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LADY OU FERA SELVAGEM?

DISCUSSÕES SOBRE GÊNERO E


FEMINILIDADES EM GAME OF THRONES

Mariana Vargas Gaudenzi - IFSUL


Angela Dillmann Nunes Bicca - IFSUL

Uma jornada por Westeros com Arya e Sansa Stark

Neste texto voltamos nossa atenção para a dimensão pedagógica das séries televisivas
compreendendo-as como produtos de uma intrincada relação de poderes e saberes que
constituem certas verdades publicizadas na TV. Mais especificamente, buscamos
problematizar, a partir dos Estudos Culturais em Educação de vertente pós-estruturalista, a
produção de verdades sobre feminilidades que atravessam as personagens Arya e Sansa Stark
da série televisiva Game Of Thrones ao longo das cenas em que as mesmas aparecem durante
a primeira temporada, transmitida no ano de 2011.
Game Of Thrones é uma adaptação para televisão da saga de livros Uma Canção de
Gelo e Fogo, uma fantasia épica escrita pelo romancista e roteirista George Martin com seu
primeiro volume publicado em 1996. A história da saga se passa nos continentes fictícios de
Westeros e Essos, onde, no primeiro, Sete Reinos que antes eram independentes entre si
encontram-se unificados sob o comando do Rei na cidade de King’s Landing e, em Essos,
encontramos um sistema escravocrata e intensas disputas por poder e território. A morte do
Rei Robert Baratheon, Rei dos Sete Reinos, e a incerteza quanto à legitimidade de sua
paternidade de Joffrey Baratheon (suspeita-se que o jovem príncipe seria fruto de relações
incestuosas entre a Rainha Cersei Lannister e seu irmão gêmeo, Jaime Lannister) propiciam
que as grandes famílias de Westeros (os Starks, Lannisters e Baratheons, apoiadas por outras
famílias que lhes são subordinadas) entrem em guerra pela sucessão do Trono de Ferro, objeto
carregado pelo simbolismo do poder do Rei.
Além disso, há outros perigos que os/as personagens da série precisam enfrentar. Ao
norte do Reino, após a Grande Muralha de Gelo que delimita o fim do território dos Sete
Reinos e o início das Terras Livres, uma ameaça sobrenatural se aproxima: os Outros, um
exército de mortos-vivos que caminha em direção ao Sul ameaçando Westeros. E, do outro
lado do Mar Estreito, Daenerys Targaryen, única herdeira da família Targaryen, governante
dos Sete Reinos até o final de uma guerra liderada pelo falecido rei Robert Baratheon que
culminou no assassinato de quase todos os seus familiares, planeja voltar para Westeros e
reivindicar o Trono de Ferro.
Nesse universo, somos apresentados/as à família Stark desde o primeiro episódio. Os
Starks compõem uma das Casas Nobres e mais antigas de Westeros com a responsabilidade
de proteger e comandar o Norte, um dos Reinos que encontra-se subordinado ao Rei de
Westeros. Devido ao status e relevância da família, os herdeiros Stark têm destinos
previamente estabelecidos: o filho mais velho será o futuro comandante de Winterfell e seus
irmãos mais novos serão cavaleiros ou se casarão com damas de outras famílias nobres para
formar alianças e manter a importância da Casa Stark, tornando-se comandantes de outros
castelos que lhes são subordinados, assim como seus irmãos, Arya e Sansa Stark também
deverão se casar com jovens herdeiros de outras famílias, com a diferença de que esse é o
único destino que lhes é apresentado desde o início da série: as jovens mulheres Stark não
podem ser cavaleiras ou comandantes de castelos.
Alinhando-nos aos estudos de Butler (2017) compreendemos que as inscrições sexuais
que dividem os corpos em homens e mulheres possuem uma dimensão discursivamente
construída, ou seja, não pertencentes a uma natureza imutável e por esse motivo flutuantes,
mutáveis e arbitrários. Até mesmo o próprio conceito de “mulher” pode passar a ser
problematizado com a noção de performatividade da linguagem.
A argumentação desenvolvida por Austin para explicar que a linguagem (SILVA,
2017) aponta que ela é muito mais do que um mero reflexo de uma suposta realidade natural
dada e estável. Muito mais do que nomear ou descrever objetos, pessoas, características que
estariam supostamente presentes na natureza, ela tem um caráter performativo, ou seja:
proposições linguísticas performam ações, modificam situações e produzem efeitos. É
importante frisar que, a partir do momento que compreendemos a linguagem como
constituidora do mundo e das coisas que estão presentes nele, não há qualquer sentido para
pensar a existência de algo fora da linguagem. Os eventos linguísticos não se constituem em
acontecimentos isolados, mas são efeitos de um conjunto de discursos que os afirma, exclui,
repete e cita continuamente de acordo com a maneira como estes mesmos discursos são
constituídos, sempre em constante modificação. É especialmente graças aos processos de
repetição e citação que certos construtos discursivos acabam se naturalizando, ou seja, os
mesmos são tantas vezes afirmados e reiterados por diferentes dispositivos (médico-científico,
midiático, escolar, etc.) que passam a ser concebidos como parte da natureza, como verdades
inquestionáveis.
Ao debruçar-se sobre a discursividade e performatividade da linguagem, Butler (2017)
dedicou-se a problematizar a pressuposta fixidez dos conceitos de sexo, gênero e o binarismo
assimétrico em que homens e mulheres estão divididos para questionar através de quais
estratégias e mecanismos de dominação eles se tornaram meios produtivos de classificar os
sujeitos, a ponto de serem considerados pré-discursivos e inquestionáveis. Ao dialogar com os
estudos de Foucault, Butler (2017, p. 162) escreve que segundo essa perspectiva

o corpo não é ‘sexuado’ em nenhum sentido significativo antes de sua determinação


num discurso pelo qual ele é investido de uma ‘ideia’ de sexo natural ou essencial. O
corpo só ganha significado no discurso no contexto das relações de poder.

É importante ressaltar que a materialidade do corpo não está sendo questionada, assim
como sua existência. A questão é outra, trata de questionar

como determinada característica passou a ser reconhecida (passou a ser significada)


como uma ‘marca’ definidora da identidade; perguntar, também, quais os
significados que, nesse momento e nessa cultura, estão sendo atribuídos a tal marca
ou a tal aparência (LOURO, 2000, p. 8).

Com isso, podemos compreender que se o corpo sexuado é discursivamente


produzido, ele não é algo fixo, uma natureza passiva que está à espera da inscrição cultural
para receber significado já que, desde o início, ele mesmo é efeito de diferentes discursos.
Não há um sujeito prévio aos discursos que posicionam as pessoas como homens ou mulheres
e que as classificam como masculinas ou femininas. Não há, como apontou Butler (2017), um
“eu” que não tenha sido sujeitado pela matriz de relações existentes relativamente a sexo e
gênero. Assim, o que é referido como “eu” resulta da inserção dos indivíduos em uma
sociedade com uma matriz de heteronormatividade compulsória que pressupõe uma estreita
relação entre sexo, gênero e sexualidade.
Trata-se de uma matriz que tanto posiciona Sansa Stark, apontando-a como uma Lady
ou pombinha (Ep. 1), quanto compreende Arya Stark que tem seu comportamento comparado
ao de um animal selvagem, uma fera (Ep. 2 e 3). Uma polarização e consequente classificação
dos sujeitos que é resultado de constantes reiterações que buscam também a naturalização de
padrões heteronormativos. Vale lembrar que a existência, a persistência e a repetição de
performances subversivas que questionam a naturalidade das ideias de feminino e masculino
hegemônicas acabam escancarando o caráter discursivo delas. Afinal, se as mesmas fossem
simplesmente naturais, fixas e inquestionáveis, como tantos sujeitos estariam posicionados
fora delas, à margem, sem se identificar com seus pressupostos?
Desde a perspectiva teórica que estamos assumindo, rejeitamos a premissa de que
exista uma natureza pré-concebida, verdades absolutas que atravessem diferentes períodos
históricos sem modificações, além de rejeitar a ideia moderna de que os seres humanos
possuam uma essência natural. Assim, compreendemos que os discursos que tomamos como
verdade são efeitos de uma intricada relação entre saberes e poderes ativados por diferentes
dispositivos e tensionamentos que acabam por constituir a realidade e os próprios sujeitos.
Assim como as outras produções discursivas que regem nossa sociedade, a feminilidade é
efeito e instrumento de relações que perpassam as mais diferentes instituições com vozes
autorizadas (médico-científica, jurídica, escolar, midiática, etc.) que buscam naturalizar algum
ideal feminino como uma realidade pré-discursiva e inquestionável.
Ao debruçar-se sobre a estreita relação entre poder e saber, Foucault (2017) defende
que todos os saberes são historicamente localizados, e que, sem as relações de poder, os
mesmos não são produzidos, constituídos, nem aceitos como possíveis. Dessa forma, os
saberes passam a ser considerados por este autor como construções históricas e que,
impulsionados, reiterados, questionados e modificados pelas relações de poder (considerando
que poder não é tomado como algo que simplesmente inibe e limita) dentro das malhas das
redes discursivas das quais fazem parte e acionam, eles constituem, também, os sujeitos que
os produzem e o período histórico dos quais fazem parte, constituindo verdades.
Compreensão que coloca o poder como produtor de saber, um “operador capaz de explicar
como nos subjetivamos imersos em suas redes” (VEIGA-NETO, 2014, p. 62).
O discurso da feminilidade, que perpassa as personagens Sansa e Arya, se produz na
articulação de poderes e saberes relativamente aos modos de viver o corpo possibilitando,
inclusive, que os sujeitos não sejam passivos em relação a essas estratégias, podendo
assimilá-las, questioná-las, rejeitá-las ou simplesmente reafirmá-las, criando pontos de
tensionamento ou reiteração dentro das malhas deste discurso. O poder se exerce de maneira
difusa e descentrada nas mais diferentes esferas sociais, muitas vezes constituindo saberes a
partir dos níveis capilares que, à medida que vão provocando tensionamentos e se
reafirmando dentro dos diferentes discursos que constituem os sujeitos e por eles são
constituídos.
Considerar que poderes e saberes se articulam no discurso produzindo a todos/as nós
como um de seus mais importantes efeitos é relevante para ajudar a mostrar que a escola não é
o único lugar em que as pessoas são sujeitadas, mas que até mesmo uma série televisiva
possui uma dimensão pedagógica na medida em que também constitui indivíduos de
determinados tipos. Segundo Camozzato e Costa (2013) os indivíduos têm sido produtos de
uma vontade de pedagogia, uma vontade que se manifesta nos mais diferentes espaços, que se
multiplica e pluraliza e que investe em guiar, governar, moldar e produzir vidas e sujeitos.
Assim, podemos olhar para os artefatos midiáticos com desconfiança, mesmo que o
objetivo não seja julgar sua qualidade ou correção mas, isto sim, compreender como se
produzem diferentes maneiras de feminilidade, como se pode encontrar nos episódios de
Game of Thrones.

Escolham suas armas! Estratégias metodológicas para operar na Casa de Foucault

Para desenvolver a discussão apresentada nesse texto, realizamos movimentos em que


desconstruímos, problematizamos, separamos e reunimos tudo novamente, não da mesma
maneira que estavam antes de começarmos nosso trabalho, mas com as modificações que se
mostraram produtivas durante os estudos e pesquisas que desenvolvemos. Praticamos uma
flexibilidade rigorosa que nos permitiu elaborar os procedimentos metodológicos sem negar
as premissas que nos norteiam e com a articulação entre autores dos quais pegamos
emprestados conceitos para operar sobre nosso objeto de análise. É exatamente por
compreender que cada pesquisador fala de uma posição-de-sujeito diferente de outro que é
possível operar de maneiras diversas com o mesmo conceito e que, também, os mesmos
objetos de estudo podem ser observados de diferentes maneiras dependendo do foco que lhes
é dado, que abrimos mão de rigidez, de uma metodologia fechada, recebendo certa autonomia
para explorar novas perspectivas e possibilidades de operação.
Para problematizar a produção de verdades sobre feminilidades que atravessam as
personagens Arya e Sansa Stark foi preciso realizar recortes. Por esse motivo, selecionamos
apenas as cenas ao longo da primeira temporada em que Arya e Sansa Stark tiveram falas ou
que foram mencionadas explicitamente por outros personagens. A coleta deste material de
pesquisa exigiu transcrevermos as falas das personagens em documentos para acervo pessoal,
de forma a evitar que tivéssemos de retornar aos episódios sempre que quiséssemos consultar
uma fala. Após completar essa etapa, nos detivemos no detalhamento das transcrições. Para a
análise apresentada neste texto valemo-nos de alguns excertos retirados nos episódios 1, 2, 3 e
4 da primeira temporada da série, os quais serão identificados como Ep. 1, Ep. 2 e assim por
diante.
Para analisar esse material consideramos que, para Foucault (2008), os discursos são
práticas que formam os objetos de que falam. Por isso, ao operar com esse conceito, não cabe
tomar o mundo e seus entes como aquilo que vá ser somente decifrado e descrito. Cabe, isto
sim, “conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que
lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso
encontram o princípio de sua regularidade” (FOUCAULT, 2016, p. 50). Em nossa sociedade,
o que é aceito como verdade se produz a partir do entrelaçamento de diferentes discursos que,
a partir da relação estreita entre poderes e saberes reafirmados e atualizados, constroem essas
mesmas verdades que são naturalizadas e permeiam todos os aspectos da vida dos indivíduos.
É importante lembrar que, para Foucault, os discursos e o poder não agem de “cima para
baixo”, mas sim em uma rede microfísica de relações de mútua de influência, resistência e
constituição. Assim, a microfísica do poder

significa tanto um deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se


efetua. Dois aspectos intimamente ligados, à medida que a consideração do poder
em suas extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus últimos lineamentos
tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que
realizam um controle detalhado, minucioso do corpo - gestos, atitudes,
comportamentos, hábitos, discursos (MACHADO, 2017, p. 14).

Dessa forma, é possível indicar que os poderes/saberes produzidos em uma


determinada época estão implicados com o que recebe o estatuto de verdade daquele período.
Sem negar a materialidade dos corpos, essa compreensão sobre discurso ajuda mostrar como
um corpo feminino ou masculino só é considerado feminino graças aos diferentes discursos
que o constituem assim, com determinadas classificações, diferenças, semelhanças e normas.
A grande questão é que, graças a essas intrincadas relações de poder e saber, muitos
construtos acabam se naturalizando, ganham o status de verdades inquestionáveis cuja origem
discursiva se perde entre a poeira dos livros (FOUCAULT, 2008).
Assim, a história discursiva de alguns construtos que são tomados como verdades em
nosso tempo deixa de ser questionada ou até mesmo considerada, pois a “‘verdade’ está
circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que
ela induz e que a reproduzem” (FOUCAULT, 2017, p. 54). Não há estabelecimento de
verdades sem ação das relações de poder que a confirmam, atualizam, classificam, fazem-na
agir sobre os corpos dos sujeitos que, por sua vez, a questionam, rejeitam e criam novos
pontos nas malhas dos seus diferentes discursos.
Não cabe, portanto, tentar “desvelar” uma verdade escondida, esmiuçar entrelinhas,
procurar por intenções que não ficaram explícitas nas cenas de Arya e Sansa Stark que trariam
uma suposta revelação sobre o discurso de feminilidade. Cabe ater-se ao que é dito para
compreender que é no nível da superfície e da exterioridade do discurso que podemos analisar
sua produtividade, os efeitos que cria e as verdades que aciona.

Lady ou fera selvagem? Feminilidades em Game of Thrones

Olhar para Sansa e Arya exigiu que examinássemos os discursos sobre feminilidade
que são acionados em Game of Thrones, considerando as possibilidades que a narrativa
apresenta para elas (casar-se com um príncipe ou tornar-se uma Cavaleira da Guarda Real?).
Em Westeros, o sobrenome não direciona apenas o destino das meninas, mas a maneira como
são criadas: ambas precisam aprender como portar-se à mesa, a fazer reverências, costurar,
cantar, dançar e várias outras atividades que são esperadas de uma Lady, além de ler e
escrever. A primeira vez em que as meninas aparecem em cena é durante uma aula de
bordados junto com outras damas do castelo (Ep. 1), onde é possível ver que Sansa participa
da atividade com prazer, recebendo elogios da septã que as ensina. Enquanto isso, Arya é
constantemente distraída pelos sons de seus irmãos praticando arco e flecha no pátio do
castelo, para onde foge alguns minutos mais tarde.
Em outro momento, enquanto viajam de Winterfell para King’s Landing, uma situação
desperta tensão entre as irmãs Stark e a família Real: em uma pausa na viagem, o Príncipe
Joffrey convida Sansa para caminharem pelo bosque e o casal encontra Arya e seu amigo,
Mycah, filho do carniceiro, brincando de luta de espadas. Joffrey ironiza que o menino não
passa de “um filho de carniceiro que quer ser cavaleiro” (Ep. 2) e o desafia para uma luta.
Joffrey corta o menino com sua espada e Arya, para defender o amigo, agride Joffrey e ele a
ataca. Enquanto a briga acontece, Sansa grita ao fundo para que eles parem, pois estão
“arruinando tudo”. Joffrey rende Arya e, quando a ameaça com sua espada, a loba gigante de
Arya, Nymeria, pula sobre ele e o morde. Arya foge para o bosque acompanhada de Nymeria
e Sansa vai buscar ajuda para Joffrey.
Ao longo do mesmo episódio, é realizada uma busca pelo bosque por Arya e Mycah
que se estende até à noite. Quando encontram a jovem, ela é levada diretamente ao Rei e à
Rainha:

Rainha: - Sua filha e o filho do carniceiro atacaram meu filho, aquele animal que ela
tem quase arrancou o braço dele.
Arya: - Isso não é verdade! Ela só mordeu ele um pouco. Ele estava machucando o
Mycah.
Rainha: - Joffrey me contou o que aconteceu, você e aquele garoto bateram nele
com galhos enquanto você soltou seu lobo nele.
Arya: - Não foi isso que aconteceu!
Joffrey: - Foi sim! Os dois me atacaram e ela jogou minha espada no rio.
Arya: - Mentiroso!
Joffrey: - Cale a boca!
Rainha: - Sansa, venha cá, querida.
Sansa entra na sala e se coloca ao lado de Arya e seu pai.
Rei: - Agora, menina, conte-me o que aconteceu. Conte tudo e fale a verdade, é um
grande crime mentir para um Rei.
Sansa olha para seu pai e depois para Joffrey.
Sansa: - Eu não sei. Não me lembro, tudo aconteceu tão rápido. Eu não vi.
Arya puxa os cabelos de Sansa gritando ‘Mentirosa!’. Seu pai tenta separar as
meninas.
Rainha: - Ela é tão selvagem quanto seu animal, quero que seja punida.
Rei: - O que quer que eu faça? Mande chicoteá-la pelas ruas? Que droga. Crianças
brigam, acabou.
Rainha: - Joffrey vai ter essa cicatriz pelo resto da vida.
Rei (para Joffrey): - Você deixou aquela garotinha te desarmar?
Rei (para Ned): - Ned, discipline a sua filha, eu vou disciplinar o meu filho. (Ep. 2)

Apesar de as duas jovens terem atitudes diferentes em relação à mesma situação, é


importante compreender o contexto em que Sansa e Arya se encontram naquele momento:
Arya não tem ligação direta com a família Real enquanto Sansa é prometida para o Príncipe e,
na serie, uma rainha tem sempre que ficar ao lado do rei. Assim, Sansa não consegue contar
sua versão dos fatos, o que culmina na morte de sua loba gigante chamada Lady como forma
de punição pelo que aconteceu com Joffrey mais cedo, visto que a loba de Arya permanece
desaparecida. Porém, é interessante observar a maneira como a Rainha, Cersei Lannister,
caracteriza as duas meninas: ao convocar Sansa, ela a chama de “querida” e, ao ver a reação
de Arya, que puxa a irmã pelos cabelos, diz que a garota é “tão selvagem quanto seu animal”
(Ep. 2) e que deseja vê-la punida. Ainda, o Rei pergunta para seu filho se ele deixou “aquela
garotinha” desarmá-lo em um comentário depreciativo para o mesmo, visto que nessa
sociedade lutas e espadas são coisas apenas de homens.
Os eventos apresentados nas situações anteriores ajudam a indicar que em Westeros as
famílias unem seus filhos e filhas pelo casamento como forma de se associar a famílias nobres
e manter sua relevância social. Em especial, unem a filha mais velha a um jovem pertencente
a uma família nobre. Mas Arya, por ser a filha mais nova, não requer a urgência em encontrar
um futuro marido como acontece com Sansa. Em um diálogo em que conversa com seu pai
sobre seu irmão Bran que, após um acidente, perdeu o movimento das pernas, Arya já é
informada sobre o que poderá ser:

Arya: - Agora que o Bran acordou, ele virá morar conosco?


Ned: - Ele precisa ficar forte primeiro.
Arya: - Ele queria ser cavaleiro da Guarda Real. Ele não pode mais ser um agora,
pode?
Ned: - Não. Mas, um dia, ele pode ser o Senhor de um castelo, ou se sentar no
Conselho do Rei, ou construir castelos como Brandon, o Construtor.
Arya: - Eu posso ser Senhora de um castelo?
Ned: - Você se casará com um Senhor e governará o castelo dele. Seus filhos serão
cavaleiros, princesas, Senhores.
Arya: - Não. Essa não sou eu. (Ep. 4)

As duas personagens encontram-se, portanto, inseridas em discursos implicados com


as normas que regulam e materializam o sexo dos personagens da sociedade criada na série e
que são familiares aos indivíduos que vivem nas sociedades ocidentais modernas. Na série,
que não indica a temporalidade em que se passa, e nas sociedades modernas, essas normas
precisam ser constantemente reiteradas e repetidas. Quando a narrativa reafirma que Arya é
uma garota que não se identifica com a feminilidade hegemônica ou quando cria situações em
que Sansa manifesta sua preocupação em atender a padrões esperados de uma Lady, são
reiteradas na narrativa televisiva as normas que regulam as possibilidades para os/as
personagens da série. Tais normas, como afirmou Butler (2000), materializam o sexo que, por
sua vez, não é simplesmente algo que resulte das diferenças materiais do corpo, não é um fato
ou uma condição permanente do corpo, o sexo é um construto que se materializa através do
tempo ou, ainda, um processo implicado com a reiteração das normas.
É necessário diferenciar: ao nos referirmos à heteronormatividade compulsória, não a
compreendemos como uma lei impositiva que age em um campo de legalizado x proibido.
Norma, neste caso, “não remete à ideia de uma regra que restringe, não remete às noções de
repressão ou exclusão” (FONSECA, 2012, p. 87). Dessa forma, não podemos concebê-la
apenas como uma força que diz não ou proíbe certas condutas dos indivíduos: ela é produtiva,
ou seja, constitui sujeitos.
A norma é um efeito da relação entre poderes e saberes que constituem os discursos
que regem a sociedade, por sua vez constituídos por e atualizando padrões de normalidade.
Ou seja, enquanto produz o que é definido e aceito como normal e correto em vários aspectos
da vida dos sujeitos, a norma é reproduzida, atualizada e modificada a partir das resistências e
reafirmações que se dão nas tramas do poder tornando-se uma medida de comparação
possibilitada pelos saberes vigentes. Dessa forma, “a norma se desubstantiva e se torna verbo.
Mais pertinente do que se falar em ‘norma’, será falar em ‘normalização’. (FONSECA, 2012,
p. 62). Podemos encontrar um exemplo de tal efeito de normalização na explicação que Louro
(2008, p. 89) dá ao discorrer sobre a heteronormatividade:

Para construir a materialidade dos corpos e, assim, garantir legitimidade aos


sujeitos, normas regulatórias de gênero e de sexualidade precisam ser
continuamente reiteradas e refeitas. Essas normas, como quaisquer outras, são
invenções sociais.

Então, a norma seria efeito da produção de verdades discursivas que, ao determinarem


seus eixos normais, traçam um parâmetro a ser alcançado através de diferentes estratégias,
tendo como um de seus efeitos a classificação de existências femininas e masculinas em
relação à tal normatividade.
Assim, a heteronormatividade compulsória é a matriz normativa que centraliza o
heterossexual como normal, sendo que tal centralidade não se resume à orientação sexual,
mas constituída por um intrincado conjunto de discursos, regras, diferenciações e
possibilidades de existências que acabam definindo maneiras “normais” de ser mulher dentro
dos discursos próprios de uma época. Para Butler (2000), a performatividade que produz os
sujeitos acaba reiterando e constituindo normas de tal forma que o sexo é o ideal normativo
por ter sua materialização forçosamente constituída através do tempo. A ilusão da
naturalidade do sexo se dá através de normas regulatórias que produzem, demarcam,
circulam, diferenciam e são forçosamente reiteradas no corpo dos sujeitos.
Assim, os discursos heteronormativos garantem a centralidade de uma existência por
diferentes estratégias e saberes que, enquanto posicionam um tipo específico de vivência
heterossexual como correta em uma dada época, como as Ladies, produzem suas
transgressões, como as garotinhas que são vistas como feras.
Ressaltamos que, apesar de Arya e Sansa serem personagens em uma série que não
tem paralelo temporal explícito com a nossa “realidade”, é possível analisar a ação de
discursos sobre feminilidades que agem fora da tela da TV sobre as duas jovens. Isso se dá
porque o universo de George Martin foi constituído a partir discursos próprios de nossa
época, não sendo possível que elas escapem às verdades naturalizadas (como a divisão sexual,
por exemplo), por mais aspectos fantasiosos que possam aparecer na trama.
Arya, ao recusar certos modos de ser mulher, produz tensionamentos ao posicionar-se
distante do “ideal” deste padrão heteronormativo. Enquanto isso, Sansa, por se portar de
acordo com as expectativas que se tem de uma Lady ajuda na constituição e manutenção da
norma heterossexual vigente.

Para além de qualquer jogo de tronos, aprendizagens sobre feminilidades em uma série
de TV

O que uma série de televisão pode nos ensinar sobre ser mulher? Foi essa questão que
problematizamos ao longo deste artigo. Longe de querermos trazer uma resposta absoluta,
apresentamos nossa visão como pesquisadoras a partir dos conceitos norteadores deste
trabalho e das produções de feminilidades em Game Of Thrones.
Olhamos para Arya e Sansa acompanhadas de Butler, Louro, Foucault e outros que
nos deram as ferramentas necessárias para examinar esse artefato cultural que reverbera
pedagogicamente ao acionar discursos de gênero! Em outras palavras, a série ensina para seus
milhões de espectadores verdades sobre ser homem e ser mulher à medida que os interpela
acionando discursos que regem nossa sociedade, reiterando verdades naturalizadas de nossa
época.
Ao olharmos especificamente para a produção de feminilidades de Sansa e Arya,
torna-se possível examinar os modos como se dá a produção discursiva de sexo/gênero na
série, indicando que se existisse algo natural e essencial inquestionável, como muitas vezes é
argumentado para recusar o argumento de que há constituição cultural e social de
feminilidades e masculinidade, não existiriam resistências ou esforços para reiterar o que é
configurado como norma. Portanto, a possibilidade de resistência é a prova de que o
hegemônico não é natural, apenas uma tentativa de naturalizar algo culturalmente aceito.
Enxergamos grande parte da potência desta pesquisa em mostrar o quanto um artefato
cultural pode nos ensinar maneiras de ser e ajudar a compreender como faz parte dos modos
como as sociedades produzem e reiteram as suas verdades. Portanto, utilizar uma série de tão
grande impacto para debater tais conceitos é uma maneira de fazer com que este trabalho
dialogue e alcance cada vez mais leitores que podem entrar em contato com a temática aqui
estudada por interesse a partir de sua experiência com Game Of Thrones, que sempre deu rico
material para que seus milhões de espectadores procurassem mais conteúdos para imergir no
mundo de Westeros.

Referências

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