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CONHECIMENTO ANALÓGICO E CONHECIMENTO

UNÍVOCO

Daniel Gomide
Sumário
INTRODUÇÃO ..........................................................................7
O CONCEITO VANTILIANO DE ANALOGIA ......................9
REVISITANDO O CONCEITO VANTILIANO DE
ANALOGIA .............................................................................23
O REVISIONISMO DE JOHN FRAME .................................32
R. SCOTT CLARK E O MAL USO DA TRADIÇÃO
REFORMADA .........................................................................44
GORDON CLARK E O CONHECIMENTO UNÍVOCO .......49
ESTABELECENDO O CASO EM FAVOR DO
CONHECIMENTO UNÍVOCO ...............................................85
CONHECIMENTO ANALÓGICO, PARADOXO E
MISTÉRIO .............................................................................104
REALISMO CONCEITUAL TEÍSTA E SIMPLICIDADE
DIVINA ..................................................................................115
APENDICE ............................................................................159
INTRODUÇÃO

Na década de 40 uma disputa foi iniciada entre


dois apologetas célebres: Cornelius Van Til e Gordon
Haddon Clark.1 A controvérsia levantou pontos que
perduram em debate até os dias de hoje. Um desses pontos
diz respeito à teoria do conhecimento. Existe um ponto de
contato entre o nosso conhecimento e o conhecimento
divino? Seria o nosso conhecimento unívoco ou análogo?
Apesar de essas questões parecerem irrelevantes, sem
muita relação com nosso cotidiano, a resposta a essas
perguntas é de crucial importância, pois a compreensão da
realidade última é diretamente afetada por nossa
cosmovisão. Numa tentativa de esclarecer a disputa,

1
A controvérsia foi desencadeada pela recepção de um documento
que ficou conhecido como Reclamação. Dentre os que assinaram o
documento, redigido em oposição à ordenação de Clark, estava
Cornelius Van Til. Vale lembrar que o presbitério da OPC (Orthodox
Presbyterian Church) decidiu o caso em favor de Clark.
procuraremos entender a definição desses termos e, sem
muito suspense, recomendaremos a epistemologia
clarkiana como solução para o caso.

8
O CONCEITO VANTILIANO DE
ANALOGIA

Para que possamos compreender melhor a


controvérsia Clark-Van Til, especificamente a
definição de conhecimento analógico e de
conhecimento unívoco, faz-se mister investigar a
terminologia desses grandes pensadores da fé cristã.
É lugar-comum para os vantilianos afirmarem que o
conceito de analogia de Van Til difere do conceito
aristotélico-tomista. Em uma nota de rodapé no livro
Apologética Cristã, William Edgar salienta:
Embora não o desenvolva aqui, o
conceito de analogia é central à
epistemologia de Van Til. Ele significa
“pensar os pensamentos de Deus após
ele”, ou conhecendo em conformidade
com um modo de criatura. Em A
Christian Theory of Knowledge [...], ele
distingue sua visão da doutrina da
analogia do ser de Tomás de Aquino,
pela qual o cosmos se move do ser total
9
de Deus, que é autogovernador, ao ser
da humanidade, que é parcialmente
autogovernador, até aos seres inferiores,
ou mesmo o não ser, matéria não
diferenciada, incapaz de qualquer
essência. Na visão de Tomás, não
podemos nunca falar univocalmente
acerca de Deus, entretanto não
precisamos nos limitar ao equivocal, ou
conhecimento puramente metafórico.
Analogia é o meio-termo. Para Van Til,
analogia é bem diferente. Diz respeito
ao único caminho para o conhecimento
de um Deus que é tanto Criador e,
portanto, transcendente, e Redentor,
logo também imanente. Para ele o
conhecimento univocal é simplesmente
conhecer o caminho que Deus conhece,
ou autonomamente, e conhecimento
equivocal significa ceticismo.

No centro da epistemologia vantiliana temos,


então, um termo confuso. De acordo com o Edgar,
analogia significa “pensar os pensamentos de Deus
após ele”. Isso parece indicar o modo como a criatura
conhece, enquanto nada diz acerca do objeto do
conhecimento. Por outro lado, o conhecimento
unívoco, de acordo com a descrição de Edgar, refere-
se ao modo autônomo do conhecimento. Definidos

10
dessa forma, conhecimento analógico e
conhecimento unívoco são de tal modo antitéticos
que a fé cristã não pode conciliá-los. O conhecimento
analógico é dependente e derivado de Deus. O
conhecimento unívoco é independente e baseado na
razão autônoma. A distinção Criador-criatura só pode
ser mantida, na visão vantiliana, quando nosso
raciocínio é analógico. De acordo com alguns
vantilianos, como K. Scott Oliphint e R. Scott Clark,
o conhecimento analógico está plenamente de acordo
com a tradição reformada. Tal conhecimento se
fundamenta na distinção básica εἰμι (eimi)/εἰκὼν
(eikōn), isto é, a distinção ontológica EU
SOU/Imagem requer uma distinção qualitativa entre
o conhecimento divino e o conhecimento humano. O
conhecimento de Deus é original (arquétipo)
enquanto o nosso é derivado (éctipo).
A distinção entre teologia arquétipa e
teologia éctipa na teologia reformada remonta a
Franciscus Junius (1591 – 1677). Em sua obra A
Treatise on True Theology ele defende que a
11
sabedoria (teologia) de Deus não pode ser predicada
univocamente à sabedoria (teologia) do homem, mas
deve ser predicada de modo análogo. Vejamos mais
detidamente as definições de Junius. O tratado de
Junius pode ser considerado um prolegômeno acerca
da natureza da teologia. Seu método parte das teses,
fornece definições e deriva daí as conclusões. Junius
aponta que a teologia pode ser definida de duas formas: 1)
teologia é o discurso que o próprio Deus proclama e 2) o
discurso real que é pronunciado em relação a Deus
(sabedoria quanto aos assuntos divinos). No tratado, o
segundo sentido é aplicado com mais frequência.
Conforme indica Willem J. van Asselt, na introdução,
Junius utiliza “sabedoria” (sapientia) como um termo
técnico. A teologia é sabedoria, porquanto abrange o
domínio teórico e o domínio moral. Sapientia engloba os
primeiros princípios, as deduções válidas e o que é
necessário para a piedade. Tendo determinado a existência
da verdadeira teologia em oposição à falsa, Junius
investiga o sentido do termo “sabedoria” quando aplicado
a Deus e quando aplicado a nós. Ou para dizer de outro
12
modo, uma vez que teologia diz respeito à “sabedoria
quanto aos assuntos divinos” é necessário determinar o
que esse termo quer dizer quando aplicado a Deus e
quando aplicado ao homem. Ao distinguir a teologia de
Deus da teologia revelada temos um uso equívoco do
termo teologia. Na predicação, um termo é equívoco
quando, apesar de ser homônimo, é usado com sentido
distinto. O gênero da teologia de Deus é ilimitado,
atemporal, infinito e exaustivo. Mas nossa teologia é
limitada, pois não podemos saber tudo acerca de Deus.
Dessa forma, por não compartilhar das mesmas
qualidades, nossa teologia não pode ser do mesmo tipo da
teologia de Deus, mas deve ser uma cópia (gr. éctipo).
Nossa teologia, apesar de não ser do mesmo tipo da
teologia essencial, mantém com ela uma analogia
“exatamente como uma imagem pintada de uma pessoa
não é do mesmo tipo que a pessoa, mas somente por meio
de raciocínio analógico adquire por equívoco o título de
‘pessoa’” (JUNIUS, 2014, p. 106). Teologia arquetípica é
a “sabedoria divina acerca dos assuntos divinos”. Assim,
Junius diz com os escolásticos que a sabedoria é
13
predicada de Deus univocamente, mas de nós de forma
equivocada (JUNIUS, 2014, p. 108). Ele então explica
porque o termo sabedoria é equívoco aplicando ao nosso
modo de saber. A teologia arquetípica (o conhecimento de
Deus acerca Dele mesmo) não tem distinções, partes, não
é sucessiva, é eterna, é essencial, é imutável e, de fato, é a
própria essência de Deus. Já o nosso conhecimento é
discursivo, é acidental, nasce de princípios, envolve
cadeias de raciocínios (JUNIUS, 2014, p. 109). Sabedoria
para Deus então não é algo temporal e progressivo, como
é para nós. Claramente, portanto, o termo sabedoria é
equívoco quando aplicado a Deus e aos homens. Mas é
unívoco em cada caso particular. O infográfico2 abaixo
resume de forma didática esses pontos:

2
Adaptado com permissão do artigo The Archetypal/Ectypal
distinction and Clarkian epistemology de Daniel H. Chew, Disponivel
em:
<http://www.angelfire.com/falcon/ddd_chc82/theology/ArchetypalEct
ypalDistinctionClarkianE.pdf>. Acesso em: 15 agosto 2017.

14
Para Junius, a teologia revelada é “retirada” dessa
fonte inesgotável denominada teologia arquétipa. Assim, a
distinção do conhecimento divino e humano é tanto
qualitativa (modo) como quantitativa (o homem conhece
apenas a parte retirada da fonte inesgotável). Ele escreve:
“A teologia éctipa, seja tomada em si mesma, como
dizem, ou relativamente em relação à outra coisa, é a
sabedoria dos assuntos divinos, formada por Deus a partir
do arquétipo de Si mesmo, através da comunicação da

15
graça para Sua própria glória”.3 Os termos “unívoco”,
“equívoco” e “análogo” são usados por Junius no âmbito
lógico/semântico. Junius aplica o termo “analogia” para
afirmar a semelhança entre a teologia arquetípica e a
teologia éctipa. O termo que Junius correlaciona ao modo
de nosso conhecimento é “éctipo” ao invés de “análogo”.
Willem J. van Asselt demonstra esse ponto de maneira
precisa:
Ele [Junius] define a teologia
arquetípica como a teologia de Deus em
si mesmo. É a teologia segundo a qual o
Deus trino se conhece e tudo o que está
fora dele por um ato indivisível de saber.
É a sabedoria eterna e essencial de Deus
e, portanto, a própria essência de Deus
em que todas as coisas estão presentes
sem ser o resultado de um processo
discursivo [...].4

3
JUNIUS, F. A Treatise on true Theology. Tradução de David C.
Noe. 2965 Leonard St. NE: Grand Rapids: Reformation Heritage
Books, 2014.
http://www.juniusinstitute.org/companion/junius_de_vera/ .
4
JUNIUS, F. A Treatise on true Theology. Tradução de David
C. Noe. 2965 Leonard St. NE: Grand Rapids: Reformation
Heritage Books, 2014. xxxii p.
http://www.juniusinstitute.org/companion/junius_de_vera/.
16
A teologia éctipa secundum quid5, por outro
lado, é progressiva e discursiva. Teologia arquétipa e
teologia éctipa indicam, portanto, quantidades e
modos distintos de conhecimento. A
incomunicabilidade do conhecimento arquetípico
levou os reformados a declararem que finitum non
capax infiniti, ou seja, a finitude da natureza humana
é incapaz de compreender a infinitude da natureza
divina. Em outras palavras, o conhecimento perfeito
e exaustivo de Deus (arquétipo) é inacessível às
criaturas. Mas por sua livre vontade e graça Deus
retira da fonte inesgotável (teologia arquétipa) um
conhecimento comunicável à criatura humana,
tornando-se conhecido por sua própria iniciativa.
Junius coloca da seguinte maneira: “A teologia éctipa,
seja tomada em si mesma, como dizem, ou relativamente

5
Junius propõe uma distinção com relação à teologia éctipa: teologia
éctipa simpliciter dicta e teologia éctipa secundum quid. A primeira
refere-se ao conhecimento comunicável e acomodado para tornar
possível sua recepção pelo ser humano. Já a segunda refere-se à
comunicação da teologia éctipa simpliciter dicta aos seus receptores,
isto é, enquanto retirada da teologia arquetípica a teologia éctipa
simpliciter dicta é comunicável. Quando doada à criatura humana,
passa a ser teologia éctipa secundum quid, ou comunicada.
17
em relação à outra coisa, é a sabedoria dos assuntos
divinos, formada por Deus a partir do arquétipo de Si
mesmo, através da comunicação da graça para Sua própria
glória”.6
Com essas definições em mente, especificamos
agora o uso do termo “análogo” por Junius. Junius define
teologia arquetípica assim: “a teologia arquetípica é a
sabedoria divina dos assuntos divinos. Na verdade,
ficamos admirados antes disso e não procuramos rastreá-
la”.7 Note que na definição de teologia arquétipa e na
definição de teologia éctipa Junius utiliza o termo
“sabedoria”. Não devemos especular acerca da teologia
arquétipa (Dt 29:29). Antes, devemos adorar a imensidão
da sabedoria de Deus. Agora, tirada dessa fonte
inesgotável há uma sabedoria comunicada a nós (teologia
éctipa). Podemos aplicar de modo unívoco o termo
“sabedoria” com relação a essas duas relações? Conforme

6
JUNIUS, F. A Treatise on true Theology. Tradução de David
C. Noe. 2965 Leonard St. NE: Grand Rapids: Reformation
Heritage Books, 2014. 114 p.
http://www.juniusinstitute.org/companion/junius_de_vera/.
7
Ibid, p. 108.
18
o esboço aqui apresentado do Tratado de Junius, vimos
que o gênero da sabedoria divina e o gênero da sabedoria
humana são distintos. A sabedoria não é uma composição
no Ser divino. Nós diferenciamos os atributos de Deus,
mas o Ser de Deus é simples. Portanto, quando predicada
em relação a Deus e a nós, sabedoria não pode ser
entendida de maneira unívoca. O uso, pois, de “sabedoria”
em relação a Deus parte de sua aplicação a nós e, de forma
meramente didática, é aplicado a Deus por descrição
análoga. Desse modo, percebemos que Junius empresta o
termo “analogia” do modelo aristotélico-tomista. Tomás
de Aquino declara:
A terceira é que os nomes ditos de Deus e
das outras coisas não se dizem de todo
univocamente nem de todo equivocamente.
Univocamente, com efeito, não podem
dizer-se, porquanto a definição dos nomes
ditos da criatura não é a definição dos nomes
ditos de Deus: mas é necessário que seja a
mesma a definição dos ditos univocamente.
De modo semelhante, porém, tampouco de
todo equivocamente. Com efeito, nos que
são casualmente equívocos, impõe-se um
mesmo nome a uma coisa sem nenhuma
relação com outra coisa: daí que por uma
não possamos raciocinar sobre a outra. Ora,

19
os nomes que se dizem de Deus e de outras
coisas atribuem-se a Deus segundo alguma
ordem que este tem a estas coisas, nas quais
o intelecto considera seu significado; por
isso podemos raciocinar sobre Deus por
outras coisas. Por conseguinte, tais nomes
não se dizem de todo equivocamente de
Deus e das outras coisas, como os
casualmente equívocos. Dizem-se, pois,
segundo analogia, isto é, segundo proporção
a um.8

É importante ressaltar que, embora situe sua


ideia de analogia no contexto da predicação, Junius
não discute a metafísica tomista, conquanto o método
tomista seja utilizado sem muitas alterações. Para
Tomás, a razão (sentido empírico) parte das coisas
criadas, retém o phantasma na imaginação e retira
daí o conceito. Esse conceito é, então, aplicado a
Deus mediante o discurso analógico por
aproximação. Joshua Lee Harris destaca que o
método tomista é fundamentado no triângulo

8
AQUINO, T. D. Compêndio de Teologia. Tradução de Carlos
Nougué. Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus:
Concreta, 2015. Edição do Kindle. (Locais do Kindle 2220-2227)..

20
semântico aristotélico, cujos constituintes básicos
são: nome (nomen), conceito (ratio) e a coisa (res).9
O conceito é retirado da coisa a posteriori e, quando
transita da esfera criada para a esfera não-criada, não
é aplicado um-a-um, mas “segundo proporção a um”.
Junius, da mesma forma, estabelece a comparação da
sapientia divina e da sapientia humana partindo das
coisas criadas. No entanto, em seu tratado, ele define
primeiramente teologia arquétipa como a sabedoria
divina dos assuntos divinos e discute em seguida a
teologia éctipa10 formada pelo próprio Deus para ser
comunicada por três vias possíveis: a) união; b)
visão; c) revelação. O conhecimento que podemos ter
nessa etapa da vida é baseado na Revelação e é aí
que reside o foco da controvérsia. Mas antes de

9
HARRIS, J. L. Analogy in Aquinas: The Alston - Wolterstorff
debate revisited. Faith and Philosophy, 34, 1 janeiro 2017.
Diponível em:
https://www.academia.edu/33118788/ANALOGY_IN_AQUIN
AS_THE_ALSTON-
_WOLTERSTORFF_DEBATE_REVISITED.
10
A distinção entre teologia arquétipa e teologia éctipa faz eco a
Teoria das Formas de Platão.
21
desenvolver mais essa ideia correlacionada à
Revelação, precisamos entender outros detalhes da
teoria de Van Til.

22
REVISITANDO O CONCEITO
VANTILIANO DE ANALOGIA

Joel R. Beeke e Michael D. Bell escreveram


um artigo que busca esclarecer o conceito vantiliano
de analogia.11 Nesse artigo, os autores descrevem o
conceito vantiliano de analogia não primariamente
no contexto de predicação, mas em termos de
relacionamento entre o Criador e a criatura. Esse uso
atípico de analogia determina o conceito vantiliano
de univocidade em termos de relação ontológica.
Devemos observar que o uso incomum de um termo

11
BEEKE, J. R.; BELL, M. D. Cornelius Van Til's Concept of Man as
the Analogue of God, 2006. Disponivel em:
<https://biblicalstudies.org.uk/pdf/ref-rev/15-1/15-1_beeke.pdf>.
Acesso em: 16 agosto 2017.

23
não é problemático em si. Esse uso pode se tornar um
obstáculo caso a definição se torne ambígua ou caso
a definição seja incompatível com a realidade. Não
há óbice, portanto, ao uso atípico que Van Til faz do
termo. O que pretendemos analisar é a consistência
lógica de sua teoria.
Como já dissemos o pressuposto básico para
o conceito vantiliano de conhecimento analógico é a
distinção Criador-criatura. Para estabelecer a relação
analógica entre Deus e o homem, é preciso delimitar
a continuidade e a descontinuidade dessa relação e
para superar essa dialética é necessário adotar a
abordagem transcendental. Essa abordagem foi
denominada teo-referência pelo Rev. Davi Charles
Gomes. A relação analógica é, primordialmente, a
afirmação de dependência que o ser humano tem de
Deus tanto para fazer parte da realidade como para
compreendê-la. Van Til ilustrou isso em uma figura
na qual havia um círculo superior e um círculo
inferior sem sobreposição ou intersecção, mas
conectados por duas linhas paralelas. Uma linha
24
representava a dependência ontológica e a outra a
dependência epistemológica. Na epistemologia isso
resulta em um raciocínio espiral12 e não linear:
Se começarmos o curso do raciocínio
espiral em qualquer ponto do universo
finito, como devemos porque esse é o
ponto de partida imediato de todos os
raciocínios, podemos chamar o método
de implicação na verdade de Deus um
método transcendental. Ou seja,
devemos procurar determinar quais
pressupostos são necessários para
qualquer objeto do conhecimento para
que seja inteligível para nós. Não é
como se já conhecesse alguns fatos e
leis para começar, independentemente
da existência de Deus, a fim de motivar
desse início a conclusões
futuras. Certamente é verdade que, se
Deus tem algum significado para
qualquer objeto de conhecimento, a
relação de Deus com esse objeto de
conhecimento deve ser levada em
consideração desde o início. É esse o
fato de que o método transcendental

12
Segundo Van Til, a partir do método dedutivo ou do método
indutivo, a razão tenta derivar suas conclusões diretamente de um
axioma ou de um fato, não correlacionando o objeto e o Deus trino.
Tal correlação seria o modus operandi do conhecimento analógico e,
em virtude disso, é indireto, isto é, espiral.
25
busca reconhecer.13

A analogia entis de Tomás de Aquino,


segundo Van Til, pressupõe uma cadeia de ser e,
dessa forma, possibilita certo grau de autonomia para
o ser humano. Van Til rejeita a proposta tomista e
sugere que a realidade tem somente dois níveis: 1) o
nível não-criado e, portanto, absoluto; 2) o nível
criado e, por isso, derivado e dependente. Van Til
afirma:
Quando o homem pensa, portanto, ele
pensa como uma criatura da aliança
gostaria de pensar. Isso significa dizer
que o homem normalmente pensa de
forma analógica. Ele compreende que os
pensamentos de Deus são absolutos. Ele
sabe que sua própria interpretação da
natureza deve, portanto, ser uma
reinterpretação do que já está
completamente interpretado por Deus.14

13
TIL, C. V. A Survey Of Christian Epistemology.
Phillipsburg, New Jersey 08865: Presbyterian And Reformed
Publishing Co., 1969. 48 p.
https://presupp101.files.wordpress.com/2011/08/van-til-a-
survey-of-christian-epistemology.pdf.
14
TIL, C. V. Apologética Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 62
p.

26
Aqui Van Til relaciona o conceito de
analogia com a epistemologia. Ele começou com
uma definição metafísica de analogia e pretende
mostrar que a analogia não é somente uma
propriedade do ser, mas envolve o próprio
pensamento. Isso precisa ser destacado: Van Til usa
o termo analogia com um sentido metafísico,
epistemológico e ético. “Analogia” no sistema
vantiliano é um termo dinâmico e pode se tornar
ambíguo. Enquanto o uso de analogia encerra o
significado de derivação e, em adição, uma acepção
reflexiva, sua negação, segundo os vantilianos,
implica a rejeição de toda a tradição reformada. Por
isso os vantilianos insistem que o modo de
conhecimento da criatura deve ser analógico. E,
como vimos, a definição de univocidade, para Van
Til, é determinada pela definição de analogia.
Enquanto a relação analógica é de dependência e de
consciência derivativa e reflexiva, o pensamento
unívoco reflete a rebelião noética do “livre pensar”.

27
O pecado, quando visto por esse ângulo, foi uma
transgressão da dependência epistemológica:

Quando tentou a Adão e Eva no paraíso,


Satanás procurou fazer com que
acreditassem que a autoconsciência do
homem era final em vez de derivativa e
dependente de Deus. Ele argumentou, de
certo modo, que era parte da natureza da
autoconsciência o fazer de si mesma o
ponto de referência final de toda
predicação.15

Em oposição à autonomia da razão, o ser


humano deve reconhecer que a interpretação correta
da realidade requer interpretar os fatos a partir do
escopo pactual-revelacional:
Um corolário da doutrina da Trindade é
que o conhecimento humano é
analógico. O conhecimento humano
deve sempre depender do conhecimento
divino. Qualquer coisa que um ser
humano conhece deve primeiro ser
conhecida de Deus. Qualquer coisa que
um ser humano conheça ele só sabe
porque conhece a Deus. Por essa razão,

15
TIL, C. V. Apologética Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 92
p.

28
o homem nunca pode saber nada tão
bem e tão exaustivamente quanto Deus
sabe.16

Podemos notar claramente a natureza


derivativa e reflexiva como núcleo definidor da
teoria do conhecimento analógico. Isso pode ser
corroborado na próxima citação:
A necessidade do raciocínio de forma
análoga está sempre implícita na concepção
teísta de Deus. Se Deus deve ser pensado
como necessário para a interpretação do
homem sobre os fatos ou objetos do
conhecimento, ele deve ser considerado
determinante dos objetos do conhecimento.
Em outras palavras, ele deve ser considerado
como o único intérprete final, e o homem
deve ser considerado um reintérprete finito.
Como, então, a autoconsciência absoluta de
Deus é a intérprete final de todos os fatos, o
conhecimento do homem é análogo ao
conhecimento de Deus. Como todos os fatos
finitos existem em virtude da interpretação
de Deus, a interpretação do homem sobre os
fatos finitos depende, em última instância,
da interpretação de Deus dos fatos. O

16
TIL, C. V. A Survey Of Christian Epistemology. Phillipsburg,
New Jersey 08865: Presbyterian And Reformed Publishing Co., 1969.
48 p. https://presupp101.files.wordpress.com/2011/08/van-til-a-
survey-of-christian-epistemology.pdf.

29
homem não pode, exceto para seu próprio
prejuízo, olhar os fatos sem olhar para a
interpretação de Deus sobre os fatos. O
conhecimento do homem dos fatos é então
uma reinterpretação da interpretação de
Deus. É isso que se entende por dizer que o
conhecimento do homem é analógico do
conhecimento de Deus.17

Talvez seja imperativo ressaltar que, mutatis


mutandis, a afirmação de Van Til pode ser
pacificamente aceita na epistemologia de Clark. Para
Clark, a verdade é determinada por Deus e o homem
precisa realmente pensar os pensamentos de Deus
após Ele. E. Calvin Beisner acertadamente apontou
que a natureza derivativa e reflexiva do
conhecimento humano não é nenhuma novidade
revolucionária para o cristianismo.18 Tendo

17
TIL, C. V. A Survey Of Christian Epistemology. Phillipsburg,
New Jersey 08865: Presbyterian And Reformed Publishing Co., 1969.
176 p. https://presupp101.files.wordpress.com/2011/08/van-til-a-
survey-of-christian-epistemology.pdf.
18
BEISNER, E. C. Reflections on the Christian Apologetics of
Gordon H. Clark. God's Hammer. Disponivel em:
<https://godshammer.wordpress.com/2017/08/31/reflections-on-the-
christian-apologetics-of-gordon-h-clark-e-calvin-beisner/>. Acesso
30
estabelecido esse ponto, precisamos analisar como
Van Til relaciona o modo de conhecimento humano
com o conteúdo revelacional. Ou seja, nos voltamos
para a aplicação que Van Til faz de sua teoria
epistemológica à predicação. Não é nosso interesse
aqui explorar todas as possíveis falhas da teoria
vantiliana.19 No entanto, antes de explorar esse ponto
veremos a interpretação que alguns vantilianos mais
recentes fornecem acerca desse tema.

em: 19 setembro 2017.


19
Algumas falhas indicadas, mas não aprofundadas, no artigo de Joel
Beeke e Michael Bell são: A interação de Van Til com
Dooyeweerd se deu com alguns desvios no que tange à
distinção do pensamento teórico e pré-teórico. Não há
definições muito claras sobre o “ser”, “imagem de Deus”,
“arquétipo e éctipo”.

31
O REVISIONISMO DE JOHN FRAME
A análise que John Frame fornece da
controvérsia Clark-Van Til parece propor, em
algumas asserções, a síntese entre dois sistemas
epistemológicos diametralmente opostos. Mas como
Frame chegou à conclusão de que, no final, Clark e
Van Til concordam em substância e discordam
apenas em terminologia? Frame começa a descrição
da controvérsia nesses termos:
Van Til queria preservar a distinção Criador-
criatura na esfera do conhecimento, e Clark
queria impedir quaisquer deduções céticas
da doutrina da incompreensibilidade, queria
insistir em que conhecemos realmente Deus
baseados na revelação. Daí, Van Til insistia
em que, mesmo quando Deus e o homem
estivessem pensando a mesma coisa (numa
particular rosa, por exemplo), seus
pensamentos sobre ela jamais seriam
idênticos – os pensamentos de Deus seriam
do Criador, os do homem, da criatura. Essa
linguagem levou Clark a temer algum
ceticismo. Pareceu a ele que, se houvesse
alguma discrepância entre o pensamento do
homem sobre “Isto é uma rosa” e o de Deus

32
(concernente à mesma rosa), redundaria que
a asserção do homem teria de estar aquém
da verdade, de algum modo, desde que a
própria natureza da verdade é a identidade
com a mente de Deus. Portanto, se houvesse
uma necessária discrepância entre a mente
de Deus e a do homem em todos os pontos, a
impressão dada é que o homem não poderia
conhecer verdadeiramente coisa alguma; o
ceticismo seria a consequência. Sucedeu,
pois, que a discussão da
incompreensibilidade – essencialmente uma
doutrina sobre a relação dos pensamentos do
homem com o ser de Deus – transformou
esse debate mais estreitamente numa
discussão da relação entre os pensamentos
do homem e os pensamentos de Deus. Dizer
que Deus é incompreensível veio a significar
que há uma descontinuidade (muito mais
profunda no conceito de Van Til do que no
de Clark) entre as nossas ideias de Deus (e,
daí, da criação) e as que Deus tem de si
mesmo (e da criação).20

Bom, a memória é um bom antídoto contra o


tipo de expediente que John Frame adota nessa
descrição. Frame parece reproduzir fielmente o que
ocorreu na controvérsia. Porém, quando

20
FRAME, J. A Doutrina do Conhecimento de Deus. São
Paulo: Cultura Cristã, 2010. 37-38 p.
33
desmembramos seu parágrafo notamos uma séria de
imprecisões. Não sei se Frame está sendo desonesto
ou descuidado aqui. De toda forma, apontarei
algumas das inexatidões de Frame. O autor diz que a
preocupação de Van Til era preserva a distinção
Criador-criatura na esfera do conhecimento. Isso
pode gerar a falsa impressão de que Clark não
sustentava tal distinção. Frame dá a entender que a
essência da epistemologia vantiliana consistia em
afirmar que Deus conhecia como Criador e o homem
como criatura: “Daí, Van Til insistia em que, mesmo
quando Deus e o homem estivessem pensando a mesma
coisa (numa particular rosa, por exemplo), seus
pensamentos sobre ela jamais seriam idênticos – os
pensamentos de Deus seriam do Criador, os do homem, da
criatura”. Isso é óbvio demais para gerar uma
controvérsia que perdura até hoje. Observe o que, de
acordo com Frame, jamais seriam idênticos: “os
pensamentos de Deus e os pensamentos do homem”.
Para Frame, o que Van Til queria dizer é que os
pensamentos do homem sobre um objeto qualquer –
34
uma rosa – não pode ser idêntico ao pensamento de
Deus sobre o mesmo objeto, pois o homem pensa
como criatura e Deus como Criador. Obviamente, a
visão de Van Til, conforme vimos acima, têm mais
implicações do que aquelas que Frame nos deixa
antever. Frame continua: “Clark queria impedir
quaisquer deduções céticas da doutrina da
incompreensibilidade, queria insistir em que
conhecemos realmente Deus baseados na revelação”.
Isso descreve perfeitamente o posicionamento de
Clark. Mas então Frame muda o assunto do debate.
Ele identifica o ponto da controvérsia como sendo o
conteúdo da revelação e, sem qualquer justificativa,
começa a tratar o conteúdo de nossos pensamentos
como alvo de disputa: “Pareceu a ele [a Clark] que, se
houvesse alguma discrepância entre o pensamento do
homem sobre ‘Isto é uma rosa’ e o de Deus (concernente à
mesma rosa), redundaria que a asserção do homem teria de
estar aquém da verdade, de algum modo, desde que a
própria natureza da verdade é a identidade com a mente de
Deus”. Será que dois gigantes da fé cristã entraram em
35
uma controvérsia supérflua sobre flores? Frame faz Clark
e Van Til parecerem dois ineptos discutindo disparates
sobre rosas e sobre se esses pensamentos acerca de rosas
são idênticos aos pensamentos de Deus em algum ponto.
Ora, a memória é um excelente recurso didático. É
impossível para Clark sondar os pensamentos secretos das
pessoas. Está fora de cogitação, portanto, ser verdade que
Clark quisesse chegar a uma conclusão sobre pensamentos
que ele sequer pode conhecer! Não é sobre o que
pensamos ou sobre o que as pessoas pensam que Clark e
Van Til entraram em disputa. Antes, é sobre a revelação
de Deus. Se entendemos apropriadamente as Escrituras,
então nosso entendimento sobre determinada proposição
da revelação deve coincidir em pelo menos um ponto ao
que Deus conhece sobre essa mesma proposição. Não
podemos determinar o sentido de uma proposição das
Escrituras sondando a imaginação de cada ser humano! O
que Frame diz não corresponde fielmente à realidade:
“Sucedeu, pois, que a discussão da incompreensibilidade –
essencialmente uma doutrina sobre a relação dos
pensamentos do homem com o ser de Deus – transformou
36
esse debate mais estreitamente numa discussão da relação
entre os pensamentos do homem e os pensamentos de
Deus”. A discussão não é sobre a relação entre os
pensamentos do homem e os pensamentos de Deus. Os
homens podem pensar que o evangelho é loucura ou que o
evangelho é escândalo. Mas isso não mantém qualquer
relação com os pensamentos de Deus, pois Deus nos
revelou que o evangelho é o poder de Deus para salvação
de todo o que crê! Os homens podem pensar que Deus não
existe, mas novamente não há um ponto de contato entre
esse pensamento e o pensamento de Deus, pois a Bíblia
nos diz que o pensamento ateísta é tolice! Não podemos
dizer que o nosso conhecimento sobre uma flor em
particular corresponde ao conhecimento que Deus tem
dessa flor, pois isso não nos foi revelado. Podemos
formular uma opinião sobre a tal flor que, talvez, contenha
algumas verdades. Mas nós não conhecemos essa flor da
qual Frame fala (“conhecimento” está sendo usado aqui
como um termo técnico e distinto da opinião).
Após essa breve descrição do debate, Frame
faz uma lista sobre as continuidades e
37
descontinuidades entre nossos pensamentos e os
pensamentos de Deus. Mas novamente isso é um
assunto que não toca no ponto principal do debate.
Apenas para exemplificar, Frame diz: “Deus não
necessita de que se ‘revele’ alguma coisa a ele; ele
conhece o que conhece simplesmente em virtude de
quem ele é e do que faz. Ele conhece, então, por sua
própria iniciativa. Mas todo o nosso conhecimento é
baseado na revelação”.21 Clark não diz que Deus
precisa que alguém lhe revele algo. Ou seja, a lista
destaca pontos importantes, mas que só faz sentido
em virtude da interpretação errônea de Frame: ele
mudou o assunto do debate que girava em torno do
que conhecemos por meio da revelação para a
relação entre os nossos pensamentos e os
pensamentos de Deus. Mesmo nessa lista há pontos
confusos: “Deus possui conhecimento de um modo
diferente do nosso. Ele é imaterial e, portanto, não

21
FRAME, J. A Doutrina do Conhecimento de Deus. São
Paulo: Cultura Cristã, 2010. 39 p.

38
obtém conhecimento pelos órgãos de percepção
sensorial”. Frame parece alegar aqui que nós
obtemos conhecimento pelos órgãos de percepção
sensorial. Isso enfrenta as objeções que Clark
levantou contra o empirismo. É preciso distinguir os
órgãos sencientes como instrumentos ou como
fundamentos do conhecimento. É óbvio que preciso
ter olhos para ler a Bíblia e ouvidos para ouvir a
Palavra. Mas isso não faz dos órgãos sencientes
fundamentos do conhecimento. “O que Deus nos
revela, mostra-nos numa forma própria para a
criatura. A revelação não nos vem na forma em que
existe na mente de Deus”. Essa frase é simplesmente
incompreensível. O que seria essa “forma” que existe
na mente de Deus e essa “forma” que a revelação
vem a nós? O que Frame diz em seguida
simplesmente não nos ajuda a entender o que ele quis
dizer.22 Adiante Frame alega:

22
Frame parece adotar um continuísmo revelacional que requereria
outro artigo para analisar as nuances perigosas de sua visão. Ele
escreve: “Antes, os nossos sentidos, a nossa razão e a nossa
imaginação são, eles próprios, revelações de Deus – meios que Deus
39
Mas devemos lembrar que o conceito de
incompreensibilidade é autorreferencial,
isto é, se Deus é incompreensível, até a
sua incompreensibilidade é
incompreensível. Não podemos dar uma
explicação mais exaustiva da
incompreensibilidade de Deus do que a
que podemos dar da eternidade, da
infinidade, da justiça, ou do amor de
Deus.23

Se a incompreensibilidade de Deus é
incompreensível, como Frame chegou a essa
compreensão? Mas não temos espaço aqui para nos
deter nesses detalhes paradoxais. A próxima
contribuição relevante de Frame é sobre o que ele
denominou “pensamento-conteúdo”. Frame alega:
“Os seguidores de Van Til insistiam em que, quando um
homem pensa, por exemplo, numa particular rosa, o
‘conteúdo’ em sua mente sempre difere do ‘conteúdo’ que
há na mente de Deus quando ele pensa na mesma rosa”.24

utiliza para nos esclarecer a sua verdade. Deus é Senhor; ele não se
fecha fora do seu mundo”.
23
FRAME, J. A Doutrina do Conhecimento de Deus. São
Paulo: Cultura Cristã, 2010. 41 p.
24
FRAME, J. A Doutrina do Conhecimento de Deus. São
Paulo: Cultura Cristã, 2010. 53 p.
40
Frame então acrescenta que a ideia de “pensamento-
conteúdo” é ambígua. Ele fornece seis possibilidades de
definição de “pensamento-conteúdo”. É interessante notar
de que lado a ambiguidade está, pois Frame não deixa isso
claro. Para Clark os elementos do conhecimento consistem
em modo e objeto. Já para os Reclamantes, havia um
terceiro elemento, isto é, o conteúdo. Todavia, na
controvérsia o conteúdo veio a significar as proposições
que o homem conhece e isto nada mais é do que o objeto
do conhecimento. Frame é da opinião de que algumas
dessas definições de “pensamento-conteúdo” podem ser
compatíveis com a ideia de que existe um ponto de contato
entre o pensamento de Deus e o pensamento do homem:
Pensamento-conteúdo pode referir-se a
crenças ou juízos da verdade. Certamente é
possível a Deus e ao homem terem o mesmo
“pensamento-conteúdo” nesse sentido; a
Escritura constantemente nos concita a
concordar com os juízos de Deus. O
conceito de Van Til sobre “raciocínio
analógico” é inconcebível sem referência a
tal identidade.25

25
FRAME, J. A Doutrina do Conhecimento de Deus. São
Paulo: Cultura Cristã, 2010. 54 p.
41
Mas esse não parece ser o uso que o próprio
Van Til faz com relação ao termo “conteúdo”.
Vejamos o que Van Til diz:
Quando o cristão reafirma o conteúdo da
revelação escriturística na forma de um
‘sistema’, tal sistema é baseado em e,
portanto, análogo ao ‘sistema
existencial’ que o próprio Deus possui.
Sendo baseado na revelação de Deus é,
por um lado, totalmente verdadeiro e,
por outro, em nenhum ponto idêntico ao
conteúdo da mente de Deus.

O sistema “análogo” ao ‘sistema existencial’


que o próprio Deus possui refere-se a “crenças ou
juízos da verdade”. Frame alega que, se o
“pensamento-conteúdo” for assim definido, “o
conceito de Van Til sobre ‘raciocínio analógico’ é
inconcebível sem referência a tal identidade”. Parece
que Van Til concebe o inconcebível. Van Til propõe
que há um sistema na mente de Deus e que o homem,
baseado na revelação, formula seu próprio sistema
que é análogo ao sistema de Deus e que, por ser
análogo, é “em nenhum ponto idêntico ao conteúdo
da mente de Deus”.
42
43
R. SCOTT CLARK E O MAL USO DA
TRADIÇÃO REFORMADA

Se por um lado John Frame faz um relato


inadequado da controvérsia, incluindo novos termos
e tentando salvar a teoria de Van Til, por outro lado
Dr. R. Scott Clark tenta conectar a teoria do
conhecimento analógico à tradição reformada. Van
Til alegava que a teoria do conhecimento analógico
era a teoria da Confissão de Fé de Westminster, mas
ele não mostra qual método devemos utilizar para
extrair essa teoria de lá, pois a Confissão nada diz
acerca dela. Mas não apenas Van Til acreditava que
sua teoria estava em bons termos com a
confessionalidade como também seus seguidores

44
alegam que essa teoria é o legado da epistemologia
reformada. A proposta de Gordon Clark,
consequentemente, é rejeitada como racionalismo e
como um modo puramente pagão de pensar. Ainda
teremos oportunidade para rechaçar essa crítica.
O Dr. R. Scott Clark tenta conectar a teoria
vantiliana com a tradição reformada valendo-se dos
conceitos de teologia arquetípica e teologia éctipa
que vimos no início desse artigo. Assim como Van
Til, Scott Clark inter-relaciona ontologia e
epistemologia. A distinção Criador-criatura requer
uma epistemologia desconectada do Deus
incompreensível para resguardar o abismo que há
entre o Deus Criador e suas criaturas. Não há ponte
que conecte o conhecimento humano ao divino.
Antes, eles devem correr paralelamente, isto é, nosso
conhecimento deve ser análogo ao conhecimento
divino.
Então o Dr. Scott Clark parte do que ele
denomina distinção categórica e constrói sua
conclusão alinhada ao conhecimento analógico de
45
Van Til. Primeiramente ele endossa a distinção entre
teologia arquétipa e teologia éctipa, sem muitas
distinções daquilo que foi proposto por Junius. A
teologia éctipa é a auto-revelação de Deus nas
Escrituras acomodada à finitude humana. Nesse
ponto, Scott Clark propõe que: 1) a linguagem das
Escrituras, em sua totalidade, é antropomórfica; 2)
em consequência da proposição 1, nosso
conhecimento de Deus é analógico. Sendo vantiliano,
Scott Clark nega haver univocidade em nossa
predicação. Mas será que essa conclusão pode
manter sua conexão com Franciscus Junius?
Aqui precisamos retornar a Junius para
investigar a maneira que ele aplica o termo
“analogia” e sondar se Scott Clark se mantém fiel ao
sentido que Junius dá a esse termo. Junius distingue
dois gêneros de teologia: teologia arquetípica e
teologia éctipa. Quando aplicamos o termo
“teologia” aos dois gêneros supracitados, de acordo
com Junius, não podemos fazer de modo unívoco.
Esses gêneros são tão distintos, que o termo teologia
46
é equívoco em ambos os casos. Um termo homônimo
é equívoco quando encerra sentido distinto. Junius
assevera:
Devemos primeiro fazer uma distinção
antes de chegar a uma explicação mais
completa desta teologia com a qual
estamos lidando. Pois o significado
desta distinção é tão grande que esses
tópicos muito discrepantes não podem
ser devidamente diferenciados com o
mesmo termo, nem essas ideias bastante
disparatadas, que designamos com uma
palavra, estão contidas em um gênero.26

Ou seja, nossa teologia (éctipa) e a teologia


divina (arquétipa) devem ser classificadas em
gêneros distintos. Quando consideradas como
gêneros distintos, o termo “teologia” deve ser
equívoco, porém não “um equívoco puro, mas um
analógico”. Mas o que exatamente é esse “equívoco
analógico”? De acordo com Junius, “um equívoco

26
JUNIUS, F. A Treatise on true Theology. Tradução de David C.
Noe. 2965 Leonard St. NE: Grand Rapids: Reformation Heritage
Books, 2014. p 104.
http://www.juniusinstitute.org/companion/junius_de_vera/.

47
analógico é aquele em que, das coisas que são ditas
equivocamente, o significado é o mesmo em um
aspecto ou relativamente, e, ao mesmo tempo, difere
em outro aspecto”. Nesse ponto introduziremos a
visão de Gordon Clark e esclareceremos onde R.
Scott Clark se distancia de Junius.

48
GORDON CLARK E O CONHECIMENTO
UNÍVOCO

Conforme expusemos acima, o conhecimento


analógico foi erigido como teste de ortodoxia pelos
vantilianos. Negar a teoria da “analogia” vantiliana é ser
racionalista e pagão. Gordon Clark ainda é rotulado assim
atualmente. Mas não é nosso interesse colocar Clark e Van
Til diante de um tribunal e acusá-los ou defendê-los.
Antes, estamos interessados nas implicações da
epistemologia desses dois gigantes para a doutrina do
conhecimento de Deus.
Gordon Clark foi inflexível em sua proposta de
que, se conhecemos algo, nosso conhecimento deve ser
unívoco. É importante estarmos atentos à definição dos
termos na epistemologia clarkiana. Unívoco aqui não é
sinônimo de conhecimento autônomo, conforme definido
por Van Til. O termo “conhecimento” foi definido por

49
Clark como a posse da verdade.27 A verdade, ainda de
acordo com Clark, é característica de uma proposição. A
revelação especial é proposicional. Tendo isso em mente,
ficará claro por que Clark recusou a tese de que todo nosso
conhecimento é analógico.
Tomás de Aquino propôs a teoria da analogia
como via média de predicação.28 Os termos podem ser
predicados univocamente, equivocamente ou
analogicamente. Os termos são equívocos quando, apesar
da homonímia, a determinação de substância,
correspondente ao nome, é distinta. Eles são unívocos
quando, além da homonímia, a determinação de
substância, correspondente ao nome, é comum. A
analogia é uma terceira via de aproximação por
semelhança. Clark esboça sua crítica à teoria tomista nos
seguintes termos: “Ora, se o significado analógico de
‘sábio’ ou de ‘existência’ tem uma área comum de
significado, essa área comum poderia ser designada por

27
CLARK, G. Uma visão cristã dos homens e do mundo. Brasília:
Monergismo, 2013, p. 305.
28
Atribuir predicado a um sujeito.
50
um termo unívoco. Esse termo então poderia ser aplicado
univocamente a Deus e ao homem”.29 Em outras palavras,
a analogia requer uma base unívoca. Sem um ponto
unívoco, a analogia se converte em puro equívoco.
Franciscus Junius, conforme dissemos, utiliza o
método tomista com algumas variações e sua ideia de
predicação se aproxima da proposta de Tomás. Para
Junius, nossa “sabedoria” (sapientia) é predicada
equivocamente da “sabedoria” (sapientia) de Deus. Isso
porque a sabedoria de Deus equivale à sua essência:
Mas Deus é tão completamente simples em
Sua essência que, nem mesmo por uma
experiência de pensamento plausível,
qualquer composição pode ser atribuída a
Ele: não de material e forma, não de partes,
não de essência e de ser, nem de sujeito e
acidentes. Porque o que existe em Deus é
Deus.30

29
CLARK, G. H. A racionalidade da revelação divina especial.
Brasília: Monergismo, 2016. (Locais do Kindle 708-710).
30
JUNIUS, F. A Treatise on true Theology. Tradução de David C.
Noe. 2965 Leonard St. NE: Grand Rapids: Reformation Heritage
Books, 2014, p.108.
http://www.juniusinstitute.org/companion/junius_de_vera/.

51
Sendo inter-relacionada à essência de Deus, a
sabedoria divina é eterna, incriada, não discursiva. A
sabedoria do ser humano, por outro lado, é sucessiva,
discursiva, criada:
[...] a sabedoria humana tem um ponto de
partida de outro lugar, como algo
acidental. É uma disposição. Nasce dos
princípios. É nutrida pelo intelecto, que
coloca as coisas juntas e as separa. Ele
constrói cadeias de raciocínio. A partir
disso, conecta as conclusões em
grupo. Produz conhecimento. A sabedoria
humana é uma testemunha ocular e
julgadora de tudo isso. E estabeleceu partes
e a sequência das partes que estão sujeitas à
sabedoria humana. A outra sabedoria, de
fato, é eterna, essencial, e é mesmo a
essência de Deus. Para ela, as coisas são
mais presentes, não de qualquer princípio,
composição ou divisão do intelecto,
raciocínio, conclusões, conhecimento,
julgamento e sequencia, mas de maneira
mais simples: por uma compreensão
simultânea, incomparável de tudo, e não
sucessivamente, como acontece com as
coisas criadas. Ele dá origem a esses
princípios de si mesmo. Não nasceu a partir
deles próprios. Esta sabedoria produz
inteligência, razão, conclusões,
conhecimento e a própria sabedoria em
outros. Persiste em si mesmo imutável e sem

52
variação. Finalmente, essa sabedoria em
outras coisas fora de si, causando todas as
variações em partes, ordem e sucessão, é
como se fosse o princípio universal e
impassível de todos os princípios, intelectos,
razões, conclusões e todo o tipo de
conhecimento. A sabedoria é a mãe de toda
sabedoria.31

Em todo esse parágrafo de Junius, podemos


observar que ele está se referindo à psicologia do
conhecimento, isto é, ao modo do conhecimento. O
método de comparação entre a sabedoria divina e a
sabedoria humana é a posteriori, pois Junius afirma que:
Por essas palavras [sapientia, teologia], não
estamos estabelecendo uma definição, mas
uma definição vaga ou uma descrição
análoga baseada em um exemplo de nossos
próprios assuntos, e com uma espécie de
figura de nosso próprio discurso aplicada a
questões divinas. Pois o gênero dessa
teologia não é sapientia, mas, por razões de
explicação, é posicionado como se fosse um

31
JUNIUS, F. A Treatise on true Theology. Tradução de David C.
Noe. 2965 Leonard St. NE: Grand Rapids: Reformation Heritage
Books, 2014, p. 109.
http://www.juniusinstitute.org/companion/junius_de_vera/.

53
gênero.32

Assim, Junius define o gênero da teologia


arquétipa como “sabedoria”, mas esse gênero é aplicado a
Deus mutatis mutandis em virtude de uma distinção
qualitativa do conhecimento divino. E Clark não negou
haver uma diferença qualitativa entre o conhecimento de
Deus e o conhecimento do homem no que diz respeito ao
modo:
Que existe uma diferença qualitativa muito
importante entre a situação do conhecimento
no caso de Deus e a situação do
conhecimento para o homem não pode ser
negada sem repudiar todo o teísmo
cristão. Deus é onisciente; seu conhecimento
não é adquirido, e seu conhecimento, de
acordo com a terminologia comum, é
intuitivo enquanto o do homem é
discursivo.33

Clark enumera as principais diferenças, mas ele


reconhece que a lista poderia ser estendida. Para ficar
32
Ibid, p. 108.
33
CLARK, G. H. The Bible As Truth. Trinity Foundation.
Disponivel em:
<http://www.trinityfoundation.org/journal.php?id=258>. Acesso em:
12 setembro 2017.

54
claro, no que se refere ao processo cognitivo, isto é, o
modo ou o ato psicológico, é inegável para Clark a
existência da distinção qualitativa. Feita essa observação,
devemos agora apontar que a teoria de analogia de Junius,
sendo derivada do modelo aristotélico-tomista, enfrentaria
as mesmas objeções levantadas por Clark ao modelo
referido se não fosse por uma base unívoca preservada por
Junius. Essa base unívoca pode ser vista na definição de
equívoco analógico a qual mencionamos acima. Junius
aqui não fala de analogia cuja predicação é proporcional a
um, mas sim de “um equívoco analógico [que] é
aquele em que, das coisas que são ditas
equivocamente, o significado é o mesmo em um
aspecto ou relativamente, e, ao mesmo tempo, difere
em outro aspecto”. Há nessa definição um núcleo de
significado que resguarda, ainda que minimamente, a
identidade. Tal identidade não é o postulado metafísico
de Leibniz denominado princípio da identidade dos
indiscerníveis. A predicação analógica que estamos
discutindo aqui tem uma base unívoca que une os dois
polos do domínio conceitual sem convertê-los um no
55
outro. As dessemelhanças não são obliteradas. Postular um
ponto de coincidência não é afirmar que todos os pontos
coincidem.
Diferentemente de Junius, cuja predicação
analógica mantém uma base unívoca, e apesar de os
vantilianos insistirem que a teoria de Van Til não deve ser
confundida com a teoria tomista, a predicação analógica
de Van Til, assim como a tomista, não preserva uma base
unívoca, o que redunda em equivocidade. Vale dizer que
os modelos vantiliano e tomista diferem na modelagem
metafísica. Contudo, a crítica de Clark ao modelo
aristotélico-tomista não se concentrou na abordagem
metafísica, mas justamente nas asserções predicativas e,
por isso, a mesma crítica se aplica ao modelo vantiliano,
apesar da distinção supracitada. Na Queixa, assinada por
Van Til, lemos:
Seus pensamentos não são nossos
pensamentos. Seus caminhos são
inescrutáveis. As coisas secretas pertencem
ao Senhor nosso Deus. Se não devemos
rebaixar o conhecimento divino de seus
pensamentos e maneiras para o
conhecimento humano, ou elevar nosso
conhecimento humano até seu conhecimento
56
divino, não nos atrevemos a manter que seu
conhecimento e nosso conhecimento
coincidem em qualquer ponto. Nosso
conhecimento de qualquer proposição deve
sempre ser o conhecimento da criatura.
Como conhecimento verdadeiro, esse
conhecimento deve ser análogo ao
conhecimento que Deus possui, mas nunca
pode ser identificado com o conhecimento
que o Criador infinito e absoluto possui da
mesma proposição.34

Agora vale notar que esse é um documento cujo


teor foi tornado público e que foi assinado por Van Til.
Portanto, as interpretações de seus seguidores devem se
manter fieis ao que está registrado. Nenhuma das
proposições a que temos acesso na revelação, de acordo
com a Queixa, coincide em qualquer ponto com o
conhecimento que Deus tem da mesma proposição. Essas
proposições são conhecidas por nós de modo análogo. E
esse é o teor aristotélico-tomista da predicação. Ainda que
os vantilianos recorram à escolástica protestante, os

34
THE Complaint. The Foundation Gordon Clark, 19 setembro
2017. Disponivel em:
<http://gordonhclark.reformed.info/files/2015/01/Unpublished-112.-
The-Complaint-typed.pdf>.

57
problemas de sua teoria não se desvanecem ao acrescentar
ao lado dela o nome de Franciscus Junius, Amandus
Polanus, Bernardinus de Moor, François Turretini, etc.
Essa não é uma batalha que se vence pelo número de
citações acumuladas.
Conforme asseveramos, Junius utiliza o termo
“analogia” em conformidade com Tomás de Aquino, mas
preserva a univocidade. O método tomista era a posteriori:
Com efeito, por compararmos as outras
coisas a Deus como à sua origem primeira,
atribuímos a Deus nomes que significam as
perfeições das outras coisas significadas.
Disso se patenteia que, embora, quanto à
imposição do nome, digamos tais nomes
prioritariamente das criaturas, porque o
intelecto que impõe nomes ascende das
criaturas a Deus, segundo a coisa
significada, todavia, dizemo-los
prioritariamente de Deus, de quem as
perfeições descem às outras coisas.35

Esse nomes são atribuídos a Deus de forma


análoga. Clark resume o método tomista e aponta as

35
AQUINO, T. D. Compêndio de Teologia. Tradução de Carlos
Nougué. Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus:
Concreta, 2015. (Locais do Kindle 2228-2232)..

58
falhas:
Uma vez que Deus é um ser puro, sem
partes, cuja essência é idêntica à sua
existência, os termos aplicados a ele não
podem ser usados precisamente no mesmo
sentido em que se aplicam às coisas criadas.
Se é dito que um homem é sábio e Deus é
sábio, deve ser lembrado que a sabedoria do
homem é uma sabedoria adquirida, enquanto
Deus nunca aprendeu. A mente humana está
sujeita à verdade; a verdade é seu superior.
Mas a mente de Deus é a causa da verdade
por pensá-la, ou, talvez, Deus é a verdade.
Dessa forma, o termo “mente” não significa
precisamente a mesma coisa no caso de
Deus e o homem. Não somente esses termos,
mas a noção de existência, também, não é a
mesma. Visto que a existência de Deus é a
sua essência, uma identidade sem duplicação
em qualquer outro caso, mesmo a palavra
“existência” não se aplica univocamente a
Deus e ao mundo da criação. Ao mesmo
tempo, Tomás não deseja admitir que esses
termos são equívocos. Quando se diz que os
limpos de coração verão a Deus, enquanto o
verão tem um calor insuportável, a palavra
não tem nenhum significado em comum.
Embora as letras e a pronúncia sejam a
mesma, o conteúdo intelectual nos dois
casos é completamente diverso. Entre tal
equívoco e univocidade estrita, Tomás
afirma que palavras podem ter um uso
analógico; e que no caso de Deus e o

59
homem, os predicados são aplicados
analogicamente. Ora, se o significado
analógico de “sábio” ou de “existência” tem
uma área comum de significado, essa área
comum poderia ser designada por um termo
unívoco. Esse termo então poderia ser
aplicado univocamente a Deus e ao homem.
Mas Tomás insiste que nenhum termo pode
ser aplicado assim. Isto, com efeito, remove
todos os vestígios de significado idêntico
nos dois casos.36

Em outras palavras, a analogia sem um termo


unívoco resulta em equivocidade. Não é preciso muito
exercício mental para perceber que a crítica se aplica a
Van Til. Portanto, ainda que se recorra a Franciscus
Junius, a crítica prevalece. No excelente trabalho de
William J. van Asselt, ele demonstra a conexão da
“distinção categórica” com o escolasticismo medieval:
Embora Junius seja o primeiro teólogo
protestante a usar explicitamente essa
distinção, o mecanismo subjacente pode ser
rastreado até a teologia medieval, a distinção
de Scotus entre teologia em si (teologia em
si) e nossa teologia (teologia nostra). Com
sua distinção entre uma “ordem em si” e

36
CLARK, G. H. A racionalidade da revelação divina especial.
Brasília: Monergismo, 2016. (Locais do Kindle 694-711).

60
uma “ordem factual”, ele respondeu a
sugestão de Aquino de uma analogia do ser
(analogia entis) entre Deus e a criatura. De
acordo com Scotus, Deus é o único teólogo
verdadeiro porque apenas a teologia em si é
teologia no verdadeiro sentido da palavra.
Lutero também rejeitou a noção de uma
teologia humana, que teve a pretensão de
descrever Deus como Ele é (teologia da
glória), e considerou que na Terra só
poderia haver uma teologia da cruz (teologia
da cruz).37

É interessante observar o uso dessa distinção na


Dogmática Reformada de Herman Bavinck. Bavinck
estabelece primariamente a definição de alguns termos e
mostra o seu uso na filosofia e na teologia. Aristóteles,
ordenando o que mais tarde veio a ser denominado por
Roderick M. Chisholm o “problema do critério”,
prescreveu a necessidade de axiomas indemonstráveis. O
teólogo holandês então observa que o termo latino
“principium” foi utilizado no mesmo sentido, isto é, no
sentido axiomático (BAVINCK, 2012). Ele prossegue

37
ASSELT, W. J. V. Introduction to Reformed Scholasticism. 2965
Leonard St. NE: Reformation Heritage Books, 2011. (Locais do
Kindle 2464-2470).

61
apontando os desdobramentos propedêuticos. Em lógica,
Bavinck constata que “três tipos de principia foram
identificados: o princípio do ser, da existência e do saber”.
Nas Escrituras, o termo αρχη (arché) conserva a mesma
noção e, algumas vezes, “tem um sentido causativo”:

Assim, Deus era o fundamento essencial


(principium essendi) ou a razão de ser
(principium existendi) de tudo aquilo que foi
criado, portanto, também da ciência e,
especificamente, da teologia. Nesse último
campo, sempre foi expressamente repetido
que Deus era o fundamento essencial da
teologia. Havia uma razão especial para isso.
Nenhum conhecimento de Deus é possível,
exceto aquele que procede de Deus e por
Deus (Mt 11.27; ICo 2.10ss.). [...] Seu
autoconhecimento e sua autoconsciência são
a fonte (principium essendi) de nosso
conhecimento dele. Sem a autoconsciência
divina, não há conhecimento de Deus em
suas criaturas [...] A relação do
autoconhecimento de Deus com o nosso
conhecimento de Deus costumava ser
expressa pela máxima de que o primeiro é
arquétipo do segundo e o segundo é éctipo
do primeiro. Nosso conhecimento de Deus é
a estampa do conhecimento que Deus tem de
si mesmo, mas sempre no nível da criatura e
somente em uma fraca semelhança, um
esboço finito, limitado, da autoconsciência
62
absoluta de Deus acomodada às capacidades
da consciência humana ou criaturística. Por
maior que seja a distância, a fonte
(principium essendi) de nosso
conhecimento de Deus é apenas o próprio
Deus, o Deus que se revela de forma livre,
autoconsciente e genuína.

Tendo estabelecido Deus como a fonte mesma do


nosso conhecimento acerca Dele, Bavinck delineia o
princípio pelo qual nós conhecemos (principium
cognoscendi). Tal princípio é a Auto-Revelação de Deus
em seu sentido amplo. Mas além desse princípio externo,
há ainda um princípio interno, pelo qual a revelação deve
“chegar ao íntimo dos próprios seres humanos”
(BAVINCK, 2012). Ele assevera:
Por essa razão, costuma-se fazer uma
distinção entre o princípio externo e o
princípio interno do conhecimento, a palavra
externa e a interna, revelação e iluminação, a
obra da Palavra de Deus e a obra do
Espírito. A palavra interna (verbum
internum) é a palavra principal (verbum
principale), pois é ela que introduz o
conhecimento de Deus nos seres humanos, e
esse é o propósito de toda teologia, aliás, de
toda a auto-revelação de Deus.38

38
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. 1ª. ed. São Paulo: Cultura
63
Os três princípios que fundamentam o
conhecimento humano (principium essendi, principium
cognoscendi externum, principium cognoscendi internum)
são claramente interconectados com a distinção entre o
conhecimento arquétipo e o conhecimento éctipo, o que
mostra que Bavinck se alinha aos escolásticos reformados.
Ele também enfatiza o caráter trinitário que permeia essa
epistemologia, reconhecendo no Logos a ponte que
conecta a Revelação ao nosso intelecto:
Mas essa distinção faz com que a relação
entre o conhecimento arquetípico e o
conhecimento ectípico de Deus seja
mecânica e ignora o fato de que a plenitude
consiste não somente em quantidade, mas
também em qualidade. Não obstante, a
distinção contém a ideia verdadeira de que o
conhecimento ectípico de Deus, que ele
concedeu às criaturas mediante a revelação,
não é o autoconhecimento absoluto de Deus,
mas o conhecimento de Deus como ele foi
acomodado e adequado à consciência finita -
portanto, antropomorfizado. Esse
conhecimento ectípico de Deus, que está
objetivamente diante de nós na revelação, é

Cristã, v. I, 2012. 213 p.

64
externo, mas planejado para ser transferido à
consciência de criaturas racionais para se
tornar conhecimento ectípico interno de
Deus, conhecimento de Deus no sujeito. No
processo, esse conhecimento novamente
sofre mudanças, de acordo com a natureza
do sujeito. Ele difere não em substância e
ordem racional (re et rationé), mas em grau
e modo (gradu et modo): em Cristo
(theologia unionis; teologia de união), nos
anjos e bem-aventurados (theologia visionis;
teologia de visão) e nos seres humanos sobre
a terra (theologia viatorum, viae,
revelationis; teologia do povo em
peregrinação, em uma jornada de revelação).
Entre os seres humanos ele novamente
difere em profetas e apóstolos, e em
teólogos e povo leigo. Ele é modificado na
consciência de cada pessoa, dependendo de
sua capacidade. Mas, materialmente, ele
permanece idêntico, o conhecimento que
procede de Deus e é transplantado através de
revelação à consciência de suas criaturas
racionais. Esses três princípios, distintos,
embora sejam essencialmente um, estão
arraigados no ser trinitário de Deus. E o Pai
que, através do Filho como Logos, se
comunica com suas criaturas no Espírito.39

39
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. 1ª. ed. São Paulo: Cultura
Cristã, v. I, 2012. 214 p.

65
A substância daquilo que Bavinck expõe em sua
obra pode ser endossada por qualquer teólogo reformado
sem muitas modificações. Mas há um problema que
precisamos ressaltar: a conclusão de que toda a revelação
é “antropomorfizada” parece ser um non sequitur. Bavinck
parece apoiar essa conclusão não apenas na distinção
arquétipa-éctipa, mas no fato de que a teologia éctipa foi
acomodada à capacidade humana. Isso requer, segundo
Bavinck, que todo o nosso conhecimento seja analógico:
“Todo o nosso conhecimento religioso, certamente, é não-
exaustivo, antropomórfico, analógico”.40 Infelizmente
Bavinck não define o termo “analógico” e não exemplifica
o seu uso. Podemos apenas desconfiar que ele use o termo
no mesmo sentido que Junius, pois Bavinck cita Junius
regularmente com aprovação. Mas, conquanto Junius
ressalte o caráter acomodado da revelação, não
encontramos em sua obra nada que sugere uma revelação
plenamente “antropomorfizada”. O desastre dessa
conclusão é transformar toda a revelação em divulgação
40
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. 1ª. ed. São Paulo: Cultura
Cristã, v. I, 2012. 559 p.

66
de figura de linguagem sem um referente literal de
interpretação. Ou seja, quando lemos nas Escrituras que
Deus tem olhos, podemos interpretar esse
antropomorfismo à luz da informação literal de que Deus é
espírito. Mas se essa informação também é um
antropomorfismo, qual é seu referente literal? A
consequência é que toda a linguagem teológica foi
comutada para uma sequência interminável de símbolos
sem referente textual categórico. O perigo aqui é que toda
teologia se transfigure em antropologia. Tal visão deixa
transparecer a ideia de que toda ordem criada foi
concebida como a caverna de Platão e nossos termos são
as sombras que apontam para um objeto mais sublime e
perfeito. Todavia, se isso procede, “apontam”, “mais”,
“sublime”, “perfeito” também são sombras. Quando
dizemos que “bom”, “sábio”, devem ascender
proporcionalmente a uma ordem mais perfeita estamos
apenas dizendo que aquelas sombras devem atingir outras
sombras. E se nossa gramática está presa ao reino
criacional, é possível que Kant tenha concluído
corretamente: o noumeno é incognoscível. Ou ainda, que
67
Rudolf Otto tenha se expressado de modo preciso ao dizer
que Deus é “Totalmente Outro”. Se toda revelação é
antropomorfizada, nossas categorias, mesmo aquelas
autorizadas pelas Escrituras, estão confinadas ao reino
imanente, sendo que Deus é alienígena em sua própria
revelação! E, em última análise, é essa ideia que permeia a
teoria do conhecimento analógico de Van Til. A teoria da
analogia proposta por Van Til envolve, como observamos,
derivar a interpretação da realidade da interpretação pré-
determinada por Deus. Não há fatos brutos no universo e,
como criaturas pactuais, nossa tarefa epistemológica
requer um compromisso cognitivo de [re]interpretação dos
fatos diante de nós em referência a uma realidade última.
Entendida dessa maneira, a teoria da analogia vantiliana
subscreve a proposta epistêmica bavinckiana:

A tarefa imperativa do teólogo dogmático é


pensar os pensamentos de Deus de acordo
com ele e estabelecer sua unidade. Sua
tarefa não termina até que ele tenha
absorvido mentalmente essa unidade e a
tenha demonstrado em uma dogmática.
Sendo assim, ele não vai à revelação de
Deus com um sistema pronto para, da
68
melhor forma que puder, forçar o conteúdo
da revelação a encaixar-se dentro dele. Pelo
contrário, até mesmo em seu sistema, a
única responsabilidade do teólogo é pensar
os pensamentos de Deus de acordo com ele
e reproduzir a unidade que está
objetivamente presente nos pensamentos de
Deus e foi registrada para o olhar da fé na
Escritura.41

Não há qualquer objeção a essa proposta. A teoria


da analogia se esbarra, contudo, nas considerações sobre a
aplicação da nossa linguagem a Deus. Assim como
Bavinck, R. Scott Clark propôs que toda a linguagem das
Escrituras é antropomórfica e, portanto, concluem Bavinck
e R. Scott Clark, nosso conhecimento é analógico. É
preciso observar que não são alguns trechos da revelação
que são antropomorfizados, mas sua plenitude: “A
revelação, portanto, é sempre um ato de graça: nela, Deus
condescende a encontrar sua criatura, uma criatura feita à
sua imagem. Toda revelação é antropomórfica, um tipo de
humanização de Deus”.42 No entanto, o fato de a revelação

41
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. 1ª. ed. São Paulo: Cultura
Cristã, v. I, 2012. 44 p.
42
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. 1ª. ed. São Paulo: Cultura
69
ser um ato de condescendência divina não implica ser ela
toda “antropomórfica”. A humanização de Deus,
defendida por Bavinck, nada pode nos revelar acerca de
Deus mesmo. No final, o que Bavinck propõe é que temos
acesso a um Deus humanizado, enquanto o Deus
verdadeiro permanece escondido sob o misterioso véu
kantiano da incognoscibilidade.
François Turretini, célebre professor na academia
de Genebra, ao distinguir entre teologia arquétipa e éctipa
escreve:
A verdadeira teologia se divide em: (1)
infinita e não criada, a qual constitui o
conhecimento essencial que o próprio Deus
tem de si mesmo (Mt 11:27), na qual ele é,
ao mesmo tempo, o objeto conhecido
(epistēton), o conhecimento (epistēmōn) e o
conhecedor (epistēmē), e aquilo que ele
decretou revelar-nos sobre si próprio, o que
é comumente chamado arquétipo; e (2) finita
e criada, a qual é a imagem e reprodução
(ektypon) da infinita e arquetípica
(prōtotypou) (a saber, as ideias que as
criaturas têm sobre Deus e as coisas divinas,
assumindo a forma daquele supremo
conhecimento e comunicando às criaturas
inteligentes por união hipostática com a

Cristã, v. I, 2012. 310 p.


70
alma de Cristo [daqui se origina “a teologia
da união”]; ou por visão beatífica dada aos
anjos e aos santos que andam pela vista, não
pela fé, que se chama “teologia da visão”; ou
por revelação, que é feita aos que estão em
viagem [a saber, aos que ainda não
atingiram o alvo e é chamada “teologia da
revelação”], ou o estádio).43

Substancialmente, não há disparidade entre


Turretini e Junius. Assim como Junius, Turretini
reconhece o gênero da teologia como sendo sapientia, mas
não no sentido aristotélico.44 Entretanto, nada na distinção
da teologia entre arquetípica e ectípica sugere que toda a
revelação seja considerada antropomórfica. É verdade que
tanto Junius como Turretini defendem a teoria da
acomodação, mas é um non sequitur concluir a partir
dessa teoria que a revelação seja plenamente
antropomorfizada. As consequências de tal conclusão são
calamitosas. A natureza de um antropomorfismo exige um

43
TURRETINI, F. Compêndio de Teologia Apologética. São
Paulo: Cultura Cristã, v. I, 2011. 43 p.
44
Por entender que não há modificações abruptas no que tange ao
tratamento feito por Amandus Polanus, Bernardinus de Moor,
Antonius Walaeus, Franciscus Gomarus, dentre outros, no que diz
respeito à distinção arquétipa-éctipa, iremos omitir a contribuição
deles, buscando preservar a concisão.
71
referencial não figurativo para atribuir nexo lógico entre a
figura de linguagem e a realidade. Mas se o referencial da
figura de linguagem é outra figura de linguagem e assim
ad infinitum, segue-se que o objeto (no caso da teologia,
Deus) permanece incognoscível, ainda que as figuras de
linguagem tenham sido fornecidas por Deus mesmo. Foi
por perceber que a teoria da analogia conduz ao ceticismo
que Gordon Clark a rejeitou:
A declaração que compara um objeto
conhecido com outro desconhecido não nos
proporciona nenhum conhecimento do
objeto desconhecido. Por isso, a
dependência do conhecimento analógico, de
paradoxos ou símbolos, com a sua negação
do conhecimento literal e positivo de Deus,
destrói tanto a revelação como a teologia e
deixa-nos na completa ignorância.45

O objetivo da analogia é aproximar realidades


discrepantes, seja por demonstrar semelhanças gradativas,
seja por ressaltar dessemelhanças também gradativas. A
condição necessária para que a analogia prospere é o
conhecimento prévio dos domínios a serem aproximados.

45
CLARK, G. Uma Introdução à Filosofia Cristã. Brasília:
Monergismo, 2013. 93 p.
72
A analogia, com ou sem o termo comparante, redundará
em equivocidade sem a intersecção de um termo médio
unívoco que possibilita a relação metafísica entre os entes
que ocupam estruturas diversas. Robert L. Reymond
afirma: “O que estou ressaltando aqui é que o êxito de
uma dada analogia depende do vigor do elemento unívoco
nela”.46

ANALOGIA

Domínio Domínio
conceitual conceitual
"A" "B"

Termo médio unívoco


Mas se Deus permanece incompreensível, mesmo
em sua revelação, sendo esta antropomorfizada, o domínio
conceitual divino permanece desconhecido e, de acordo
com Gordon Clark, qualquer aproximação analógica
fracassa, pois “a declaração que compara um objeto

46
REYMOND, R. L. Teologia sistemática: parte 1 e 2.
Brasília: Monergismo. (Locais do Kindle 2793-2794).
73
conhecido com outro desconhecido não nos proporciona
nenhum conhecimento do objeto desconhecido”. Quando
as Escrituras atribuem olhos, mãos, nariz, boca, pés, etc., a
Deus, sabemos que nada disso é literalmente verdadeiro. O
salmista, por exemplo, diz: “Os teus olhos viram o meu
corpo ainda informe...” (Sl 139:16). Nesse verso, “os teus
olhos” é uma referência à onisciência divina. Mas se
onisciência é apenas uma analogia, isto é, se onisciência é
também uma linguagem antropomórfica, então não pode
ser literalmente verdade que Deus é onisciente. O
referente literal do antropomorfismo “teus olhos” é a
onisciência. Mas qual é o referente literal do
antropomorfismo “onisciência”? Se Bavinck e Van Til
estão certos, então Friedrich Nietzsche corretamente
asseverou que a verdade é:
Um batalhão móvel de metáforas,
metonímias, antropomorfismos, enfim, uma
soma de relações humanas, que foram
enfatizadas poética e retoricamente,
transpostas, enfeitadas, e que, após longo
uso, parecem a um povo sólidas, canônicas,
e obrigatórias: as verdades são ilusões, das
quais se esqueceu que o são, metáforas que
se tornaram gastas e sem força sensível,

74
moedas que perderam sua efígie e agora só
entram em consideração como metal, não
mais como moedas.

Para Van Til, a realidade criada e a realidade não-


criada estão separadas por um abismo intransponível. A
distinção Criador-criatura requer que nosso conhecimento
seja analógico. Ele escreve:
Um terceiro corolário da doutrina da
Trindade é que o conhecimento do homem,
embora analógico, não obstante, é
verdadeiro. Ou para colocá-lo mais
especificamente, o conhecimento do homem
é verdadeiro porque é analógico. É
analógico porque o ser de Deus une em si
mesmo a unidade final e a máxima
pluralidade mencionada acima. E é verdade
porque existe tal Deus que une essa ultima
unidade e pluralidade. Por isso também
podemos dizer que apenas o conhecimento
analógico pode ser verdadeiro
47
conhecimento.

47
TIL, C. V. A Survey Of Christian Epistemology.
Phillipsburg, New Jersey 08865: Presbyterian And Reformed
Publishing Co., 1969. 48 p.
https://presupp101.files.wordpress.com/2011/08/van-til-a-
survey-of-christian-epistemology.pdf.
75
Já foi dito aqui que o uso que Van Til faz do
termo “analogia” é dinâmico e, muitas vezes, ambíguo.
Nesse parágrafo, Van Til usa o termo no sentido de
derivação. O Deus trino é o conhecedor original e o ser
humano é uma réplica finita desse arquétipo. O homem
deve estar satisfeito com a possibilidade de derivar
conhecimento do Criador. Todavia, o veneno da serpente
faz com que o homem tente se elevar ao status de
conhecedor autônomo, isto é, o conhecedor original. Tal
“conhecedor original” busca interpretar os fatos sem
referência a Deus e sem referência a Cristo. Ele assume as
categorias temporais para lidar com as antinomias. O
“conhecedor dependente”, por outro lado, segue
prontamente Agostinho e afirma que não está em
condições de conhecer a realidade sem as categorias da
eternidade. Ou seja, o “conhecedor dependente” reconhece
que é preciso crer para reinterpretar os fatos em referência
a Deus. Ele não se coloca como o pensador autônomo
capaz de solucionar as antinomias. Antes, ele
humildemente reconhece que só em Deus o problema
fundamental do Uno e do Múltiplo encontra solução.
76
Dessa forma, Van Til estabelece o par de oposições entre
o conhecimento analógico e o conhecimento unívoco:

CONHECIMENTO CONHECIMENTO
ANALÓGICO UNÍVOCO
Refletivo- Deflexionado/autônomo
derivativo/dependente

Enquanto a teoria da analogia descreve o modo


de conhecimento, nenhuma objeção pode ser feita. Em
nenhum lugar da epistemologia clarkiana ocorre a
sugestão do pensamento autônomo, sem referência a Deus.
O problema com a teoria da analogia é quando diz respeito
ao objeto do conhecimento. E Van Til não defendeu a
teoria da analogia apenas em relação ao modo do
conhecimento, mas também em relação ao seu objeto.
O conhecimento analógico é corolário da
triunidade de Deus. Para Van Til, Deus é unipessoal e
tripessoal. Portanto, no Ser de Deus unidade e pluralidade
estão relacionadas, solucionando definitivamente o
problema do Uno e do Múltiplo. Todavia, tal solução
77
permanece inacessível para a criatura. Apenas Deus
consegue compreendê-la, pois conhecimento e realidade
coincidem em Deus, ou seja, apenas Deus conhece
exaustivamente. Para o ser humano, a solução mantém-se
incompreensível. Seria necessário conhecer a Deus da
mesma maneira que Deus conhece a Si mesmo para
entender a resolução do problema. Mas uma vez que tal
conhecimento é inacessível para nós, segue-se que: 1)
dada a distinção ontológica, o conhecimento unívoco é
impossível ao homem; 2) sendo o conhecimento do
homem analógico, em nenhum ponto coincide com o
conhecimento de Deus.
Dessa forma, carecendo de correspondência com
o conhecimento de Deus, o conhecimento do homem está
fadado a conviver com antinomias:
O teórico cristão não tentará resolver o que,
na natureza do caso, deve ser mistério para
ele. Se o fizer, é uma indicação de que ele
não está mais satisfeito em deixar a solução
dos problemas do universo para Deus. Se o
fizer, é uma indicação de que ele quer
estabelecer sua própria mente como o
padrão da verdade. Se o homem se
comprometer a harmonizar as “antinomias”

78
fundamentais do pensamento para ele, ele
afirmou que não requer o serviço de Deus
para esse propósito. Todas as “antinomias”
do pensamento humano, como a relação do
tempo e da eternidade, um e muitos, unidade
e diversidade, estão envolvidas no problema
dos universais. Existem apenas duas atitudes
possíveis que podem ser tomadas para essas
“antinomias”. Pode-se dizer que é o negócio
da mente humana resolver essas
“antinomias”, e que, a menos que seja bem
sucedida, não há conhecimento válido para o
homem. Ou pode-se dizer que, uma vez que
o homem é finito, claramente não é o
negócio do homem tentar resolver essas
“antinomias”, e que elas devem ser
resolvidas em Deus ou o pensamento do
homem não terá sentido.48

Van Til, ao lidar com o problema do Uno e do


Múltiplo, introduz uma definição de Trindade totalmente
alheia ao cristianismo histórico, e conclui a partir desse
pressuposto questionável que o nosso conhecimento deve
ser analógico e que devemos estar satisfeitos no reino

48
TIL, C. V. A Survey Of Christian Epistemology.
Phillipsburg, New Jersey 08865: Presbyterian And Reformed
Publishing Co., 1969. 58 p.
https://presupp101.files.wordpress.com/2011/08/van-til-a-
survey-of-christian-epistemology.pdf.
79
kierkegaardiano do paradoxo! É preciso deixar claro que,
ao afirmar a dependência de Deus para a resolução de
paradoxos, Van Til não está sugerindo que teremos acesso
a tais soluções. Além do mais, Van Til tem uma
interpretação própria sobre o que é o pensamento unívoco
e, em sua crítica a Gordon Clark, ele mantém esse sentido
sem buscar entender o uso clarkiano do termo. Ele diz: “O
próprio pressuposto do raciocínio unívoco é que não há
Deus absoluto. Se houvesse um Deus absoluto, é ipso
facto fora de questão aplicar-lhe as categorias de
pensamento da mesma forma que são aplicadas ao
homem”.49 Em consonância com Van Til, Michael Horton
assevera:
Nem o ser nem o conhecimento são
compartilhados de forma unívoca (ou seja,
de forma idêntica) entre Deus e criaturas.
Como o ser de Deus é qualitativamente e
não apenas quantitativamente distinto do
nosso, assim também é o conhecimento de
Deus. O conhecimento de Deus é
arquetípico (o original), enquanto o nosso é

49
TIL, C. V. A Survey Of Christian Epistemology. Phillipsburg,
New Jersey 08865: Presbyterian And Reformed Publishing Co., 1969.
96 p. https://presupp101.files.wordpress.com/2011/08/van-til-a-
survey-of-christian-epistemology.pdf.
80
éctipo (uma cópia), revelado por Deus e,
portanto, acomodado às nossas capacidades
finitas. Nosso conhecimento imperfeito e
incompleto depende sempre do
conhecimento perfeito e completo de Deus
[...] Uma ontologia pactual requer uma
epistemologia pactual. Nós fomos criados
como a analogia de Deus (portadores de
imagem) em vez de como faíscas
autoindividuais da divindade; portanto,
nosso conhecimento também é antes
dependente do que autônomo. Por
conseguinte, existe uma verdade absoluta,
perfeita, exaustiva e eterna, mas esse
conhecimento é possuído por Deus, não por
nós. Em vez disso, temos a verdade
revelada, que Deus acomodou a nossa
capacidade.50

O mais embaraçoso nesse trecho é que ele está


repleto de asserções verdadeiras misturadas com asserções
confusas. Por exemplo, Horton indica que para ele
univocidade é o mesmo que identidade. Logo, nem o Ser e
nem o conhecimento de Deus são compartilhados conosco
de modo unívoco. Tomando o termo como Horton o faz,
se Deus compartilhasse conosco seu Ser univocamente

50
HORTON, M. S. The Christian Faith: A Systematic Theology for
Pilgrims on the Way. Michigan 49530: Zondervan, 2011. (Locais do
Kindle 1037-1060).
81
resultaria em panteísmo e no caso do conhecimento, em
onisciência. Ainda em consonância com Van Til, Horton
conclui que o conhecimento analógico é o conhecimento
dependente e o conhecimento unívoco é autônomo. Nós
não possuímos conhecimento exaustivo; somente Deus o
possui. Portanto, a epistemologia pactual deve ser
analógica. Colocado dessa forma, qualquer pessoa alheia
ao pensamento de Gordon Clark ficaria estupefata diante
do fato de que Clark defendeu o conhecimento unívoco.
Francamente, a maneira como Horton expõe a questão nos
leva a questionar se Clark era mesmo cristão ao se igualar
a Deus! Michael Horton então prossegue:
Quando dizemos que Deus é bom,
assumimos que sabemos o que o bem
significa da nossa experiência comum com
outros seres humanos. No entanto, Deus não
é apenas quantitativamente melhor do que
nós; Sua bondade é qualitativamente
diferente da bondade da criatura. No
entanto, porque somos criados à imagem de
Deus, compartilhamos este predicado com
Deus de forma análoga [...] Esta doutrina da
analogia é a dobradiça sobre a qual uma
afirmação cristã da transcendência e da
imanência de Deus gira. Uma visão unívoca
ameaça a transcendência de Deus, enquanto

82
uma visão equívoca ameaça a imanência de
Deus. O primeiro conduz ao racionalismo,
enquanto o último engendra ceticismo.51

Esse trecho é uma aplicação prática daquilo que


Van Til entendeu por “univocidade”: “Se houvesse um
Deus absoluto, é ipso facto fora de questão aplicar-lhe as
categorias de pensamento da mesma forma que são
aplicadas ao homem”. Curiosamente, Horton não indica o
que o “bem” significa de acordo com nossa experiência
com outros seres humanos. Além disso, ele reconhece que
não sabe o que significa a bondade divina: “Não sabemos
exatamente como é a bondade divina” (HORTON, 2011).
Então não sei como Horton atravessa esse abismo e
conclui que nossa bondade é “análoga” a de Deus. Se ele
não sabe exatamente como é a bondade divina, como ele
sabe exatamente que nossa bondade é análoga a ela?
Mas Horton insiste que a epistemologia pactual
requer o endosso à teoria da analogia:
Se a univocidade gera racionalismo, a

51
HORTON, M. S. The Christian Faith: A Systematic Theology for
Pilgrims on the Way. Michigan 49530: Zondervan, 2011. (Locais do
Kindle 1057-1070).

83
equivocidade gera ceticismo epistemológico.
Ambas as posições pressupõem a autonomia
humana e, portanto, não estão dispostas a
considerar a realidade e o acesso a essa
realidade como um presente que nos vem de
fora de nós mesmos. É significativo que
Paulo descreva essa recusa perversa de
aceitar nosso papel como criaturas da
aliança como ingratidão (Rm 1:20-21). Essa
recusa não é, portanto, simplesmente um
problema intelectual, mas está enraizada em
uma rebelião ética que é intencionalmente
perpetuada. Como Paulo continua a se
relacionar nessa passagem, o termo bíblico
para esta busca da metafísica autônoma é
idolatria.52

Em outras palavras, Gordon Clark e Carl F. H.


Henry, que são citados por Horton no contexto, não
passam de idólatras que intencionalmente perpetuam sua
rebelião ética!

52
HORTON, M. S. The Christian Faith: A Systematic Theology for
Pilgrims on the Way. Michigan 49530: Zondervan, 2011. (Locais do
Kindle 1103-1110).
84
ESTABELECENDO O CASO EM FAVOR
DO CONHECIMENTO UNÍVOCO

Terminamos a última seção vendo como alguns


teólogos vantilianos têm lidado com a teoria da linguagem
teológica. Para Horton, os que defendem a univocidade
são rebeldes intencionais, idólatras e racionalistas
autônomos. Essa é uma acusação séria e Horton, a meu

85
ver, não lidou seriamente com a questão para fazer esse
tipo de acusação. É nosso desejo aqui estabelecer o caso
em favor do conhecimento unívoco e desfazer alguns dos
mal entendidos em torno dessa questão.
Daniel H. Chew percebeu que a distinção do
escolasticismo reformado entre teologia arquétipa e
teologia éctipa pode ser acomodada à epistemologia
clarkiana. Ele aponta que, embora não tenhamos acesso ao
conhecimento arquetípico de Deus, o qual, segundo
Junius, deve ser adorado e não investigado, há um ponto
unívoco entre a teologia ectípica formada pelo próprio
Deus (teologia simpliciter dicta) e nossa teologia (teologia
secundum quid). Ele prossegue dizendo que:
[...] ontologicamente, há uma diferença
qualitativa entre o conhecimento arquetípico
de Deus e nosso conhecimento ectípico, mas
a diferença qualitativa não existe entre o
conhecimento ectípico de Deus (teologia
simpliciter dicta) e nosso conhecimento
ectípico, que não é qualitativamente
diferente, mas quantitativamente diferente.53

53
CHEW, D. H. The Archetypal/Ectypal distinction and Clarkian
epistemology. Disponivel em:
<http://www.angelfire.com/falcon/ddd_chc82/theology/ArchetypalEct
ypalDistinctionClarkianE.pdf>. Acesso em: 21 setembro 2017.
86
A acomodação do que R. Scott Clark chamou de
“distinção categórica” à epistemologia clarkiana é
possível. Mas vale ressaltar que tal acomodação não serve
como síntese entre Gordon Clark e Van Til. Isso porque
Van Til não reconhece a distinção entre teologia éctipa
simpliciter dicta e teologia éctipa secundum quid. Ambas
são proposições que compõem o conhecimento de Deus e,
por isso, na epistemologia vantiliana não podem ser
unívocas ao conhecimento do homem. Mas é necessário
observar como Clark usa o termo “unívoco”, pois as
conotações que os vantilianos dão ao termo torna
necessário um esclarecimento, ou qualquer defesa da
univocidade tomará a aparência de uma apologia ao
paganismo.
Van Til basicamente toma por univocidade a
ideia de pensamento autônomo e a ideia de atribuição de
categorias humanas a Deus sem as adaptações necessárias,
bem como a ideia de um conhecimento absoluto e
exaustivo. Michael Horton exemplificou isso utilizando o

87
predicado “bom”. Para Horton, apreendemos o sentido de
bondade com base em nossa experiência comum que
temos com outras pessoas e, então, aplicamos
analogicamente esse predicado a Deus.
Agora, embora seja compreensível e até certo
ponto remissível que uma pessoa leiga adote esse
procedimento, é inadmissível que um teólogo profissional
recorra a tal expediente. O que Horton admite é que, ao
visualizar o termo “bom” sendo aplicado a Deus, ele se
vale de uma experiência comum para interpretar esse
termo. Além de ser um procedimento questionável, Horton
parece não admitir que nossa experiência seja, muitas
vezes, incomum. Alguns consideram que o par antitético
bem e mal não passa de um construto social. Outros
subordinam o “bom” a um cálculo prévio que determina o
maior bem para o maior número de pessoas possíveis. Ou
seja, o bom nada mais é do que o útil. Peter Singer, um
filósofo ateu e utilitarista, propõe a ideia de “bondade
material”. O budista Lama Padma Samten define bondade
como “a capacidade de ir além da própria identidade e
encontrar outros seres. É uma imediata prática de
88
transcendência ativa”.54 Qual dessas ideias extraídas de
nossa “experiência comum” deve ser aplicada a Deus por
analogia? Além disso, Horton tenta justificar esse
procedimento afirmando que não sabemos exatamente o
que a bondade divina é. Mas se Horton está confuso sobre
o que é a bondade divina, eu desejo sinceramente que ele
se debruce sobre o precioso trabalho de Stephen Charnock
intitulado “A Natureza da Bondade de Deus”. A obra de
Charnock é fruto de um cuidadoso empenho exegético,
aliado à iluminação do Espírito, ao invés de imposições
empíricas ao texto bíblico. Horton parece estar confuso
acerca da teoria da analogia:
Existe certa plausibilidade para o argumento
dos ateus modernos de Ludwig Feuerbach a
Sigmund Freud de que o raciocínio
metafísico tenta projetar em uma Infinitude
imaginária os superlativos (ou negações) de
seres humanos finitos. “Deus” – o “Ser
Perfeito” – torna-se um espelho de nossos
próprios preconceitos: um ídolo criado à
imagem do adorador. No entanto, ao

54
SAMTEN, L. P. Uma breve introdução ao Budismo.
Disponivel em: <http://www.cebb.org.br/uma-breve-
introducao-ao-budismo/>. Acesso em: 22 setembro 2017.

89
contrário da metafísica, a teologia começa
com a auto-revelação de Deus e escuta Deus
em sua graciosa condescendência.55

Esse parágrafo é extremamente confuso. Será que


a única diferença da metafísica idólatra para a teologia é a
fonte de onde ela retira suas projeções? Se a teologia
começa com a auto-revelação de Deus, qual é a
plausibilidade de Feuerbach ou Freud? Seria a auto-
revelação de Deus um reflexo de nossos preconceitos
idólatras? Quando a teologia escuta Deus em sua
condescendência dizendo que é bom, esse “bom” é alguma
analogia derivada de nossa experiência comum com outras
pessoas? A advertência de Carl Henry acerca desse
procedimento é imprescindível: “E o Senhor não é um
fantoche maior que eu sobre o qual eu projeto meus
próprios pensamentos e imaginações como a face interior
da manifestação divina”.56

55
HORTON, M. S. The Christian Faith: A Systematic
Theology for Pilgrims on the Way. Michigan 49530:
Zondervan, 2011. (Locais do Kindle 1037-1047).
56
HENRY, C. F. H. Deus, Revelação e Autoridade. São
Paulo: Hagnos, v. II, 2017. 73 p.

90
Não obstante toda confusão, Horton insiste que a
epistemologia pactual requer uma teoria de analogia. Mas
isso só é assim porque Horton assumiu que a univocidade
aplica o termo “bom” a Deus da mesma maneira que é
aplicado aos homens. Seria isso o que Gordon Clark
propõe?
Ao comparar a teoria de Aristóteles e de Tomás
de Aquino, Clark escreve:
De fato, é a natureza da existência de Deus
que faz com que os adjetivos sejam
analógicos. A essência de Deus e a
existência de Deus são idênticas; por isso a
existência de Deus significa algo diferente
da existência do homem. No caso do médico
e do livro médico de Aristóteles, embora os
dois exemplos não sejam estritamente
unívocos, a ciência médica à qual os dois se
referem é, no entanto, a mesma ciência. Há
aqui um ponto de referência unívoco. Mas
para Tomás, não há tal ponto, pois nenhum
termo, qualquer que seja, tem o mesmo
significado para Deus e para o homem. Se
alguma área fosse comum para ambos os
significados (como a ciência da medicina em
Aristóteles), então a essa área comum
poderia ser dado e univocamente um
predicado de Deus e de homem.57

57

91
Primeiramente, podemos observar que a
epistemologia clarkiana tem um lugar para a analogia,
desde que ela preserve uma base unívoca. Sem essa base, a
analogia resulta em equivocidade. Em segundo lugar,
ressaltamos o sentido em que Clark utiliza o termo
unívoco. Para Clark, em termos negativos univocidade é o
oposto de ambiguidade, isto é, inequívoco. Em termos
positivos, é aquilo que preserva apenas um significado. A
teoria da univocidade de Clark está situada no âmbito
lógico/semântico ao invés do metafísico. Não significa que
o homem é o ponto de referência de toda predicação.
Embora Van Til acreditasse que esse fosse o caso, o
contrário é verdadeiro. O homem se torna o ponto de
referência na predicação analógica, pois a predicação é
desencadeada no homem e ascende a Deus por analogia.
Em terceiro lugar, não se trata de aplicar as categorias
humanas a Deus. Antes, quando semelhanças entre Deus e
suas criaturas são reivindicadas como sendo análogas, a
similaridade deve repousar em um alicerce unívoco, ainda
que as dissimilaridades sejam reconhecidas. Em outras

92
palavras, a continuidade pressupõe um aspecto unívoco,
por mais geral que seja esse aspecto.
Outrossim, a definição de Clark do termo unívoco
não implica autonomia e tampouco a centralidade
epistêmica do homem. Univocidade é uma característica
das proposições, ou seja, se relaciona ao significado de
frases e sentenças. Isso porque Clark definiu
conhecimento como a posse da verdade e a verdade é
característica das proposições. Note que univocidade não é
tomada por Clark como um termo ontológico. Van Til
acreditava que univocidade implicava monismo porque ele
confundia epistemologia e ontologia. Mas Clark usou o
termo no sentido epistemológico. Assim, univocidade diz
respeito ao significado das frases e o significado de uma
frase é sua proposição. Uma estátua não pode ser
verdadeira ou falsa. Ela pode se aproximar ou se distanciar
de um modelo, mas verdadeiro e falso são categorias de
proposições apenas: “Declarações, proposições,
predicados ligados a substâncias são verdadeiros ou falsos
[...] Somente as proposições podem ser verdades. Se
apenas pronuncio uma palavra – gato, escola, colagem –
93
ela não é verdadeira nem falsa: não afirma nada”.58 Além
disso, Clark afirmou que a verdade é determinada por
Deus. A verdade não é o produto de uma soma aleatória de
sensações ou resultado de deduções cujas premissas são
fornecidas pela própria mente. A verdade é proposicional,
mas sua fonte está alem do tempo e do espaço. Deus
determina o que é a verdade: “As verdades, ou
proposições que podem ser conhecidas, são pensamentos
de Deus, o eterno pensamento de Deus”.59 Mas se a
verdade não é o substrato de nossos processos empíricos
ou mentais, como então podemos ter acesso à verdade?
Gordon Clark responde: “Todo sistema deve começar em
algum ponto e não pode ter iniciado antes de começar [...]
Nosso axioma é o de que Deus falou. Ou, de modo mais
completo – Deus falou na Bíblia. De forma mais precisa,
as afirmações bíblicas são o que Deus falou”.60 A

58
CLARK, G. Em Defesa da Teologia. Brasília: Monergismo,
2010. 74 p.
59
CLARK, G. Uma visão cristã dos homens e do mundo. Brasília:
Monergismo, 2013.
60
CLARK, G. Em Defesa da Teologia. Brasília: Monergismo,
2010. 38 p.

94
epistemologia de Gordon Clark tem como ponto de partida
a revelação proposicional, isto é, seu axioma básico é o de
que a Bíblia é a Palavra de Deus. Clark não exclui a
revelação geral de seu sistema, mas o discurso epistêmico
não pode receber sua sustentação em uma fonte que requer
complemento. Ou seja, embora prontamente admitisse a
revelação geral, Clark reconheceu que ela era inadequada.
Todavia, temos acesso à verdade porque Deus
graciosamente nos concedeu sua revelação.
Isso posto, convém mencionar que Clark utilizou
o termo “conhecimento” de duas maneiras: 1) como um
termo técnico, estando este incluído no universo semântico
da epistemologia; 2) e como termo distendido, isto é,
conforme a linguagem usual. O conhecimento, como
termo técnico, é a posse da verdade por uma mente
(CLARK, 2013, p. 305). Mais especificamente, pode ser
definido como a crença verdadeira justificada. Os
problemas de Gettier não afetam a epistemologia
clarkiana.61 No livro Filosofia Concisa lemos: “O segundo

61
DOUMA, D.; MINER, L. Scripturalism and the Gettier
Problem. Disponivel em:
95
requisito para o conhecimento é que a proposição em que
acreditamos seja verdadeira. Pois o conhecimento não
pode ser dependente da sinceridade, ou da convicção
psicológica, ou do consentimento cultural, ou de qualquer
outra coisa a não ser da verdade da proposição”.62 Por isso
é afirmado que “a verdade não é individual, mas universal;
a verdade não começa quando nós nascemos, ela sempre
existiu” (CLARK, 2013, p. 302).
Se Deus, portanto, nos deu uma verdade
proposicional, devemos ter a capacidade de compreender
tal revelação. Uma revelação incompreensível é um
oximoro. Obviamente, o pecado entenebreceu nossas
mentes. Mas o Logos é a Luz que ilumina a todo o
homem. A regeneração envolve uma mudança de mente,
de tal forma que somos capacitados a compreender as
coisas do Espírito. Essa compreensão não é exaustiva e
não nos torna oniscientes. Continuamos sem qualquer

<http://scripturalism.com/scripturalism-and-the-gettier-
problem/>.
62
DEWEESE, G. J.; MORELAND, J. P. Filosofia Concisa.
São Paulo: Vida Nova, 2011. 58 p.

96
acesso ao conhecimento arquetípico de Deus, mas
podemos compreender aquilo que Deus decidiu revelar. Se
Deus conhece e revela uma proposição P, nosso
conhecimento deve ser unívoco a essa proposição P. Para
Van Til, o nosso conhecimento é qualitativamente distinto
no que tange ao objeto do conhecimento. Assim, se Deus
conhece e revela uma proposição P, não podemos
conhecer a mesma proposição, mas apenas uma analogia
dela, isto é, P1.
Clark prontamente reconheceu que não podemos
saber todas as implicações de uma dada proposição. Mas
não devemos confundir as implicações de uma frase com
seu significado. O significado é apenas um (unívoco), mas
as implicações são diversas. Deus, por ter um
conhecimento perfeito, abrangente, ou seja, por ser
onisciente, conhece todas as proposições, reveladas e não
reveladas, e todas as suas implicações. Nós podemos
conhecer as proposições reveladas, mas só captamos
algumas de suas implicações em virtude de nossa
limitação epistêmica.
O termo univocidade, conforme o uso clarkiano,
97
diz respeito ao sentido das proposições. Não se trata de
atribuir a Deus as mesmas categorias do ser humano. Não
se trata de dizer que Deus e o homem são bons no mesmo
sentido. Se a proposição “Cristo morreu pelos pecados” é
verdade na mente de Deus, nosso conhecimento deve
coincidir em ao menos algum ponto para que tenhamos
acesso à verdade. John Frame afirmou que “Pensamento-
conteúdo pode referir-se a crenças ou juízos da verdade.
Certamente é possível a Deus e ao homem terem o mesmo
‘pensamento-conteúdo’ nesse sentido”. E esse
posicionamento foi o que Clark assumiu. Mas Frame não
está representando Van Til aqui, pois Van Til não concede
que Deus e o homem tenham o mesmo “pensamento-
conteúdo” verdadeiro. Na Queixa o posicionamento de
Van Til é que não podemos ter o mesmo conhecimento
que Deus tem de nenhuma proposição:
Nosso conhecimento de qualquer proposição
deve sempre ser o conhecimento da criatura.
Como conhecimento verdadeiro, esse
conhecimento deve ser análogo ao
conhecimento que Deus possui, mas nunca
pode ser identificado com o conhecimento
que o Criador infinito e absoluto possui da

98
mesma proposição.63

Ou seja, se Deus conhece P nunca podemos


conhecer P, mas no máximo uma analogia de P, a saber,
P1. Se conhecemos a proposição “Davi é rei de Israel”,
essa proposição não coincide em nenhum ponto com o que
Deus tem em mente, mas é uma analogia do que Deus
conhece. O problema é que em nenhum momento temos
acesso a P para sabermos que P1 carrega tal similaridade.
Por isso dissemos acima que o conhecimento de ambos os
objetos a serem aproximados é condição necessária para a
analogia. Todavia, Deus é incompreensível e

63
THE Complaint. The Foundation Gordon Clark, 19
setembro 2017. Disponivel em:
<http://gordonhclark.reformed.info/files/2015/01/Unpublished-
112.-The-Complaint-typed.pdf>.

99
totalmentedistinto da ordem criada e, por isso mesmo,
permanece indescritível por qualquer discurso
epistemológico de acordo com Van Til. Sua imanência
está circundada por sua transcendência e a linguagem é
elemento de ocultação ao invés de revelação. Dizer que
Deus é equivale a dizer que Ele não é, pois a linguagem é
inadequada diante do Deus inefável. Em outras palavras, o
conceito de analogia de Van Til, ainda que sem intenção,
termina com um Deus incognoscível:

Ordem não- Ordem


Criada/Arquétipo/ Analogia Criada/
Noumeno Éctipo/
Fenomeno

A distinção ontológica Criador-criatura no


esquema vantiliano impõe uma barreira entre o mundo
noumenal e o mundo fenomenal. Percebe-se que Van Til
100
tentou superá-la por meio da teoria da analogia, entretanto
a semelhança (analogia) entre o éctipo e o arquétipo não
pode ser proposta se o arquétipo é incognoscível. A
afirmação de que nosso conhecimento é semelhante a algo
que desconhecemos é completamente non sense.
Além disso, ao confundir epistemologia e
ontologia, Van Til condenou sua teoria a um círculo
vicioso. Se metafisicamente a ordem criada é éctipa e a
ordem não criada é arquétipa, nossa descrição da ordem
criada deve ser unívoca. No entanto, segundo Van Til,
Deus conhece exaustivamente a ordem criada e a ordem
não-criada. Sendo assim, nosso conhecimento da ordem
criada deve ser uma reinterpretação do que Deus conhece.
Então Van Til sugere uma metafísica analógica e uma
epistemologia analógica. Porém, se isso procede, ocorre
aqui a combinação de duas teorias mutuamente exclusivas.
Ao afirmar que o éctipo é análogo ao arquétipo no nível
ontológico, o corolário é a possibilidade de uma descrição
unívoca da realidade criada (nível epistemológico). Ao
afirmar que nossa descrição epistêmica só pode ocorrer no
nível da analogia, o corolário é uma descrição equívoca da
101
realidade criada (nível ontológico). Em outras palavras, a
teoria vantiliana de que nosso discurso epistêmico é
analógico não pode ser coerentemente combinada com sua
teoria metafísica que afirma uma realidade também
analógica.
O que move a teoria vantiliana em direção à
predicação analógica, além da distinção Criador-criatura,
parece ser um reconhecimento implícito da validade do
modelo disjuntivo que o racionalismo hegeliano exige: ou
conhecemos um conceito no contexto de todas as suas
relações ou não podemos conhecer. A primeira opção Van
Til correlacionou à teoria da univocidade e a última ao
ceticismo (equivocidade). A via média é conhecimento
parcial, não exaustivo. Em outras palavras, o
conhecimento analógico, de acordo com Van Til, nos
possibilita um conhecimento verdadeiro, porém em
nenhum ponto coincidente com o conhecimento divino,
pois Deus é o único que conhece todas as coisas no
contexto de todas as relações.
Entretanto, o dilema introduzido pela disjunção
hegeliana é falso e não precisa nos empurrar para uma
102
teoria da analogia. De acordo com a Bíblia, podemos ter
acesso à verdade, ainda que não tenhamos conhecimento
contextual de todas as relações internas (Dt 29:29).

103
CONHECIMENTO ANALÓGICO,
PARADOXO E MISTÉRIO

O contexto filosófico pós-kantiano se viu


engendrado por antinomias que demandavam solução no
intuito de possibilitar um conhecimento abrangente. O
primado da razão prática sobre a razão teórica
impulsionou o modernismo rumo ao pragmatismo. Porém,
esse pragmatismo trouxe consigo a antinomia entre
liberdade e necessidade. A tendência de buscar a solução
para essas antinomias no Geist (Absoluto) deixa-nos
antever a sombra do velho problema do Uno e do
Múltiplo.
A dialética hegeliana se impõe na necessidade de
resolver a antítese entre o Ser e o não-ser (Nichtsein),
tentando encontrar a unidade primordial na síntese (devir/
tornar-se). Os opostos são vistos pelo prisma de sua
relação interna. Por isso o pressuposto do hegelianismo é o
104
conhecimento do conceito no contexto de todas as suas
relações.
O filósofo F. H. Bradley afirmou que os conceitos
que a mente busca aplicar aos fenômenos envolvem
antinomias. Dessa forma, os fenômenos não podem
abarcar a realidade. É o problema do aparente e do real,
que ilustra a tensão entre o uno e o múltiplo. Bradley
sustenta sua tese a partir do estudo da relação entre coisas
e atributos e, posteriormente, estudando atributos e
relações. Ao inserirmos um novo elemento na relação
entre A e B, isto é, C, esse novo elemento não supera a
dificuldade, pois é considerado diferente da relação prévia
entre A e B. Dessa forma, o elemento C, ao se relacionar
com A e B, parece inserir uma nova relação, a saber, D.
Esse processo, de acordo com Bradley, é um retrocesso ad
infinitum, nos deixando com antinomias insolúveis, e ficou
conhecido como paradoxo das relações de Bradley.64 A

64
BRADLEY, F. H. Appearance and Reality: A Metaphysical
Essay. 2ª., 1897.

105
resolução das contradições inerentes ao mundo das
aparências, no entanto, é transferida para a “realidade
absoluta”. Em outras palavras, o “Absoluto” em Bradley é
a realidade desprovida antinomias.
É inegável que o idealismo exerceu influência em
Cornelius Van Til. A interação de Van til com essa
filosofia, entretanto, não foi acrítica. Contudo, não
obstante sua rejeição das inconsistências do idealismo,
algum arcabouço teórico idealista permaneceu no
pensamento vantiliano mesclado com fraseado do teísmo
cristão. A estrutura terminológica da qual Van Til se
apropria envolve “fatos brutos”, “universal concreto”,
“contradição aparente”, “conceito limitante”, etc. Todavia,
um problema “onipresente” que perpassa o campo
investigativo de Van Til é o problema do Um e dos
Muitos.
Desde os pré-socráticos até a filosofia moderna, o
equilíbrio entre unidade e pluralidade tem sido buscado.
Van Til insistiu que a filosofia secular tem fracassado
constantemente em relacionar o Uno e o Múltiplo.
Entretanto, sua convicção era que o cristianismo
106
reivindicou a resposta na sua formulação da doutrina da
Trindade. O paradigma trinitário eleva a unidade e a
pluralidade ao status fundamental. Mas como Van Til
correlacionou esse problema com a doutrina da Trindade?
A adoção do paradoxo por parte de Van Til foi o
facilitador da conexão entre a Trindade e o problema do
Uno e do Múltiplo. Van Til viu a ênfase na racionalidade e
na lógica com grande suspeita. Submeter matérias de fé ao
escrutínio da razão era considerado efeito da rebelião
edênica. Não é a lei da contradição que deve ser juiz dos
dogmas da fé. Antes, a fé paradoxal é um juiz que desafia
a autonomia da razão humana. Isso posto, dizer que Deus
é um em essência e três em pessoa é apenas parte da
verdade. Devemos prosseguir, segundo Van Til, e afirmar
“que Deus, isto é, toda a divindade, é uma pessoa”. Em
outras palavras, Van Til introduz uma nova versão da
doutrina da trindade: “Deus é três em pessoa e é um em
pessoa”:
O fato de Deus existir como Ser
autossuficiente e concreto aparece com
clareza na doutrina da Trindade. Aqui o
Deus que é numericamente um, e não apenas

107
em sentido específico, quando comparado
com qualquer outra forma de ser, agora
parece ter em si mesmo uma distinção de
existência específica e numérica. Falamos da
essência de Deus em contraste com as três
pessoas da Divindade. Falamos de Deus
como uma pessoa; todavia, falamos também
de três pessoas na Divindade. Dizemos que
cada um dos atributos divinos deve ser
identificado com o Ser de Deus, apesar de
estarmos justificados ao fazer distinção entre
eles, também afirmamos que cada uma das
pessoas da Trindade é exaustiva da própria
divindade, ainda que haja uma distinção
genuína entre as pessoas. Unidade e
pluralidade são igualmente últimas na
Divindade. As pessoas da Divindade são
mutuamente exaustivas uma da outra e,
portanto, da essência da Divindade. Deus é
um ser com uma consciência; todavia, é
também um ser com três consciências.65

Van Til introduziu uma contradição no coração


da fé cristã, pois o evangelho, de acordo com ele, deve
ofender e humilhar a soberania da razão.
Com essa nova formulação do Credo trinitário, o

65
TIL, C. V. An Introduction to Systematic Theology. 2ª. ed.
Phillipsburg: P & R Publishing, 2007. In:
ROBBINS, J. W. Van Til: o homem e o mito. Brasília:
Monergismo, 2016. (Locais do Kindle 381-390).
108
próximo passo foi dado sem dificuldade. Já que Deus é
três em pessoa e um em pessoa, unidade e pluralidade são
básicos em Deus. O paganismo fracassa porque, caso
comece com a pluralidade fundamental, não é possível
atingir uma unidade também fundamental. Ou, por outro
lado, começando com uma unidade básica impessoal,
fracassa igualmente em obter a pluralidade. Van Til afirma
que nenhum sistema consegue escapar desse dilema.
O sistema vantiliano, então, insere uma antinomia
na doutrina da trindade e, dessa maneira, obtém unidade e
pluralidade, sendo ambas fundamentais em Deus. Assim
como Bradley, Van Til transfere a resolução das
antinomias para a “realidade absoluta”. Isso significa que
temos acesso à solução do problema? Não exatamente:
O que Agostinho e todos os pensadores
teístas depois dele fizeram é dizer que em
Deus, e mais especificamente no Deus trino,
reside a solução dessa dificuldade. Não
como se o homem pudesse entender a
solução. Pelo contrário, o homem nunca
pode esperar e nunca deve querer entender a
solução. A razão para isto é óbvio. Se o
homem pudesse entender a solução, não

109
seria mais uma solução.66

O homem não obtém a solução do problema com


a doutrina da trindade. Ele apenas tem uma crença
razoável de que o problema é resolvido em Deus. Observe,
contudo, que a crença “razoável” envolve a fé no
paradoxo. É essa crença que possibilita o conhecimento
analógico: “Um corolário da doutrina da Trindade é que o
conhecimento humano é analógico”. Ou seja,
conhecimento para Van Til é a crença “razoável” de que
as antinomias são solucionadas no Ser dialético de Deus.
Conhecimento não é saber como tais antinomias são
solucionadas, mas somente saber que elas o são. Devemos
nos contentar com nosso conhecimento de criaturas. O
conhecimento do Criador é exaustivo e soluciona o dilema
da unidade e da pluralidade. O conhecimento do homem é
parcial e, por isso, analógico. O conhecimento analógico
afirma a solução das antinomias na trindade, mas não tem

66
TIL, C. V. A Survey Of Christian Epistemology.
Phillipsburg, New Jersey 08865: Presbyterian And Reformed
Publishing Co., 1969. 47 p.
https://presupp101.files.wordpress.com/2011/08/van-til-a-
survey-of-christian-epistemology.pdf.
110
acesso a essas soluções. Isso significa que nosso
conhecimento deve ser paradoxal.
A linguagem de Van Til pode confundir o público
não familiarizado com seu pensamento. É comum nos
círculos teológicos o reconhecimento de contradições
aparentes no reino da fé. Todavia, o que alguns significam
com isso é que a contradição aparente pode ser
solucionada especificando melhor os termos que parecem
estar em contradição. Não é isso o que Van Til significa
com paradoxo. Para Van Til, os paradoxos realmente têm
solução, mas apenas na mente divina. Não é tarefa para o
teólogo cristão tentar resolver essas antinomias. Ao se
lançar em tal empreitada, o teólogo assumiu o
compromisso com o racionalismo.
Além disso, as antinomias não são um caso
episódico no cristianismo. Antes, é da natureza da fé ser
paradoxal: “Ora, visto que Deus não é plenamente
compreensível a nós, estamos fadados a cair no que parece
uma contradição em todo o nosso conhecimento. Nosso
conhecimento é analógico e, portanto, deve ser

111
paradoxal”.67 Não somente “todo” nosso conhecimento é
paradoxal, mas também “todo ensino das Escrituras é
aparentemente contraditório”.68 Toda tentativa para
solucionar tais contradições aparentes é sinal de rebeldia
noética, uma vez que tal busca se traduz em enxergar a
realidade como fato bruto. Considerar a realidade como
fato bruto é sugerir que podemos interpretar o universo
sem referência a Deus. A criatura pactual, no entanto, quer
pensar os pensamentos de Deus após Ele e assim descansa
em possuir um conhecimento analógico e paradoxal.
O teólogo Robert L. Reymond observou com
perspicácia os danos irreparáveis que o paradoxo como
possibilidade hermenêutica traz para a fé cristã:
Segundo, embora aqueles que aderem à ideia
da presença de paradoxos na Escritura
estejam preocupados em salientar que tais
paradoxos são apenas aparentes e não
contradições reais, eles dão a impressão de
estarem esquecidos do fato de que, se

67
TIL, C. V. The Defense of the Faith. Phillipsburg: P & R
Publishing, 2008. 61 p.
68
TIL, C. V. Common Grace and the Gospel. Phillipsburg: P
& R Publishing, 2015. 142 p.

112
realmente verdades não-contraditórias
podem parecer contraditórias e se nenhuma
quantidade de estudo ou reflexão pode
remover a contradição, então não há meios
disponíveis de se fazer distinção entre essa
“aparente” contradição e uma real
contradição. Dado que ambas aparecem ao
existente humano precisamente na mesma
forma, e dado que nem com estudo e
reflexão revelar-se-á a sua contradição,
como o existente humano sabe por certo que
ele está “abraçando com paixão” somente
uma contradição aparente e não uma
contradição real?69

O quarto motivo elencado por Reymond é que a


adoção de uma contradição aparente insolúvel impede o
teólogo de detectar uma contradição real. Isso torna
irrelevante toda a apologética, pois no momento em que o
apologeta afirma que seu sistema encontra solução para
antinomias em Deus, o opositor pode alegar que seu
sistema paradoxal também é solucionado em Deus. Além
disso, contradições aparentes irreconciliáveis impossibilita
a tomada de decisão. Caso Van Til esteja certo e toda
Escritura seja aparentemente contraditória, a Bíblia nos
69
REYMOND, R. L. Teologia sistemática: parte 1 e 2. Brasília:
Monergismo. (Locais do Kindle 3004-3011).
113
ordena a crer somente em Jesus e não crer em Jesus. Ainda
segundo Van Til, crer e não crer em Jesus não é uma
antinomia real, mas apenas aparente. Todavia, não há uma
possibilidade epistêmica criacional para resolver tal
antinomia, nem mesmo para a mente regenerada.

114
REALISMO CONCEITUAL TEÍSTA E
SIMPLICIDADE DIVINA
Tomás de Aquino reconheceu que quando os
termos são especificados, é possível reduzir a analogia a
um termo unívoco. A pergunta que surge é: porque
Aquino ainda assim recusou a reconhecer a necessidade de
univocidade no que diz respeito à linguagem teológica?
Esse ponto foi levantado por Alston e, Joshua Harris,
analisando a objeção de Alston, forneceu a resposta em
favor de Aquino. Em resumo, as objeções de Alston são
divididas em duas etapas: 1) a teoria da analogia parece
não satisfazer as condições de verdade; 2) a teoria de
analogia poderia estar fundamentada em uma base
unívoca.
Harris responde que a teoria de analogia tomista
não é adequada às teorias de verdade modernas. No
entanto, se a verdade for entendida conforme a proposta
tomista, então o acesso à verdade é preservado. Para

115
satisfazer a essa condição, Harris propõe que a verdade
seja considerada sob o seguinte prisma: “Quando
pensamos das proposições como sinais de um intelecto
vindo à fruição no ato de julgamento autorreflexivo e não
como ‘objetos abstratos’ por direito próprio, estamos mais
perto da compreensão de Aquino sobre possuir a
verdade”.70 Em outras palavras, a verdade para Aquino é
performativa e pressupõe a composição a posteriori. Aqui
há uma confusão entre o modo de entendimento e o objeto
do conhecimento:
Ora, o intelecto conhece as coisas
imaterialmente, ainda as que em sua
natureza são materiais, abstraindo a forma
universal das condições materiais
individuantes. É impossível, por
conseguinte, que a espécie da coisa
conhecida esteja materialmente no intelecto
[...].71
70
HARRIS, J. L. Analogy in Aquinas: The Alston -
Wolterstorff debate revisited. Faith and Philosophy, 34, 1
janeiro 2017. Diponível em:
https://www.academia.edu/33118788/ANALOGY_IN_AQUIN
AS_THE_ALSTON-
_WOLTERSTORFF_DEBATE_REVISITED.
71
AQUINO, T. D. Compêndio de Teologia. Tradução de
Carlos Nougué. Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro
116
Aquino percebe que o modus significandi não é
equivalente à coisa em essência (res significata). Dessa
forma, a conclusão de Aquino depende da equivalência
entre o modo e o objeto de conhecimento, o que é
questionável. Considerando a natureza do ato de inteligir,
distinta essencialmente do objeto concebido no intelecto,
decorre que o conceito abstrato se aproxima por
semelhança das coisas materiais. Pela via eminentiae esse
procedimento do intelecto é aplicado a Deus e a analogia é
o modo de preservação da fórmula epistêmica Veritas est
adaequatio rei et intellectus (a verdade é a adequação
entre o objeto e o intelecto). Uma vez que o modus
significandi é por composição, segue que a univocidade
deve ser excluída, em virtude da simplicidade divina.
No que tange à segunda objeção de Alston, Harris
esclarece que Aquino apela para três modos distintos de
predicação analógica, duas das quais Harris analisa para
oferecer suporte à teoria da analogia tomista: 1) de acordo

Menino Deus: Concreta, 2015. (Locais do Kindle 2862-2864)..

117
com o ser e não de acordo com a intenção; 2) de acordo
com a intenção e de acordo com o ser. Quando a
predicação ocorre apenas de acordo com o ser, a analogia
retém uma base unívoca ao nível do conceito constatada
em razão da especificação dos termos. Todavia, a
predicação de Deus e de criaturas não se enquadra nesse
“modo” de analogia; antes, é a analogia que engloba a
intenção e o ser “para termos de perfeição predicados de
Deus e de criaturas” (HARRIS, 2017). Qual é o motivo de
Aquino designar esse modo de analogia para predicação
entre Deus e criaturas? Harris responde: “O primeiro
motivo é que os termos de perfeição não designam
essências distintas que são compostas de gênero e
diferença [...] O que isso significa é que ‘ser’ (e também
tudo o que seja conversível com ser) não pode ser um
conceito genérico que seja passível do tipo de ‘adição e
subtração’ que é apropriado desses conceitos [conceitos
genéricos]”. Ou seja, o modo de analogia de acordo com o
ser pode encontrar uma base unívoca porque os conceitos
são especificáveis. Isso não ocorre com o modo de
analogia de acordo com a intenção e de acordo com o ser.
118
As perfeições do ser atravessam todas as categorias
aristotélicas (transcategorial), de maneira que “abrangem a
totalidade do ser, não deixando espaço para a
diferenciação externa”. Assim, as perfeições
transcendentais não podem ser reduzidas a termos
especificáveis e, por isso, devem ser predicadas
analogicamente.
Conquanto os motivos elencados por Harris
sejam plausíveis, não é possível vislumbrar como a teoria
da analogia tomista evita, em última análise, a
equivocidade. Como bem disse Robert L. Reymond, “o
dilema de Aquino é que ele queria manter seu bolo, mas
também queria comê-lo”.72
Assim como Aquino situou sua teoria da analogia
no contexto da simplicidade divina, Van Til também o fez.
Mas Van Til queria evitar o que ele denominou “fatos
brutos”. Sendo assim, a teoria da analogia vantiliana

72
REYMOND, R. L. Teologia sistemática: parte 1 e 2.
Editora. [S.l.]: Monergismo. Edição do Kindle, Locais do
Kindle 2796.

119
começa com a doutrina da trindade (o universal concreto)
ao invés de investigações sobre o “ser”. Para entendermos
a redefinição do dogma trinitário que Van Til propõe
faremos uma breve análise da abordagem de Bavinck, pois
ele exerceu certa influência no sistema vantiliano.
O dogma trinitário foi o sustentáculo da filosofia
revelacional de Bavinck. Após uma introdução
metodológica (prolegômena – vol. I), podemos perceber
que a estrutura de sua opus magnum, Dogmática
Reformada, foi determinada por esse princípio
arquitetônico: o Pai – Deus e a Criação (vol. II); o Filho –
O pecado e a Salvação em Cristo (vol. III); o Espírito –
Espírito Santo, Igreja e Nova Criação (vol. IV).
Quando Bavinck discute a terminologia do
dogma trinitário, ele quer evitar as armadilhas do
nominalismo e do realismo “exagerado”. Ele argumenta
que o realismo excessivo, ao fazer da essência algo
dissociado da subsistência, conduz ao tetrateísmo ou
sabelianismo. O nominalismo, por outro lado, conduz ao
triteísmo. Isso levou Bavinck a afirmar que a
personalidade é coextensiva com a natureza divina:
120
As pessoas, embora sejam distintas, não são
separadas. Elas são a mesma em essência,
uma em essência, e o mesmo ser. Elas não
são separadas pelo tempo, pelo espaço ou
por qualquer outra coisa. Todas elas
participam da mesma natureza e perfeições
divinas. É uma e a mesma natureza divina
que existe em cada pessoa individualmente e
em todas elas coletivamente [...] Deus é
unidade e simplicidade absolutas, sem
composição ou divisão, e essa unidade não é
de natureza ética ou contratual, como entre
os seres humanos, mas absoluta; não é
acidental, mas essencial ao ser divino.73

Essa unidade absoluta tem como consequência o


unitarismo? Não necessariamente. Bavinck explica: “A
glória da confissão da Trindade consiste, acima de tudo,
no fato de que essa unidade, embora seja absoluta, não
exclui, mas inclui diversidade”. Aqui vemos o
delineamento da ontologia assumida por Van Til: unidade
e diversidade são fundamentais em Deus. Para evitar a
contradição, a doutrina da trindade foi formulada
historicamente de tal modo que afirmava a unidade em um
sentido e a diversidade em outro sentido. A Confissão de

73
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. São Paulo: Cultura
Cristã, v. II, 2012. 307 p.
121
Fé de Westminster coloca nos seguintes termos: “Na
unidade da Divindade há três pessoas de uma mesma
substância...”. No entanto, Bavinck parece ir além da
definição clássica. Ele afirma (BAVINCK, 2012, vol. II, p.
310): “As três pessoas são a personalidade divina única
trazida ao pleno autodesdobramento, um
autodesdobramento que surge do ser divino pela sua
própria agência e a partir de si mesmo”. Enquanto o
dogma trinitário apresentava Deus sendo um em essência e
três em pessoa, Bavinck afirma que as três pessoas são “a
personalidade divina única”. Ele parece sustentar essa
afirmação apelando para a simplicidade divina: “a
personalidade é idêntica ao próprio ser de Deus [...] Cada
pessoa, portanto, é idêntica a todo o ser e igual às outras
duas ou às três juntas”. Bavinck então faz a seguinte
citação de Agostinho: “‘Portanto, o que quer que seja dito
a respeito de Deus com respeito a si mesmo é dito também
de cada pessoa individualmente, isto é, do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, e, ao mesmo tempo, da própria
Trindade, não no plural, mas no singular’ (De trin., V,

122
8)”.74 No entanto, o ponto de Bavinck é confuso. Estaria
ele afirmando que a tripersonalidade de Deus, por ser
idêntica ao ser divino, é unipessoal? Caso seja esse o
argumento, Agostinho não dá apoio a Bavinck.
Precisamos explanar a terminologia agostiniana e
bavinckiana para perceber as diferenças entre ambas.
Agostinho escreve:
Estabelecemos como fundamental o
seguinte: tudo quanto se refere a si mesma,
naquela excelsa e divina Sublimidade,
refere-se à substância; mas o que se diz em
referência a alguma coisa, não se diz
substancialmente, mas relativamente. É tão
forte o conceito de mesma substância no Pai,
no Filho e no Espírito Santo, que se atribui
não no plural coletivo mas no singular tudo
o que diz de cada uma substancialmente.75

74
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. São Paulo: Cultura
Cristã, v. II, 2012. 311 p.
75
AGOSTINHO, S. A Trindade. Tradução de Agustino
Belmonte. São Paulo: Paulus, 1994. 201 p. Segue o trecho na
versão latina: [VIII 9] Quapropter illud praecipue teneamus, quidquid
ad se dicitur praestantissima illa et diuina sublimitas substantialiter
dici; quod autem ad aliquid non substantialiter sed relatiue; tantamque
uim esse eiusdem substantiae in patre et filio et spiritu sancto ut
quidquid de singulis ad se ipsos dicitur non pluraliter in summa sed
singulariter accipiatur. {De trin., V, 8}.
123
Embora Agostinho tenha desenvolvido seu ponto
com terminologia confusa, faz-se mister notar que ele
distingue entre predicação absoluta e predicação relativa.
Pelo contexto, a predicação absoluta é concernente à
essência divina e a predicação relativa é concatenada ao
relacionamento de subsistência entre cada pessoa da
Trindade. A relação considerada na predicação relativa é
não-acidental. A predicação relativa não-acidental diz
respeito a uma relação que não causa alteração na essência
divina. Assim, Agostinho formula a doutrina da Trindade
de modo não contraditório, pois ele afirma que Deus é um
em um sentido e três em outro sentido. Tendo discutido a
relação entre “essência” e “pessoa”, Bavinck prossegue
em sua análise, concentrando-se nas distinções entre as
três pessoas. Ele persiste na identificação entre ser e
pessoa (BAVINCK, 2012, vol. II, p. 312-313): “Nele
[Deus], ser Deus e personalidade coincidem
completamente [...] O desdobramento de seu ser em
personalidade coincide imediata, absoluta e
completamente e inclui o desdobramento de seu ser em
pessoas, e também o desdobramento das relações
124
expressas nos nomes ‘Pai’, ‘Filho’ e ‘Espírito’”.
Novamente, Bavinck fundamenta sua conclusão em
Agostinho: “‘Assim como, para ele, ser é ser Deus, ou ser
grande e bom e assim por diante, assim também, para ele,
ser Deus é ser pessoal” (De trin., VII, 6).76 No entanto, o
Doutor da Igreja parece ter algo diferente em mente:
“Com respeito às pessoas, o raciocínio é o mesmo, pois
em Deus não é uma coisa o ser, outra, ser pessoa, mas há
identificação perfeita, já que o ser diz relação a si mesmo;
pessoa, porém, é termo relativo”.77 Quando Agostinho
qualifica o termo pessoa como relativo, ele está evitando a
que se estabeleça uma unidade pessoal numérica, sendo
que a unidade é postulada na relação intratrinitária no
mesmo ser. Em outras palavras, o ser de Deus é pessoal.
Mas isso é totalmente distinto de dizer que o ser Deus é
numericamente uma pessoa e três pessoas:
A excelsa Trindade, porém, um é tanto
quanto os três juntos; e dois são tanto quanto

76
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. São Paulo: Cultura
Cristã, v. II, 2012. 312 p.
77
AGOSTINHO, S. A Trindade. Tradução de Agustino
Belmonte. São Paulo: Paulus, 1994. 252 p.
125
um. E são em si infinitos. Desse modo, cada
uma das Pessoas divinas está em cada uma
das outras, e todas em cada uma, e cada uma
em todas estão em todas, e todas são
somente um.78

Não obstante a dificuldade do tradutor nesse


trecho, cremos que ele foi deveras cuidadoso. Quando
traduziu a última frase latina de modo a dizer que “cada
uma das Pessoas divinas está em cada uma das outras... e
todas são somente um” (ênfase acrescentada), o tradutor
poderia ter optado por: “e todas são somente uma”,
considerando que o termo latino unum pode ser um
acusativo masculino ou acusativo e/ou nominativo neutro.
Todavia, a segunda opção de tradução, isto é, “todas são
somente uma”, significaria que as três pessoas são
somente uma pessoa. No entanto, ao verter para o
português “e todas são somente um”, o tradutor ignora a
concordância nominal e opta por uma tradução semântica
e ideológica, de tal modo que preserva a ideia original sem

78
AGOSTINHO, S. A Trindade. Tradução de Agustino Belmonte.
São Paulo: Paulus, 1994. 231 p.
126
inserir uma contradição na doutrina da Trindade.79 Essa
opção é coerente com o que Agostinho expõe em outro
lugar: “Assim, de um lado, a ideia de unidade seria
sugerida pela expressão ‘uma essência’; de outro lado, a
ideia de trindade, pela expressão: ‘três substâncias ou
pessoas’”.80 Dessa forma, podemos constatar que Santo
Agostinho fala que Deus é um em um sentido e três em
outro sentido. A unidade está fundada na essência e a
pluralidade na pessoalidade.
A linguagem um tanto confusa de Agostinho
parece ter levado Bavinck a falar de uma “personalidade
divina única”. A partir da identificação entre ser e pessoa,
Bavinck afirma a unidade e multiplicidade como
fundamentais em Deus: “Em Deus, também, há unidade
em diversidade, diversidade em unidade. Aliás, essa
ordem e essa harmonia estão presentes nele de maneira
absoluta. No caso das criaturas, vemos apenas uma leve
analogia disso. Nem a unidade nem a diversidade são

79
O trecho latino é: Ita et singula sunt in singulis et omnia in
singulis et singula in omnibus et omnia in omnibus et unum omnia
80
AGOSTINHO, S. A Trindade. Tradução de Agustino Belmonte.
São Paulo: Paulus, 1994. 250 p.
127
absolutas”.81 A ordem éctipa manifesta a seu modo o Uno
e o Múltiplo arquetípico inerente à trindade.
Tendo feito essa digressão, podemos entender
melhor a reformulação do dogma trinitário proposta por
Van Til. Embora permaneça implícita em Bavinck, a ideia
de que Deus é três em pessoa e um em pessoa aparece
nitidamente em Van Til. Esse fato por si só preserva a
possibilidade de que Van Til tenha levado as declarações
de Bavinck além daquilo que o teólogo dogmático tenha
pretendido expressar. Seja como for, essa reformulação da
doutrina da trindade servirá como princípio metafísico de
estruturação do pensamento vantiliano.
Já tivemos oportunidade de ver que Cornelius
Van Til expressou a opinião de que a formulação clássica
do dogma trinitário não expressava toda a verdade. Em
outras palavras, Van Til não rejeita aquela formulação. Ele
simplesmente acredita que ela precisa ser ampliada. Sua
proposta de ampliação é a que segue:
Afirmamos que Deus, isto é, toda a

81
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. São Paulo: Cultura
Cristã, v. II, 2012. 339 p.
128
divindade, é uma pessoa. Observamos como
cada atributo é coextensivo com o ser de
Deus. Somos obrigados a manter isso para
evitar a noção de um ser não interpretado de
algum tipo. Em outras palavras, somos
obrigados a manter a identidade dos
atributos de Deus com o ser de Deus, a fim
de evitar o espectro do fato bruto. De forma
semelhante, observamos como os teólogos
insistem em que cada uma das pessoas da
Divindade é co-terminal com o ser da
Divindade [...] Em oposição a todos os
outros seres, isto é, em oposição aos seres
criados, devemos, portanto, afirmar que o
ser de Deus apresenta uma identidade
numérica absoluta. E, mesmo dentro da
Trindade ontológica, devemos manter que
Deus é numericamente um. Ele é uma
pessoa. Quando dizemos que acreditamos
em um Deus pessoal, não queremos
meramente dizer que acreditamos em um
Deus a quem o adjetivo “personalidade”
pode ser anexado. Deus não é uma essência
que tenha personalidade; Ele é personalidade
absoluta. No entanto, dentro do ser da
pessoa, somos permitidos e compelidos
pelas Escrituras a fazer a distinção entre um
tipo de ser específico ou genérico e três
subsistências pessoais.

Congratulamo-nos com o desejo de Bavinck e de


Van Til em formular uma cosmovisão cristã distintamente

129
trinitária. Insistimos na relevância dessa abordagem. No
entanto, cremos que a reformulação do dogma trinitário de
acordo com a terminologia vantiliana incorre em erro que
deve ser rejeitado como uma inovação sem suporte bíblico
e histórico.
Vejamos, por exemplo, o que Geerhardus Vos
escreve sobre esse dogma:
Em que teses você pode formular a doutrina
da Trindade? a) Existe apenas um ser divino.
A Escritura se manifesta de forma decisiva
contra todo o politeísmo (Dt 6: 4; Is 44: 6;
Tg 2:19). b) Neste único Deus há três modos
de existência, a que nos referimos pela
palavra “pessoa” e que são, cada uma, esse
único Deus verdadeiro. Na Escritura, estas
três pessoas são chamadas Pai, Filho e
Espírito Santo. c) Essas três pessoas, embora
juntamente o único Deus verdadeiro, são, no
entanto, distinguidas umas das outras na
medida em que assumem relações objetivas
umas com as outras [...] d) Embora essas três
pessoas possuam uma e a mesma substância

130
divina, a Escritura nos ensina que, em
relação à sua existência pessoal, o Pai é o
primeiro, o Filho o segundo e o Espírito
Santo o terceiro, que o Filho é do Pai , o
Espírito do Pai e do Filho. Além disso, seus
trabalhos refletem externamente essa ordem
de existência pessoal, já que o Pai trabalha
através do Filho, e o Pai e o Filho trabalham
através do Espírito.82

Podemos observar que “uma pessoa, única


personalidade” no sentido numérico não aparece entre as
teses de formulação do dogma trinitário. Antes, a unidade
é fundamentada na essência e a diversidade está
fundamentada na subsistência.
Então surge a pergunta: tendo em vista que no
dogma trinitário a unidade é arrazoada em um sentido e a
diversidade em outro sentido, o que levou Van Til a ir
além e insistir na unipersonalidade e tripersonalidade

82
VOS, G. J. Reformed Dogmatics: Theology Proper.
Bellingham: Lexham Press, 2015. (Locais do Kindle 932-943).

131
divina? Aqui precisamos retroceder para avançar.
Resumiremos alguns pontos já mencionados para então
dar um passo adiante. Van Til estava convencido de que o
problema do uno e do múltiplo constitui um problema
fundamental na epistemologia. Os filósofos têm
fracassado constantemente nesse ponto. O fracasso reside
em não estabelecer a unidade e a diversidade como
elementares. O idealismo percebeu essa necessidade, mas
também fracassou na escolha do universal, isto é, eles não
conseguiram estabelecer o universal concreto. Van Til,
avaliando a proposta de Bosanquet, diz que:
[...] a unidade deve ser tão fundamental
quanto à diversidade. Se alguém começa
com a pluralidade, e então tenta obter
unidade nesta pluralidade, a unidade será
abstrata e sem função. Por outro lado,
Bosanquet afirma que a unidade será
igualmente abstrata e sem função se a
diversidade não for tão fundamental quanto
a própria unidade.83

83
TIL, C. V. God And The Absolute, p. 25. Disponivel em:
<https://presupp101.files.wordpress.com/2011/08/van-til-
collection-of-articles-from-1920-
1939.pdf#page=15&zoom=auto,0,663.75>. Acesso em: 29
novembro 2017.
132
Sem a pressuposição de unidade e diversidade no
nível básico, todo o conhecimento está fadado a conviver
com o eterno devir. Platão buscou um ponto fixo em seu
mundo das Ideias e Aristóteles, para evitar as
consequências do fluxo constante, postulou o motor
inamovível. Tomás de Aquino identificou o motor
inamovível com o Deus cristão. O Idealismo, buscando se
desvencilhar do aparente, repleto de contradições,
visualizou a resolução das antinomias em um princípio
denominado Absoluto. Construindo sobre a premissa de
que o real é o racional, Bradley inseriu em seu sistema a
Razão Absoluta para dar conta das aparências paradoxais.
Cornelius Van Til se distancia desse Absoluto
abstrato, mas enxerga alguma analogia entre o Idealismo e
o Teísmo. Ele não vê o idealismo como aliado do
cristianismo, mas reconhece uma concordância formal
entre eles. Materialmente, Van Til substitui o universal
abstrato do Idealismo por um universal concreto, isto é, o
Deus trino.
Assim como Bavinck, Van Til diferencia o uno e
o múltiplo relativo (éctipo) e o Uno e o Múltiplo Absoluto
133
(arquétipo). Para evitar a irracionalidade, a unidade e a
diversidade devem ser pressupostas em nível fundamental.
No Deus trino encontramos essa unidade e diversidade
como básicas. Historicamente, a doutrina da trindade foi
desenvolvida com certa matriz platônica. A unidade está
fundada na essência compartilhada pelas três pessoas.
Contudo, a crítica aristotélica aos platônicos parece ter
levado Bavinck a uma suspeita quanto ao “realismo
exagerado” e, pelo que parece, tal suspeita afetou Van Til.
Aristóteles, de fato, atrelou os universais aos particulares,
rejeitando a teoria das Ideias de Platão, pois “não é o
Homem,com efeito, que o médico cura, se não por
acidente, mas Cálias ou Sócrates, ou a qualquer um outro
assim designado, ao qual aconteceu também ser
84
homem”. Se a Ideia-Homem tiver existência real, pensou
Aristóteles, então ela será diferente do homem particular,
como Sócrates e Platão. Então ele questiona: haverá,
porventura, um terceiro homem? Mas para que essa Ideia-
Homem seja unificada no homem sensível será necessária

84
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Abril, 1984. 12 p.

134
então outra Ideia-Homem ad infinitum? As críticas
aristotélicas parecem minar o realismo platônico. As
Ideias, portanto, foram consideradas “puro nome”. Mas
Bavinck está ciente de que o nominalismo conduziria ao
triteísmo, pois nesse caso, os particulares seriam as únicas
realidades. Bavinck opta, pelo menos na terminologia,
pela fórmula aristotélica (universalia in rem). Ele afirma:
O conceito de natureza dos seres humanos é
genérico. De fato, a natureza humana existe
não fora e acima, mas nas pessoas, nos
indivíduos. No entanto, ela existe em cada
ser humano de maneira única e finita. Assim
como os deuses do politeísmo, os seres
humanos são de substância semelhante, mas
não da mesma substância ou de uma
substância. A natureza humana como existe
em diferentes pessoas nunca é total e
qualitativamente a mesma. Por essa razão, as
pessoas não são somente distintas, mas
separadas. Em Deus, tudo isso é diferente. A
natureza humana não pode ser concebida
como um conceito genérico abstrato, nem
existe como uma substância fora, acima e/ou
por trás das pessoas divinas. Ela existe nas
pessoas divinas e é total e qualitativamente a
mesma em cada pessoa.85

85
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. São Paulo: Cultura Cristã,
v. II, 2012. 307 p.
135
Se a natureza humana reside de maneira única e
finita em cada ser humano, então Bavinck compromete o
universal, pois aqui tudo o que resta é o particular. Por
conseguinte, o exemplo que ele usa para sustentar seu
próximo ponto apenas agrava a situação. Ele diz que a
natureza humana é semelhante, e não a mesma, em cada
ser humano, assim como ocorre com os deuses do
politeísmo. Agora, se o cristianismo é verdadeiro, os
deuses do politeísmo não possuem qualquer substância
porquanto o “ídolo nada é” (1 Co 8:4).
Além disso, se há apenas uma natureza humana
semelhante, não podemos dizer que Paulo ou João são
homens, mas meramente que eles se assemelham à
natureza humana, pois “a natureza humana como existe
em diferentes pessoas nunca é total e qualitativamente a
mesma”. Se em cada instanciação a natureza humana é
distinta, então é melhor abandonar a ideia de “natureza”
humana. Ou como diz Clark, “a menos que a definição de
homem esteja completamente em um único objeto, esse

136
objeto não é um homem”.86 Mas Bavinck diz que, em se
tratando de Deus, a natureza “é total e qualitativamente a
mesma em cada pessoa”. No entanto, ele também diz que
a natureza “existe nas pessoas divinas”. Agora se a
natureza divina é total e qualitativamente a mesma e existe
nas pessoas divinas e como há três pessoas, vale indagar,
há também três naturezas divinas? Obviamente Bavinck
rejeita essa conclusão, mas sua desaprovação ao que ele
denominou “realismo exagerado” parece ter como
corolário tal implicação. Evidentemente, essa crítica não
significa um apoio implícito ao realismo platônico tal qual
ele é.
O esforço de Bavinck para evitar, de um lado, o
nominalismo (e, por implicação, o triteísmo) e, de outro, o
realismo exagerado (e, por implicação, o tetrateísmo),
parece ter levado o teólogo holandês a afirmação
aristotélica do universalia in rem. Porém, ao tentar se

86
CLARK, G. H. The Trinity. 3ª. ed. Tennessee: Trinity
Foundation, 2010. (Locais do Kindle 1577-1578).

137
evadir de uma essência abstrata, ele parece ter caído em
maiores complicações.
Essa digressão nos ajudará a entender melhor as
preocupações de Van Til. Assim como Van Til está
formalmente de acordo com o Idealismo, ele concorda em
alguns pontos defendidos por Bavinck. Tentaremos
costurar agora essas pontas soltas.
A criação exibe em toda a parte sua diversidade.
O múltiplo é nosso Sitz im Leben. Mas onde encontrar
unidade em meio a tanta diversidade? O próprio ser
humano está inserido nessa diversidade e, portanto, não
pode ser a fonte última da predicação. Caso queiramos
encontrar significado é preciso pressupor uma ordem
transcendente. Essa ordem transcendente, para abarcar a
realidade, deve encerrar em si o Uno e o Múltiplo, pois
caso o sistema comece com a unidade, ele não derivará daí
a diversidade; e, caso comece com a diversidade, ele não
encontrará a coerência, isto é, a unidade. Dessa forma,
Van Til pressupõe o Uno e o Múltiplo no nível
fundamental. A Trindade – Universal Concreto – é a
precondição de todo significado.
138
Todavia, a fórmula tradicional da doutrina da
Trindade parece manter o espectro do fato bruto. Ao falar
de uma essência e de três pessoas, o dogma trinitário
presume uma unidade meramente abstrata. Por isso,
pensou Van Til, essa não pode ser toda a verdade. Reduzir
Deus a uma unidade abstrata não resolve os problemas
epistêmicos, pois o existencial trino compreende os
particulares e os universais. Da mesma forma que a
“razão” (Vernunft) em Hegel é dialética, o Deus trino para
Van Til é uma unidade de opostos – O Uno e o Múltiplo.
É em virtude disso que Van Til fala de um “universal
concreto”, isto é, o universal que envolve a
individualidade.
Tendo estabelecido que a precondição do
significado é o Universal Concreto, Van Til não poderia
manter uma doutrina da Trindade que mantém o espectro
do fato bruto. Dessa maneira, ele supõe que o dogma
tradicional é parcialmente verdadeiro. Para ser
desenvolvido de modo a evitar o fato bruto é preciso
acrescentar a “verdade” da unipersonalidade divina.
Somente com a afirmação de que Deus é numericamente
139
uma pessoa é possível evitar uma essência abstrata. A
ideia de unipersonalidade divina é defendida por Van Til a
partir da doutrina da simplicidade divina. Ele então
considera a personalidade um atributo e diz que os
atributos são coextensivos com o ser de Deus.
Entretanto, ao manter que Deus é três pessoas e,
ao mesmo tempo, que Ele é uma pessoa, Van Til insere
uma contradição no coração da fé cristã. Mas a saída de
Van Til é bastante engenhosa.
Para Van Til, cada um de nossos pensamentos faz
referência, de algum modo, a Deus. Deus é
incompreensível e inapreensível. Em virtude de Deus ser
incompreensível, nós estamos fadados a cair em
contradição em todo o nosso conhecimento. Mas as
contradições na fé cristã são apenas aparentes. Assim
como as antinomias de Bradley são resolvidas no
Absoluto, as contradições aparentes do cristianismo
encontram solução no Universal Concreto, isto é, na mente
de Deus.
O descontentamento de Gordon Clark, John
Robbins, Robert Reymond, Ronald Nash, dentre outros,
140
com tal engenhosidade vantiliana é sintomático. O leitor
não treinado em lógica talvez se pergunte qual é problema
com a visão trinitária paradoxal de Van Til. Por que a lei
da não contradição é tão importante assim? Explicitar as
implicações da proposta de Van Til pode responder, ao
menos em parte, essa pergunta.
Como dissemos, Van Til tenta fundamentar sua
afirmação na doutrina da simplicidade divina. Dessa
maneira, considerando a personalidade como atributo
divino, ele afirma que a personalidade é co-extensiva com
o Ser de Deus. No entanto, Clark observa: “Agora, alguns
atributos se aplicam igualmente as três Pessoas; por
exemplo, a onipotência e a onisciência. Mas o atributo da
Paternidade e da Filiação não é ‘co-extensivo com o Ser
de Deus’. A filiação87 não é atribuível ao Pai, nem ao
Espírito”.88 Aqui Clark claramente rejeita a proposta de

87
Como alguns mantêm que filiação e paternidade são aspectos da
trindade econômica, é possível verter o argumento de modo a
considerar a trindade ontológica conforme a citação de Agostinho
acima.
88
CLARK, G. H. The Trinity. 3ª. ed. Tennessee: Trinity
Foundation, 2010. (Locais do Kindle 1702-1709).

141
Van Til reafirmando a doutrina da Trindade em
conformidade com o credo Atanasiano e com o
comentário de Santo Agostinho:
Não são, portanto, três deuses, mas um só
Deus, embora o Pai tenha gerado o Filho, e
assim, o Filho não é o que é o Pai. O Filho
foi gerado pelo Pai, e assim, o Pai não é o
que o Filho é. E o Espírito Santo não é o Pai
nem o Filho, mas somente o Espírito do Pai
e do Filho, igual ao Pai e ao Filho e
pertencente à unidade da Trindade.89

O Credo de Atanásio coloca nos seguintes


termos: “Não confundindo as pessoas, nem dividindo a
substância. Porque a pessoa do Pai é uma, a do Filho é
outra, e a do Espírito Santo outra”. Defender que a
personalidade divina é co-extensiva com o Ser de Deus e
então sustentar que esse é uma contradição aparente, ao
invés de uma contradição real, que é plenamente
solucionado na mente de Deus é escolher, diante de uma
bifurcação, a trilha que foge à ortodoxia.

89
AGOSTINHO, S. A Trindade. Tradução de Agustino
Belmonte. São Paulo: Paulus, 1994. 31 p.

142
É aqui, com essa contra contradição aparente, que
fechamos o ciclo da teoria analógica de Van Til. Embora a
doutrina da Trindade tenha sido considerada por último
em nosso estudo, ela é o fundamento para a epistemologia
vantiliana. Conhecer é encontrar unidade em meio à
diversidade. No entanto, isso não é conquistado a
posteriori. Antes, unidade e diversidade devem estar no
início do sistema. Para encontrar coerência no uno e no
múltiplo éctipo devemos pressupor o Uno e o Múltiplo
arquétipo. O ser humano não deve ser o fundamento de
toda a predicação, mas Deus, o Absoluto/Universal
Concreto, é a fonte de todo significado.
Entretanto, não existem fatos brutos no universo.
Todos os fatos são interpretados e conhecer um fato
envolve conhecê-lo no contexto de todas as suas relações.
A ordem criada está atrelada ao decreto do plano eterno de
Deus. Apenas Deus conhece todas as coisas
exaustivamente. O nosso conhecimento é parcial.
Qualquer predicação em nosso ser/pensamento faz
referência a Deus e, como Deus é incompreensível, nosso
conhecimento é analógico e paradoxal. Deus é a
143
precondição do significado. Ele encerra em Si mesmo o
Uno e o Múltiplo. Ele é uma pessoa e três pessoas. Essa
unidade, que em um processo dialético, se desdobra em
diversidade, fornece em nível fundamental aquilo que as
filosofias pagãs buscam, mas sem sucesso.
O Criador possui conhecimento exaustivo. A
criatura, todavia, depende ontológica e
epistemologicamente do Criador. A distinção Criador-
criatura, pelo que parece, nos situa necessariamente no
nível analógico de predicação.
Diante desse resumo, retomaremos a rejeição de
Clark à teoria da analogia, e analisaremos a
compatibilidade da teoria clarkiana da univocidade com a
doutrina da simplicidade divina.
Como já descrevemos as objeções de Clark à
teoria da analogia, iremos apenas resumir alguns pontos e
desenvolvê-los quando necessário.
Para Clark, a analogia sem uma base unívoca
redunda em equivocidade. Aqui precisamos nos atentar
para a definição clarkiana de univocidade e,
especialmente, as aplicações do termo. Enquanto para Van
144
Til univocidade era sinônimo de conhecimento exaustivo,
autônomo e sem referência a Deus, para Clark
univocidade é aquilo que possui o mesmo significado em
seu uso contextual. Clark aplica esse termo às proposições
em geral e à predicação de Deus e das criaturas em
particular.
A definição de univocidade como algo que tem o
mesmo significado em seu uso contextual, pode levar a
rejeição da teoria clarkiana em virtude de um mal
entendido. Ora, se unívoco é o que tem o mesmo
significado, então quando eu digo “Deus é bom” e “O
homem é bom”, o predicado “bom” e a cópula “é” não
podem ter o mesmo significado em ambos os casos. Mas
esse foi o entendimento tomista e, de certo modo, o
vantiliano também. Estaria Clark propondo que Deus e o
homem “existem” e são “bons” no mesmo sentido?
Analisando de modo superficial, parece que se os termos
são unívocos então é exatamente isso que Clark defende!
Mas creio que qualquer cristão em sanidade mental
rejeitaria isso como um completo absurdo. Deus é
autoexistente, ao passo que o homem depende de Deus
145
para existir. Deus é o sumo Bem, ao passo que a bondade
do homem é corruptível.
Em outras palavras, a existência e a bondade
divina, se mantivermos a doutrina da simplicidade, estão
intrinsecamente atreladas ao seu Ser. Isso parece ser um
motivo suficiente para evitar a univocidade em nossa
predicação de Deus e das criaturas. Como Clark mantém a
univocidade, estaria ele rejeitando a doutrina da
simplicidade divina?
A resposta a essa pergunta é negativa e podemos
citar alguns trechos para corroborar a afirmação de que
Clark manteve a doutrina da simplicidade divina: “A
Ortodoxia sustenta que as Três Pessoas são iguais em
poder e bondade. Na verdade, o Ser e a bondade são
idênticos”.90
Aqui parece haver um dilema. A equivocidade é
inadequada em relação à linguagem teológica. A analogia,
sem uma base unívoca, redunda em equivocidade. A
univocidade parece não estar disponível caso a

90
CLARK, G. H. The Trinity. 3ª. ed. Tennessee: Trinity
Foundation, 2010. (Locais do Kindle 709-710).
146
simplicidade divina seja mantida. Mas esse último ponto
precisa ser pressionado: a simplicidade divina é
compatível com a linguagem unívoca?
Aparentemente, Clark não lidou diretamente com
essa questão. Tendo considerado a equivocidade e a
analogia como inadequadas, ele optou pela univocidade.
Dado os problemas irremissíveis que as duas primeiras
enfrentam, Clark pode ter pensado, o caminho para a
última estava livre.
Conquanto Clark não lide explicitamente com
esse ponto, há em sua epistemologia algo que pode
fornecer a solução ou ao menos parte dela. Trata-se do
realismo conceitual teísta. Clark defendia que se
conhecemos algo devemos conhecer o objeto real, não
uma cópia, uma fotografia, uma representação, uma
analogia.
Dentre tais objetos, encontram-se os universais,
que são conceitos abstratos. Tais conceitos não são apenas
sons no ar, apesar do nominalismo; antes, afirma-se a
realidade de tais conceitos. Clark diferencia entre o
realismo de Platão e o de Filo de Alexandria e opta pelo
147
último. A simples menção a esse fato, contudo, pode não
esclarecer a opção de Clark. No entanto, não precisamos
de muita elaboração aqui. Platão separou o Mundo das
Ideias da Mente, e seu demiurgo usou as Ideias para
formar as cópias. Por outro lado, Filo concebeu as Ideias
como tendo sido formadas por Deus para daí criar as
cópias. A menção a Filo, portanto, é relativa à modificação
do platonismo. Se para Platão o demiurgo é inferior ou
subordinado às Ideias, Filo afirma que Deus é o Criador,
inclusive das Ideias:
Pois Deus, precisamente por ser Deus, sabia
de antemão que uma bela imitação em
tempo algum poderia surgir sem ter algo
belo como modelo, e que nenhuma das
coisas sensíveis poderia ser irrepreensível se
não tivesse sido moldada segundo uma ideia
arquetípica e inteligível; e, querendo
produzir tal mundo visível, moldou antes o
inteligível, a fim de utilizá-lo como modelo
incorpóreo e à imagem de Deus, e realizou o
mundo corpóreo, réplica mais recente do
anterior, e destinada a conter tantas espécies
sensíveis quantas inteligíveis já no outro.91

91
ALEXANDRIA, Fílon de. Da Criação do Mundo e Outros
Escritos. São Paulo: Filocalia, 2015. 62 p.

148
No entanto, se Clark opta por seguir Filo ao não
subordinar Deus às Ideias, ele rejeita a inconsistência de
Filo em fazer das Ideias algo que ora é parte e ora é
separado da Mente divina. Em outras palavras, para Clark
Ideias não existem separadas de uma Mente. Se quisermos
ser mais exatos, Clark se posiciona com Santo Agostinho e
mantém não apenas uma teoria das Ideias, mas de
proposições. O fato é que essas ideias ou proposições são
conteúdos da mente divina. O nosso conhecimento
consiste em possuir, ao menos parcialmente, essas ideias.
Em outras palavras, conhecimento é a posse da verdade
por uma mente. Essa transição do céu para a terra presume
a doutrina da Criação, a Revelação, a Iluminação do
Espírito, a Imago Dei. Assim, podemos conhecer o objeto
real porque Deus nos revelou. O realismo conceitual dá
sustentação à teoria da univocidade. Mas seria o realismo
conceitual teísta compatível com a doutrina da
simplicidade divina?
Há, pelo menos, duas possibilidades aqui: a)
Clark abraçou teorias incompatíveis; b) Clark assumiu a
149
compatibilidade a partir da refutação das outras propostas
e não sentiu necessidade de desenvolver esse ponto. É
nossa suspeita que a segunda possibilidade seja o caso. Se
estivermos corretos, a pergunta persiste: o realismo
conceitual teísta é compatível com a doutrina da
simplicidade divina?
No artigo The Simplicity of Divine Ideas Michelle
Panchuk analisa os problemas envolvidos com o realismo
conceitual teísta e a doutrina supracitada92, fornecendo
uma proposta de solução. O problema, conforme Panchuk
descreve, é que, de acordo com a (DSD), Deus está
completamente livre de estrutura ontológica e
complexidade. O (RCT), no entanto, afirma que as
propriedades não são apenas nomes, mas têm existência
real, atribuindo assim, aparentemente, uma pluralidade a
um Ser simples. Como Agostinho declara: “Em Deus,
porém, há identificação entre o ser e o ser forte, justo ou

92
No artigo Theistic Conceptual Realism é identificado pelas
iniciais (TCR) e doctrine divine simplicity pelas iniciais (DDS).
Nesse estudo, utilizaremos as iniciais em português daqui em
diante: Realismo Conceitual Teísta (RCT) e Doutrina da
Simplicidade Divina (DSD).
150
sábio, e se algo afirmares sobre essa multiplicidade
simples ou simplicidade múltipla, está sendo feita
referência à sua essência”.93
Para ser mais específico, o problema surge do
comprometimento com o Principle of Character
Grounding (PCG). Conforme Panchuk o descreve, “este
princípio diz que as propriedades fundamentam
metafisicamente os predicados dos particulares”.94
Panchuk mostra como a doutrina da creatio ex nihilo dá
suporte para a relação entre os conceitos divinos e os
particulares criados. Tal relação presume ainda a doutrina
da onisciência, pela qual afirmamos que Deus conhece
previamente todas as coisas, inclusive aquilo que Ele
decidiu criar. Não discutiremos aqui a relação de
dependência ontológica entre os particulares e os
universais da mente divina.

93
AGOSTINHO, S. A Trindade. Tradução de Agustino
Belmonte. São Paulo: Paulus, 1994. 222 p.
94
PANCHUK, M. The Simplicity of Divine Ideas. Academia
Edu. Disponivel em:
<https://www.academia.edu/30372564/The_Simplicity_of_Divi
ne_Ideas>. Acesso em: 8 dezembro 2017.

151
O aparente conflito, conforme mencionamos,
surge da relação entre (DSD) e o (PCG). A pergunta aqui
não gira em torno da predicação, mas propriamente da
ontologia. Como Deus, sendo um ser simples, pode ter
uma natureza multifacetada? Clark coloca a questão nos
seguintes termos:
Se a existência ou Ser de Deus for
considerado antes e à parte da essência e dos
atributos de Deus, os últimos, segundo uma
analogia química, assumirão os aspectos dos
elementos adicionados, o que parece
comprometer a alegada simplicidade do
Ser.95
Para Panchuk a solução reside em manter o
(PCG) para a ordem criada, enquanto não aplica ao
Criador em virtude da (DDS). Para simplificar, se
mantemos que cada atributo divino existe realmente, e não
é só um nome, tal realismo parece comprometer a
simplicidade divina. Isto é, para Panchuk o (PCG) implica
uma teoria de predicação na qual os atributos divinos são
exemplificações de propriedades no Ser de Deus. Nesse
95
CLARK, G. H. De Tales a Dewey. São Paulo: Cultura Cristã,
2012. 179 p.

152
caso, a essência divina é concebida por composição e isso
é violar a (DSD). Ou se a (DSD) for mantida, segue-se que
Deus é idêntico a uma propriedade e como essa
propriedade é um objeto abstrato, segue-se que Deus é um
objeto abstrato. Para manter a (DSD) sem comprometer a
estrutura ontológica do (RCT) Panchuk propõe duas
assertivas sobre a exemplificação de propriedade: 1) as
exemplificações de propriedade decorrem da relação
criação; 2) a exemplificação de propriedade implicam
finitude.
A partir dessas duas assertivas Panchuk quer
evitar a noção de que os atributos divinos são
exemplificações de propriedades, já que o Ser de Deus é
não criado e infinito. Dessa forma, a exemplificação de
propriedades surge de uma dependência ontológica e
expressa finitude. Mas finitude não é um atributo divino!
Com isso em mente, Panchuk invoca Cusanus e
sua metáfora retirada da matemática, isto é, o círculo
infinito. Para resumir, a analogia retirada da matemática é
para dar suporte à ideia de que no limite do infinito as
coisas perdem sua diferenciação. Panchuk acrescenta:
153
“Assim, algo infinito simpliciter [...] não teria qualidades
particulares, englobando todas elas”.96
Essa digressão colocou em foco o conflito entre o
(RCT) e a (DSD). Delineamos a direção que Panchuk
toma para manter tanto o realismo como a simplicidade
divina. A pergunta óbvia é: podemos encontrar algo nessa
direção na epistemologia clarkiana?
A resposta precisa destacar a implicação da
solução de Panchuk para a teoria da linguagem predicativa
em relação a Deus. A solução de Panchuk reabilita ou
requer a via negationes para o discurso sobre Deus. No
que diz respeito ao conhecimento divino, Panchuk sugere
uma epistemologia não proposicional. Em primeiro lugar
destacamos que a via negationes foi rejeitada por Clark.
Em segundo lugar, conhecimento não proposicional é
incompatível com a teoria de univocidade clarkiana.

96
PANCHUK, M. The Simplicity of Divine Ideas. Academia
Edu. Disponivel em:
<https://www.academia.edu/30372564/The_Simplicity_of_Divi
ne_Ideas>. Acesso em: 1 março 2018.

154
Nos escritos de Clark essa questão não é
abordada com profundidade e nem de forma sistemática. É
possível observar que a (DSD) aparece em textos distintos
de Clark, mas esse não foi um tópico sobre o qual o autor
se debruçou com sua clareza peculiar. Não obstante, seus
insights podem fornecer uma direção sobre como conciliar
a (DSD), o (RCT) e a teoria da univocidade.
O que precisamos destacar aqui é que a (DSD)
deve ser corretamente compreendida. Tal doutrina evita
transpor para o ser de Deus qualquer composição ou
divisão. Essa doutrina é compatível com a asseidade
divina. Deus não deriva Seu ser de outro e tampouco pode
deixar de ser quem ele é (Is 43:10; Êx 3:14). Embora não
haja composição ou derivação no ser de Deus, é inegável
que há distinções reais. Isso não significa que o ser de
Deus é mutável. Antes, a alegação aqui é de que os
atributos são harmônicos, porém não sinonímicos:
“Palavras devem ter sentidos definidos; e quando termos
tais como justiça, poder e amor são tomados como
sinônimos, eles não comunicam pensamento definido.

155
Esse parece o resultado da remoção de distinções reais ou
objetivas do Ser de Deus”.97
Mas se cada atributo for uma propriedade distinta
isso não implica composição no ser de Deus? A resposta
de Clark é que os atributos são idênticos em Deus. No
entanto, isso parece contradizer que as distinções são reais.
A isso Clark responde: “Assim, ainda que justiça e
sabedoria não sejam distintas em Deus, elas têm pontos de
referência na experiência, sendo, portanto, distinguíveis e,
consequentemente, conhecíveis”.98 Isso implica que os
atributos não são conceitos vazios e tal implicação deve
ser mantida para não reduzir Deus a “um Nada divino ou a
um Vácuo celestial”.99 Além disso, “quando Deus é
concebido como uma mente, ele poderá ser único Deus,
além de quem não há outro; mas sua mente precisará não
ser um imenso espaço em branco ou uma confusão
97
CLARK, G. H. De Tales a Dewey. São Paulo: Cultura Cristã,
2012. 179-180 p.
98
CLARK, G. H. De Tales a Dewey. São Paulo: Cultura Cristã,
2012. 180 p.
99
CLARK, G. H. De Tales a Dewey. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
180 p.
156
homogênea”.100 É em virtude de a simplicidade divina não
requerer que Deus seja reduzido a um Uno eleata ou
neoplatônico que o objeto do conhecimento pode ser
proposicional tanto para o homem como para Deus. Nas
palavras de Douglas Douma: “Clark, no entanto,
considerou que era possível que o homem conhecesse as
mesmas proposições que Deus conhece sem compartilhar
de forma idêntica os atributos de Deus”.101

100
CLARK, G. H. De Tales a Dewey. São Paulo: Cultura Cristã,
2012. 180 p.
101
DOUMA, D. The Presbyterian Philosopher: The
Authorized Biography of Gordon H. Clark. Eugene, USA: Wipf
& Stock, 2016. 19 p.

157
158
APENDICE

O denominado Credo ut intelligam é atribuído a


Anselmo de Cantuária, mas remonta a Santo Agostinho.
Uma tradução direta seria: “creio para que possa
compreender”. Essa antiga tradição situa a herança da
igreja em um contexto em que a fé e a razão não estão em
conflito. Mas o desdobramento da ascensão do
pensamento moderno começou a tratar fé e razão como se
fossem antípodas. O corolário dessa visão é a dissociação
entre ciência e religião. Enquanto a ciência pretende se
elevar ao status de oráculo da verdade, a religião foi
relegada ao âmbito do misticismo, do mitológico, do
antiquado e, em última instância, do irracional. A ciência
detém o direito de circular na arena pública, mas a religião
não deve ter espaço fora do quarto secreto! O grande
pensador C.S. Lewis percebeu que essas terminologias
podem ser utilizadas de maneira estratégica: “É
abominável que não raro deem a isso o nome de
Intelectuais. Isso lhes dá a chance de dizer que quem os
159
ataca, está atacando a Inteligência”.102 Ou seja, qualquer
oposição da fé aos dogmas da ciência será recepcionada
como típica reação do obscurantismo. O próximo passo é
silenciar a voz profética no espaço público. A Bíblia deve
ser banida das bibliotecas públicas. A oração do Pai-Nosso
nas escolas é uma afronta à diversidade religiosa. O
pronunciamento contrário ao aborto é fundamentado na
ética religiosa e por isso deve ser deixado de fora do
debate. O homem moderno não pretende voltar a Idade das
Trevas. Carl F. H. Henry, aluno de Gordon H. Clark,
asseverou: “O choque multicultural alcança seu ápice
nesse conflito entre o teísmo cristão e uma ideologia
empírica que considera a crença na realidade sobrenatural
como a marca de um homem não educado e não
científico”.103

Paralelo a isso, podemos nos voltar para a

102
LEWIS, C. S. A Abolição do Homem. 2ª. ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012, p.12
103
HENRY, C. F. H. Deus, Revelação e Autoridade: O Deus que
Fala e Age. São Paulo : Hagnos, 2016, p. 228.

160
resposta da igreja evangélica à crítica secular. Muitos
cristãos estão confusos em meio a diversos ataques. O
cristão comum ainda pensa que política e religião não se
discutem. Outros simplesmente assimilam as descobertas
científicas e tacitamente abandonam os pontos religiosos
que parecem contradizer a ciência. Há cristãos que
rejeitam a historicidade de Adão em prol da plausibilidade
da hipótese evolucionista. Outros ainda querem dar vida
ao cadáver do averroísmo104 como possível postura a ser
adotada. Há aqueles que advogam que fé e moral
coincidem e essa é a estrutura total da religião. E também
têm aqueles que abraçam o irracionalismo.

Faremos a seguir uma breve análise das principais


vertentes cristãs no que diz respeito ao relacionamento
entre fé e razão e, por fim, defenderemos a abordagem
escrituralista tanto bíblica como teologicamente adequada.

1. INTELLIGO UT CREDAM: TOMÁS DE AQUINO

104
Em termos simples, averroísmo é a tentativa de defender uma
verdade dupla e até mesmo contraditória.
161
1.1 Compreendendo para crer

Enquanto Tertuliano não descartava a


possibilidade de oposição entre fé e razão (Credo
quia absurdum), Agostinho de Hipona via a fé como
condição necessária para o entendimento (Credo ut
intelligam). Tomás de Aquino, por outro lado,
vislumbrou a possibilidade de uma teologia natural e
inverteu a proposta agostiniana (Intelligo ut credam).
Isso talvez fique mais claro quando analisarmos a
ideia tomista do conhecimento analógico.
O conhecimento analógico em São Tomás de
Aquino é fundacional para sua visão acerca da
revelação e da razão? Ou seria aquele um assunto
subordinado a esse? Independente da resposta, que
requereria mais aprofundamento do que o necessário
para esse artigo, é indubitável a relação entre a teoria
do conhecimento analógico e a temática desse artigo
na filosofia tomista.
Tomando por base o modelo aristotélico, o
conhecimento analógico é uma espécie de gradação

162
entre univocidade e equivocidade.105 A partir da via
negationis Tomás estabelece o ponto de partida nas
“coisas” e pretende chegar daí ao conhecimento
divino por analogia. Em suas palavras: “Ora, os
nomes que se dizem de Deus e de outras coisas
atribuem-se a Deus segundo alguma ordem que este
tem a estas coisas, nas quais o intelecto considera seu
significado; por isso podemos raciocinar sobre Deus
por outras coisas”.106
Correndo o risco de simplificação, o
desenvolvimento desse conceito tem como corolário

105
Um termo é unívoco quando é utilizado no mesmo sentido, isto é, a
verdade comunicada por Deus deve coincidir em ao menos algum
ponto daquela apreendida pela criatura na revelação. Equivocidade é
quando os termos são os mesmos, mas utilizados com sentidos
diferentes. A equivocidade não deve ser confundida com polissemia,
pois cada sujeito da comunicação toma o termo com um sentido único,
ainda que no contexto tal termo possa mudar sua predicação. Para
utilizar um exemplo simples, quando dizemos que Deus é bom o
termo “bom” não está sendo aplicado com o mesmo sentido na frase
“o picolé é bom”. Quando tomamos as duas frases, o termo bom é
“equívoco”, mas dentro da frase ou do contexto ele ganha sentido
único ou unívoco.
106
AQUINO, T. D. Compêndio de Teologia. [S.l.]: Concreta,
(Locais do Kindle 2224-2226). Edição do Kindle.

163
a teologia natural. Podemos dizer, pois, que a
epistemologia empírica de Tomás é que o leva a dar
um papel de destaque para razão. Mas cabe perguntar
qual é a relação entre razão e fé na filosofia tomista?
Embora rejeite a teoria da dupla verdade,
Tomás diferencia razão e fé e, por conseguinte,
insere um domínio distinto para ambas. Em suas
palavras, “embora se não possa inquirir pela razão o
que sobrepuja a ciência humana, pode-se entretanto
recebê-lo por fé divinamente revelada”.107 Enquanto
a filosofia é resultado da investigação racional, as
asserções da teologia devem ser aceitas por fé. Sendo
assim, razão e revelação são quase equiparadas na
visão tomista, exceto pela prevalência da revelação
quando as conclusões da razão são divergentes dela.
Nesse caso, segundo São Tomás, a razão deve
refazer o caminho para detectar o erro. Para enfatizar
o racionalismo tomista, G.K. Chesterton disse que
Tomás assemelha-se a Tomás Huxley: “Assemelha-
107
AQUINO, S. T. D. Suma Teológica. 2ª. ed. Caxias do Sul:
Livraria Sulina , v. I, 1980, p. 3.

164
se na sua maneira de iniciar o argumento, e é
diferente de todos os mais antecessores e sucessores,
até à época huxleiana. Ele adopta quase literalmente
a definição do método agnóstico de Huxley: ‘seguir a
razão até onde ela for’”.108
Esse entendimento, conforme mencionamos,
propicia a teologia natural. Por conseguinte, São
Tomás elabora sob o fulcro do raciocínio as provas
da existência de Deus. A epistemologia empirista
serve como ponto de partida para tais provas.109

2. SOREN KIERKEGAARD: FÉ E PARADOXO

2.1 Abertura para o irracionalismo na teologia

Se o filósofo dinamarquês foi ignorado no seu


tempo, a neo-ortodoxia tratou de exumar seu
irracionalismo. Mas para entender sua importância para a

108
CHESTERTON, G. K. São Tomás de Aquino. 2ª. ed. Portugal:
Livraria Cruz, 1947, p. 222.
109
Para uma crítica contundente das provas tomistas, veja Gordon H.
Clark em Filosofia da Ciência e a Crença em Deus, Ed . Monergismo,
Edição do Kindle.
165
neo-ortodoxia vale contextualizar o labor teológico após a
Reforma protestante do séc. XVI.
Conforme vimos, São Tomás deu à razão um
lugar de destaque em sua obra. Não sabemos até que ponto
isso contribuiu para o humanismo dos séculos que o
sucederam. O fato é que com René Descartes a razão
começa a sobrepujar a revelação. Uma chave
hermenêutica para esse período, embora não a única, é a
autonomia da razão. Lutero, Calvino, Zwinglio, entre
outros, desafiam a autoridade papal. Eles lançam o
alicerce da Reforma e a pedra angular desse movimento é
o Sola Scriptura. Mas com o descrédito da igreja, outros
pretenderam fazer sua própria leitura do cristianismo. O
matemático Descartes propôs que se começasse então do
zero. A dúvida é seu axioma e a existência é seu
pressuposto, o que pode ser questionado pela
circularidade. A formulação cartesiana que ilustra esse
ponto é: “Cogito ergo sum”. Embora a existência seja
colocada como conclusão na premissa acima, em
Descartes ela aparece como postulado, pois é preciso
existir para duvidar. Seus críticos percebem a
166
possibilidade do ceticismo absoluto em tal esquema, pois é
possível dar um passo além e duvidar da própria existência
ou duvidar da própria dúvida. James W. Sire colocou nos
seguintes termos: “Descartes precisa estabelecer a
habilidade do ‘Eu’ (ego) de arrazoar a partir da
autoconsciência certa para a existência daquilo que é
diferente dele próprio – o mundo e Deus”.110 Retomando a
crítica de Nietzsche, Sire conclui que Descartes não obteve
êxito em estabelecer o “eu” como sujeito pensante.
Conquanto não rejeitasse Deus, Descartes não
toma Deus ou o Sola Scriptura como seu ponto de partida.
Ele parte de si mesmo. Essa é a característica do
antropocentrismo em oposição ao teocentrismo. Essa
transição alcançará seu ápice no Iluminismo. O impacto
do Iluminismo na teologia fez surgir um movimento que é
muitas vezes denominado como liberalismo teológico.
Seguindo o dogma da Razão, o Liberalismo Teológico
erigiu um altar e ofereceu a Bíblia como Holocausto à
deusa Ciência.
110
SIRE, J. W. Dando Nome ao Elefante. Brasília: Monergismo,
2012, p.

167
A cultura dinamarquesa não ficou isenta de
desenvolvimento (GOUVÊA, 2006, p. 13-18) e o
racionalismo teve sua influência ali. Se Tomás de Aquino
havia celebrado a união entre a fé e a razão, Kant havia
banido Deus da investigação racional e reservou um
alojamento deveras limitado para a religião, isto é, seu
papel moral. J. G. Fichte e Schleiermacher deram
continuidade, mutatis mutandis, ao processo de divórcio
entre fé e razão iniciado por Kant. Apesar de Hegel ter
buscado reabilitar a discussão racional da religião, seu
idealismo contribuiu para a proposta de Feuerbach de
reduzir a teologia à antropologia. O resumo do impacto da
filosofia hegeliana feita por Gardner pode ser útil aqui:
Deus e o homem eram de fato um; daí a
distância era pequena até a polêmica [...] de
que o Deus da religião não era mais que uma
externação, de forma imaginária e
idealizada, da própria natureza e de atributos
fundamentais do homem. O conceito de uma
divindade colocada contra o mundo,
exigindo adoração e obediência, era uma
ilusão, um ‘sonho do espírito humano’; o
suposto conhecimento que o homem tinha
de Deus não era, afinal, maior do que o que
possuía de si mesmo [...]. A aspiração
hegeliana de justificar as afirmações da
168
religião em termos racionais alcançara seu
ápice numa teoria que demandava sua
virtual superação. Como o próprio
Feuerbach sucintamente expôs, o segredo da
teologia fora, finalmente, mostrado como
sendo a antropologia.111

Esse clima colaborou para o ressurgimento de


Kierkegaard na teologia protestante.
Soren Kierkegaard (1813 – 1855) foi um filósofo
considerado o pai do existencialismo cristão. Para fins de
nossa discussão, cumpre investigar seu conceito de
verdade e a influência desse conceito na teologia neo-
ortodoxa.
Kierkegaard se afasta da ideia platônica de um
conhecimento inerente que é trazido à tona pela maiêutica.
Ele foi um crítico mordaz da indiferença e da repetição
apática de conceitos recebidos. O individuo não deveria se
perder na massa amorfa. Antes, é na concretude da
existência que se situa a vida. De certa forma, a ênfase de
Kierkegaard na existência exerce um papel importante no
seu entendimento do que é a verdade. A verdade não é

111
GARDNER, P. Kierkegaard. São Paulo: Loyola, 2001, p. 39.

169
proposicional, mas tem um caráter existencial/pessoal.
A possibilidade de transição entre os modos de
existência – estético, ético e religioso – pressupõe a
liberdade do arbítrio e as complexidades envolvidas nessa
escolha não podem ser explicadas pela supremacia da
razão. É então que Kierkegaard insere o paradoxo no
reino da fé e essas tensões contraditórias tem como
corolário a angústia, porquanto o confronto entre cada
modo de existência coloca o indivíduo diante de opções
antitéticas.
Tendo colocado em perspectiva algumas das
principais ideias do filósofo dinamarquês, vamos agora
delinear sua concepção da verdade. De acordo com
Gardner, os próprios dilemas enfrentados por Lessing
ecoava em Kierkegaard. Lessing não concebia um modo
de transição dos fatos históricos para conclusões
transcendentais. Os métodos da pesquisa histórica,
fundados no pressuposto empírico, não comportavam
conclusões não empíricas. “Confrontado por tais questões,
Lessing falou, numa passagem bem conhecida, da
existência de um ‘fosso largo e de mau aspecto, que não
170
consigo atravessar, conquanto frequente e honestamente
tenha tentado saltá-lo” (GARDNER, 2001, p. 77).
Kierkegaard vivenciou dilemas parecidos, mas
lidou com eles a seu próprio modo. Ao rejeitar que a fonte
da verdade resida no homem, mais especificamente na
razão, Kierkegaard propôs que a verdade é um elemento
extramundano. Ele não propôs uma conciliação entre fé e
razão. A verdade deve ser obtida de outro modo. Mas
como o homem tem acesso a essa verdade? Assim como
Sócrates, ele postulou a existência de um professor, mas
esse mestre não poderia ser o próprio homem já que a
verdade não é intrínseca a ele. Portanto, o próprio Deus
deve ser esse mestre. Mas se a verdade advém diretamente
de Deus, sem qualquer mediação, isso pode causar
perplexidade e enfraquecer a liberdade do arbítrio. A
solução apresentada por Kierkegaard é encontrada na
doutrina da Encarnação, a qual ele via como o Paradoxo
Absoluto. Na Encarnação o eterno adentrou na esfera
temporal. O infinito se uniu ao finito. A fé em tal
Paradoxo não pode ser racional e, portanto, exige um salto
do terreno da razão para o terreno da religião. Mas a
171
própria fé não está livre de conflitos paradoxais.
Porquanto o pecado atua como barreira, impedindo o salto
da fé. Logo, a graça precisa operar. A graça seria,
portanto, como uma vara na qual a fé se apoia para
conseguir saltar. O paradoxo reside, na visão
kierkegaardiana, em enxergar a fé como ato da escolha e
como ato da graça. France Farago coloca isso de modo
sucinto: “Olhando-se da esfera do conhecimento racional,
o domínio da fé pertence ao ‘paradoxo’ ou ao
‘absurdo’”.112
No livro O Desespero Humano lemos: “o
fundamental para ele é saber então se quer crer que a Deus
tudo seja possível, se ele tem vontade de ‘crer’ nisso. Mas
não será a fórmula mais apropriada para se perder a razão?
Perdê-la para ganhar Deus, é o próprio ato de crer”.113
Como se percebe, fé e razão estão em relação disjuntiva
como objeto de escolha.

112
FARAGO, F. Compreender Kierkegaard. Petrópolis, RJ: Vozes,
2006, p. 168.
113
KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano. São Paulo: Martin
Claret, 2004, p. 40.

172
O exemplo mais conhecido para ilustrar tal
paradoxo é o caso de Abraão sendo chamado a sacrificar
Isaque. Kierkegaard interpreta tal episódio como
ilustração da distinção entre os modos de existência ético e
religioso. A obediência de Abraão requer uma suspensão
do juízo ético. Caso ele opte pela ética, o absoluto moral
“não matarás” será um impedimento para sua obediência a
Deus. Dessa forma, o salto de fé é um estágio superior não
apenas ao estágio estético, mas também ao estágio ético.
Como o herói trágico, Abraão precisa cumprir sua missão,
não importa quão cruel sejam os resultados. Para
manobrar essa transição do ético para o religioso,
Kierkegaard escreve: “Debaixo de um ponto de vista
moral, a atitude de Abraão exprimi-se dizendo que desejou
matar Isaac, e, debaixo de um ponto de vista religioso, que
teve a intenção de sacrificá-lo”.114 Ou seja, em modo de

114
KIERKEGAARD, S. Temor e Tremor. São Paulo: Livraria
Exposição do Livro, 1964, p. 23.

173
existência Abraão é um criminoso e noutro ele é o herói
trágico.
Não são poucas as dificuldades que surgem dessa
visão. Ao criar tal dicotomia, Kierkegaard inseriu a
possibilidade de um Deus insano. De fato, a separação
entre a fé e a razão nos deixa sem um critério objetivo para
saber se é Deus ou o Diabo que testou a fé de Abraão.
Outras objeções podem ser levantadas, mas isso foge ao
nosso propósito aqui. Cumpre ressaltar que a teologia neo-
ortodoxa se baseou em muitas conclusões desse filósofo
dinamarquês. Para Emil Brunner, Deus e os meios de
conceitualidade são excludentes. Karl Barth manteve
desconfiança quanto à coerência lógica como critério de
verificação da Revelação. Veremos adiante uma
alternativa ao tomismo e à teologia dialética.

3. O RETORNO A ANSELMO: CRER PARA COMPREENDER

3.1 A Proposta Escrituralista


Antes de esboçarmos a proposta escrituralista
sobre a relação entre revelação e razão, vamos definir o

174
que é o escrituralismo. Abraham Kuyper e James Orr
talvez sejam, de certo modo, as fontes que influenciaram o
desenvolvimento de uma corrente apologética denominada
pressuposicionalismo. Os proponentes mais conhecidos
dessa corrente são Cornelius Van Til e Gordon Haddon
Clark. Esses gigantes da fé se envolveram em algumas
controvérsias e divergiram em muitos pontos, mas cabe
destacar aqui que Clark propôs um ponto de partida
distinto daquele defendido por Van Til. Em virtude disso,
W. Gary Crampton evitou aplicar o termo
pressuposicionalismo a Clark e criou um termo mais
adequado, a saber: escrituralismo.

James Orr, Abraham Kuyper, Ronald Nash,


James W. Sire e ouros têm chamado a atenção para o
caráter universal das cosmovisões. Cada pessoa adota,
ainda que não esteja cônscia, uma cosmovisão. Por ser
mais abrangente e mais precisa, apresentamos aqui o
conceito de cosmovisão elaborado por James Sire:

Uma cosmovisão é um compromisso, uma


orientação fundamental do coração, que
pode ser expresso como uma estória ou
175
como um conjunto de pressuposições
(suposições que podem ser verdadeiras,
parcialmente verdadeiras ou totalmente
falsas) que sustentamos (consciente ou
subconscientemente, consistente ou
inconsistentemente) sobre a constituição
básica da realidade, e que fornece o
fundamento sobre o qual nós vivemos, nos
movemos e existimos.115

O escrituralismo não está isento do caráter


inevitável das cosmovisões ou, para dizer de outro modo,
o escrituralismo é ele próprio uma cosmovisão. Tendo
esclarecido isso, apresentamos abaixo a definição de
Escrituralismo fornecida por Gary Crampton:

Escrituralismo é o sistema de crença em que


a Palavra de Deus é fundacional na
totalidade dos assuntos filosóficos e
teológicos. Esse sistema de pensamento
assevera que os cristãos jamais devem tentar
combinar ideias seculares e cristãs. Antes,
todo pensamento deve ser levado cativo à
Palavra de Deus (2 Coríntios 10.5), que é
(parte de) a mente de Cristo (1 Coríntios 2.
16). Nossa mente deve ser transformada
“para que experimente[mos] qual seja a boa,

115
SIRE, J. W. Dando Nome ao Elefante. Brasília:
Monergismo, 2012, p. 179.

176
agradável, e perfeita vontade de Deus” tal
como encontrada nas Escrituras (Romanos
12.2), i.e., nossos pensamentos devem se
tornar progressivamente os pensamentos de
Deus (Isaías 55.6-9), pensamentos divinos
esses que são apenas conhecidos através da
Palavra de Deus. O escrituralismo, então,
ensina que todo o nosso conhecimento deve
ser derivado da Bíblia, que tem um
monopólio sistemático sobre a verdade.116

Essa definição já nos permite antever a relação


entre revelação e razão conforme compreendida pelo
escrituralismo. Desenvolveremos, a partir de então, a
abordagem escrituralista.

3.2 A racionalidade da revelação e a razão como


instrumento de reconhecimento da verdade
O escrituralismo tem como ponto de partida
epistemológico a revelação. Obviamente, isso não exclui o
pressuposto ontológico. Carl Henry escreveu: “A
afirmação de que a revelação divina é o axioma

116
CRAMPTON, W. G. Escrituralismo: Uma Cosmovisão Cristã.
Monergismo. Disponivel em: <http://monergismo.com/w-gary-
crampton/escrituralismo-uma-cosmovisao-crista/>. Acesso em: 26
abril 2017.

177
epistemológico básico do cristianismo, do qual todas as
doutrinas da religião cristã derivam, de modo algum anula
o corolário de que o Deus trino é o axioma ontológico
básico do cristianismo”.117 James W. Sire também
reconhece que para haver revelação deve existir Alguém
para se autorrevelar: “Antes que algo possa ser
corretamente teórico, pré-teórico ou pressuposicional,
aquilo que o constitui deve existir”.118 Mas como o
conhecimento deste Ser Transcendente só é possível
através da revelação, então é plenamente justificável
estabelecê-la como axioma epistemológico.

Essa revelação foi dada de modo mais detalhado


e proposicional nas Escrituras. Mas uma revelação repleta
de contradições não revelaria muita coisa de fato. No que
diz respeito à revelação geral, Clark sustenta que ela não é
completa e não dá sustentação para uma teologia natural.
De acordo com Clark, a inadequação da revelação geral
não é simplesmente em virtude dos efeitos noéticos do
117
HENRY, C. F. H. Deus, Revelação e Autoridade: O Deus
que Fala e Age. São Paulo : Hagnos, 2016, p. 318.
118
Ibid, p. 131.
178
pecado. Mesmo no estado pré-lapsariano, o homem
dependia de uma revelação especial. Essa revelação
especial é não apenas proposicional, mas inteiramente
racional. Por razão Clark entendia as leis da lógica: “uma
revelação racional é aquela que preserva a distinção entre
verdade e falsidade. Ela é em sua inteireza auto-
consistente. Em outras palavras, a razão é identificada
como as leis da lógica”.119

O escrituralismo, pois, começa por afirmar a


racionalidade da revelação. Aliado a essa ideia está a
afirmação de que a razão é um instrumento receptor e
reconhecedor da verdade. Observe que o escrituralismo
não pode ser confundido com o racionalismo, porquanto
não postula que a razão é fonte criativa da verdade. Ela é
instrumento receptor, pois a fonte da verdade é o Deus
trino e sua revelação. Carl Henry acertadamente disse:

119
CLARK, G. H. A racionalidade da revelação
divina especial. (Locais do Kindle 874-876) Brasília:
Monergismo, 2016. Edição do Kindle.

179
“Em lugar de promover a ‘lógica da obediência’ que faz
das Escrituras meramente um testemunho paradoxal da
manifestação transcognitiva, a teologia cristã histórica
enfatiza que Deus se revela de modo inteligível à mente do
homem”.120

Quando Deus diz em sua revelação especial


“vinde e arrazoemos” (Is. 1:18) Ele não quis dizer que
devemos dar um salto de fé e abandonar a razão. Um
compromisso irracional nunca foi exigência do
cristianismo bíblico. Abraão não pode ser usado como
exemplo de que a fé dialoga com o absurdo. Embora a
análise de Kierkegaard torne esse relato muito mais
vívido, suas conclusões dependem de pressupostos que
não se apoiam no texto bíblico. Quando Abraão creu que
Deus podia recobrar Isaque das cinzas, ele já havia
vivenciado o milagre do nascimento de Isaque, pois o pai
da fé sofria disfunção erétil. A menos que o Deus de
Abraão seja impotente para criar o mundo a partir do nada,
formar o homem do pó da terra, isto é, a menos que creia

120
Ibid, p. 334-335.
180
em um Deus impotente, sua fé não pode ser considerada
um absurdo paradoxal.

A pergunta subjacente a essa discussão é: se a


revelação de Deus precisa estar em conformidade com as
leis da lógica, estaria Deus subordinado à lógica? Qual
seria a lógica aplicada por Deus em sua revelação? A
lógica deôntica, modal, clássica, simbólica ou não-
clássica? Essas questões tentam soar como alerta para
aqueles que insistem na necessidade de coerência lógica
na revelação. Todavia, esses questionamentos revelam
certa confusão. Deus certamente não tem nada e nem
ninguém acima Dele e, portanto, não deve se submeter à
lógica, caso a lógica seja considerada uma elaboração da
criatura. Mas quando Clark diz que Deus é a Lógica, ele
não estava reduzindo Deus a um sistema formal de
pensamento. Antes, o que ele queria dizer é que a Lógica é
metafísica. O princípio da identidade não é elaboração de
Parmênides. Antes, flui da própria essência divina.
Quando Deus disse “Eu Sou” isso equivale a uma
identificação completa apenas com Ele mesmo. Também

181
lemos nas Escrituras que Deus não pode mentir (Hb 6:18)
e temos aí a lei da não contradição. Clark não estava
propondo, conforme conclui erroneamente Scott Oliphint,
que a mente de Deus funciona do mesmo modo que a
mente do homem. Oliphint basicamente define lógica
como a ciência da inferência e, portanto, Deus não
mantém relação com a lógica, pois Deus não infere nada.
Se aceitarmos a definição de Oliphint, teremos que
concordar com ele. Mas se ele quer atacar a visão de
Clark, então ele não pode definir lógica a sua maneira e
concluir que Clark estava equivocado. Na realidade, ele
precisa expor a definição de Clark e verificar sua
consistência.

Quando Clark disse traduziu João 1:1 por “No


princípio era a Lógica” ele não estava dizendo que o
conhecimento de Deus é baseado em inferências. Isso
implicaria em um Deus capaz de aprender. Mas será que é
isso que Clark está realmente dizendo? Vejamos o que ele
diz:

Não há nada de estupendo envolvido no

182
reconhecimento de que Deus é onisciente.
Esse é um lugar-comum da teologia cristã.
Mas, com maior profundidade, Deus é
eternamente onisciente. Ele não aprendeu
aquilo que sabe. E uma vez que Deus existe
por si mesmo, independente de tudo mais,
sendo de fato o Criador de tudo mais, só ele
pode ser a fonte do seu próprio
conhecimento.121

Percebemos que Clark não enxergava uma


utilidade idêntica para a lógica no que tange a Deus e à
criatura. Deus não aprende, mas o homem aprende. Deus
não faz inferências. Apesar da relação distinta, contudo,
não se pode concluir que Deus é ilógico. Tampouco
podemos propor que a lógica é anterior ou subsequente a
Deus. A lógica é inerente à natureza de Deus. Ronald
Nash expressa o mesmo ponto da seguinte forma: “A lei
da não contradição não é simplesmente uma lei do
pensamento; ela é uma lei do pensamento porque é antes
de tudo uma lei do ser”.122 James W. Sire também

121
CLARK, G. Uma Introdução à Filosofia Cristã. Brasília:
Monergismo, 2013, p. 75.
122
NASH, R. Cosmovisões em Conflito. Brasília:
Monergismo, 2012, p. 108.

183
expressa o caráter intelectual da fé cristã quando diz: “A
epistemologia está baseada na natureza daquilo que é, não
numa capacidade autônoma, numa razão humana
desvinculada de Deus”.123 Em outras palavras, a verdade é
aquilo que é predeterminado por Deus. Não é a razão
autônoma que cria a verdade. Tampouco a verdade é
resultado de uma convenção social. Em outras palavras, “o
conhecimento humano é possível porque aquele que criou
e conhece todas as coisas exaustivamente é também a ‘luz
dos homens’ (Jo 1:4)”.124 Aqui Sire mantém opinião
concorde sobre o sentido de João 1:1: “O Verbo, Logos (o
verdadeiro princípio da racionalidade, propósito e
significado) caracteriza o próprio Deus”.125

Quando bem entendido e aceito esse ponto, isto é,


de que nosso Deus é o “verdadeiro princípio da
racionalidade”, Clark sugere o próximo passo, que é a

123
SIRE, J. W. Dando Nome ao Elefante. Brasília:
Monergismo, 2012, p. 83.
124
Ibid, p. 85.
125
Ibid, p. 84.

184
relação da lógica e da Escritura. Esse ponto já foi
previamente mencionado quando tratamos da
racionalidade da revelação. Para Clark, a Escritura é o
desvelar da mente de Deus. Portanto, os reformados não
podem ser legitimamente acusados de biblicismo. Tal
acusação reduz a Escritura a um amontoado de tinta preta
em um papel. Esse não é o caráter da Bíblia. Papel e tinta
são efêmeros e, portanto, não podem ser a Palavra de
Deus. A Palavra de Deus não passará: “A Bíblia consiste
de pensamentos, não de papel; e os pensamentos são os
pensamentos do Deus onisciente e infalível, não os de
Inocêncio III”.126 A insistência de Clark na racionalidade
da revelação deixa alguns cristãos desconfortáveis. Isso
parece reduzir Deus a um “conjunto de proposições”
estéreis ou elevar tais proposições ao status divino. Ciente
dessa confusão, Clark escreveu:

Assim é que Deus, a Escritura e a lógica


estão juntamente ligados. Os pietistas não
deverão se queixar que a ênfase na lógica é a

126
CLARK, G. Uma Introdução à Filosofia Cristã. Brasília:
Monergismo, 2013, p. 82.

185
deificação de uma abstração, ou da razão
humana divorciada de Deus. A ênfase na
lógica está rigorosamente de acordo com o
prólogo do Evangelho de João e não é senão
o reconhecimento da natureza de Deus.127

O próximo estágio na argumentação de Clark é


esclarecer a relação entre a lógica e o ser humano. Em
Colossenses 3:10 Paulo escreveu: “E vos vestistes do
novo, que se renova para o conhecimento, segundo a
imagem daquele que o criou”. Clark invoca esse texto para
afirmar que “a imagem consiste principalmente em
conhecimento, racionalidade ou lógica”. Observe que ele
usa o advérbio “principalmente” e não “exclusivamente”.
Clark não rejeita a necessidade de retidão, mas ele
demonstra que a retidão está relacionada à obediência aos
preceitos de Deus e isso pressupõe compreender esses
preceitos. Ética e racionalidade estão inter-relacionadas,
apesar de Kierkegaard ter sugerido que a escolha moral de
Abraão excluía toda consideração racional. Clark não nega
a doutrina da depravação total. Todavia, ele enfatiza que o
pecado afeta em graus variados as faculdades do homem.
127
Ibid, p. 85.

186
Ele não minimiza os efeitos noéticos do pecado, porém
salienta que a imagem de Deus não foi erradicada em
virtude da Queda.

Abraham Kuyper, em seus escritos, elabora o


conceito de “fronteiras” preocupado em manter a distinção
entre a criatura e o Criador. Herman Dooyeweerd também
adota esse conceito. A teoria da Fronteira pode ter sua
validade, mas sua aplicação pode ser desastrosa. Receosos
de que o destaque que Clark dá à lógica apague a fronteira
entre Criador e criatura, alguns estudiosos estão fazendo
péssima exegese do texto de Isaías 55:8: “Porque os meus
pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os
vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor”. Ao
invés de considerarem o contexto, esses estudiosos isolam
o texto supracitado e dão a ele uma interpretação
epistemológica. Dessa forma, a lógica de Deus não é a
nossa lógica. Percebendo as implicações dessa
interpretação, Clark responde:

Se assim fosse [...], significaria que não


somente todas as nossas adições e
subtrações estão todas erradas, mas também
187
que todos os nossos pensamentos, tanto na
história como na aritmética, estão todos
errados. Se, por exemplo, pensarmos que
Davi foi rei de Israel, e os pensamentos de
Deus não forem os nossos, logo segue-se
que Deus não pensa que Davi foi rei de
Israel. Na mente de Deus, é possível que
Davi tenha sido o primeiro-ministro da
Babilônia.128

Através da teoria da fronteira, Dooyeweerd


desenvolve as esferas de lei, dentre as quais se encontra o
aspecto analítico (lógica, pensamento). Essas esferas de lei
(Dooyeweerd listou quinze aspectos) só se aplicam deste
lado da fronteira, uma vez que Deus é o Legislador. Isso
introduz o divórcio entre a lógica humana e a divina.
Ronald Nash denuncia a incoerência dessa aplicação: “se o
pensamento humano e os conceitos humanos não podem
nunca alcançar a verdade sobre Deus, de onde os
dooyeweerdianos obtêm seu conhecimento abundante
sobre Deus?”.129

128
CLARK, G. Uma Introdução à Filosofia Cristã. Brasília:
Monergismo, 2013, p. 91.
129
NASH, R. Cosmovisões em Conflito. Brasília: Monergismo,
2012, p. 102.

188
Esse clima anti-intelectual não está restrito a uma
torre de marfim. Ele tem invadido nossas igrejas e
seminários. Recentemente ouvi de um professor, no
seminário, que a teologia é um mal necessário. É contra
essa tendência antibíblica ao irracionalismo que Clark
escreveu o livro Em Defesa da Teologia. Ele expressa um
lamento inicial: “A teologia, aclamada no passado como ‘a
rainha das ciências’, hoje mal chega à posição de lavadora
de pratos”.130 Mas Clark mostra que a teologia, longe de
ser um mal necessário, é a maneira pela qual Deus conduz
os homens ao pleno conhecimento da verdade. Se o
intelecto é descartável em matéria de fé, então não há
necessidade de pregar o evangelho. Nesse caso, Francisco
de Assis estaria certo: “pregue o evangelho. Se necessário,
use palavras”. Mas não há possibilidade de pregar o
evangelho sem o uso de palavras. Alguém poderia
contrapor dizendo que é possível pregar com os “atos”.
Todavia, os atos, não constituem, em qualquer ocasião,

130
CLARK, G. Em Defesa da Teologia. Brasília: Monergismo,
2010, p. 17.

189
uma pregação. Todo ato deve ser interpretado, pois o ato
em si nada diz. Vincent Cheung usa o exemplo de um
homem que toma uma velha senhora pelo braço para,
juntos, atravessarem a rua. E então ele leva o leitor a
considerar as opções possíveis. A observação apenas não
fornece informações sobre o homem, sobre a senhora e
sobre a natureza do ato, etc. As suposições do observador
sempre serão inconclusivas e dependerão não do ato
observado, mas dos preconceitos do observador. Cheung
diz que o observador pode concluir que o homem está
ajudando a senhora por compaixão. Mas “ajuda” e
“compaixão” não descrevem necessariamente esse ato.
Cheung sugere que esse homem talvez seja um
sequestrador. E ele diz que não ajuda supor que o homem
é gentil, pois isso leva a outros problemas, como acreditar
que sequestradores não podem ser gentis.131

Além dos problemas acima, poderíamos supor


que aquele homem realmente estivesse ajudando a velha

131
CHEUNG, V. A Luz das Nossas Mentes. Brasília: Monergismo,
2009, p. 43-44.

190
senhora. Mas o que esse ato diz sobre nossa necessidade
como pecador? Para qual solução esse ato aponta? E se
esse homem fosse muçulmano, ou ateu? Ele poderia até
mesmo ser um cristão, mas o seu ato não comunicaria a
graça de Deus revelada no evangelho. Em nenhum lugar a
Bíblia sugere essa tolice de pregar sem palavras! Por isso
reconhecemos que a abordagem escrituralista é
extremamente relevante para a apologética e para a
teologia.

O escrituralismo não reconhece uma razão


autônoma, como é o caso do racionalismo ou do tomismo,
mas insiste que a fé mantém íntima relação com a razão.
Não é o caso da investigação racional ser uma fonte de
conhecimento, enquanto a revelação contém outra ciência
não alcançada pela razão. A razão é um instrumento de
reconhecimento da verdade e a coerência lógica é sempre
um critério negativo para a verdade. Enquanto a
consistência lógica não recomenda, por si só, a fé cristã,
ela elimina as cosmovisões rivais ao demonstrar suas
contradições inerentes. Dessa maneira, não é o caso de a fé

191
ter o seu lugar onde a razão encontra seu limite, como se a
fé e a razão fossem compartimentos distintos nas
faculdades humanas. A fé ou crença é sempre resultado do
exercício racional. Isso não exclui a necessidade do novo
nascimento, mas nos dá uma visão melhor sobre o que
vem a ser a regeneração, a saber, Deus brilhando em nosso
entendimento (2Co 4:6), de forma que cremos em virtude
da iluminação do Espírito. Nesse caso a fé envolve a
faculdade racional e a volitiva, sendo que a iluminação do
Espírito nos permite exercer a fé, que é assentimento
intelectual. Carl Henry afirma que: “Os homens não se
apropriam da revelação cristã por intermédio de uma
convicção alcançada apenas com base num argumento
racional. A fé pessoal é uma dádiva do Espírito Santo, mas a
verdade é a provisão da revelação de Deus, e o Espírito usa a
verdade como meio de persuasão e de conversão”132.

O autor de Hebreus escreveu: “Pela fé


entendemos que os mundos pela palavra de Deus foram

132
HENRY, C. F. H. Deus, Revelação e Autoridade. São Paulo:
Hagnos, 2016, p. 332.

192
criados; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do
que é aparente”. Fé e entendimento não são antitéticos,
mas caminham juntos. Também o apóstolo Paulo
escreveu: “Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai
as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à
destra de Deus. Pensai nas coisas que são de cima, e não
nas que são da terra; Porque já estais mortos, e a vossa
vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3:1-3). A
nova vida, recebida pelos crentes em Cristo, não exige a
suspensão do raciocínio. Pelo contrário, é imperativo que
os cristãos pensem! Em Romanos 12:1-2 lemos:

Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de


Deus, que apresenteis os vossos corpos em
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,
que é o vosso culto racional. E não sede
conformados com este mundo, mas sede
transformados pela renovação do vosso
entendimento, para que experimenteis qual
seja a boa, agradável, e perfeita vontade de
Deus.

O culto a Deus não envolve uma sequência de


saltos de fé, levando a pessoa a abandonar a razão para
acolher o absurdo, o paradoxal. É na realidade um culto
racional e que exige constante renovação do entendimento.
193
Esse entendimento só pode ser renovado pelo exercício
racional na compreensão das Sagradas Letras, que nos
tornam sábios para a vida eterna (2Tm 3:15). A fé não
pretende nos tornar amebas. Antes, são os incrédulos que
são irracionais e tudo aquilo que tem aparência de
sabedoria não passa de pura tolice: “Diz o tolo em seu
coração: ‘Deus não existe!’ Corromperam-se e cometeram
injustiças detestáveis; não há ninguém que faça o bem”
(Salmos 53:1). Novamente as Escrituras dizem:
“porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o
glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se
tornaram nulos em seus próprios raciocínios,
obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Rm 1:21). Em
seu livro Uma Visão Cristã dos Homens e do Mundo,
Clark demonstra a íntima relação entre fé e conhecimento:

O homem que possui a verdade de que Deus


existe, embora suas razões para crer sejam
filosoficamente escandalosas, está em
melhor condição [...] que o homem que, com
os argumentos mais eruditos, tenta justificar
a afirmativa falsa da inexistência divina. E,
como o próprio filósofo, de posse de muitas
verdades, jamais escapa de modo total da
desordem, e sua sistematização nunca estará
194
completa, há apenas uma diferença de grau
entre ele e a multidão comum. Caso se diga
que a última tem apenas fé, e não
“conhecimento”, pois suas crenças não estão
integradas por completo, a resposta é: todo
conhecimento é fé.133

O Ph.D J. P. Moreland gastou quase sete páginas


para elencar versículos bíblicos que demonstram o caráter
intelectual da fé cristã.134 Ele reconhece que sua lista não é
exaustiva ao dizer em uma nota de rodapé que o autor D.
A. Carson chamou atenção para uma lista mais longa.
Moreland assevera: “A essência da fé – bíblica ou não – é
a convicção ou confiança, e alguém pode ter fé em algo
(como uma cadeira) ou alguém (como o pai ou a mãe, o
presidente ou Deus), e ter fé na verdade de uma
proposição [...]. Nas Escrituras e na vida cotidiana, a fé
apropriada se fundamenta em conhecimento e é tão boa
quanto seu objeto”.135 Moreland alerta que não está

133
CLARK, G. H. Uma Visão Cristã dos Homens e do Mundo.
Brasília: Monergismo, 2013, p. 305.
134
MORELAND, J. P. O Triângulo do Reino. São Paulo: Vida,
2011, p. 154-160.
135
Ibid, p. 174.
195
sugerindo que quem tem fé compreende todas as coisas e
nem é essa a sugestão do escrituralismo. Mas a proposta é
que, quer no âmbito da fé quer no âmbito secular, o
conhecimento e fé caminham juntos.

CONCLUSÃO

Buscamos elucidar a relação entre fé e razão e


destacamos a importância de ter um entendimento correto
acerca dessa relação. Não foi possível aqui lidar em
profundidade com o tema, mas as referências
bibliográficas podem ser consultadas por aqueles que
sentirem a necessidade de uma investigação mais
detalhada. Descrevemos brevemente a posição tomista,
que coloca razão e revelação lado a lado, exceto quando a
razão contradiz a fé. Também descrevemos a visão da
teologia dialética. Tocamos apenas de leve nas correntes
racionalista e empirista. Por fim, descrevemos com mais
detalhes o escrituralismo, que propõe não apenas um
retorno a Anselmo e Agostinho, mas desenvolve mais
coerentemente a visão Credo ut intelligam (creio para que
possa compreender). Entendemos que essa visão está de
196
acordo com a teologia reformada com sua ênfase no Sola
Scriptura. Conforme vimos, no escrituralismo a Escritura,
sendo Palavra de Deus inerrante e infalível, é o axioma
básico da epistemologia cristã. Isso não exclui o
pressuposto ontológico. Deus não pode se contradizer. Ele
não pode ser Deus e Diabo ao mesmo tempo. Ele é
eternamente Deus. Sua Palavra também não se contradiz.
As aparentes contradições das Escrituras podem ser
resolvidas pelo estudo sério e com uma exegese
comprometida com o caráter inerrante das Escrituras. Por
fim, a revelação de Deus, cujo depósito é a Bíblia, fala ao
intelecto do homem e exige que ele faça distinção entre a
verdade e o erro. Entre o que fala a Palavra de Deus e o
falso profeta. Como Henry disse: “A fé cristã é uma fé
racional que se apoia no fato e na verdade da revelação,
uma fé alicerçada na automanifestação de Deus em Cristo
como a realidade definitiva e a razão absoluta. Ela
convida, portanto, à reflexão racional, à decisão racional e
ao serviço racional”.136 Essa ênfase na racionalidade da fé
cristã não tem o objetivo de promover uma redução do

136136
Ibid, p. 398.
197
divino às categorias do pensamento, pois reconhecemos
que conhecemos apenas em parte e a vida eterna consiste
no conhecimento do Senhor. Mas conhecimento parcial
não é conhecimento paradoxal ou contraditório. Insistir
nisso é perceber que o irracionalismo, a ignorância acerca
das bases cristãs e a dimensão subjetiva que persiste em
reduzir o cristianismo à práxis, ignorando suas bases
doutrinais, tornam o cristianismo mais vulnerável ao
ataque dos céticos. Carl Henry alertou: “Submergir Deus
em dados inexprimíveis é o primeiro passo para levar a
deidade à morte. Tão logo Deus é empurrado para a beira
da linguagem, o cristianismo será criticado, e não
surpreendentemente, por tentar defini-lo”.137 Sendo assim,
concluímos esse artigo com as palavras de nosso Senhor
Jesus Cristo: “Não é sem motivo que errais tanto, pois não
compreendeis as Escrituras nem o poder de Deus!” (Mc
12:24).

137
HENRY, C. F. H. O Resgate da Fé Cristã. Brasília: Monergismo,
2014, p. 42.

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