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Anais do XXIV Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178

Anais do IX Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420


24 a 26 de setembro de 2019

A CONCUPISCÊNCIA COMO MISÉRIA HUMANA: UM ESTUDO DO


CONCEITO DE GRAÇA A PARTIR DA MÍSTICA PASCALIANA
Jocinei Godói Lima Renato Kirchner
Faculdade de Filosofia Faculdade de Filosofia
Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas
joci.godoy@gmail.com renatokirchner@puc-campinas.edu.br

Resumo: O presente artigo tem por objetivo explorar Sócrates, com a chamada virada antropológica, os
o paradoxo da condição humana, representado pelos filósofos se debruçaram sobre a temática da condi-
conceitos de miséria e graça, a partir da filosofia ção humana com vistas a explicá-la ainda que tal
mística pascaliana. Para isso foi lançado mão dos empreendimento não pudesse abarcar a infinita
fragmentos relacionados a este problema nas obras complexidade humana.
filosófico-teológicas do gênio francês do século XVII, Essa tentativa de explicação acerca do que é o
Blaise Pascal, em especial, sua principal obra publi- homem levou a uma série de definições que, inclusi-
cada postumamente sob o título Pensamentos – ve, foram impostas de fora para dentro no que tange
Pensées. De cientista a filósofo místico, Pascal optou a formatação da humanidade aos moldes concebidos
por investigar e descrever a condição humana nos por intelectuais de vários lugares e épocas. Entretan-
últimos anos de sua vida. Foi estabelecida a hipótese to, a história tem demonstrado que buscar ajustar a
de que Pascal utiliza conceitos paradoxais acerca da humanidade a partir de moldes ou recortes epistemo-
condição humana que, em última análise, remetem o lógicos propostos por intelectuais, ainda que bem
homem como criatura que transita, necessariamente, intencionados, nem sempre tem sido uma ideia coe-
na dinâmica da miséria e grandeza constitutivas do rente e salutar. Em alguns casos, tal empreita culmi-
seu próprio ser. O método utilizado para firmar esta nou em totalitarismos que, por sua vez, resultaram
hipótese foi o de pesquisa bibliográfica do próprio em terríveis genocídios. Por outro lado, é possível
autor supracitado e de importantes comentadores de encontrar saídas satisfatórias para a explicação da
suas obras. Com isto, pretende-se inferir que Pascal condição humana sem, contudo, incorrer no risco de
se apoia em suas próprias tensões existenciais so- formatar a humanidade com base em rótulos particu-
madas ao arcabouço filosófico e teológico agostinia- lares e aparentemente desconexos com a realidade
no – sob as lentes do jansenismo – para afirmar que existencial humana. É neste ponto que surge o gênio
o homem, degenerado ontologicamente por toda francês, Blaise Pascal, com sua grande contribuição
sorte de concupiscências, encontra somente na gra- para se pensar a condição humana, cujo caráter
ça a saída efetiva desse estado de miséria. paradoxal reflete a dinâmica de suas constantes
Palavras-chave: Concupiscência, Miséria, Graça contradições de ordem existencial.
Cabe ressaltar que Blaise Pascal, nascido a 19
Área do Conhecimento: Ciências Humanas – Filoso-
de junho de 1623 em Clermont-Ferrand na França,
fia – CNPq.
foi uma das figuras intelectuais mais destacadas de
seu tempo. Iniciou sua vida de estudos precocemen-
te tornando-se um grande cientista nas áreas da
1. INTRODUÇÃO
física e da matemática, além de grande pensador
O homem enquanto ser que tende ao saber por
nas áreas de filosofia e teologia.
natureza parece não conseguir descobrir nunca o
mistério que envolve a sua própria natureza. Essa Desde cedo Pascal experimentou as agruras da
tensão entre o desejo de saber e não saber sobre si vida, sendo a primeira a morte de sua mãe, Antoinet-
mesmo, de modo completo e peremptório, se traduz te Bégon. Seu pai, Etienne Pascal, pertencente à
no caráter paradoxal de sua própria condição exis- pequena burguesia de Clermont, dedicou-se ao cui-
tencial. Muitos foram os que buscaram empreender dado mais intenso da família. Com isso, Pascal foi
uma investigação que trouxesse respostas contun- por ele educado de forma que não recebeu educa-
dentes a pergunta que até hoje, quiçá, ocupa o ima- ção formal. A genialidade de Pascal mostrou-se pre-
ginário de grandes e pequenos, novos e velhos, qual cocemente, sobretudo, em relação à matemática.
seja: o que é o homem? Pode-se dizer que desde Antes dos vinte anos, Pascal inventou uma máquina
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aritmética, conhecida como Pascaline, e publicou 1. Apontamentos da origem do caráter parado-


várias obras e tratados científicos. xal da condição humana.
Na mesma medida em que Pascal desenvolveu 2. A concupiscência como faceta miserável da
sua genialidade precocemente, foi também acometi- condição humana.
do desde cedo por duras enfermidades que o acom- 3. O papel da graça para a efetivação da condi-
panharam até o fim de sua vida. De família católica, ção de grandeza do homem.
Pascal passou por experiências místicas de conver-
são – influenciado pelo jansenismo – que o lançaram
como um grande apologeta da religião cristã. Escre- 2. APONTAMENTOS DA ORIGEM DO CARÁTER
veu importantes obras de filosofia mística e de teolo- PARADOXAL DA CONDIÇÃO HUMANA
gia, sendo a principal delas a que ficou conhecida Apoiado na tradição agostiniana, sob o prisma
sob o título Pensées – Pensamentos. Devido o agra- da corrente religiosa jansenista, Pascal reconhece
vamento de suas constantes doenças, Pascal fale- que a humanidade possuía um estado de natureza
ceu aos trinta e anos de idade. que foi fatalmente modificado em toda a sua exten-
Ao pensar a condição humana Pascal transita são, em decorrência da queda adâmica retratada e
entre vários paradoxos, sendo o mais citado por ele: difundida conceitualmente pela doutrina agostiniana
a miséria e a grandeza do homem. Outros paradoxos do pecado original. Seguindo a narrativa mítica ge-
surgem na esteira desta dinâmica de miséria e gran- nesiana, o homem foi criado enquanto ser-para-
deza, quais sejam: material e imaterial, sublime e Deus, inescapável a esta consciente condição peran-
vulgar, tédio e divertimento, finito e infinito, ciência e te o seu próprio criador. Seu caráter divino o remetia
fé, razão e paixão (sentidos), concupiscência e gra- como ser participante da glória de Deus, conforme se
ça, ou seja, longe de matizar o homem como ser vê em uma das reflexões pascalianas sobre as misé-
autossuficiente, ele se utiliza destes conceitos onto- rias do homem: “[...] Mas já não estais mais agora no
logicamente constitutivos para afirmar que o homem estado em que vos criei. Criei o homem santo, ino-
sem Deus vive malogradamente em busca de sua cente, perfeito, cumulei-o de luz e de inteligência,
completude, ainda que acabe sempre mergulhado na comuniquei-lhe a minha glória e as minhas maravi-
confusão das contradições que o acomete. lhas. O olho do homem via então a majestade de
Deus. Não estava então nas trevas que o cegam
Pascal toca especificamente nesse assunto em
nem na mortalidade e nas misérias que o afligem” [1]
vários fragmentos de sua obra Pensées, a exemplo
deste que expõe as contrariedades, a impotência da A miséria do homem como conditio sine qua non
razão, bem como possíveis saídas desta confusão não fazia parte da ontologia humana. O homem era
de ordem existencial: “[...] Que espécie de quimera é tido como um ser de grandeza, pois, o próprio Deus,
então o homem? [...] Conhecei, pois, soberbo, que o completava enquanto objeto do seu amor infinito. O
paradoxo sois para vós mesmos. Humilhai-vos razão amor do homem era dispensado para Deus e somen-
impotente! Calai-vos, natureza imbecil; aprendei que te n’Ele se deleitava. Contudo, no fatídico evento da
o homem ultrapassa infinitamente o homem e ouvi queda, o homem “não pode sustentar tanta glória
de vosso senhor vossa condição verdadeira que sem cair na presunção” [1]. Fato este que o levou a
ignorais” [1]. realocar o amor que devotava a Deus para si mes-
mo. Dito de outro modo tem-se a caracterização do
Logo se percebe que, para Pascal, vários são os
inevitável desvio do amor ao criador para a criatura,
paradoxos presentes na condição humana. Em vista
uma vez que Deus ausentou-se do ser do homem
disso, para fins de delimitação deste trabalho, optou-
deixando um vazio ontológico do tamanho do infinito.
se por eleger a concupiscência e a graça, enquanto
Desde então o homem, pela ausência deste objeto
conceitos paradoxais de um contexto ontológico
infinito, ama a si mesmo, porém, em constante de-
maior de miséria e grandeza.
sespero por amar infinitamente um objeto – ele
Na esteira dessas contrariedades e inconstân- mesmo – que não possui esta mesma condição de
cias perenes que assombram a existência, este tra- infinitude. Pascal é enfático acerca do amor-próprio
balho se propõe a desenvolver o seguinte itinerário como quebra da conexão com Deus em função do
com vistas a expor, ainda que de modo não exausti- pecado: “Depois, chegando o pecado, o homem
vo, porém, suficiente, os aspectos concernentes ao perdeu o primeiro de seus amores, e o amor por si
paradoxo de miséria e grandeza relativo à concupis- mesmo ficou sozinho nesta grande alma capaz de
cência e a graça, respectivamente: um amor infinito, e este amor-próprio se estendeu e
transbordou no vazio que o amor de Deus deixou, e
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assim o homem se ama unicamente, e todas as coi- esplendor desta última, nem aquele da inteligência
sas em relação a si, isto é, infinitamente [2]. podem acrescentar algo àquela, invisível, da caritas”
Nesta esteira surge o conceito de desproporção [3].
que nada mais é do que a capacidade do homem A sobrenaturalidade do homem como condição
amar infinitamente sem mais possuir o objeto infinito precedente a queda perde-se com esta nova realida-
deste amor estabelecendo uma desordem. Isto é o de existencial trazendo desproporção e, sobretudo, o
que os scholars de Pascal irão chamar de a teoria caráter paradoxal de sua nova condição, enquanto
das três ordens. Essa teoria pode ser compreendida ser limitado pela finitude e contingência característi-
a partir de outro importante fragmento pascaliano cas do efeito macrocósmico do pecado. Com isso,
que estabelece desdobramentos em cada ordem: desponta outro importante conceito para integrar o
“[...] Existem três ordens de coisas: a carne, o espíri- rol de paradoxos da condição humana, a saber, o
to, a vontade. Os carnais são os ricos, os reis. Eles conceito de insuficiência. O homem insuficiente,
têm por meta o corpo. Os curiosos e os cientistas, neste caso, é aquele que em si mesmo não pode
estes têm por meta o espírito. Os sábios têm por alcançar a ordem mais elevada que é a ordem da
meta a justiça. Deus deve reinar sobre tudo e tudo caritas, ou seja, a ordem do amor de Deus. De certo
deve relacionar-se a ele [...]” [1]. modo esta insuficiência também acometia o homem
Antes havia apenas uma ordem em que a criatu- em seu primeiro estado, haja vista que o homem se
ra se relacionava com o seu criador deleitosamente. voltava para Deus a partir de um ambiente total de
Com o fragmento acima nota-se a fundação de três graça que possibilitava esta busca.
ordens que, a despeito de tem sido inauguradas Temos aqui, portanto, o homem como um ser de
como consequência direta do pecado, há um telos desordem, fragmentado e com a impossibilidade de,
em cada uma delas que deve apontar para Deus. por seus próprios esforços físicos, intelectuais e voli-
Estas ordens não se tocam permanecendo distintas tivos, estabelecer uma totalidade ontológica, isto é,
umas das outras. Tal situação tem sido chamada de se abrir ao sobrenatural a partir da terceira ordem
entre os estudiosos de Pascal de disjunção. Isto que para que todas elas sejam consolidadas como um
dizer que cada ordem funciona autonomamente e de sistema, um todo unificado e homogêneo aberto para
maneira incomunicável: a ordem da carne (do corpo), receber a Deus [3]. Este caráter paradoxal possui
composta por aqueles que se valem da força, não uma de suas principais facetas, elencada por Pascal,
toca ou se comunica com a ordem do espírito (da na ideia de miséria do homem sem Deus.
razão) composta pelos curiosos, filósofos, cientistas Em sua nova condição, o homem é ontologicamente
e afins. Muito menos ainda, a ordem da vontade (da miserável porque, ao invés de sua terceira ordem – a
caridade) como sendo a ordem dos santos, possui ordem da vontade – funcionar como a ordem da
qualquer contato com as duas primeiras ordens. É caritas, aberta ao sobrenatural, ela funciona como a
neste sentido que a célebre expressão de Pascal: “o ordem da vontade corrompida, forçada a se subme-
coração possui razões que a própria razão desco- ter à prisão dos efeitos do pecado. Eis a entrada do
nhece” [1], pode ser compreendida mais adequada- conceito de concupiscência como miséria humana,
mente. Como o coração é o órgão da fé para Pascal, cuja força corrompe a tudo e a todos, podendo ser
jamais os homens de primeira ordem conseguirão vencida apenas pela infusão da graça. Isto posto, o
acessar adequadamente a Deus, através de suas próximo passo desta investigação consiste em refletir
forças, assim como, do mesmo modo, os homens de sobre o tema da concupiscência, que age pernicio-
segunda ordem também não conseguirão acessar a samente sobre a vontade humana revelando a sua
Deus adequadamente, através da razão. faceta miserável que o atormenta perpetuamente,
Somente os homens de terceira ordem (os san- enquanto vive como renegado ser-para-Deus.
tos) têm seus corações inclinados para crer, através
da ação da graça na pessoa do Cristo. Vejamos o
comentário de um destacado scholar de Pascal, 3. A CONCUPISCÊNCIA COMO FACETA
Jean Mesnard, que toca diretamente este tema das MISERÁVEL DA CONDIÇÃO HUMANA
três ordens: “[...] Pascal se aplica a situar a grandeza Como já visto, o caráter paradoxal da condição
deste [Jesus Cristo] na sua ‘ordem’ verdadeira, aque- humana pode ser representado por dois principais
la da caritas, do amor, da santidade, infinitamente conceitos que atuam como “guarda-chuva” dos de-
superior àquela dos espíritos, onde reinam os erudi- mais conceitos que visam explicar as contradições
tos [savants], a qual é já infinitamente superior àque- existenciais da humanidade, quais sejam, miséria e
la dos corpos, isto é, da potência temporal: nem o grandeza. A faceta miserável, por sua vez, tomada
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como inclinação do homem para fazer o mal – agir mos os remédios para vossas misérias. Todas as
fora dos preceitos de Deus – possui raízes fincadas vossas luzes não podem levar a outra coisa que não
no conceito bíblico de concupiscência, trabalhado seja conhecer que não é em vós mesmos que en-
extensamente por santo Agostinho e por boa parte contrareis a verdade nem o bem” [1]. Nota-se, por-
dos filósofos medievais. A concupiscência age como tanto, que a humanidade encontra-se flagrantemente
uma força que opera diretamente sobre a nossa perdida em suas próprias misérias existenciais, cuja
vontade, aspecto característico da ordem da caritas, força devastadora que domina e conduz os homens
que deveria seguir as orientações de Deus. Longe a estas misérias reside na concupiscência.
disso, a vontade humana corrompida, cega esta Neste ínterim, a concupiscência coage a vontade
terceira ordem, além de atuar sempre sob o telos do sob a recompensa do encantamento e do prazer, ou
amor-próprio e dos desdobramentos que dele se seja, da escravidão do deleite pelas coisas criadas, o
sucedem. que pode ser traduzido na ideia de preferência do
Os efeitos da concupiscência dizem respeito a homem pelas coisas alheias a Deus encontrando
toda humanidade, a ponto de Pascal lançar mão do nelas algum tipo de satisfação – uma espécie de
trecho bíblico da primeira epístola do apóstolo João alienação – preterindo ao seu próprio criador, posto
para demonstração do tamanho desta abrangência: que a força de sua concupiscência nada mais é do
“Tudo que há no mundo é concupiscência da carne que o exercício miserável de seu amor-próprio [2].
ou dos olhos ou orgulho da vida. Libido sentiendi, A alimentação deste amor-próprio pela força da
libido sciendi, libido dominandi [...]” [1]. Nada há o concupiscência ou da concupiscência pelo amor-
que o homem possa fazer fora do ambiente da gra- próprio tornou-se prática dinâmica e constante do ser
ça, a fim de escapar desses efeitos abrangentes da humano. Esta ideia está sempre presente quando o
concupiscência. Em outro momento, Pascal afirma tema da miséria é retratado nos escritos pascalianos
que as nossas ações voluntárias são sempre prece- sobre a condição humana. Ainda sobre a força da
didas pela concupiscência, ou seja, esta é sempre a concupiscência acerca da vontade humana, ela tam-
fonte daquelas [1]. Neste afastamento entre criatura bém possui uma função operativa para tentar resol-
e criador, o homem não se dá conta de que seus ver outro problema decorrente do vazio infinito que
movimentos constituem-se como uma sucessão de assombra o homem, explicitado pelo termo francês
misérias existenciais que não o satisfaz, uma vez ennui, isto é, um tipo de “angústia essencial, uma
que, como já posto, existe um vazio infinito no ho- espécie de patologia espiritual” [3], materializada na
mem que é do tamanho de Deus, objeto ausente ideia cotidiana de tédio. Em um fragmento de papéis
deste amor infinito. não classificados, encontrados após a morte de Pas-
Pascal insiste no fato de que o homem é um ser cal, é possível verificar a gravidade deste problema
impotente diante de qualquer tentativa de ascender que aterroriza a humanidade: “Nada é mais insupor-
ou de se lançar à terceira ordem, sem que Deus tável para o homem do que estar em pleno repouso,
tenha tomado à iniciativa prévia de preparar o seu sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem
coração para recebê-lo pela fé. Neste ponto, assim aplicação. Ele sente então o seu nada, seu abando-
como em outros anteriores, nota-se com certa clare- no, sua insuficiência, sua dependência, sua impotên-
za que Pascal assume uma antropologia pessimista cia, seu vazio. Imediatamente nascerão do fundo de
no tocante a condição humana. Isso não quer dizer sua alma o tédio [...]” [1].
que Pascal não tenha dado valor a nenhuma faceta Apesar deste tema do ennui e do divertissement,
da existência como, por exemplo, o racionalismo ou seja, do tédio e do divertimento, respectivamente,
cartesiano de sua época ou que tenha tentado se serem tratados de forma ampla e com riqueza de
opor a isso pelas vias tradicionais da apologética detalhes nos escritos pascalianos, por questões me-
cristã. Pascal aceitava o racionalismo no campo da todológicas, será feita apenas uma explanação su-
ciência, porém, o seu limite se dava neste mesmo perficial destes conceitos paradoxais que tocam as
campo. Em outras palavras, a razão, somente, não profundezas da alma humana.
era suficiente em si mesma para o alcance e apreen-
Para fugir desta condição de tédio que o coloca
são eficaz de Deus [4]
frente-a-frente com suas próprias misérias, o homem
Sua visão pessimista permeia praticamente to- se utiliza, ingenuamente, da artimanha do divertis-
das as suas obras que tocam o tema da condição sement, ou seja, do divertimento como estratégia de
humana. Em especial, um conhecido fragmento dos fuga de si mesmo ou do não reconhecimento de sua
Pensamentos ilumina e expõe esse dilema humano: inescapável condição ontologicamente miserável. E
“[...] É em vão, ó homens, que buscais em vós mes-
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por que ingenuamente? Porque mal sabe o homem O que deve ficar claro com este paradoxo do tédio e
que o divertissement é a maior de todas as misérias do divertimento é que ambos os conceitos remetem
[1]. Dito de outro modo, o divertissement pode ser à ideia de miséria sendo o tédio, miséria explícita e
entendido como uma miséria disfarçada tentando consciente e, o divertimento, miséria implícita e in-
disfarçar todas as demais. consciente. A concupiscência, neste caso, com sua
Pascal elenca vários exemplos dessas estratégias força tirânica sobre a vontade humana, age sempre
que os homens de todas as classes, de todas as idades em busca daquilo que se pensa satisfazer o homem
e de todos os lugares se utilizam para não sentirem o desviando-o de seu tédio, através do divertimento
horror de suas misérias que o tédio proporciona. A di- como meio de autossatisfação independente da gra-
nâmica do movimento que subtrai o homem desta con- ça divina. Não importa a motivação e intenção das
dição de tédio, tapando os olhos de sua alma para que ocupações humanas elas são sempre divertissement
não veja o vazio que a aterroriza, está presente em pra- operadas pela concupiscência.
ticamente todas as ocupações humanas. Neste caso, o
exemplo dos jogos demonstra com precisão a força do
4. O PAPEL DA GRAÇA PARA A EFETIVAÇÃO DA
divertissement. Pascal diria que alguém que sai para a
CONDIÇÃO DE GRANDEZA DO HOMEM
caçada ou que aposta em algum cavalo de corrida, pos-
sui muito mais prazer, deleite e felicidade enquanto ocor- Como já visto o homem apresenta irremediavelmente
re o movimento da caçada ou da corrida de cavalos. marcas de suas constitutivas contradições. Não neces-
Quando ambas as atividades acabam, mesmo que o sariamente, do ponto de vista pascaliano, as contradi-
caçador consiga a sua presa ou o apostador ganhe a ções são o cerne do problema. Elas apenas acontecem
sua aposta, passado este momento de vitória, ambos como produto da relação criatura-criador. Pascal diz que
voltam a pensar em seu vazio miserável necessitando “[...] nem a contradição é marca de falsidade, nem a não-
de mais ocupações que os “lancem para fora” de si contradição é marca de verdade” [1]. Isto posto, ao se
mesmos. Um simples instante de solitude, quieto em um comparar a menção que Pascal faz dos conceitos de
quarto, é suficiente para que a mente humana comece a miséria e grandeza presentes nos fragmentos dos Pen-
sucumbir em desespero: “Quando às vezes me pus a samentos, nota-se com relativa facilidade que Pascal
considerar as diversas agitações dos homens, e os peri- elege a miséria como condição ontológica da humanida-
gos, e as penas a que se expõem na Corte, na guerra de de, sendo a sua possibilidade de grandeza exceção e
onde nascem tantas desavenças, paixões, ações ousa- não a regra. Porém, seguindo a linha agostiniano-
das e muitas vezes maldosas, etc., repeti com frequên- jansenista Pascal recorre ao tema da graça ao descrever
cia que toda a infelicidade dos homens provém de uma a solução proposta pelo criador à sua criatura, no que se
só coisa: de não saber ficar quieto num quarto. “[...] O refere a verdadeira cura para as suas próprias misérias.
único bem dos homens consiste, pois, em divertir, o
pensamento de sua condição ou por uma ocupação que Esta cura passa pela restauração ontológica do ho-
mem, cujas ordens não se fecham como sistema
dele os desvie, ou por alguma paixão agradável e nova
devido ao seu caráter disjuntivo mencionado nas
que os ocupe, ou pelo jogo, a caça, algum espetáculo
seções anteriores. A saída para a restauração das
atraente e finalmente por aquilo a que se chama diverti-
mento” [1]. três ordens, iniciada pela abertura da terceira ao
sobrenatural, ocorre por aquilo que Pondé irá chamar
Ninguém pode escapar a tal condição miserável. de conversão ontológica das ordens: “[...] pode-se
Nem mesmo um rei, posto máximo, entre os grandes do observar que dentro de cada ordem há um espaço
período em que Pascal viveu na França, com toda a sua de objetos, atitudes e desdobramentos determina-
pompa e benesses que lhe são características, poderia dos. Segundo Pascal, as duas primeiras só encon-
fugir ao problema do tédio. O papel que os bobos da corte tram harmonia quando remetidas à terceira – isso é
faziam para alegrar e distrair o rei é prova cabal de que o exatamente o que poderíamos chamar de conversão
tédio, enquanto repouso que remete às preocupações ontológica das ordens” [5].
mais miseráveis da existência, não escolhe gêneros, etni-
as e classes sociais. Não somente os bobos da corte, A terceira ordem outrora dirigida pela miséria da concu-
mas as pessoas de modo geral entretém o rei para que a piscência configura-se, pela graça, em seu novo estado
infelicidade não o acometa ao pensar em si mesmo [1]. como a ordem da caritas. Contudo, não somente a res-
Mesmo o fazer científico ou as reflexões acerca da exis- tauração ontológica acontece a partir da infusão da gra-
tência, características específicas da segunda ordem, no ça que entra pela terceira ordem e converte as demais,
final das contas são sinônimas de divertissement. mas, em especial, a restauração espiritual do homem,
tornando possível que ele se achegue a Deus deleitan-
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do-se n’Ele amorosamente. Todavia, o único modo para 5. CONCLUSÃO


que isso aconteça reside na figura do Cristo Mediador,
Ao fim deste itinerário sobre o caráter paradoxal que
conceito central presente nos fragmentos pascalianos
acomete à humanidade chega-se a conclusão de
acerca da reconexão do homem com Deus. Apesar do
que miséria e grandeza, retratados aqui neste traba-
reconhecimento humano de suas próprias misérias fun-
lho pelos conceitos de concupiscência e graça, não
cionar como uma espécie de antessala no drama da
se constituem como problema fundamental em si,
salvação – como se o homem que se reconhece mise-
apenas pelo fato de remeterem ao inevitável parado-
rável estivesse mais perto de alcançar a graça – é so-
xo da condição humana, mas, o de este paradoxo se
mente pela religião cristã que o homem obtém a chance-
dar enquanto o homem permanece em seu estado
la de sua condição restaurada de consciente ser-para-
de renegado ser-para-Deus. Pascal coloca toda a
Deus. Prova disso é que Pascal diz que até mesmo os
sua alma na tentativa de propor que, somente quan-
simples conseguem crer sem, inicialmente, compreender
do o homem reconhece suas misérias sem cair em
a própria razão da sua crença: “não vos admireis de ver
desespero, fato este possível apenas pela ação da
pessoas simples crerem sem raciocinar. Deus lhes dá o
graça, é que o mesmo alcança verdadeiramente seu
seu amor e o ódio de si mesmos. Inclina-lhes o coração
estado de grandeza. Isto se deve pela obra do Cristo
a acreditar. Nunca se crerá, com uma crença útil e de fé,
Mediador que restaura a vontade degradada do ho-
se Deus não inclinar o coração, e se crerá logo que ele o
mem que se lança a viver, não mais como um rene-
inclinar [...]” [1].
gado ser-para-Deus, mas, doravante, como um
A partir desta trilha de restauração do homem das consciente ser-para-Deus. Neste caso, portanto, o
misérias de sua concupiscência, a desproporção que caráter paradoxal de sua condição mesma, outrora
anteriormente o remetia à busca incessante por di- tomada como incurável chaga existencial, passa a
vertissement, que o desviassem do tédio, agora é figurar como mecanismo de entrada da ação Sobre-
mitigada pela ação do Cristo Mediador que preenche natural, cujo tratamento eficaz é ofertado gratuita-
o seu vazio existencial. A graça é alcançada median- mente por seu próprio criador.
te o conhecimento do Cristo como via única que leva
a Deus, haja vista que por causa da natureza divino- AGRADECIMENTOS
humana do Cristo, o homem encontra nele a clara Agradeço a Deus por me conferir graça na elabora-
representação do seu caráter paradoxal de miséria e ção deste trabalho. Também, ao professor doutor
grandeza: “[...] o conhecimento de Jesus Cristo faz o Renato Kirchner pela confiança e maravilhosa parce-
meio-termo porque aí encontramos tanto Deus como ria nesta pesquisa. À Pontifícia Universidade Católica
a nossa miséria” [1]. de Campinas que, através da FAPIC-Reitoria, tornou
O homem neste novo estado não mais vive sob a dor possível a realização deste.
dos dilemas existenciais que antes o acometiam. O
desespero e o pavor que ele sentia em decorrência
do seu caráter contingente e finito, lançado à deriva REFERÊNCIAS
do mar da infinitude cósmica, não mais o afligem. [1] PASCAL, B. Pensamentos. Trad. Mario Laranjei-
Questões como: “Quem me colocou aqui? Pela or- ra. Ed. Louis Lafuma. São Paulo: Folha de S.
dem e pela intervenção de quem este lugar e este Paulo, 2015.
tempo foi destinado a mim?” [1] foram apaziguadas [2] MARTINS, A. V. Do reino nefasto do amor pró-
por seu próprio criador a partir da restauração de sua prio: a origem do mal em Blaise Pascal. São
condição paradoxal. A saída, portanto, de seu estado Paulo: Filocalia, 2018.
miserável para o estado de grandeza, isto é, da miti-
gação do efeito ontológico da concupiscência, se [3] PONDÉ, L. F. O homem insuficiente: comentá-
deve pela ação da graça, através do Cristo Media- rios de antropologia pascaliana. São Paulo:
dor, que não somente faz o coração sentir a Deus Edusp, 2001.
pela fé, como também restaura a razão que passa a [4] REALE, G. História da filosofia: Antiguidade e
admitir o ser em sua totalidade como consciente ser- idade média. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1990.
para-Deus. [5] PONDÉ, L. F. Conhecimento na desgraça: en-
saio sobre epistemologia pascaliana. São Paulo:
Edusp, 2004.

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