Sei sulla pagina 1di 98

Ministério da Cultura apresenta

Banco do Brasil apresenta e patrocina


d i s t r i b u i ç ão g r at u i ta . v e n da p r o i b i da .

Realização
pa l e s t ra n t e s

Gaudêncio Fidelis
Marília Panitz
Marisa Mokarzel
Paulo Herkenhoff
Raul Antelo
Rejane Cintrão

curadoria

Fernando Lindote

Centro Cultural Banco do Brasil – São Paulo setembro de 2015


O Ministério da Cultura e o Banco do Brasil
apresentam VETORES : artes visuais em debate, ciclo
de seis palestras que discutem questões do circuito
brasileiro de artes visuais na atualidade.

O desafio de discutir políticas culturais que lidem


com a diversidade da arte produzida no país e que
dialoguem com a crescente demanda de um público
em formação tem um peso bastante grande no atual
pensamento da arte.

Com curadoria do artista plástico e orientador em


artes visuais Fernando Lindote, as palestras trazem
profissionais de diferentes regiões do país com
atuação nas áreas da crítica de arte, curadoria e
ensino para propor o intercâmbio de conhecimentos
e um diverso painel de abordagem, a partir de suas
reflexões e de experiências em locais distintos do país.

O Centro Cultural Banco do Brasil sempre teve a


preocupação de contribuir com o pensamento crítico
e com a formação de público para a arte. E, com o
registro das palestras do ciclo VETORES : artes visuais
em debate, realizada em setembro de 2015, contribui
para amplificar e democratizar a discussão sobre as
estruturas da arte e possíveis alternativas.

Centro Cultural Banco do Brasil


Pensar a produção de artes visuais no Brasil, as
circunstâncias estruturais que determinam muitos
de seus desdobramentos e as possibilidades de
circulação dessa produção pelo país constitui uma
demanda longe do esgotamento. Seja por injunções
históricas que derivam em práticas de acomodação
dos repertórios visuais, seja por políticas culturais
excludentes, as artes visuais no país ainda evidenciam,
no resultado do que se vê no circuito, uma distância
entre o rico e diversificado acervo da produção de arte
realizada no país e a normativa redutora representada
pelos modos de circulação de arte entre nós.

O projeto VETORES : artes visuais em debate


contribui para a ampliação do entendimento da
diversidade da produção artística atual no Brasil
ao promover o encontro com curadores e críticos
que atuam em várias regiões do país e que têm
abordagens específicas acerca da produção de arte
e práticas realizadas a partir de pontos de vista,
locais e instituições muito diferenciados. O projeto
VETORES : artes visuais em debate objetiva
apresentar parte do pensamento sobre arte no Brasil,
na visão de seus construtores.

Fernando Lindote, curador do projeto


Sumário
7 A proto s s emel h a n ça foto g rá f ica :
trabal h o de luto
Raul Antelo

21 A rte Co n tempo râ n ea : c ura do r ia pa ra


n ovo s públ ico s
Rejane Cintrão

33 Co l ec io nis mo n o M A R , um mus eu pa ra
educação
Paulo Herkenhoff

51 M o delo s c urato r ia is de expo s içõ es da


pro dução a rtís tica da A mér ica L ati n a
Gaudêncio Fidelis

69 P erc ur s o s des co ntínuo s de uma a rt e


em pro c es s o : B el ém a n o s 2 0 0 0
Marisa Mokarzel

83 O c en tro fo ra do c en tro : r eflexõ e s


s o b r e um c irc uito em co ns tr ução
Marília Panitz
s e bas t i á n f r e i r e

Raul Antelo (Santa Catarina)


É graduado em Letras Modernas pela Universidad de
Buenos Aires e em Língua Portuguesa pelo Instituto Superior
del Profesorado de Lenguas Vivas, com mestrado e doutorado
em Literatura Brasileira pela USP. Atualmente é professor titular
da Universidade Federal de Santa Catarina. Publicou os livros
Maria com Marcel: Duchamp nos trópicos, A ficção pós-significante,
Transgressão & modernidade, Potências da imagem, Crítica
acéfala, entre outros.

Para receber o pdf da palestra, envie um e-mail para:


vetoresagendamento@gmail.com

6
A protossemelhança fotográfica:
trabalho de luto

Raul Antelo: Boa noite. Quando fui convidado para abrir essa de dois precursores latino-americanos desse debate, Victor
série de encontros, achei que a fotografia podia ser um bom Delhez e Sílvio da Cunha, não apenas nas suas experiências
tema de início, porque acho que a fotografia coloca uma série fotográficas, como também nas ponderações críticas deles
de problemas: ela abre um campo de reflexões para a estéti- a respeito das imagens. E assim poderemos melhor captar,
ca, na medida em que coloca o problema de ler o que nunca como um eco desdobrado dessas imagens e reflexões, a
foi escrito, isto é, o trabalho de uma arquifilologia, uma vez sombra de dois modernistas: Borges e Drummond.
que algo contingente, como uma mancha ou uma sombra, Comecemos, de início, pelo caso de Victor Delhez. Amigo
torna-se nela uma reflexão sobre o tempo. A fotografia, como de Fernand Berckelaers (Michel Seuphor), o fundador, com
prótese perspectivista, abre assim uma nova dimensão à arte, Torres García, do Cercle et carré, e tornado mais tarde teó-
colaborando para o incipiente domínio do museu, mesmo rico da arte concreta, aquele mesmo que fornece a Clarice
que imaginário, à maneira de Malraux, porque todo museu, Lispector a chave compositiva de Água viva (“Tinha que
no fundo, não deixa de ser um museu de fotografia. Diríamos existir uma pintura totalmente livre da dependência da fi-
até que, pelo contrário, na suspensão da percepção, Bataille gura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa
ou Blanchot já apontaram no museu, conseguiríamos captar alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal
o espectro de uma destinação, o museu como câmara de re- pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do
clusão e confinamento da imagem. espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se
Em sua origem, enquanto imago, a imagem arrebata um torna existência”), Delhez nasceu numa próspera família da
rosto da morte, tira e retira essa imagem do aniquilamen- Antuérpia e estudou na Real Academia de Belas Artes daque-
to e a restitui enfim à vida. Dela se obterá um molde para la cidade. Começou sua carreira como gravurista em madeira.
nele despejar cera quente, para assim obter uma tiragem, Em 1922, o amigo Seuphor assina o prefácio de Tien vlaamse
e, quando, no futuro, os novos membros da família evoca- koppen (Dez cabeças flamencas), obra em colaboração com
rem suas imagens ancestrais, poderão ainda retirar novas Maurits Lambrechts, editada pela revista construtivista Het
cópias a fim de que a imagem, assim reproduzida, garan- Overzicht (1921-1925).1 Seuphor (cujo nome é anagrama de
ta sua função de transmissão genealógica e honorífica. A Orpheus) foi seu guia, nas noites de Montparnasse, apre-
imagem, nesse sentido, é tanto um objeto de culto priva- sentando-lhe Picasso, Soupault, Mondrian e muitos outros.
do, voltado aos ancestrais, à morte e à família, quanto um Premido, porém, por questões econômicas, agravadas pela
objeto de culto público, o “direito de imagem”, as pompas morte, num acidente de carro, de seus pais, Delhez vem
fúnebres, os rituais de enterro. A imagem, como nos mos- para a América Latina em 1926; mora inicialmente em Bue-
tram os trabalhos de Didi-Huberman, institui a questão da nos Aires, onde passa a trabalhar como decorador e ganha
semelhança para além de toda a esfera artística, pois ela seu sustento como representante de L’Esprit Nouveau.
aparece mais como um objeto do corpo privado (o rosto Expõe, em 1930, suas imagens surrealistas, abstratas, cola-
daquele cuja imagem é fabricada) que retorna por essa via gens refotografadas, montagens e raiogramas, na Asociación
à esfera do direito público. Vou tentar mostrar o caminho Amigos del Arte, no Primeiro Salão Internacional de Arte

7
Fotográfica de Buenos Aires. Um periódico local recolhe amplamente ilustrativa do debate estético de entreguerras.
suas ideias: Com efeito, Georges Bataille, ao pensar o homem mo-
derno como sujeito acéfalo, julgava poder exprimir mitolo-
La buena máquina fotográfica es um ojo magnífico que nunca se
gicamente a soberania votada à destruição, e nesse ponto
equivoca ni quiere engañar. Está dotado de psicología robusta y
a ideia confundia-se com a do super-humano de Nietzsche,
sincera, de una sola pieza, donde actúan correctamente todos los
elementos físicos que la constituyen. Es, entre otras cosas, um
já que a universalidade de Deus, longe de ser pacífica, torna-
buen detective. Cuando interpreta lo hace por leyes inamovibles, se uma fonte de inquietude, e o tão desejado apaziguamen-
que pueden conducir a resultados infinitamente variables. Los to só se produz se a divindade permanecer no isolamento
fotogramas son el primitivismo inconsciente del arte fotográfico.2 mais imóvel. Essa existência universal, eternamente inaca-
bada, em um mundo semelhante a uma ferida que sangra,
Voltaremos à ideia da fotografia como detetive. Digamos, criando e destruindo os seres particulares finitos, é o que
no entanto, que, ainda em Buenos Aires, Delhez conhece al- conhecemos como morte de Deus. Delhez, como Seuphor,
guns artistas locais, como o conterrâneo Julio Perceval.3 Em pertencia ao círculo fortemente influenciado por Jacques
1931 e 1932, ilustra Les Fleurs du Mal, de Charles Baudelaire, Maritain, como Manuel Bandeira, Mário de Andrade ou Muri-
que também apresenta, em Amigos del Arte, na primave- lo Mendes,5 e sua leitura de um Baudelaire católico coincide
ra de 1933.4 Em seguida, acompanhando imaginariamente com a de Paul Claudel, Benjamin Fondane, Yves Bonnefoy.
os passos de um amigo parisiense, St. Marcel, ou mesmo Vale dizer, retomando a expressão de Antoine Compagnon,
na trilha de A. O. Barnabooth, a personagem de Larbaud, Delhez seria um moderno antimoderno. Daí que, profunda-
instala-se na finca Cocaraya, entre Sipe-Sipe e Suticollo, na mente religioso e existencialista, Delhez observe, em carta
região de Cochabamba, na Bolívia, onde permanece até ao amigo Luis Waysmann, que
1937. Ali ilustra os Evangelhos e os Contos de um Sonha-
dor de Lord Dunsany. Entre 1937 e 1938, continua ilustrando Sin más allá la muerte se limita al acto de morir. Y si ese más allá
fuese científicamente demostrable o filosóficamente establecido,
os Evangelhos em Santiago de Chile, tarefa que prossegue,
la muerte perdería igualmente su significado, esta vez por sus-
de 1938 a 1940, em El Totoral, na Argentina, cidade onde
pensión parcial de su misterio con el traslado del foco de nuestra
Rafael Alberti e Neruda costumavam passar férias, trabalho
fe: de su plenitud de creer en lo no verificable por los sentidos.
esse que só seria publicado por Kraft, em Buenos Aires, em
1944. Ali, em Córdoba, começa um tríptico, Dança Macabra, Em grande parte, o trabalho de Delhez com a imagem,
em homenagem ao poeta Horacio Schiavo, de quem ilustra, particularmente com a fotografia, traduz essa relação com
além do mais, Construcción de Buenos Aires (Buenos Ai- um para além da finitude. Mas tomemos, para ilustrar essa
res Ediciones Católicas, 1936). Cabe citar ainda seu trabalho questão, uma das raiografias dos anos 20, feitas à manei-
como ilustrador nas edições de Las mil y una noches ar- ra de Man Ray, um autorretrato. Nela podemos captar essa
gentinas de Juan Draghi Lucero (Buenos Aires, Kraft, 1953); ideia que nos propunha Valéry e que aqui retomaria João
El canto de la sirena de Miguel Cané (Buenos Aires, Socie- Cabral, o ver-se vendo. Tal como em Jovem diante da mor-
dad de los Bibliófilos de Argentina, 1966); El libro de los mis- te (1895-1896), de Cézanne, a imagem de Delhez nos mostra
terios de Fernando Diez de Medina (La Paz, 1951); Crime e que não há nada a dizer, que tudo já foi dito e apagado.
castigo de Dostoievsky, Parva de Fernández Moreno (Bue- Nem o homem nem o crânio mostram nada escrito, dese-
nos Aires, Kraft, 1948). Em 1940, Delhez fixa residência em nhado. Não há necessidade de fazer nada porque já conhe-
Mendoza, nas Chacras de Coria, onde morre em 1985. Não cemos isso que pode ser traçado: as palavras como vanitas
teve maior fortuna crítica, e seu trabalho é mais evocado e memento mori, como em tantas outras pinturas antigas
em termos de gravura do que de fotografia. Mas sua obra é de vaidades. As palavras já estão lá, silenciosamente loqua-

8
zes por toda uma tradição que Delhez cita e recita. Jean-Luc Séneca en las orillas, um desses textos em que o escritor
Nancy nos relembra que, em Cézanne, a citação e a recita- permite-se duvidar da existência da própria literatura e pro-
ção do crânio são frequentes, embora sejam mais frequen- põe, em seu lugar, a leitura. Interessa destacar desse texto
tes sem a conjunção de um personagem, o que faz do qua- que o mais relevante, a meu ver, é a leitura das imagens
dro do jovem com o crânio uma exceção. A questão é mais feita por Delhez, em estrita obediência a uma quarta di-
recorrente em Delhez, que frequentemente apela a vanitas. mensão, que era simultaneamente teorizada por Eisenstein
Mas seja como for, por sua simples natureza de citação, a como condição da montagem. Há uma frase emblemática
imagem nos dá a entender alguma coisa. Faz ressoar, já que do ensaio sobre as inscrições de carros, que Borges, aliás,
a palavra eclesiástica vanitas vanitatum ecoa nos sermões, encerra entre parênteses e que gostaria de citar:
mais pronunciada que escrita, ou, antes, pronunciada em
(Esa posesión temporal es el infinito capital criollo, el único.
sua escrita, endereçada e lançada como uma advertência,
A la demora la podemos exaltar a inmovilidad: posesión del
um aviso e um apelo, como uma convocação a meditar so-
espacio).8
bre a inconsistência do mundo. Mas, ao mesmo tempo, essa
ressonância repercute como um eco e, portanto, como uma As imagens de Delhez para as inscrições de carros, ou as
voz prestes a se perder, embora se repetindo, já que ela é, hélices ou stultíferas naves do século XVIII, que ele capta
de fato, a recitação tardia de uma citação muito frequente numa exposição da indústria britânica, em Buenos Aires, são
na história da pintura. A gravura de Delhez e mesmo seu esse infinito capital que indica efetiva apropriação temporal.
raiograma fazem, portanto, também ecoar essas palavras As comparações morfológicas entre objetos da natureza e da
com o sentido de “pinturas das pinturas da vaidade”. Essa técnica apontam, nesse sentido, em direção a um crescente
recitação, que é manifesta, estabelece o termo moderno do divórcio entre physis e tekhné. Inspirado, como Delhez, na
retrato do artista, do seu autorretrato. Ele produz um con- tradição de Goethe, o biólogo Ernst Haeckel produzira, com
traste destacado com o arcaísmo da instalação, barroca e Kunstformen der Natur, as formas artísticas da natureza, en-
neerlandesa, do crânio e dos livros. Mas a figura de Delhez, tre 1899 e 1904, uma sorte de Bíblia Jugendstil. Karl Bloss-
assim desdobrada, não é somente moderna, ela é não nobi- feldt, com Urformen der Kunst, as protoformas da arte (1928),
liárquica. É um artista, um boêmio. Ele próprio foi instalado desvendou aquilo que Walter Benjamin chamou de incons-
aí, nessa cena, tanto quanto o crânio, pelo próprio artista. ciente ótico, experiência à qual não eram alheias as imagens
Ele assinala seu estar em cena e nos faz saber que, com o de Albert Renger-Patzsch ou August Sander.9 Benjamin ar-
mesmo gesto, evoca a história da pintura. Essa evocação é gumentava que só a fotografia revela esse inconsciente ótico,
um novo elemento de ressonância: a ela só falta a voz do como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional.
pintor dizendo “eis a pintura”.6 Como diz Walter Benjamin: Características estruturais, tecidos celulares, com os quais
operam a técnica e a medicina, tudo isso tem mais afini-
Incomparável linguagem da caveira: total ausência de expres-
dades originais com a câmara que a paisagem impregna-
são – o negro de suas órbitas oculares – unida à expressão
mais selvagem – as arcadas dentárias arreganhadas.7 da de estados afetivos, ou o retrato que exprime a alma
do seu modelo. Mas ao mesmo tempo a fotografia revela
Essa mesma questão anacrônica aparece também nas nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de ima-
montagens que Victor Delhez prepara para os primeiros nú- gens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente
meros de Sur, onde o artista pratica experiências de museu ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos
imaginário ou atlas Mnemosyne. Uma das mais curiosas é sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grandes e formu-
sua parceria com Borges. Logo no primeiro número da revis- láveis, mostram que a diferença entre a técnica e a magia
ta, inícios de 1931, Borges nele reedita, pela terceira vez, aliás, é uma variável totalmente histórica. É assim que, em suas

9
surpreendentes fotografias de plantas, Blossfeldt mostrou porque, como sabemos, a partir das cenas de demência no
no equisseto as formas mais antigas das colunas, no feto teatro elisabetano, vai gradativamente se construindo, na tra-
arborescente a mitra episcopal, nos brotos de castanheiras dição europeia, uma arquitetura dramática da qual participa-
e aceráceas, aumentadas dez vezes, mastros totêmicos, no rão, mais tarde, os sonhos e as confissões, como vetores que
cardo um edifício gótico.10 conduzem a ação à ilusão de verdade. São procedimentos
Há nessas imagens de Blossfeldt lidas por Benjamin um centrais tanto do drama barroco, quanto do incipiente ro-
vestígio da teoria romântica (Novalis, Schlegel) de que um mance que lhe é contemporâneo, questões aliás visualmen-
fragmento contém todo o universo, noção ainda presente, te antecipadas por Sebastian Brant ou Hieronimus Bosch.11
por exemplo, na ideia de Carl Einstein de que a obra de arte Havia, nesses casos das imagens de Delhez, uma clara
seria um intervalo imaginativo fixo; mas, além do mais, essa desapropriação do espaço para o velho ou inútil. No caso do
percepção nos persuade de que a imagem, que é finita, sus- Borges, em sua leitura, que muito conserva da montagem
cita uma nova imagem, criando assim a possibilidade infi- dadaísta, há também uma crítica à apropriação do espaço,
nita de novas correspondências perceptivas. Ela não apenas porque em última instância o próprio Sêneca, um marginal,
dá a ver um objeto, mas cria um campo de possibilidades um espanhol filosofando em latim, torna a se marginalizar,
para aquele que a contempla. Mas, a rigor, caberia pensar nas inscrições de carros; mas a situação de descentramento
que esses objetos naturais não imitam exatamente a na- e deslocamento nos mostra também que a demora é usada
tureza, embora possamos reconhecer neles elementos for- para dinamizar a própria leitura, tornando-a différance.
mais e ornamentais; ao contrário, as imagens fotográficas O segundo caso que gostaria de evocar aqui é o de Sylvio
surgem como formas tecnológicas que preparam e produ- da Cunha (1907-1995), autor de uma “pequena história da
zem o visível como segunda natureza: não imitam a nature- fotografia”, publicada nas páginas do Letras e Artes do Rio
za; antes a apresentam como artifício e, nesse sentido, elas de Janeiro, em 1947, sob o título de “Os pássaros do retra-
comportariam um trabalho de luto pela natureza. tista”, título que, além de remeter à loucura, foi sugerido por
Mas, em última análise, essas mesmas imagens, algumas Carlos Drummond de Andrade, que achava que, em função
das quais aproveitadas por Delhez em 1931 para ensaiar co- de uma arte verbal rigorosa, Sylvio conseguira transportar à
tejos e comparações entre natureza e tekhné, conectam-se, imagem fotográfica essa mesma exigência extrema que o
em última análise, com as apocalípticas visões de Delhez em distinguia na elaboração poética. E acrescenta Drummond:
torno a arquitetura e nostalgia, cabendo também relembrar Confirma desse modo a advertência de Man Ray: Si ta main
suas ilustrações para As flores do mal de Baudelaire, livro que tremble trop, laisse lá ton appareil et prends um pinceau. Syl-
seria assunto, nas aulas de literatura francesa, de um amigo e vio da Cunha (sua mão é firme) trabalha a placa sensível com
vizinho de Delhez em Mendoza: Júlio Cortázar. Numa das au- a mesma inexorável segurança de que se serve para agenciar a
las sobre Baudelaire, precisamente, Cortázar detém-se, com sábia, posto que velada orquestração de seus metros poéticos.
efeito, num fragmento de As multidões, aquele que diz que o A igual distância do realismo e do lirismo, ele nos dá, não po-
poeta goza do incomparável privilégio de ser ele mesmo e um emas, nem quadros, nem abstrações, nem documentos polê-
outro. Como as almas errantes que procuram um corpo, ele micos: fotografias. Mas é inevitável que de cada procedimento
técnico, exercido com amor e rigor, se desprenda uma poesia
entra, quando quer, no personagem de qualquer um e só para
específica. Mais ainda no caso especial da fotografia, cujo vo-
ele tudo está vago: se certos lugares lhe parecem vedados é
cabulário já participa da magia poética – a gelatina, a imagem
que, a seu ver, não valem a pena ser visitados. latente, o pancromático – e cujas operações se assimilam na-
Ora, poder-se-ia avaliar, portanto, essas imagens de De- turalmente às da criação poética – a sensibilização pela luz, o
lhez, tão próximas do espírito Casa tomada, de Cortázar, banho revelador, o mistério da claridade implícita no opaco, da
como sintomas de uma peculiar relação entre arte e loucura, sombra representada pelo translúcido – ó Mallarmé!...

10
A esse coeficiente prévio de sugestão, Sylvio da Cunha acres- versários da criança que cresceu e foi depois envelhecendo
centa um sóbrio e poderoso sentido plástico da imagem (não nos álbuns de veludo,15 ou seja, são, nem mais, nem menos,
privativo da pintura), imagem que ele não apenas capta, senão fotografias da memória da mais pura estirpe benjaminiana.
também seleciona e como que torna a criar, aproximando ou fun- A origem é montagem e todo erudito alimenta-se assim de
dindo elementos que se ignoravam (tão múltiplas são as formas,
um fantástico de biblioteca.
ainda as mais singelas, da natureza, que cumpre a qualquer arte
As fotografias da memória, imóveis ou elásticas, capricho-
revelar-nos). Suas fotografias dão testemunho de um artista ge-
sas ou fiéis, têm o seu lugar certo no quadrante misterioso
ral, sutilmente dotado, combinando imaginação e artesanato, e
sabendo muito bem o que se pode tirar, em invenção, da câma- e feito de camadas sucessivas do espírito. Não haveria má-
ra escura onde adormeceram os pássaros do retratista. E não quina, por mais inteligente que fosse, capaz de colhê-las;
só em invenção. Acredito que ele também fará sua esta outra elas são feitas de poesia e de intuição impalpáveis, de se-
palavra de Man Ray: la Photographie qui console.12 gredo apenas pressentido, de música incerta e subterrânea.16
Sylvio da Cunha chamava essas imagens de pensamen-
Houve, de fato, intenso diálogo, de 1943 a 1945, entre to de caprichos do olhar e delas nos deu alguns exemplos
Sylvio e Drummond. Logo em uma das primeiras cartas que que captam a vida das formas de Henri Focillon ou as pro-
ambos trocaram, em fevereiro de 1945, o fotógrafo propõe toformas da arte, na linha já apontada em Karl Blossfeldt
uma definição da poesia onde retorna a imagem de Seu- e no próprio Delhez. Mais do que uma teoria da fotografia,
phor-Clarice. Com efeito, a poesia Sylvio da Cunha ensaiava, em sua coluna, uma antropologia
do sensível, sob o ponto de vista da imagem, tal como os
é o próprio pensamento jorrando como água viva [...] É a força
da síntese poética que traz do caos (no sentido mais metafísico) pioneiros Alfred Stieglitz e Marius de Zayas, nas páginas de
as relações ainda não pressentidas e as faz do domínio geral do Camera Work, mas seu referencial, à diferença dos precurso-
conhecimento até que passem à categoria analítica como sinais res, era basicamente poético e europeu, por isso, entrando
de espécie e de ordem; é ainda essa força que se renova perio- em matéria, o autor logo evoca os primórdios dessa lingua-
dicamente, quando as associações se esgotam e a expressão gem, não sem antes lhe apontar as sobrevivências do mun-
se torna impotente para cumprir o seu fim mais alto, que é a do mágico ancestral, na forma de engrimanços, alambiques
criação de aspectos novos do espírito: os poetas não são so- e caixinhas de segredo. Obedecia da Cunha, de certo modo,
mente os criadores da poesia mas da própria linguagem e todas à poética de Rimbaud, que, segundo o autor, consistia na
as formas artísticas, e unicamente por uma questão de situação
busca sistemática da alucinação, na procura de uma lingua-
na História, também tem sido denominados de legisladores ou
gem que permita traduzir os estados mais confusos da alma
profetas, Job ou Solon, porque o poeta não só percebe uma
graças a uma evocação sensual simultânea de um comple-
extensão maior do presente que o comum dos mortais, como
pela imaginação vê o passado e o futuro. Pela imaginação habi-
xo de tendências obscuras. Recriar a emoção no leitor, em
ta a eternidade e o infinito e participa da divindade.13 lugar de descrevê-la. A nova linguagem poética será, então,
para a antiga o que a velha fórmula mágica é para a prescri-
Não custa, portanto, ver a sombra de Sylvio no esboço de ção do médico. “Eu escrevia silêncios – dizia ele – notava o
teoria da imagem que Drummond escreve em 194914 e até inexprimível, fixava as vertigens e envaidecia-me de inven-
mesmo em seus poemas da época, como Consideração do tar um verbo acessível um dia a todos os sentidos”.
poema, Procura da poesia, Resíduo ou Nosso tempo. As- Ora, sem comprometer a ideia de que a arte é refúgio
sim definida a poesia, diríamos que os “pássaros do retra- do comportamento mimético, Sylvio avança um argumen-
tista” são determinados por uma poética dos fenômenos, to que, embora insinuado já por Murilo Mendes em 1936 e
mas vêm carregados, por exemplo, dos mistérios do tempo, elaborado pouco depois por Macedonio Fernández, com o
das alegrias matinais de antigamente, dos risos e dos ani- conceito de sombrologia, define a sombra como a primeira

11
representação não só do corpo humano mas também da não é um patrimônio da ética, mas nos remete a um dos
sua alma.17 Há de relembrar, por exemplo, que Leonardo da estágios mais arcaicos do direito, que se confunde, a rigor,
Vinci definiu a beleza como uma “gradação da sombra” e, com a magia, ou seja, que se honra o corpo defunto para
para provar o que dissera, pôs a sua Virgem dos Rochedos impedir que a alma do morto, ou antes, a sua imagem ou
numa gruta sombria.18 Seja como for, a sombra nos coloca o fantasma, permaneça, sem função, no mundo dos viventes,
problema de definir a imagem como eidolon ou como eikon. como presença ameaçadora (tal como a larva dos romanos
Já no XI Canto da Odisseia, Ulisses evoca os mortos, as e o eidolon ou o phasma dos gregos).20
sombras, como eidola, o que permite a Sylvio da Cunha
O caos é a grande sombra e o reino das sombras é a morte.
identificar a imagem, eidolon, com a representação, porque
Os fotógrafos de 1850 eram manipuladores de sombras, da fa-
caberia esclarecer que, em grego, o conceito de eidolon se
mília de Édipo e Cassandra. Na criança e no primitivo há um
inscreve, com e contra o de eikon, na esfera da mimese, ao medo instintivo da sombra. Facilmente ela se torna um tabu de
passo que phasma, phantasma ou phantasia pertence- grande poder sugestivo. Frazer assinala numerosas manifesta-
riam à família de phaino, ou seja, da imaginação e do ima- ções de medo da fotografia entre os selvagens. [...] No folclore
ginário. Muito embora tanto eidolon quanto eikon sejam comum ao norte da Europa, o Diabo não tem sombra, assim
gerados pela raiz wei-, só eidolon pertence ao domínio do como tudo o que lhe pertence, e os habitantes do Inferno de
visível, já que se formou a partir do tema mais específico, Dante não projetam suas formas no chão.21
weid-, que sobrevive em latim, video, e que significa ver, ao
passo que eikon provém do tema weik-, que indica uma re- Em Exotische Kunst, um artigo de 1930 para a revista Die
lação de adequação ou proporção, ou seja, de methexis. Em Kunstauktion, Carl Einstein associa o ka dos egípcios ao
suma, o eidolon não passaria de ser a cópia de uma apa- itongo dos africanos. A ideia se retoma numa resenha da
rência sensível, ao passo que o eikon seria a transposição exposição na galeria Pigalle, que Einstein publica no segun-
de uma essência densa e desdobrada. A maior superficiali- do número da Documents (1930):
dade do eidolon e, em compensação, a irredutível densidade As estátuas são, pois, duplos pelos quais se captam os espíritos,
do eikon explicam, assim, que o ídolo tenha-se reduzido a os itongo, que correspondem provavelmente ao Ka egípcio. São
designar uma pura aparência, ou aos deuses que só existem feitas também para que a morte retorne para a sua tribo e anule
através da sua imagem, enquanto o ícone tenha-se aplicado a má morte. A força do morto não está inteiramente ligada à
às autênticas representações de Deus. Não é fortuito que na estátua; ela pode viver no neto, um animal familiar, uma árvore,
República de Platão a justiça na pólis seja apenas um eidolon, etc. na arte africana, a noção de alma-sombra ou alma-mago
um simulacro da verdadeira justiça, que concerne, no entanto, aparece como muito importante. Há talvez uma relação entre
ao regramento da alma, e, não raro, também o conceito de o estilo gráfico desta arte e a representação da alma-sombra.
eidolon reaparece em Platão toda a vez que o filósofo quer Nestas pinturas ou estátuas, é o itongo que age. Este monumen-
destacar a degradação que supõe a passagem do inteligí- to animista comporta aliás um perigo de degenerescência das ar-
vel ao sensível, ou de um a outro patamar de sensibilidade. tes africanas. O itongo, o ndozi ou o kra podem assim passar para
No Teeteto, por exemplo, o pensamento que se manifesta dentro das pedras, animais ou plantas e, desta forma, a estátua
torna-se inútil (por exemplo, no caso dos Baluba de leste, a intro-
graças à mediação sensível da voz não é senão um fantas-
dução do culto de Riamba acarretou uma iconoclastia).
ma (eidolon) da ideia, de sorte que poderíamos concluir que,
conforme a essa tradição, a fotografia registra, mas não vê.19 A estátua é um corpo astral e é assim que pode ser designada
Coerente com sua compreensão fenomenológica, Sylvio como um cadáver vivo.
da Cunha avança, então, uma hipótese que leríamos mui- Encontram-se muitas vezes nos mitos africanos récitas segun-
to depois em Agamben, isto é, que o respeito pelo cadáver do as quais Deus, para criar o homem, trabalhou um modelo

12
plástico. A coisa decisiva é menos a estátua do que o facto que E então ela se disse a si mesma: Pois que a fotografia nos dá
ela seja habitada por um espírito e a semelhança com o espírito todas as garantias desejáveis de exatidão, a arte é fotogra-
não consiste numa semelhança individual, mas na representa- fia. A partir desse momento a sociedade imunda se atirou,
ção das marcas mágicas e colectivas. Quer representar as for-
como um só Narciso, para contemplar a sua trivial imagem
ças geradoras e é assim que acentua os órgãos genitais, que os
sobre o metal. Uma loucura, um fanatismo extraordinário se
protege do mau olhado por uma túnica ou que indica o caráter
colectivo pela tatuagem.
apossou desses novos adoradores do sol [...]”.
Havia também um aspecto imprevisível, que não tivera
Uma arte de tal modo encerrada na magia e na noção da morte
tempo de sentir o poeta das Flores do Mal, mas que se tor-
deve tratar o motivo antes de uma maneira não naturalista. O
nou palpável para Rimbaud, numa noite de ócio e fantasia,
cânone desta arte não pode ser naturalista porque a sua tarefa
momento vivido e sentido depois por muitos, do miste-
é a de tornar invisível.22
rioso encontro com a poesia dos velhos retratos abando-
Embora partilhando dessa concepção, Sylvio da Cunha nados: “É um vetusto armário esculpido: o carvalho som-
pensa numa genealogia europeia, que passa pelas formas brio, muito velho, tomou esse ar tão bom da gente antiga.
angustiosas de Maupassant, Dostoievski e R. L. Stevenson Ele está aberto e derrama em sua sombra, como onda de
(Le Horla, O duplo e Dr. Jekyll and Mr. Hyde), o que explica, um venerável vinho, os cheiros cativantes. Todo alheio: é um
a seu ver, a desconfiança com que foi recebida a descoberta montão de velhas velharias, de linhos odorantes e amarele-
da fotografia.23 Mas, assim fazendo, Sylvio da Cunha con- cidos, de trapos de mulheres e crianças, de rendas fanadas,
centra-se naquilo que contemporaneamente atraíra Benja- de xales da vovó com desenhos aduncos. É lá que estão
min para postular um inconsciente ótico, isto é, as relações os medalhões, as mechas de cabelos loiros ou brancos, os
de Baudelaire com a fotografia, entendida como ruptura retratos, as flores secas, num perfume que se mistura aos
com o universo mágico. perfumes das frutas. Oh! armário de antanho, tu sabes
No seu Salon de 1859, Baudelaire disse coisas cruéis con- muitas histórias! E parece que queres contar teus contos,
tra a fotografia. Hoje que o tempo já desgastou as arestas e murmuras, quando se abrem lentamente tuas grandes
da famosa polêmica entre a afirmação e a negação da arte portas negras!”.
em matéria fotográfica, às vezes revive o caso, mas ape- A fotografia, ao ser associada ao armário, à arca, revela
nas quando se trata de defender a fotografia ou a pintura seu caráter de arkhé, ainda presente nas imagens de Nièpce,
de seus desvios de mau gosto. Depois de lamentar que a de Saint-Victor, Daguerre, Talbot e Octavius Hill, mas que
obsessão da verdade oprimisse e abafasse o gosto da be- seriam logo substituídas pelos vulgares manejadores da câ-
leza, sobretudo por exigências do público, que não é natu- mera, capazes das maiores abominações, que provocariam
ralmente artista, espontaneamente artista, mas talvez filó- a indignação de Baudelaire. E outro tanto causaria a mania
sofo, moralista, engenheiro, amador de anedotas instrutivas, do estereoscópio, surgida a serviço das abjetas inclinações
tudo o que quiser, mas que em matéria de arte não pode obscenas que repugnavam um homem refinadíssimo como
julgar sinteticamente, porém de maneira analítica e, em Baudelaire,24 mas a partir das quais Duchamp pensaria um
suma, parcial, Baudelaire constata que o credo da época em para além da pintura, da representação e do eidolon. Como
que escrevia era o exclusivismo da natureza, o tabu de que se vê, Sylvio tenta equilibrar-se entre versões autonomis-
arte só pode ser a reprodução exata do reino natural. “Assim, tas da arte e outras que, como os diagramas desconexos
a indústria que nos desse um resultado idêntico à natureza (abgeschnurte Dynamogramme) de Aby Warburg, explicam
seria a arte absoluta”. E prossegue: “Um deus vingador aten- que as imagens perdem sua significação originária, mas ne-
deu os votos dessa multidão. Daguerre foi o seu messias. las sobrevive, porém algum tipo de espectro suspenso, uma

13
sombra. Em favor da primeira tese, diz que, de Taine a Max Em 1924, André Breton propôs a fabricação e o lançamen-
Dvorak, foram atribuídos às obras de arte valores históri- to em circulação de objetos aparecidos em sonho. Segundo
cos, intelectuais e religiosos; mas isso levava a negligenciar Breton, muitos objetos de uso corrente são de uma utilida-
a autonomia da arte, axioma da crítica moderna.25 Todavia, de puramente convencional, havendo, portanto, vantagem
em favor da segunda tese, argumenta que Heinrich Wölfflin em substituí-los por objetos surrealistas. Estes, verdadeiros
entendia que a história da arte é a história dos símbolos da desejos solidificados, deveriam, segundo Breton, desenca-
visão, expressa através da passagem do linear para o pictu- dear e exaltar as potências inventivas. Dessa forma passaria
ral; pelo desenvolvimento da visão de superfície em detri- a atividade onírica para a realidade. Salvador Dalí, em 1931,
mento da visão de profundidade; pela substituição da for- sugeriu a criação de uma nova categoria de objetos de fun-
ma fechada pela forma aberta; pelo abandono da unidade ção simbólica, inteiramente despidos do seu sentido con-
pela multiplicidade, e, finalmente, pela transição da clareza creto. Surgiu a necessidade de fundar uma física da poesia
absoluta para a clareza relativa dos objetos.26 E isso levava segundo Paul Eluard. De aspecto mágico para o profano, a
Sylvio da Cunha a perceber um caráter obtuso da imagem. exposição surrealista de 1936 em Paris fez uma tentativa
O movimento é a vida, mas na sucessão de seu ritmo que ainda não estamos em condições de apreciar e mesmo
há sempre um ponto culminante de beleza, de trágico, de de definir, para apresentar objetos em novo sistema de co-
comicidade ou de um interesse qualquer que ele seja. En- nexões capazes de reagir contra o vulgar quotidiano. Ensaia-
tre muitas imagens supérfluas colhe-se a essencial. Isso va-se ultrapassar as limitações da existência manifesta de
se torna bem claro na obra-prima que é Ivan, o terrível, de um objeto, desvendando o seu simbolismo oculto esqueci-
Eisenstein. Excetuando o envenenamento da Tzarina, uma do, deformado, destruído, ou mesmo ainda não descoberto.
maravilha de cinema puro, a cena com a pesada taça la- Um valor banal de convenção ocultava quase sempre um
vrada que cobre os enormes olhos assustados, passando poderoso peso de representação, revelador do pitoresco
logo ao quadro seguinte do grande catafalco, impressio- ou da força emotiva. Para dar lugar à realidade escondida
nante pelo modo brusco da transição, o filme todo é uma passava a segundo plano o dado imediato. O surrealismo
sucessão de fotografias belíssimas, que temos vontade não doutrinou a revolução total do objeto, argumentava Sylvio,
de ver em cinema, mas num álbum, para que elas estejam desviando-o dos seus fins usuais e mesmo conferindo-lhe
sempre ao nosso alcance. Há uma superioridade da estáti- um nome novo. A perturbação e a deformação devidas a
ca sobre a dinâmica fotográfica, na eletividade consciente acidentes exteriores podiam completar o sentido, assim
ou inconsciente, irresistível, do nosso espírito. Explica-se o como o encontro casual ou a irracionalidade do objeto. Em
sentimento de Baudelaire odiando o movimento que des- 1943, Sérgio Milliet, diante das fotomontagens praticadas
mancha a harmonia da linha. O cinema é uma aplicação da por Jorge de Lima, também observava que
fotografia dirigida por outros caminhos, mais restrita, ilus-
trativa e descritiva.27 A fotomontagem tem sobre a pintura, inclusive a super-realis-
Repare-se que, assim como Benjamin nos fala em poten- ta, a vantagem de ignorar os preconceitos técnicos, de não se
cialidades tais como a reprodutibilidade, e não de atos con- prender a uma tradição. A fotomontagem está para a pintura
cretos, como a reprodução, Sylvio da Cunha também não se assim como a palavra em liberdade está para o verso medido.
refere a decisões e escolhas afetivas ou terminantes, mas a Apresenta-se livre de volumes e valores como aquela se coloca
possibilidades, eletividades, que permanecem sempre num no papel sem a preocupação das cesuras e das rimas. Isso não
limiar. A ideia vincula-se com certas noções centrais à es- quer dizer que não haja na fotomontagem nem volumes nem
tética surrealista e, de resto, sintoniza com o inconsciente valores; na sua total liberdade a fotomontagem cria soluções
ótico antes captado nas imagens de Victor Delhez. próprias em obediência apenas à fantasia do artista.

14
Outra vantagem: enquanto a pintura, em virtude mesmo de A arrière-fable que Foucault veria em Verne é a proto- ou
seu longo aprendizado manual, se limita a jogar com elementos transsemelhança prevista já por Mallarmé, que retoma uma
poéticos limitados, a fotomontagem, que prescinde de artesa- tradição de repertórios iconológicos que nos remonta a Ce-
nato (no sentido que se dá atualmente ao vocábulo), joga com sare Ripa, aos estudos sobre melancolia de Robert Burton,
elementos não só ilimitados mas ainda de uma atualidade liga-
aos Caprici, de Giambattista Tiepolo, às imagens de Arcim-
da à vida cotidiana, que comporta toda uma essência poética
boldo, a Jacques Callot e, fundamentalmente, a Goya. Os
desconhecida na pintura. Tão importante é a contribuição desse
caprichos do olhar de Sylvio da Cunha revelariam, como os
elemento vivo que os melhores super-realistas o procuram an-
siosamente. Salvador Dali os explorou por vezes com felicidade, de Goya, um conteúdo moral não prescriptivo, só compa-
operando na pintura a mesma revolução que se operou na lite- rável com um radical questionamento antropológico a res-
ratura quando dela se baniram as “palavras poéticas” para dar peito das perversões da razão. Se os caprichos são intensas
guarida às expressões da vida comum.28 dramaturgias do claro-escuro é porque Goya, como homem
do Iluminismo, comprometeu-se com a gaia ciência das
Georges Didi-Huberman tem destacado o trabalho de sombras da razão. Nos Caprichos detectamos, com efeito,
Aby Warburg como uma reação do historiador das fórmu- esse homem dissonante, essa subjetividade tensa e sombria
las de sensibilidade a duas experiências marcantes, não só que antecipa o Romantismo.30 O caminho das imagens bifur-
profissionais, mas também pessoais: a loucura e a guerra. ca-se neste ponto: ora o vemos feito de sombras na memória,
Os caprichos da montagem e das próprias imagens, que se- ora o avaliamos como um sinal premonitório daquilo que a
gundo Sylvio da Cunha fazem explodir um considerável po- massa, daí para a frente, iria instaurar como cânone.
tencial poético, não só traçariam uma história documental Seja como for, repare-se que os trabalhos de Delhez ou da
do imaginário ocidental, mas também funcionariam como Cunha seguem uma bibliografia, até aquele momento, não
uma ferramenta para captar e avaliar a violência política nas muito farta, que passa pelas reflexões de Siegfried Kracauer
imagens da história. Através das sombras e dos rostos, das (A fotografia, 1927), Bertolt Brecht (Sobre a fotografia, 1928),
sombras sem rosto ou mesmo dos rostos-sombra, detecta- o ensaio de Alfred Döblin, prefaciando o catálogo de Sander
mos, de início, em Victor Delhez essa relação do artista com ou o de Tristan Tzara, analisando as fotos de Man Ray (La
sua própria autofantasmagorização. Mais tarde, em Sylvio photographie à l’envers), texto este último traduzido por
da Cunha, constatamos no autorretrato do próprio artista Benjamin ao alemão para a revista G-Zeitschrift für Elemen-
uma análise das relações entre arte e sociedade, no Brasil tare Gestaltung, que se lê como um prototexto da sua pró-
no imediato após-guerra, mas, ao mesmo tempo, capta-se pria pequena história da fotografia, sem nos esquecermos
nesses textos a aporia de um esforço em que o sujeito não das ideias de Drummond a respeito da imagem. Poder-se-ia
acaba nunca de se conhecer por inteiro. Uma imagem do falar, portanto, nesses casos, de uma “sombra de Gradiva”
pensamento e um pensamento sem imagem. Didi-Huber- atravessando a cena porque, em todos eles, caberia avaliar
man associaria esses caprichos do olhar, como ele os cha- a fotografia como um trabalho de autêntico luto da imagem
que, em última análise, prepara não só o inconsciente óti-
mava, às arrière-ressemblances, apontadas por Mallarmé.
co benjaminiano, mas até mesmo a noção de punctum de
Com efeito, em Catolicismo lemos:
Roland Barthes.3 1 Era isso que eu queria lhes trazer hoje aqui,
Sem um pensamento de ofuscar o vitral de cúpula constatando e estou à disposição para o que vocês quiserem colocar.
elevação e transparência nisso que o rumor denomina edifício
social, importaria pouco algum passo adiante. Salvo, para entrar, Silvia Regina Cabrera: Bom, boa noite a todos. Boa noite,
inaugurar e saudar uma protossemelhança com gravidades do Raul. Boa noite a todos os presentes. Meu nome é Silvia,
passado, ensombrecidas na memória ou que a massa instaura.29 e, assim, de tudo o que você foi falando aqui, que eu fui

15
anotando, primeiro me chamou a atenção quando você moderno, enormes. Se Blossfeldt percebe uma inadequa-
estava falando ali do Karl Blossfeldt. Não sei se pronunciei ção entre natureza e técnica é porque a modernidade, no
certo. Isso me lembrou muito o trabalho do artista e desig- fundo, passa a desenvolver um pensamento sobre a natu-
ner italiano Bruno Munari quando ele trabalha nas questões reza quando ela já desapareceu. A ecologia é isto. Pensa-
do design, resgaste das formas da natureza. Então, assim, mento ecológico é um pensamento a partir de uma natu-
primeiro me lembrou bastante aquelas fotos e aí também reza que só pode ser recriada artificialmente. Então, a ideia
entrou nessa questão do luto pela natureza que o design do artifício como a maior naturalidade é a noção paradoxal
também hoje, parece assim, quer trazer para dentro da casa de que o artifício é a maior naturalidade, talvez seja um dos
da gente as formas da natureza. A gente cultua a forma mas legados desse simbolismo. A pergunta seria: por que nos
destrói a natureza. Então, assim, para mim ficou esse resí- custa tanto entender isto? A minha resposta é: porque fo-
duo, esse vestígio. Segundo, todo esse percurso que você mos educados numa sensibilidade modernista. Então, são
foi começando aqui pelo Delhez e chegando no Sylvio da essas figuras que naquele momento apareciam como retar-
Cunha, parece, assim, que o simbolismo foi determinante datárias, como Sylvio da Cunha, não afinadas com o mais
na fotografia, porque toda essa questão da imagem foi per- ousado da experiência modernista, que hoje surgem com
passando por Mallarmé, Baudelaire, inclusive aquela deco- outra pungência, com outra intensidade, à nossa sensibili-
ração baseada no Poe, que foi o primeiro autor que chamou dade. Talvez porque a nossa própria sensibilidade hoje seja
a atenção do Baudelaire. Então, se você pudesse falar um decadentista. O declínio da crença na democracia, o declínio
pouquinho mais sobre essa relação do simbolismo e da da crença no ocidente, etc., etc., são experiências cotidianas
imagem fotográfica para a gente... Obrigada. que não nos cansamos de ter todo o santo dia ao ligar a
televisão ou examinar o jornal.
Raul Antelo: Certo. Primeiro, a relação que você observava
entre natureza e técnica, a art nouveau detecta essa relação Luís Fernando: Olá, meu nome é Luís Fernando. Houve
entre natureza e técnica, porém é pela dessemelhança que tempo do Baudelaire fazer uma recomposição do seu pen-
melhor se atinge a semelhança. Essa é uma ideia que vem samento em relação à fotografia? Porque ele sempre foi
da caricatura. Goya compreendeu-o muito bem. Os sim- muito crítico, desde o surgimento, ele tem a passagem em
bolistas retomam a noção de que não é por uma simples que ele visualiza a fotografia como um recurso interessante.
adesão mecânica ao referencial que se obtém a semelhança.
A semelhança tem alguma coisa de paródico, tem alguma Raul Antelo: Eu diria que não, porque fundamentalmente
coisa de deforme, tem alguma coisa de exagerado, tem algo Baudelaire é antiprogresso. Baudelaire tinha ojeriza ao pro-
de enviesado, ou seja, que essa ideia de que é pela desse- gresso. Baudelaire tinha ojeriza de compreender a moder-
melhança que melhor se atinge a semelhança é uma forma nidade como a última contribuição tecnológica. Baudelaire
de obscurecer a percepção para aprofundar a experiência. tinha ódio mortal de identificar a modernidade com a ame-
Talvez essa, a meu ver, seja a premissa básica do simbolis- ricanização da vida. Então, obviamente que não poderia se
mo. Quanto mais rarefeita for a percepção, quanto mais ca- identificar coma fotografia como eidolon. Se ele aprecia a fo-
madas e sentido você precisar retirar e colocar, mais denso é tografia é no que ela nos traz de pervivência do eikon. É nes-
o eikon, mais densa e disseminada e sutil será a relação do se sentido que eu prefiro retomar as suas palavras. Por outro
sujeito com a experiência. Então, nesse sentido, longe de ser lado, poderíamos pensar em que momento a nossa sensi-
uma forma antiquada, esclerosada, ultrapassada, de pensar bilidade, no Brasil, foi mais afim a esta de Baudelaire. Nas
as relações entre natureza e técnica, eu acho que o simbo- teorizações modernistas, Baudelaire pouco entra, vamos ter
lismo coloca ainda umas potencialidades para pensarmos o que esperar os anos 40, Murilo Mendes, quando evocando a

16
figura de um morto, mas evocando um autorretrato, a vida um conceito de eidolon, que é o conceito de eidos, ou seja,
de artista, nas suas Recordações de Ismael Nery, é o primei- o eidon é a ideia. A ideia. E eu penso na ideia sobretudo tal
ro a formular que o moderno se capta em dois tempos, uma qual como revista pelo Benjamin, no prólogo da Origem do
parte que é efêmera, contingente, transitória, e uma outra drama trágico alemão, porque ali a gente vê que o eidos já
dimensão, que é duradoura, persistente, ou seja, a memó- é a imagem. Não é algo de que a imagem é uma degradação,
ria. Então, diríamos o frêmito por entender o modernismo ele em si já é uma imagem. Isso aí existe na relação com as
como americanização da vida, como progresso, como ace- outras imagens, basicamente que é isso que a gente vê já
leração, ou seja, 22, essa comemoração de um centenário formulado na ideia de consolação, por exemplo, em Benja-
da independência, que na verdade fica ofuscado para todos min. Na maneira em que vai associar o eidos platônico com
os efeitos. Vinte e dois é a Semana, ninguém se lembra do a consolação. E algo que vai aparecer também num outro
centenário da independência. Surge uma outra leitura nos conceito que é usualmente deixado de fora da reflexão sobre
anos 40, quando temos que nos inventar de novo, ou seja, a imagem, que eu me lembro que vai ser recuperado no sé-
com o final da guerra caem as relações tradicionais com a culo XX, muito fortemente pelo Ernesto Grassi, no texto que
Europa. A Europa desaparece, já não dependemos estrita e vai ser citado depois, no texto dele sobre o eikon, o eidolon
necessariamente da Grã-Bretanha, e, no entanto, aparecem e a agalma, que é esse conceito de imagem, que é um con-
os Estados Unidos em cena e aparece o mundo dos objetos, ceito que implica justamente a dissolução das barreiras. E aí,
das coisas, dos carros, etc., etc., etc. pensando nesses conceitos que em alguma medida nos aju-
dam a complexificar um pouco mais essa noção de imagem,
Eduardo Sterzi: Raul, nós vínhamos conversando antes a na medida em que a dialética não é mais entre um termo e
respeito daquela ideia de que uma imagem só ganha consis- outro, mas ela é interna a cada um desses termos, eu fico
tência mesmo na medida em que a montamos com outras pensando se, em alguma medida, isso não vai aparecer mui-
imagens. E ouvindo a sua conferência, dá para notar que isso to fortemente no conto do Borges, O Aleph, no movimento
também é um procedimento que vale em alguma medida que ele traça ali entre a morte da Beatriz Viterbo. Não sei se
para o plano conceitual. Você se concentrou no eikon e no você lembra do início, que ele pega a primeira imagem da
eidolon, mas eu fiquei pensando em outros conceitos de morte, a percepção da passagem do tempo, ou seja, a morte
imagens que estavam implicados aí, no que você falava, e da Beatriz Viterbo é dada pelas imagens dos cartazes, ele
que alguma ajuda a complexificar um pouco mais a questão vem... aliás, ele fala primeiro dos carros, dos carros de praça,
aí. E eu pensei até, vou dar um exemplo que eu acho que justamente você mostrou as imagens, mas ele vai falar dos
isso ajuda a pensar, que é um exemplo que tem a ver com carros de praça e das imagens dos cartazes das bancas de
a primeira parte da sua conferência. A gente pode pensar no revista. Ou seja, a imagem da morte, a imagem da memória,
conceito de umbra, por exemplo. Ou seja, a sombra. Você é a imagem projetada no espaço. Isso foi mudando, ou seja,
falou muito da questão da sombra, mas a sombra tem uma o tempo estava projetado nas coisas, no externo. E a única
dialética interna, na sombra, no conceito, na formação, na maneira dele em alguma medida lidar com isso, lidar com
protoformulação teórica dela entre os romanos, que é o fato essa perda, tentar criar uma nova imagem da Beatriz Viterbo
de que a umbra é ao mesmo tempo a sombra, essa mancha é criar um dispositivo ótico também, ao se confrontar, en-
que o corpo projeta, mas é também o reflexo, ou seja, na contrar um dispositivo ótico, inconscientemente ótico, que é
sombra... na umbra convivem, ao mesmo tempo, a gente o Áleph, ou seja, o caleidoscópio.
pode dizer, a opacidade, opacidade da sombra, mas tam-
bém a resplandecência do reflexo. Então, isso já está escrito Raul Antelo: O Aleph se vê num porão da rua Juan de Ga-
ali, mas também vai aparecer no conceito que dá origem a ray. Juan de Garay é o segundo fundador de Buenos Aires.

17
Mas o narrador poderia ter dito um porão da Rua Pedro de NOTAS
Mendoza, que é o primeiro fundador. Pedro de Mendoza é a
1 SEUPHOR, Michel – “Rétrospection” in Het Overzicht. Collection complète 1921-1925.
rua que beira o rio. É a rua onde descem os navios trazendo Paris, Éditions Jean-Michel Place, 1976.
os imigrantes. É a rua liminar com a Europa. É o primeiro 2 Apud DIEZ DE MEDINA, Fernando – El arte nocturno de Victor Delhez. Biografía
ponto do Pampa ou o último da Europa. Por que ele não a poética con 64 grabados del artista. Buenos Aires, Losada, 1938, p. 69.
situou na Rua Pedro de Mendoza? Porque ele não acredita 3 Julio Perceval (1903-1963) chega a Buenos Aires no mesmo ano de Delhez. Compôs
na fundação duradoura. A fundação não resistiu ao primei- a ópera bufa Polifemo (1947), com libreto de Leopoldo Marechal e, nesse mesmo ano, fez
a trilha de El jugador, filme de León Klimovsky, baseado na obra de Fiódor Dostoievsky. É
ro ataque dos índios, e Borges vai dizer que foi necessário autor, entre outros, do Hino à Virgem da Carrodilla (1943), com texto de Daniel Devoto; da
fundar a cidade pela segunda vez. Ou seja, que, se houve Cantata del Cuarto Centenario de la Primera Fundación de Buenos Aires (1934-35), com
texto de Horacio Schiavo; e de El Canto de San Martín (1949-50), com texto de Leopoldo
segunda vez, haverá infinitas vezes. Eu acho que o Aleph, o Marechal. A soprano Jane Bathori apresentou suas Six chansons baseadas em textos de
que traz, é a ideia de que, havendo dois, não há fim. Joseph Delteil, em Amigos del Arte (Buenos Aires, ago. 1932). Fez muitas orquestrações e
transcrições para órgão, entre outras, de peças de Villa-Lobos.

4 Expõe “El monje malo”, “Al lector”, “Don Juan en los infiernos”, “Armonía de la noche”,
Pessoa não identificada 1: Raul, eu estava lembrando da per-
“Los gatos”, “Sepultura”, “Spleen (i)”, “El vino del solitario”, “Una mártir”, “Viaje a Citeres”,
gunta dele sobre Baudelaire e a questão da fotografia. E es- “Renegación de San Pedro”, “Spleen (ii)”, “Los ciegos”, “Crepúsculo de la mañana”, “El viaje
tava lembrando daquele ensaio sobre a Ótica moral do brin- (ii)”, “Los ojos de Bertha”, “El rebelde”, “La muerte de los pobres”, “La muerte de los aman-
tes” e “La muerte de artistas”. A resenha de La Nación é consagratória: “Las xilografías de
quedo, em que ele está numa casa, o menino está na casa, Víctor Delhez nos llegan con todos los caracteres de lo excepcional. Nada se vió aquí, como
ele sobe no quarto e tem uns objetos, um estereoscópio, não conjunto, de pareja calidad. Estos grabados lo serían de excepción en los centros de mayor
cultura de Europa. Pocas veces la ciencia de un artista se unió a tan cálida onda emotiva;
é? E ele começa a se deleitar com esses objetos, e fiquei pen- refleja el mundo interior de un gran poeta; sus figuraciones viven en una atmósfera irreal.
sando: talvez seja um outro jeito da imagem, digamos. Obra compleja, inspirada, poco frecuente en nuestros días. Técnicamente se opone a la
práctica tradicional ampliándola; no le bastan los valores esquemáticos de blanco y negro,
por lo cual añade una tercera dimensión; la media tinta y más aún: los muchos colores
Raul Antelo: Do hobby. Os ingleses chamam de hobby hor- contenidos entre los dos colores extremos. Víctor Delhez es uno de los grabadores más
representativos de nuestra época”, p. 87. Só para historiar as exposições portenhas, diga-
se, o cavalinho que vai para a frente e para trás.
mos que Delhez apresentou seus trabalhos na Asociación Amigos del Arte (Buenos Aires,
jun. 1926 e set. 1928); Convivio de Cursos Católicos (Buenos Aires, out. 1928); Amigos del
Pessoa não identificada 1: Isso. Exatamente. O hobby horse. Arte (Buenos Aires, ago. 1929; Convivio (Buenos Aires, set. 1929); e Amigos del Arte (Buenos
Aires, out. 1932 e jun. 1933).

Raul Antelo: O hobby é justamente o sabático de Agamben, 5 Bandeira, por exemplo, recupera três definições de poesia dos escritos de Maritain.
São elas: “Poesia é ontologia, de certo, e até, segundo a grande definição de Boccacio,
quer dizer, a ideia de que sempre tem que haver um núcleo poesia é teologia”; “O conhecimento poético é um conhecimento por conaturalidade afe-
vazio para que o sistema funcione. Para que o sistema fun- tiva de tipo operativo ou que tende a se exprimir numa obra” e “A poesia é conhecimento,
incomparavelmente: conhecimento-experiência e conhecimento-emoção, conhecimento
cione, sempre há uma parte da sociedade em que a lei não existencial, conhecimento germen de uma obra (e que não tem consciência de si e não é
se aplica. Essa parte da sociedade em que a lei não se aplica feito para conhecer)”. BANDEIRA, Manuel – “Antologia de definições de poesia”, Letras e
Artes. A Manhã, 14 jul. 1946.
é o ponto em que o hobby horse se balança para a frente e
6 NANCY, Jean-Luc – “Imagem, mímesis & méthexis” in ALLOA, Emmanuel (ed.) –
para trás. Voltando à tua questão, estão aí implicadas duas Pensar a imagem. Belo Horizonte, Autêntica, 2015, p. 55-73.
teorias do tempo, o tempo chronos e o tempo áion. E nor-
7 BENJAMIN, Walter – Rua de mão única, v. 2. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e
malmente quando pensamos no tempo áion é a dimensão José Carlos Martins Barbosa. São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 36.
do eterno que está envolvida. O avô, que daí vem a palavra. 8 BORGES, Jorge Luis – “Séneca en las orillas”, Sur, n. 1, verão 1931, p. 175.
Nem sempre nos lembramos que, para os gregos, áion é a 9 BLOSSFELDT, Karl – Urformen der Kunst. Photographische Pflanzenbilder. Intr. K.
vida como fluxo, e esse fluxo são todos os fluxos. As lágri- Nierendorf. Berlim, Ernst Wasmuth, 1928; RENGER-PATZSCH, Albert –Die Welt ist schön.
Munich, Kurt Wolff, 1928; SANDER, August – Antlitz der Zeit. Pref. A. Döblin. Munich, Lan-
mas de Eros. O áion remete à ideia de fluxo, do que não gen, 1929.
para, do que não tem limite, isto é, do infinito, a eternidade 10 BENJAMIN, Walter – “Pequena história da fotografia” in Magia e técnica; arte e políti-
diria Rimbaud, referindo-se à poesia, é isso o que conta. ca. Trad. S. P. Rouannet. 7. ed. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 94-95 (Obras escolhidas, v. 1).

Eu agradeço a todos a presença. Muitíssimo obrigado. 11 Em Maladie mentale et psychologie (1962), Foucault diz: “A la Danse macabre figurée

18
au cimetière des Innocents, au Triomphe de la mort chanté sur les murs du Campo Santo 14 M.P. (pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade) – “Retratos do artista quando
de Pise, font suite les innombrables danses et fêtes des Fous que l’Europe célébrera si vo- menino”, Jornal de Letras, Rio de Janeiro, nov. 1949. O título arremeda o texto de Joyce que
lontiers tout au long de la Renaissance. Il y a les réjouissances populaires autour des spec- fora oportunamente resenhado por Drummond na Revista Acadêmica (a. 12, n. 68, Rio de
tacles donnés par les «associations de fous», comme le Navire bleu, en Flandre; il y a toute Janeiro, jul. 1947).
une iconographie qui va de La nef des fous de Bosch, à Breughel et à Margot la Folle; il y a
15 CUNHA, Sylvio da – “Os pássaros do retratista”, Letras e Artes, n. 37, Rio de Janeiro,
aussi les textes savants, les ouvrages de philosophie ou de critique morale, comme la Stul-
6 abr. 1947, p. 10.
tifera Navis de Brant ou l’Eloge de la folie d’Érasme. Il y aura, enfin, toute la littérature de
folie: les scènes de démence dans le théâtre élizabéthain et dans le théâtre français préclas- 16 Idem – “Fotografias da memória”, Letras e Artes, n. 86, Rio de Janeiro, 25 maio 1948,
sique font partie de l’architecture dramatique, comme les songes et, un peu plus tard, les p. 11.
scènes d’aveu: elles conduisent le drame de l’illusion à la vérité, de la fausse solution au vrai
dénouement. Elles sont un des ressorts essentiels de ce théâtre baroque, comme des ro- 17 Idem – “A fotografia, arte burguesa”, Letras e Artes, n. 43, Rio de Janeiro, 1 jun. 1947, p.
mans qui lui sont contemporains: les grandes aventures des récits de chevalerie deviennent 13.
volontiers les extravagances d’esprits qui ne maîtrisent plus leurs chimères. Shakespeare et 18 Idem – “Nadar”, Letras e Artes, n. 41, 11 maio 1947, p. 11.
Cervantès à la fin de la Renaissance témoignent des grands prestiges de cette folie dont
Brant et Jérôme Bosch, cent ans plus tôt, avaient annoncé le prochain règne”. FOUCAULT, 19 Como conclui Suzanne Saïd: “L’idole fait du visible, qui est tout son être, une fin en
Michel – Maladie mentale et psychologie. Paris Presses Universitaires de France, 1962, p. soi. Elle arrête le regard qui s’abîme en elle et lui interdit d’aller plus loin. L’icône au con-
79. Pouco depois, em janeiro de 1963, numa emissão radiofônica (hoje reunida em La belle traire porte en elle son propre dépassement. Elle ne fait que convoquer le souvenir de Dieu
étrangère), diz: “Le tragique de don Quichotte, il n’habite pas la folie même du personnage, et n’est jamais qu’un moyen de lui témoigner l’affection qu’on lui porte”. SAÏD, Suzan-
il n’est pas la force profonde de son langage. Le tragique dans Don Quichotte,il se situe ne – “Deux noms de l’image en grec ancien : idole et icône” in Comptes-rendus des séan-
dans le petit espace vide, dans cette distance, parfois imperceptible, qui permet non seu- ces de l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 131e année, n. 2, 1987, p. 309-330.
lement aux lecteurs, mais aux autres personnages, mais à Sancho, mais à don Quichotte
20 AGAMBEN, Giorgio – Quel che resta di Auschwitz: L’archivio e il testimone (Homo
lui-même finalement, d’avoir conscience de cette folie. Et alors, ce scintillement, inquiétant
sacer III). Turim, Bollati Boringhieri, 1998, p. 73.
et pâle, qui offre à don Quichotte et puis lui retire en même temps une lumière sur la folie,
il est très différent de la souffrance du roi Lear qui du fond de sa folie, lui, savait qu’il était 21 CUNHA, Sylvio da – “O medo da sombra”, Letras e Artes, n. 38, 13 abr. 1947, p. 11.
en train d’y tomber, et d’y tomber d’une chute qui ne devait pas s’arrêter avant la mort.
[...] : c’est que maintenant la folie et la conscience de la folie sont comme la vie et la mort. 22 EINSTEIN, Carl – “A propósito da Exposição da Galerie Pigalle”, Caleidoscópio. Revis-
L’une tue l’autre. La sagesse peut bien parler de la folie, mais elle en parlera comme d’un ta de Comunicação e Cultura. Carl Einstein – Reflexões sobre arte e estética. Lisboa, Uni-
cadavre. La folie, elle, en face, va rester muette, pur objet pour un regard amusé. Et pendant versidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, n. 11/12, 2012, p. 139.
toute l’époque classique, les fous vont faire partie d’un paysage social, d’un paysage social 23 CUNHA, Sylvio da – “O medo da sombra”, Letras e Artes, n. 38, 13 abr. 1947, p. 11.
pittoresque qui sert tout au plus à relancer une inquiétude sceptique : après tout, je pourrais
moi-même être fou, mais je n’en sais rien puisque la folie est inconsciente et que tous les 24 Idem – “Baudelaire e a fotografia”, Letras e Artes, n. 39, Rio de Janeiro, 27 abr. 1947, p. 13.
autres étant fous, je n’ai point de repère pour savoir si je le suis ou non. Mais ce sont là jeux
25 Idem – “Visão”, Letras e Artes, n. 46, Rio de Janeiro, 29 jun. 1947, p. 6.
de prince et exercices d’esprits subtils ou retords. Ce qui m’intéresse dans cet âge classique,
c’est un fait massif, un fait historique, sourd, qui est resté longtemps silencieux. Peut-être 26 Idem – Ibidem.
n’est-il pas très important pour l’histoire des historiens. À moi, il me paraît d’un grand poids
27 Idem – “Jean Manzon”, Letras e Artes, n. 53, Rio de Janeiro, 31 ago. 1947, p. 6.
pour qui veut faire l’histoire d’une culture. Le voici. Un jour d’avril 1657, on a arrêté à Paris
à peu près six mille personnes. Six mille personnes dans le Paris du xviie siècle, c’est à Sylvio destaca também a estilização da maquiagem, que lembra figuras bizantinas, obser-
peu près un centième de la population. C’est comme si, par exemple, si vous voulez, on vação que seria retomada por Barthes mais adiante para pensar o obtuso. Sylvio da Cunha,
arrêtait actuellement, dans le Paris d’aujourd’hui, quelque chose comme quarante mille ao destacar a superioridade da estática em relação à dinâmica fotográfica e não descartar
personnes. Cela fait beaucoup et on en entendrait parler. Ces gens, on les emmenait à o trabalho do inconsciente, prepara, portanto, esse conceito.
l’Hôpital général. Pourquoi ? Oh bien, parce qu’ils étaient chômeurs, ils étaient mendiants, 28 MILLIET, Sérgio – Diário crítico, v. 1. Intr. Antonio Cândido. 2. ed. São Paulo, Martins,
ils étaient inutiles, c’étaient des libertins, c’étaient des excentriques, c’étaient aussi des EDUSP, 1981, p. 232-233.
homosexuels, des fous, des insensés. Et on les envoyait à l’Hôpital général sans qu’on
ait pris à aucun moment contre eux une mesure juridique précise. C’était une simple pré- 29 MALLARMÉ, Stéphane – Divagações. Trad. F. Scheibe, Florianópolis, Editora da
caution de police, un ordre du roi ou encore, ce qui est plus grave à mon sens, une simple UFSC, 2010, p. 198.
supplique de la famille qui suffisait à envoyer tout ce beau monde à l’hôpital, et à l’hôpital
30 DIDI-HUBERMAN, Georges – Atlas ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Madrid, Mu-
pour la vie”. FOUCAULT, Michel – La grande étrangère. À propos de littérature. Édité
seo Nacional Reina Sofía, 2010, p. 84-85.
et présenté par Philippe Artières, Jean-François Bert, Mathieu Potte-Bonneville et Judith
Revel. Paris, Ed. EHEES, 2013, p. 32-36. 31 Como resume André Gunthert, “Si l’on rapproche la démarche de Benjamin de celle
d’un Roland Barthes, bien des années plus tard, il semble bien qu’il faille formuler l’hypo-
12 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos – “O poeta e a fotografia”, Correio da manhã,
thèse d’un lien étroit de la photographie avec cette forme du deuil que Freud nomme mé-
Rio de Janeiro, 20 jul. 1947, mais tarde reproduzido em Passeios na ilha. Rio de Janeiro,
lancolie. À la différence de Proust, dont l’expérience demeure enclose dans le champ de sa
Organização Simões, 1952, p. 204-205. Sobre a fotografia, Man Ray escreveu “La Pho-
propre mémoire, Benjamin comme Barthes utilisentleur propre intimité pour approcher et
tographie qui console” (com quatro desenhos dele) na revista de Gualtieri di San Lazzaro,
comprendre l’image et y insuffler du récit. Sans aller jusqu’à parler d’une méthode ou d’une
XXe Siècle, I, n. 2, Paris, 1938, bem como “Sur le réalisme photographique” (Cahiers d’art, X,
heuristique mélancolique, on doit admettre que ce Fort-da temporel, ce jeu de la mise à
n. 5-6, Paris, 1935) e a plaquette La photographie n’est pas l’art (Pref. André Breton, Paris,
distance pour la plus grande proximité (“unique apparition d’un lointain, aussi proche soi-
G.L.M., 1937).
t-elle”) témoigne d’une remarquable efficacité”. GUNTHERT, André – “Archéologie de la
13 CUNHA, Sylvio da – “Carta a Carlos Drummond de Andrade” (Petrópolis, 4 fev. 1945). ‘Petite histoire de la photographie’” in CARERI, Giovanni e DIDI-HUBERMAN, Georges –
Depositada no Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa. L’Histoire de l’art depuis Walter Benjamin. Paris, Mimesis, 2015, p. 151.

19
joão carlos de figueiredo ferraz

Rejane Cintrão (São Paulo)


Atuou como curadora executiva do Museu de Arte Moderna
de São Paulo. Idealizou as curadorias do Espaço Cultural
do Complexo Hospitalar Edmundo Vasconcelos e da Torre
Santander em São Paulo. Realizou o projeto Novos Curadores.
Atualmente é diretora da empresa Isso é Arte e coordenadora
do Instituto Figueiredo Ferraz em Ribeirão Preto.

Para receber o pdf da palestra, envie um e-mail para:


vetoresagendamento@gmail.com

20
Arte Contemporânea:
curadoria para novos públicos

Rejane Cintrão: Bem, eu vim aqui hoje falar para vocês das porque, ao invés de ficarem guardadas na reserva técnica
minhas últimas experiências com curadoria. Eu trabalhei trin- (os museólogos que me perdoem), elas ficam à mostra para
ta anos em instituições, no MAC de 1984 a 1991, no MAM de que os funcionários possam conviver com elas diariamente.
1993 a 2005, e nas Bienais de São Paulo de 1983 e 1993. Há Paralelamente a essa grande mostra do acervo do prédio,
dez anos abri a minha empresa que se chama “Isso é Arte”. havia uma área no térreo que era de passagem a qual foi
Comecei a me dedicar aos meus próprios projetos no iní- ocupada para exposições temporárias de arte. Além disso, o
cio de 2006, logo que deixei o MAM, e foi muito bacana, edifício possui em cada andar (21 andares) lounges para os
porque eu descobri um mundo incrível fora das instituições. funcionários tomarem um café, descansar, discutir. Coube
E foi muito bom esse desafio, porque eu tive que pensar a mim também o desafio de levar exposições para esses 21
projetos para um público que não está acostumado a fre- lounges. Então vou mostrar para vocês um pouco do que a
quentar museus ou galerias, ou seja, um novo público. É um gente fez e como que eu fui pensando cada projeto, com o
pouco difícil mostrar a arte contemporânea, que é um as- objetivo de ir envolvendo as pessoas que transitavam por
sunto bastante complexo, para pessoas não acostumadas esses locais.
ao assunto. Arte contemporânea não é fácil, não adianta a Além do Santander, tem um projeto que desenvolvi para
gente falar que é fácil, porque não é para um público que não um hospital que é o que eu mais amo e que acredito ter sido
está acostumado com isso, que tem, inclusive, preconceito pioneiro no mundo, sem falsa modéstia. E, por último, eu
em relação ao assunto (é só você dizer que trabalha com arte vou mostrar uma exposição que está atualmente em car-
para as pessoas comentarem: “ah, eu não entendo nada de taz no Instituto Figueiredo Ferraz, em Ribeirão Preto, para a
arte”). Esses projetos, para mim, foram muito bacanas, por- qual fiz a curadoria a partir da coleção Dulce e João Carlos
que eu consegui romper essa barreira nesses locais onde eu de Figueiredo Ferraz.
os desenvolvi. Eu trouxe aqui três exemplos para vocês. O
primeiro sobre o qual vou falar é o que eu desenvolvi para a O projeto na Torre Santander
Torre Santander, aqui em São Paulo, que foi destinado prin-
cipalmente para os funcionários locais. A Torre tem cerca de O projeto teve início em março de 2011. O espaço expositivo
seis mil funcionários, e eles têm uma área no térreo onde no térreo é uma área em “L”, que possui duas entradas. Na
foram realizadas algumas mostras com minha curadoria. verdade, é uma área de passagem de uma entrada do edi-
Quando cheguei lá, eles tinham uma exposição com obras fício para a outra. Como eles estavam acostumados com
da coleção. Eles têm uma coleção bastante grande de arte as obras de arte moderna da coleção, a primeira exposição
moderna, parte da qual estava exposta no projeto Convi- que eu pensei em fazer foi uma transição do moderno para
vendo com Arte, que foi criado pela coordenadora do acervo. o contemporâneo. E aí eu escolhi cinco obras da coleção
Todas as obras da coleção ficam expostas pelos escritórios com temas recorrentes na arte: uma natureza morta, uma
e acessíveis aos funcionários. Eu achei isso muito bacana, paisagem, uma cena do Rio de Janeiro, uma marinha, etc.,

21
e selecionei obras de artistas contemporâneos cedidas por Pintura além do Pincel. Pensei na questão da pintura por-
diversas galerias da cidade, que também tratavam desses que é um tipo de técnica que as pessoas têm mais familia-
temas, obviamente contextualizadas para a produção atual. ridade, só que no contexto contemporâneo da pintura: além
Desta forma, obras dos artistas modernos José Pancetti, Ma- de telas, selecionei vídeos, vídeos/performances, objetos,
nabu Mabe, Francisco Rebolo, Manoel Santiago e Arcangelo fotografias onde o tema pictórico estava presente. Pinturas
Ianelli passaram a conviver com trabalhos de Sandra Cin- de Janaina Tschape, Ana Elisa Egreja, Paulo Whitaker, Luiz
to, Paulo Climachauska, Albano Afonso, Claudia Jaguaribe, Zerbini, Alessandra Duarte e Pedro Varela dialogavam com
Chiara Banfi, Sonia Guggisberg, Vania Mignone, Wagner Mal- vídeos de Ricardo Carioba, Katia Maciel, Fernando Veláz-
ta Tavares, Caio Reisewits, Fernanda Rappa e a jovem Flo- quez, performance/vídeo de Ricardo de Castro, esculturas
ra Assumpção. Então foi uma passagem, uma introdução à em crochê de Camila Pontes, esculturas/flores de Jardineiro
arte contemporânea. Pensei também num título que fosse e fotografias/objetos de Valentino Fialdini. Os textos trata-
claro: Entre o Moderno e o Contemporâneo. Para esta mostra vam da questão da cor, da composição do plano e de uma
desenvolvemos textos didáticos divididos em três questões: pintura que transcendia a tela. Falamos da cor e de como
“Quem é?”, onde colocávamos fatos que pudessem interessar o pictorialismo pode estar presente em técnicas que não
as pessoas, sei lá, por exemplo, o Rebolo, que fez a logomar- apenas a pintura. Note-se que nesta mostra introduzimos
ca do Corinthians, ou um artista que estudou engenharia, aí diversos jovens artistas, ao lado de outros já reconhecidos.
você percebe que na obra há alguma relação com a formação Algo que não esperávamos aconteceu: o Santander adquiriu
do artista, enfim, informações relevantes para a compreen- uma das obras da exposição, e a grande pintura de Janaina
são da obra, e não o curriculum do artista. A outra pergunta Tschape passou a fazer parte da coleção Santander, inician-
era “O que é?”, e aqui falávamos sobre a técnica da obra, a do, assim, uma nova fase no acervo.
composição, etc. A última pergunta era “Por que está aqui?”, e Durante todo ao ano de 2011, 88 obras de 40 artistas do
este texto tratava da contextualização daquela obra naquela Ateliê Fidalga ocuparam os 21 lounges do edifício no projeto
exposição, ou seja, a curadoria da exposição: porque que ela Conhecendo Artistas. No final do ano, logramos publicar um
estava lá, qual era o diálogo dela com outras obras, e aí, por pequeno catálogo sobre este projeto inédito, encabeçado
meio do texto, a gente ia convidando as pessoas a fazerem por Sandra Cinto e Albano Afonso, criadores e coordenado-
essas relações. Na entrada colocamos uma grande escultu- res do Ateliê Fidalga.
ra da Chiara Banfi, uma espécie de um jardim suspenso, vi- Para a terceira mostra, que abriu o ano de 2012, conse-
sando que justamente um diálogo com as paisagens, ou seja, guimos construir novos painéis, desenhados especialmente
como um artista pensa a paisagem hoje. E ao mesmo tempo para o espaço pelo Gerardo Villaseca. Foi uma grande con-
convidando as pessoas a entrarem na área expositiva. quista, mas, por outro lado, fomos obrigados a “engolir” um
Cada exposição tinha um designer gráfico que desenvol- carpete vermelho horrível, sugerido pela equipe de marke-
via toda a parte de legenda e comunicação visual. E é im- ting. São negociações que temos que fazer em espaços cor-
portante a gente lembrar que estamos dentro de um banco, porativos...
então vocês percebem que o espaço é complicado, a ilumi- A mostra, intitulada Caminhos da Fotografia, foi uma
nação é difícil, e como os painéis estavam localizados nas das mais apreciadas pelos funcionários e reuniu obras de
laterais da sala as obras pareciam “papéis de parede”. Vik Muniz, Caio Reisewitz, Claudia Jaguaribe, Marcos Chaves,
Para a segunda exposição, então, propus uma mudança Tuca Reinés, Vicente de Mello, Cassio Vasconcelos e Luiz
no espaço (o que não é fácil dentro do mundo corporativo). Braga, e dos jovens Felipe Berndt, Bruno Vieira, Ding Musa
Conseguimos, então, colocar alguns painéis na área central e Fernanda Rappa. Desta mostra foram adquiridas diversas
do espaço e optamos por um tema mais contemporâneo: obras pelo Santander.

22
Pela primeira vez, também introduzimos uma atividade tratando da história da fotografia, da arte e de como a arte
educativa na exposição, organizada pela Superbacana e está contextualizada em seu tempo.
coordenada pelos educadores Carlos Barmak e Zá Spiegel. Durante todo o ano de 2012, no projeto Conhecendo Artis-
Fizemos a abertura com a atividade na hora do almoço, mo- tas, mostramos 88 fotografias de diversos fotógrafos nos 21
mento em que todos os funcionários transitam no local. Em lounges, selecionados por nós juntamente com os coordena-
lugar de coquetel, oferecemos brigadeiro e água, porque até dores da Fotospot, apresentando uma nova proposta: incen-
nisso o curador tem que pensar. E aí as pessoas começaram tivar os funcionários a iniciarem suas coleções por meio de
a entrar e circular no espaço, e assim convidávamos para aquisições via site. Infelizmente nenhuma foto foi adquirida
as atividades, que, basicamente, eram usar elementos para pelos funcionários, mas o Santander comprou diversas delas,
serem fotografados com câmaras profissionais que leva- que passaram a fazer parte da coleção do Banco.
mos, ou mesmo pelos celulares das próprias pessoas. Por Em 2013 iniciamos o ano com a exposição Nova Pintura,
exemplo, havia uma “maquetinha” que as pessoas podiam visando mostrar a nova geração de artistas que retomou a
fotografar para entender como que o Vik Muniz realiza o tra- pintura figurativa, tendo imagens de fotografias tiradas a
balho dele. Tinham caleidoscópios para as pessoas olharem partir de câmeras de celulares, de câmaras de segurança e
os trabalhos, enfim, diversas atividades com o objetivo de da internet. E o Banco deu continuidade às aquisições rea-
levar as pessoas a olharem verdadeiramente as obras. E não lizadas diretamente com as galerias. O próprio Vagner, que
apenas passarem por elas. Obviamente o que mais “rolou” está aqui, emprestou obra para a gente. E foi muito impor-
foram os selfies em frente às obras, mas faz parte. O Banco tante, porque hoje em dia para o curador é muito difícil você
criou um canal interno para as pessoas postarem suas fotos conseguir obra direto do artista. Todo artista é representado
e foi bastante interativo. por uma galeria. Para esta mostra convidei os jovens pinto-
Então vocês estão percebendo que nós começamos fa- res Ana Elisa Egreja, Eduardo Berliner, Camila Macedo, Flá-
lando do moderno ao contemporâneo, começamos a falar via Metzler, Mariana Palma, Rafael Carneiro, Paulo Almeida,
da questão da pintura contemporânea que vai além da tinta Renata de Bonis e Rodrigo Bivar.
sobre tela, e sobre a fotografia contemporânea, que tam- É importante frisar aqui que o curador tem que ter muitos
bém foi bastante utilizada pelos artistas a partir dos anos contatos, tem que estar permanentemente visitando as ga-
2000, depois do surgimento das câmeras digitais. Tudo isso, lerias, mesmo os ateliês dos artistas, para poder conseguir
acompanhado de textos didáticos, fôlderes e atividades as obras para seus projetos. Elas não caem do céu.
educativas, além de vídeos com entrevistas com artistas, O curador também precisa entender de espaço e saber
que ficavam disponíveis no YouTube para quem quisesse conversar com um arquiteto sobre o que quer para sua ex-
saber mais sobre a obra, o artista, etc. posição. É aqui que entra um novo elemento no projeto:
Passamos, depois, a desenvolver pequenos brindes nas o projeto expográfico, que passou a fazer parte das mos-
atividades educativas para as pessoas levarem com elas: tras em 2013. Para tal, convidei Felipe Tassara, que é fera
biscoitinho da sorte com frases de arte dentro, fitas do Se- em design de espaço, e falei: “Olha, Felipe, a gente quer
nhor do Bonfim com questões sobre arte e os trabalhos na fazer uma exposição com esse assunto e com estas obras,
exposição, pôsteres com palavras que remetessem a tra- mas quero que você mude a cara do espaço”. O título da
balhos expostos, etc. Entramos com mais esse elemento, e mostra era O Cotidiano na Arte e ele me propôs um projeto
foi muito bacana porque muitos funcionários começaram a superousado, usando os mesmos painéis que a gente ti-
colocar esses objetos na estação de trabalho deles, ou seja, nha no espaço, utilizando pequenos novos elementos, que
eles mesmos divulgavam a exposição dentro do espaço. mudaram completamente a cara da sala de exposição. E
Além disso, começamos a introduzir uma “Linha do Tempo” ele criou uma espécie de flecha, e lá dentro tinha um outro

23
espaço criando duas áreas expositivas, e foi muito baca- jetos utilizados pelos artistas. Por exemplo: “Faca”, “Janela”,
na, porque mudou totalmente o espaço. Aí ele sugeriu um etc., que eram distribuídos gratuitamente durante a ação
vermelho “amor” para pintar a área externa dos painéis, e educativa. O objetivo era que as pessoas colocassem nas
eu fiquei bastante preocupada, mas aceitei a proposta, e suas estações de trabalho ou em casa.
deu certo. Convidei artistas que se apropriam de objetos do Para os 21 lounges, em 2013 convidamos a artista Monica
cotidiano e os descontextualizam, criando um novo olhar Nador para apresentar obras desenvolvidas no JAMAC (Jar-
sobre eles. E foi muito bacana, porque o pessoal do Banco dim Miriam Arte Clube), um projeto comunitário, que visa
começou a entender que tudo que nos cerca pode ser apro- levar cultura e arte para áreas menos privilegiadas da cidade.
priado, pode ser visto de uma outra maneira. E também Além das gravuras e tecidos desenvolvidos pela comunida-
fizemos uma atividade educativa com eles (é interessante de juntamente com a artista, duas paredes foram pintadas
que a cada exposição eles começaram a participar mais e com estampas feitas por meio de estênceis.
mais). E, como falei, cada exposição contava com a “Linha Ao longo de três anos realizamos seis exposições no tér-
do Tempo”, então, por exemplo, no caso da pintura, no caso reo e três grandes mostras nos 21 lounges, apresentando
da fotografia, a gente colocou uma linha do tempo focando os mais diversos trabalhos realizados por artistas contem-
no assunto. Aqui era a questão do cotidiano, obviamente, porâneos brasileiros presentes nas mais importantes mos-
e a gente começou com Picasso, Duchamp e foi traçando tras nacionais e internacionais. As exposições apresentadas
essa linha do tempo até hoje. Então, por exemplo, alguns entre 2011 e 2013 na Sala de Arte reuniram mais de 150
artistas que não estavam na exposição, tipo Nelson Leirner, obras realizadas por 70 artistas de diferentes gerações. Nos
eram citados nessa linha do tempo. lounges foram mais de 250 obras realizadas por cerca de
E para a última exposição, que foi mais ou menos uma 100 artistas e fotógrafos.
continuidade da mostra O Cotidiano na Arte, eu quis levar a O objetivo foi trazer para o ambiente de trabalho o que
questão do design, mas o design do lado avesso, não aque- de mais novo tem sido produzido na arte nacional, não
le design que as pessoas entendem como um design sofis- apenas informando quem passava por esses espaços, mas,
ticado, caro; ao contrário. Minha ideia foi mostrar como os principalmente, estimulando novas ideias por meio da arte.
artistas se apropriam de objetos, também do cotidiano, mas Nossa meta foi criar um lugar de formação de novos pensa-
que têm um design funcional, bem resolvido, e criam um mentos e mostrar o poder transformador da arte.
outro contexto para ele. Então, por exemplo, no trabalho do
Reginaldo Pereira, ele se apropria de facas Tramontina para Os projetos de site specific no
a obra Alvo, da série Risca Faca. Em outras palavras, não Complexo Hospitalar Edmundo Vasconcelos
são facas caras, de design, mas elas têm um design super
bem resolvido, o que as torna um utilitário bastante usado Este projeto foi desenvolvido por mim e pela Paula Amaral
no dia a dia. O Eduardo Coimbra, por exemplo, se apropria a partir de um convite da agência de comunicação do Hos-
de lâmpadas fluorescentes e as embala com um filme em pital. O prédio foi desenhado pelo Niemeyer, mas está to-
forma de nuvens, como se fosse um céu iluminado. De novo, talmente descaracterizado hoje. O jardim era originalmente
a lâmpada fluorescente tem um superdesign, é super bem do Burle Marx, mas não é mais, infelizmente. Dentro do edi-
resolvida, é usada até hoje, e a gente nunca pensa nisso. A fício há dois painéis em pastilhas do Di Cavalcanti. E a área
Nazaré Pacheco, por exemplo, participou com o vestido de que nos foi destinada estava localizada na entrada para a
Gilette. A Superbacana juntamente com o Educativo cria- internação, que é totalmente envidraçada e arredondada.
ram uns pôsteres com palavras que se relacionavam aos ob- Enfim, um espaço bastante difícil. Pensei com a Paula: aqui

24
só são possíveis projetos pensados especialmente para este entrada do edifício também. Então o Albano Afonso, que
espaço. Tem que ser site specific. Bem, aí é que o desafio foi o próximo convidado, teve que pensar dois projetos,
teve início, porque se trata de uma entrada de um hospital, um para cada lateral da entrada, e mais as portas dos ele-
que funciona 24 horas por dia, onde não pode ter barulho, vadores, espaço sugerido pela diretoria do hospital. O Al-
sujeira, etc. As pessoas estão esperando para serem inter- bano desenvolveu esse projeto em cima da arquitetura e
nadas ou para visitarem entes queridos, enfim, nada fácil. da paisagem do prédio. Para a área de baixo ele criou uma
Pensamos então num tipo de montagem que fosse viável, espécie de floresta, e por meio de elementos vazados você
fácil de aplicar, e que não fizesse sujeira: adesivos. E obvia- via também o jardim, criando um diálogo interior-exterior.
mente a primeira artista que nos veio à cabeça foi a Regina Na área superior eram formas geométricas que tinham a
Silveira. E ela é sensacional! Fui até o ateliê dela, conversa- ver com a fachada do prédio. E para as montagens do ou-
mos, e ela topou na hora. Foi maravilhoso começar o proje- tro lado criamos uma estrutura com uma grande lona, que
to com ela. E também foi muito bacana porque o hospital pudesse ser trocada a cada projeto. Então o artista criava
pertence à Fundação Bradesco, que pagou um ótimo cachê tudo no computador, e a empresa de adesivos imprimia
a todos os artistas participantes, além de viabilizar as obras. e instalava tanto os adesivos nas janelas quanto a lona
Regina Silveira criou uma linda instalação com a palavra no outro lado da recepção e nas portas dos elevadores.
“Luz” escrita em diferentes tons de azul e em diversas fontes, Enfim, foram dez artistas que participaram deste projeto, de
o que gerava um efeito muito bonito das palavras refletin- 2010 a 2013: Regina Silveira, Sonia Guggisberg, Sandra Cinto,
Albano Afonso, Pazé, Pedro Varela, Daniel Cabalero, Claudia
do no piso e nas paredes. Os diretores do hospital ficaram
Jaguaribe, Flavia Junqueira e André Feliciano Jardineiro.
muito felizes, porque esse hospital era de endocrinologia e
depois passou a ser um hospital geral. E foi a primeira vez Wagner Lungov: Uma pergunta: eles descobriam na hora da
que uma pessoa deu à luz nesse hospital enquanto esse abertura?
projeto estava lá. Foi bem mágico!
Em seguida convidamos a Sonia Guggisberg, que criou Rejane Cintrão: Não, não. Na verdade, os artistas faziam os
uma instalação como se fosse uma piscina. E as pessoas projetos a partir da planta e projeção do espaço. Nós apre-
realmente se sentiam dentro de uma piscina. sentávamos para a diretoria, e eles aprovavam com antece-
Sandra Cinto foi convidada para o próximo projeto pen- dência. O mesmo acontecia no Santander. Sempre apresen-
sando na questão do pôr do sol, que era bem presente na távamos um projeto com a ideia da curadoria e as obras que
sala. E também introduziu objetos lúdicos no espaço e uma íamos apresentar, com um ano de antecedência.
mesinha com cadeira. Sobre a mesa tinham papéis e cane-
A curadoria a partir de uma coleção privada no
tas coloridas, convidando as pessoas a fazerem um dese-
Instituto Figueiredo Ferraz
nho no local. Além disso, havia envelopes selados para que
as pessoas pudessem enviar esses desenhos para quem O último projeto que fiz é a exposição que está em cartaz
quisessem. Na verdade, com este projeto muito poético, ela até o dia 20 de dezembro deste ano no Instituto Figueiredo
convidava as pessoas a retomarem dois hábitos que perde- Ferraz, em Ribeirão Preto.
mos: o de desenhar e o de enviar cartas pelo correio. E foi O primeiro projeto sobre o qual falamos aqui era desti-
muito bacana porque tanto os visitantes quanto os hospita- nado ao público de um banco (que está sempre na correria),
lizados adoraram e participaram, principalmente as crianças. o segundo para um público de hospital (que está sempre
O pessoal do hospital ficou tão animado que, além da- na espera), e este terceiro para um público totalmente leigo,
quela área, resolveram nos disponibilizar o outro lado da que é o público jovem, principalmente alunos de escolas de

25
Ribeirão Preto e região, que, muitas vezes, nunca tiveram rio para analisá-la, tem início nos anos 2010, quando surge
contato com a arte contemporânea. uma geração de novos pintores que buscam nas imagens
A coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz, que é fotográficas vindas de câmeras de celulares, câmeras de se-
abrigada pelo Instituto, é um privilégio para a região. Pensei gurança e da internet uma nova forma de discutir a pintura,
então numa curadoria voltada para esse público de estu- em grande parte figurativa. Obviamente a coleção também
dantes, a partir dessa coleção incrível. O título da mostra é abriga obras de uma outra produção do nosso tempo, que
O Espírito de Cada Época e é uma exposição cronológica. trata do território, da questão da segurança, com obras mais
Cada segmento trata de uma década, iniciando pela déca- engajadas politicamente. Estas também se encontram na
da de 80, que é quando os colecionadores começaram a exposição.
adquirir obras. O casal iniciou sua coleção adquirindo obras O que torna a coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo
de artistas da época e continua adquirindo obras até hoje, Ferraz excepcional, além do fato de eles a colocarem à dis-
o que possibilita uma ótima revisão da produção brasileira posição do público, é que eles adquirem obras sistematica-
dos anos 80 até o presente. mente, acompanhando a produção tanto de artistas já reno-
Como a ideia da curadoria era apresentar uma espécie mados como Paulo Pasta, Fabio Miguez, Nuno Ramos, Iole
de retrospectiva da coleção, iniciando pelos anos 80, além de Freitas e tantos outros, quanto da produção jovem. Diga-
do fato de ter o público estudantil como meta, decidi fazer mos que fazer uma curadoria com essa coleção é extrema-
uma curadoria compartilhada, com a participação do cole- mente fácil, porque se pode pensar em diversas questões,
cionador e do Educativo. Além disso, convidei Joana Tuttuil- temas, meios de expressão, tendo sempre algum trabalho
mondo, que já fazia as cronologias para os meus projetos bastante representativo para selecionar. O setor Educativo
no Santander, para realizar uma cronologia incluindo fatos do Instituto Figueiredo Ferraz, coordenado pela Vera Bar-
políticos, sociais, tecnológicos e arte, contextualizando a ros, assim como a equipe de museologia e projetos, assim
produção artística em cada década. como eu, temos a oportunidade não apenas de conviver
Por exemplo, sobre os anos 80, anos pós-ditadura, enfa- com essa importante coleção, mas também de acompanhar
tizamos o fato de a liberdade de expressão ter sido um dos o seu crescimento, por meio de novas obras que chegam a
fatores mais importantes. Foi uma década de comemoração, cada semana. É realmente um privilégio! Por isso acredito
retorno da pintura, muitas bandas de música, a exemplo da ser fundamental a qualquer profissional da área não apenas
Blitz, Ira, Paralamas do Sucesso, Titãs, enfim, todos esses uma, mas várias visitas ao Instituto Figueiredo Ferraz em
fatos, além de fatos políticos e sociais estão citados no fôl- Ribeirão Preto.
der. Já os 90 são enfatizados pelo surgimento da AIDS, que
matou jovens, artistas, e que se reflete na produção artística,
a qual se torna mais soturna, questionando a identidade, o Luciano Ruas: É sempre irônico o trabalho de arte em qual-
corpo, etc. Já na década de 2000 a fotografia tem um boom, quer espaço que a gente faça, principalmente nesses espa-
os artistas começam a se apropriar desse meio de uma ma- ços onde, nesse caso, no banco, há muito poder financeiro.
neira muito ampla, graças ao surgimento da fotografia digi- Levar um pouco de arte para sensibilizar é sempre impor-
tal, da facilidade em ampliar fotos em grandes dimensões tante. Mas a minha pergunta, que eu queria fazer, é: você
e em poder “contaminar” (utilizando um termo do Tadeu presta... (eu queria entender essa questão da curadoria) você
Chiarelli) a fotografia de várias maneiras, via computador presta serviço de curadoria para essas instituições, você não
e outros meios. A última década, a qual estamos vivendo necessariamente está ligada a essas instituições. Por exem-
ainda e que, por isso, não temos o distanciamento necessá- plo, você não trabalha para o Santander.

26
Rejane Cintrão: Não, eu sou terceirizada. Eu falo sempre Luciano Ruas: A minha última pergunta é… essa questão da
que o meu cliente é o artista porque sem ele não teríamos formação do novo público realmente é muito importante.
as obras e, consequentemente, não teríamos os museus, as Você deve ter livros para as pessoas deixarem seus comen-
coleções, o mercado de arte, enfim, o artista é o principal tários, suas impressões, mas minha pergunta é: você já foi
profissional na nossa área e merece sempre todo o respeito. procurada por uma dessas pessoas que trabalham nessas
O resto, ou seja, os museus, as galerias, os espaços culturais instituições para te dar um feedback, assim, para você ou
e os patrocinadores são o meio para divulgar a produção do por e-mail, assim, para a sua empresa?
artista e torná-la acessível ao público. Essa é a nossa mis-
são, porque sem o artista nenhum de nós estaria aqui hoje. Rejane Cintrão: Em geral, quando as pessoas me procuram
Voltando à pergunta, eu tenho uma empresa, a Isso é Arte, é porque querem expor no lugar. Mas no caso do Hospital
por meio da qual faço os projetos, as curadorias, dou aulas, tivemos um feedback bem bacana sim. As pessoas se emo-
enfim, mas sempre trabalho como terceirizada, inclusive no cionavam, as crianças adoravam, e esse feedback ao vivo
Instituto Figueiredo Ferraz, onde sou coordenadora. não tem preço. É muito legal!

Silvia Regina Cabrera: Você falou das dificuldades e eu que- Silvia Regina Cabrera: Então... boa noite, Rejane. Boa noite
ria saber se esses espaços, por exemplo, no caso do Santan- a todos. Meu nome é Sílvia, ontem eu já fiz uma perguntinha,
der, se ele é aberto ao público que não trabalha no Banco. se alguém estava aqui. É assim: eu queria saber, já que você
está falando de abrir essas exposições de arte para novos pú-
Rejane Cintrão: Na verdade, o prédio do Santander (que fica blicos em espaços que até então não eram pensados para a
em frente ao Shopping JK) é teoricamente aberto ao público, arte, então, se você pudesse falar um pouquinho mais para
mas a gente não pode fazer nenhum tipo de divulgação fora a gente, assim, sobre como você pensa esse público-alvo,
do prédio. Então, na verdade, as pessoas podem visitar só como que você trabalha essas questões para levar para esse
as exposições do térreo (as dos lounges são exclusivas dos público leigo. Você faz um estudo do público-alvo, do espaço,
funcionários), mas só quem está expondo ou quem passa do uso, do fluxo de pessoas, assim, para a gente? Mais ou
pelo espaço fica sabendo que ali existe uma exposição. De menos, como que você cria até depois essas abordagens, de
qualquer forma, é bom lembrarmos que, além dos seis mil como levar essa informação de arte também para a pessoa?
funcionários que frequentam a Torre, eles recebem cerca de
mil e quinhentas a duas mil pessoas, que vão diariamente Rejane Cintrão: Na verdade, muita coisa vem da experiência.
para reuniões no prédio, que vêm de fora, de outras ins- Eu trabalho na área há mais de trinta anos, então a gente
tituições ou de diversas agencias do Santander pelo Brasil. acaba conhecendo um pouco de tudo. Nunca fiz uma pes-
Então é um público razoável, de mais ou menos, ou pelo quisa de público, é uma coisa meio natural, que se percebe
menos, 10 mil pessoas por mês. Outro dado negativo é que observando o público. E um bom curador, a meu ver, tem
a Torre fica fechada nos fins de semana e feriados, o que que ser não apenas um ótimo observador de arte, mas tam-
significa que o espaço expositivo também. Por isso, não bém de público. Ele tem que pensar em para quem ele está
podemos usar os projetos de lei para esse projeto especi- fazendo a exposição. Por exemplo, em Ribeirão Preto, gran-
ficamente porque todas as leis exigem que o espaço esteja de parte das pessoas não tem acesso à arte contemporânea.
aberto ao público e que haja ampla divulgação. No caso do As escolas que frequentam lá menos ainda, porque grande
Santander, a verba destinada aos projetos que realizamos lá parte são escolas públicas. Então, na verdade, a gente tem
vieram diretamente da área de marketing. uma ideia mais ou menos do público. Agora, por exemplo, no

27
Hospital eu não sabia como ia ser o público lá, qual que ia ser Silvia Regina Cabrera: A obra.
a reação deles, mas minha intuição dizia que seria bem ba-
cana. De qualquer forma, colocamos textos e um vídeo com Rejane Cintrão: É, a obra. Enfim, eu acho que a nossa parte é
entrevista com o artista falando sobre o trabalho justamente oferecer informação. Você dá o subsídio, e aí quem quiser tem
com o objetivo de aproximar o visitante da obra ali exposta. acesso. É como projeto educativo. Você não pode impor uma
No Banco foi mais fácil de prever, porque lá a gente sabia, a visita guiada; às vezes a pessoa vai no espaço: “ah, você quer
própria equipe do Banco sabe a idade média dos funcioná- uma visita? Não, não quero, eu quero ver sozinho”. Aí depen-
rios, o perfil (trinta e poucos anos, jovens que ganham relati- de da pessoa. Mas a gente tem que dar subsídios para quem
vamente bem, etc.). Por isso no Banco a gente tentava fazer quiser ter mais informação. Com ou sem Educativo.
um projeto mais ousado, mas que também incentivasse as
Pessoa não identificada 1: Oi, tudo bem? Eu tenho uma curio-
pessoas a investir em arte, um pouco dentro da ideia de um
sidade grande. Como é feito o contato com os artistas? Para
banco... No Hospital não, no Hospital era um projeto onde a
se montar um..., eu sei que é muito óbvio, através das galerias,
pessoa pudesse descansar, pensar em outras coisas. Na ver-
através dos colecionadores, mas o que eu sempre ouço assim,
dade, dependendo do lugar, você já imagina mais ou menos,
de pesquisas, que você tem que se aproximar dos artistas...
mas é óbvio que todos esses trabalhos são sempre feitos em
colaboração com os artistas. Então, por exemplo, no Hospital Rejane Cintrão: Tem.
os artistas iam comigo lá, conheciam o espaço, viam como
era, então muito da sensibilidade do artista conta nessa hora. Pessoa não identificada 1: Tem que entender os artistas,
Eu até acho que meu trabalho no Hospital não era nem de tem que conhecer os artistas. Eu acho assim, eu conheço
curadoria; eu idealizei o projeto, mas eram os artistas que muita gente, mas como é que é essa coisa de “vou chegar
desenvolviam o projeto para lá. E aí tem essa sensibilidade para um artista e ‘oi, tudo bem?’”. Eu sinto muito essa difi-
do artista que é muito natural e importante. culdade, assim...

Silvia Regina Cabrera: Porque eu acho assim, que hoje em Rejane Cintrão: Eu dou muita aula e sempre comento com
dia o maior desafio é assim, você conseguir sensibilizar e meus alunos, primeiro, sobre essa aura que ficou em torno
atingir a pessoa de uma maneira positiva, sem que se sinta do curador, que é totalmente equivocada. Gente, a nossa
invadida nem agredida, não é? área tem milhões de possibilidades. Eu, por exemplo, não
trabalho só com curadoria, eu faço um monte de coisas,
Rejane Cintrão: O mais importante é fazer com que o visi- faço produção, dou aula, enfim... Em primeiro lugar, você
tante não se sinta idiota. Títulos e textos complexos só afas- tem que conhecer as galerias, os museus, os espaços al-
tam as pessoas. Essa é a pior forma de agredir o visitante. ternativos... Gente, existe tanta coisa acontecendo em São
Ele se sente burro. Arte é complexa? É! Então vamos forne- Paulo! Aí você começa a travar conhecimento com as pes-
cer dados para que as pessoas possam ter um acesso mais soas da área: conversa com o educador, com o cara que
fácil a ela. Isso não significa banalizar. Significa dar meios: trabalha na galeria, com os galeristas, e também com o ar-
textos claros, vídeos com artistas falando sobre as obras, vi- tista. E pode também começar com um trabalho voluntário
sitas com educadores que não “viajem na maionese”, são em alguma instituição. Eu comecei como monitora da XVII
formas possíveis. O que não dá é o curador ou o educador Bienal de São Paulo, na equipe da Daisy Peccinnini, minha
querer desenvolver uma tese acadêmica visando o público professora de história da arte da FAAP. O Walter Zanini era
leigo. Tudo tem seu lugar e hora. E o mais importante na o curador. E trabalhei lado a lado com ele. Foi assim que ini-
exposição é sempre a obra, não o curador. ciei minha carreira. Ou seja: frequentar exposições, galerias,

28
ir nas vernissages, faz com que você conheça as pessoas, se se inscrever em salões porque os salões têm sempre júris
aproxime delas, é uma coisa que acontece naturalmente, a formados por curadores, e grande parte dos artistas que se
partir do momento em que você começa a conhecer as pes- tornaram conhecidos da década de 80 e 90, começaram
soas você vai se sentindo mais à vontade. Sei lá, os artistas expondo em salões, a exemplo do Leonilson. Eu acho que
são meus amigos hoje, grande parte dos meus amigos são essa é a melhor forma de tornar o seu trabalho conhecido.
artistas, porque eu vivi a minha vida toda trabalhando nisso, Agora, também é importante você saber como mandar um
então acaba sendo uma coisa natural. E é muito importante, projeto ao salão, porque é muito importante que seja um
na hora de você fazer uma exposição, que você conheça as projeto objetivo, que tenha boas imagens, que seja claro.
pessoas, porque na hora de pedir um trabalho tanto para Tem gente que manda tese de mestrado, oitocentas pági-
um artista, um galerista ou mesmo um colecionador, é im- nas... Não façam isso. E existem lugares como, por exemplo,
portante que a pessoa sabe quem você é, entendeu? O Pau- o Ateliê Fidalga, onde os artistas se encontram para discu-
lo Herkenhoff, por exemplo, que é um supercurador, acom- tir o trabalho, um fala do trabalho do outro, eles orientam
panha os artistas desde sempre, desde que ele começou a como fazer um projeto para salão, etc. Então, hoje a gente
trabalhar, na década de 70/80. Ele tem caderninhos onde tem muito mais possibilidades e espaços para fazer isso do
ele faz anotações sobre cada artista. Isso desde aquela épo- que, sei lá, nos anos 80, por exemplo. Quando comecei a
ca. Eu também comecei com produção de exposição, en- trabalhar no MAC, nos anos 80, não existiam empresas de
tendeu? O Ricardo Resende começou no Educativo, o Felipe transporte especializado, montadores, iluminadores, desig-
Chaimovich escrevia para a Folha, o Cauê Alves começou ners de exposição, nada! Me lembro que eu mesma, como
escrevendo textos para as obras que a gente expunha no estagiária na época, fui embalar e retirar obras do Ismael
MAM. Enfim, você tem que começar trabalhando nessa área Nery no meu carro. Isso seria impensável hoje.
e ir se ambientando. Aí acontece naturalmente.
Pessoa não identificada 3: Impensável.
Pessoa não identificada 1: Você dá aula onde?
Rejane Cintrão: O Luiz Sacilotto me contou por ocasião de
uma entrevista que fiz com ele, que para a exposição do
Rejane Cintrão: Eu já dei aula na Santa Marcelina, na pós
Ruptura no MAM, na década de 50, ele pegou o ônibus com
da PUC, e atualmente leciono no curso da pós da Belas Ar-
as pinturas embrulhadas em jornal para levá-las até o Museu.
tes. Mas também dou vários cursos no SESC, são os que eu
Hoje veja quantos profissionais especializados são envolvi-
mais gosto porque os alunos são ultrainteressados, e isso
dos numa exposição: o produtor, o curador, o montador, o
proporciona uma troca. Estou sempre aprendendo com eles.
iluminador, o designer gráfico, o arquiteto/designer expo-
Pessoa não identificada 2: A minha pergunta foi quase igual gráfico, o assessor de imprensa, e por aí vai. Na época em
à dela, mas justamente, do lado oposto, assim: qual é a me- que trabalhei no MAC/USP, nos anos 80, a iluminação era
lhor forma do artista mostrar a obra dele, para que ela possa a luz fria do teto, os painéis eram aglomerados aproveitados
ser melhor adequada por um curador? É uma foto, é um das Bienais, não tinha ar condicionado, não tinha nada disso,
registro em vídeo, etc.? gente. O chefe de montagem, Sr. Hirone, um verdadeiro herói
que fazia tudo, de montar painel, pintura, a montar os traba-
Rejane Cintrão: Com o artista é diferente, porque o artista lhos mais loucos dos artistas, tinha uma Kombi com a qual
tem um trabalho muito solitário. Muitos artistas falam isso ele subia a rampa que dava acesso ao Museu, atravessava a
para mim, que é um trabalho solitário, de ateliê e tal. Ago- área expositiva e estacionava ela no final do Museu. Tinha
ra, a melhor forma de um artista divulgar o trabalho dele é até uma vaguinha especial para a Kombi. Era assim, gente!

29
Silvia Regina Cabrera: Então, Rejane, acho que é só a gente lhando, ele passa sempre correndo, chegando atrasado,
lembrar a história da 2a Bienal de São Paulo, em 1953. Que saindo para uma reunião, e eu não sei qual é a relação do
o Guernica subiu do porto de Santos até São Paulo em um cara que trabalha no banco com o próprio banco. Pode ser
caminhão com uma lona em cima. O Guernica subiu desse que ele odeie o banco, não sei. Agora, uma pessoa que vai
jeito, não foi? em uma feira de arte, em primeiro lugar, as pessoas vão
para serem vistas. Se elas comprarem, elas vão querer que
Rejane Cintrão: É, e era assim, eles transportaram a coleção
os outros saibam que elas compraram, e aí começa aquela
do MAC, Kandinsky, Picasso, Matisse, tudo em cima da Kom-
coisa: um compra, aí aquele amigo também vai querer fazer
bi do Sr. Hirone com um cobertor como proteção, era isso.
parte. Mas acho que o Wagner Lungov deve saber melhor
Pessoa não identificada 4: Eu queria te perguntar se você sobre. Está bom o mercado, não está, de arte? O Wagner
está achando muito difícil os jovens começarem com cole- é dono da Galeria Central e ele vai saber dizer para a gente.
ções de arte moderna agora, comprar e começar a coleção.
Wagner Lungov: Não. Existe mesmo um movimento, assim,
Rejane Cintrão: Não. Difícil? de interesse em artes plásticas para um público que, eu di-
ria assim, começa lá pelos 25 anos de idade. Mas o principal
Pessoa não identificada 4: É que eles não estão fazendo é quem tem 35, 45, que estão começando a comprar, para
isso, que não é normal, eu estou falando. usufruir mesmo, para olhar, para ver, para conhecer o artista,
para acompanhar. Eles gostam que a gente mande os artigos
Rejane Cintrão: Não, eu acho que é ao contrário. Acho que
que saem nas revistas sobre o artista, “olha, é o seu artista e
nunca se vendeu tanta arte no Brasil e acho que tem muito
tal”. E eles acham, é o meu artista. Então existe mesmo esse
público jovem investindo nas feiras de arte. Acredito que as
tipo de movimento.
feiras de arte são muito legais para divulgação da arte por-
que as pessoas as vezes não se sentem à vontade em uma Rejane Cintrão: É, eu acho que é isso. Os colecionadores
Bienal, por exemplo... muita gente reclamou da curadoria da começam a ter uma relação, eu digo isso pelo João Carlos
última Bienal. Foi uma Bienal difícil para o público leigo. Mas de Figueiredo Ferraz, muito afetiva com os artistas e com
eu acho que ela foi muito bacana, por outro lado, porque a as obras que adquirem, e isso, na verdade, vai gerando até
arte sempre reflete o espírito da nossa época, e ela mostrou um vício de comprar obra. Acho que colecionador é meio
bem isso. Uma feira de arte, por outro lado, e não esque- viciado, um vício muito positivo!
cendo que as pessoas estão acostumadas com shopping
centers (não adianta a gente querer ter uma visão purista Wagner Lungov: Eles dizem que é difícil parar.
da arte), é uma maneira delas começarem a se aproximar
Rejane Cintrão: É difícil parar. É que nem mulher com sa-
da arte, vão criando uma familiaridade com aquilo e daqui
patos. Não consegue parar de comprar mesmo que já tenha
a pouco elas começam a ir aos museus, às galerias, elas vão
vários.
se sentindo mais à vontade, então eu acho que as feiras são
muito positivas nesse sentido. Jorge Luiz Alves: Boa noite, Rejane. Meu nome é Jorge, eu
sou estudante do curso de Crítica e Curadoria da PUC e eu
Pessoa não identificada 4: Porque eu fiquei surpresa quan-
do você falou do Santander, que ninguém comprou. queria fazer uma pergunta para você, que é a seguinte: eu
acho que o sistema de arte no Brasil, em geral, com a grande
Rejane Cintrão: Então, mas aí é diferente de quando o cara interferência das empresas, principalmente com Lei Rouanet,
vai à feira para comprar. No Santander o cara está traba- Lei de Fomento, principalmente com a Lei Rouanet, há uma

30
presença muito forte do departamento de marketing nas de- justamente incentivar, tornar o trabalho no Banco mais
finições dos projetos, e eu acho que isso acaba causando uma agradável, porque trabalhar em banco é difícil, pesado. Mas
deturpação. E como você trabalha muito com empresa, há felizmente, além de proporcionar o contato com arte para
muita interferência? Porque eu achei assim, no caso do Banco, os funcionários, o Banco se interessou em comprar algumas
você diz que apresenta três projetos, e eles escolhem um. obras, foi uma coisa natural deles. Obviamente eu não entro
nessa parte, eles negociam direto com as galerias. Mas aí a
Rejane Cintrão: Não, não. No Banco, não. No Hospital. gente começou a ver que podia também ser uma forma de
Jorge Luiz Alves: No Hospital... envolver os funcionários, porque quem trabalha em banco
entende de investimento, negócios, de investir, e a gente
Rejane Cintrão: O Hospital até eu entendo porque tinha a achou que seria uma oportunidade para incentivar o cole-
questão operacional que eles tinham que ver para a mon- cionismo. Nem tanto investir em arte, mas mostrar para eles
tagem, se não ia incomodar os doentes. No Banco, não. No que eles podiam fazer um tipo de investimento que eles
Banco eu fiz tudo, apresentei, eu tinha que apresentar antes poderiam também apreciar em casa, mas a gente não con-
em “pdf”, falando o que que ia ser o projeto, eu mostrava seguiu. Não sei se o approach, foi discreto demais, a gente
as obras que a gente apresenta lá, mas não tive nenhum só punha na parede “Que tal investir em arte?”, enfim. Era só
problema de interferência, quer seja com os temas, com os uma ideia, não teve uma ação incentivando, não teve nada
artistas ou com as obras. É obvio que eu já pensava numa disso.
curadoria viável para um espaço de uma empresa. Sobre as leis de incentivo, eu penso o seguinte: eu come-
cei a trabalhar antes da Lei Rouanet e, se não fosse a Lei
Jorge Luiz Alves: Não teve nenhuma interferência na defini- Rouanet, apesar de todos os problemas nela que deveriam
ção dos projetos? ser revistos, a gente não teria nada do que a gente tem hoje,
como o Centro Cultural do Banco do Brasil, Itaú Cultural,
Rejane Cintrão: Não. É lógico que quando você pensa um
nem patrocínio, nem museu, nem livros, nem feiras, nem
projeto em um espaço desses, você não vai pensar um traba-
mercado de arte. Antes dela e do PROAC, que é a lei de in-
lho, assim, muito ousado ou muito sexualizado, que pode dar
centivo Estadual, era muito difícil você conseguir fazer uma
problema. Você não está em uma instituição de arte, é isso
exposição do porte que a gente faz hoje, com custos ele-
que a gente tem que pensar, cada coisa tem o seu espaço. É o
vados... seria impossível. Por exemplo, o Centro Cultural do
que eu digo a respeito de texto crítico, por exemplo: tudo tem
Banco do Brasil tem uma programação muito legal, como a
o seu lugar, texto crítico é destinado a um público especializa-
exposição que está sendo mostrada atualmente. As leis de
do. Escrever um texto de parede complexo para uma exposi- incentivo viabilizam isso. Vida longa a elas!
ção, me desculpe, eu sou contra. O texto crítico tem seu lugar,
que é num catálogo, num livro, numa resenha, não sei...

Jorge Luiz Alves: Outra coisa que eu fiquei curioso: essas


obras que foram apresentadas no Banco não eram porque
alguns bancos passaram a fazer uma carteira de investi-
mento em arte, não é? Mas essas obras, não tinha nada a
ver com isso?

Rejane Cintrão: Não, na verdade a gente começou fazen-


do isso, a coordenadora me convidou porque o projeto era

31
thales leite

Paulo Herkenhoff (Rio de Janeiro)


Crítico de arte, foi curador adjunto do MoMA
(Nova York) entre 1999 e 2002 e consultor da Coleção Cisneros
(Caracas) e da IX Documenta de Kassel em 1991. Curador-chefe
do MAM/RJ de 1985 a 1990, dirigiu o Museu Nacional de Belas
Artes no Rio de Janeiro entre 2003 e 2006. Fez a curadoria geral
da XXIV Bienal de São Paulo em 1998, conhecida como a Bienal
da Antropofagia. É diretor cultural do Museu de Arte do Rio —
MAR desde sua fundação, em 2012.

32
Colecionismo no MAR,
um museu para educação

Paulo Herkenhoff: Boa noite. Vocês, que estão chegando, já Paulo Herkenhoff: É um centro cultural?
vão chegando e falando. Vocês não querem se apresentar?
Pessoa não identificada 3: É um espaço que se pode dizer
Você. Quem é?
que sim.
Izabel Mingardi: Izabel.
Paulo Herkenhoff: Quem mais aqui trabalha em centro cul-
Paulo Herkenhoff: Izabel. E você faz o quê? tural? Então o único que trabalha com museu é você, não é?
Izabel Mingardi: Eu faço arte: história, crítica e curadoria na Um critério de diferenciação entre museu e centro cultural:
PUC. no sentido mais amplo, museu é um centro cultural, mas,
no sentido mais restrito, os centros culturais, em princípio,
Paulo Herkenhoff: Você? não colecionam. Eles são espaços de exposição, debate;
Pessoa não identificada 1: Eu sou mãe dela. Eu não sou enfim, exercem uma função importante na sociedade, mas
estudante. não assumem aquilo que de uma forma capital designa o
que é um museu, que é a reunião de bens culturais segundo
Paulo Herkenhoff: Você é a própria curadora, não é? Você é? alguns critérios. Você depois falou de registrar, de saber que
Wagner Lungov: Eu sou o Wagner. Sou galerista. objeto é esse, de conhecer esse objeto, medi-lo, documen-
tá-lo, para que ele esteja fisicamente situado dentro de um
Pessoa não identificada 2: Eu não sei se a gente já pode contexto; precisa ser descrito. Você tem a imagem; assim,
partir para a definição da Valdísia Russo de que o museu é se ele desaparecer por algum motivo, se for roubado, você
um espaço privilegiado, em que você tem a relação entre a tem o registro e, quando você o recebe, você também tem
obra ou o objeto e um observador num ambiente que propi- um estado de conservação. Você, que chegou por último,
cia uma interação, uma fruição; enfim, não é qualquer lugar. que está na internet, qual o seu nome?
Essa obra ou objeto é retirado de um uso convencional para
estar em um ambiente que tem valor diferenciado e que Mario Miranda Rezende: Mario.
propicia essa interação, não é? Paulo Herkenhoff: Mario, por que você veio até aqui, a esse
Paulo Herkenhoff: Como primeira noção, ela trazia o bá- centro tão distante de onde você mora, às sete da tarde?
sico. Você, evidentemente, trabalha com museu e tem a
Mario Miranda Rezende: O que me trouxe aqui?
consciên­cia dessa relação. Talvez algumas funções pudes-
sem ser ampliadas, mas a primeira coisa que você mencio- Paulo Herkenhoff: É.
nou é que o museu reúne bens culturais, o museu coleciona.
Mario Miranda Rezende: Eu estudo história da arte com o
Você trabalha em quê?
meu colega e hoje à tarde eu estava fazendo um trabalho
Pessoa não identificada 3: Eu trabalho num espaço de cul- quando ele me falou que iria ter uma palestra. Eu resolvi
tura. Com oficinas. vir junto.

33
Paulo Herkenhoff: Você é? uma forma de esquecer. Você consigna a existência, está
registrado, existe. Então, ao declararem existentes esses
Lucas Goulart: Lucas.
objetos, frequentemente os arquivos os sepultam, decre-
Paulo Herkenhoff: Lucas. E por que você trouxe ele? Não tam o seu esquecimento. E o museu deveria ser o oposto
queria vir sozinho, achou que eu ia ser chato? disso. Embora, muitas vezes, os museus tenham centenas
de milhares de peças, o museu deve estudar. É uma institui-
Lucas Goulart: Não. Foi porque eu sabia que ele iria se inte-
ção para o conhecimento, para a preservação para as gera-
ressar também e eu avisei os meus amigos.
ções futuras, mas temos que ser depositários fiéis dos bens
Paulo Herkenhoff: E você faz o quê? que recebemos para as outras gerações e ao mesmo tempo
ter um compromisso de entregar uma situação melhor do
Lucas Goulart: História da arte. que a que recebemos, no caso dos museus já existentes.
Paulo Herkenhoff: História da arte. Você também está na E o estudo é o que traz sentido para essa reunião de objetos:
mesma escola? entender as suas correlações, as suas trocas de significados,
como eles se alimentam mutuamente. Agora nós podemos
Marcelo Iego de Carvalho: Sim. chegar ao ponto que você mencionou, que foi?
Paulo Herkenhoff: Que é? Pessoa não identificada 4: A divulgação, a exposição.
Marcelo Iego de Carvalho: A UNIFESP. Eu me chamo Marce- Paulo Herkenhoff: E como é que se divulga no museu?
lo e a escola é a UNIFESP.
Pessoa não identificada 4: Com mostras.
Paulo Herkenhoff: Nós estávamos, então, tentando nos
aproximar de um conceito de museu e já tínhamos chega- Paulo Herkenhoff: Com exposições, com mostras.
do à conclusão de que o museu reúne obras de arte, mas,
Pessoa não identificada 4: Com debates, encontros acerca
sobretudo, bens simbólicos, que podem ser instrumentos
do tema discutido.
científicos, memorabilia de uma pessoa, enfim, e obras de
arte. Mas a ideia é de que eles simbolizem algo para uma Paulo Herkenhoff: Talvez pudesse colocar mais perto, fazer
sociedade, para um indivíduo, que eles possam ser compar- uma ponte do conhecimento, não é? Mas sem dúvida você
tilhados pela sociedade. Depois falamos que esses objetos está falando de um tipo de circulação de conhecimento que
reunidos no museu precisam de um registro, precisam ser em geral se dá através do catálogo de debates gravados, etc.
conhecidos fisicamente, diagnosticados, descritos e docu- O que mais nós poderíamos considerar?
mentados. E você logo abriu para a terceira etapa, que seria?
Pessoa não identificada 5: O educativo, não é?
Pessoa não identificada 4: A divulgação desses objetos.
Paulo Herkenhoff: O educativo; ou seja, ao darmos publici-
Paulo Herkenhoff: Não. Antes disso você falou de outra coi- dade à existência desses objetos, ao produzirmos uma de-
sa: pesquisa. volução à sociedade – porque numa sociedade como a bra-
sileira, talvez 95%, 99% dos museus sejam financiados pelo
Pessoa não identificada 4: A pesquisa, claro!
Estado com verbas diretas ou com renúncia fiscal – realiza-
Paulo Herkenhoff: Os objetos estão ali não para serem mos um processo de divulgação que é a dimensão da re-
postos num mausoléu, arquivados. Segundo Derrida, o cepção. E educação nós poderíamos entender de múltiplas
mau do arquivo, a febre de arquivos da modernidade é maneiras. Nós podemos pensar na tradição do monitor que

34
recebe a criança, faz a visita guiada, aquela educação boazi- considerarmos que a escola deveria ser o centro principal
nha, mas também nós podemos pensar que o processo de do universo simbólico de uma sociedade e que se esse
educação é um processo permanente do sujeito. Todo sujei- centro simbólico está hoje esgarçado pelos novos sistemas
to que esteja aberto estará continuamente buscando culti- de comunicação, pela internet, pelo sistema de consumo,
var-se, que é o que chamamos de educação. E na hipótese pelo sistema político, pelos processos de alienação, pelas
de um museu é muito fácil haver uma hierarquização dos grandes corporações da comunicação, a própria sociedade
saberes, e quando esses saberes se cristalizam num siste- se esgarça, porque é o que lhe daria coesão – e quando eu
ma de poder, o saber como poder, o saber de uma curadoria falo coesão, não é um comportamento assentado de coinci-
como poder de informação ou de produção de significado, dência de opiniões, mas coesão de que nós temos um cen-
nós temos uma espécie de morte do objeto, uma espécie tro simbólico em torno do qual devemos lutar para projetar
de canibalização do objeto, porque na verdade nós mata- significados, para buscar sentidos, para conformar aquilo
mos a possibilidade de que o outro possa absorver, projetar que é uma sociedade com todas as suas diferenças, contra-
sentido. Creio que é importante entendermos o que é a arte dições, símbolos em comum, conflitos, etc. Se nós estamos
em termos de processo comunicacional e de recepção, e aí de acordo que um museu possa simbolizar uma sociedade,
cada um escolhe a sua linha de pensamento, o seu modo eu perguntaria, por exemplo, que museus simbolizariam a
de estruturar quem trabalha com a arte, com a exposição de cidade de São Paulo?
arte. Eu, particularmente, considero que a arte é um signifi-
cante, e nisso eu sigo Giulio Carlo Argan, um pensador ita- Pessoa não identificada 4: Ah, são vários, não é?
liano da arte: o objeto de arte é um significante comunicado, Paulo Herkenhoff: Mas e se você perguntar para uma pes-
ou seja, divulgado. Eu acho que a questão da comunicação soa na rua?
talvez seja mais exata em termos daquilo que é hoje: o que
é comunicado à espera da projeção de significado pelo ou- Pessoa não identificada 2: É o MASP.
tro. Então, essa relação de ativação do outro é que eu acho
Paulo Herkenhoff: MASP. Por quê?
que produz possibilidades mais ativas de educação como
processo coletivo, como processo de trocas. Entender que Pessoa não identificada 2: Primeiro porque ele está todo
cada um de nós não é uma unidade de percepção acabada, centralizado. Na minha visão, ele já é uma obra de arte em
mas em processo de experimentação, de experiência daqui- si, e eu poderia usá-lo como referência de São Paulo.
lo que nos chega como significante à espera de significados.
Porque se já vier com significados embrulhados e passados Paulo Herkenhoff: Ele simboliza interna ou externamente?
a limpo, não precisa da nossa compreensão; basta a leitu- Pessoa não identificada 2: Internamente.
ra da receita para significá-lo. Bom, eu acho que já chegou
todo mundo que viria, não é isso? É mais ou menos isso que Paulo Herkenhoff: Ele não simboliza a cidade pelo seu
tem vindo, não é? Então vamos acreditar que numa sexta- acervo?
feira isso é muita gente. Então a contribuição da audiência é
Pessoa não identificada 2: Não.
um pouco aquilo que eu acho que os museus numa cidade
contemporânea precisam, que é reunir também os atores Paulo Herkenhoff: É pelo prédio. E aí, ele é pintado de ver-
de uma sociedade para trabalhar o que é essa instituição melho, porque ele não era vermelho. Ele passa a ser uma
social. Que lugar deve ocupar o museu numa sociedade? arquitetura que oficializa a sua função simbólica, qua-
Ele deveria ser o centro da vida simbólica ou o centro da se como se com o vermelho virasse uma espécie de cha-
vida simbólica nas comunidades deveria ser a escola? Se pa branca da identificação; ou seja, os museus exercem

35
funções simbólicas, sim. Está espantado com isso? Os mu- muito forte, e numa sociedade como a que vivemos, todos
seus exercem, sim, uma função simbólica e é muito bom nós somos educados como racistas, porque a sociedade é
que uma cidade possa ter um museu como símbolo gráfico racista. Se não formos atentos permanentemente, nós in-
dela, mesmo que a população não tenha acesso a ele ou correremos em formas de racismo. O que isso tem a ver com
não o busque, não esteja identificada, não é? Aí começam o museu? Emancipação, racismo, crise da educação. A crise
as questões, digamos, da inscrição social de um museu. da educação como crise do centro simbólico apresenta ao
Para falar do MAR, que é um museu onde eu trabalhei, teria museu uma questão. O que o museu fará para buscar fazer
que considerar essas questões que eu estava levantando a sua parte nesse processo de restauro de uma sociedade
inicialmente. O Rio de Janeiro é uma cidade onde a cultura que tenha símbolos fortes de centralidade simbólica com
museológica vive uma grande decadência. Desde o incêndio aquilo que incrusta valores, valores no sentido axiológico, no
do Museu de Arte Moderna em 1978, existe uma descrença sentido filosófico do termo, incrusta valores numa sociedade
da sociedade no MAM, nas instituições museológicas, por- que possam ser compartilhados de novo, discutidos, haver o
que ela acha que aquilo vai ser roubado, vai ser maltrata- dissenso, claro. Bom, o Museu de Arte do Rio, para contextu-
do, o que vai ser corroborado quando a diretora que estava alizar o museu que eu represento e que justificou o convite a
no incêndio do MAM passa a dirigir o Museu Nacional de vir falar com vocês, é uma instituição da prefeitura municipal.
Belas Artes; ou seja, a situação é de permanência de uma O Rio de Janeiro era a maior cidade brasileira sem um mu-
inflexão complexa. Alguns museus pegaram fogo, mas há seu municipal. São Paulo tem o Centro Cultural São Paulo,
outros exemplos: o Museu da Imagem e do Som pegou fogo que é um museu, apesar do nome, tem uma coleção, uma
e nada foi perdido porque os profissionais estavam treina- coleção-informação, enfim, tem um comportamento mu-
dos em termos de segurança. Então, essa responsabilidade seológico completo. São Paulo, Belo Horizonte e Brasília
de receber uma coleção e de constituir ou ampliar implica também não tinham, mas o Rio é maior que Brasília. Estou
muitas vertentes de desafios. Agora numa situação dessa falando da maior cidade brasileira sem que a comunidade
em que nós sabemos que o centro da sociedade simbóli- assumisse um compromisso com a arte – porque o museu é
ca está em crise porque a escola está em crise, a escola só o lugar em que a sociedade se compromete com a arte, não
piora em vez de melhorar, não é? A escola precisa de um é? Se a gente pensar no Museu de Arte Contemporânea da
novo currículo que seja mais adaptado à realidade. A es- USP – que para mim é um grande museu de arte, apesar dos
cola, por mais que sejam heroicos os esforços da maioria seus problemas –, ele é um modelo porque cumpre tudo
dos professores, não dá conta daquilo que são as neces- isso que nós discutimos aqui, cumpre com excelência, diretor
sidades. Paulo Freire afirma com frequência que a escola pode ser melhor do que outro, mas existe uma assiduidade
tem uma economia bancária, no sentido de acumulação, com relação aos compromissos básicos, aos valores básicos
isto é, o aluno vai aprendendo tabuada, vai aprendendo isto, que conformam uma instituição museológica Então o MAR
vai aprendendo aquilo, vai acumulando sem que as infor- surge por iniciativa da prefeitura do Rio de Janeiro no pro-
mações se transformem em conhecimento ativador de um cesso de recuperação do centro da cidade, que mesmo com
processo de emancipação que passa por várias camadas do toda a sua decadência nunca morreu totalmente. É um cen-
desafio emancipatório que cada um de nós tenta obter em tro extremamente amplo, extremamente diversificado em
nossas vidas, que é a emancipação subjetiva no contexto termos sociais, porque tanto pode ser sede de uma escola de
da família, dos amigos; afirmar-se, buscar se informar, es- samba como do maior escândalo de toda a história brasilei-
colher o seu caminho, etc. Mas também existe a questão da ra, o Mensalão da Petrobras; está tudo ali misturado, não é?
classe social, da exclusão social, da origem, do racismo, não Mas o que eu queria dizer é que na zona do porto do Rio de
é? Então, há várias formas em que a emancipação é algo Janeiro, por causa das transformações pelas quais passou o

36
transporte marítimo nas últimas décadas, o processo faz-se de convergência: temos o porto e toda a sua área de apoio e
muito mais nos portos secos, nos grandes contêineres, que do outro lado o centro da cidade, e a Praça Mauá é justa-
já não necessitam de um sistema de armazenamento de mente o ponto de conexão e giro. O prefeito entendeu que
embarque onde as mercadorias sejam acumuladas na orla. esse lugar deveria ter uma espécie de portal, formado de um
Isso resultou numa decadência muito grande da região do lado pelo Museu de Arte do Rio, o museu ligado ao sensível,
porto do Rio de Janeiro e dos morros adjacentes. É a região e do outro lado pelo Museu do Amanhã, que é um museu
do Rio com o maior índice de desemprego e foi ferida, quase que discute as questões, as indagações, as divagações, as
que mortalmente, por um grande elevado semelhante ao... dúvidas, as cogitações da ciência contemporânea a respeito
como se chama? da vida, a respeito do futuro da humanidade, do planeta,
levantando hipóteses. É esse contexto que o visitante vai ter,
Pessoa não identificada 3: Minhocão.
que é a ciência agora. Isso exige a vinculação do Museu do
Paulo Herkenhoff: Ao Minhocão, não é? No Rio foi pior do Amanhã a grandes instituições científicas do Brasil. São
que aqui, porque acabou com toda a possibilidade de você duas ou três em São Paulo e no mundo para formular essas
usar aquela região, a não ser por carro. Tornou-se perigosa, grandes cogitações do mundo contemporâneo sobre o ra-
de usos inadequados socialmente. Nesse processo, está cional, sobre a racionalidade. Eu acho muito interessante
uma legislação, um arranjo legislativo que permite a moder- essa correlação em um espaço de 200 metros entre dois
nização da sociedade brasileira. Uma delas, por exemplo, é prédios que são muito marcantes no contexto da cidade: de
o sistema de PPP, parceria público-privada por meio da um lado o sensível e do outro lado o racional. O projeto do
qual determinada zona de uma cidade ou de uma região MAR é da dupla Bernardes e Jacobsen (o Bernardes é neto
pode ser desenvolvida quando o Estado, portanto a dimen- do Sérgio Bernardes) e o Museu do Amanhã é do Santiago
são pública da propriedade, põe à disposição do capital pri- Calatrava. Existe um terceiro museu, construído na praia de
vado a execução de certas obras. No caso do porto do Rio, Copacabana, que é o Museu da Imagem e do Som, cujo pro-
foi o aumento do gabarito que foi posto à disposição. Mui- jeto é da dupla Diller e Scofidio, que está fazendo um novo
tos armazéns foram vendidos, e a venda desse espaço aé- prédio do MOMA. O que eu quero dizer falando desses ar-
reo construído – eu estou falando de um termo do direito quitetos, retomando o que você disse sobre o prédio do
urbanístico – financia obras, no caso do Rio de Janeiro, a MASP ser em si a obra, é que o porte estético desse museu
Praça Mauá, que foi aberta no domingo retrasado e ficou em si é uma obra de arte respeitável, e que isso é uma tra-
esplêndida. É algo que eu não via há 50 anos. Ontem à noi- dição do Brasil. A gente pega o MAM do Rio de Janeiro,
te, havia famílias andando na praça com carrinho de criança; como este aqui construído em ponte, e que eu acho que de
enfim, a cidade recuperou aquele lugar. Mas também novos certa maneira inspirou a Lina Bo Bardi porque é anterior,
edifícios estão sendo construídos, museus, etc. Enfim, há mas são dois desafios iguais. São dois museus construídos
um desenvolvimento. Houve no início um debate sobre em prédios públicos que precisavam criar uma estrutura
gentrificação, que é o processo pelo qual certas áreas de que desse passagem permanente à população para deslo-
uma cidade são apropriadas por construtoras. O que há é camento e mesmo para ver o mirante. É isso que ocorre e
uma política antigentrificação, de estímulo a que os mora- daí a solução em ponte que os dois museus têm. Mas nós
dores paguem menos impostos e continuem morando na podemos pensar no Museu de Arte Contemporânea de Ni-
área. Então o que vai acontecer, na verdade, é o enriqueci- terói, no Museu Oscar Niemeyer, na Fundação Iberê Camar-
mento da malha urbana, humana, dessa região, e já está go, no MAM de São Paulo, de Lina Bo Bardi. Nós temos no
acontecendo, não é? Esse museu surge dentro do que é, di- Brasil uma tradição de que o edifício museológico deve ser
gamos, para quem não conhece a geografia do Rio, ponto em si uma afirmação da capacidade de gênio de criar o

37
ambiente no qual a arte vai ser exposta e que esse ambien- Paulo, nós temos uma magnífica na Nossa Senhora das Do-
te não será agressivo, mas instigador. Eu ainda cito aqui o res, no Museu de Arte Sacra, temos outra peça importante
Cais das Artes em Vitória do Espírito Santo, de Paulo Men- do Itaú, mas no Rio não havia. Do maior artista colonial do
des da Rocha. O Paulo Mendes também tem o Museu da Rio, que é o mestre Valentim, não há nada no Museu de Arte
Escultura Brasileira, enfim. Então nós estamos falando de do Rio; existem duas peças modestas no Museu Histórico.
uma tradição brasileira mesmo de pensar que o museu co- Então como pensar o museu para o Rio? Não é um museu
meça com o seu edifício. Então o Museu de Arte do Rio, cujo de arte do Rio no sentido de arte carioca, mas é um museu
nome tem certa inspiração porque fala de mar, de Rio de de arte do Rio no sentido de que é um museu para a comu-
Janeiro, é muito poético em termos gerais, desde o início foi nidade. Então, no mundo que se globaliza, nós temos, às
contra a ideia de ser um museu apenas para apresentar co- vezes, os novos-ricos que querem mais estar nas bordas
leções particulares. Algumas pessoas começam a discutir: dos museus estrangeiros do que nos museus nacionais,
“não, tem que ser um museu que colecione”. Colecionar no porque isso dá prestígio, social climbing. Colecionar, para
Rio de Janeiro é algo dramático neste momento porque as uma cidade que tem vivido crises historicamente e que pre-
melhores aquisições do Museu Nacional de Belas Artes fo- cisa se reinventar permanentemente, tem que ter esse sen-
ram feitas no Império e no século XX na República Velha. Na tido de colecionar para a comunidade, porque se for bem
modernidade, Getúlio colecionou melhor do que Juscelino, para a comunidade será bem para todos, porque a comuni-
as aquisições da ditadura foram melhores que as da demo- dade vai querer mostrar esse museu a seus visitantes. Então
cracia e as de Lula, melhores do que as de Fernando Henri- colecionar para o MAR é colecionar para o museu local; nós
que. É para pensar como esse museu, que deveria ser a his- não somos internacionalistas. O MAR é um museu local, lo-
tória da arte brasileira, porque ela é colecionada ali há 200 cal. Essa expressão, na cena internacional hoje, soa despre-
anos, empacou. Não dá conta mais desse desafio. O MAM zível. Nós somos um museu local, local. O nosso foco é que
do Rio, depois do incêndio, entra numa situação de impas- o nosso cidadão, que paga os impostos, se aproprie do mu-
se. Hoje tem a coleção Chateaubriand, que são alguns mi- seu. Então, nós não compramos, por exemplo, endereço
lhares de obras de arte, uma coleção de 10 mil, 12 mil obras para o nosso site; devem ser 120 os seguidores orgânicos.
de arte, uma coleção realmente magnífica, mas que não Isso é importante para saber que nós somos um museu su-
está doada, está emprestada. Gilberto tem herdeiros. Então, burbano. Suburbano tanto no sentido periférico quanto no
pelas gerações, vai se esgarçando esse compromisso de sentido complexo com que esse conceito se desenvolve na
uma coleção vir para a cidade. Essa coleção não está nem França no século XIX, que é a urbanidade, o urbanismo. Por-
prometida e muito menos doada. O magnífico Museu de que antes disso, em Portugal e no Brasil, pensar a cidade
Arte Contemporânea de Niterói recebeu a coleção Sattamini, era pensar no arruamento; arruar era planejar a cidade, que
que é extraordinária para a segunda metade do século XX, era a ideia de rua, enfim, que levava às fontes de água, etc.
são quase três mil peças, mas não está prometida e muito Então pensar o urbano e o suburbano tem que subentender
menos doada. Então o Rio de Janeiro vive uma crise imensa que todo aquele que não mora no centro é suburbano. Pode
de colecionismo da arte brasileira. Esse é o desafio que o ser na Vieira Souto como pode ser no morro. Isso também já
MAR vai abraçar, que é compor a trajetória colecionística da estabelece uma confusão benéfica, produtiva na população.
cidade como uma ação coletiva. Então, se o Rio de Janeiro Esse museu suburbano foi reconhecido historicamente por
não tinha uma tapeçaria do Eckhout, Pernambuco tem seis, nossas pesquisas no ano passado. A Folha pesquisou o
o MASP tem cinco, a Fundação Oscar Americano tem quatro MAR no ano passado e 68% da população do Rio já ouviu
ou cinco. O Rio precisava de pelo menos uma. O Rio de Janei- falar do MAR. Acima de nós está o CCBB, e mais acima es-
ro não tinha um Aleijadinho numa coleção pública. Em São tão a biblioteca, com 84%, 16 pontos acima de nós, e a

38
Biblioteca Nacional e o Teatro Municipal, com 98%, que são São 1.500 jovens que vão assistir, vão às exposições, vão de-
duas instituições grandiosas, com edifícios muito visíveis. bater, enfim. Mas nós já sentimos isso, é a nossa avaliação,
Mas o visitante da zona sul, o visitante que viaja, frequenta que há certo machismo na resposta aos desafios. Então o
arte, considera que nós somos um museu sério, que temos sucesso do MC Marechal agora traz um segundo desafio,
um programa de exposições interessante e um programa de que é o racismo e o preconceito e como trabalhar sobre es-
educação muito significativo. E a população que nunca ti- sas questões. Eu estou mencionando essas questões antes
nha ido ao museu, que vem da periferia, considera que esse de falar de acervo porque aquilo ali não é um disco voador
museu é deles, foi feito para eles, se sentem representados que baixou na Praça Mauá. Aquilo ali é algo que tem que
e é simples. Então isso não decorre de um automatismo surgir enraizado nas contradições da sociedade. Da mesma
porque eles dizem que é suburbano, decorre de estratégias maneira que um dia o governador Sérgio Cabral, sob a pres-
museológicas de representação. Por isso que nós não so- são das ruas, foi visitar o museu e veio um grupo de mani-
mos um museu de arte apenas; nós somos um museu de festantes e fomos discutir com eles e com a polícia para não
arte e cultura visual. O visual é virtual e é a cidade, é o que haver conflito, e em seguida chegaram os Black Blocs, colo-
se vê no museu, mas o visual também passa por entender- quei 10 pessoas do MAR e disse para a polícia: “tem 10 pes-
mos tragicamente que a crise da educação ensina muito soas do MAR aqui dentro para cassetete, gás de pimenta”.
sobre a crise dos museus, porque uma criança está entre Eu, na minha vida, já tive isso nos anos 60 para 70, então
quatro paredes mas a cabeça está na rede. No museu tam- isso para mim não é novidade, eu sobrevivi, não é? E resul-
bém, no MAR também. Nós somos, infelizmente, um mu- tou numa coisa impressionante de conversa com os Black
seu do século XIX. O que fazer diante disso? Esse é o nosso Blocs, com os manifestantes. Eu lembro de dizer, no Rio,
desafio, não é? Então o desafio é extraterritorializar. O mu- que naquela multidão teriam me levado tudo, sapato, tudo.
seu não pode ser um edifício na Praça Mauá, se de Santa Eu estava com telefone em um bolso, carteira no outro, mi-
Cruz, que é a região de mais baixo IDH, de mais baixo IDEP, nha carteira de documento de cartões de crédito no outro.
que é o desenvolvimento da educação, vêm mais crianças Em nenhum momento os Black Blocs me assediaram na
do que das escolas públicas de Ipanema, Leblon, Copaca- rua, em nenhum momento. Então que experiência é essa
bana; ou seja, que fome é essa? Alguém falou aqui que é para um museu? Quebraram o nosso vidro no primeiro dia,
amigo do MC Marechal, pois é: eu fui há duas semanas a nós não fomos para a imprensa denunciar, a gente não sa-
Campo Grande, que é longe “para burro”, uma hora e meia. bia o que era aquilo. Não nos portamos como vítimas, mas
No final, iam ser distribuídos livros, era uma feira literária de tarde os vidros já estavam repostos. Foram cobertos às
nas comunidades. Quando ele falou: “vou distribuir livro”, oito da manhã e de noite já estavam repostos. Por quê? Por
um menino que vende Coca-Cola, não sei o que ele fez, pu- que essa agilidade? Porque o museu é gerido por uma OS.
lou e estava na frente já, o primeiro da fila. O que é isso? O Organizações sociais são formas de modernizar a adminis-
MC Marechal é um MC que tem uma particularidade, porque tração pública brasileira. Isso é conversa fiada que é privati-
ele acha que a música pode ser um processo de formação zação, isso é conversa de oposição sem programa. Oposição
de cidadania crítica. Ele não quer domesticar as pessoas, ele não do partido A, B ou C, não. Oposição ao governante que
quer torná-las mentes críticas. O que nós fazemos é de dois está governando bem. Então isso foi possível porque OS é
em dois meses com ele, antes era uma vez por mês, agora é uma organização social sem fins lucrativos, com todos os
um mês com ele e outro não, mas todo mês nós temos um deveres de transparência do direito administrativo. Eu falo
festival de hip hop que é uma batalha de conhecimento que muito de direito porque eu me formei em direito, fiz mestra-
discute os conceitos de nossas exposições. Esse processo já do em direito, então eu acho que a sociedade se baseia no
sai um pouco das quatro paredes, já vai para outro caminho. estado de direito, e uma ditadura é a ausência desse estado

39
de direito, não é? Tem todas as questões de transparência, prefeito e diga assim: “vi uma foto sua lá por um artista que
fiscalização pelo Ministério Público, etc. Só que tem mais botou um ‘chifrinho’ na sua cabeça”. O prefeito finalmente
agilidade administrativa, é isso que nos permitiu. O Paulo entendeu que ou é um museu com liberdade de expressão
Niemeyer Filho, que é um grande especialista em cérebro, ou é um museu chapa-branca. E hoje a gente não tem mais
filho do Paulo Niemeyer, irmão do Oscar, que foi o primeiro problemas com o prefeito. Foi educado pelo museu. Por-
grande especialista em cérebro no Brasil, aceitou criar um tanto, é um museu onde há críticas ao prefeito. Há crítica à
hospital público de excelência no Rio para traumatismo cra- prefeitura. É um espaço de liberdade e isso eu acho que é a
niano desde que fosse com OS. Nas últimas eleições, um função da escola, da universidade, a gente sabe disso. Bom,
candidato disse que a saúde estava sendo privatizada por- então dentro desse processo o museu coleciona arte e cul-
que um médico eminente estava dirigindo um hospital. Meu tura visual. O MAR tem cinco bonecas Barbie vestidas de
Deus, esse médico eminente estava se colocando à disposi- Ipanema. A Barbie, o Ken, o Kevin, seu namorado, todos
ção da sociedade, porque ele não precisa de um hospital, vestidinhos de Ipanema, enfim. Nós temos uma coleção de
ele já tem o seu. Ele não precisa de clientes que não pa- modos de simbolização do Brasil. O Fernando Lindote vai
guem, porque os seus lhe pagam regiamente, não é? Mas fazer uma exposição em que ele mistura formas de simbo-
ele levou esse hospital público a ser considerado de exce- lização do Brasil, inclusive o Zé Carioca. Nós temos uma co-
lência em termos internacionais, para a população pobre. leção de Zé Carioca; ao lado de Aleijadinho, tem Zé Carioca.
Por que na OS? Ele disse: “eu não vou entrar numa roubada Por quê? Porque durante a guerra, quando Getúlio flertava
de ter que esperar seis meses para chegar uma lâmpada de como o nazismo, dois personagens foram inventados para
um aparelho de pesquisa médica”. Enfim, eu acho que a simbolizar o Brasil. No campo infantil o Zé Carioca e no
gente pensar muito em termos de palavras de ordem não adulto a Carmem Miranda. O que nós estamos colocando
conduz a sociedade. Eu acho que o que conduz a sociedade em discussão são os modos de simbolizar o Brasil, ao lado
é a reflexão sobre o que é o melhor para a sociedade. Nosso de Macunaíma, que é parte do projeto do Fernando; ou seja,
museu foi muito atacado no início, disseram que as nossas como este país se autorrepresenta ou é representado por
paredes de vidro eram uma espécie de muro de Berlim que fora? Que formas ideológicas são projetadas? Eu gosto
impedia a população de entrar. Não! Nós recebemos 500 sempre de citar os exemplos de animais que foram usados
crianças por dia, esse era o projeto inicial. Alguma mãe vai como alegoria da América. Quando o mundo é finalmente
autorizar – a criança só vem se for autorizada pela mãe – o dominado pela Europa, pensava-se que eram quatro os
filho a ir a um museu do qual ele pode escapar? Ou ser mo- continentes e se estabeleceram parâmetros, as alegorias
lestado, fugir e atravessar uma rua movimentada, se perder? dos quatro continentes. A América é representada – sempre
Existe alguma escola sem muro? Algum pai é doido de colo- por índios vestidos como tupinambá – por quatro animais.
car um filho pequeno numa escola sem muros? Quem for O primeiro grupo são os jacarés e serpentes, o grupo dos
ao MAR amanhã às dez horas verá de 200 a 250 crianças répteis, que saem inesperadamente, inconfiáveis. Depois a
chegando. Às duas horas é a mesma coisa. É para proteger América é representada pelo tatu. O que é o tatu? Qual a
essas crianças. Nossos guardas não falam com crianças, são característica do tatu senão esconder-se quando há perigo?
os nossos educadores. Eles só falam se uma criança estiver Depois, pelos macacos, sem racionalidade, sem intenciona-
saindo sozinha, se ela estiver numa situação perigosa, que- lidade, e pelos papagaios, que falam sem significar. Isso re-
rendo mexer num aparelho elétrico. Então são questões mete ao Zé Carioca, vêm as formas de representação pelas
muito detalhadas. Da mesma maneira eu evito que o MAR quais somos sempre comparados a estados de uma catato-
se coloque dentro de uma linha político-partidária até com nia política e cultural; moral, muitas vezes. Bom, então esse
relação ao prefeito. Não falta “puxa-saco” que ligue para o museu coleciona isso mas também tem uma bela coleção

40
de arte colonial, tem uma coleção amazônica que é hoje a de um museu geral. Em São Paulo há um magnífico Museu
maior coleção de arte amazônica. Eu costumo dizer que a de Arte Afro-Brasileira, fantástico, mas não há no Brasil
nossa coleção é melhor até mesmo que a de Belém. Já são muitos museus que colecionam com foco em arte afro-bra-
quase 600 itens na coleção Pororoca, porque estamos inte- sileira, colecionando de tudo. Então esse é um foco do mu-
ressados em formar uma hiperbrasiliana e uma cartografia seu. Da mesma maneira, nós temos uma coleção judaica,
do Brasil que comece não por aquilo que tem status e um nós temos a nossa islâmica – estou falando de grupos cul-
assentamento no mercado, mas por aquilo que tem valor turais. A coleção afro-brasileira se desenha sobre três pila-
cultural. Então colecionar a Amazônia foi a nossa primeira res: 1) a contribuição dos afrodescendentes, ou mais do que
estratégia. Temos também a maior coleção doada pela Fu- a contribuição, a conformação social do Brasil a partir da
narte num concurso de arte de coletivo de São Paulo. Nem presença de africanos e afrodescendentes; 2) a escravidão e
o museu de São Paulo tem o que nós temos, porque a ideia 3) aquilo que o poeta Sedar Senghor, nos anos 1960, cha-
é sempre ir seguindo essas cartografias e com isso criarmos mava de negritude. Hoje alguns não gostam muito desse
uma estrutura para, quando vierem certas obras, já encon- termo, mas escravo não é sinônimo de negro, negro não é
trarem ali um berço. Então é um museu que coleciona de sinônimo de africano, africano não é sinônimo de escravo. É
duas formas. Uma é pela origem, pelas muitas doações pri- preciso criar essa clareza do objeto simbólico nesse proces-
vadas, e o doador define os caminhos do museu. Num dia, so de repensar o africano no contexto de um país escravo-
nós tivemos três fatos. Um casal chegou perguntando se o crata, em que na região onde estava o maior porto de escra-
MAR queria uma coroa que havia sido oferecida por um ca- vos do mundo o grande achado arqueológico da escravidão
cique; um antiquário tinha há 50 anos três cestas indígenas nas Américas é o cemitério com 50 mil corpos de escravos.
e o Museu do Índio nos procurou dizendo que vinham uns Também ali perto é o Morro da Providência, a primeira fave-
índios baniuas que queriam visitar o MAR. Aí começou a co- la do Brasil, a Pedra do Sal, onde nasceu o samba; o Morro
leção indígena. Os baniuas traziam presentes para oferecer do Livramento, onde nasceu Machado de Assis. É uma re-
para as pessoas e, para o MAR, escolheram duas flautas gião que hoje ganha o nome de Pequena África por sua his-
presenteadas sob a condição que eles pudessem cantar, to- toricidade afro-brasileira, mas também foi o porto que mais
car as flautas e dançar na galeria de arte. E assim começa a recebeu judeus durante o holocausto no Brasil. Os que não
coleção. Ou seja, esse centro simbólico se constrói por atos eram absorvidos no Rio eram então encaminhados para
simbólicos, não é? Você constrói um museu com mais res- São Paulo, como a família Lerner, a família Mirovski e outros,
ponsabilidade na medida em que ele reflita os interesses da e alguns eram mandados para Minas, para o Espírito Santo.
sociedade. Claro que a gente não vai aceitar uma coleção Esse museu deveria ser o lugar de pensar essa cidade, nas
que não tenha um sentido cultural importante. Hoje já são suas dores, nas suas contradições, nos seus feitos. Estamos
mais de 100, 150 doadores que doam uma ou duas peças. formando uma coleção de arte feita por mulheres; nós te-
Nós temos 80 fundos, que são as decisões de doarem 20 mos alguma coisa importante do século XIX. Também pen-
ou mais peças no período que cada um decide. Tem gente samos que as favelas do Rio têm a sua história e as suas
que já doou 800, tem gente que doou duas porque doou particularidades. Então nós começamos, por exemplo, com
uma por ano. Mas a ideia é de que você construa a sua cole- o Complexo da Maré: mapas feitos na favela para os cor-
ção no museu. Essa é uma forma, então, de colecionar a reios, livros, placas de rua que são especiais lá, um conjunto
partir da origem. Uma vez dentro do museu, nós então re- de fotografias de fotógrafos locais. Ou seja, que universo
pensamos em núcleos virtuais eventuais, que são os núcle- simbólico – e isso foi discutido com a comunidade – nós
os significativos. Esses núcleos significativos podem ser, por vamos trazer para representar esse lugar, que é parte, que
exemplo, questões mais simples: arte afro-brasileira dentro conforma o Rio de Janeiro. Nós também temos uma

41
coleção de zeros, de infinitos, que são conceitos da filosofia do MAR, das exposições. O que pode a arte nas casas de
moderna, da matemática, e a pergunta é: “isso é um museu custódia, onde são abrigados menores abusados, menores
de arte numa escola ou isso é uma escola num museu de abandonados, maiores abandonados? São cerca de doze
arte?”. Essa dúvida foi cunhada propositadamente, embora casas no Rio de Janeiro onde estão as pessoas que são o
falaciosa, porque na verdade isso é um museu. Divide-se refugo da sociedade. A gente não sabe o que fazer com o
entre o espaço expositivo e o espaço educacional do museu. crack. Se alguém souber, é muito bem-vindo. Já fiz de tudo
Mas essa dúvida anima as pessoas, e doar para uma área é para entender o processo. A gente não sabe o que fazer,
doar para a educação. Hoje eu considero que o sistema de mas ali está cheio de dependentes. Em São Paulo há extra-
arte-educação – se estiver aqui algum arte-educador que ordinários projetos em arte-educação. O MAC-USP tem um
discorde, por favor, se manifeste – grosso modo no Brasil projeto muito interessante para cegos. Na Bienal que eu fiz
está dividido em três níveis. O primeiro, vigente em São de 1998, sobre antropofagia, recebi tetraplégicos. A Pinaco-
Paulo, considera arte como signo, um pouco como concre- teca tem vários projetos, entre eles um que lida com aquela
tismo paulistano. A questão da autonomia da forma, da au- população que vocês conhecem melhor do que eu, ao redor
tonomia da arte, da autonomia da relação da arte-educação do prédio, na região. O que pode a arte? Que instituição é
no contexto de um processo educacional, porque a questão esta, o museu, diante do malogro da civilização, daquilo que
principal é a alfabetização visual. Refletindo a crise entre os nos frustra como cidadãos com sede de justiça? O que pode
grupos de arte geométrica, de abstração geométrica aqui de a arte? A arte pode fazer alguma coisa pela aquisição do
São Paulo, se aqui a arte era signo, era objetividade, no Rio, vocabulário? A arte pode fazer alguma coisa pela autoesti-
por terem trabalhado no hospital psiquiátrico, a arte era ob- ma de uma criança numa escola pública de baixa qualida-
jetividade: arte construtiva e objetividade, mas era necessá- de? Então, por exemplo, a coleção de zeros – é muito en-
rio resgatar o sujeito. Daí o bicho que você mexe, a molécula graçado, nós temos uma coleção de zeros e infinitos, mas
que você veste, o livro da criação que você desdobra, por- não é para servir a educação, porque não é a coleção no seu
que é o resgate do outro. E a arte não é signo, a arte é sím- contexto final, ela é uma versão virtual de reunião de coisas.
bolo. Essa mudança de significado – a arte está vinculada à E aí pode ser uma obra do Hélio Oiticica, que é uma fita de
vida, a arte é experiência – vai se refletir em interesses na Moebius para duas pessoas, que medem a sua mão e con-
arte-educação, que é o caso principal do Guilherme Vergara, versam. Pode ser um artista suíço que pega uma fita métri-
diretor do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, que ca e transforma numa fita de Moebius. Pode ser o Aleph do
considera que a questão da arte-educação tem que estar Morris. Então há infinitas formas de trabalhar essas ques-
vinculada à subjetividade, à vida. O terceiro nível, que eu tões. Eu não sou de horóscopo, mas hoje quando eu estava
vejo mais desenvolvido em Pernambuco – há coisas impor- esperando o avião, o voo muito atrasado, depois de ter visto
tantes acontecendo sempre no Nordeste –, está ligado a o jornal todo, já tinha lido até a programação de tevê e só
uma pesquisa no Nordeste que concluiu que uma criança faltavam os quadrinhos, eu olho meu horóscopo: “tem que
pobre conhece a metade do vocabulário de uma criança de mexer naquilo que já está pronto”, ou qualquer coisa ligada
classe média. Isso não quer dizer nada para um museu, essa a isso, “não dá para parar com o sucesso”... Quando um mu-
informação pode passar despercebida, mas quando uma seu se satisfaz com o que tem, com o que faz, ele começa a
escola decide acelerar a aquisição do vocabulário, ampliar o se estagnar, porque o museu tem que ser uma célula viva,
vocabulário dos seus alunos, o resultado é maior e melhor tem que ser poroso à sociedade. O Rio de Janeiro tem 1.400
horizontalmente em todas as disciplinas. Isso para o MAR escolas públicas municipais. É a maior rede da América La-
traz algumas consequências. O que pode a arte nessas situ- tina, em decorrência de várias questões: a população mais
ações? Essa é a pergunta básica do processo de circulação pobre precisa mais de escolas públicas; São Paulo tem o

42
mesmo número de favelados e é 50% mais populosa que o que as pessoas acham, mas nós temos um sentimento
Rio de Janeiro, então isso cria o dever de a prefeitura criar muito forte de que nossos educadores estão construindo
mais escolas. Foi capital federal, foi estado, então disso um processo de recepção forte. Dentro daquilo que nós
tudo decorreu uma grande rede municipal de ensino: 1.400 chamamos de o “Arco da Educação Básica”, em que numa
escolas, 40 mil professores, dos quais cerca de 8 mil dedica- base está o ensino fundamental indo até a fase de pré-alfa-
dos às artes, e 600 mil alunos, além do projeto de que as betização, porque a pergunta que nós fazemos é: “em que
Olimpíadas deixem entre 30% e 40% das crianças em tem- momento da vida uma criança pode ser engajada numa ex-
po integral na escola. Foi inaugurada essa semana a segun- periência museológica?”, temos agora Mulheres Modernas,
da fábrica de escolas do Rio, a primeira foram os “brizolões”. com uma sessão da Clarice Lispector onde estão os seus li-
O que o museu, financiado pela prefeitura, pode fazer pela vros e, perto de cada livro, uma porcelana que o ilustra. Mas
educação fundamental? Essa é a nossa pergunta principal. são porcelanas de Meissen, boas porcelanas, porque a gente
Nós trabalhamos um mês com a secretária de Educação do acha que uma criança de 4 anos também já merece a arte;
Rio, que na época era Claudia Costin, aqui de São Paulo, ela vai dizer piu-piu e vai gostar de vir com a mãe. Enfim, da
uma pessoa muito capaz na área da educação e que nos mesma maneira que nessa exposição Mulheres Modernas
apoiou muito nesse processo. Então o MAR hoje recebe en- nós trabalhamos com a questão da biopolítica, da escultura
tre 200 e 250 crianças de manhã, outras tantas à tarde, mas do corpo da mulher pela sociedade como processo de do-
é o máximo que a prefeitura pode gastar nesse processo. minação contra a sua emancipação, a praia oferece uma vi-
Trabalhamos oferecendo cursos, seminários, palestras, para são extraordinária disso. A roupa do homem mudou muito
algo entre 1.500 e 2.500 professoras da rede municipal. En- pouco, mas a mulher foi levada a consumir, a valorizar o
fim, a gente entende que educação democrática não se dá corpo, a esculpir, e o ponto máximo, o triunfo, é a gravidez
por amostras, tem que ter abrangência. Por isso não adianta de Leila Diniz de biquíni na praia de Ipanema, mas antes
fazer aulinha para vinte por ano. A pergunta mais devasta- disso há muitas questões. A partir dos anos 1950 e início
dora que a gente se faz no museu é: “isso é bom para você dos anos 1960, a indústria fonográfica percebe que o cantor
ou é bom para o outro?”. Quem se beneficia de fato é o seu tem que ser uma estrela, com rosto visível, porque agora
sentimento de bondade ou a necessidade do outro de rece- existe a televisão. E aí a capa de disco vai ocupar um espaço
ber o que tem que receber por dever do Estado? Então é fundamental. A capa do disco, até o surgimento da televi-
essa situação de porosidade por um lado e de viver num são, não tinha essa função. Então nesse processo de biopo-
incômodo permanente com as perguntas que são descon- lítica, da escultura do corpo pela sociedade, pela economia,
fortáveis: estar no século XIX, isso é bom, isso traz resulta- nós vamos escolher uma cantora moderna. Escolhemos a
do? É isso que nos move. E sendo uma OS, não andou na Alcione. Alcione foi a mulatinha catita, ela foi a malandra
linha, sai; não adere ao projeto com empenho, sai. Não há carioca, ela foi a afro-brasileira, ela foi tantas mulheres dife-
funcionalismo público, não há parente, não há nepotismo rentes nas capas de seus discos, desenhadas pela indústria
de nenhuma forma, porque tem que trazer resultados, por- fonográfica para ser permanentemente novidade adaptada
que o sistema de OS implica uma responsabilidade, há um às discussões sociais, até que ela se torna a grande cantora
contrato, as prefeituras se comprometem, como aqui na Pi- de ópera Jessye Norman. Vai vestida como Jessye Norman,
nacoteca o Estado se compromete a encaminhar uma soma uma diva fantástica. Aí a gente entende por que aquela fa-
X por ano. Na OS há deveres, objetivos mensuráveis a cum- mília, que vem do subúrbio, quando olha aquela mulher ali,
prir: receber tantas crianças, fazer tantas exposições, editar que é tudo aquilo com que eles conviveram na vida, começa
tantas páginas de livro. Enfim, é uma série de compromis- a discutir: “vó, quando você tinha aquela foto não sei onde”,
sos mensuráveis. O que não se pode mensurar muito é o “mãe, esse vestido fica bem em você”, isso é um processo

43
pelo qual nós dizemos: “o MAR é um museu para todos, Minas, Nordeste. Pensar Vidas Secas, Raquel de Queiroz.
tem que ser um museu para todos”. E para ser para todos Pensar Glauber. É uma cultura que sempre lidou com o
tem que ser também um museu de excelência para todos. árido da vida. A necessidade de criar do árido um símbolo
Então o que nós chamamos de o “Arco da Educação” no de um país profundo. Mas também no Nordeste há outra
MAR tem, num ponto, como base o ensino fundamental, tradição cultural, em contrapartida a certas teorias do Rio e
tomando o professor como nosso destino principal. Não de São Paulo, de um Caio Prado Júnior, extraordinário, que
são as crianças, são os professores, porque se o professor é uma busca de, a partir de certas teorias, encaixar o Brasil.
adere à importância da arte, as crianças estão incluídas. En- Espero não estar simplificando demais, porque são autores
tão valorizar isso, levar as crianças a aplaudirem o professor, muito complexos. Mas eu sinto que no Nordeste existe uma
a professora que as trouxe é muito importante nessas estra- inversão. Quando Celso Furtado escreve A Teoria do Subde-
tégias de convite, de convívio, de dizer: “olha, isso aqui é de senvolvimento, ele quer entender o subdesenvolvimento, e
vocês. Essa professora trouxe vocês, ela está dando isso a não entender o Brasil a partir de uma adaptação da teoria
vocês, agradeçam a ela, não a mim. Eu sou funcionário de marxista, de outra teoria. Quando Josué de Castro escreve A
vocês”. Bom, mas o museu não é um serviço social. Museu Geografia da Fome, ele quer entender sociológica e histori-
é um espaço de reflexão, é um espaço de reflexão crítica, de camente a fome no Brasil, o seu processo econômico, os pro-
emancipação, um espaço de fusão da sociedade com as cessos de produção da fome, da mesma maneira que Milton
suas contradições, com as suas necessidades. Então no ou- Santos pensa o espaço social a partir dessa realidade. Então o
tro ponto nós temos a excelência do ensino: nós fazemos 14 pensamento de um Paulo Freire, o pensamento desses escri-
seminários por ano. Sobretudo com o excesso de pós-gra- tores, desses cientistas sociais, é algo que distingue o Nordes-
duação no Rio, não só de arte, mas de cinema, trouxemos te dessa diversidade, contra certa projeção de uma estrutura
Rancière, Farocki, Jorge Diogo Hermano, Andreas Hoss- ética preconceituosa, de preguiça, de inoperância, quando, na
mann, Raul Antelo, que esteve aqui com vocês. Quando na verdade, muito mais dura é a fome. É vir desse fundo na fome.
vida se pensava que uma instituição do Rio fosse um espa- Enfim, talvez o MAR soe às vezes um pouco utópico, às vezes
ço para a USP pensar como os cariocas, isso nos honrou excessivamente político, às vezes pensando quase como
muito evidentemente, nós somos um museu brasileiro, nós uma culpa de ser arte, isso também já nos disseram. Porque
queremos trabalhar. Então se, por exemplo, a nossa coleção qual é a função de um museu diante dessas casas de custó-
Pororoca da Amazônia tem um centro de referência básico, dia? Qual é a função da arte? O que pode a arte diante da
sem prejuízo para os outros, que a história da violência na necessidade de adquirir vocabulário? Então o museu é poroso
Amazônia – a violência contra o índio, a violência contra a a essas coisas, à crítica, mas o que eu acho mais perigoso
natureza, a violência contra os quilombos, a violência do ra- para o MAR é aquietar-se. Eu não sei se cobri toda a pauta,
cismo, etc. –, se na Amazônia nós estamos tentando cap- estou saindo do papel, porque se eu tivesse lido, teria só um
turar centralmente, eu repito, sem prejuízo de outra cultura, terço das pessoas. Eu contei aqui no início a história de
de São Paulo nós queremos a excelência. Porque é um cen- quando comecei a dar aula na universidade. Era muito jo-
tro de excelência. A excelência que eu sinto na Amazônia é vem, tinha acabado de me formar na universidade e me de-
uma arte, uma coragem de enfrentar a violência sem hesi- ram a primeira aula na segunda-feira às 8 da manhã e a úl-
tação, sem tentar limpar a barra do Pará ou de Belém. Aqui tima aula na sexta-feira à noite. Vocês imaginam o que era
é violento e a violência é assim. Não há lixo embaixo do ta- isso? Daí eu senti aquele mal-estar, isso eu estou falando
pete, é esse confronto. Da mesma maneira que do Nordeste, dos anos 1970... Aí na segunda aula no dia seguinte eu falei:
em todas as outras questões, nos interessa muito a cultura “quem quer prestar atenção fica aqui na frente, quem quer
da diversidade. Pensar o modernismo de Guimarães Rosa, conversar vai para o fundo da sala, mas, por favor, fale baixo,

44
porque o meio é para quem vai dormir”. Porque não há tatu Pessoa não identificada 6: Olha, mais ou menos. Mas hoje
que aguente uma aula às 8 da manhã na segunda-feira ou estou gostando mais.
às 8 da noite numa sexta. O pior de tudo foi quando eu es-
Paulo Herkenhoff: Bom, obrigado. Ali, fale o nome e o que
tava aqui na Bienal de São Paulo e me chamaram para apre-
faz.
sentar a Bienal na ARCO, que é a Feira de Arte de Madri. Eu
marquei para chegar no mesmo dia em que iria falar. Bom, o Maurely Pires Silva: Boa noite. Meu nome é Maurely. Sou
auditório era um pouco maior do que esse, plano, com uma professora do ensino fundamental e hoje vim buscar um
mesa na frente muito suntuosa, muito à la espanhola, e com pouco da estratégia para fazer o encantamento.
uma cadeira de espaldar alto e braços. Aí eu ponho meus
Paulo Herkenhoff: Um bom nome...
papéis sobre a mesa e apagam-se as luzes. Ficou só a luz
sobre os papéis, tudo que não podia acontecer. E eu com Maurely Pires Silva: E através desse encantamento trazer o
meu papelzinho. Comecei a ler e depois a achar que estava aluno. Eu acho que a arte pode nos humanizar e nos abrir
ficando bêbado – alguns de vocês já estão assim. “Não sei portas. Eu tive algumas experiências com os meninos, le-
se vou conseguir ir até o final. Tenho que reagir.” Aí comecei a vando-os para museus aqui em São Paulo, e hoje eu vim
pensar: “tem que ser algo mente a mente”. Então eu vi uma olhar as estratégias do Rio de Janeiro e fiquei bastante en-
luz e era o contato absoluto da interlocução. Perfeito! Até cantada porque – pelo menos para mim, que sou professo-
que eu escuto aquela gargalhada e levanto os olhos: eu tinha ra da periferia, que estou lá no fundão de São Paulo, e que
dormido na minha própria fala... Dito isso, então a gente vim quando vi que teria esse ciclo de palestras, cheguei aqui
pode abrir para conversas e observações que vocês acharem um pouquinho atrasada, para poder buscar esse olhar dife-
necessário. A senhora faz o quê? renciado, como é que eu consigo fazer esse encantamento,
como é que eu consigo trazer o meu aluno e como é que eu
Pessoa não identificada 6: Eu estou passeando aqui na
consigo ter esse despertar – a sua palestra não foi exata-
casa do meu filho, não moro aqui, sou natural de Florianó-
mente aquilo que eu imaginei que seria. O seu olhar, o olhar
polis, Santa Catarina.
que eu peguei aqui, é para como encantar o professor, e isso
Paulo Herkenhoff: Como os organizadores. Meu pai era de foi bem interessante porque eu vim para tentar encantar o
Santa Catarina, era de Joinville. meu aluno, e na verdade tive outro olhar de como prepa-
rar isso. Esse foi um olhar que me surpreendeu. Então se o
Pessoa não identificada 6: E então, estou aposentada, es- senhor puder me dar uma luz de como encantar os meus
tou aqui passeando, e vim assistir à palestra. alunos neste caminho... Então foi isso que eu vim buscar
Paulo Herkenhoff: Então daqui a pouco a senhora vai, seus nesta noite e digo que estou saindo daqui encantada. É isso.
filhos vão levar a senhora para ver o MAR. O museu lá do Paulo Herkenhoff: O que eu queria dizer para a senhora é
Rio. Vamos? Nós viemos para ver a exposição do Fernando que São Paulo tem muitas respostas. Eu tive o privilégio de
Lindote, que é um artista que mora na ilha. A senhora é da ser curador da Bienal de São Paulo em 1998 e foi uma expe-
ilha? De Florianópolis? riência muito rica. Eu brigo muito com São Paulo em função
de algumas coisas ligadas ao colonialismo interno, imperial,
Pessoa não identificada 6: Não. Moro no continente, pró-
central, mas reconheço essa excelência e não sou bobo de
ximo.
não aproveitá-la, de não aprender com ela. Eu me lembro
Paulo Herkenhoff: Muito bem. Obrigado pela presença. Já que na Bienal havia um quadro de Tiradentes esquartejado
tinha assistido a uma fala sobre museu dessa natureza? que está no museu de Juiz de Fora, pintado pelo Pedro Amé-

45
rico. Eu olhava para aquilo e só via os pedaços de Tiraden- Essa porção de aproximação cabe ao museu, através do seu
tes. Me impactava muito aquele sangue, aquela carnalidade trabalho educativo, sem paternalismo, sem se considerar
toda, e era um assunto que eu estava estudando. Até que hierarquicamente superior ao outro que não tem intimidade
veio um menino de periferia e disse: “ih, o mapa do Brasil”. E com aquilo, mas sempre tendo a crença de que o outro pode.
não é que era! Como foi pintado na década de 1890, faltava Além disso, é colocar-se à disposição. O que uma obra de
o estado do Acre, aquela fração das fronteiras do Brasil que arte me solicita que eu dê a ela e dela receba mais? Que
o Barão do Rio Branco fez no começo da República. O qua- fenômeno é esse que se apresenta para mim? Então isso
dro foi pintado antes, mas o menino sentiu o Brasil naquilo, eu acho que é um segredo, porque cada um de nós é dota-
com 5 anos, 6 anos de idade. Quando o artista Malevich do de possibilidades. Acreditar sempre não na onipotência
pinta um quadrado branco sobre o branco, que é a luz so- nem na impotência, mas na potência, na possibilidade de
bre a luz, isso tem a ver com os ícones russos na presença estar junto. Estar junto da obra de arte, perguntar sobre a
do divino, mas também com um mundo em que o branco personalidade do artista, trocar. Eu acho que se as crian-
sobre o branco permite criar algum relevo e alguma diferen- ças entram nesse processo, são engajadas nesse processo,
ça, porque o mundo sem diferença é o mundo do invisível. começa a ocorrer uma transformação na autoestima. Todos
Se tudo for só luz, nós não veremos nada, ficaremos cega- os dias eu converso com as crianças, e fiquei pasmo com
dos pela luz. É como olhar para o sol. Mas se tudo for só uma menina de 8 anos. Perguntei para ela: “do que você
obscuridade, a escuridão mais absurda, nós também não gostou?”. Ela falou para mim. “E do que você não gostou?”.
veremos sombra alguma porque falta luz. Então são as lu- Ela falou assim: “eu não gostei da Dilma, porque ela mentiu
zes que nos permitem ver os relevos do mundo. E o branco para a minha mãe e agora está faltando comida lá em casa”.
sobre o branco era o quê? Luz sobre luz mostrando que na Três frases. Eu não sei se isso é justo, se é injusto, não estou
pequena diferença entre luzes, entre as matérias, um plano falando da Dilma, estou falando dessa criança. Essa criança
tinha um pouquinho mais de matéria do que o fundo. A sala foi capaz de sintetizar em três frases o que muitas vezes
tinha várias coisas brancas, e consigo ouvir de um ator de um jornalista não consegue em uma página inteira: ela não
televisão: “ah, tudo igual. Qualquer um faz isso”. Quinze dias foi correta, porque disse que ia ficar tudo bem. Minha mãe
depois, vêm dois garotos e um diz: “ih, esse aqui é macio, votou nela na expectativa e agora como resultado está uma
esse aqui é duro”. Estava discutindo Manzoni, um artista de crise por isso, por isso... Eu estou falando da capacidade de
vanguarda, os achromes, que são brancos. Um era feito de síntese dessa criança. Não estou falando da Dilma, de jeito
algodão, o outro era pedra pintada. E assim o menino foi in- nenhum, porque eu acho que o problema é outro. Mas ela
terpretando as diferenças. Até que ele chegou e disse assim: percebeu do ponto de vista dela aquilo que está ocorrendo
“olha eu aqui na pintura”. Era uma tela totalmente branca do na sua casa. Então essa crença de que o outro sempre pode
Rauschenberg feita para o visitante projetar-se na pintura, e nos dar algo e de que uma criança assim sempre pode ex-
o moleque faz e percebe exatamente o que o artista queria. trair algo e dar algo para a obra de arte é acreditar na potên-
Então a gente aprende todos os dias com o outro. A senhora cia da arte. A senhora trouxe um assunto que é o seguinte:
não sabe que aprende com seus alunos? nós estamos lidando com potências, a potência do artista, a
potência da educação, a potência do professor ou professo-
Maurely Pires Silva: Sem dúvida.
ra, a potência do aluno, a potência da arte. Vindo aqui hoje,
Paulo Herkenhoff: Então eu acho que o segredo com rela- por engano ou não, a senhora buscou melhorar a sociedade,
ção a tudo isso é primeiro o respeito. Todo mundo deve se não é verdade? Eu acho que o dar à sociedade tem um lado
respeitar. Segundo é acreditar que cada um de nós é um que é decisão. De que lado estamos? Decisão. Eu acho que
ser completo. Você não precisa ser outro para chegar à arte. também existe uma enorme afetividade com seus alunos,

46
com seus estudantes. Uma enorme afetividade. Vir numa avança no sentido da humanização. Então eu não consegui
sexta-feira à noite atrás de informação... outra forma até hoje. Talvez tenha, tem gente que sabe mui-
to mais do que eu, mas eu ainda não consegui. Então todas
Maurely Pires Silva: Depois de duas escolas...
as vezes que a gente tem a oportunidade de estabelecer
Paulo Herkenhoff: Então vamos dar uma salva de palmas esse link, pelo menos com os meus alunos, a gente conse-
para essa professora. O CCBB está cumprindo a sua função. gue conviver melhor. A gente quebra um monte de barrei-
Para a Denise, que organizou e trouxe gente de todo o Brasil. ras quando eles se encantam, quando eles se apaixonam e
Isso é muito raro. Nós estamos falando de um país que é quando eles vão atrás. A gente vive mesmo, é um discurso
uno e múltiplo. Que é um e muitos. E museu é sempre uma que, enfim, não é nem meu, é público. A gente vê aquele
relação com a comunidade. Eu acho importantíssimo viajar, indicador de caminho. Quando você os vê caminhando – de
vou para o Louvre, mas eu sei que aquilo é uma realidade verdade viu, gente? –, dá um orgulho tão grande. A gente se
que não se repetirá. Aconteceu num momento da França, sente gente. A gente sente que está no planeta e de verdade
com servos, impérios. Era outro momento. Aqui e agora, por faz a diferença na vida de alguém. Faz a gente se sentir bem
que a arte é importante para uma nação? Na sua opinião. orgulhosa. Eu não sou modesta não. Você se sente bastante
orgulhosa porque fez aquilo que tinha que fazer e fez o seu
Maurely Pires Silva: Eu sou professora de português e melhor. O sono vem e a gente dorme tranquila, a despei-
um dos  links  que consigo fazer para chegar até meu alu- to de todos os problemas da educação. Então eu acho que
no é quando eu trabalho com arte, quando eu ligo litera- esse é o link. Pelo menos para mim. 
tura, pintura e até mesmo dança. Quando eu estabeleço
esse  link,  consigo quebrar, dentro do meu trabalho, a se- Paulo Herkenhoff: Muito bem.
paração entre a professora e o aluno. Nós viramos simples-
Maurely Pires Silva: Então é isso.
mente gente que está aprendendo junto, porque esse é um
processo de pesquisa muito intenso. Às vezes, como diz o Pessoa não identificada 7: Bom, na verdade eu queria fazer
senhor, com o advento da internet, num minuto eles aces- um comentário. Em 1998 eu estava nessa Bienal da qual
sam e resolvem uma situação que a gente não preparou ali você foi curador e me lembro de um vídeo que assisti, acho
na aula. Quando eles se encantam, eles vão além dos limi- que no terceiro andar, em que você aparecia pulando com
tes do muro da escola. E como professora, um link que eu a pasta. Isso me marcou muito: “nossa, esse curador, ele
consegui estabelecer com eles foi através da arte. Então isso é tão irreverente!”. Eu tinha uma imagem – estava em for-
facilita a minha vida. Eu moro na periferia com Diadema. A mação, na graduação – tão sisuda. A gente teve uma for-
gente não tem nenhum tipo de acesso lá, então tem que mação tão dura. Então a nossa educação é tão espinhenta
trazer os meninos para cá. E é uma dificuldade. É um ponto que nos afasta mesmo de uma percepção mais sensível da
dificultador. Como o senhor disse, São Paulo é muito cen- realidade. E naquele momento, aquilo ali foi uma quebra-
tralizada na questão da cultura. Mas quando eles descobrem da, eu descobri que é possível fazer conexões importantes
que a separação, que o gueto não é para eles, que o mun- na arte e ao mesmo tempo ter uma posição mais relaxada,
do é deles, a gente consegue fazer um avanço na questão menos sisuda da vida, sem deixar de ser sério e compro-
da humanidade, uma quebra mesmo. Eles descobrem que metido com o que se está fazendo. Eu vejo que você, lá no
eles não precisam ficar presos na periferia. Que São Paulo MAR, consegue desenvolver muito bem esse conceito do
é deles, que a cultura é deles. Eu trabalho com ensino fun- quanto o MAR está voltado para o local, está em comunhão
damental, então eles são muito imaturos. Mas quando eles com a comunidade, construindo um acervo nesse diálo-
conseguem quebrar essa parede, não é demagogia, a gente go com o seu entorno. Eu vejo que ainda existem muitos

47
museus que não conseguem sair de suas quatro paredes, as que trabalham com a gente nesse processo, a Heloísa
não conseguem criar esse diálogo externo com a comuni- Buarque de Holanda, muito próxima, enfim, mas os museus,
dade, estão longe ainda das periferias. Por que não ter esse muitas vezes pela falta de condições, ficam muito angustia-
tipo de modelo do MAR em outros locais que não sejam, por dos com o seu ambiente e isso afasta as possibilidades. Eu
exemplo, pontos referenciais da cidade? É tão importante acho que a gente não pode considerar o museu como autor
ter museus em comunidades, ter experiências museológi- dessa dificuldade não. Acho que tem de tudo. Cada museu
cas dentro de comunidades, sejam casas-museus ou outra vive uma situação importante. Eu me lembro nos anos 1980
categoria de museu, e o quanto é importante essa posição em Caxias do Sul que o museu municipal fez uma exposi-
do MAR de formação dos professores. Eu vejo que isso é ção em que as pessoas levavam suas fotos e deixavam lá.
muito importante porque eles estão realmente num ponto Um arquivo municipal. Podiam deixar para criar uma me-
estratégico de formação de sensibilidade, de formação de mória coletiva. Ah, não tem espaço? Vamos começar a pedir
pessoas pensantes. E vejo o quanto é importante ainda o caixas de sapato nas sapatarias. Começaram a classificar.
papel do museu na nossa sociedade, inclusive de descons- Foram à luta. Eu tinha uma família muito grande, eu co-
truir esse nome que é, às vezes, tão assustador e que afasta mecei a dar aula aos 14 anos de idade no interior. Mas era
as pessoas de buscarem conhecimento no museu. Quando uma família muito grande e se bastava e nós tínhamos uma
eu vou assistir a uma mostra, às vezes eu fico imerso cinco cidade. Cada casa era um bairro, cada quarto era uma rua,
horas assistindo a uma exposição de arte, vendo vídeos e cada cama era uma casa. Então tinha correio, tinha cinema,
voltando para rever uma peça, e o quanto também essas a gente tentava repetir a vida de uma cidade dentro da casa
grandes mostras reduzem essa percepção. Por exemplo, da família. Aí teve uma exposição em que cada um tinha
na exposição do Picasso, que foi ótima, aqui no CCBB, o que abordar um estado do Brasil. Era por sorteio e para mim
processo de estar na exposição era muito pequeno, porque caiu a Paraíba. Aí eu já olhei a bandeira da Paraíba: “vai ser
existia uma necessidade muito grande de rotatividade. En- fácil fazer”. Cheguei no meu pai: “me ajuda?”. Ele: “o que
tão eu vejo que existem grandes desafios ainda para nós você vê aqui?”. Respondi: “nego” [com “e” fechado]. Meu
que trabalhamos com museu, com arte, e como o MAR nos pai disse: “não, é nego” [com “e” aberto]. Vocês viram como
traz alguns modelos para serem repensados, no meu caso, aquela bandeira, que era uma obra da exposição, me ensi-
no museu onde eu trabalho, mas também o quanto nós nou. Aí me explicou o que era e eu comecei a ilustrar a Paraí-
temos que aprender com novos processos de conhecimen- ba, a fazer o mapa – decalquei o mapa, consegui desenhar o
to. Na verdade, eu queria agradecer por esse encontro tão escudo –, a ilustrar os produtos, o algodão – fui à farmácia,
humano e por te conhecer pessoalmente. Era isso. Era um cortei um chumaço de algodão – e assim fui e cheguei no
comentário, não uma pergunta. jumento. Tentei desenhar o jumento e não tinha jeito. Não
conseguia desenhar o jumento, e não encontrava o jumento,
Paulo Herkenhoff: Eu queria comentar duas questões que até que me lembrei de uma coisa. Eu subi numa estante de
vocês apresentaram e que eu julgo importantes. A primeira livros, peguei uma caixinha e tirei o jumento do presépio. A
é fazer. Você pode criar um museu na sua escola. Não um minha primeira curadoria foi aos 6 anos de idade. Ou seja,
museu com apresentações, mas um museu onde objetos eu fiz o que pude. Bom, mas eu acho que curadoria é isso, é
tragam significados. Vocês podem fazer isso? Vão gostar projeção de significados, projeção de sentidos, que não são
muito. Museu das coisinhas que eu gosto. Cada um traz definitivos, que se dispersam, vão para um lado, vão para o
uma coisinha que gosta. Eu acho que a gente tem no MAR outro. Quando você fala do lugar do museu no contexto de
o privilégio de contar com a Clarissa Diniz, com a Janaína uma formação social concreta, de uma sociedade concre-
Melo na escola, com a Gleice Heitor e com outras pesso- ta, você está falando também daquilo que impede, não é?

48
Fala muito de acessibilidade. A mais comum é a acessibili- Camila Rocha Baeta: Oi, meu nome é Camila e eu me iden-
dade física para as pessoas que têm algum tipo de impedi- tifiquei muito, nesse momento, por causa do espaço em que
mento, algum tipo de problema físico, algum limite. Isso é eu trabalho. Lá começou com uma oficina de sonhos, com
uma forma de inclusão. Existe outra: a inclusão conceitual, poucas aulas de teatro, de percussão corporal e outras ativi-
intelectual. Eu faço curadoria para quem? Existem incom- dades, em uma unidade separada, em uma fundação, e nós
patibilidades? Fazer uma curadoria para a criança, para a ocupávamos o espaço, nessa oficina de sonhos, de uma sala.
senhora que veio de uma favela, mulata, e que adorou ver E foi acontecendo essa miscigenação, vamos dizer assim, de
a Alcione ou para o professor de pós-graduação? Para todo classe social, porque não havia, exceto pela faixa etária, ne-
mundo. A filha de 7 anos da contadora do museu adora a nhum outro tipo de critério para os alunos entrarem. Como
Alcione. Criança, não é? As mulheres que têm uma auto- era no bairro do Ipiranga, que fica bem próximo de perife-
estima na sua maneira de se vestir se veem ali refletidas. rias, mas onde reside uma classe média um pouco mais alta,
E o professor universitário vai discutir biopolítica, como o aconteceu muito essa mistura de pessoas lá dentro. Exata-
capital fonográfico determina. Cada um encontra no objeto mente pela diversidade, por ser um local que une as pessoas
aquilo que o inclui, que o encanta, como a senhora disse. A de diferentes lugares e onde elas realmente não precisavam
outra questão é geográfica, que a senhora também aponta. ser outras pessoas para estarem naquele convívio – é mais
A geografia é excludente. Quando eu fiz aqui a Bienal de um comentário para ver como é essa relação nesse espaço
São Paulo, nós apuramos que mais de 40% dos visitantes de cultura – que o espaço se fortificava. Em 2010, nós ga-
nunca tinham entrado em um museu, em uma exposição nhamos um espaço, uma unidade, somente para oferecer
de arte. O que significa dar esse passo? Aqui, da rua para essas oficinas. E desde então começou a crescer, a vir mais
dentro, para a pessoa que nunca entrou, isso é um salto gente, e nós começamos com uma curadoria pequenininha
imenso com um abismo embaixo nas diferenças de classe, de exposições, com uma exposição bem simples em um va-
no modo como há privilégios que são facilmente atribuídos ral, e foi tomando corpo, o pessoal foi gostando, as outras
a uns e dificilmente disponíveis para outros. Então pensar oficinas foram interagindo com essa exposição. Geralmen-
nisso também é muito importante. A inclusão social. Por- te havia várias exposições e a gente começou a formar um
que o museu sempre deve ser uma instituição que abriga público, sempre valorizando a cultura popular brasileira nas
exposições. Quando você falou do MAR, pelo espaço que ele
e recebe as pessoas como elas são. Você não precisa ser
ocupava, eu tive uma identificação muito grande com o es-
outro para vir ao museu. Você não precisa estar com outra
paço. Hoje nós trabalhamos cada vez mais buscando a me-
roupa. Você não precisa conhecer o que você vai ver. Acho
lhor maneira de fazer a exposição, do que trazer para eles, do
que essas são questões que implicam entender que esse
que relacionar com o que eles vivem, com o que eles estão
jogo de alteridades se enriquece na medida em que ele abre
trabalhando, com a vivência mesmo deles, e eles chegaram
para as diferenças. É sempre um processo de potência, de
a um nível de autoconhecimento, de autoafirmação, de au-
potencialização, de trabalhar com a potência da linguagem,
tonomia que eles não tinham ao começar no espaço e que
de criar indivíduos potentes. Nunca com a onipotência de
agora está fantástico. Realmente acontece isso que você
achar que se pode tudo. Quem pode tudo não pode nada.
falou, essa identificação da pessoa com o espaço, esse es-
Nem com a impotência, que é desvalorizar-se a ponto de
paço para a comunidade. É um desafio muito grande você
não poder fazer. Potência. Qual é a minha potência? Qual é
conseguir relacionar todas as pessoas, todo esse público, e
a sua potência? E o limite pode ser convertido em potência.
em um espaço pequeno a gente conseguiu chegar a isso. Eu
Ah, não tem dinheiro para trazer as coisas aqui? Então va-
queria compartilhar isso...
mos fazer um museu lá, inverte. Um museu das coisas que
eu gosto, um museu das coisas bonitas, um museu, enfim. Paulo Herkenhoff: Muito bom!

49
r a u l h o lt z

Gaudêncio Fidelis (Rio Grande do Sul)


Curador e historiador de arte especializado em arte brasileira,
moderna e contemporânea e arte da América Latina, é mestre
em Arte pela New York University e doutor em História da Arte
pela State University of New York (SUNY). Foi diretor do Museu
de Arte do Rio Grande Sul e atualmente é curador-chefe da X
Bienal do Mercosul.

50
Modelos curatoriais de exposições
da produção artística da América Latina

Gaudêncio Fidelis: Quando fui convidado para este círculo que modesta, para dar no que se refere a essas discussões,
de palestras, me ocorreu que, nesse momento do processo especificamente sobre a produção da América Latina. O tí-
de curadoria da 10a Bienal do Mercosul seria interessante tulo da minha fala, então, tem um pouco disso, de tratar
introduzir o projeto curatorial da 10a Bienal dentro de um desses modelos.
contexto mais amplo da produção da América Latina e Assim, eu quero abordar um grupo de modelos que po-
dos modelos de exposições que eu venho pensando quan- deriam ser utilizados ou que vêm sendo utilizados para
do tenho realizado meu trabalho também institucional de mostrar a produção da América Latina, e que evitássemos
curadoria, especialmente como foi nestes últimos anos na incorrer em determinados clichês ou procedimentos curato-
direção do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, nos quatro riais que implicam uma determinada abordagem estrita ou
anos que se passaram, até o final de 2014. Então, eu tendo muito direcionada de uma certa ideia que possamos ter da
feito o meu doutorado nos Estados Unidos, me especiali- produção da América Latina. Sabemos hoje, na verdade, que
zado em Arte Moderna Contemporânea e Arte da América não existe isso que chamamos de arte latino-americana. Eu
Latina, eu comecei a pensar e a refletir muito sobre como vou insistir sempre em América Latina, que é exclusivamente
vemos a produção da América Latina, sobre todos os pro- uma determinação geográfica, e não em arte latino-ameri-
blemas que enfrentamos quando discutimos essa produção, cana, que é uma nomenclatura problemática e que atribui
sobre os preconceitos que nós temos e sobre as tentativas, determinado sentido à produção desses países, o que é
algumas historicamente frustradas, de realizar exposições e uma coisa que não existe, é fictícia, e isso é especialmente
plataformas curatoriais para mostrar a produção da região. problemático para os países à margem dos grandes centros.
Observando com certo distanciamento e procurando acom- Porque, quando falamos em arte americana, de fato, há uma
panhar a produção dos artistas, e também tendo uma pers- concepção política do que seja arte americana, assim como
pectiva crítica a partir dos Estados Unidos, já que eu residi arte europeia; e preconceituosa quando se fala da arte afri-
nos Estados Unidos durante considerável período de tem- cana ou da arte asiática, e assim por diante. Mas no caso
po, em virtude da minha formação acadêmica de mestrado da América Latina, eu achei que tínhamos como identificar
e doutorado, eu cheguei em determinado momento que rapidamente alguns modelos curatoriais que vêm sendo
ficaram muito claras para mim algumas questões que di- utilizados por curadores que eu considero muito interessan-
zem respeito às políticas que envolvem trabalhar com essa tes. Basicamente esses modelos poderiam ser divididos em
produção, promover essa produção, promover a legibilidade quatro. Eu vou explicar rapidamente o porquê. Primeiro, seria
e a recepção da produção artística desses países, que são, um modelo que conhecemos como constelacional, que é um
vamos dizer assim, uma preocupação que eu tenho. Por modelo que vem sendo adotado, a um certo tempo, pela
outro lado, apesar de ser fascinado, evidentemente, pela curadora Mari Carmen Ramirez nas suas exposições dedica-
produção artística americana, europeia e pela arte em geral, das exclusivamente à produção da América Latina. Ela é uma
eu penso que tenho uma contribuição interessante, ainda curadora, uma profissional e uma historiadora politicamente

51
muito bem posicionada a esse respeito. Em poucas palavras, O outro modelo curatorial que é identificável, embora
eu vou fazer resumo desse assunto porque é bastante com- seja muito mais disperso, é o que eu gostaria de chamar
plexo, mas basicamente esse modelo daria a ela a possibi- de cartográfico, que foi utilizado pelo curador Ivo Mesquita,
lidade de reunir um grupo de obras sem uma determinação embora ele não o tenha nomeado, ao contrário da Mari Car-
cronológica e linear, através de “mecanismos”, uma palavra men, que claramente nomeou o modelo de exposições que
que ela não utilizou, que outros curadores vieram a utilizar utilizava como sendo o modelo constelacional. O Ivo não
depois, mas que ela não utilizou, mas basicamente através teria feito isso, mas é muito plausível de identificar na expo-
de mecanismos de justaposição. Ou seja, colocar lado a lado sição que ele fez, Cartografias, em 1995, para Winnipeg, no
obras de períodos, estilos, determinações políticas, inclina- Canadá, que seria um modelo um pouco diferente, na me-
ções estéticas diferentes, lado a lado e através de arcos his- dida em que ele também abandona a cronologia, em que
tóricos grandes. Um aspecto interessante desse método, que ele adota mecanismos de justaposição, de colocar obras de
Mari Carmen chama de constelacional, é criar uma estrutura diferentes períodos históricos juntas. Mas ele é menos espe-
curatorial para a exposição em que ela possa construir uma cífico e menos político nesse sentido, embora haja um certo
série de linhas, vamos dizer assim. Foi quando ela fez Utopias conteúdo político, na medida em que ele quer fugir também
Invertidas, arte de vanguarda da América Latina, que foi uma dos modelos tradicionais de apresentação da produção na
exposição excepcional que ela realizou no museu de arte, América Latina. E a gente vê isso nessa exposição que ele
Museum of Fine Arts, de Houston. Basicamente o que ela fez realiza e vê posteriormente de modo mais abreviado na
foi o seguinte: ela desestruturou essa base cronológica da 1a Bienal do Mercosul, que foi curada pelo Frederico Morais,
produção dessas grandes exposições, que visam dar conta em 1997, em que ele dividiu a estrutura da exposição em
de muitos países, e dividiu essa exposição em várias linhas três grandes vertentes, que ele chamou de política, cons-
conceituais, para agrupar os trabalhos por outras relações. E trutiva e cartográfica. E aí essa questão parece que se des-
ela acentua que esse método tem um objetivo, que é assi- dobra e merece um estudo, merece que apontemos esses
nalar “pontos luminosos” na produção e trazer visibili­dade momentos, para vermos que existe um raciocínio desses
àquilo que está obscurecido por alguma espécie de meca- curadores que pode ser perseguido e identificado, mas que
nismo; pode ser por questões históricas, conceituais, de le- a literatura ainda não conseguiu dar conta. Um terceiro mo-
gibilidade da obra, e assim por diante. E aí eu vou fazer um delo, que eu acho que é mais surpreendente, mais brilhante,
salto porque, quando eu falar da Bienal do Mercosul, esses talvez o que mais surpreenda as pessoas, é o modelo que
pontos luminosos que ela chamou, nesse método que ela eu chamo de antropofágico e que foi adotado pelo cura-
adota e ela tem insistido nisso, escrito sobre esse assunto, dor Paulo Herkenhoff a partir da 24a Bienal de São Paulo,
nós iremos chamar no projeto curatorial da 10a Bienal do em que ele constrói a plataforma da exposição a partir das
Mercosul de pontos cegos, que são aquelas obras ou uma questões, dos desdobramentos e dos conceitos do Mani-
determinada produção ou um determinando corpo de obra festo Antropofágico de Oswald de Andrade, em 1928. Mas
que foi negligenciado, vamos dizer assim, pela crítica ou pela isso, na época, em 1998, não foi visto de uma maneira tão
historiografia, ou pela curadoria, e que merece ser trazido à vi- clara e com a importância e o impacto que aquela exposição
sibilidade pública. Para isso a Bienal é especialmente interes- tinha para o contexto internacional. Hoje ela é reconheci-
sante, porque ela propicia muita visibilidade, o que dá a essa da como uma das mais importantes exposições, uma das
obra ou a essa produção ou a esse corpo de obra ou a um grandes exposições que foram realizadas no mundo. Mas
movimento artístico específico uma visibilidade e uma condi- ela é extremamente politizada, e esse método, na verdade,
ção de ascender a um patamar de inteligibilidade que merece. se inicia com um conceito, e o Paulo Herkenhoff sempre faz

52
questão de falar de conceito, e não de tema ou de outros construção. Assim, aquela exposição acabou tendo uma
desdobramentos, mas de um conceito específico, que tem influência muito importante e, ao estudarmos um pouco a
vários pontos de onde ele se alimenta, mais especialmente exposição, podemos perceber que posteriormente, com a
do Manifesto Antropofágico. Posteriormente, ao ganhar um ida do Paulo para a curadoria do Museu de Arte Moderna de
corpo, ele se transforma em uma “metodologia”, com todas Nova York, houve uma série, especialmente, de intervenções
as aspas que a gente possa colocar ao redor dessa palavra, e influências, com o impacto daquilo que ele havia feito na
na medida em que começa a haver inúmeros desdobra- 24a Bienal no próprio MoMA. A Tate, quando rearranjou sua
mentos desse procedimento curatorial, que também tem coleção, embora eles nunca venham a admitir, teve uma in-
toda a sua força nesse mecanismo de justaposição com um fluência grande naquela exposição, sabemos disso, e essa
adicional extremamente politizado e interessante, que é o abordagem se espalhou mais do que se pode imaginar. O
fato de o Paulo, neste caso, fazer uma exposição que era conceito de antropofagia, o impacto da antropofagia para
uma exposição transnacional e trabalhar com a produção os diversos países chamados “periféricos” tem sido enor-
artística internacional mais ampla, ou seja, teoricamente me, porque é uma questão muito interessante, na medida
atingindo todos os países do globo e, portanto, um avanço em que a antropofagia é instrumental para nós tratarmos
sobre a história da arte global. Ele resolve, nesse mecanis- uma questão absolutamente fundamental para os países
mo de justaposição, colocar lado a lado obras canônicas da que estão localizados à margem, vamos dizer assim, que é
produção artística mundial e obras às vezes canônicas, às a questão da derivação cultural. Ela resolve esse problema
vezes não canônicas da arte brasileira. Esse era o objetivo de uma maneira rápida e definitiva. Especialmente para o
último dele. Era, vamos dizer assim, o de inscrever essa Brasil eu acho que isso se tornou muito interessante, para
produção não canônica e essa produção dos países, que a além, inclusive, da antropofagia de Oswald de Andrade, por-
gente pode dizer, “das margens” dentro de uma história da que, muitas vezes, o próprio manifesto tem alguns proble-
arte global, dentro das grandes narrativas. Eu não acho, até mas que precisam evidentemente ser resolvidos. Mas, se
onde eu sei – e eu tive a oportunidade de conversar muito nós deixarmos isso de lado, a ideia da antropofagia é ex-
com o Paulo e um capítulo da minha dissertação de dou- cepcional, e não é à toa que que ela se mostrou a maior
torado é dedicado a este assunto –, que se trata de um contribuição brasileira aos estudos pós-coloniais. E eu acho
procedimento ingênuo de querer inserir um grupo de obras que agora isso vem sendo reconhecido pelo vasto volume
canônicas da arte brasileira dentro das grandes narrativas. de literatura que tem surgido sobre a antropofagia. Então,
Eu não acho que essa também seja uma questão que deva esse seria um terceiro modelo. E quanto ao último modelo,
ser perseguida pelos curadores. Mas, ao mesmo tempo, o eu me arrisquei a propor um quarto modelo, eu me arris-
que deve ser perseguido? Eu falarei disso de uma manei- quei a determinar como modelo um que, modestamente,
ra mais afirmativa: é que nós precisamos ter a consciência adotamos durante a minha gestão no Museu de Arte do Rio
de que existe uma narrativa muito forte, muito bem cons- Grande do Sul, que chamamos de modelo labiríntico. Ele
truída, que é mantida intacta pela academia, pelos grandes tinha um pouco de todos os outros e pode ser assim re-
museus, localizados nos grandes centros internacionais de sumido: ele é baseado na história mitológica de Dédalo e
circulação da produção artística, especialmente aqueles no fio de Ariadne como metáfora de continuidade narrativa.
museus que a gente pode chamar de globais, que mantêm A ideia era a de que nós poderíamos construir exposições
determinada construção da história da arte; de que cabe a não cronológicas, não lineares, trabalhando com essa ideia
nós, ou pelo menos aos profissionais que estão trabalhan- de justaposição, que construísse outras vias de abordagem
do em curadoria, questionar e ter uma visão crítica dessa para obras que até então estavam dominadas por uma aura

53
de obscuridade, no seu sentido histórico, no seu sentido assim por diante. Então, ela se transformou em uma expo-
cultural, no seu sentido conceitual e artístico, estético, e as- sição global, como todas as grandes bienais do mundo. A
sim por diante. E isso estava baseado, para quem conhece pergunta, portanto, a que procuramos responder durante a
mais sobre a ideia de labirinto, em labirintos “multicursó- escolha do projeto curatorial da 10a Bienal foi a de por que
rios” e “unicursórios”. Os “multicursórios” são labirintos com devíamos ter mais uma bienal que fosse uma plataforma
diversas saídas; os “unicursórios”, com apenas uma entra- para a produção artística global, se temos hoje cerca de 120
da e uma saída. Então, tecnicamente, ou conceitualmente bienais no mundo que já fazem isso. E eu acho que a Bienal
falando, um modelo labiríntico de curadoria implicaria que do Mercosul tinha essa vocação, um pouco como a Manifes-
ele seria “multicursório”, ele teria diversas alternativas, di- ta, ou como a Bienal de Istambul, de se concentrar em de-
versas vias de interpretação. O que acontece é que, no fun- terminadas regiões negligenciadas pela visibilidade interna-
do, esse modelo adotava um pouco de todos esses que cional. A Bienal do Mercosul fez uma trajetória excepcional
eu falei, o constelacional, o antropofágico, o cartográfico, e de exposições e era o momento de retornar às suas origens,
ele se apropriaria um pouco de todos esses procedimentos pelo menos, para essa exposição. O futuro, como se diz, a
para construir uma nova alternativa. No fundo estávamos Deus pertence. Então, ficou claro que essa seria uma ex-
fazendo um pouco da mesma coisa, mas partindo de uma posição sobre a produção da América Latina, mas que nós
perspectiva diferente, que permitia que chegássemos a um também iríamos adotar um modelo diferenciado de bienais.
outro lugar. Pudemos assim identificar um outro raciocínio As bienais, normalmente, trabalham com obras comissio-
por trás desses projetos curatoriais. nadas, com aquilo que é “mais contemporâneo”, com o que
Agora vou utilizar a 10a Bienal do Mercosul para falar um está no ateliê do artista na última hora, mas especialmente
pouco para vocês sobre a concretude dessas coisas. Quan- com obras comissionadas. E eu acredito que as pessoas fi-
do nós assumimos a curadoria, e eu digo “nós” porque eu caram tão convictas disso que elas não conseguem admitir
sou curador-chefe, mas tem um grupo de curadores traba- que o “modelo bienal” possa ser de outra maneira; ele tem
lhando comigo, ficou muito claro que a gente deveria vol- que ser uma exposição daquilo que é mais contemporâneo,
tar a uma vocação inicial da Bienal do Mercosul, que era e daquilo que são as últimas tendências, que é o que está no
que foi muito bem assinalada naquela 1a Bienal do Mercosul, ateliê do artista, ou melhor, aquilo que possa ser comissio-
realizada pelo Frederico Morais, que era, primeiramente, a nado para a exposição. Mas isso começou a gerar, na mi-
de ser voltada para a produção da América Latina e espe- nha opinião, um grupo de obras que não necessariamente
cificamente, dito em uma frase dele, “reescrever a história existiriam se muitas bienais não tivessem sido realizadas, e
da arte latino-americana sob uma perspectiva não eurocên- algumas destas obras sequer deveriam existir, porque elas
trica” – ele usou especificamente essa frase. Que naquele não eram boas, eram ruins, eram de má qualidade. E isso
momento, realmente, a gente sabia que essa ideia de arte os curadores, obviamente, nunca vão admitir. Mas é clamor
latino-americana era problemática, mas ainda não tinha que também se produziram através de bienais obras de ex-
tanta consciência disso, pois estávamos em 1997. Até a traordinária qualidade. Então nós passamos a ter essas ex-
5a Bienal o que aconteceu foi que, de uma maneira ou de posições excêntricas, esquisitas e muito problemáticas. Por
outra, a Bienal do Mercosul se manteve com essa vocação, outro lado, é claro, outras excepcionais, que também não
vocação que ela começa a abandonar cada vez mais ao se teriam a oportunidade de existir se não fossem justamente
voltar mais para a produção dos Estados Unidos e da Euro- essas comissões. Entretanto, na minha visão, eu achei que
pa, e, em seguida, na 7a, 8a e 9a Bienal, inclusive, para outras seria extremamente produtivo e interessante fazer uma
regiões, como a Ásia e países da África, do Oriente Médio e bienal com um caráter mais museológico, com outro mo-

54
delo, que fosse essencialmente uma grande exposição de dos Estados Unidos que é a Times Square. Essa obra foi
arte contemporânea. Mas ela teria algumas especificidades, feita especificamente para aquele local e será mostrada na
como é o caso da 10a Bienal do Mercosul. Então nós esten- Bienal do Mercosul, em um dos prédios que irão abrigar a
demos o arco histórico da bienal, nós teremos obras do início exposição.
do século XVIII até a produção contemporânea convivendo Então, o programa estratégico basicamente era este, o
dentro de um conjunto de sete exposições, que são todas de retomar o foco para a América Latina, a legibilidade de
interligadas conceitualmente. Agora eu quero mostrar um obras históricas, a exposição pensada para especialistas e
pouco da estrutura da exposição Bom, quero iniciar por co- interessados de arte. Que isto fique bem claro: não é uma
mentar o título da bienal, que se chama Mensagens de uma exposição, nem só para os especialistas. É uma exposição
Nova América. Primeiro, é um enunciado político, evidente- para todos e com o objetivo de acionar politicamente o
mente, mas ele basicamente diz o seguinte: que essa nova campo da arte. A plataforma curatorial nós dividimos, em
América é uma outra ideia de América e uma outra ideia uma estrutura, através destes quatro vetores que são preca-
dessas obras; é uma outra perspectiva dessas obras, muitas riedade, dificuldade, resistência e generosidade criativa. Eles
das quais são conhecidas da comunidade artística nacional podem ser descritos como sendo basicamente o seguinte:
e internacional. Nós teremos na exposição obras canôni- precariedade, porque para o artista da América Latina a pre-
cas e não canônicas, então não se trata de uma exposição cariedade sempre esteve presente, porque o processo insti-
de obras fora da norma, ou estranhas, ou completamente tucionalidade é mais fraco, o acesso aos meios de circulação
novas. Mas a maneira, o desdobramento e o contexto com da produção e o ingresso nas grandes narrativas é muito
que se pretende mostrar essas obras, muitas delas já vistas mais complicado, e tudo aquilo que precariedade significa,
inúmeras vezes, é que vão construir essa ideia de uma nova tudo aquilo que significa produzir em um país que está à
América. E também questionar essa ideia ficcional de que margem de um grande centro da produção internacional.
a América é exclusivamente os Estados Unidos, pois sabe- Esses foram norteadores que nós queríamos ter em men-
mos que é uma construção cultural. Então isso já está posto te e assinalar durante o processo de realização da exposição.
no enunciado da exposição. Aí tem duas obras emblemá- Eles não vão aparecer na exposição dessa maneira, mas
ticas, que eu acho que dão um norte para a 10a Bienal do foram utilizados apenas como um norte. E é importante
Mercosul, que é América Invertida, do Torres García, e Logo assinalar aqui que os curadores, hoje, gostam de dizer que
for America, do Alfredo Jaar, que são duas obras de tempos não existe mais um centro, que não existe mais uma peri-
diferentes, mas que, de certa forma, têm uma gênese muito feria, que existem muitas periferias, mas, na verdade, é o
próxima, porque elas fazem essa virada epistemológica e seguinte: o centro nunca foi tão forte, ele nunca se firmou
desconstroem essa concepção de que nós temos a própria tão bem, ele nunca teve tantos recursos, e as chamadas
ideia de América. Para quem não conhece bem essa última “periferias” nunca foram tão periferias como são hoje. A di-
obra, acho que todo mundo conhece, mas basicamente ela ficuldade refere-se a essa dificuldade do próprio processo
é uma animação de alguns segundos que foi colocada na criativo, uma vez que o processo criativo não é uma dádi-
Times Square em 1987, e essa imagem se intercambia entre va divina, e essa é uma discussão que depois vai aparecer
a frase “This is not America” e a bandeira dos Estados Uni- na exposição. É um processo, muitas vezes, dramático, de
dos e algumas outras imagens. É um logo animado, vamos rompimento de barreiras, etc., e também está implicado
dizer assim. E tem essa questão absolutamente política de com o primeiro aspecto da precariedade. Resistência por-
ter sido colocado naquele lugar, que é o símbolo financeiro que muitos desses países da América Latina passaram por
dos Estados Unidos, o lugar simbólico do poder financeiro processos ditatoriais, pela colonização e por tudo o que

55
sabemos. E a arte atravessa esse processo, mantém essa que eu considero muito importantes dentro do contexto
resistência. E generosidade criativa é porque, no final de da América Latina, a antropofagia de Oswald de Andrade,
tudo isso, a produção desses países não deixa nada a de- aliás, diga-se de passagem, uma confluência de duas forças
sejar a nenhum outro lugar do mundo. E eu acho que pre- bastante difíceis e para muitas pessoas, talvez, até proble-
cisamos ter sempre isso em mente, que nós não estamos máticas sob o ponto de vista conceitual; e a outra, o neobar-
partindo de uma perspectiva da miséria criativa, mas sim roco, que é o desdobramento do barroco, a partir dos anos
do brilhantismo e da excepcionalidade. Então, fora isso, a setenta, principalmente, como ele foi teorizado por Alejo
exposição tem quatro campos, que se chamam A Jornada Carpentier, um escritor cubano, especialmente no seu livro
da Adversidade, A Insurgência dos Sentidos, Desapaga- O Século das Luzes, e que desproblematiza, assim como a
mento dos Trópicos e A Jornada Continua, e dentro de cada antropofagia, e consegue resolver problemas de derivação.
um deles, as exposições, que são hoje oito. Nós tínhamos O neobarroco desproblematiza as questões, a problemá-
uma exposição em que a gente fez uma pequena mudança tica histórica do barroco, do barroco histórico, principal-
e que não está mais aqui, e agora nós temos, então, dentro mente o europeu, e toda a sua relação muito estreita com
da Jornada da Adversidade uma exposição chamada Bio- o colonialismo. Desapagamento dos Trópicos tem uma
grafia da Vida Urbana, que vai tratar dos desdobramentos exposição chamada Poeira e o Mundo dos Objetos, que a
do espaço público da América Latina, até chegar às novas princípio tem esse nome meio excêntrico, mas, na verdade,
tecnologias, através de obras como Performance e outras ela é uma exposição muito interessante, porque vai tratar
manifestações. Modernismo em Paralaxe é uma exposição daquilo que é mais transitório e de como a materialidade,
para tratar das diversas contribuições dos modernismos a realidade material dos objetos tem muito a nos dizer, e
desses países da América Latina, porque uma das coisas também de uma coisa, de uma relação metafórica entre a
que a gente já sabe é que o modernismo não é algo mono- poeira e como o pó se junta e se organiza, ou seja, de uma
lítico, ele não é uma exclusividade europeia nem america- maneira indiscriminada, e isso para nós é muito interessan-
na, obviamente, e que ele aconteceu simultaneamente nas te, porque essas partículas de pó não discriminam entre si
mais diversas partes do mundo, mas também aconteceu e ao mesmo tempo constroem uma network, que tem um
de maneira diferente, não só nos diversos países da África e paralelo na nossa vida cotidiana. Evidentemente que isso
nos mais diversos países da América Latina. E a contribui- vai ser construído a partir de uma exposição, com objetos
ção de cada um deles é diferenciada. Na Insurgência dos muito concretos, com esculturas, com pinturas desde, por
Sentidos, é um campo que vai reunir uma exposição cha- exemplo, a Coluna de Cal de Nuno Ramos, de 1987, até as
mada Olfatória – O Cheiro na Arte, uma exposição que eu obras com pó, com filtros de poeira da Shirley Paes Leme, e
acho muito interessante, porque é uma exposição que vai muitos outros artistas de outros países da América Latina.
tratar dos outros sentidos que não aqueles exclusivamen- Marginália da Forma, que é uma exposição, vai tratar um
te do olhar. Isso não significa que seja uma exposição que pouco dos desvios, daquelas obras que não se conformam
tenha obras exclusivamente que tenham cheiro, mas que muito à norma canônica, que a gente conhece e que tem
tratem do olfato, que problematizem o olfato ou que tam- uma construção, originalmente, a partir de uma concepção
bém problematizem o olhar e outros sentidos. Aparatos do europeia de arte. A Jornada Continua, então, inclui o projeto
Corpo, acho que o próprio nome já diz, vai tratar das diver- educativo, a escola de curadoria, o projeto editorial e as pu-
sas manifestações pelas quais atravessam ou partem do blicações. É muito importante assinalar também que essa
corpo através da história da arte. E uma exposição chama- bienal tem esses conceitos e essas palavras-chave; é meio
da Antropofagia Neobarroca, que junta essas duas forças que um glossário, eles são fundamentais.

56
Cânone, eu fico impressionado que os curadores não fa- legibilidade é uma questão primordial em curadoria, espe-
lam essa palavra, e mesmo os historiadores de arte, poucos cialmente nessa época.
ainda falam essa palavra e a problemática que ela repre- Prioridade histórica, que é quem fez o que primeiro. É
senta para as exposições. As prerrogativas de construção de impressionante que no Brasil eu nunca vi um curador falar
cânone artístico são muito problemáticas historicamente, em prioridade histórica. Prioridade histórica é o seguinte: na
construídas de uma maneira fortemente ideológica, e preci- disputa política entre quem se adiantou a uma determinada
sam ser questionadas em exposições, na minha visão. questão ou a um determinado problema, normalmente a
Curadoria, evidentemente, noção de curadoria crítica, que visibilidade vai para aqueles que estão nos grandes centros
é uma manifestação mais recente da curadoria, com forte de produção artística, situação artística internacional, são os
aspecto revisionista, que eu acho que essa exposição tem. que estão à frente. Agora, em uma visão crítica da produção
Especificidade cultural, basicamente, aquilo de como se artística histórica, o conceito de prioridade histórica é fun-
trata uma obra, onde foi construída. E a Mari Carmen Rami- damental. Vou citar um exemplo. Agora está sendo realiza-
rez e o Paulo Herkenhoff, esses curadores que eu mencio- da pela Tate uma exposição chamada The World Goes Pop,
nei antes, têm muito isso em vista. Poucos curadores falam que é uma exposição de forte caráter revisionista, embora
disso, especificidade cultural, como que nós lidamos com a não tenha sido anunciada assim, mas que basicamente vai
mudança de contexto de uma obra que parece com a outra, assinalar o seguinte: que o Pop não é um movimento ex-
de outro artista, mas não mantém nenhuma relação, por- clusivamente britânico ou americano, mas que ele surgiu,
que a questão conceitual que o artista está tratando é es- simultaneamente, no Oriente Médio, na África, na Ásia e na
pecífica, cultural e historicamente. Então, às vezes, quando América Latina. Então, ao fazer isso, quando os curadores
vemos uma pessoa fazer essa observação meio superficial deslocam determinadas obras de artistas desconhecidos
e diz “ah, isso outro artista já fez ou se parece com aquilo”, para essas exposições, eles estão redefinindo esse campo
é preciso, às vezes, observar esse aspecto, essa especifici- de ação das obras. Por exemplo, nós temos nessa exposi-
dade cultural de uma obra. E isso é problemático para nós, ção uma artista de Porto Alegre, a Romanita Dizconzi, par-
porque, sempre no embate entre um artista produzindo às ticipando com uma obra chamada Totem de Interpretação,
margens e um artista produzindo no centro, quando se trata de 1969. Ela já estava adiantada em relação a vários outros
de especificidade cultural, o artista do centro sempre vence. países, e o Pop, vamos dizer assim, de que ela estava tra-
Bem, continuando, justaposição, que é justamente esse tando era muito específico, então eu acho que por isso é
mecanismo que já foi historicamente utilizado muitas vezes, tão importante. Eu acompanhei esse processo. Essa obra foi
mas não reconhecido conceitualmente, que é basicamente emprestada do acervo do Museu de Arte do Rio Grande do
o procedimento de colocar uma obra ao lado de outra de Sul para essa exposição da Tate. Eles descobriram a obra, se
um período, de uma questão conceitual ou de um princípio impressionaram com a obra, e ela não entrou na exposição
estético completamente diverso, para que construa outras por uma outra razão que não fosse realmente a contribui-
avenidas de interpretação. ção que a artista estava dando naquele momento e que até
Legibilidade: é preciso que uma exposição promova le- então era desconhecida.
gibilidade. Exposições ultimamente têm feito uma gran- Recepção, de como uma obra é entendida, é percebida
de confusão, muitas delas por não deixarem claro o que em determinado contexto.
é que as obras estão fazendo naquele lugar. Então, acho E tradução cultural basicamente é o seguinte: como é
que a gente precisa saber o que é que essas obras signifi- que eu pego um objeto feito aqui, feito com uma especifi­
cam, quais são as questões que elas estão tratando. Assim, cidade cultural de um determinado lugar, levo para um

57
outro lugar, vamos dizer Nova York, e como isso vai ser en- das concepções que nós temos e do que nós conhecemos
tendido lá. Existe um processo de tradução cultural que do barroco e das manifestações que vêm posteriormente
tem que ser feito. a ele, nós poderíamos considerar que, por exemplo, o Tira-
Então, tendo esses conceitos em mente, foi como come- dentes Esquartejado tem um forte caráter neobarroco, as-
çamos a pensar. Eu quero mostrar umas imagens e comen- sim como o Desmembrado, do Orozco.
tar aqui. Elas não são das obras mais importantes da bienal Teremos também na Bienal algumas contribuições do
necessariamente, elas não são as mais emblemáticas. Por Barroco Jesuítico, com confrontos entre obras populares
exemplo, na exposição da antropofagia e do neobarroco, nós e históricas. Eu vou me concentrar nessas obras históricas
vamos colocar lado a lado essas duas pinturas, que é o Tira- porque elas são o maior ponto de polêmica da exposição.
dentes Esquartejado, do Pedro Américo, e o Desmembrado, Eu vou chegar ao final e dizer o que exatamente eu estou
do José Clemente Orozco, que a princípio não têm relação querendo dizer por polêmica. Então, uma das coisas que
nenhuma, uma pintura histórica, e outra tudo levaria a que eu queria trazer para essa exposição eram algumas ima-
nenhum curador fizesse isso, porque, em princípio, é uma gens cuja iconografia é muito interessante para nós repen-
determinação arbitrária. Essas obras possuem, entretanto, sarmos algumas questões, não só para o neobarroco, para
uma relação formal relacionada à perda da identidade do a antropofagia, outras questões da arte, etc. E uma delas
indivíduo pelo desmembramento do corpo e, dessa forma, são essas imagens da Virgem de Guadalupe, que também
se relaciona como a antropofagia do corpo. Mas o que nós tem um aspecto simbólico, porque a Virgem de Guadalupe
estamos tentando fazer aqui é trabalhar com a perspectiva é considerada patrona da América e o impacto que ela teve
de oportunidade e de acesso, e essa oportunidade de aces- sobre as ideias de nacionalismo no México, as concepções
so é o seguinte. Qual é a nossa chance de direcionar o nos- de identidade nacional, etc., são muito fortes. Mas também
so olhar para duas obras que jamais estariam juntas, que porque a Virgem de Guadalupe é considerada uma virgem
requerem um deslocamento no tempo, no espaço, e que negra. E a aparição dela acontece para um índio recém-ca-
estão em uma exposição e que nos permitem refletir so- tequizado. Nessa imagem a gente tem as duas alegorias, da
bre um determinado problema? A bienal é toda construída Espanha e da América, e a gente fez questão de ter nessa
assim, na medida do possível, na medida das limitações, na exposição uma outra imagem da Virgem de Guadalupe, que
medida do grande número de impedimentos, muitas vezes é Deus pintando a Virgem de Guadalupe, porque essas duas
mais do que oportunidades que nós temos para construir obras também estarão no barroco, mas essa obra aqui, por
uma exposição. Mas esse é um exemplo muito claro. Aqui exemplo, vai estar lá para tratar de uma questão, que é a
no Tiradentes a gente tem essa questão problematizada seguinte: da própria ideia de criatividade, que a criatividade
pela canibalização do corpo pelo Estado, a destruição do e a vocação artística estão ligadas muitas vezes a um ato
corpo e do espírito. Nós vemos também isso no Orozco, só divino. Foi assim que a ideia de genialidade foi concebida,
que de uma outra forma. Essa máscara em que se trans- e o impacto da ideia de genialidade na formação do câno-
formou o rosto da figura mostra essa falta de identidade ne artístico é absolutamente pervasivo, problemático e até,
provocada possivelmente pelo desmembramento do corpo. eu diria assim, uma fatalidade histórica. Porque, quando a
Então, essa questão antropofágica aparece muito clara nes- vida dos artistas é escrita pelo Vasari, e ele é o primeiro que
sas duas obras. Mas também tem uma outra coisa que a menciona a criação divina como uma manifestação criativa
gente pode identificar nessas duas obras: elas também têm e aqueles artistas como sendo artistas geniais, ele proble-
um forte aspecto neobarroco. Se conseguíssemos por um matiza toda a história da arte a partir de então, na medida
segundo vislumbrá-las fora dos nossos preconceitos, fora em que ele diz que os artistas geniais são aqueles que têm

58
condição de ascender aos patamares mais altos da produ- produção moderna, como referência. Então, ele é uma visão
ção artística canônica, que merecem consideração, e assim de 360º do modernismo. Esses três exemplos aqui, essas
por diante. Entre esse momento da aparição e aquele que, três obras que eu fiz questão de mostrar aqui, porque elas
na verdade, se fossemos traduzir em palavras bem simples, vão estar na exposição do Olfato, elas não têm a ver com
é a concepção de Deus como um artista, pintando a sua o olfato, mas elas tratam justamente da problematização
obra-prima, vemos a imagem da virgem, nesse caso sobre do olhar. Essas fotografias do Jing Musa refletem a própria
uma tela, sobre um cavalete. Então, tem também esse as- parede, se autorrefletem. Essa obra da Sandra Cinto é muito
pecto ambíguo de ser uma pintura acadêmica falando so- interessante porque é um retrato da artista que não retorna
bre aspectos da academia e sobre essa visão de genialidade. o olhar, cujo olhar é coberto pelas mãos de uma criança, que
Uma outra imagem que vai estar na bienal, que é uma pin- também não mostra o olhar, e o motivo do quadro está fora
tura que eu acho extraordinária, é da Virgem-Cerro, da Bolí- do quadro. Então, na verdade, é um trabalho que proble-
via. O manto dela é a própria Montanha de Potosí, na Bolí- matiza toda a história da pintura e da imagem ao longo da
via; essa montanha era muito rica em prata, foi extraída de história da arte.
lá uma quantidade extraordinária de prata, que enriqueceu Eu vou voltar a falar do Bólide Olfático, do Hélio Oitici-
a Europa por muitos anos. Essa obra deverá estar na exposi- ca, que tem um aspecto também político. O Bólide Olfático
ção ao lado desses objetos do Darío Escobar, da Guatemala, foi construído com café, então ele tem um aspecto político
são objetos quase pop, mas são feitos de prata. Isso parece muito interessante, porque ele fala também da indústria
quase uma simplificação de um problema muito mais com- brasileira do café e o que isso representou principalmente
plexo, mas ao mesmo é a porta de entrada, uma outra porta para São Paulo, para o Brasil, e as implicações políticas que
de entrada, para o visitante ingressar no universo da arte, isso tem, além de todas as outras questões sensoriais que
que é um dos objetivos que nós queremos. Esses dois artis- o artista estava pensando. Uma obra muito interessante é
tas também estarão em justaposição com a Virgem-Cerro, a Vendedora de Cheiro, da Antonieta Feio, que, justamente
essas Montanhas de Luz, do Francisco Ugarte, do México, e por vir de uma parte isolada do Brasil em relação aos gran-
essas montanhas que são praticamente arquitetônicas, do des centros de circulação e produção artística, nunca teve o
John Mario Ortíz, da Colômbia, que é um trabalho belíssimo reconhecimento que merecia. Teremos também nesta ex-
e que também se relaciona com a métrica da subtração da posição naturezas-mortas do Estevão da Silva. Para quem
prata como valor e quantidade. Agora, vejam bem, essas não sabe, ele fazia essas naturezas-mortas absolutamente
obras estarão em uma exposição que trata do barroco e tra- vivas e muito convincentes, e em suas exposições ele colo-
ta da antropofagia, e esses trabalhos estão mais para uma cava atrás das pinturas frutas abertas, para que as pessoas
visão construtiva ou, vamos dizer assim, fenomenológica experienciassem o olfato. E Oswaldo Maciá, da Colômbia,
até. Mas não é isso que nós estamos procurando; nós não de quem depois eu vou comentar algumas obras.
estamos procurando dar uma aula sobre o barroco ou sobre Bom, só para concluir isso que eu havia falado, por exem-
o modernismo, e assim por diante. Por exemplo, a exposi- plo, sobre prioridade histórica, eu vou dar um exemplo aqui
ção do modernismo não é uma exposição que vai tratar do que é o seguinte: todos conhecemos as pinturas negras do
modernismo no sentido estrito do termo, ela terá obras do Frank Stella e todo mundo conhece a série Tecelares, da
modernismo fundacional, da produção construtiva, da pro- Lygia Pape. Evidentemente que existem muitas coinci-
dução abstrata, mas também daqueles artistas que critica- dências em arte, os artistas pensam as mesmas coisas ao
ram o modernismo, da produção contemporânea que tam- mesmo tempo, e é absolutamente comum, mas há coinci-
bém criticou o modernismo ou que tem o modernismo, a dências que são coincidências demais. Por exemplo, assim,

59
sabemos que Frank Stella visitou o Rio de Janeiro, conheceu que eu faço em história da arte e entendi um pouco esse
o trabalho da Lygia e desenvolveu essa série depois de fa- pouco de informação que a gente tem da produção latino
zer isso. Ela fez estas obras anteriormente a ele e nunca foi -americana, da América Latina. E eu vejo o quanto a gen-
dado o reconhecimento a essa produção da Lygia, no mes- te ainda está sob a influência das grandes narrativas e o
mo status de consagração mundial que fez com que o Stella quanto as Bienais – e você falou muito bem da Bienal de 98,
ingressasse na história da arte de maneira definitiva. Ago- da curadoria do Paulo Herkenhoff – nos trazem um pouco
ra observem só uma questão: a Lygia Pape assim como a essa leitura, essa volta para essa geografia, para esse lado
Lygia Clark (poderíamos ficar dias aqui falando, mas é só um do sul. E o quanto foi importante realmente o conceito for-
exemplo que eu quero dar), ambas as artistas tratavam de jado da Semana de 22 e, mais tarde, pelo Oswald de An-
uma questão chamada “linha orgânica”. O Frank Stella, que drade, da antropofagia. E o quanto nós estamos ainda nos
seriam esses espaços entre as coisas que encontram um pa- canibalizando e o quanto a gente vive isso na atualidade.
ralelo, por exemplo em Morandi, e há pouco a gente viu ali E eu vejo, assim, o quanto ainda falta de espaço para essa
as garrafas do Waltercio. Aquelas duas garrafas nada mais produção aparecer, porque o Brasil tem uma dimensão con-
que são do que o espaço “entre”, etc. O Frank Stella falou de tinental e tem uma produção de artistas que a gente nem
uma outra coisa, ele não falou da linha orgânica, ele falou de tem ideia do quanto eles poderiam estar contribuindo para
breathing spaces, o que é muito próximo. Então, assim, em essa narrativa que está se construindo e do que se pensa
termos de prioridade histórica, a questão política é muito im- dessa história da América Latina e do Brasil. Então, é um
portante porque quem se adiantou a essas questões, pode- comentário, mas também um questionamento: o quanto
mos concluir, foi a Lygia Pape, e não o Frank Stella. O Paulo ainda falta de outras Bienais que repensem a nossa condi-
Herkenhoff organizou uma exposição para o MoMA chamada ção histórica e o quanto ainda falta de espaços para esses
de The Marriage of Reason and Squalor, que é o título da ex- artistas aparecerem. Eu falo isso porque há quatro anos eu
posição e o título da obra de Stella que pertence à coleção do inaugurei um espaço de arte independente aqui no centro
MoMA. O Paulo Herkenhoff, eu não sei se estou dizendo uma de São Paulo e vi também nascerem vários outros espaços
novidade, mas como se sabe, é um curador extremamente aqui como a Pivô, a Fósforo, a Aurora, a Casa do Povo, que
politizado. E ele estrategicamente planejou que a Coleção está se fortalecendo novamente. Então, eu vejo uma neces-
Cisneros doasse essa gravura da Lygia Pape para a coleção do sidade, uma demanda muito grande de artistas que estão
MoMA, fez essa exposição e colocou essas duas obras juntas circulando a América Latina e artistas europeus que estão
para justamente mostrar um exemplo de prioridade histórica, vindo para a América Latina para justamente repensarem
que eu acho que foi muito bem assinalado. Existem outros, esse estado global em que nós nos encontramos. A gente
mas acho que .... Eu prometi à Denise que eu não ia passar de fala ainda da América Latina, mas hoje a gente se vê sen-
uma hora, então acho que podemos abrir para as perguntas do inundado de informações tanto estéticas, quanto sociais
e aí eu volto a falar. Talvez nas perguntas surjam outras ques- e políticas do mundo inteiro. Então, realmente é uma difi-
tões, e eu quero voltar para uma questão interessante aqui, culdade dar conta de tantos artistas, e eu vejo o que você
uma anedota, vamos dizer assim. Obrigado. fez na Bienal do Mercosul, e é realmente muito importante
focar isso, essa contribuição e essa curadoria pensando o
Luciano Ruas: Boa noite, Gaudêncio. Realmente, você nos que a América Latina e os artistas que estão aqui têm a
inundou de informações, mas uma especial me chamou a contribuir para essa narrativa que está se construindo hoje
atenção: você falou sobre as grandes narrativas. Eu enten- globalmente. E eu acho que hoje nós temos um papel mui-
do muito isso e eu percebi ao longo das minhas pesquisas to importante para essa demanda de questões que estão

60
surgindo e que estão a todo momento assaltando as nossas que eu vou fazer uma exposição de arte global se eu tenho
percepções. Na verdade, eu queria falar isso, falar também o na mão uma plataforma transnacional que pode se trans-
quanto é importante o papel que a Bienal do Mercosul tem formar em uma plataforma para a arte da América Latina?
de fortalecer essa visão, sabendo de antemão de tudo isso, Qual é o sentido, entendeu? Seria uma coisa completamen-
que as Bienais do mundo inteiro estão já globalizadas e que te fora de propósito. Eu tenho que ter uma noção política do
falta realmente essa visão local, que é um pouco o que fa- que eu estou fazendo e eu acho que a responsabilidade de
lou ontem o Paulo Herkenhoff, sobre quanto no MAR ele fazer uma exposição dessa é imensa. Eu morei todos esses
tem essa missão, essa vocação de dar voz a essas pessoas anos nos Estados Unidos. Eu conheço muito, tenho grande
que estão no entorno e que têm muito a enriquecer a nossa admiração pela obra de muitos artistas dos Estados Unidos,
visão do que é arte contemporânea hoje e qual é o papel e adoraria fazer uma exposição de arte americana. Mas eu
do Brasil, qual o papel da América Latina nessa construção, acho que falta coragem para fazer isso e falta um pouco de
nessa nova construção que está se desenhando globalmen- disposição, talvez. E também há os outros interesses que
te sobre essa grande narrativa da história da arte da qual nós conhecemos. Mas de qualquer forma o que eu acho
durante muito tempo nós ficamos muito à margem, apesar muito interessante é assim, é que nós de fato chegamos
de você ter falado que o centro está cada vez se fortalecen- em outro momento. E nós nem percebemos, nós achamos
do enquanto centro e que a margem está cada vez mais se que avançamos para além, aquela miséria de que nós vi-
fortalecendo como margem. E eu entendo que a margem, víamos isolados e que poucos artistas tinham visibilidade,
hoje, é centro e hoje a margem está invadindo o centro, que recepção fora do Brasil; de repente para um avanço muito
está sendo ilustrado pelas grandes imigrações que aconte- grande no interesse dos curadores e diretores de museus e
cem hoje na Europa, não só na Europa, mas aqui no Brasil museus internacionais sobre a produção da América Latina,
também. Bom! Era isso que eu gostaria de comentar. especificamente do Brasil. Mas aí nós achamos que essa é a
nossa linha de progresso, que a gente tem que só conseguir
Gaudêncio Fidelis: Obrigado, Luciano! Sim, há várias mais, quando, na verdade, nós precisamos nos transformar
questões que você falou que são muito importantes. Vou e fortalecer as nossas instituições, as nossas Bienais, as nos-
começar pelo final. Por exemplo, essa questão do centro- sas exposições que mostrem a nossa produção, as nossas
margem é assim: você precisa se reconhecer como centro, Galerias. São Paulo evidentemente é um caso excepcional,
você não pode ter seu corpo num lugar e a alma em outro. porque São Paulo atingiu um nível de profissionalismo que
Então, eu acho que o nosso maior problema não é que a poucos grandes centros. São Paulo é um centro mundial. O
gente de fato seja uma margem. A gente se sente margem, Brasil, por outro lado, é uma potência extraordinária, mas
esse é o nosso primeiro problema. De certo modo nós ainda vamos ter que admitir por enquanto que os grandes centros
sentimos ser “margem”. Por exemplo, quando anunciamos internacionais de circulação da produção artística ainda
que iríamos fazer uma Bienal sobre a América Latina, nós são Nova York e Londres, e aqueles que a gente já conhece.
recebemos uma série de críticas por, na verdade, ainda te- Então, claro, São Paulo está de parabéns para os paulistas,
mos vergonha. Quando viajamos por estes países foi um que fazem um trabalho excepcional. São Paulo realmente
privilégio porque é impressionante a qualidade, a excepcio- se supera. Agora nós também temos que ser um pouco ge-
nalidade da produção desses artistas. O que se mostra fora nerosos e lembrar que o Brasil, como você disse, é um país
do Brasil hoje, que já é imensamente maior do que era 5, 10, de dimensões continentais e que o Norte não conhece o
15 anos atrás, ainda é pouco do que é produzido de excep- Nordeste, e ambos não conhecem o Sul. O Sul não faz ideia
cional na arte brasileira. E aparece a seguinte questão: por do que acontece no Norte e no Nordeste. E toda riqueza

61
artística (não a criativa), assim, a materialidade, as obras, é preciso lembrar que existem outros canais para os artistas
em suma, estão concentradas em dois pontos, São Paulo e mostrarem sua produção. E, vejam bem, não são os artis-
Rio, sendo que 90% está em São Paulo, na minha opinião, tas que reclamam tanto, quem reclama são os curadores,
grosso modo. Mas nós somos um país imenso. Quer ver um são os professores de universidade, são os críticos, são os
exemplo? Eu posso dizer para vocês com toda a segurança: especialistas. Impressionante, porque na verdade temos as
nos Estados Unidos você vai a um museu, ainda que um mu- feiras de arte, tem as galerias que são excepcionais, então,
seu pequeno em uma cidade nos Estados Unidos, você tem assim, parece que o mundo acaba em uma Bienal, quando,
em sua coleção um Pollock muito bom, você tem um Jasper na verdade, a Bienal é uma exposição, e uma exposição que
Johns que é muito bom, um Rauschenberg que é muito bom. tem que ser muito bem-sucedida, porque ela tem um público
Não é o caso dos museus brasileiros, que não representam grandioso. A Bienal do Mercosul mantém uma média entre
a produção do país de forma igualitária. Está tudo concen- 500 e 600 mil pessoas, então é uma outra plataforma. Eu
trado em três museus, e o restante com alguma sorte. Isso tenho convicção de que essa plataforma devia ser isso. Mas
é um problema para um país como o nosso, porque ele tem eu também tenho convicção, voltando ao que você falou, de
dimensões continentais e existem algumas questões concre- que é muito mais interessante para o artista e para a obra
tas. O volume de produção artística de São Paulo e Rio de dele que ele tenha uma obra específica, ou duas ou três numa
Janeiro é naturalmente maior porque existe um número mui- exposição séria, uma exposição que vai ter publicações sérias,
to grande de artistas trabalhando aqui, então é natural que que vai estar lá e que vai permanecer na história e que tenha
tenham esse potencial. Nesta Bienal nós trabalhamos com uma contribuição para a história de exposições, que é uma
obras específicas, nós escolhemos obras, nós não pensamos outra coisa que a exposição tem que realizar. Você não tem
em uma lista de artistas primeiro, o que aparece uma coisa que ser mais uma exposição. Ela tem que dar uma contri-
estranha. Mas nós construímos essa plataforma com essa buição crítica a uma história de exposições. Então, eu acho
série de exposições, todas interconectadas, e fomos bus- que essa é uma proposta intelectualmente ambiciosa, e eu
car obras, o que se transformou em um processo bastante espero que a gente atinja os objetivos na medida do possível,
complexo, porque nós precisamos convencer os artistas de mas se fracassarmos em tudo isso não iremos fracassar em
que nós não queremos, assim, um artista “x” nessa pare- uma coisa. Nós tentamos um modelo diferente, que eu acho
de, o outro naquela parede, etc. Essa representação, que é que estava na hora de realizar para uma Bienal. A última Do-
uma reminiscência daquilo que a gente conhecia como re- cumenta também teve um pouco disso. Ela teve uns arcos
presentações nacionais em exposições, não serve mais para históricos, grandes de obras, assim, que foi de obras antigas
exposições. Nós queremos é uma contribuição desse artista até a produção contemporânea, porque história da arte não
para essa questão, daquela obra, naquele momento, e nós é uma, também não funciona exclusivamente da maneira
construímos a exposição desta forma. Acho que no final fo- como ela foi construída, através dessa linearidade, de uma
mos muito bem-sucedidos, por isso que eu acho que a ex- cronologia. Ela é uma série de saltos e interconexões e de
posição tem um caráter que eu chamo de mais museológico. relações entre obras. É para isso que ela serve, se ela fosse
E por isso resultou em um certo número de críticas veladas, para ser uma cronologia, bom, primeiro nós teríamos evi-
diga-se de passagem, porque também as pessoas não são dentemente que preencher várias lacunas.
muito corajosas, que é assim: “como que essa Bienal tem
tantos artistas?”. Essa Bienal tem tantos artistas porque Luciano Nascimento Figueiredo: Bem, eu não sei se talvez
tem mais de 600 obras. Nós não escolhemos artistas, esco- eu não tenha entendido muito bem, não sei se você chegou
lhemos um número de obras. E cada uma dessas oito expo- a falar sobre essa diferença conceitual entre arte da América
sições tem uma média de 100 obras, vamos dizer. Também Latina e a latino-americana.

62
Gaudêncio Fidelis: Latino-americana versus América Latina. das as intervenções artísticas que haviam sido feitas em
A América Latina, para mim, é só uma determinação geo­ alguns países da América Latina ao mesmo tempo ou an-
gráfica. Significa o seguinte: iremos nos concentrar sobre tes, para se transformar em um fenômeno exclusivamente
uma determinada região. Latino-americana e latino-ameri- americano?
canidade pressupõem que a produção dessa região teria de-
terminada característica, assim como a arte africana, a arte Andrea Souza: Boa noite. Eu queria saber como está sendo
asiática, etc. Não existe uma coisa chamada “arte africana”, pensada também a ideia da curadoria juntamente com as
não existe uma coisa chamada “arte asiática”, agora existe ações educativas.
“arte americana”. Por quê? Porque arte americana não está
na mesma linha de registro, nem a arte europeia. Ela é uma Gaudêncio Fidelis: Sim, é claro. Olha só, eu estou fascinado
construção histórica ideológica de relevância, ou seja, aquilo com o projeto educativo da Bienal. Ele está sendo feito pelo
que é arte americana e aquilo que é arte europeia são su- Cristián G. Gallegos, que é um jovem profissional do Chile,
postamente melhores, o que a arte africana não necessaria- até recentemente coordenador do projeto educativo do Mu-
mente é, nem a arte latino-americana. São categorias con- seu de Arte Contemporânea do Chile. E ele é incrível, porque,
sideradas subalternas. Mas porque são também universos além de muito profissional, ele é um idealista. Mas ele é
cultural, ideológica e politicamente construídos, porque são muito profissional também e está em perfeita sintonia com
hegemônicos. E eu acho que a única maneira que podemos a curadoria. Nós fizemos umas mudanças, assim, porque
nos referir daqui para a frente é como arte da América Latina, tínhamos uma visão crítica do projeto educativo. Eu acho
ou seja, ela só designa que ela é de uma determinação ge- que a Bienal do Mercosul construiu uma história respeitável
ográfica. Para concluir, essa questão de prioridade histórica na área de projetos educativos, mas sempre tem alguma
tem sido assinalada por pouquíssimos curadores, pouquís- coisa a melhorar. Uma delas é que a gente queria, de novo,
simos. Dá para contar com os dedos de uma mão, e ela está que a Bienal do Mercosul desse uma contribuição no projeto
indo, migrando para a literatura de uma maneira muito es- educativo para aqueles jovens estudantes e futuros profis-
parsa ainda. Mas a intervenção que o Paulo Herkenhoff fez, sionais que estão na universidade. Então, por exemplo, nós
sim. Aquela ali teve um impacto significativo, eu não posso sofremos uma crítica por causa disso, porque a gente deve-
nem imaginar. Então, isso terá um impacto a longo prazo. ria ter mediadores “profissionais”. Eu não sei bem o que é
Assim como ele fez, por exemplo, outras investidas fortes mediador profissional, em todo o caso são aquelas pessoas
sobre prioridade histórica. Ele assinalou que o Balé Neocon- que se dedicam à mediação. Mas nós iríamos dar oportunida-
creto de Lygia Pape se antecipou a algumas questões do des de ingresso para esses jovens que estão na universidade,
Robert Morris, por exemplo. Há outros aspectos da priorida- de diversas disciplinas. E eu não sei, acho que está sendo
de histórica: por exemplo, ele diz por que a Rosalind Krauss excepcional. Durante a Bienal eu tive contato com o Cristián
não tratou no seu livro sobre a escultura moderna a obra da e com a equipe da educativa diariamente. Acho que as pes-
Lygia Pape. Isso também é um outro aspecto, ou seja, as au- soas estão muito fascinadas com a ideia da Bienal, porque
sências na literatura especializada. Por que se levou tantos também existe uma concretude no que estamos fazendo,
anos para reconhecer o trabalho da Lygia, a contribuição do que eu acho que as pessoas conseguem ver na materiali-
Hélio, que ainda são figuras muito específicas da Lygia Clark, dade das obras. Nós conseguimos explicar por que a gente
da Lygia Pape, de outros artistas brasileiros nas grandes nar- está fazendo isso, entendeu? E eu acho que isso está dei-
rativas da história da arte americana, por exemplo? Ou como xando as pessoas mais interessadas, porque existe também
o minimalismo foi construído de maneira que excluísse to- um processo de especialização e acabamos nos afastando

63
um pouco da arte. E precisamos às vezes voltar e fazer o ca- variantes. E com toda a sorte, eu acho que nós fomos, eu
minho de novo. Então, talvez no futuro não seja isso, talvez diria que fazendo o balanço, nós fomos 90% bem-sucedi-
a próxima Bienal deva se voltar de novo a uma coisa mais dos. Algumas coisas, alguns empréstimos são surpreenden-
especializada, não sei. Mas eu acho que está indo bem, mas tes que a gente tenha conseguido. De um modo geral, sei
é um processo longo. E eu estou gostando muito, e obvia- lá, existem algumas frustrações imensas que não precisa-
mente eu tenho as minhas próprias concepções, eu procuro vam ter acontecido se não fosse a má vontade de alguns
não me envolver nesse nível no projeto educativo e dar a emprestadores (museus entre eles). Nós conseguimos tudo
eles liberdade. Está indo bem e é um processo de sintonia que queríamos. Nem tudo que conseguimos, poderemos
entre a curadoria. A gente deixou que eles pegassem esse trazer porque agora nós entramos em uma crise financeira
universo de obras e que explorem isso como queiram. Eu monstruosa no país, que afetou todas as instâncias da so-
estou confiante que será uma experiência de sucesso. ciedade no sentido político. Há também o nervosismo que
deu nas pessoas, como as instituições se afetam, e também
Thaís Rigolon: Eu fiquei com uma dúvida. Você comentou tem problemas de logística, que às vezes tornam as coisas
que há muitas dificuldades para fazer a Bienal, mais difi- impossíveis. Mas tem milagres também nessa Bienal. Agora
culdades do que facilidades. Comenta um pouco sobre isso. uma Bienal como essa é uma exposição de grande enverga-
Como vocês fazem para conseguir superar isso. dura, mas ela é essencialmente um conjunto de fragmentos.
Toda exposição é isso. Então, ela é o que é possível. Mas eu
Gaudêncio Fidelis: É que o modelo de Bienal que a gente acho que, se olharmos lá no final, a gente vai achar que ela
está fazendo é complexo. Na medida em que resolvemos está muito bem, porque percebemos mais que fomos bem-
trabalhar com obras específicas surge o primeiro proble- sucedidos. Eu penso que vamos perceber menos as ausên-
ma. Então, nós temos que buscar essas obras e elas têm cias e mais as presenças. Mas aproveitando a oportunidade
que estar disponíveis. E essa disponibilidade depende de eu queria dizer que fiquei impressionado com a resistência
calendário, depende da obra estar disponível, depende dos de alguns setores, de um modo geral na mídia. De modo
emprestadores concordarem em emprestar, depende delas geral, a resposta foi absolutamente boa e surpreendente. E
poderem ser deslocadas por questões de conservação, de a coletiva de imprensa foi uma coisa até assustadora. Ela
restauro, de segurança, depende de fragilidade, depende de mostrou que a gente tinha uma responsabilidade muito
dinheiro e de uma infinidade de... essencialmente depende grande. A resposta foi muito, muito, muito surpreendente e
do seguinte: de você conseguir reunir um grande grupo de positiva. Mas eu sempre digo isso, eu venho fazendo expo-
obras que têm que estar no mesmo lugar, num determina- sições há uma quantidade de anos, mas o que me surpreen-
do período, e fazer isso num universo que é absolutamente deu assim, e cada vez me surpreende mais com as pessoas
vasto, e que cada país tem os seus desafios. Precisamos tra- é o nível de conservadorismo. As pessoas não querem que
balhar ao mesmo tempo com os artistas. Existem artistas as coisas mudem. Então, por exemplo, nós mudamos o pe-
históricos que estão mortos, mas também existem muitos ríodo da Bienal para duas semanas para a frente, o que para
artistas vivos, que são a grande maioria da Bienal. Alguns mim é uma coisa absolutamente normal. Então, na verdade,
destes artistas ficaram um pouco preocupados com isso, e foi uma prorrogação de data para a gente poder garantir que
perguntaram: “não devia ser o meu último trabalho?”. Daí essas obras chegassem a Porto Alegre todas juntas, porque
nós conversamos, conversamos, explicamos o projeto, e a gente já passou aquela fase da tradição da Bienal de São
eles acham ótimo e está resolvido. Mas aí também depende Paulo de abrir com várias obras desmontadas. Então envia-
do emprestador. Depende de um universo muito grande de mos uma nota para a imprensa e dissemos assim: “A Bienal

64
vai inaugurar no dia 23 ao invés do dia...”, o que, aliás, deu contemporânea. E todas as exposições de arte contempo-
um problema para todo mundo, não é? Mas aí sai uma notí- rânea que eu fiz? Mas o problema maior é o seguinte: eles
cia na revista Das Artes. A Das Artes resolve fazer o seguinte, ilustram essa matéria com uma obra de um artista do Nor-
publica uma nota que diz assim: “10a Bienal do Mercosul al- deste, que foge à norma canônica, e que eles acham que por
tera data de abertura”. Até aí tudo bem. A “alteração ocorreu eu ser “tradicional” atribuem a mim esta qualidade e que
devido a logística de importação das obras de arte”, tudo eu teria escolhido esta obra na qualidade de uma pessoa
assim direitinho. E aí, quando chega no segundo parágrafo, conservadora. Ou seja, o artista é ruim, eu sou conserva-
eles começam a fazer julgamentos de qualidade das obras. dor por ter escolhido ele. Aí eu escrevi para a diretora da
Eu penso que a revista Das Artes tem um enorme méri- revista, chamada Liege Jung, e sabem qual foi o argumento
to. É difícil uma revista sobreviver, e eles tem alguns anos dela? É que eu mudei o modelo de Bienal. “Você mudou o
circulando, o que é respeitável e eles merecem crédito por modelo de Bienal”, disse ela. “Tradicionalmente as Bienais
isso. Agora eles também merecem a crítica que tive que fa- não são assim”. Eu fiquei pensando: “Como assim, minha
zer a eles. Então, a obra com a qual eles ilustraram a matéria senhora?”. E eles utilizaram o seguinte conceito tradicional:
foi o Atirador de Arco, do Vicente do Rego Monteiro, que é tradicional é como nós chamávamos 20 anos atrás a pro-
uma obra de 1925 e que estará na Bienal, na exposição do dução da África. É um conceito colonialista, é um absurdo.
Modernismo. Essa é a obra que eles ilustraram para fazer o Aí o texto diz que eu estou pondo em uma exposição ícones
seguinte argumento que, então, diz o seguinte: “a notícia religiosos, como se eu tivesse ido a um brique e comprado
alimenta os rumores de crise interna na Fundação Bienal um monte de santos, quando, na verdade, a exposição tem
do Mercosul e as polêmicas envolvendo essa edição, que obras do Barroco brasileiro, do Barroco paraguaio, do Bar-
tiveram início já com a seleção de Gaudêncio Fidelis para roco mexicano. Então eu pergunto: quer dizer quais são os
chefiar a curadoria. Reconhecido e respeitado,”, esta é a critérios que um jornalista utiliza para dizer que o modelo
parte interessante, “Fidelis é visto como tradicional e com que eu adotei para a Bienal não serve. Mas aí ilustra isso
pouco envolvimento com a arte contemporânea, o que vai com um artista que ela considera ruim e acha que existe
de encontro ao que até hoje foi o diferencial dessa Bienal. ainda essa dicotomia entre bom e ruim, excelente, canôni-
A apresentação de arte inovadora e a presença de jovens co, não canônico. Agora, eu queria ver ela ilustrar isso com
artistas, pouco conhecidos no Brasil. A desconfiança foi se uma obra de um artista localizado no Rio de Janeiro, ou em
confirmando com a divulgação dos planos para se incluir São Paulo. Mas a obra que ilustra essa matéria é uma obra
pintura acadêmica e ícones religiosos, e se solidificou com a que está em museu importante, que deve ser respeitado, de
apresentação da lista de 402 artistas que surpreendeu não um artista que deve ser respeitado: Eu escrevi: “Minha se-
apenas pelo número, mas também pelo conteúdo que in- nhora, essa exposição, já que a senhora não sabe, esta obra
clui nomes tradicionais”. Eu quero chamar bem a atenção esteve recentemente na exposição Histórias Mestiças, que
para a palavra “como Vicente do Rego Monteiro, cuja obra foi curada pelo Adriano Pedrosa. Ela esteve na exposição
ilustra essa notícia”. Aí digo: como que uma revista conse- Da Antropofagia à Brasília, na exposição Utopias Invertidas.
gue escrever num parágrafo tantos absurdos? Porque, assim, Aliás, não só esta obra especificamente, como várias obras
eu não tenho nenhum problema que eles me chamem de do Rego Monteiro”. Isso eu coloquei tudo no e-mail. Aí ela
tradicional e conservador. Agora, dizer que eu não conheço me responde de uma maneira que eu achei o máximo. Ela
arte contemporânea realmente é demais. Além disso, como disse assim: “O senhor parece conhecer bem o seu meio
se isso fosse um crime! Porque também partem do pressu- profissional, que é o da arte”, “assim como conheço bem o
posto de que, se conhece história da arte, não conhece arte meu, que é o das palavras e tenho de respeitá-las”. Aí ela

65
resolve me dar uma lição do que significa “tradicional”. “Tra- faz desta forma, e não daquela. “Modelo de Bienais não é
dicional é o que permanece”, entre aspas, “permanece intac- assim, senhor”, é como se ela estivesse dizendo. Então eu
to ao longo do tempo”, fecha aspas. “Contemporâneo é feito fiquei pensando que isso não é só uma manifestação isola-
no mesmo tempo”, fecha aspas. “E escrever”..., porque eu da. Quando isso sai em uma revista dessa maneira, a partir
disse a ela assim: “Olha, uma das coisas que você não sabe de uma notícia que era simplesmente uma prorrogação de
é que o propósito da Bienal do Mercosul, historicamen- prazos, eu fiquei pensando que é muito conservadorismo.
te, não era o de mostrar jovens artistas, embora ela tenha O modelo que nós estamos adotando é um outro mode-
mostrado muitos”. É uma exposição muito contemporânea. lo para fazer uma exposição. E que eu acredito, pode até
Mas “jovens artistas” também é um conceito anacrônico. não ser, que seja bem-sucedida. E, pior ainda, ela faz uma
Pressupõe o seguinte: que você é jovem, você é jovem ar- pré-crítica de uma exposição que ela não viu. Tinha crítica
tista. Você não é um artista jovem necessariamente então, no jornal sobre a exposição que ninguém nunca tinha visto.
e eu lembro que na década de 80 nós substituíamos esse Mas como assim, entendeu? E porque ela também faz o
conceito ridículo por artistas emergentes, que era um pouco seguinte: quando ela diz que aqueles artistas eram tradi-
melhor e que sobrevive até hoje, mas que a gente até evita cionais, eram estranhos ao universo da arte, é uma atitude
usar. Ele não precisa ser emergente, não emergente, jovem muito reacionária. Se olharmos a lista dos artistas da Bienal,
e velho, entendeu? Mas é o conceito de “artistas jovens” que está ali a excelência do que é o melhor da arte da América
ela pressupõe que a Bienal do Mercosul seja feita para isso. Latina. Enfim, eu contei isso para mostrar como há uma re-
Aí eu disse para ela: “Não, a Bienal do Mercosul foi criada sistência em qualquer mudança. É uma coisa assim... em
para ser uma plataforma para a produção da América Latina, 2015 ela escreveu especificamente uma frase “Você mu-
e historicamente foi concebida assim. A primeira Bienal foi dou o modelo de exposições consagrados para Bienais no
curada por Frederico Morais e tinha como perspectiva rees- mundo”. Bem, eu agradeço imensamente vocês terem ou-
crever a história da arte da América Latina”. E ela escreveu vido, me dado essa oportunidade de falar. E falar também é
assim para mim: “E reescrever se requer modificar” e “mo- sempre oportunidade da gente ver as coisas com um certo
dificar é desconsiderar o escrito anteriormente”. Então o que distanciamento.
eu fiquei pensando é o seguinte: uma revista de arte que se
pressupõe ter um nível, certo nível de excelência, não pode
em 2015 ilustrar um texto com uma obra do Rego Montei-
ro porque ele é supostamente “tradicional”. Porque se ele
fosse de São Paulo ou Rio, ele não estaria ali. Esse artista
logicamente teria que ter vindo do Sul, do Norte, do Nor-
deste, do Pará, de algum outro lugar. Segundo: ela não tem
o mínimo de respeito sobre o fato de que essa obra tem
uma história, uma trajetória de exposições e que ela existe
dentro de um universo cultural e artístico específico, e que
para isso tem seu valor histórico, independente do que ela
acha que seja excelência artística ou canonicidade, etc. O
outro aspecto mais importante, mais significativo ainda, é
que uma revista se dá ao desplante de dizer que esse mo-
delo para Bienais não serve, porque modelo de Bienais se

66
67
ana mokarzel

Marisa Mokarzel (Pará)


Curadora, é doutora em Sociologia pela UFC e mestre em
História da Arte pela UFRJ. É professora e pesquisadora da
Universidade da Amazônia. Foi diretora do Espaço Cultural Casa
das Onze Janelas da Secretaria de Estado de Cultura do Pará.

68
Percursos descontínuos de
uma arte em processo: Belém anos 2000

Marisa Mokarzel: Em primeiro lugar, eu gostaria de me refe- praticamente não existe, porque quase não existem galerias
rir ao que foi comentado ontem à noite, que São Paulo não comerciais e muito menos feiras de arte. Agora é que a gen-
conhece a Amazônia, mas a gente que mora lá também não te tem uma galeria especializada em fotografia, com uma
conhece a Amazônia. Quer dizer, a gente conhece parte da visão mais ampliada desse tipo de negociação, mas só de-
Amazônia, e mesmo assim muito pouco. Por isso que no pois eu vou falar. Existem poucos colecionadores também,
título da minha palestra especifiquei “Belém”, porque é o então isso já dá um outro perfil para o circuito de arte da
lugar de onde falo e onde transito. Apesar de conhecer ou- cidade. Mesmo que eu vá falar sobre o circuito que ocorre
tros lugares da Amazônia, parto da cidade que realmente agora nos anos 2000, eu queria retroceder só um pouqui-
conheço, pois se trata de uma região com cidades muito nho para a gente entender como algumas coisas vão rever-
diferentes, mesmo que possuam problemas comuns. E Be- berando, e outras vão apontando para lacunas, ou para coi-
lém é uma cidade que, se você conhecer, você vai logo per- sas que nascem e morrem, ou que se enfraquecem. Por isso
ceber que não existe muita distinção entre riqueza e pobre- que eu me refiro a esse circuito como descontínuo, porque
za. Você logo vê nas ruas que tudo se mistura. E foi um lugar na continuidade do tempo a gente está sempre lidando
que durante muito tempo se voltou mais para fora do que com determinadas adversidades. Eu também não acho que
exatamente para dentro do Brasil. Então, só a partir pratica- isso seja privilégio do Norte. Eu acho que cada um tem as
mente da construção da Belém-Brasília que começou a suas adversidades dentro de um campo muito instável. O
existir essa relação mais estreita com outras cidades brasi- próprio Brasil em relação aos outros países também tem
leiras, porque antes se voltava mais para a Europa ou para essa mesma dificuldade. Então, para mim é importante de-
os Estados Unidos. E outra coisa que marcou muito a cida- marcar quando alguns artistas do Pará começam a se des-
de e a própria Amazônia foi a fase da borracha, que trouxe tacar na cena nacional. Isto ocorre nos anos 80, mas era um
um momento ilusório de riqueza, e isso de alguma maneira número ainda muito reduzido. Se compararmos com a
está presente nas fachadas dos prédios, está nas casas que situação atual, vamos encontrar um número maior de artis-
ainda existem. Claro que esse momento de riqueza foi tam- tas circulando pelo Brasil, mas foi nesses anos 80 que tudo
bém um momento de exclusão, não foi todo mundo que praticamente começou, e alguns fatores vão contribuir para
usufruiu de forma satisfatória aquele instante. Então, tudo isso. Dentre os artistas que se destacaram encontra-se
isso está muito presente na história da cidade. E eu vou falar Emmanuel Nassar, que, na verdade, surge em um instante
então de um circuito que é um circuito diferente de São especial proporcionado por algumas ações que a Funarte
Paulo, porque possui outra história e um outro poder aqui- estava fazendo, que incluía não só o Norte, mas também o
sitivo, no entanto há vários elementos que participam desse Centro-Oeste. A ideia naquele instante da Funarte era
circuito e vários agentes que são comuns. Mas há também mostrar a arte de um Brasil que não estava dentro, vamos
um elemento que é muito fora desse circuito das grandes dizer assim, do centro financeiro. Daí eles também terem
cidades, que é a questão do mercado de arte que em Belém ações em Belém do Pará, e foi um momento em que a

69
Funarte investia forte no Salão Nacional de Arte, e o Emma- a relação dele com a Fotoativa, instituição que ajudou a criar,
nuel foi premiado num desses salões, não sei se foi em 82, é fundamental para desenvolver o sentido coletivo dos tra-
mas foi nos anos 80, e esse prêmio acabou gerando outras balhos que vem a desenvolver. A ação coletiva é muito pre-
coisas, que vieram juntas. Curadores viram o trabalho dele, sente na Fotoativa, então o Miguel vai mobilizar e vai estar
se interessaram por suas obras e apostaram em sua produ- junto com outros fotógrafos. Inclusive o Luiz Braga estava
ção, quer dizer, o Emmanuel entrou no circuito de arte. É junto durante esse processo que vai resultar na Fotoativa.
bom dizer que eu acho que essa entrada no circuito de certa Toda essa movimentação é muito interessante e importante
forma foi facilitada também porque se tratava de um mo- porque se criam possibilidades de formar uma cena promis-
mento da valorização da pintura, mesmo que outros tipos sora em meio a muitas dificuldades, sem um mercado de
de linguagens estivessem ocorrendo. Mas a pintura estava arte estabelecido. Alguns críticos de arte que conhecem a
em evidência, seja aqui em São Paulo, com o Casa 7, seja realidade de Belém colocam que essa questão de falta de
Como Vai Você, Geração 80, no Parque Lage. Então, isso de mercado talvez viabilize outro processo de criação, que aca-
alguma forma facilitou a entrada da pintura do Emmanuel ba gerando algo que é descompromissado com o mercado,
no circuito, e, claro, ele também entrou por seus próprios livre de algumas exigências comprometedoras e que acaba
méritos, pelo valor do seu trabalho. E o outro que vai conse- de certa forma movendo a criatividade, a poética do artista.
guir entrar nesse circuito e que hoje talvez seja ainda mais Vale lembrar outras coisas que surgem nesse momento dos
conhecido do que era é o Luiz Braga, que é fotografo. Ele anos 80, entre elas o salão Arte Pará, que hoje só se chama
surge ainda mais jovem um pouco que o Emmanuel, ele vai Arte Pará. Aí há uma atuação importante do Paulo Herke-
colaborar com a Funarte como fotógrafo, vai fazer um levan- nhoff, pessoa que chega com a Funarte, com o Instituto Na-
tamento visual da Amazônia junto com o Osmar Pinheiro, cional de Artes Plásticas, que ele dirigia naquele momento.
que é um artista que depois vem morar em São Paulo, e Na verdade, ele dirigiu logo após o Paulo Sérgio Duarte. O
nesse levantamento ele começa também a ficar conhecido Herkenhoff começa ali o seu envolvimento com Belém. A
porque começa a realizar um trabalho especial, que já de- atuação dele no Arte Pará, seu processo curatorial, a abertu-
monstra a sua percepção visual da Amazônia, um olhar au- ra em termos nacionais do salão trazem resultados para o
toral, próprio. E outra presença também muito marcante circuito. E eu acho que aí tem um ponto interessante, que é
nesses anos 80 é a de Miguel Chikaoka. O Miguel era enge- promover discussões via a comissão de seleção, formada
nheiro mecânico, estava estudando, fazendo doutorado na por críticos de arte de vários lugares. Nesse instante começa
França, e essa vivência na França provoca um desejo de uma maior circulação de pensamentos, ideias. Naquela
querer conhecer mais o Brasil. E ele para em Belém e fica. A ocasião já existiam duas galerias: a Elf e a Debret. Mas elas
fotografia surgiu na vida dele justamente quando estava na têm outro percurso: ao mesmo tempo em que tentam inse-
França e, de repente, ao retornar ao Brasil, visitar Belém, en- rir-se no mercado, não conseguem estabelecer outras arti-
contra um ambiente favorável não só para desenvolver sua culações, inserir-se em outros sistemas fora de Belém. Elas
fotografia, mas também para colocar em prática os seus têm uma atuação mais restrita. Os anos 90 trazem outras
projetos experimentais e educativos, que depois vão ser o inserções no circuito. Muito dos artistas que estão nos anos
grande viés da sua trajetória. No trabalho do Miguel, a ques- 80 permanecem, a formação deles vem da arquitetura,
tão educativa e a questão da fotografia são praticamente grande parte, não é? O próprio Luiz Braga e o Emmanuel
indissociáveis, e ele não privilegia a técnica, e sim a vivência. Nassar vêm da arquitetura. O Miguel não. É um pouco dife-
E isso é muito importante e muito bonito, pois ressoa de rente, mas o Osmar Pinheiro, que vem para São Paulo, é
forma decisiva na formação de outros artistas, fotógrafos. E arquiteto, e o Valdir Sarubbi, que também veio para São

70
Paulo, vinha da área do direito, mas passou pela arquitetura. ver a fotografia expandida. A cidade já era conhecida pela
Então, a arquitetura é de onde saíam os artistas. Já os anos qualidade da fotografia mais tradicional, mais dentro do
90, em termos de formação, é outra. Vale lembrar que o cur- campo documental, mas o grupo enfatiza o processo de
so de arte, apesar de já existir nos anos 80, tinha ainda ca- discussão da imagem. Eles têm outra atuação e se desta-
racterísticas limitadas, começava a livrar-se do estigma dos cam nesse novo salão, que representava a oportunidade do
trabalhos manuais, distante das artes visuais. Mas é, na ver- surgimento de outras linguagens. Outro artista que vai surgir
dade, nos anos 80 que começa esse circuito em que a uni- nesse salão e que vai ser premiado é o Klinger Carvalho, que
versidade passa a contribuir continuamente com a forma- morou muito tempo na Alemanha e que está morando atu-
ção do circuito. É importante perceber como ela vai gerar, almente aqui em São Paulo. Depois tem um projeto que ele
vamos dizer assim, pessoas que vão se destacar no campo é responsável sobre o qual eu vou falar mais tarde, que está
da arte, sejam teóricos, sejam artistas, sejam educadores. O acontecendo agora lá em Belém. Então, esses anos 90 tra-
resultado a gente vai ver nos anos 2000, quando se iniciam zem o SPAC, salão que só durou três anos. Várias coisas são
os mestrados em arte e áreas afins, quando pessoas jovens atribuídas para justificar o término do SPAC, uma delas é a
vão ampliar sua formação. Isso vai refletir um pouco nessa própria concorrência com o Arte Pará. Mas, na realidade, a
difusão do conhecimento da arte. Retomando os anos 90, gente não sabe exatamente o motivo desse término. Mas
podemos perceber que, além de permanecer o Arte Pará, foram lá que também surgiram os vídeos da Val Sampaio,
surgem outros salões, entre eles um de vida supercurta, que que estudou aqui em São Paulo, fez mestrado, doutorado
é o SPAC, que, na verdade, se chama Salão Paraense de aqui, e a Jorane Castro, que trabalha com cinema. Esses que
Arte Contemporânea. Ele surge de uma junção da Associa- eu falei, assim como Mariano, Orlando, Claudia, todos estão
ção dos Artistas Plásticos que tinha surgido também recen- dando aula na universidade agora. São professores que es-
temente, com o governo do estado. De certa maneira, se tão direto com os alunos, e isso vai ressoando de certa for-
acredita que surge esse novo salão porque o Arte Pará, num ma na nova geração de artistas. E outro elemento integran-
determinado momento, não estava dando conta, vamos di- te do circuito que surge também nos anos 90 é o sistema
zer assim, de determinadas manifestações, provenientes de de museus. Um dos museus integrantes desse sistema é a
outras linguagens. Em Belém nos anos 80 havia basica- Casa das Onze Janelas, que surge em 2002, com um acervo
mente pintura. Pouco existiam outros tipos de manifesta- e exposições de arte contemporânea. É um museu que aju-
ções artísticas. É nos anos 90 que se veem outras manifes- da na difusão da arte e artistas, mas não é um espaço de
tações surgindo. No SPAC vai surgir o Armando Queiroz, venda, porque os museus não têm essa função de vender
que é alguém que participou agora da Bienal de São Paulo, obra, mas é um lugar de visibilidade. Também é um lugar
essa última Bienal, só que naquela época ele trabalhava que traz exposições de outros lugares, além das locais, e
com objetos minúsculos, era outra linha de trabalho. Vai isso acaba estabelecendo uma importante ligação com o
surgir ainda um grupo chamado Caixa de Pandora, cujos in- circuito nacional de arte e trazendo uma credibilidade para
tegrantes haviam participado do Fotoativa, formado pela o museu. Nesse ínterim dos anos 90 também abriu uma
Claudia Leão, Mariano Klautau Filho, Orlando Maneschy e galeria do estado, que foi a galeria Teodoro Braga, que na
Flavya Mutran. A Flavya depois sai. É interessante que to- realidade funcionava antes no Teatro da Paz. Nessa nova
dos eles vão ser professores da universidade, vão cursar fora fase teve em sua direção uma pessoa chamada Tamara Saré,
de Belém mestrado, doutorado, porém retornam para ensi- que teve uma articulação muito boa com os artistas, os crí-
nar na universidade federal e em particular. O grupo do Cai- ticos de arte. Ela era uma pessoa de ação. Além de mexer na
xa de Pandora é um dos que começa em Belém a desenvol- estrutura física da galeria para concebê-la para receber arte

71
contemporânea, ela promove muitos encontros, exposições, alguma forma se destacaram nacionalmente. Eu já falei da
cria uma espécie de um informativo e acaba gerando uma participação da universidade nesse processo. Eu queria falar
movimentação no circuito de arte. Esse pessoal da Pandora agora do retorno do Paulo Herkenhoff ao Arte Pará e como
vai expor lá, não só eles, mas outros grupos, outros artistas, e ele promove momentos que considero importantes dentro
ela dá uma vida para essa galeria, vida que hoje ela não tem. desse circuito, as modificações que acabam transformando
A galeria ainda existe, mas está enfraquecida. Nos anos 90 o salão Arte Pará em uma espécie de projeto ampliado, que
havia também uma galeria que estava ligada ao Museu de vai além da concepção de salão. Em 2006 ele rompe com
Arte de Belém, era a Galeria Municipal voltada para trabalhos essa questão de só mostrar as obras em salas expositivas,
experimentais, que também acabou; ela deixou de existir. Eu ele abre o espaço para a própria cidade. Eu acho que aí surge
quero marcar essas situações para percebermos o processo uma dinâmica, uma potência transformadora. Mas infeliz-
descontínuo desse circuito. Na mesma década surgiu o Pe- mente essa ideia não se sustenta enquanto prática devido
quenos Formatos, que é um salão aberto nacionalmente e principalmente às questões financeiras, mas eu acho que foi
que tinha uma ótima atuação, que também levava críticos e um momento que eu gostaria muito que tivesse tido conti-
artistas de vários lugares e promovia discussões, que perten- nuidade. A estratégia de envolver a cidade foi excelente. Mas
cia até à universidade onde eu dou aula, mas que também de qualquer forma ficou a expansão expositiva para o uso de
desapareceu. Há dois anos já não existe, nem a própria várias salas de diferentes museus, que são parte fundamen-
galeria responsável pelo salão está mais funcionando, o que tal do circuito de arte da cidade. Um deles é o Museu da
é uma tristeza, porque ela teve uma ação muito importante Universidade, que a partir de 2003, com a direção da Jussara
de reconhecimento nacional e de trânsito de artistas. Então Derenji, ganha um dinamismo e um gerenciamento que
é triste você perceber e ver isso acontecer. E eu queria marcar aproximará a arte contemporânea do acervo do museu.
determinadas presenças, porque nesse circuito sempre teve Também enquanto diretora e arquiteta, procura revigorar o
gente que foi lá, escreveu sobre os artistas ou falou sobre próprio prédio que estava em condições precárias. O Museu
eles. E voltaram várias vezes à cidade, portanto conheceram da Universidade funciona em um prédio muito bonito, do
a cena artística e a divulgaram, pensaram sobre ela. Um é o começo do século XX, que foi residência de um dos governa-
Marcus Lontra, que foi curador do Arte Pará depois que o dores, Augusto Montenegro, e era um prédio que estava em
Paulo saiu, mas antes teve o Cláudio La Roque, que era de péssimas condições. Como arquiteta e cidadã, a Jussara se
Belém. E outra pessoa também que fez vários estudos sobre virou para conseguir financiamento e restaurou o prédio. E a
o Emmanuel Nassar e o Luiz Braga foi o Tadeu Chiarelli, que partir da restauração ela termina por ocupar um lugar muito
também já foi várias vezes a Belém. E o Rubens Fernandes especial no circuito, por estabelecer um trânsito de exposi-
Jr., que participou de um projeto coordenado pelo Mariano ções e formar um acervo que é muito bem cuidado, um acer-
Klautau, que teve como resultado um livro e uma exposição vo tratado. O Museu da Universidade torna-se um espaço da
sobre o panorama da fotografia do Pará anos 80/90. Teve arte, onde o artista também vai ter um lugar. E voltando para
pesquisa feita pelo Patrick Pardini e teve Roseli Nakagawa, o Arte Pará, essa ideia de expandir para a cidade foi, de fato,
que participou também do projeto, não só como curadora da uma pena perder, mesmo que a mostra acontecesse em di-
exposição, mas com participação importante dentro do livro. ferentes museus, como o Museu da Universidade, Casa das
Rosely esteve várias vezes em Belém participando de outros Onze Janelas, Museu do Estado, em vários museus. Inclusive,
eventos e ela conhece bem a realidade do Pará. Nesses anos o Museu de Arte de Belém, que pertence à prefeitura, era nas
2000 eu acho que a gente vê o resultado de todo esse pro- ruas que ganhava outra dimensão, estabelecia novas rela-
cesso referente ao circuito; não é à toa que vários artistas de ções, socializava ações. Envolvia o Ver-o-Peso, que é um

72
lugar simbólico de Belém, que tem um trânsito cultural enor- quase todas as cidades vivem esse problema dos museus.
me e ali você via tudo acontecer. Então, colocar os artistas Então é um problema que não é questão de gerência, que
locais, os artistas de fora, todos juntos num espaço público pode existir, mas não é isso, é uma questão fundamental-
tão representativo do trânsito cultural, todos juntos partici- mente financeira. Em Belém os museus do estado não têm
pando da própria cidade era extremamente significativo e de uma verba própria. Tudo passa pela Secretaria de Cultura, e
uma potência muito grande. E isso mobilizou muita gente. não ter uma verba própria é muito difícil. Uma coisa também
Independente de estarem ou não familiarizados com a arte, que eu gostaria de comentar sobre o Museu da Universidade,
o conhecimento, a potência da arte minou a cidade, acho que funciona sob outra dinâmica, é sobre o projeto que foi
que foi muito importante naquele momento. Depois tenta- criado pelo Orlando Maneschy, que se chama Projeto Ama-
ram expandir o Arte Pará para outros municípios, não só Be- zônia Lugar da Experiência, e ele captou verbas através de
lém, mas mais uma vez não houve continuidade. E agora há editais para adquirir obras para o acervo do Museu da Univer-
uma nova proposta, em 2015, que foi não mais usar os edi- sidade. E a questão de aquisição de acervo – e isso vale para
tais de inscrição, mas adotar um procedimento que de certa qualquer museu – é um dos grandes problemas com o quais
forma já foi adotado pelo Prêmio Marcantonio Vilaça, pelo nos deparamos, porque essas aquisições ou elas vêm pelos
Rumos Visuais, do Itaú. Este ano foram então escolhidos três editais da Funarte ou editais da Petrobras, ou outros editais
curadores adjuntos que foram para diferentes regiões e fize- ou doação de artista. A instituição nunca tem verba para ad-
ram uma seleção prévia, e dessa seleção tiraram 17 artistas. quirir obras. Quer dizer, dificilmente o Governo investe nas
Eu ainda não vi a exposição, ainda não abriu, ela abre sempre aquisições. Os museus nunca têm dinheiro para adquirir, mal
em outubro, junto com o Círio de Nazaré, no segundo têm dinheiro para sua manutenção. Nos anos 2000 também
domingo do mês. Gostaria também de comentar sobre a im- foi criado um espaço, que é o Espaço Cultural Banco da Ama-
portância da Casa das Onze Janelas, que se firmou como um zônia, que eu acho que foi criado nessa onda das instituições
espaço expositivo muito receptivo à arte contemporânea. financeiras investirem em arte, caso do Banco Itaú, do Banco
Além das exposições de acervo, de exposições dos artistas do Brasil, da Caixa Econômica, e o Banco da Amazônia ten-
locais, ela mantém um intercâmbio com outras instituições. tou também fazer o seu investimento no campo cultural. Há
Em geral, pode-se ver as exposições do Itaú, desde o Rumos editais não só para exposições, mas também para edição de
de Artes Visuais quando existia, até as mostras de vídeo da livros, música, etc. O espaço expositivo do Banco da Amazô-
coleção Itaú, como a de fotografia. O Prêmio Marcantonio Vi- nia iniciou bem, com planejamento, com a participação de
laça, do CNI SESI, também costuma levar as exposições para curadores que tinham a preocupação em dar um perfil para
a Casa das Onze Janelas. A Casa continua um lugar muito o espaço, estimular o fazer e o pensamento condizente com
especial para expor, é um lugar que tem, inclusive, um labo- um espaço contemporâneo da arte. Havia um investimento
ratório de arte, que é específico para exposições experimen- no processo de educação, mas também ele teve desvios de
tais. O museu foi criado para receber exposições contempo- percurso, ficou mais enfraquecido.
râneas. É um lugar muito bonito, que fica próxima ao rio.
Quem o dirigia até recentemente era o Armando Queiroz, Pessoa não identificada 1: Esse espaço ainda existe?
agora é a Heldilene Reale. Mas infelizmente esse sistema de
museus do estado, que agrega vários museus, está sofrendo Marisa Mokarzel: Existe, ainda tem os projetos, mas ele não
para se manter devido às questões financeiras. Quer dizer, de funciona com a dinâmica que tinha, não existe mais curador,
novo a inconstância, a instabilidade, mas, como disse antes, nem trabalho contínuo com educadores. O que surgiu tam-
isso não é um privilégio de Belém, eu sei que isso é o Brasil, bém nesses anos 2000 foi o Prêmio Diário Contemporâneo

73
de Fotografia, que também é aberto a inscrições nacionais, fez, acho que ano passado ou não sei se no começo deste
é voltado para a fotografia, desde a que ocorre no campo ano, uma exposição no Instituto Tomie Otake. Também in-
mais tradicional até a fotografia em seu âmbito expandido, tegrou o grupo a artista canadense Veronique Isabelle e
no qual tem os cruzamentos de linguagens, essa coisa toda. Pablo Muffarej. Vale registrar ainda o surgimento da Kamara
E quem coordena o projeto é o Mariano Klautau Filho, que Kó Galeria, que é coordenada pela Makiko Akao. A Makiko
concebeu o conceito ao Prêmio. Há uma preocupação com vem atuando no circuito desde os anos 80, é alguém que
a reflexão sobre a arte. Acho que o Prêmio está na quarta ou participou ativamente da constituição da Fotoativa, viveu
quinta edição. O Instituto de Arte do Pará (IAP) também todo o processo de constituição, ajudou a organizar seus ar-
surgiu nos anos 2000, foi um instituto muito interessante, quivos, a documentação visual daquele período e de outros.
que contribuiu para a formação dos artistas, porque era um Você pode consultar fotografias, documentos que foram or-
lugar que fornecia bolsas para o artista desenvolver suas ganizados por ela. Na Kamara Kó Galeria há um pequeno
pesquisas. Pela primeira vez a gente tinha bolsas que eram lugar de mercado, mas paradoxalmente é um lugar que ain-
dadas para os artistas experimentarem, pesquisarem. O va- da luta com muita dificuldade, porque também não tem
lor dado no começo era cerca de 15 mil para o artista desen- verba. Mas a Makiko se articula, procura viabilizar a circula-
volver o seu projeto com o acompanhamento de um cura- ção e a venda de obras, ela está sempre se articulando com
dor. Depois tinha como resultado a exposição. E eles outras galerias, instituições. De qualquer maneira, não se
investiram também em processos de residências, de inter- trata apenas de uma galeria para vender obras, mas sim
câmbios. Alguns artistas foram para o Canadá, outros para uma galeria que mantém um diálogo com os artistas, pensa
a Alemanha. No caso da Alemanha, o Klinger Carvalho foi de forma qualitativa. A galeria reflete a vivência que Makiko
uma figura que abriu o caminho. Depois, a Berna Reale, tem com a cultura e a arte. Há outros espaços culturais que
quando estava no Instituto de Arte do Pará, também conti- atuam de forma ativa no circuito. O SESC Boulevard, que no
nuou o projeto. Agora não tem mais essas residências. As campo da fotografia tem à frente a Paula Sampaio, é um
bolsas funcionam de outra forma, e até o nome do Instituto lugar que tem tido ótimas atuações no campo das artes vi-
de Arte mudou. Agora se chama Casa das Artes. Não havia suais, da música. Lá, além de exposições, acontecem dis-
só bolsas, eles promoviam seminários importantíssimos. cussões, palestras, oficinas e eventos. O Gotazkaen é outro
Foi muito bonita a atuação do Instituto de Arte no processo lugar muito frequentado por jovens. Eles têm uma revista
de formação, porque ele era um processo que seguia para- de arte, é um espaço gerenciado também por jovens que já
lelo à universidade e que dava, na verdade, mais liberdade participaram de editais e conseguiram verbas para manter
para experimentações. Um ponto que também não se pode suas propostas. Funcionam em uma casa onde eles rece-
esquecer é a iniciativa dos próprios artistas, independente bem pessoas para um bate-papo. Lá acontecem cursos, ofi-
de instituição. Não é tirar a responsabilidade institucional, cinas e exposições. O Casulo Cultural, recém-criado, tam-
mas perceber que há lugares, formas de fazer, agir sem de- bém gerenciado por uma jovem, junto com o Gotazkaen, de
pendências, que podem acontecer por conta própria, ou certa forma, se constituem através de estratégias de resis-
seja, é possível estabelecer conexões fora do âmbito institu- tência cultural. Em 2008 houve o primeiro número de uma
cional, mantendo redes de relações construídas de forma revista muito interessante, a revista eletrônica Não Lugar,
diferente, como é o caso do Ateliê do Porto, que o Armando que foi criada pela Keyla Sobral, Danielle Fonseca e Roberta
Sobral junto com outros artistas criaram. Eles alugaram Carvalho. Ela era uma revista que tinha uma boa articulação,
uma casa antiga no centro da cidade, onde desenvolvem as três eram muito entrosadas com as redes sociais e elas
várias atividades. A Elaine Arruda também participou, ela conseguiram participação de teóricos e artistas de vários

74
lugares do Brasil. Inclusive, a primeira capa foi da Brígida geral, os jornais abrem espaço para os eventos artísticos.
Baltar. A revista contou ainda com a participação de artistas Então, o Circular é bem divulgado, tem apoio da universida-
de outros países da América Latina. A revista tinha um de- de. O Fórum Landi, que é um lugar de pesquisa, centro de
sign muito bonito, pena que só publicaram três números, eu estudos da Universidade Federal do Pará, e fica no centro
acho. Novamente o ciclo do desaparecimento, as desconti- da cidade, também participa do projeto, abre suas portas
nuidades. Com o fim da revista, morre todo um potencial durante os domingos do Circular, abre sua livraria com os
criativo, principalmente. Cerca de um ano depois surgiu um livros da universidade. Trata-se de um circuito vivo, que já
novo projeto, que tem se mantido e apresenta um grande tem várias edições. E agora, depois de eu ter dado um pe-
crescimento de público. Ele acontece aos domingos, de dois queno mapa do circuito de Belém, como é constituído,
em dois meses, e chama-se Projeto Circular. A ideia surgiu como estabelece suas relações, gostaria de falar de alguns
com Makiko Akao, por meio da Kamara Kó Galeria, que logo pontos específicos que dizem respeito a esse circuito. Mui-
fez parceria com vários lugares de exposições ou que traba- tas coisas acontecem, muitas instituições se mantêm ainda
lham com cultura ligada a artes visuais, artes cênicas ou devido, em parte, aos editais. São eles que ainda permitem
música e gastronomia. Aderiram logo ao projeto o Ateliê do que algumas coisas sejam feitas. Mesmo sabendo das limi-
Porto, a Galeria Elf, a Fotoativa, Discos ao Leo e Gotazkaen, tações dos editais, são eles uma das fontes que auxiliam o
que são espaços que ficam no centro da cidade. Nesses úl- funcionamento do sistema de arte de cidades como Belém.
timos meses também aderiram os museus do estado. O Isso ocorre com a produção individual do artista e com as
Circular nasceu centrado, além da arte, em uma questão instituições, como é o caso de aquisição de obras. Uma coi-
muito importante, que é a questão patrimonial. Como eu sa muito interessante que tem dentro desse circuito é que a
falei para vocês, o centro da cidade de Belém é formado por maior parte dos curadores no Pará, em Belém, eles são ar-
casas antigas, e o projeto surge justamente no Bairro da tistas. Quase todos são artistas. Faço curadoria, mas eu sou
Campina, que é um bairro superantigo, mas é um bairro pe- praticamente uma exceção. A grande, grande maioria das
rigoso, com problemas de segurança, malcuidado, assim curadorias são feitas por artistas: Orlando Maneschy, Maria-
como a maioria dos bairros situados no centro da cidade. O no Klautau, Alexandre Sequeira, Armando Queiroz, Val
Circular tem como objetivo chamar a atenção para esse lu- Sampaio, Emanuel Franco, todos esses são artistas. A
gar e, ao mesmo tempo, também fazer as pessoas circula- Jussara Derenji também é exceção, não é artista.
rem, terem contato com a arte e conhecerem a sua própria
cidade. Então, nesse projeto Circular, além de você ter um Marília Panitz: A Vânia Leal.
circuito de exposições que pode percorrer, você tem, por
exemplo, o Bar do Rubão, um bar simples, onde tem o me- Marisa Mokarzel: Isso, a Vânia Leal, que também está incluí-
lhor caranguejo de Belém – e ele entra no circuito, como da nesse grupo de exceção. Por coincidência são as mulheres,
entram outros restaurantes, caso do Restaurante Joana, algumas mulheres. Mas também há artistas mulheres fa-
que é de um grupo que trabalha com teatro, e tem o pesso- zendo a curadoria, como a Val, que eu citei antes. E entre as
al que possui uma loja de skate, todos estão no Circular. outras coisas que gostaria de pontuar são as conexões com
Quer dizer, entra nesse projeto quase toda a comunidade, outros lugares que a gente consegue fazer. Por exemplo,
desde a senhora que vende “tapioquinha”. É muito bonito com Santa Catarina, o Fernando Lindote já foi para Belém
ver as pessoas circulando, indo de um lugar ao outro, convi- umas duas ou três vezes, não foi, Fernando? Inclusive tem
vendo com o bairro, com a cultura e a arte. Mas é um proje- obras dele no acervo da Casa das Onze Janelas, resultantes
to que não tem financiamento. O que tem é divulgação. Em do Prêmio Marcantonio Vilaça, da Funarte. A Marília Panitz

75
é alguém que está presente neste seminário, que vai fazer de São Paulo o Emmanuel Nassar, que integrou duas Bie-
a palestra de amanhã, ela também frequenta muito Belém. nais, e Valdir Sarubbi, que participou há muito tempo. Das
Ela, inclusive, esteve lá levando um projeto que nasceu na Bienais mais recentes participaram Guy Veloso, Alberto Bi-
Bahia, que é o Triangulações, um projeto muito interessan- tar e, agora, na última Bienal, Armando Queiroz e o Éder
te, que envolve o Centro-Oeste, Norte e Nordeste. É isso! A Oliveira. Ganharam o prêmio CNI Sesi Marcantonio Vilaça o
gente consegue essas articulações. O Bitu Cassundé, diretor Armando Queiroz, o Marcone Moreira e a Berna Reale. E o
do Museu de Arte Contemporânea em Fortaleza, é alguém prêmio Pipa Online agora de 2015 foi para a Luciana Magno,
que circula por lá, realiza exposição em parceria com a Casa que é uma pessoa muito jovem, que circula o Brasil, resi-
das Onze Janelas, faz intercâmbio de acervos para serem de no momento em Fortaleza. Neste novo circuito tem um
expostos. Ele tem uma relação afetiva com a cidade. E re- coletivo que foi indicado para o Pipa e está participando
centemente houve um evento de que gostei muito. Trata-se do Arte Pará 2015, que se chama Qualquer Quoletivo. Eles
de uma articulação entre o Pará e o Amazonas. Os dois es- são jovens, recém-saídos da universidade, eles têm uma
tados, apesar de próximos, têm poucas experiências juntos, produção híbrida, irreverente, realizam vídeo com processos
e eu acho que seria muito bom se estabelecessem relações de apropriações, em uma linguagem bastante misturada,
culturais. Nesses dois últimos anos, por iniciativa do Ama- mostram, vamos dizer, uma Amazônia não glamorosa, que
zonas, estão sendo criadas algumas pontes. Houve duas a gente muitas vezes não vê ou fecha os olhos para ela. E
edições de seminário, que se chamou Seminário de Artes eles têm uma postura irônica, fazem coisas inesperadas, li-
Visuais Amazonas e aconteceu em 2013 e 2014. Eles leva- dam muito com a questão surpresa. O grupo é formado por
ram artistas e críticos de vários lugares do Brasil e também cinco artistas fixos, e outros que têm participação esporádica,
do Pará. Eu acho que também está precisando que a gente que convidam. Eles fazem às vezes ações nas ruas, e muitas
os leve para Belém, para mantermos vivo este contato. Há delas entram nos vídeos deles. Fazem ações no Ver-o-Pe-
duas semanas teve o seminário Três por Três de Fotografia so, fazem ações em vários lugares. O processo é marcado
Contemporânea Amazônica, promovida pelo Sávio Estoco, pela irreverência. Em termos de relações internacionais, está
que foi também um evento realizado via editais, que é mui- ocorrendo um convênio com a Alemanha, coordenado pelo
to bom, pois ele fez um circuito entre a Amazônia. Quando Klinger Carvalho, artista que já mencionei. Trata-se de um
eu comecei falando para vocês que a gente não conhece convênio firmado com a galeria do Klinger, na Alemanha. O
a Amazônia, é muito interessante ter uma proposta como projeto, proposto pela galeria, consiste em um trânsito en-
esta, porque esse projeto faz com que se circule a Amazônia. tre os artistas pertencentes a essa galeria alemã, que são de
O Seminário foi realizado em Belém, Boa Vista e Manaus. várias origens, de vários lugares. O objetivo é que exponham
Foram para Boa Vista a Luciana Magno, o Alexandre Sequei- e conheçam os lugares em que cada um deles nasceu. O
ra e o Rodrigo Braga. Para Belém vieram Alex, Anderson Pai- Klinger nasceu em Óbidos, no Pará. Então, a relação que se
va, Cristóvão Coutinho e Rafael Alves. Para Manaus foram estabeleceu foi com Óbidos e Belém. Eles foram agora para
Mariano Klautau Filho, Orlando Maneschy e Anderson Paiva. Óbidos. Tem artistas da Colômbia, o Klinger morou uns dois
Outra coisa que gostaria de pontuar está relacionada à vi- ou três anos na Colômbia. Então, tem artistas da Colômbia,
sibilidade nacional que alguns artistas conseguiram, como tem artistas da Suíça, da Holanda, e tem artistas alemães e
Berna Reale, que já expôs aqui em São Paulo, participou do artistas do Pará, que são o Armando Queiroz, a Val Sampaio
Rumos Visuais, ganhou o prêmio Pipa, esteve recentemente e o Mariano Klautau. O grupo está expondo em dois lugares,
na Bienal de Veneza. E na Bienal de Veneza já estiveram o Belém e Óbidos, que foi onde as ações ocorreram. Fizeram
Emmanuel Nassar e o Luiz Braga. Participaram da Bienal uma experiência em Óbidos, e a exposição nos dois lugares

76
é resultado dessa experiência. Acho que com esse panora- no [...] exposição é mais ou menos esse processo de que
ma todo já deu para se ter uma ideia do circuito em Belém, você vai se educando e se capacitando para enfrentar es-
como ocorre. Pode-se perceber sua descontinuidade. Claro ses desafios que propõem uma empreitada desse porte,
que tem algumas coisas que continuam, que permanecem, não é mesmo?
e outras que estão continuando, mas fragilizadas. Então, eu
acho que a falta de mercado continua, é um ponto marcante. Marisa Mokarzel: Eu acho que independente da universida-
Algumas coisas desapareceram, enfraqueceram as próprias de, que para mim, na minha visão, é onde está a maior fonte
ações dos museus e do IAP, que agora é Casa das Artes, mas de formação, no sentido de que muitos artistas saem de lá.
há uma luta, um processo de resistência que permanece, Inclusive o Emmanuel Nassar foi professor da universidade,
que pode ser notado em espaços culturais independentes, e outros artistas também. Eu acho que tanto o ensino uni-
nos procedimentos das universidades, dos cursos de arte, versitário como processos não formais de formação como
de pós-graduação, nas relações e circuitos independentes os do Instituto de Arte, ou os que ocorrem com os educa-
promovidos pelos próprios artistas. E eu queria falar que dores no próprio Arte Pará, ou os que existiam no Salão
essa sobrevivência, ou essa força, eu não sei dizer de onde dos Pequenos Formatos, até mesmo o trânsito de jurados
vem exatamente e se vai chegar a um caminho claro, livre advindos desses salões, são importantes para a circulação
de amarras. Por exemplo, se a gente pensar a trajetória do de ideias, a circulação de pensamentos. Ao mesmo tempo
circuito dos anos 80 até 2000 percebemos que houve um em que você ouve e vê o que vem de fora, você elabora os
avanço, porque o leque de artistas que estão na cena nacio- conhecimentos adquiridos, acho que é por aí. Eu acho que
nal é muito maior do que era nos anos 80. Mas não sei dizer a gente tem que se contaminar. O pensamento, as reflexões
o que faz de fato esse circuito sobreviver sem recursos, sem crescem contaminando-se com teorias, experiências, ideias,
mercado de arte. Não sei se é o próprio caráter formador da coisas que já existem e podem adquirir novos significados.
universidade. Se você for perceber, a maior parte dos artistas Por exemplo, quando a Funarte chega em Belém nos anos
vem da universidade, mas não sei se seria só isso. Eu pre- 80, de certa maneira ela encontra também um ambiente
feria agora abrir para a gente conversar, trocar ideias quanto propício porque existia o poeta Paes Loureiro, que foi secre-
ao que foi comentado, esse circuito que tem suas dificulda- tário de Cultura do Pará, trabalhando com questões sobre
des e diversidades. E podem perguntar sobre alguma coisa a visualidade amazônica que a Funarte estava interessada.
que vocês queiram saber que eu não falei ou que eu possa Quer dizer, quando ela chega em Belém, já existiam ele-
ter esquecido. mentos que estavam sendo pensados, o que facilitou a tro-
ca cultural. Então ali já havia um clima propício para que as
Pessoa não identificada 2: Esse processo que você acabou artes visuais emergissem. Acho que tanto é importante você
de falar, ele é meio comum também nas artes, porque eu receber coisas que vêm de outros lugares, que eu acho que
moro em São Paulo, vivo aqui há muitos anos, e no período é boa a troca, como você também pensar e ver as questões
a fotografia que era uma fotografia, assim, quase suave, próprias do seu lugar. Às vezes, são mais visíveis para quem
sabe? Quase insipiente. Tinha uma única galeria, que era a vivencia o lugar.
Galeria Fotótica. Tinha outras esparsas, mas isso foi num
crescente, foi uma educação através dos workshops, atra- Pessoa não identificada 3: Minha pergunta era por que
vés das palestras e seminários que hoje a fotografia aqui quando você falava de artistas a maioria era homens. Aí tem
é uma coisa [...] que a gente nem sabe dimensionar que alguma razão? Tem mulheres artistas que não chegam a ser
tamanho que está. Eu acho que o que está acontecendo conhecidas? Como você vê o panorama para o futuro?

77
Marisa Mokarzel: Não. Eu falei de mulheres, não é? Berna mantenha. Assim, eu acho até que determinados artistas
Reale, Luciana Magno, Danielle Fonseca, Val Sampaio. Se vão se manter. Eu acho que o mundo que a gente está vi-
você pensar as artes visuais, a própria história das artes vi- vendo é um pouco diferente. O processo de comunicação
suais, o mundo é masculino nesse sentido. Mas também vai se dando por outros meios, não é? Então, acho que o
acho que não tem que classificar arte de homem, de mulher. circuito pode se manter por outras relações que serão esta-
É arte para qualquer pessoa que se manifesta independente belecidas. Mas não se mantém como bola da vez. Eu acho
de gênero. Mas como o mundo é masculino, se a gente for que tudo isso é efêmero. Cada lugar, às vezes, ganha uma
pensar no percurso da arte, se vê o registro de poucas artis- emergência provisória. Talvez exista um legitimador, por-
tas mulheres. Se a gente for pensar na história da arte, os que tudo isso é só questão de legitimações, não é? Existe
nomes masculinos são a sua maioria, havia discriminação um legitimador que vai num lugar, percebe sua potência,
sim. Hoje, no entanto, a presença de mulheres é bastante e outros vão lá visitar para ver de perto, conferir. Acaba-se
significativa. Eu acho que a questão de gênero passa um criando, vamos dizer assim, um circuito de interesse pelo
pouco por aí. De fato, a própria história da arte até o começo que está acontecendo naquele lugar. Ontem veio o Gaudên-
do século XX conta a história dos artistas homens. cio e falou dos artistas do Pará, ele comentou que o Paulo
Herkenhoff tinha falado para ele ir ao Pará para ver o que
Marília Panitz: Marisa, essa ida a Belém, para mim, sempre se estava fazendo lá. Ele então foi e levou vários artistas
tem alguma coisa aí que me deixa bastante curiosa. Quan- para o Rio Grande do Sul, para uma exposição em que ele
do o Paulo Herkenhoff começa a ir para Belém e depois ele fez a curadoria. Então, acho que isso são reverberações. Al-
deixa de ir e retoma, não é? E há, por exemplo, depois a ida guém que tem um nível grande de legitimação, de credibi-
do Marcus Lontra. Em um determinado momento, assim lidade, reconhece a cena artística. Outros vão e confirmam,
como aconteceu antes com Recife, Belém floresce. Belém já e forma-se a bola da vez. Mas depois muda o foco, não é?
vinha florescendo. A gente sabe disso, não é? Mas Belém é Eu acho que esse foco é mutável. Se você pensar Rio e São
descoberta pelo eixo Rio-São Paulo e vira um pouco a bola Paulo, eles têm as suas estabilidades, mesmo na sua insta-
da vez, como aconteceu com Recife. Esses dias estava con- bilidade. Há um viés mais contínuo. Por quê? Porque têm
versando, inclusive, com a Cristina Tereza sobre essa questão. relações econômicas mais fortes, mais estabelecidas. Então
O que você acha que acontece em determinado momento a política da arte se dá com mais eficiência também. Ela é
para que certa produção, deslocada do centro do circuito, se mais estável, mesmo que nesse estável também estejam
destaque? Porque é muito engraçado pensar isso. Quer dizer, presentes artistas que vêm, emergem e depois somem. Se a
só pensando na Bienal de Veneza, se dá pouco tempo, me gente pensar em termos nacionais, tem nomes que surgem
parece, entre a participação do Luiz Braga e a participação da e desaparecem, e alguns nomes que ficam. Mas eu acho que
Berna. O que há nessa nomeação de Belém como bola da há uma estabilidade maior mesmo nessa fragilidade dos
vez? E parece que isso tem um tempo determinado, como tempos atuais. Em lugares como Recife, Belém, seja outro
aconteceu com Recife. Como é que você vê isso? Acho que lugar, seja Porto Alegre, seja mesmo Florianópolis, aonde for
isso é uma coisa superimportante para a gente começar a eu acho que são focos mais fáceis de serem mudados. Eu
discutir, não é? acho que há também uma sede de novidade muito grande,
e essa sede de novidade é complicada. Eu percebo que às
Marisa Mokarzel: Eu não vou saber te dizer, detectar exa- vezes se legitimam coisas que talvez não sejam para serem
tamente a razão disso, ou quando começa. Eu acho tam- legitimadas, mas a ânsia de novidades faz com que esses
bém que a coisa é cíclica. Eu não acho que essa onda se focos sejam bem flexíveis.

78
Silvia Regina Cabrera: Boa noite, Marisa. Boa noite a todos. Dumas Seixas e ele já está há muitos anos aqui no estado
Meu nome é Silvia, e você falando, assim, a minha pergunta de São Paulo, mais precisamente na cidade de São Bernardo
primeira é um “sim” ou “não” e depois, assim, esses artistas do Campo. Continua produzindo, lógico, ele tem uma pro-
todos que você nos trouxe nomes, a produção deles, a base dução bem cosmopolita, porque é uma pessoa, assim, que
da produção deles continua sendo Belém, as adjacências, estuda, pesquisa, se contamina, não tem medo disso. Ele
continua estabelecida no Pará na sua grande maioria? busca influência nacional, internacional, tudo que ele acha
interessante, ao mesmo tempo em que Belém do Pará não
Marisa Mokarzel: A grande maioria sim. Até tem uma coisa sai da obra dele. Jamais. Realmente porque a vida dele era
muito interessante nesse aspecto de “ficar”, não é? São pes- na ciência, origem, formação, imaginário, tudo está no traba-
soas que residem lá. A Luciana Magno, que é mais jovem, lho dele o tempo todo, independente de qualquer coisa. E aí
tem a base também em Fortaleza, mas ela vem muito a é lógico que eu conheço um caso que é o Dumas. E outros
Belém. O Emmanuel Nassar, depois que saiu da universida- artistas espalhados nessa “diáspora”, não é? Continuam, as-
de, passou a morar um tempo aqui em São Paulo. Mas, no sim, Belém do Pará continua sendo notícia? Eles continuam
grande momento do Emmanuel, ele estava lá em Belém. E carregando essa simbologia? Como que funciona um pou-
é interessante porque alguns artistas saíram de lá. Quando quinho isso?
começou essa onda do Emmanuel ter visibilidade, outros ar-
tistas também foram chamados para galerias de São Paulo, Marisa Mokarzel: Assim, citando o caso do Dumas. Ele tem
e eles saíram. Quem saiu não conseguiu, por exemplo, ter a até o trabalho com a gravura muito forte, com as tipologias
visibilidade que o Emmanuel teve. A visibilidade do Emma- de letras que ele vai buscar no pai dele, que trabalhava...
nuel talvez... e do próprio Luiz Braga. Os dois ficaram lá. Eu
acho que é uma coisa mais contínua estando lá. Agora eu Silvia Regina Cabrera: Isso. Que ele chama “as artes do co-
quero dizer que mesmo outros que estão lá e saíram viven- mércio”. Ele trabalha com o papel do comércio.
ciaram outra experiência. Por exemplo, o Mariano recém vol-
tou daqui de São Paulo, mas ele estava fazendo doutorado. Marisa Mokarzel: É um trabalho muito delicado. Às vezes
Ele estava fazendo doutorado aqui e voltou para lá. A Clau- eu vejo exposições dele, inclusive lá. Agora, não tenho tan-
dia Leão também. Fez mestrado, doutorado, voltou para lá. to esse contato. A gente, às vezes, perde o contato. E claro,
Na verdade, o Mariano tem um vocabulário visual de um não como ele deve ter outros, outros artistas que vão para ou-
lugar, de um lugar não específico. E alguns têm um voca- tros lugares. Por exemplo, quando a Marília fala “a bola da
bulário que parte de lá, o próprio Emmanuel, mas que ao vez”, ele não está lá nesse momento da bola da vez. Então,
mesmo tempo vai além. Mas, em geral, eles permanecem ele não é visto naquele circuito que é visitado. Vários cura-
lá. Em geral. dores foram lá, o Gaudêncio, o Eder Chiodetto. Vários, vários
teóricos vão lá. Têm ido lá. Então, se ele não está lá, ele não
Silvia Regina Cabrera: Certo. E a segunda parte da pergunta é visto, não é? Nos processos curatoriais, que vai depender
que entra é: por um acaso eu conheço um artista paraense do interesse da curadoria X ou Y, ele não está lá, ele não vai
que é o Dumas. entrar. Acaba não sendo lembrado. Aí...

Marisa Mokarzel: Eu sei quem é. Silvia Regina Cabrera: Vai ficando um pouquinho “descon-
textualizado”, não é? Nesse sentido, ele está fora do meio
Silvia Regina Cabrera: Então. Exatamente. Antônio Carlos de origem, não é?

79
Marisa Mokarzel: Aí ele perde esse momento porque não Marisa Mokarzel: Isso. Que é um grande nome. Ele está fora
está lá. No entanto, não quer dizer que ele vai perder todo o de Belém, mas é alguém que também sempre vai lá. Ele foi
seu processo de trabalho e importância. recém-premiado. Mas ele...

Silvia Regina Cabrera: Está OK. Obrigada. Ricardo Biserra: Foi. Constantemente ele é premiado. No
Diário Contemporâneo ele foi premiado.
Pessoa não identificada 4: Ela fez a pergunta sobre a parti-
cipação da artista mulher. Ontem, numa conversa também Marisa Mokarzel: Isso. Foi premiado. Boa lembrança mes-
em outra palestra se falou que a maior parte das galerias mo. Eu gosto muitíssimo do Dirceu, do trabalho dele.
brasileiras são de mulheres, mas quem compra são os
homens. Ricardo Biserra: Eu também gosto bastante. O Sequeira
nem se fala. Fez um trabalho lindo. E a fotografia na mais
Marisa Mokarzel: Mas quem dispõe das obras são os pureza, na mais singeleza. A gente está falando de trabalhos
homens? de pinhole...

Pessoa não identificada 4: Não. Quem compra são os Marisa Mokarzel: Isso. Artesanais.
homens.
Ricardo Biserra: Artesanais mesmo. Do experiencial. Então,
Marisa Mokarzel: Ah, quem compra são os homens. dentro da simplicidade que se propõe, está conquistando
muito espaço e está muito fortalecido. Então eu acho que
Pessoa não identificada 5: Eu acho melhor a gente falar que foge um pouco desse “bola da vez”. Na verdade, Fotoativa é
quem paga são eles, mas quem compra somos nós, não é? muito sólido e vai continuar por muitos anos.

Pessoa não identificada 4: É isso. Marisa Mokarzel: Sem dúvida nenhuma. Agora tem um
dado aí superimportante, que eu acho que é a força de um
Marisa Mokarzel: Aí tem uma relação econômica também trabalho coletivo. A Fotoativa se torna associação somente
da mulher dentro do mercado de trabalho, menor poder de nos anos 2000, e ela só se tornou associação depois de
compra. muito trabalho em conjunto, muito trabalho feito. Eles têm
até mutirões, quer dizer, lidam também com dificuldades
Ricardo Biserra: Boa noite, Marisa.
financeiras, mas resistem. Muito. Eles estão com uma sede
Marisa Mokarzel: Boa noite. que conseguiram do governo, mas que precisa ser restaura-
da. Eles aceitaram mesmo nas condições em que ela estava,
Ricardo Biserra: Eu sou Ricardo, conheço alguns nomes que mas ela está num lugar ótimo. Eles têm postura política, se
você falou da fotografia por estar mexendo com fotografia importam com o patrimônio. Eles estão preocupados com
também. E eu vejo daqui que é muito ativa a Fotoativa, não é? a cidade. A Fotoativa também está no Projeto Circular. En-
tão você tocou num ponto importante, a Fotoativa tem um
Marisa Mokarzel: Isso. trabalho de base muito grande.

Ricardo Biserra: Então, os filhos da Fotoativa realmente cir- Ricardo Biserra: Muito sólido. Muito sólido, não é? Eu ia...
culam por todo o Brasil. Dirceu Maués. tinha comprado passagem agora 8 de outubro até 19 de

80
outubro. Ia ver o Círio e aí fui convidado para dar aula no de outro lugar foi lá e resolveu comprar e comprou. Foi lá na
Senac. Vou perder. Infelizmente. Não vai ser dessa vez, mas Kamara Kó, viu e gostou. Assim, é muito difícil o processo
depois eu prorrogo. Muito prazer e obrigado por ter falado de venda. Praticamente inexistente. É muito frágil. Quanto
tanta coisa legal. Eu ainda vou para lá. à Elf, ela tem um ótimo acervo, mas muitas vezes não tem
compradores. Agora, com a situação atual do país, piorou
Tatiane de Assis Chaves: Meu nome é Tatiane. Eu queria mais ainda. Os museus não vendem, eles dão visibilidade,
saber sobre o mercado. Você falou que ele é bem pequeno, fazem com que as obras dos artistas circulem, mas compra-
mas como são os colecionadores, como é que é isso? dor não tem. Já se fizeram vários encontros para se pensar
sobre a questão, como se pode sensibilizar ou educar, sei lá,
Marisa Mokarzel: O que você falou? Eu não ouvi direito. mas ainda é difícil.

Tatiane de Assis Chaves: Desculpe. Você falou que o mercado


é bem pequeno.

Marisa Mokarzel: Isso.

Tatiane de Assis Chaves: Mas aí eu queria mais detalhes. Eu


queria entender. As pessoas... onde que elas compram? Elas
vêm para cá comprar? E os colecionadores também?

Marisa Mokarzel: Na verdade, o mercado, em parte, é feito


pelas próprias galerias, que é o lugar onde os artistas man-
têm essa relação mercadológica. É tanto que tem muitos
deles que estão em galerias de São Paulo, do Rio e de Minas,
não é? Mas em Belém não tem galeria que banque os artis-
tas. A galeria que se articula mais e em que está inclusive
o Alexandre Sequeira, Guy Veloso, vários deles, é a Kamara
Kó, que tenta colocar o artista no mercado. Lá tem alguns
colecionadores que compram. Pouquíssimas pessoas. É
tanto que há uma dificuldade de preços, por exemplo. Um
preço daqui não é o preço de lá porque o poder aquisitivo
não é igual. Há poder aquisitivo, não é que não tenha. Tem
pessoas que têm muito dinheiro para comprar obras de arte
ou comprar qualquer coisa dentro desse campo. Podem
comprar um sofá de não sei quanto, mas não vão comprar
uma obra de arte. São poucos os colecionadores. E assim
você tem poucos compradores. A compra pode ser feita
também aqui em São Paulo porque o artista é de uma ga-
leria daqui, do Rio ou de Minas, ou porque alguém daqui ou

81
ana mokarzel

Marília Panitz (Brasília)


Curadora e crítica de arte, é mestre em Teoria e História da
Arte pela UnB. É professora do Instituto de Artes da mesma
Universidade. Foi diretora do Museu de Arte de Brasília.

Para receber o pdf da palestra, envie um e-mail para:


vetoresagendamento@gmail.com

82
O centro fora do centro:
reflexões sobre um circuito em construção

Marília Panitz: Boa noite a todos. Eu tenho uma longa his- outro lado, ela tem uma coisa como algo meio irreal, como
tória de trabalho com o Centro Cultural Banco do Brasil aqui se a construção de algo onde as pessoas subissem para o
também, mas mais em Brasília. É sempre um prazer voltar nada. Isto é, a construção da Cúpula do Senado. Mas ainda
para fazer alguma coisa dentro desse espaço, que é impor- em 1959 há um fato que é definidor de muitas coisas para o
tante para todos. Bom, a minha fala foi estruturada a pedi- futuro da arte em Brasília.
do dos organizadores como um panorama da cena artística O Mario Pedrosa, esse aí que está destacado, leva para
de artes visuais em Brasília e com uma certa expansão para Brasília o grupo de críticos de arte do mundo inteiro quando
o Centro-Oeste. Eu realmente me ative mais a Brasília. Vou uma reunião da AICA – Associação Internacional de Críticos
conversar um pouco sobre o Centro-Oeste naquilo que a de Arte foi feita no Rio de Janeiro, e parte dela acontece
gente tem trabalhado em parceria. Há uma proximidade em Brasília. Nesse encontro, o Mario faz uma fala que ele
muito grande entre Brasília e especialmente Goiânia, em- chama “Brasília, cidade nova, síntese das artes” e nessa fala
bora haja também um diálogo com Campo Grande – mais ele diz que Brasília é uma obra de arte coletiva. Aponta para
do que com Cuiabá. Mas o centro da minha questão vai ser o infinito, para o futuro, em um sentido mesmo de que tal-
mesmo Brasília, porque a cidade diz respeito a todos nós vez estivesse inaugurando naquele momento uma forma
e me parece um caso que deve ser analisado com um cer- de arte, e a gente tem que botar em perspectiva aí toda a
to cuidado. O nome da fala tornou-se “Vetores – Brasília, trajetória do Mario Pedrosa, que apontaria já para uma não
o Centro-Oeste e o Brasil – ainda centro excêntrico”. Essa autoria individual e toda essa coisa que vem se discutin-
ideia de Brasília como centro excêntrico existe há bastante do até hoje. Mas, naquele momento, ele de certa forma faz
tempo, mas tenho sido chamada para falar sobre as artes um vaticínio com o qual a cidade tem que lidar até hoje. Os
visuais em Brasília já algumas vezes, e não é uma coisa fácil. brasilienses, sob certos ângulos, têm que lidar com isso. É
Isso porque a gente tem sempre que colocar em perspectiva como se Brasília estivesse sempre diante do vir a ser, e esse
a questão de Brasília ser jovem. A superjovem Capital do talvez seja o vaticínio mais complicado para a cidade. E isso
Brasil. Brasília foi gestada e inaugurada dentro de todo um não está somente ligado ao campo da produção e consumo
imaginário: aquele do pouso do avião sobre o nada primi- da arte na cidade. A cidade como capital tem essa questão,
tivo. O que se sabe ser, sem dúvida, um imaginário muito ela está em um estatuto de um vir a ser.
adequado para a época, mas que não corresponder à rea- É sempre muito interessante a gente pensar que Brasí-
lidade. Não foi isso o que aconteceu, e o que veio depois, lia foi declarada patrimônio da humanidade – isso aconte-
como história da cidade, marca essa diferença. Há uma ima- ce em 1985 – sem estar pronta. Ela tinha o quê? 15 anos.
gem que é muito interessante: Brasília antes de ser inau- Não, 25 anos. Desculpe. De qualquer forma, novinha, não é?
gurada. Eu sempre gosto de mostrar essa imagem porque O Athos Bulcão costumava dizer isto em relação à cidade:
para mim é ao mesmo tempo a imagem da construção da “Olha, não se preocupe não, porque juventude é uma doen-
cidade e das pessoas de verdade que a construíram. E, por ça que passa”. E, de certa forma, para a cidade isso é uma

83
verdade. Agora que já é uma senhora, a gente vê que é um para lá, para cá, mas não consegui achar. Isso aqui é enor-
envelhecimento muito bem-vindo inclusive, não é? Mas ela me, gente. Mas ela não tem lugar. E isso é supersimbólico.
é a primeira cidade declarada patrimônio sem estar pronta Estou dando esse introito para a gente falar sobre cena con-
ainda. E isso, simbolicamente, é outro elemento com o qual temporânea de arte em Brasília. Mas essas coisas são muito
a gente deve lidar quando tenta situar esse quadro: Brasília. importantes. Elas colocam algumas questões que são bem
Quando Brasília faz seus 50 anos, em 2010, são propostas interessantes para a gente pensar.
duas mostras, muito interessantes para se pensar isso. Uma A outra exposição que se fez na mesma época tinha um
delas chamava-se Brasília e o Construtivismo – Encontro caráter mais de retrospectiva. A primeira colocava uma
Adiado, tinha curadoria do Fernando Cocchiarale e discutia questão mesmo com a própria cidade. Era uma questão da
uma questão que me parece de grande importância. ausência do neoconcretismo e do concretismo em Brasília
Quem era efetivamente... quem eram os artistas presen- na época da sua criação. Essa tinha mais uma ideia retros-
tes naquele momento da criação da cidade, que, em última pectiva, investigativa de como se construía um meio de arte
instância, não eram os mesmos que estavam fazendo as em Brasília. Ela se chamava, em homenagem ao Mario, Bra-
maiores inovações em relação à arte no Brasil? Quer dizer, sília, síntese das artes. Tinha a curadoria de Denise Mattar
Brasília é fundada no ano da efervescência do neoconcre- e três núcleos. Um primeiro núcleo, mais histórico, com
tismo, em plena disputa entre o concretismo e o neocon- imagens dos trabalhos de integração com arquitetura, e po-
cretismo. E, na verdade, não se veem artistas concretos e emas de artistas contemporâneos. Vários do Nicolas Behr,
neoconcretos em Brasília, na sua criação. Inclusive, essa por exemplo, poeta da geração mimeógrafo, talvez o único
mostra aponta para isso: os únicos dois artistas que estão de Brasília que realmente tenha se destacado no Brasil. O
presentes na criação da cidade que aparecem na mostra, Segundo era ligado especificamente ao Instituto Central de
porque tinham uma aproximação com as propostas dos Artes, que depois se transformou no Instituto de Artes.
artistas dessa terceira fase do modernismo eram Athos Bul- E que é realmente o lugar de formação. Para quem estava
cão e Rubem Valentim. Era interessante porque a mostra aqui ontem, ouviu Marisa Mokarzel falar sobre a importância
abria com um desenho de Niemeyer. Ao fundo é difícil de da universidade como formadora de artistas em Belém. Em
ver, mas isso aqui são os esboços da Praça dos Três Poderes Brasília isso é também uma verdade. Estamos vendo aqui
e à frente a gente tinha, então, trabalhos de Amílcar de Cas- as pessoas em volta de uma casa concebida pelo Zanine.
tro. Tem uma história que é muito emblemática disso. Bom, A gente sabe que, quando o Darcy Ribeiro cria a Universida-
lá no fundo a gente tem o Livro da Criação, da Lygia Pape, de de Brasília, em 62, ele traz para Brasília gente que estava
Hélio Oiticica, e essa escultura, que são os Três Pontos, do fazendo uma produção de ponta em diversos campos. É
Weissmann, escultura que foi concebida para ocupar um es- uma coisa muito impressionante, o Darcy no seu discurso
paço na Praça dos Três Poderes e não foi para lá. E aí ela é de criação da Universidade de Brasília fala um pouco do que
novamente encomendada, quando José Aparecido de Oli- é essa coisa da criação dessa cidade, o levar a capital para o
veira fez todo o processo de tombamento da cidade como centro, ou seja, um sonho de se voltar para dentro do “Brasil
patrimônio da humanidade. Ele, então, pede ao Weissmann Profundo”, mas de certa forma também ignorando o “Brasil
que faça esse trabalho, os Três Pontos, que tinha a ver com Profundo”. Ou seja, se criava a capital lá e se tentava aca-
os três poderes obviamente. Essa peça tem uma história bar com a história pregressa daquele Goiás profundo. O que
muito particular na cidade. Ela muda de lugar. Ela não para. acontece? Darcy diz que se cria a Universidade de Brasília de
E ela nunca ocupou o lugar para o qual ela foi concebida. forma a resistir à reinvasão das fazendas goianas em Bra-
Queria trazer para vocês a imagem dela no caminhão indo sília. Com os seus cupinzeiros, grandes cupinzeiros, não é?

84
E aí havia um terceiro módulo. Como assistente de curadoria vinda de Taguatinga – onde se tinham os ruídos de cidade
para a Denise, eu fiquei responsável por esse terceiro módu- muito mais cidade como São Paulo – e se chegava em Bra-
lo, que eram nove obras comissionadas feitas especialmen- sília, ou seja, no plano piloto, onde o som era bucólico. Era
te para a exposição. Aqui a obra do Elder Rocha e a obra do como se você saísse de fora da capital e se tivesse o som da
Eliezer Szturm. Isso aconteceu no Centro Cultural Banco do cidade, e se chegasse aqui, aqui em Brasília, e se ouvisse o
Brasil. Os noves projetos eram de Gê Orthof, Evandro Salles, som do campo. Gê Orthof faz, então, o Son(h)adores. Esse
Elder Rocha, Eliezer Szturm, Yana Tamayo, Rodrigo Paglieri trabalho do Gê, é importante dizer, hoje em dia, por meio
e Alexandre Rangel, Adriano e Fernando Guimarães, Kari- do trabalho de dois editais de prêmios que a gente tem em
na Dias, Polyanna Morgana, e acho que foi isso. Ah! Milton Brasília, pertence ao Museu Nacional. E é um trabalho mui-
Marques. Então, o que se vê nessas obras é de certa forma a to particular, das memórias dele de Brasília, porque ele se
visão clara de que em 2010 a cidade já tinha tomado conta muda para lá muito jovem, ainda criança, ainda com os pais.
de si mesma, aliás, quando o Lúcio Costa volta a Brasília, 27 O pai dele foi o primeiro diretor do Hospital de Base de Bra-
anos depois da criação da cidade, ele declara que vê com sília; a mãe, a Silvia Orthof, foi professora. Mas eles são de-
surpresa que Brasília, realmente para surpresa dele, e é uma pois exilados, e ele, então, cria todo um imaginário em torno
boa surpresa, não era uma flor de estufa. Ela tinha, então, da cidade, porque só volta muito mais tarde como professor
tomado conta de si mesma e se transformava numa cidade, da Universidade de Brasília, em 93, e essa é a questão desse
inclusive apesar de certas indicações de seus criadores. Há trabalho basicamente.
alguns anos, em um trabalho superinteressante do Rubens Em 2011, o pessoal do Sesc São Paulo me chamou para
Mano, eu imagino que seja um artista que vocês conheçam, fazer curadoria do que seria o último Projeto Tripé. Era um
ele elegeu dois interlocutores, o Laymert Garcia, aqui em projeto que o Sesc Pompeia fazia lançando o olhar sobre o
São Paulo, e eu, em Brasília. Chamava-se Futuro do Pretéri- trabalho em outras cidades brasileiras de fora do eixo Rio-
to e ele indicava exatamente essas questões, não é? Ou seja, São Paulo. E aí, fazer o trabalho com esses três artistas: Car-
o que da ocupação de Brasília era absolutamente subversi- los Lin, com o projeto Casa, Eliezer Szturm, com as peles
vo e ligado a uma cidade tradicional, com as suas gambiar- dele feitas de silicone no interior, e João Angelini, com um
ras todas e que transformavam Brasília em uma cidade viva. trabalho muito particular de animação stop motion. Essa
De uma certa forma esses artistas discutiram isso lá. Milton mostra foi chamada de Linhas de Chamada que são essas
Marques faz um trabalho sempre com engenhocas eletrô- linhas que ficam fora do projeto de arquitetura, mas dão
nicas, vamos dizer, baixa tecnologia. Este é um trabalho sustentação a ele. Porque o que os artistas se dispuseram
magnífico: ele traz uma Brasília branca e bate o carro contra a discutir é justamente o que de Goiás estava em Brasília, e
uma das paredes do CCBB, e tem então um som que sai acho que eles fizeram lindamente isso, essa ideia de que o
dali, que é um som que se relaciona exatamente com essa envelhecimento da cidade vai trazendo a ela essa memória
região periférica da cidade. E ele é um artista que mora fora que ela negou em sua criação.
do plano piloto. Nesse outro trabalho da Polyanna Morgana, Brasília é a cidade-museu e que tem uma questão com
Poly Taty – Representações Limitada, nome da empresa do os seus museus. Então, Brasília não teve museu de arte até
pai dela, sediada em Taguatinga, a artista faz o percurso de 1985, quando foi fundado o MAB – Museu de Arte de Bra-
Taguatinga com as cores predominantes da paleta da cida- sília. Olha lá os Três Pontos. Mas como vocês veem, o mu-
de, e aqui embaixo é o mapa do plano piloto com as cores seu está fechado, deteriorado. Seu acervo, bem interessante,
predominantes do plano piloto. Na instalação, se entrava no está guardado no Museu Nacional, com seu conservadores
corredor e ia escutando o som que ia se transformando da e catalogadores trabalhando nele. Mas o Museu mesmo não

85
sobreviveu a duas décadas. Então, há uma questão com mente a gente tenha uma circulação de arte contemporânea,
os museus em Brasília, e eu pontuo isso porque os acer- mesmo com essa retirada do Estado. Além do CCBB estão
vos foram distribuídos entre as instituições do poder, não em franca atividade o Conjunto Cultural da Caixa, o Museu
é? Então, se você vai, por exemplo, no Banco Central... eles dos Correios, que não trabalhava com arte contemporânea
recentemente fizeram um catálogo de suas obras, que é um e que começa a trabalhar. De uma certa forma nesse perío-
catálogo desse tamanho e tem obras magníficas, especial- do a gente tem a substituição da presença do Estado pelo
mente do modernismo brasileiro. Você vê o Itamaraty, onde aparecimento dos centros, com uma abertura para a expe-
é necessário se pagar um tributo ao embaixador Vladimir rimentação. Nos anos 90 houve a criação de uma fundação
Murtinho: foi o único lugar na criação de Brasília onde havia que foi central para a discussão de arte, a Fundação Athos
concretos e neoconcretos, por exemplo, além de ter obras Bulcão, que foi criada em 92 e promovia o Fórum Brasília
magníficas de Athos Bulcão também. Mas o que eu queria de Artes Visuais, que levou muita gente boa para discutir a
colocar aqui é que não se consegue constituir ainda, para arte e a cidade. Havia, inclusive, uma parceria com o Insti-
essa cidade, um acervo efetivo com espaços destinados a tuto Goethe. Então era possível levar gente de outras partes
ele. O Museu Nacional é supervisitado, mas é um museu do mundo. Isso criou um caldo de discussão muito legal.
sem acervo. Ele está construindo o seu acervo agora. O MAB, Mas depois dessa época a Fundação Athos Bulcão continua
enquanto esteve aberto, foi um museu com bastante circu- ativa, fazendo coisas muito interessantes, mas se voltou
lação e com importantes atividades, mas ele sempre teve mais para a questão educativa e para a divulgação mes-
sua sobrevivência ligada a esforços pessoais das pessoas mo da obra do artista. Nesses anos 2000, podemos dizer
que estão à sua frente. que são os anos dos centros culturais. Há, na época, a ação
Então, o que acontece? Brasília, nos anos 80, tinha mui- de duas galerias que efetivamente têm um trabalho que
to poucas galerias de arte. No final da década havia uma permanece. Uma é a Referência Galeria de Arte, e a outra
galeria que realmente se preocupava com arte contempo- é o ECCO – Espaço Cultural Contemporâneo, que inclusi-
rânea, que se chamava Arte Capital. Teve vida curta, mas ve começa a editar uma série de catálogos com artistas de
foi muito importante porque trouxe a produção dos anos Brasília, que passou a circular bastante, ótimas experiências
80 para dentro da cidade. Nos anos 90, Brasília teve um para a divulgação do trabalho. Há também uma galeria cha-
período de efervescência cultural, especialmente com o go- mada Arte Futura, de vida muito breve e ação muito efetiva
verno de Cristovam Buarque. Foi o primeiro governo do PT do Evandro Salles e da Graça Ramos, que traz então artistas
em Brasília. Se conseguiu que os equipamentos do Estado Como Cildo Meireles, Ernesto Neto e Yoko Ono entre outros,
atuassem efetivamente. Houve um florescimento desses e editava um jornal que também foi muito legal. O que pa-
espaços, que eram ligados ao Estado. Havia antes a Fun- rece que acontece é que, finalizando esses primeiros 10 anos
dação Cultural e o Centro de Criatividade com momentos nos anos 2000 os centros culturais começam a apostar me-
de ação efetiva e momentos de decadência, sempre muito nos no experimentalismo. Então você continua tendo expo-
irregular. Mas, nesse momento, a gente tem um estabeleci- sições de boa qualidade, mas menos espaço para essa ação
mento mais concreto dessa ação do Estado no campo de mais experimental. E nesse momento o que ocorre, quer
cultura, que dura o período do governo. Quando você tem dizer, o Estado se retira, os centros culturais têm uma ação
a virada dos anos 90 para os anos 2000, o Estado pratica- que aposta menos no experimentalismo. Aí é um momento
mente se retira, e aí entram os centros culturais. É a vinda do que a sociedade civil realmente começa a se organizar e co-
Centro Cultural do Banco do Brasil para Brasília, que de uma meçam a aparecer em Brasília, a partir de 2010, os chama-
certa forma desafia outros espaços e faz com que efetiva- dos espaços intencionais, galerias independentes e centros

86
culturais geridos por artistas. Não é que não houvesse isso sim buscar o que há nessa fala, que é uma fala para o mundo
antes, mas é que eram pontuais. Isso, a meu ver, torna-se algo do seu enraizamento. É possível ter esse enraizamento
para Brasília o grande salto que a cidade dá no sentido de numa cidade tão nova? Já para essa geração depois, como
produção, circulação e mercado mesmo de arte. Porque a da Luiza Mader e Camila Soato, que estão aí, já não é mais
circuito havia, mercado não. Havia mercado basicamente questão. Isso já está incorporado, é uma coisa para mim
para a arte moderna. Colecionadores colecionavam arte de estrutura mesmo do próprio espaço poético, que é de-
moderna. E aí eu vou me ater basicamente a dois espaços terminado pelo vazio da cidade, que é determinado na sua
especificamente, porque não daria para falar de todos, pois própria composição: isso já está incorporado. Então, assim,
eles exemplificam bem esse tipo de ação. Um se chama Ga- temos Gê Orthof e ao mesmo tempo Raquel Nava, que
leria de Arte Alfinete, e o outro Centro Cultural Elefante. O é uma artista superjovem. Uma artista mais jovem ainda,
Alfinete é criado por Dalton Camargos, iluminador que tra- Júlia Milfward, que agora está aqui em São Paulo, faz essa
balha em grandes exposições em Brasília e com grupos de ida e vinda. A Galeria Alfinete aposta nisso e começa a
artistas, videomaker e fotógrafo também. Fotografava arte. apostar também em outras vias de trabalho. Começa a pro-
E ele então cria esse espaço, que começa despretensioso e duzir múltiplos, com preços acessíveis, o que possibilita o
se transforma num centro congregador em Brasília. Dá para começo de novas coleções. Essa coisa voltada para quem
se ver o que representa a vinda do Alfinete, inclusive, por não tem dinheiro, porque uma aposta de Brasília, no mo-
exemplo, com a transformação do perfil de uma galeria, que mento, é a formação de novos colecionadores. Isso a gente
é uma galeria comercial em Brasília, como a Referência. A sabe, claro, que é absolutamente importante. Se você não
Referência, que era uma galeria enorme – o seu penúltimo tem isso, você não tem como manter uma produção forte.
espaço era dentro de um shopping, com uma área imensa –, E os artistas realmente têm que sair de Brasília para po-
reduz essa parte expositiva e passa a funcionar como um der efetivamente se manter trabalhando. São feitos tam-
gabinete de arte e a sua parte expositiva transforma-se em bém projetos de vídeo, videoarte, como o Projeto Lacuna
uma galeria nos moldes dessas pequenas galerias. É claro e os cursos. A Alfinete começou a trabalhar com cursos
que a gente sabe que manter uma galeria enorme também também. Camila, olha você aí, o seu trabalho. Em muitos
não é fácil. Este é o Alfinete, essa é a segunda exposição do trabalhos a gente vê essa coisa. A gente está com a Cami-
Alfinete, e esse espaço se transforma, conforme o jornal de la Soato aqui e com a Luiza Mader, que são duas pessoas
maior circulação de Brasília diz, “numa praça para cultura”. que têm tudo a ver com esse processo. Mas o que eu quero
Então ele vai diversificar os trabalhos. dizer é que a gente vê que as pessoas efetivamente estão
Ele expõe – isso é muito interessante – pessoas de desejosas, porque há vernissages com muita gente e há as
Brasília. Porque no primeiro modelo de produção de arte conversas com artistas também. Esse é um caso de conver-
em Brasília, a cidade é o tema, quer dizer, as pessoas que sa com artista, da exposição de Camila. Foi com você essa
vieram nos primeiros 10 anos para Brasília. Brasília é algo conversa, Camila?
absolutamente novo e transforma-se em tema. Quer dizer,
os artistas que foram os meus professores na universidade, Camila Soato: Na verdade, a gente não tem uma conversa,
todos tinham a cidade como tema. Já essa geração que é a gente armou um show dentro da galeria. E aí misturou
a minha – é formada, na maior parte, por pessoas que não música e a vernissage, tudo dentro do próprio espaço.
nasceram em Brasília, mas que vieram muitos jovens – já
começa a buscar uma linguagem que tenha características Marília Panitz: Eu estava viajando, não estava aqui, então
da cidade, não no sentido de regionalizar a produção, mas é bom que ela já diz. Então há essa abertura para se con-

87
versar, para se fazerem coisas, para se pensar em torno da balho individual também. Em maio desse ano, final de abril,
exposição que está no momento. E aqui eu coloquei porque início de maio – acho importante falar disso, para vocês ve-
recém abriu uma segunda sala, então agora a galeria tem rem que esse tipo de iniciativa está de tal forma se tornando
dois espaços, sempre são dois artistas. Na verdade, nessa, presente na cidade como uma alternativa que esse Centro
numa das galerias, está o Pedro Ivo Verçosa, recém-vindo Excêntrico se colocou –, o Museu Nacional produziu uma
aqui para São Paulo, assim como Camila, que tem um pé mostra chamada Onde Anda A Onda?, com curadoria de
lá e um pé cá. E uma coletiva com Cesar Noyola, Coletivo seu diretor, Wagner Barja, e juntou uma exposição coletiva
TresPe, Luiz Olivieri, Nina Orthof e Oziel Primo. de galerias, mas basicamente de galerias com esse viés não
O outro espaço é o Elefante, que é fundado por dois “es- estritamente comercial. E fez disso um evento grande, onde
trangeiros”, um artista e uma produtora cultural, casados se discutiu colecionismo, mercado de arte, foram trazidas
com diplomatas que vão para Brasília e aí criam esse centro. pessoas de fora para fazer isso, e no final houve um leilão de
Se juntam a eles o Manuel Neves, curador uruguaio, e os obras que estavam expostas, mediadas pelas próprias gale-
outros são artistas de Brasília, Allan de Lana, Gabriela e An- rias independentes que estavam ocupando o espaço. Bom,
tônio Obá. E eles criam uma coisa que até então não havia estava falando para vocês, ontem a gente conversou sobre o
em Brasília: os programas de residência (agora existe um Arte Pará, conversou sobre os salões que não existem mais,
outro espaço fora de Brasília, que é em Olhos d’Água. Já é sobre a diferença do Arte Pará hoje em dia em relação ao
Goiás, o NACO). A primeira residência foi feita pelo Thiago salão tradicional. Brasília também teve primeiro um salão,
Martins de Melo, quando ele estava preparando os objetos ainda nos anos 60. Tanto que tem aquele salão antológi-
dele para a Bienal. E a partir daí sempre houve residências, co onde foi exibido o porco empalhado de Nelson Leirner.
e depois há a exposição, resultado desse trabalho. Isso foi Foi em 67. Depois ele se transforma, nos anos 90, no Prê-
muito importante também porque é um outro espaço de mio Brasília de Artes Visuais, trazendo acervo para o MAB.
discussão. O artista fica trabalhando e recebe as pessoas Depois há um recesso. Nesse período houve algumas das
durante o seu trabalho. Um sistema de residência. Nesse experiências perto de Brasília com salões bem interessan-
outro, que se chama NACO – Núcleo de Arte do Centro- tes é Goiânia: o Salão Flamboyant, que leva gente do Brasil
Oeste, próximo a Brasília – em uma cidade que tem mui- todo para lá; e uma única edição financiada pela Funarte do
ta gente de vários lugares que foi para lá –, recebe grupos Salão do Centro-Oeste, coordenado pelo Carlos Sena Pas-
para residência. Foi criado por um dos fundadores da Fun- sos, que cria um centro dentro da universidade. Para mim,
dação Athos Bulcão, que hoje em dia não está mais, que é dos espaços culturais de universidades do Brasil que eu co-
o Eduardo Cabral. Aqui residências, aqui são o Carlos Au- nheço é o melhor: é o Centro Cultural UFG. Grande centro,
gusto Pileggi e a Sandra Lapage, que são artistas que ficam que tem sediado exposições importantes. E Brasília tem, a
em São Paulo e no exterior. Essa é uma artista uruguaia partir de 2012, outro prêmio, Situações Brasília, que é um
maravilhosa que esteve fazendo residência lá também. O prêmio nacional. Até o momento, houve duas edições, a de
Bruno Kurru sempre tem esse espaço também de discus- 2012 e a de 2014. É muito interessante, inclusive, ver o que
são. [Polyana Dellabarba] e exposições curadas por novos aconteceu com ele. No primeiro ano, houve só um grupo de
curadores, como Matias Monteiro, com um exercício de Brasília selecionado. No segundo, a gente teve uma quanti-
novas curadorias. O que ocorre muito na Alfinete também, dade muito maior de artistas de Brasília. Eu acho que isso é
inclusive curadoria de artistas, como um exercício de for- significativo dessa mudança, porque não mudou o modelo
mação. Aqui alguns dos resultados, mais um residente foi do prêmio. O prêmio sempre tem convidados também, e vai
o Paul Setúbal, que é do Grupo Empreza, mas tem um tra- alimentando a coleção do Museu Nacional. O outro prêmio,

88
novinho em folha, é o Transborda Brasília, esse criado pela arte moderna. Quem realmente faz uma mudança com isso
Bruna Neiva, que é uma artista e produtora cultural, e pela é este colecionador, Sérgio Carvalho. Sérgio é um cara que
Virginia Manfrinato, com uma ideia criada ainda junto com a vem da área da música, depois se interessa por artes visu-
Flávia Gimenes, do Elefante. ais e aí mergulha nisso, mas continua ligado à música tam-
Esse é destinado para artistas de Brasília e do entorno. E bém. Ele toca, mas foi produtor musical nos anos 80 por
aí, sim, o grupo que faz a seleção vem de fora. De Brasília aí, produziu muita gente conhecida e depois uma coleção
éramos eu e Ralph Gehre. Mas daqui de São Paulo, Agnal- de risco. Sérgio tem desde obras de artistas já consagrados,
do Farias, o Fernando Cocchiarale do Rio, e Cristiana Tejo sempre com propostas bastante ousadas, artistas superjo-
de Recife, que é uma curadora muito próxima de Brasília. vens, nos quais ele está apostando para o futuro, e isso não
O resultado foi superinteressante. As três artistas que fo- é frequente. Ano passado houve uma exposição no Paço
ram premiadas recebem um acompanhamento no estilo das Artes da USP de parte da coleção dele, chamada Duplo
das Bolsas de Arte. A Bolsa mais antiga que eu conheço Olhar. Não sei se alguém de vocês teve a oportunidade de
ainda em ação é a de Curitiba. Mas tem a Bolsa Pampulha, ver. Foi curada pela Denise Mattar, que é uma amiga pes-
tinha aquela Bolsa do Nordeste, que era o BNB que fazia soal dele e que tem o conhecimento da coleção desde seu
e que hoje já não existe. Mas eu acho que é um bom sis- início. E agora nós começamos esse projeto Vértice. Somos
tema, Brasília teve uma única vez, em 98, uma Bolsa, e foi três curadoras: Marisa Mokarzel, que esteve ontem aqui, eu
importante. Artistas como Élida Tesller, Marcelo Solá, Chico e Polyanna Morgana, que é artista e curadora sediada em
Amaral foram contemplados e desenvolveram trabalhos a Curitiba, nascida em Brasília. Denise fez uma compilação
partir disso. Uma coisa que já é um dado relativo a essa, va- daquilo de mais significativo que tinha dentro da coleção
mos dizer, a essa mudança muito recente do panorama de dele. Nós resolvemos fazer uma coisa um pouco diferente.
Brasília é a última premiação do Prêmio Marcantonio Vilaça, A gente resolveu apostar exatamente naquilo que era de ris-
do SESI CNI que, entre os cinco artistas premiados um foi co na coleção dele. Então a mostra colocou, lado a lado Nel-
do eixo Rio-São Paulo: o Nicolás Robbio. Os outros foram son Leirner e Marcela Tiboni, que é uma jovem artista daqui;
Virginia Medeiros, da Bahia, Berna Reale, de Belém, o Grupo João Castilho, que é de uma geração posterior à minha, mas
Empreza, de Goiânia, e Gê Orthof, de Brasília. Essas coisas que já tem uma circulação ao lado do jovem Rodrigo Tor-
têm algum significado, são algumas mudanças que vão se res. Rubens Mano e Martinho Patrício, quer dizer, a gente vai
apresentando. E entre os curadores– pela primeira vez o CNI criando diálogos possíveis. Então, nessa exposição fizemos
e o SESI premiam também projetos de curadoria– foram um mergulho na coleção dele e, a partir daí uma estrutura
contemplados Rafael Fonseca, do Rio, um jovem curador que tenta mostrar a coleção dele como resultante das apos-
supertalentoso, e Divino Sobral, de Goiânia também. Para tas do Sérgio. Então eram três andares em Brasília. No Rio
vocês verem a importância que isso tem para Brasília, por vai ser um pouco diferente, vai abrir agora dia 15 de outubro
exemplo, olha o que aconteceu: há uma ideia dos meios com Relatos onde há essa relação mais direta com a reali-
de comunicação de que um prêmio desses põe Brasília no dade, de comentário, tanto da realidade política quanto, por
mapa. Eu não diria isso, eu não concordo com isso, mas eu outro lado, da própria realidade do artista enquanto produ-
acho que é importante ver como a própria cidade vê uma tor; Construções que aponta para essa produção ligada há
coisa como essa. certas características construtivas como na produção como
Bem, agora queria falar de duas coisas só para finalizar. da Yana Tamayo ou do James Kudo.
Uma é a ideia do colecionismo em Brasília. Brasília sempre Em Assombros, onde está a Camila, onde está o Flávio
teve colecionadores importantes, mas colecionadores de Cerqueira, Hildebrando de Castro (que está até com uma

89
exposição aqui) ou Berna Reale há essa ideia de uma A primeira versão do projeto Triangulações contempla-
produção voltada para certa característica intermediária va três capitais, e são sempre três capitais, sendo Salvador
entre sonho e vigília, entre o abjeto e o belo. Sempre esse uma delas. Então o primeiro ano foi Salvador, claro, Recife e
lugar onde você tem um total distanciamento da zona de Brasília. E aí a ideia foi se fazer uma exposição enorme – uma
conforto. Ainda só voltando aqui para o Sérgio, o Sérgio, de exposição complicadíssima de montar, porque são 45 artis-
uma certa forma, tem feito escola em Brasília. Então, por tas – mas se criar aí um diálogo que não se transformasse
exemplo, ano passado me foi pedido um curso para novos em representações regionais, e sim que tivesse dois triângu-
colecionadores. Tem alguma coisa mudando. Alguns, inclu- los, um sobre o outro, um geográfico e outro conceitual, onde
sive, dos que foram frequentar o curso eram colecionadores se pudesse ver o que permeia essas produções e como é que
de arte moderna e queriam se aproximar da arte contem- elas podem conversar entre elas. Primeiro ano aqui, eu usei a
porânea. Assim: “eu não posso comprar algo que eu não montagem em Brasília, que foi lá no Museu Nacional. Segun-
compreendo”. Então, há dinheiro em Brasília para se fazerem do ano, foi Salvador, Belém e Maceió. E o terceiro ano agora:
coleções de arte? Sem dúvida há. As pessoas estão com- Goiânia, Salvador novamente e Fortaleza. Achei importante
prando? Compram. Vêm para São Paulo e compram. Vão trazer isso para vocês, embora eu esteja falando, basicamen-
para fora do Brasil mais do que qualquer outra coisa. Vão te, do Centro-Oeste, porque Triangulações foi um projeto
para circuito internacional de feiras e compram lá. Compram que, durante três anos, teve esse modelo. Agora se encerra, e
até obras de artistas brasilienses lá. Então, por que não com- começa um modelo de formação em Salvador. Ele tem uma
prar em Brasília? Nada contra que comprem em São Paulo. coisa bem completa, porque em Salvador, diferente de ou-
Não, ótimo. Mas por que não comprar lá também? Houve tras capitais, não existe efetivamente um mercado de arte.
essa demanda de 30 pessoas no curso, não é pouca coisa. Existe a galeria Paulo Darzé, claro que é uma galeria impor-
Acho que alguma coisa começa a mudar. Existem alguns ou- tante; Luiz Fernando Landeiro, que está entrando há pouco
tros colecionadores de arte contemporânea, mas com uma tempo, mas existe uma outra agora, já visitei a galeria e não
coleção menos coesa. estou me lembrando o nome, mas de maneira geral não há
E a outra questão que tem sido importante, e aí eu vou muito mercado. Quer dizer, não há quase mercado nenhum.
usar como exemplo um projeto do qual eu fui convidada a Vamos falar a verdade! E aí esse tipo de situação faz com que
participar, mas é um projeto que vem da Bahia, que é essa os próprios artistas conheçam as outras cenas. Por exemplo,
ideia de se botarem em contato produções contemporâneas ontem estava falando da ida do Miguel Chikaoka para Belém
de cidades que estão fora do centro basicamente. Nesse e a diferença com Fotoativa. Houve nessa ida a Belém um
caso foi um projeto voltado basicamente ao Nordeste, por- contato de um fotógrafo de Salvador, Paulo Coqueiro, que
que vem da Bahia, Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Ontem é um ótimo artista fotógrafo, com o Chikaoka, e eles estão
a Marisa Mokarzel tocou nisso, não é? É o projeto Triangu- fazendo um projeto em comum agora, Salvador versus Be-
lações. Surge na Bahia a partir de um projeto que eles já ti- lém. São algumas estruturas que vão se formando a partir
nham há algum tempo, que acontecia sempre em abril, no desses eventos que dependem de, vamos dizer, ação do go-
Corredor da Vitória, onde existem vários espaços e museus. verno, isto é, Fundo de Artes de Salvador. Os dois projetos
Chamava-se Circuito das Artes. Mas a questão que se pôs de prêmios em Brasília são do Fundo de Arte de Brasília. A
para o Circuito das Artes era justamente por que a arte mo- Funarte tem feito um trabalho importante nesse sentido, por
derna baiana teve toda a pujança que teve, e a arte contem- exemplo, que começa a fazer o Brasil olhar mais para outros
porânea não tem. E aí eles começaram a querer conversar centros excêntricos. O pioneiro é o Antarctica Folha Com as
com outros espaços, e a gente foi procurado logo no início. Artes, é um primeiro mapeamento; e depois o Rumos Itaú

90
Cultural Artes Visuais. Mas o Rumos não tem mais esse mo- Pessoa não identificada 1: A feira de arte que fizeram em
delo. Um modelo como o Edital Redes da Funarte ou esses Brasília no ano passado foi um fracasso.
em que os fundos de apoio das regiões ofereçam a possi-
bilidade de circulação (normalmente os fundos de apoio só Marília Panitz: Foi um fracasso de vendas, mas é engraçado
querem atuar se for atuar na própria região). Essa saída para porque...
fora pode fazer toda a diferença, e eu acho que, para Brasília,
fez com que a cidade se olhasse um pouco mais e se olhasse Pessoa não identificada 1: Eu acho que não teria essa edu-
para além desse mito fundador do avião pousado sobre o cação da pessoa conviver com arte, então não é uma feira
nada. Acho que a gente voltou um pouco para a terra verme- que vai fazer isso.
lha, não é não, Camila? Não é não, Luiza? Luiza inclusive usa
a própria para o seu trabalho como matéria. Você tem que Marília Panitz: É engraçado, não é? Por isso que eu falo
estar olhando para falar para o mundo mesmo. Tem que ter desse vaticínio do Mario Pedrosa. É a cidade nova síntese
perspectiva, tem que ter um ponto de enraizamento, e para das artes, era a cidade-museu, é arte para todo lado. Não é
Brasília isso foi um problema e está deixando de ser. Espero não. O que ocorre, me parece, é que se cristalizou de certa
que sim! Era isso que eu tinha para falar para vocês. Obriga- forma um certo modelo de modernismo. Então, tudo que se
da. Agora, se alguém tiver alguma pergunta, é sempre aquele comprou até muito pouco tempo era ligado ao modernismo.
momento, não é? Tem coleções magníficas de arte moderna.

Juvenal Pereira: Marília, eu me surpreendi quando você es- Pessoa não identificada 1: Que é o garantido também, não
tava falando do mercado de Brasília. Lá é a maior renda per é?
capita do Brasil, é Brasília. E não tem um mercado? Não se
compra em Brasília e se vende em Brasília? A maior renda Marília Panitz: Que é o garantido, claro. As pessoas estão
per capita do país é Brasília. fazendo...

Marília Panitz: Eu acho que isso aí, Juvenal, como você, que Pessoa não identificada 1: É um investimento garantido.
já anos atrás morou lá, sabe que isso é um pouco fantasia,
entende? Porque efetivamente essa concentração de renda Marília Panitz: Sim, exatamente.
em Brasília é muito ligada ao próprio aparelho de Estado e
o aparelho de Estado é de uma população flutuante, enten- Pessoa não identificada 1: Melhor ter o contato com aquele
de? Essa, vamos dizer, isso que eu falo que é o bom enve- trabalho, e com isso ela vai... o que me falaram da feira é
lhecimento da cidade, é a criação de uma certa estabilidade que é assim: as pessoas não sabiam nem do que se tratava,
na cidade. Estou dizendo populacional, tá? Um pouco maior não tinham a menor ideia. Sobre ir à feira, entendeu?
na cidade, e, por outro lado, que essas pessoas que vieram
para Brasília e que são de fora, deputados, juízes, diploma- Marília Panitz: É engraçado porque, por exemplo, eu fiz
tas, etc., que teriam dinheiro para comprar, ficam pouco uma das falas, inclusive com o Sérgio, sobre colecionismo
tempo na cidade, e os empresários que vieram para Brasília na feira. E logo antes de mim falou o João Castilho, tinha
eram pessoas simples que fizeram fortuna lá, a gente sabe muita gente escutando. Eu acho que há sim um interesse
disso, isso é história. E são os filhos e os netos deles que em aprender, não é? Eu não sei o que vocês pensam, que
estão começando a se interessar por essa coisa. têm uma vivência como artistas em Brasília, mas há um

91
interesse. Eu acho que tem alguma coisa que está pronta, e Marília Panitz: Não, eu acho que aqui também, mas não há
a gente tem a tarefa de tentar fazer isso. comparação, gente! Não há comparação, não há termos de
comparação. O que circula aqui... desculpe, eu estou falan-
Pessoa não identificada 1: Eu acho que, de uma certa ma- do mais do que as perguntas.
neira, a feira pode até ser, porque as feiras são um lugar em
que está tudo misturado. Então, de alguma maneira, é bom Pessoa não identificada 2: Eu gostaria de fazer um comen-
você ver, porque você vê uma mistura. tário. Será que não seria a dificuldade de vendas?

Marília Panitz: É porque não houve vendas, não é? Se Marília Panitz: Mas por parte de quem? Dos marchands?
você conversar com a própria organizadora da feira, que
queria fazer uma nova edição e nos pediu uma ajuda para Pessoa não identificada 2: Sim.
trazer – novamente estamos aí – galerias independentes.
Duas do Centro-Oeste, duas do Nordeste e duas do Norte. Pessoa não identificada 1: As pessoas precisam aprender
Engraçado, não é? Mas eu acho que há um interesse. E ela a comprar também. Se não sabe comprar, não vai comprar.
ficou surpresa porque houve uma visitação enorme e uma
venda quase nula. Bom, essa última SP-Arte também teve Marília Panitz: Por exemplo, esse colecionador, o Sérgio
uma visitação imensa e venda quase nula. Há outros dados Carvalho tem me ensinado muito. Um colecionador que é
aí. Mas eu acho que em Brasília tem isso. um colecionador mesmo, é claro, vai atrás de coisas que
ele acha que realmente têm chance, mas ele não vai po-
Pessoa não identificada 1: Mas esse ano vai ter feira lá? der sempre comprar lá em cima. Quem já está lá, não é?
Então, ele faz as apostas, e essas apostas futuras depen-
Marília Panitz: Acho que não. Bom, acho que não. Esse ano dem de uma certa visão e também de uma certa orientação.
acho que não vai ter. E, por exemplo, com esse grupo de Eu, às vezes, sinto, por exemplo – é claro que eu não estou
alunos aí do curso para novos colecionadores, que queriam falando do universo São Paulo –, que tem tantas galerias.
se aproximar mais da arte contemporânea, eu descobri que Mas em Brasília não são tantas galerias, e eu acho que os
a maior parte deles vai a Miami Basel, vai a ARCO, vai a Ba- próprios marchands precisam também se educar para ven-
sel, quer dizer, vão para fora comprar. Não compram aqui por der, porque essa coisa do saber oferecer para fulano aquilo
quê? “Ah, então, me diz qual é um artista que você indica- que fulano pode querer a gente estava conversando sobre
ria...”. Aí comecei a ver a característica de cada um e apresentar isso há pouco, não é Fernando? Eu acho que isso faz falta.
certos artistas brasileiros, não só de Brasília, porque acho que
não é o caso. Certos artistas brasileiros que eu acho que efe- Pessoa não identificada 3: Boa noite.
tivamente seriam de interesse deles. Não conhecem, não
conhecem. Conhecem, assim, o “cara” está comprando Vik Marília Panitz: Boa noite.
Muniz. Tem tanto artista legal e mais barato, dá para com-
prar mais. Claro que eu acho maravilhoso que se compre o Pessoa não identificada 3: Eu vejo que existe uma dificul-
Vik Muniz. Vamos lá, compre! Mas conheça os outros tam- dade grande para muitos jovens artistas que levam muito
bém, não é? Eu acho que isso lá precisa, quer dizer... tempo até encontrar o seu consumidor final. E eu vejo e eu
percebo o quanto ainda existe de uma deficiência de espa-
Pessoa não identificada 1: Lá e aqui, em todos os lugares. ços que possam mostrar essa produção dos jovens artistas,

92
e eu entendo também o quanto é importante as instituições aquela coisa: Rumos – Artes Visuais é para jovens artistas.
hoje terem programas para formar novos curadores, progra- A gente sempre levantava a mão e perguntava “Bom, jovens
mas que possam formar novos colecionadores também. E artistas para São Paulo é um tipo de jovem artista”, porque
não só esperar esse colecionador rico, esse colecionador de é impressionante, tem muito mais gente produzindo. Para o
classe média alta, esse colecionador clássico que nós temos. Nordeste, o Centro-Oeste, o Norte, a gente não pode fazer
A minha pergunta: será que não está na hora da gente re- isso, senão você vai alijar uma série de pessoas que ainda
pensar esse modelo de circuito cultural e de circuito do mer- não tiveram essa oportunidade, e que não são tão jovens as-
cado de arte, ampliando cada vez mais novos colecionado- sim, de entrarem no circuito, porque o Rumos possibilitava
res? Por exemplo, eu, que ganho pouco e que quero sim isso. Então, eu penso que são realmente medidas diferentes.
ter o trabalho de um artista contemporâneo. Então, eu vejo Mas, por exemplo, essas iniciativas como dessas galerias têm
que a gente sempre trabalha com o grande mercado. Como possibilitado a circulação, inclusive com a venda de Múltiplos.
uma vez me disse o Paulo Sérgio Duarte, na história da arte Agora, levei para o Dalton, um artista de fora de Brasília, que
a gente divide os artistas na primeira divisão e na segunda vai ter o primeiro Múltiplo já de artistas de fora de Brasília,
divisão. Então, será que não está na hora da gente repen- e a ideia dele é trazer Múltiplos de artistas de todo o Brasil
sar essas divisões e essas hierarquias que existem, dando para serem comercializados, mas quem compra realmente
oportunidades para que essas outras narrativas encontrem os Múltiplos são pessoas com a paixão da coleção... teve um
o seu leitor? colecionador, um jovem colecionador daqui de São Paulo
que foi lá e comprou todo o grupo dos primeiros Múltiplos.
Marília Panitz: Eu concordo inteiramente com você e acho São seis, uma tiragem. São seis de cada, se eu não me enga-
que especialmente para quem está nesses centros excên- no. Eu não tenho muita certeza disso. Mas seis de cada, ele
tricos isso é vital, ou então a gente não tem circuito de arte, comprou uma inteira, porque ele pôde comprar.
ou vai ter sempre um circuito que é receber exposições
itinerantes de outros lugares. Então o que acontece? Isso, Pessoa não identificada 1: Eu acho que essa ideia dos Múl-
por exemplo, Triangulações é um desses exemplos. É um tiplos é muito boa porque ela possibilita as pessoas a come-
trabalho que resolve as coisas desses centros de fora para çarem a colecionar. Vai e compra mais barato, então possi-
dentro, é claro que há algumas iniciativas. Eu acho que o bilita. Para o artista é bom, porque você pode aumentar sua
MAR, por exemplo, no Rio, tem feito muito isso, de levar tiragem para que você venda, e eu acho que é uma coisa
artistas de outros lugares e exposições com propostas de que vai multiplicar também.
outros lugares para dentro do museu, mas de maneira ge-
ral não é isso que acontece. É muito difícil uma exposição, Marília Panitz: A tendência, o que está havendo, não é que
que é a proposta em Belém, ou mesmo em Recife, ou em vai haver uma retirada total das instituições, não acham?
Brasília, ou em Porto Alegre, chegar efetivamente ao circui- Especialmente aqui para vocês, em São Paulo, onde são
to do Rio-São Paulo. Então, eu penso que aí a gente tem muitas as instituições, mas a gente está em uma fase de
duas coisas: para Brasília, essa coisa, essa organização da recolhimento delas também aqui. Então, a gente tem real-
qual eu usei os exemplos, Alfinete e Elefante, é exatamente mente que criar novos dispositivos, não é?
isso. São lugares dos jovens artistas, não só necessariamen-
te, porque há muitos artistas que não são. Da primeira vez Pessoa não identificada 4: Marília, boa noite. Acho que, en-
que eu participei do Rumos – Artes Visuais, eu trabalhava trando nessa parte, eu queria que você desse uma pincela-
diretamente com Moacir dos Anjos, isso era 2001. E aí tinha da, por favor, a respeito do MAB, que me parece que você

93
mostrou estar em estado de abandono, e se você pudesse Marília Panitz: Há uma coisa, vamos dizer, essa efervescência
falar um pouco sobre o porquê que está dessa forma e cultural em Brasília, no momento, com esses espaços, que
como ele pode mudar isso. são vários. Eu só falei de dois, e que não tem se restringido
somente a Brasília, acho que uns dois, três anos para cá,
Marília Panitz: OK, eu só queria fazer um parêntese aí. O não é, pessoal? A área de artes visuais, não me restringia
prédio está nessa situação de abandono, mas a coleção está somente a ela. O brasiliense começou a tomar conta da ci-
super bem cuidada, isso é importante dizer. Esse cuidado se dade. Então, uma coisa que nunca se imaginaria é que as
teve, e isso se dá graças a um grupo de pessoas que há mui- pessoas pegassem suas cangas e suas cadeirinhas e fossem
to tempo trabalha com essa coleção e continua trabalhando, para o eixo monumental tomar sol. Agora vão. Vão fazer pi-
e com o acolhimento do outro museu. Mas o que aconteceu quenique no meio do eixo... o eixo rodoviário, não é? Tem
é que o MAB era um restaurante, assim como o Museu da uma série de feiras, tem uma série de coisas acontecendo.
Pampulha era a Casa do Baile. E aí foi adaptado para ser Dentro disso há um trabalho que é feito basicamente pelo
um museu. Em 97, 98, por aí, a defesa civil esteve lá e disse: pessoal oriundo da área de arquitetura e urbanismo, que se
“pode fechar, isso aqui não pode mais, não tem jeito, não sei chama Experimente Brasília, e são várias frentes. Então, se
o quê”. OK! Se conseguiu um projeto, um projeto lindíssimo começou a produzir algumas coisas, o pessoal de design
de uma arquiteta, jovem arquiteta naquela época (hoje ela começou a produzir objetos para venda mesmo, depois se
mora no Rio Grande do Sul), ela é professora na UFRGS. começou a produzir camisetas que levavam coisas de Brasí-
Andrea da Costa Braga fez um projeto para o MAB de uma lia, começaram a aparecer várias lojas vendendo isso, e hoje
reforma e se conseguiu, chegou a se levantar o dinheiro para em dia se têm já amadurecido vários circuitos (passeios, tra-
isso. E aí o dinheiro foi para outro setor, porque é assim, o jetos orientados) em que se discute arquitetura, urbanismo,
dinheiro da cultura sempre, não é? E aí ele ficou fechado a questão do espaço natural, porque se conquista também
mesmo. Há dois anos, não sei se vocês se lembram disso, se esse espaço meio negado. Então, se avança sobre, vamos
começou a fazer uma série de reuniões no Museu Nacional, dizer, esse espaço em volta que já foi tombado, porque hoje
para a retomada do MAB, e se chegou a ter um novo projeto, em dia a quantidade de condomínios fora do que se con-
já atualizado e pensado coletivamente, mas houve resistên- vencionou chamar plano piloto de residências fora do que
cia de uma parte do meio cultural. Foram muitos problemas, era planejado é enorme. O plano piloto tem à sua volta uma
teve que haver uma interferência do Ministério. quantidade enorme de condomínios. Tornou-se muito caro
morar no centro. Quem já tem apartamento próprio há mui-
Pessoa não identificada 5: Marília, eu tenho uma pergunta to tempo, tudo bem, quem veio antes consegue. Para os
em relação às dinâmicas entre as artes visuais e as artes novos é muito difícil. Então, eu acho que essas experiências
plásticas e outras áreas artísticas. Eu não conheço o Brasil ligadas a essas vivências do que foi o traçado de Brasília
e infelizmente não tive a oportunidade de ir a Brasília, mas e suas modificações, o guarda-chuva disso chama-se “Ex-
tenho consciência de que arquitetura e urbanismo são duas perimente Brasília”. Se você tiver interesse de conhecer um
áreas extremamente fortes e importantes que impulsionam pouco mais, há uma página do Facebook que te leva para o
não só o povo brasileiro, mas o povo internacional. Fala-nos site deles. Organizam-se passeios para discutir arquitetura,
um pouco sobre as oportunidades que existem de colabo- aquela que marcou a cidade como patrimônio e arquitetura
rações ou se de fato essa consciência existe. Trabalho com nova que acontece agora, não é? Aquela relação da arqui-
arquitetos, trabalho com urbanistas, e não só outras áreas tetura modernista que a gente gosta para “caramba” com
formativas, etc. certa arquitetura pós-moderna que destoa. Não é toda, é

94
claro, porque tem exemplos maravilhosos de integração da
arquitetura pós-moderna com coisas antigas. Mas é difícil, é
difícil. E esse pessoal está trazendo isso. Então, tem inclusi-
ve, por exemplo, organização de passeios de bicicleta, venha
com sua bicicleta e vamos fazer certo circuito. Aí, de repente,
eles começam a trabalhar, qual é a palheta de Brasília no
inverno, qual é a palheta de Brasília na primavera, qual é
a palheta de Brasília no verão. Ou onde é que você pode
usufruir disso? Tem sido bem legal. A criação, inclusive, por
exemplo, de objetos, estampas para mim são todos, sem
dúvida nenhuma, tributários de Athos Bulcão. Athos Bulcão
inaugura isso na cidade, certo? Mas veja, veja que é super-
bonito esse trabalho deles. Agora eles têm barcos, eles têm
ônibus, eles estão se virando. Está sendo legal. Gente, agora
que eu vi, Hermano, não é? Está presente o artista Herma-
no Luz! Contribuam, meninos. Hermano está fazendo uma
residência na FAAP, é um artista, um superjovem artista de
Brasília, ótimo também, está no Transborda.

Hermano Luz Rodrigues: Todo mundo aqui é... Eu trouxe


todo o grupo da residência aqui.

Marília Panitz: Ah, é? Ah, vocês todos estão em residência


da FAAP? Ah, que ótimo! Legal. Gente, todos esses lugares
novos, e outros também têm sites e têm páginas do Face-
book. Visitem, vejam, porque eu acho que vocês terão uma
boa visão do que acontece na área... Claro, eu quis me ater
a essa questão.

Pessoa não identificada 1: Como se chama a residência de


Olhos D’Água?

Marília Panitz: NACO, Núcleo de Arte Contemporânea de


Olhos D’Água. É uma casa. Recentemente teve uma resi-
dência de cinco artistas com a orientação do Elder Rocha e
da Renata Azambuja, que é a curadora que tem trabalhado
sempre lá.

95
VETORES: artes visuais em debate
Registro do ciclo de debates realizado de
16 a 21 de setembro de 2015 no CCBB São Paulo

pat r o c í n i o
Banco do Brasil

r e a l i z aç ão
Centro Cultural Banco do Brasil

c u ra d o r i a
Fernando Lindote

pa l e s t ra n t e s
Gaudêncio Fidelis
Marília Panitz
Marisa Mokarzel
Paulo Herkenhoff
Raul Antelo
Rejane Cintrão

f i l m ag e m
Raphael Lupo

t ra n s c r i ç ão das pa l e s t ras
Tudo Anotado

r e v i são e e d i ç ão
Giovanni Secco
Letícia Tambosi

d e s i g n g rá f i co
Verbo Arte Design

i d e a l i z aç ão
Denise Bendiner
Fernando Lindote

p r o d u ç ão
Denise Bendiner

co o r d e n aç ão
Parâmetro Cultural e Nome Próprio

Ficha Catalográfica elaborada por Noeli Viapiana CRB 14/1013

V585
Lindote, Fernando
Vetores: artes visuais em debate / Fernando Lindote –
São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil , 2015.
96 p.; 21 cm

ISBN: 978-85-5915-000-1

Curadoria: Fernando Lindote.


Co-autoria: Raul Antelo, Rejane Cintrão,Paulo Herkenhoff,
Gaudêncio Fidelis, Marisa Mokarzel, Marília Panitz.
1. Arte. 2. Políticas culturais. I Entrevistas. II Titulo.
CDD: 353.7
Ministério da Cultura apresenta
Banco do Brasil apresenta e patrocina
d i s t r i b u i ç ão g r at u i ta . v e n da p r o i b i da .

Realização

Potrebbero piacerti anche