neste ponto vale lembrar o produ-
to do encontro/confronto das culturas ocidental europeia e indígena
na América Latina como viés para a análise da conjuntura atual.
Em sua fuga pela selva amazônica, Nicolás Centenário, em bus-
ca de socorro, lamenta: “eles não entendem castelhano” (SCORZA,
p. 174). Em outra ocasição subestima: “se têm barco, são indíos
espertos” (SCORZA, p. 41). Vale destacar que é o próprio guerri-
lheiro, Comandante do Exército Revolucionário do Peru quem deixa
escapar a ideia ocidental de esperteza; ou poderia dizer de sabedo-
ria. O indicativo de esperteza dos índios é o barco, meio de trans-
porte que evidencia o contato com os brancos. Assim, é importante
perceber que ainda hoje nossas relações são marcadas pelo julga-
mento do ‘outro’ – geográfica, racial, socialmente (des)caracterizado
– segundo a linha de pensamento anteriormente descrita. Abaixo,
como a utopia da construção de uma raça cósmica, projeta-se no
futuro o próprio presente:

“O Homem Novo compreenderá que o amor e a felicidade são os


fatos realmente subversivos. Mas esse homem não nasceu. Não vi-
vemos no presente, mas no passado. E entre o passado e o futuro há
uma fossa. Talvez essa fossa só possa estar cheia com os nossos cadá-
veres. É necessário que assim seja, pois é necessário que por cima dos
nossos cadáveres passe a Humanidade” (SCORZA, p. 183).

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Koselleck define como futuro passado aquele futuro concebido


pelas gerações passadas de forma que modelos desenhados no pas-
sado promovem um deslocamento do futuro. Este passa a se con-
cretizar no presente, a partir de ações orientadas – e mais,
submetidas – em função das projeções. Certa vez escutei a sentença
em inglês: The present is the gift (O presente é a dádiva). Em sentido
contrário, contudo, Nicolás tenta convencer Santiago a não aban-
donar o Movimento por causa de Marie Claire. O amor é posto em
extremo oposto em relação à revolução. Em resposta ao amigo,
Santiago demonstra insatisfação quanto ao que Koselleck chama
de “esboços do porvir”: “Agora o Movimento me promete um re-
encontro com minha mulher depois que triunfarmos. Prometem
me dar amanhã o que eu tenho hoje. Mas estou farto de que me
confisquem o presente em nome do futuro”, diz Santiago.
Inúmeras são as referências ao tempo que permitem estabelecer
um paralelo com o momento social e político dos anos 70 na Amé-
rica Latina. Vale destacar o autoritarismo de Estado, presente em
vários países da América Latina nos anos 70 e 80, a existência de
movimentos de esquerda afinados ideologicamente com teorias
afins ao marxismo – teorias revolucionárias, não raro, transplanta-
das como exemplo de países com contextos distintos onde gover-
nos comunistas haviam conseguido chegar ao poder (Cuba, URSS
e China). Em outra discussão, com Laynez, também integrante do
Movimento, Santiago rebate: “O futuro é uma perigosa ilusão”.
Laynez tenta convencê-lo a voltar ao Peru e integrar a guerrilha em
ação que acabaria resultando na prisão, fuga, captura e morte de
Nicolás. Ele diz a Santiago que “os revolucionários são a luz por-
que são o futuro. O futuro é o rosto dos revolucionários, forçados a
combater momentaneamente na clandestinidade, neste presente
que pertence já ao passado”. (SCORZA, p.167). Vale lembrar que
toda esta história está sendo contada pelo escritor no La Coupole,
lugar onde a história começa e onde terá um fim com a revelação
do escritor como possível personagem, Santiago.
Como ilusão ou armadilha, ou como lugar de luz e concretizações.
Assim o futuro é ambiguamente representado. A percepção de que
se pode contar com o advento da possibilidade para se calcular no

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Maria Luiza de Castro Muniz

presente a expectativa de vida realizando um prognóstico racional-


mente definido encontra defensores entre os membros do Movi-
mento. Mas Santiago deseja permanecer ao lado de Marie Claire, a
mulher idealizada, por quem o desejo despertado é posto em con-
traste com a disciplina exigida pela práxis revolucionária. A repre-
sentação da mulher através de Marie Claire apresenta o misterioso
e o imponderável.
Daí, logo no início do livro, em Uma mulher interrompe o relato,
Santiago (ainda não revelado ao leitor como tal, mas simplesmen-
te como o escritor no La Coupole) se inspira na forma geométrica de
um caracol matematicamente expressa por determinada fórmula
para questionar qual seria a equação capaz de abrir o caminho para
o amor daquela mulher. Assim, o feminino aparece na figura de
Marie Claire como aquilo que foge da sistematicidade e, por isso,
talvez tão perigoso como o futuro. Em uma comunidade indígena
amazônica liderada pelo norte-americano David Pent às margens
do rio Tambo, é narrada a tradição dos feiticeiros campas: quando
algum mal assola o povo da região, atribuem esse mal invariavel-
mente a uma menina, condenada a morrer a flechadas, única for-
ma de erradicar o mal (SCORZA, p. 147).
Ao falar da história como Geschichten, Koselleck afirma que hou-
ve um reconhecimento da disseminação dessa nova consciência da
realidade histórica, sendo dado também aos contos, novelas e ro-
mances o subtítulo de “histoire véritable”. Passa a ser compartilhada
com a dita história real uma exigência de um conteúdo de verdade
não encontrado na Historie. Faço esta consideração com o intuito
de reforçar as razões do uso do romance de Scorza, embora as veja
como auto-evidentes. Compartilho com Edward Said (1995) a ideia
de que os escritores estão profundamente ligados à história de suas
sociedades, moldados por esta e suas experiências sociais em dife-
rentes graus7.
Assim, a análise centrada nos personagens de A dança imóvel
ampara-se na ideia de que a cultura e suas formas estéticas (o ro-
mance, por exemplo) derivam da experiência histórica.

7 SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

Não por acaso, Mariátegui encerra seus Sete ensaios com conside-
rações acerca do processo da literatura e, após repassar seu passado
colonialista extirpado “pelas raízes” através do “indigenismo” con-
clui que “pelos caminhos universais e ecumênicos que tanto nos
censuram “vamos nos aproximando cada vez mais de nós mesmos”
(MARIÁTEGUI: 1975, p. 257). Portanto, esse é o sentido da litera-
tura; a confluência de experiências igualmente valorizadas sob a
égide da verdade.
No momento em que Marie Claire depara-se com a tradução do
Popol Vuh, abre-se um caminho para o contato com um ‘sobrevi-
vente’. Na cultura maia era um livro religioso. Sacrilégio, com a
chegada dos espanhóis e registro histórico da civilização maia, atu-
almente. Além disso, salvo da fogueira, o livro se torna elemento
de resistência (ou mesmo permanência) dos povos ditos “sem his-
tória” por Montaigne e Descartes (SCORZA, p. 196). Marie Claire
se surpreende: “Eu desconhecia que o Popol Vuh é o livro sagrado
mais antigo da humanidade, é inclusive anterior ao Rig Veda e ao
Zend Avesta”. Portanto, os ‘sem história’, na verdade, tinham práti-
cas verbais altamente estimadas, inclusive escritas. Tal era o nível
de organização, que a conquista acabou, contraditoriamente, sen-
do beneficiada por ela. Todorov observa que o encontro como o
europeu foi incluído pelos índios numa rede de presságios inven-
tados a posterior. A superação mental da conquista pelos astecas se
dá de tal forma que estes a inscrevem numa história concebida se-
gundo suas exigências: “o presente torna-se inteligível e, ao mes-
mo tempo, menos inadmissível, a partir do momento em que é
possível vê-lo prenunciado no passado” (TODOROV: 1993, p. 72).
Entre os textos védicos, o Hino da Criação (Nasadya), as dúvidas:
“De onde esta Criação surgiu – talvez ela tenha se formado sozi-
nha, talvez não – aquele ser que olha para isto, no alto céu, somen-
te ele sabe, ou talvez ele não saiba? (apud The Rig Veda...)”.8 O
trecho milenar sugere que, além do monopólio da certeza e da dú-
vida pelo saber homogeneizante da cultura ocidental dado através

8 The Rig Veda: one hundred and height hymns. Selected and Translated by Wendy Doniger O’Flaherty.
London, Perguin Books, 1981.

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Maria Luiza de Castro Muniz

do paradigma da ratio maximizadora, cumpre considerar: “ou tal-


vez ele não saiba”.

III. O curso do rio e a compressão das margens

“Nicolás teimava em recordar que sem Revolução violenta é im-


possível substituir o Estado burguês pelo Estado proletário”
(SCORZA, p. 120). O percurso revolucionário seguido por inúme-
ros guerrilheiros na América Latina, que como Nicolás apostaram
suas vidas na luta armada, levou muitos deles a navegarem por
águas tortuosas e enfrentarem a forte repressão dos governos com-
batidos. Assim, a visão que possuíam do passado os impulsionava
a uma realidade alternativa, como se aquele fosse o momento de
escolha de um dos afluentes, cada qual a desaguar em um futuro
diferente.
Neste item do trabalho buscarei relacionar as questões referen-
tes ao tempo, àquelas ‘feridas’ sociais (e os ‘curativos’ para as mes-
mas) decorrentes da onda repressiva que se estendeu por toda
América Latina durante o período aqui abordado. Percebo que o
recorte temporal traçado a partir da obra de Scorza fornece materi-
al bastante vasto para a análise da formação de novas identidades
por meio da superação do silêncio e do esquecimento. Pensando
nas potencialidades produzidas através das construções da memó-
ria coletiva, é possível compreender significados mais amplos para
elementos presentes na obra de Scorza, como por exemplo o exílio.
Os organizadores da Arqueologia da repressão e da resistência: Amé-
rica Latina na era das ditaduras utilizam ferramentas que garantem a
construção não apenas de relatos alternativos aos da história ofici-
al, mas também se propõem a dar voz aos chamados ‘grupos invisí-
veis’. Ao tratar de governos que tiveram o poder de fazer desaparecer
pessoas, a justiça e até mesmo a História, os autores se esforçam
pela reconstrução daquilo que não se pôde fazer desaparecer: o
passado (FUNARI et al.: 2008, p. 25). Em artigos sobre as ditaduras
latino-americanas de diferentes países (Brasil, Argentina, Venezuela,
Uruguai, Colômbia, México e Peru – os três últimos com governos
‘democraticamente’ eleitos) trata-se de um ‘devir histórico’ com-

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Dossiê América Latina
A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

prometido pelos símbolos da recordação, tais como discursos e


narrativas produzidos para serem vias de acesso ao poder.
No artigo A arqueologia do conflito no Brasil, Paulo Funari e Nanci
de Oliveria abordam a “arqueologia dos desaparecidos” durante a
ditadura militar no Brasil e reconhecem a existência de diferentes
maneiras de se conhecer o passado, o que expõe a questão de saber
quem pode saber e participar do processo de invenção e ressigni-
ficação deste passado. Essa questão é essencial para a proposta de
se enfatizar as compreensões sobre o tempo como ferramentas
metodológicas e de análise. Além disso, parece ser um caminho
bastante fértil para o estudo dos processos de redemocratização
que avançaram de maneiras diferentes em diversos países da Amé-
rica Latina a partir dos anos 80. A construção do devir histórico, como
em outros momentos da história nacional, esteve permeada por
valores e conceitos embutidos nas ações políticas daqueles grupos
que conseguiam circular e disputar espaços pelas tais vias de acesso
ao poder.
Nesta construção, um elemento importante – em nome do qual
foram cometidas inúmeras atrocidades, vale destacar – foi o culto à
eliminação do conflito. Portanto, antes de tratar da compressão
das margens através das ações repressivas dos governos ditatoriais
latino-americanos, tratarei da solidariedade nacional como produto
de uma determinada concepção do tempo aqui estudada. Sobre este
tema, Funari e Oliveira (2008) explicam que a homogeneidade é um
conceito originário dos movimentos nacionalistas e capitalistas. Os
autores completam: “As culturas, assim como as nações, foram vis-
tas pela ideologia burguesa como entidades homogêneas e delimi-
tadas”. Dessa forma, “a História passou a ser concebida como o
produto das ações e eventos associados a tais entidades homogêne-
as” (FUNARI e OLIVEIRA: 2008, p. 144). A consequência decor-
rente desta concepção é uma interpretação da sociedade formada
por entidades baseadas antes na solidariedade do que no conflito.
Parcialmente, está apresentada uma das justificativas que deram
suporte para as ações repressivas estatais, uma vez que os grupos
contestadores foram imediatamente identificados como semeado-
res do conflito e, por isso, o ‘outro’ inimigo da ordem e da segurança

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nacional: “Homogeneidade, ordem e limites tem sido associados


ao pressuposto a priori de que a estabilidade caracteriza as socieda-
des, antes que o conflito, uma concepção claramente conservadora
e a-histórica” (FUNARI e OLIVEIRA: 2008, p. 145).
O estudo realizado pelos autores envolve a busca por fichas ca-
davéricas e ossadas. Na ficção de Scorza as formigas carnívoras
tangaranas se precipitam sobre os corpos vivos a devorá-los, cum-
prindo a sentença de morte dada a Nicolás. A arqueologia da repres-
são propõe o movimento inverso, trazendo à vida vestígios de
histórias e memórias enterradas clandestinamente por governos
que ultrapassaram, e muito, a margem da lei em um “sinistro balé”
de suicídios forjados e gente pendurada de cabeça para baixo
(BERARDO: 1981, p. 62). E tudo isso para fazerem prevalecer de-
terminadas concepções de solidariedade nacional e projetos de de-
senvolvimento.
Destacar aspectos dos confrontos que se deram não apenas no
Peru, mas em outros países da América Latina, conforme mencio-
nado anteriormente, é útil ao propósito último de trabalhar com
uma visão alternativa e destacar os produtos de um drama vivido
coletivamente pelas populações vitimadas pela violência, pela cen-
sura e pelo controle de suas rotinas.
A professora Rita de Cássia Miranda Diogo9, em artigo sobre
Literatura e autoritarismo na América Latina (2005), sintetiza em tre-
cho reproduzido abaixo um dos efeitos que entendo ter sido refor-
çado pela convergência de experiências comuns no cenário regional
latino-americano. Tais experiências, acredito, acirram marcas que
caracterizam o drama da América Latina. Mas, além disso, contri-
buem para a criação de potenciais relações de identidade entre os
povos dos diferentes países da região.

“...podemos dizer que na América Latina existem pelo menos duas


nações, uma oficial, legal, visível, outra não-oficial, sem uma repre-
sentação legítima, ou seja, invisível, mas nem por isso menos verda-

9 Professora dra. em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas. Professora de Culturas e Literatu-


ras Hispânicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

deira ou real que a primeira. O corpo visível latino-americano en-


contra-se delimitado geograficamente por 4 fronteiras, formado por
um povo único, brasileiro, argentino, peruano, colombiano, branco,
que fala uma única língua, o português ou o espanhol, e professa
uma mesma religião, a católica; enquanto o corpo invisível desta
América possui na verdade 5 fronteiras, marcado por diversidades
raciais, culturais, religiosas, sociais, políticas e econômicas, apesar
de reinar a ilusão da identidade simbolizada na figura do estado.”
(DIOGO: 2005, p. 63)

Percebo a partir da reflexão de Diogo que, se considerada uma


unidade latino-americana, esta comporta a pluralidade, a solidarie-
dade e o conflito. Nesse caso, as potencialidades do corpo invisível,
daqueles que não possuem meios para expressarem-se nesse uni-
verso plural e conflitante, se apresentam para a Ciência Política e
os demais campos de estudo quando adotadas concepções alterna-
tivas àquelas condicionantes do desenvolvimento em um sentido
único.
Ainda segundo Diogo, trata-se de superar de uma vez as
dualidades arcaico-moderno, patrimonial-racional, indoamericano,
afro-americano, cidade-campo, barbárie-civilização. Estas pareciam
a princípio “uma questão de opção de modelo desenvolvimentista
ou uma etapa deste mesmo modelo”, diz a autora, mas transfor-
maram-se “numa questão estrutural, com lugar reservado na divi-
são internacional e nacional do trabalho capitalista” (DIOGO: 2005,
p. 65).
Perceber o papel que a literatura pode desempenhar é a propos-
ta de Diogo e em parte a deste trabalho centrado no romance de
Scorza. É representativo o fato narrado por João Batista Berardo
em Guerrilhas e guerrilheiros no drama da América Latina. Berardo
conta que o presidente e general Juan Velasco Alvarado, que assu-
miu o poder no Peru através de um golpe de Estado em 3 de outu-
bro de 1968 e deu início a um regime militar esquerdista, ordenou
pessoalmente a libertação do personagem central de Redoble por
Rancas, o camponês Hector Chacón. Este permaneceu onze anos
numa prisão no meio da selva amazônica peruana, por ter partici-

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pado de um movimento reivindicatório de classe, afirma Berardo


em referência ao camponês e personagem do romance de Manuel
Scorza. Este é uma simples amostra do papel comunicativo e
interativo da literatura. Estudos detalhados poderiam fazer emer-
gir outros, de interferência ainda mais profunda sobre o jogo polí-
tico e cultural de determinada sociedade.
Dar visibilidade ao corpo invisível: essa é a potencialidade que
existe na literatura e em outras formas de expressão artística, fa-
zendo delas fontes de pesquisa importantes, embora pouco explo-
radas. Seguindo este propósito, Denise Rollemberg expõe em Exílio:
refazendo identidades aspectos de um elemento presente na obra e
na vida de Scorza. “El exilio es una herida extremadamente grave y dolo-
rosa: el exilio es casi una condena a muerte.”10 Segundo o escritor espa-
nhol Juan González Soto, estas foram algumas palavras dita por
Scorza sobre a experiência por ele vivida já aos vinte anos. Não por
acaso o exílio aparece em A dança imóvel. Quando jovens, Santiago e
Nicolás se auto-exilaram na França, de onde cada um seguiu para
um rumo diferente. No caso desses personagens exilar-se significa-
va a busca por um lugar onde, afastados da perseguição política,
pudessem se organizar e definir estratégias para forçar a visibilida-
de de seus projetos políticos. Abaixo, a descrição de Rollemberg
sobre o exílio, bem como processos e transformações inerentes à
experiência:

“A derrota de um projeto político e pessoal, o estranhamento em


relação a outros países e culturas, as dificuldades de adaptação às
novas sociedades, que muitas vezes os infantilizavam, o não reco-
nhecimento nos novos papéis disponíveis, tudo isto subvertia a ima-
gem que os exilados tinham de si mesmos, desencadeando crises de
identidade. Em diversas situações cotidianas, foi possível ver a ma-
nifestação destas crises: na batalha pelos documentos ou na recusa
em obtê-los; no trabalho e no estudo; na militância política ou no

10 La memoria de los olvidos: Manuel Scorza, atribuído ao autor Juan González Soto, foi capturado dia
10/01/2008 no site http://www.monografias.com/trabajos-pdf902/memoria-de-olvidos/memoria-
de-olvidos.pdf.

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A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

seu abandono; nas atividades culturais e artísticas; na vida familiar


e afetiva” (ROLLEMBERG: 1999).11

Portanto, o exílio pode ser percebido como referência àquele que


é alijado de sua sociedade como elemento nocivo para determina-
da ordem e unidade, mas também àquele que com outras culturas e
sociedades encontra uma alternativa para se expressar. E, apesar
dos entraves, para buscar novas concepções de si próprios e sobre
o contexto político-cultural que os cerca. Sob este ponto de vista,
percebo a narrativa do escritor-personagem do romance – suposta-
mente, um personagem que estaria contando o dilema vivido por
ele próprio no passado – como uma dança em torno da nova iden-
tidade buscada para si próprio. Esta poderá afastá-lo, aparentemente
vale dizer, do passado ou ajudá-lo a projetar-se no futuro. Por isso,
as reconstruções que emergem do ‘silêncio’ e do ‘esquecimento’
durante períodos autoritários devem ser vistas também como po-
tenciais alternativas capazes de interferir na imposição de um senti-
do único.

IV. Da pavana ao “passo indeciso”: a utopia das certezas

Alguns elementos do Baile do Duque de Alençon, a obra, auxiliam na


percepção do caráter das relações e posturas presentes na trama e
sugerem que pintura e romance, assim como romance e história se
entrecruzam12.
Aos pés daquele que parece ser o próprio Henrique III, a fideli-
dade representada pelo cão aos seus pés. As roupas apontam para
um estilo típico do século XVI e início do XVII. As flores nas
vestimentas das mulheres e salpicadas pelo chão do salão sugerem
a presença da primavera e a fertilidade. No centro, há uma forma-
ção circular dos convidados, que parecem dançar a pavana. O nome

11 “Exílio – Refazendo identidades”. Revista da Associação Brasileira de História Oral, nº 2. Rio de Janeiro,
junho de 1999, pp. 39-73.
12 Agradeço aos comentários de Monclair de Castro Sampaio, que me auxiliou na interpretação do
quadro, contribuindo com seu olhar dedicado e atento aos símbolos e seus possíveis significados.

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tem entre suas possíveis origens, a semelhança com os movimen-


tos elegantes do pavão. Lembro ainda que o círculo é, geralmente,
associado à ideia de tempo (a exemplo de signos cabalísticos). Por
último, destaco que a pavana, dança comum na época, sobrevive na
atualidade na forma do ‘passo indeciso’. Como postulante dessa
indecisão, um homem ao centro do quadro se volta para trás, em
direção ao observador.
Não descarto o fato de algumas dessas considerações não tradu-
zirem propriamente uma relação possível. Neste caso, assumo a
responsabilidade pelo engano e pela tentativa de comparação. Pre-
tendi, contudo, destacar com essa breve e despretensiosa análise
da pintura, a metalinguagem existente entre a pintura e o roman-
ce, tal qual entre o romance e a própria história da América Latina.
Esta também formada por homens, guerrilheiros ou não, indecisos
quanto ao passo correto. Assim como Nicolás Centenário, muitos
também caminharam como se em direção ao destino irrevogável
da morte, da revolução ou do progresso. Cito como exemplo deste
último a atmosfera do ‘Pra frente Brasil!’, que em plena ditadura
alimentou na sociedade brasileira a esperança de se viver no “país
do futuro”.

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Em dissertação elaborada na área de Literatura Comparada (Ci-


ência da Literatura), Lina Arao analisou A trajetória da utopia em
Jorge Icaza e Manuel Scorza. A autora cita como exemplo o discurso
utópico que, nos anos 60, apresentou-se em projetos da Igreja Ca-
tólica no Brasil, a citar a Teologia da Libertação. Esta, observa
Arao, “ganhou espaço principalmente no nordeste, em defesa dos
oprimidos, esmagados pela pobreza e pela exploração socioeco-
nômica exercida pelos grandes latifundiários.” Ela ressalta outra
fonte ainda mais significativa de utopias na América Latina: as teo-
rias socialistas marxistas, que nortearam ações revolucionárias como
a de Cuba, e que, durante muito tempo, foram fundamentaram as
várias rebeliões e revoltas em países da região. “Todos esses pro-
cessos revolucionários”, afirma Arao, “renovaram a esperança e
também a crença de uma América Latina como ‘continente do fu-
turo’ (recuperando novamente sua imagem da época dos ‘desco-
brimentos’)”. A região, completa a autora, “acolhe sonhos de uma
vida melhor e projetos revolucionários que malogravam na Euro-
pa Ocidental” (ARAO: 2006, p. 35).
Essa visão se repete nas palavras de Marie Claire (abaixo), que
demonstra uma espécie de decepção com a escolha de Santiago
pelo amor do presente em detrimento das promessas do futuro
projetado na Revolução, bem como a certeza de que “o futuro vive
no Terceiro Mundo”:

“Em Paris você [Santiago] encontrará tudo, menos a Revolução.


A Europa está morta. Aqui, todo futuro é passado. Belo, mas passa-
do. E se, como você dizia, o único futuro humano é a Revolução, o
futuro vive no Terceiro Mundo, na América Latina, no seu país,
Mesmo nós que nascemos na Europa vivemos unicamente de passa-
gem pela Europa. Aqui não se vive, aqui nos limitamos a existir, a
apressar o instante que passa”. (SCORZA, p. 220)

Arao trabalha com a hipótese de que o percurso do pensamento


utópico nos romances Huasipungo (do equatoriano Jorge Icaza),
Redoble por Rancas e La tumba del relâmpago (os dois último de Ma-
nuel Scorza) relaciona-se ao modo pelo qual os indígenas são vis-

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tos na sociedade. Assim, segundo a autora, a visão sobre os índios


estaria ligada ao surgimento e desenvolvimento da utopia como
um desejo possível de ser realizado, se planejado e projetado. En-
quanto os indígenas são considerados meros objetos, seres incapa-
zes de pensar, de agir e de terem consciência de sua história, observa
a autora, não podem ser dotados de pensamento utópico. Na me-
dida em que ganham voz e percebem a exploração que sofrem,
tomam o impulso necessário para a busca do ideal, seguindo a uto-
pia. A passagem de uma visão para outra na literatura se dá ao longo
do século XX e é notada, em especial, como característica da obra de
Scorza. Os índios deixam de ser retratados como meros objetos, se-
res tão oprimidos que se esquecem de sua condição humana, e pas-
sam a serem vistos como indivíduos conscientes e atuantes.
Em seus Sete ensaios sobre a realidade peruana, Mariátegui (1894-
1930) destaca prognósticos da época sobre o futuro da América
Latina a depender do destino da mestiçagem. O escritor peruano
contrasta o “pessimismo hostil dos sociólogos da tendência de Le
Bon sobre o mestiço” ao “otimismo messiânico que põe no mesti-
ço a esperança do Continente”. Diz Mariátegui sobre uma tese que
esboça a utopia do mestiço como protagonista de uma nova civili-
zação: “[A tese] na mesma medida em que pretende predizer o
futuro, suprime e ignora o presente”. O autor dos Sete ensaios era
crítico de uma visão da mestiçagem que visse a mistura já realizada
no continente apenas como uma promessa da nova raça cósmica
(MARIÁTEGUI: 1975, p. 249).
Ao analisar Redoble por Rancas, Arao destaca que apesar de ainda
não possuírem a organização e o planejamento necessários para
evitar o malogro de seus movimentos, os índios refletem, imagi-
nam e agem em prol de melhorias. Por outro lado, em La tumba de
relámpago, a autora percebe que o socialismo figura como elemen-
to “modernizador” do movimento indígena em tensão com a tra-
dição representada pela “racionalidade mítica dos quíchuas”. O
emprego de um socialismo empregado acriticamente como doutri-
na cega, conclui Arao, faz da tensão um impasse, também determi-
nado pela dificuldade de organização de uma rebelião geral e mais
ampla por parte dos indígenas (ARAO: 2006, p 109).

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A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

As considerações acima servem ao propósito que defendo neste


trabalho de evidenciar como a ideia de destino (ou fatalidade), do
sacrifício do presente e das existências individuais ao projeto do
progresso ou a concepção da revolução e da História com um senti-
do único bebem numa mesma fonte. Esta jorra uma determinada
ideia mecanicista do tempo que obedece a direção paradigmática do
racionalismo ocidental. Trata-se de uma concepção que caminha
sobre a linearidade do tempo, estabelecendo como binômios o atra-
so e o progresso, o passado e o futuro, a exploração e a Revolução
etc. Assim o cálculo político fundamentado nestas bases, diz Arao,
fragmenta utopias e conduz à demonização do conflito. Se o pri-
meiro resultado pode ser positivo, uma vez que trás a riqueza de
produzir várias visões e apresentar uma pluralidade de
posicionamentos. O segundo, ao contrário, restringe as potencia-
lidades dos primeiro.
Marramao enfatiza, nesse sentido, os “traços dominantes co-
muns, os aspectos de uma lógica de modernização que introduz
nas experiências ocidentais de Estado social elementos análogos ou
estruturalmente isomorfos aos do socialismo real” (MARRAMAO:
1995, p. 280).
Em A dança imóvel, na página 124 é antecipado o relato do fim
de Nicolás Centenário que só irá encontrar um desfecho para sua
fuga na página 230, a morte. No primeiro relato da captura, Scorza
mistura os percalços do guerrilheiro tentando vencer o rio com
uma passagem de uma carta em que Mozart capitula: “Minha
carreira começou com tantas promessas... Mas não é possível
mudar o destino...! Os trombones anunciam dilaceradamente a
fatalidade.”
Uma mistura de tempos (passado, presente e futuro) o aproxi-
ma de Francesca, a paixão que – ao contrário de Santiago – Nicolás
deixara para dedicar-se à paixão revolucionária no Peru. Envolto
em referências a Mozart, à correnteza e à Francesca, surge uma lem-
brança: “Lênin insistia em que até hoje as revoluções só têm
aperfeiçoado a máquina do Estado, pois bem: é necessário rompê-
la, demoli-la. A violência do rio arranca pedaços de margem com
árvores vivas” (SCORZA, p. 124). Não me parece casual que Scorza

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descreva a violência do rio, logo após a menção à direção traçada


por Lênin para a destruição da máquina do Estado.
Seguindo por outro afluente, que não poderá ser amplamente
explorado aqui, Gramsci divergirá ao propor a guerra de posições
como alternativa à tomada de assalto do Estado, concepção segundo
a qual “a luta pode e deve ser conduzida desenvolvendo o conceito
de hegemonia” (GRAMSCI: 1984, p. 38). Este, vale dizer, envolve
uma relação pedagógica que se deve conhecer a fim de trilhar o ca-
minho para “desmontar os nexos internos do Estado com a sua soci-
edade”13 (VIANNA: 1997, p. 57). E quebrar por dentro o Estado
anterior, inviabilizando suas funções de garantidor da reprodução
social. Esta é, em breves palavras, a proposta gramsciniana.
Gramsci percebe novas trincheiras de luta ao enxergar a possibi-
lidade de fundar a atividade do ‘seu’ ator em um cenário criado
para suprimi-lo, de forma que a possibilidade se concretize “molecu-
larmente” e “sob intenso controle político e social” (VIANNA: 1997,
p. 78). O realismo político de Gramsci, como se vê, pede de fato a
associação com as trincheiras, uma vez que a ‘guerra’ em questão se
dá na batalha diária, sob o solo das disputas cotidianas.
“A possibilidade não é a realidade, mas é, também ela, uma
realidade”, afirma Gramsci em referência às alternativas que po-
tencialmente podem constituir uma realidade, ou uma das possí-
veis (GRAMSCI: 1978, p. 47). Em sua análise do Risorgimento
italiano, Gramsci buscar raízes profundas do avanço do fascismo e
refletirá sobre o cenário que se apresentava do outro lado das gra-
des do cárcere:

“Nos últimos tempos, em muitas publicações sobre o Risorgimento,


“revelou-se” que existiam personalidades que viam claro etc. (...);
mas estas “revelações” (...) hoje demonstram que se tratava de
elucubrações individuais”. (...) [J]amais se fundiram com a reali-
dade factual, jamais se tornaram consciência popular-nacional ge-
ral e atuante” (GRAMSCI: 1978, p. 81).

13 WERNECK, Luiz Werneck. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 1997.

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A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

Já em Guerrilhas e guerrilheiros..., é Berardo quem constata: o Peru


explosivo não aconteceu. “[E]sse povo que somente esperava alguém que
acendesse a mecha” não ocorreu” (BERARDO: 1981, p. 173). As guer-
rilhas peruanas, como as de outros países, foram lideradas por jo-
vens de origem burguesa e não proletária, observa o autor. Sendo
este o resultado, não deve ser visto como a derrota simplesmente.
Acredito que ao forçarem as redes de proteção de regimes conser-
vadores e promoverem uma tensão das certezas hegemônicas – para
usar o conceito gramsciniano – as forças de oposição contribuíram
na América Latina para que houvesse condições de reflexão sobre a
existência de outros rios ou alguns afluentes possíveis, seguindo a
metáfora captada a partir do romance de Scorza. Seria inevitável
que a navegação se restringisse ao binômio progresso/revolução e
que se pagasse no presente o preço das “margens e das árvores
vivas” arrancadas em nome de um projeto futuro?
Como uma contribuição contemporânea, outro italiano,
Marramao, sugere que se passe da fase crítico-dissolutiva à propositivo-
construtiva (MARRAMAO: 1995, p.291). Um dos caminhos apon-
tados é superação da ideia de projeto, fundada na prospecção
futurológica que é inerente, afirma Marramao, ao moderno par
progresso-revolução. O fim da ideia salvífica do Estado como ins-
tância oniprojetante e produtivo-liberatória é um dos, ou o princi-
pal objetivo, visto que está na raiz da síndrome política percebida
pelo autor. A superação das formas centralistas de governo, que
passaram para a pauta não apenas do cenário político europeu, mas
também de outras regiões – como de países da América Latina –
exige constantes debates sobre o papel assumido pelos diferentes
atores políticos na sociedade. Dessa forma é possível colocar-se em
xeque o histórico de invisibilidade que alguns grupos viveram à
margem da dança imóvel das “conciliações”.14

14 Ao usar o termo, me amparo na conceituação feita por Michel Debrun, para quem a “conciliação”,
tal como analisada em passagens da história brasileira, “nunca foi um arranjo entre iguais, mas o
reconhecimento, por parte de um pólo social político menor, da primazia de outro pólo, mediante
algumas benesses e sobre o pano de fundo constituído pela exclusão da grande massa da popula-
ção”. Ver: DEBRUN, Michel. A “conciliação” e outras estratégias. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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Maria Luiza de Castro Muniz

Por fim, dedico algumas linhas ao desfecho dos personagens


Nicolás e Santiago, bem como à dupla idealização em jogo no ro-
mance de Scorza. Percebo que em A dança imóvel Scorza trabalha,
fundamentalmente, com modelos e antimodelos. Primeiro, o mo-
delo/antimodelo de mulher que Santiago encontra em Marie Claire.
Num momento, a expectativa do amor o faz optar por Paris e pela
amada. Em outro, a descoberta da traição e da verdadeira Marie
Claire faz com que Santiago inveje a escolha de Nicolás e a julgue
melhor que a sua. O outro é o modelo de revolução que Nicolás
Centenário com seus companheiros tenta aplicar à realidade peru-
ana, sem sucesso. O guerrilheiro morre acreditando ironicamente
que Santiago quem estava certo ao defender que “o ato definitiva-
mente subversivo é viver, a verdadeira Revolução é a felicidade
(...), a Revolução do Exterior só será realizada se triunfar primeiro
a Revolução do Interior” (SCORZA, p. 231).

V. “Mas também pode ser que tenha acontecido que...”


(A título de conclusão)

No penúltimo capítulo, Santiago se suicida. No seguinte, Mas tam-


bém pode ser que tenha acontecido que..., surge o fim alternativo inven-
tado pelo escritor. Ou seria ele o próprio personagem?
Com este trabalho, espero ter contribuído para alimentar pers-
pectivas de abordagem do tempo em meio à questão metodológica.
Encaro as eventuais falhas e faltas como estímulo para futuros tra-
balhos. Acredito que o propósito máximo tenha sido evidenciar a
possibilidade da alternativa na pluralidade (especialmente no cam-
po metodológico). Pretendi enfatizar a concepção da construção
conceitual do tempo desde o início da modernidade, passando pela
virada iluminista do século XVIII. A partir desta compreensão,
busquei mostrar como o romance de Scorza nos permite compre-
ender os conflitos e as buscas de certezas, confrontado com mode-
los de desenvolvimento, democracia, progresso, revolução, atraso,
felicidade; tudo isso aglutinado em uma lógica do tempo
hegemônica na América Latina. Ainda ressaltei formas de repre-
sentação da mulher com o intuito de caracterizar as relações e sen-

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A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

timentos que identificam não apenas o homem peruano e as


especificidades em relação à figura feminina representada na Pacha
mama, mas observando elementos compartilhados e expressos na
adoração a La Virgem, por exemplo.
Por fim, menos que a ‘acronia’ (ausência de tempo) ou ‘atopia’
(ausência de espaço) que o ‘poder do instantâneo’ teria sobreposto
ao poder diferenciador do tempo15 tendo a perceber a existência/
resistência de uma múltipla temporalidade que a todo o momento
confronta a hegemonia do “tempo-estático”. Sim, pois, a acelera-
ção do tempo parece ter produzido sobre este o efeito da rotação
sobre a Terra.
Joaquim Nabuco fixou os traços da cultura política no que se
refere ao ator e aos fatos: “Há duas espécies de movimento em
política: um, de que fazemos parte supondo estar parados, como o
movimento da Terra que não sentimos; outro, o movimento que
parte de nós mesmo” (NABUCO apud VIANNA: 1997, p. 15).
De fato, giramos tão rápido (em relação ao universo) que temos
a sensação de estarmos parados. A analogia só não é completa por-
que se acreditamos que estamos parados, ou seja, se tomamos como
verdade o fato de que os efeitos da aceleração do tempo são imutá-
veis, de que a lógica do mercado é inalterável, de que a eficiência
da ratio maximizadora na administração pública e na política em
geral se sobreponha à importância do conflito como porta para
alternativas; enfim, acreditar que estamos parados é estarmos real-
mente parados. „

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15 Esta passagem é uma alusão ao trabalho de Paul Virilio (VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de
Janeiro, Editora 34, 1993) ao qual se refere Marilena Chauí: CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

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Dossiê América Latina
A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica

A dança imóvel de Scorza e o tempo como ferramenta metodológica


Maria Luiza de Castro Muniz

Resumo Abstract
Com este trabalho objetivo analisar o li- The peruvian Manuel Scorza’s (1928-1983)
vro A dança imóvel, do peruano Manuel romance, La danza inmóvil, and the three ti-
Scorza (1928-1983) e os três tempos que mes that intercross his narrative are analyzed
se entrecruzam na narrativa: o de dois in this article. It’s about the two contrasting
personagens contrastantes e o do próprio character’s time and the author’s himself.
autor. A biografia de Scorza é marcada por Scorza’s biography is marked by political dis-
contestações políticas, pelo exílio e pela putes, by the exile and the participation in
participação em movimento indigenista. indigenous movements. Studying his fiction
Por meio de sua ficção de exilados latino- story about latin american exiles and about a
americanos e de um guerrilheiro em fuga guerrilla escape into the Amazon jungle, my
pela selva amazônica, buscarei abordar o purpose is to investigate the use of time as a
uso do tempo como ferramenta methodological tool prioritized in the studies of
metodológica a ser priorizada nos estudos Political Science. The focus will be on the period
da Ciência Política. O recorte será o da of the 60’s and 70’s in Latin America, where
obra, se restringindo aos anos 60 e 70 na the confrontation between political forces was,
América Latina, quando o enfrentamento in different countries, like a battle of different
entre forças políticas consistiu, em diferen- conceptions of time: past and future, delay and
tes países, numa luta de tempos: futuro e progress. In other words, the clash was between
passado, atraso e progresso. Melhor dizen- different conceptions of these terms. It’s good
do, o embate se dava entre diferentes con- to emphasize that there is still a dispute for the
cepções sobre estes termos. Destaque-se meaning of such words. I therefore propose to
ainda a disputa que perdura por significar re-think the concepts of development and
tais elementos. Proponho, portanto, repen- democracy, for example, under the light of the
sarmos as concepções de desenvolvimento multiple temporalities and of the socio-cultural
e democracia, por exemplo, à luz das múl- diversity characteristics in the region.
tiplas temporalidades e da diversidade
sócio-cultural características da região. Key words
Metodology – Latin American literature –
Palavras-chave dictatorship – Latin America
Metodologia – literatura latino-americana
– ditadura – América Latina

E-mail:
muniz.malu@gmail.com

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