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A PROTEÇÃO CONTRA O GENOCÍDIO

NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Wellington Pereira Carneiro e Silvia Menicucci de O. S. Apolinário

Quando não houver mais Yanomami, aí o céu vai cair de vez.


Quando os garimpeiros acabarem com os Yanomami, outros não
vão surgir de novo assim, não vão, não.
Davi Kopenawa, líder Yanomami, 1990.

1. Introdução

A história é marcada por genocídios que nunca foram levados a julgamento, dentre eles, o
massacre dos diversos povos indígenas das Américas, crime este que continua a ser praticado no
Brasil por motivos relacionados principalmente às terras indígenas e às riquezas naturais nelas
encontradas. Esse cenário tem como pano de fundo um discurso de discriminação e a ausência de
uma política de proteção efetiva dos direitos humanos dos povos indígenas pelo Estado.
Em âmbito internacional, após os horrores da Segunda Guerra Mundial, surgiram normas
jurídicas para punir os perpetradores do crime de genocídio - a Convenção das Nações Unidas para a
Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948) - e tiveram início os julgamentos de crimes
de guerra, crimes contra a humanidade, e crime de genocídio.
A referida Convenção contribuiu para que muitos Estados incorporassem ao Direito
doméstico a previsão do crime de genocídio, permitindo em tese seu julgamento por tribunais em
âmbito nacional. O Estatuto de Roma (1998), ao estabelecer o Tribunal Penal Internacional (TPI) e
abarcar sob sua competência o crime de genocídio, reforçou a complementaridade buscada entre o
doméstico e o internacional.
Os julgamentos em âmbito nacional de crimes internacionais contribuem para que se
estabeleça uma cultura de justiça e respeito à dignidade humana em momentos posteriores à
comissão dos crimes, os quais, em geral, alcançam grande repercussão na sociedade em que ocorrem
e mesmo perante a opinião pública internacional. Nesse contexto, julgamentos, envolvendo a prática
de genocídio, ocorreram em alguns países a partir da segunda metade do século XX. Todavia,
tornaram-se expressivos somente a partir da década de 19901.
Esses julgamentos podem, em sua grande maioria, ser agrupados em três amplas categorias 2:
a) Julgamentos ocorridos logo após a comissão do crime, em geral, relacionados com o colapso
de um antigo regime e, não poucas vezes, iniciados ainda quando as hostilidades persistiam;
b) Julgamentos ocorridos em Estados, cujos tribunais decidiram positivamente a respeito de sua
jurisdição em face dos atos criminosos, por considerá-los sujeitos à aplicação do princípio da
jurisdição universal;
c) Julgamentos ocorridos muitos anos após a comissão do crime porque não havia norma
jurídica para fundamentar o julgamento ou porque a pessoa acusada se manteve fora do
1
Como exemplo de países que promoveram julgamentos de perpetradores do crime de genocídio citam-se: Burundi,
Egito, Etiópia, Ruanda, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Guatemala, Haiti, México, Peru, Camboja, Indonésia,
Israel, Japão, Timor Leste, Alemanha, Áustria, Bélgica, Bósnia-Herzegovina, Croácia, Dinamarca, Finlândia, França,
Itália, Sérvia (Kosovo), Letônia, Lituânia, Holanda, Polônia, Romênia, Rússia, Reino Unido, Suíça, Suécia. Genocide
and internacional crime in domestic courts. Last updated July, 2003. Deve-se notar que em alguns desses julgamentos,
os perpetradores foram condenados por homicídio qualificado e outros crimes, apesar da menção à figura do genocídio,
em face da ausência de tipificação do crime no Direito doméstico.
2
SCHABAS, William A. National courts finally begin to prosecute genocide, the ‘crime of crimes’. Journal of
International Criminal Justice, vol. 1, Issue 1, p. 39-63, April 2003.
2

alcance da justiça ou a evidência não era suficiente ou ainda porque não havia vontade
política para julgar.
Nos tribunais brasileiros, a jurisprudência indica que os julgamentos relacionados ao crime de
genocídio não se enquadram em nenhuma dessas categorias. Eles ocorreram após a comissão dos
crimes, enfrentando dificuldades de investigação para produção de provas, e tiveram longa duração,
minimizando sua contribuição para o estabelecimento de uma cultura de justiça e respeito à
dignidade humana. Não foram precedidos, portanto, de uma mudança de regime, apesar dos casos,
que chegaram a ser apreciados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), terem alcançado essa instância
após a redemocratização do país. Também não foi o caso de aplicação do princípio da jurisdição
universal ou de punição por atos cometidos no passado, o que se espera ocorra em relação a crimes
cometidos no contexto do período ditatorial.
A jurisprudência indica que todos os crimes de genocídio julgados pelos tribunais brasileiros
tiveram como vítimas povos indígenas por motivos relacionados ao garimpo, à exploração florestal e
outras atividades ilícitas levadas a cabo por interesses pecuniários em terras indígenas. Isso
demonstra a ausência ou a insuficiência de uma política de prevenção ao genocídio por parte do
Estado, diante da repetição dos atos criminosos em áreas diferentes do país.
Algumas violações a direitos dos povos indígenas no Brasil ilustram essa realidade: as
atrocidades relatadas no desaparecido Relatório Figueiredo de 19673; a quase extinção dos Avá-
canoeiros do norte de Goiás e Tocantins 4; o escandaloso massacre do paralelo 11 dos Cintas-largas
de Rondônia em 19635; o massacre dos Xakriabás de Minas Gerais em 1987 6; o massacre do
capacete contra os Tikunas do Alto Solimões no Amazonas em 1988 7; o massacre de Haximu contra
os Yanomami em 1993 8; e o mais recente caso do Rio Pardo no norte de Mato Grosso contra os
Kayabi, Apiaká, Munduku e Tupi Kawahib, investigado pelas Operações Rio Pardo e Curupira.
Cumpre ainda notar que a repercussão desses crimes tem sido maior fora do Brasil do que em
âmbito interno, o que demonstra o distanciamento de grande parte da população das dificuldades dos
povos indígenas. Essa situação facilita a perpetração de crimes dessa natureza por fortalecer o
discurso de estigmação dos povos indígenas, os quais sofreram inúmeras violações que restaram
impunes. Em face desse quadro, o Poder Judiciário tem um papel imensurável na construção de uma
memória jurídica e de fortalecimento de uma cultura de justiça.
Alguns dos massacres mencionados foram ou têm sido objeto de processos judiciais,
notadamente perante as varas federais de origem, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1.ª Região, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF. A proteção contra o genocídio é uma necessidade

3
O "Relatório Figueiredo" foi escrito em 1967 pelo então Procurador Geral da República, Jader Figueiredo, e divulgado
em março de 1968, pelo Ministro do Interior, Albuquerque Lima. Durante uma entrevista coletiva, Lima tornou público
casos de corrupção no extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), assim como massacres de tribos inteiras por dinamites,
metralhadoras e envenenamento por açúcar misturado a arsênico. Alguns meses depois de revelado, o documento foi
considerado desaparecido. O Relatório, segundo o antropólogo Shelton Davis, continha provas que confirmavam as
denúncias de que agentes do SIP e latifundiários haviam usado armas biológicas e convencionais para exterminar tribos
indígenas, indicando a introdução deliberada de varíola, gripe, tuberculose e sarampo entre tribos da região do Mato
Grosso, entre 1957 e 1963. Além disso, os arquivos do Ministério do Interior sugeriam ter havido a introdução consciente
de tuberculose entre as tribos do Norte da Bacia Amazônica entre 1964 e 1965. DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre - O
desenvolvimento e os índios no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. Após a publicação, ocorreram investigações
e acusações, mas, todos ficaram impunes. SURVIVAL INTERNATIONAL. Los desheredados: indígenas de Brasil,
2000.
4
MOREIRA, Mara (dir.). Avá-canoeiros - A Teia do Povo Invisível. Documentário, 2006.
5
CAPOZZOLI, Ulisses. Violência na floresta: Cintas-largas, garimpeiros e o Massacre do Paralelo 11. Observatório da
Imprensa, ano 12, n.º 273, 20/4/2004.
6
O tempo passa e a história fica. Textos e ilustrações. Professores Xacriabá, em formação no Programa de Implantação
das Escolas Indígenas em Minas Gerais. SEE-MG/MEC: Belo Horizonte, 1997.
7
CIMI. Tribunal absolve mandante do massacre dos Tikuna e reduz penas de executores do crime. Informe nº. 638,
04/11/2004.
8
ROCHA, Jan. Haximu: o massacre dos Yanomami e as suas conseqüências. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2007.
3

histórica no Brasil e o mérito do julgamento do massacre de Haximu foi justamente trazer à


discussão jurídica essa realidade escandalosa e vexatória. Apesar de não ter sido a primeira
consideração da perpetração de genocídio pelo STF, foi um marco por abordar algumas questões
fundamentais ao crime, tais como o bem jurídico protegido, a competência para julgar e processar e a
conexão com os crimes que concretizam sua comissão.
Assim, este ensaio tem como objetivo analisar o julgamento pelo STF do Recurso
Extraordinário n.º 351.487-3/RR, cujo objeto foi o massacre de Haximu. Para tanto, inicialmente foi
traçado o histórico da tipificação do crime de genocídio no Direito Internacional pela Convenção
para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), bem como do processo de sua
internalização no ordenamento jurídico brasileiro. Apresentado esse panorama geral, adentrou-se ao
objeto específico – a resposta jurídica ao massacre de Haximu -, com análise dos precedentes, do
relato dos fatos e das questões fundamentais enfrentadas pelo STF. Por fim, foram também
brevemente analisados os casos levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
conexos às violações dos direitos dos Yanomami no Brasil e na Venezuela.

2. O crime de genocídio no Direito Internacional

2.1. Os fundamentos históricos do crime de genocídio

O processo de tipificação do crime de genocídio no âmbito internacional ocorreu de modo


intimamente relacionado à institucionalização da proteção aos direitos humanos, por meio da
codificação e do desenvolvimento do Direito Internacional no pós Segunda Guerra Mundial, sob o
impacto na sociedade causado pelo holocausto. Ainda que genocídios tenham ocorrido ao longo da
história, a palavra “genocídio” foi concebida somente no século XX, precedendo a tipificação penal.
A preocupação da sociedade internacional com o genocídio tem raízes no plano de
extermínio dos cristãos do Império Otomano, principalmente os armênios, traçado pela corrente
extremista turca e levado a cabo em 1915 9. A repercussão do massacre dos armênios despertou a
atenção para as lacunas do Direito, relativas à definição e criminalização de atrocidades, cometidas
nos limites de fronteiras nacionais, sob o manto da soberania, do princípio da não intervenção e do
questionamento do status do ser humano como sujeito de Direito Internacional 10.
Foi, nesse contexto, que a expressão “crimes contra a humanidade” foi usada pela primeira
vez, em uma declaração emitida pelos governos da França, Grã-Bretanha e Rússia, em 24 de maio de
1915, em que denunciaram as atrocidades cometidas contra os armênios. Essa noção voltou a
aparecer na Conferência de Haia (1919), na demanda pelo julgamento daqueles “culpados de
violações às leis e costumes da guerra e às leis de humanidade”. 11
Em 1933, o promotor judeu-polonês, Raphael Lemkin, propôs a codificação de dois crimes
internacionais - o crime de barbárie e o crime de vandalismo. O primeiro teria como escopo proibir a
destruição de nações, raças e grupos religiosos, enquanto o segundo visava proibir a destruição de
seus monumentos, objetos de arte e cultura. Em sua proposta, Lemkin chamou a atenção para a
ascensão do nazismo e a matança dos armênios e alertou para a repetição da tragédia, propondo um

9
O século XX já havia testemunhado outros massacres. Em 1903, ocorreu o massacre dos hereros, uma etnia indígena da
Namíbia atacada pelos colonizadores alemães do então sudoeste africano. Todavia, as barbáries cometidas em terras
distantes não ecoavam na Europa ou, se ecoavam, não despertavam comoção em razão da não identidade com as vítimas.
Nesse sentido, ver relato das barbáries da colonização belga do território correspondente à atual República Democrática
do Congo, antigo Zaire: HOCHSCHILD, Adam. O fantasma do Rei Leopoldo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
10
Em 14 de março de 1921 em Berlin, o sobrevivente armênio Soghomon Tehlirian assassinou Mehmed Talaat, o ex-
ministro do interior da Turquia e considerado um dos arquitetos do genocídio dos armênios, o qual nunca chegou a
responder pelos crimes.
11
KUPER, Leo. Genocide: its political use in the twentieth century. Yale University Press, 1981.
4

sistema de jurisdição universal para a punição dos crimes mencionados12. Sua proposta foi recebida
com ceticismo por uma Europa dividida por contradições e pelo nacionalismo do entre guerras.
Diante de “um crime sem nome” 13, Lemkin resolveu, em 1944, propor uma nova palavra -
“genocídio” (genos, radical grego, que significa grupo, raça ou tribo e cidio, derivado do radical
latino caedere, matar) -, e retomou sua proposta de um tratado internacional voltado a proibir a
destruição de grupos humanos em bases discriminatórias 14.
Ao final da guerra, o mundo ficou estarrecido com a liberação dos campos de concentração
e a realidade superou amplamente os relatos mais catastróficos, os quais permaneceram, por muito
tempo, desacreditados, apesar do esforço de alguns para documentar as atrocidades dos nazistas nos
territórios ocupados. Verificou-se que milhões de soviéticos, judeus, ciganos, poloneses, comunistas,
sindicalistas, homossexuais, mestiços, deficientes físicos e mentais e outros “indesejáveis” haviam
sido exterminados. Entretanto, o crime de genocídio ainda não estava tipificado.
O genocídio não chegou a ser inserido no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg, que julgou crimes contra a paz e a humanidade, e crimes de guerra, com fundamento no
Direito Consuetudinário e no Pacto Briant-Kellogg (1928). Os elementos do tipo penal foram sendo
delineados nos julgamentos do pós guerra, e a palavra genocídio foi expressamente mencionada em
acusações e sentenças dos Tribunais Militares de Nuremberg, organizados pelas autoridades dos
Estados Unidos, de 9 de dezembro de 1946 a 13 de abril de 1949 15.
Com a constituição das Nações Unidas e o começo do funcionamento da Assembléia Geral,
as respostas da sociedade internacional para o mundo pós-holocausto começaram a ser construídas
por meio do sistema internacional de direitos humanos, das Convenções de Genebra sobre Direito
Internacional Humanitário (1949) - com destaque ao papel do Comitê Internacional da Cruz
Vermelha -, da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados (1951), e do Direito Internacional Penal.
A criminalização internacional do genocídio teve lugar nesse contexto.
Em 11 de dezembro de 1946, a Assembléia Geral, em sua primeira sessão, adotou a
resolução 96 (I)16, na qual reconheceu o genocídio como um crime perante o Direito Internacional e
afirmou: “(...) o genocídio é a recusa do direito à existência de grupos humanos, da mesma forma
que o homicídio é a recusa do direito à existência a um individuo”. A resolução 96 (I) estabeleceu as
bases para as negociações posteriores: definiu os grupos protegidos; excluiu qualquer imunidade de
atuação em capacidade oficial ou de chefe de Estado; estabeleceu o princípio da cooperação
internacional para a prevenção e a repressão do crime; e encarregou o Comitê Econômico e Social de
realizar estudos para a elaboração de uma convenção internacional a respeito do tema.
A resolução incluiu os grupos políticos entre os protegidos, o que se transformou em uma
das maiores polêmicas nos trabalhos de redação da Convenção posteriormente adotada. Em pouco
tempo, o conceito de genocídio foi se formando nos tribunais e na doutrina. 17

12
POWER, Samantha. “A Problem from Hell”, America and the Age of Genocide. New York: Perennial, 2003, p. 7-19
13
Em 24 de agosto de 1941, dois meses após a Alemanha invadir a URSS, o Primeiro Ministro britânico Winston
Churchill falou em rádio e descreveu a barbaridade das tropas SS: “Nós estamos na presença de um crime sem nome”.
14
Em 1944, Lemkin publicou o livro “O papel do eixo na Europa Ocupada” (The Axis Role in Occupyed Europe).
Lemkin convenceu o editor do Jornal The Washington Post a adotá-la para descrever os crimes nazistas, o qual asseverou
que tais crimes eram deliberados, sistemáticos, com um propósito em si mesmo. Começava, assim, a se formar o conceito
do dolo especial no crime de genocídio - a intenção de destruir o grupo em si.
15
Os julgamentos ocorreram de acordo com a Lei do Conselho de Controle dos Aliados n.º 10, de 20 de dezembro de
1945, e podem ser analisados em http://www.mazal.org/Default.htm (The Mazal Library, A holocaust resource). No caso
Einsatzgruppen, que julgou as atividades dos grupos de extermínio, a palavra genocídio foi usada pela promotoria ao
afirmar que os atos, condutas e planos (perseguições por motivos raciais e religiosos, extermínio, atos desumanos
cometidos contra a população civil etc.) eram “parte de um programa sistemático de genocídio, voltado à destruição de
nações estrangeiras e grupos étnicos”. United States of America vs. Otto Ohlendorf et al.
16
General Assembly resolution 96 (I), 11 December 1946, The crime of genocide.
17
Nos Tribunais Militares de Nuremberg, no caso Alstötter (United States of America vs. Josef Alstötter et al),que julgou
16 juristas e advogados alemães por implementar o programa de pureza de raça por meio de leis raciais e eugênicas, a
resolução foi citada; assim como, no caso RuSHA (United States of America vs. Ulrich Greifelt et al), em que os 14
5

O Secretário-Geral das Nações Unidas consultou o Secretariado da Divisão de Direitos


Humanos para a preparação de um esboço da Convenção. Esse órgão convidou três especialistas para
a elaboração da proposta preliminar de texto: Raphael Lemkin, Henry Donnedieu de Vabres,
professor da Universidade de Paris e juiz do Tribunal de Nuremberg, e Vespasian V. Pella, professor
romeno de Direito, presidente da Associação Internacional de Direito Penal. Os travaux
preparatoires da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio foram marcados
por divergências, devido às imensas dificuldades doutrinárias e políticas inerentes à tipificação de
um crime caracterizado por imensa complexidade.
Em relação à inclusão ou não de grupos políticos na proteção da Convenção, Lemkin foi a
favor da não inclusão por considerar que aos grupos políticos faltava a permanência necessária,
característica dos grupos religiosos, raciais, étnicos e nacionais 18. O texto final limitou-se a se referir
à proteção dos grupos nacionais, étnicos, raciais e religiosos.
Em conformidade com o esboço da Convenção, o genocídio podia ser físico, biológico ou
cultural. A referência a essas formas de genocídio foi posteriormente abandonada, tendo, no entanto,
permanecido como ponto de discussão na doutrina 19. A idéia de genocídio cultural não foi tipificada,
mas, permaneceu latente como uma das formas pelas quais a intenção genocida se manifesta. Por
exemplo, no Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, a destruição de monumentos e outros
ataques à cultura, principalmente a destruição de mesquitas em áreas conquistadas pelas forças
sérvio-bósnias, foram considerados prova do dolo especial de destruir o grupo.
A resolução da Assembléia Geral 180 (II) 20, de 21 de novembro de 1947, determinou o
prosseguimento dos trabalhos e foi estabelecido o Comitê Ad Hoc pelo Comitê Econômico e
Social21, composto por representantes da Venezuela, Estados Unidos, União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), China, Polônia, França e Líbano.

2.2. A Convenção para a Repressão e a Prevenção do Crime de Genocídio

A Convenção para a prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio foi adotada em Paris,


França, em dezembro de 1948, por ocasião da 3.ª sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas.
O art. II define o genocídio e elenca os atos de genocídio:

Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes


atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
(a) Matar membros do grupo;
(b) Causar danos graves, físicos ou mentais à membros do grupo;
(c) Deliberadamente impor condições de vida calculadas a levar à
extinção física do grupo, no todo ou em parte;
(d) Impor medidas para impedir nascimentos no seio do grupo;
(e) Transferir forçadamente crianças de um grupo para outro grupo.

A característica que se transformou no traço fundamental do genocídio e que o difere de


outros casos de mortandades em massa, resultantes de conflito ou não, é o dolo especial.

acusados foram processados pela implementação do programa de pureza de raça, mediante seqüestro de crianças, abortos
forçados em mulheres não arianas, deportação de pessoas para campos de concentração por manterem relações sexuais
inter-raciais, perseguição de judeus, dentre outros.
18
A URSS se somou a essa opinião. É relevante relembrar os processos de Moscou, que significaram o extermínio de
milhares de pessoas, Kulaks, Trotskistas, buharinistas e outros “inimigos do povo”, com base em critérios políticos.
19
Donnedieu de Vabres e Pella foram contra a inclusão da noção de genocídio cultural por considerá-la uma extensão
indevida do conceito de genocídio, já que a proteção da cultura era uma preocupação do sistema de proteção de minorias.
De opinião contrária, Lemkin considerava importante a inclusão da questão cultural.
20
General Assembly resolution 180 (II), 21 November 1947, Draft Convention on Genocide.
21
Economic and Social Council Resolution 117 (VI), 3 March 1948, Genocide. [Doc. E/734].
6

A prova da intenção ou dolo especial22 tem sido uns dos grandes desafios da própria
tipificação do crime que freqüentemente vem acompanhado de atos de encobrimento e campanhas de
negação. A tentativa de caracterizar o genocídio como um conflito tribal, espontâneo e incontrolável,
ocorreu em Ruanda, sendo que essa versão foi difundida pela França, o que contribuiu à paralisia da
comunidade internacional para deter o genocídio. No caso de Haximu também se escutou rumores de
que se tratava de um enfrentamento entre os próprios indígenas.
Nesse particular, ordens e decretos com conteúdo racial, testemunhos orais e evidências
circunstanciais da intenção de eliminar o grupo têm sido de grande valor 23. Igualmente, a declaração
de que o grupo é inimigo do Estado ou de parte da sociedade, práticas de massiva violação,
impunidade e segregação, ataques a templos, bibliotecas e outras formas de destruição cultural foram
utilizadas como prova do dolo especial nos tribunais ad hoc de Ruanda e da Ex-Iugoslávia. Do
mesmo modo, a prática de “limpeza étnica” é amplamente aceita como prova de dolo especial.
A elaboração dos atos de genocídio foi menos polêmica e se baseou na experiência do nazi-
fascismo na Europa. Optou-se por uma lista exaustiva, ainda que algumas definições sejam gerais e
permitam uma margem de interpretação ampla. Por exemplo, no caso da alínea b do art. II, o
Tribunal Penal Internacional de Ruanda declarou que a mesma deve incluir todo ato que cause dano
grave físico ou mental, incluindo a prática de estupro e mutilações. A alínea c do art. II, por sua vez,
foi obviamente inspirada nos campos de trabalho forçado da Alemanha, onde muitos prisioneiros
padeciam à fome e às doenças antes mesmo de serem enviados às câmaras de gás.
O art. III estabeleceu os atos puníveis: a) o genocídio; b) a associação de pessoas para
cometer genocídio 24; c) a incitação direta e pública a cometer o genocídio 25; d) a tentativa de
genocídio; e) a co-autoria no genocídio.
A criminalização desses atos pretendia ser o enfoque preventivo. Todavia, terminou
provendo um suporte essencial à própria definição do crime, já que a existência de propaganda
discriminatória de ódio racial, a estigmatização de um grupo tolerada pelo Estado ou pelos grupos de
poder, que venham a cometer genocídio, passaram a constituir evidência. A investigação das
conspirações e cumplicidades também proporciona provas circunstanciais importantes de quem agiu
com dolo e quem apenas tolerou, ou se omitiu, em um processo que tenha resultado em genocídio.
A questão da jurisdição universal foi amplamente debatida nos trabalhos preparatórios.
Lemkin favoreceu sua inclusão, mas muitos representantes de Estados acharam prematuro. A maioria
dos membros preferiu incluir no texto o dever de julgar e punir atos de genocídio ocorridos em seu
território e a obrigação de extraditar pessoas acusadas de genocídio, o qual, como previsto
expressamente, não configura um crime político (art. VII). Além disso, acordou-se a respeito da
criação de um tribunal penal internacional para o julgamento do crime de genocídio.
O art. VI dispõe no seguinte sentido:
22
ABRAMS, Jason; RATNER, Steven R. Accountability for human rights atrocities in international law, beyond the
Nuremberg legacy. Oxford University Press, 2001.
23
A linguagem utilizada, em geral, encobre o crime, utilizando-se de códigos ou eufemismos para descrever o extermínio
planejado. Por exemplo, a solução final era referida como deportação. ROSEMAN, Mark. Os nazistas e a solução final;
a conspiração de Wansee: do assassinado em massa ao genocídio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Ver
também: ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. 2.ª Ed. São Paulo:
Companhias das Letras, 1989.
24
No esboço inicial, foram incluídos atos preparatórios, tais como a proibição de organizações racistas que advogassem
o ódio racial e pesquisas de armas de destruição em massa com fins genocidas. Essa última disposição fora inspirada pela
pesquisa de elaboração do gás Ziklom B, utilizado nas câmaras de gás de Auschwitz e outros campos de extermínio. A
proibição de organizações e partidos racistas foi prevista na Convenção Internacional para a Erradicação de Todas as
Formas de Discriminação Racial (CEDR) de 1965.
25
Os Estados Unidos se opuseram à inclusão de atos preparatórios, tais como conspiração, incitação e tentativa, por
considerar um perigo para a liberdade de expressão. A URSS, no outro extremo, insistiu na criminalização de qualquer
tipo de propaganda racista ou que incitasse ao ódio racial. Prevaleceu uma forma intermediária do art. III de incitação
direta e pública ao genocídio. Ficou a cargo da CEDR recomendar aos Estados-membros a criminalização da propaganda
racista, ainda que não seja explicitamente genocida.
7

As pessoas acusadas de genocídio ou de qualquer dos outros atos enumerados no


artigo III serão julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território foi
o ato cometido, ou pela Corte Penal Internacional competente com relação às Partes
Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição.

A Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio foi assinada por 41


Estados, tendo entrado em vigor em 12 de janeiro de 1951, quando alcançou o número mínimo de 20
ratificações, previsto no art. XIII26. Logo, seguiu-se a Guerra Fria e ela entrou em uma espécie de
dormência, sendo resgatada, principalmente, nos tribunais ad hoc para ex-Iugoslávia e Ruanda27. O
tribunal penal internacional previsto na Convenção não foi criado. A idéia foi retomada ao final da
Guerra Fria e se materializou por meio da adoção do Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional (1998). No entanto, a questão de prevenção e repressão do genocídio não deixou de se
desenvolver na doutrina e na jurisprudência internacionais, tendo sido tema de três casos
contenciosos e de um parecer (opinião consultiva) na Corte Internacional de Justiça (CIJ) 28.

3. A internalização do crime de genocídio no Brasil

A Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio foi firmada pelo


Brasil em dezembro de 1948. Seguiram os trâmites regulares para a aprovação do Congresso
Nacional. Em conformidade com o Projeto 633/195029, a mensagem n.º 450-49, datada de 17 de
setembro de 1949, foi submetida ao Congresso Nacional pelo Presidente da República, Eurico
Gaspar Dutra, acompanhada do texto da Convenção, da exposição de motivos do Ministro de Estado
das Relações Exteriores, Raul Fernandes, e dos pareceres da Comissão de Diplomacia e da Comissão
de Constituição e Justiça.
Na exposição de motivos, Raul Fernandes ressaltou que, na Convenção, as Partes
Contratantes assumiram o compromisso de prevenir e punir o genocídio, confirmando-lhe a
qualidade de crime contra o Direito Internacional. Destacou, ainda, que a Convenção não
apresentava incompatibilidade com os dispositivos legais vigentes no Brasil e encontrava apoio
perfeito na Constituição brasileira que assegurava a liberdade religiosa, condenava os preconceitos
raciais e continha dispositivos que buscavam limitar as diferenças de tratamento por motivo de
nacionalidade.30 Além disso, quanto à aplicabilidade, foi registrado que o Código Penal sujeitava à

26
Em 18 de janeiro de 2007, a Convenção de 1948 contava com 140 Estados-partes.
27
Nesse período, destaca-se, contudo, o julgamento de Eichmann em 1964 em Israel. ARENDT, Hannah. Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 1.ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ARENDT, Hannah.
Origens do totalitarismo, anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. 2.ª Ed. São Paulo: Companhias das Letras, 1989.
28
CIJ e genocídio: Casos contenciosos: 1) Application for Revision of the Judgment of 11 July 1996 in the Case
concerning Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bosnia and
Herzegovina v. Yugoslavia), Preliminary Objections (Yugoslavia v. Bosnia and Herzegovina), Registry date: 24 April
2001; 2) Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bosnia and
Herzegovina v. Serbia and Montenegro), Registry date: 20 March 1993; 3) Application of the Convention on the
Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Croatia v. Serbia and Montenegro), Registry date: 2 July 1999.
Opiniões consultivas (pareceres): Reservations to the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of
Genocide, Request for Advisory Opinion: 20 November 1950.
29
Projeto n.º 633, de 1950, da Comissão de Diplomacia, publicado no DCN de 29/07/1950, p. 5962.
30
“3. A referida Convenção define expressamente o genocídio e fixa os delineamentos da nova fugira delituosa, a qual
não apresenta incompatibilidade com os dispositivos legais vigentes no Brasil, podendo ser identificada com o homicídio
qualificado por interpretação mais ampla do art. 121, § 2.º, ns.º I e II, do Código Penal. (...) 4. A prevenção e a repressão
do crime de genocídio encontram perfeito apóio na Constituição brasileira, uma vez que na mesma a liberdade religiosa é
plenamente assegurada (artigo 141, §§ 7.º e 8.º) e se condenam os preconceitos raciais, cuja própria propaganda é vedada
(art. 141, § 5.º), não sendo tolerada, ainda, a diferença de salário para o mesmo trabalho, por motivo de nacionalidade
(art. 157, n.º II).” Mensagem n.º 450-49.
8

Lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil
tenha se obrigado a reprimir.
No parecer da Comissão de Diplomacia, o relator Vargas Neto ressaltou que a tese contrária
ao genocídio também estava “de acordo com as tradições brasileiras, com o espírito cristão de nossa
gente e a tolerância humana de nosso povo.” O parecer se inicia pela abordagem do drama que se
desenrolava na época na Grécia, registrando que os documentos trazidos pelo CICV à Comissão
Especial das Nações Unidas dos Balcãs faziam prova suficiente do plano de genocídio, praticado
sistematicamente por grupo de guerrilheiros, em atos de violência armada contra populações rurais,
com o rapto de criança e reféns. Posteriormente, faz referência à Antiguidade Oriental e à
Antiguidade Clássica, à Revolução Francesa, à Revolução Russa e ao regime então vigente na
URSS, ao extermínio de cristãos, gregos, armênios, judeus, polacos, e católicos. Mencionou ainda a
ação de Cromwell na Inglaterra, a Inquisição na Espanha e o Klu-Klux-Klan, nos Estados Unidos.
Após comentar os dispositivos da Convenção de 1948 e o significado da palavra
“genocídio”, o parecer firmou a memória dos trabalhos preparatórios, ao estabelecer que o professor
Lemkin testemunhou que a aprovação unânime do instrumento pela Assembléia Geral das Nações
Unidas “foi devida em grande parte, aos esforços latino-americanos”, e que o Tratado podia ser
considerado “a maior contribuição da América Latina ao Direito Internacional”. Registrou-se ainda
nesse contexto a menção de Lemkin aos delegados latino-americanos que tomaram parte ativa no
êxito da Convenção: Gilberto Amado, do Brasil; Ricardo Alfaro, do Panamá; Manini Rios, do
Uruguai; Raul Quijano, da Argentina.
O parecer observou que:

O genocídio é um crime coletivo que encampa muitos crimes individuais, agravando


assim a sua monstruosidade, porque o grupo que a pratica, além de violar os mais
sagrados direitos alheiros, ainda contribui para perversão de sua própria sociedade
pelo incentivo que oferece aos instintos bestiais, à perversidade que torna hábito e ao
espírito anti-social de seus indivíduos.

Por sua vez, o parecer da Comissão de Constituição e Justiça favorável à


constitucionalidade do projeto retomou o processo de adoção da Convenção de 1948, com referência
à resolução 46 (I) e às discussões posteriores. Interessante mencionar que, em mais de um momento
no parecer, os grupos políticos foram incluídos entre os grupos tutelados no crime de genocídio. Ao
relembrar a discussão nas Nações Unidas, relatou-se que “o genocídio é, precisamente, o crime de
destruição de grupos humanos raciais, religiosos, políticos ou outros.” Posteriormente, considerou a
importância da Convenção, diante das barbaridades de que ainda é pródiga a história contemporânea,
“que define como crime internacional, o extermínio de grupos humanos, por motivos raciais,
religiosos ou ideológicos.” Cumpre ressaltar que, diferentemente do registrado no parecer, a
Convenção não incluiu os grupos políticos ou motivações ideológicas no tipo penal de genocídio,
apesar dos mesmos constaram no seu esboço inicial.
Do exposto, conclui-se que, apesar de fazer referência a inúmeras barbáries da história, não
houve em momento algum, nos pareceres, menção às atrocidades cometidas em face dos povos
indígenas e/ou dos africanos, traficados e escravizados, marcantes na própria história do Brasil.
O texto da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio foi então
aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 2, de 11 de abril de 1951 31. O Presidente efetuou a ratificação,
em 15 de abril de 1952, e, em seguida, a promulgação por meio do Decreto n.º 30.822, de 6 de maio
de 195232.

31
Decreto legislativo n.º 2, de 11 de abril de 1951, publicado no DCN de 18/04/1951, p. 2135, e no DOU de 23/04/1951,
seção 1, p. 6193.
32
Decreto n.º 30.822, de 6 de maio de 1952, publicado no DOU de 09/05/1952, seção 1, p. 7785-7, e na Coleção de Leis
do Brasil, v. 4, 1952, p. 125.
9

Em 27 de abril de 1951, foi apresentado o Projeto 249/195133, de autoria de Adroaldo Costa,


que, em exposição de motivos, retomou os arts. II e III da Convenção e ressaltou que o Brasil, em
conformidade com o art. V, havia assumido o compromisso de tomar, de acordo com a Constituição,
as medidas legislativas necessárias a assegurar as disposições da Convenção e, sobretudo, a
estabelecer sanções penais eficazes aplicáveis às pessoas culpadas de genocídio ou de qualquer dos
outros atos enumerados no art. III. Como o texto havia sido aprovado pelo Congresso Nacional,
observou-se que mister se tornava cumprir o pactuado nos arts. II e III, pelo que se oferecia então à
consideração do Congresso o projeto de lei. Após cerca de cinco anos, foi editada a Lei n.º 2.889, de
1.º de outubro de 195634, que define e pune o crime de genocídio, cuja redação se espelha na
Convenção de 1948.

4. O Massacre de Haximu

4.1. Os antecedentes: um quadro de violações sistemáticas aos direitos humanos

Os Yanomani permaneceram praticamente isolados até as décadas de 1960 e 1970, quando


no marco da visão política da Amazônia pela ditadura militar - “ocupar para não entregar” - foram
iniciadas obras que terminaram em fracassos de engenharia e política territorial, dentre as quais
cumpre ressaltar a construção da Rodovia Perimetral Norte e a Transamazônica. Essas obras abriram
espaço para a invasão das terras indígenas e, somadas à descoberta de minérios valiosos, resultaram
em conflitos que culminaram no massacre de Haximu.
Nesse período, um número elevado de índios Yanomani pereceu vítima da ocupação
desordenada e da negligência criminosa das autoridades, por mortes causadas por doenças e
violência. Na primeira fase da grande mortandade dos Yanomani, morreram cerca de 1.500
indígenas, de malária, gripe, tuberculose e doenças venéreas, no universo de uma população ao redor
de 12 mil, em território brasileiro.
O modo de vida dos indígenas começou a se desagregar e eles passaram a mendigar na beira
das estradas. O alcoolismo e a prostituição se expandiram notavelmente entre os Yanomami. O
impacto das obras da Perimetral Norte foi devastador, mas, de certa forma, limitado às áreas
adjacentes. Porém, quando o garimpo se expandiu, afetou todo o território Yanomani e a vida de
centenas de comunidades.
À disputa territorial e ao problema sanitário que provocava a mortandade dos Yanomani
somava-se um colossal desentendimento cultural. Para os xamãs, pajés Yanomani que acreditam nos
espíritos da floresta, Omana o criador dos seres humanos escondeu Xawara, um espírito em forma de
vapor, nas profundezas da terra, para que não fosse tocado. No entanto, os napëpë, os brancos,
movidos pela cobiça libertaram pela mineração o Xawara que escapa como fumaça dos minérios e
provoca doenças nos Yanomani e nos garimpeiros. Portanto, devido às suas crenças, a presença de
garimpeiros e a mineração provocavam grande inquietação aos índios, que temiam que a fumaça-
doença atingisse o céu e provocasse seu desmoronamento.
Os grandes fluxos de garimpeiros para a região a partir de meados dos anos 1970 tiveram
um novo impulso no final da década de 1980, devido à política econômica do primeiro governo não
militar de José Sarney e à elevada cotação do ouro. A área Yanomani precariamente demarcada e a
batalha parlamentar em torno do parque forneceram o vazio jurídico, que foi preenchido por
inúmeras violações a direitos humanos. A falta de vontade política para adotar e cumprir o decreto de
reserva da área e outras leis de proteção aos indígenas foi um fator decisivo no caminho que levou ao
massacre de Haximu.

3333
Projeto n.º 249-1951, de 27/04/1951, publicado no DCN de 28/04/1951, p. 2465.
34
Lei n.º 2.889, de 1.º de outubro de 1956, publicada no DOU de 02/10/1956, seção 1, p. 18673, retificada e publicada no
DOU de 08/10/1956, seção 1, p. 19131, e na Coleção de Leis do Brasil, v. 7, 1956, p. 16.
10

Os anos 1980 e 1990 testemunharam uma nova crise sanitária nas áreas Yanomani, um
recrudescimento da posição dos garimpeiros, que se sentiam poderosos, com o apoio de autoridades e
empresários locais, e um aumento do registro de incidentes violentos. Foi nesse período que um caso
foi levado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos em face do Brasil, conforme analisado
adiante. O plano de redução da reserva indígena fora anunciado em 1988, e organizações não
governamentais e missionários nacionais e estrangeiros, incluindo agentes de saúde e antropólogos,
que atuavam no controle da crise sanitária, foram impedidos de acessar os territórios Yanomami,
enquanto os garimpeiros invadiam a área impunemente.
Os indígenas foram deixados à mercê dos invasores em uma escandalosa inversão do dever
de proteger. Em 1989, um programa emergencial de saúde foi implementado e as mesmas
organizações banidas foram chamadas para salvar os indígenas da crise sanitária provocada pela
negligência das autoridades. No entanto, já era tarde, em torno de 15% da população Yanomani do
Brasil tinha perecido em conseqüência da falta de proteção. Os protestos internacionais se fizeram
sentir, e o então Secretário-Geral das Nações Unidas, Javier Perez de Cuellar solicitou à Collor, eleito
em 1989, medidas urgentes para proteger os indígenas. Mas, as tentativas de retirar os garimpeiros
eram frustradas. Eles retornavam logo após a saída dos policiais, e retomavam as pistas de pouso
assim que tinham a oportunidade.
Em 1990, a Polícia Federal começou a destruir o maquinário da mineração e proceder à
retirada dos garimpeiros, pondo fim à mineração ilegal. Às vésperas de sediar a Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 1992, o Governo brasileiro anunciou
a criação da reserva Yanomani contínua, com 9,4 milhões de hectares, conforme proposto há uma
década. Após a cúpula, em que foram aprovados instrumentos importantes 35, com disposições a
respeito dos direitos dos povos indígenas, começou a crise política do governo Collor. Poucos meses
depois o bloqueio policial da reserva havia desmoronado e a FUNAI teve 80% de seu orçamento
cortado. No início de 1993, calcula-se que 12 mil garimpeiros haviam retornado ao garimpo na
reserva Yanomani. Em junho desse ano, aconteceu o massacre de Haximu.

4.2. Afinal, o que foi o Massacre de Haximu?

Haximu foi um desfecho lógico de um estado de coisas, em que a vida dos indígenas era
descartável36.
Como de praxe, os garimpeiros chegaram em pequenos grupos e tentaram comprar a
benevolência dos indígenas com farta distribuição de bens e comida. Os Yanomani que tinham pouco
contato com os não índios aceitaram as ofertas e se tornaram dependentes dela. Em um segundo
momento, o número de garimpeiros aumentou, assim como seu poder, e passaram a se sentir
dispensados de comprar a amizade dos indígenas que se transformaram em um estorvo. Por sua vez,
os indígenas começaram a sentir o impacto ambiental da presença garimpeira. O barulho das
máquinas espantava a caça, os rios foram poluídos pelo mercúrio, e os índios experimentaram uma
deterioração substancial de seus meios de subsistência, quando começaram a sofrer com as doenças
trazidas pelos garimpeiros. A busca de compensação em forma de comida e bens se transformou em
um impasse, evoluindo para a hostilidade.
Essa era a situação entre os garimpeiros brasileiros do Rio Taboca (Alto Orinoco,
Venezuela) e os Yanomani de Haximu em meados de 1993. As visitas dos índios eram freqüentes e
as promessas dos garimpeiros não eram cumpridas, quando um incidente desencadeou o conflito. Os
garimpeiros tinham prometido rede e munição a um jovem índio que as foi reclamar. Os garimpeiros
já se haviam re-apossado de uma espingarda que haviam dado aos índios. A promessa não foi

35
APOLINÁRIO, Silvia Menicucci O. S. Desenvolvimento sustentável na perspectiva da implementação dos direitos
humanos (1986-1992). In: Direito Internacional dos Direitos Humanos - Instrumentos Básicos. 2.ª ed. São Paulo: Editora
Atlas, 2007.
36
ROCHA, Jan. Haximu: o massacre dos Yanomami e as suas conseqüências. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2007.
11

cumprida e na discussão o empregado da balsa foi afugentado com um tiro de espingarda. Com a
balsa vazia os índios cortaram as redes e jogaram a lona no mato, levando panelas e um rádio.
No dia 15 de julho, seis índios da aldeia de Haximu chegaram a um barracão para pedir
comida e levar de volta a espingarda, conforme recomendação dos mais velhos. Receberam comida e
um bilhete a ser entregue na outra balsa, rio acima, com a promessa de que receberiam mais coisas.
No barracão seguinte, encontraram um grupo de garimpeiros e uma cozinheira que leu o bilhete e os
mandou embora bruscamente com alguns mantimentos e roupa. A mensagem do bilhete - “faça bom
proveito destes otários” - foi interpretada como uma sentença de morte, uma vez que os garimpeiros
já haviam cogitado matar os índios se eles voltassem a incomodá-los.
Os garimpeiros decidiram, então, atacar os índios na trilha. Assim, sete garimpeiros armados
os convidaram para caçar anta. Os índios, após hesitarem, por estarem quase desarmados, aceitaram o
convite. Quando um dos índios se embrenhou na floresta para defecar, passou a única espingarda em
propriedade dos índios a outro índio. Bruscamente, um garimpeiro imobilizou a mão do índio que
segurava a espingarda e atirou à queima roupa, matando-o com um tiro no ventre.
O outro índio se ajoelhou, tentando escapar da morte, e suplicou “garimpeiro amigo”,
contudo, foi fulminado com um tiro no rosto. Outros dois índios foram mortos, enquanto um terceiro
conseguiu se desviar de dois tiros, mas, acabou sendo atingido e se jogou nas águas do rio Orinoco,
ficando submerso até o nariz, vendo ao longe os garimpeiros enterrarem três dos mortos. O índio que
estava no mato, ao escutar os tiros, se jogou no rio e fugiu. Um dos corpos nunca chegou a aparecer,
tendo provavelmente caído no rio e sido levado pela correnteza. O jovem ferido foi descoberto, mas
no momento em que o garimpeiro foi buscar uma arma para matá-lo, conseguiu fugir. Até aqui,
contavam-se quatro indígenas mortos.
Enquanto isso, o outro sobrevivente conseguiu chegar à aldeia de Haximu com a notícia dos
assassinatos. Cerca de dois dias depois, voltou ao local do ocorrido, encontrando no caminho o índio
ferido, que revelou o local onde os corpos haviam sido enterrados. O enterro é considerado uma
profanação pelos Yanomani que cremam seus mortos, assim, eles desenterram os corpos, cremaram e
levaram os ossos carbonizados para os ritos funerários. Em seguida, organizaram uma caçada ritual e
foram convidadas três aldeias aliadas, Homoxi, Makayu e Toumahi, para formar um grupo de
guerreiros que vingariam os mortos, conforme a tradição, com ataques aos homens (jamais a
mulheres e crianças), de preferência os mesmos que perpetraram as mortes dos Yanomani. No dia 26
de julho, depois de dois dias de caminhada, o grupo de guerreiros acampou nas imediações do
garimpo. Na manhã seguinte, encontraram apenas dois garimpeiros. Mataram um deles com um tiro
de espingarda e outro foi ferido nas costas e nádegas, mas conseguiu fugir.
O ataque dos índios desencadeou uma mobilização furiosa para uma retaliação exemplar por
parte dos garimpeiros, que decidiram matar todos os índios das duas malocas que compunham a
comunidade de Haximu, um total de 85 pessoas. Quatro principais empresários dos garimpos da
região, conhecidos em Roraima, patrocinaram a empreitada genocida: contrataram quatro pistoleiros,
recrutaram homens em vários barracões, e juntaram espingardas e outras armas de fogo e caixas de
cartucho, além de facões e terçados. Algumas reuniões foram organizadas para planejar o ataque.
Constituíram um grupo de quatorze garimpeiros fortemente armados, além dos quatro pistoleiros
contratados.
Por sua vez, os habitantes de Haximu acamparam na mata a uma distância segura das
malocas para evitar contra-ataques. Esperavam um convite para participar de uma festa com seus
aliados de Mayaku, enquanto um grupo de três guerreiros empreendeu uma nova tentativa de ataque
que, no entanto, feriu um garimpeiro no braço e não fez vítimas. Eles voltaram e se juntaram a seus
parentes de Haximu.
Neste momento, os garimpeiros estavam a caminho do ataque, mas não encontraram
ninguém no local da comunidade. Incendiaram as malocas e continuaram no encalço dos indígenas.
Em tendo recebido o convite formal da aldeia de Mayaku, grande parte da comunidade de Haximu
foi para lá, deixando apenas alguns idosos e mulheres com crianças, além dos três guerreiros que
12

voltaram do ataque ao garimpo. Pela lógica Yanomani, mulheres, idosos e crianças não deveriam ser
atacados, logo, não corriam perigo.
Na manhã do dia 23 de julho de 1993, a maioria das mulheres saiu cedo para coletar frutas e
junto com elas foram quase todas as crianças. Por volta do meio dia, os garimpeiros localizaram o
acampamento e o cercaram. As crianças brincavam, algumas mulheres cortavam lenha e os idosos
descansavam em suas redes. Em rompendo a normalidade, um tiro de espingarda deu o sinal e todos
os garimpeiros avançaram abrindo fogo cerrado. Os três guerreiros, ágeis e preparados, escaparam.
Além deles, um homem e uma mulher de meia idade, três meninas conseguiram fugir pela floresta,
sendo que uma delas veio a falecer em razão do ferimento em sua cabeça uma semana após o
massacre.
Foram assassinados doze índios, entre os quais três mulheres adolescentes, duas idosas,
sendo uma cega, morta a golpes de pontapé, um idoso, uma mulher adulta, e cinco crianças de 1 a 8
anos de idade, sendo que o bebê de um ano, que estava em uma rede, foi embrulhado e trespassado
por um facão. Os garimpeiros mutilaram os corpos, destruíram tudo que encontram pela frente e
incendiaram as malocas. Ao perceber que não tinham exterminado todos os habitantes de Haximu,
dispararam um foguete para afugentar possíveis perseguidores e correram de volta ao garimpo.
No dia 17 de agosto, vinte e cinco dias após o ataque, o administrador da FUNAI em Boa
Vista recebeu uma carta manuscrita de Luzia Pereira Leite, missionária católica conhecida como irmã
Aléssia, que trabalhava para a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), no posto de saúde da aldeia
Yanomani de Xidéia. A irmã pedia a investigação do suposto massacre de indígenas em Haximu. No
dia seguinte a notícia chegou à FUNAI em Brasília, que requisitou um helicóptero da Força Aérea
para levar uma equipe à cena do massacre e comunicou ao Ministro da Justiça, Maurício Correia.
No dia 19 de agosto, a Folha de São Paulo alardeou que a FUNAI havia denunciado uma
chacina de índios, com crianças degoladas, o que não estava longe da verdade, e cerca de 70 vítimas.
Esse número era próximo da população alvo das duas malocas de Haximu, que não foi atingida por
um capricho do destino e não por falta de vontade dos garimpeiros. Essa confusão não tardou a ser
esclarecida. O incidente alcançou a imprensa internacional, gerando manifestações de organizações
não governamentais, de autoridades estrangeiras, em especial, dos Estados Unidos, Canadá e França,
assim como representantes das Nações Unidas, sendo que a Comissão de Direitos Humanos recebeu
a notícia do próprio território indígena por meio da CCPY 37.
Em 25 de agosto, 69 sobreviventes de Haximu chegaram à maloca do Marcos, entre eles três
feridos à bala. Os garimpeiros, por sua vez, ouviram pela rádio a notícia do massacre, dirigiram-se à
pista de pouso mais próxima, ameaçaram matar quem os delatasse e se dispersaram. Alarmados com
a possibilidade de novos ataques, dezenas de Yanomani buscaram outras aldeias em busca de
proteção, um êxodo silencioso teve lugar na floresta, enquanto a notícia corria o mundo e
aumentavam as pressões para a retirada definitiva dos garimpeiros, com protestos em frente às
embaixadas e consulados brasileiros.
Não foram poucas as tentativas políticas e da própria imprensa de negar o fato, seguindo o
padrão de outros genocídios como o armênio ou o holocausto 38. O estabelecimento dos fatos
enfrentou inúmeros desafios decorrentes da dificuldade de se acessar o território da comissão do
crime, de encontrar suas vítimas, de compreender os relatos pela falta de conhecimento da língua dos
indígenas ou de encontrar meios de provas suficientes sem violar o direito de crença e tradições dos
povos indígenas, garantido pela Constituição.
Foi graças a Bruce Albert, antropólogo francês, conhecedor da língua Yanomami, que a real
história a respeito do massacre de Haximu pode ser conhecida. O antropólogo se encontrava no posto
Balawú, como assessor de um projeto da Comissão Pró-Yanomami (CCPY) na área de saúde e

37
http://www.hrw.org/reports/1994/WR94/Americas-01.htm
38
O governador do Estado de Roraima disse que era uma invenção para apressar a demarcação das terras indígenas. O
presidente da Assembléia Legislativa, o líder dos garimpeiros e o delegado da Polícia Federal questionaram a ausência de
cadáveres. Talvez não fosse sabido que os Yanomani cremam seus mortos.
13

enviou relatório manuscrito ao escritório da CCPY, em Boa Vista, fornecendo as provas definitivas
do massacre39. Segundo o relato do antropólogo, em 25 de agosto, os 69 sobreviventes de Haximu
chegaram à maloca Marcos. Era um grupo exausto, traumatizado, carregando catorze cabaças com
cinzas humanas. Registrou que os entrevistados pela imprensa e pela FUNAI eram habitantes de
Homoxi que haviam estado na festa de Makayu e constituíam somente testemunhas indiretas.
Concluiu-se que doze índios tinham sido mortos e que a data do massacre era 22 ou 23 de
julho, quando segundo descrição dos índios, a lua anterior havia começado a crescer. Disseram como
e onde haviam cremado os corpos. Deixando apenas o corpo de Masena, a visitante de Homoxi, por
não haver parentes para chorar a sua morte. Somando-se aos índios já vitimados, o número final foi
de dezesseis Yanomami mortos.

4.2.1. Território da comissão do crime, perpetradores e vítimas

Os Yanomami constituem a maior comunidade indígena das Américas ainda a viver, em larga
escala, de forma tradicional, principalmente nas densas florestas entre as cabeceiras das bacias dos
rios Orinoco e Amazonas. A fronteira entre a Venezuela e o Brasil passa através de seu território.
Para os Yanomami, as fronteiras nacionais são irrelevantes, mas para o sistema internacional e as
conseqüências decorrentes do exercício da soberania e da jurisdição dos respectivos Estados, são
fundamentais40.
Como mencionado, em 19 de agosto de 1993, a notícia do massacre foi veiculada pela
imprensa e as publicações indicavam incertezas em relação aos números de mortos, algumas até
negaram o ocorrido 41. Mais tarde, passou-se a questionar a localização das malocas de Haximu.
Houve dificuldade para encontrar provas e mesmo as vítimas e testemunhas do ocorrido.
O Governo brasileiro resolveu enviar o Ministro da Justiça com o objetivo de procurar provas
para instruir um futuro processo de responsabilização dos supostos perpetradores. Desse modo, ao
identificar as malocas, provas foram colhidas no local do massacre. Somente mais tarde, a imprensa
descobriu que Haximu não ficava em território brasileiro, mas sim na Venezuela 42. Para a diplomacia
internacional, o ocorrido merecia no mínimo um pedido de desculpas pela invasão involuntária do
espaço aéreo venezuelano por parte da missão do Ministro da Justiça, pela abertura de um campo de
pouso para os helicópteros e pela colheita de elementos de provas para exames forenses.
Em 15 de setembro de 1993, foi solicitada autorização à Venezuela para a entrada de um
helicóptero da Polícia Federal para investigações adicionais. Registrado o erro, havia então
dependência da cooperação venezuelana para continuar as investigações in loco. Entendeu-se na
época que, não obstante a ocorrência do crime em território venezuelano, os perpetradores, por serem
brasileiros, poderiam ser julgados pela justiça brasileira, conforme as normas definidoras da
competência do país43. Todavia, a continuidade de parte das investigações dependia da colaboração
venezuelana.
A situação demandava uma investigação conjunta, a começar pela troca de documentos
relevantes. A colaboração incipiente entre Brasil e Venezuela na área jurídica foi extremamente

39
A história secreta do massacre. Folha de São Paulo. Caderno Mais!, 3/10/1993.
40
ROCHA, Jan. Haximu: o massacre dos Yanomami e as suas conseqüências. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2007,
p. 63.
41
Periódicos, tais como a Folha de São Paulo, abriram espaço para negacionistas, como Janer Cristaldo que defendia a
teoria de que tudo fora uma farsa. Os bastidores do Ianoblefe. Folha de São Paulo, 24/04/1994.
42
O Relatório da Operação Haximu, Coronel Ivonildo Dias Rocha, Chefe da Primeira Comissão Demarcadora de Limites
do Departamento das Américas do Ministério das Relações Exteriores, formalizou a localização de Haximu em território
venezuelano.
43
“Art. 7.º. Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: I – os crimes: (...) d) de genocídio, quando o
agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil; II - os crimes: a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a
reprimir; b) praticados por brasileiro.” Trata-se portanto de um caso de extraterritorialidade”. CP.
14

fraca, deixou-se inclusive de exercer pressão para a exumação do corpo do garimpeiro. Cada um dos
países – Brasil e Venezuela - prosseguiu com investigações separadas 44.
O inquérito venezuelano foi conduzido por um juiz em Puerto Ayacucho, no Estado de
Amazonas, onde se localizava a aldeia de Haximu. O inquérito foi dificultado desde o início pela
relutância do Governo venezuelano em fornecer o apoio logístico necessário para conduzir as
investigações. Em 29 de setembro de 1993, foi disponibilizado um avião do Governo para levar o
juiz até Haximu, dias após os brasileiros terem estado lá e carregado todas as provas, inclusive os
restos da índia não cremada. Os venezuelanos jamais solicitaram o retorno desse material. Na maloca
Haximu, o juiz examinou a cena do crime, já consideravelmente pisoteada, encontrou alguns
pedacinhos de ossos queimados e balas detonadas e entrevistou alguns índios Yanomami que sabiam
dos eventos. Ocorreram requisições posteriores de um avião com o fim de levar o juiz até Toototobi,
para entrevistar os sobreviventes. Mas, as mesmas foram ignoradas pelos ministérios venezuelanos
das Relações Exteriores e da Defesa e o inquérito não foi em frente. Mesmo após o massacre, os
garimpeiros brasileiros continuaram a operar na Venezuela.
O caso foi posteriormente levado à CIDH em razão da omissão do Governo venezuelano face
ao massacre de Haximu, conforme analisado adiante. Enquanto isso, no Brasil, a equipe brasileira de
promotores federais buscava vencer as dificuldades de produção de provas.

4.2.2. A necessidade de provas e o respeito à cultura e tradicionais indígenas

Bruce Albert descobriu que os sobreviventes de Haximu carregavam consigo quatorze


cabaças com as cinzas dos parentes assassinados (12 cabaças dos mortos no massacre de Haximu e 2
cabaças com as cinzas de dois índios do ataque inicial, em que quatro morreram, sendo que um corpo
nunca foi encontrado e a cabaça do outro corpo foi destruída no massacre). Consoante as leis
brasileiras que exigem provas materiais, essa era a evidência mais forte do massacre. Porém, para os
Yanomami, as cinzas eram sagradas e deveriam ser utilizadas nos ritos fúnebres 45. Deste modo, os
promotores se viram em meio a um dilema: deveriam tentar examinar as cinzas, violando o código
cultural dos índios, ou respeitá-lo e correr o risco de prejudicar a investigação?
Os promotores sabiam da necessidade das provas. Pesava ainda a força da opinião pública,
tendo em vista que o lobby anti-indígena de Roraima continuava a negar a ocorrência do massacre,
reforçando um discurso discriminatório contra os povos indígenas, no qual eram tidos como
indivíduos violentos que viviam enfrentando a si mesmos. No entanto, apesar da importância das
provas, a Constituição Federal de 1988 assegura aos povos indígenas o direito à própria organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens (art. 231, caput).
Assim, os Yanomami tinham assegurado, constitucionalmente, o direito de dar a seus mortos
o tratamento exigido pelas suas tradições, já abreviado em razão da necessidade da fuga diante do
medo da perseguição. Os promotores decidiram, então, que seria suficiente que Bruce Albert
identificasse as cinzas em cada uma das cabaças, por seu nome, e que cada cabaça fosse fotografada
nas mãos de um parente. Essa foi a solução que buscou equilibrar a necessidade de provas e os
direitos dos indígenas, uma aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. Nesse
caso, também foi fundamental a disposição do art. 167 do Código de Processo Penal, segundo o qual:

44
ROCHA, Jan. Haximu: o massacre dos Yanomami e as suas conseqüências. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2007,
p. 51-52.
45
“Primeiro, os ossos são cremados, pulverizados e colocados numa cabaça. Posteriormente, serão usados em rituais
maiores, entre comunidades, e depois enterrados perto das fogueiras de suas famílias. As cinzas de crianças são
misturadas ao mingau de bananas e comidas.” ROCHA, Jan. Haximu: o massacre dos Yanomami e as suas
conseqüências. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2007, p. 54.
15

“Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta”.
Como visto, um corpo não fora cremado, o da jovem visitante, chamada Masena. O corpo foi
levado ao Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, em Brasília, cujo laudo registrou o
recebimento de uma caixa de papelão com esqueleto, fragmentos de ossos queimados, mechas de
cabelo; e apontou a existência de buracos de bala no crânio, feridas de facão nos braços, abdômen,
peito, cabeça e pernas, e um corte profundo no lado direito do rosto, que lhe partiu a cabeça.
Também foram encontrados fragmentos de chumbo incrustados na espinha dorsal.
Após a autopsia, o esqueleto de Masena foi devolvido aos parentes para a cremação ritual, a
despeito dos protestos dos cientistas que queriam mantê-lo para estudos posteriores. Nos
depoimentos, os Yanomami referiam-se à jovem como uma pessoa viva, pois, ainda não fora
cremada. Nos restos das piras funerárias, a Polícia ainda encontrou fragmentos de ossos, dentes e
cabelos humanos. Quando devolvidas aos índios, essas cinzas foram acompanhadas de uma
advertência de que não deveriam ser comidas por terem sido tratadas com substâncias químicas.
Os sobreviventes feridos foram examinados pelo doutor Cláudio Esteves de Oliveira, que
encontrou fragmentos de chumbo entranhados em seus corpos. Simão Yanomami apresentava
dificuldade para mastigar, devido ao tiro recebido na mandíbula. Os peritos concluíram que os
ferimentos eram compatíveis com as armas usadas pelos garimpeiros.

5. A resposta jurídica

5.1. A denúncia do Ministério Público, a sentença do juízo federal singular e os


recursos interpostos

Em 18 de outubro de 1993, o MPF, dos 23 envolvidos, denunciou inicialmente Pedro


Emiliano Garcia, Eliézio Monteiro Neri, Waldinéia Silva Almeida, Juvenal Silva e Wilson Alves dos
Santos, e, em 30 de junho de 1994, aditou a denúncia para incluir Francisco Alves Rodrigues (Chico
Ceará) e João Pereira de Morais (João Neto), pela prática em concurso material dos crimes de:
genocídio (art. 1.º, a, b e c da Lei n.º 2.889/1956), associação para genocídio (art. 2.º da Lei n.º
2.889/1956), lavra garimpeira (art. 21 da Lei n.º 7.805/89), dano qualificado (art. 163, I, II e IV do
CP), ocultação de cadáver (art. 211, parte final do CP), formação de quadrilha (art. 288, parágrafo
único do CP), contrabando (art. 334 do CP).46
Os promotores concluíram que as ações dos garimpeiros contra os índios de Haximu
caracterizavam-se como genocídio, ou seja, a destruição intencional de uma comunidade humana,
racial, religiosa ou nacional. Os atos criminosos não se dirigiram contra a vida de um indivíduo, mas
sim contra um grupo de pessoas, na sua totalidade. Os índios foram atacados não como indivíduos,
mas simplesmente por serem índios. Os garimpeiros mataram pessoas, cujos nomes não sabiam,
contra as quais, individualmente, não tinham razões para hostilidades e desafiaram o direito dos
Yanomami à existência. Os garimpeiros pretendiam eliminar toda a aldeia. Foram a coincidência do
convite para a festa em Makayu e a expedição matutina para colher frutos que impediram a morte de
um número maior de pessoas.
Os advogados dos garimpeiros alegaram que os índios não eram habitantes originais da área,
e teriam sido transferidos para lá pela Guarda Nacional Venezuelana, e armados e treinados com o
objetivo de atacar os garimpeiros. Além disso, alegaram que o caso teria ocorrido na Venezuela e,
portanto, extrapolava a jurisdição brasileira. Além de ressaltar a ausência de provas, argumentaram
ter testemunhado sob tortura, e para sustentar a versão de que o ataque não fora premeditado, a

46
Ação Penal n.º 93.00.00574-0. 1.ª Vara Federal – Roraima. Inquérito n.º 078/93.
16

defesa disse que os garimpeiros foram obrigados a usar facões porque a munição acabara e
precisavam se defender 47.
A sentença do juízo monocrático federal de dezembro de 1996: a) absolveu todos os acusados
dos crimes de lavra garimpeira ilegal, contrabando, ocultação de cadáver, formação de quadrilha; b)
absolveu Waldinéia Silva Almeida e Wilson Alves dos Santos dos crimes de genocídio, dano e
associação para genocídio por inexistência de provas; c) condenou Pedro Emiliano Garcia, Eliézio
Monteiro Neri, Francisco Alves Rodrigues, João Pereira de Morais e Juvenal Silva pela prática do
crime de genocídio e dano qualificado. Sendo que o primeiro foi condenado a 20 anos de reclusão
pelo crime de genocídio e 6 meses de detenção pelo dano qualificado, e os demais a 19 anos de
reclusão pelo crime de genocídio e 6 meses de detenção pelo crime de dano qualificado 48.
Contra essa decisão os acusados condenados e a acusação interpuseram recurso de apelação
ao TRF da 1.ª Região. A decisão desse tribunal anulou a sentença do juiz singular e determinou a
adoção do procedimento do Tribunal do Júri (art. 408 e seguintes do CPP). O TRF entendeu que o
genocídio praticado contra índios, em conexão com outros delitos – homicídio -, seria crime doloso
contra a vida, atraindo a competência do Tribunal do Júri49.
Em face da decisão do TRF da 1.ª Região, o MPF interpôs Recurso Especial ao STJ com a
finalidade de reformar a decisão para que permanecesse a competência do juiz singular federal e não
do júri. Assim, no acórdão do STJ referente ao Recurso Especial 222.653-RR, julgado em 12 e
setembro de 2000, discutiu-se a competência para o julgamento do crime de genocídio (art. 1.º da Lei
n.º 2.889/56), se do juízo singular federal ou do Tribunal do Júri federal50.
A Turma entendeu que a competência era do juiz singular federal porque os delitos não se
direcionavam contra a vida dos indivíduos, mas sim contra o grupo ou parte de um grupo de pessoas,
que se destacavam por sua raça, nacionalidade ou religião, independentemente da personalidade de
cada um de seus membros. Não se tratava, portanto, de crime doloso contra a vida, o que excluía a
competência do Tribunal do Júri51 (art. 74, § 1.º do CPP52, e art. 5º, XXXVIII, d da CF/8853). O STJ
também declarou extinta a punibilidade de Francisco Alves Rodrigues, que havia falecido.
Em face desse acórdão do STJ, os perpetradores impuseram Recurso Extraordinário ao STF,
com fundamento na alínea a do inciso III do art. 102 da Constituição Federal, com o objetivo de
discutir a competência para processar e julgar os crimes cometidos por garimpeiros contra índios

47
Cumpre relembrar o julgamento dos Einstatzgruppen, em que o réu Otto Ohlendorf, que comandou uma operação de
extermínio na Criméia, ao ser indagado a respeito de como justificava a morte de 90 mil civis desarmados, respondeu que
foi em legítima defesa. Ele disse: “Nós sabíamos que eles planejavam nos atacar e, portanto, era prudente para nós
prevenir e atacá-los". À pergunta de como justificava a morte de bebês, respondeu: "Um dia, eles iriam crescer e se
tornariam uma ameaça. Era portanto necessário matá-los antes que o fizessem.” ELSNER, Alan. Após 60 anos, legado do
Tribunal de Nuremberg permanece. 18/12/2007.
48
Segundo o juiz, os condenados cometeram o crime, em circunstâncias particularmente cruéis, contra mulheres e
crianças indefesas, e observou que o genocídio causou a migração de toda uma comunidade indígena. O fato de o crime
ter sido cometido durante a manhã, de surpresa, contra índios em seu habitat natural, constituiu circunstância agravante.
49
ACR 1997.01.00.017140-0/RR. Rel. Juiz Tourinho (Voto vencido). Rel. Revisor Juiz Osmar Tognolo. 3.ª Turma.
Julgado em 30/06/1998. Publicado no DJ de 06/11/1998, p.159. Foram interpostos Embargos Declaratórios pela
acusação, julgados em 15/12/1998.
50
RESP 222.653/RR. Rel Min. Jorge Scartezzini. 5.ª Turma. Julgado em 12/09/2000. Publicado no DJ no de 30/10/2000.
EDCL no RESP 22.653/RR. Rel Min. Jorge Scartezzini. 5.ª Turma. Julgado em 22/05/2001. Publicado no DJ de
13/08/2001, p. 203.
51
Informativo do STJ n.º 70. Período: 11 a 15 de setembro de 2000. RESP 222.653-RR. Quinta Turma. Rel. Min. Jorge
Scartezzini. Competência. Genocídio. Massacre do Haximu.
52
“Art. 74. A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a
competência privativa do Tribunal do Júri. (...) § 1.º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos
arts. 121, §§ 1.º e 2.º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados”. CPP.
53
“Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes: (...) XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei,
assegurados: (...) d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.” CF/88.
17

Yanomami. A Turma decidiu afetar ao Plenário o julgamento do recurso. Pretendia-se, sob alegação
de violação ao disposto no art. 5º, XXXVIII, da CF, a reforma do acórdão do STJ que conheceu e
proveu o Recurso Especial do MPF, e entendeu ser o juízo singular competente.54 Os recorrentes
requereram o conhecimento e provimento do recurso para que se restabelecesse o acórdão do TRF, o
qual decretou a nulidade da sentença do juízo federal monocrático.
No período que precedeu o julgamento no plenário do STF, o condenado João Pereira de
Morais, impetrou Habeas Corpus55, com pedido de medida liminar, em benefício próprio, tendo por
autoridade coatora o relator do Recurso Extraordinário n.º 351.487. O impetrante/paciente fora
condenado à pena de 19 anos e 6 meses de reclusão pelo juiz federal da 1.ª Vara Federal de Boa
Vista. Alegou que estava sofrendo constrangimento ilegal consistente na demora no julgamento do
Recurso Extraordinário. Argumentou que não obteve êxito nos dois pedidos de livramento
condicional que formulou à Vara de Execuções Penais em razão da ausência do trânsito em julgado
da sentença condenatória. Pediu, liminarmente, que fosse colocado em liberdade.
Os autos foram distribuídos ao Ministro Cezar Peluso, que se julgou incompetente para a
causa, por ser também o relator do Recurso Extraordinário em questão e, portanto, figurar como
autoridade coatora do pedido. Redistribuídos, os autos, a relatoria do Habeas Corpus foi designada
ao Ministro Joaquim Barbosa, que, ao decidir, registrou que o Recurso Extraordinário n.º 351.487
havia sido levado a julgamento na sessão de 20 de setembro de 2005, quando a Primeira Turma
decidiu afetá-lo ao Pleno. A partir daí, cabia ao presidente do Tribunal sua inclusão em pauta,
conforme dispõe o inciso III do art. 13 do Regimento Interno do STF. Em outras palavras, a
conclusão do julgamento não se encontrava mais sob a esfera de responsabilidade do relator. Com
base no inciso IX do art. 21 do Regimento Interno, julgou prejudicado o Habeas Corpus, por perda
de objeto, ficando prejudicado também o pedido de liminar.
O STF negou provimento ao Recurso Extraordinário, mantendo a competência do juiz
singular federal. Como comentado, o processo tramitara perante juízo monocrático federal e resultara
em decreto condenatório, contra o qual fora interposto, exclusivamente pela defesa, recurso de
apelação, provido para anular a sentença e determinar a adoção do procedimento do tribunal do júri,
ao fundamento de que o genocídio praticado contra índio, com conexão com outros delitos, seria
crime doloso contra a vida 56.

5.2. Do bem jurídico tutelado pelo crime de genocídio

O acórdão do STF referente ao massacre de Haximu, com o objetivo definir a competência do


juízo monocrático ou do tribunal de júri, precisou considerar o bem jurídico tutelado pelo crime de
genocídio para concluir que esse não é um crime doloso contra a vida. A ementa registrou a decisão
da seguinte forma:

1. CRIME. Genocídio. Definição legal. Bem jurídico protegido. Tutela penal


da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que pertence a
pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter coletivo ou
transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Consumação
mediante ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção
e a outros bens jurídicos individuais, constituem modalidade executórias.
Inteligência do art. 1º da Lei nº 2.889/56, e do art. 2º da Convenção contra o
Genocídio, ratificada pelo Decreto nº 30.822/52. O tipo penal do delito de
genocídio protege, em todas as suas modalidades, bem jurídico coletivo ou
transindividual, figurado na existência do grupo racial, étnico ou religioso, a
qual é posta em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens

54
Informativo do STF n.º 402. RE – 351487/RR, Rel. Min. Cezar Peluso, 20/09/2005. Título: Genocídio e Competência.
55
HC 85012/RR. Rel. Min. Jaquim Barbosa. Julgado em 24/10/2005. Publicado no DJ de 28/10/2005, p. 64.
56
Informativo n.º 434. RE 351487/RR. Rel. Min. Cezar Peluso, 03/08/2006. Genocídio e Competência.
18

jurídicos individuais, como o direito à vida, a integridade física ou mental, a


liberdade de locomoção etc.

Ressalte-se a manifestação da Procuradoria-Geral da República por seu Subprocurador-Geral,


Wagner Natal Batista, referida no acórdão, a qual deve ser comentada por conter menção errônea a
grupo político, conforme destacado abaixo:

“Como se vê, diferentemente do homicídio, no qual o elemento subjetivo do


agente é matar alguém, no genocídio o dolo é de exterminar, total ou
parcialmente, fisicamente ou culturalmente determinado grupo. Não se inclui,
por isso, o genocídio, dentre os crimes dolosos contra a vida, muito embora os
bens jurídicos vida e integridade física e mental também são afetados por este
crime.
O bem jurídico tutelado no crime de genocídio não é somente a vida, mas
principalmente a integridade da raça, da etnia, do grupo político ou religioso.
Obviamente, também busca proteger a vida do individuo, mas sob o enfoque
de sua vida enquanto integrante de determinado grupo (...).
(...)
Cumpre lembrar que o genocídio erige-se em crime contra a humanidade na
medida em que o Estado Democrático de Direito deve garantir a pluralidade e
diversidade humanas, repudiando a intenção de extinguir, total ou
parcialmente, etnia, raça, grupo religioso ou político (...) (grifamos)

Relembre-se que o art. 2.º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de


Genocídio (1948), que foi base para a redação da Lei n.º 2.889/56, limita-se a incluir na tipificação
do crime de genocídio os atos, cometidos com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, não englobando, portanto, grupo político.
Para construir seu argumento de que o crime de genocídio não é um crime contra a vida, o
relator buscou apoio no Direito Internacional. Assim, ressaltou que a figura criminosa chamada
genocídio teve sua origem no Direito Internacional, sendo concebido como um delito contra a
humanidade57. O relator fez alusão a Japiassú 58, que se refere, por sua vez, a Laplaza para comentar a
respeito do bem jurídico protegido no crime de genocídio. O genocídio não tem por finalidade atacar
pessoas humanas individualizadas, mas o grupo a que essas pessoas pertencem. A criminalização do
genocídio busca proteger o grupo a que as pessoas pertencem, seja ele racial, étnico, nacional ou
religioso. O bem jurídico protegido seria a vida em comum, na comunidade dos povos.
Após discorrer a respeito de opiniões doutrinárias diferentes 59, o relator concluiu que o
entendimento majoritário admite a defesa de um bem jurídico coletivo, aliás, um bem jurídico
coletivo supra-individual, cujo titular não é a pessoa física, mas o grupo, entendido como uma
coletividade. Nesse sentido, mencionou também Maria Barberá Fraguas 60, cuja doutrina defende que
o crime de genocídio não protege diretamente bens jurídicos individuais, apesar de serem protegidos
de maneira indireta. O crime de genocídio protege bem jurídico supra-individual ou coletivo que
pode ser definido como a existência ou sobrevivência de todos e cada um dos grupos raciais,
nacionais, religiosos ou étnicos, entendidos como unidade social. No genocídio, o que se busca é
negar a vida a um grupo, no homicídio é negar a vida a uma pessoa.

57
CASSESE, Antonio. Genocide. In: CASSESE, Antonio; JONES, J. R. W. D.; GAETA, P. The Rome Statute of the
International Criminal Court: a commentary, v. 1. Oxford University Press, 2002.
58
JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do Direito Penal. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2004.
59
CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
60
BARBERÁ FRAGUAS, María. Derecho Penal Internacional: el genocidio y otros crímenes internacionales. Autoría y
participación: la responsabilidad del superior jerárquico, autoría inmediata. Actualidad Penal, n.º 11, p. 257-8, 2002.
19

O relator registrou ainda a posição de Heleno Fragoso, que critica a inserção no Código
Penal das disposições a respeito do genocídio entre os crimes contra a vida. O genocídio tem
projeção no campo internacional e transcende ao quadro do homicídio, como crime contra a pessoa.
As ações que configuram o crime de genocídio não se dirigem, em primeira linha, contra a vida do
indivíduo, mas sim contra grupos de pessoas, na sua totalidade. O bem jurídico tutelado reside em
ideais humanitários: todos os povos e grupos de pessoas, não obstante suas diferenças, têm pretensão
ao reconhecimento de sua dignidade humana e existência 61.
Ao citar Carlos Canêdo, o relator introduziu novas questões, notando que o crime de
genocídio é antagônico à idéia de pluralidade e diversidade humanas, que, devem ser garantidas por
um Estado Democrático de Direito 62. Buscou também as palavras de Celso Lafer 63, inspiradas pelo
pensamento arendtiano, para ir além. Conforme Lafer, o genocídio é um crime contra a humanidade
e a ordem internacional porque visa eliminar a diversidade e a pluralidade que caracterizam o gênero
humano, que Kant pretendeu preservar falando do direito à hospitalidade universal e apontando que a
violação dos direitos de uns alcança a todos. Em suas palavras:

O genocídio representa ‘um ataque à diversidade humana como tal’, isto é, ‘as
características de status humano, sem o qual as exatas expressões gênero humano ou
humanidade ficariam sem sentido.

Esta inteligência pode ser reforçada, como bem notou o relator, pelas disposições
constitucionais do caput do art. 231 da Constituição de 1988 a respeito das populações indígenas ao
reconhecer o direito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Deve-se citar ainda o art. 4.º da Carta, que
estabelece os princípios pelos quais a República Federativa do Brasil deve se reger nas suas relações
internacionais. Entre os princípios, constam nos incisos II e III, respectivamente, a prevalência dos
direitos humanos e a autodeterminação dos povos, os quais reforçam os conceitos de diversidade e
pluralidade humanas.
Após considerar as doutrina internacional e nacional, o relator concluiu que:

A conduta incriminada pode recair sobre o corpo humano, lesando-o ou


extinguindo a vida, mas, perante nosso direito positivo, não está aí o bem jurídico
tutelado sob a figura criminosa, senão modalidades da prática do genocídio.

Portanto, o objeto jurídico tutelado é a existência de um grupo nacional, étnico, racial ou


religioso – um bem jurídico coletivo. A lesão à vida, à integridade física, à liberdade de locomoção
são, portanto, meios de ataque ao bem jurídico tutelado, que nos diversos tipos de ação genocida, não
se confunde com os bens primários também lesados por essas ações instrumentais.

5.3. Da competência para processar e julgar os acusados pela prática do crime de


genocídio

5.3.1. Precedentes a respeito da competência da Justiça Federal

61
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Genocídio. Revista de Direito Penal. São Paulo, n.º 9/10, p. 31-32, jan.-jun./73.
62
Os bens jurídicos vida e integridade física e mental são também afetados por este crime. CANÊDO, Carlos. O
genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 186.
63
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo:
Cia das Letras, 1988, p. 180-183. Cita Hannah Arendt relembrando suas palavras de que a exterminação física de milhões
de judeus foi crime contra a humanidade perpetrado no corpo do povo judeu, portanto, a humanidade na sua diversidade
é o bem jurídico protegido. Para o relator, Min. Cezar Peluso, o que se tem é crime contra a condição humana, que a
ordem jurídica pretende tutelar no plano doméstico e internacional.
20

As raízes da discussão da competência ou não da Justiça Federal para julgar o crime de


genocídio podem ser buscadas no acórdão prolatado no Habeas Corpus n.º 65.912/MG64, referente
ao caso do massacre dos Xakriabás.
Nesse julgado ficou assentada a competência da Justiça Federal para processar e julgar os
crimes dolosos contra a vida e aqueles outros conexos, porquanto caracterizado, in casu, o interesse
da União. Registrou a ementa:

Competência. Fatos delituosos praticados contra índios dentro de reserva


indígena, competência da Justiça Federal (Júri) para processar e julgar os
crimes contra a vida e aqueles outros conexos, porque caracterizado, in casu, o
interesse da União.

Ainda a respeito desse caso, deve-se fazer menção ao Habeas Corpus n.º 6.819, mencionado
na decisão supra-referida e julgado pelo Tribunal Federal de Recursos, em que a competência da
Justiça Federal foi afirmada, podendo, contudo, serem identificados dois fundamentos diferentes. O
Ministro Relator Nilson Naves se baseou em disposição constitucional que atribuía aos juízes
federais a competência para julgar os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou
interesses da União. Por sua vez, o Ministro Francisco de Assis Toledo acompanhou o voto do
relator, mas se baseou no fato de que a conduta descrita seria tipificável como genocídio, tendo em
vista disposições constitucionais que atribuíam à competência da Justiça Federal o processo e o
julgamento dos crimes previstos em convenção internacional e, no caso, estava em jogo, a
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948).
Posteriormente, a discussão da competência da Justiça Federal para julgar o crime de
genocídio foi objeto de análise pelo STF no julgamento do RE 179485/AM, ocorrido em 6 de
dezembro de 199465, referente ao massacre do capacete. O acórdão proferido pela Segunda Turma
foi ementado da seguinte forma:

Competência – Genocídio – Indígenas. A competência para julgar a


ação penal em que imputada a figura do genocídio, praticado contra indígenas
na disputa de terras, é da Justiça Federal. Na norma definidora da competência
desta para demanda em que envolvidos direitos indígenas, inclui-se a hipótese
concernente ao direito maior, ou seja, a própria vida. Art. 109, XI da CF/88.
Votação: Unânime. Resultado: Conhecido e provido.

O relator excluiu de início a possibilidade de apreciar o recurso sob o ângulo do interesse da


União (inciso XI do art. 109 da CF/88), uma vez que o tema não havia sido dirimido pelo Tribunal a
quo, e o MPF não havia interposto embargos declaratórios.
O fundamento da decisão atacada era, pois, o de que o genocídio ocorrido não estaria
relacionado com a disputa sobre direitos indígenas, escapando a hipótese da incidência do inciso XI
do art. 109.
O art. 231 da Constituição, por seu turno, reconhece aos índios "sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam", erigindo, como dever da União, a demarcação das terras indígenas e a proteção e respeito a

64
No caso do massacre dos Xakriabás, que foi objeto de julgamento em Minas Gerais, apesar da tipificação do crime de
genocídio haver sido discutida em Habeas Corpus pelo STF, a denúncia foi feita com base em crime de homicídio
qualificado, lesões corporais, invasão domiciliar, bando ou quadrilha. Os tribunais não entenderam ser crime de
genocídio, e o STF entendeu não caber a tipificação em sede de Habeas Corpus, todavia, há clara menção de que a
conduta era de genocídio. HC 65.912-8/MG. Rel. Min. Célio Borja. 2.ª Turma. Julgamento em 06/05/88. Publicado no
DJ de 24/06/88, Ement. n.º 1507-1.
65
RE 179485/AM. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento em 06/12/1994. 2.ª Turma. Publicado no DJ de 10/11/95, p.
38326, Ement. v. 1808-06, p. 1097.
21

todos os seus bens. As questões indígenas, a merecerem especial tutela pela União e a serem
solucionadas pela Justiça Federal, são aquelas dotadas de qualificativo especial, referentes à
“organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos originários sobre as terras”.
Ao interpretar o texto constitucional, o relator registrou que o dispositivo possui abrangência
alargada, pois, não há qualquer restrição aos direitos indígenas. Esses envolvem sem dúvida “o bem
maior, que é a própria vida”. O genocídio resultou de desavença a respeito da utilização de terras e,
portanto, usufruto de área tradicionalmente ocupada e habitada em caráter permanente pelos
indígenas. Daí a competência da Justiça Federal para julgar a ação penal com fundamento distinto do
precedente (HC 65.912), contudo, no mesmo sentido.
A respeito da discussão quanto à possibilidade do genocídio contra indígenas configurar uma
disputa de direitos indígenas, observou de modo irônico, em voto, o Ministro Francisco Rezek 66:

Cuidássemos de uma controvérsia sobre a posse da terra, ou sobre a


exploração de determinado bem nessa terra, e a competência seria federal,
pelas razões históricas que determinaram a opção do constituinte. Mas se se
cuida da própria sobrevivência da comunidade indígena, não. Neste caso a
disputa não é exatamente aquilo que os civilistas, quem sabe, chamariam uma
disputa sobre direitos indígenas.

A Constituição Federal de 1988 estabelece ser da competência da Justiça Federal as disputas


que versarem sobre direitos indígenas. Inocorrendo disputa sobre direitos indígenas, enumerados no
art. 231, compete à Justiça Estadual processar e julgar a ação penal que tenha indígena como autor
ou vítima, dada a sua competência residual67. A competência da Justiça Federal, dessa forma, não é
fixada pela simples participação, como autor ou vítima, de índio ou grupo indígena, sendo exigida a
configuração do interesse ou bem especialmente tutelado.

5.3.2. Da competência da Justiça Federal: os crimes previstos em tratados


internacionais e as causas relativas a direitos humanos

Há que se ressaltar que no caso massacre de Haximu não houve menção à hipótese de
fixação da competência da Justiça Federal em casos de crimes previstos em tratados internacionais,
inseridos no comando constitucional do inciso V do art. 10968 da Constituição Federal de 1988. Para
a aplicação dessa norma, deve-se observar que não basta a ocorrência de conduta criminosa prevista
em tratado ou convenção internacional, deve-se demonstrar um nexo de internacionalidade, que se
ausente prevalecerá a competência será da Justiça Estadual.
Esse nexo é representado pela exigência de que o resultado tenha ou devesse ter ocorrido
no estrangeiro, embora a execução tenha se iniciado no Brasil, ou o contrário o resultado tenha ou
devesse ter ocorrido no Brasil, embora a execução tenha se iniciado além de nossas fronteiras. Como

66
RE 179485/AM. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento em 06/12/1994. 2.ª Turma. Publicação no DJ de 10/11/1995, p.
38326, Ement. vol. 1808-06, p. 1097.
67
Inteligência do enunciado n.º 140 da Súmula do STJ: "Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em
que o indígena figure como autor ou vitima." Por isso, tanto o assassinato de um índio quanto o homicídio praticado por
um índio não serão, em regra, da competência do tribunal do júri federal. Porém, se a morte ocorrer em razão de disputa
de direito de terras ocupadas pelos índios, por exemplo, a competência será da Justiça Federal. O mesmo ocorrerá, como
é óbvio, na hipótese de extermínio da população indígena pelo só fato de sua existência, ainda que de poucos de seus
membros. Além do fato de se tratar do direito à vida, cuida-se também da caracterização do genocídio, crime de natureza
internacional, previsto em tratado. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 8.ª Ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 225.
68
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) V – os crimes previstos em tratado ou convenção
internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou
reciprocamente;” CF/88.
22

a União detém a exclusividade constitucional para manter relações com Estados estrangeiros,
justificam-se as razões pelas quais se afetaram tais causas à Justiça Federal.
A referência à esse dispositivo no caso Haximu seria mais um elemento a favor da
competência da Justiça Federal, fortalecendo a integração entre o Direito Internacional e o Direito
doméstico, porém, não ocorreu. Como visto, trata-se de crime de genocídio, previsto em Convenção
da qual o Brasil é parte. O crime ocorreu em território venezuelano, tendo, contudo, atos
preparatórios em território brasileiro.
Além disso, deve-se ressaltar que o inciso V-A do art. 109, que se refere ao seu § 5.º 69
também poderia ter sido mencionado como fator de interpretação. Essa menção teria que ser indireta,
uma vez que os fatos ocorreram antes da Emenda Constitucional n.º 45/2004, que inseriu no
ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de deslocamento da competência originária para a
investigação, processamento e julgamento dos crimes, praticados com grave violação de direitos
humanos. O dispositivo foi inserido no ordenamento pátrio com a declarada finalidade de assegurar o
cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, da esfera
estadual para a federal70.
O primeiro incidente de deslocamento referente ao caso da morte da missionária norte-
americana Dorothy Stang foi julgado pelo STJ em 200571, sendo de grande relevância para esclarecer
os requisitos para a efetivação do deslocamento.
A motivação para criação deste instituto decorreu da percepção de que, em vários casos, os
mecanismos até então disponíveis para a apuração e punição de violações aos direitos humanos
demonstraram-se insuficientes e/ou ineficientes, expondo de forma negativa a imagem do Brasil no
exterior. De fato, o país sofreu severas críticas quanto à negligência na apuração desse tipo de crime,
que resulta quase sempre em impunidade, não obstante os diversos compromissos por ele firmados,
com relação à proteção desses direitos, com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto
de São José da Costa Rica). Além disso, após a declaração de reconhecimento da competência
contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo Brasil em 10 de dezembro de 1998,
passou a ser possível a sujeição do Estado à sua jurisdição 72.
Assim, inseriu-se no ordenamento jurídico essa inovação, criada com a finalidade de
disponibilizar um instrumento capaz de conferir eficiente resposta estatal às violações aos direitos
humanos, evitando que o Brasil venha a ser responsabilizado por não cumprir os tratados
internacionais, por ele firmados, relativos a direitos internacionalmente protegidos.

69
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) V-A - as causas relativas a direitos humanos a que se
refere o § 5º deste artigo; (...) § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da
República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos
humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do
inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.” CF/88.
70
O STJ considerou o dispositivo (art. 109, V-A, e § 5.º) como elemento de interpretação ao decidir pela competência da
Justiça Federal, em caso que envolvia delitos de aliciamento de trabalhadores e quadrilha, com um sofisticado esquema
de burla à organização do trabalho e à dignidade humana Observou-se que, apesar da norma ter sido inserida na
Constituição em 2004 e o processo ter iniciado em 2003, tal disposição se prestava como chave exegética. RHC 18.242-
RJ. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. Julgamento em 06/03/2007. Publicado no DJ de 25/06/2007, p. 299.
71
IDC n.º 1/PA. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. Julgamento em 8.06.2005. DJ de 10.10.2005, p. 217. RSTJ vol. 198, p.
435. Tratou-se de homicídio doloso, o que conforme a decisão do STJ representa grave violação ao direito à vida,
previsto no § 1.º do art. 4.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Todavia, o
pedido de deslocamento foi indeferido, por não identificar risco de descumprimento de tratado internacional firmado pelo
Brasil a respeito da matéria. O STJ considerou que as autoridades estaduais estavam empenhadas na apuração dos fatos
que resultaram na morte da missionária, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção do Estado do Pará
dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos. Assim, afastou-se a necessidade de
deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o
andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em
desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos.
72
Para analisar os casos já submetidos à Corte Interamericana de Direitos Humanos em face do Estado Brasileiro,
consultar: http://www.corteidh.or.cr/pais.cfm?id_Pais=7
23

Entre os crimes com grave violação aos direitos humanos sugeridos pela doutrina estariam
aqueles cometidos contra as comunidades indígenas ou seus integrantes73. Entretanto, o constituinte
derivado preferiu não definir o rol desses crimes passíveis de passarem para a competência da Justiça
Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo, afastando-o de sua finalidade
precípua, que é a de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais
firmados pelo Brasil a respeito da matéria. Pelo menos, momentaneamente, persiste em aberto tal
aspecto, podendo o Congresso Nacional, por lei, especificar os tipos penais susceptíveis de ensejar o
deslocamento da competência.
O STJ entendeu que três requisitos devem ser cumulativos para permitirem o deslocamento:
a) a existência de grave violação a direitos humanos; b) a necessidade de garantir o cumprimento,
pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; c) a incapacidade (oriunda de
inércia, negligência, falta de vontade política, condições pessoais, materiais etc.) das instituições e
autoridades do Estado-membro, de levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal.

5.3.3. Da competência do juízo monocrático da Justiça Federal: o crime de genocídio

Como foi abordado, no caso Massacre Haximu não houve discussão a respeito de ser ou
não a Justiça Federal competente para a causa, decisão essa baseada no inciso XI do art. 109 (disputa
sobre direitos indígenas) da Constituição. A matéria questionada foi sim se a competência era do
tribunal do júri ou do juiz singular, ambos no âmbito da Justiça Federal. Para dar uma solução à
demanda, o STF analisou dois elementos – o bem jurídico tutelado pelo crime de genocídio e os
crimes conexos ao crime de genocídio.
No que concerne ao primeiro elemento, como considerado acima, concluiu-se que o bem
protegido pelo crime de genocídio não é a vida dos indivíduos, mas sim a existência do grupo, que
indiretamente tutela a diversidade e a pluralidade humanas. Assim, era necessário analisar a questão
dos crimes conexos ao crime de genocídio para certificar que não ficaria, por conexão, estabelecida a
competência do tribunal do júri74.
A ementa do acórdão do Recurso Extraordinário 351.487-3/RR (massacre de Haximu)
registrou o seguinte trecho:

2. CONCURSO DE CRIMES. Genocídio. Crime unitário. Delito praticado mediante


execução de doze homicídios como crime continuado. Concurso aparente de
normas. Não caracterização. Caso de concurso formal. Penas cumulativas. Ações
criminosas resultantes de desígnios autônomos. Submissão teórica ao art. 70, caput,
segunda parte, do Código Penal. Condenação dos réus apenas pelo delito de
genocídio. Recurso exclusivo da defesa. Impossibilidade de reformatio in peius. Não
podem os réus, que cometeram, em concurso formal, na execução do delito de
genocídio, doze homicídios, receber a pena destes além da pena daquele, no âmbito
de recurso exclusivo da defesa.

3. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ação penal. Conexão. Concurso formal entre


genocídio e homicídios dolosos agravados. Feito da competência da Justiça Federal.

73
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional: a exigência da federalização.
Boletim dos Procuradores da República, n.º 16, Agosto/1999. Deve-se mencionar o Decreto 58.824, de 14 de julho de
1966, que promulgou a Convenção n.º 107 sobre a proteção e integração das populações tribais e semitribais de países
independentes, adotada em Genebra, a 26 de junho de 1957, por ocasião da quadragésima sessão da Conferência Geral da
Organização Internacional do Trabalho, aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo n.º 20, de
1965, e promulgada pelo Decreto 58.824, publicado no DOU de 20/07/1966, p. 8094.
74
A questão do concurso entre o crime de genocídio e os de homicídio não havia sido objeto de exame em precedentes
do STF. No HC 65.913, enquanto estivesse em jogo a tipificação de homicídios praticados contra indígenas, tinha como
acusação a prática de homicídio qualificado, lesões corporais, violação de domicilio e formação de bando ou quadrilha. O
STF se negou a dar a qualificação jurídica definitiva no Habeas Corpus, deixando a mesma para a ação penal.
24

Julgamento cometido, em tese, ao tribunal do júri. Inteligência do art. 5º, XXXVIII,


da CF, e art. 78, I, cc. art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal. Condenação
exclusiva pelo delito de genocídio, no juízo federal monocrático. Recurso exclusivo
da defesa. Improvimento. Compete ao tribunal do júri da Justiça Federal julgar os
delitos de genocídio e de homicídio ou homicídios dolosos que constituíram
modalidade de sua execução.

O relator buscou apoio no Direito Comparado 75 para justificar seus argumentos. Assim,
menciona Alicia Gil Gil76, que analisou a sentença do Tribunal Supremo Alemão (BGH), de 30 de
abril de 1999, que condenou um indivíduo por crime de genocídio praticado mediante homicídios,
lesões corporais e constrangimento ilegal. A questão central deste caso era as relações concursais
entre delito contra bem jurídico coletivo (o genocídio) e delitos cometidos na execução do genocídio
contra bens jurídicos individuais personalíssimos. A sentença reformou decisão anterior do Tribunal
Superior do Estado de Düsseldorf, que havia condenado um sérvio-bósnio por onze delitos de
genocídio, em concurso ideal (formal) com 30 assassinatos, 47 delitos de lesões e mais de 300
detenções ilegais. O julgamento do Tribunal Supremo Alemão levou à condenação do réu por um só
delito de genocídio em concurso ideal com 30 homicídios.
No massacre de Haximu, era necessário indagar se as condutas homogêneas importaram a
prática de um ou vários crimes de genocídio, bem como analisar a relação entre o crime de genocídio
e os homicídios praticados pelos recorrentes. Ou seja, a relação entre crime de genocídio e cada uma
das figuras delituosas que, consideradas em si mesmas, substanciam crimes autônomos contra bens
jurídicos individuais, mas que, animadas pelo elemento subjetivo exigido pelo tipo legal do
genocídio, atuam, ao mesmo tempo, como modalidades comissivas do crime de genocídio.
De acordo com a decisão do Tribunal Supremo Alemão, todos os atos cometidos na
execução do genocídio constituem um só crime – unidade de ação em sentido típico, posição
derivada da compreensão do delito de genocídio como protetor exclusivamente do bem jurídico
“existência de um grupo nacional, racial, étnico ou religioso”, sendo o indivíduo unicamente o
objeto do fato, e ficando, portanto, fora de seu fim de proteção os bens jurídicos individuais, cuja
lesão deverá ser considerada mediante o concurso de delitos.
Conclui-se, portanto, que o genocídio é um crime decomponível em vários atos, em que a
intenção de destruir o grupo compreende a intenção de praticar os atos individuais que levam à
destruição perseguida. No massacre de Haximu, os diversos homicídios reputam-se uma unidade
delitiva e por um só crime de genocídio foram os recorrentes condenados, com base na pena
atribuída à forma de ataque mais grave, ou seja, a prevista na primeira parte da cominação,
equivalente à pena prevista para o § 2.º do art. 121 do Código Penal (homicídio qualificado, pena de
reclusão de 12 a 30 anos).
No Brasil, a pena de quem pratica as diversas modalidades de execução do genocídio será
sempre uma só, conforme remissão da lei às penas do Código Penal. Todas modalidades são um só
ataque ao bem jurídico protegido – existência do grupo - cuja maior ou menor gravidade reflete-se na
maior ou menor gravidade da modalidade cometida. Os crimes praticados contra bens jurídicos
personalíssimos (vida, integridade física, liberdade etc.) permanecem sem absorção pelo crime de
genocídio.
Assim, cumpre analisar a concorrência dos homicídios perpetrados pelos recorrentes na
comissão do genocídio. Como visto, o crime de genocídio é crime autônomo contra bem jurídico

75
O relator se utilizou da decisão do Tribunal Supremo Alemão, tendo em vista que o tipo legal do genocídio no
ordenamento germânico obedece às normas da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio
(1948), a qual também se filiou a legislação brasileira.
76
GIL, Alicia Gil. Comentario a la primera sentencia del Tribunal Supremo Alemán condenando por el delito de
genocidio (Sentencia del Bgh de 30 de abril de 1999 - 3 Str 215/98 – Olg Düsseldorf): relaciones concursales entre un
delito contra un bien jurídico colectivo - el genocidio - y los delitos contra bienes jurídicos individuales personalísimos
cometidos en su ejecución. Revista de Derecho Penal y Criminologia. 2ª ed., p. 771-798, 1999.
25

coletivo, diverso dos ataques individuais que compõem modalidades de sua execução. Fosse outra
conclusão, à prática do crime mais grave corresponderia – como ocorreu no massacre de Haximu –
pena mais branda.
Conforme ressaltou o relator deve-se considerar os critérios de especialidade,
subsidiariedade e consunção para analisar inicialmente a questão. O tipo penal do genocídio não
corresponde à soma de um crime de homicídio mais um elemento especial (intenção de destruir um
grupo), até porque pode ser praticado mediante outras formas que não o homicídio. Logo, não se
aplica o critério da especialidade. A subsidiariedade, por sua vez, somente se aplica diante de tipos
dispostos à proteção do mesmo bem jurídico, o que não é o caso, pois não há identidade de bem
jurídico entre homicídio e genocídio. Por fim, também não é razoável aplicar o critério da consunção,
pois, o crime de genocídio não pode consumir os homicídios uma vez que o desvalor do homicídio
não está absorvido pelo desvalor do genocídio.
O genocídio não é, portanto, um crime complexo, em que ocorre a unificação legal, sob a
forma de um único crime, de duas ou mais figuras criminosas. É atípico um atuar qualquer com a
intenção de destruir um grupo específico de pessoas. Há um tipo penal que protege a existência do
grupo e que pode ser realizado por modalidades de agir que por si mesmas constituem crimes contra
bens jurídicos individuais.
Diante das considerações feitas, o relator concluiu que: a) houve continuidade delitiva entre
os diversos crimes de homicídio, pois, presentes os requisitos de identidade de crimes, condições de
tempo, lugar e maneira de execução (art. 71, parágrafo único do CP) 77; b) houve concurso formal
entre os crimes de homicídio e o crime de genocídio (art. 70, caput do CP78). Havendo concurso
entre crimes dolosos contra a vida (os homicídios) e o crime de genocídio, a competência para julgá-
los seria do tribunal do júri (art. 5, XXXVIII da CF e art. 78, I do CPP) 79.
Contudo, os recorrentes não foram condenados pelos crimes de homicídio, mas tão somente
pelo crime de genocídio, e o recurso foi exclusivo da defesa, vedada, pois, a reformatio in pejus80.
Em sendo o crime de genocídio um crime contra a existência de um grupo racial, étnico ou religioso,
e não um crime doloso contra a vida, a competência é do juízo monocrático.

6. O massacre de Haximu e seus antecedentes perante o Sistema Interamericano


de Direitos Humanos

6.1. O Caso 7615 – Brasil (1980-1985)

77
“Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e,
pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelahntes, devem os subsequentes ser havidos como
continuação do primeiro, aplica-selhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada,
em qualquer caso, de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços). Parágrafo único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes,
cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a
conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos
crimes, se identicas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art.
75 deste Código”. CP.
78
“Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-
lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de 1/6 (um
sexto) até ½ (metade). As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se ação ou omissão é dolosa e os crimes
concorrentes resultam de desígnos autônomos, consoante o disposto no artigo anterior. Parágrafo único. Não poderá a
pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.” CP
79
“Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: I – no
concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri;”. CPP.
80
Três dos recorrentes foram condenados a pena de 19 anos de reclusão e o quarto a pena de 20 anos de reclusão para o
crime de genocídio. Se, por hipótese, tivessem cometido doze homicídios sem intenção de destruir o grupo, a sanção
seria muito mais severa.
26

Em 15 de dezembro de 1980, foi interposta perante a CIDH uma petição em face do


Governo brasileiro na qual os peticionários (Indian Law Resource Center; American
Anthropological Association; Survival International; Anthropology Resource Center; Survival
International e outros) alegaram violações aos direitos humanos dos índios Yanomami previstos na
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, em particular: Direito à vida, à liberdade,
à segurança e integridade da pessoa (art. 1); direito à igualdade perante a lei (art. 2); direito à
liberdade religiosa e de culto (art. 3); direito à preservação da saúde e ao bem-estar (art. 11); direito à
educação (art. 12); direito ao reconhecimento da personalidade jurídica e dos direitos civis (art. 17);
e direito à propriedade (art. 23). Esse caso dos Yanomami tornou-se o “caso 7615” da CIDH, que o
conclui com sua resolução 12/8581, de 5 março de 1985.
A CIDH, ao analisar o caso, fez inicialmente um relatório da situação e registrou que com a
construção da Rodovia Perimetral Norte (BR-210) em 1973, o território em que habitavam os
Yanomami foi invadido por trabalhadores da construção da rodovia, geólogos, garimpeiros e colonos
desejosos de se assentar naquele território. Essas invasões ocorreram sem prévia e adequada proteção
à segurança e salubridade dos Yanomami, resultando em um considerável número de mortes por
epidemias de gripe, tuberculose, sarampo, malária, enfermidades venéreas etc.
Os indígenas que habitavam nas cercanias da rota da BR-210 abandonaram suas aldeias,
convertendo-se em mendigos ou prostitutas sem que o Governo brasileiro adotasse as medidas
necessárias para impedir essa situação. Com o descobrimento, em 1976, de estanho e outros metais
na região Yanomami, ocorreram graves conflitos que deram origem a atos de violência entre
garimpeiros e indígenas, afetando a vida, segurança, saúde e integridade cultural dos Yanomami.
Diante disso, a CIDH considerou que havia a responsabilidade do Estado brasileiro por
omissão, ou seja, por não haver adotado oportuna e eficazmente medidas para proteger os direitos
humanos dos Yanomami. Todavia, observa que, na primeira metade da década de 1980, o Governo
brasileiro adotou medidas para superar e aliviar os problemas dos Yanomami: a) em 12 de setembro
de 1984, o Presidente da FUNAI enviou proposta ao Grupo Interministerial de Trabalho, criado pelo
Decreto 88.118/1983, solicitando a definição e delimitação do Parque Yanomami, com uma
superfície de 9.419.108 hectares; b) a FUNAI com a colaboração de organizações não
governamentais estava executando um programa de salubridade entre os Yanomami, que incluía
vacinações preventivas e controle de epidemias; c) proibição de entrada e permanência de
garimpeiros na área proposta para a criação do Parque Yanomami.
Por fim, a CIDH resolveu declarar que existiam antecedentes e evidências para concluir
que, em razão da omissão do Governo brasileiro em adotar medidas oportunas e eficazes a favor dos
índios Yanomami, produziu-se uma situação que teve como resultado a violação dos direitos à vida,
à liberdade e à segurança (art. 1); direito de residência e transito (art. 8); e direito à preservação da
saúde e do bem-estar (art. 9), reconhecidos pela Declaração Americana dos Deveres e Direitos do
Homem. A CIDH, por outro lado, reconheceu as importantes medidas que o Governo brasileiro
passou a adotar para proteger a segurança, saúde e integridade dos índios Yanomami desde 1983.
E recomendou que: a) o Governo brasileiro continuasse a adotar medidas sanitárias de
caráter preventivo e curativo a fim de proteger a vida e a saúde dos índios exposto à enfermidades
infecto-contagiosas; b) o Governo brasileiro, por meio da FUNAI e em conformidade com sua
legislação, delimitasse e demarcasse o Parque Yanomami, tal como a FUNAI havia proposto ao
grupo interministerial de trabalho em 12 de setembro de 1984; c) os programas educacionais de
proteção médica e de integração social dos Yanomami fossem levados a cabo em consulta com a
população indígena afetada e com a assessoria de competente pessoal científico, médico e
antropológico; e d) o Governo brasileiro informasse à Comissão as medidas adotadas para
implementar as recomendações.

81
OEA/Ser.L/V/II.66, Doc. 10 rev. 1, 1.º octubre 1985, Informe Anual 1984-1985, Capítulo III – Resoluciones relativas a
casos individuales, Resolucion n.º 12/85, Caso n.º 7615 (Brasil), 5 de marzo de 1985.
27

Ainda no caso 7615, a CIDH observou que o Direito Internacional, tal como cristalizado
no art. 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, reconhece aos grupos étnicos o direito
a uma proteção especial para o uso de seu idioma, o exercício de sua religião e, em geral, de todas
aquelas características necessárias para a preservação de sua identidade cultural. Disse que já havia
em outro momento assinalado que considerava a proteção das populações indígenas, tanto por razões
históricas como por princípios morais e humanitários, um sagrado compromisso dos Estados.
Acrescentou que as violações a direitos humanos dos índios por parte de agentes do poder
público é reprovável e inaceitável, assim deve-se capacitar as pessoas que exercerão tarefas em
defesa dos direitos humanos dos indígenas, os quais não devem ser objeto de discriminação de
espécie alguma. Lembrou que a Organização dos Estados Americanos estabeleceu como ação
prioritária para os países-membros a preservação e o fortalecimento da herança cultural dos grupos
étnicos e a luta contra a discriminação, que anula seu potencial como seres humanos por meio da
destruição de sua identidade cultural e individualidade como povos indígenas.
O massacre de Haximu comprova que as medidas voltadas à proteção dos Yanomami não
foram tomadas ou foram parcialmente implementadas e abandonadas. Logo após o massacre, em
1993, foi promulgado o Decreto n.º 901, de 25 de agosto, que dispôs sobre a atuação do Ministro de
Estado Extraordinário para a Articulação de Ações na Amazônia Legal, e foi criado, pela Lei n.º
8.746, de 09 de dezembro, o Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal. Em 1994, o
Decreto nº 1.205, de 1.º de agosto, aprovou a Estrutura Regimental do Ministério do Meio Ambiente
e da Amazônia Legal, que em 1995, por força da Medida Provisória n.º 813, de 1.º de janeiro, passou
a se chamar Ministério do Meio Ambiente, de Recursos Hídricos e da Amazônia Legal. Em 1999, a
Medida Provisória n.º 1.795, de 1.º de janeiro transformou o Ministério do Meio Ambiente, dos
Recursos Hídricos e da Amazônia Legal em Ministério do Meio Ambiente.
Em abril de 1995, O CEJIL/Brasil e outras organizações não governamentais participaram
de uma reunião histórica com o presidente Fernando Henrique Cardoso, que permitiu a primeira
visita da CIDH na história do país, que ocorreu de 4 a 8 de dezembro de 199582.

6.2. O Caso 11.706 – Venezuela (1995-)

Em dezembro de 1996, o Escritório de Direitos Humanos do Vicariato Apostólico de Puerto


Ayacucho, o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil) e o Programa Venezuelano de
Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea) levaram o caso Haximu (o assassinato dos 12 índios
Yanomami por garimpeiros brasileiros na Amazônia venezuelana) ao sistema interamericano, após
não conseguir justiça na jurisdição nacional83. Esse caso se tornou o “Caso 11.706 - Venezuela” da
CIDH conhecido como Massacre de Haximu (Comunidade Indígena Yanomami). Cumpre ressaltar
que o caso não foi publicado, assim as informações obtidas e exaradas nesse ensaio são aquelas que
alcançaram a imprensa por parte das organizações peticionarias referidas nesse parágrafo.
Durante os governos de Jaime Lusinchi, Carlos Andrés Pérez, Ramón J. Velázquez e Rafael
Caldera, as instâncias venezuelanas negaram justiça ao tema. Em 10 de dezembro de 1999,
autoridades do governo venezuelano, encabeçado por Hugo Chávez e por estas organizações,

82
http://www.cejil.org/gacetas.cfm?id=36 Jan Rocha menciona que, no início de dezembro de 1996, o CEJIL, a Human
Rights Watch e várias organizações venezuelanas de direitos humanos acusaram o governo brasileiro como responsável
pelo massacre dos índios, devido à negligência e omissão, por haver permitido a presença de garimpeiros em território
Yanomami, levando o caso à CIDH. Ressaltando também que o governo brasileiro não demonstrou empenho para levar
aos tribunais e punir os responsáveis pela chacina. ROCHA, Jan. Haximu: o massacre dos Yanomami e as suas
conseqüências. Tradução Rubens Galves Merino. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2007, p. 58. Todavia, não há
nenhuma informação a respeito de um caso contra o Brasil em relação à Haximu, havendo sim um caso em face da
Venezuela, analisado em seguida. Inclusive nas informações a respeito desse caso, o Brasil é citado, seja em relação á
posição da Venezuela perante o julgamento e punição dos perpetradores, seja em relação à uma possível solução.
83
AHARORIAN, Aram. Novo reclamo por massacre de yanomamis em 1993. Adital, Nota de prensa Caracas, 03/03/04.
Caracas, Venezuela.
28

subscreveram um acordo de solução amistosa que, entre outros aspectos, incluía a adoção de um
plano de saúde para beneficiar o povo Yanomami e medidas para garantir o controle e a vigilância da
área territorial desta comunidade 84.
Entretanto, o Estado não materializou a maioria dos compromissos, segundo o Provea. As
organizações de direitos humanos denunciaram este descumprimento à CIDH e, em 27 de fevereiro
de 2003, aconteceu a audiência sobre o caso Haximu, em que as organizações apresentaram sua
última denúncia de descumprimento. Nesta audiência, mais uma vez o governo expressou sua
disposição de corrigir suas falhas e, neste sentido, aceitou a proposta de organizar para março duas
reuniões de caráter operativo, nas quais seriam estabelecidos prazos para que os compromissos
fossem cumpridos. Segundo as organizações peticionárias, há mais de um mês da data estipulada, o
Estado venezuelano descumpriu outra vez suas responsabilidades e se demonstrou inconseqüente em
relação a seu dever constitucional de melhorar as condições de vida dos povos indígenas. Além
disso, se denunciou a omissão e cumplicidade da Força Armadas Nacional no sul do país diante do
agravamento do problema da mineração ilegal, que afeta negativamente aos povos indígenas e que se
constituía em um risco de que se repitam as circunstancias que provocaram o massacre de Haximu.
Algumas organizações não governamentais começaram a se manifestar a favor de uma
visita da CIDH para acelerar o caso e estimular o respeito aos direitos dos povos indígenas. Diante da
nova falha do Estado, as organizações de direitos humanos deverão comunicar a CIDH a
possibilidade de se retirarem do acordo e solicitaram a continuação do procedimento jurídico nesta
instância regional.
Em reunião de 12 de maio de 2004 85, o representante da Venezuela ratificou a objeção ao
acordo original de solução amistosa, firmado em 1 de outubro de 1999, argumentando que os
acordos amistosos originados de uma denuncia perante a CIDH não podem ir além de uma
declaração de intenções ou propósitos políticos por parte do Estado; em nenhum caso podem
acarretar obrigações de caráter jurídico, uma vez que qualquer entendimento amistoso entre as partes
exige que se preserve o devido respeito à soberania do Estado.
Em resposta, as organizações peticionárias apontaram que esse posicionamento produz
como resultado uma descaracterização da solução amistosa que as impede de se manterem na busca
da mesma. Ressaltaram que a solução amistosa é prevista no marco de um instrumento de Direito
Internacional dos Direitos Humanos, em uma Convenção. Assim, trata-se de um mecanismo cujos
resultados são dotados de caráter de obrigatoriedade em razão da natureza do próprio tratado. A
solução amistosa somente pode ser acordada se restar garantido o respeito aos direitos humanos
protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, em conformidade com o art. 48.1.f.
No escopo desse ensaio, cumpre destacar que no do acordo amistoso de 1999, a Venezuela
assumiu a obrigação de fazer um acompanhamento da investigação judicial que teve prosseguimento
no Brasil com a finalidade de se estabelecer as responsabilidades e se aplicar as sanções 86.. Assim, o
Estado venezuelano se comprometeu a informar por escrito aos peticionários e à CIDH a respeito de

84
Pontos do acordo amistoso subscrito pela Venezuela: a) implementação de um plano de saúde para o povo Yanomami;
b) realização de reformas legislativas para a proteção dos Yanomami; c) consulta obrigatória com os povos indígenas
para a outorga de permissão para explorar os recursos naturais encontrados nos habitat indígenas; c) um plano de
vigilância e controle da atividade de garimpo na área, incluindo a assinatura de um acordo binacional com o Brasil a fim
de estabelecer um plano de vigilância e controle da atividade de garimpo na área. Casos Haximu y jubilados de Viasa em
mesas de trabajo de la CIDH, Provea participa en el 119 período ordinario de sesiones de la CIDH iniciado el 26.02.04.
Washington, 03/03/04. Ver também: Editorial Direitos econômicos, sociais e culturais no Sistema Interamericano. CEJIL
Gazeta, n.º 12, p. 2, 2001. http://www.cejil.org/gacetas/cejil12b.pdf.
85
CANTÓN, Santiago. Caso No. 11.706, Venezuela. Masacre de Haximú (Comunidad Indígena Yanomami).
Observaciones a la comunicación del Estado de 19 de mayo de 2004. Puerto Ayacucho y Washington, 25 de Junio de
2004.
86
Venezuela não investigou ou processou os responsáveis. Venezuela, Human Rights Development.
http://www.hrw.org/reports/1997/WR97/AMERICAS-08.htm
29

suas ações voltadas a determinar o desenvolvimento e o resultado da investigação judicial no Brasil e


a situação jurídica das pessoas envolvidas na investigação.
Em seu comunicado de 19 de maio de 200487, em resposta às perguntas a respeito do estado
do processo judicial dos garimpeiros, a Venezuela se limitou a informar que deveriam se dirigir ao
Brasil e solicitar diretamente às autoridades brasileiras as informações do processo judicial. As
organizações consideraram que a decisão da Venezuela de aceitar que o Brasil se encarregasse de
julgar e punir os responsáveis pelo massacre de Haximu não significa que o Estado venezuelano
possa se desligar da obrigação de reparar, em termos de investigar, julgar e sancionar as violações
dos direitos humanos do povo Yanomami protegidos pela Convenção Americana. Assim, deve
acompanhar a investigação e o processo com o objetivo de que os perpetradores do massacre não
fiquem impunes, assim como informar às peticionarias e à CIDH. A Venezuela tem, portanto, o
dever de garantir às vítimas do massacre de Haximu o direito à justiça e à verdade.

7. Conclusão

O julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário 351.487-3/RR, referente ao massacre de


Haximu demonstra a interface entre o Direito Constitucional, o Direito Internacional e as Relações
Internacionais88, permitindo a identificação de uma rota de mão dupla entre as normas, doutrinas e
jurisprudências nacionais e internacionais. Além disso, constitui um marco na jurisprudência
brasileira por introduzir a discussão de temas relevantes ao crime de genocídio e colocar um fim à
longa espera de mais de 10 anos por Justiça, não no Brasil, mas também na Venezuela.
Como visto, o voto do relator foi pautado por referências à doutrina e às normas de Direito
Internacional e Direito Comparado, que iluminaram o entendimento do conceito de genocídio, de
bem jurídico protegido e mesmo a interpretação das normas para decidir a competência em razão da
conexão do crime de genocídio com os atos de genocídio que, por sua vez, também constituem tipos
penais autônomos. No caso Haximu, como os perpetradores foram denunciados somente pelo crime
de genocídio, determinou-se que a competência era do juiz federal singular. Caso tivessem sido
denunciados pelo genocídio e pelos homicídios a competência seria do Tribunal do Júri federal.
Como ressaltado, a interação entre o internacional e o nacional, poderia ter sido mais
explorada pela utilização de normas constitucionais que inserem as normas internacionais de modo
explícito em determinadas questões, principalmente relacionadas a direitos humanos. Também em
um caso envolvendo o genocídio de indígenas, assim como as questões relativas às terras indígenas,
é primordial que o STF discuta a aplicação do princípio da autodeterminação dos povos, previsto
constitucionalmente, em âmbito interno, com o fim de zelar pela pluralidade humana.
Esse comentário ganha ainda mais relevo ao se recordar que foi no contexto das violações
aos direitos dos Yanomami, que o Brasil recebeu a primeira visita da CIDH em sua história. Esse
fato faz recordar que além da jurisdição brasileira, há o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos, ao qual o Brasil se comprometeu ratificando tratados e aceitando a competência da Corte
Interamericana para julgar casos contenciosos.
Na outra via, ou seja, do doméstico ao internacional, a contribuição fica por conta de se
considerar como genocídio o crime que vitimou os Yanomami, causando a morte de 12 índios (ou
dezesseis, caso sejam considerados os índios assinados antes do massacre). A denúncia poderia ter
sido mais enfática, incluindo as lesões causadas em outros índios, bem como o deslocamento que os
Yanomami tiveram que empreender em razão do medo da perseguição. Não obstante esse
comentário, o julgamento do STF fortalece a tese de que o chamado “teste quantitativo” para se
constatar o crime de genocídio é muito mais do que um simples jogo de números. Por ser o
genocídio um crime de intenção, a questão fundamental é indagar qual era o propósito do

87
Derechos de los Pueblos Indígenas. http://www.derechos.org.ve/recursos/alegal/haximu/
88
(LAFER em Relações Internacionais e Racismo)] LAFER, Celso. P. 1.
30

perpetrador, e não qual foi o resultado. Mesmo se uns poucos são mortos ou feridos, o crime será de
genocídio se a intenção do perpetrador era destruir o grupo em todo ou em parte.
Quando há um número grande de vítimas esse intento é relativamente fácil de ser provado,
sendo uma dedução lógica dos fatos. Mas, quando o número não é tão elevado, alguns outros
elementos serão necessários, tais como evidência de declarações genocidas, atos de violência,
destruição do patrimônio. No caso dos índios, seu maior patrimônio é sua terra (a floresta, as águas,
os animais) e sua cultura, os quais na verdade se mesclam e se manifestam principalmente em rituais
e não em monumentos. Tudo isso torna ainda mais complicado a produção de elementos
comprobatórios. Nesse sentido, a outra contribuição ao Direito Internacional do caso Haximu foi a
proporcionalidade encontrada entre a necessidade de provas e o respeito à cultura dos Yanomami.
Deve-se ressaltar a relação necessária entre a inserção do tema nos debates públicos em
razão da existência por si só do julgamento jurídico e a problematização do preconceito existente na
sociedade brasileira para com os povos indígenas. A sociedade brasileira perde uma grande chance
de não dar o devido valor ao debate público na medida em que trata esse julgamento de forma
tangencial. Acredita-se que a discussão do próprio conceito de genocídio pode contribuir para que a
sociedade brasileira se questione a respeito dos motivos que levam à perpetração desse crime e das
possíveis medidas a serem tomadas para se evitar sua ocorrência.
Não se trata apenas de uma questão de direitos dos povos indígenas, tão distantes da
realidade de grande parte da população, ou pelo menos, daquela com maior influência política, mas
também da garantia de um futuro melhor para a sociedade como um todo. Há diferentes modos de se
entender o desenvolvimento, e aquele que leva à prática do genocídio definitivamente não é o
melhor. Os índios também têm direito ao desenvolvimento, mas segundo suas tradições e crenças,
devendo-lhes ser garantido o espaço para realizar suas capacidades como seres humanos. A
existência física e cultural dos índios é um valor universal e sua destruição é uma perda para toda a
humanidade.
Resta concluir que, ainda que tardiamente, houve uma resposta à perspectiva de repressão
ao crime de genocídio – Massacre Haximu -, de acordo com a Convenção para a Repressão e
Prevenção do Crime de Genocídio (1948). Todavia, a grande falha deste instrumento internacional
reside na tarefa de prevenir o genocídio 89 e parece ter se refletido no Estado brasileiro. No Brasil, o
massacre de Haximu testemunhou a inabilidade dos Governos de controlar um processo que eles
mesmos desencadearam e de garantir a proteção das pessoas mais vulneráveis em seu território.
O julgamento do Massacre de Haximu foi de extrema importância para a memória jurídica,
mas só ela não é suficiente, visto que as ameaças sejam relacionadas a epidemias, sejam relacionadas
à vida de lideranças indígenas, ou aos próprios grupos indígenas persistem ainda hoje. Para ilustrar,
ao final de 2007, registra-se que: a operação Rio Pardo investiga indícios de genocídio, um novo
surto de malária recaiu sobre os Yanomami90 e David Kopenawa, líder Yanomami, foi ameaçado de
morte91. O desenvolvimento de uma política de prevenção ao genocídio dos povos indígenas no

89
Apesar do dever constar na Convenção, não há um órgão de monitoramento e nem um consenso a respeito da sua
extensão, pairando ainda sem uma resposta a pergunta se os Estados teriam a obrigação jurídica de empreender medidas,
incluindo a intervenção militar, autorizada pelo Conselho de Segurança, para evitar a ocorrência do crime. Ressalte-se
que a questão não é onde intervir, mas se há a obrigação de intervir.
90
Há casos ainda de tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis, meningite e câncer. Os funcionários da Fundação
Nacional de Saúde têm dificuldade de prestar atendimento por causa da falta de remédios e equipamentos, e também pela
extensão da área. VASSALO, Camila. Índios yanomami sofrem com surto de malária em Roraima e no Amazonas.
Agência Brasil, 20/12/2007.
91
Davi Kopenawa enviou, em 8 de novembro de 2007, carta ao Procurador Geral da República de Roraima, Antonio
Morimoto, pedindo investigações, proteção e garantia de vida diante de ameaça que teria sido feita por fazendeiro da
região de Ajarani, Roraima, que se localiza na Terra Indígena Yanomami. Os Yawaripé, subgrupo Yanomami, sempre
viveram nessa região. Pressionados pela construção da rodovia Perimetral Norte, na década de 1970, e por seguidas
invasões de suas terras, muitos morreram de doenças e tiveram seu modo de vida tradicional desestruturado. Até mesmo
um distrito agropecuário foi criado pelo Incra em suas terras, em 1977. Os índios resistiram e passaram a disputar a posse
31

Brasil é medida de extrema urgência. O caminho de omissão já foi longo demais e ceifou muitas
vidas.
Esse ensaio encerra-se com o pedido de proteção pelos Yanomami em face da invasão de
seu território por garimpeiros em finais de 2007 92. A carta-denúncia resume a realidade complexa
que congrega: a responsabilidade de proteção do Estado, a violação dos direitos dos povos indígenas
pela invasão de seu território, a persistência dessa situação sem uma resposta imediata do Estado, a
consciência de interdependência e solidariedade dos Yanomami, a busca pela proteção do meio
ambiente e mais de 30 anos sem uma política de prevenção contra o genocídio; conforme segue:

Posto Yano, 21/11/2007


Sim, eu mando nosso documento a vocês, lideranças da Funai.
Os garimpeiros estão trabalhando em nossa terra-floresta, por isso estamos
entristecidos. Por isso nós pedimos a vocês, os garimpeiros estão se aproximando
cada vez mais de nossa terra.
Durante à noite três aviões passaram, à 1 hora da manhã, o que nos deixou
preocupados. Nós Yanomami enviamos este documento a vocês, grandes homens da
Funai. Vocês devem realmente nos reter em suas mãos, vocês da Funai.
Sim, fui eu quem também os viu, no dia 22 de outubro. Era assim que eles
se encontravam: os garimpeiros fizeram uma grande clareira onde se encontram.
Envio este documento para que vocês mandem a polícia, para que expulsem os
garimpeiros e nos retenham em segurança em suas mãos.
Nós não queremos beber água poluída. Queremos viver uns ajudando aos
outros, inclusive vocês da Funai. Queremos ficar felizes quando vocês nos tiverem
em suas mãos. Por essa razão enviamos este documento. Os garimpeiros penetraram
em nossa terra-floresta, vocês da Funai devem voltar a expulsá-los. Enviem polícia,
pois os garimpeiros degradam nossa floresta.
Estamos tristes pois hoje mesmo, às 9 horas da manhã, outro avião voltou
a passar.
Platão Tixonari Yanomami, professor

A Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio


(1948) não é um monumento ao passado e sim um instrumento para o presente e o futuro 93.

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da terra e dos recursos naturais com os intrusos que continuaram na área, ampliaram as benfeitorias e reivindicaram a
propriedade da terra, ignorando a demarcação (1991) e homologação (1992) da região, parte integrante da Terra Indígena
Yanomami. Finalmente, em maio de 2004, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal reconheceu que as terras região do
Ajarani, no município de Caracaraí (RR), no extremo leste da Terra Indígena Yanomami, pertenciam aos Yawaripë. Davi
Kopenawa é ameaçado de morte por fazendeiro em Roraima. Instituto Socioambiental, 12/11/ 2007.
92
Carta denúncia em português. Tradução: Luis Fernando Pereira.Garimpos ilegais são localizados por Yanomami
dentro de terra indígena. Boletim Pró-Yanomami n.º 90, 3/12/2007.
93
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