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Abstract. This is a case study carried out with a victim of sexual violence
who became pregnant and had, as a result, the continuity of pregnancy
after being denied legal interruption. The objective was to understand the
proximal processes lived by the participant from the rejection to the accep-
tance of gestation from the assumptions of the Bioecological Approach to
Human Development (ABDH). Data were collected at a hospital in the city
of Fortaleza (Ceará State), through two interviews, with semi-structured
characteristics. Four categories of analysis were delineated, ranging from
the characteristics of the participant, the changes undertaken over the time,
the interference of the contexts to the proximal processes experienced from
the phase of rejection to the phase of greater attachment to the pregnancy/
child. It was observed that even in adverse situations, as in the case of sexual
violence and unwanted pregnancy, it is possible to resignify the experience
and to look at the pregnancy/child in another way, mainly due to the in-
terference of other systems involved (family and professionals), also that
the understanding of this phenomenon needs to contemplate the multiple
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo
permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Gravidez pós-estupro: considerações com base na Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano
famílias (Martins e Szymanski, 2004); vítimas 2014), fazendo muita diferença nesta mudança
de violência sexual (Lordello e Costa, 2014), de sentido as características pessoais, a influên-
entre outros. Acerca do último, destaca-se cia dos contextos e a ação do tempo.
que Lordello e Costa (2014) descrevem a ex- Deste modo, o presente artigo tem como
periência de uma mulher vítima de violência objetivo realizar um estudo de caso de uma
sexual com um filho recém-nascido a fim de vítima de violência sexual que engravidou
identificar os principais impactos psicológi- e teve como desfecho a continuidade da ges-
cos no desenvolvimento da relação mãe/bebê tação após ter sido negada a interrupção le-
nessa situação adversa. O referente estudo é gal. Pretende-se compreender os processos
de grande valia para este e outros sobre vio- proximais vividos pela participante desde a
lência sexual e gravidez por retratar um tipo rejeição à acolhida da gestação. Para isso, o
de vivência sobre a gravidez fruto de violência caso em questão será descrito com base nos
sexual, no caso a respeito da relação mãe-bebê. pressupostos da Abordagem Bioecológica do
No entanto, o estudo atual diferencia-se Desenvolvimento Humano (ABDH) e, mais
por dar ênfase aos processos proximais viven- especificamente, tomando os quatro núcle-
ciados por uma mulher, grávida decorrente de os Processo-Pessoa-Contexto-Tempo (PPCT)
estupro, que ao ser negada a interrupção legal como eixos de análise do mesmo.
da gestação teve que dar continuidade à mes-
ma, tendo vivenciado processos de rejeição à Método
gravidez e à criança e posteriormente de maior
aproximação afetiva ao bebê enquanto ainda
encontrava-se gestante. Também são poucos Delineamento
os estudos que retratam a experiência das mu-
lheres grávidas decorrente de estupro, tendo O estudo consistiu na realização de um
sido localizados em pesquisa de revisão siste- Estudo de Caso de uma mulher que engra-
mática da literatura (RSL) nas bases de dados vidou decorrente de Violência Sexual e teve
IndexPsi, SciELO, LILACS e PsycInfo, no ano como desfecho a continuidade da gestação.
de 2014, apenas seis produções na área. Estas Utilizou-se a metodologia de Estudo de Caso
versavam predominantemente sobre expe- Único por ser mais apropriada nas ocasiões de
riências de continuidade da gestação, sendo casos raros ou extremos, em que não existem
destacado nos estudos: os aspectos positivos muitas situações semelhantes para que sejam
(Cantelmo et al., 2011) e negativos na relação feitos outros estudos comparativos; e, quando
mãe/bebê (González et al., 1999), o manejo na presença de casos reveladores, que permi-
dos profissionais para com o caso (Moura et tem o acesso a informações não facilmente dis-
al., 2001; Santos, 2012) e a sugestão de parto poníveis (Stake, 2005).
cesárea (Vertamatti et al., 2009). Num estudo A escolha pelo caso a ser explorado neste es-
foram retratadas as experiências de mulheres tudo deu-se em virtude da complexidade que
que interromperam a gravidez, tendo sido o mesmo apresenta ao descrever a experiência
abordados os fatores motivacionais indicados de uma mulher grávida decorrente de estupro
para isso: o repúdio pela gravidez; o vínculo e que precisou dar continuidade à gestação por
da gravidez à violência; a lembrança da vio- ter sido negado o direito à interrupção legal, em
lência e do agressor, dentre outros (Drezett et virtude do período gestacional excedido. Além
al., 2011). Desta forma, verifica-se que são es- disso, porque destoa das experiências de ou-
cassas as pesquisas que abordam as experiên- tras mulheres que foram assistidas pelo serviço
cias das vítimas, especialmente articulando-se de saúde por conta desse dilema (querer inter-
à ABDH como se propõe neste estudo. romper versus ter que dar continuidade) e das
Os processos proximais vivenciados por uma recomendações da NT do Ministério da Saúde
mulher vítima de violência sexual e grávida ten- quando prescreve a assistência imediata à vítima
dem a ser mais negativos, a exemplo dos pro- quando da ocorrência da violência, a anticoncep-
blemas de ordem física, social e emocional que ção de emergência e a realização da interrupção
podem ser desencadeados em razão da violência legal da gestação (Ministério da Saúde, 2012).
sofrida. Contudo, a experiência de atendimento,
da primeira autora, a essas mulheres, bem como Participante
a literatura indicam que há casos em que as víti-
mas conseguem dar novos significados à expe- A participante do estudo, chamada de Ana
riência (Cantelmo et al., 2011; Lordello e Costa, (nome fictício), engravidou como resultado
pitalar da participante, quando ela dava sinais ganização Mundial de Saúde, abortamento é
de maior vinculação com a criança. A pesquisa a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª se-
que originou este estudo foi submetida ao Co- mana e com produto da concepção pesando
mitê de Ética da Universidade de origem das menos que 500g (Ministério da Saúde, 2012)
autoras, tendo sido aprovado conforme pare- não havendo indicação para interrupção legal
cer de nº 625.809 de 25/04/2014 e do hospital após a 20ª semana, mas sim orientação quanto
pesquisado de nº 2310094836735/2013. aos procedimentos para a adoção da criança.
Diante da impossibilidade de realização do
Resultados e discussão aborto, Ana possuía duas possibilidades - con-
tinuar a gestação e ficar com a criança ou con-
Esta seção está organizada em dois momen- tinuar e encaminhar para a adoção.
tos. No primeiro, faz-se uma síntese do caso; e Durante a primeira entrevista no hospital,
no segundo, descreve-se as categorias identifi- a participante mencionava e transparecia seu
cadas a partir dos núcleos da ABDH: o proces- sofrimento intenso, de quem não queria levar
so, a pessoa, o contexto e o tempo (PPCT), es- a gravidez adiante e tinha a vida como termi-
tando organizados por: (1) A pessoa Ana: suas nada. Após cerca de 40 dias, Ana foi novamen-
forças, recursos e demandas; (2) as mudanças te entrevistada e também no hospital de acor-
empreendidas na história de Ana ao longo do do com sua escolha. Segundo a mesma, já era a
tempo; (3) a interferência dos Microssistemas segunda vez que retornava ao hospital para as
família e equipe multiprofissional nos proces- consultas referentes ao pré-natal, após a inter-
sos vitais de Ana; e, (4) da rejeição à fase de nação. Ana com vestido rosa e sorriso no rosto
maior vinculação à gravidez e ao bebê. se encontrava emocionalmente melhor. Ela es-
tava na casa dos pais, que passaram a apoiá-la
Síntese do caso em sua gravidez e na ocasião preocupava-se
com a maternidade e com a chegada da filha,
Ana, 20 anos, raça/cor parda, de religião pois já sabia o sexo da criança. Segundo infor-
católica, é solteira, possui ensino médio com- mações posteriores, Ana retornou ao hospital
pleto e trabalhava na época da primeira en- ainda outras vezes para consultas e meses de-
trevista na área de comércio/serviços. Che- pois para ter a criança por parto cesárea. Sem-
gou ao hospital acompanhada de uma amiga, pre que possível faz contato com o Serviço de
que logo foi embora ao saber da tentativa de Psicologia do hospital e envia fotos da filha.
aborto por Ana. Foi internada devido sangra-
mento vaginal decorrente de tentativa ilegal A pessoa Ana: suas forças,
de aborto por uso de medicamento que tem
como efeito secundário a função abortiva. recursos e demandas
Ana, como outras mulheres atendidas no
hospital, chegou ao serviço com os efeitos ad- A pessoa em desenvolvimento apresenta
versos da tentativa ilegal do aborto. Foi inter- grande destaque no modelo bioecológico. De
nada e só posteriormente relatou ao médico acordo com Bronfenbrenner e Morris (1998),
que havia sofrido violência sexual e havia en- as características da pessoa não são estáticas e
gravidado como decorrência disso. A família podem ser transformadas, ainda que esteja
de Ana ao saber de sua gravidez a expulsou submetida a condições adversas. A capacidade
de casa, tendo a mesma buscado ajuda com de influenciar os processos proximais está dire-
a amiga referida anteriormente. A jovem não tamente ligada a três grupos de características
revelou a violência à família por medo de re- pessoais, como disposição, recurso e demanda.
taliações por parte dos agressores (dois co- As disposições dizem respeito às forças que
nhecidos) que a ameaçaram de morte e por impulsionam ou dificultam os processos pro-
temor à forma como a família poderia reagir. ximais e podem apresentar-se em dois grupos:
Segundo registros do primeiro atendimen- forças geradoras ou generativas e forças desor-
to psicológico de Ana, esta se descrevia como ganizadoras ou inibidoras. No caso de Ana pô-
desesperada e desprotegida. Ana permaneceu de-se observar a presença de ambas as forças,
no hospital por cerca de cinco dias, tendo neste interferindo em seus processos vitais ao longo
período manifestado o desejo de interromper da permanência hospitalar e posteriormente à
a gestação. No entanto, devido sua gestação sua alta. Inicialmente, destacavam-se as forças
concentrar-se na 22ª semana, a autorização desorganizadoras ou inibidoras, manifestadas
para o aborto legal foi negada. Segundo a Or- pelo desespero e descontrole emocional diante
da situação da violência sexual, da gravidez, da mento e não julgamento por parte da equipe;
impossibilidade de não mais interromper a ges- e, a aceitação da gravidez por parte da famí-
tação e do desamparo decorrente da ausência lia, a relação de Ana com a criança foi sendo
de seus entes familiares. Posteriormente, com o construída. Percebe-se claramente a mudança
suporte emocional recebido pela equipe de saú- de sentido dada à criança quando Ana viven-
de do hospital, enquanto permanecia internada cia uma situação que para ela era de risco à
e também com seu retorno à casa dos pais, Ana vida da criança, fazendo-a dar conta de que
deu indícios da presença de forças generativas existiam mais laços entre ela e a criança do que
em seu desenvolvimento, tais como a vontade poderia imaginar.
de viver. Sugere-se que o suporte recebido por
parte dos profissionais durante a internação e a Eu pensei assim que eu... até naquele dia mes-
acolhida recebida por parte da família ao acei- mo eu pensei que eu nunca conseguiria gostar...
tá-la novamente em casa potencializaram novas Mas... a partir assim do dia mesmo que eu, é...
perspectivas de vida em Ana que foram essen- tipo assim, eu tive quase assim um choque mesmo
ciais para as mudanças ocorridas. de realidade [...] Aconteceu uma confusão, vizi-
nho à minha casa né... ai foi naquele dia mesmo
As demandas dizem respeito aos atributos
ali que eu descobri que eu gostava tanto, que eu,
da pessoa e fazem menção aos aspectos que es- sei lá... nem imaginava, eu preferia morrer do
timulam ou desencorajam as reações do am- que perder... Foi, porque aconteceu uma confu-
biente social imediato, de maneira a manter ou são muito grande, aí eu fiquei muito nervosa e
romper as conexões com o processo proximal. tive um sangramento. Aí eu fiquei tão nervosa
Desta maneira, tanto a equipe multiprofissio- que eu não sentia mais se mexer, ai... meu Deus
nal como a família de Ana ao recebê-la em casa do céu, eu enlouqueci. Fui pro hospital, chorava...
novamente foram essenciais para o seu resta- aí quando a médica colocou um aparelho pra es-
belecimento, tendo estimulado novas formas cutar o coração, que eu escutei, aí aquilo ali me
de lidar com a situação da gravidez e com a deu um alívio tão grande. Aí foi naquele dia que
eu caí na real, que eu vi que eu não ia conseguir
criança. Os atendimentos da equipe multipro-
dar pra ninguém. Que eu vi que... que eu gostava
fissional possibilitaram acalmar e acolher Ana,
tanto e não sabia. (Ana-E2)
enquanto permanecia internada, tendo sido
muito importante para sua recuperação.
Os recursos são aspectos biopsicológicos
Só a única coisa que eu tenho certeza é que eu
que englobam experiências, habilidades, co-
perdi tudo, que todos os meus sonhos foram em- nhecimentos e capacidades necessárias para o
bora. (Ana-E1) funcionamento eficaz dos processos proximais
em um determinado estágio de desenvolvi-
Eu sempre converso com as psicólogas, com as mento. A capacidade comunicacional e intera-
assistentes sociais, elas são muito legais, todo dia cional de Ana com os profissionais da equipe
me procuram para conversar. (Ana-E1) de saúde durante sua permanência no hospital
foi muito importante para que ela conseguisse
É... me ajudaram em todos os sentidos. Foi, como
se fosse uma família mesmo pra mim naquele mo-
suportar os dias de internação, sem a presença
mento, que tava tudo tava tão difícil (Ana-E2) de seus familiares, nem informações sobre eles
e em datas comemorativas importantes (Natal
Também o contato com a família ao retor- e Ano Novo). Também o bom nível intelectual
nar ao lar foi capaz de gerar sensações positi- possibilitou a compreensão das informações
vas em Ana, sinalizadas na forma como ela se transmitidas pela equipe, que permitiu estar
reportava à atenção que à família passou a dar ciente de todos os procedimentos de saúde
em relação à criança. atenuando o desequilíbrio emocional inicial.
que ao saber da gravidez a expulsou de casa. primeira e a segunda entrevista foi importante
No entanto, a família de Ana desconhecia para que Ana pudesse dar um novo sentido à
ser a gestação fruto de violência sexual. Ana gravidez e à criança, considerando que a influ-
apresentava muito sofrimento e revolta pelo ência dos sistemas família e equipe de saúde
ocorrido da violência e da gestação, que não foram primordiais para que ela conseguisse
mais poderia ser interrompida. Além disso, a estabelecer novas relações a partir de então.
participante não vislumbrava perspectivas de
futuro, alegando que seu único desejo era o de Assim eu, eu ainda tenho assim, é, não vou dizer
interromper a gestação. Fazia referências de que eu ainda não tenho aquela mágoa né... por-
desprezo e repugna ao ser que gerava. que ainda tá muito recente. Um dia eu posso até,
chegar o dia que eu posso até perdoar, mas hoje
Eu não consigo ver nada melhor pra mim ago- não. Mas eu vejo que aquela criança, ela não pe-
ra. Porque eu vejo que eu perdi tudo, que eu não diu pra estar ali, ela não pediu. Ela não sabe como
posso fazer nada pra mudar isso. Porque a úni- foi que aconteceu, não foi culpa dela. Aí, agora
ca coisa que eu queria era tirar essa criança e eu eu comecei a entender isso. Aí tá sendo mais fá-
não posso mudar isso [...] Eu sinto uma grande cil, pra mim [...] Porque antes eu nem, assim, eu
vontade de morrer. Era tudo que eu queria nesse nem imaginava a ideia de criar né... Aí quando é
momento [...] Eu me sinto horrível. Eu me sinto agora que tá crescendo, que fica mexendo na mi-
mal com tudo. Eu tô carregando uma vida que eu nha barriga, eu fico vendo coisinha de criança...
não sinto nada por ela. Que até tem momentos Assim, a gente já começa a descobrir aquele amor
que eu chego até a ter raiva. Eu me sinto mal por que a gente achava que não ia descobrir nunca.
não gostar dela [...] Eu me sinto mal por eu tá Aí, quando eu tô em algum lugar que tem uma
me modificando totalmente por uma coisa que eu coisinha de criança, um sapatinho... uma coisa,
não desejo ter, que eu não planejei. Eu vendo meu eu já fico imaginando, fico imaginando o rostinho
corpo se transformando, a minha vida... Eu sinto quando nascer como seria. (Ana-E2)
muito uma revolta. Se eu pudesse eu tiraria com
minhas próprias mãos. Mas eu não posso [choro]. A interferência dos microssistemas
Eu não consigo aceitar. Cada dia fica mais difícil.
(Ana-E1) família e equipe multiprofissional
nos processos vitais de Ana
Compreende-se que, frente a situações
adversas como da violência sexual e da gra- Entende-se as diversas mudanças ocasio-
videz fruto desta, há uma natural propensão nadas na vida de Ana, da primeira entrevista
a vulnerabilidades (psíquicas, sociais e físi- para a segunda, principalmente decorrente do
cas), que se apresentam no momento vivido contexto, sobretudo a presença da família como
e desencadeiam processos a partir dessa ex- rede de apoio protetiva e do suporte dos pro-
periência. Nesse primeiro momento, tomada fissionais do hospital quando Ana ainda se en-
pelas vulnerabilidades, a solução percebida contrava sem o contato familiar. Acerca do mi-
por Ana como melhor para a situação vivida crossistema família, este pode tanto funcionar
era a interrupção da gestação, corroborando o como um fator de risco ou de proteção (Koller
estudo de Machado et al. (2015), em que nas et al., 2012). No caso específico analisado teve
mulheres entrevistadas a ideia sobre o aborto as duas funções, negligenciando inicialmente
apareceu como única saída para retomarem o sofrimento de Ana e, ao fim, dando o apoio
as suas vidas. No entanto, essa medida não necessário para a situação.
é mais possível e Ana não consegue aceitar o
fato de ter que gerar a criança. Somado a isso, Tem me dado apoio que eu pensei que eu não teria
Ana encontrava-se num contexto de desampa- [risos]. Eu imaginava tudo menos que eles iam
ro, sem o apoio da família ou de outros que aceitar e iam me ajudar. Foi totalmente sem es-
pudessem suprir esta falta e tendo que reagir perar. Hoje eu vejo que todo mundo tá se unindo
da forma mais adaptativa possível numa situ- pra... unindo todos pra poder ajudar pra poder
ação de extrema fragilidade em meio a uma ser da forma melhor. (Ana-E2)
internação hospitalar e com um ser que não
desejava gerar. O novo contexto de proteção para com a
No tempo da segunda entrevista, Ana en- díade mãe-bebê possibilitado pela família foi
contrava-se emocionalmente melhor, ainda extremamente importante para Ana ressigni-
ressentida com a violência sofrida, mas já dan- ficar a experiência da gravidez fruto de vio-
do sinais de aceitação da gestação e da crian- lência sexual e modificar os pensamentos e
ça. Ressalta-se que o tempo decorrido entre a sentimentos para com a gestação e a criança.
Apesar disso, a família continuava sem saber pela equipe de saúde do hospital ao longo dos
da história da violência sexual e a gravidez atendimentos, permitindo a elaboração dos
tomava a cena. Ana não conseguiu abordar aspectos emocionais na hora manifestados.
com a família a questão da violência sexual.
Os silenciamentos presentes no microssiste- Naquele... antes de... de eu vir pro hospital, eu
ma confirmam a presença de um alto grau de tava tão mal que eu não conseguia mais ver mi-
poder hierárquico entre os membros e a capa- nha vida assim é... se eu não resolver esses proble-
cidade reduzida de diálogo em ambientes fa- mas. Eu tinha vontade até de... eu tinha vontade,
só não tinha coragem de... é... tentar assim, algu-
miliares em que o abuso sexual está presente,
ma coisa, pra... até em suicídio eu pensava mas...
neste caso, de forma extrafamiliar (Lordello e A sorte é que eu vim pra cá. Pensava muita bes-
Costa, 2014). teira. É... me ajudaram a enxergar aquilo que eu
não tava vendo naquela hora. Que naquela hora
Não. Não sabem exatamente do que ocorreu, de eu conseguia ver só a tristeza, só o ruim. Eu não
como foi né... sabem da gravidez só [...] E eu te- conseguia ver que eu tinha... que eu conseguia
nho medo de contar pra eles. Eu não sei o que é passar por aquilo. Agora eu consigo, por mais
que eles... eu tenho dois irmãos mais velhos... eu difícil que seja, eu consigo. Hoje eu vejo que isso
não sei o que é que eles seriam capazes de fazer e é coisas que acontecem, que Deus é maior. E a
isso só ia tornar a história mais visível pra... pra gente sempre consegue. (Ana-E2)
várias outras pessoas. Eu prefiro esconder o que
aconteceu. (Ana-E2)
Na experiência de Ana é possível apreender
como os processos podem ser estimulados ou
A comunicação intrafamiliar precária e a
dificultados pelo microssistema, que é in-
posição hierarquicamente inferiorizada na
dubitavelmente um contexto transformador
configuração familiar são fatores de risco que
e que promove impactos inegáveis no de-
o eu ecológico percebe de forma ameaçadora
senvolvimento da pessoa que dele partici-
em seu desenvolvimento, fazendo com que
pa (Bronfenbrenner, 1999; Bronfenbrenner e
procure novos apoios em outros sistemas,
Ceci, 1994; Bronfenbrenner e Morris, 1998).
mais acolhedores. Inicialmente, Ana buscou a
Tanto a família como a equipe de saúde foram
ajuda de uma amiga, mas não obteve o supor-
primordiais para a vivência de novos proces-
te que esperava e posteriormente nas depen-
sos, mais positivos, na vida de Ana. Esta, de
dências do hospital pôde receber o conforto de
forma distinta da primeira entrevista, passou
que necessitava.
a manifestar pensamentos e sentimentos mais
A equipe multiprofissional foi substancial
positivos em relação à gestação e à criança.
para a melhora do estado emocional de Ana
Demonstrava interesse pela maternidade e
no tempo em que ela se encontrava sozinha e
vínculo com o bebê.
tendo que continuar uma gestação indesejada.
Em relação a essa assistência, todos os dias
Ana recebeu atendimento por diversos pro- Da rejeição à fase de maior
fissionais da equipe (médicos, enfermeiros, vinculação à gravidez e ao bebê
psicólogos e assistentes sociais), destacando-
-se nessa assistência a psicologia que realizava Sobre os processos proximais vivenciados por
mais de uma visita ao leito por dia, por com- Ana tem-se se uma primeira fase de rejeição à
preender a complexidade de fatores emocio- gestação e ao bebê e a segunda fase de uma
nais e sociais envolvidos neste momento de maior aproximação a estes. Essa última fase
vida da paciente. Nestes atendimentos eram culmina com a construção da maternidade e
feitas intervenções que visavam amenizar a si- outros processos existenciais voltados a novas
tuação vivida, através de acolhimento, da va- formas de pensar a ocorrência da violência se-
lidação das emoções, da clarificação das ideias xual e novos projetos de vida.
e do propiciamento de informações à paciente. Os processos proximais variam sistemati-
Isso só comprova como a atenção profis- camente em função das características da
sional pode minimizar os efeitos da violência pessoa, dos contextos nos quais interagiu ou
sexual e gravidez por meio de intervenções interage, da natureza dos resultados evoluti-
que sejam realmente acolhedoras e empáti- vos, das mudanças e continuidades sociais do
cas ao sofrimento da vítima, não meramente período sócio histórico em que a pessoa está
burocráticas e impessoais. A experiência gra- inserida (Bronfenbrenner, 1999). Deste modo,
vídica de Ana, fruto de violência sexual, pôde Ana vivenciou processos proximais específicos
ser acolhida e trabalhada em seus aspectos (aceitação e apoio) no contexto da família e
comportamentos individuais, a exemplo dos por parte dos profissionais que trabalham na
contextos envolvidos e do tempo decorrido área, sensibilidade para com essas experiên-
na experiência que agem sistemicamente nos cias, inclusive no sentido de que estejam aber-
processos vividos pela vítima (Esteves-de- tos para acolher mudanças de pensamentos
Vasconcellos, 2012; Narvaz e Koller, 2011). e de sentimentos não raras de acontecer nas
Deste modo, os processos vividos por Ana vivências das vítimas, como tentou-se ilustrar
de uma entrevista para a outra (intervalo de neste estudo a partir do caso de Ana, no que
cerca de 40 dias) apontam o quanto foi impor- se refere ao seu processo inicial de rejeição e
tante para as mudanças empreendidas em re- posterior de maior vinculação à criança.
lação à gravidez e à criança, a interferência dos Por isso, considera-se imprescindível aos
profissionais do hospital e de sua família. Su- profissionais que trabalham na rede de assis-
gere-se que o suporte recebido por parte des- tência às mulheres vítimas de violência sexu-
ses dois sistemas deu maiores condições para al e que engravidaram decorrente desta, uma
Ana poder vivenciar o progresso da gestação, compreensão mais ampla da mulher vitimada,
a maternidade e vincular-se à criança. segundo sua história pessoal, familiar e social
Ressalta-se que a perspectiva bioecológi- que interfere sistemicamente no desenrolar da
ca favoreceu o entendimento da trajetória de experiência de vida daquela. Entender a com-
desenvolvimento de Ana como um ser ativo plexidade dessa vivência é compreender que a
que recebe influências dos sistemas nos quais pessoa e seu entorno estão em constante mo-
está inserida ao mesmo tempo em que neles vimento e as emoções e comportamentos são
também exerce influência. Os resultados dessa motivados por inúmeras interações.
interação permitem que Ana encare a gravidez Em termos de sugestões para estudos fu-
e a maternidade sem desconsiderar sua histó- turos, recomenda-se a realização de pesqui-
ria de violência, mas recorrendo à rede social sas que busquem acompanhar as mulheres
e afetiva de forma a encontrar e potencializar que engravidaram e deram continuidade ou
seus recursos para lidar de forma mais sau- interromperam a gestação por um período
dável com os desafios e construir uma forma mais amplo de tempo. O acompanhamento
mais positiva de enfrentar as adversidades. longitudinal permitirá uma análise ainda mais
Nesse sentido, espera-se com esse estudo adequada das condições de vida e de saúde da
contribuir para o campo de estudo e interven- vítima de violência e de seu bebê, independen-
ções com vítimas de violência sexual e daque- te do desfecho que tenha optado.
las que engravidam, sobretudo pela mudança Ressalta-se que por mais que o apoio pre-
paradigmática na forma como as vítimas, a visto na Norma Técnica não determine período
violência e a gravidez são vistas a partir da mínimo para acompanhamento das vítimas, é
perspectiva da Abordagem Bioecológica, ou necessário que as mulheres vítimas de violên-
seja, compreendendo o fenômeno em sua am- cia que engravidaram sejam acompanhadas
plitude (pessoa, contexto, tempo, processos vi- por uma equipe técnica devidamente prepa-
vidos), ao invés de destacar somente uma par- rada também após o nascimento da criança
te do problema (e.g., a vítima). Somente uma e nos meses/anos subsequentes à opção pela
abordagem teórica que considere a importân- interrupção da gravidez. Ademais, ainda que
cia dos significados atribuídos por cada pessoa tenha sido mencionada a partir da fala de Ana
aos acontecimentos, que considere a múltipla passagens que representam a família dela ou
influência dos contextos sobre o desenvolvi- a equipe de profissionais do hospital, consi-
mento e que tenha um foco de análise nos pro- dera-se uma limitação do estudo a carência de
cessos desenvolvimentais poderá, de fato, se informações tecidas pela própria família ou
aproximar de uma visão que considere a VS equipe, as quais enriqueceriam ainda mais o
com a complexidade que esta exige. estudo de caso proposto.
As situações de gravidez decorrente de VS
desencadeiam muito sofrimento e angústia às Referências
vítimas, pois são muitos aspectos envolvidos,
seja pela violência e descoberta da gravidez, BARDIN, L. 2011. Análise de Conteúdo. Brasil, Edi-
por ter que tomar uma decisão quanto à inter- ções 70, 280 p.
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