Sei sulla pagina 1di 13

LIBERDADE

RICOEUR, Paul. Liberté. In: Encyclopaedia universalis. Paris: Encyclopaedia Universalis France.
1968. v. 9, p. 979-985.

1) O discurso descritivo: o que é uma ação livre?


A linguagem da ação
A intenção e o motivo
Intenção e fim
Projeto e decisão
O agente responsável

2) O segundo discurso: a liberdade sensata


Da liberdade arbitrária ao campo da
política
Ética e política em Aristóteles
Estilhaçamento da síntese kantiana
A dialética hegeliana.

3) O terceiro discurso: liberdade e ontologia


Ser do ato e ética da ação
O surgimento da subjetividade
Antinomia da liberdade e da natureza
O questionamento do "espírito"
hegeliano.
2

Introdução
A questão da liberdade pode ser abordada em três níveis diferentes, nos quais cada um apela para um
tipo próprio de discurso.
Num primeiro nível, o da linguagem ordinária, "livre" é um adjetivo que caracteriza certas ações
humanas apresentando aspectos marcantes: são ações intencionais ou feitas com certa intenção; são
explicados por motivos, dando-se a essa palavra o sentido de "razão de agir" antes que o de "causa"; são
atribuídos a um agente responsável etc. Dizer que uma ação é "livre" é então prescrever que se a coloque na
categoria das ações que apresentam esses aspectos marcantes, e, ao mesmo tempo, se exclua a sua
colocação na categoria das ações que apresentem aspectos contrários, por exemplo, que sejam feitos a
contragosto. A expressão "livre", faz, portanto, parte de um universo do discurso no qual se encontram
palavras como: "projeto", "motivo", "decisão", "razão de agir", "autor responsável" etc.; definir a palavra "livre"
é assim religá-la a toda essa rede de noções em que cada uma remete a todas as outras.
Num segundo nível, o da reflexão moral e política, a liberdade não é mais somente uma característica
que distingue certas ações de outras ações conhecidas como não livres: a palavra designa uma tarefa, uma
exigência, um valor, em poucas palavras, alguma coisa que deve ser e que ainda não é; refletir sobre a
liberdade é refletir sobra as condições de sua realização na vida humana, na história, no plano das
instituições. É num outro tipo de discurso filosófico que a questão do valor da liberdade pode ser articulado;
esse discurso não consiste mais em descrever a classe das ações consideradas livres pela linguagem
ordinária, ele prescreve o próprio caminho da libertação. A partir daí a própria palavra "liberdade" figura e
funciona numa rede diferente da precedente, encontram-se aí expressões como: "norma", "lei", "instituição",
"poder político" etc. Deslocada para esse novo contexto, a palavra "liberdade" encontra-se ordinariamente no
plural: falar-se-á das "liberdades": civis, políticas, econômicas, sociais. Por essas liberdades entender-se-á
menos o poder de fazer ou de não fazer – como é o caso no primeiro discurso – do que certo número de
direitos, que só existem se são reconhecidos pelos outros e instaurados nas instituições de caráter
econômico, social, político.
Num terceiro nível, o da filosofia fundamental, o discurso sobre a liberdade procede de uma questão:
como a realidade no seu conjunto deve ser constituída para que haja em seu seio algo como a liberdade?
Essa questão única, se aproximada às duas investigações precedentes, pode ser formulada de uma dupla
maneira: o que é a realidade para que o homem aí seja um agente, i. é, autor de seus atos, como descreveu
o primeiro discurso? E o que é a realidade para que seja possível um empreendimento moral e político de
libertação, como o segundo discurso o terá prescrito? Essa questão – simples ou dupla – é, no sentido
próprio do termo, uma questão ontológica, i. é, uma questão sobre o ser da liberdade. Ela coloca a palavra
"liberdade" num outro campo de noções, no qual se encontram expressões como "causalidade",
"necessidade", "determinismo", "contingência", "possibilidade" etc., todas concernentes ao modo de ser.
Situar a liberdade entre os modos de ser, eis a tarefa deste terceiro discurso. É-nos proposto aqui mostrar
que esse discurso não é independente dos dois primeiros; pois estes já contêm indicações, índices,
apontando em direção ao modo de ser livre; tratar-se-á então de desenvolver essas sugestões,
implicitamente contidas nos dois primeiros discursos, e de ligá-las a uma problemática, a um modo de
questionamento que lhes revelem a dimensão propriamente filosófica.

1) O discurso descritivo: o que é uma ação livre?


Uma parte da filosofia contemporânea – a análise lingüística da escola de Oxford, a fenomenologia de
Husserl e de seus discípulos franceses – empenha-se em clarificar a linguagem ordinária na qual se fala da
ação livre. Para tal filosofia, atenta sobretudo às finezas e às nuances da linguagem corrente, a liberdade não
é de modo algum uma entidade, uma espécie de ser: é uma característica, expressa por um adjetivo que se 980
aplica / a certas ações humanas. Se, pois, há uma linguagem da liberdade, é inicialmente porque há uma
linguagem da ação. É esta que deve ser reconhecida primeiramente e no seu conjunto.

A linguagem da ação.

Agir, fazer, essas duas palavras designam o vasto domínio dos comportamentos ou das condutas pelos
quais o homem produz transformação no seu meio físico ou no seu ambiente social; todo mundo compreende
a diferença entre transformar as coisas ou simplesmente considerá-las; a essa diferença maior corresponde a
distinção entre o prático e o teórico, encontrada na maior parte das filosofias. Ora, se se compreende o que
significa "agir", por contraste com simplesmente "perceber", "conhecer", "compreender", "descrever", é porque
a linguagem ordinária acumulou, com a ajuda duma experiência milenar, um tesouro de expressões
apropriadas que, de alguma forma, cobrem totalmente o domínio da ação.
3

A linguagem habitual, sob esse aspecto, domina-o já há muito mais tempo que toda a filosofia; ela
dispõe de toda uma bateria de expressões para dizer não somente a oposição do livre e do não-livre, mas as
inumeráveis nuances que marcam os graus da liberdade; é interessante, sob esse aspecto, auscultar a
linguagem das desculpas; dizer que se fez alguma coisa intencionalmente, por inadvertência, sem o fazer
explicitamente, naturalmente, a contragosto – mesma quantidade de expressões que modulam a significação
da ação do ponto de vista dos graus de liberdade.
A primeira tarefa dum filósofo preocupado em ater-se o mais próximo do "dizer do fazer" é fazer justiça
globalmente à linguagem da ação; não haveria significação do livre e do não-livre se não houvesse
inicialmente uma significação da ação como tal. Ora, há duas maneiras de nos equivocarmos quanto a essa
linguagem da ação.
Pode-se inicialmente confundi-la com uma linguagem que lhe é muito semelhante, mas que contudo se
estende num outro universo do discurso: é a linguagem que exprime a ação nos termos dos movimentos que
se observam na natureza. A linguagem da ação não é a linguagem do movimento: um movimento é algo que
chega e que se constata; uma ação é algo que se faz chegar e que se sabe fazer. Consideremos os dois
enunciados seguintes: "Os músculos do braço se contraem" e "Levanto o braço para indicar que vou virar". O
primeiro enunciado é um enunciado sobre um movimento, i. é, sobre um acontecimento que chega no mundo
e que se pode observar de fora; o segundo é um enunciado sobre uma ação; tem o sentido duma ação para
quem quer que dele fale no local mesmo da ação, por exemplo para comandá-la ou para dar conta dela a
outrem.
Mas esse reconhecimento da especificidade do domínio da ação reclama um segundo contraste: não
mais entre uma ação (que se faz) e um movimento (que se observa), mas entre características que se
aplicam à ação visível e, se se pode dizer, pública, de um lado, e as mesmas características reduzidas ao
estado de "entidade" mental, de outro lado, a saber, a "idéia" que só existiria no interior do pensamento. Essa
construção ruim da linguagem é responsável por muitos revezes no domínio da filosofia da ação livre;
apresenta-se ordinariamente uma intenção ou um motivo como uma "idéia" despojada de todo caráter físico e
material, e se pergunta como tal idéia, saída do pensamento, poderia produzir um movimento, inscrito na
matéria. Esse problema da passagem da idéia ao movimento é um obstáculo prévio a toda a reflexão sobre a
liberdade.
Ora, um simples retorno à linguagem ordinária e ao tipo de inteligência que ela veicula, é suficiente
para dissolver – antes que para resolver – o problema surgido de uma construção ruim da gramática da
nossa linguagem. Acaba-se de dizer que, para a linguagem ordinária, a ação não é um movimento; a análise
ulterior mostrará que a intenção (de fazer isso ou aquilo) não é mais que uma idéia no pensamento que
precederia o movimento e o produziria por um tipo de operação mágica transformando a idéia em movimento.
Há, pois, uma gramática da ação com características próprias e que não saberia ser derivada de
nenhum conjunto de enunciados tendo por objetivo acontecimentos – quer sejam físicos ou mentais – e suas
propriedades. A linguagem oferece, sob esse aspecto, construções muito notáveis: assim a dos verbos de
ação, remetendo a um agente, a objetos da ação (complementos diretos de verbos transitivos), aos meios, às
circunstâncias de lugar e de tempo etc.; é por essa gramática dos verbos de ação que nós fazemos passar
tudo o que dizemos no que fazemos. Um dos aspectos mais interessantes dessa gramática da ação concerne
ao que nas gramáticas ordinárias se chama os "modos" (indicativo, imperativo, subjuntivo, optativo etc.); ora,
boa parte de nossos enunciados sobre a ação é feita em outros modos que não o indicativo; da mesma forma
que este convém à descrição dos movimentos observados na realidade, assim também o imperativo, o
optativo (e eventualmente outros modos) convêm à expressão da ação enquanto é comandada a outros ou a
si mesmo ou enquanto com ela se forma o desejo, a aspiração, a intenção. Filósofos ingleses foram assim
levados a distinguir os enunciados "performativos" dos enunciados "indicativos": nessa distinção gramatical
reflete-se alguma coisa da distinção examinada aqui entre um acontecimento (que se constata) e uma ação
(que se realiza).

A intenção e o motivo

Sendo a linguagem da ação assim reconhecida segundo sua gramática própria, como situar a
expressão "ação livre" na rede das noções que se eleva desse universo do discurso da ação?
O caráter de liberdade se explica por alguns dos termos de base ao redor dos quais gravitam todas as
outras expressões da rede. Consideraremos alguns que, interdefinindo-se, definem também o que todos
chamam de ação livre.
O primeiro termo é o da ação intencional. Essa expressão é ela mesma empregada e entendida pelos
interlocutores segundo vários contextos diferentes; como nas três fórmulas: tenho a intenção de (fazer isto ou
aquilo); (tal ação foi feita) intencionalmente; (faço isto ou aquilo) com a intenção de (obter este ou aquele
resultado), nós só compreendemos a intenção em ligação com uma ação da qual o discurso faça menção. O
4

que se acrescenta a essa designação da ação ao afirmá-la intencional? Para responder a essa questão é
necessário interrogar os contextos nos quais essa expressão é tida por significante.
É aí que a noção de intenção evoca a de motivo. Assim é nas expressões em que se diz que uma ação
foi feita intencionalmente. Aquelas em que se diz agir nessa ou naquela intenção remetem antes às noções
de projeto e de fim.
Consideremos então essa ligação entre intenção e motivo. Para isso examinemos o uso do termo
intenção. É empregado em geral nos enunciados que são respostas a questões da forma: o que você faz e
por que você o faz? Na verdade, essas duas questões formam uma só. A resposta à pergunta "o que?"
encontra-se plenamente desenvolvida na resposta à pergunta "por quê?".
Ora, nós só alegamos uma intenção nos casos em que a resposta à pergunta "por quê?" evoque um
motivo que tenha para nós o sentido duma "razão de agir" e não o sentido duma "causa"; chamar uma razão
de intencional é então inicialmente excluir uma certa explicação, a explicação pela causa. Certamente há
motivos que se assemelham a causas; são os motivos dos quais se pode dizer que "olham para trás": vingo-
me porque um fulano matou meu pai; expresso minha gratidão porque alguém me concedeu um favor; tenho
pena porque um sujeito caiu em desgraça. Mas, se é verdade que o motivo olha para trás, ele não impele do
mesmo modo que uma causa. Não é o acontecimento passado enquanto tal que produz meu sentimento
atual, minha ação presente, mas certa característica desse acontecimento, característica julgada boa ou ruim,
à qual a ação responde; é por isso que dizemos: por vingança, por pena etc.; um acontecimento passado só
motiva uma ação presente pela intermediação duma característica desejável, positiva ou negativa, que é, ela
mesma, avaliada, interpretada.
Esse aspecto é mais fortemente marcado quando o motivo alegado não é nem um antecedente nem
um conseqüente da ação, mas uma maneira de interpretar a ação; dou a você esta ou aquela razão pela qual
eu agi, isso quer dizer: peço-lhe que considere a ação sob certo enfoque, sob certa luz, que a considere
como...; alegar um motivo, com o sentido de uma razão de agir, é tentar dar uma significação suscetível de
ser comunicada a outrem e compreendida por ele; o motivo faz com que a ação seja tal, que tenha tais
características, que possa ser compreendida a partir de tal ponto de vista, ser inserida numa ordem de
significações psicológicas, morais, sociais, culturais, compreendida por outrem; em poucas palavras, alegar
um motivo é tornar claro o que se faz aos olhos de outrem e aos seus próprios olhos.
Uma primeira aproximação da noção de liberdade resulta dessa análise das noções de intenção e de
motivo na linguagem ordinária; uma ação é reconhecida como livre se se pode dar contas dela a outra pessoa
e a si mesmo alegando motivos que tenham a significação de "razão de..." e não a significação de "causa".
Chamamos de "forçadas" as ações que não podemos explicar por motivos com sentido de "razão de", mas
com o sentido de "causa". E como um grande número de nossas ações se encontra no intervalo entre "razão
de..." e a "causa", essas ações apresentam aos nossos olhos e aos olhos de nossos interlocutores todos os
graus intermediários entre o "livre" e o "forçado"; sob esse ponto de vista, para a linguagem ordinária,
liberdade e constrangimento não estão absolutamente separadas por um fosso intransponível, são dois pólos
aos quais referimos todos os graus do "livre" e do "menos livre", do "forçado" e do "menos forçado". A arte da
conversação mostra-se superior, mais que os filósofos, neste jogo dos graus e das nuances.

Intenção e fim

A quais ações reconhecer-se-á mais ordinariamente o caráter de livre? Àquelas cuja intenção
apresente um aspecto marcante que exprimimos geralmente dizendo que fazemos isto ou aquilo "com tal
intenção"; aqui, a intenção designa menos uma característica pela qual torna-se inteligível o que se faz – isto
é, uma maneira de interpretar uma ação do mesmo modo que um texto que se faz compreensível colocando-
o num contexto apropriado – do que a visão distante, ou seja, um resultado ulterior posto em posição de fim,
em relação a todas as ações intercaladas postas em posição de meio; uma ação é intencional, no sentido
mais forte da palavra, quando ela é dessa maneira posta na perspectiva duma cadeia de meios e de fins e
recebe desse encadeamento uma estrutura articulada.
Sob esse aspecto, os enunciados que descrevem uma ação isolada (como no exemplo inicial: "Levanto
o braço") são apenas / enunciados de ação; falta-lhes a característica da discursividade que confere à ação "a 981
intenção com a qual" se faz alguma coisa. Um verdadeiro enunciado de ação comporta pelo menos dois
segmentos de ação ordenados um em relação ao outro: "Levanto o braço para indicar que vou virar"; dois
enunciados assim articulados produzem não somente uma semântica, mas uma sintaxe de ação: "Faço P de
maneira que Q".
O que chamamos então de intenção é bem mais próximo do raciocínio do que da idéia; ela se formula,
de fato, numa cadeia de enunciados que, todos juntos, designam "a ordem" da ação; aquilo que, desde
Aristóteles, chamamos de raciocínio prático, só exprime, na linguagem formal da lógica, essa colocação em
ordem da ação pela intenção; não é porque o raciocínio tira uma conclusão a partir de princípios que ele
5

cessa de ser prático e oscile ao lado da teoria ou da especulação; o verdadeiro raciocínio prático tem sempre
como ponto de partida alguma coisa de desejado; ele classifica, ordena, estratifica os caracteres de
desejabilidade que se ligam aos degraus sucessivos da ação. Fazendo assim consentir seus desejos na
linguagem através de "caracteres de desejabilidade", o sujeito falante situa seus desejos mesmos num
cálculo de meios e fins. Aí está o primeiro grau da liberdade: ser capaz, não somente de "sofrer", de
"padecer" seus desejos, mas de os transpor para a linguagem enunciando a característica de desejabilidade
que lhes é própria e submetendo o encadeamento da ação ao cálculo dos meios e dos fins. O desejo não é
mais então uma simples "impressão", ele é posto à distância, em posição afastada do fim, em relação ao
conjunto das vias e dos meios, dos obstáculos e dos instrumentos que a ação deve atravessar para
"preencher" a intenção.
O que acabamos de descrever, com os recursos da análise da linguagem ordinária, é o que a
fenomenologia da ação, desde Aristóteles até nossos dias, chamou com diferentes nomes. Aristóteles
denomina-a "preferência"; na primeira fenomenologia da vontade que, sem dúvida, foi escrita – a saber, o
livro III da Ética a Nicômaco –, Aristóteles considera uma série de círculos concêntricos nos quais situamos
nossa ação: o círculo mais amplo é o das ações que fazemos naturalmente ou de bom grado; são as que
fazemos espontaneamente, sem sermos forçados, nem interior nem exteriormente, entre essas ações, há
aquelas que são simplesmente desejadas e cuja execução não depende de nós mais do que de algum outro
ou do acaso e aquelas que dependem de nós para serem feitas ou não. É entre estas últimas que se dividem
as ações que se podem dizer verdadeiramente preferidas porque elas são pré-deliberadas. Ora, o homem
não delibera fins, mas meios; é pois na articulação dos meios com relação aos fins que consistem as ações
das quais se pode dizer que são, por excelência, nossa obra.
Acaba-se de encontrar na "preferência", segundo Aristóteles, os aspectos do que uma análise da
linguagem ordinária descobre nas noções de intenção, de motivo e de fim; o mesmo trabalho de releitura
poderia ser aplicado às partes descritivas da filosofia prática de Kant; evocá-la-emos a propósito do "segundo
discurso" sobre a ação livre; as noções de dever e de lei determinam sem dúvida o que Kant chama de
vontade objetiva; mas, num ser como o homem, no qual a vontade é afetada pelo desejo, a vontade subjetiva
está na encruzilhada do dever e do desejo; a ação concreta apresenta então os aspectos que a linguagem
ordinária lhe reconhece; e Kant chama "máximas" aos princípios práticos nos quais "a condição é
considerada pelo sujeito como válida somente para sua vontade"; e ele reconhece que "na vontade, afetada
'patologicamente', de um ser racional, pode haver conflito entre as máximas e as leis práticas reconhecidas
pelo próprio ser" (Crítica da Razão Prática, livro I, cap. 1, parág. 1). O que Kant aí denomina máxima ou
princípio prático subjetivo é o que todos chamam de intenção na qual se age; é também o que, no quadro de
outra filosofia, Aristóteles chamara de preferência.

Projeto e Decisão

A filosofia moderna insistiu em geral sobre outros aspectos da ação livre para os quais ela adota um
outro vocabulário; ela fala de bom grado de "projeto" para designar o caráter de antecipação da ação pela
intenção, pondo assim o acento mais sobre o caráter "lançado para frente" da intenção do que sobre a função
de explicação, de legitimação, de justificação do motivo; ao mesmo tempo, ela acentua um aspecto já
sublinhado pelos escolásticos e por Descartes, a saber, que o lado racional do cálculo dos meios e dos fins é
a contrapartida de um caráter irracional que se une à iniciativa, à colocação em movimento e à parada da
deliberação mesma. Esse aspecto, sustentado pela metáfora da espada que corta o nó górdio exprime-se
melhor pelas palavras "decisão" e "escolha" do que pela expressão kantiana "máxima". O jeto do projeto está
totalmente nesse ato soberano que a tradição escolástica, antes de Descartes, enunciava como o poder
sobre os contrários; é sem dúvida a favor da reação contra o racionalismo hegeliano e sob o impulso de
Kierkegaard que a filosofia moderna, em particular a existencialista, acentuou o caráter de alternativa, o "ou
...ou" da ação livre.
Uma filosofia mais atenta à linguagem ordinária corrigirá essas interpretações unilaterais restituindo a
rede integral das expressões e das noções que constituem o discurso da ação. Numa linguagem completa
sobre a ação, só há projetos porque há motivos, e só há decisões porque há cálculos; decide-se alguma
coisa, mas toma-se essa decisão porque; assim o "irracionalismo" da decisão e da escolha reenviam ao
"racionalismo" do cálculo dos meios e dos fins. Uma linguagem da ação só pode então funcionar se todas
essas expressões se equilibram: projeto e motivo, decisão e raciocínio prático.

O Agente Responsável

Chegou o momento de introduzir o último aspecto, o mais difícil de ser situado na rede do discurso da
ação: ele concerne ao sujeito da ação; aqui ainda a linguagem é um bom guia; do mesmo modo que se diz:
6

"Decidir alguma coisa" e "decidir porque...”, diz-se: "decidir-se". A forma pronominal do verbo é um dos meios
gramaticais empregados por certas línguas para designar o caráter marcante das expressões da ação, a
saber, que elas mencionam ao mesmo tempo a coisa feita ou a ser feita, as razões de fazer, o ato que decide
a alternativa e enfim o agente, aquele que faz; a linguagem da ação, pode-se dizer, é "auto-referencial"(sui-
référentiel); aquele que faz se designa a si mesmo enunciando seu fazer; essa auto-implicação do agente da
ação no enunciado da ação exprime um aspecto fundamental da ação humana: ela pode ser destinada ou
imputada a alguém; da mesma maneira que o discurso da ação implica na distinção entre a ação e o
movimento, entre o performativo e o constativo, entre o motivo e a causa, esse mesmo discurso da ação
implica na distinção entre um agente que é uma pessoa e o antecedente constante de um acontecimento no
mundo.
Essa assignação a alguém é o que chamamos de responsabilidade e que comporta outros aspectos
que só aparecerão no segundo discurso sobre a liberdade. É porque a ação pode ser assignada a um agente
que os enunciados sobre a ação podem sempre ser reformulados de tal modo que essa assignação passe
para o primeiro plano. É sempre possível dizer: "Fui eu que fiz isso" ou "foste tu que fizeste isso"; pode-se
chamar a isso de julgamento de imputação; somente uma ação pode ser imputada, não um movimento. Esse
caráter de poder ser imputada a alguém é uma das coisas que nós compreendemos e que pressupomos
quando consideramos uma ação como "livre".
Em resumo, para uma análise que não ponha em jogo nenhuma consideração moral ou política, por
conseguinte, para uma análise eticamente neutra, o epíteto "livre" faz referência, de maneira mais ou menos
implícita, a todos os caracteres que se descobrem pouco a pouco seguindo o movimento de reenvio de uma
noção à outra, ao interior da rede conceptual da ação: livre quer dizer intencional, motivado, projetado,
decidido, imputável a um agente. Compreendemos a palavra "livre" compreendendo cada uma dessas
palavras e compreendemos cada uma dessas palavras compreendendo a rede inteira. Chamar uma ação de
livre é excluir um certo tipo de explicação que faria vibrar uma outra rede, a do acontecimento observável na
natureza; por outro lado, é colocar essa ação entre aquelas que são justificáveis de uma descrição pondo em
jogo a totalidade da rede conceptual da ação intencional. É a tarefa de uma filosofia ao mesmo tempo
fenomenológica e lingüística - chamá-la-íamos de uma fenomenologia lingüística - clarificar esses conceitos e
trazer à luz suas conexões.

2) O Segundo discurso: a liberdade sensata


Da liberdade arbitrária ao campo da política

Um texto de Hegel. importante e difícil, coloca imediatamente o segundo nível do problema: "O domínio
do direito é o espiritual em geral; sobre esse terreno, sua base própria, seu ponto de partida são a vontade
que é livre; ainda que a liberdade constitua sua substância e sua destinação e que o sistema do direito seja o
império da liberdade realizada, o mundo do espírito produz como segunda natureza a partir de si mesmo"
(Princípios da Filosofia do Direito, § 4). Esse texto fala da liberdade realizada e de seu império, que ele chama
de sistema do direito; por essa palavra, Hegel entende o conjunto das instituições - jurídicas, morais,
econômicas e políticas - por meio das quais a liberdade deixa de ser um sentimento interior, o sentimento de
poder fazer ou não fazer, para tornar-se uma realidade, uma obra, o que o texto chama de "segunda
natureza". A análise anterior não esgotou pois o problema da liberdade; a ação intencional, à qual
identificamos a ação livre, pode ser absurda ou sensata; ela pode restringir-se a si mesma ou produzir, para
fora, obras e instituições.
O que deve pois ser acrescentado à análise precedente para mudar de nível? Deve-se inicialmente
introduzir o afrontamento de duas vontades; ora, as noções de intenção, de projeto, de motivo, de agente
voluntário e responsável põe somente em relação um sujeito livre com seu próprio corpo e, ao redor de si, sua
situação global. O exemplo jurídico do contrato (pelo qual Hegel começa sua Filosofia do Direito) mostra de
maneira excelente que a liberdade arbitrária torna-se liberdade sensata quando dois quereres se nivelam a
propósito das coisas, por exemplo, para apropriarem-se delas, trocando suas posições, reconhecendo-se
mutuamente e engendrando um querer comum; engajando-se assim uma em relação à outra, as duas
vontades ligam-se e tornam-se assim livres, num sentido novo, que não é mais o poder de fazer não importa 982
o que, mas o poder de se tornarem / independentes de seus próprios desejos e de reconhecer uma norma.
Segundo aspecto: falta à análise precedente a consideração de uma regra, de uma norma, de um
valor, em suma, de um princípio de ordem (qualquer que seja) que dê um caráter objetivo a uma liberdade até
então encerrada no seu ponto de vista subjetivo.
Terceiro aspecto: ação dupla, ação normatizada, a ação livre faz ainda parecer uma dimensão da razão
que a tradição filosófica chamou razão prática; entendamos aí uma razão que tem efeitos no mundo, uma
7

razão que se aplica em produzir uma realidade segundo a liberdade; ora, uma liberdade que atravessou a
problemática do contrato e da universalização pela lei acede a um projeto de realização ou de efetuação cuja
escala é de outra maneira mais vasta que o próprio corpo: seu teatro é o mundo da cultura; é em obras, e não
somente nos movimentos, e mesmo gestos e condutas, que ela quer se inscrever. É a história dos homens
que ela quer direcionar; em poucas palavras, ela quer "mudar o mundo".
Esses três novos conceitos definem já o novo campo do segundo discurso da liberdade: duplicação do
querer, ação normatizada, realização ou efetuação em uma obra. Acrescentemos aí um último aspecto: é no
campo dessa problemática da ação sensata que pode desenvolver-se uma filosofia política. Uma filosofia
política distingue-se de uma ciência política por ter ela como fio condutor um conceito de realização da
liberdade. A teoria do Estado refere-se à teoria da liberdade na medida exata em que aí se articulam a
relação de vontade a vontade, a relação da arbitrariedade com a regra, a relação da intenção com a obra.
Acrescenta-se aí uma nova relação que se apresenta inicialmente como uma questão: como fazer para que a
liberdade do indivíduo reconheça-se não somente numa outra liberdade singular como a sua, mas num poder
de decidir pela escala da comunidade inteira? Essa questão é a de Rousseau no Contrato Social. Como
passar da liberdade selvagem do homem só à liberdade civil do homem na cidade? Rousseau chamava essa
questão de "o labirinto do político". De fato, o poder do Estado e, em geral, da sociedade parece de início
para cada um como transcendente, estranho, e mesmo hostil, quando ele se encarna na figura do tirano. Uma
filosofia da liberdade, compreendida no sentido da ação sensata, não se aperfeiçoa a não ser que possa
incorporar ao campo da razão prática, ao campo da realização da liberdade, o nascimento do poder político.

Ética e Política em Aristóteles

Essa passagem do primeiro ao segundo nível de problemas deixa-se facilmente reconhecer na filosofia
moral de Aristóteles: sua teoria da ação voluntária e involuntária, no livro III da Ética a Nicômaco, constitui
somente um fragmento encaixado numa investigação mais vasta tendo por objeto a virtude e a felicidade;
assim, a análise da "preferência" feita mais acima concerne somente às condições psicológicas de uma busca
tendo por objeto a "excelência" (assim dever-se-ia traduzir a palavra magnífica areté antes que por "virtude").
Os dois discursos da liberdade estão assim na mesma relação que a preferência e a excelência.
Ora, a busca da excelência põe em jogo todas as relações que se acaba de evocar: a relação de
pessoa a pessoa, desenvolvida por todas as virtudes, como se vê mais facilmente nas virtudes da justiça e da
liberalidade; a relação com a norma ou com a regra, que se exprime em cada virtude como busca da justa
medida entre dois extremos; a promoção da razão prática, prefigurada em Aristóteles sob a figura da virtude
da "prudência" (frónesis), que é a própria sabedoria da ação; enfim, não é sem interesse lembrar que para
Aristóteles, a ciência arquitetural ou para melhor dizer, arquitetônica, que envolve todas essas considerações
sobre a felicidade, a virtude e as virtudes, sobre a relação entre a preferência e a excelência, sobre o reinado
da prudência, chama-se "política". Assim o discurso sobre a ação intencional é somente um segmento
abstrato salientado no percurso completo do discurso ético-político, com o qual se identifica a problemática da
liberdade sensata.
É nesse último aspecto que Aristóteles antecipa mais manifestamente Hegel. Essa correspondência
entre os dois filósofos é tanto mais perceptível desde após o Estagirita, e sem dúvida, desde o fim da Cidade
grega absorvida no Estado Macedônico e depois no Império Romano, essa grande unidade da ética e da
política é rompida. Tal cisão tem grandes conseqüências: a partir daí, a filosofia da liberdade está libertada
para um processo irremediável de psicologização; enquadrada numa psicologia das "faculdades", ela se
refugia numa teoria do assentimento ou do consentimento, da qual a análise cartesiana do julgamento é o
mais brilhante êxito.
Mas ao mesmo tempo que esta análise é excelente enquanto fenomenologia da afirmação e da
negação, do sim e do não, ela testemunha a perda da dimensão política apresentada por Aristóteles em sua
Ética, como bem o indica a recusa de Descartes em encarregar a filosofia de tudo aquilo que pudesse tocar
os costumes, as leis e a religião do reino. Ora, durante esse tempo, a outra parcela separada da grande
unidade aristotélica, o complemento político dessa psicologia do assentimento, continua sua existência
dissociada sob um outro título, o de filosofia política; tudo que está dito e escrito em Hobbes e Maquiavel - e
até em Spinoza no Tratado teológico-político -, concernente ao poder, à força, à violência, pertence de direito
à grande filosofia da liberdade, percebido simultaneamente na sua integralidade por Aristóteles.
É a glória de Rousseau, antes de Hegel, de ter, se se ousa dizer, repatriado para a filosofia da
liberdade a questão do poder político e da soberania. Não é seguro que o contrato seja a verdadeira conexão
pela qual a vontade de cada um engendra a vontade geral; ao menos, a filosofia do contrato terá servido,
antes de Hegel, para relembrar a grande filosofia da liberdade; o conceito de vontade geral é aqui testemunho
desse esforço para despsicologizar o problema da vontade livre e, se se pode dizer, para o repolitizar
segundo o desígnio mais certo do Estagirita.
8

Estilhaçamento da síntese kantiana

A filosofia prática de Kant é um intermediário decisivo entre Aristóteles e Hegel. Sua força, sua
verdade, é haver tentado pensar até o fim a diferença entre a liberdade arbitrária e a liberdade sensata.
Compreender essa diferença é o objeto da Crítica da Razão Prática. Se a Crítica da Razão Pura é uma busca
das condições de possibilidade da objetividade no conhecimento, a Crítica da Razão Prática tem por objeto
as condições de possibilidade da boa vontade. Essas condições se resumem todas na relação entre a
liberdade e a lei; a lei é o que torna conhecível a liberdade, e a liberdade é a razão de ser da lei. Ser livre,
desde então, não é mais somente ser independente no que diz respeito aos seus próprios desejos, é ser
capaz de subordinar sua ação à lei do dever ou, em termos kantianos, de submeter a máxima subjetiva da
ação à aprovação da regra de universalização: "Age de tal sorte que a máxima de tua vontade possa sempre
valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal." Não há saber que tenha por objeto a
liberdade fora da consciência dessa lei fundamental.
Todas as dificuldades da filosofia kantiana da liberdade são ao mesmo tempo a contrapartida da força
e do rigor de sua análise. Tudo o que Kant demonstrou restringe-se a essa conjunção da liberdade com uma
lei formal vazia, que tomou o lugar da meditação de Aristóteles sobre as "excelências" da ação (ou "virtudes").
A primeira dificuldade é conciliar com a experiência humana ordinária essa vontade objetiva, idêntica à razão
prática, inteiramente contida na relação simples, necessária, infalível da espontaneidade da liberdade à
legalidade do dever; para reunir essa experiência moral, deve-se acrescentar à determinação pela lei a
possibilidade de desobedecer, i. é, uma relação contingente, revogável, entre a vontade e o dever. O sentido
da liberdade oscila entre essa vontade objetiva, totalmente determinada pela sua relação à lei, e a vontade
arbitrária, que se revela na experiência humana do mal.
Essa primeira dificuldade revela uma dificuldade ainda mais considerável: é por um método de
isolamento e de abstração que Kant dissociou da experiência viva a vontade segundo a lei e a noção de
liberdade para a lei que lhe corresponde. Purificando assim a experiência humana de todos os seus aspectos
empíricos, Kant, torna incompreensível o próprio projeto duma "Crítica da Razão Prática", que devia explicar
como uma representação produz um efeito na realidade. A liberdade, com efeito, não seria nada se ela não
fosse um tipo de causalidade que produza efeitos no mundo. A intenção profunda de uma "Crítica da Razão
Prática" é pois dar conta da produção da realidade pela liberdade. Mas o resultado da crítica destrói sua
intenção; a análise engendra somente cisões: cisão entre a racionalidade e o princípio dos desejos, cisão
entre a forma da vontade e seu objeto, cisão entre a virtude e a felicidade. Ao contrário de Aristóteles, que
havia tentado discernir a unidade profunda entre o hábito, a decisão e a norma no seio da virtude de
prudência ou sabedoria concreta, Kant nos deixa com os fragmentos estilhaçados da síntese prática: de um
lado a esfera do dever, do outro, a esfera do desejo; de um lado, a vontade objetiva univocamente
determinada pela lei, do outro, a vontade subjetiva, dilacerada entre si mesma e o desejo.

A dialética hegeliana

A filosofia hegeliana da liberdade procede da própria situação crítica do kantismo. Como, de fato,
superar as antinomias nas quais se encerra a filosofia kantiana da liberdade? Responder a essa questão é ao
mesmo tempo reconhecer a natureza verdadeira do discurso que só convém a esse segundo nível do
problema da liberdade. Para Hegel, esse discurso só pode ser dialético, i. é, uma arte de superar as
contradições através de mediações e de sínteses cada vez mais concretas.
Se considerarmos a história passada da filosofia da liberdade a partir desse ponto de vista, deve-se
reconhecer que ela coloca uma série de questões que não podem ser resolvidas sem um método dialético.
Pode-se recapitular as situações dialéticas implicadas por um discurso sobre a ação sensata seguindo a
progressão da dialética hegeliana através dos níveis encadeados da Enciclopédia das Ciências Filosóficas.
Inicialmente, a vontade humana é uma transição entre o desejo animal e a racionalidade; Aristóteles a
definiu como "desejo deliberado"; essa expressão mesma implica que a realidade natural, resumida na
palavra desejo, está negada e contudo retida numa realidade de categoria superior aparentada à
racionalidade. A decisão requer assim uma concepção dialética da realidade, segundo a qual a raiz do desejo
é sublimada na energia da decisão. Tal é a primeira situação dialética; ela é representada, na Enciclopédia 983
hege / liana, pela transição de uma filosofia da natureza a uma filosofia do espírito.
Segunda situação dialética: a Escolástica e Descartes concebem o julgamento como interação entre
duas faculdades, o entendimento e a vontade livre; mas esta interação é expressa na linguagem da
causalidade recíproca: o entendimento "move" a vontade e a vontade "move" o entendimento; pode-se ver aí
a expressão pré-dialética duma relação muito mais fundamental que rege a promoção mútua da razão teórica
e da razão prática. Essa situação dialética não desapareceu com a psicologia das faculdades nem com a
9

cosmologia que a sustentava: a distinção kantiana entre razão teórica e razão prática dá somente uma nova
expressão a esse problema antigo. Essa segunda situação dialética constitui o essencial da filosofia do
espírito subjetivo na Enciclopédia de Hegel.
A terceira situação dialética corresponde à transição da vontade subjetiva, tal como foi descrita no
primeiro discurso sobre a liberdade, à vontade objetiva, que é o objeto da determinação ético-política em
Aristóteles e em Kant. Essa dimensão está perdida numa simples psicologia da decisão, na qual somente a
liberdade individual é tomada em consideração, ao passo que a dimensão política emigra para fora do campo
da filosofia da liberdade e constitui o coração duma filosofia política, sob o título de uma teoria do poder e da
soberania. Evocou-se mais acima essa ruptura da filosofia da liberdade na época de Hobbes e de Maquiavel.
É assim que a unidade dialética das duas figuras da liberdade, individual e coletiva, psicológica e política,
está perdida. Aristóteles, contudo, não ignorava essa unidade, mas não tinha aparato lógico para dominar
esse problema da relação entre uma fenomenologia da preferência e uma filosofia política. Essa terceira
dialética é o centro do que Hegel chama de filosofia do espírito objetivo: ela contém a filosofia autêntica da
liberdade no nível do discurso da ação sensata. É aí, de fato, que se reúne o texto dos Princípios da Filosofia
do Direito que foi posto no início desta segunda seção. Realizar a liberdade num mundo da cultura, digno de
ser chamada "segunda natureza", tal é a tarefa da filosofia do direito. Lembrar-se-ão apenas dois ou três
movimentos dialéticos fundamentais que balizam a realização da liberdade ao nível da filosofia do espírito
objetivo.
O primeiro limiar da liberdade realizada é a relação de contrato que liga uma vontade a uma vontade
numa relação recíproca; a vontade solitária, que se restringe a apropriar-se das coisas, é ainda uma vontade
arbitrária; com o contrato, cada vontade renuncia à sua particularidade e reconhece a outra vontade como
idêntica a ela mesma no ato de troca; enquanto a coisa é universalizada na representação abstrata de seu
valor, a vontade é universalizada pela troca contratual das coisas. Assim, a coisa faz mediação entre duas
vontades, ao mesmo tempo que a vontade do outro faz mediação entre a vontade e a coisa possuída. Tal é o
primeiro limiar nessa história plena de sentido da liberdade realizada.
Somente uma vontade submissa à objetivação em obras é capaz de se reconhecer a si mesma como o
autor responsável por seus atos. Aí está o segundo limiar na dialética da liberdade realizada: a liberdade não
é mais somente atualizada em coisas, enquanto coisas possuídas, mas em obras e ações que a representam
no mundo. Além da simples intenção, a vontade deve passar pela prova do sucesso e do revés e ligar seu
destino a alguma fase da história. Não há um projeto efetivo sem essa prova da realidade, sem esse
julgamento exercido pelos outros homens, e finalmente sem o julgamento do "tribunal do mundo". A liberdade
aparece então como uma dialética tensa entre uma exigência infinita, que reflete seu poder ilimitado de auto-
afirmação, e a tarefa de auto-realização numa realidade finita. A individualidade não é outra coisa que essa
confrontação entre o infinito da reflexão e a finitude da atualização. Somente essa liberdade tem o direito de
ser tida como responsável apenas por aquilo que ela fez e não por tudo o que chegue a acontecer através de
sua ação. É nesse quadro de pensamento que a filosofia hegeliana da vontade livre pode fazer justiça a Kant
e à diferença que este instituíra, entre a vontade para a lei e a vontade arbitrária; mas não é somente a regra
abstrata, a lei, que faz a diferença entre vontade objetiva e vontade subjetiva, é o curso concreto da ação
intencional, na qual os aspectos subjetivos e objetivos estão mesclados, o desejo e a racionalidade
reconciliados e a busca de satisfação ligada à busca de racionalidade. Uma simples moral da intenção,
separada da densidade do desejo vital e subtraída à prova da realidade, é somente um segmento abstrato no
processo total de atualização da liberdade.
Eis então o terceiro limiar de realização da liberdade no quadro do espírito objetivo: uma filosofia da
liberdade realizada culmina numa teoria das comunidades concretas nas quais a vontade é capaz de
reconhecer-se a si mesma. Essa objetivação da liberdade individual na família, na sociedade civil, i.é, na vida
econômica, e finalmente no Estado realiza o projeto aristotélico de uma filosofia da liberdade individual que
seria ao mesmo tempo uma filosofia política: Rousseau e Kant estão mais uma vez justificados. Não há
Estado, não há filosofia política, sem essa equação entre a soberania do Estado e o poder da liberdade
individual. O Estado que não fosse mais uma vontade objetivada permaneceria uma vontade estranha e
hostil. Esse era o problema de Rousseau: Hegel resolve-o com outros recursos que não o contrato, o qual
pertence somente à esfera abstrata da vontade livre.
Dizer que o discurso sobre a ação livre atinge seu fim numa teoria política é dizer que o homem tem
deveres concretos, virtudes concretas somente quando é capaz de situar-se a si mesmo no interior de
comunidades históricas, nas quais ele reconhece o sentido de sua própria existência. Pode-se ser tão crítico
quanto se queira acerca da apologia hegeliana do Estado; o problema posto por Hegel permanece: existe
alguma mediação racional entre o poder individual, que chamamos de livre escolha ou livre arbítrio, e o poder
político que chamamos de soberania? Se a vida política é essa mediação, então a dialética entre a liberdade
individual e o poder do Estado está no coração do problema da liberdade; é essa meditação que finalmente
comanda todo o discurso sobre a ação sensata.
10

3) O terceiro discurso: liberdade e ontologia


Ser do ato e ética da ação

É nos termos seguintes que, no início deste artigo, introduziu-se o terceiro discurso: como a realidade
no seu conjunto deve ser constituída para que o homem aí seja um agente, i. é, o autor de seus atos, no
duplo sentido do poder psicológico e da imputação moral que as duas primeiras investigações permitiram
elaborar? Essa questão inaugura um tipo de investigação que não está contida nem na descrição da ação
intencional, nem na dialética da ação sensata. Mas esses dois discursos reenviam, por sinais expressos, a
um fundo que excede tanto os aspectos descritivos quanto a estrutura dialética da liberdade humana.
A própria linguagem é testemunha desse reenvio. Ato, ação, atividade: essas palavras dizem mais que
movimento, gesto, comportamento, operação, efetuação, e mesmo prática e práxis. Ou antes elas assinalam
na conduta humana uma densidade de sentido que os dois discursos precedentes não esgotam; dir-se-á: a
revelação de um caráter de ser. A esse caráter de ser, a esse modo de ser não fazem justiça nem a teoria
moral nem a teoria política; estas, de fato, não dão a razão da atividade livre a não ser que ela seja retomada
num sentido suscetível de ser recapitulado num saber. Mas essa fuga para frente em direção ao sentido, se
ousamos exprimir-nos assim, não esgota o sentido. Uma outra dimensão se forma, indicada pela metáfora da
densidade ou da profundidade: aquela do fundo ou do fundamento. É precisamente a experiência da ação
livre que desenvolve , melhor do que a da percepção ou o conhecimento, essa terceira dimensão; é a ação
livre que revela alguma coisa do ser como ato.
Esse retorno do discurso ético-político ao discurso ontológico deixa-se surpreender na filosofia de
Aristóteles, que é assim a testemunha dos três discursos. Toda a ética, diz Aristóteles, testemunha que o
homem tem uma obra ou uma tarefa (érgon) que não se esgota na enumeração das competências, das
habilidades, das ocupações; a tarefa do homem indica uma totalidade de projetos que envolvem a
diversidade dos papéis sociais; ora, essa tarefa deve ser vivida, no sentido humano da palavra viver; mas o
que é viver para o homem? É a vida ativa, responde o filósofo, a vida ativa, a atividade (enérgeia) regulada, a
atividade que tem um lógos; circulamos aí na rede conceptual subterrânea da ética, lá onde atividade,
acabamento, ato são termos que "falam" com a inflexão da ética e da ontologia: "Se, pois, isso é assim",
prossegue Aristóteles, "o bem do homem será uma atividade da alma segundo a excelência e, se houver
diversas excelências, segundo a melhor e a mais acabada. E acrescentemos ainda: numa vida perfeita" (Ética
a Nicômaco). É nesse ponto que a ética se enraíza numa concepção do real na qual o ser é enérgeia,
atividade, ato acabado. Não é mais no campo ético-político que pode ser compreendida essa enérgeia, mas
no campo da filosofia primeira. É nesse novo discurso, de fato, que podem ser articuladas noções tais como
"potência" e "ato" que sustêm uma ética da atividade.
Mas a filosofia aristotélica não está em condições de resolver o problema que ela mesma propõe;
finalmente, o ato só pertence aos seres sem potência e sem movimento, a seres eternos e divinos; o único
análogo divino a esse ato puro deve ser buscado ao lado não da ação virtuosa e da política, mas dessa
atividade sem movimento e sem fadiga que chamamos sabedoria ou contemplação; deve-se então
reconhecer: "Não é enquanto homem que o homem viverá assim, mas enquanto ele tem em si alguma coisa
de divino (...). Se é pois do divino que o intelecto olha o homem, isso será uma vida divina quanto à vida
segundo o intelecto em face da visão humana."
Decifrou-se assim, sob a condução de Aristóteles, o ato - no sentido ontológico da palavra - na ação -
no sentido ético-político. Mas esse ato, retomado por uma análise propriamente metafísica, conduz para fora
da esfera da práxis humana. Ao mesmo tempo, a análise metafísica constitui mais um limite do que um
fundamento do agir. Um hiato se forma entre a filosofia moral da práxis e a ontologia do ato. Pode-se então
perguntar-se se essa falta de mediação entre a ontologia do ato e a ética da ação não é para ser aproximada
a um outro aspecto da filosofia de Aristóteles, a saber, a ausência de um conceito expresso de liberdade. 984
Mas, se não há / conceito de liberdade em Aristóteles, não é porque não há nele conceito de sujeito e de
subjetividade? E se essa falta é manifesta para nós, não é porque nós pertencemos a uma outra época do
ser, a uma idade metafísica para a qual o modo fundamental de manifestação do ser é a subjetividade?

O Surgimento da Subjetividade

A entrada em cena da noção de subjetividade nos obriga a voltar nossa atenção sobre o fato de que o
fundo, ao qual retornam as noções de ato, de ação, de atividade, depende de uma história profunda. Esta não
pode ser reduzida, parece, a uma pura mudança de teoria, que estaria ela própria ligada a uma mudança
cultural, ainda menos a alguma mudança ideológica; ela é, de uma certa maneira, a história mesma dos
11

modos do ser, das manifestações do ser; ela afeta não somente as soluções, mas a posição dos problemas,
ela emerge à superfície da história da filosofia sob a forma de novas maneiras de questionar. O surgimento
da subjetividade no primeiro plano da filosofia ocidental é um desses tremores de terra que aparecem nas
profundezas do pensar, do pensar do ser.
É assim que a história metafísica do conceito de liberdade é, no essencial, a história de sua aliança
com a subjetividade. Ela implica numa série de limiares que não coincidem necessariamente com um
progresso na descrição fenomenológica, nem mesmo com articulações significantes no plano ético e político.
Três limiares de emergência da subjetividade tomaram uma significação para a história profunda da
liberdade. Primeiramente, a liberdade deve ser concebida como infinita para se tornar subjetiva, no sentido
forte da palavra; Hegel sublinha sem cessar essa conjunção entre reflexão e infinito. Ora, essa infinitude é
desconhecida por Aristóteles. Para ele, o poder de escolher só é efetivo no campo limitado da deliberação
em meio a situações finitas; a deliberação tem por objeto antes os meios do que os fins; a virtude mesma,
enquanto meio entre dois extremos, define as regras da ação finita. Produziu-se pois, uma revolução que
inverteu a relação entre o infinito e o finito. Essa primeira derrocada, diz Hegel, na Filosofia do Direito, marca
a virada do mundo grego para o mundo cristão: "O direito da particularidade deve ser satisfeito, ou, o que é a
mesma coisa, o direito da liberdade subjetiva constitui o ponto crítico e central da diferença entre a
Antiguidade e os Tempos Modernos. Esse direito, na sua infinitude, é expresso no cristianismo e torna-se aí o
princípio universal real de uma nova forma do mundo." Além disso, à metafísica da ação finita sucede a
metafísica do desejo de Deus. Essa virada pode ser reconhecida em Santo Agostinho, para quem a voluntas
se revela, na sua terrível grandeza, na experiência do mal e do pecado; a liberdade tem o poder de negar o
ser, de "declinar" e de "enfraquecer", de "desviar-se" de Deus, de "voltar-se para" a criatura; esse poder
tremendo - esse "poder pecar" - é a marca do infinito sobre a liberdade. Talvez só tenha havido vontade e
liberdade na filosofia ocidental depois que o pensamento foi confrontado com o que Agostinho chama de
"modo defectivo" da vontade. Isso seria uma primeira maneira de explicar a contrario a ausência do conceito
de liberdade - e mesmo de vontade - em Aristóteles, se é verdade que essa ausência é a da subjetividade e
que a subjetividade moderna começa com a meditação agostiniana sobre a potência de defecção da vontade
livre.
Um segundo limiar na emergência da liberdade como subjetividade é representada pelo cogito
cartesiano, segundo o qual o sujeito é aquele para quem o mundo é uma representação, um quadro
estendido diante dos olhos. Faz-se aí referência, bem entendido, à interpretação que Heidegger dá quanto à
certeza e à busca de certeza no seu famoso ensaio sobre A Idade do Mundo como Quadro. Ora, essa
promoção do cogito - colocada no centro do espetáculo e elevada à categoria de primeira verdade - não pode
não afetar a filosofia da liberdade. No plano propriamente fenomenológico, a vontade cartesiana, poder do
sim e do não, pode continuar a ser encarada no mesmo esquema de pensamento que a descrição aristotélica
da preferência ou que a descrição escolástica da ação recíproca da vontade e do entendimento. A novidade
cartesiana não está no plano da teoria do julgamento e do erro; a liberdade é mais profundamente uma
dimensão do cogito, sum; ela é a posição mesma do cogito, na medida em que ele extirpa a dúvida e se
assegura de si mesmo; ela é a liberdade de pensamento enquanto tal, o "livre pensamento" no sentido mais
profundo da palavra.

Antinomia da liberdade e da natureza

O terceiro limiar dessa conquista da subjetividade, enquanto modo fundamental do ser, consiste no
reconhecimento da antinomia entre liberdade e natureza. Essa antinomia não pôde ser concebida assim
durante o longo tempo em que a natureza mesma não foi unificada sob uma única legislação, o que não
acontece antes de Newton, nem antes de que Kant refletisse sobre as idéias desse último. Agora, a liberdade
está exilada do campo da natureza; nenhuma unidade sistemática é mais capaz de abraçar, no interior de
uma única cosmologia, a noção de um efeito segundo a natureza e a de um ato livre imputável a um sujeito
ético. Era necessário que o pensamento especulativo fosse submetido a essa prova da antinomia. Esta não
podia ser reconhecida no interior de uma fenomenologia da decisão, a não ser na distinção entre o motivo e a
causa, nem no discurso da vida ética e política, a não ser na distinção entre obrigação moral e desejo. A
antinomia só podia aparecer no plano da cosmologia, como uma ruptura no inteiro do conceito mesmo de
causalidade; é muito importante que a terceira antinomia kantiana faça aparecer a cisão entre a liberdade e a
natureza como um problema da razão no seu trabalho para pensar a integralidade da causalidade; a tese da
liberdade e a antítese do determinismo opõem-se como maneiras incompatíveis de acabar a série dos
fenômenos, tanto sendo a razão que conceba "uma espontaneidade das causas, capaz de começar uma
série de fenômenos" - então uma causalidade livre -, quanto sendo ela que forme uma série sem fim de
antecedentes e de conseqüentes dos quais a causalidade livre é excluída.
12

Essa cisão é bem mais radical que todas as que aparecem no campo prático: entre lei e desejo, entre
vontade objetiva e vontade subjetiva,; essa cisão só é reconhecida na esteira de uma teoria da ilusão
transcendental, i. é, de uma teoria reflexiva sobre os reveses da razão. Somente uma razão que se propôs
totalizar a experiência, num outro nível que não o da legalidade do entendimento, entra na problemática na
qual a antinomia marca o revés. É então sob o signo da ilusão e do revés que a vontade livre acede à
reflexão; na ruína da cosmologia tradicional, a liberdade descobre-se como o que não pode fazer número com
a natureza, como exilada de toda natureza. Tal é o acontecimento espiritual enunciado pela dialética da razão
pura.
Mas a antinomia da liberdade e da natureza é a última palavra do pensamento? Kant considerava-a
como uma obra de razão (Vernunft) e não somente de entendimento (Verstand). O entendimento, para ele,
põe em ordem os fenômenos, move-se de condição em condição; a razão coloca a questão radical da origem
e busca um incondicional para a origem da série das condições. Nesse sentido, é a razão que coloca a
questão radical de um começo na causalidade. E contudo, num outro sentido, pode-se perguntar, com Hegel,
se um pensamento que separa que cinde não permanece um pensamento de entendimento. A antinomia
kantiana, parece, evoca um outro tipo de pensamento que não o pensamento crítico, um pensamento que
não se limita a opor a causalidade livre e a causalidade natural, mas que as compõe conjuntamente.

O questionamento do "espírito" hegeliano

É neste ponto que surge a filosofia hegeliana. Mais acima dissemos qual o papel que aí tem a atividade
mediadora da razão para superar sucessivamente a oposição entre a natureza e o espírito, entre o espírito
subjetivo e o espírito objetivo, no mundo da cultura e do Estado. Mas, no nível da história profunda na qual
nos situamos agora, o que deve ser questionado é a própria noção do "espírito" (Geist), a partir da qual essa
dialética se constitui. É o Geist que é dialético, e a liberdade é dialética enquanto Geist; mas não havia
nenhum meio, no plano ético e político, no qual nos mantínhamos, para questionar o Geist hegeliano, já que
era o pressuposto, aquilo a partir do que podiam ser pensadas todas as mediações da ação livre. No plano da
história profunda, o hegelianismo, com sua noção de Geist, aparece por sua vez como um dos momentos da
metafísica ocidental, compreendido como emergência da subjetividade. A questão é saber se a filosofia
hegeliana, apesar de sua pretensão englobante, não pertence a uma época, não partilha a finitude de um
modo de ser, o modo de ser da subjetividade. Isso estaria no que ela aperfeiçoaria a filosofia ocidental;
aperfeiçoaria no sentido de que ela mantém sob o ponto de vista do Geist, não somente as antinomias
kantianas, mas todas as antinomias da filosofia ocidental tomadas em conjunto. Considerada
retrospectivamente do ponto de vista do Geist hegeliano, toda a história da filosofia é uma luta entre o ponto
de vista da substância ilustrado por Aristóteles e Spinoza, e o ponto de vista do sujeito livre, ilustrado por
Descartes e Kant. O Geist hegeliano quer ser a reconciliação entre a substância e o sujeito, a subjetivização
da substância. Nele, a substância é sujeito. Todas as reconciliações parciais entre desejo e racionalidade,
entre representação e volição, entre liberdade individual e Estado mantêm-se no limite dessa reconciliação
maior entre a substância e a subjetividade. É no nível da história profunda que a filosofia hegeliana parece
adotar por sua vez um ponto de vista finito. A vinda à história de um novo modo de ser, com Kierkegaard,
Marx e Nietzsche, faz o Geist hegeliano aparecer como limitado e fechado. Enquanto nos mantemos nele,
tudo o que ele recapitula aí parece estar contido; mas nós deixamos de manter-nos nele. Muito tarde ele
aparece como uma outra redução do fundamento, do fundo do ser, significada pela qualificação de
"idealismo". Certamente essa acusação é com bastante freqüência injusta e procede de uma leitura mutilante,
como é o caso em todos os seus detratores, compreendendo-se aí Kierkegaard, Marx e Nietzsche; contudo,
alguma coisa importante é percebida através da acusação de idealismo, a saber, que a existência, a prática
humana, a vontade enquanto potência inscrevem-se daqui em diante, fora dos limites demarcados pelo ato 985
de recapitulação no Geist. É essa excrescência - no sentido próprio / de um crescimento fora do discurso
hegeliano – que deve hoje ser pensada. O que parece exorbitante hoje é a pretensão de reduzir o surgimento
da liberdade ao discurso. Se, após Hegel, essa pretensão parece insustentável, é porque a "crise", surgida no
nível da história profunda, afeta a própria relação entre a liberdade e a verdade. Numa filosofia do espírito, a
questão dominante é a da verdade, atingida ou efetuada em cada novo momento. E, como a verdade de cada
momento está no seguinte, ou seja, num outro momento no qual a contradição do precedente é mediatizada e
superada, todo o processo pode ser considerado do ponto de vista de um olhar retrospectivo que, partindo do
saber absoluto, recapitula o processo acumulado. Assim, todo o movimento tem sua condição de
possibilidade na posição do filósofo, no seu avanço com vistas ao desenvolvimento inteiro, numa palavra
posta em posição absoluta no fim do processo. Essa reivindicação do filósofo de se situar alguma parte, ao
mesmo tempo além e dentro do ambiente do processo, pode ser questionada enquanto pretensão. Esse
questionamento é o acontecimento fundamental da época pós-hegeliana.
13

O que parece então abrir-se; após o fracasso do saber hegeliano, é uma interpretação, que nenhum
saber pode recapitular, de todos os sinais que atestam que o fundo do ser é ato: mas esses sinais não devem
ser buscados em outro lugar senão no jogo de reenvio, pelo qual a experiência quotidiana da ação intencional
bem como a procura de uma ação sensata no plano ético e político apontam em direção do ser "no qual nós
somos, nós vivemos e nós nos movemos".

PAUL RICOEUR

Potrebbero piacerti anche