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SESSÃO DE COMUNICAÇÕES
1. ALEXANDRE RIBEIRO NETO - NOVOS FIOS DE UMA EXTENSA TRAMA: A TRAJETÓRIA DE ATALIBA GOMES COELHO E SEUS
ALUNOS LIBERTOS EM VASSOURAS
2. ALINE GOMES DA SILVA e JACQUELINE SANTOS MORAIS - CONVERSAS COMO PROCEDIMENTO METODOLÓGICO NA
PESQUISA
3. ALINE OLIVEIRA VIEIRA e AMARÍLIO FERREIRA NETO - PESQUISA NARRATIVA E FORMAÇÃO DOCENTE:ANÁLISE DA
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO EM EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO FÍSICA (2000 A 2013)
4. ANA CLAUDIA MOLINA ZAQUEU e HELOISA DA SILVA - NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS E HISTÓRIA ORAL:
POSSIBILIDADES E LIMITAÇÕES EM PESQUISAS DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
5. ANA PAULA SAMPAIO CALDEIRA - A CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS DE RAMIZ GALVÃO
6. ANTONIO MARCOS PEREIRA - POÉTICAS DO PROCESSO NA BIOGRAFIA LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA
7. CLAUDENE FERREIRA MENDES RIOS - (AUTO)BIOGRAFIA E O ENSINO E A APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA: OUTRAS
POSSIBILIDADES PARA A FORMAÇÃO DO PEDAGOGO
8. CLÁUDIA SILVA CASTRO - A PESQUISA NARRATIVA NUMA INVESTIGAÇÃO SOBRE CRENÇAS DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS:
ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
9. DÉBORA BORGES DE ARAÚJO e VANESSA CRISTINA OLIVEIRA DA SILVA - NARRATIVAS INFANTIS: O QUE NOS CONTAM AS
CRIANÇAS SOBRE A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E FÍSICA EM ESCOLAS DA INFÂNCIA?
10. DELMARY VASCONCELOS ABREU - EDUCAÇÃO MUSICAL E AUTOBIOGRAFIA: APROXIMAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS A PARTIR
DA HISTÓRIA DE VIDA DO MAESTRO LEVINO FERREIRA DE ALCÂNTARA
11. DIVA SOUZA SILVA - NARRATIVAS DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO: DESAFIOS DA CONSTITUIÇÃO DOCENTE
12. ELENA O’NEILL - CARL EINSTEIN ENTRE TEXTOS E “ITINERÁRIOS INTELECTUAIS”
13. EMANOEL NOGUEIRA RAMOS - A RESSIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA DE VIDA DE SUJEITOS INSERIDOS NO PROCESSO CRIATIVO
COM A LINGUAGEM TEATRAL
14. EVELYN SILVA SOARES e IÊDA LICURGO GURGEL FERNANDES - NARRATIVAS INFANTIS: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS SOBRE
COMO FAZER AMIGOS NA ESCOLA?
15. FELIPE AMORIM SOUZA - OSCAR DA SILVA MUSA (1908-2004): UMA TRAJETÓRIA NA EDUCAÇÃO FÍSICA SANTISTA
16. FERNANDO HENRIQUE TISQUE DOS SANTOS - SUD MENNUCCI E O RURALISMO PEDAGÓGICO: “O PENSAMENTO DA VIDA E A
VIDA DO PENSAMENTO” – (1892-1948).
17. FRANCISCO EVANGELISTA - NARRATIVAS DE FORMAÇÃO EM EDUCAÇÃO: POSSIBILIDADES PARA PESQUISA E INVESTIGAÇÃO
EM EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA
18. HENNING SALLING OLESEN - LAUNGAGE, LEARNING AND SENSUAL EXPERIENCE
19. IÊDA LICURGO GURGEL FERNANDES e EVELYN SILVA SOARES - DA EDUCAÇÃO INFANTIL AO ENSINO FUNDAMENTAL: O QUE
DIZEM AS CRIANÇAS SOBRE ESSA TRAVESSIA?
20. INEZ HELENA MUNIZ GARCIA - PESQUISA E SEUS NÓS
21. IRAPUÃ PACHECO MARTINS - BIOMITOGRAFIA: A FORÇA VITAL MÍTICA NA BIOGRAFIA EDUCATIVA - IMAGENS FUNDADORAS
DO TRAJETO DA PROFESSORA MARIA ISABEL DA CUNHA
22. ISANA CRISTINA SANTOS LIMA - A ENTREVISTA NARRATIVA COMO ESTRATÉGIA DE INVESTIGAÇÃO DOS DESAFIOS E
POSSIBILIDADES DE SER PROFESSOR
23. IURI CORREA SOARES - A REFORMATAÇÃO E A RECONFIGURAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS DE COLETA DE INFORMAÇÕES DA
PESQUISA NARRATIVA A PARTIR DA NEGOCIAÇÃO PESQUISADOR-PARTICIPANTES
24. JANAINA BRAGA DE PAIVA - IDENTIDADE NARRATIVA: APROXIMAÇÃO TEÓRICA PARA A COMPREENSÃO DOS MODOS DE VIDA
DE FAMÍLIAS AGRICULTORAS
25. JANDERSON LACERDA TEIXEIRA - AS RELAÇÕES ENTRE O PROGRAMA ESCOLA DA FAMÍLIA E A DEMOCRATIZAÇÃO DO
ESPAÇO ESCOLAR: UM OLHAR AUTOBIOGRÁFICO A PARTIR DE MINHA ATUAÇÃO COMO EDUCADOR PROFISSIONAL
26. LEDA DE ALBUQUERQUE MAFFIOLETTI e MARIA HELENA MENNA BARRETO ABRAHÃO - PRINCÍPIOS EPISTEMOLÓGICOS DA
PESQUISA NARRATIVA EM EDUCAÇÃO MUSICAL
27. LUCIENE ALMEIDA DE AZEVEDO - AUTOFICÇÃO COMO PROBLEMA
28. LUIS ÁLVARO PASSEGGI - “SAIO DA VIDA PARA ENTRAR NA HISTÓRIA” A NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA NO DISCURSO
POLÍTICO: UM LUGAR DE EMOÇÃO
29. LUIZ EDUARDO ESPÍNDOLA DE SOUZA - JUVENTUDE: UMA PERSPECTIVA DO TRAJETO
30. MANOELA FALCON SILVEIRA - NA ESTEIRA DA AUTOBIOGRAFIA, A FICÇÃO: UMA ANÁLISE DA TRILOGIA DO ESCRITOR
ANTONIO TORRES E DO CINEASTA LÍRIO FERREIRA
31. MÁRCIO FREITAS DO AMARAL - NARRATIVAS DE VIDA DE JOVENS DE PERIFERIA: SENSIBILIDADES METODOLÓGICAS
32. MARIA ANGÉLICA DA GAMA CABRAL COUTINHO - A OBRA DE PIZARRO: FONTE PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
33. MARIA ELIZANGELA RAMOS JUNQUEIRA, LIZIANE VILELA VASCONCELOS e SIMONE SANTOS DE OLIVEIRA - ENTRE
MEMÓRIAS E TRAJETÓRIAS, AS NARRATIVAS DE VIDA E DE TRABALHO SOBRE A MINERAÇÃO EM BREJINHO DAS AMETISTAS
CAETITÉ – BA
34. MARIA HELENA CAMARA BASTOS - MEMÓRIAS EM CAIXAS: AS ESCRITAS DE SI DE LUZIA GARCIA DE MELLO (1933-2013)
35. MARIA INÊS PETRUCCI ROSA - MÔNADAS BENJAMINIANAS COMO POSSIBILIDADE METODOLÓGICA
36. MARIANA MARTINS DE MEIRELES - PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, ENTREVISTA NARRATIVA E A HERMENÊUTICA DE SI:
QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
37. MARIANE BRITO DA COSTA e VIVIANE MEDEIROS NETTO - TRAJETÓRIAS ONDULANTES: NARRATIVAS DE UMA JOVEM DO
MORRO DO PALÁCIO
38. MÉRI FROTSCHER -“TRAJETÓRIAS DE VIDA” ESCRITAS POR CIDADÃOS ALEMÃES RETORNADOS DO BRASIL PARA A
ALEMANHA NACIONAL-SOCIALISTA
39. MÍLADA BAZANT SÁNCHEZ - LA CONSTRUCCIÓN DE LOS ESPACIOS EDUCATIVOS FORMALES Y NO FORMALES DEL MAESTRO
MEXICANO CLEMENTE ANTONIO NEVE (1830-1903)
40. MIRIAM SOARES LEITE - CONTRIBUIÇÕES DA PERSPECTIVA DA DIFERENÇA PARA A ENTREVISTA NA PESQUISA ACADÊMICA
EM EDUCAÇÃO
41. NATAL LÂNIA ROQUE FERNANDES - A ENTREVISTA NARRATIVA COMO DISPOSITIVO PARA EVIDENCIAR PROCESSOS
IDENTITÁRIOS DOCENTES
42. NAYARA GALENO DO VALE - IDENTIDADE DO HISTORIADOR E ESCRITA DA HISTÓRIA DO BRASIL NA OBRA DE PEDRO
CALMON (1933-1959)
43. PATRÍCIA CLAUDIA DA COSTA - ILUSÃO BIOGRÁFICA: A POLÊMICA SOBRE O VALOR DAS HISTÓRIAS DE VIDA NA SOCIOLOGIA
DE PIERRE BOURDIEU
44. PATRÍCIO NUNES BARREIROS - EULÁLIO MOTTA E SEU ACERVO: ITINERÁRIOS (AUTO)BIOGÁFICOS
45. PRISCILA DE SOUZA DE AGUIAR - A TRANSCRIÇÃO COMO UMA POSSIBILIDADE DE LEITURA DE NARRATIVAS BIOGRÁFICAS
46. RAFAEL MARQUES FERREIRA BARBOSA MAGALÃES - PESQUISA FILOLÓGICA E A BIOGRAFIA COMO DOCUMENTO
MEMORIALISTICO: EDITANDO O CÓDICE 132, UMA BIOGRAFIA DO MARQUÊS DE POMBAL
47. RODRIGO MATOS DE SOUZA - MOVIMENTOS DE RECEPÇÃO: SOBRE A APROPRIAÇÃO DE ELIAS CANETTI NO BRASIL
48. ROSAURA ANGÉLICA SOLIGO e VANESSA FRANÇA SIMAS - PESQUISA NARRATIVA EM TRÊS DIMENSÕES
49. SÍLVIO ROBERTO SILVA DE CARVALHO e JACIETE BARBOSA DOS SANTOS - FRAGMENTOS BIOGRÁFICOS PRODUZIDOS PELAS
CANÇÕES DE ALTO-FALANTE
50. TALAMIRA TAITA RODRIGUES BRITO - A HISTÓRIA DO INSTITUTO DE BIOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
CONTADA POR UMA PROFESSORA APOSENTADA: POTENCIALIDADE METODOLÓGICA DA MEMÓRIA E DA NARRATIVA ORAL
51. VALÉRIA MARQUES DE OLIVEIRA - NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA DO PRÓPRIO PESQUISADOR COMO FONTE E FERRAMENTA
DE PESQUISA
52. VANESSA CRISTINA OLIVEIRA DA SILVA e DÉBORA BORGES DE ARAÚJO - PESQUISA COM CRIANÇAS: UM ESTUDO A PARTIR
DAS NARRATIVAS INFANTIS SOBRE A VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS DA INFÂNCIA
53. WILTON CARLOS LIMA DA SILVA - A HORA DO EU: ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA EM MEMORIAIS ACADÊMICOS
POSTERES
1. DAILMA BARBOSA FAGUNDES E JOSÉ AURIMAR DOS SANTOS ANGELIM - NARRATIVAS DE SI NA ERA DIGITAL: UMA
POSSIBILIDADE FORMATIVA NA LICENCIATURA
2. ELISE DE MELO BORBA FERREIRA E SIMONE CHAVES DIAS - VÔO DUPLO AO CAMPO DE PESQUISA: RELATO DE UMA
EXPERIÊNCIA FORMADORA
3. EMILIO GOMES MARTINS E ELIAS DO NASCIMENTO MELO FILHO - CONTEXTO HISTÓRICO DA MÚSICA MODERNA: RELATO DE
VIDA E OBRAS DO COMPOSITOR IGOR STRAVINSKY
4. JACQUELINE VARELLA - DOCUMENTOS GUARDADOS: O PEDAGOGIUM NA TRAJETÓRIA DO DIRETOR DA INSTRUÇÃO PÚBLICA
MEDEIROS E ALBUQUERQUE
5. MARIA DE LOURDES BATISTA GOGGI DO NASCIMENTO E KARLA VERUSKA AZEVEDO - FALANDO,OUVINDO E SE
REDESCOBRINDO:QUANDO A FONTE SE LEMBRA DE SI.
6. PEDRO GABRIEL VIANA DO AMARAL E ANA PAULA MACHADO DOS SANTOS - O QUE ACONTECE NA NOSSA AULA DE
EDUCAÇÃO FÍSICA? ANÁLISE DE NARRATIVAS AUT
SESSÕES DE CONVERSAS
1. ÉRICO LOPES e DÉBORA VASCONCELLOS SINOTI - ANÁLISE DE METODOLOGIAS DE PESQUISA A PARTIR DE TRABALHOS
PUBLICADOS NO V CIPA: UM ESTUDO INTRODUTÓRIO
2. EVELYN DE ALMEIDA ORLANDO e MARA FRANCIELI MOTIN - AS IRMÃS PASSIONISTAS COMO PERSONAGENS DA EDUCAÇÃO:
DE UM IDEAL SOLITÁRIO NA ITÁLIA À REATIVAÇÃO E VINDA PARA O BRASIL
3. FELIPE FRANKLIN MEDEIROS RIBEIRO E ROBERTA CERES ANTUNES MEDEIROS DE OLIVEIRA - CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
VISUAL EM PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO: NARRATIVAS INFANTIS COMO FONTE DE PESQUISA
4. HELDER PINTO e LEONARDO SANTOS NEVES - “MUITOS CADERNOS E FOLHAS AVULSAS”: OS VESTÍGIOS AUTOBIOGRÁFICOS
E A METODOLOGIA DE PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO PARA MINAS GERAIS
5. JOELSON DE SOUSA MORAIS - AS NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS DO COTIDIANO MEDIANDO A AUTOFORMAÇÃO NA
PESQUISA COM PROFESSORES INICIANTES
6. LIANA DE ANDRADE BIAR E LILIANA CABRAL BASTO - CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DO DISCURSO E DA INTERAÇÃO PARA
A ANÁLISE DE NARRATIVAS: DIÁLOGOS COM O GRUPO NARRATIVA, IDENTIDADE E TRABALHO
7. MARIA HELENA MENNA BARRETO ABRAHÃO - CONSTRUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS E INFORMAÇÕES MEDIANTE ESTUDO EM
CONTEXTO DE FONTES ORAIS, ESCRITAS E IMAGÉTICAS
8. MARLÉCIO MAKNAMARA - NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS E NECESSIDADES FORMATIVAS DE PROFESSORES DE
CIÊNCIAS: REFLEXÕES PRELIMINARES PARA UM OBJETO EM CONSTRUÇÃO
9. NADJA REGINA SOUSA MAGALHÃES E JOELSON DE SOUSA MORAIS - AS NARRATIVAS DO COTIDIANO DE PROFESSORES
COMO CONSTRUÇÕES EPISTEMOLÓGICAS NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO
10. SAHMARONI RODRIGUES DE OLINDA - PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA E ANÁLISE (PARA A CRÍTICA) DE DISCURSO: FORMAS
DE SER, FORMAS DE LEROBIOGRÁFICAS DE ALUNOS
NOVOS FIOS DE UMA EXTENSA TRAMA: a trajetória de Ataliba Gomes Coelho e seus alunos
libertos em Vassouras
Introdução
Convidamos a jovem Cecília1 para um passeio em Vassouras, para conhecer as velhas fazendas de
café. Olhamos os morros em formato de meia laranja, hoje desgastados, pelo excesso cultivo da planta, que
outrora trouxe prosperidade e riqueza. Ao olhar o caminho percorrido pelo rio Paraíba do Sul, percebemos
o desenho feito pelo mesmo na planície.
No século XIX, partindo da cidade do Rio de Janeiro, os cafezais seguiram a direção do
vale do rio Paraíba do Sul, que, além de já contar com vias de transporte, tinha solo e clima
adequados ao cultivo da planta (FARIA 2005, p.8).
Seguimos o nosso passeio pela cidade, observado o traçado das ruas, o chafariz monumental na
praça - grandes glórias do passado, que hoje são os rastros deixados pelos homens de tempos pretéritos. A
autora nos desafia a contar a história dessa cidade. Eu sei, além de poetisa, Cecília foi professora também.
Juntos começamos a questionar onde eram as escolas? O que aprendiam? E eu a desafio, conhecer o passado
das crianças negras e pardas, pois a trajetória educacional das crianças da elite, alguns pesquisadores da
Educação já se lançaram a essa árdua tarefa. Porém, das nascidas de mulheres negras e pardas esqueceram-
se de contar.
O sumiço do registro da cor consiste num dos processos mais intrigantes e irritantes,
ocorridos no século XIX, do ponto de Vista do pesquisador. Todos que tentaram trabalhar
com a história do negro, após o fim do cativeiro, já se decepcionaram com a quase
impossibilidade de alcançá-los, seja trabalhando com processos-crimes e até mesmo com
registros civis (MATTOS, 1998, p. 97).
Concordamos com a autora da citação acima sobre dificuldade de seguir as pistas dos negros e
pardos do século XIX. Se nos processos consultados a cor foi lentamente desaparecendo, o mesmo se pode
verificar nos mapas escolares. Um dos grandes desafios, da historiografia da Educação é encontrar fontes
documentais de pesquisa, que revelem os processos de escolarização das crianças negras.
Esse texto apresenta os resultados parciais do nosso projeto de tese intitulada Fios do novelo. Nele
buscamos reunir alguns documentos, cruzar referências bibliográficas e levantar hipóteses sobre o processo
de escolarização das crianças negras e pardas em Vassouras.
1 Seu nome Completo é Cecília Benevides de Carvalho Meireles, professora, escritora e poetisa.
Signatária do Manifesto dos Pioneiros pela Escola Nova em 1932. Ver. Lobo, Yolanda Lima. Cecília
Benevides de Carvalho Meireles. In. FÁVERO, Maria de L. de Albuquerque e BRITO Jader Medeiros
(Orgs.). Dicionário dos Educadores no Brasil: da colônia aos dias atuais. Rio de Janeiro: UFRJ/MEC-
Inep-Comped, 2002.
A trajetória de Ataliba Gomes Coelho: o professor e seus alunos negros
Márcia Gonçalves nos ajuda a pensar, como os indivíduos voltaram à cena histórica através das biografias.
[...] O indivíduo como campo, em suas interfaces, dobras afastamentos, inclusões no mundo,
figurou em grande parte das analises sobre livros, autores, mobilizações e movimentos
intelectuais. Isso parecia reiterar uma determinada concepção de sujeito, associada a um
esforço repetitivo de dimensionar seu poder de agenciamento ante os condicionamentos
históricos e culturais (GONÇALVES, 2009, p. 198).
Philippe Levillain nos adverte que, dentro do gênero biográfico, há biográficas que se baseiam
em dados presentes em arquivos e outras baseadas na ficção. Segundo o autor, o pesquisador ao utilizar
elementos ficcionais na construção do texto biográfico deve controlar a tentação criadora.
[...] A fortiori, a biografia baseada em arquivos justificava a narração, e a descrição e o
imaginário organizavam a representação do personagem. Não é com base no biografado
que se dividem as biografias literárias e as biografias históricas, nem com base na escrita,
o que equivale a dizer no estilo, e sim com base na parte de ficção que entra nas primeiras
e deve ser proibida nas segundas por razões de método. A ficção provém do suplemento d
e explicação que o autor se julga no direito de dar quando a reunião dos documentos não
basta para retratar o personagem. Pois toda biografia resulta da tentação criadora. O autor,
por definição, instruído sobre a vida da pessoa, remonta o curso de um destino fingindo pela
narração constatá-lo ao longo do tempo que passa (LEVILLAIN, 20003, p. 155).
Começamos nossa busca por vestígios biográficos de Ataliba Gomes Coelho, pelo acervo da
Biblioteca Nacional. Consultamos os ilustres dicionários biobibliográficos Sacramento Blake e Velho
Sobrinho. Para o nosso espanto não encontramos nenhuma informação. O texto de José Luis Petruccelli
sobre os padrões de casamento em Vassouras nos ajudou nessa tarefa, fornecendo dados importantes, que
nos permitem pensar a trajetória de Ataliba Gomes Coelho.
Bourdieu nos ajuda a pensar o conceito de trajetória, possibilitando compreender os diferentes
dispositivos acionados pelos indivíduos, os vínculos institucionais e associações que foram uma rede de
sentidos, cujo produto final é a vida do biografado que tencionamos trazer à luz.
[...] Ela conduz à construção da noção de trajetória como série de posições sucessivamente
ocupadas pó rum mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um
devir, estando sujeito a incessantes transformações. Tentar compreender uma vida como
uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vinculo que
não é senão aquela de um nome próprio é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão
de um trajeto no metro sem levar em conta a estrutura de rede, sito é, a matriz das relações
objetivas entre as diferentes estações. (BOURDIEU, 1998, p. 189-90).
Ataliba Gomes Coelho nasceu em Vassouras, no ano da assinatura da Lei do Ventre Livre, ou seja,
em 1871. Filho do fazendeiro José Gomes Coelho e Bellarmina. Seu pai era um fazendeiro, que teve ainda
outros três filhos. São eles: Waldomiro, Malvino, Maria Cândida, a única menina e o caçula Octávio que
nasceu em 1890.
Como instituição o nome próprio é arrancado do tempo e do espaço e das variações
segundo os lugares e os momentos, assim ele assegura aos indivíduos designados, para
além de todas as mudanças e todas as flutuações biológicas e sociais, a constância nominal,
a identidade no sentido de identidade consigo mesmo de constantia sibi, que a ordem social
demanda (BORDIEU, 1998, p.187).
Recorremos a José Luis Petruccelli que nos ajuda a compreender a os critérios usados para classificar
os indivíduos em: fazendeiros, agricultores, lavradores e capitalistas.
[...] Em 1890, as 40 maiores propriedades da região tinham um tamanho médio de
quase 600 há (Stein, 1990, p. 266). Em 1925-26, as propriedades de menos de 100 ha,
aproximadamente, eram classificados geralmente como sítios na lista de propriedades
de valor superior a 2 contos de réis (Diretoria de Agricultura, 1927), e somente aquelas
de tamanho maior eram consideradas fazendas. S. Stein atribui o limite de 30 alqueires,
equivalente a uns 145 ha, a partir do qual as propriedades seriam consideradas como
fazendas; áreas menores que este valor seriam denominadas sítios (Stein, 1990, p. 153).
Desta maneira, para uma certa faixa de tamanho de propriedade rural, provavelmente entre
100 e 145 ha, as categorias de agricultor, lavrador e fazendeiro deveriam se apresentar
como equivalentes (PETRUCELLI, 1998, p.1200).
Através da leitura da citação feita anteriormente, compreendemos que o tamanho da propriedade era
critério usado para estabelecer se os indivíduos eram fazendeiros ou agricultores ou lavradores. Segundo
Petrucelli (1998) na família do professor Ataliba Gomes Coelho, 21 indivíduos ao registrarem seus filhos,
se autodenominaram fazendeiros, o que nos indica que era uma família de alto poder aquisitivo. Outro
critério apresentado também pelo mesmo autor acima era a cor. Apenas um registrou o filho como pardo,
os demais indivíduos registraram o filho como brancos.
José Luis Petrucelli nos apresenta a homogamia como forma de preservar o patrimônio e as terras.
Ouçamos o autor:
No caso de Vassouras, a homogamia de casamentos se encontra, em primeiro lugar, entre
os fazendeiros e agricultores, como uma forma de preservação dos seus patrimônios de
terras. Entretanto, uma fonte de contradição se apresenta entre o interesse econômico de
preservar a unidade de exploração agrícola indivisa no momento da morte do proprietário
e a costume da repartição igualitária da herança. Se por testamento se podia, até 1916,
dispor de um terço dos bens, e a partir da aprovação do Código Civil desse ano da metade
deles, para impedir a divisão da parte restante das terras os herdeiros chegaram a fazer
acordos entre eles. Geralmente, aqueles que cediam suas partes o faziam em troca, seja de
um capital que lhes permitisse se instalar em outro lugar, seja de outras terras da família
(PETRUCELLI, 1998, p.1205).
Ataliba Gomes Coelho teve doze filhos no total. No primeiro casamento com Malvina D`Ávila
Teixeira teve 3 filhos, no segundo casamento com Alzira Padilha teve nove filhos. Em seu primeiro
casamento ele tinha apenas 19 anos de idade e a noive 15 anos de idade. Ficaram casados por mais ou
menos onze anos. Petrucelli (1998) nos diz que ele deveria ter mais ou menos trinta anos quando casou pela
segunda vez. A partir dos registros de nascimento dos filhos foi possível acompanhar a vida profissional de
Ataliba Gomes Coelho. No nascimento do segundo filho do casamento com Malvina D`Ávila Teixeira é o
único momento que Le de declara agricultor. Nos demais a profissão apresentada por ele é de professor.
O fato de Ataliba viver como professor e empregado público, sendo o filho mais velho de
um fazendeiro e, a partir de 1908, também genro de fazendeiro, casado, por outro lado,
com a filha mais velha de quatro irmãs, mostra as transformações sofridas pela região de
estudo: passagem de uma economia agrícola, próspera até os anos 1880, ao declínio da
produção de café e à crise pós 1888, erosão das terras laboráveis, apropriação do controle
das propriedades hipotecadas pelos bancos credores etc. Nas famílias de fazendeiros à
época dos avós, os filhos se tornam negociantes ou empregados públicos para se perder
depois as pistas dos netos, emigrantes provavelmente da região. (PETRUCELLI, 1998,
p.1210).
Petrucelli (1998) não disse, quando ele começou a lecionar. No Almanaque Laemmert, encontramos
primeiramente o registro de sua atuação na Instrução Particular. Contudo, a sua entrada no magistério
publico, se deu após aprovação em concurso público realizado em cinco de maio de mil oitocentos e
noventa. A banca examinadora era composta pelos professores: Paulino José Gomes da Costa, João Batista
Nunes e José Xavier de Gouvêa Brum. Vejamos o resultado do concurso:
Aos cinco dias do mês de Maio de Mil Oitocentos e Noventa, reunidos a comissão
examinadora composta dos cidadãos Doutor Paulino José Gomes da Costa, presidente,
João Baptista Nunes e José Xavier de Gouvêa Brum, pelo presidente e ao meio- dia foram
iniciados os trabalhos de concurso tendo se apresentado candidato os cidadãos Ataliba
Gomes Coelho e João Pedro Teixeira Coelho Junior. Depois de ter-se aos candidatos
dado um trecho escolhido, passaram a fazer as respectivas análises gramatical e lógica, e
mais escrevendo sobre o ponto de aritmética que lhes foi dado. Feitas as provas escritas
a comissão julgou-os pela seguinte: o Candidato Ataliba, Nota ótima, Ortografia Boa,
Análise Gramatical Boa, Análise Lógica Boa, Aritmética Ótima, O Candidato João Pedro:
Caligrafia – Nota Sofrível, Ortografia – Boa, Análise Gramatical e Lógica – Sofrível e
Aritmética – Boa. Em seguida foram os candidatos submetidos às provas orais de Português
e Aritmética, arguindo-os cidadãos examinadores e mais presidente sobre diversos pontos.
Terminada a arguição o presidente encerrou o exame, retirando-se a comissão para o exame
final, digo julgamento final. Julgadas todas as provas a comissão resolveu considerar
habilitado os candidatos porque manifestaram conhecimento necessário para o magistério e
portanto, para serem providos efetivamente nas cadeiras de professores municipais. E para
constar lavra-se esta ata, que depois de assinada pela comissão será, com as provas escritas
dos concorrentes remetida ao Presidente Interino da Intendência Municipal.
João Pedro Teixeira Coelho Junior e Ataliba Gomes Coelho fizeram concurso juntos. Eles podem ser
parentes, próximos ou mesmo distantes, a julgar pelo sobrenome que apresentam e pelo tamanho da cidade
de Vassouras. Petrucelli (1998) não apresentou em seu texto, outro membro da família Gomes Coelho
exercendo o cargo de professor. Os dois prestaram concurso juntos, porém o resultado óbito por eles nas
provas foi diferente.
Ataliba Gomes Coelho foi aprovado com louvor no concurso, em nenhuma das provas obteve alguma
nota que desabonasse a sua pretensão ao cargo. João Pedro Teixeira Coelho Junior, não obteve o mesmo
rendimento. A sua nota na prova de Caligrafia e Lógica foi – Sofrível!Imagino os candidatos esperando a
divulgação dos resultados das provas. No momento em que a ata do concurso foi lida?
Mesmo não se saindo bem nessas duas provas, João Pedro Teixeira Coelho Junior foi aprovado.
Mesmo assim, ambos os candidatos, cumpriram a maior exigência estabelecida, para ocupar o cargo de
professor público: a moralidade.
A Lei de 1827 determinou que os candidatos ao cargo de professor fossem examinados
publicamente perante banca examinadora, e que só fossem admitidos ao exame os cidadãos
brasileiros (natos ou naturalizados) livres ou libertos maiores de 25 anos, que estivessem
no gozo de seus direitos civis e políticos, sem nota na regularidade de sua conduta. Tornou
ainda o exame obrigatório para aqueles professores em exercício que pretendessem se
candidatar ao provimento de cadeiras vagas (GONDRA e SCHUELER, 2007, p.168-169).
Gondra e Schueler (2007) apresentam os dispositivos formativos da Primeira Lei Geral de Ensino
de 1827, que entre outras exigências fixa a idade mínima do candidato em 25 anos de idade. O exame
passou a ser obrigatório para os professores em exercício que desejassem ocupar novas vagas. Na citação
acima encontramos referência de o concurso realizado em Vassouras, seguiu fielmente os caminhos legais.
Foi composta uma banca examinadora, o concurso reuniu cidadãos brasileiros que foram examinados
publicamente. Cabe destacar ainda, a moralidade exigida para os postulantes ao cargo. Castanha (2013), ao
analisar a Reforma Couto Ferraz, aponta na mesma direção. Ouçamos o autor:
[...] Enfrentar o processo do concurso não era tarefa muito fácil, pois as exigências impostas
pela legislação eram rigorosas. O candidato precisava provar maioridade, moralidade e
capacidade. A idade mínima, na Corte, era 21 anos para os homens. Algumas províncias
estabeleceram a idade mínima de 18 anos. Provava-se a moralidade mediante a apresentação
da folha corrida referente aos últimos três anos, fornecida pelos chefes de Polícia, juízes ou
câmaras das localidades em que o indivíduo residiu no período de três anos (CASTANHA,
2013, p.143).
[...] Era obrigado a apresentar também atestado fornecidos pelos respectivos párocos,
também referentes ao período de três anos. Naquela sociedade conservadora, fundada
nos princípios religiosos, ninguém melhor do que os padres para avaliar o caráter dos
candidatos. Pela prática da confissão ou da não confissão, os padres conheciam os valores
morais, as virtudes e defeitos de cada candidato. Como todas as certidões e atestados
deveriam ser entregues no momento da inscrição para o concurso, as autoridades tinham
um tempo maior para avaliar melhor os candidatos. Estavam impedidos também de exercer
o cargo os professores condenados por qualquer crime, especialmente de ordem moral ou
religiosa. Apesar de não definir explicitamente, o regulamento não permitia que indivíduos
não católicos exercessem o cargo de professor público. Penso que o mecanismo de seleção
adotado pela reforma Couto Ferraz, a qual se difundiu para a maioria das províncias, foi
um instrumento muito eficiente para garantir o ingresso de professores ordeiros, submissos
às autoridades e ao Estado. Isso explica o pequeno número de professores que sofreram
processos disciplinares no período (CASTANHA, 2013, p. 143-144).
As regras eram ainda mais severas para as mulheres que pretendiam entrar no magistério. Vejamos
novamente o que nos dizem os autores. Primeiro José Gondra e Alessandra Schueler e logo a seguir,
ouviremos André Paulo Castanha.
Para as mulheres, havia exigências reveladoras das relações sociais entre os sexos. No
caso das moças solteiras, era necessário a apresentação de autorização paterna ou de outro
responsável para que se candidatassem a uma vaga como professora adjunta ou efetiva
das escolas públicas de meninas. Se fosse casada, a candidata deveria apresentar a devida
autorização marital para dirigir casa de escola e lecionar; se fosse viúva, o atestado de
óbito do marido. Quando separada, segundo as normas eclesiásticas, deveria apresentar a
certidão do pároco (GONDRA e SCHUELER, 2007, p.176).
André Paulo Castanha concorda com os autores da citação feita anteriormente, e apresenta as
permanências no processo de seleção de professores públicos e particulares, proposto na reforma Couto
Ferraz de 1854.
Para as mulheres, o ingresso era ainda mais difícil. Além de apresentar as mesmas certidões
exigidas para os homens, tinham de ter a autorização do marido ou do pai. No caso de
viúva, a certidão de óbito e, se vivesse separada do marido, teria de apresentar a sentença
do juiz que lhe eximia a culpa. Certamente, pouquíssimas mulheres divorciadas chegaram a
exercer a profissão de professora pública no período. A lei não trata desse aspecto, mas caso
alguma tenha sido provavelmente teve de escolher entre casar-se novamente e permanecer
professora, pois, pelos padrões morais da época, era inadmissível, que uma mulher que não
fosse casada legalmente pela igreja pudesse ser professora (CASTANHA, 2013, p.144).
Com o exposto acima, percebemos que a moralidade era uma exigência de maior peso do que a
capacidade intelectual dos professores. As exigências apresentadas nas letras da lei são construções sociais,
que apresentam o que a sociedade esperava dos indivíduos, que se candidatem ao cargo de professor.
As regras impostas pelo estado apresentam também a violência inerente ao processo de formação do
magistério. Esses dispositivos indicam também a força coercitiva do Estado, eles buscavam moldar as
diversas carreiras, a educação não poderia estar fora da ação normativa do mesmo.
Todavia, não sejamos tão crédulos nos dispositivos legais brasileiros, pensando que eles eram cumpridos
conforme determinam as disposições normativas. Silva (2000) nos apresenta um caso paradigmático, o do professor
Pretextato dos Passos e Silva, que não querendo se submeter aos rigores do concurso para continuar a exercer o
magistério encaminhou um abaixo assinado dos responsáveis dos alunos, demonstrando que a sua moralidade e
capacidade podiam ser medidos através dos serviços educacionais que prestava aos meninos pretos da Corte do Rio
de Janeiro.
Mesmo com todas as exigências, as mulheres requisitavam concursos públicos para o cargo de
professora. Roberta Guimarães em seu livro - Mulheres precursoras na educação: história de professoras
e professores primários na capital do império. A partir dos periódicos, apresentam a luta das mulheres,
para ampliar seu espaço de atuação. Elas entre outras coisas, reivindicavam a maternidade e também o
magistério. O jornal era uma arma usada pro elas para denunciar o favorecimento de homens em concursos
públicos, e também um espaço de escrita de si, de seus sonhos e lutas por direitos políticos.
André Paulo Castanha nos diz que o magistério não era um carreira atraente economicamente.
Contudo, o que atraiu Ataliba Gomes Coelho filho de fazendeiros, casado com filhas de fazendeiros a
escolhe RO magistério como profissão e não ter escolhido administrar as terras da família? Quem nos ajuda
a pensar uma possível resposta é José Luis Petruccelli, com a palavra o autor:
O irmão de Ataliba e de Maria Cândida, Waldomiro, nascido em 1891, se declara como
negociante no momento do nascimento do seu filho Amandio, em 1924, os outros dois
irmãos, Octavio e Malvino, nascidos em 1890 e 1893, só são encontrados nos registros
de nascimentos. A propriedade familiar deve ter desaparecido desde o início do século.
(PETRUCELLI, 1998, p.1210).
O empobrecimento causado pela crise do café em 1888, pode nos ajudar a compreender as razões
que levaram Ataliba Gomes Coelho a escolher a carreira de funcionário publico. A sociedade vassourense
passava por uma mudança, as atividades agrícolas em declínio forçavam os indivíduos a novas ocupações,
a de professor público era uma delas. No concurso promovido no dia cinco de maio de mil oitocentos e
noventa, Ataliba Gomes Coelho e João Pedro Teixeira Coelho Junior foram aprovados, os mesmos não
permaneceram no magistério por muitos anos.
Consta no documento anotações feitas na parte inferior, dizendo que o pedido do professor João Pedro Teixeira
Junior foi atendido. Ele agradece a confiança depositada, comunica que fechou a escola sob sua responsabilidade na
localidade conhecida como Lagoinha, entregando o imóvel alugado ao seu proprietário. Aproveita o ensejo para pedir
o pagamento de um e mais dez dias. Enquanto que Ataliba Gomes Coelho, encaminhou pedido a Câmara Municipal
de objetos escolares. Vejamos o que foi que ele pediu.
Ataliba seguiu o seu caminho docente solicitando que as autoridades competentes breves em enviar
os materias para a escola. Ele também era pontual no envio dos Mapas de frequência escolar, nos mesmos
encontramos alunos, que ao lado do seu nome o professor anotara a designação – Libertos. Esse mapa nos
ajuda aprovar a presença de crianças negras ou pardas nas escolas públicas de Vassouras juntamente com as
crianças brancas e pobres. Isso nos leva a pensar que, a Escola de Primeiras Letras não era tão excludente
como os autores da historiografia da educação gostam de pensar. Falta escola para todos no interior da
província. O analfabetismo impedia a participação política, dessa maneira deveria ser combatido ou o curral
eleitoral estaria comprometido. Os mecanismos de exclusão dos negros da escola possuem raízes mais
sutis, as mesmas os empurravam para o mundo do trabalho com pouco escolaridade, novamente de volta
ao eito com a enxada nas mãos.
Considerações Finais
Lucien Febvre nos convida a conhecer os indivíduos, retirando das massas anônimas, aqueles que
entraram na História sem nada dizer. Entendemos que essa tarefa exige do historiador cautela e também
faro de pesquisa para encontrar as fontes documentais, que permitam recuperar trajetórias individuais que
não sejam dos grandes homens. Isso nos coloca um grande desafio – fazer a História Vista de Baixo,
olhando por outro ângulo, por vezes desconfortáveis e até mesmo escorregadios.
Em nosso sociedade há um dito popular que diz que devemos dar nome aos bois ,buscando conhecer
e distinguir os animais. Pensamos nesse pensamento corrente em nossa sociedade, pois ele reflete a tensão
entre a multidão e o individuo, presente no momento que optamos por escrever a história de uma pessoa ou
de um grupo.Como poderiam nos deixar imersos no anonimato professores que contribuíram para a escrita
da História da Educação do Negro no Brasil.
Ataliba Gomes Coelho foi um desses professores que educou crianças negras numa área, numa
área onde pesava a escravidão. Em dias tortuosos, que as terras davam sinais de exaustão e a crise do café
obrigava aos antigos donos e seus descendentes a buscar novas ocupações, ele foi um indivíduo que viveu
essas contradições. Ao buscar novos caminhos para a sua história abriu as portas da escola a meninos que
poderiam estar fora dela.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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EIXO 1: PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
CONVERSA COMO PROCEDIMENTO METODOLÓGICO NA PESQUISA
Aline Gomes da Silva - Faculdade de Formação de Professores/UERJ eColégio de Aplicação do Instituto Nacional
de Educação de Surdos (CAP/INES).
aline.unirio@gmail.com
INICIANDO A CONVERSA
Esta comunicação se propõe a compartilhar reflexões em torno do que usualmente é chamado por“aspectos
metodológicos da pesquisa”. Trataremos, portanto, de um caminho, tal como o sentido etimológico da palavra método
nos convida a pensar. Neste sentido buscamos não esquecer que, como afirma o poetaAntonio Machado (1997) “Se
hacecaminoal andar.”
Desta forma, temos compreendido metodologia de pesquisa não nos filiando a certa tradição teórico-
epistemológica que a vê como um conjunto de passos rígidos a seguir, definidos a priori, de natureza pautada na
objetividade e controle.
A emergência da temática metodológica no campo da pesquisa, se por um lado amplia os modos de fazer
investigação, trazendo práticas não dominantes para a cena, revelando outras possibilidades menos cerradas de
investigar, por outro lado põem em questão as exigências de validação ancorada em princípios e critérios naturalizados
e universais.
O método de investigação como um caminho que produz e conduz a ordem, calma, segurança, é, no dizer de
Najmanovich uma ilusão (2003, p.31)
Neste sentido, apoiadas em autores como Larrosa, Skliar, Maturana, dentre outros, poremos em discussão a
ideia da conversa na pesquisa em educação, tratando menos de conceitualizá-la e mais de discutir como essa prática
tem nos afetado, nos ajudado a complexificar modelos de pensar os sujeitos, suas experiências, a relação entre
“pesquisador/pesquisado”, e demais aspectos ligados à nossa investigação nas ciências humanas. Em meio a tudo
isso, compartilharemos algumas ideias que tem nos provocado, sejam elas surgidas a partir de nosso diálogo com
alguns textos e autores, sejam elas resultado de nossas próprias sínteses, a partir da experiência na pesquisa, com as
professoras com as quais conversamos.
Não queremos com este trabalho defender a conversa como uma nova panaceia, um procedimento que
romperia com todos os demais modos de compreender e praticar a pesquisa, criando uma ruptura e absolutamente
coerente e coesa e resolvendo todos os dilemas referentes a pesquisa. Pensar e viver a conversa como caminho é uma
possibilidade: a que temos buscado viver. Mas certamente não é a única nem a melhor. E nem a derradeira.
Desafiar-nos viver a conversa em nossas investigações nos obrigou a sair da zona de conforto teórico que os
procedimentos que até então abraçávamos, nos davam. Possibilitou-nospensar em temas e aspectos indisciplinados.
Conversar, por ser um processo relacional, provoca (a quem se permite, claro) reflexões do ponto de vista
epistemológico e metodológico. Em nós, provocou.
Neste texto, trazemos reflexões nascidas no interior de uma pesquisa já concluída realizada junto ao Programa
de Mestrado em Educação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores
da UERJ. O ponto final e sua apresentação como finalizada, porém, não teve a força de cessar em nós a conversa
sobre a conversa.
A partir de conversas que ocorreram durante o ano de 2013, tematizamos com um grupo de oito
professoravinculadas a um mesmo espaço coletivo de formação continuada,grupo do qual integramos, suas histórias
de vida e experiências formativas.
A opção pela conversa como ferramenta de investigação trouxe inúmeros desafios, tanto para nós, que
figurávamos como pesquisadoras, quanto para as professoras participantes. Um deles se refere a possibilidade dos
sujeitos investigados encontrarem em suas histórias de vida saberes e experiênciasainda não percebidos ou não
valorizados e, neste movimento, poderem ressignificar histórias e trajetórias. Outro aspecto foi o de possibilitar
pensarmos sobre aspectos pertinentes à conversa como procedimento metodológico, analisando as referencias
teóricas que o sustentam. Ainda nos ajudou a refletir sobre os desafios, limites e possibilidades de uma investigação
que se pretende mais humana, mais implicada e menos neutra.
Neste trabalho, além de tratar das questões já apontadas, compartilharemos extratos de algumas narrativas
docentes que revelam o rico movimento que emerge nas conversas.
CONTINUANDO A CONVERSA
Na tentativa de responder questõessuleadoras e não norteadoras de nossa pesquisa, como convida Freire
(2011), assumimos a conversa como a própria metodologia (caminho) da pesquisa. Com ela temos tecido, sob diversos
fios, nossas ações investigativas. Sabemos que viver a conversa é um desafio e por isso não queremosinvisibilizara
complexidade desta opção: imprevisibilidade, limitações e contradições de uma metodologia que não está pronta a
priori, mas é tecida na relação dinâmica com os sujeitos da pesquisa.
Buscando sermos coerentes com os pressupostos assumidos neste trabalho investigativo, compreendemos
que as narrativas dos sujeitos não devem estar submetidas ao suposto controle do/a pesquisador/a. Neste sentido,
refutamos as perguntas fechadas e a busca por respostas concisas. Queremos provocar e sermos provocadas por uma
boa conversa e, neste processo de rememorações, reflexões, ressignificações e diálogos, permitir-nos sermos tocada
no intercâmbio com o outro. Logo, não se trata de uma metodologia com vistas acoleta de dados. Trata-se de viver a
conversa como umacontecimento (LARROSA, 2002).
A conversa abre um horizonte de possibilidades (BAKHTIN, 2000) que somente uma leitura interessada
pelo o que o outro tem a dizer, nos permite. Conversar permite descobrir as insignificâncias (do mundo e as nossas),
como diria o poeta Manoel de Barros (2010), e fazer delas histórias que merecem ser lembradas, contadas e, de algum
modo, perpetuadas na história.
A conversa é uma experiência narrativa. Nela, a complexidade e o imprevisível habitam, pois não se sabe
aonde a conversa vai chegar: Será que se chega a algum lugar? Quem define o término (ou a pausa) da conversa?
Não prevemos (talvez suponhamos.) o caminho da conversa. É uma incógnita o que o outro vai dizer, omitir, revelar.
Também o é nossa reação diante do que ouvimos.
Na conversa, o dizer do outro é tão legitimo quanto o nosso(MATURANA, 2001). Conversar não produz,
necessariamente, ausência de tensões mas, em muitos casos, discordâncias, conflitos, incompreensões, mal entendidos.
Conversar, porém, aponta e reafirma o desejo e a disponibilidade para falar, ouvir e ser ouvido com/pelo
outro e, neste movimento, reconhecermo-nos como sujeitos da experiência. Segundo Larrosa (2002, p.24) o sujeito
da experiência “se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua recepção, por sua disponibilidade,
por sua abertura” - ações indispensáveis para viver os acontecimentos que a conversa possibilita.
Defendemos que os sujeitos da experiência,em nossa investigação as professoras alfabetizadoras, sejam
ouvidas em sua experiência, em seu dizer, em sua história e também (e porque não?) em suas possíveis contradições.
Por isso, buscamos tomar as narrativas, produzidas em meio às conversas, não como objetos de análise ou material
de interpretações, classificações e generalizações, criando uma contraposição ao nosso próprio dizer. Buscamos
estender a conversa (o que significa também o que dizemos ao outro), ampliando e problematizando conhecimentos
produzidos por meio das nossas experiências pessoais e coletivas.
Ao assumir a conversa como procedimento metodológico, tomamos como instrumentos empíricos as
gravações em vídeo, em áudio das conversas e as transcrições delas resultantes. Durante a pesquisa mais ampla
conversamos com oito professorasalfabetizadoras, como já explicitado, que aceitaram o convite para tecerem diálogos
a respeito de suas trajetórias profissionais e formativas.
Inicialmente vivemos dificuldades em marcar os encontros devido aos muitos compromissos cotidianos de
cada professora. No caminhar da investigação, necessitamos de outros encontros, a fim de ampliar algumas discussões.
A conversa, emboranos atraia, também nos trai, pois tem as suas limitações, especialmente relativas ao tempo e à
disponibilidade que temos para os encontros.
Temos nos desafiado a tecer um diálogo em contraposição a modelos mais tradicionais de entrevista e
viver a conversa como acontecimento(LARROSA, 2002).Acontecimento porque não programamos de antemão as
respostas que queremos “colher” dos sujeitos da pesquisa. Acontecimento porque não temos um objetivo único
a ser alcançado, mas temos uma multiplicidade de interesses sobre o que o outro tem a dizer. Interesses sobre os
quais nem nós mesmas, muitas vezes, temos o controle. Acontecimento porque as conversas só foram possíveis
mediante a disponibilidade dos sujeitos da pesquisa, acontecendo nas brechas do tempo devido à impossibilidade de
ser planejada com antecedência.
Os encontros foram realizados, em sua maioria, por combinações feitas por telefonemas muitas vezes
imprevistos:
As conversas aconteceram em espaçostempos ordinários (CERTEAU, 1996): uma sala de aula barulhenta; uma
livraria movimentada; no corredor de uma universidade fechada em véspera de feriado; na residência desconhecida
de uma professora em um dia chuvoso; de modo fragmentar em 15 minutos de intervalo após o almoço, após uma
grande passeata nas ruas do Centro do Rio de Janeiro ou literalmente trancadas em uma sala de aula sem maçaneta.
Talvez, esses acontecimentos fossem considerados, por determinadas pesquisas, impróprios à legitimação de
uma “boa coleta de dados”. No entanto, para nós que temos aprendido a reconhecer acomplexidade (MORIN, 2005)
constitutiva do cotidiano, onde “muitas coisas acontecem, mas poucas nos acontecem”(LARROSA, 2005), nos faz
ver, nesses acontecimentos adversos, possibilidades de viver experiências formativas através do encontro com o
outro.
A gente queria poder conversar com alguém sobre aquilo que a gente faz na escola. A gente
buscou por isso. E a pós-graduação estava acabando. Daí veio a ideia de a gente continuar.
E assim surgiu a ideia do GEPPAN.(Kátia Moreira, 2013)
Talvez mais certo fosse perguntar: por que não a conversa como procedimento metodológico? O desejo de
conversar apontado por Kátia nos revela uma pista importante sobre o desejo de um grupo de professoras: conversar
com alguém sobre aquilo que a gente faz na escola. Vemos neste dizer um anúncio e uma denúncia sobre a necessidade
de falar. Anúncio porque reivindica ao mesmo tempo em que revela um movimento de busca por um espaço onde seja
possível falar de suas práticas na escola. E denúncia porque seu dizer marca um movimento de busca por espaços de
conversações os quais não estão dados. Seria então preciso instituí-los?
Kátia não reclama uma conversa qualquer, ou aquelas tantas outras conversas que tomam, no dito popular,
um sentido depreciativo, banal: conversa fiada, jogar conversa fora, conversa mole, conversa que não leva a lugar
algum. Ela é enfática: quer conversar sobre o vivido na escola. Mas, ela não tem oportunidades de conversar?Necessita
buscar por isso? Acaso não se conversa na escola sobre o que nela se faz? Não são sobre a escola as discussões
teóricas realizadas nos cursos acadêmicos que se dedicam a formar professoras/es? Os inúmeros projetos e cursos de
formação continuada “oferecidos” aos professores/as visando ao aperfeiçoamento de suas práticas, não contemplam
o desejo docente de conversar sobre o que se faz na escola?
Pensamos que o desejo manifesto de Kátia reflete o também denunciado por Larrosa (2011):
Necessitamos de uma linguagem para a conversa. Não para o debate ou para a discussão, ou
para o diálogo, mas para a conversa. Não para participar legitimamente nessas enormes redes de
comunicação e intercâmbio cuja linguagem não pode ser a nossa, mas para ver até que ponto ainda
somos capazes de falar-nos, de compartilhar o que pensamos ou o que nos faz pensar, de elaborar
com outros o sentido ou o sem sentido do que nos acontece, de tratar de dizer o que ainda não
sabemos dizer e de tratar de escutar o que ainda não compreendemos. Necessitamos de uma língua
para a conversa como um modo de resistir ao alheamento da linguagem produzido por essa língua
neutra na qual se articulam os discursos científico-técnicos, por essa língua moralizante na qual se
articulam os discursos críticos, e, sobretudo, por essa língua sem ninguém dentro e sem nada dentro
que pretende não ser outra coisa além de um instrumento de comunicação. (LARROSA, 2005 apud
SKLIAR, 2011, p.29).
Compreendo, no dizer de Larrosa, que a linguagem com a qual temos historicamente nos acostumado é
fruto de certa “dificuldade ou impossibilidade de conversas em educação.” Na medida em que temos reproduzido
linguagens alheias a nós, quantas vezes caímos na armadilha de falarmos, por exemplo, sobre um cotidiano escolar
à luz de teorias que não nos representa?... O fracasso escolar é culpa do aluno. Ele é assim, pois sua família é
desestruturada. Este é o melhor método de alfabetização. Discursos muitas vezes vazios, mas que, por tantas vezes
repetidos, criam uma aura de verdade, comodiria Morais (2001).
Compreender que necessitamos de uma linguagem para a conversa e não para o debate ou para a discussão
nos impele a pensar numa linguagem que busque a horizontalidade das vozes, nos permita dizer o nosso próprio dizer
e não o que se espera ser dito (ou não dito), requer a circularidade da palavra em vez do monopólio dela por alguns.
Trata-se de apostar na conversa como uma possibilidade de produzir conhecimentos e desconhecimentos. Uma
linguagem que nos permita dizer de nossas vivências e experiências cotidianas em detrimento de uma linguagem
supostamente neutra e moldada pelos discursos científicos. Daí a crítica feita por Benjamin (1996): com o advento
da modernidade, uma nova forma de comunicação emergiu: a informação, tornando rara a faculdade de intercambiar
experiências, “pois a cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias
surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações”(p.203).
Nesse sentido, o dizer de Kátia parece-nos dialogar com o dos autores citados, pois todos nos chamam a
atenção à necessidade de conversar/narrar aquilo que nos acontece e, pois, construir sentidos para além de meras
informações.
Não à toa, assumimos cada encontro com os sujeitos da pesquisa como acontecimento, buscando desta
forma uma nova linguagem, a qual se desprendesse de discursos engessados, técnicos e/ou teóricos, os quais pouco
mostravam o dizer das professoras. Assim, temos nos desafiado a conversar mais, a experienciar mais, apostando na
possibilidade de que essa linguagem nos habite, nos afete, nos aproxime.
Ao eleger a conversa como procedimento metodológico, todavia, não ignoramos o fato de que nem sempre
esta se dá de modo harmonioso. Na conversa também pode haver tensões, “dissonâncias, desentendimentos,
incompreensões, afonias, impossibilidades, perdas de argumentos, tempos desiguais, perguntas de um lado apenas,
respostas que não chegam.” (SKLIAR, 2011, p.28). Contudo, por não esquivar-nos da complexidade constitutiva
desta relação, compreendemos a conversa como uma linguagem potencialmente formativa, na medida em que o
sujeito se abre para viver essa experiência narrativa.
Flávia Castilho (2013), professora participante do coletivo docente investigado, diz somos um grupo de
pessoas que está disponível à conversa. Algumas não tanto. A maior parte nem sabe que está disponível. Cremos
não haver possibilidade de conversa quando os sujeitos nela envolvidos não a querem. Há que se ter abertura,
disponibilidade, permitir-se ser lido pelo outro, indagado, assim como ler o outro, indagá-lo. Isso não significa
dizer que a conversa assume o status de procedimento metodológico eficaz, consciente, compreensivo, capaz de ser
avaliado. Também não significa ser a conversa um procedimento metodológico apenas, porém uma opção política em
virtude da assunção da horizontalidade como constitutiva da ação investigativa realizada.
Sendo assim, buscamos compreender a conversa tal como Skliar (2011, p.29): “conversar, talvez, sobre o
que fazemos, sobre o que nos passa naquilo que fazemos, sobre essas‘terceiras outras coisas’ das quais se constitui e
configura o ato de educar”.
CONVERSAS FINAIS
Ouvir as professoras tem nos permitido desconfiar da afirmação contundente de Benjamin (1996)
de que “a arte de narrar” esteja “em vias de extinção”, como tantos acreditam. Ao assumirem literalmente
o dizer de Benjamin (1996), nem sempre se dão conta do contexto histórico e político no qual vivia o
autor ao fazer essa afirmação - um contexto de pós-guerra onde “os combatentes voltavam mudos do
campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”(p.198), visto o quão
desmoralizantes eram as estratégias de guerra.
Por isso vemos a pertinência de não mais conceber no diálogo com Benjamin a narrativa como
algo em extinção. Preferimos pensar a arte de narrar produzida como experiência(LAROSSA, 2005), mas
também como informação, querida e também rechaçada, silenciada e compartilhada, a depender de quem
a pratica.
Ao crer na extinção da narrativa, Benjamin (1996) nos fala de dois grupos arcaicos que se destacam
na arte narrativa: “o camponês sedentário”, que, ao fixar-se em sua terra, cria raízes, aprofunda o seu
conhecimento sobre as histórias e as tradições do lugar em que vive; e “o marinheiro comerciante” que,
vindo de terras distantes, conhece diferentes lugares e culturas, vive múltiplas experiências e, por isso,
retorna à sua terra tendo muitas histórias a narrar.
Embora as contribuições de Benjamin (1996) sejam importantes para pensarmos nas características do
narrador como sujeito dotado de experiência, o autor, como sujeito de sua época e do seu contexto histórico, nos
fornece pistas que nos fazem perceber a sociedade machista da época, ao trazer nesses dois grupos de narradores
figuras essencialmente masculinas. Então, somos provocadas a pensar: não teriam também as mulheres tecelãs
experiências a narrar? Ou as mulheres cujos cuidados domésticos e da criação dos filhos e das filhas também não
demandava certa experiência passada de geração a geração?
Se para preservar as histórias há que se narrar para salvá-la do esquecimento, vemos, no conto persa das Mil e
Uma Noites1, a personagem mítica de Xerazade, uma mulher que se fez heroína ao ver na narrativa a possibilidade de
salvação. Conta a história, na versão de René Khawam (1991), que Xerazade, para enfrentar a ameaça de extermínio
pelo rei Xeriar – o qual, traído por sua esposa, planeja matar todas as mulheres com quem se casa, ainda na noite de
núpcias, a fim de não ser mais traído -, casa-se com ele. E é por meio da ajuda de sua irmã, Duniazade, queXerazade
consegue vencer a morte, quando, a cada noite, ela surge pedindo-lhe que conte mais uma história. Através desta
1 O conto das “Mil e uma Noites”, segundo Daisy Wajnberg (1997) é uma obra de natureza oral e escrita, compilada a partir do
século X e adaptado pelos árabes entre os séculos XI-XVII. Daí a impossibilidade de atribuir a autoria do conto original a um
autor específico, assim como determinar a data precisa de sua primeira publicação. Contudo, a história aqui narrada é baseada
na versão de KHAWAM, René. As mil e uma noites: damas insignes e servidoras galantes. São Paulo: Brasiliense, 1991.
tática, o rei mantém-se interessado na continuidade da narrativa, desistindo de ordenar a morte da esposa, Xerazade,
a cada manhã, pois foi seduzido por suas histórias. Assim, ao fazer uma apreciação deste conto, Kramer (1999)
aproxima a história de Xerazade a de tantas professoras que encontram, na narrativa, forças para vencer o fracasso
escolar, concluindo que:
O rei simboliza nesse contexto o fracasso da escola; Duniazade representa as crianças que dão à
professora-Xerazade a chance de manter-se viva: o trunfo de Xerazade e a razão de seu triunfo
é a narrativa, possibilidade de contar e de fazer história e não simplesmente esperar a morte. Ser
professora-Xerazade significa superar a ameaça do fracasso e se tornar narradora. Dizer que a
professora é Xerazade é dizer que a prática de sala de aula é uma prática de narrativa. (KRAMER,
1999, p.130).
Assim, tal qual a figura da Xerazade, também nós professoras, em nossas trajetórias profissionais, temos
histórias para narrar/compartilhar. Histórias que se assemelham a de Xerazade, porque são marcadas por lutas e
enfrentamentos contra o fracasso escolar. Histórias que, sendo inventadas e reinventadas a cada dia, mostram o
inconformismo das professoras com o anúncio do derradeiro final: a repetência, a evasão, o analfabetismo.
As histórias docentes revelam não estarem às professoras de todo reféns de certa crise educacional. Algumas
das histórias vividas e narradas por professoras durante a pesquisa mostram as tantas lutasque cada uma viveu
e vive pelo direito de seus alunos/as terem uma educação de qualidade. As histórias docentes experienciadas e
compartilhadas durante a pesquisa despertamem nós o interesse e a curiosidade por vivermos outras formas de
ensinaraprender. São histórias como as contadas ao rei Xeriar, as quais, ao serem narradas, mobilizaram energias de
vida, de renovação, de transformação.
Desta forma, reconhecemos, por meio de Connelly e Clandinin (1995, p.11), que“nós - os seres humanos
- somos organismos contadores de histórias, organismos que, individual e socialmente, vivemos vidas relatáveis.”
Reconhecemos também que na docência narramos, com grande ou pequena intensidade, histórias de fracassos, de
solidão, de medo ou frustrações. Mas, é igualmente no cotidiano escolar que somos alimentadas por histórias de
sucesso, solidariedade e emancipação. Se “otriunfo de Xerazade e a razão de seu triunfo é a narrativa”(KRAMER,1999,
p.130), seria esse também o triunfo das professoras que lutam diariamente contra o suposto império do fracasso
escolar?
Talvez, tenha sido essa a aposta feita por algumas professoras alfabetizadoras, que compreendemos como
Xerazades, mas que atendem por outros nomes. Essas professoras se desafiam a serem protagonistas e autoras das
histórias vividas, produzidas e narradas. Suas histórias de formação têm diferentes origens, mas também pontos de
encontro que as entrelaçam.
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formação continuada. 2014. 155 f. Dissertação (Mestrado em Processos Formativos e Desigualdades Sociais) -
Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo,
2014.
CASTILHO, Flávia Ferreira de. Conversa com Aline Gomes da Silva e Jacqueline de Fátima dos Santos Morais. Rio
de Janeiro, 27 mar. 2013. 1 arquivo MP3 (131 min).
MOREIRA, Kátia Ferreira. Conversa comAline Gomes da Silva e Jacqueline de Fátima dos Santos Morais. São
Gonçalo, 26 abr. 2013. 1 arquivo MP3 (16 min).
EIXO 1 - PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
PESQUISA NARRATIVA E FORMAÇÃO DOCENTE:
ANÁLISE DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO EM EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO FÍSICA
(2000 A 2013)
O trabalho se configura como análise descritiva sobre a produção do conhecimento em pesquisa narrativa
e formação docente, com intuito de compreender o lugar que a temática vem ocupando no campo da
Educação e da Educação Física. Para tanto, problematizamos: de que maneira a produção sobre narrativas
tem ganhado espaços no debate? Que possibilidades os estudos com narrativas tem sinalizado para as
pesquisas sobre formação docente? O trabalho mapeou e descreveu a materialidade e os pressupostos
teórico-metodológicos dos estudos tendo como fontes: os anais da Associação Nacional de Pesquisa em
Educação (2000-2013) em todos os grupos temáticos e os trabalhos encomendados nos Encontros Nacionais
de Didática e Prática de Ensino (2000-2013) que se materializaram em livros. No campo da educação física
os anais do Colégio Brasileiro de Ciência do Esporte (2000-2013). O mapeamento identificou um total
de 107 trabalhos na educação. Os resultados sinalizam que o movimento de pesquisas com narrativas
docentes vem ganhando espaços de discussões, principalmente para área da formação docente. Todavia,
também houve pesquisas com narrativa no campo do Currículo e História da Educação. Em relação aos
lugares privilegiados pelas pesquisas narrativas, constatou-se o maior quantitativo na temática formação
continuada/processos formativos no ensino fundamental. Identificamos uma predominância de trabalhos na
perspectiva de pesquisa-formação na abordagem narrativa (auto)biográfica experencial. Todavia, houve um
quantitativo considerável de trabalhos no diálogo estudos com o cotidiano escolar. No contexto da Educação
Física, a produção com narrativas de formação docente ainda parece tímida se considerarmos o todo que se
enuncia nas fontes, totalizando 27 trabalhos. A maioria investiga formação continuada, tomando a narrativa
como fonte, produzida por entrevista, para compreender formação profissional.
INTRODUÇÃO
Este estudo apresenta reflexões sobre a pesquisa narrativa no campo da formação docente em Educação
e Educação Física, em uma análise da produção no período de 2000 a 2013. Para tal, investigamos a
textualidade de trabalhos nos anais dos Encontros da Associação Nacional de Pesquisa em Educação em
todos os grupos temáticos e os trabalhos encomendados para os Encontros Nacionais de Didática e Prática
de Ensino que se materializaram em livros. Na área da Educação Física, tomamos como referência os anais
do Colégio Brasileiro de Ciência do Esporte.
Os trabalhos de análise de conhecimento já concluídos acerca de pesquisa narrativa no campo da
Educação (BUENO et al., 2006; SOUZA; CATANI, 2008; VIEIRA; FERREIRA NETO, 2012) sinalizam
um crescente movimento de estudos que analisam as múltiplas formas de experiência docente, em uma
dimensão (auto)formadora, tanto para quem pesquisa com ela, quanto para o pesquisado (SOUZA, 2008).
No campo da Educação Física, o mapeamento da pesquisa narrativa em formação docente
(WITTIZORECK et al., 2006; VENTORIM et al., 2010; VIEIRA; FERREIRA NETO, 2012) sinaliza uma
tímida produção de estudos que dialogam com a formação do professor, dando vez ao pesquisado de narrar
suas experiências docentes, na perspectiva (auto)biográfica de investigação-formação.
André (2009) identifica que estudos intitulados “Estado da arte” fornecem informações qualitativas
e quantitativas aos pesquisadores, no intuito de apontar tanto os pontos fortes quanto suas fragilidades e,
com isso, possibilidades para aquilo que precise ser aperfeiçoado. Assim, objetivamos, neste texto, discutir
e atualizar o debate de pesquisa narrativa e formação docente, procurando identificar possíveis lacunas e
avanços dos pesquisadores da temática.
METODOLOGIA
A análise da produção acadêmica, na temática narrativa e formação de professores, foi organizada
em dois momentos: no primeiro, identificamos o movimento de pesquisa com narrativas no período de
2000-2013, no campo da Educação e da Educação Física, procurando identificar quais foram os níveis de
ensino em que os estudos mais optaram por desenvolver suas pesquisas e suas contribuições ao debate da
formação docente; no segundo momento, analisamos como esses movimentos de pesquisas se dedicaram,
especialmente, ao debate da formação continuada.
No contexto da Anped, optamos pela escolha dos trabalhos apresentados em 18 Grupos Temáticos
(GTs) em seus encontros anuais, por compreendê-los como espaço de maior diversidade/circularidade de
produções, podendo nos indicar pistas na temática a ser mapeada. Esses GTs foram: História da Educação;
Movimentos Sociais, Sujeitos e Processos Educativos; Didática; Educação Popular; Educação de Crianças
de Zero a Seis Anos; Formação de Professores; Trabalho e Educação; Alfabetização, Leitura e Escrita; Cur-
rículo; Educação Fundamental; Educação Especial; Educação e Comunicação; Educação de Pessoas Jovens
e Adultas; Educação Matemática; Educação e Relações Étnico-Raciais; Educação Ambiental; Gênero, Se-
xualidade e Educação; e Educação e Arte.1
Nos encontros dos Endipes, priorizamos o mapeamento pelos trabalhos encomendados dos seminá-
rios, que se materializaram em livros impressos e digitais, tornando-se mais acessíveis e com maior visi-
bilidade, comparados com os apresentados nos CD-ROMs de aquisição mais limitada, disponíveis apenas
aos congressistas.
Os estudos com narrativa de história de vida, memórias e experiências docentes trazem contribuições
de dois movimentos demarcados historicamente: um no âmbito europeu e outro no continente americano.
Neste, os autores canadenses, Michael Connelly e Jean Clandinin, constituíram uma teoria na pesquisa
educacional que sustenta os docentes como contadores de histórias que, individual e socialmente, levam
vidas estratificadas. Assim, defendem a investigação narrativa como estudo dos modos humanos que
experimentam o mundo (CONNELLY; CLANDININ,1995).
No âmbito europeu, os estudiosos da educação se apropriaram, em maioria, do debate da história
cultural e sinalizaram as biografias e autobiografias como percurso epistemológico, inicialmente em maior
uso nas pesquisas com história da educação. Concomitantemente a esse movimento de estudos históricos,
Antônio Nóvoa e Mathias Finger produzem a obra “Método (auto)biográfico”, em 1988, que direciona os
estudos da formação docente na perpespctiva (auto)biográfica. Em 1992, na obra “Vida de professores”,
trazem, em conjunto com outros autores, como Ivor Goodson e Michel Huberman, a discussão de diferentes
investigações por meio de histórias de vida.
No início da década de 1990, na Universidade de Genebra, um grupo de pesquisadores, constituído
por Gaston Pineau, Pierre Dominicé e Christine Marie Josso, evidencia três abordagens de estudos com
histórias de vida docente: “biografia”, como escrita da vida do outro; “biografia educativa”, a entrada na
vida educativa do sujeito; e “biografia formativa”, a compreensão pelos sujeitos de suas aprendizagens
experenciadas ao longo da vida.
Bueno et al. (2006) sinalizam em suas análises da produção do conhecimento em pesquisa narrativa
na educação, no período de 1985 a 2005, que a expressividade do movimento de estudos ganha maior
fôlego em meados da década de 1990. Uma das possíveis causas talvez esteja no fortalecimento de grupos
que se apropriaram de histórias de vida e narrativas em diversas entradas de estudos, tais como: história da
educação, formação docente e currículo.
Os autores ainda identificam que, a partir do no ano de 1994, com a criação do Grupo de Estudos
Docência, Memória e Gênero (Gedomge) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp),
coordenado pelas pesquisadoras Denice Catani e Belmira Bueno, houve um aumento do debate de pesquisa
narrativa em educação, pois a concepção de trabalho com autobiografias e histórias docentes aproximou-
se e constituiu uma rede de grupos cooperativos no Brasil, interligados, também, com os pesquisadores da
Universidade de Genebra – Gaston Pineau, Pierre Dominicé e Marie Christine Josso. A primeira década
de 2000 demonstra a organização e a constituição fortalecida desse movimento biográfico no Brasil, ao
criarem um evento de diálogo das produções nacionais com as internacionais pelo Congresso Internacional
sobre Pesquisa (Auto)biográfica (Cipa), realizado nos anos de 2004, 2006, 2008 e 2010.
Vieira e Ferreira Neto (2012) demonstram em suas análises da produção do conhecimento em
pesquisa narrativa na educação, que, além dos grupos que formam uma rede de estudos com o Gedomge,
na perspectiva de pesquisa (auto)biográfica, houve uma significativa produção com narrativas em trabalhos
de outra rede de grupos de pesquisas, conhecida como Estudos no/do/com os cotidianos. Desde meados
da década de 1980, a pesquisadora Nilda Alves (1986) busca discutir a formação inicial e continuada de
professores interligada com o cotidiano escolar, a partir de uma inversão metodológica em que quatro esferas
de formação estariam articuladas: a formação acadêmica, a ação governamental, a prática pedagógica e a
prática política. Essa articulação foi denominada tecido em redes, posteriormente chamada de currículo em
redes. Nessa concepção de formação, ficaria nítida a noção da formação de professores a partir da tessitura
de redes nos múltiplos contextos do cotidiano.
Souza (2012) em seu artigo “Outras Formas de Dizer: diálogos sobre pesquisa narrativa com Nilda
Alves” reconhece que os grupos intitulados Estudos com o Cotidiano constituem trabalhos na centralidade
da narrativa como dimensão de pesquisa. O autor identifica Nilda Alves como precursora desse movimento,
que toma como eixo de análise as experiências individuais e coletivas dos praticantes do cotidiano escolar,
por meio de narrativas orais, imagéticas e textuais.
No campo da Educação Física, os estudos, na abordagem da história de vida docente, como identificado
em mapeamento de Vieira e Ferreira Neto (2012), ainda são tímidos, e os poucos trabalhos encontram-
se na textualidade dos estudos de pós-graduação (WITTIZORECK, 2009; SULTIL, 2009), nos quais o
lugar ocupado pelo pesquisador-pesquisado ficou visível, quando, para o leitor, foram disponibilizados
os diálogos narrativos. A maioria dos trabalhos com narrativa utilizou pesquisa por investigação-narrativa
nos estudos dos ciclos de desenvolvimento profissional e identidade docente e os autores demonstram
descritivamente as narrativas de professores, no intuito de localizá-las em um dos momentos da carreira
construídos e sinalizados por Michel Huberman.
No diálogo com Bueno et al. (2006), ressaltamos a necessidade de, com a atualização do
mapeamento da produção em pesquisa narrativa em Educação e Educação Física, compreender se houve
avanços quantitativos e qualitativos das discussões sobre formação docente no alavancar para além de
lacunas que os autores sinalizavam em relação aos trabalhos produzidos até o ano de 2005, como: a) a
ausência de diálogo das pesquisas com as produções anteriores da área; b) os estudos autobiográficos
sinalizavam que, por si sós, podiam transformar professores e escolas; c) as análises estariam apenas
centradas na ação individual docente, não dando visibilidade à relação do sujeito com o coletivo que ele
pratica em que está inserido; d) as pesquisas levavam o leitor a chegar por si só a interpretações sem fim,
deixando pouco visíveis os diálogos com o docente, potencialidades e limites encontrados.
O mapeamento identifica, no período de 2000 a 2013, na área da educação, um total de 107 estudos
com pesquisa narrativa. Nos encontros da Anped, somam-se 58 pesquisas, e nos Endipes, 49 trabalhos,
conforme Gráfico 1.
Gráfico 1 – Distribuição de trabalhos por evento
Nos grupos temáticos pesquisados, anualmente, há, em média, 12 trabalhos apresentados por GT,
totalizando aproximadamente 240 estudos. Esses dados demonstram que as pesquisas com narrativas do-
centes na Anped correspondem a 24% do total apresentado. Nos Endipes, os textos encomendados a cada
encontro representam uma média de 219 trabalhos apresentados. No período mapeado, aqueles que discu-
tiam narrativas e formação docente constituíram 22% do total.
O Gráfico 2 demonstra o fluxo descontínuo de estudos com narrativas no período pesquisado, tanto
na Anped quanto nos Endipes. O ano de 2008 apresentou um número significativo de trabalhos com narra-
tivas docentes no Endipe. Uma das possíveis causas é a temática central discutida “Trajetórias e processos
de ensinar e aprender: lugares, memórias e culturas”. No período de 2011 a 2013, registrou-se um aumento
significativo, tendo destaque o elevado número de estudos em um único evento do Endipe, no ano de 2012,
o qual agrupou 25 trabalhos. Uma das possíveis causas estaria na localização do evento, cidade de Campi-
nas, Região Sudeste, onde diversos grupos de pesquisa que investigam narrativa docente, de universidades
localizadas em Estados próximos, apresentaram suas pesquisas.2
No geral, a Anped concentra o maior número de trabalhos com narrativas docentes do que os
2 As universidades que apresentaram mais de três estudos foram: UNICAMP, UERJ, UFMT, UFMS,
UNEB, UFF, UFSM e UFES. Todas essas instituições possuem grupos de pesquisa na linha de estudo pes-
quisa narrativa com investigações de pós-graduação.
Endipes. Os indícios estariam, primeiramente, na frequência anual do evento, tendo com isso um maior
número acumulado de estudos. Além disso, as pesquisas apresentadas nos grupos temáticos parecem
procurar um movimento de debate com seus estudos, na maioria, estudos de pós-graduação concluídos e/ou
ainda em andamento. Todavia, nota-se, a partir do ano de 2012, uma procura significativa de trabalhos com
narrativas apresentados no Endipe, com maior participação de estudos de pós-graduação, como descritos
pelos autores em seus resumos.
O mapeamento identificou, em linhas gerais, três tendências de investigação com narrativas
docentes: as pesquisas sobre processos de formação contínua do professor que já atua no cotidiano escolar;
trajetória dos futuros docentes em formação inicial; e a narrativa de currículos vividos/praticados na ação
docente. Os trabalhos com narrativas de formação continuada foram encontrados em maior número, com
40%. Os estudos com narrativa e currículo totalizaram 31% dos trabalhos apresentados. A formação inicial
de professores correspondeu a 22% das pesquisas com narrativas.
No Gráfico 3, visualizamos 43 (40%) estudos que se detiveram no objeto formação continuada. O
entendimento de formação foi delineado no diálogo com histórias de vida e experiências dos profissionais
que vão da escolha pela carreira até sua aposentadoria. Destes, 25 foram encontrados na Anped e 18 nos
Endipes.
Gráfico 3 ─ Os lugares da pesquisa narrativae formação docente
Assim, para melhor compreender os usos de aportes teóricos nos trabalhos mapeados e como
dialogam com eles para analisar a Formação Continuada docente, construímos categorias das apropriações
teórico-metodológicas dos estudos. Posteriormente, procedemos à leitura na íntegra dos textos mapeados.
Dessa maneira, foi possível criar as seguintes categorias: a) Narrativa por história de vida na
perspectiva biográfica e (auto)biográfica experencial: esta categoria agrupou dezesseis trabalhos; b)
Pesquisa por investigação narrativa, com seis pesquisas; c) Estudos no/do/com os cotidianos e narrati-
vas por redes de conversação, imagética e (auto)biográfica, com dez pesquisas; d) Pesquisa-narrativa
com história oral, com seis trabalhos; e) Pesquisa-narrativa e linguagem: dois estudos; f) outros, com
três pesquisas. O Quadro 1 a seguir traz os estudos em suas categorias, por autor, ano e evento mapeado.
Quadro 1 – Trabalhos mapeados e Instituições de Ensino
ÇA, I, F. Anped
UNEB MEIREL- 3 4 2011 Anais eletrônicos
LES, M. Anped
USP ACKER, M, 3 4 2011 Anais eletrônicos
T. et al Anped
Experencial
BOLZAN,
D, P.
UFPE ROSA, E, C. 3 4 2011 Anais eletrônicos
Anped
UFF PEREZ, C, 2 4 2001 Anais eletrônicos
L, V. Anped
2003 Anais eletrônicos
2 6
Anped 2012 Livros digitais
Estudos com os Cotidianos
XV En-
dipe
UERJ REIS, G, 3 5 2012 Anais eletrônicos
R, S. Anped
2013 Anais eletrônicos
3 6
Anped
UNICAMP FONTA- X I I I 2008 Livro impresso
NA, R Endipe
UERJ ALVES, N. X I I I 2008 Livro Impresso
Endipe
UERJ ARAUJO, XV En- 2012 Livro digital
M. dipe
UFES NUNES, K. XV En- 2012 Livro digital
dipe
UNICAMP RIGOTTI, XV En- 2012 Livro digital
G, F. dipe
UFU MESQUI- 2 3 2000 Anais eletrônicos
Narrativa por His-
TA, I, M. Anped
UFMG TEIXEIRA, XI En- 2004 Livro impresso
I, A. dipe
tória Oral
DES, I, L. dipe
Secretaria SOUZA XV En- 2012 Livro digital
Narrativa
Na pesquisa por investigação narrativa, os trabalhos, em sua maioria, aliaram o diálogo com
Clonnelly e Clandinin e, em menor quantidade, com Jovchelovitch e Bauer. A investigação narrativa per-
passa, principalmente, a pesquisa com os ciclos de desenvolvimento profissional, no diálogo com Michel
Huberman. São estudos que procuraram se utilizar da narrativa como método de pesquisa, possibilitando
ao pesquisador “capturar” experiências docentes nas histórias narradas, no sentido de descrever o ponto de
vista sobre determinados fatos e acontecimentos. Notamos uma diminuição de estudos nessa perspectiva
após o ano de 2010.
Na categoria pesquisa-narrativa por história oral, agrupamos os trabalhos que trouxeram diá-
logos com os estudos da Escola de Chicago, em especial, com Verena Albert; e, no Brasil, contam com as
contribuições de Ecléa Bosi e Maria Teresa Cunha. O objetivo desses trabalhos foi compreender a narrativa
como fonte para estudos de um determinado contexto/época da História da educação. A narrativa é inves-
tigada pela história oral narrada, além de fontes escritas (auto)biográficas, como cartas e diários pessoais.
Em Outros, agrupamos os trabalhos que estabeleceram diálogo com diferentes autores tanto com
uma das categorias acima, como com outras de pouca incidência, que não convinha agrupar entre os de-
mais. Aqui estão estudos que compreenderam narrativas no diálogo com Jorge Larrosa, Michel Foucault e
Antônio Bolívar. Todas as categorias com trabalhos mapeados estão sintetizadas no Quadro 1.
Entendemos que as categorias expostas não foram divergentes com relação à perspectiva de um
fazer ciência, no entendimento de colocar o docente no centro das pesquisas, no entanto os movimentos
teórico-metodológicos se diferem e parecem evidenciar os lugares próprios que os estudos optam em suas
artes de fazer e em seu contexto de circularidade acadêmica (CERTEAU, 1994, 2006).
No geral, as pesquisas com narrativa e formação continuada mapeadas demonstram um amadu-
recimento, tendo como pontos de análise o que Bueno (2006) apontou: houve um maior diálogo com tra-
balhos anteriores que estudaram a temática; em sua textualidade, os estudos não enunciam que a narrativa
docente seja uma maneira de transformar a educação por si só, todavia sinalizam a relevância de dar voz
aos professores, para que pesquisas acadêmicas promovam reflexões partindo da realidade de quem pratica
e constitui o cotidiano escolar. Os trabalhos mapeados também estão dando maior visibilidade textual às
narrativas coletadas. Observamos, entretanto, ainda como sinaliza Bueno (2006), que os trabalhos perma-
necem mais descritivos em suas análises, não discutindo relações entre o micro, que é a própria narrativa
docente, e o macro, que são contextos políticos da comunidade local e institucional que transversalizam as
práticas e formação docente.
Mapeamos um total de treze estudos com pesquisa narrativa em formação continuada docente de
Educação Física. Nos achados, apesar de permanecer tímida a produção nessa temática, observamos um ligeiro
aumento em 2009, com cinco pesquisas, e de 2011 e 2013 com três estudos em cada congresso. Nos grupos
temáticos dos Conbraces vêm se mantendo uma média de 300 trabalhos aprovados, nos últimos cinco
encontros. Os GTTs Formação Profissional e Escola, juntos, sinalizam 33,3 %, do total de estudos. Esses
dados demonstram que as pesquisas com narrativas e Educação Física no cotidiano escolar corresponderam
a um valor aproximado de 5% do total apresentado nesses dois grupos.
No que se refere aos níveis de ensino, as pesquisas com narrativa e formação continuada na Educação
Física demonstram uma predominância de trabalhos que investigaram o ensino fundamental, totalizando
nove estudos. O ensino superior agrupa três pesquisas. Um estudo pesquisou, ao mesmo tempo, docentes
no ensino fundamental e no ensino médio.
Ao analisarmos os caminhos teórico-metodológicos das pesquisas com narrativa e formação
continuada na área de Educação Física, observamos que algumas categorias se aproximam das do campo
da Educação, e outras aparecem apenas na Educação Física.
As categorias que se aproximam da Educação, são: Investigação Narrativa: com seis estudos, que
buscaram compreender ciclos de formação profissional, no diálogo com Michael Hubermman. Além desta,
a categoria Pesquisa Narrativa (auto)biográfica por abordagem experencial, na qual identificamos três
pesquisas. A Categoria Estudos com os cotidianos estão reunidas em duas pesquisas.
No que se refere às categorias que só aparecem no campo da Educação Física estão: A Narrativa
como fonte produzida em estudos etnográficos, e, Narrativas como Fonte de pesquisa-ação, com um
trabalho em cada uma. O Quadro 2 demonstra os estudos mapeados, seus diálogos teóricos e instituições
de origem.
Quadro 2 – Trabalhos mapeados na Educação Física e Instituições de Ensino
Na categoria estudos com os cotidianos, agrupamos o trabalho de Wiggers (2013) no qual propõe
narrativas de imagem em uma leitura cartográfica das práticas formativas docentes.
Na categoria narrativa como fonte produzida por pesquisa-ação nos estudos de formação docente,
foram agrupados os trabalhos que analisaram e propuseram ressignificações na prática curricular da aula
de Educação Física, por meio da pesquisa-ação colaborativa em iniciativas institucionais de formação con-
tinuada.
Salientamos que, apesar do quantitativo tímido de produções aqui mapeadas em pesquisa narrativa
e formação continuada de Educação Física, esse quadro não consubstancia que a temática não possa ter
um número maior de produções. No diálogo com os trabalhos de Vieira (2011) e Ventorim et al. (2010),
apontamos a presença de pesquisas narrativas em periódicos da área, além de teses e dissertações defendidas
nos programas de Pós-Graduação em Educação Física, no período de 2000-2010. Para esse texto, fizemos
um recorte das pesquisas publicadas nos anais do Conbrace. Indiciamos como tímida a discussão de
pesquisa narrativa e formação continuada nesse evento.3
Além disso, é preciso compreender que as pesquisas, na temática em Educação Física, indiciam uma
circularidade de suas produções em periódicos e congressos no campo maior da Educação. As possíveis
causas residiriam na proximidade com lugares que, nos últimos vinte anos, têm consolidado o debate da
pesquisa narrativa. Há necessidade de os pesquisadores buscarem espaços de publicação para além de
periódicos da Educação Física, pois devido à abrangência do campo em estudos realizados, também, em
outras áreas de atuação profissional, há uma redução espaços para trabalhos que dialogam com a escola e
a formação docente.4
Procuramos, com a análise da produção do conhecimento com narrativa e formação continuada na
Educação e na Educação Física, exercitar a ação de mais que olhar, reparar os estudos científicos, no intuito
de identificar os avanços e possibilidades da temática, neste caso, pesquisa narrativa e formação docente, e
assim não meramente cairmos em um modismo do fetiche que circula no meio acadêmico.
3 O estudo de Ventorim et al. (2010) mapeou, no período de 1990 -2010, um total de dez artigos
em pesquisa narrativa e formação docente em Educação Física. Vieira (2011) sinaliza, no período de 2000-
2010: uma tese e nove dissertações.
4 Vieira (2011), ao analisar os currículos lattes dos pesquisadores que produziram teses e disserta-
ções com pesquisa narrativa e formação continuada, identificou trabalhos dos autores em revistas de perió-
dicos da educação. Para maiores informações, ver Vieira (2011).
REFERÊNCIAS
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CIÊNCIAS DO ESPORTE, 17., 2011, Porto Alegre. Anais. Porto Alegre: CBCE, 2001. CD-ROM, GT5.
Neste trabalho apresentaremos uma discussão sobre as possibilidades e limitações do uso das narrativas
(auto)biográficas e da História Oral na constituição de fontes historiográficas em uma pesquisa de mestrado
que teve por objetivo compreender o Pibid na formação de professores a partir da perspectiva de ex-bolsistas
do curso de Licenciatura em Matemática da Unesp de Rio Claro. Pesquisa esta inserida nos interesses
do Grupo História Oral e Educação Matemática (GHOEM) que, desde 2011, vem mobilizando as (auto)
biografias em suas investigações. Optamos por adotar a “escrita de si” como modo de compor as versões
das ex-bolsistas e realizar entrevistas com duas pessoas envolvidas em tal Programa. Compreendendo as
narrativas como instrumentos do olhar para si, para a própria trajetória de vida, do refletir e (re)pensar
ações, da (auto)formação, constituímos com elas as fontes da pesquisa. Pudemos observar que, como fontes,
tanto as narrativas (auto)biográficas quanto as orais apresentam, em suas especificidades, possibilidades e
limitações. No trabalho com as (auto)biografias, estivemos sujeitas ao tempo das colaboradoras e notamos
que, diferente das narrativas orais (via entrevistas), a “escrita de si” exige do “narrador/autor”, tempo e
condições para reflexão e escrita e, como consequência, o tempo de contato com os colaboradores pode se
estender. Além disso, ao trabalhar (auto)biograficamente foi possível perceber aspectos das trajetórias de
vida que possivelmente contribuíram para o caminho trilhado, por exemplo, todas as colaboradoras tiveram
professores que as influenciaram (positiva ou negativamente). Outro aspecto detectado foi o de que, por
gerar emoções, a “escrita de si”, muitas vezes, leva o colaborador a distanciar-se da questão de pesquisa,
mas isso também está presente em narrativas orais. Em geral, ambos os tipos de narrativas são ricas em
detalhes e dados, possibilitando um leque de análise em diferentes frentes temáticas e perspectivas, porém,
as intenções de pesquisa é o que determinam o uso de uma ou outra.
Introdução
Trabalhar com narrativas elaboradas a partir da oralidade é um movimento que o Grupo História
Oral Educação Matemática (GHOEM) tem mobilizado por mais de dez anos em suas pesquisas sobre
formação de professores de Matemática e Educação Matemática. Recentemente, o grupo tem buscado
explorar “novos” caminhos a se trilhar com as narrativas e é, nesse contexto, que esta pesquisa está inserida.
Na última edição do Congresso Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica (V CIPA) realizado na
cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, tivemos a oportunidade de participar e compartilhar experiências
com diversos pesquisadores da área. Na ocasião, apresentamos um recorte da dissertação de mestrado1, na
época em desenvolvimento, a qual propunha o uso das narrativas (auto)biográficas como fonte legítimas
para a pesquisa.
Neste artigo, apresentaremos uma discussão sobre as possibilidades e limitações do uso das narrativas
(auto)biográficas e da História Oral na constituição de fontes historiográficas. Além disso, apresentaremos
uma, dentre cinco, das categorias analisadas, explicitando o modo como foi feita a análise já que concebemos
tais narrativas não somente como instrumento de formação e autoformação, mas também, e principalmente,
como fontes da pesquisa.
1 Trabalho desenvolvido por Ana Claudia Molina Zaqueu, sob orientação de Heloisa da Silva, junto
ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Unesp de Rio Claro, SP.
Essas tais narrativas
O que são narrativas afinal? Etimologicamente, a palavra origina-se do latim Narrare, ou seja,
contar, relatar, narrar. E foi, partindo desse significado, que pudemos compreender parte do trabalho
realizado pelo GHOEM. Em outras palavras, o Grupo tem por um de seus objetivos, mapear a formação de
professores de Matemática no país e para isso, dentre outras possibilidades, parte do relato oral, do contar
dos colaboradores para, assim, constituir uma versão da história.
Como membros do GHOEM, pretendíamos ampliar e explorar, acima de tudo, as possibilidades
e limitações de se trabalhar com diferentes gêneros narrativos no âmbito da pesquisa. Foi nesse instante,
que as leituras e discussões ocorridas no V CIPA fizeram sentido e contribuíram para que pudéssemos
aproximar o GHOEM das narrativas (auto)biográficas.
O trabalho narrativo realizado pelo GHOEM consiste, em poucas palavras, em coletar, “tratar” e
constituir fontes historiográficas. Para isso, são realizadas entrevistas com pessoas que podem contribuir
direta ou indiretamente com o objeto da pesquisa. As narrativas oriundas desse relato oral são fontes legítimas
para as pesquisa do Grupo. Cabe ressaltar que não defendemos a ideia de que as narrativas são fontes
melhores ou piores do que documentos, imagens, dentre outras, mas que corroboram uma forma distinta de
se constituir uma história. Tal distinção, enfatizamos, caracteriza-se pela possibilidade de compreendermos,
por meio das narrativas, expectativas, encantamentos, desencantamentos, ansiedades, motivos, submissões,
subversões, dentre outros aspectos que por outros meios não teríamos acesso. Sendo assim, o Grupo preza
e valoriza as experiências vivenciadas pelos colaboradores tornando-os personagens ativos e fundamentais
para que possamos responder nossa questão de pesquisa.
Ao buscarmos outros gêneros narrativos, nos deparamos com as (auto)biografias ou escritas de
si e junto a isso, discussões em torno de suas possibilidades tanto como dispositivo de formação quanto
2
para pesquisas. Surge assim, nosso interesse em trabalhar com essa “modalidade” narrativa que, ao nosso
ver, foi motivado pelo fato de que, como grupo de pesquisa, entendemos que “nós – os seres humanos –
somos organismos contadores de histórias, organismos que, individualmente e socialmente, vivemos vidas
relatadas (CONNELLY e CLANDININ, 1995, apud ARAGÃO, 2011, p.14).
Ao realizarmos uma pesquisa bibliográfica sobre essa temática, pudemos perceber que as (auto)
biografias, em virtude de seu caráter multifuncional, têm sido mobilizadas em cursos de formação
de professores e educação, em geral. O seu uso valoriza a reflexão, o movimento de olhar para si e o
compartilhamento de experiências vividas tanto pessoal quanto profissionalmente. Assim, esse movimento
e essas possibilidades fizeram das (auto)biografias, segundo PRADO e SOLIGO (2007) e NÓVOA (2011),
importante dispositivo de formação, (auto)formação e pesquisa.
Diante disso, pudemos concluir que as narrativas, sejam elas (auto)biográficas ou oriundas da
oralidade, permitem que trabalhemos com a produção de significados3 que os sujeitos atribuem para suas
experiências, uma vez que permitem compreender questões como “Sobre o que me apoio para pensar ser
aquele ou aquela que penso ser e quero me tornar? Como me configurei como sou?”(JOSSO, 2006, p.25-
26). Além disso, tanto nas pesquisas realizadas no GHOEM quanto nos trabalhos envolvendo narrativas
(auto)biográficas percebemos que as intenções e o modo como as narrativas são valorizadas e mobilizadas
são próximas, ou seja, ambos entendem que, independentemente do gênero narrativo, o principal é que elas
“não são meras ilustrações decorativas do cenário, mas, ao contrário, constituem a ‘alma’ da história, se é
2 Josso (2004)
3 Lins (2012)
que podemos falar assim” (SOLIGO e PRADO, 2008, p.47).
As narrativas e a pesquisa
Tomando como norte nossa questão de pesquisa que buscava compreender como ex-bolsistas do
PIBID percebem as ações deste Programa para a sua formação, optamos por mobilizar as (auto)biografias
como fonte de pesquisa por entendermos que elas poderiam trazer contribuições diferentes (e algumas
próximas) daquelas percebidas nas entrevistas quando trabalhamos com os procedimentos da História Oral.
Obviamente, não era e não é, nosso interesse dizer qual método é mais aplicável ou melhor do que outro, e
sim, estudar as possibilidades e limitações de cada um deles.
O GHOEM, como já citado, tem trabalhado a mais de dez anos com narrativas provenientes da
oralidade e por isso, os membros do grupo conhecem e estão sempre estudando suas possibilidades e
limitações. Sabemos que, ao realizar uma entrevista, o pesquisador deve conhecer e ter claro para si o
tema de pesquisa e o contexto em que o objeto está inserido. Além disso, assim como nas (auto)biografias,
situações que fogem ao controle do pesquisador podem ocorrer e com isso, devemos, sempre, ter em mente
que a escolha pelo local, dia, ambiente, por exemplo, são fatores importantes que podem influenciar nos
dados a serem obtidos.
Diferente do que foi narrado no parágrafo anterior, utilizar (auto)biografias como fonte de pesquisa é
relativamente novo para o Grupo. Temos, do total de pesquisas que ocorrem no GHOEM, três que trabalham
com esta abordagem sendo que duas, esta e mais uma, tiveram início no mesmo período. Diante disso e da
ausência de pesquisas que explicitam os passos pré-procedimentos metodológicos, foi necessário constituir
nossa forma de estimular a escrita de si, até porque, independe do método adotado para coleta de dados,
devemos estudá-lo e conhecê-lo o máximo possível.
Apoiadas no trabalho de Nogueira (2007), Memórias e Quintais, e nos estudos já realizados
referentes à escrita de si que destacam a importância não só da escrita reflexiva como também do ato de
relatar e compartilhar experiências, tivemos a ideia de propor um curso de formação4 no qual ex-bolsistas
do PIBID/Matemática da Unesp de Rio Claro, foco do nosso estudo, poderiam conhecer diferentes gêneros
narrativos, escrever suas histórias de vida e compartilhar suas experiências de vida e formação.
Ao contrário do que possa parecer, pensar, organizar e propor as atividades que comporiam o curso
não foi tarefa fácil. Trabalhar com histórias de vida era algo que nos tirava de nossa “zona de conforto” e
por isso, exigiu muita leitura, reflexões e organização.
Diante disso, julgamos pertinente selecionar trechos de diferentes formas de escrita de si, foram
eles: memoriais de formação, acadêmicos, blogs e narrativa de professores. Nosso intuito era apresentar
às nossas colaboradoras diferentes formas de conceber suas (auto)biografias. Cabe ressaltar que duas ex-
bolsistas, dentre cinco participantes, já haviam tido contato com essa modalidade de escrita durante sua
formação inicial.
Feito isso, nosso desafio foi, uma vez que trabalharíamos com professores de Matemática (ex-
bolsistas), estimular o desejo pela escrita, já que, normalmente, esse exercício de reflexão e, principalmente,
narrativo, não é trabalhado nos cursos de Licenciatura em Matemática. Para isso, optamos por apresentar
dez palavras5 que tiveram a função de dispositivos disparadores. Com elas, supusemos que as cursistas/
4 Compartilhando experiências de ensino e formação: um curso de difusão de conhecimentos para
professores de Matemática. Para detalhes, ver Zaqueu (2014).
5 Desinteresse, Dificuldades, Enfrentamentos, Escolha, Formação, Interesse, Matemática, Minha
escola, Motivações, PIBID, Ser aluno, Ser professor.
colaboradoras poderiam, a partir das sensações, lembranças e sentimentos que cada termo remeteria,
escrever suas experiências.
Com relação à estrutura do curso, este foi dividido em três encontros presenciais sequenciais,
encontros assíncrono e um quarto encontro presencial para o encerramento das atividades. No primeiro
dia, fizemos uma apresentação das propostas do curso de modo geral, qual era nossas intenções, o que era
a pesquisa de mestrado, como ela se daria e foi proposta a leitura de um texto, Memórias e Quintais, para
discussão no dia seguinte; no segundo encontro, demos início com a discussão da leitura proposta no dia
anterior, conversamos sobre as diferentes formas de escritas e apresentamos as palavras disparadoras; no
terceiro dia, propusemos a escrita (auto)biográfica da experiências de cada professora e marcamos encontros
assíncronos para que pudéssemos, mesmo à distância, compartilhar das experiências relatadas na narrativa
e também, daquelas adquiridas ao narrar. Além disso, em todos os encontros houve atividades de formação,
em que foram discutidos e trocadas experiências sobre o ensino de temas matemáticos de interesse das
cursistas6.
De modo geral, as discussões realizadas nesse curso contribuíram não só com a pesquisa, mas também
com a formação de cada participante e dos formadores. Ao relatar as experiências, foi possível perceber que
existem questões que fogem à singularidade de cada um; há situações, questionamentos, acontecimentos,
dúvidas que se mostram presentes na vida do professor seja ele iniciante ou não. Compartilhar, discutir e
pensar, juntos, meios de superar/ alterar certas situações cotidianas foi um aprendizado que a escrita de si e
o relato proporcionaram aos participantes da atividade.
novamente, são perceptíveis as “marcas” agora da infância escolar, que influenciaram não só a sua certeza
pela profissão, como também o modelo de ensino que pretendia seguir.
Por outro lado, percebemos que quando, por exemplo, a Amanda diz que “nunca foi meu sonho ser
professora” e mais adiante afirma que “uma professora da área de Educação Matemática, a qual sempre
acreditou no meu potencial e que me estimulou a não desistir do curso”, isso fez com que, devido às atividades
propostas, ela tivesse “a certeza da Licenciatura”, mostra que para ela a professora é um “modelo” a ser
seguido, ou seja, “o futuro professor tem a sua frente uma professora que é, naquela situação, um professor,
que é o que ele está se preparando para ser” (LINS, 2005, p.118). Neste caso, a professora que inspira a
Amanda não só a ajudou na tomada de decisão pela Licenciatura como também despertou o interesse pela
docência e por atividades voltadas à escola pública. Para ela, a profissional a motivou e incentivou sua
participação no PIBID e na busca pela Pós- Graduação.
Com isso, percebemos que tanto o professor da Educação Básica quanto o formador8 exercem “um
7 Entendemos esta relação como sendo fruto da observação do aluno (aprendiz) às atitudes e
comportamentos do professor (mestre). Assim, o aluno, ao observar o professor, cria, principalmente nos
primeiros anos de docência, sua pré-identidade docente, pautada nas ações de seu professor.
8 Entendemos que todos os professores são formadores porém, neste caso, referimo-nos ao docente
papel de suma importância como agente de mudanças e formador de opiniões e caráter ao longo da vida
do aluno. Ele poderá despertar simpatias e antipatias” (OLIVEIRA, 2007, p. 3). No caso da Rafaela, a
professora foi um “modelo” de como não ser professora, deixando marcas que a levaram a buscar uma
formação com o intuito de não o seguir. Além disso, por meio dessa vivência e de outras narradas pela
Rafaela, podemos ressaltar a importância, muitas vezes implícita ou mesmo negada, do papel do professor
da Escola Básica na formação dos alunos. Entendemos que as marcas de experiências vivenciadas pelos
estudantes são determinantes e, talvez por isso, um dos princípios do PIBID seja prezar por uma formação
em parceria, em colaboração entre universidade e escola. Professores da universidade e da Escola Básica
passam a ser, ambos, responsáveis pela formação do licenciando, ressaltando a importância do período
escolar e explicitando o quanto o professor pode influenciar nas tomadas de decisões dos alunos.
No caso da Elizabete, que não pensava em ser professora, foi um professor de Química que, por
seu modo de trabalhar e por seus projetos na escola pública, fez com que despertasse nela o interesse pela
docência. Por isso, quando afirma que participar das atividades desse professor “foi esse um dos principais
fatores por eu hoje querer estar em um curso de licenciatura em matemática”, ela ressalta mais uma vez o
quanto a figura do professor pode interferir nas escolhas e posturas adotadas.
Para a Natália, que afirmou não ter dúvidas quanto à sua opção pela licenciatura, a participação no
Projeto Núcleo de Ensino da Unesp9 e depois do PIBID, foi o meio pelo qual se pôde “pensar em questões
mais próximas do “ser professor””. Isso nos mostra que, em tais ambientes, ela encontrou espaço para
discutir questões importantes para seu futuro profissional. Ainda que de forma indireta, entendemos que as
discussões propostas pelo professor coordenador e pelos professores da escola, somadas às experiências
vividas na escola, mostraram-se como aspectos motivadores e de incentivo para seguir a carreira docente.
Assim, diante das (auto)biografias das ex-bolsistas, foi possível compreendermos que é no decorrer
da formação que o aluno de Licenciatura tem oportunidade de formar suas perspectivas profissionais e
“criar uma imagem de si próprio enquanto professor, embora tais perspectivas possam ter começado a
desenvolver-se mesmo antes de este ter escolhido a profissão” (OLIVEIRA, 2004, p.115).
Todos esses aspectos nos ajudaram a compreender as ações do PIBID na formação das ex-bolsistas,
uma vez que foi possível conhecer o caminho trilhado pelas colaboradoras e identificar que, nesse caso,
alguns de seus professores (do Ensino Básico e da Universidade) exerceram influências sobre suas escolhas
pela e na carreira docente. Isso nos leva a considerar que, ao participarem do PIBID, nossas colaboradoras
já concebiam a Licenciatura como um desejo e não uma opção, o que, de algum modo, relacionou-se com
as suas participações no Programa e, consequentemente, nos seus resultados para a formação de cada uma
delas.
Considerações finais
Frente a tudo que foi apresentado, ressaltamos o quão potencial as escritas de si mostraram-se para
a pesquisa, assim como já haviam demonstrado no âmbito da formação. Como participantes de um grupo
de pesquisa que tem por pano de fundo o uso de narrativas em seus trabalho, acreditamos que acrescentar
às suas formas de elaborar dados os relatos (auto)biográficos foi uma contribuição importante.
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EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
A CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS DE RAMIZ GALVÃO
ANA PAULA SAMPAIO CALDEIRA1.
1.PPHPBC/ CPDOC/ FGV, BELO HORIZONTE - MG - BRASIL.
Resumo:
Em 1870, o jovem e praticamente desconhecido Benjamin Franklin Ramiz Galvão foi nomeado para
ocupar o cargo de diretor da Biblioteca Nacional. Durante o período em que esteve na função, Galvão
projetou fazer daquele espaço a biblioteca da nação brasileira. Isso significava construir uma instituição
responsável por salvaguardar o patrimônio documental brasileiro e estimular estudos sobre a história
e a geografia do país. Neste sentido, foi preciso dar início a um projeto de mudanças que serviu para
a construção de uma nova imagem da biblioteca nos meios letrados nacionais e internacionais.
Doze anos depois, quando deixou o cargo de bibliotecário para ocupar a função de tutor dos netos de D. Pedro II,
Galvão já era um intelectual respeitado. A passagem pela BN havia se tornado um dos ápices de sua trajetória,
a ponto de não se poder descolar a sua figura da imagem de ex-dirigente da instituição. Assim, o período em
que esteve à frente da BN se transformou em um episódio-chave em sua biografia, a ponto de, num texto
escrito por Edson Nery da Fonseca muito tempo após a sua morte, Galvão ser chamado de “o bibliotecário
perfeito” e ser eleito o “patrono” desses profissionais. No entanto, para que Fonseca lançasse mão desta
categoria, que nos parece primorosa como “conclusão” deste processo de enquadramento, foi necessário
que, ao longo da vida de Ramiz houvesse um esforço de construção memorial que associasse a sua trajetória à
passagem pela BN e também que construísse uma visão bastante positiva do seu trabalho naquela instituição.
Sendo assim, nesse trabalho, que é vinculado à nossa pesquisa de doutorado, buscaremos analisar o jogo
duplo que fez da passagem pela BN um evento na biografia de Ramiz e de Ramiz um personagem central
na trajetória da BN.
Resumo:
A partir de um recenseamento que busca estabelecer algumas linhas e tendências da produção de biografias
literárias na passagem entre os séculos XX e XXI, localizei o aparente fortalecimento de uma estratégia
que aqui estou denominando de “poética do processo”. Tal denominação faz referência, por um lado, a um
dos esquemas de produção características de certa matriz da arte contemporânea, na qual o que se apresenta
como obra incorpora indícios dos passos cuja execução constitui o trabalho (como caso paradigmático,
menciono o trabalho de Sophie Calle). Por outro lado, procuro aludir a uma série de questionamentos
realizados tanto na antropologia (por meio do trabalho de James Clifford, entre outros) quanto nos estudos
da tradução (a partir do trabalho de Lawrence Venuti, entre outros), voltados para investimentos que, em
vez de apagar a presença do observador/ etnógrafo/ tradutor, buscassem enfatizá-la, realçando por essa
via o caráter situado da produção de conhecimento e permitindo o refinamento da compreensão dos ditos
“resultados” do investimento de pesquisa pela apresentação do processo que conduziu a esses resultados.
No caso da biografia literária, exponho uma sugerida genealogia para essa pequena tradição, cujo marco
de abertura localizo, para efeito de argumento, na década de 30, com a produção de The quest for Corvo,
do britânico A. J. Symons, explorando a partir de um conjunto de casos como essa própria tradição se
transforma, reelaborando possibilidades de uso e frequentação dos arquivos, dos regimes retóricos típicos
do gênero e, em última análise, modificando a própria percepção atual do que pode ser a biografia literária
enquanto alternativa de produção de conhecimento em literatura.
1 É uma área de pesquisa que reúne diversos estudiosos do Brasil e do mundo para compreender
como as dimensões cognitivas, sociais, econômicas, subjetivas entre outras interferem e contribuem para
os processos de ensinar e aprender matemática.
2 Estas experiências têm acontecido na dinâmica das aulas de Fundamentos Teóricos Metodológicos
da Matemática no curso de Pedagogia do CAMPUS XI/UNEB.
23), que o “[...] saber da experiência é um saber adquirido no modo como cada indivíduo responde ao que
lhe acontece ao longo da vida”.
Desse modo, ao reorganizar esses saberes que emergem da prática e repensá-los como elementos
estruturantes para o desenvolvimento de outras práticas formativas através das “escritas de si” e do “portfólio”
que contribuem para um experimentar que modifica, inquieta e transforma a relação que o estudante tinha
com a sua maneira de aprender Matemática, percebo o quanto se faz necessário proporcionar vivências
que o faça perceber-se com capacidade de produzir conhecimento matemático, até porque, a prática que a
maioria dos professores desenvolve em seu fazer pedagógico tem relação com as experiências vividas ao
longo da sua trajetória escolar e formativa.
Não obstante, o interesse dessa escrita está centrado na busca de compreender dificuldades que
emergem do saber fazer em relação aos processos de ensinar e aprender Matemática, decorrentes da minha
experiência de professora da graduação e também da educação básica.
3 A referência a crença encontra-se fundamenta na síntese elaborada por Vila e Callejo (2006, p. 48-
49) quando dizem: “as crenças são um tipo de conhecimento subjetivo referente a um conteúdo específico
sobre o qual versam; têm um forte componente cognitivo, que predomina sobre o afetivo, e estão ligadas a
situações. Embora tenham um alto grau de estabilidade, podem evoluir graças ao confronto com experi-
ências que podem desestabilizá-las”. (grifo nosso)
4 Ainda é tolerada a ignorância matemática nos meios escolares, e na sociedade como um todo. Mui-
tos preferem atribuir o não aprendizado a dificuldades que não se sustentam, tipo: falta de raciocínio lógico.
Qualquer área de conhecimento faz uso do raciocínio lógico, não é só a matemática que precisa dele.
Quanto ao nível epistemológico percebo a necessidade de aproximar a formação do pedagogo –
professor polivalente5, ao campo de conhecimento que prima pelo identificar-se como autor que conduz
seu processo formativo, de forma mediada/orientada. Esse movimento é possível pela (auto)biografia, por
se um campo que “[...] tem por ambição compreender como os indivíduos (...) e/ou os grupos (...) atribuem
sentido ao curso da vida, no percurso de sua formação humana, no decurso da história” (PASSEGGI, 2010,
p 112).
Entretanto, é possível que tenhamos dificuldades em identificar interseções/convergências/
complementos entre princípios da (auto)biografia e os processos de ensinar e aprender Matemática que
não estejam explícitas, mas que está por emergir pela sagacidade da busca, da curiosidade, que possam
surpreender e contribuir, até porque “[...] a maior necessidade e o problema mais urgente de todo indivíduo
é adquirir uma compreensão integral da vida que o habilite a enfrentar suas contínuas e crescentes
complexidades” (KRISHNAMURTI, 2003, p. 17). É nessa perspectiva que abraço os referenciais (auto)
biográficos para refletir/analisar o ensino e aprendizagem matemática, considerando que aprender vem do
latim e é uma experiência que provoca movimento, desestabiliza, desarticula, incomoda para depois do
desconforto, perceber outra(as) possibilidade(s) de equilíbrio e seguir.
Para um dos expoentes da educação matemática, D’Ambrósio (1996) um dos grandes problemas
que enfrentamos na educação é a formação deficiente do professor. Essa constatação do final do século
XX ainda persiste e considero seus argumentos sobre os problemas da formação que afetam o ensino de
Matemática, atualíssimos: “[...] falta de capacitação para conhecer o aluno e obsolescência dos conteúdos
adquiridos nas licenciaturas” (D’AMBRÓSIO, 1996, p.83).
Quanto a questão de conhecer o estudante em formação, reconheço no contexto da (auto)biografia
um potencial dispositivo de pesquisa – as escritas de si. São produções textuais onde os estudantes têm
a oportunidade de contar/narrar suas vivências, relembrar acontecimentos, articular acontecimentos
distintos, repensar e reestruturar concepções da sua trajetória formativa. Para Souza (2008, p.90), “[...]
as práticas de escrita de si e as narrativas ganham sentido e potencializam-se como processo de formação
e de conhecimento porque têm na experiência sua base existencial”. Através dessas escritas de si que se
constituem narrativas de trajetórias, rememoração de experiências boas e frustrantes, momentos reflexivos
sobre a formação, exercício de reconhecimento e reflexão sobre limitações é possível conhecer os anseios
do estudante em formação e tornar a prática de formação significativa. Na realidade,
essas escritas de si possibilitam a tomada de consciência por parte dos sujeitos
que escrevem; possibilitam à professora formadora compreender e interpretar os
contextos nos quais experiências foram produzidas, seus sentidos e significados
singulares e coletivos. (NACARATO, 2010, p. 908).
Além disso, “[...] ao mesmo tempo em que o sujeito organiza suas ideias para o relato - quer escrito,
quer oral - ele reconstrói sua experiência de forma reflexiva e, portanto, acaba fazendo uma autoanálise que
lhe cria novas bases de compreensão de sua própria prática” (CUNHA, 1997, p.3).
Nas “escritas de si”, o estudante tem a prerrogativa de refletir sobre a sua trajetória pessoal,
profissional e de formação, pensar no que está desenvolvendo e de até planejar ações pelo entendimento
do que foi vivenciado. É uma oportunidade de repensar sobre suas ações – “o pensar em si, falar de si e
escrever sobre si emergem em um contexto intelectual de valorização da subjetividade e das experiências
5 O licenciado em pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB)/Campus XI é formado
para atuar na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental I, ou seja, a ele é outorgada a tarefa
de ensinar todos os componentes curriculares deste segmento de ensino.
privadas” (SOUZA, 2007, p.68). Além disso, “[...] a memória assinala a nossa singularidade, direcionando
as possibilidades de ser e fazer” (CUNHA, 2012, p. 101). A memória na aprendizagem matemática é de suma
importância e seu exercício, articulando passado e presente de forma estimulada, possibilita identificação
de ideias que são comuns (interseções) em diversos conteúdos matemáticos, como também potencializam
a construção de complementos necessários para o avanço na aprendizagem.
Neste contexto, é pertinente pensar que estes movimentos reflexivos vivenciados na formação
tenham força de atacar a questão da “obsolescência dos conteúdos” visto que, para a maioria dos estudantes
de Pedagogia o que aprenderam de Matemática está obsoleto e que o aprendizado da graduação deve
permanecer distante desta área do conhecimento – como se isso fosse possível.
Na verdade, esta obsolescência decorre do desconhecimento em relação a como as ideias
matemáticas permeiam as diversas ações do cotidiano6 - é possível prescindir de contar, medir, agrupar,
classificar, comparar, ordenar, estimar? Imaginemos um mundo sem ideias matemáticas. Por isso devem ser
apreendidas de forma agradável, alegre para serem replicadas e ampliadas.
Mas no atual contexto de constantes e rápidas transformações pelas quais tem passado o processo
formativo dos professores, sinaliza D’Ambrósio (1996, p. 80) que,
o grande desafio para a educação é pôr em prática hoje o que vai servir para o amanhã. Pôr
em prática significa levar pressupostos teóricos, isto é, um saber/fazer acumulado ao longo
de tempos passados, ao presente. Os efeitos da prática de hoje vão se manifestar no futuro.
Se essa prática foi correta ou equivocada só será notada após o processo e servirá como
subsídio para uma reflexão sobre os pressupostos teóricos que ajudarão a rever, reformular,
aprimorar o saber/fazer que orienta nossa prática.
Portanto, definir o que é bom ou não - não é tarefa simples, por isso se constitui em um problema de
fundamentação da prática pedagógica. E, o enfrentamento desse desafio ocorre na tomada de consciência
por estudantes e professores de que é preciso compreender no agora, presente, os diversos entraves que
interferem nos processos de ensinar e aprender Matemática. Essa compreensão se evidencia a partir da
disposição de romper com práticas que não reconhecem as singularidades e pluralidades que emergem de
cada um.
Não há dúvida de que deixar de valorizar a memorização sem sentido, a resolução de exercícios
repetitivos, a manipulação simbólica sem compreensão do quanto a linguagem matemática possibilita a
construção de modelos que explicam aspectos importantes da realidade, muda a perspectiva da formação e
impacta o estudante que passa a perceber que muito do seu desconhecimento sobre as ideias matemáticas
tem origem numa forma equivocada de estudar. A falta de comunicação entre estudante e professor é parte
desse equívoco. Tem que existir diálogos para aprimorar o saber e o saber fazer, e uma discussão acerca de
qualquer ideia matemática que considere o que o estudante já conhece e/ou que suscite indagações sobre o
porquê e para quê possibilita a construção de significados. E, para corroborar conosco Chené (2010, p,132)
evidencia que,
a prática de formação é reforçada por uma prática de comunicação. Portanto, se o formador
torna possível que o autor da formação seja também autor de um discurso sobre a formação,
este último terá acesso, pela sua palavra, ao sentido que dá à sua formação e, mais ainda,
a si próprio.
Aliás, significar o que é apreendido sobre a Matemática e em outras áreas de conhecimento é uma exigência/
necessidade estruturante da formação, até porque não ocorre formação sem mudanças, mesmo que parciais.
6 Há muitas outras ideias matemáticas que explicam e fundamentam ações do cotidiano que não
são simples, mais complexas por relacionarem diversos aspectos.
Caminhos da pesquisa
Incômodo, inquietação, necessidade de saber mais são indícios para desenvolver uma pesquisa e
tomar consciência de que algo precisa ser feito. Assim, esta pesquisa se constituiu num “[...] processo de
estudo que consiste na busca disciplinada/metódica de saberes ou compreensões acerca de um fenômeno,
problema ou questão da realidade ou presente na literatura o qual inquieta/instiga o pesquisador perante o
que se sabe ou diz a respeito” (FIORENTINI; LORENZATO, 2006, p.60).
Trata-se de uma investigação desenvolvida nos anos de 2012/2013, cuja abordagem foi de cunho
qualitativo por reconhecer os processos das experiências vividas e a produção de significados (BOGDAN;
BIKLEN, 1994; LÜDKE; ANDRÉ, 1996), junto aos estudantes do curso de Pedagogia no Campus XI/
UNEB – BA, com objetivos de refletir/analisar as estratégias “escritas de si” e “portfólios7” que consideramos
dispositivos formativos para o fazer pedagógico e também avaliativos.
Instigada a provocar reações nos estudantes que promovessem deslocamento de concepções,
superação de crenças arraigadas (RIOS, 2012), ampliação de princípios epistemológicos e metodológicos e
um novo olhar em relação ao seu aprendizado matemático é que cada etapa da pesquisa foi planejada, com a
colaboração de 76 alunos sendo: 32 em 2012.2 e 44 em 2013.1 que consentiram pela divulgação de estratos
das suas produções com seus nomes.
No início de cada período letivo, foi estabelecido um diálogo provocativo com os estudantes para
identificar suas concepções a respeito do seu aprendizado matemático e de como pensavam aprender,
inclusive Matemática. Foram momentos interessantes por ter suscitado diversas resistências e receios,
através de relatos orais. Depois, os alunos foram convidados a escrever sobre a sua trajetória de aprendizagem
em relação à Matemática, daí foram produzidas as “escritas de si”. Estas foram recolhidas para posterior
análise e cabe observar que serviram de reflexão para todos. Foram devolvidas com indagações que muitos
retomaram na produção do portfólio.
Além das “escritas de si” propusemos que no final de cada período letivo fosse produzido um
“portfólio”, onde cada aluno evidenciaria o seu aprendizado sobre o componente Fundamentos Teóricos
e Metodológicos da Matemática. Entretanto, foi bastante questionada sua produção por conta do caráter
avaliativo8.
Para a construção dos dados – através dos dispositivos citados, inspiramos-nos, na constatação de
Abrahão (2010, p. 205) quando disse que:
as estratégias de aprendizagem são o grande foco no investimento das atividades, para
que os sujeitos aprendam. As estratégias são apresentadas/articuladas pelos professores,
assumidas pelos alunos até serem internalizadas e utilizadas com autonomia pelo sujeito
aprendente. O aluno, ao se tornar autônomo, assume em sua história de vida modelos
de auto-organização que lhe permitem construir seu autorretrato, sendo este produto do
processo de autorregulação resultante do entrelaçamento das experiências narrativas.
É fato que tem ocorrido certo descompasso entre as estratégias propostas pelo formador e o estudante
em formação e, dessa situação decorrem inúmeros problemas como a falta de percepção de que a estratégia
usada contribui para a aprendizagem e a construção da autonomia. É isso que Abrahão (2010) chama
7 É uma produção individual do estudante com objetivo de registrar e evidenciar suas aprendizagens
num determinado período, como também sinalizar dúvidas para próximas oportunidades de estudos.
8 A proposta feita aos estudantes foi a de construírem um portfólio que seria um dos meios de avalia-
ção do semestre, para possibilitar a oportunidade de evidenciarem aquilo que aprenderam, o que mereceu
um olhar mais atento, de mostrarem a sua percepção do que foi o componente na sua formação.
atenção, pois fica perceptível ao longo das nossas trajetórias profissionais, que o envolvimento do formador
com o que é solicitado ao estudante em formação faz a diferença, no sentido que a apreensão, isto é, o
conhecimento do potencial da estratégia lhe confere autonomia para escolher o que fazer e como fazer.
No decorrer das aulas foram sugeridas leituras sobre portfólio (BEHRENS, 2008; VILLLAS
BOAS, 2004), visto que, a maioria desconhecia este dispositivo para que os mesmos pudessem escolher
como construí-lo e refletir sobre o que viram e aprenderam durante o semestre. Também foi solicitado que
refletissem sobre como si compreendem professores de Matemática dos anos iniciais da educação básica,
tomando por base a sua trajetória formativa e as vivências do semestre em curso. Estas reflexões constam
nos portfólios, e demarcam que
algumas atividade são selecionadas pelo professor para toda a classe, enquanto outras se
constituem no resultado de pesquisas efetuadas pelos próprios alunos, o que faz com que
o instrumento seja uma criação individualizada, levando a um senso de apropriação do
trabalho pelo aluno. (OLIVEIRA; LOPES, 2012, p. 516).
Este movimento da ação pedagógica que parece simples, na verdade é complexo, pois desafia o
professor a correr riscos – alunos resistem à mudança, e é necessário buscar aporte teórico que embase
a atividade para mostrar que a “novidade” possibilitará fortalecer a sua formação pela construção da
autonomia: você vai escolher o que colocar no seu portfólio. Essa ação de escolher por si só já provoca
mudanças na formação e é isso que estamos a buscar, um ensino e um aprendizado em Matemática que
reconheça as dificuldades, mas que mostre as possibilidades de superação em relação à aprendizagem.
Aprender Matemática, como qualquer outra coisa na vida, demanda esforços sinceros.
Propor atividades que demandem maior reflexão por parte dos estudantes em formação, apesar de
imprescindível, não é trivial, pois o processo formativo ainda faz uso (e muito) de atividades mecânicas,
onde um simples olhar já é suficiente para a reprodução. Então, refletir, pensar e repensar, decidir o que
priorizar são movimentos que muitos estudantes estranham quando são chamados a olhar sua formação
por outro viés. O viés da tomada de consciência, de que o aprender e o ensinar são ações que demandam
práticas formativas diferenciadas, mas que estão imbricadas - esta percepção é crucial na/para formação.
Segundo Nacarato, Mengali e Passos (2011), pesquisadoras que articulam ensino de matemática,
formação de professores e (auto)biografia, estas práticas formativas podem ser exploradas/utilizadas em
diferentes níveis de ensino,
como prática de formação, as narrativas (auto)biográficas podem ser utilizados nos
diferentes níveis de ensino. Por exemplo: a professora das séries iniciais pode solicitar a
seus alunos que escrevam suas autobiografias e destaquem a relação que tiveram com a
matemática. Esse instrumento possibilita que a professora conheça não apenas seus alunos
como também as crenças que estes trazem em relação a essa disciplina. (NACARATO;
MENGALI; PASSOS, 2011, p. 127)
Entendemos que o potencial desta prática contribui de forma significativa para o estudante em
formação porque serve para buscar significados e reconstruí-los. Essa construção de significados não é
suficiente na aprendizagem matemática, mas extremamente necessária para que a as características da
abstração e da generalização inerentes as ideias matemáticas sejam de fato compreendidas.
O portfólio também se configura num instrumento onde pode ser narrado aquilo que for considerado
essencial – aprendizagens, dúvidas, reflexões e que marcou o tempo em que a ação foi desenvolvida.
Espera-se que os estudantes exercitem a sua “[...] capacidade de dar-se conta da própria aprendizagem, de
sua condição cognitiva de aprendente – conhecimento metacognitivo” (ABRAHÃO, 2010, p. 206).
Cabe ressaltar que avaliar em Matemática, abrindo mão do convencional – provas e testes – causa
impactos e inquietações do tipo: será que é possível? nunca fiz isso em Matemática? Eu é que terei que
dizer o que aprendi de Matemática? Isso é novidade...! Na verdade, esta era a intenção: provocar um
desconforto, possibilitar uma mudança de foco, pois com a construção do “portfólio” o acompanhamento
das aulas no semestre exigiria mais atenção, envolvimento com o seu aprendizado e com suas dúvidas, pois
ao invés de perguntar se você aprendeu isto ou aquilo, o estudante é que evidenciará suas aprendizagens. E
para corroborar, Santos (1997, p. ii-iii) diz que,
É preciso ter coragem de romper com as concepções e crenças que nós, professores,
reforçamos de avaliação como produto final do processo ensino/aprendizagem [...] Sabemos
também que, na prática, apenas o conteúdo efetivamente cobrado pelo(a) professor(a)
em provas e/ou testes irá determinar o que o(a) aluno(a) julgará importante saber e/ou
memorizar em Matemática. Portanto, precisamos refletir sobre as informações que nossas
atividades de avaliação comunicam aos alunos da turma.
Proporcionar a construção das “escritas de si” e dos “portfólios” dispositivos de formação demonstrou
o quanto se faz necessário que o ensino provoque mudanças. Durante todo o semestre o envolvimento
com as atividades desenvolvidas foram marcantes, houve um deslocamento de foco, pois refletir sobre sua
trajetória pessoal e formativa, apresentar o aprendido, apontar dúvidas, mostrar até onde foi sua percepção,
foram provações que desequilibraram e tinham que ser registradas. Estes registros escritos inquietaram pela
falta de hábito, mas possibilitaram aprimorar o exercício da escrita. “A questão principal é que a escrita
amplia a aprendizagem, tornando possível a descoberta do conhecimento, favorecendo a capacidade de
estabelecer conexões” (SANTOS, 2009, p 128). Desse modo, ampliar as aprendizagens é o objetivo a ser
conquistado.
Por outro lado, convidar o estudante a pensar sobre sua trajetória pessoal e formativa e narrá-
la ainda não é uma atividade trivial, como também não é, propor que escreva sobre o seu aprendizado
matemático, evidenciando suas dúvidas. Além disso, pensar e escrever sobre o que é trabalho em sala
requer maior atenção, envolvimento, reflexão e, estes dispositivos têm o potencial de possibilitar que o
processo de aprendizagem de cada um seja revisto por si mesmo e pelos outros, no caso, o professor.
Ademais, em toda a ação foi potencializada a oportunidade do estudante desvendar-se, de colocar
as incompreensões, de mostrar seus processos de construção da aprendizagem, de avaliar sua evolução
na aprendizagem – “foram momentos super divertidos, desafiadores, difíceis, fácies, porém, únicos que
possibilitaram a construção de uma aprendizagem significativa” (PORTFÓLIO: DAM, 2012.2). Essa
articulação através da linguagem escrita é essencial no aprendizado por sinalizar o antes, o agora e as
expectativas.
A linguagem escrita nas aulas de matemática atua como mediadora, integrando as
experiências individuais e coletivas na busca da construção e apropriação dos conceitos
abstratos estudados. Além disso, cria oportunidades para o resgate da autoestima para alunos,
professores e para as interações da sala de aula. Esse processo favorece a transparência de
emoção e afetividade, não só de aspectos negativos, como o medo, a frustração e a tristeza,
mas também da coragem, do sucesso, da alegria e do humor. (SANTOS, 2009, p.129).
De qualquer modo, apesar da tradição da linguagem simbólica valorizada pela maioria dos
professores de Matemática é preciso popularizar o ato de escrever e, concordamos com a perspectiva de
Santos (2009) ao defender que as boas experiências devem ser evidenciadas primeiro, pois as más podem
bloquear o processo rememorativo. Isso realmente acontece! E, os aspectos negativos são muito frequentes
nas memórias dos estudantes e dirimi-los leva tempo e dedicação.
Nos portfólios encontramos evidências de que no processo formativo temos que provocar/desafiar
o estudante a sair do seu “casulo” e transformar-se num profissional que sabe que precisa continuar
aprendendo, mas que tem consciência do seu aprendizado. Isso pode ser corroborado em fragmentos das
narrativas como bem salienta Josi (Portfólio, 2013)
“[...] os conhecimentos aqui evidenciados serão de fundamental importância para a
minha vida pessoal, bem como para a minha carreira profissional e acadêmica. Auxiliar-
me-ão em minha atuação como professora de matemática das séries iniciais do ensino
fundamental I”
As escritas destas estudantes sinalizam o quanto a aprendizagem foi potencializada e que a capacidade
de estabelecer conexões foi aguçada pelas estratégias trabalhadas pelo professor formador. Nesse aspecto
metodológico os estudantes demarcaram a importância de ressignificar as formas de trabalhar Matemática,
em que muitos conceitos foram desmestificados, como bem demarcou Henila (PORTFÓLIO, 2012.2): “nos
fez compreender como podemos (re)significar nossa prática e (re)inventar novas estratégias para burlar o
pré-conceito que a Matemática sempre despertou”.
Nessa mesma vertente, Dam, Ludmilla apontaram:
Sua metodologia me fez manter vivo o interesse pelos conteúdos, me incentivou a realizar
e participar das aulas, desmistificando o conceito esteriotipado que eu tinha construído da
matemática durante o ensino médio. (PORTFÓLIO: DAM, 2012.2).
[...]proporcionou momentos de estudos teóricos e práticos que até então eu não tinha
conhecimento e hoje posso dizer que tenho uma formação adequada para desenvolver um
trabalho de matemática significante” (PORTFÓLIO: LUDMILLA, 2012.2)
Com relação à reflexão sobre como si compreendem professores de Matemática, disse Jordana
(2013.1), no portfólio:
Reconheço essa disciplina como fundamental para a minha formação. Primeiro,
porque, através dela desconstruir uma ideia equivocada sobre o ensino de
matemática e depois construir uma visão nova, ampla e capaz de criar e recriar
situações e atividades que transformam o resultado e inovam o ensino.
E Josi (2013.1), que aponta que no processo se vê “como alguém que passará por algumas
dificuldades... dificuldades estas que serão superadas conforme as experiências adquiridas”.
Por outro lado, nos fragmentos das “escritas de si”, fica visível que ainda hoje muitos alunos da
graduação cultivam o medo da Matemática, tem consciência das dificuldades e precisam ser percebidos nas
suas singularidades.
Diante das situações vividas como aluna de matemática, carrego em mim a ideia de que
matemática é difícil demais para ser aprendida, é uma disciplina ruim, pois desde o ensino
fundamental até o médio meus professores defenderam a teoria de que a matemática é
complexa mesmo, muito difícil e foram afirmativas como essas que me fizeram ter medo e
não gostar de matemática. (TAMÁRIA, 2013.1)
Possuo grande dificuldade com a disciplina, mas estou disposta a cumprir com
responsabilidade o desafio, tendo em vista a importância desse conhecimento para a minha
formação profissional. (INGRA, 2013.1)
Desde as séries iniciais nunca tive problemas com a aprendizagem, porém tenho muita
dificuldade em me expressar em sala. Por isso, em matemática, nas aulas, meu obstáculo
era tirar as dúvidas – isso dificultava a compreensão dos conteúdos. (MARCIA, 2013.1)
Sem dúvida que é intrigante a percepção da aluna “Tamária” (mais ainda porque muitos outros
têm a mesma percepção) em relação ao seu aprendizado matemático, mas o que sinaliza para o professor
formador? A urgência de uma formação melhor, pois dizer que a Matemática é complexa é verdade, mas
complexidade não é sinônimo de dificuldade. O nosso sistema de numeração decimal, por exemplo, é
compreendido por quase a totalidade dos estudantes, mas é complexo por conta das várias relações que são
estabelecidas, como também o sistema de medidas.
Na realidade, é preciso que o estudante em formação encare as dificuldades construídas ao longo
da sua trajetória e ao mesmo tempo, encontre, no professor formador (graduação), práticas formativas
coerentes e argumentos construtivos que os façam superar as dificuldades e que ocorra a conscientização
de que precisam aprender e executar práticas pedagógicas diferentes daquelas que não possibilitaram a
aprendizagem.
O ser professor requer um repensar da prática cotidianamente e este talvez seja o grande desafio da
profissão, está disposto a rever, a reelaborar, a perceber as diferenças, mesmo quando elas nos desconfortam
e nos exige uma tomada de decisão.
Esta pesquisa contribuiu bastante para a minha prática pedagógica, não que os dispositivos utilizados
possam ser considerados como “panaceia” para resolver os problemas do aprendizado em Matemática, mas
demonstrou que muitas das ações que nós professores exercitamos em nossas aulas, podem ser repensadas,
e foi isso que percebi nas leituras que fiz sobre (auto)biografia articulando com a educação matemática - a
possibilidade de mudar mesmo estando confortável no viés que trabalhava e a percepção do outro enquanto
ser que tem vontades, desejos, necessidades e que constrói - é crucial.
Em certa medida, muitos professores de Matemática ainda cultivam algum distanciamento do
estudante e esse é um problema a ser enfrentado na formação. O estudante precisa viver um ambiente onde
reconheça que o fundamental é proporcionar aprendizagens – de que adianta frequentar um componente e
não construir nenhuma referência para sua profissão?
É preciso ter consciência de que a relação professor estudante é assimétrica por diversas razões,
mas esta assimetria não impede que sejam estabelecidas relações onde a mediação/orientação são bases das
atividades desenvolvidas. Por isso, retomo ao que a aluna Tamária (2013.1) evidenciou no seu trabalho
final, a síntese da nossa busca com esta ação de pesquisa:
A partir da tal vivência e depois que entrei na Universidade e conheci novos caminhos,
tenho em mim o desejo de ser uma professora de matemática diferente de todos aqueles que
já passaram na minha vida ... ; buscarei formas de ensinar que não assustem os alunos,
nem que façam eles se sentirem incapazes; irei procurar formas de trabalhar matemática
de maneira prazerosa, desmistificando a ideia de que é difícil de ser aprendida, sendo que
ela pode ser uma matéria como outra qualquer, e que talvez, a diferença esteja apenas na
forma de ensinar.
Esse posicionamento denota o quanto vale a apena investir numa prática pedagógica diferenciada,
centrada no sujeito da aprendizagem como construtor de seu conhecimento e responsável por sua própria
formação. O professor precisa perceber no humano a capacidade inata para aprender – portanto, continuamos
no exercício da reflexão para incorporarmos outras possibilidades na formação do Pedagogo.
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PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
RESUMO
Neste trabalho apresento os argumentos que justificam as opções pelo uso da pesquisa narrativa na pesquisa de
doutorado em desenvolvimento pela Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática – REAMEC.
A questão que norteou a construção dos aspectos teórico-metodológicos que apresento foi “Que elementos
justificam o uso da pesquisa narrativa no estudo de crenças de professores”. Neste sentido busco
estabelecer relações entre o fenômeno de estudo da minha pesquisa e os elementos centrais que caracterizam
a pesquisa narrativa. Dentre as opções teórico-metodológicas farei uso das narrativas autobiográficas
colaborativas como modo de construção das histórias de vida e de profissão dos professores investigados,
para a partir destas histórias analisar experiências definidoras da construção e desconstrução de crenças
sobre a mudança na prática docente. Os argumentos apresentados neste trabalho de três características
centrais da pesquisa narrativa, a saber: a centralidade no estudo da experiência, a dimensão biográfica
e autobiográfica e a temporalidade tridimensional, a partir das quais busco evidenciar conceituações e
processos inerentes a construção de crenças de professores e o modo como estas se relacionam com sua
história de vida e profissão de professores.
Breves motivações...
A produção deste texto faz parte do processo de pesquisa em desenvolvimento de doutorado pelo Programa
de Pós- Graduação em Educação em Ciências e Matemática, da Rede Amazônica de Educação em
Ciências e Matemática – REAMEC. Neste processo alguns questionamentos feitos a cerca do fenômeno
de investigação – a construção das crenças sobre mudança na prática docente - e da opção pela pesquisa
narrativa emergiram em diversos momentos de discussão da proposta em disciplinas e seminários. Tais
discussões contribuíram para que me sobreviesse uma série de questionamentos que me levaram a busca
por aprofundamento teórico-metodológico que me conduzissem nas escolhas dos processos investigativos
em torno do fenômeno de investigação. Destes questionamentos destaco: Que sentido pode haver em
pesquisar a construção de crenças de professores de ciências? Por que estudar crenças de professores de
ciências a partir das histórias de vida com uso da abordagem da pesquisa narrativa?
Num primeiro movimento de busca por aprofundamento teórico caminhei em duas direções, a de
compreender o conceito de crenças e o papel que estas exercem na prática docente, e a outra no sentido de
localizar conceitos-chave, características centrais que pudessem ser tomados como pontes entre a pesquisa
narrativa e os processos de construção e transformação das crenças dos professores, tal que me permitissem
compreender a pesquisa narrativa como um caminho investigativo que conduzisse as possibilidades de
compreensão e interpretação do fenômeno de construção de crenças, de modo que me permitisse abarcar suas
multiplicidade e particularidades, num olhar multidimensional, contextual, histórico, social, pessoal, etc.
Desse contexto, bem como da imersão na leitura de pesquisas sobre crenças e sobre a pesquisa
narrativa nas investigações com professores emergiu o questionamento que norteia este trabalho: Que
elementos justificam o uso da pesquisa narrativa no estudo de crenças de professores? Desse questionamento
busco apresentar os elementos argumentativos que justificam o uso da abordagem da pesquisa narrativa no
estudo sobre crenças de professores de ciências. Para elucidar a construção dos argumentos busquei abordar
os aspectos da relação pesquisa narrativa, apontando possibilidades e potencialidades para a investigação
de crenças de professores.
Como elementos centrais que caracterizam a pesquisa narrativa, segundo Clandinin e Connelly
(2011), destaco que trata-se de uma perspectiva de investigação com foco na experiência, apresenta-se
numa interrelação sujeito pesquisador com o contexto investigado e os participantes da pesquisa, o que
se dá por meio do intercruzamento de experiências e vivências, história de vida, o que evidencia seu
caráter biográfico e autobiográfico, que representa a ruptura com o distanciamento entre sujeito e objeto
de investigação. Além disso, a pesquisa narrativa apresenta historicidade contextual, pessoal, social e
cultural expressa pela temporalidade tridimensional. Tais elementos serão tratados não de modo isolado,
mas considerando os entrelaçamentos que expressam o que minha compreensão consegue abarcar dos
significados da pesquisa narrativa e o papel dos pressupostos inerentes a esta modalidade investigativa
como norteadores das escolhas no estudo das crenças de professores de ciências.
A investigação sobre crenças de professores se dará a partir das experiências dos professores de
ciências que se constituem como transformadoras das crenças. A opção pelo estudo de crenças a partir
das experiências se dá pela compreensão de que as crenças se transformam em situações especificas e
definidoras, o que entendo ser espaços de construção e desconstrução das crenças.
Para Soares e Bejarano (2008) as crenças são constituídas pelo que compõe as experiências de vida e
são elaboradas a partir das formas de “sentir, pensar e atuar no/sobre o mundo”, ou seja, são existenciais. (p.
67). Neste sentido a busca pelas experiências dos professores para estudo das crenças, parte do entendimento
de que estas “tem sua gênese nas experiências e fontes culturais de conhecimento” (MORAES, 2010, p.
45), são marcadas histórico e socialmente.
Em Larrosa (2002), o qual afirma que “É experiência aquilo que ‘nos passa’’, ou que nos toca,
ou que nos acontece, e ao nos passar, nos forma e nos transforma” (p. 25), vejo que nas experiências dos
professores, o que lhes passa, há possibilidades de interpretações acerca da construção de suas crenças,
visto que as experiências, representam “sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos” (p.24).
As crenças também podem ser entendidas como marcas no percurso da história de vida e profissional
dos professores, “como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz
alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (idem), tal que o modo
como os professores se apropriam e interpretam ideias e ações se dá através das lentes que resultam de suas
“crenças e hábitos da prática” (SIQUEIRA, 2012, p. 31). Desse modo, estudos sobre crenças possibilitam
a aproximação com modos de pensar e agir dos professores, uma vez que estes são direcionados por seus
conhecimentos e suas crenças educacionais (SOARES; BEJARANO, 2008). Estes autores defendem que:
na prática pedagógica, no que se refere aos julgamentos, explicações, interpretações e, também às
atitudes tomadas a partir das crenças do/a professor, não se encontram presentes apenas as que se
referem aos aspectos profissionais mas também as que foram formuladas na sua trajetória pessoal.
(SOARES; BEJARANO, 2008, p. 66-67).
Para Moraes (2010) crença é uma forma de saber pessoal e envolve tanto o saber pessoal do
professor como os conhecimentos inerentes à profissão docente, numa relação tríade que inclui o contexto
- relacionado aos grupos em que atua, o conteúdo – referente ao conhecimento disciplinar específico e a
dimensão pessoal – referente ao sistema de crenças do professor.
A cerca da construção das crenças Moraes (2010) com base em Peter Senge (1994) afirma que quando
as experiências vivenciadas pelos seres humanos produzem certezas que são construídas e arraigadas no
pensamento, passam a ter status de crença, desse modo a crença “adquire importância no pensamento
e na ação. (idem p. 45). As crenças também podem ser consideradas como “representações pessoais da
realidade que determinam pensamentos e comportamentos [...] são armazenadas como episódios oriundos
da experiência pessoal (MORAES, 2010, p. 45).
As crenças podem ser entendidas como um sistema organizado, no qual estão presentes tanto aquelas
mais susceptíveis às mudanças quanto aquelas mais arraigadas. Este sistema pode criar e reforçar outras
crenças, além de ser “formado mediante as combinações de informações, interpretações e experiências,
que vão se organizando com outras” (SOARES; BEJARANO, 2008, p. 62). Disso decorre que este sistema
crenças de professores pode ser compreendido pelo acesso as experiências, que entendo ser espaços nas
quais as crenças são construídas e reconstruídas.
Dessa relação entre crença, experiência e vida profissional dos professores encontro elo com a
pesquisa narrativa. Segundo a perspectiva defendida por Clandinin e Connelly (2011) essa abordagem
investigativa tem como base o conceito de experiência adotado por John Dewey, para o qual existe uma
relação intrínseca entre “Educação, experiência e vida” (p.24), de modo que estudar a educação significa
estudar a experiência e estudar a vida. Assim entendo que investigar as crenças a partir da experiência e das
histórias de vida pode ser um modo apropriado de estudar como os professores constroem modos de ser,
pensar e fazer acerca da mudança da sua prática docente, visto que:
“experiências são as histórias que as pessoas vivem. As pessoas vivem historias e no contar dessas
historias se reafirmam. Modificam-se e criam novas histórias. As histórias vividas e contadas educam
a nós mesmos e aos outros” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p.27).
A pesquisa narrativa caracteriza-se por apresentar uma possibilidade de estudo que considera o fato de
que como seres humanos, “vivemos vida relatáveis”, de modo que esta é a “razão principal do uso da narrativa na
investigação educativa” (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p.11) [tradução nossa]. Nesse contexto a narrativa
pode ser adotada como fenômeno que se investiga (relato/acontecimento), como método de investigação
(narrativa) (GONÇALVES, 2000). Por meio das histórias narradas pelos professores, (CLANDININ;
CONNELLY, 2011) encontro modos de aproximação com as experiências pessoais e profissionais dos
participantes da pesquisa, bem como ao modo como estes significam e compreendem o vivido.
As crenças estão presentes nos discursos dos sujeitos, contudo nem sempre se manifestam de
modo explícito, mas de forma sutil, o que demanda a identificação de modo atento aos elementos que as
evidenciam (SOARES; BEJARANO, 2008). Dessas peculiaridades inerentes as crenças vejo na narrativa
(fenômeno) um espaço de possibilidades de ter acesso aos elementos que se constituem como crenças dos
participantes da pesquisa.
De acordo com Cunha (1997) “a narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem
a si próprias e aos outros. Tomando-se distância do momento de sua produção, é possível, ao “ouvir” a si
mesmo ou ao “ler” (p.4) seu escrito, que o produtor da narrativa seja capaz, inclusive, de ir teorizando
a própria experiência. A autora também argumenta sobre a importância da relação entre narrativa e
experiência e afirma que: “assim como a experiência produz o discurso, este também produz a experiência.
Há um processo dialético nesta relação que provoca mútuas influências” (p.4). A autora indica também
que experiência e narrativa encontram-se de tal modo imbricadas que torna-se difícil separar o já vivido
- passado - daquilo que se está para viver - futuro. Assim, contar “experiências, crenças e expectativas” é
também anunciar “possibilidade, intenções e projetos” (p.3).
Para Connelly e Clandinin (1995) “necessitamos entender as pessoas com uma narrativa das
experiências de vida. As narrativas de vida são o contexto em que se dá sentido às situações escolares”
(p.16) [Tradução nossa]. O processo de escrita das histórias de vida e profissão representa a busca por
reviver as histórias dos professores, de construir possibilidades de acesso as suas experiências, e assim
desenvolver uma interpretação dos significados por eles atribuídos dado que “ninguém pode aprender da
experiência de outro, a menos que essa experiência, seja de algum modo, revivida e tornada própria.”
(LAROSSA, 2002, p. 27)
Soares e Bejarano (2008) defendem a aproximação entre crenças e saberes, tal que para estes
autores crenças são saberes que se cristalizam “a partir dos conhecimentos, saberes e valores adquiridos
em um determinado período por uma pessoa” (p. 63), o que entendo ser uma expressão da historicidade
da construção das crenças. Nesse processo a memória tem importância central, dado que as crenças são
estruturadas a partir das informações contidas na memória, que consiste de representações da realidade,
uma forma de representação mediada pelas emoções, o lugar do sujeito no contexto, dentre outros aspectos.
Assim “a memória também contribui para inter-relacionar a nova crença com as que já foram elaboradas”.
(SOARES; BEJARANO, 2008, p. 64). Na medida em que as crenças se relacionam com a memória,
vejo no processo de rememoração inerente a produção de narrativas (fenômeno), expresso no contar e
recontar, reviver as experiências pelos participantes da pesquisa, um modo de produzir aproximações com
a construção e reconstrução das crenças dos professores.
Adotar a narrativa como processo de construção de conhecimento, bem como as narrativas
(fenômeno) de vida dos professores constitui-se uma forma de integração da relação indissociável entre
pesquisador e participantes da pesquisa, as experiências por eles vividas, nos espaços de formação e atuação
e nas interações com outros sujeitos com quem compartilharam/compartilham experiências ao longo da
vida e na profissão docente. Desse contexto, buscarei experiências vividas pelos investigados para delas
tecer compreensões e interpretações sobre o processo de construção e desconstrução de crenças sobre a
mudança na prática docente.
A pesquisa narrativa envolve um processo de contar o vivido num contexto experiencial, bem como
inferir sobre o vivido, reflexões e explicações de modo a dele construir compreensões e interpretações o
que confere complexidade a esta modalidade de pesquisa (CONNELLY; CLANDININ, 1995). Neste caso,
a investigação se dá como um processo contínuo de busca por compreensão em múltiplos níveis de estudo.
em particular pode ser definida por estes conceitos, pois “os estudos tem dimensões e abordam assuntos
temporais; focam no pessoal e no social em um balanço adequado para a investigação; e ocorrem em
lugares específicos ou sequências de lugares” (idem).
Este espaço tridimensional também conduz o caminhar da pesquisa narrativa em quatro direções:
introspectivo, extrospectivo, retrospectivo, prospectivo, também inerentes a qualquer investigação. A direção
do introspectivo trata das condições internas – “sentimentos, esperanças, reações estéticas e disposições
morais” (CLANDININ, CONNELLY, 2011, p. 85), o extrospectivo refere-se às condições existenciais do
meio ambiente e o retrospectivo e prospectivo referem-se à temporalidade – passado, presente e futuro.
Assim, investigar uma experiência significa experiênciá-la nas quatro direções da pesquisa narrativa, tal
que quaisquer destes espaços bidimensionais permitem ao pesquisador construir questionamentos, dados de
campo que resultem em interpretações e numa escrita de pesquisa que considera questões pessoais e sociais,
um olhar múltiplo para o objeto, do interno ao externo, na perspectiva de sua temporalidade, passado e
futuro. Estes aspectos da pesquisa narrativa permitem abarcar aspectos das histórias de vida dos professores
e integrar a vida em seu contexto, tal como defende Goodson (2004). Neste sentido Clandinin e Connelly
(2011):
pesquisar sobre uma experiência – é experienciá-la simultaneamente nessas quatro direções,
fazendo perguntas que apontem para cada um desse caminhos. Assim quando se posiciona em um
desses espaços bidimensionais em qualquer investigação, elaboram-se perguntas, coletam-se notas
de campo, derivam-se interpretações e escreve-se um texto de pesquisa que atenda tanto a questões
pessoais quanto sociais, olhando-se interna e externamente, abordando questões temporais olhando
não apenas para o evento, mas para seu passando e seu futuro”. (p. 85-86)
Este entremeio também pode ser entendido como espaço de intercruzamentos das histórias vividas,
de construção de histórias partilhadas, de reconstruir os espaços em que vivem e trabalham os professores –
salas de aula, escolas e comunidades, que também situam-se no meio de outras histórias, as quais envolvem
instituições, comunidades, paisagens mais amplas. Neste sentido o entremeio também pode representar a
possibilidade construir elos que ligam as histórias de vida e profissão, os percursos, as marcas de quem
pesquisa e dos seus participantes, uma vez que as “histórias que trazemos como pesquisadores também
estão marcadas pelas instituições onde trabalhamos, pelas narrativas construídas no contexto social do qual
fazemos parte e pala paisagem na qual vivemos” (CLANDININ, CONNELLY, 2011, p. 100).
A pesquisa narrativa exige intensidade afetiva, imersão num contexto relacional do sujeito
pesquisador e participantes, do mundo contextual de suas histórias e seus intercruzamentos, tornar-se parte
do mundo vivido, ter abertura para ouvir, buscar múltiplos aspectos do fenômeno pelo espaço tridimensional
da pesquisa. Possibilita um movimento flexível, num espaço-tempo passado-presente-futuro, integrando
aspectos subjetivos e sociais (CLANDININ; CONNELLY, 2011). Neste sentido há uma relação dinâmica
e interativa entre os sujeitos e as paisagens sociais em que estão inseridos, a escola, a comunidade, espaços
estes em que possuem histórias narrativas, além das historias narrativas individuais dos sujeitos. Estar no
campo da pesquisa implica em “considerar a amplitude de narrativa em ação na paisagem” (p. 104), o que
significa dizer que pesquisadores narrativos:
se estabelecem, vivem e trabalham ao lado dos participantes e chegam a experimentar não somente o
que pode ser visto e contado diretamente, mas também as coisas não ditas e não feitas, que moldam
a estrutura da narrativa das suas observações e das suas conversas (CLANDININ; CONNELLY,
2011, P. 104).
Dos argumentos apresentados decorre meu entendimento de que a pesquisa narrativa permite
mergulhar nos diferentes aspectos subjetivos e na complexidade que permeia as experiências dos professores,
e para deles buscar elementos interpretativos que expressam a construção e reconstrução de suas crenças.
Deste caminhar em direção a construção elementos que justificam o uso da pesquisa narrativa
numa investigação sobre crenças de professores observo que investigar crenças a partir das experiências
do professores implica percorrer diferentes nuances do caminho investigativos para aproximação do
fenômeno investigado, passando pela construção subjetiva pessoal e profissional, individual e coletiva, seus
componentes históricos, sociais, culturais. Isso pressupõe desenvolver modos de perceber o fenômeno sobre
múltiplas perspectivas, o que demanda uma abordagem de pesquisa que permita caminhar do subjetivo ao
objetivo, do pensamento para a ação, da realidade contextual ao mundo experimentado e significado pelos
participantes, do passado ao presente e ao futuro, das histórias pessoais às profissionais, das perspectivas
pessoais aos significados compartilhados, dentre outros.
Diante disso, vejo na pesquisa narrativa um possível caminho para a construção de um processo
investigativo diferencial, dada possibilidade de explorar a experiência dos professores, transitar por
elementos subjetivos e objetivos da construção das crenças sobre a mudança na prática docente, bem como
pelos contextos históricos, sociais e culturais que integram as histórias de vida e profissão dos professores
de ciências participantes do estudo, o que permite trabalhar com as histórias de vida integrando as teorias
do contexto a que se refere Goodson (2004).
Ressalto ainda que os aspectos da relação pesquisa narrativa e estudos sobre crenças apresenta
apenas um recorte, um modo de compreender a potencialidade da pesquisa narrativa, dentre outros que
podem ser construídos, portanto de elaboração não conclusiva.
REFERÊNCIAS
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SOARES, I. M. F.; BEJARANO, N. R. Crenças dos professores e formação docente. Revista Faced, n.14,
p.55-71, jul./dez. Salvador, 2008.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
NARRATIVAS INFANTIS: O QUE NOS CONTAM AS CRIANÇAS SOBRE A VIOLÊNCIA
SIMBÓLICA E FÍSICA EM ESCOLAS DA INFÂNCIA?
Débora Borges de Araújo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
debby-borgess@hotmail.com
O presente trabalho apresenta resultados de uma pesquisa em andamento e discute diferentes tipos de
violência, narrativamente identificados, na cultura escolar, por crianças de oito a doze anos de idade. A
pesquisa está vinculada ao Projeto “Narrativas infantis. O que contam as crianças sobre a escola da infân-
cia?” (MICT/CNPq/CAPES-07/2011-2), o qual adota a narrativa como método de pesquisa e compreende
a criança como sujeito de direito. Os dados foram coletados em uma Escola Municipal de Natal - RN, se-
guindo o protocolo proposto pelo projeto nacional. Foram realizadas rodas de conversas com as crianças,
a quem pedíamos para contar para um pequeno “Alien” como era a escola. O estudo tem como referência
teórica os trabalhos de Passeggi (2011); Delory-Momberger (2012); Spréa (2010), Bourdieu (1992, 1998)
e Boff (2004). As primeiras leituras dos dados fizeram emergir como ponto importante para nossa pesqui-
sa o modo como as crianças se referiam à violência na escola. Tomamos então como foco da pesquisa a
violência em escolas da infância e formulamos as seguintes questões: as crianças falam espontaneamente
sobre casos de violência na escola? Que tipo(s) de violência é(são) mais frequente(s) em suas falas? Como
elas percebem a experiência da violência na infância? Dentre os tipos de violência, destacamos a violência
simbólica e a violência física. As primeiras análises revelam que as crianças falam espontaneamente de si-
tuações de violência para o Alien, como algo que ocorre regulamente na rotina da escola, provocando inse-
gurança e revolta. Concluímos que a pesquisa educacional realizada “com” a criança, e não sobre a criança,
faz de suas narrativas uma nova forma de acesso aos diferentes tipos de violência na escola, suscetíveis de
contribuírem para a construção de novos saberes científicos, como também permiti a própria criança refletir
sobre o que lhe acontece ao narrar suas experiências.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho discutiremos a violência simbólica e física nas escolas da infância, à medida que
observamos as narrativas das crianças em uma Escola Municipal da cidade do Natal/RN, em que é apontado
espontaneamente fatores que evidenciam claramente aspectos violentos. A prática metodológica utilizada
nesta pesquisa com as crianças segue o protocolo do Projeto de Pesquisa: Narrativas Infantis. O que contam
as crianças sobre as escolas da infância1. O qual é utilizado pelos integrantes do Grupo Interdisciplinar
1 O Projeto “Narrativas infantis. O que contam as crianças sobre as escolas da infância?”, em andamento, é financiado
pelo Edital de Ciências Humanas [CNPq/CAPES 07/2011-2, Processo nº 401519/2011-2], e desenvolvido por pesquisadores de
seis universidades: UFRN, UFPE, UNICID, UNIFESP, UFF e UFRR. Aprovado pelo Comitê de Ética [Parecer nº 168.818], data
da Relatoria: 23/11/2012. A pesquisa integra um projeto internacional coordenado por Martine Lani-Bayle, na Universidade de
Nantes, desenvolvido em rede com pesquisadores da França, Polônia, Bélgica, Suíça.
de Pesquisa, Formação, Autobiografia e Representações - GRIFAR/UFRN.2 Reconhecendo como fonte de
pesquisa (auto) biográfica as narrativas infantis, pretendemos utilizar de uma metodologia que nos permita
trazer a manifesto com as crianças os aspectos da violência nas escolas regulares.
O objetivo deste artigo consiste em descrever sobre os tipos de violência que narrativamente são
identificados pelas crianças, entendendo que elas mostram espontaneamente em suas falas experiências
que retratam a violência na escola. Nesse sentindo, identificando os tipos de violência, abordaremos a
violência simbólica e física como umas das mais presentes nas narrativas infantis. Além disso, temos como
objetivo aprofundar os conhecimentos sobre as dinâmicas interacionais, educativas na comunidade escolar
buscando compreender a relação da criança com a violência na cultura escolar. Evidenciando a importância
da percepção da criança como sujeito de direito, entendendo-a e considerando-a como ator|autor de sua
história, reconhecemos a criança como sendo capaz de trazer informações pertinentes para a formação de
professores e para o acolhimento da infância nas escolas, visando o trabalho com a constituição do sujeito.
Sendo assim, organizado em quatro momentos esse artigo trás na primeira parte a abordagem de
pressupostos teóricos da pesquisa com crianças e o seu dissertar (auto) biográfico, obtendo as narrativas
como fonte de pesquisa; no segundo momento, trataremos da metodologia utilizada nesta pesquisa com
as crianças; no terceiro discutiremos as narrativas das crianças quanto à violência simbólica no contexto
escolar e no quarto e ultimo tópico abordaremos a violência física eminente nas narrativas infantis.
A PESQUISA COM CRIANÇAS E AS NARRATIVAS INFANTIS
Sabemos que ao longo das décadas as crianças foram restringidas dos direitos de autonomia,
sempre foram colocadas abaixo do domínio e proteção dos pais, tendo o foco em resguarda-las de ofensas
e depreciação, recebendo aquilo que deve ser adquirido por elas ao longo da vida. Assim, as pesquisas com
crianças seguiam nas mesmas orientações, abordando as necessidades e as influências na manutenção da
preservação mental e física da criança, sendo fiscalizadas pelos adultos.
Porém, na Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas) acerca dos Direitos da Criança
(ONU,1989), novas medidas nos direitos de participação das crianças foram instauradas, elas passaram a
ser consideradas como capazes de realizarem determinadas atividades e de tomar decisões que as atinjam.
Nisto, tendo envolvido também a moderação no direito de autonomia do adulto. Levando em conta isso,
Alderson (2005, p. 422) aponta:
Os Direitos da Criança não podem ser exercidos de maneiras que possam ferir a criança ou
outras pessoas. Eles devem “respeitar os direitos e a reputação dos demais”, assim como
a “segurança nacional, e a ordem, a saúde e a moral públicas” (13). Esses direitos não
dizem respeito a um individualismo egoísta, mas à solidariedade, à justiça social e uma
distribuição justa. Reivindicar um direito significa reconhecê-lo a todos. A reivindicação
afirma o valor e a dignidade de cada pessoa. O respeito dos Direitos da Criança promove
“o progresso social e a elevação do nível de vida com mais liberdade” (Preâmbulo da
Convenção).
Nesse contexto, considerando que os direitos das crianças agregou uma nova formulação
internacionalmente com os direitos que são designados como direitos de participação. Assim, reconhecemos
também nesta pesquisa que apresentamos a criança em seu valor, como ator social competente, produtora
de dados e formuladora de opiniões.
Para que a criança possa se sentir permitida a expressar-se sem opressão, é necessário que a pesquisa
a ser realizada utilize de uma metodologia que compreenda a criança como sendo sujeito de direitos, que
Nas narrativas apresentadas, as crianças relatam agressividades que ocorrem cotidianamente entre
elas e seus colegas de sala. A insegurança e o medo toma lugar nos horários que deveriam ser de brincadeiras
e descanso, isto é, no intervalo, o qual é apontado por Spréa (2010) como sendo um evento social que tem
em suas atividades as crianças como protagonistas. E é nesse evento social que temos um espaço de tempo
composto por brigas, sendo um dos momentos mais conflituosos dentro do ambiente escolar.
Levando isso em consideração, incluímos aqui o que o documento da UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) trás em discussão da violência física.
A violência física é a face mais visível do fenômeno. [...] Em algumas situações, justifica-se
o recurso da violência física como uma fonte de defesa pessoal, como atitude de proteção
aos amigos mais fracos ou como uma resposta a ação de um sujeito mais forte. Em
outras, aparece como uma atitude impensada diante de uma provocação. Independente da
justificativa, trata-se sempre de uma forma de negociação que exclui o diálogo, ainda que
seja impulsionada por múltiplas circunstâncias e se revista de uma conotação moral – como
a defesa dos amigos. (UNICEF, p.46)
Quando as crianças foram levadas a refletirem sobre quais meios tomam para se dar bem na escola,
elas consideram que as constantes brigas com seus colegas dificulta o sucesso que deveria ter na escola.
Ô, ontem a menina brigou comigo e eu que fiquei de castigo. E a professora tá de marcação
com Judson... (BRUNO 2014)
Podemos concluir, por análise das narrativas que a manifestação da violência no meio escolar.
[...] revela que o comportamento estudantil na atualidade quer, mais do que nunca, uma
política educacional de qualidade, atendendo verdadeiramente às demandas da escola
atual, bem como o envolvimento da sociedade civil no contexto educacional. [...] Dentro
dessa perspectiva, é urgente uma escola que contemple ações educativas promotoras de
aprendizagens conjuntas e significativas, em que os alunos possam trabalhar em grupos,
inserir-se no meio em que vivem e socializarem os conhecimentos construídos coletivamente
(PIGATTO, 2010, p. 304, 306).
É necessário, portanto, o estabelecimento de estratégias educativas que apresentem ao aluno formas
de trabalho em grupo, que permitam a eles estabelecer vínculos de amizades com a possibilidade de
resolverem desentendimentos entre si, sem agressões, as quais refletem e dão continuidade a uma presente
violência física.
A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NO CONTEXTO ESCOLAR
Sendo um fenômeno histórico e atual, a violência simbólica é evidenciada nas desigualdades sociais,
sujeição, marginalização, na particular violência verbal estabelecida entre a relação de alunos e professores,
alunos e pais, aluno e alunos. Está explicita, em conformidade disso, nas relações de poder. Na violência
simbólica há enfaticamente um conseguimento de dominação econômica determinada culturalmente aos
que são dominados, sendo apregoado a esses que são subjugados padrões já decretados de como entender o
mundo em sua dinâmica. Apesar de sua existência, essa violência passa por despercebida muitas vezes no
meio escolar, todavia em alguns acontecimentos ela pode vim à tona, e se tornar descoberta.
Assim, apontando para isso, trazemos o que Bourdieu e Passeron (1992) dizem que, todo ato
pedagógico é determinantemente uma violência simbólica, uma vez que se impõem aos alunos em uma
relação de poder aquilo que deve ser apreendido, que tem por merecimento ser ensinado, dessa forma, a
ação pedagógica sustenta a reprodução da violência simbólica. Como afirma Stoer (2008, p.15):
Levando em consideração, a partir das análises das narrativas infantis pode-se perceber que boa
parte dos alunos entrevistados respondeu que estava na escola para estudar, aprender e ser alguém na
vida. Percebe-se que essa afirmativa não é propriedade do discurso infantil, contudo esse ensinamento foi
internalizado socialmente e (re)significado na criança.
Nas rodas de conversa essa internalização do discurso é clara na fala de Bruno, Rita e Judson (2014),
quando lhe é perguntado o porquê que se tem que ir a escola, e o porquê que o Alien deve ir à escola:
De acordo com Cruz (2008, p.46) “As crianças não só reproduzem, mas produzem significações
acerca de sua própria vida e das possibilidades de construção da sua existência”. Assim, o ser alguém na
vida, e o não ficar burro são reproduções de significações já impostas que as crianças possuem sobre a sua
vida. De acordo com Passegi e Abrahão (20012, p.12) “[a criança] justifica a sua ida a escola com o discurso
herdado do projeto de si: ‘para ser alguém na vida’”.
Entendendo as narrativas das crianças, podemos notar a assimilação e a percepção que a criança
possui sobre de tudo aquilo que está no mundo, no qual ela está inserida. Para a criança estudar e trabalhar
é condição necessária para ter-se uma formação, é condição para ser considerada como pessoa, em outras
palavras, é primeiramente necessário estudar para obter uma identidade e torna-se útil a sociedade. Esta
concepção é aplicada por uma cultura em dominância, na qual é imposta a criança em sua mais tenra idade.
Na violência simbólica, as situações são carregadas como naturais, vemos aquele que é dominado aceitar as
circunstâncias em forma definitiva, não as resistindo. O dominado não se compreende como vítima e não
faz relutância contra o dominador que o oprime.
É notório essa relação de dominado que acata as condições sem tomar posição frente a elas, na
violência simbólica, pela fala de Bruno e Rita (2014), quando é perguntando a eles sobre o porque de ir a
escola:
Porque é obrigado. (RITA, 2014)
É, é obrigado. Se a gente não for para a escola, nossa mãe é presa e a gente vai para o
juizado de menor. (BRUNO, 2014)
Quando Bruno e Rita dizem ser obrigados a irem à escola, não só na fala deles, mas nos gestos e
expressões faciais é perceptível à aceitação desta obrigatoriedade imposta. Bruno é consciente da prisão da
sua mãe caso ele não esteja assíduo na escola e a sua ida ao juizado de menor, ele demonstra o “não poder
fazer nada contra isso”, isto é, procura conforma-se quando relata e reproduz o discurso que lhe é inculcado.
Nesse contexto, podemos constatar na fala de Bruno (2014) a figura de um Estado que promove
intensamente as relações de poder e a escola como movimentada a um aparelho reprodutor de ideologia
da cultura opressora. De modo formal, a escola para o Estado deveria ter um tratamento igualitário para as
crianças, ou seja, elas tinham por dever possuir as mesmas chances, sendo expostas as aulas que abordariam
os mesmos conteúdos, avaliações e regras. Porém, pela desigualdade social muitas crianças não podem
atender as exigências que se apresentam um tanto obscuras na escola, devido às situações desfavoráveis de
umas com relação a outras as oportunidades são desiguais.
Em concordância com isso, trazemos o que afirma Mendonça (1996, p. 2):
Como sendo o possuidor do monopólio da violência simbólica, o Estado se revela como facilitador
das ações de grupos dominantes, não demonstrando a importância da escola para não promover ou resistir
às chances desiguais existentes. Segundo Bourdieu (2001), o Estado por ser a instituição detentora do
monopólio da violência simbólica , estabelece limites contra qualquer resistência simbólica contra esse
monopólio, em outras palavras, o Estado limita dos indivíduos o direito de colocar-se em sua própria visão,
em seus próprios princípios.
É observado nas narrativas das crianças, outro sinal de violência simbólica, o qual se expressa
quando lhes é questionado se elas gostam do bairro onde elas moram e o que tem de ruim nesse bairro, que
elas não gostam, sabendo que as crianças moram no bairro no qual está localizada a escola. Bruno (2014),
rapidamente coloca-se:
Bala, tiro, bandido! (BRUNO, 2014)
Nisto, logo questionamos as crianças com a mediação do Alien se há muitos bandidos onde eles
moram, Judson (2014) narra:
Teeem! Olha, eu, a gente tava jogando moedinha, tem um menino que se chama Wesley e o
Fábio, ai um dia a gente tava jogando bola e choveu, ai Fábio foi pra dentro da casa dele, ai
quando parasse de chover a gente ia brincar mais, ai eu e Wesley ficou debaixo da árvore,
ai quando parou a chuva, ai Wesley foi chamar Fábio, ai passou dois ladrão assim ô... Com
duas arma! Foi, foi uma doooze. (JUDSON, 2014)
Nas narrativas expostas, notamos que a violência simbólica pode ser encaminhada por um indivíduo
ou um grupo, que se mantém a exercer o controle do poder simbólico sobre outros indivíduos ou grupos,
provocando assim nos dominados a avaliação de um mundo fundamentado em princípios que distinguem o
que é bom, o que não é, o que é verdadeiro, o que é falso. Isto é, a criança passa a ser resultado das forças
sociais, das relações de poder existentes. Para Durkheim (2002, p. 88):
O indivíduo é produto da sociedade como um todo e sua existência só se torna real
mediante a atuação do Estado. Entretanto, é somente com um equilíbrio de forças entre
grupos secundários e o Estado que o indivíduo pode existir de fato, afinal “é desse conflito
de forças sociais que nascem as liberdades individuais”
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Eixo Temático 1: PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Resumo: Este trabalho explicita as aproximações epistemológicas da educação musical e autobiografia que envolve
reflexões fundamentadas a partir da história de vida contada pelo maestro Levino Ferreira de Alcântara. As questões
norteadoras dessa investigação estão centradas na história de vida de um sujeito que, ao participar do movimento
musical de Brasília, contribui na inserção da música nas escolas de educação básica do Distrito Federal. Assim,
buscamos compreender quem é esse sujeito; quais suas experiências formativas em educação musical; que princípios
de ação nortearam as suas concepções em educação musical. A pesquisa autobiográfica em educação musical se
inscreve na condição humana de um sujeito que conta, por meio de sua relação com a música, o que ele é, ou, poderá
vir a ser evidenciando o contexto sócio-histórico estudado. Na abordagem autobiográfica, a técnica utilizada foi da
entrevista narrativa. A partir da pergunta geradora: “Conte-me como a sua história está imbricada no processo de
construção da educação musical no Distrito Federal”, o entrevistado disse: “O seu campo [a educação musical] é
muito mais importante do que a minha própria história, mas eu vou lhe contar algumas de minhas histórias, posso?”.
Indagou-me Levino, parecendo pedir permissão para fazer narrativas de si. No sentido epistemológico, podemos
dizer que é ressaltando a relevância da subjetividade, da tomada de consciência do sujeito, dos saberes construído
pela pessoa no seu fazer pedagógico-musical diário, que vamos ampliando o nosso objeto de estudo, isto é, a área de
educação musical e a autobiografia.
Palavras chave: Educação Musical, pesquisa Autobiográfica, Histórias de Vida de Educadores Musicais.
Introdução
Este trabalho apresenta um recorte de uma pesquisa desenvolvida através do grupo de pesquisa Educação
Musical e Autobiografia – EMAB. Para compreender como a área de Educação Musical vem se constituindo no
Distrito Federal tomamos como objetivo investigar as histórias de vida dos sujeitos que fizeram ou fazem parte do
processo de construção da Educação Musical Escolar no Distrito Federal. Este trabalho explicita as aproximações
epistemológicas da educação musical e autobiografia que envolve reflexões fundamentadas a partir da história de
vida contada pelo maestro Levino Ferreira de Alcântara. Nessas aproximações estão envolvidos os objetos de estudo
que entrelaçam os problemas relacionados à relação do sujeito com a música sob os aspectos de apropriação e
transmissão, evidenciando a subjetividade/espaço/tempo/práticas/saberes individuais e sociais. Na abordagem
autobiográfica, a técnica utilizada foi da entrevista narrativa.
Parto do pressuposto que uma das maneiras de falar sobre a área de educação musical é partir do diálogo com
seus sujeitos, sobretudo com aqueles que escolheram educar musicalmente como profissão. Tomando como base os
pressupostos teóricos que fundamentam a pesquisa biográfica analiso aspectos da história de vida do maestro Levino
Ferreira de Alcântara que elucidam o seu percurso formativo, sua experiência e sua ação em esquemas temporais
que situam a área de educação musical no Distrito Federal. Nesse sentido, procuramos, neste trabalho, afinar mais
o aporte teórico-metodológico da pesquisa empregando as narrativas como fontes, para construir a biografização da
experiência de um sujeito informado por ele mesmo.
É sabido que, a constituição individual do sujeito convoca a problematizar questões concernentes ao
complexo das relações entre indivíduo e suas inscrições nos processos históricos, sociais, culturais, econômicos e
políticos. Ao examinar alguns desses aspectos implicados na experiência de vida de um indivíduo como um ser social
singular torna-se possível apreender uma singularidade atravessada, informada, pelo social, no sentido em que “o
social lhe dá seu quadro e seus materiais” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 02).
As questões norteadoras dessa investigação estão centradas na história de vida de um sujeito que, ao
participar do movimento musical de Brasília, contribui na inserção da música nas escolas de educação básica do
Distrito Federal. Assim, buscamos compreender quem é esse sujeito; quais suas experiências formativas em educação
musical; que princípios de ação nortearam as suas concepções em educação musical.
As histórias de vida de destacados educadores musicais, como a do maestro Levino Ferreira de Alcântara
e sua representatividade na história da educação musical do Distrito Federal, no que tange à construção do vir a ser
educador musical e à profissionalização docente, nos permite avançar no conhecimento de nosso objeto de estudo
para o qual as histórias de vida têm grande representatividade.
A pesquisa autobiográfica em educação musical se inscreve na condição humana de um sujeito que conta,
por meio da sua relação com música, o que ele é, ou, poderá vir a ser. Essa visão integrada da experiência estruturada
pelo(s) contexto(s) permite uma interpretação dos sentimentos, comportamentos e pensamentos que ocorrem com as
pessoas que se relacionam com música, bem como o cenário estudado. Conforme afirma Kraemer (2000, p.54-55),
“através da ocupação com a história, os sentidos de ações humanas, contextos definidos socialmente e possibilidades
subjetivas de formação são desvelados”.
Na visão epistemológica de Bastian (2000), a pesquisa em educação musical tem ampliado as suas
diversificações metodológicas no sentido de abarcar cada vez mais, na pesquisa empírica, os dados sociais e as biografias
dos sujeitos pesquisados. Há, nesse sentido, um dialogo cada vez mais estreito entre pesquisadores e pesquisados.
Portanto, levando-se assim em consideração tanto a experiência do sujeito que informa, que tem conhecimento sobre
a situação, e que podem fazer a diferença no entendimento das informações, quanto do pesquisador que, a partir de
sua maturidade, poderá chegar a novas conclusões e levar adiante a educação musical como ciência (BASTIAN,
2000, p. 77-89).
Para abarcar o nosso objeto de estudo, partimos dos aspectos epistemológicos que envolvem a pesquisa
biográfica, discutidos por Delory-Momberger (2012). O que constitui o projeto epistemológico da pesquisa biográfica
é a “constituição individual” do sujeito (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 523). De acordo com a autora, o objeto de
estudo da pesquisa biográfica se inscreve em uma das questões centrais da antropologia social buscando compreender
“como os indivíduos se tornam indivíduos?”. Essa questão convida outras áreas do conhecimento a desdobrar outras
questões que tratam da complexidade das relações dos indivíduos e suas inscrições nos contextos históricos, sociais,
culturais, linguísticos, econômicos e políticos.
A epistemologia da pesquisa biográfica tem como seu objeto de estudo as relações entre o indivíduo
e as representações que ele faz de si mesmo, e das suas relações com os outros, entre o indivíduo e a
dimensão temporal de sua experiência e de sua existência. Isso significa que o objeto da pesquisa biográfica
consiste em “explorar os processos de gênese e de devir dos indivíduos no seio do espaço social, de mostrar
como eles dão forma as suas experiências, como fazem significar as situações e acontecimentos de sua
existência” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 524). A pesquisa biográfica preocupa-se em abordar
as questões ligadas à narratividade, à reflexividade da escrita e ao sujeito, assim como aquelas ligadas
às temporalidades para fazer emergir: “o presente agindo, o passado como experiência e o futuro como
horizonte de responsabilidade” (BACHELARD; PINEAU, 2009).
A narrativa, segundo Clandinin e Connelly (2011, p. 26) “tornou-se um caminho para o
entendimento da experiência”. Nessa perspectiva, as experiências são as histórias que as pessoas vivem.
Para os autores, “as pessoas vivem histórias, e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificam-se e
criam novas histórias”, educando a nós mesmos e aos outros.
Sob o ponto de vista epistemológico da área de educação musical (cf. Kraemer, 2000), é possível
dizer que o conceito de experiência de formação em música deve passar pela relação do sujeito com a
música sob os aspectos de apropriação e de transmissão de algo que se experimenta e transforma. Nesse
sentido a relação do sujeito com a música sob os aspectos de apropriação e transmissão deve estar ligado
a uma lógica interna, pois, segundo Alheit (2011, p. 34) “somos nós que percorremos um processo de
aprendizagem. Não existem substitutos para os processos de aprendizagem”. Isso remete as palavras de
Nóvoa (1988, p. 116), “a (auto)biografia integra-se no movimento actual que procura repensar as questões
da formação, acentuando a idéia que ninguém forma ninguém e que a formação é inevitavelmente um
trabalho de reflexão sobre os percursos de vida”. Portanto, a experiência exige autoformação.
Por fim, tanto na formação humanística como na experiência estética, na relação do sujeito da
experiência com a música, a formação é feita por ressonâncias. Diferente da imitação, o processo de
ressonância acontece no sujeito que se apropria e/ou transmite música quando se volta para si mesmo e
escuta, olha, e se dá conta daquilo que ressoa nele. E, assim, alguém que vai sendo levado à sua própria
forma. A ressonância nos conduz a própria maneira de ser.
Atualmente, pesquisadores de diversas áreas, principalmente historiadores utilizam e coletam depoimentos
de vida das pessoas locais para construir a história de vida. Segundo Pineau (1984), esse procedimento metodológico
das histórias de vida é uma busca de sentido a partir de acontecimentos pessoais vividos. Ele cria a memória entre
passado e futuro, entre o fazer e o dizer. É uma prática de produção de si mesmo que contribui para que cada um
“tome em mãos” a própria vida, tornando-a formadora. Esse procedimento narrativo permite aos sujeitos, “tomar em
conjunto” os acontecimentos, os encontros que marcaram sua história, integrando-os, pela narrativa, num contexto
sócio-histórico, cabendo a cada um deslindar sua parte pessoal daquela que emana do coletivo (PINEAU, 1984, p.
23).
Na pesquisa organizada pelo EMAB sobre a história de vida de educadores musicais do Distrito Federal
optou-se por essa abordagem pela potencialidade de diálogo entre o individual e o sociocultural. A entrevista narrativa
com o maestro Levino Alcântara ocorreu em agosto de 2013.
A partir da pergunta geradora: “Conte-me como a sua história está imbricada no processo de
construção da educação musical no Distrito Federal”, o entrevistado disse: “O seu campo [a educação
musical] é muito mais importante do que a minha própria história, mas eu vou lhe contar algumas de minhas
histórias, posso?”. Indagou Levino, parecendo pedir permissão para fazer narrativas de si.
O melhor termo para definir Levino Alcântara poderia ser o que Ferrarotti (1988) chama de “universal singular,
tendo sido totalizado, e assim universalizado pela sua época”, um homem que pela singularidade universalizante dos
seus projetos se tornou a própria história da educação musical escolar do Distrito Federal. Levino totalizou por meio
de seu contexto social os pequenos grupos dos quais fez parte. A esse respeito Levino disse: “Eu passei dez anos
criando um movimento musical. Eu sonhava com uma escola. Pesquisei o Brasil todo. A Europa também. Eu queria
saber como era a relação do homem com a música para depois montar a escola”.
O relato de Levino chama a atenção pela sua visão epistemológica relacionada à área de educação musical.
Cada ciência produz o seu próprio objeto científico, e a educação musical como um campo de conhecimento se ocupa
com relações entre ser(es) humano(s) e música(s) sob os aspectos de apropriação e transmissão. Do seu campo de
estudo fazem parte toda a prática músico-educacional que ocorre dentro e fora das instituições de ensino.
Na visão de Levino não bastava apenas montar uma escola, como ele conta: “Invadi um terreno do governo
e coloquei uma placa com o nome da escola. Criei a Fundação Escola de Música de Brasília”, mas, também, criar
as bases epistemológicas que fundamentam, em suas palavras, “a relação do homem com a música”, para assim,
formar pessoas. O trabalho de Levino foi também o de arregimentar pessoas com interesses comuns. Nesse aspecto
o maestro lembra o seguinte episódio: “Consegui enquadrar todos os grupos do Distrito Federal e criei a Escola de
Música de Brasília. E começamos com um núcleo instrumental”.
Apesar de o maestro relatar que o seu interesse era apenas o de ensinar música, é evidente o seu
empreendedorismo, bem como a sua articulação política. Levino conta como conseguiu o apoio do governo para
a construção da escola de música: “Eu nunca pensei em ganhar dinheiro, meu negócio era fazer. Eu sonhava em
fazer uma escola e para isso acontecer eu precisava mostrar trabalho”. O maestro procurava chamar a atenção das
autoridades para o seu trabalho “sempre tocando e cantando, até que o governador vendo aquilo aprovou a construção
do teatro da escola. Da ferradura nasceu um concreto, uma concha acústica, um teatro. Comprei livros e obras de
artes. Fiz viagens internacionais para falar do meu trabalho”.
Para iniciar as atividades da escola, Levino contou que buscou trabalhar em parceria com as “embaixadas
dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha”. Ele disse: “iniciei com os professores que a embaixada nos ajudava.
Coloquei o primeiro grau e o curso profissionalizante. Todo ano eu mandava meninos para estudar lá fora”. Embora
essa parceria com as embaixadas tenha trazido bons resultados, Levino contou com certo pesar que enfrentou alguns
problemas com relação à contratação de músicos-professores: “Dei emprego para músicos internacionais. Arrumei
empregos para músicos que fugiam da guerra, mas havia muitos aproveitadores. Por que não trabalhar junto? Planejar
junto?
A Escola de Música de Brasília era, para o maestro Levino, “um centro de formação de professores”. Embora
ele não tenha deixado claro, no momento da entrevista, que tipo de formação era oferecida é possível dizer que os
professores eram músicos e que recebiam orientações pedagógicas para atuar como docentes em música. A esse
respeito ele narrou o seguinte: “Nunca botei o cara para ser professor por que tinha título, mas pelo o que ele era. Eu
não queria que repetissem o que faz a universidade. Eu queria o conhecimento e a experiência deles”.
Para Levino a formação musical nasce da experiência dos indivíduos. Ele acredita que “a universidade não
considera a experiência da pessoa e isso é um problema”. Isso remete as palavras de Delory-Momberger (2008) que
acredita ser necessário que as instituições formadoras desenvolvam uma concepção global da formação, de forma
que, ao lado dos saberes formais e externos ao sujeito, aos quais visa a instituição universitária, devam estar os
saberes subjetivos e não formalizados que os indivíduos utilizam na experiência de sua vida, nas suas relações sociais
e na sua atividade profissional (DELORY-MOMBERGER, 2008, p.90-91).
O maestro Levino acredita que formar pessoas “é estar ali junto, cara a cara estudando de verdade, preparando
para lutar por esse país”. Para aclarar essa ideia, Levino contou a seguinte história:
Quando Dom João chegou ao Brasil, encontrou um mulato chamado José Mauricio,
filho de escravo, criado no orfanato. Ele começou a estudar e escrever música.
Estudou para padre para enfrentar os problemas da época porque era negro. Assim,
tinha como se inserir socialmente e lutar. Ele tinha uma causa.
O fio condutor da história de vida de Levino é tramado pelas suas lutas espelhadas na de outras pessoas.
Sua história expressa às tessituras que conferem legibilidade e visibilidade às suas causas. Para ele, a formação de
pessoas deve estar embrenhada de causas. Disse ele: “Devemos lutar muito para salvar esse país. Prefeitos entram
para governar sem formação. É preciso aumentar o número de cursos com qualidade. É um pena um país com tanta
inteligência e capacidade, e ninguém estudando direito. É tudo mais ou menos”, finalizou movimentando a cabeça
sinalizando certo descontentamento. Desse descontentamento brotaram as seguintes palavras: “Os jovens precisam
acreditar em si mesmo para saber que vão influenciar outras pessoas”. A crença em formar pessoas “para pensar um
mundo melhor deve-se iniciar pelas crianças”, afirmou de forma veemente.
Ao falar da sua visão atual sobre a Escola de Música de Brasília e Secretaria de Educação, Levino disse:
“Hoje a minha relação com a Escola de Música é só a de dar conselhos. Se me pedirem conselho eu dou, porque acho
que tinha de ser diferente. Pensar na criança, e não ficar fechado”. Com relação à Secretaria de Educação, Levino
acredita que “se a secretaria tivesse concordado... Eu queria criar o ensino de música de tempo integral... Se tivesse
deixado... Nem vou falar...” ponderou reticencioso.
Em seguida falou sobre as suas justificativas, ou seja, os motivos que o levaram a querer implementar um
projeto de música para crianças em tempo integral. A esse respeito narrou o seguinte: “Eu tinha um sistema para
atender aos finais de semana. Eu queria uma orquestra para educar crianças. Orquestra sinfônica? Não! Meu foco era
educação musical. Minha preocupação era a criança. Ou nos preocupamos com elas ou não salvaremos esse país”.
Para Levino a formação começa por “preparar professores para atender as crianças e suas necessidades. Eu
tinha uma menina que nasceu com problema na mão, tinha problema de ritmo, mas tinha vontade. Isso é fabuloso,
extraordinário!”, exclamou com orgulho ao falar dos resultados alcançados no ensino e na aprendizagem da música
de alunos que passaram por suas mãos. “Hoje”, disse ele, “tenho alunos concursados como músicos e professores.
Isso é fabuloso! Eles são minhas medalhas. São eles que estão por aí, pelo mundo, tocando, cantando, ensinando.
A história de vida contada por ele mesmo mostra o quanto Levino tinha consciência de si, de sua formação e
autoformação como pessoa e músico experiente. O projeto de si tem sido construído desde a mais tenra idade, mas foi
em 1974, por ocasião da inauguração da Escola de Música de Brasília, que o maestro projetou o seu futuro narrando
o seguinte episódio:
Parei de dar aulas. Coisas ruins aconteceram. Aposentei como funcionário público.
Aposentei e deveria ir embora. Em 74 inaugurei a escola e comprei uma fazendinha,
um lugar para ficar depois de aposentado. Fiz a fazenda para viver a vida lá. Plantei
árvores, fiz um pomar para os passarinhos terem o que comer. Fiz um açude de
peixes na fazenda. Na construção da Escola de Música de Brasília eu construí
tanques de peixes para os pais levarem seus filhos para ver os peixinhos e poder
ouvir as músicas tocadas na escola. Os peixes continuam... Eles estão no açude não
para pescar, mas para viver.
Essa postura expressiva da autonomização leva Levino à conscientização de que os seus atos tornaram-se, para
ele, significativos à produção de ricas memórias, pois, conforme Bruner (2001, p. 140), “Vivemos em um mar de
histórias”, e Levino parece não ter dificuldades em compreender “o que significa nadar em histórias”.
Como protagonista de sua própria história, o maestro Levino se coloca não como ator, mas autor de uma vida
projetada. Ter um projeto de si consiste em tornar-se autor de uma vida vivida com consciência. Isso significa dizer
que o mundo necessita de autores de si para tornar-se um bom lugar para se comviver. Construir um pomar para os
passarinhos, açude para os peixes e uma escola de música para crianças no sul do Estado do Pará pode-se dizer que
Levino constrói a sua história integrada à vida.
Depois de reger “o Brasil todo” e fazer história no Distrito Federal, Levino conclui: “Estou começando
agora”. Como afirma Arendt (2007, p. 190), “Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar
(como indica a palavra grega archein, “começar”, ser o primeiro, e em alguns casos governar), imprimir movimento
a alguma coisa”. Por ser um homem de espírito visionário, o maestro tomou a iniciativa de desenvolver um projeto
no sul do Pará com a finalidade de atender um grande número de crianças no fazer musical: “trabalho pelos 15
municípios porque o Pará vai ser o estado do futuro”, afirmou Levino.
O “estado do futuro”, supramencionado pelo maestro, pode ser comparado ao seu jeito de enxergar o mundo.
Levino define o lugar em que está como um espaço de possibilidades, cujas ações são produzidas de acordo com o
potencial que cada situação se apresenta. Schaller (2008, p. 70) afirma que, esses espaços que não se fecham, mas
tornam possíveis que a inteligência individual e coletiva caminhe com a mobilidade que o próprio espaço permite.
Sendo assim, é preciso assumir-se imbricado ao lugar para construir o seu vir a ser.
As narrativas mostram que os lugares por onde Levino passou deixaram rastros. Esses rastros podem ser
comparados ao que disse Lissovsky (2012), em sua pesquisa sobre Walter Benjamin no artigo Rastros na paisagem:
Tal como nas pegadas sobre a areia, é ainda de um percurso no interior da imagem que se trata.
Um movimento que não é apenas ótico, mas que desequilibra, surpreende, pois a profundidade nas
estereoscópicas não é um contínuo, mas um conjunto de planos sucessivos onde o percurso do olhar
se faz por pequenos saltos. (LISSOVSKY, 2012, p. 229)
Os rastros de Levino deixam marcas de um sujeito da experiência. Nas palavras de Larossa Bondiá (2002)
“um sujeito alcançado, tombado” [...] por aquilo de que faz a experiência dele se apoderar”. O autor afirma ainda
que “somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação [...] é um território de
passagem” (LAROSSA, 2002). O território de passagem é constituído para que nada nos escape, nas palavras de
Walter Benjamin, para que as experiências se tornem cada vez menos raras, mas indexadas em narrativas para que
nada nos passe. E, como afirma Larossa (2004, p. 154), “a cada dia passam muitas coisas, porém ao mesmo tempo,
quase nada nos passa. Dir-se-ia que tudo o que passa está organizado para que nada nos passe”.
O maestro Levino Ferreira de Alcântara deixou-se dizer que o seu projeto de vida consiste em trabalhar
com as crianças. Ele acredita que “temos de criar situações, condições para que a criança sinta prazer em aprender,
recordar o que já aprendeu para fazer melhor outras coisas”. As palavras de Levino remetem a concepção de um
sujeito que considera a educação musical como experiência. Seu relato denota a centralidade da criança como sujeito
de direito. Isso requer dos educadores musicais uma compreensão da sua inteireza de pensamento, sentimento,
movimento e ação, para que assim, reconheçamos no aprendente suas formas de ver e representar o mundo da vida
como modos legítimos de ser e de viver em sociedade.
A reflexividade autobiográfica que a criança realiza no ato de recordar e narrar, seja no cotidiano escolar, seja
no fazer musical vai ampliando seu repertório de visões de mundo. Nesse sentido, o maestro entende que “a criança
precisa estudar uma língua estrangeira, literatura, teatro, pintura. Assim, ela vai ouvir música e pintar um quadro. Não
se pode fazer música sem comparar. Cada voz, cada instrumento é uma cor. E a soma disso tudo forma um quadro”.
Para o maestro, “o som é tudo que vivemos, é resultado de vibração, e pela altura dos sons fazemos música, e tá
acabada a história, o resto são cores”.
A palavra “comparar” supramencionada pelo maestro remete a constatação das propriedades que envolvem
objetos de estudos diferentes. Para ele é importante que a criança aprenda diferentes linguagens para, assim, ver o
mundo como um conjunto de cores dadas, mas também escolhidas, apropriadas.
A metáfora das cores, elucidada pelo maestro Levino, pode ser compreendida como um fazer musical que
envolve a relação entre pessoas e música sob os aspectos da apropriação (KRAEMER, 2000, p. 51). Ao se apropriar,
o sujeito torna em si o sentido do outro, do diferente, traduzindo-o com sua própria linguagem, sem, no entanto,
descaracterizá-lo. No sentido semântico, conserva-se o significado e transforma o significante. Ou seja, ao se apropriar
a pessoa torna próprio em si o sentido do outro. Ter o outro é diferente de se tornar o outro. Para Levino “a criança
precisa aprender a ser. Ter é consequência do ser”. Por isso, é possível compreender a visão do maestro sobre o que é
educação musical. Ele disse: “Quero acordar as crianças com concertos de Haydn. Eu não acredito em uma educação
que não se prepara a criança para o amanhã. A criança que recebe uma boa educação, principalmente de música e das
artes, será um cidadão completo no futuro”.
E, “no futuro”, disse Levino: “o sonho é continuar trabalhando com as crianças de Conceição. Quero fazer
arranjos e montar a história do Pedro e o Lobo para despertar o gosto pela orquestra. To fazendo cadernos didáticos
para ensinar elas a gostarem de tocar um instrumento”. O maestro deixa claro nessa narrativa o interesse da área de
educação musical. Para a área de educação musical não é, por exemplo, o arranjo musical, a compilação, a partitura
que interessa, mas como o educador musical pensa para arranjar pedagogicamente determinado arranjo musical, quais
decisões pedagógico-musicais podem ser tomadas para que haja ensino e aprendizagem, nas palavras de Kraemer
(2000, p. 51) “transmissão e apropriação”. Em síntese, o que fazer para que aquele arranjo chegue ao aluno de forma
que ele aprenda a fazer música.
O maestro contou que tem certa preocupação com a formação musical desses alunos, e, por isso, quer
oportunizar esses jovens alunos a terem contato com diferentes professores de música, com seus jeitos distintos de
ensinar e fazer música. A esse respeito, Levino disse: “Quero levar cursos de uma semana com professores convidados
para ampliar o conhecimento dos alunos de Conceição, para isso, vou recorrer aos antigos amigos para ajudar essas
crianças. Vou fazer um concerto no dia das crianças, para essas crianças”. Por fim, disse em tom conclusivo: “Eu não
posso perder tempo”.
Considerações Finais
Muitos foram os fios que se tramaram na construção da pesquisa, porém a altivez de Levino mostra uma
história de vida entrelaçada de lutas, determinação e uma concepção de educação musical integrada à vida. A narrativa
produzida por Levino Alcântara exprime pontos de vista sobre o que e qual educação musical ele acredita. Para ele
a natureza da educação musical escolar consiste na tradição herdada pelo modelo construído por Vila Lobos, isto é,
promover o ensino de música através de coros e orquestras escolares com o objetivo de “levar música para o povo”.
O maestro acredita que essa retroalimentação poderá sensibilizar os ouvintes a defender o ensino de música na escola
de forma mais consistente e permanente.
A história de vida musical de Levino Alcântara caracteriza-se por uma narrativa pessoal, entretanto, os
acontecimentos vividos, principalmente no Distrito Federal deixam entrever a passagem de um sujeito singular
para um relato plural. É nessa pluralidade que se apresenta a experiência de uma coletividade, especificamente, a
construção de uma educação musical escolar centrada no ensino de instrumento, ou, pelo menos, na ideia de preparar
a criança para tocar um instrumento musical.
Da sua autoformação em educação musical evidencia-se a história de um protagonista cujos princípios
filosóficos e pedagógicos influenciaram e continuam influenciando pessoas e instituições de ensino no Distrito
Federal a promoverem uma educação musical escolar cujos princípios pedagógico-musicais consistem no ensino e
aprendizagem de instrumentos para formação de grupos orquestrais.
Os resultados apontam, na experiência de vida de Levino Alcântara, princípios de ação em educação musical.
Esses princípios sugerem caminhos para aprofundamentos de pesquisas na área de educação musical que, por meio
das pesquisas autobiográficas, possam contribuir na ampliação do seu objeto de estudo. No sentido epistemológico,
podemos dizer que é ressaltando a relevância da subjetividade, da tomada de consciência do sujeito, dos saberes
construído pela pessoa no seu fazer pedagógico-musical diário, que vamos ampliando o nosso objeto de estudo, isto
é, a área de educação musical e a autobiografia.
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PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Resumo
O presente artigo trata de pesquisa concluída sobre as narrativas de professores em formação, o que gerou
reflexões epistemológicas e teórico-metodológicas sobre a pesquisa narrativa e seus desafios. A questão
central foi em torno de compreender como se deu a experiência da constituição docente desses sujeitos, em
Matemática à distância, quando os saberes relativos à prática docente e à formação superior se encontravam.
Os objetivos priorizaram ‘Identificar, narrar e analisar a trajetória de ingresso de um grupo de alunos-
professores em uma licenciatura; Buscar e narrar o processo de formação docente e de apropriação dos
saberes da atividade profissional desses professores antes de ingressar nesta graduação; Narrar e analisar a
experiência da formação profissional em serviço e a relação dos saberes do curso com aqueles mobilizados
em suas práticas profissionais’. Com base na abordagem histórico-cultural, fez-se um diálogo com teóricos
que discutem saberes e formação docente nos campos envolvidos. Assumiu-se a abordagem qualitativa e
a investigação narrativa em Clandinin e Connelly (2000) e Bolívar (2002). O material empírico envolveu
entrevistas, memorial de formação, observações, mensagens eletrônicas, diário de campo e a construção
das narrativas dos sujeitos. Os resultados mostraram que narrar a própria formação é uma maneira de se
constituir e de se reconhecer na própria história. Houve aproximações entre o ser e o fazer e a busca do
embasamento teórico e da articulação entre os diferentes saberes que amalgamam a relação docente; e
houve distanciamentos em não perceber/ou não procurar fazer uma relação teoria/empiria.
1 Apresentação
O presente artigo trata de pesquisa realizada sobre a formação de professores de Matemática à distância
através da Universidade Aberta do Brasil – UAB. Os sujeitos envolvidos eram professores que exerciam a
docência cotidianamente e realizaram sua formação superior paralelamente a esse exercício profissional. Um
dos objetivos da investigação foi narrar e analisar a experiência da formação profissional em serviço, via a
modalidade de Educação a Distância (EaD), e a relação dos saberes privilegiados no curso de licenciatura em
Matemática com aqueles produzidos e mobilizados pelos alunos-professores em suas práticas profissionais.
Os saberes envolvidos na formação superior à distância desses sujeitos circunscrevem toda a investigação,
a partir da problemática que pretendeu perceber qual o possível encontro entre esses saberes relativos à
prática docente e os saberes acadêmicos e como isso reflete na formação superior à distância desses alunos-
professores, assim denominados na investigação. A construção teórica empreendeu pesquisas e estudos
sobre a constituição docente (Fiorentini, 2003; Borges, 2004), saberes docentes (Shulman, 1986; Tardif,
2002) educação à distância (Belloni, 1999) e experiências de formação (Clandinin e Connelly, 2000).
O percurso metodológico envolveu uma pesquisa qualitativa de cunho narrativo, com instrumentos de
coleta de dados como questionários, entrevistas, diário de campo, memorial e observações. Bolívar (2002)
1 Esse trabalho conta com o apoio da Fundação de Amparo a Pesquisa (FAPEMIG) para
divulgação.
afirma que a narrativa não é só uma metodologia, mas uma possibilidade de construir uma realidade, pois
se assenta em uma ontologia. A individualidade não se explica somente por referências extraterritoriais, daí
a importância de partir do entendimento da subjetividade, que é uma condição necessária do conhecimento
social.
As narrativas dos professores sobre sua formação e os desafios da constituição docente, são o foco nesse
momento a partir de uma das narrativas. Segue-se a apresentação da concepção que envolve o programa
da UAB, a participação das Instituições de Ensino Superior (IES) na oferta de cursos/licenciaturas na
modalidade à distância e a experiência investigada, a partir do olhar de um dos sujeitos de pesquisa.
A busca pela formação superior no Brasil tem sido algo mais enfático nos últimos anos e, parte desse
interesse se deve pela ampliação de oportunidades de acesso ao ensino superior, o que antes era precário. Essa
ampliação se deve também, segundo Gatti e Barreto (2009) em grande parte pelo incentivo à modalidade
de Educação EaD – modalidade essa que, a partir da UAB, no ano de 2005, ganhou contornos de Política
Pública de Formação. Esse cenário fez com que professores que já estavam em exercício profissional, sem,
contudo possuírem a formação superior e habilitação na área buscasse por essa oferta.
O projeto da UAB foi discutido pelo Ministério da Educação (MEC) em 2005 com o Fórum das Estatais pela
Educação e, no ano seguinte, foi publicado o Decreto n. 5.800/06, instituindo o sistema sob a responsabilidade
da Diretoria de Educação a Distancia do MEC, ligada a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES). A UAB é identificada por princípios como priorizar a formação de professores
para a Educação Básica, promovendo, através da educação à distância, o acesso ao ensino superior para
camadas da população que estão excluídas do processo educacional. Para atingir seus objetivos, a UAB fez
uma articulação entre instituições públicas de ensino superior, os estados e os municípios para efetivação
das propostas de formação.
(...) O Sistema Universidade Aberta do Brasil [tem] foco nas Políticas e [na] Gestão da
Educação Superior. (...). A UAB é um programa da Diretoria de Educação à Distância
(DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) com
parceria da Secretaria de Educação à Distância (SEED) do Ministério da Educação (MEC).
Dentre as atribuições da UAB encontram-se atividades de articulação das instituições de
ensino superior públicas para a oferta de cursos superiores à distância em polos de apoio
presencial, prioritariamente distribuídos em municípios do interior do país. (BRASIL,
2008, s.p).
Várias Instituições de Ensino Superior públicas obtiveram autorização para ofertarem cursos em pólos
presenciais em diferentes cidades aonde a população não tinha acesso ao ensino superior público e gratuito.
A pesquisa desenvolvida acompanhou uma proposta de uma IES pública em sua primeira oferta do curso
de Licenciatura em Matemática à distância em duas cidades do interior de Minas Gerais.
Um dos sujeitos a buscar essa formação no curso de licenciatura em Matemática à distância é a aluna-
professora Rosângela. Uma mulher morena, mãe, avó, professora há alguns anos de Geometria e Artes,
tanto na rede pública quanto na rede particular de ensino, principalmente suprindo a falta de professores na
área de Matemática.
Rosângela trazia consigo experiências diversas no que diz respeito à docência, a escola, a matemática e
desejava a certificação para que todos percebessem seu trabalho de forma legitimada. Isso nos leva a refletir
sobre os saberes envolvidos nessa formação e as expectativas de Rosângela diante de um programa de
formação de professores no ensino superior. Saberes, experiências e narrativas em movimento.
O curso de licenciatura em Matemática apresentava segundo seu Projeto Político Pedagógico – PPP (2006)
um curso em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores (Parecer
N. CNE/CES 1.302/2001); e Cursos na modalidade de Educação à Distância: (Decreto 5.622/2005 e Portaria
02/2007). A carga horária prevista era um total de 3090 horas, distribuídas em nove períodos, sendo que a
prática pedagógica e o estágio supervisionado compreendiam oitocentos e quarenta horas.
Em seu PPP assumiu-se uma concepção interacionista de educação, tendo o sujeito como construtor de seu
conhecimento. As disciplinas e as formas de avaliação também foram descritas em consonância com essa
abordagem. Os materiais organizados em fascículos impressos, hipertextos, livros e artigos. De fato, o curso
mantinha um material em parceria com outro programa de licenciatura em Matemática à distância, como
fonte básica de conteúdos para a formação de professores. O Ambiente Virtual de Aprendizagem – AVA -
utilizado foi o Moodle, o que possibilitou uma interlocução virtual com os alunos, destacando a organização
didática de cada conteúdo e os fóruns de discussão. Uma das formas que minimizavam a discrepância entre
a proposta de curso à distância e a falta de acesso a tecnologias pelo público alvo, os pólos, em parceria com
as prefeituras das cidades, implantaram laboratórios de informática com bons computadores conectados à
internet para uso dos alunos. Isso era um pré requisito para que os cursos fossem ofertados em parceria com
os municípios.
Mas, buscando compreender os sujeitos envolvidos nessa formação e o que diziam sobre si e sobre a formação,
a investigação compreendeu uma imersão nos pólos presenciais e no ambiente virtual de aprendizagem
para buscar narrar essa dinâmica. Considerar os saberes da experiência e fazer uma articulação com os
saberes da formação profissional, disciplinares e curriculares é o que pode possibilitar uma formação mais
abrangente e consolidada de professores.
A experiência é o que nos torna humanos e capazes de avaliar o que “nos passa” (Larrosa, 2001). A
contribuição de Clandinin e Connelly (2000) também é significativa quando se tenta captar a experiência
vivida pelos sujeitos, por isso a investigação considerou metodologicamente a pesquisa narrativa assumida
como um modo de compreender a experiência.
Buscando investigar a experiência, foram definidos os instrumentos de coleta de dados, os quais espelham
as escolhas metodológicas: questionário, entrevistas, memorial de formação, observações, diário de campo,
que se amalgamaram, refletindo vozes e experiências de formação. A partir de todos esses instrumentos,
foram construídos dossiês sobre os sujeitos. Lapidando esses dossiês, foram elaborados quadros de análise
que permitiram visualizar cada sujeito a partir de aspectos levantados como possíveis eixos de análise.
Por meio desses procedimentos, foram compostos quadros analíticos sobre os sujeitos que possibilitaram
construir a narrativa sobre cada um deles, tentando, a partir de então, puxar fios para análise em torno da
trama maior sobre a experiência do possível encontro entre saberes relativos à prática e à formação superior,
no curso de Matemática à distância.
Os questionários foram utilizados para uma aproximação dos sujeitos, logo em seguida o convite para
participarem da pesquisa e os procedimentos éticos envolvidos. Seis alunos-professores aceitaram continuar
participando da pesquisa e a partir dessa etapa as entrevistas aconteceram, os diários de campo, as trocas
de mensagens eletrônicas e os dossiês sobre cada um foi elaborado. Com base nesses procedimentos, a
pesquisadora optou por construir narrativas sobre a formação dos sujeitos, o que foi validada por cada um.
Quando as pessoas contam histórias sobre si mesmas e sobre sua formação, narram acontecimentos e
acabam se constituindo também nesse processo. Por meio da narrativa, é possível expor análises tornando
públicos os significados da experiência elucidada na investigação.
Os dados foram organizados compreendendo que eles não existem por si mesmos, mas são frutos de
questionamentos que se fazem sobre os mesmos a partir de fundamentação teórica.
Diversos saberes amalgamavam essa trama e compreendê-los se tornou parte da constituição docente desses
sujeitos envolvidos e da própria pesquisadora.
4 Saberes Docentes e a Experiência
Os saberes dos professores são fundamentalmente sociais, ou seja, se interrelacionam se engajam e são
forjados nas relações sociais que envolvem esses e outros sujeitos, seus cotidianos, conflitos, configurações
e relações. Tardif (2002) afirma que o saber docente pode ser definido como um saber plural.
Sua prática integra diferentes saberes, com os quais o corpo docente mantém diferentes
relações. Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama,
mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes
disciplinares, curriculares e experienciais. ( p.36).
Os Saberes Disciplinares são os que correspondem aos diversos campos do conhecimento, como se integram
hoje nas IES, sob a forma de disciplinas. Eles emergem da tradição cultural e dos grupos sociais produtores
de saberes. Tais saberes são considerados saberes sociais, definidos e selecionados pela instituição e vão
além, ou seja, são outros, diferentes daqueles ligados aos saberes profissionais (ciências da educação e
pedagógicos).
Os saberes disciplinares (por exemplo, matemática, história, literatura, etc.) são transmitidos
nos cursos e departamentos universitários independentemente das faculdades de educação
e dos cursos de formação de professores. (TARDIF, 2002, p. 38).
Os Saberes Curriculares são saberes que correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos a
partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes sociais (disciplinares) por ela definidos
e selecionados como modelos da cultura erudita. Apresentam-se concretamente através de programas
escolares que os docentes devem aprender a aplicar.
Os Saberes Experienciais são saberes específicos que os professores desenvolvem baseados em seu trabalho
cotidiano e no conhecimento de seu meio; são saberes que emergem da experiência e são por ela validados.
Pode-se identificá-los como saberes da experiência ou saberes práticos. Os Saberes Experienciais têm
origem na prática cotidiana dos professores em confronto com as condições da profissão.
Rosângela, essa aluna-professora que vivenciou a formação em Matemática em EaD e aceitou com “brilho
nos olhos” participar de uma pesquisa que iria escrever com ela sua história de formação, emaranhou-se
nessa trama. Quando questionada sobre suas expectativas em relação à formação superior, teve, a princípio,
duas falas: uma no sentido de ter acesso ao curso desejado, de forma pública e gratuita, algo que acreditava
ser impossível em sua cidade; por outro lado demonstrou não esperar algo tão diferente sobre o ensino
de Matemática do que aquilo que ela já vivenciava em sala de aula. Ela enfatizava em suas falas que já
sabia lecionar e o que buscava era legitimar o que já fazia, pois não acreditava que a formação superior
pudesse trazer algo diferente ou até surpreendente do exercício docente em Matemática. Ela afirmou que o
curso poderia oferecer mais oportunidades de trabalho, o que ia ao encontro de sua própria relação com a
Matemática que foi construída pelo trabalho.
Ela iniciou sua experiência docente pela necessidade do trabalho e seguia exemplos e modelos de outros
professores que a auxiliavam nas escolas em que trabalhava. Poder fazer o curso de licenciatura em
Matemática na modalidade à distância era, para ela, a oportunidade de estudar, pois acreditava que não
lhe exigiria muito tempo de dedicação. Isso, posteriormente, acabou por mostrar a Rosângela que era um
equívoco seu, pois precisaria reservar tempo para o estudo e dedicação ao curso.
As experiências vivenciadas em diferentes escolas traziam para Rosângela a confiança em um saber docente
sendo que a realidade escolar acaba por servir de referência para o professor em relação aos saberes ali
vivenciados. Esses saberes advêm de várias fontes, mas o que Rosângela mais demonstrava era o saber da
experiência, o que, para ela, era suficiente para o exercício docente.
Shulman (1986) identifica saberes envolvidos na formação docente e os nomeia como saberes de conteúdos,
saberes pedagógicos e saberes curriculares, propondo uma articulação entre esses saberes para um melhor
ensino, uma maneira de amalgamar esses saberes em torno da constituição docente. Tardif (2002) se refere
a um amálgama de saberes que constituem o saber docente que pode ser definido como um saber plural,
integrando diferentes saberes e relações advindos da formação profissional, dos saberes disciplinares,
curriculares e experienciais.
A experiência é algo da maior importância, entretanto ela sozinha não é capaz de questionar e problematizar
situações de conteúdo e curriculares que contribuam para a socialização do saber construído e sistematizado.
No caso específico do conhecimento sobre a área de Matemática, Fiorentini (2003) afirma que o professor
de Matemática é capaz de refletir sobre a própria prática, bem como produzir e ressignificar saberes de sua
atividade profissional. Ele afirma que a formação do professor é um processo permanente e inconcluso,
considerando seu início antes do próprio curso de licenciatura e “se prolonga por toda a vida, ganhando
força principalmente nos processos partilhados de práticas reflexivas e investigativas” (p.8).
Rosângela teve seu primeiro ano de prática profissional muito antes do acesso ao ensino superior, já
estruturando consigo um saber docente, uma cultura profissional. Essa situação vai ao encontro do que
Tardif (2000) classifica como saberes personalizados e situados. Personalizados por estarem em relação a um
professor que tem uma história de vida, é um ator social, trazendo consigo emoções, poderes, pensamentos
e ações que carregam as marcas dos contextos nos quais está inserido. E situados, fundamentando-se em
Lave, (1988, 1991), pois são saberes construídos e utilizados em função de uma situação de trabalho,
muitas vezes, particular e é perante essa situação que eles vão dando sentido às ações e aos saberes.
Os saberes docentes são enraizados na experiência, vivida individualmente e em relação com o outro. Os
saberes se inscrevem no tempo, mas necessitam de práticas reflexivas e investigativas. No movimento
da profissionalização do ensino, da constituição profissional do docente, entre saberes, insere-se a
‘epistemologia da prática’, entendida por Tardif (2000) como o conjunto de saberes que os professores
mobilizam em seu trabalho cotidiano.
O autor afirma:
A finalidade de uma epistemologia da prática profissional é revelar esses saberes, compreender
como são integrados concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes o incorporam,
produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às
suas atividades de trabalho. Ela também visa a compreender a natureza desses saberes, assim
como o papel que desempenham tanto no processo de trabalho docente quanto em relação à
identidade profissional dos professores. (TARDIF, 2000, p.11)
Numa perspectiva histórico-cultural, buscou-se investigar o sentido da ‘experiência’ dos sujeitos de pesquisa,
e no caso, de Rosângela, em sua constituição docente em Matemática. Para isso a categoria ‘práxis’ foi
fundamental nessa compreensão, reconhecendo-a e assumindo-a como lócus de produção de conhecimento.
Para a consciência simples, a vida é “prática” no sentido prático-utilitário. Para o homem
comum e corrente a prática é auto-suficiente, não exige mais apoio e fundamento que não
seja ela própria, e daí a razão para que se apresente a ele como algo que se subentende como
seu, sem que se revista, portanto, de um caráter problemático. Sabe, ou acredita saber, a
que se ater com respeito a suas exigências, pois a própria prática proporciona um repertório
de soluções. Os problemas só podem surgir com a especulação e o esquecimento dessas
exigências e soluções. A prática fala por si mesma. (VÁZQUEZ, 2007, p.35).
O saber da experiência amalgamado aos saberes de conteúdos e pedagógicos podem ser um alicerce para
uma prática educativa mais significativa. Fiorentini (2003), Tardif (2002), Nóvoa (1995) assumem essa
posição ao considerarem esses saberes em movimento na formação docente.
Diferentes situações foram relatadas por Rosângela sobre sua relação com a Matemática e com a docência,
dentre elas as formas de estudar, planejar aulas e fontes de pesquisa. Por suas experiências com diferentes
metodologias de ensino e níveis de alunos desde crianças até a Educação de Jovens e Adultos (EJA), essa
aluna-professora tinha um olhar rico e diferenciado sobre os processos de ensino e aprendizagem.
Um possível encontro entre saberes se deu, a princípio, pela modalidade de EaD. Para quem não acreditava
em contribuições significativas da experiência do curso superior em Matemática à distância em relação à
sua própria experiência docente, foi se vendo diante de novas formas do processo ensino-aprendizagem.
A modalidade de Educação a Distância se tornou um terreno fértil para a troca de experiências e de interação
entre os alunos. Rosângela usou os fóruns (da plataforma Moodle) para relacionar os saberes acadêmicos
propostos com sua experiência discente e docente. Ela se sentia ouvida na ‘sala virtual de Matemática à
distância’ através da ampliação do debate com os professores e colegas do curso; era um cenário propício
para evidenciar sua percepção sobre o assunto, e através de ferramentas do curso à distância. Mas, também,
acreditava que o curso era mais exigente do que precisava ser; isso talvez por ela considerar o conhecimento
experiencial como suficiente para o exercício docente.
Eles estão querendo formar matemáticos, e não professores. Eles estão querendo críticos em
Matemática, é... pensadores... eles estão formando matemáticos mesmo... né, analisar, provar,
prova isso, prova isso, prova aquilo outro... coisa de louco. Faz um círculo e tem que provar
que aquilo ali é um círculo... nossa, eu fiquei, eu fiquei horrorizada com aquele negócio.
Pronto, faz esse círculo, tá claro, eu já fiz até com compasso aqui, ó, agora tem que provar?
O que fundamentava o ensino de Matemática, a compreensão dos processos que envolvem o conceito e
suas correlações não eram significativas para Rosângela naquele momento. Avaliava que o curso poderia
enfatizar o conteúdo e maneiras diferentes de sua aplicação, pois era assim que ela via a sala de aula e a
experienciava.
A perspectiva apresentada por alguns teóricos é que a experiência seja considerada em um amálgama com
outras saberes como os de conteúdo e pedagógicos. Os cursos de licenciatura poderiam valorizar mais esses
saberes que os professores, com mais tempo de experiência profissional têm, e levar em consideração no
planejamento e desenvolvimento do curso. As possíveis resistências e tensionamentos diante dos encontros
dos saberes poderiam ser problematizadas e ressignificadas na relação da formação docente.
Ferramentas utilizadas nas plataformas de cursos a distância, como chats e fóruns são exemplos de
interlocução entre alunos com professores e alunos com alunos. Belloni (1999) afirma que a eficácia do
uso de tecnologias de informação e comunicação em processos de educação à distância vai depender muito
mais da concepção dos processos de ensino-aprendizagem que orientam os cursos, do que, especificamente,
das características e potencialidades técnicas das ferramentas.
Rosângela viu no ambiente de educação à distância uma maneira de expor suas experiências e ser questionada
(mesmo estranhando a situação) e os assuntos da formação docente serem problematizados. Os saberes
estavam em movimento e a mediação necessária em uma concepção interacionista de educação requeria
dos docentes formas mais interativas de lidar com os conhecimentos dos alunos, do curso, e da formação.
Rosângela poderia ter vivenciado situações semelhantes em um curso presencial, mas o fato é que ela teve
acesso ao ensino superior através da modalidade à distância, o que antes era improvável, pois não existia a
oferta, muito menos pública e gratuita.
6 Considerações
Os saberes envolvidos na formação superior à distância se tornaram base fundamental e articulada entre
a formação inicial e continuada de professores e isso não é diferente na modalidade à distância. No
caso específico da formação em Matemática percebeu-se a partir dos relatos de Rosângela que o saber
da experiência levado em consideração, problematizado e discutido é um fator da maior importância na
formação de professores que já estão em exercício profissional. Isso porque esses saberes são considerados
como conhecimento “na prática” trazidos pelos professores e a partir deles fundamentá-los e até reconsiderá-
los se torna parte dessa experiência de formação.
Os programas de formação de professores, como o relatado da UAB, vêm se consolidando como Política
Pública e impelem cada vez mais investigações sobre os processos de formação, e os saberes envolvidos
na modalidade à distância, possibilitando a compreensão sobre esse tipo de formação e ao mesmo tempo
problematizando programas, cursos e experiências sobre a formação de professores.
Em alguns momentos ao ler a narrativa construída sobre sua trajetória no curso, avaliava que estava “se
conhecendo e reconhecendo” ao acompanhar as etapas de cada momento em que participava de uma
entrevista ou era observada em suas práticas.
A narrativa não só expressa dimensões importantes da experiência vivida, mas, mais radicalmente, medeia
a experiência e configura a construção social da realidade. “(...) O jogo de subjetividades, em um processo
dialógico, torna-se um modo privilegiado de construir conhecimento” (BOLÍVAR, 2002, p.4).
Portanto, nas narrativas construídas não nos é possível isolar saberes e sujeitos. Em uma teia de relações
encontram-se a realidade objetiva, condições de estudos, sentidos, significados, subjetividades e as relações
da experiência da formação docente a partir de diferentes estratégias de estudos empreendidas. Enfim, é
nessa teia de relações que amálgamas de saberes são constituídos.
7 Referências
BELLONI, Maria. L. Educação a Distância. Campinas, SP: Associados, 1999.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB/ LDBEN. Lei No. 9.394, de 20 de
Dezembro de 1996.
CLANDININ, D. J., & CONNELY, F. M. Narrative inquiry: experience and story in qualitative research.
San Francisco: Jossey-Bass Publishers, 2000.
FIORENTINI, D. (Org). Formação de professores de matemática: explorando novos caminhos com outros
olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.
GATTI, Bernadete. A.; BARRETO, E. S. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO,
2009.
LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. N.19.
jan./fev./mar./abr. 2002.
LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. (2001) – Palestra proferida no 13º. COLE
– Congresso de Leitura do Brasil. Unicamp, Campinas/SP. Disponível em: <http://www.miniweb.com.br/
Atualidade/info/textos/saber.htm>. Acesso em 21 jul. 2005. (tradução: João Wanderley Geraldi).
LAVE, J. (1988). Cognition in practice: mind, mathematics and culture in everyday life. New York:
Cambridge University Press, 1988.
LAVE, J. & WENGER, E. (1991). Situated Learning: Legitimate Peripheral Participation. Cambridge:
Cambridge University Press, 1991.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 2 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
Vários aspectos do pensamento de Carl Einstein nos levam a pensar que estamos frente a uma situação bastante
singular: a de uma vida e uma obra que questionam teórica e metodologicamente o que usualmente entendemos por
biografia e, consequentemente, a pesquisa biográfica. Se bem que “grafia”, de origem grego, significa escrita, como
sufixo também denota um elemento compositivo de uma obra, uma arte ou um campo de estudo. Por um lado,
estaríamos habilitados a pensar uma biografia de Einstein constituída pelo seu legado nos diversos campos nos que
teve efetiva participação assim como pelas edições de seus textos, pesquisas e ensaios acadêmicos relacionados
com sua obra.2 Por outro, para interrogar a pesquisa biográfica pelo avesso, segundo algumas questões que Einstein
defende ao longo de sua obra. Enveredando por esta segunda opção, mais do que estabelecer um diálogo entre vida
e obra, neste artigo buscamos dialogar com sua obra e nela encontrar o pensador.
Poeta, historiador e teórico da arte, editor e tradutor, representante e intérprete das vanguardas artísticas,
literárias e políticas do começo do século XX, Carl Einstein (1885-1940) foi também um mediador cultural entre
França e Alemanha, contribuindo à divulgação, reconhecimento e valorização da arte moderna. Além da questão de
como pensar e abordar a biografia de um intelectual que buscou ao longo de sua vida novas saídas para a arte e a
escrita, um dos desafios colocados à pesquisa biográfica de Einstein é a dispersão e perda de textos e documentos
decorrente de seus contínuos deslocamentos, devidos tanto à conjuntura européia da época na qual atuou, assim
como às conseqüências das duas Guerras Mundiais. Destacamos que seus textos não se encaixam nas operações
pelas quais os indivíduos estruturam e analisam seu contexto histórico social: dizem respeito à existência enquanto
esforço por ultrapassar os limites da linguagem, que Einstein considerava como limites do mundo. Ele adjudicou
à arte e à linguagem a tarefa de libertar o homem de imagens ossificadas e modos de pensar rígidos. Apenas como
amostra: aos novos meios descobertos pelos pintores cubistas para libertar o espaço das travas da perspectiva que a
ciência impusera à arte desde o Renascimento, Einstein respondeu reformulando as categorias de análise crítica para
dar conta dessas invenções artísticas. Portanto, é lícito pensar se, junto com a função por ele atribuída à linguagem
literária e artística, tais textos demandam um alargamento da abordagem biográfica. Ainda, nos deparamos com
uma autobiografia conscientemente parcial, escrita depois de 1928 e publicada em 1930, na qual ele narra a sua
experiência em uma sociedade estratificada e hierarquizada: a falta de charme de sua cidade natal; as lembranças
dos prédios lúgubres da escola que, no passado, eram a prisão do castelo; a sensação duradoura da ignorância de
professores que, em virtude de sua religiosidade, não acreditavam na lei de gravidade. Curiosamente, o texto finaliza
com a sua ida para Berlim (1905), a entrada na Universidade na época na qual escrevia seu romance Bebuquin3: “Blei
1 Devo o desafio de escrever este artigo a Roberto Conduru, foi nas suas aulas, em 2007 durante o curso de
mestrado, onde li os textos de Carl Einstein por primeira vez.
2 Ultrapassa os limites deste artigo enumerar as publicações de textos de Einstein nas revistas alemãs e
francesas da sua época, assim como aquelas que trouxeram à luz seus escritos na França e na Alemanha, a partir
da década de 1960, e que tiveram a Jean Laude, Liliane Meffre, Ernst Nef e Sybille Penkert como impulsores.
Também não analisaremos a quantidade de artigos e textos acadêmicos relacionados com a obra de Einstein nos
campos da História da Arte, da Literatura e da Filosofia em publicações francesas, alemãs, espanholas, italianas,
norte-americanas, brasileiras e portuguesas.
Contudo, gostaria sim de mencionar a ressonância entre os textos de Einstein, um vigoroso contraponto a textos
e obras de pronto consumo que acompanham a passividade do regime visual prevalecente no mundo atual, com o
desafio empreendido desde 2006 pelo Instituto de Artes da UERJ na configuração de uma História de Arte outra
que a das regiões e instituições dominantes no campo desta disciplina.
3 Publicado parcialmente na revista de Franz Blei (Die Opale 2. Leipzig, 1907, pp. 169-175), sob o título
“Herr Giorgio Bebuquin”. Em 1912, Die Aktion o publica em formato de série, sob o título Bebuquin oder die
Dilettanten des Wunders. A versão definitiva, em formato de livro, foi publicada em dezembro de 1912, com
prefácio de Blei, e em 1917 como Aktionsbücher der Aeternisten em 1917. Em carta a Einstein, que acompanhou
o imprimiu nos Opale e, assim, tínhamos vinte anos e entramos na literatura” (EINSTEIN, 1985, p. 111).
Contrariando a literatura de formação da Bildung, o livro não se baseia no desenvolvimento intelectual ou
espiritual do personagem principal; também não admite narrador, intriga ou história. O “romance” consta de vários
episódios, complementares e díspares, sem origem nem fim precisos, atravessados por reflexões sobre a morte, a ideia
platônica, Deus e outros conceitos. Personagens grotescos, extravagantes e absurdos agem em um espaço imaterial,
sem perspectiva, em constante metamorfose. Relato que combina o real e o fantástico e apaga as fronteiras entre
ambos, contra a representação e a descrição realista que caracterizam o século XIX, Bebuquin exige a participação
ativa do leitor.
O nome do personagem principal, Bebuquin, aparece no título do livro e nos levou a pensar a respeito da
confusão habitual de catalogar um livro que inclui o nome de uma figura relevante como biografia, assim como as
relações entre pesquisa biográfica e pesquisa em história da arte. Transcrevo aqui a resposta de Liliane Meffre, 4
autora do livro intitulado Carl Einstein 1885-1940. Itinéraires d’une pensée moderne (2002),
Justamente, meu livro não é uma biografia, nem clássica, nem intelectual, nem...Tento
mostrar como Carl Einstein, incessantemente, está em contato direto com seu meio,
sua época, a História. Está à escuta do mundo, mas busca por todos seus meios exercer
uma influência no curso da história da arte, do pensamento, da política. Transformar a
realidade, o homem, o mundo. Goethe também fala de renascimento, o célebre “Stirb
und werde” (morrer e renascer), mas desfasado com o ritmo do mundo (por exemplo, não
reconheceu os começos do romantismo alemão).5
Por outro lado, encontramos sua última publicação em vida, Georges Braque, de 1934. Contrariamente
ao que suporíamos, o livro não é uma monografia, é um estudo do cubismo e suas transformações no
contexto histórico e cultural de 1930. Logo no início ele explicita que é necessário romper com a monografia,
habitualmente uma “apoteose do eu pequeno-burgues [...] é o perigo de separar claramente o homem e sua
obra e de arrancá-los das relações significativas” (EINSTEIN [1934], 2003, p. 16).6 Mas, precisamente, um
artigo de Einstein publicado na revista transition, de Eugène Jolas, com motivo do centenário da morte de
Goethe e intitulado “Obituary 1832-1932”, coloca questões relevantes à pesquisa [auto]biográfica. O texto
é uma crítica violenta ao poeta, considerado o protótipo da Bildung e contra a qual Einstein arremete ao
longo de sua obra. Mas para entender o que significa Goethe na tradição alemã é necessário distinguir entre
Bildung como processo e como resultado. Muitas vezes identificada com a noção de cultura, a Bildung
não é um problema menor, já que diz respeito à influência de uma tradição intelectual sobre a sociedade,
atingindo a literatura e a estética.
Autor representativo da literatura alemã, o exemplo de Goethe como poeta é de humildade e
persistência na procura do objeto supremo, do núcleo vital do mundo, da força natural pulsante que toma
as formas mais diversas, aquilo ao qual apenas podemos fazer alusão, mas nunca capturar ou conquistar.
Louis Dumont (1991) toma como exemplo Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de 1796, criticado
pelo fato de ser considerado exemplo de romance da Bildung embora Wilhelm Meister não realize sua
à edições de 1912 e 1917, Blei expressou seu desejo de que o livro permanecesse trinta anos nas prateleiras da
editora, tempo necessário “para ocupar-se dos livros que formaram a literatura de nossa época” (In: EINSTEIN, C.,
[1912], 1987, p. 10).
4 Liliane Meffre, pesquisadora francesa em Estudos Germânicos e em História da Arte-Estética; tradutora,
editora e organizadora de várias obras de Einstein. Visitou o Brasil em abril de 2010 onde ministrou um seminário
(UFSC) e palestras (UFSC, UERJ, UFES) sobre Carl Einstein; em 2013 participou do seminário internacional
“Bataille, Einstein, Leiris e a revista Documents”, co-organizado pela UERJ, PUC-Rio e a casa Rui Barbosa;
integrou a banca na minha defesa de tese de doutorado, “Carl Einstein: por uma outra leitura da forma” (Puc-Rio,
junho de 2013).
5 Resposta enviada via e-mail, com data de 21 agosto 2014. Tradução nossa.
6 Tradução nossa.
transformação como artista. Foi Georg Simmel7 quem compreendeu o desvio de Goethe de transformar a
passagem da formação de si em uma recomendação de abertura à comunidade, considerada pelo poeta a
verdadeira conquista de Wilhelm Meister no final do romance. Muito sucintamente, e no contexto alemão
de 1914, o ideal da Bildung defende, por um lado, a sobrevivência da comunidade com uma tendência
a obediência e submissão à autoridades políticas e sociais e, por outro, um desenvolvimento interior
zelosamente cultivado (DUMONT, 1991).
No ensaio de Einstein publicado em transition, em 1932, que segundo Jolas arrasa com a lenda de Goethe no
momento em que as editoras publicaram uma avalanche de coletâneas em comemoração do centenário da sua morte,
duas passagens deixam entrever o seu posicionamento em relação à biografia:
É realmente repulsivo ver, também, como Goethe considera cada momento de sua vida
como importante, e, temendo à morte, prepara seu monumento biográfico.
Muito elogio tem sido dado ao sereno olho olímpico deste virtuoso do indireto e da metáfora,
do qual o humanista deduz sua vaidade e megalomania [...]
A este homem, possuído de uma mania egocêntrica (noutras palavras, a este homem não-
extático), o “eu”, essa personalidade que ele tentou conservar em autobiografias, é um
assunto muito importante. Possuído por ele mesmo, ignora o fato de que o “eu” fica submerso
no ato e é esquecido, e de que só podemos atuar na medida em que o “eu” é destruído.
Porque o “eu” não é mais do que um suplemento de uma perspectiva em retrospectiva; cada
ato é extático e só pode acontecer por meio da destruição do “eu” (EINSTEIN, 1932, p. 209
e p. 213. Tradução nossa).
Ao invés de Goethe, com suas figuras que parecem fragmentos acabados do autor e funcionam
como organismos metafísicos, com seu ponto de vista sempre ao alcance da mão e colocando-se desse
modo a si mesmo como modelo (SIMMEL, 2005), como autor, Einstein se dissolve na experiência da
realidade. Não é ele que projeta suas visões do mundo nos objetos sobre os quais teoriza; pelo contrário, são
as obras de arte as que contêm a verdade – se é que podemos falar de “verdade” – , são elas que mobilizam
o pensamento. Os textos de Einstein não devem ser considerados uma descrição de uma experiência e sim
um esforço por dar conta de uma realidade apreendida na experiência.
À ideologia da Bildung enquanto preservação de uma imortalidade individual, que levou à própria
superestimação, à valorização do acessório e ao desprezo pelo “outro”, Einstein responde eliminando as barreiras entre
objeto e sujeito. Sua escrita era indissociável de um posicionamento frente ao clima político e à ideologia dominante;
resultava da combinação de uma liberdade criativa, do processamento da situação objetiva e da conjuntura histórico-
social. Entender seu pensamento exige colocar lado a lado vanguarda artística e vanguarda política e pensar a respeito
do que ele chama da “responsabilidade política dos intelectuais” (EINSTEIN apud MEFFRE, 2002, p. 84).8 Porém,
os escritos de Carl Einstein requerem um olhar amplo: para ele, como para tantos outros intelectuais daquela época,
uma das tarefas impostergáveis da classe em ascensão – o proletariado – era deixar de lado as concepções burguesas
de cultura, de moral, de ética e estética.
Em relação ao engajamento de Einstein com uma escrita que desse conta da experiência vivenciada,
no plano teórico, encontramos Ernst Mach, outro dos pensadores com os quais dialoga e considera uma de
7 Georg Simmel (1858-1918), sociólogo, filósofo e crítico alemão, professor da Universidade de Berlim
entre 1885 e 1914. Einstein frequentou o curso do filósofo-sociólogo intitulado “Ética e princípios da concepção
filosófica do mundo” no semestre de 1905-1906 na Universidade de Berlim, e muito provavelmente também outros
cursos ministrados por Simmel (MEFFRE, 2002, pp. 33-35).
8 Por trás dessa palavra de ordem estaria a desconfiança de Einstein em relação ao lugar dos intelectuais e a
discussão dos privilégios dos professores universitários que, entre 1890 e 1933, enxergavam o conflito social como
a marca da sociedade industrial. Os “mandarins alemães” constituíam uma elite social e cultural que devia seu
status às qualificações intelectuais e não à herança ou à riqueza. Eles argumentavam que a legitimidade do estado
não deriva do direito divino nem dos interesses da sociedade e sim dos serviços intelectuais e espirituais da nação,
ou seja, dos desejos de uma elite intelectual (RINGER, 1990).
suas referências.9 Filósofo e cientista, escrevendo em um alemão desprovido de jargão técnico, Mach se
posiciona contra uma filosofia que tenta responder a questões profundas mediante a razão especulativa. Ele
sugere desenvolver criticamente a experiência, visando a ultrapassar a barreira entre o psíquico e o físico.
Crítico da relação causal entre eventos, defensor da conexão indissolúvel entre sujeito e objeto, Mach
conclui que os conceitos, assim como as representações, surgem das sensações e da combinação delas. A
matéria-prima da construção dos conceitos que pertencem tanto ao senso comum quanto à ciência seriam
os dados da experiência sensorial imediata; dado que a experiência precede a distinção entre o físico e o
psíquico, a abordagem crítica da experiência seria, para Mach, o modo de evitar tanto os idealismos como
os materialismos. Em vez de uma relação de causalidade, Mach propõe uma dependência funcional – no
sentido matemático – dos dados da experiência, que denomina “complexos de elementos” ou sensações.
Ele os agrupa segundo três tipos “objetos externos”, “meu corpo” e “o ego” , nenhum deles é estável.
Tal instabilidade admite que “consciência” e “matéria” não sejam duas realidades diferentes, inalteráveis, e
sim duas modalidades de organizar os dados da experiência. Como resultado dessa instabilidade, aquilo que
mais tememos, a aniquilação da permanência pela morte, de fato acontece inúmeras vezes durante a vida.
Esses mesmos elementos dos “complexos de sensações” também constituem o “eu”; seus diferentes graus
de permanência fazem do “eu” uma unidade indefinida, flexível, imprecisa. Sua intuição do “eu” como
função, não como substância metafísica, diz respeito a uma ênfase nas sensações, uma vez que
O Eu não pode, em nenhum caso, ser salvo. De algum modo esta intuição, e o medo
que ela suscita, é o que conduz aos absurdos mais extravagantes, pessimistas ou
otimistas, religiosos, ascéticos e filosóficos [...] Renunciamos de bom grado, neste caso, à
imortalidade individual. (MACH, 1998, p. 27. Tradução nossa. Grifo do autor.)
O que interessa a Mach é a continuidade, o meio pelo qual se assegura o conteúdo do eu, que é
preservado nos outros depois da morte dos indivíduos. Conteúdos de consciência de alcance universal
transgredem os limites do indivíduo e cobram existência impessoal e supra-individual, ainda que permaneçam
ligados aos indivíduos. Como função, a continuidade preservada nos outros seria a contribuição dos artistas
e sábios. Sem dúvida, são questões que ressoam na crítica que Einstein faz a Goethe e que podemos colocar
no horizonte da pesquisa biográfica em geral.
Há outras características da obra de Einstein que gostaria de ressaltar. Em primeiro lugar, o do
diálogo que estabelece com o leitor para além dos limites do texto. A meu ver, esse diálogo se organiza não
só pelo tema tratado no texto e sim pelo exercício de pensar. Em Einstein o pensar não seria uma atividade
suprema, privilegiada e sim uma engrenagem entre fenômenos: seus textos nos colocam frente à obrigação
de pensar sobre o modo em que pensamos. Exemplo disso seriam seus artigos sobre cubismo e escultura
negra. Neles, Einstein defende um outro modo de representar o espaço, uma alternativa à perspectiva
renascentista, baseada no observador ciclope e imóvel. Como leitores, somos levados a tomar consciência
de nosso modo de pensar cartesiano, linear, segundo um ponto de fuga que vai do simples ao complexo
e no qual as questões estão mortas ou são imobilizadas, fixadas; seus artigos, pela sua originalidade, nos
mostram quantas vezes aceitamos teses de outros sem examiná-las exaustivamente. Outras vezes somos
confrontados com a nossa tendência a fazer uma explicação genealógica dos objetos em vez de desenvolver
um raciocínio teórico – uma teoria da arte – relacionando fatos plásticos para além dos fatos históricos; ou
ainda, com seu empenho em superar as dicotomias clássicas estruturadoras do pensamento decorrentes da
divulgação do platonismo na virada do século XIX.
9 Einstein se refere à importância do pensamento de Mach na carta datada de junho 1923 a seu amigo
Daniel-Henry Kahnweiler (EINSTEIN, 1993, p. 54).
Outra qualidade é o papel que Einstein escolhe entanto escritor: não é o do erudito e sim o de um
especialista que se entrega à mobilização da visão, à experiência do espaço, à transformação dos conceitos
e da vida. Seus textos sobre escultura negra, cubismo, ou sua insistência em chamar pintores como Masson
e Miró de românticos, em alusão ao romantismo alemão, e não de surrealistas, oferecem um claro exemplo
disso. Mas deter-nos na leitura de seus trabalhos sobre arte também admite que, como leitores, duvidemos.
Essas questões pertencem de fato aos artistas ou à leitura que Einstein faz dessas “escritas”?
Nessa ambiguidade, nos aproximamos a um particular modo de ver a arte como deflagradora de
experiências e não como receptáculo de convenções. Em vez de ver cumpridas nossas expectativas em
relação ao contexto ou condições de produção das obras, Einstein nos coloca frente ao sentido dessas obras
e nos desafia com uma realidade inegável: por um lado, o fato de que a obra existe, está presente e exerce
um efeito direto no observador. Por outro, essa experiência, ao permanecer intata, deflagra uma etapa
posterior de reflexão na qual tanto as intenções do artista como os fatos de sua vida são retirados da obra.
Percorrendo o caminho inverso, podemos concluir que, em Einstein, as barreiras entre sujeito e objeto se
dissolvem. Ainda, experiência da leitura de seus textos constrói uma relação tensa entre o par, inaceitável,
sensível e inteligível, ao mesmo tempo em que envolvem e colocam o leitor em um papel central.
À busca de novos modos de representar o espaço do cubismo e de uma nova linguagem plástica,
Einstein responde com uma busca por uma linguagem – e um uso da linguagem – que permita outro modo de
relacionar-se com o mundo. Questões que ganham outra dimensão à luz do que ele diz a seu amigo Daniel-
Henry Kahnweiler, na carta datada de junho de 1923. Depois de expor suas ideias sobre a insuficiência da
linguagem para dar conta de algumas experiências vivenciadas, da impossibilidade de fazer de conta que o
acontecimento literário era da ordem da verosímil ou possível, da realidade da literatura como sucessão das
palavras e da necessidade de afastar a palavra do processo naturalista, ele diz: “não acredito que o cubismo
seja apenas uma especialidade óptica; se assim fosse, seria falso, não fundamentado” (EINSTEIN, 1993,
p. 57).10 Einstein aspira a uma abertura para o futuro como alternativa a um passado reconstruído como
continuidade, busca ampliar os limites do mundo pela linguagem como alternativa ao confinamento pelos
limites do mundo, estabelecidos pelo limite da linguagem.
Porém, podemos também descobrir seu pensamento na arte que lhe interessava: Einstein defendeu
a superioridade plástica do homem frente às convenções e acompanhou a busca incessante de questões
colocadas pelos pintores cubistas, para eles, mais valiosa do que “fazer” um quadro. Por volta de 1911,
Picasso e Braque provaram que materiais diferentes podiam entrar no quadro ao introduzir os papiers
collés eles estimularam a tensão entre planaridade e profundidade, gerando uma multiplicidade de planos
que simultaneamente avançam e recuam; Picasso não estilhaçou os objetos simplesmente, ele reagrupou
predicados cuidadosamente selecionados. Eles alcançaram a força do quadro por meio de ritmos e contrastes
na tela e não pela via da semelhança. Aboliram o espaço euclidiano e o espaço perspectivado como referência.
Eliminaram a noção dominante de objeto como motivo do quadro para dar lugar ao novo conceito de forma,
a partir da condensação das experiências do espaço e da totalidade dos movimentos oculares descontínuos;
passaram da imitação e do plano imitativo à construção plástica. Foi esse ordenamento livre, realizado
com valores plásticos e sustentado pela visão que afastou o cubismo da imitação e abriu a possibilidade da
criação autônoma. Cubismo que foi o ponto de partida e a justificativa da análise da forma, da visão e do
espaço que Carl Einstein faz em 1915 em Negerplastik.
Defendendo essa apreensão direta do espaço, na pintura cubista e na escultura negra, Einstein
10 Tradução nossa.
vai mais longe e define a história da arte como “a luta de todas as representações ópticas, dos espaços
inventados e das figurações” (EINSTEIN [1929], 1993, p. 17). Uma concepção da história da arte que abre
possibilidades para a disciplina se a enxergamos não mais segundo um modelo positivista, evolucionista
e teleológico e sim como conflito entre fatos plásticos. Neste aspecto, as palavras de seu amigo Georges
Braque são esclarecedoras: “escrever não é descrever, pintar não é evocar, a verossimilhança não é mais que
ilusão de óptica” (BRAQUE, 2010, p. 142). Mas também é uma definição de História da Arte que revela
um posicionamento crítico formulado pouco depois da publicação de Mein Kampf (1924), em Weimar, no
momento em que a frase “a história de toda sociedade existente até agora é a história da luta de classes” do
Manifesto Comunista (MARX [1848], 1952, p. 419)11 foi transformada em “luta de raças” pelo nazismo.
Talvez a palavra “espaço” seja uma síntese bastante significativa do pensamento de Einstein assim como da
época na qual atuou, tanto pela dificuldade ao tentar definir o termo e os debates que o enigma do espaço suscitou na
época e suscita ainda, os problemas que encontramos para circunscrever a noção de espaço – talvez aí esteja toda a
sua potência – , quanto o problema filosófico que a noção apresenta. Apenas como amostra: os limites impostos pelas
ciências, especificamente a física e a geometria; o pensamento que considera o espaço vinculado à consciência, um
índice do desenvolvimento espiritual de um indivíduo ou de uma época; as indagações de Husserl sobre a relação
entre espaço e objeto nos primeiros anos do século XX; a intensidade com a qual artistas como Cézanne e os cubistas
se dedicaram à tarefa de sua representação – ou, talvez, apresentação.
Aproximando as invenções cubistas à escultura negra, analisando a arte africana a partir de categorias não-
africanas, Einstein aspira a uma reestrutura da visão sem referência a um repertório prévio de imagens, próprias
de uma obra ou gênero de arte, de um artista ou de um período artístico. Destaca o aspecto plástico dos objetos,
resultado de uma experiência não mediada por convenções e preconceitos. Trata-se do processo visual enquanto
experiência original e constitutiva do real: a imagem resultante desse processo não é um resíduo inerte da sensação
ou da percepção. Ele se depara com o espaço como instância inseparável da representação do volume na obra de arte.
Seu modo de observar a escultura negra e o cubismo diz respeito a um objeto que, em vez de ocupar um espaço,
se apropria dele; as bordas e os limites do objeto, suas penetrações e vazios, seja na pintura ou na escultura, criam
espaço.
Pensar estas questões sob a luz de suas preocupações em relação à escrita e à linguagem que ele expressa
a Kahnweiler na carta citada acima, podemos concluir que o valor de seus textos não decorre apenas de qualidades
estéticas que ele enxerga nas obras e sim da potência da figura enraizada no psiquismo e sua capacidade e eficácia
de mobilizar o pensamento. Na arte que interessa a Einstein, seja nas modificações da espacialidade, seja nas forças
psíquicas transformadas e reagrupadas em grafismos, o que está em jogo é o fim da concepção positivista do real.
Na sua escrita, na verdade uma transcrição da experiência, o que está em jogo é o fim da descrição de estados
psicológicos e um entendimento da linguagem não mais como substantivo e sim como verbo.
Einstein não atribui valor estético a um objeto ou a um personagem simplesmente por ter pertencido a um
momento histórico e sim pelo modo em que o presente cria sua sombra histórica. Ele busca trazer nossa atenção do
geral para o objeto, e através dele, indagar a respeito da formação dos elementos constitutivos da forma artística e
compreender as vicissitudes culturais, materiais e espirituais de sua época. Sua escrita atuante, pouco compreendida
por seus contemporâneos, em um espírito de revolta permanente contra estruturas esclerosadas e fixadas no passado,
se sintetiza em frases tais como “o valor da visão reside sobretudo na revolta metamorfótica contra o que é dado”
(EINSTEIN [1934], 2003, p. 150).12
O corpo a corpo com sua obra é, sem dúvida, uma experiência transformadora, uma vez que rejeita fórmulas
fechadas e imutáveis, assim como qualquer tentativa simplista de historicizar sua teoria. O seu campo de atuação
fora da Academia, o embate constante com a linguagem e um temperamento incompatível com posições rígidas ou
11 Tradução nossa.
12 Tradução nossa.
ortodoxas o levaram a uma obra de difícil classificação. Mas seus textos nos permitem encontrar a um homem em
pleno exercício do ato de pensar livremente. E nesse ato de liberdade, a meu ver, inscreve em seus textos sua própria
vida. Ou, dito de outro modo, talvez podamos considerar seu textos como “grafias” de sua vida. Cabe a cada um
avaliar se constituem, ou não, uma [auto]biografia, pensar a respeito das relações entre pesquisa e [auto]biografia,
assim como também interrogar-nos em relação à linguagem. Porque a linguagem “não é só verbo e escrita, é também
um método, uma táctica de pensamento, um projeto de compreensão” (BRITO, 1996, p. 197). E assim, ecoando
as questões que Einstein coloca para as obras de arte, refletir em que medida a linguagem [auto]biográfica deixa-se
integrar numa concepção de mundo dada, a destroem ou a ultrapassam.
BIBLIOGRAFIA
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_________.“Kleine Autobiographie”. In: Werke, Band 3. Berlim / Viena: Medusa Verlag, 1985, pp. 109-111.
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estabelecidas por E. Bassani e J.-L. Paudrat. Tradução de I. de Araujo. Apresentação de L. Meffre. Anexo de R.
Conduru.
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MACH, Ernst. L’Analyse des Sensations (1922). Paris: Editions Jacqueline Chambon, 1998. Prefácio de J.M.
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MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. “Manifesto of the Communist Party” (1848). In: HUTCHINS, Robert M.
(editor). Great Books of the Western World nº 50. Marx. Tradução de Samuel Moore (1888). Chicago, Londres:
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MEFFRE, Liliane. Carl Einstein 1885-1940. Itinéraires d’une pensée moderne. Paris: Presses de l’Université Paris-
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RINGER, Fritz. “Introduction: the Manadarin type”. In: The decline of the German Mandarins: the
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SIMMEL, Georg. “Individualismo”. In: Goethe (1913). Tradução de José Rovira Armengol (1949).
Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005, pp. 129-152. Introdução de D. Mundo.
PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Jogo dramatico e historia de vida: A resignificação da histoória de vida de sujeitos inseridos no processo
criativo com a linguagem teatral.
RESUMO
Este artigo têm o propósito de trazer para o leitor uma discussão, mesmo que parcial, sobre as possibilidades
de tratar a questão da história de vida do sujeito numa perspectiva de formação no âmbito do teatro-educação. Ele é
aqui desenvolvido tendo como suporte alguns fenômenos que surgiram na minha pesquisa de mestrado realizada nos
anos de 2012/2013 no Laboratório EXPERICE da Universidade Saint-Denis - Paris 8 na França, quando trabalhei
com a questão da autoformação existencial do sujeito em processos criativos com a linguagem teatral. No nosso caso,
este útimo, o sujeito mesmo, foi a sua própria fonte de inspiração. Sua obra, enquanto parte de sua vida, emergiu em
cena permitindo-lhe que ele se reapropriasse de sua história. Esse fenômeno iremos perceber nesta pesquisa quando
o sujeito-criador vai procurar os « traços » de sua trajetória de vida para construir sua intriga, no nosso caso, quando
o ator despertou o desejo de contar sobre si, resignificando-se à partir de tal experiência.
Palavras-chave : Criação teatral ; jogo dramático ; história de vida
Introdução
A atividade com o jogo teatral que propomos aqui é tomada, antes de tudo, como um momento de formaçâo,
autoformaçâo e mesmo de transformaçâo, no sentido que Galvani2 (2009), considerou como « uma engenharia reflexiva
e dialogica de exploraçâo de momentos » em direçâo de uma autoformaçâo como emancipaçâo do conhecido. Neste
caso, o termo « emancipaçâo » que é utilizado em um quadro de formaçâo possui um sentido de transformaçâo,
tendo em conta que o sujeito em tal quadro pode se transformar e sair de uma dimensâo para outra. Considerar esses
aspectos no campo da formaçâo é tomar o sujeito que se forma como um ser capaz de conduzir sua existência de
1
Possui Mestrado (2013) e Especializaçao (2011) em Ciências da Educaçâo pela Université Paris 8, tendo
produzido uma dissertaçâo discutindo a autoformaçâo existencial do sujeito à partir do processo criativo em
teatro-educaçâo. Possui Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal da Bahia e atua como professor
de teatro tanto no campo da educaçâo informal (ONG’s) como em praticas da educaçâo formal sobretudo
com sujeitos da educaçao especial.
2 GALVANI, Pascal. « L’exploration des moments d’autoformation, une ingénierie plurielle des
modes de réflexivité », p. 37-55, in : Pratiques réflexives en formation. Ingéniosité et ingénieries émergentes.
GUILLAUMIN, Catherine (dir.). L’harmattan, Paris, 2009.
forma consciente. Uma perspectiva que exige do sujeito, uma reflexâo que nâo pode colocar esse gênero de iniciativa
senâo numa perspectiva de formaçâo de adultos e jovens, conduzindo assim nossa pesquisa no interior de uma
perspectiva antropologica de historias de vida do sujeito adulto em formaçâo.
Segundo autores como (Pineau et Legrand, 1993, p. 18)3, as historias de vida sâo utilizadas tanto como
perspectivas de pesquisa como praticas de formaçâo, definidas neste caso por esses dois autores commo « pesquisa
e construçâo de sentidos à partir de fatos temporais pessoais » que solicita um engajamento do sujeito para que a
experiência possa ser exprimida. Nesta perspectiva, colocamos a linguagem teatral aqui como uma expressâo da vida,
onde o sujeito que vive tal experiência é capaz de se reatualizar. A situaçâo epistemologica de nossa proposiçâo é
entâo o que se chama no meio cientifico de de uma perspectiva « introspectiva e herméneutica », onde as historias de
vida contribuem para um processo de auto-referencialidade no homem, onde este ultimo pode emancipar-se, tendo
em conta o que ele fala dele mesmo procurando sua individuaidade. Neste caso, o campo de pesquisa no dominio
de historias de vida toma a experiência como um momento significativo onde o sujeito adquire outras perspectivas
para sua vida e dar à esta ultima autras conjunturas. Esta crença parte da idéia que ao falar sobre nos mesmos,
podemos fazer isso de outra forma, o que, numa perspectiva coloca em relevo aspectos estéticos e éticos no sujeito.
Como pontuou Lesourd (2009, p. 13). Esta questâo hermenêutica que faz surgir um novo senso estético no sujeito
(Dewey, 2005) a toma tendo em conta o fazer artistico, quando ele considera que, somente quando aparece as « novas
perspectivas » no processo criativo, é que o sujeito-criador vive efetivamente a experiência de criaçâo.
Colocamo-nos de acordo com este ultimo autor na medida em que consideramos que a atividade do jogo
dramatico em um quadro de formaçâo pode sucitar tal fenômeno, tendo em conta as historias de vida do sujeito como
uma alternativa de produçâo de saberes. A perspectiva hermenêutica do nosso trabalho se justica entâo, à medida que
aparece um novo quadro estético originario de um processo onde os elementos construidos pelos participantes serâo
utilizados como meio de reflexâo e sobre os quais eles desenvolverâo uma compreensâo da conduta de sua vida.
Assim, as historias de vida e o jogo dramatico serâo considerados numa perspectiva de formaçâo onde a questâo
antropologica temporal do sujeito em açâo sera colocada em relevo, caracterizando esta iniciativa de pesquisa como
uma praxeologia que permite ao sujeito-criador ter acesso à circunstâncias onde ele se conscientise de seu status de
sujeito responsavel de sua historia.
Em nossa pesquisa, escolhemos metodologias que incentivaram a emergência do imaginário do sujeito, tendo
como suporte incentivos psicologicos baseados em frases que colocassem o ator como centro do processo criativo,
onde ele fosse o alicerce da construçâo de sua personagem.
Pequenas frases como « do que eu tenho medo ? », ou « o que mais me incomodou esta semana ? » foram
exemplos de incentivos para uma iniciação de improvisação teatral neste trabalho, e foi neste contexto que apareceu
a história de vida das pessoas que participaram dele. Como assinalou o sujeitos JN, « no momento eu liberei através
de minhas cenas tudo que estava escondido em mim : minha tristeza, minha angustia, minha depressâo, meu eu,
meus medos » (sujeito JN). Tomando suas anotaçôes (metodologia utilizada para registros de sensações, percepções
e conclusões a cada fim de aula), ela fala de uma disposição para utilizar o espaço do jogo para se exprimir. Nesta
perspectiva, notamos que existe da parte do sujeito um desejo de contar sua história como uma premissa. Ainda como
assinala JC :
«... quanto mais eu procurava fugir de tudo isso, mais eu sentia a necessidade de abordar nas
cenas... eu preciso apresentar isto na personagem que eu vou criar : Eu tenho medo da morte, de não
mais retornar, de não ver mais as pessoas, minha familia, e sobretudo minha mãe que eu amo tanto.
Foi isto que me fez criar esta personagem4 ».
A história de vida do sujeito aparece aqui à partir do pretexto utilizado na improvisação (pequenas frases
3 PINEAU, Gaston et LEGRAND, Jean-Louis. Les histoires de vie. Collection Que sais-je, P.U.F,
Paris, 1993.
4 O sujeito fala de um momento de sua vida que emerge no processo criativo: A experiência revivida
pelo sujeito-criador refere-se à uma fase de sua vida que ele esteve em coma, onde ele relata ter vivido a
experiência de quase-morte, mesmo estando consciente.
como incentivo ao processo criativo), fazendo emergir eventos do passado do sujeito-criador. O ator-criador decide
falar disto e é à partir deste ponto que a intriga para a sua personagem será alimentada. Pelo desejo de contar um
momento de sua vida, sendo este o motor da criação de sua obra. É necessário sublinhar no entanto, que o desejo da
parte do sujeito, não se resume somente à vontade de contar uma parte de sua história, mas também como meio para
que o criador em cena encontrasse um caminho para dar um novo sentido à sua propria vida, sendo assim, a alavanca
para novas perspectivas de significações para a existência daquele que esteve em cena.
O desejo de contar sua experiência de vida de outra forma dentro do percurso
de criação no jogo teatral.
As possibilidades de novas significações para a vida daquele que esteve nesta experiência, nós podemos
justificar quando notamos no discurso de AM quando questionada sobre seu processo criativo :
« (...) isso vinha de mim, de meus questionamentos internos. Eu tentei trazer aqui, neste espaço
(....).Com a teia de fundo de minha história real, eu tentei trazer (...), como eu posso dizer ? Oferecer
uma releitura dos conflitos que eu conheci, tentando trabalhar, tentando me movimentar nas minhas
feridas, vamos dizer assim, e ver como eu me comporto face à dor ».
A partir de tal testemunho, percebemos que a narrativa que o sujeito tenta construir pode ser também uma
nova forma de se perceber e uma nova possibilidade de falar de si, de superar questões pessoais. Desta maneira, ela é
também uma maneira que o sujeito encontrou para se re-inventar e de se apresentar ao outro, como podemos notar no
testemunho de SB quando este expressa seu desejo de superar o seu medo de se expor, de ser « rídiculo » no exercício
da profissão que ele escolheu, que é a de ser ator :
« ... eu descobri finalmente que eu não preciso me sentir rídiculo quando eu faço alguma coisa5,
... eu quero fazer esse curso, eu posso ser aprovado, eu quero um retorno, eu quero ter um produto
(artístico). Logo, eu nâo posso simplesmente dizer « ah, eu nâo consigo, eu nâo posso, eu nâo farei
isso, pois eu seria ridiculo. Eu devo fazer um esforço para conseguir, e foi isso que eu fiz. Isso significa
que à partir deste momento eu não vou dizer mais « não é possivel ! » (SB).
Deste modo, percebemos à partir do discurso de SB uma vontade da parte do sujeito-criador de contar a
sua história de outra forma através da narrativa que está sendo construida. Neste sentido, a história que o sujeito
tenta construir possui um fundo antropológico, pois a maneira que ele encontra no jogo de voltar na sua história
pessoal, tentando réappropria-la e renová-la ao mesmo tempo, possibilita dar para esta última um novo sentido.
Consideramos assim, que o processo criativo no jogo dramático tal como ele se inscreve no nosso projeto, apresenta-
se numa perspectiva que toma a história de vida como a trajetória que dar forma ao sujeito e que, quando surgida em
circunstâncias, tal como esta aqui, é suscetivel de uma resignificação.
Visto assim, a prática de formaçâo que propomos aqui se encontra entre aquelas que concebe a história de
vida como um eixo progressivo e linear que desenha uma trajetória da qual é necessario perseguir seu traço para assim
encontrar seu sentido. Tendo em conta esta perspectiva, ela se inscreve naquela tradição atual que Delory-Momberger
(2004, p. 63) assinalou como um modelo vetorial que se apresenta segundo duas dimensões complementares : a
da reapropriação e a da identidade. Isso sub-entende que o sujeito em formação já possui uma história composta
por momentos de vida e que cada um deles é, vamos dizer assim, pedaços de vida cheios de sentidos, que, no seu
conjunto, dar forma à sua identidade. O objetivo aqui seria então de colaborar para que o sujeito em formação se
encontre dentro da sua própria história, permitindo-o constatar os entraves que o impede de progredir e contribua
para que ele tome a sua própria vida em mãos.
5 O sujeito SB fala de uma característica sua, quando. Ficar julgando o seu trabalho quando ele
ainda está sendo construído e a sua preocupação de estar sendo ridiculo aos olhos dos outros.
A reapropriação da identidade do sujeito através o jogo dramático
Reapropriar a identidade numa perspectiva de história de vida significa tomar conciência de si, de seu passado,
colocar esta instância do sujeito que foi formado no tempo, em um espaço temporal retroativo e resignificá-la. Esta
reapropriação identitária, surge em nossa experiência, quando o sujeito-criador resolve enfrentar as circunstâncias
que aparecem no jogo, associando-lhes à si mesmo, à sua identidade. O exemplo do sujeito SB mencionado acima,
pode ilustrar esta perspectiva quando ele diz « ... isso significa que à partir deste momento, eu nâo vou mais parar... ».
Percebemos assim da parte de SB um reconhecimento de um traço dele mesmo. Sua dificuldade de se expor, o medo
da opinião do outro que lhe impede de ir até o fim. Ele se reconhece nesta temporalidade e decide se liberar da
situação, dando outro significado ao evento que surgiu no jogo, reparando-o.
Esta reparação, toca substancialmente à sua identidade e a sua história, tal como em AM experimentando
no seu processo criativo « costurar suas feridas »: « oferecer uma releitura dos conflitos que eu conheci, tentando
trabalhar experimentando me movimentar nas feridas por assim dizer, e ver como eu me comporto face à dor ».
Notamos então, um sujeito que procura reconstruir sua história e consequentemente sua identidade.
Este ponto de vista toma o termo « historia de vida » e os contextos nos quais ele é utilizado como uma
produção (no sentido de fazer a história de sua vida ) e de retomá-la (reapropriação), tendo em conta que os
eventos da vida são registrados e que eles possuem uma estrutura cheia de sentidos e que para ter acesso a estes
ultimos bastaria re-estabelecer seu histórico de vida para alcançar uma certa realidade, esta última, composta de
instâncias visíveis e outras que continuam escondidas ou recalcadas, segundo as referências téoricas que elas venham
receber. No nosso caso esta situação surge em um contexto de criação com o jogo dramático onde o sujeito procura
estabelecer uma história para a sua personagem. Sua realidade psicológica aparece revelada como uma estrutura
carregada de realidades vividas, constituída de representações e de outras estruturas que são construidas por modelos
de inteligibilidade socio-históricas que dão forma à sua biografia.
Posto assim, podemos aproximar esta atividade de criação com o jogo dramático da forma literária da
Bidungsromance ou romance de formação que é construido e prescrito o modelo biografico da Bildung. Neste sentido
consideramos que através da construcão da personagem, o sujeito-criador se abre para o mundo tendo em conta
sua própria historia. A construção da personagem em tal quadro permite ao sujeito criador de seguir os momentos
marcantes de sua vida, dele com ele-mesmo e com o mundo. A progressão da personagem produz para o sujeito-
criador ele mesmo, o mesmo efeito para si. Desta maneira identificamo-nos com o pensamento de Delory-Momberger
(ibid., p. 68), quando esta considera que :
« o Bildungsromance se caracteriza por uma estrutura que casa as etapas do desenvolvimento do
héroi, de sua juventude e de sua maturidade ; ele se abre em direçâo à entrada do personagem no
mundo, depois ele segue as etapas marcantes de sua aprendizagem da vida (os erros, as desilusôes, as
revelações que são pontuadas), e se acaba no momento onde ele atinge um conhecimento suficiente
de si-mesmo e de seu lugar no mundo para viver em harmonia consigo mesmo e com a sociedade que
é a sua. ».
O objetivo aqui no jogo dramático seria considerar a mesma tradição da Bildungsromance que oferece à seus
leitores um destino de referência, biográfico, sujeito-criador no jogo dramático, neste caso, ele mesmo construindo
seu personagem para interrogar sua propria história e sobre o estado de sua propria bildung. A ordem do discurso e
do conhecimento são aqui esperados para dar diretamente acesso à realidade vivida e agir nela.
Nesta perspectiva, o processo criativo com o jogo dramático toma a história de vida do sujeito equivalente
ao modelo da Bildungsromance na medida que este toma o papel do romancista e do leitor ao mesmo tempo. Como
assinala Delory-Momberger, o romancista e o leitor usa os mesmos meios para criar, um, a figura de seus personagens,
o outro, a figura dele mesmo. No caso do jogo dramático que se desenvolve à partir da história de vida, isso se dá
sobretudo quando o ator procura uma coerência para sua intriga, analisando a produção de sua intriga, sua propria
vida, sua forma de criar : O trabalho da narração (seleção, configuração, orientação) cumprida pelo romancista na
representação da história da formação de seus personagens é o equivalente ao trabalho de formação que o leitor obteve
à partir do material de sua propria vida, igualmente como aconteceu no processo criativo com o jogo dramático à
medida que a história de seu personagem se confunde com a sua própria história.
Vemos aparecer neste quadro uma hermenêutica de historia de vida propria ao Bildungsromance. Ou seja,
de um sistema de interpretaçâo e de construçâo que situa, liga e faz significar os eventos da vida tanto quanto de
elementos organizados no interior de um todo. Esta hermenêutica em ato, concebida como uma configuraçâo que
Paul Ricœur descreveu como « intriga ». Configuração esta que é primeiramente operação discursiva : É a narrativa
enquanto gênero de discurso, que é, não somente o meio, mas o lugar, permitindo a historia da vida acontecer na
narrativa. Assim exposto, parece-nos pertinente refletir aqui sobre as caractéristicas das histórias de vida dos sujeitos
que surgiram neste trabalho.
As caracteristicas das histórias de vida emergentes nesta experiência.
Para falar das naturezas das histórias de vida que surgiram neste trabalho, assinalamos que estas se diferenciam
à nivel de temporalidade. De experiências recentes que apareceram em processos criativos mais intelectualizados,
e de outras que apareceram de processos criativos menos intelectualizados, espontâneos, centrados no imaginário e
advindos da via corporal.
Estas constatações nos levaram assim à suspeitar que no processo criativo dentro de um jogo dramático que
começa pela via corporal, o sujeito-criador tende à ir em profundidade de si, alcançando as experiências mais antigas.
Sem as palavras, a via corporal leva-o à suas histórias mais profundas. Enquanto que em uma criaçâo comum nivel de
introspecção mais frágil, o ator tende a desenvolver sua obra à partir de um processo de intelectualização.
Podemos sustentar este ponto de vista, à partir do testemunho de JN, quando ela diz « meu excesso de peso
representava uma dificuldade... o que foi mais dificil, foi realizar as coisas lentamente, ser lenta, agir lentamente6,
pois é quase impossivel para mim... ». Ela nos relata de sua dificuldade de fazer os exercícios corporais que exigiam
uma introspecção maior sobre ela mesma. Notamos assim, que existe de sua parte uma limitação de ir mais em
profundidade, intelectualizando os eventos que apareciam em cena. A via corporal é deixada de lado e a coerência
para construir sua intriga foi procurada numa dinâmica de intelectualização. Como assinala JN:
« Eu gostava também de brigar com o muro, largando toda a minha raiva e minhas tensões reprimidas.
Enfim, analisando bem, de uma forma ou de outra, eu constatei que o teatro me permitiu trabalhar o
que me deixava infeliz, o que me irritava todo dia ».
(o sujeito fala aqui do fato de trazer para a cena suas vivências no trabalho com seu chefe). Isso demonstra um
perfil na superficie psicológica deste sujeito de trazer para a cena somente eventos recentes de sua vida. Os sujeitos
SB e AM por outro lado, com o mesmo método, partiram para uma criação com conteúdos mais antigos através das
imagens. Por exemplo o sujeito SB demonstra isso quando ele diz :
« ... flashs quer dizer idéias sem planejar, por exemplo, eu paro e eu olho em direçâo ao muro
branco e começo a ter imagens que venham de meu imaginari ... às vezes vêm imagens concretas,
onde parece que eu vejo um animal que passa, às vezes nâo vem nada mas eu penso à um fato que
aconteceu ou que pode acontecer ».
O sujeito AM de sua parte vai no mesmo sentido que SB quando ela menciona que « para fazer face à raiva, ao
medo, com o olhar fixo sobre o muro, imaginar coisas, estes aspectos eram mais fáceis porque eu podia me lembrar
das emoções ja vividas, experimentadas e de qualquer forma lhes trazer ». Esta constataçâo nos leva à suspeitar que
quanto menos o sujeito trabalha com um processo de intelectualização e de palavras, mais ele tende à ir no caminho
corporal e do imaginário. Estes últimos, o corpo e o imaginário, sendo os dois caminhos para uma emergência da
criador, procurar na sua memória, recente ou antiga, chegar às suas lembranças e mesmo aos momentos somatizados.
Assim, as narrativas de vida nesta atividade é formulada por etapas, primeiro por pensamentos sem palavras,
por imagens e sensações, seguidas do surgimento dos gestos e de palavras. Deste modo, elas são momentos de vida
do sujeito-criador que ele talhou no processo de construção de sua intriga, onde esta última, sendo uma sequência
de eventos, é reavaliada em cena. Notamos esta perspectiva à partir das palavras do sujeito SB, quando este nos
responde à uma questão, quando queríamos saber como ele construiu suas personagens :
6 O sujeito JN, fala dos exercicios de percepçâo corporal que eram feitos em câmera-lenta.
« ... todas as minhas criações há um pouco de mim, mas se no trabalho as coisas são muito sentimentais,
temos mais dificuldades de dar fim à composiçâo da personagem... eu testei vários métodos, na verdade
são tentativas. Entâo eu testei isso e deixei em stand by, sem o abandonar para experimentar outros
caminhos. Em outros momentos, eu parti do nada ».
A argumentaçâo de SB demonstra que existe da parte do sujeito-criador uma seleção do material que aparece
em cena. É preciso selecionar, logo, é preciso colocar de lado, em « stand by ». Há muitos « sentimentos », como
ele diz. Existe então nesta experiência, uma intersecção de temporalidades, um tempo passado que se confunde com
o momento presente. Este fenômeno pode configurar um momento dificil para o sujeito. Neste caso, a seleção de
momentos que serão narrados é marcada por uma dinâmica de defesa do « Eu », como podemos perceber no discurso
de AM : « A primeira vez que eu fiz este movimento, eu o fiz experimentando contar uma história. Mas depois eu
fiquei com vergonha de fazer os gestos... foi no processo que eu percebi isso ».
Esta seleção é vista no nosso trabalho como algo que dar a forma a identidade narrativa do sujeito-criador.
Ela aparece na experiência de SB quando ele procura dar sentido à sua narrativa, tentando montar uma estrutura
para o que ele vai contar, colocando em « stand by » certos eventos que emergem no processo de sua criaçâo e que o
sujeito JC menciona como um processo de « ligação », o que configura para este último suas experimentações para
dar sentido à sua narrativa. Por intermédio de uma colagem de momentos de vida que eles tinham feito decupagem
ou uma seleção, à medida que estes apareciam no trabalho.
O evento narrativo é assim marcado por um diálogo estabelecido entre as discordâncias e concordâncias que o
sujeito dispõe com ele mesmo em uma encruzilhada, onde ele vai dar sentido à sua narrativa construindo sua intriga.
Diálogo este, fundamental para a construção de sua narrativa no sentido que Ricœur (1990, p. 169) considerou como
« fonte de discordância quando ele surge, e fonte de concordância quando ele faz avançar a história ». Notamos por
exemplo esta perspectiva em nosso trabalho quando SB menciona que :
« Eu tenho um Eu que precisa criar, porém eu sou ainda desprovido de certos conceitos e técnicas,
ou mesmo a capacidade de fazer, mas há um outro em mim que parece um especialista que está todo
o tempo me criticando. Então, no início é aflitivo, por outro lado há momentos que as coisas se
desenvolvem e dizemos « é isso ai, Eu posso também. » ».
A concordância e a discordância são desta forma um trabalho de « si » que emerge no coração do evento. Por outro
No caso das histórias antigas que apareceram nesta experiência, as possibilidades de reapropriação e resignificação
destes momentos de vida surgem à medida que os sujeitos-criadores revisitam seu passado. Como havia dito AM, ela
se sente « confrontada » à esta antiga situação de sua vida :
« (...) porque o fato de me sentir confrontada, experimentando contar minha história, tentando chegar
à lembranças e outras coisas (...). Mas eu compreendi que os problemas estavam ai, e que eu tinha
necessidade de ir lentamente... avançar, melhorar, passar por isso, mas eu ainda não sei... ».
O que podemos vislumbrar aqui é que as histórias de vida antigas que são revisitadas, permitem aos sujeitos
de reconstruí-la, pois a situação no jogo teatral colabora para uma reflexão. Onde é que eles estão nesta história que
aparece em cena ? Eles se interrogam sobre o agora, eles se reatualizam. É o exemplo do sujeito AM quando ela
percebe novos pontos de vista em relação a aquele momento de vida do passado que voltou :
« é... uma escapada de minha própria história, para a personagem que eu estava construindo, que tinha
conexão com todas as questões que eu me pergunto « e Eu ? Onde eu estou nesta história, por onde eu
vou ? O que eu devo fazer nesta situaçâo ? (...) somente aqui, trabalhando na sala, eu pude me olhar e
me perguntar onde eu estava nesta história, onde estava o meu Eu. E agora, que não estou mais com
esta pessoa8, o que vou fazer da minha vida ? »
Notamos assim que existe nesta situação uma realidade que confunde a personagem que está sendo construída,
com a própria história do sujeito-criador. Podemos dizer então, que a identidade pessoal daquele que está em cena é
de alguma forma suscetível de transformação quando da passagem da ação da personagem, por ser esta, aquela que
pratica a ação na narrativa.
O nascimento da personagem e a resignificação de vida do sujeito
Se tomamos os casos de JN e AM mencionados acima, diríamos que as histórias de vida que emergem
neste quadro de criação, sofreram uma transformação na medida que a história da personagem ganhou forma. Ou
seja, a história de vida do sujeito em cena neste caso contribuiu para um questionamento de sua identidade, sendo a
personagem que ele criou um resultado apurado de um momento de sua vida. Considerando a tese de Ricœur que « a
identidade do personagem se entende por transferência sobre ele, da operação colocada em intriga na ação contada »,
diríamos que a personagem é ela mesma colocada em intriga e que no nosso caso, através do seu desenvolvimento, o
sujeito coloca em intriga sua propria vida.
Para Ricœur (1990, p. 172), o sentido da narração, o seu coração, encontra-se nas ações do sujeito, ator de
sua narrativa. Esta teoria vai procurar na « lógica da narração » que segundo Ricœur (ibid.), Claude Bremond (1973)
defendia. Ou seja, que o « papel » só seria definido pela « atribuição à um sujeito-pessoa de um predicado-processo
eventual, em ato, ou acabado ».
Esta dimensão tomada por Ricœur vai em um sentido que considera a importância da ação sobre o agente no
momento de construir sua narração. A definição mesmo do « papel » aos três estados da eventualidade, da passagem
ou não do ato, do acabamento ou do inacabamento, situa imediatamente o « papel » na dinâmica da ação. Sobre a base
desta definição da sequência elementar torna-se possível compor um repertório mais completo de « papéis », que traz
enriquecimentos tanto para o « sujeito-pessoa » como para o « predicado-processo ». Nesta perspectiva, é notável
8 AM fala da pessoa com quem ela teve no passado uma experiência afetiva que gerou todo o seu
processo criativo.
que a primeira grande dicotomia seja aquela dos « pacientes afetados »9 por processos modificadores, conservadores
e por corelação de agentes iniciadores destes processos. O « papel » da personagem neste caso é um resultado de uma
transformação, de uma negociação de valores que nesta experiência, é a razâo mesma de transformação da vida do
sujeito criador.
O surgimento da história de vida nesta atividade aparece assim para constituir a obra em si mesma e provocar
uma revolução no sujeito que está em cena. Esta revolução é com certeza uma abertura do inconsciente do sujeito
em relação às questões pessoais que aparecem em tal quadro. Como pontuou Assoun10 (2006), o sujeito é nesta
perspectiva suscetível à obra. A história colocada em cena, obtém um resultado. Ela funciona como um « papel », ela
toca « aos bastidores de seu inconsciente » e faz movimentar eventos pessoais e sua subjectividade histórica, o que
nos leva assim à um eixo fundamental quando pensamos nos sujeitos em uma situação de formação.
Para pensar esta questão mais profundamente, trazemos aqui um ponto de vista mais psicanalítico com a
ajuda de Paul-Laurent Assoun. Desejamos assim com a ajuda deste autor, refletir o impacto do processo criativo no
jogo dramático com a história de vida dos sujeitos, à medida que estes emergem e são revividos novamente. Para
Assoun (2010, p. 29) o momento de reviver a vida na atividade teatral é uma temporalidade muito significativa para
o sujeito que representa, pois ele traz uma certa afetividade nos eventos que foram vividos no passado que no jogo
aparecem mais fortes que outrora, pois ele é « o gatilho detonador de um retorno no presente mesmo do recalque de
origem, sendo muito mais intenso no momento atual que no passado ».
Tendo em conta o pensamento deste autor, consideramos que a linguagem teatral pode ser uma via de
atualização dos dramas pessoais. Neste quadro, distinguiremos aqui o homem do sujeito neurótico em cena, que
frequentemente é visto como um ser ordinário que se revela de outra maneira através de um tema. Claro, este
autor fala de um ponto de vista terapêutico, no entanto, identificamo-nos com suas argumentações à medida que
consideramos que tratamos do mesmo objeto, ou seja, do histórico do sujeito que aparece através de alguns temas, tal
como em um quadro terapêutico. Mesmo se nossos objetivos são realmente outros, desejamos em outra expectativa,
a transformação de sujeitos através de uma renovação de seus temas pessoais surgidos à partir de tal quadro. Desta
forma, encontramo-nos com este autor quando dividimos com ele a idéia de que « o tema colocado em trabalho
mostra um homem que até aqui normal, se transforme pela natureza particular da tarefa à ele atribuido, em neurose,
até aqui felizmente recalcada, procura se colocar em evidência ».
Nesta perspectiva, consideramos que o drama pessoal do sujeito que emerge no jogodramático é assim um
pedaço de sua existência modelado por suas neuroses. Se, como vimos à partir das narrativas dos sujeitos analisadas
acima, existe da parte destes, uma vontade de contar sua história, isso é antes de tudo um desejo de colocar em relevo
suas próprias neuroses. Os conflitos existênciais que surgirão neste quadro, entre o « consciente » e o « recalcado »
como menciona Assoun, é um momento de atualização destes atores, onde ele se re-forma, ou seja, toma uma outra
forma, pois ele dar uma outra significação à estes momentos.
Esta perspectiva que viemos de mencionar, aproxima-se então daquela que Assoun (2010) menciona no
quadro terapêutico quando ele considera que « a neurose é por definiçâo enamorado do drama », ele quer contar, ou
melhor, mostrar, querendo « agir suas paixôes ». Desta forma, ele provará a história de seu próprio drama – alavanca
da transferência na qual é preciso também saber resistir, pois sua paixão pela ficção, que contribue à sua inscriçâo na
sua história, participa simultâneamente de um processo neurótico de suposição do desejo real, de seu « escapismo »
ou « gosto da evasão », como havia mencionado tal autor.
Tendo em conta o pensamento deste psicanalista, o desejo de contar suas histórias, tal como vimos com
os sujeitos AM e JN, querendo « agir suas paixões », é neste caso uma chave para que eles possam desvelar seus
9 O sentido que Ricœur atribui ao termo « afetado » equivale à ser afetado por um curso de eventos contados. É
este o principio organizador de toda uma série de papéis de pacientes, segundo a qual a açâo exercida é uma influência, uma
« melhoração » ou uma « deteriorização », uma « proteção » ou uma « frustração ».
10 ASSOUN, Paul-Laurent (2006). « L’inconscient théâtral : Freud et le théâtre ». Revue Insistance n°2 « Théâtre et
Psychanalyse », Eres, Ramonville Saint-Ange.
próprios dramas. O jogo dramático é assim um gênero de suporte temporal e provisório, para uma reconstrução de
sua história. O sujeito em cena se encontra bem confrontado à si mesmo. A representação tetral é desta forma a arte da
« alusão » se tomamos a expressão de Assoun. A representação, costurada por uma sequência de atos, é apresentada.
Sendo assim, ela « se coloca à vista », confrontando o sujeito às suas multiplas faces. Divisão do olhar que ao mesmo
tempo contém uma alusão mordaz à uma significação dele mesmo que ele ver colocada em cena, pelo intermédio da
ação teatral sustentada pelo seu corpo.
Como mencionado por Delory-Momberger (2004, p. 73), « o que dar forma ao vivido e à experiência dos
homens são suas narrativas que eles fazem deles mesmos ». A narrativa não é somente então o sistema simbólico do
homem, no qual sua existência toma forma, mas também onde ela pode se manifestar e onde o sujeito pode elaborar
e experimentar sua história de vida.
Nesta experiência, o atelier de criação do jogo dramático se apresentou como um momento onde o sujeito
teve a oportunidade de contar sobre si e inventar uma realidade que ele desejava cumprir, mas que para acontecer foi
necessário anunciá-la. Esta, tomada como uma verdade será a história que ele vai considerar e que vai lhe permitir de
se construir enquanto sujeito (individual e social) no ato de seu enunciado. Sendo assim, o espaço do jogo dramático
vem a ser um lugar onde a história de vida torna-se favorável à construção do sujeito, emergido na dinâmica que
proporciona a linguagem teatral, « um ato de palavra complexo que o institui no seu tempo onde ele o anuncia » se
apresentando como um « ato performativo » como pontua Delory-Momberger (2004), onde os enunciados efetuam a
ação ao mesmo tempo que lhes dão significados.
Para concluir, podemos dizer que o processo criativo em uma atividade de jogo dramático, baseado no
percurso de vida do sujeito que está em cena, aparece quando os momentos de vida dos atores emergem e precisam
serem contados, e que, questionados, são propicios à uma renovação, permitindo à aquele que está em cena, uma
nova maneira de se ver. Esta nova configuração que o sujeito percebe em si, é resultado de mudanças de conciências
que o processo criativo no jogo dramático possibilita àquele que se deixa ir pelas novas possibilidades que a criação
da obra oferece. Ela é desta forma o que podemos dizer uma resignificação para o sujeito que interpreta a sua própria
narrativa. Desta forma, consideramos uma transição de estado de consciência do sujeito, onde uma multiplicidade de
realidades vividas por aquele que improvisa na cena, permite ao ator rever sua identidade, suas relações, seus mitos
e sua própria cultura.
Estados de consciência na experiência criativa no jogo dramático
O que chamamos « estados de consciência »?. Francis Lesourd (2009) assinala que a multiplicidade de
realidades vividas ja é há algum tempo um tema que interessa muitos pesquisadores que trabalham sobre a noção
de estado de consciência. Elas são frequentemente tomadas como estados de consciência « modificadas » ou
« alteradas » em oposição à um estado de consciência « ordinária ». Entre essas modificações, Lesourd (2009)
aponta por exemplo aquela que em momentos de julgamentos ou perda de contrôle de si. Ele acentua igualmente
o papel dos afetos que variam de emoção extrema ao desapego, onde coexistem sentimentos de fraquezas e de
onipotência. Elas são como momentos de centros de « vivências » que marcam um conjunto de pensamentos, de
afetos, de sensações, de percepções, de atos, de espaços e de tempo em unidades distintas, o que permite ao sujeito
que vive uma tal expériência de ter uma percepção mais afinada de dimensões como « a atenção », « a imagem do
corpo », « a memória », « o julgamento » e o « contrôle de si ».
Tomando esta dimensão, no nosso trabalho as fases de cosciência surgem processo de autopercepção do
sujeito em cena, que é originada em dois momentos desta atividade, tanto das ações do ator em seu processo criativo,
como em um segundo momento quando este resignifica mais tarde toda a sua vivência no trabalho. Elas podem
serem percebidas em nossa pesquisa à partir das percepções por parte do sujeito/criador quando este dá-se conta das
emoções do passado, da educação recebida, das experiências que aparecem das improvisações, mas também dos
momentos organizados pelos gestos na hora da construção da intriga na sua obra.
As fases de consciência que aparecem neste trabalho, são tomadas como uma possibilidade, como um ponto
de apoio para os sujeitos criadores construirem « inter-questionamentos » sobre suas ações ; eles podem serem
percebidos por exemplo no movimento das perspectivas de vida para o sujeito criador que decide depois do golpe não
mais continuar como antes, uma abertura de horizontes para o sujeito que, como vimos nos testemunhos dos sujeitos
JN, JC e SB e que consideramos como uma perspectiva resultante do que nós chamamos com Francis Lesourd (2009)
de « saber-passar ».
Em busca de uma conclusâo,
Todo o contexto que terminamos de mencionar aqui como uma possibilidade de iniciar uma renovação
do sujeito, vemos em nossa pesquisa como uma metamorfose que teria acontecido à partir dos gestos psiquicos
e corporais quando o sujeito experimentou construir sua intriga saindo do quadro caótico onde ele se encontrava.
Tomamos em conta que esta possibilidade de transformação na « morfogênese do sujeito » é possivel pela natureza
mesma da atividade do jogo teatral centrada em seu percurso de vida. A dimensão da transformação é concebida aqui
à medida que o criador, imerso em sua obra, percebe traços de sua personalidade e de sua vida que ele acreditava
ser estruturada, serem diluidos no espaço-tempo de sua experiência liminar no jogo. A percepção do sujeito que sua
história é suscetível de transformação nos leva assim à pensá-la de maneira equivalente à um « mito pessoal », como
fez Francis Lesourd (2009).
Neste sentido, consideramos as reflexões proporcionadas pelo processo criativo, como provedoras de
resignificações pessoais para o sujeito-ator, pois elas trazem para estes, outras formas de se posicionarem diante dos
eventos que emergem em cena e que, doravante, são transformados, abrindo para si outras possibilidades de perceber
a vida. O jogo dramático tomado por este ângulo, pode ser tomado como fonte propulsora de criação, podendo ser,
numa perspectiva de formação, um espaço-tempo de resignificações para os sujeitos que nele emergem, podendo ser
sendo assim, para o campo da formaçâo de jovens e adultos um caminho metodologico de formaçâo.
Bibliografia :
Assoun, Paul-Laurent. « L’inconscient théâtral : Freud et le théâtre ». Revue Insistance n°2 « Théâtre et Psychanalyse »,
Eres, Ramonville Saint-Ange, 2006.
Delory-Momberger, Christine. Les histoires de vie : De l’invention de soi au projet de formation. Anthropos, Paris,
2004.
GALVANI, Pascal. « L’exploration des moments d’autoformation, une ingénierie plurielle des modes de réflexivité »,
p. 37-55, In : GUILLAUMIN, Catherine (dir.).: Pratiques réflexives en formation. Ingéniosité et ingénieries
émergentes. L’harmattan, Paris, 2009.
Lesourd, Francis. L’Homme en Transition - Education et Tournants de Vie. Economica/Anthropos, Paris, 2009.
Pineau, Gaston ; Legrand, Jean-Louis (1993). Les histoires de vie. Collection «Que sais-je ?». Puf, Paris.
Ricoeur, Paul. Soi-même comme un autre. Seuil, Paris, 1990.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
NARRATIVAS INFANTIS: O QUE NOS DIZEM AS CRIANÇAS SOBRE COMO FAZER
AMIGOS NA ESCOLA?
INTRODUÇÃO
Estudos e pesquisas sobre o que tem a dizer as crianças acerca das suas experiências no ambiente
escolar são questões pouco discutidas, mas vem ganhando grande importância no campo educacional. A
utilização das narrativas infantis legitima a pesquisa científica por valorizar a criança como um ser sócio
histórico e de direitos cuja fala autentica a situação na qual experenciam na escola, como afirma Rabelo
(2011, p. 177), “As investigações que utilizam narrativas tornam possível o relato das experiências não
só dos legitimados, mas das maiorias, possibilitando que se ouçam outras vozes, além das que respondem
pelas deliberações”.
Desse modo, o presente trabalho objetiva compreender os significados construídos pelas crianças
na faixa etária de 06 a 09 anos, ao narrarem as experiências que vivenciam em uma instituição de ensino
infantil, localizada no munícipio de Natal/RN. A pesquisa apresentada é resultante de duas (02) rodas
de conversa, seguindo o roteiro de entrevista pré-estabelecido no projeto de pesquisa interinstitucional
“Narrativas infantis. O que contam as crianças sobre a escola da infância?”, financiado pelo CNPQ e
CAPES1.
Dar voz a criança e reconhecê-la como sujeito de direito, possibilita aos estudiosos, pesquisadores e
todos aqueles indivíduos que fazem parte do processo de construção da criança como um ser ativo, crítico
e reflexivo, compreender as experiências que esta vivencia no seu processo de interação e inserção na
sociedade e principalmente nas escolas da infância (lócus da pesquisa realizada). Alderson (2005, p. 423)
ressalta que “Reconhecer as crianças como sujeitos em vez de objetos de pesquisa acarreta aceitar que elas
podem “falar” em seu próprio direito e relatar visões e experiências válidas.”.
Esse fato despertou nosso interesse em buscar e debruçar nossos estudos a partir dos seguintes
questionamentos: o que nos dizem as crianças sobre suas relações com os colegas na escola é importante
para compreendermos como fazem amigos na escola? Como essas relações incidem sobre seu pertencimento
à comunidade escolar?
1 O Projeto “Narrativas infantis. O que contam as crianças sobre as escolas da infância?”, é financiado pelo
Edital de Ciências Humanas [CNPq/CAPES 07/2011-2, Processo nº 401519/2011-2], e desenvolvido por pesquisado-
res de seis universidades: UFRN, UFPE, UNICID, UNIFESP, UFF e UFRR. Aprovado pelo Comitê de Ética [Parecer
nº 168.818], data da Relatoria: 23/11/2012. A pesquisa integra um projeto internacional “Raconterl’écoleencours de
scolarisation”, coordenado por Martine Lani-Bayle (Universitéde Nantes), desenvolvido, por pesquisadores da Fran-
ça, Polônia, Bélgica, Suíça e Brasil.
A reflexividade autobiográfica, que a criança realiza no ato de narrar, seja na brincadeira,
seja no cotidiano escolar, vai ampliando seu repertório de visões de mundo, às vezes
conflitantes, e por essa mesma razão vão se situando na coletividade e vão dando sentido
ao que começam a entender por cooperação entre elas como forma de “viver juntos”.
(PASSEGGI et al., 2014, p. 99)
Em busca de aprofundarmos nossos conhecimentos e buscarmos respostas as nossas indagações
inserimo-nos no Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Autobiografia, Representações e
Subjetividade (GRIFAR’s), coordenado pela professora Dra. Maria da Conceição Passeggi para melhor
compreensão da criança enquanto sujeito autor e ator de suas próprias narrativas.
Para um maior aprofundamento teórico acerca das narrativas, além do seu uso como dispositivo de
pesquisa, a importância da realização de desta com crianças no âmbito educacional e a relação entre pares
construídas no âmbito escolar como forma de contribuir para a construção da própria identidade da criança,
bem como o papel da brincadeira na construção das amizades, destacamos as leituras de Passeggi et. al.
(2014); Alderson (2005); Barbosa (2007) e Spréa (2010), bem como de outros estudiosos que dão subsídios
ao presente trabalho.
Ao narrar as experiências que vivencia na escola, a criança (re)significará sua forma de ver, sentir,
agir e estar no mundo. Para Barbosa (2007, p. 1066) “Compreender como vivem e pensam as crianças,
entender suas culturas, seus modos de ver, de sentir e de agir, e escutar seus gostos ou preferências é uma
das formas de poder compreendê-las como grupo humano”. Além disso, as narrativas quando utilizadas
para fins da pesquisa, estarão oportunizando a este sujeito um ambiente de formação e reflexão acerca da
sua inserção e vivências nas instituições escolares.
METODOLOGIA DA PESQUISA
A metodologia deste trabalho apresenta quais foram os procedimentos aplicados na sua investigação,
de forma a atender o objetivo proposto para o desenvolvimento da pesquisa, buscando analisar os significados
construídos pelas crianças com faixa etária entre 06 e 09 anos, por meio duas (02) rodas de conversa a
respeito das experiências vivenciadas pelas crianças no ambiente escolar ao que se refere a sua interação
com os demais colegas. Uma roda de conversa foi realizada com 05 (cinco) crianças de 6 a 7 anos de idade
e a outra roda com 05 (cinco) crianças de 8 a 9 anos de idade.
Vale salientar que, para este trabalho, foram utilizadas as falas das crianças que atendem ao nosso
objetivo proposto, sempre com cuidado e sensibilidade no momento de análise das suas narrativas, já que
O desafio de interpretar a interpretação da criança, em suas pequenas narrativas, tem exigido
ainda mais cuidado, ainda mais rigor, para nos aproximarmos de sua visão de mundo, sem
nos deixar envolver pelo óbvio ou pelo espírito de análise e preocupações teóricas que
venham a por em risco o modo de pensar da criança. (PASSEGGI et al., 2014, p. 92)
As crianças, organizadas na roda de conversa, participavam de um momento de diálogo com um
alienígena, representado na nossa pesquisa por um boneco que tinha o formato de um sapinho com asas,
confeccionado de tecido. O personagem não conhece a escola e gostaria muito de saber como é esse
ambiente a partir das narrativas das crianças sobre suas vivências no ambiente escolar. Acerca da presença do
alienígena na pesquisa Passeggi et al. (2014, p. 91) ressalta que o a alienígena desempenhava “[...] a função
de mediadores da construção narrativa, permitindo maior familiarização da criança com o pesquisador, que
tenta se aproximar do universo infantil e das crianças respeitando as diferenças entre eles.”.
As rodas de conversa foram organizadas em três momentos. São eles: abertura, desenvolvimento
e fechamento. Na abertura, os pesquisadores esclarecem às crianças o intuito da realização da pesquisa
e a importância das suas respostas quanto às perguntas realizadas para aquele determinado ET ou grupo
de pesquisadores. No desenvolvimento, alguns questionamentos foram levantados às crianças, tais como:
“Você sabe para quê vai à escola?”, “O que você faz na escola?”, “Você tem amigos (amigas)?”, “O que
você mais gosta de fazer com seus amigos(as) na escola?”, “Você gosta de ir para a escola?”, “Como você
ajudaria o Alien (alienígena) a fazer amigos na escola?”, “Se você pudesse mudar alguma coisa na escola, o
que seria?”. Por fim, o fechamento da roda de conversa ocorria com a volta do alienígena a sua terra natal.
As crianças que desejassem, enviavam ainda uma mensagem a ele de forma livre, por meio de desenhos,
cartas ou bilhetes.
Segundo Alderson (2005, p. 436) “As crianças são fonte primária de conhecimento sobre suas
visões e experiências.”. Sendo assim, partimos do pressuposto de que a criança é capaz de refletir sobre o
que ocorre ao seu redor e narrando suas experiências vividas na escola ela produz um conhecimento mais
elaborado do mundo e de si mesma.
Ao estarem organizadas em rodas de conversas, as crianças ficam mais a vontade para narrarem
suas experiências para o alienígena e revelam que estão na escola para brincar, estudar, aprender e “saber
de tudo”. É importante ressaltar, que após realização das rodas com os grupos de crianças junto à escola
pesquisada (por meio de filmagens e gravações), todas as falas coletadas foram transcritas para uma melhor
discussão, análise e interpretação dos dados.
Natália e Lia, concordam que na hora de se fazer amigos é importante perguntar a idade para saber
se as crianças com quem irão compartilhar experiências serão mais novas ou mais velhas do que elas. Para
os sujeitos da nossa pesquisa, a formar como irão agir com as crianças se diferenciarão de acordo com a
sua faixa etária, como explícito na fala de Tomas e Lia que ao terem amizades com pessoas mais novas
eles terão a responsabilidade de cuidar delas e quando tiverem amigos mais velhos eles deverão deixar ser
cuidados.
A possibilidade que as crianças têm de assumirem determinada posição nas suas amizades, também
é incorporada na formação da sua identidade. De acordo com Bock; Furtado; Teixeira (2000, p. 207-208)
“A identidade é sempre pressuposta mas, ao mesmo tempo, tal pressuposição é negada pela atividade, já
que, ao fazer eu me transformo, o que faz da identidade um processo em permanente movimento.” Ao
relacionarem-se com crianças de faixa etárias diferenciadas das suas, elas acabam refletindo sobre seu
próprio modo de pensar e agir, o que faz da identidade um processo constante de transformação de si
mesmo através da relação que estabelece com o outro.
Nossos sujeitos da pesquisa quando perguntados se alguma vez já fingiriam ser outra pessoa
demostram que utilizam do imaginário como forma de traduzir e materializar um mundo de desejos e
sonhos:
- [...] Eu já fingi ser Selena Gomez! (NATÁLIA, 212).
- Menina... Só faltava a Lady Gaga... (TOBIAS, 2012).
- Você fingiu ser quem? (PESQUISADORA, 2012).
- A Selena Gomez [...] Namorada de Justin Bieber... (NATÁLIA, 2012).
- E por que você fingiu ser Selena Gomez? (PESQUISADORA, 2012).
- Por que eu acho ela bonita! (NATÁLIA, 2012).
2 A fim de preservar a identidade das crianças participantes da pesquisa utilizamos nomes fictícios, de acordo
com o estabelecido no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e aprovado pelo Comitê de ética.
Natália e Tobias demostram em suas narrativas, compreenderem o que é real e representativo e
como devem se comportar diante das situações em que se utilizam do imaginário pra suprir seus desejos e
necessidades. Segundo Held (1980, p. 48) “[...] razão e imaginação não se constroem uma contra a outra,
mas ao contrário, uma pela outra”, ou seja, o autêntico imaginário não afasta as crianças da realidade, mas
permite restituí-la.
Sendo assim, compreendemos que as crianças refletiram e declararam que não serão elas mesmas
fingindo ser outra pessoa, ou seja, é nesse processo de fazer parte de um mundo coletivo que o faz se
reconhecer como indivíduo único que não pode ser escondido por trás da personalidade de outra pessoa,
mas o inverso, o sujeito reconhecerá sua própria identidade a partir da relação com seus pares.
A brincadeira está presente na vida das crianças nas mais diferentes situações e sob as mais diversas
formas. No que concerne à brincadeira no ambiente escola, Fontana; Cruz (1997, p. 136) considera que
“Brincar na escola não é a mesma coisa que brincar em casa ou na rua. O cotidiano escolar é marcado pelas
características, pelas funções e pelo modo de funcionamento dessa instituição.” Algumas dessas crianças
enfatizam bem a presença da brincadeira na escola, além dos estudos. Quando perguntadas sobre o que mais
gostam de fazer com seus colegas respondem:
- [...] O que é que você gosta mais nos seus amigos? (PESQUISADORA, 2012).
- Brincar. (PEDRO VICTOR, 2012).
- Brincar? Então me digam uma coisa, vocês me disseram que a escola servia para estudar.
(PESQUISADORA, 2012).
- E também para brincar. (JULIANA, 2012).
O espaço escolar que muitas vezes impõe uma rigidez de comportamento, poucos momentos
lúdicos, proibição da brincadeira, é imposto para as crianças como instituição cuja função básica é estudar,
mas em sua narrativa para o Alienígena desconstroem esse pensamento por considerarem a brincadeira
um fator importante para a função da escola. O brincar é natural para a criança e elas o farão no local que
estiverem sendo a escola favorável a isso ou não. Com a presença de outras crianças que apresentam o
mesmo pensamento e desejo que elas, é de se esperar que as amizades surjam desses momentos lúdicos e
de interação social.
O brincar na escola possibilita, que a criança pense, reflita, opine e elabore sentidos para o mundo,
para as coisas além de estabelecer relações com as outras pessoas ao seu redor. Ao explicarem para o ET
como se faz amigos na escola e o que ele teria que fazer para construir amizades, as crianças destacam:
- [...] Eu diria para ele que para fazer amizades precisa... Convidar gente para fazer uma
coisa bem legal. (LÉO, 2012).
- Que coisa? (LIA, 2012).
- Por exemplo: Brincar... (LÉO, 2012).
- De quê? (NATÁLIA, 2012).
- Pega-pega, Esconde-esconde... Aí a gente vai explicando. (LÉO, 2012).
- [...] Aí cada dia que se passa ele vai tendo mais amigos! (LÉO, 2012).
Como afirma Spreá (2012, p. 04) “As brincadeiras podem intensificar o processo de socialização
da criança e promover sua iniciação colaborativa em um mundo cultural cujos significados poderão ser
cotidianamente processados.”. As situações proporcionadas por meio do brincar fazem com que as crianças
estabeleçam laços afetivos com outras crianças que vão se renovando ao longo dos encontros de amizades
que ocorrem ao longo das suas vivências nessa instituição.
“Hora do recreio. No pátio, crianças correm, pulam, jogam bola, brincam de amarelinha, de roda
e fazem outras tantas brincadeiras.” (FONTANA; CRUZ 1997, p. 119) A maior parte das brincadeiras
narradas por Léo, que ele participa na escola acorre no momento do intervalo, em que as crianças se
inserem em uma dinâmica social, diferente daquela que se dá durante as aulas, em que as brincadeiras têm
como protagonistas as próprias crianças.
Foi possível verificar ainda com os sujeitos da pesquisa, com idade entre 8 e 9 anos, que a maioria
destes convivem em um contexto familiar com primos, irmãos, amigos mais velhos que estão no período da
adolescência.
- Ei, ET... Escola, há nela a gente aprende... Tem recreio, alguns são adolescentes não têm
parque, mas quando agente é criança, felizmente, tem parque. (TOBIAS, 2012).
- Os adolescentes não tem parque, mas as crianças têm? (PESQUISADORA, 2012).
- É! (TOBIAS, 2012).
- Porque será que tiram os parques dos adolescentes e deixam só para as crianças?
(PESQUISADORA, 2012).
- Porque os adolescentes, eles não brincam. (NATÁLIA, 2012).
- Eles ficam só fazendo aquelas coisas que agente acha chato para as crianças, mas
adolescente acha legal. (LIA, 2012).
- [...] Ficar sentado numa cama de frente ao computador ouvindo música...
Natália: Conversando também... Fofocando. (LIA, 2012).
Desse modo, as crianças narram o mundo dos adolescentes em que logo farão parte, como um período
oposto ao da infância já que agora elas usufruem de um espaço na escola destinado para as brincadeiras: o
parque. Nesse espaço as crianças podem criar situações lúdicas que se tornam motivos para as brincadeiras,
ao contrário dos adolescentes que não possuem o mesmo privilégio.
Certamente ficará mais claro para nós que o brincar é uma atividade humana significativa,
por meio da qual os sujeitos culturais se compreendem como sujeitos culturais e humanos,
membros de um direito a ser assegurado na vida do homem. E o que dirá na vida das
crianças, em que esse tipo de atividade ocupa um lugar central, sendo uma de suas principais
formas de ação sobre o mundo! Percebemos também, com mais profundidade, que a escola,
como espaço de encontro das crianças e dos adolescentes com seus pares e adultos e com o
mundo que as cerca, assume o papel fundamental de garantir em seus espaços o direito de
brincar. (BORBA, 2006, p. 44)
A brincadeira é assim, a atividade em conexão com a qual ocorrem as mais importantes mudanças
no desenvolvimento psíquico da criança e dentro do qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam
o caminho da transição da criança para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento.
INICIANDO UMA CONCLUSÃO...
As narrativas das crianças na escola da infância levam estas a assumirem uma posição enquanto
ser social, ativo, crítico e reflexivo que através do convívio com o outro vão moldando seus valores e
comportamentos, seja a partir das suas interações na própria cultura escolar, como nas demais instituições
comuns às vivências de cada uma.
Ouvimos nas falas das crianças, que muitas delas gostam de estar na escola para fazer amigos, pois
lá brincam, aprendem e vão se descobrindo à medida que interagem umas com as outras e compartilham de
interesses em comum. É através da interação com o outro que a criança vai formando sua própria identidade
por meio das trocas recíprocas de saberes e ideias.
Sendo assim, ouvir as crianças é um passo essencial para a construção de uma educação com
qualidade, visto que, cada criança traz dentro de si a representação do que é uma escola, de acordo com
relações que estabelecem nela. Com isso, foi possível chegar a um conhecimento mais amplo a respeito das
narrativas infantis na instituição escolar, da importância desse ambiente para a relação entre pares, no qual
a brincadeira, a relação com o outro, a ludicidade e a construção da identidade de cada uma, tenham vez e
voz no processo de desenvolvimento infantil.
Contudo, ainda há muito que se conhecer, explorar e compreender sobre as experiências vividas
pelas crianças no contexto educacional, bem como das relações de amizade que elas estabelecem nesse
ambiente, de modo a reconhecer e legitimar a voz dessas, como sujeitos capazes de refletirem sobre suas
experiências de aprendizagens, brincadeiras e convivência social nas escolas que as acolhem na infância.
REFERÊNCIAS
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p. 1-20, ago., 2010.
EIXO 01: PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES.
A cidade de Santos no inicio do século XX foi marcada por doenças que vinham desde a segunda
metade do século anterior matando a população num período de grande desenvolvimento econômico do
café, por estes motivos a sociedade se ajustava à ideologia higienista. O investimento no esporte foi visto
como uma das soluções eficientes para se diminuírem as epidemias que assombravam a cidade, como
consequência do aumento de pessoas praticantes de esporte que buscavam saúde através do desenvolvimento
de um físico saudável em contato com o ar livre juntou-se o espírito competitivo.
No inicio do século XX após a realização de diversos estudos é construído em frente da orla da praia
um jardim de sete quilômetros. A avenida foi asfaltada e prédios construídos, substituindo casas e palacetes
a partir da década de 1940. Este projeto urbanístico embelezou a cidade, o espaço arquitetônico possibilitou
um espaço para práticas esportivas, atividades sociais, passeios, moradia e comercio. Santos possui vários
referenciais como porto, os morros, porém a praia, por se um local descontraído chama a tensão.
A sociedade santista se entusiasma com o enorme espaço democrático. A saúde a prática de atividades
físicas começam a ser consideradas importantes. Caminhadas, corridas, diversas atividades esportivas
fazem parte da cidade. As famílias passam varias horas na praia, bronzeando-se, tomando banho de mar e
se divertindo. O lazer, a utilização dos espaços públicos, começam ser reivindicados e utilizado, por todos
os santistas e turistas.
E continua SILVA:
Proporcionalmente, Santos é a cidade mais esportiva do mundo. Ou será que alguém pensa
que existem por aí a fora, para 350 mil habitantes, tantos clubes de comprovado valor como
os que há aqui em Santos? O patrimônio – em todos os sentidos e em roteiros geográficos –
do Saldanha, Vasco, Santista, Internacional, Brasil, Sião, Tênis Clube, Atlético, Portuguesa,
Santos, Santos Atlético Clube, Caiçara, Clube de Pesca, é superior com sensíveis sobras,
aos maiores centros esportivos em plano proporcional. Dentre 100 habitantes de Santos,
80 praticam esportes e 79 fazem parte de um clube. Nem na Finlândia e na Suécia, país
tipicamente esportivo, há um índice tão elevado de praticantes de esportes. E ainda surge
um detalhe: em Santos se praticam todos os esportes em quantidade superior a 30. Em que
lugar do Brasil e no mundo haverá tamanha esportivização? A resposta é clara e rápida:
nenhuma (SILVA, 1993, p. 39).
Assim este clima esportivo, que a cidade respirava, tinha a sua presença também nas escolas, nas
redes municipais e estaduais e na rede particular que era extensa, principalmente no então chamado ciclo
secundário.
No inicio do século XX os projetos de escolarização do esporte ganhavam espaço nas escolas
santistas, renovação pedagógica ativa, que estava sintonizada com as orientações das políticas educacionais.
O esporte nas escolas é considerado moderno por estabelecer significados, interferindo nos costumes
e hábitos. Essas manifestações provocavam novos padrões, possibilitando organização e disciplinarização
da vida social, estas práticas educativas estavam sintonizadas com o ritmo do trabalho industrial. O esporte
foi constituído como um conteúdo escolar, métodos e avaliações específicos, porém vinculados com valores
exigidos nessas escolas modernas.
Chama atenção à competência, os métodos inovadores dos professores de educação física da cidade;
suas ações pedagógicas contribuem para o enriquecimento cultural e o surgimento de valores diferenciados;
o compromisso com as atividades esportivas e com os desfiles cívicos causa grande repercussão na sociedade,
aumentando a visibilidade do trabalho desses profissionais. Esse conjunto de fatores tornava os professores
de educação física de Santos respeitados. O gosto que eles tinham pela profissão e o entusiasmo contribuiu
para a formação da juventude brasileira.
A problemática que se coloca é, será que as legislações educacionais e a experiência do professor
Oscar da Silva Musa influenciaram nas práticas das aulas de educação física e nos eventos esportivos da
cidade?
Busca-se nesta comunicação analisar a trajetória do administrador e professor Oscar da Silva Musa
junto com as práticas de educação física na cidade de Santos.
Valemo-nos do teórico Marcus Aurélio Taborda de Oliveira que dá subsídio para entender o aparato
legal da educação física brasileira e como os professores se apropriaram dele.
A metodologia que se utiliza é a pesquisa documental, principalmente as reportagens de jornais,
fontes iconográficas e depoimentos de professores e seus acervos.
Foi importante o material encontrado no Centro da Memória Esportiva Museu De Vaney e
principalmente o acervo pessoal do Oscar da Silva Musa.
Foi necessário ter uma variedade de documentos para aproximação das realidades pesquisadas como
as técnicas de história oral, ou seja, entrevistas, depoimentos acompanhados de materiais iconográficos
e documentos escritos. Todos os vestígios foram fundamentais e permitiram a compreensão da história.
Lembrando o que Nora nos diz sobre os lugares da memória:
Os lugares da memória são, antes de tudo, restos, a forma extrema sob a qual subsiste uma
consciência comemorativa e uma historia que a solicita, porque a ignora [...]; museus,
arquivos, cemitério e coleções, festas, aniversários, tratados, atas, monumentos, santuários,
associações são os testemunhos de outra época, das ilusões de eternidade [...]; os lugares
de memórias nascem e vivem dos sentimentos de que não há memória espontânea, de que
há que se criarem arquivos [...] (NORA, 2009, p. 24).
Oscar da Silva Musa nasceu em 29 de outubro de 1908 em Ribeirão Preto, filho de profes-
sores consagrados, seu pai Antonio da Silva Musa Filho, sua mãe Amélia dos Santos Musa, sendo
homenageado com seu nome em um grupo escolar importante no município. Seu pai mantinha uma
instituição de ensino: o Externato Musa.
O professor Oscar Musa é da geração formada pela Escola de Educação Física do Exército,
no Rio de Janeiro, em 1939, neste mesmo ano tornou-se Inspetor de Educação Física em sua cidade.
Sua mudança para a cidade de Santos ocorre em 1942, quando é nomeado Delegado Regio-
nal de Educação Física e assistente técnico da Comissão Central de Esportes. Porém já havia morado
em Santos de 1922 a 1925 prestando o serviço militar na Escola de Aprendizes de Marinheiro. Na
Comissão Central de Esportes criou a obrigatoriedade do exame médico para os atletas profissio-
nais. Preparou equipes da cidade em diversas competições de Jogos Abertos do Interior e organizou
muitas outras edições, quando a cidade foi sede, atuando principalmente como técnico de basquete
feminino.
O professor Oscar da Silva Musa, ao notar a preocupação do prefeito Antonio Gomide Ribeiro dos
Santos com o esporte, diz:
Um prefeito que tem a perfeita visão do que representa o esporte nos destinos de uma
Nação, como um dos elementos básicos na formação da raça e na aproximação dos povos.
Santos tem que caminhar na vanguarda, ombro a ombro com os centros desportivos mais
adiantados do país. Foi este o panorama que encontrei em Santos, quando em 1942
o governo do Estado determinou que eu viesse exercer as funções de meu cargo nesta
formosa Santos, a sala de visitas do grande Estado.
Segundo Musa, notou-se “uma perfeita união entre o poder municipal e o estadual”, envolvendo
também o serviço de educação física nos grupos escolares. Porém, observou-se que o Governo do Estado
de São Paulo influenciou em Santos, diretamente nas metodologias de ensino, com o aprofundamento da
legislação específica dessa disciplina.
Em 1942 com a Reforma Capanema aconteceram os primeiros instrumentos legais no âmbito federal
da disciplina onde se tornou a obrigatoriedade da educação física nas escolas em todas as modalidades de
ensino básico, que permaneceram em vigor até 1961.
Na década de 1940, as competições esportivas já têm a orientação da autoridade estadual,
através da Divisão de Educação Física do Estado. As orientações de Francisco Campos deveriam
ser seguidas nas escolas. O Código Civil já normatizava desde 1933, mas a presença da orientação
das leis se faz presente principalmente quando chega à região com seu delegado Oscar da Silva
Musa.
Art. 66 – O Serviço de Educação Física tem por fim difundir, dirigir, orientar e fiscalizar
a prática e o ensino da educação física em todas as suas modalidades, competindo-lhe:
1 – dirigir e orientar a prática da educação física em todos os estabelecimentos públicos
de ensino, pré-primários, primários, secundários, profissionais e superiores;
2 – organizar e dirigir a prática da ginástica e dos esportes nas instituições públicas onde
se torne necessária ou aconselhável;
3 – orientar e fiscalizar o ensino da ginástica e a prática esportiva nos estabelecimentos
de ensino particular;
4 – organizar e fazer adotar, como padrão geral, um plano sistemático de educação física;
5 – estabelecer e dirigir campos de recreios e jogos;
6 – proceder ao registro anual das agremiações de ginástica e associações esportivas,
assim como de quaisquer outras organizações de cultura física;
7 – fiscalizar a prática de esportes, especialmente competições, torneios, exibições e
reuniões em que se cobrem ingressos;
8 – organizar e patrocinar provas de demonstrações de ginástica e esportes, assim como
concursos de eficiência física;
9 – incentivar a educação física feminina;
10 – habilitar candidatos a instrutores ou a professores de educação física;
11 – fiscalizar as escolas, institutos, academias de educação física em geral ou destinados
exclusivamente à prática de determinados esportes;
12 – promover a fundação de organizações ou agremiações de caráter particular que
visem à educação física, especialmente da criança, assim como prestar-lhes colaboração.
Inicialmente em Santos o esporte não tinha atuação direta do Estado. No século XX aos poucos
o governo brasileiro passou a intervir no esporte, através da educação cívica, da preservação da saúde da
população e lazer. O esporte no início do século XX oferecia à sociedade uma possibilidade de identificação
coletiva, ao proporcionar o espetáculo e o aumentando o prestígio local.
Os desfiles cívicos por ele organizados chamavam a atenção das autoridades:
A Delegacia de Educação Física, dirigida pelo Prof. Oscar da Silva Musa, foi incumbida
de entrar em contato com os diretores dos diversos educandários da região para dirigir
a organização e formação estudantil na Avenida Ana Costa, quando da visita do General
Craveiro Lopes, presidente da República Portuguesa à nossa cidade. A Delegacia já deu
os primeiros passos neste sentido, esperando nessa oportunidade apresentar um trabalho
de grande amplitude e que possa merecer a atenção geral, figurando entre os principais da
recepção ao ilustre presidente da mãe pátria (A Tribuna, 31/05/1957).
Santos seguia o calendário enviado pela Delegacia Regional de Educação Física e Esportes da região,
dirigida pelo professor Oscar da Silva Musa. O trabalho do professor, suas ações pedagógicas, contribuíam
para o enriquecimento cultural dos alunos. Este conjunto de fatores tornava o professor respeitado.
Oscar da Silva Musa foi um dos idealizadores e fundador do Clube do Professor de Educação Física,
sendo aclamado o primeiro presidente e eleito outras vezes. Na sua gestão, como diretor preocupou-se
com as condições de trabalho dos professores de educação física. Enviou as autoridades e aos educandários
da região, um ofício com fotos detalhando o material necessário para uma aula eficiente, discutia com
os professores questões de disciplina; a evasão dos alunos; o número de alunos faltosos (25%) e que,
consequentemente, diminuía a participação nos jogos escolares. Acreditava-se que, com essas mudanças,
as faltas diminuíssem e a evasão chegaria a quase zero. Um ofício mostra que as salas de educação física
deveriam ter no mínimo duzentos metros quadrados, possibilitando a eficácia nos exercícios, e o espaço
deveria ter aparelhos adequados, a fim de que houvesse entusiasmo na prática docente. Nesse ofício o
professor Musa colocou que esse era o momento de mudança e que os professores não podiam trabalhar no
improviso. Oscar Musa pede de os educandários não tiverem condições econômicas para equipar as salas
em um ano, pra não fica fora deste projeto, criar um plano de dois, três ou quatro anos para realizar. Se as
salas não tiverem cobertas, colocar apenas os parelhos possíveis, mais preparar o local para ser coberto. Nas
palavras do Musa tudo é possível havendo vontade e um bom plano dos diretores das instituições de ensino.
Oscar Musa, também, palestrava sobre diversos assuntos de grande valia, em uma delas no Clube
Internacional de Regatas, onde era dirigente, falou sobre o tema “O Sentido Educacional da Vitória” e suas
importâncias para a educação durante a reunião tiveram a oportunidade de manifestarem-se os professores
Guaraná da Costa Rodrigues, Elny Abdelaziz Alves de Camargo, Alexandre Mariani, Maria Anália
Rodrigues e Diva Adolfo Porchat de Assis. O tema mereceu muita atenção, pela forma como foi debatido,
e por ser o professor Musa uma autoridade no assunto.
A primeira Olimpíada ocorreu em 1944, com a organização do professor Oscar Musa, campeã a Escola
Estadual Escolástica Rosa (antigo Instituto D. Escolástica Rosa, da Santa Casa). A aluna Jurema Figueroa
quando estudava no Escolástica Rosa teve grande destaque nas provas de atletismo. As competições que
reuniam várias modalidades esportivas eram consideradas Olimpíadas ou Campeonato de Educação Física.
Abertura da 1°
Olimpíada Colegial em Santos em 1944.
Em uma das competições colegiais foi enviado um relatório a Delegacia Regional de Educação Física
e Esportes, aos cuidados do diretor Oscar da Silva Musa, falando que o campeonato de ginástica não teve
suas regras cumpridas. O professor ao saber dessa notícia, manifestou-se dizendo que esses eventos eram de
nível social, intelectual e cultural, e que iniciaria uma campanha em toda região, visando à reeducação dos
professores, diretores e colegiais; a fim de que todos se lembrassem do espírito esportivo, do sentido da vitória
e do valor social das competições. Como consequência, foram suspensos todos os campeonatos coletivos
daquele ano, na região e em outras cidades; porém, nas demais regiões os problemas não apareceram. As
seguintes medidas foram tomadas: realização de palestras educativas, dadas nos primeiros cinco minutos
das aulas de educação física, a fim de ajudar o aluno a caminhar no sentido certo; circulares sobre a matéria
foram enviadas aos professores e alunos.
Outra situação de impasse foi o campeonato colegial de natação masculino em maio de 1955, não
foi cumprido todo o programa planejado pelo aumento das inscrições. Oscar da Silva Musa o organizador,
usou sua experiência, o campeonato ocorreu com um ritmo acelerado e perfeito, de forma impecável. O
publico compareceu em peso preenchendo todo acento destinado, o entusiasmo tornou-se um campeonato
de “gala”. Musa anunciou que a segunda parte seria efetuada oportunamente, esta noticia foi acolhida com
muita simpatia.
O Campeonato Colegial de Esporte patrocinado Inspetoria Regional do Departamento de Educação
Física do Estado, realizado no Clube Internacional de Regatas em 1950, teve a participação das principais
instituições de ensino da região. Após o último jogo, as disputas da final de bola ao cesto e voleibol, feminino
e masculino, foi premiado o vencedor absoluto da competição que ganhou em várias categorias, o Colégio
Canadá. O Prof. Oscar Musa entregou o troféu ao professor Guaraná. Coube aos outros concorrentes o
troféu “Amizade Universitária”, oferecido pelo acadêmico santista, Áureo Rodrigues. O diretor do Colégio
Canadá, Prof. Júlio Guimarães Sampaio, foi homenageado pela grande iniciativa da escola aos esportes.
A Delegacia Educação Física e Esportes incentivou o esporte escolar em todo o Estado de São Paulo
e Santos está nesse esforço de ação.
Foram realizadas competições entre as cidades paulistas. O evento se deu com o título de
Campeonatos Colegiais do Estado de São Paulo e foram realizados os seguintes: I (1948), II (1949), III
(1950), IV (1951), V (1952), VI (1953) e VII (1954).
Os campeonatos eram realizados na Semana da Pátria, no Ginásio do Pacaembu, na capital paulista.
Havia uma fase anterior. As escolas realizavam competições de semi-finais com outras cidades. Em 1953,
por exemplo, as equipes do Canadá jogaram em Bragança Paulista, Bauru e Campinas (depoimento de
Maria A. F. Pereira, aluna do Canadá que participou desses jogos preliminares).
O Ginásio José Bonifácio, obteve, por intermédio da Comissão Central de Esportes, permissão para
participar do Campeonato Colegial de Educação Física organizado para os Ginásios Oficiais do Estado. Foi
o primeiro e único ginásio particular que tomou parte nesse grande certame estudantil do Brasil.
Todas essas ações tinham por objetivo transformar Santos num excelente Centro de Educação Física
do Estado, servindo de exemplo a outros municípios. O professor Oscar da Silva Musa juntamente com
os professores de educação física santistas deu um novo rumo às atividades esportistas escolares. Por
exemplo, o estado fez parceria com esses professores, ajustando normas, dando um sentido, unificando as
avaliações e os eventos esportivos.
No que diz respeito a escola, especificamente nesse caso aos professores de educação
física que nela atuavam, não me furto a afirmar que eles sempre tiveram uma séries de
dificuldades bastante concretas no seu dia-a-dia para equacionar. E mais: os problemas do
cotidiano tendiam a ser resolvidos a medida que eles surgiam, independentes das políticas
oficiais (OLIVEIRA, 2001, p. 59).
Sua iniciativa em equipar escolas de educação física, com o que existia de melhor, favoreceu
um novo cenário. Pensou-se na realização de um grande espetáculo esportivo, a fim de melhorar
a prática esportiva em locais que necessitavam de novos aparelhos. Outra ação foi solicitação de
recursos para a educação física nos parques infantis.
Junto ao comércio Musa buscou recursos financeiros, proporcionando a realização dos eventos.
Essa sua postura de grande empreendedor fez com que os professores e estudantes trabalhassem em prol do
mesmo objetivo. O professor pesquisado tinha um grande envolvimento com suas atividades profissionais,
e não mediam esforços para obter um bom resultado.
Em relação as aulas, percebeu-se o empenho dos professores no preparo das equipes em diversas
épocas do ano letivo. O espírito que norteou essas aulas foi o cuidado com o físico, com a saúde do
corpo, através de exames médicos; principalmente, com as normas disciplinares de ordem e de formação
do caráter, com a competição, saber vencer e saber perder, e o respeito ao adversário.
Entretanto um dos aspectos marcantes foi à convivência dos alunos esportistas fora de aula: o
espírito de camaradagem fora da sala de aula, independentemente da série frequentada. Muitas situações,
como treinos, torcidas, jogos e viagens, contribuíram para o estreitamento da amizade e solidariedade, de
acordo com depoimento de Maria Apparecida Franco Pereira.
Havia, também, a preocupação de Musa de não prejudicar os estudos. Se o baixo rendimento escolar
não era um item impeditivo, existia um aconselhamento à aplicação e ao desenvolvimento intelectual. Os
alunos esportistas não eram tirados com frequência das aulas. E, só em casos especiais, as classes eram
dispensadas para formar torcida. Essas informações valem de algum modo para as décadas de quarenta e
cinquenta.
Santos foi sede de três cursos de Aperfeiçoamento Técnico e Pedagógico para licenciados em
educação física (II 1952, V 1957 e VII 1959). Esses cursos foram oficializados pelo Governo do Estado
de São Paulo e diversas cidades sediaram esse evento. Em Santos, o Departamento de Educação Física,
coordenado pelo professor Oscar Silva Musa, ajudou na promoção, cedendo espaço para as inscrições. Esses
cursos chamaram muita atenção pela diversidade cultural e por ser local de encontro de vários professores
nacionais e internacionais, com linguagens e técnicas diferentes. Os cursos foram ministrados nos clubes
Internacional de Regatas, Vasco da Gama, Regatas Santista e Saldanha da Gama, localizados na Ponta da
Praia.
Musa foi professor de educação física, técnico de basquete, futebol e voleibol; ajudou, também, a
difundir o tamboréu, organizando o primeiro campeonato mundial dessa modalidade.
Por muitos anos foi assistente e diretor da divisão do setor de educação e esportes do Serviço
Social da Indústria (SESI), quando organizou os Jogos Operários, envolvendo todas as indústrias
da Baixada Santista; idealizou o cinema e o teatro operário, ficando até 1958, quando se aposentou.
Sob sua orientação a cidade de Santos teve excelentes profissionais de Educação Física. O
Departamento de Educação Física adquiriu grande impulso na sua administração.
Muitos de seus colegas de trabalhos eram bem preparados pela Escola de Educação Física
da Universidade de São Paulo. Explanamos a atuação dos que mais foram destacados pela imprensa,
entre eles, destacam-se: professores Guaraná da Costa Rodrigues, Elny Abdelaziz Alves de Camar-
go, Vanda Bezerra, Yolanda Elias Miguel Baldia e Francisco Galvanese Natale.
Para a grande maioria desses professores o esporte era uma atividade educativa
por excelência. Assim sendo, ele era muito mais uma alternativa positiva do que um
rebaixamento do valor formativo da educação física escolar (OLIVEIRA, 2001, p. 56).
Pode-se dizer que as competições esportivas escolares foram eventos de grande valor na vida
e na formação do caráter dos seus participantes. Algumas escolas tiveram maior destaque, mostran-
do que na sua instituição de ensino existia um sentimento de valorização da atividade física e do
esporte; formando alunos, que às vezes se destacaram e se tornaram atletas e praticarem o esporte
em clubes da cidade, constituindo uma fase feliz de suas vidas, fundamentadas num período escolar.
Pode-se dizer que a cidade ficou conhecida (na sua parte de lazer) pelo movimento esportivo, não
por ser uma cidade litorânea, mas também pelo ótimo desenvolvimento dos campeonatos colegiais.
No seu acervo pessoal foi encontrada uma reportagem jornalística em sua homenagem. O
documento encontra-se sem data, mas pela localização e suas informações pode ter sido publicada
em 1962: a Liga Santista de Voleibol organizou um evento, com o objetivo de homenagear o co-
nhecido homem da educação física e do esporte, Oscar da Silva Musa; é o reconhecimento de todos
aqueles ligados à educação física do Estado de São Paulo; principalmente, atletas e alunos, sabedo-
res de sua dedicação ao esporte santista e de sua excelente administração da Delegacia Regional de
Educação Física e Esporte:
Após 20 anos de trabalho ligados à educação física, o professor deixou sua atividade.
Ele foi homenageado diversas entidades esportivas, amigos, esportistas, educandários e o
público em geral. A Liga Santista de Voleibol não poderia ficar de fora, criou este campe-
onato com o nome do educador, Oscar da Silva Musa.
Arquivos:
Fundação Arquivo e Memória de Santos
Centro de Memória Esportiva Museu De Vaney
Hemeroteca “Roldão Mendes Rosa”. Prefeitura Municipal de Santos.
Acervos pessoais:
Elny Abdelaziz Alves de Camargo
Oscar da Silva Musa
Guaraná da Costa Rodrigues
Maria Apparecida Franco Pereira
PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES.
Introdução
O ruralismo pedagógico foi uma corrente de pensamento que ganhou força e inflamou o debate
educacional durante os anos de 1930. Não foi um movimento sistematizado, embora ocorresse a influência
mútua de diversos intelectuais que se dedicaram à questão da educação rural. Muitos contribuíram por
meio de suas publicações e ações para o movimento, conquistando prestígio no campo educacional:
Carneiro Leão, Alberto Torres e Sud Mennucci. A preocupação com a educação rural para esses intelectuais
comtemplava o seu papel no desenvolvimento econômico do país, a elaboração de um currículo adequado
à realidade do campo e a formação de professores para atender a demanda de escolarização da população.
O objetivo final seria o de promover a fixação do homem ao campo e a de transformar a educação em um
veículo incentivador do progresso econômico nacional. (BEZERRA NETO, 2003).
O objetivo deste trabalho é compreender a natureza do ideário pedagógico ruralista de Sud Mennucci
e a sua proposta para a formação de professores rurais, tendo em vista a relação entre as suas experiências
sociais, sua produção escrita e as transformações políticas, sociais e educacionais ocorridas no início do
século XX.
Impõe-se, portanto, o desafio de escrever uma biografia intelectual (Dosse, 2009). O potencial da
produção biográfica para a construção do conhecimento histórico assenta-se na possibilidade que a biografia
dispõe de permitir uma entrada pela singularidade a fim de chegar à universalidade. (DOSSE, 2009, 406).
1
Analisamos cinco livros publicados por Sud Mennucci que têm como principal tema a educação rural
e o seu projeto de ruralização do ensino: A Crise Brasileira de Educação (1930), Cem anos de Instrução
Pública -1822-1922 (1932), O que fiz e pretendia fazer (1932), Pelo sentido ruralista da civilização (1935),
e Ruralização (1944). Incorporamos ao trabalho textos publicados na Revista do Professor, do Centro de
Memória Sud Mennucci do Centro do Professorado Paulista, e da revista Educação da Coleção Paulo
Bourroul pertencente à Faculdade de Educação da USP. As revistas educacionais têm se constituído em
fontes de estudo no campo da História da Educação desde a década de 1980. As pesquisas que analisam o
significado da imprensa educacional na construção do campo educacional paulista verificam que tais fontes
permitem discutir uma diversidade de temáticas relacionadas à profissão, assim como, refletir sobre o seu
papel estratégico na construção da hierarquia social do campo, divulgando modelos para a prática docente,
que eram sustentados por um discurso que se proclamava científico. (CATANI, 2002, 2003; NERY, 2009).
Durante as leituras das fontes foi possível que as narrativas exaltavam o comprometimento de
Mennucci com as questões do ensino rural e que o consideravam um “grande”. Aparecia, ainda, a imagem
do sociólogo e do administrador competente. Os autores reconheciam no trabalho de Sud Mennucci
uma capacidade de observação da realidade que o permitia pensar e legislar soluções para os problemas
educacionais.
Para o jornalista Victor Lino Bambini, do Jornal do Brasil (RJ), o livro“Crise Brasileira de Educação”
(1930) seguia os preceitos analíticos de Durkheim, o que demonstrava a superioridade do pensamento de
Mennucci em relação aos “escolanovistas”. Compreendia que a alta densidade populacional brasileira no
campo e o papel da agricultura na economia do país exigiam a organização de um sistema de ensino que se
diferenciasse ao dos países industrializados. Logo, a escola deveria estar adaptada e funcionar em harmonia
com o meio em que estava localizada.
Ciro Vieira da Cunha, diretor da Escola Normal Pedro II da cidade de Vitória no Espirito Santo,
a imagem do administrador se sobressai pela capacidade de Sud Mennucci em pensar soluções para o
2 A ilusão biográfica corresponderia ao esforço de realizar uma narrativa linear das experiências
sociais dos sujeitos de modo demonstrar a coerências entre o seu o pensamento e ações.
3 BAMBINI, Victor Lino. A questão do ensino no Brasil e as soluções de Sud Mennucci. Revista do
Professor. Ano II, nº. 12, julho, 1935, p. 22.
problema educacional brasileiro.
Não examinou a questão como se ela se oferecesse no momento. Analisou-a desde sua
origem, seguindo-lhe de perto todas as fases, procurando todos os fatores que a produzem
no estado em que se encontra atualmente. Fez obra de historiador paciente. De sociólogo
avisado. De crítico inteligente. De educador moderno. 4
[...] um “mestrinho”, que sendo única e integralmente professor, despido das prerrogativas
e das brilhanturas inerente de detentores de títulos facultativos, veio, justamente por essa
simplicidade, a se colocar em situação impar ao lado de Macaubas e Bethencourt da Silva,
de Caetano de Campo e João Kopke, grandes educadores cujos nomes se exornavam,
porém, com chancela acadêmica. 6
Considerado pelo conferencista o único capaz de dar continuidade ao pensamento de Alberto Torres,
um “guia” para a sua geração, teria despertado para o papel da instrução primária para a construção e o
reforço da nacionalidade, sem que fosse preciso utilizar modelos pedagógicos estrangeiros, e como lugar
de preparo do trabalhador descartando a necessidade da imigração. Sua preocupação seria a elevação do
nível cultural brasileiro. 7
Sud Mennucci nasceu em Piracicaba, município do interior do Estado de São Paulo, no dia 20 de
4 CUNHA, Ciro Vieira. Um livro de Sud. Revista do Professor. Ano III, nº. 16, setembro, 1936, p. 08.
5 PEIXOTO, Vicente (Diretor do CPP) “À Guisa de apresentação (editorial). In: Revista do Professor,
Ano VII, nº 1, maio/1949, p. 1: Apud VICENTINI, Paula Perin. Um estudo sobre o CPP (Centro do
Professorado Paulista: profissão docente e organização do magistério. Dissertação de Mestrado.
FEUSP, São Paulo, 1996.
6 CAMPOS, Moacir. Sud, o mestre. Homenagem, São Paulo, 1949, p. 12 e 13. Não encontramos
referência à editora que teria publicado o texto. É possível que tenha sido providenciada pelo CPP ou por
recursos próprios de Moacyr Campos.
7 CAMPOS, Moacir. Sud, o mestre. Homenagem, São Paulo, 1949, p. 16.
janeiro de 1892, porém foi registrado dia 15 de março pelo receio do pai de pagar multa por não ter registrado
a criança dentro do prazo exigido por lei. Era filho de imigrantes italianos, Amadeo Mennucci e Tereza Lari
Mennucci, que chegaram em Santos no ano de 1888 acompanhados dos filhos Brasilina e Alarico. Depois
de passarem um tempo na Hospedaria dos Imigrantes na capital paulista estabeleceram-se em Piracicaba.
Nesta cidade seu pai foi marmorista destacado confeccionando obras para os túmulos do cemitério da
cidade. Amadeo Mennucci parece ter tido uma atuação diferenciada na cidade. Segundo Giesbrecht (s/d),
ganhou uma medalha de bronze na Exposição Internacional no Rio de Janeiro no ano de 1908 por obras
que teria realizado na cidade. Além disso, esteve à frente da Sociedade Italiana de Piracicaba. Outro indício
de sua distinção foi a casa em que Sud Mennucci nasceu e onde moraram por algum tempo. Ficava situada
na rua Treze de Maio no centro da cidade. Fazia fundos com a residência de Prudente de Moraes, que foi
presidente do Brasil entre 1894 a 1898, dois anos depois do nascimento de Sud Mennucci.
Iniciou sua escolarização aos sete anos quando foi matriculado na Escola Particular Italiana do
professor Aldo Padovani. Porém, Giesbrecht (s/d) destaca que desde muito cedo Mennucci já aprendera
a ler, escrever e realizar operações matemáticas. Em 1902 passou a frequentar o Grupo Escolar Moraes
Barros. O autor relata que uma das habilidades de Mennucci eram os exercícios matemáticos. O professor
realizava competições entre os alunos e os presenteava pelo melhor desempenho.
Em 1903 prestou exame para cursar a Escola Complementar que nesse período possuía o curso
ginasial e profissional, funcionando como acesso para as escolas superiores e habilitando para o magistério.
Mennucci planejava cursar a Escola Politécnica em São Paulo para formar-se engenheiro-geógrafo. Essa
escolha contrariava as expectativas do pai de que que o filho ingressasse na Escola de Agricultura Luiz
de Queiróz. Devido a uma crise financeira que atingiu a marmoraria do seu pai a Escola de Agricultura
parece ter sido uma opção viável para oferecer ao filho condições de frequentar o ensino superior já que
não dispunha de vencimentos para manter a estadia de Mennucci na capital paulista. Mesmo assim teria
preferido frequentar a Escola Complementar. Uma informação curiosa é fornecida pela biografia. Mennucci
não gostava de Botânica e Agricultura. Anos mais tarde vai defender a agricultura como um dos eixos
articuladores dos programas de ensino das escolas rurais, incentivando a organização de práticas educativas
que incluíssem o estudo das plantas e do seu desenvolvimento e a aprendizagem de técnicas agrícolas no
ensino primário.
Em 1908 recebeu o diploma de professor, mas ficou impossibilitado de cursar a Escola Politécnica
por causa dos problemas financeiros da família. Por não ter completado a idade de dezoito anos exigida para
lecionar realizou a chamada prática no Grupo Escolar Moraes Barros e contratou o professor de contabilidade
Paulo Barbosa e Emile Charropin de língua francesa. Giesbrecht (s/d) comenta que os professores tinham
admiração pelos conhecimentos do aluno. Paulo Barbosa teria convidado o recém-formado professor para
fazer parte da banca examinadora de alunos da Escola Complementar. Charropin foi um professor francês
contratado pela Escola de Agricultura Luiz de Queiróz para lecionar fitopatologia. Era admirador dos
conhecimentos de Mennucci em matemática e literatura.
Sud Mennucci iniciou a sua carreira em escolas do interior em 1910 quando completou 18 anos.
Essa era a idade mínima exigida para a docência. Foi nomeado professor na Escola Masculina do Bairro de
Alvarenga no município de Cravinhos. Nesse período começou a escreveu artigos para O Jornal e para A
Gazeta jornais de Piracicaba. Seu biógrafo comenta que nesses jornais Mennucci escrevia sobre: educação,
as guerras na Europa, as condições dos transportes nas cidades do interior. Assinava suas publicações como
Saul Maia, Cyro Fortes, Silva Martins, Zélio Menna e Conde do Luxo em Burgo. Em 1911 foi transferido
para lecionar na Primeira Escola Urbana e Masculina de Arte localizada no município de Piracaia. Enfrentou
dificuldades relacionadas ao transporte que o impossibilitava de se deslocar à outros centros urbanos. Além
dos jornais de Piracicaba começou a colaborar no jornal O Cachoeirense.
Em 1913 foi participou da missão de professores paulistas que seriam responsáveis por reformar
as Escolas de Aprendizes de Marinheiros do Brasil. A reforma teria sido chefiada por Arnaldo de Oliveira
Barreto e Mennucci foi enviado para Belém no estado do Pará antes mesmo de terminar o estágio de
dois anos no Rio de Janeiro. 8 A região enfrentava a crise do final do ciclo da borracha que fez inflamar
sentimentos separatistas entre a população. Mennucci demonstrava ser contrário á emancipação dos estados.
Giesbrecht (s/d) transcreveu um trecho de Cartas de Belém escrito em 18/11/1913: Agora (os paraenses)
querem de novo mudar de senhorio, como inquilinos descontentes que não pagam aluguel, e escolhem para
novos padrinhos os Estados Unidos da América do Norte! (p. 19).
A experiência no Pará pode ter despertado Sud Mennucci sobre o problema da escolarização oferecida
ao negro devido a permanência de uma mentalidade escravocrata e para o papel da escola na formação da
nacionalidade. Após pedir exoneração do cargo Mennucci retornou à São Paulo e foi nomeado professor
substituto efetivo do Grupo Escolar de Porto Ferreira. Foi colega de trabalho de Lourenço Filho e de Thales
Castanho de Andrade. Esse último publicou o livro didático intitulado Saudade que foi consideravelmente
utilizado nas escolas paulistas. A convivência e amizade com Thales Andrade, que demonstrava preocupação
com a realidade rural no livro pode ser considerada um momento em que Sud Mennucci se aproxima da
problemática dos programas de ensino e as escolas rurais. Nesse momento é possível que Mennucci tenha
entrado em contato com o livro O Problema Nacional Brasileiro escrito por Alberto Torres publicado em
1914. Nessa obra o autor destaca a necessidade da promoção do nacionalismo e a influência estrangeira na
organização da produção e dos serviços brasileiros.
Foi também em Porto Ferreira que conheceu e casou-se com Maria da Silva Oliveira, uma normalista
e filha de um casal de portugueses. Dois anos depois foi convidado por Júlio de Mesquista Filho para
colaborar no jornal O Estado de S. Paulo na edição da noite chamada Estadinho. Foi em 1918 que publicou
com dinheiro emprestado da sogra sua primeira obra de crítica literária: Alma Contemporânea. Mennucci
também transitou pelo campo literário mobilizando e construindo um capital cultural e social que o projetava
como um professor distinto dos demais.
A reforma educacional realizada por Sampaio Dória é um momento em que Sud Mennucci se
destacou no cenário educacional e iniciou a sua carreira na administração do ensino. Em 1920 é convidado
para ser chefe do Escritório Central de Recenseamento Escolar do Estado localizado na Escola Normal
Caetano de Campos. Influenciado pelo ideal republicano de combate ao analfabetismo, da escola como
elemento propulsor do progresso e aproveitando o conhecimento da realidade escolar do Estado adquirido
8 Essa fazia parte de um projeto de modernização do exército e da marinha após os acontecimentos que
ficaram conhecidos como Revolta da Chibata em 1910. O contingente da Marinha era formado por negros
que se organizaram para exigir o fim dos castigos corporais. A manutenção dos castigos era considerada um
resquício das práticas escravocratas.
no trabalho, Mennucci publicou um texto em que apresenta uma avaliação sobre as intervenções do Estado
na organização do sistema de ensino brasileiro desde o período colonial até o governo republicano. Nele
também realizava uma avaliação desanimadora sobre a educação rural. 9
Nesse livro afirmava que a escolas das cidades recebiam muitos benefícios por causa da mentalidade
urbana dos legisladores e que a Reforma Educacional de 1920 era um modelo de democratização do ensino.
10
Em termos econômicos garantia-se o aumento de número de crianças frequentando a escola com o menor
gasto possível aos cofres públicos. A reforma sofreu críticas de intelectuais que a acusavam de rebaixar a
qualidade da formação primária oferecida à população. Porém, a memória que se construiu dessa iniciativa
foi a de um grande esforço para concretizar a ampliação do acesso à escolarização. (CARVALHO, 2003).
Mennucci afirmava que o Estado deveria investir na construção de escolas rurais, na medida em que
a maioria da população habitava o campo. A situação das cidades seria privilegiada: “Ao passo que há 166
grupos (sem contar 10 modelos) com 2.318 classes e 755 escolas urbanas, diurnas, nocturnas, num total
de 3.173, há apenas 956 escolas districtaes e 200 ruraes. (MENNUCCI, 1932, p.77).
A questão escravocrata brasileira é central em suas análises sobre o desinteresse dos legisladores
pela a escola rural. A adoção da mão-de-obra-escrava teria investido de valor negativo o trabalho agrícola. A
condição racial e social do negro explicaria o pouco investimento na construção de escolas públicas rurais,
pois o escravo, na concepção dos políticos e reformadores do ensino, seria um animal desprezível, [...],
indigno, portanto, de receber educação e de gozar de maiores cuidados que os estritamente indispensáveis
à sua vida vegetativa. (MENNUCCI, 1932a, p. 123). Com esse argumento combatia a representação literária
do homem rural como “Jeca tatu” construída por Monteiro Lobato. O homem rural não seria um indivíduo
preguiçoso, uma das características exaltadas por Lobato, mas tinha desprezo pelo trabalho movido por um
“um fenômeno de psiquismo coletivo”. (MENNUCCI, 1932a, p. 124).
Outra solução apontada seria a garantir a presença do Estado na organização da carreira do magistério
e da sua formação. Para ele, o ensino primário reduzido a pouquíssimas escolas, mestres inábeis, mal
pagos, mal-tratados, os methodos mais carrancas do tempo. (MENNUCCI, 1932a, p. 23). Defendia que
a formação dos professores deveria ter caráter científico. A formação científica do professor seria a mais
adequada para conferir ao normalista a capacidade de analisar a realidade social e econômica da população
e, a partir de então, selecionar os melhores conteúdos e técnicas para o processo de aprendizagem: A
observação empírica dos fatos e dos fenômenos sempre foi o melhor meio, senão o único, de aprender. Sem
empirismo não haverá sciencia. 11 Acreditava que a eficiência de um método de ensino exigia a capacidade
de reflexão dos professores, superando a tentativa de aplicar a teoria mecanicamente na prática.
Sua habilidade em conhecimentos matemáticos necessários para o levantamento estatístico da
realidade escolar em São Paulo, a participação na Reforma da Escola da Marinha em Belém, uma visão de que
os legisladores não teriam competência para administrar as questões educacionais compõe um conjunto de
capitais pelo qual estrutura a representação de que o homem rural teria sido abandonado pelo poder público.
9 O texto foi encomendado pelo jornal O Estado de S. Paulo para a edição comemorativa intitulada
“Centenário da Independência” publicada em 1922. Dez anos mais tarde Mennucci o publicou em forma
de livro sob o título Cem Annos de Instrucção Pública – 1822 – 1922 que utilizamos como referência para
compreender os seus argumentos sobre a escola rural.
10 Nessa reforma educacional previa-se a redução da obrigatoriedade do ensino primário de quatro
para dois anos. Era uma tentativa de aumentar o número de vagas nas escolas e, desse modo, absorver as
crianças que tinham idade escolar e estavam fora da escola.
11 MENNUCCI, Sud. O ensino do vernáculo nas escolas primárias. Revista Educação. Out-Dez; Vol
IX; 1929, p. 118.
Em 1930 publicou o livro A Crise Brasileira de Educação (1930) que atingiu grande repercussão no
cenário educacional. 12 Neste livro Mennucci afirmava que a escola não acompanhava o desenvolvimento
científico e industrial e seus processos produtivos. Apoiado em Alberto Torres e também em Durkheim,
Mennucci defendia que o país era essencialmente agrícola e que a escola deveria formar homens preparados
para viver em harmonia com a realidade social e econômica em que estavam inseridos. Deveria ter uma
orientação profissionalizante, possibilitando que o homem rural possuísse condições de permanecer no
campo e contribuísse com seu trabalho para o progresso econômico do país. Para ele, o professor teria que
dominar conhecimentos sobre agricultura, higiene e conferir ao ensino um caráter nacionalista. Esses três
eixos seriam essenciais para levar a “cultura” ao homem do campo despertando-lhe o sentimento de amor
à terra 13.
A partir desse pressuposto, fazia duras críticas à influência da Escola Nova na formação de
professores:
[...] envenenavam a alma dos filhos dos nossos lavradores, criando-lhe no intimo a
enganosa e perigosa imagem da cidade. O alfabeto, em vez de ser um auxiliar, um
amparo, um sustentador da lavoura, virou um tóxico poderosíssimo e violento. Põe na
cabeça da juventude aldeã o desejo louco de aprender para se libertar do fardo agrícola.
(MENNUCCI, 1934, p. 70-71).
O professor seria avesso ao modo de vida do homem rural. Para Mennucci, a inexperiência dos
recém-formados também era problemática.
Vai para o campo, de acordo com as nossas leis, o mestre novato, apenas saído da forja das
Normais, inexperiente e inexperto, treinado em estabelecimentos de ensino urbano, onde
tudo é fácil e cômodo e onde pode pôr em jogo, com uma certa probabilidade de sucesso,
aquela psicologia de laboratório que nos chega empacotadinha de fora e que, bem que mal,
se ajusta ao estudo das crianças que frequentam grupos escolares. (MENNUCCI, 1934,
p. 75).
Porisso mesmo que se propõe fazer do brasileiro o homem mais solidamente e sabiamente
adaptado ao seu meio, esta escola tem de brotar do conhecimento seguro e completo de todas
as séries de fatores econômicos, antropológicos, psicológicos a que estamos submetidos
para que se cuide de organizar, ou de modificar dentro do humanamente possível, aquela
mentalidade capaz de dar à raça a sensação de sua força criadora e o anseio de uma crescente
melhoria da vida, em qualquer que seja o seu aspecto. (MENNUCCI, 1934, p. 97).
O Reformador
Em 1931, durante o governo provisório de Getúlio Vargas, Mennucci é nomeado Diretor do Ensino
de São Paulo pelo interventor do Estado General Manuel Rabelo. No posto mais alto da administração do
ensino encontrou espaço para encaminhar suas ideias ruralistas através do decreto nº 5.335 que promovia
uma reforma educacional em São Paulo. Nela previa o aumento da rede de ensino, a ampliação dos cargos
de inspetores escolares, a criação da Delegacia Geral do Ensino Privado e Antropometria Pedagógica, a
reorganização do Serviço de Psicologia Aplicada, a regulamentação da carreira do magistério, a remoção
de professores do interior para a capital e o desenvolvimento do ensino rural no Estado. A reforma gerou
polêmica entre professores, intelectuais e jornalistas. (VICENTINI, 1996).
Nesse período participou da criação do CPP importante órgão de representação da classe docente
junto ao Estado. Na Revista do Professor, em sua primeira fase (1934-1939), os professores exaltavam a
profissão com o objetivo de conquistar a adesão do magistério ao CPP. Disseminava-se a ideia de que a falta
de união da classe impossibilitava o CPP de representar as demandas dos professores quanto à melhoria
salarial junto ao Estado (VICENTINI, 1996).
Uma das primeiras ações foi elaborar uma nova tabela de vencimentos dos professores. Os
vencimentos seriam igualados e o aumento salarial seria progressivo e automático de acordo com o tempo de
exercício dos professores. A nova tabela de vencimentos foi questionada e um grupo, que não é identificado
por Mennucci, teria recolhido assinaturas de 1.100 professores insatisfeitos com a mudança.
14 Em 1930 Mennucci era integrante da Legião Revolucionária que teve como presidente Plínio Salgado líder do
Movimento Integralista Brasileiro. Salgado mantinha diálogo com as ideias raciais que circularam na Europa no período a
exemplo das defendidas na Alemanha nazista de Adolf Hitler.
Mennucci revelava que um dos objetivos da alteração dos vencimentos era combater a alta rotatividade
de docentes entre as escolas. Acreditava que as diferenças salariais faziam com que o magistério buscasse
melhores postos de trabalho em escolas das cidades e nos grupos escolares. Caso não fossem atendidos
solicitavam licenças que acreditava serem utilizadas pelo magistério para se afastarem do trabalho nas
escolas rurais. Queria, ainda, combater as remoções realizadas a partir de apadrinhamento político. Desse
modo, considerava que os professores permaneceriam maior tempo nas escolas em que eram nomeados,
melhorando a eficiência do ensino.
Após sua passagem pela Diretoria de Ensino Mennucci se preocupou em divulgar as experiências
ruralistas que aconteciam em São Paulo e outros Estados. Sobre a escola rural localizada na Fazenda da
Barra conduzida pela Dona Luiza Guerra, reforçava a necessidade de um professor rural especialista:
[...] só o professor com conhecimentos sólidos na matéria, é capaz de ensinar tendo em mira melhorar e
aperfeiçoar os nossos methodos de cultura. (MENNUCCI, 1935, p. 59).
Em São Paulo, a professora Noemia Saraiva de Mattos Cruz, nomeada por Sud Mennucci Diretora do
Grupo Escolar do Butantã realizou nesse estabelecimento uma experiência de ensino rural muito divulgada
na Revista do Professor e em outros Estados brasileiros. Mennucci considerava que o Grupo Escolar do
Butantã era a prova da viabilidade do ensino agrícola nas escolas primárias. Assim comentou as atividades
e o cotidiano da escola: O filme do Grupo escolar do Butantan é o verdadeiro sello da effectividade prática
do ensino rural a classes de crianças de 8 annos para cima, mostrando a exequibilidade do plano que o A.
pregara desde 1930. (MENNUCCI, 1935, p. 65).
Novamente como Diretor do ensino em 1944 Sud Mennucci publicou o livro Ruralização. Relatou
a experiência de formação de professores em Escolas Normais Rurais no México.
O México, para realizar a profunda metamorfose de seu aparelhamento educativo, partiu da
consideração de que aproximadamente 80% da população mexicana é predominantemente
rural e vive em vilarejos de menos de quatro mil habitantes, sendo que a maioria se localiza
em aldeias e bairros que não alcançam mil almas. (MENNUCCI, 1944, p. 46).
Só o professor poderá fazel-o, mas só o fará o professor que tenha profunda devoção pelo
campo, que lhe conheça as belezas e as riquezas que encerra e as mazelas que esconde.
Assim se explica a minha insistência na creação das Escolas Normaes Rurais formadoras
do mestre com consciência agrícola, conhecedor das necessidades da agricultura, a
cavaleiro de seu meio como cultura e como nível mental, capaz de vulgarizar a ciência e
de pôl-a em evidencias pelos resultados imediatos. Será do mesmo passo um conhecedor
das inferioridades locais, um defensor incansável do nível médio da higidez coletiva,
através de sua experiência individual. E será um pregador sistemático da necessidade de
fixação do homem à terra e da formação das sociedades perfeitamente integradas ao seu
meio, produtos das determinantes geográficas a reagir sobre as características biológicas.
(MENNUCCI, 1932b, p. 127 e 128).
O professor é tratado como um profissional que deveria possuir uma identificação com a realidade
econômica e cultural da população do campo. Seria, ainda, um divulgador de práticas científicas na produção
e trabalho agrícola com o objetivo de fixar o homem no campo e elevar o desenvolvimento econômico das
comunidades rurais.
Considerações finais
Referências bibliográficas.
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Universidade de São Paulo, 1997, 196p.
Narrativas de Formação em Educação: possibilidades para a pesquisa e investigação
em Educação Sociocomunitária
Francisco Evangelista
No campo da emergência das subjetividades, enquanto produção legítima nas Ciências Humanas,
podemos considerar as verdades nos seus contextos (validade) e em suas provisoriedades, no mundo da
vida, como nos elucida Bakhtin (2002). O mundo da vida está situado entre o mundo não conhecível e
o conhecível. É nele onde estão os seres falantes, os sujeitos, que produzem, significam e re-significam
os sentidos e se representam. Os sujeitos possuem seus modos de ver, sentir, agir, relacionar com seu(s)
outros (s). Estão no ambiente, mas diferente das coisas, eles possuem horizontes. Na sua relação com o
mundo não-cognoscível (Deus, o mito, a Arte) e com o mundo cognoscível, produz o seu contexto, produz
conhecimento, valida suas verdades.
Na produção das teorias científicas, desta forma, em Ciências Humanas, podemos considerar
que estas estão sujeitas às mesmas mudanças que os movimentos do mundo explicitam e que cada ser
humano invoca, quando para ele constrói o seu olhar. Para Chauí,
porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós
para fora, olhar é, ao mesmo tempo sair de si e trazer o mundo para dentro de si.
Porque estamos certos de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos,
expondo nosso interior ao exterior, falamos em janelas da alma (CHAUÍ, 2006, p.
33).
Somos construtores de olhar, e podemos através dele elaborar e agir pela palavra. Nesse sentido,
a autora faz a relação do olhar ao ato, quando afirma que as coisas visuais precedem a palavra. Palavra que
vem de dentro e nos expõe, como janela aberta, mas que permite a palavra de fora adentrar.
Traz, para elucidar sua discussão, o poema de Drummond:
[...]
[...]
[...]
A autora nos expõe que vemos as palavras, chegamos perto delas e as contemplamos: antes
dos poemas são as coisas visuais e, como todo visível, “tem mil faces secretas sob a face neutra”(CHAUÍ,
2006, p. 34). E afirma que, precisamos vê-las em sua mudez, e escolhermos as que nos fazem ver o “vínculo
secreto entre o olhar e o conhecimento” (p.34).
Sendo assim, “quem olha, olha de algum lugar” (p.35). Quem pesquisa, também pesquisa a
partir de um ponto, da construção de seu olhar para o seu objeto/sujeito de sua pesquisa. Se, todo ponto de
vista é a vista de um ponto, inúmeros olhares são construídos aos objetos/sujeitos eleitos para a pesquisa,
porque estes produziram as palavras, as validades, o ato. E como todo ponto de vista tem um ponto, tem
uma vista, mudando o ponto, muda-se a vista. É pela vista que temos da realidade que percorremos certo
caminho, que escolhemos uma determinada metodologia para investigar e procurar entender a experiência
vivida.
Neste sentido, os diferentes olhares para o objeto/sujeito de pesquisa podem oferecer uma
variação entre as produções. Para isso, é preciso explicitar os caminhos de onde partimos, como percorremos
e os construímos para indicar onde queremos chegar e onde conseguimos chegar.
Na direção oposta, a experiência requer, segundo Larrosa (2004), um gesto de interrupção, uma
parada para pensar, olhar, escutar,
pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e
a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a
lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e
dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2004, p.122).
Explicar a realidade, ser sujeito da experiência, é mais do que descrever os fenômenos, mas é
sim interpretá-los e reinterpretá-los, compreendê-los e recompreendê-los dentro dos seus contextos e partir
dos olhares a eles construídos e destinados. Por isso, os dados de uma ciência que se apresenta desta forma,
podem ser construídos, pois são interdependentes da interpretação e compreensão do pesquisador para com
eles.
Nessa perspectiva, as lições que as narrativas apresentam, podem ser construídas, interpretadas
e compreendidas de diferentes maneiras, tomando-se o leitor como referência do que foi produzido por um
autor/herói (Bakhtin, 2003), que trará para si suas verdades ainda que mutantes e provisórias, a partir da sua
experiência com o objeto de pesquisa. O conhecimento produzido neste tipo de pesquisa, pode provocar
diferentes sentidos e movimentos. Por isso, a escolha política e as tentativas de apontar seus porquês no ato
de pesquisar, porque o “mundo não é, o mundo está sendo” (FREIRE, 1996, p.85).
É a afirmação de que não podemos pará-lo para fazer ciência, ou deter seus processos
para analisá-los; tudo isso ocorre ao mesmo tempo. Há um movimento ininterrupto
dos sujeitos na sua atuação em processos também ininterruptos da vida. Motivo
pelo qual precisamos compreender tal complexidade.
Sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada
pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode se apenas um paradigma científico
(o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma
social (o paradigma de uma vida decente).
A escolha por um paradigma social nos aproxima dos princípios freireanos em considerar o
humano, o outro, as gentes (FREIRE, 1996, CRUZ, 2012, p.68)
Isso possibilita aprofundar as relações que o homem tem consigo mesmo, com o outro e com o
mundo, isto é: as relações ente EU-EU; EU/OUTRO; EU/MUNDO sendo viabilizadas por um olhar e por
um caminho social e humanista.
A partir da escolha por um paradigma social, coerente com a proposta em fazer ciência em
Educação, o que se propõe é percorrer um caminho singular para a pesquisa: a narrativa, como método
investigativo. Tal escolha concebe a narrativa como modelo e possibilidade de narrar as experiências vividas
pelos sujeitos para extrair da história contada as lições e os conselhos, mas, sobretudo, o conhecimento para
lidar com a realidade.
Narrativas e pesquisa
No caso das histórias de vida, bastante recorrente na pesquisa sobre/com professores, um dos
precursores no Brasil, que traz esta temática de pesquisa no campo da educação, é Antônio Nóvoa, seguido
de vários outros.
O uso das narrativas como objeto de investigação ganha espaço devido, em parte, à insatisfação
com as produções das pesquisas em educação. Essas pesquisas acabam falando sobre os espaços educativos,
olhando-a a partir de um lugar neutro (como se houvesse esse lugar), do que na construção de um diálogo
com ela e a partir dela (CRUZ, 2012).
O mesmo é observado nas pesquisas com educadores sociais e nos seus contextos de atuação,
onde se fala sobre o trabalho desenvolvido em contextos não-formais, geralmente na fala autorizada de seus
pesquisadores e não necessariamente por quem realiza o trabalho educativo.
Nesse sentido é preciso considerar os modos de dizer bem como os contextos em que são
produzidos esse dizer. O modo como se diz e o contexto em que se diz são fundamentais na compreensão
dos sentidos, do ponto de vista bakhtiniano, e o reconhecimento disto tem dado origem a esforços no
sentido de recuperar os saberes da experiência por meio das histórias contadas pelos próprios sujeitos. Por
conseguinte, as narrativas têm se constituído como material importante na compreensão da prática dos
sujeitos de modo que o que acontece nos processos educativos seja recuperado e que, de certo modo, não
seja corrompido pelas análises.
Uma característica singular das narrativas é o fato de que, apesar delas tratarem de detalhes,
do particular, do subjetivo, elas são interpretadas como casos gerais, geralmente essas histórias lembram
o ouvinte de outras histórias semelhantes a ela, o que confere um caráter quase universal às narrativas
de acordo com Bruner (1997). O autor considera que a narrativa é a ferramenta mais importante para a
construção do significado em nossa cultura, sendo assim a narrativa é um tipo de pensamento que sempre
expressa um saber.
Segundo Walter Benjamin (1994) a narrativa é “uma forma artesanal de comunicação”. Ela
não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório.
Como afirma Cruz (2012), ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se
imprime na narrativa a marca do narrador, como a “mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1994).
A validade e os critérios que sustentam as afirmações são oriundos da experiência vivida pelos
sujeitos envolvidos na pesquisa, buscando também na produção acadêmica já existente, os autores que
já se debruçaram sobre este tipo de objeto de investigação. Em outras palavras, as perguntas oriundas do
processo estabelecem uma relação criativa entre o sujeito que pesquisa e o sujeito que é pesquisado, o que
nos leva a refletir no estatuto epistemológico envolvido na pesquisa entre os sujeitos e suas relações, no
lugar do “eu pesquisador” e do “outro pesquisado”.
Há um autor da obra (a pesquisa) que cria para si seus outros e que como pesquisador tem os
seus outros. Narrador/pesquisador ocupam-se da necessidade de referenciar o leitor sobre quem é, quais
opções profissionais e de pesquisa fez o que se inscreve na construção do seu memorial de formação e
investigação. O Memorial de Formação compõem o texto nas pesquisas narrativas, pois torna-se fundamental
na construção do sujeito/objeto da pesquisa1
Cruz (2013) reafirma “a construção do memorial como lugar de formação (PRADO e SOLIGO,
2005). Portanto, o Memorial de Formação, ou a Novela de Formação – como a Profª Corinta Geraldi
enfatiza – se apresenta como texto constitutivo da pesquisa realizada, ele dialoga com o objeto de pesquisa,
a metodologia utilizada e a própria justificativa temática. Traz ao leitor as aproximações necessárias para
a compreensão dos porquês das opções metodológicas e conceituais na pesquisa desencadeada. Para o
pesquisador, atua na própria compreensão das suas subjetividades - na sua constituição de sujeito – e na
constituição de ser pesquisador”.
Em muitas pesquisas, como Lima (2004), Cruz (2012), Evangelista (2011), Campos (2009), os
outros personagens que são narrados compõem a própria narrativa e são, portanto, co-autores da narrativa.
Embora o pesquisador seja quem define o estilo do gênero discursivo (dissertação com narrativas), que
é histórico e constitutivo de todos. Além de personagens são Os Outros com quem, bakhtianamente
dialogamos o tempo todo da construção da narrativa e com quem construímos as lições.
Enfim, os sujeitos da pesquisa (sobre quem fala), os sujeitos da academia (a quem fala)
e os sujeitos com os quais fala (autores de referência) estão presentes no texto narrativo, originário da
Investigação Narrativa.
Sendo assim, evoca sua memória, relê seus registros, organiza algumas histórias vividas, procura
os outros sentidos dessas histórias. Reconhece que muitas delas tinham como contadores pessoas comuns,
essas do dia-a-dia, que encontramos nas ruas do bairro, dentro do ônibus, nas comunidades. Parecem usar
suas narrativas para nos seduzir à compreensão de suas escolhas, suas lutas, suas distrações do cotidiano
vivido. São pessoas muitas vezes anônimas na tessitura da História; porém, curiosamente são os que lhe
imprimem movimento, singularidade, vida!
Neste tipo de metodologia, existe um pesquisador que assume alguns personagens no trabalho
desenvolvido pedagógico e educativo. Ele é o narrador que conta as histórias vivenciadas. O pesquisador
ganha a vida de uma personagem encarnada de toda a experiência dos processos de educar, dos seus muitos
tempos e lugares; traz suas dúvidas e certezas, seus tateios e prontidões, seus caminhos e descaminhos;
possibilita a visibilidade do trabalho pedagógico realizado. Quando se faz necessário explicitar ao leitor
a revisão bibliográfica que a temática das histórias apontam, é o pesquisador que assume a escritura do
trabalho e realiza a lição do fazer acadêmico, que traz os dados e faz as análises e aponta propostas, se
distancia para a elaboração e sistematização das análises e proposições necessárias ao texto científico.
Enquanto o trabalho acadêmico se constitui um prazer, enquanto o vemos como uma realização
pessoal temos a motivação para compor suas cores e linhas. Porém, as armadilhas propostas pelas duras
realidades que vivermos, quer acadêmicas, quer sociais, vão nos paralisando. Aquilo que era convite à
vida, torna-se convite ao sofrimento, ao cumprimento de etapas, à destreza dos retornos esperados. Então,
é preciso ressurgir das cinzas impostas por todo um sistema neoliberal, um sistema que oprime e massacra,
um sistema que tolhe as autonomias e que deseja nos escravizar. É no momento em que nos assumimos
como sujeitos sociais, que desmontamos a armadilha da ciência racionalizada e prescritiva.
As resistências que são produzidas por sujeitos da experiência, é que deflagram o mundo como
quem a ele pertence e nele se move. Nesse momento viramos o jogo e voltamos a ressurgir como fênix,
altiva, que voa rumo aos seus sonhos e utopias, pois enquanto sujeitos sociais, sabemos que fazemos
diferença, que produzimos saberes que não tem a função de nos enobrecer, mas sim de contribuir para a
coletividade, na luta pela vida.
Isto nos ressignifica a felicidade, isso nos eleva a alma, e transforma o outro pois constrói a
ponte com pedras, onde cada uma é fundamental para a construção do arco que a sustenta (CALVINO,
1999), cada fragmento é uma peça importante na produção dos sentidos; são pedras fundamentais para re-
ligar, re-elaborar, re-compreender, as relações.
Os dados e a pesquisa
As histórias são dados numa investigação narrativa. Portanto, os dados da pesquisa são
construídos e sua elaboração obedece a várias seleções devido à quantidade de possíveis construções que
se passam pelas mãos do pesquisador no ambiente escolar e pela muitas versões das histórias. As narrativas
indicam a escolha dos caminhos e dos questionamentos realizados durante o processo (LIMA, 2005), onde
os conteúdos das histórias são definidos a partir dos sentidos que se busca para compor a trama e articular
as narrativas com as análises.
Para este encaminhamento, pode ser utilizado o termo documentado, tal como as autoras
conceituam os documentos oficiais. Esses dados referenciam as histórias, explicitam os conceitos históricos,
políticos e legais que contextualizam os cenários narrados (Bruner, 1997).
Podemos considerar desta maneira, que o próprio ato de transcrição realizado pelo pesquisador,
as suas impressões ao assistir a entrevistas, a observação dos lanceios dos olhares e dos gestos, contribuem
para a construção da escrita narrativa e das análises dos dados.
Esses dados, podem ser organizados em inventário, obedecendo aos temas tratados no decorrer
das narrativas.
De outro lado, tudo aquilo que normalmente é considerado não importante, que normalmente
vai para o lixo, como bilhetes com assuntos resolvidos e encaminhados, escritas realizadas nos momentos de
reflexão dentro dos trabalhos pedagógicos e educativos, são guardados para a construção dos dados do não-
documentado. O não-documentado, de acordo com Ezpeleta e Rockwel (1989), é constituído do que não é
oficial, mas que são marcas importantes na pesquisa no/sobre o cotidiano socioeducativo. Compõem-se de
folhas avulsas com lembretes, esboços de reunião, planejamentos informais, anotações em cadernos usados
em reuniões, orientações de encaminhamentos tomados, cadernos de aulas/encontros, agendas, cadernos de
orientação. Estes são utilizados na da narrativa em que a informalidade confere o tom das enunciações, os
bastidores dos contextos apresentados, as possibilidades da verossimilhança e das expectativas de futuro
(CRUZ, 2012).
As narrativas podem ser gravadas, filmadas e utilizadas seguindo-se as normas do Comitê de
Ética de Pesquisa. Podem aparecer em entrevistas estruturadas eu semiestruturadas, com roteiro apenas,
para que o narrador conte sua história com liberdade com as ênfases que escolhe em proporcionar.
Na construção dos dados, enquanto histórias narradas, outros cenários podem ser construídos a
partir de rememorações do pesquisador e a narrativa dele sobre/nas situações vivenciadas.
Com as narrativas podemos compor contextos históricos reveladores para a discussão do objeto
da pesquisa. Conhecer a história é de fundamental importância para a pesquisa em educação, pois permite
construir a história da própria pesquisa a partir de depoimentos dos sujeitos que a vivenciaram, e para
encaminhar as análises que estão expressas nas histórias narradas a partir do olhar do pesquisador/narrador.
Dessa forma, os caminhos oferecidos pela análise das interações discursivas e construídas na
dinâmica interlocutiva nas condições específicas de produção das entrevistas (LIMA, 2005), são efetivamente
ressignificados no tempo histórico em que se dá o registro das narrativas. As narrativas do pesquisador que
vão sendo construídas, subsidiadas por outras narrativas dos sujeitos da pesquisa, compõem as análises
relevantes às categorias emergentes a partir do movimento de leitura, busca, análise, retomada e teorizações.
Numa pesquisa em educação desta natureza, a discussão sobre a constituição dos dados e sua
análise pode levantar discussões acaloradas em torno de seu estatuto epistemológico. Discussões em torno
da credibilidade destes dados e sua utilização no meio acadêmico como fonte de pesquisa, como já tratamos
anteriormente neste texto, propõem uma noção de ciência e de pesquisa de forma não tradicional e não
convencional ao utilizado nas ciências duras. A própria falta de dado é vista de forma diferente e criativa,
“a falta do dado também é um dado e trabalhamos com ela”, (…) e também que “o dado por si só não fala”.
Os dados nos permitem interpretações e teorizações, mas também “regula(m), constrange(m) e limita(m)
nossos delírios” (LIMA, 2005, p.41).
Os teóricos que tratam das narrativas de formação são consultados com o objetivo de mostrar
que, para além de iluminar os dados com as referências, o importante é apresentar a experiência da pesquisa
e a sua relação com os relatos de formação do pesquisador/narrador, a complexidade e o desafio de gerar
o novo conhecimento, tendo como referência as narrativas pessoais e a formação de si. Os conhecimentos
produzidos nesta área ainda precisam trilhar um caminho que explicite as contradições da relação teoria/
prática a fim de produzir conhecimentos singulares originados na própria experiência docente.
Considerações Finais:
A vida humana, em toda sua riqueza e complexidade, passa a ser o centro de sua investigação.
A ciência e sua tradição, a história pessoal e singular de cada pessoa envolvida dentro dos processos
pedagógicos e educativos, sua prática de investigador, passam a ser vistos no contexto do ser, do pertencer
e do fazer, isto é: todos os envolvidos em sua pesquisa são sujeitos, não apenas objetos de pesquisa.
Portanto, a pessoa e a comunidade educativa estão envolvidas com esta prática de investigação,
formação e pesquisa; todos são envolvidos pela teia do pensar, do narrar e do fazer, que afeta não apenas a
vida daquele que pesquisa, como também a vida do seu entorno e dos demais sujeitos envolvidos em sua
prática.
Sendo assim, as relações entre o ser, o pertencer e o fazer, se tornam o fio condutor neste
tipo de pesquisa, tendo como objetivo, olhar a vida ressignificando a razão, a intuição, a afetividade, as
sensibilidades e a espiritualidade na vida pessoal e social dos sujeitos envolvidos no processo formativo.
Portanto, falamos de uma pesquisa outra, que constitui uma outra ciência social e humana para encontrar
e dialogar com os sujeitos de sua pesquisa, vendo-o como pessoa, recuperando assim um componente
importante formado ao longo da cultura ocidental: visão de totalidade da realidade humana, isto é, visão
integral da vida.
As narrativas sempre tiveram papel de suma importância na formação dos educadores, sejam
elas vindas do discurso mítico, do discurso religioso, do discurso filosófico ou ainda, do discurso da ciência,
elas são as formas elaboradas ao longo da história humana, na busca pela explicação e pelo sentido da
vida. Entendemos que tudo é narrativa. O que as difere é a forma como cada uma delas se apresenta para o
homem em sua busca por entendimento, compreensões e busca de significações. Se, a narrativa mitológica
é centrada no poder do imaginário; a narrativa religiosa no poder da crença e da fé; a narrativa filosófica
no poder da razão e a narrativa científica no poder da observação e da experiência, com as rupturas nos
próprios modelos de narrar, para nós as narrativas são ao mesmo tempo, explicação, compreensão e sentido
para o fazer humano, de onde ele extrai suas lições e sua sabedoria.
A presença das narrativas na pesquisa em ciências humanas e na educação, vai além das
motivações legais, políticas ou ideológicas em torno do tipo de educação que se deve propor para a formação
das crianças, dos jovens e dos adultos, ela se impõe como prerrogativa do sujeito histórico. Portanto, neste
tipo de pesquisa, razão, intuição, afetividade e espiritualidade, constroem juntos a explicação e o sentido
para o viver.
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LAUNGAGE, LEARNING AND SENSUAL EXPERIENCE
HENNING SALLING OLESEN1.
1.ROSKILDE UNIVERSITY, ROSKILDE - DINAMARCA.
Resumo:
My paper will be a reflection on certain theoretical issues in relation to a learning research which is not
confined to the domain of intentional education processes, but related to the practices of everyday life -
questions about how learning and knowledge is materially embodied in human beings and how they are
embedded in social practices and artefacts. Assuming that language(s) is(are) the fundamental medium of
social interaction and cultural transfer we can see the lifelong process of learning in everyday life as an
interactional experience which involves the participation in culture (in a Wittgensteinian language game
sense), at the same time as mediating the subjective experience of being in the world in specific places,
contexts and interactions. Departing from ideas of the specificity of individual lives, and the uniqueness
of the (cultural) process of meaning making and identity construction different autobiographical and life
history approaches have focused on the individual life history as a societal reproductive and creative process.
If we see knowledge and learning as language based (using language in a plural sense of semantic systems)
dimensions of social practice these approaches allow us to study the dynamic tension between individual
embodied memory and imagination and the participation in social practices. It is a double sided process
of acquisition and identification but is anchored in the materialities of on the one hand the individual body
and psyche, and on the other hand historical/societal practices and their reification in artefacts, which must
be understood in each their particular way. We try to understand something specific in a general cultural
medium, and I want to explore different ways of understanding the boundary zones between language and
sensual experience (narrativity, memory, scenic understanding). I shall refer particularly to a psychodynamic
inspired cultural analysis, but also explore some parallels to other approaches.
Palavras-chave: Materiality;language;scenicunderstandning
EIXO 1. PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
DA EDUCAÇÃO INFANTIL AO ENSINO FUNDAMENTAL: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS
SOBRE ESSA TRAVESSIA?
Iêda Licurgo Gurgel Fernandes
PPGED|UFRN, iedalicurgo@gmail.com
Evelyn Silva Soares
Bolsista de Iniciação Científica|UFRN, evinha.silva23@gmail.com
Iniciamos esse artigo com uma citação tão provocante quando as narrativas de quem ela se refere,
as narrativas infantis. As crianças narram sobre suas experiências, sobre aquilo que passam e com uma
veracidade de informações que ao serem analisadas nos transmite informações que os autores e pesquisadores
da infância pouco tem autoridade para falar.
O ambiente escolar está cheio das narrativas vivas das crianças. Elas que passam no mínimo 800
horas distribuídas em 200 dias letivos (BRASIL, 2010) entre seus quatro aos dezessete anos (IB., 2009)
vivem na escola experiências únicas que muito pode contribuir com o trabalho pedagógico da escola, do
professor e com as pesquisas acadêmicas.
O interesse pelo o que a criança diz sobre sua travessia da educação infantil para o ensino fundamental
surgiu a partir da narrativa de uma menina de seis anos de uma escola particular na qual estagiávamos, que
se recusava a copiar a atividade do quadro por que ela estava se sentindo injustiçada. Segundo a menina, a
educação infantil tinha ganhado uma cozinha de brinquedo e que agora ela não poderia brincar na cozinha
porque era do primeiro ano. A indignação foi finalizada com um sonoro “Eu não gosto dessa escola!”
Ficamos a imaginar quantas garotinhas existem como essa? Crianças que estão impelidas de brincar
por estarem no primeiro do ensino fundamental, que não há mais brinquedos nas salas, onde as cadeiras
são organizadas uma atrás da outra, cujas rodas de conversa são mínimas ou existentes. Como a escola está
respeitando a criança como indivíduo social e de direitos? Sua proposta pedagógica atende as necessidade
dos alunosou provocam sentimentos negativos com relação ao ambiente escolar? Como a criança ver sua
transição da educação infantil para o primeiro ano do ensino fundamental a partir de suas experiências na
escolas?
Focamos nossa pesquisa na criança e na sua fala com o objetivo de investigar com crianças entre cinco
e sete anos de idade que ingressam no primeiro ano do Ensino Fundamental, acerca de suas experiências
escolares no processo de transição da Educação Infantil para este novo nível de ensino.
A pesquisa traz resultados de uma roda de conversa realizada com crianças de seis anos de uma
escola federal de aplicação que são comparados com o que crianças de uma escola municipal tradicional de
Natal do primeiro ano do ensino fundamental afirmam sobre suas experiências nesse nível de ensino, ambas
as escolas são do município de Natal/RN.
Entendemos a criança como sujeito que narra e se autobiografa mesmo com pouco tempo de vida,
capaz de refletir sobre o que lhes acontece na escola e na vida e por isso utilizamos da Pesquisa (Auto)
Biográfica em educação que nos dá um melhor suporte metodológico pois
(...) a compreensão dos fatos narrados pelas pessoas [crianças] como protagonistas de sua
história pessoal, no contexto de história social como história pessoal não seria apenas o
objeto da Pesquisa (Auto)biográfica, mas o seu método. (PASSEGGI, 2011, p. 26)
É nas narrativas/relatos das crianças que esta pesquisa está baseada a qual procuramos perceber na
fala das crianças pesquisadas relatos de suas experiências e seus olhares sobre o nível de ensino na qual
frequentavam e a partir disso ter um diagnóstico de como a sociedade está tratando a escolarização dessa
criança entre seus seis anos de idade.
Para melhor exposição de nossas ideias o artigo está organizado, além dessa introdução, na teorização
da Pesquisa (auto)Biográfica e da Psicologia Narrativa, que nos dá o suporte necessário para a escolha
metodológica do trabalho, na exposição sobre as orientações dos documentos oficias do MEC sobre a
transição da Educação Infantil para primeiro ano do ensino fundamental, para contextualizar como deveria
ser a transição das crianças nos dois níveis de ensino; na apresentação da discursão sobre a criança sujeito
dessa pesquisa e por fim, a análise dos dados das narrativas realizadas.
A partir da discussão de Passeggi (2011 p. 26) que “Narrar é humano” percebemos que a narrativa
está presente na vida das pessoas desde os seus primeiros passos na linguagem. Utilizamos desse instrumento
social para nos auxiliar na compreensão do humano nas situações da vida, no nosso caso especificamente,
nas crianças. Conceituando a narrativa Brockmeir e Harré (2003, p. 526) explicam que
é o nome para um conjunto de estruturas linguísticas e psicológicas transmitidas cultural e
historicamente, delimitadas pelo nível do domínio de cada indivíduo e pela combinação de
técnicas sócio-comunicativas e habilidades linguísticas (...) e, de forma não menos importante, por
características pessoais como curiosidade, paixão e, por vezes, obsessão.
As narrativas são utilizadas pelos indivíduos para falarem de suas experiências vividas socialmente
e por causa disso a análise dessas narrativas permite a seu investigador descobrir algumas características da
sociedade na qual este indivíduo faz parte.
As experiências de um indivíduo só são conhecidas pelos outros a partir da narrativa. Sua reflexão
de si é que permitirá a sociedade contribuir ou não na sua formação. De acordo com Delory-Momberger
(2012, p. 40)
(...) a vida tem lugar na narrativa e tem lugar como história. O que dá forma ao vivido e à experiência
dos homens são as narrativas que eles fazem desse vivido e dessa experiência. (...) O narrativo é o
lugar onde a existência humana toma forma, onde ela se elabora e se experimenta sob a forma de
uma história.
Sem narrativa não há vida, não há conhecimento do humano, das experiências, do vivido. É pelas
narrativas que o ser humano se conhece, se constrói enquanto individuo, eles interagem pela linguagem,
mas vivem enquanto sociedade pela narrativa.
Para a pesquisadora Amanda Oliveira Rabelo (2011, p. 172) “A narrativa permite compreender
a complexidade das estórias contadas pelos indivíduos sobre os conflitos e dilemas de suas vidas”, isto
é de grande valia para a pesquisa (auto)biográfica em educação. Compreender o indivíduo, a sociedade
possibilita ao educador fazer uma avaliação da sua postura enquanto profissional e melhorar no seu trabalho
de formação do outro.
Se um indivíduo narra aquilo que lhe é pessoal, aquilo que tem vivido e que faz parte do seu eu é
possível fazer uma relação do que este sujeito vivencia com a sociedade na qual ele está inserido, afirmando
que
(...) a biografia que se torna instrumento sociológico parece poder vir assegurar essa
mediação do ato à estrutura, de uma história individual à história social. A biografia parece
implicar a construção de um sistema de relações e a possibilidade de uma teoria não formal,
histórica e concreta, de ação social. (FERRAROTTI ,1979|2010, p. 35)
Este pensamento do sociólogo francês Franco Ferrarotti também é compartilhado por seu colega
de área de pesquisa DanielBertaux (2010, p. 30) cuja teoria as narrativas de vida “é a forma de dados que
melhor corresponderia a um pensamento sociológico baseado na ação em situação”, sendo sua metodologia
compatível com o direcionamento da pesquisa.
Os dados da pesquisa permitiu ver como se dá o funcionamento da situação social estudada,
descrevendo com profundidade os processos passados pelos grupos de alunos no novo momento de suas
vidas na passagem da Educação Infantil para o Ensino fundamental, suas tensões, relações de poder,
processos de reprodução da sociedade, dinâmicas de transformação, etc.
Um outro documento que aborda com precisão e orientação a questão da transição da criança da
Educação Infantil para o Ensino Fundamental são as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Básica” que apresentam um coletivo de materiais como Pareceres e Resoluções que definem diferentes
propostas de organização da Educação Básica.
Segundo o Parecer Homologadopublicado no Diário Oficial de 9 de dezembro de 2009, seção 1, pág.
14, sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil é preciso como acompanhamento da
continuidade do processo de educação
Prever formas de articulação entre os docentes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental
(encontros, visitas, reuniões) e providenciar instrumentos de registro – portfólios de
turmas, relatórios de avaliação do trabalho pedagógico, documentação da frequência e das
realizações alcançadas pelas crianças – que permitem aos docentes do Ensino Fundamental
conhecer os processos de aprendizagem vivenciados na Educação Infantil, em especial
na pré-escola e as condições em que eles se deram, independente dessa transição ser feita
no interior de uma mesma instituição ou entre instituições, para assegurar às crianças a
continuidade de seus processos peculiares de desenvolvimento e a concretização de seu
direito à educação. (BRASIL, 2013, p. 96)
Os sujeitos em travessia
A pesquisa focará nas narrativas das crianças de seis anos de idade que frequentam o primeiro ano do
ensino fundamental que vivenciaram a experiência escolar da educação infantil Mas quais são exatamente
as características desse sujeito e a cultura na qual estão inseridos?
Utilizamos como aporte teórico a concepção de Sônia Kramer (1996, p. 14) a qual afirma que “Aqui
a concepção de criança é concebida na sua condição de sujeito histórico que verte e subverte a ordem e a
vida social [...] concepção que encara as crianças como produzidas na e produtoras de cultura”.
As crianças são vivas, agem sobre a cultura produzindo e sendo produzidas, elas criam brincadeiras,
linguagens, histórias, sempre descobrindo mais o mundo e a sociedade que as cerca, “As crianças não
são filhotes, mas sujeitos sociais; nascem no interior de uma classe, de uma etnia, de um grupo social”
(KRAMER, 2006, p. 19). E essa inserção na sociedade permite à criança criar uma cultura que lhe é própria.
Para Claude Javeau (2005, p. 395) “As crianças não devem desde então ser vistas como um universo
prefigurando o dos adultos, e ainda menos como uma cópia imperfeita do mundo adulto”. Temos esta como
uma visão muito medieval das crianças, cujas ações e tratamentos eram dados pensando como um adulto
em miniatura, desde seu modo de se vestir e até mesmo de relatos de casamentos políticos de homens com
meninas.
Com o passar do tempo as crianças foram conquistando o seu lugar na sociedade como sujeito de
vez e voz cuja fala deve ser respeitada e valorizada e cujas culturas infantis vão sendo modificadas a cada
dia. As crianças elaboram culturas a partir da “apropriação criativa”, pelas informações do mundo adulto
que lhes proporcionam a criação de saberes enquanto grupo de iguais (BARBOSA, 2007, p. 1064).
E essa criança fala. As crianças naturalmente não são silenciosas. Criança fala, grita, chora,
reivindica, protesta, faz birra, reclama, elogia, questiona, interage e se expressa verbalmente desde suas
primeiras palavras. Como é possível então, não ouvi-las?
As crianças fazem significações sobre sua vida e interpretam o mundo a sua volta como um ser ativo
que é. O seu olhar capta coisas que muitas vezes passam despercebidas pelo olhar do adulto, do professor,
dos pais e de familiares ou amigos que estão a sua volta. A imaginação, fantasia e ludicidade natos da
criança dão uma riqueza a mais a sua fala, possibilitando ao adulto expandir sua compreensão acerca das
infâncias e das culturas infantis.
A ênfase na escuta justifica-se pelo reconhecimento das crianças como agentes sociais, de sua
competência para a ação, para a comunidade e troca cultural. Tal legitimação da ação social das
crianças resulta também de um reconhecimento e de uma definição contemporânea de seus direitos
fundamentais – de provisão, proteção e participação. [...] busca-se nessa escuta confrontar, conhecer
um ponto de vista diferente daquele que nós seriamos capazes de ver e analisar no âmbito do mundo
social de pertença dos adultos. (ROCHA, 2008, p. 46).
Por essa questão, a pesquisa deixa de relacionar apenas a criança como um objeto de estudo, mas
passar a ser sujeito parceiro do trabalho, que é agora denominada pesquisa com crianças. E como as crianças
de duas escolas de realidades diferentesvê sua travessia da Educação Infantil para o Ensino Fundamental?
Na narrativa desses alunos podemos perceber que a nova turma do primeiro provoca um desafio,
um estímulo positivo no desenvolvimento da criança. O aprender “coisas muito mais novas” deixa a escola
mais realista com o desenvolvimento da criança. Elas refletem que o desafio de ser mais difícil, com coisas
novas é “mais legal”, como se aquilo que elas aprenderam na última turma da Educação Infantil não fosse
o suficiente.
Os novos desafios de aprendizagem foram destaques nas falas de Débora e Bruno que perceberam
que a mudança de nível de ensino não mudou simplesmente o horário (porque agora as crianças do Ensino
Fundamental saem 15minutos mais tarde do que a Educação Infantil) mas provocou alteração nas atividades
pedagógicas que realizaram.
- A diferença do quarto ano (nível 4) pro 1° ano é que é outro nível de aprendizagem.
(DÉBORA, 2011)
- É que também nas atividades da turma 1 e na turma 2 eram mais fáceis que daqui, teve um
dia que eu tava fazendo a lição de matemática aí eu não consegui fazer nos dedinhos nem
de cabeça, tive que fazer no papel. Aí eu me lembrei que as atividades das outras turmas
eram mais fáceis do que essas. (BRUNO, 2011)
Para essas crianças os desafios das atividades do primeiro ano são narrados comparando com o que
já vivenciaram nas turmas anteriores. O “outro nível de aprendizagem” foi enfatizado como uma expressão
positiva, explicando que agora ela fazia parte de outro nível, as atividades regulares como roda, pintura,
brincadeiras, parque, continuavam no Ensino Fundamental. A criança continuava a ser respeitada em sua
singularidade, com momentos lúdicos e atividades adequadas para sua idade, o que mudava era o nível das
atividades, nível esse que provocava na criança um pensar sobre aquilo que estava fazendo, como no caso
da fala do Bruno.
Bruno reflete sobre como estava realizando sua tarefa e como realizava antes, ele não conseguiu
fazer a conta de matemática apenas de cabeça, precisando recorrer ao papel para encontrar o resultado,
diferente do que ele faria se estivesse nos anos anteriores. Não é enfatizado pela criança que ele não era
capaz de realizar o dever, mas que agora ele teria que utilizar outros recursos mais precisos para encontrar o
resultado certo. A reflexão da criança sobre o primeiro ano é que agora ele as atividades estão mais difíceis,
ele não está mais nas turma 1 ou 2, eles cresceu e esse crescimento provoca novas responsabilidades na
aprendizagem.
Para Bruno já ficou claro que é possível aprender bem sem cortar momentos específicos de ludicidade
característicos da Educação Infantil e que continuam presentes na turma do primeiro ano dessa escola
específica. Na fala de Artur encontramos um desabafo de uma criança que reconhece a importância desses
momentos na sua formação.
- Não gosto de ficar sem brinquedoteca. E não gosto de ficar sem parque e não gosto de ficar sem
nenhuma das brincadeiras. Não gosto de ficar sem nada disso, nem faz de conta, nem jogos, nem
nada. (ARTUR, 2011)
A situação é semelhante na escola tradicional. As crianças percebem os novos desafios que o primeiro
ano reserva. Em sua conversa com o boneco Alienígenas, chamado de Alien, elas contam sobre o que fazem
na escola, sobre seus espaços favoritos e sobre sua transição da Educação Infantil, cuja turma é denominada
pelas crianças de prezinho, para o primeiro ano do Ensino Fundamental. Quando são questionadas se o
Alien preferiria estudar numa turma ou na outra as crianças afirmam que ele estudaria no primeiro ano,
- Porque a gente estuda mais.(RAFAELA, 2014).
- Eu nunca fui pro prezinho, minha mãe colocou eu no primeiro e no prezinho é só tarefa
fácil.(NATAN, 2014).
O discurso de que na Educação Infantil se faz tarefa fácil está presente nas narrativas das crianças da
escola municipal. Para elas estar no primeiro ano traz a responsabilidade de “estudar mais” o que acarreta
a exigência de estar em contato com as letras e consequentemente aprender a ler. Exigência essa que
não era uma realidade para os alunos da Educação Infantil. As próximas narrativas apresentam bem essas
concepção de objetivos de cada nível de ensino.
- O prezinho era só fazer os desenhos, pintar, não as letras. (GINA, 2014).
- O Alien ia ter que fazer o que aqui na escola? (PESQUISADORA, 2014).
- Estudar, aprender a ler. O Alien veio aqui pra aprender a ler. (ARIANA, 2014).
Enquanto que no prezinho se pinta e faz desenho, no primeiro ano as letras tem um papel importante
na narrativa, elas são fundamentais para se aprender a ler. As crianças discutem dizendo que o Alien poderia
estudar com elas, ele iria aprender a ler, esse era o objetivo da escola, daquele ano que estavam frequentando.
Com a ludicidade da conversa com o boneco, as crianças puderam fazer uma relação com o que estavam
vivendo com o que o Alien poderia experimentar na escola.
Do ponto de vista escolar, espera-se que a criança de seis anos possa ser iniciada no
processo formal de alfabetização, visto que possui condições de compreender e sistematizar
determinados conhecimentos. Espera-se, também que tenha condições, por exemplo, de
permanecer mais tempo concentradas em uma atividade, além de ter certa autonomia em
relação à satisfação de necessidades básicas e à convivência social. (GOULART, 2006, p.
89)
A questão do crescer foi outro ponto importante que podemos destacar na fala das crianças. A
criança de seis anos que reflete sobre o seu processo de permanência e de inserção na escola percebe uma
lógica entre sua idade/tamanho para o que deveriam aprender. Para elas, quanto mais se cresce, mas coisa
tem pra aprender. Quando é questionada sobre o motivo que os fazem mudar de ano Gina reflete que é algo
necessário:
- É, se não a gente não aprende a ler o dos outros.”(GINA, 2014).
- E porque vocês estão no primeiro ano?” (PESQUISADORA, 2014).
- Porque a gente já passou, porque quando a gente era pequeno a gente tava no prezinho.
(PESQUISADORA, 2014).
Ler o dos outros é aprender o que os outros mais velhos, das outras turmas estão aprendendo. E o
prezinho, para Ariana, é um local para o pequenos, quando eles passam de ano, já ficam mais velhos, já
fazem parte do primeiro ano. Sendo, portanto, a travessia de um ano para outro algo que se compara ao
crescimento das crianças, à sua perspectiva de aprender novas coisas, enfrentar novos desafios.
(Des)concluindo
Falar sobre si, sobre suas vivências e perspectivas na escola é um momento singular para a criança
que passa ao adulto sua sabedoria sobre o ambiente em que vive, olhar este de grande contribuição para que
os escola perceba como é vista por seus alunos.
As crianças do primeiro ano se percebem crescendo na escola e esse crescimento exige uma
responsabilidade maior, seja de aprender a ler, seja de executar tarefas mais difíceis, seja de enfrentar novos
desafios, novas aprendizagens.
Tanto as crianças da escola de aplicação quanto as crianças da escola pública apresentaram em
suas narrativas um discurso tranquilo na sua travessia de uma no para outro. A travessia dos alunos da
escola de aplicação é pouco sentido pelas crianças por causa do amparo da escola em minimizar a ruptura,
proporcionando aos alunos os mesmos ambientes do ano anterior, sem grandes problemas na adaptação.
Já as crianças da escola municipal produzem um discurso mais formal de que estão na instituição para
aprenderem a ler, e que as brincadeiras e atividade mais lúdicas são coisas da turma da Educação Infantil.
Percebemos em seus discursos que a leitura parece mais uma exigência forçada do que uma prática natural
da aprendizagem.
Grandes são as reflexões que as crianças nos apontam quando paramos para escutá-las. Elas vivenciam
diferentes fases escolares e da vida e a entrada no Ensino Fundamental possibilita para elas relacionar este
novo ambiente com suas novas características com as vivencias que elas já trazem da Educação Infantil e
da perspectiva do mundo com a escola.
Referências
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pública. IN: KRAMER, Sonia e LEITE, Maria Isabel (orgs.). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas,
SP, Papirus, 1996 – Série Prática Pedagógica.
BARBOSA, Maria Carmem Silveira. Culturas escolares, culturas de infância e culturas familiares: as
socializações e a escolarização no entretecer destas culturas. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 –
Especial, p. 1059-1083, out. 2007.
BRASIL. Lei nº. 11.114, de 9 de maio de 2005. Altera os arts. 6º, 30, 32, e 87 da Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, com o objetivo de tornar obrigatório o início do ensino fundamental aos seis anos de
idade. Diário Oficial da União, Brasília, 7 de outubro de 2005.
______. Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006. Altera a redação dos arts. 29, 30, 32 e 87 da Lei nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com
matrícula obrigatória a partir dos 6(seis) anos de idade. Diário Oficial da União, Brasília, 7 de fevereiro de
2006.
BORBA, Angela Mayer. O brincar como um modo de ser e estar no mundo. IN: BRASIL,Ministério da
Educação. Ensino fundamental de nove anosorientações para a inclusão da criança de seis anos de idade.
Secretaria de educação. 2006, p. 35-47
FERRAROTTI, Franco. Sobre a autonomia do método biográfico. In: NÓVOA, Antônio; FINGER, Matias
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JAVEAU, Claude. Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?
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KRAMER, Sônia e LEITE, Maria Isabel (orgs.). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas, SP,
Papirus, 1996 – Série Prática Pedagógica.
_________, Sônia. A infância e sua singularidade. IN: BRASIL. Ministério da educação. Ensino Fundamental
de Nove Anos Orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Secretaria de educação básica,
2006.
RABELO, Amanda Oliveira. A importância da investigação narrativa em educação. IN: Educ. Soc., v. 32,
n. 171-188, jan.-mar. 2011.
ROCHA, Eloisa AciresCandal. Por que ouvir as crianças? Algumas questões para um debate científico
multidisciplinar. IN: CRUZ, Silvia Helena Vieira (org). A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas.
São Paulo: Cortez, 2008.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
PESQUISA E SEUS NÓS
Inez Helena Muniz Garcia
Universidade Federal Fluminense – UFF
inezhmg@gmail.com
Resumo
Escutar e aprender com os sujeitos de uma pesquisa realizada, de 2006 a 2011, em um assentamento de
Reforma Agrária no Estado do Rio Grande do Norte, denominado Palheiros I, foi fundamental para que
as trabalhadoras e os trabalhadores, pessoas simples e comuns, pudessem contar e resgatar suas histórias
de vida. O objetivo da pesquisa foi tecer sentidos entre as histórias de vida e a vida no assentamento das
trabalhadoras e dos trabalhadores rurais, a partir de seus discursos. Ao contarem sobre suas experiências
nos programas de alfabetização pelos quais passaram, seus usos e aprendizados da leitura e da escrita
no cotidiano, revelaram retalhos de suas histórias em que passado, presente e futuro estão num ir-e-vir
contínuo. O percurso metodológico foi buscar a tessitura entre os Nós: o Eu, o Tu e o Ele no processo de
pesquisa. Um desafio que se impôs ao longo do trabalho foi não fazer da escrita apenas uma transcrição
de falas, não atribuir uma explicação causal às escritas e falas dos sujeitos da pesquisa, mas trazer para o
texto a cena enunciativa, estabelecendo uma relação de escuta dos Outros (sujeitos da pesquisa e diferentes
autores). O referencial teórico utilizado foi Amorim (2004), Bakhtin (1988; 1998; 2000; 2008; 2010),
Freire (1987; 1997), Ginzburg (1998), Grigoletto (2011) e Voloshinov (1993). As principais conclusões
do trabalho foram: definição de limites e possibilidades para ouvir e deixar falar a minha própria voz
perante tantas alteridades e a necessidade de pesquisas que investiguem as desigualdades históricas sofridas
pelas trabalhadoras e trabalhadores rurais para subsidiar a elaboração de políticas públicas voltadas para os
assentamentos de reforma agrária, de maneira a propiciar melhores condições de vida.
Palavras-chave: Discurso. Trabalhadoras e trabalhadores rurais. Alfabetização.
“Um violoncelo não é como um piano. O piano tem as notas sempre nos mesmos lugares,
debaixo de cada tecla, ao passo que o violoncelo as dispersa a todo o comprido das cordas, é
preciso ir buscá-las lá, fixá-las, acertar no ponto exato, mover o arco com a justa inclinação
e com a justa pressão”.
José Saramago
O texto em epígrafe faz-me refletir que a opção por uma pesquisa qualitativa, abordagem adotada
neste estudo, pode ser comparada ao aprendizado de tocar um violoncelo, uma vez que cada pesquisador/a
necessita encontrar o justo toque, a melhor pressão com os dedos para a execução da melodia, isto é, pra
trilhar os caminhos da pesquisa. Assim, construir um texto é também aprender a executar uma melodia e
para que a música possa ser tocada em todos os seus acordes, sonantes e dissonantes, que os intervalos entre
as notas musicais sejam observados, muito caminho necessita ser trilhado, muitas buscas, muitos encontros
e desencontros.
No caso deste texto, importa, também, partir do princípio de que a linguagem, considerada como
central na constituição de sujeitos sócio-histórico-político-culturais, é constituidora e constituída na/pela
atividade humana. Dessa maneira, alio-me ao pressuposto bakhtiniano1 (BAKHTIN, 1988) de que o ser
humano se constitui na e pela interação, ou seja, através da rede de relações sociais de que participa.
Escutar e aprender com os sujeitos de uma pesquisa2 que realizei, de 2006 a 2011, em um assentamento
de Reforma Agrária no Estado do Rio Grande do Norte, denominado Palheiros I, foi fundamental para que
as trabalhadoras e os trabalhadores, pessoas simples e comuns, pudessem contar e resgatar suas histórias de
vida. Esse foi o desafio em que me lancei: fazer do meu encontro com as trabalhadoras e os trabalhadores
do Palheiros I, um acontecimento, isto é, algo singular e irrepetível. Tal foi a meta perseguida por mais de
cinco anos: tornar aquilo considerado simples, trivial em algo que pudesse ser visto de maneira inusitada.
Procurei tecer sentidos entre as histórias de vida e a vida no assentamento das trabalhadoras e dos
trabalhadores rurais, a partir de seus discursos. Desde que os conheci, no ano de 2006, entraram em minha
vida e, por consequência, em minha pesquisa. Ao contarem sobre suas experiências nos programas de
alfabetização pelos quais passaram, seus usos e aprendizados da leitura e da escrita no cotidiano, revelaram
retalhos de suas histórias em que passado, presente e futuro estão num ir-e-vir contínuo. Trouxeram à
luz lutas, sentimentos, atitudes, conquistas, sofrimentos de pessoas simples e comuns3, que andam com
muita fé, que amarram seus arados às estrelas porque sonham que ainda virarão este mundo em terra,
festa, trabalho e pão, e, como diz a letra da música Assentamento, de Chico Buarque, “onde só vento se
semeava outrora [...] vamos ver a campina quando flora” com: girassóis, gergelim algodão, milho e feijão
no Assentamento Palheiros I.
1 O termo bakhtiniano/a e a expressão “círculo de Bakhtin” referem-se aos estudos realizados por
Bakhtin e um grupo de profissionais, de diferentes áreas e interesses, que durante os anos de 1919-29
trabalhavam em clima de amizade e colaboração. Além de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (1895-1975),
participavam do grupo: o filósofo Matjev Isaevich Kagan (1889-1937), Pavel Nikolaevich Medvedev (1891-
1938), o filósofo e crítico literário Lev Vasilevh Pumpjanskij (1891-1940), Ivan Ivanovitch Solletinskij
(1902-1944), o linguista Valentin Nikolaevich Volochinov (1895-1936), a pianista Maria Veniaminovna
Iudina (1899-1970).
2 Pesquisa realizada para a tese intitulada Um lugar chamado Palheiros: os sentidos dos discursos
de Trabalhadoras e Trabalhadores rurais de um assentamento de Reforma Agrária no Rio Grande do
Norte, de GARCIA, Inez Helena Muniz. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal
Fluminense, Niterói-RJ, 2012.
3 Mesmo não vinculada à área da História, tomo emprestadas, ousadamente, as palavras de Carlo
Ginzburg, historiador italiano, quando afirma: “No passado, podiam-se acusar os historiadores de querer
conhecer somente as “gestas dos reis”. Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se interessam pelo
que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou simplesmente ignorado. “Quem construiu
Tebas das sete portas?”– perguntava o “leitor operário” de Brecht. As fontes não nos contam nada daqueles
pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo seu peso” (GINZBURG, 1998, p. 15 – grifo nosso).
Figura 1- Vista da entrada do Assentamento Palheiros I4
[...] seja no Nordeste ou [...] tem um outro aspecto artesanal que me encanta também: é o
jeito de falar que as pessoas têm. Tipo do jeito que – depois que eu escutei bastante – eu
concluí que era um jeito feito à mão. Acho uma delícia ficar vendo que é só a voz ir falando,
pra mão falar também: pega o braço da gente, dá uma esfregadinha no ombro, esfrega as
costas também, faz festa na cabeça, arruma um pedaço de cabelo que o vento desleixou,
e é só a gente se distrair um pouquinho que, pronto: já tá de mão dada, de braço dado, de
coração dado (BOJUNGA, 1999, p.67-68).
Referências
AMORIM, Marilia. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora,
2004.
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Este trabalho tem sua origem na Tese de doutoramento desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Pelotas (de 2008 a 2012), que trata da biografia educativa e das
imagens fundadoras da Professora Maria Isabel da Cunha no que se refere ao seu trajeto como docente.
O referido estudo tem como objeto a problematização das relações entre o vivido, o escrito e o pensado
em parte da escrita acadêmica. A análise parte da sua tese de doutoramento em busca de imagens
fundadoras e seus conteúdos mítico-simbólicos, que potencializaram e vêm potencializando seu modo
de ser docente. A problematização está fundamentada em dois campos teóricos: os estudos biográficos
e os estudos do imaginário. O primeiro aborda a ideia de biografização. O segundo aborda a cultura do
imaginário, privilegiando o modo como as imagens são produzidas e visibilizadas. Daí surge a ideia de
biomitografização, cujo conceito será aprofundado neste trabalho. A metodologia em questão tem sua base
teórica na mitocrítica como método hermenêutico proposto pelos estudos da Antropologia do Imaginário no
sentido de realçar o mito nas narrativas em busca do ser mesmo da obra. Este é revelado a partir de quatro
mitemas encontrados na escrita pesquisada, os quais expressam conteúdos simbólicos representados pela
Grande-Mãe, associada ao mistério da força vital cíclica em traços míticos que remetem à Deméter.
Palavras-chave: Educação. Imaginário. Biografia educativa.
Palavras iniciais...
O presente artigo tem origem na Tese de doutoramento desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de Pelotas, intitulada Da escrita acadêmica à biografia educativa da
Professora Maria Isabel da Cunha: interlocuções com os estudos do imaginário.
O referido trabalho problematiza as relações entre o vivido, o escrito e o pensado em uma amostra
da escrita acadêmica da protagonista selecionada conforme a intenção da pesquisa. O estudo partiu da sua
tese de doutoramento (1988), no sentido de buscar conteúdos mítico-simbólicos fundantes do modo de ser
docente da professora. A investigação deu-se desde o pressuposto de que em toda escrita estão subsumidas
representações e símbolos que formam imagens que, de acordo com Josso (2004), são consideradas
“imagens fundadoras”.
O trabalho buscou na “biografia educativa” (DELORY-MOMBERGER, 2008) da protagonista a
revelação de imagens fundadoras do seu modo de ser docente, o que constitui objetivo geral do estudo
tratado. A opção por trabalhar na biografia educativa da Professora Mabel, assim como é chamada, justifica-
se pelo reconhecimento da sua história docente refletida na relevância do seu trabalho para a Educação com
foco no Ensino Superior. Sobretudo pela intensa produção acadêmica, a qual contraria o que se espera de
um profissional em final de carreira como é o caso da protagonista.
A Tese que origina o presente artigo está estruturada em dois campos teóricos: o campo dos estudos do
biográfico e o campo dos estudos do imaginário. O primeiro aborda a noção de “biografização” (DELORY-
MOMBERGER, 2008), da qual decorre a ideia de biografia educativa. O segundo aborda a concepção de
cultura do imaginário a partir dos pressupostos do Antropólogo Gilbert Durand, que privilegiam o modo
como as imagens são produzidas e visibilizadas. Metodologicamente, o trabalho está apoiado na mitocrítica
como proposta hermenêutica que realça o papel do mito nas narrativas.
A biografização trata de movimentos que resultam de operações mentais e verbais. Através dos
movimentos da biografização, o indivíduo “se inscreve subjetivamente nas temporalidades históricas e
sociais que preexistem e que o cercam, e por intermédio das quais ele contribui para produzir mundos
sociais dos quais participa” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 139).
Assim, o trabalho biográfico assume o papel de organizador das experiências individuais e sociais
dos indivíduos, a partir do momento em que ele as estrutura fazendo uso de linguagens diversas no sentido
de partilhá-las. Nesse contexto, os indivíduos têm alterados os seus pontos de referência institucionais e são
submetidos à deslocalização dos seus lugares de pertencimento.
Essa realidade corresponde a um trabalho de cunho mais ampliado na medida em que passa a operar
em uma sociedade menos estável e em contextos sociais pluralizados. Desta forma, “cada indivíduo, intimado
a se fazer ator biográfico de sua própria vida, é assim levado a realizar um trabalho biográfico intenso para
tentar restabelecer a continuidade e a fragmentação, pela dissociação” (DELORY-MOMBERGER, 2008,
p. 140). Esse mesmo indivíduo poderá “encontrar seu lugar no lugar comum do vínculo social” (op. cit),
demarcando o seu papel como ator biográfico aprendente e educador de si mesmo, em constante processo.
Partindo para o campo dos estudos do imaginário, importa considerar a noção de cultura do
imaginário. A abordagem privilegia o modo como as imagens são produzidas e visibilizadas, o que implica
a compreensão de alguns conceitos operadores, a começar pelo de imaginário. Segundo Durand (1996),
o imaginário revela-se especialmente como “o lugar de entre-saberes”. É nesse tecido conjuntivo que o
imaginário pode revelar-se, também, como um museu, palavra muito apreciada por Gilbert Durand e que
designa o conjunto de todas as imagens passadas e possíveis produzidas pelo “animal simbólico” (ERNEST
CASSIRER, 1994), que é o homem.
A ideia de imaginário defendida por Durand está fundamentada no que vem a ser trajeto antropológico
e dele faz sua pedra angular. Assim, trata das questões ontológicas a partir da gênese que se dá reciprocamente
entre o gesto pulsional e o ambiente social. O trajeto antropológico constitui o “esqueleto dinâmico, o
esboço funcional da imaginação” (DURAND, 2002, p. 60), impulsionado pelo schème, que pode ser
entendido como uma generalização dinâmica e afetiva da imagem. O schème representa a factividade e
não a substancialidade do imaginário e pode ser comparado ao que Bachelard chama de “símbolo-motor”
(op. cit) na medida em que faz a junção entre gestos inconscientes da sensoriomotricidade, isto é, entre as
dominantes reflexas e as representações.
Durand diz que a eficácia do imaginário se deve à ligação entre estruturas que permitem reduzir a
diversidade das produções singulares de imagens a grupos de imagens isomorfas e significações simbólicas
que podem ser reguladas por um número determinado de schémes, de arquétipos e de símbolos.
Sobre a noção de arquétipo, importante para a compreensão da concepção de imaginário em Durand,
faz-se necessário considerar que estes se apresentam como intermediários entre os esquemas subjetivos e as
imagens proporcionadas pelo ambiente perceptivo.
A concepção sobre o imaginário nos diz que é no mito que se dá a expressão privilegiada das
imagens simbólicas. O que se corporifica na narrativa de um mito obedece à sequência linguística: o verbo,
o substantivo e o adjetivo. Assim, a função de substantivação nominal tem papel secundário em comparação
com o verbo, e também em comparação com os atributos que afastam a pluralidade intrínseca do sujeito.
Nesse caso, o verbo constitui-se a matriz arquetípica e o mito, o núcleo significativo do imaginário.
A identificação de isomorfismos por meio do método de convergências permitirá que o mito apareça
pela redundância dos seus mitemas. A aparição do mito está vinculada a sua insistência, sua repetição, sua
persuasão de forma obsessiva, condições que garantem o conhecimento de sua mensagem e do drama - do
gesto - nela envolto.
O imaginário está vinculado à identificação do schème e à classificação isotópica das imagens, que
se apresentam compostas por dois regimes ou polaridades (DURAND, 2002, p. 443): o Regime diurno
(estruturas esquisomorfas) e o Regime noturno (estruturas sintéticas e místicas).
A partir da sistematização proposta por Durand é possível perceber que a classificação dos símbolos
e dos arquétipos está organizada de acordo com os principais reflexos, que são as dominantes posturais,
copulativas e digestivas. Diante do exposto, a formação das imagens está enraizada em três sistemas
reflexológicos, os quais atribuem os limites à infraestrutura da sintaxe das imagens.
Os gestos traduzidos em esquemas, uma vez em contato com o ambiente, vão determinar os
arquétipos, que são substantificações dos esquemas, quer sejam epitéticos (por exemplo, claro-escuro, alto-
baixo) ou substantivos (por exemplo, a luz - as trevas, o herói - o monstro).
Aqui apresento o passo-a-passo que mostra como foram sendo escavados os indícios na escrita
estudada - tese e desdobramentos. Desta forma, destaco os objetivos específicos ou etapas que envolveram
o empírico:
a) Escavar, nos documentos elencados para análise, indícios de imagens fundadoras do modo de ser
docente da Professora Mabel.
1 O termo escavar está filiado ao sentido antropológico. Aqui está associado ao trabalho de buscar em
camadas mais profundas da existência humana aquilo que não se mostra superficialmente.
b) Buscar, a partir de núcleos simbólicos, mitemas subsumidos no documento da tese.
c) Tematizar e analisar os mitemas, cotejando seus desdobramentos em outras produções acadêmicas
posteriores.
Os mitemas, que se referem ao “elemento significativo mais pequeno de um mito, caracterizado pela
sua redundância, a sua metábole” (DURAND, 1996, p. 254), identificados a partir dos núcleos simbólicos
encontrados no documento da tese, foram os seguintes2: professor singular-plural, professor aprendiz de
si, professor-projeto e professor balseiro3. Até este ponto o trabalho de busca dos desdobramentos da tese
reuniu os seguintes documentos, orientados pelos mitemas como detentores da frequência simbólica:
Uma das etapas metodológicas caracterizou-se pela informação à Professora Mabel sobre meus
achados. Uma vez apresentados os mitemas, propus a seguinte questão: O que a Senhora pensa sobre essas
imagens por mim capturadas sobre parte da sua obra? A partir disso foi incorporado mais um documento
ao estudo, um texto memorialístico intitulado No tempo que o telefone era preto e a geladeira branca: a
escola, a vida e as aprendizagens (CUNHA, 2011), sugerido pela Professora. Também foram somados aos
documentos as falas da protagonista decorrentes da apresentação dos mitemas para sua apreciação.
O método que envolve o empírico relativo ao estudo aqui tratado está orientado pela mitologia,
assim como teorizada por Gilbert Durand, especialmente nos pressupostos da mitocrítica. A função principal
da mitocrítica é a de revelar os mitemas (DURAND, 1996) de uma determinada obra literária, que por
sua vez pertencem, simultaneamente, ao autor da obra e ao fundo arquetipal e trans-histórico comum da
humanidade. A mitocrítica está voltada para o trabalho de extração dos cenários, dos temas redundantes em
busca do mito diretor subsumido. A mitocrítica como hermenêutica do imaginário é entendida por Durand
como um método que realça o papel do mito nas narrativas orais ou escritas. Resumindo, a mitocrítica vai,
então, à procura do “ser mesmo da obra” (DURAND, 1979).
O mito nesse contexto mostra-se como “o modelo matricial” (DURAND, 1996) de toda a narrativa,
estruturado pelos schèmes e arquétipos presentes na obra, dando conta dos estados da alma nela expressos. O
2 A nomenclatura adotada para os mitemas tem inspiração especialmente no referencial relativo ao
campo dos estudos do biográfico.
3 No sentido de passeur de sentido, conceito tematizado por René Barbié (1997).
4 Grupo de Estudo e Pesquisas sobre Imaginário, Educação e Memória (PPGE/FAE).
5 Esse documento está incorporado à Tese, onde assume a condição de apresentação da sujeito de
pesquisa sob o título A Professora Mabel por ela mesma.
6 Esse documento, diferente dos anteriores, não está incorporado ao texto da tese que origina este
artigo. Foi escolhido pontualmente pelo significado para a minha reflexão, uma vez que resulta de uma
publicação que integra a coletânea “Espaços, tempos e gerações” (CIPA – 2010).
exercício hermenêutico, então, leva em conta a busca da “presa mítica” (op. cit). O esforço é para demarcar
as redundâncias e as repetições mitêmicas que podem indicar a presença da presa mítica, raramente presente
sob a forma de mitos propriamente ditos, mas sob a forma de traços míticos mais ou menos degradados,
também de mitemas ou mitologemas7. Nesse sentido, é necessário seguir um código para a definição da
grelha sincrônica de leitura, assim caracterizado pelos mitemas anunciados.
Emerge dos fragmentos um professor que tem o seu modo de ser orientado por influências externas.
Esses sentidos remetem a um modo de ser potencializado pela influência de modelos. Mostra-se, assim,
a convergência com o regime diurno do imaginário, que se relaciona com os reflexos posturais, por suas
estruturas heróicas (ou esquizomorfas). A valorização de manifestações externas, sem considerar outra via
de acesso ao ser docente remete à ideia da antítese, caracterizando a polaridade diurna do imaginário. Assim
dá-se a associação a modos de ser regidos pela lógica como norteadora da identidade, evidenciando marcas
de contradição e exclusão do terceiro levando a um fazer que valoriza a prática.
Emerge dos fragmentos um modo de ser que reflete a realidade dos contextos no processo de
aprendizagem de si. Percebo a potencialização de um movimento que remete à busca do alimento que
vem nutrir as escolhas relativas ao futuro. Dá-se, assim, a ascensão que traduz um apelo à exterioridade.
A descida segue por um eixo íntimo, visceral e protetor no deleite de um sonho de retorno à calma e à
tranquilidade pré-natal propícias à reflexão.
[...] não há um movimento linear na modificação do papel do professor. Este vai se alterando
de diferentes formas em diferentes situações conforme os indivíduos. [...]
Aspirações de vida, utopia, processo, escolhas pessoais são ideias-força que caracterizam este
mitema, as quais convergem com o regime noturno pelo seu caráter de recolhimento. O mitema evidencia um
outro desdobramento do regime noturno apresentado, que é a estrutura sintética ou dramática, marcada por
períodos de crise e de triunfalismo. Tal estrutura corresponde à dominante reflexa copulativa, caracterizada
pelos derivados rítmicos associados às representações diacrônicas, que colocam em jogo as contradições
humanas no tempo e na história.
Emerge dos fragmentos um ponto de vista ancorado na lógica dialética, baseada nos contrastes do
tempo em que os contrários remetem a movimentos em busca da harmonia.
Identifico nas falas uma particularidade deste mitema: um dos aspectos do devir representado pela
estrutura sintética ou dramática, o evolutivo, associado aos processos de maturação, tradutor do desejo
humano de progresso temporal, diferente do outro aspecto representado pela estrutura, o cíclico, associado
à repetição infinita de ritmos temporais.
Nessa estrutura evidencia-se um simbolismo do regime noturno que remete à inversão e à
intimidade, caracterizando um movimento íntimo voltado à individualidade e à interioridade. Associada
a esse entendimento está a ideia de projeto, na qual o indivíduo envolve-se em uma trama tecida pela sua
própria história. Nesse contexto, ele é desafiado a fazer escolhas e a buscar o equilíbrio harmonizador que
o projetará em direção aos seus objetivos maiores de realização, à sua utopia.
A partir dos fragmentos é possível estabelecer relações com a simbólica que converge para a
dramática evolutiva em questão. Desta forma, identifico entre os símbolos evolutivos a imagem da árvore,
associada à ideia de maturação ou crescimento pela maturidade. Outros também reforçam esse sentido
simbólico, como o fogo e a chama, que se propagam. Também o germe e o fermento se associam à ideia de
propagação.
O professor-projeto reconhece que para evoluir, ascendendo em busca das suas aspirações de vida,
terá que, via de regra, recolher-se à quietude do ventre materno. Do contato com a mística que se dá no
interior da Terra-mãe é possível alimentar e orientar o seu desejo de evolução.
A imagem do professor balseiro emerge quando identifico a figura do professor passeur de sentido
ou professor-condutor, aquele que acompanha um caminho que ele não conhece previamente, mas possui
um saber-fazer e conhecimentos que o ajudam na exploração de uma terra incógnita, onde a formação
torna-se busca e obra (PERES, 2010).
O sentido simbólico que emerge dos fragmentos está associado ao regime noturno do imaginário,
em especial à estrutura sintética ou dramática, que vem potencializar o seu caráter rítmico e harmonizador,
vinculado à dominante copulativa.
É possível perceber, por meio dos semantismos expressos, homologias que remetem à crítica e à
criatividade no sentido da contestação do conhecimento apresentado. A dramática que envolve essa lógica
faz emergir sentidos que reforçam a presença de um movimento de caráter rítmico e transformador.
A dramática dialógica presentifica-se na medida em que passa a ser potencializada num movimento
de mão dupla, promotor de um conhecimento que se dá pela alternância de posicionamentos. A repetição
está associada à dominante copulativa e seus derivados rítmicos, caracterizando movimento e ação. Assim,
emerge um simbolismo que remete à imagem da roda, símbolo associado aos ciclos, aos reinícios, às
renovações. A contestação do conhecimento oficial e também a crítica ao paradigma presentes trazem à
tona um simbolismo que remete à mudança e retorno das formas de existência promovendo a aproximação
da imagem da roda como símbolo associado ao mitema.
O movimento que gera a ação transformadora alimenta o desejo de um vir a ser cíclico: “resumo
mágico que permite o controle do tempo, isto é, a predição do futuro” (CHEVALIER E GHEERBRANT,
2009, p. 786). Nesse caso é pertinente considerar a associação à imagem lunar antes de se tornar solar,
reforçando o caráter cíclico e o controle temporal.
O caráter cíclico temporal remete à subversão da lógica instituída, à lógica do professor “iluminador
do conhecimento”. Essa ideia permite trazer para a tematização uma outra significação simbólica da roda, a
qual remete ao “vai e vem entre o céu e a terra, unindo o divino e o profano” (op. cit), caracterizando uma
dramática vinculada à harmonização.
Desta forma, os símbolos de harmonização dos contrários vão aparecendo e ganhando força em
expressões que remetem à dramática cíclica. Processar tensões e embates parece ser a tônica da dramática
harmonizadora que pode levar à autoria, que se evidencia na diferença, segundo Mabel.
É possível constatar a presença desse tempo cíclico na escrita da protagonista, a partir de constelações
de imagens que remetem simbolicamente à dramática lunar e à vegetação sazonal. A dramática cíclica
presente nessas duas situações desdobra-se, então, em ciclo lunar e ciclo vegetal, que estão relacionados.
Logo, o arquétipo que ancora cada um dos ciclos é o da Grande-Mãe. Esse arquétipo está associado ao
Grande Círculo, que funde harmonicamente os contrários. As imagens marcantes na escrita pesquisada
remetem ao mito do eterno retorno (noturno) e à jornada do herói (diurno). O primeiro relacionado ao ciclo
do sacrifício, trazendo a vida nova por meio da morte, reforça o mistério da força vital. A dramática se dá
pela inversão do sentido natural da morte.
Reforçam esse entendimento os esquemas verbais que se repetem na escrita e que remetem ao
recolhimento relacionado às deusas lunares que me levaram ao mundo das Grandes-Mães, onde tomei
contato com Deméter8. Os núcleos simbólicos associados ao mito de Deméter presentes no imaginário da
8 Deméter significa a mãe da Terra ou Terra-Mãe. Filha de Cronos e de Réia, pertencente à segunda
Professora Mabel são convergentes com os dramas vinculados à natureza, aos mistérios da vida e da morte
e à continuidade cíclica do tempo através da dinâmica que envolve retorno e regeneração.
Ao descobrir a si e ao outro, quando encontro o sentido do seu modo de ser docente, a Professora
Mabel parece estar sob a influência do seu mito pessoal. Deixando-se guiar por ele, adquiriu um conhecimento
que se transforma e amadurece a cada jornada, a cada retorno, enfim, a cada ciclo, a exemplo de Deméter.
Diante dos resultados que obtive no trabalho de Tese, percebo importante o movimento que adentra
as relações entre o biográfico e o simbólico potencializado pelos estudos do imaginário, o que me permite
acreditar na aproximação da noção de biomitografização, a qual me inspira a dar continuidade ao meu
trabalho investigativo, buscando análises mais aprofundadas com base na mitologia.
Até aqui, aprendi que “o novo não se constrói sem o velho e é a situação de tensão e conflito
que possibilita a mudança” (CUNHA, 2005, p. 25). Entendi com a pesquisa que tensão e conflito se
constituem em forças capazes de nos colocar em contato com a dramática que alimenta e instiga a busca
do conhecimento de si e de outros. Conhecimento este que não se produz ao acaso, e sim a partir da
necessidade de compreensão das contradições humanas e sociais (CUNHA, 2005). No sentido de auxiliar
na compreensão dessas contradições é que espero contribuir com o estudo aqui apresentado.
geração dos deuses olímpicos, seu culto está vinculado ao culto das estações, da semeadura e da colheita
para a produção do trigo. Seu papel era o de presidir todas as formas de reprodução e renovação da vida,
especialmente da vida vegetal. Caracteriza-se como a deusa das alternâncias da vida e da morte, que regulam
o ciclo da vegetação e de toda a existência, simbolizado pela semente que morre no seio da terra para gerar
vida nova.
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EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
O presente trabalho tem como objetivo identificar os significados e sentidos de ser professor da Educação
Infantil. Compreendemos que ser professor está relacionado à identidade da profissão docente, com a
revisão constante dos significados sociais da profissão e com o sentido que tem para cada membro dessa
classe profissional (FACCI, 2004) por isso buscamos respostas para a seguinte questão problema: Que
significados e sentidos estão sendo construídos pelo professor de Educação Infantil em início de carreira
nas relações com seus pares? Na pesquisa de natureza qualitativa (CHIZZOTTI, 2003) investigamos uma
professora que se encontra na fase inicial da vida profissional e que atua no nível de ensino mencionado.
A Entrevista Narrativa foi escolhida como estratégia de investigação apoiada nas ideias de Flick (2009) e
Jovchelovitch e Bauer (2008). Entendemos que com ela foi possível estabelecermos contato direto com a
participante no momento da produção da Narrativa. Isso nos possibilitou redirecionar sua fala para que não
se distanciasse da questão gerativa da Narrativa. Nesta investigação, analisamos os dados de acordo com
a proposta de Aguiar e Ozella (2006) denominada Núcleos de Significação, para melhor compreendermos
as zonas de sentidos em relação ao ser professor. Os resultados da pesquisa foram organizados entorno
do Núcleo “Desafios e possibilidades de ser professor” no qual concluímos que apesar das dificuldades
encontradas pela professora sua maior motivação são seus alunos. Para ela ser professor é possibilitar a
aprendizagem e o desenvolvimento do aluno; é viver o dilema entre ideal e real e enfrentar dificuldades,
mas ser movido pelos desafios da profissão.
Introdução
O processo de tornar-se professor ocorre pela formação, pela experiência e pela socialização com
a categoria docente (SCHAFFEL, 2000). Sabemos que, no desenvolvimento de aprendizagem, o docente
ou candidato ao cargo desenvolve significações em relação à profissão que incidem em nosso objeto de
estudo, isto é, na identidade que está se constituindo. Em face disso, como parte do projeto de pesquisa
“Significados e sentidos sobre o mal-estar docente: o que pensam os professores em início de carreira”,
buscamos respostas para o seguinte questionamento: Que significados e sentidos estão sendo construídos
pelo professor de Educação Infantil em início de carreira nas relações com seus pares? Sendo nosso objetivo
identificar os significados e sentidos de ser professor da Educação Infantil.
Estudar essas significações, ou seja, os significados e os sentidos, têm sido importante em nossa
pesquisa por nos dar condições de compreender o desenvolvimento da capacidade de pensar e a organização
do pensamento e, ainda, o desenvolvimento social do ser humano, mais especificamente, do professor,
tendo em vista que buscamos investigar os significados e os sentidos do mal-estar docente produzidos por
professores em início de carreira e suas relações com a identidade docente que está se constituindo.
A opção pela entrevista narrativa como estratégia de investigação dos desafios e possibilidades de ser
professor se justifica porque essa é uma forma de entrevista não estruturada que estimula os entrevistados
a refletir e a narrar acontecimentos importantes de sua vida, seja pessoal ou profissional. Geralmente, na
educação o emprego das narrativas possibilita aos participantes como, por exemplo, professor ou aluno
passar por um processo de formação, já que oportuniza reflexões que podem se constituir em novas
aprendizagens.
Nesse processo de identificação, o homem se reconhece dentro de grupos sociais em que é capaz
de identificar a si próprio. Dessa maneira, compreendemos que a identidade é constituída no processo em
que o ser humano a um só tempo em que se iguala, diferencia-se. Há a identificação com vários grupos em
que o ser humano interage e internaliza, por exemplo, valores que o leva a igualar-se, ou seja, desenvolve o
sentimento de pertencimento aos grupos em que se insere. Porém, mesmo havendo identificação, cada ser
humano se constitui como singular.
Portanto, a identidade pessoal e coletiva dos professores que estão iniciando na carreira, assim como
os demais professores, caracteriza-se pela igualdade e pela diferença ao se socializarem entre si.
Berger e Luckmann (2009) discutem dois tipos de socialização do ser humano que nos ajudam
a compreender o tornar-se professor, são elas: socialização primária e socialização secundária. Na
socialização primária, a família ou outros grupos considerados significativos tem função importante, pois é
o primeiro grupo com o qual nos relacionamos quando crianças, e as relações são carregadas de emoções.
Na socialização secundária, somos introduzidos em outros setores da sociedade e os outros significativos
são ampliados, o que significa que não é apenas a família, mas todos que nos servem de referências para a
constituição da identidade. A escola, por exemplo, torna-se um novo mundo para as crianças na socialização
secundária. A constituição de nossa identidade não ocorre de maneira isolada, mas nas nossas interações no
mundo objetivo.
Compreendemos que a formação do professor é um dos processos de socialização secundária
responsável pela constituição da identidade docente. É mediante esse processo que ele aprende a ser
professor, mas se torna um profissional quando entra em atividade. O processo de constituição da identidade
do professor está relacionado à construção para si de seu projeto e suas aspirações. A legitimação dos
saberes e das competências são inerentes ao reconhecimento de sua identidade. A respeito disso, Schaffel
(2000), com base em Sainsaulieu (1985), esclarece que a identidade é, por um lado processo biográfico, isto
é, construção do indivíduo no tempo, seja na família, na escola e em outros contextos de socialização; e,
por outro lado, é relacional, visto que é o investimento do eu em busca de reconhecimento dos outros e, por
extensão, busca a legitimação. Desse modo, a autora sinaliza que os processos que constituem a identidade,
biográfica e relacional, devem estar articulados para que ocorra o reconhecimento da identidade coletiva e
a atribuição do status profissional.
A identidade do professor se efetiva na relação do futuro profissional com seu grupo de trabalho
e com as representações e significações da profissão. Assim, a identidade é entendida como o espaço em
que nós, professores, na condição de seres humanos, desenvolvemo-nos nas interações estabelecidas nos
processos de socialização, sobretudo na formação inicial e contínua. Portanto, a construção da identidade
profissional é entendida como espaço de construção de maneiras de pensar, de sentir e de agir e se constitui
no contexto histórico, social e cultural. Esse raciocínio é esclarecido por Gatti (1996, p. 86), quando afirma:
A identidade não é somente constructo de origem idiossincrática, mas fruto das interações
sociais complexas nas sociedades contemporâneas e expressão sociopsicológica que
interage nas aprendizagens, nas formas cognitivas, nas ações dos seres humanos. Ela define
um modo de ser no mundo, num dado momento, numa dada cultura, numa história. Há,
portanto, de ser levada em conta nos processos de formação e profissionalização dos
docentes.
Metodologia
A narrativa é bastante difundida nas ciências sociais que tem como objetivo estudar as diferentes
maneiras como os seres humanos vivenciam o mundo, estimulando sua capacidade crítica e reflexiva, por
meio da utilização de sua memória. Segundo Jovchelovitch e Bauer (2008, p. 92):
[...] a narrativa não é apenas uma listagem de acontecimentos, mas uma tentativa de ligá-los,
tanto no tempo, como no sentido. Se nós considerarmos os acontecimentos isolados, eles se
nos apresentam como simples proposições que descrevem acontecimentos independentes.
Mas se eles são contados permitem a operação de produção de sentido do enredo.
A forma de registrar a narrativa pode ser por meio de diários reflexivos, memoriais, cartas pedagógicas,
história de vida, narrativa oral e entrevista narrativa. Nesta investigação, optamos por trabalhar com a
entrevista narrativa, porque com ela é possível estabelecermos contato direto com os sujeitos no momento
da produção da narrativa. Isso nos possibilitou redirecionar a fala da professora entrevistada quando parte
da questão gerativa da narrativa não foi contemplada na narração.
Em nossa investigação, ao entrevistar a professora em início de carreira, buscamos captar fatos,
acontecimentos e situações reveladores dos: a) sentimentos que os professores em início de carreira
desenvolveram em relação à profissão docente; b) das expectativas dos professores em início de carreira
em relação à profissão docente e; c) das vivências entre professores em início de carreira e professores de
carreira que desenvolvem mal-estar docente e a relação com a constituição da identidade.
Questionamentos como estes podem remeter os professores a pensarem sobre suas expectativas, sua
forma de atuação, sua relação com os demais colegas de trabalho e com os alunos. Além disso, significa que
os professores por meio de pesquisas como esta refletem e analisam aspectos vinculados a suas identidades,
aos saberes e aos repertórios de conhecimentos no exercício da profissão (SOUZA, 2008).
Realizamos a entrevista narrativa partindo de uma questão gerativa que, segundo Flick (2009),
“se refere ao tópico de estudo e que tem por finalidade estimular a narrativa principal do entrevistado”.
Nossa questão foi: “Gostaríamos que você nos contasse como está se sentindo sendo professora. Você
pode iniciar nos contando suas vivências como professora, sobretudo as experiências com professores que
desenvolveram mal-estar docente e suas expectativas em relação à profissão”. Nesse momento, não houve
interrupções por parte da entrevistadora.
Posteriormente, partimos para questionamentos, que são perguntas feitas pela pesquisadora quando
percebeu que a entrevistada deixou de explorar algum aspecto importante ou explorou pouco. Com isso,
intencionamos compreender as ideias desenvolvidas pela participante entrevistada que não tenham ficado
claras.
Para considerar a historicidade da nossa interlocutora, executamos a entrevista narrativa em duas
ocasiões. A primeira aconteceu quando a professora estava completando um ano e quatro meses na profissão,
após as observações sistemáticas de seu cotidiano escolar. Terminada a entrevista que durou cerca de 20
minutos, transcrevemos e fizemos a devolutiva, para que a professora pudesse refletir sobre a fala narrada,
de modo que pudesse reiterar ou alterar informações. A segunda entrevista aconteceu seis meses depois
para apreender novos significados e sentidos, pois entendemos que a professora tinha novas vivências para
ser narradas. Na segunda entrevista narrativa, que durou 40 minutos, a professora reiterou fatos narrados na
primeira entrevista e narrou novos fatos e mais detalhes. Também fizemos a devolutiva dos fatos narrados,
para reiterações ou alterações das informações manifestas por ela.
Nesta investigação, analisamos os dados produzidos de acordo com a proposta de Aguiar e Ozella
(2006) denominada Núcleos de Significação, para melhor compreendermos os significados e os sentidos
produzidos pela professora iniciante.
Os Núcleos de Significação consistem em procedimento metodológico de interpretação de dados de
pesquisas qualitativas em que os pesquisadores que empregam devem ir além da descrição das informações.
Ao analisar, devem adentrar nas zonas de significados e de sentidos. Aguiar (2006, p. 18) esclarece que os
instrumentos, além da entrevista, que podem ser utilizados para o acesso aos processos psíquicos estudados
e aprimoramento e refinamento analítico dos dados produzidos são:
Na presente pesquisa, os dados analisados foram produzidos durante a entrevista narrativa (FLICK,
2009) realizada com a professora em início de carreira.
Ao nos dispormos a realizar esta investigação compartilhamos das mesmas ideias de Aguiar e Ozella
(2006, p. 226):
Nesse sentido, depois de transcrever as entrevistas narrativas, fizemos várias leituras do seu conteúdo
com a finalidade de organizar os materiais, isto é, o corpus empírico oriundo da pesquisa de campo.
Em seguida, com a releitura do material, aglutinamos pré-indicadores em indicadores, por
similaridade, complementaridade e contraposição das informações e, os indicadores em núcleos de
significação.
Os núcleos de significação que são organizados com base na articulação dos indicadores, de acordo
com Aguiar (2006, p. 20), “devem expressar os pontos centrais e fundamentais que trazem implicações
para o sujeito, que o envolvam emocionalmente, que revelem as determinações constitutivas do sujeito”.
Portanto, na análise e na interpretação dos resultados consideramos o movimento, a historicidade e as
contradições vivenciadas pela professora participante. Os núcleos organizados foram: 1) Sentimentos da
professora em início de carreira: medo e insatisfação versus satisfação e realização profissional; 2) Múltiplas
expectativas em relação à profissão docente; 3) Sobre o mal-estar docente: como se origina, como se revela
e como se evita; 4) Desafios e possibilidades de ser professor. No presente artigo analisaremos o último
quarto Núcleo.
O Núcleo “Desafios e possibilidades de ser professor” foi construído com base na articulação
entre os indicadores sobre os significados e os sentidos de ser professor. O que a professora significa sobre
ser professor está relacionado aos desafios e as possibilidades inerentes à profissão revela sua identificação,
está manifesto nos seguintes indicadores: 1) Ser professor é possibilitar a aprendizagem e o desenvolvimento
do aluno; 2) Ser professor: entre o real e o ideal; 3) Ser professor: dificuldades e desafios.
O ser professor está relacionado com a identidade da profissão docente, com a revisão constante
dos significados sociais da profissão e com o sentido que tem para cada membro dessa classe profissional
(FACCI, 2004). Nesse Núcleo, apreendemos os sentidos da entrevistada sobre o professor e as nuances da
profissão, e relacionamos com a constituição de sua identidade.
Segundo Gatti (1996), o professor é um ser social concreto, com modo próprio de estar no mundo,
é um ser em movimento, que constrói valores, estrutura crenças, tem atitudes e age em razão da identidade
que permeia o modo de estar no mundo e no trabalho.
No primeiro Indicador, “Ser professor é possibilitar a aprendizagem e o desenvolvimento do aluno”,
a professora, ao responder nosso questionamento sobre qual a função social do professor, responde que é
possibilitar que os alunos aprendam e se desenvolvam.
Aqui na escola a minha principal função é fazer com que meus alunos aprendam, é fazer
com que eles tenham oportunidade igual a um aluno da escola privada, que ele não seja
menosprezado, que ele não seja aquém do
aluno da escola privada. Minha função é essa, é proporcionar aos meus alunos as mesmas
experiências que eles poderiam ter na escola particular ou até melhor que uma escola
particular. A minha função é essa, é fazer com que eles cresçam, que se desenvolvam,
que eles aprendam e não assim, porque sou de escola pública eu sonho menos.
A professora assume que sua função social na escola é contribuir no processo de aprendizagem e
de desenvolvimento dos alunos. Seu entendimento é que seus alunos, que são de escola pública, tenham as
mesmas oportunidades de educação escolar que aqueles de escolas particulares, que não sejam privados das
oportunidades que a educação pode lhes oferecer.
Giesta (2001) apresenta, em sua pesquisa sobre a razão de ser professor, a compreensão de algumas
docentes sobre a profissão: para elas, é contribuir na formação intelectual e no aperfeiçoamento dos alunos,
isto é, possibilitar seu crescimento intelectual.
Vimos que a compreensão da professora pesquisada sobre sua contribuição em relação aos alunos vai além
do que as professoras pesquisadas por Giesta (2001), pois nossa interlocutora entende que sua função não
é apenas contribuir para a formação intelectual dos alunos, mas para a aprendizagem e o desenvolvimento
deles. Ainda compondo esse indicador, ela narra:
A criança é em primeiro lugar. Sempre estar fazendo o melhor possível para que ela
se desenvolva e que mais na frente eu possa ver elas desenvolvidas, futuros profissionais
qualificados, seja qual for a profissão que for escolher, mas que eu possa olhar para trás e
ver que valeu a pena, valeu a pena todo o esforço que tive. O que fica mesmo para o ser
humano é a educação, é o nosso saber mesmo.
Compreendemos que seu maior compromisso é com seus alunos, hoje crianças que no futuro irão se
tornar profissionais. A professora se preocupa com a qualidade de seu ensino, para que futuramente possa
ser reconhecida pelo seu esforço. Lembramos que, no Núcleo sobre sentimentos, a professora ressalta a
importância de seus alunos para sua satisfação profissional e, consequentemente, para a constituição de sua
identidade.
Inferimos que o exposto pela professora sobre sua função social está relacionado a uma das
competências do professor que é saber envolver os alunos com suas aprendizagens. Marchesi (2008, p. 60)
considera como um dos objetivos prioritários do ensino “a necessidade de despertar o desejo do saber dos
alunos e de fazer com que eles se envolvam na atividade de aprender”. Ao se envolver nessa atividade, os
alunos se apropriam de novos conhecimentos e se desenvolvem como pessoas e futuros profissionais.
A escola, como instituição de ensino, de acordo com Moreno e Cubero (2004, p. 254):
Nesse contexto, entendemos que a função da professora, junto à escola, é muito mais do que
proporcionar o crescimento intelectual dos alunos, mas prepará-los para viver em sociedade e constituir
sua identidade.
Compreendemos, de acordo com os sentidos produzidos pela professora, que ela está constituindo
sua identidade docente, pois, no seu entendimento, sua função como professora é promover a aprendizagem
e o desenvolvimento dos alunos, tendo como foco sua formação, o que indica o desejo de permanência na
profissão.
No segundo Indicador, “Ser professor: entre o real e o ideal”, nossa interlocutora se refere ao que
acontece no contexto escolar e o que ela idealiza para que as condições de ser professor melhorem.
A educação só não vai mais para frente porque nós mesmos professores, dentro do nosso
ambiente de serviço, nós não somos unidos. Se nós fossemos unidos, todas com suas
propostas, com seus objetivos... talvez a gente não consiga mudar toda a situação, mas que
a gente mudasse a realidade dos nossos alunos na nossa região, já seria um bom avanço
para nós.
A professora em início de carreira declara que na escola em que atua não há relações interativas
entre as professoras que contribuam para os avanços da educação e para as mudanças na realidade objetiva
e subjetiva dos alunos. Entendemos que essa situação prejudica o ensino e a constituição da identidade dos
professores pela relação de distanciamento e conflito entre elas.
Ainda que não haja o envolvimento coletivo dos professores, que eles prefiram resolver ou
administrar seus problemas sozinhos, é necessário romper as barreiras do individualismo (PAULA, 2009).
Em contrapartida, a professora participante da pesquisa idealiza para sua profissão:
A educação só não vai mais para frente porque nós mesmos professores, dentro do
nosso ambiente de serviço, nós não somos unidos. Se nós fossemos unidos, todas
com suas propostas, com seus objetivos... talvez a gente não consiga mudar
toda a situação, mas que a gente mudasse a realidade dos nossos alunos na
nossa região, já seria um bom avanço para nós.
A professora idealiza o trabalho em equipe, isto é, que haja o envolvimento dos professores para
o trabalho em equipe com o objetivo de provocar mudanças na realidade dos seus alunos, a fim de que o
trabalho docente seja mais satisfatório para os professores e para os alunos.
O trabalho em equipe, além de promover mudanças na qualidade de ensino para os alunos,
possibilita a construção coletiva de conhecimento. Sobre isso, Pivetta e Isaia (2008, p. 251) consideram que
os professores:
O ideal para exercer [a profissão] de forma satisfatória é uma estrutura boa na escola,
recursos suficientes, você está sempre ali e nunca faltar recursos e materiais, tanto na parte
da tecnologia quanto mesmo do concreto, do dia a dia, salas reduzidas também com menos
alunos.
A satisfação dos professores é trabalhar em escola com estrutura adequada, materiais de apoio e
recursos, sobretudo tecnológicos, de modo concreto para facilitar e enriquecer seu trabalho.
Para Zaragoza (1999), a falta de condições de trabalho e das novas tecnologias têm sido queixas
constantes dos professores. Compreendemos que a maneira de valorizar o trabalho desses profissionais
e possibilitar o bem-estar é o investimento por parte do poder público na escola e na profissionalização
docente, pois entendemos que o professor e as condições de trabalho fazem a diferença na educação.
Segundo Imbernón (2002, p. 20), “o professor e as condições de trabalho em que exerce sua profissão
são o núcleo fundamental da inovação nas instituições educativas”. Portanto, as inovações na educação
ocorrem com base no investimento no professor e nas condições de exercício da docência.
No presente Núcleo, a professora aponta a desunião que acontece entre os professores e que já
discutimos antes, mas também aponta o que idealiza para sua profissão, indicando que perspectiva melhoras
na condição de ser professor.
Entendemos, com isso, que a professora está se identificando com a profissão docente, apesar das
dificuldades e desafios a serem enfrentados.
O terceiro e último Indicador, “Ser professor: dificuldades e desafios”, a professora revela a
dificuldade que teve ao iniciar na profissão por conta de sua inexperiência. Sobre as dificuldades encontradas
e os desafios a ser enfrentados, ela narra:
No começo quase que eu me desesperei e claro que eu também pensei em desistir realmente
no mês de maio, por aí. A gente entrou em fevereiro, eu nunca tinha entrado numa sala
realmente minha, eu já tinha sido estagiária, mas é diferente quando você assume
uma turma.
O processo de tornar-se professora não foi fácil para a professora, nos seus primeiros contatos com
a sala de aula efetivamente. Sua experiência anterior foi no processo de formação inicial, durante o estágio
supervisionado que, no entender dela é diferente quando realmente se assume as responsabilidades de
planejar e de desenvolver as atividades de uma sala de aula como a que atua. Essa dificuldade a fez pensar
em desistir da profissão por um momento.
Com base no relato da professora, entendemos que a formação inicial é importante, mas não suficiente
para sermos professores. Necessária se faz a vivência em outros processos formativos que lhe dê mais
oportunidade de articular teoria e prática, isto é, com o exercício da profissão. Sobre esse assunto, Guarnieni
(2005, p.5) afirma: “é no exercício da profissão que se consolida o processo de tornar-se professor”, e
complementa esclarecendo que “tal construção ocorre à medida que o professor vai efetivando a articulação
entre conhecimento teórico acadêmico e o contexto escolar com a prática docente”.
Compreendemos que é no exercício da profissão que o tornar-se professor, isto é, a constituição da
identidade se consolida e passa por novas transformações. Para sermos professores, temos que dispor de
conhecimentos, saberes e habilidades aprendidas na formação inicial, considerando o estágio de docência
como experiência importante, na prática docente, ou seja, no exercício da profissão e não podemos deixar
de esquecer que também são apreendidos na formação contínua.
Giesta (2001, p.106) reforça essa ideia quando afirma que “a formação do professor, como qualquer
outro profissional, não está concluída ao receber um diploma de ensino médio ou universitário”. Segundo
a autora, é necessária constante atualização dos conhecimentos por meio de cursos de extensão, encontros
para estudos, discussões pedagógicas, seminários, reuniões para planejamento e avaliação.
Com esses sentidos sobre ser professor, compreendemos que estamos sempre em processo de
formação e transformação e, portanto, a identidade do professor está constantemente em movimento. Assim,
as dificuldades encontradas na vivência inicial com a profissão devem ser encaradas como fases passíveis
de ultrapassagem, à medida que os professores em início de carreira vão amadurecendo com as experiências
práticas e com a formação contínua.
Uma situação desafiadora para a professora foi tentar acabar com o preconceito contra os professores
em início de carreira. Vejamos o trecho abaixo:
Então, eu tive que mostrar para eles que eu era nova ali... logo por eu ser nova já tem aquele
preconceito. Muitas mães chegaram para a diretora e falaram: “ah, ela não vai dar conta.
É muito nova, é tão pequenininha, tão fraquinha para esse monte de menino”. [...] Tentei
conhecer os pais, tentei
ser mais amigável, mostrar e passar confiança.
A professora aponta como um dos desafios de ser professor enfrentar o preconceito em relação a
quem está iniciando na profissão, pela pouca experiência e até mesmo pela sua fisionomia física e pela sua
idade. Por ser uma professora jovem as demais professoras e os pais dos alunos não demonstram confiança.
Por conta disso, sua competência é questionada.
Como já mencionamos em vários momentos deste trabalho, a professora se encontra na fase de entrada na
carreira, de acordo com Huberman (2000). Esse período também é estudado por Papi e Martins (2010, p.
44), que fazem levantamento de pesquisas sobre professores nessa fase e afirmam que é um período em que
“os conhecimentos profissionais são colocados em xeque”. Para transmitir confiança aos pais e mostrar que
seus conhecimentos lhe dão condições para ser professora, ela se aproxima dos pais.
Sabendo que apenas a formação inicial não é suficiente para ser professora, ela coloca, como outro
desafio a ser enfrentado, a necessidade de continuar em formação:
[...] a gente tem que procurar se especializar, se formar, estudar cada vez mais, ler
os livros, atualidades, mas que a Secretaria (SEMEC) também tenha essa preocupação
de sempre estar influenciando a gente, de estar propondo cursos novos para haver essa
reciclagem. Segundo Julieny, um dos desafios da profissão é a formação contínua. Ela
reconhece a importância do curso de formação no seu processo de tornar-se professora e,
por isso, deseja que a SEMEC proporcione cada vez mais oportunidade aos professores.
De acordo com Gatti (2009, p. 200), a formação contínua nas últimas décadas teve como objetivo:
Bem, mais do que isto, a formação contínua, segundo a autora, está centrada no autoconhecimento
do professor, no reconhecimento de uma base dos conhecimentos já existentes e no seu conjunto de recursos
profissionais, como base para trabalhar novos conceitos e opções.
Considerações Finais
Referências
Introdução
Uma das características da pesquisa narrativa é o entendimento de que as histórias que ocorrem no momento em
que a pesquisa está em andamento também são parte da pesquisa e que essas narrativas precisam ser consideradas
no processo investigativo. Ser um pesquisador narrativo é examinar os fenômenos em estudo a partir de um olhar
narrativo (CLANDININ, 2006) que pressupõe, primordialmente, levar em conta o processo relacional da pesquisa
narrativa (CLANDININ; CONNELLY, 2011), particularmente no que tange ao respeito ético entre pesquisador e
participante. Essa ética do respeito deve ir além das simples deferências e das regras tradicionais da boa educação,
mas precisa buscar a inclusão dos participantes no processo de desenvolvimento da pesquisa em todas suas fases
(BARRETT; STAUFFER, 2012).
Neste artigo discuto como o planejamento de uma pesquisa narrativa em educação musical pode ser reformatado e
reconfigurado a partir da negociação entre pesquisador e participantes. Para isso, utilizo como exemplo a experiência
que vivenciei durante a realização de pesquisa narrativa durante o curso de mestrado. O foco está no primeiro encontro
com as participantes da pesquisa, que passou por um processo de reconfiguração e se tornou também um momento de
produção de informações do trabalho ao mesmo tempo em que promoveu, através da atuação das participantes, uma
reformatação do processo de coleta de informações inicialmente planejado.
O desenho da pesquisa
A pesquisa buscava compreender os significados atribuídos pelos participantes às experiências das aulas de música
que vivenciaram na escola durante a educação infantil e anos iniciais, uma vez que um expressivo grupo de estudantes
dos anos finais ou ensino médio – níveis de ensino onde não havia aulas de música naquela escola – costumeiramente
manifestava sentir saudades daquelas aulas ao encontrar com seu ex-professor de música.
De acordo com o planejamento, as informações seriam coletadas por meio de três entrevistas narrativas
(JOVCHELOVITCH; BAUER, 2008) individuais com cada participante. As entrevistas seriam realizadas na própria
escola onde as aulas de música haviam ocorrido, na qual os participantes ainda estudavam. O projeto de pesquisa
contava com o aceite informal prévio de duas meninas, jovens estudantes do ensino médio, que faziam parte de um
grupo de alunos cujas características interessavam ao foco da pesquisa. O planejamento, porém, previa a possibilidade
de até três participantes.
Anteriormente à realização das entrevistas narrativas, ocorreria um primeiro encontro com as duas meninas que
informalmente haviam aceitado participar, chamado encontro preliminar, cuja finalidade seria expor os objetivos da
pesquisa, esclarecer sobre os procedimentos de coleta de informações, obter sua adesão formal ao trabalho1 e discutir
com elas uma estratégia para o recrutamento de um terceiro participante.
“World”-travelling2
Eu havia trabalhado na escola onde Carolina e Maria Rita3 estudavam e havia sido seu professor de música nas séries
iniciais. Por isso, o encontro preliminar foi também um reencontro entre nós. A narrativa a seguir conta como esse
reencontro apresentou a primeira situação não prevista no planejamento da pesquisa.
Cheguei à escola no horário marcado e esperei um pouco até que a diretora me atendesse. Ao me receber,
pediu que eu aguardasse na sala de visitas, pois ela mesma chamaria as meninas em suas salas de aula e as acompa-
nharia até ali.
Eu não via Carolina e Maria Rita desde dezembro de 2012. Naquela ocasião, eu as havia encontrado por
1 A adesão formal das participantes se deu através da assinatura de um Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE) de participação na pesquisa por parte das meninas e de seus responsáveis
legais.
2 Usarei o termo em inglês, como no original.
3 Nomes fictícios.
acaso no salão de atos do colégio. Contei que estava fazendo o curso de mestrado e que pretendia desenvolver um
trabalho de pesquisa sobre o significado da aula de música na escola para os estudantes. Acrescentei que havia pensa-
do nelas como possíveis participantes da pesquisa. “Tu toparias, mais adiante, ano que vem, conversar comigo sobre
as aulas de música?”, perguntei. Ambas disseram sim. Depois desse dia, não nos vimos mais, mas o certo é que foi
aquele aceite inicial delas que me impulsionou a levar adiante o trabalho.
Durante o processo de escrita do projeto de dissertação, enquanto me preparava para apresentá-lo à banca
avaliadora e, depois, ao ultimar o planejamento do trabalho de campo, eu tinha vontade que chegasse logo o dia em
que me encontraria com as meninas novamente e, então, as convidaria formalmente para participar da pesquisa.
Sentia-me inseguro trabalhando em um projeto que se ancorava sobre uma participação ainda não oficializada. Temia
por uma resposta negativa, pois havia um espaço de quase nove meses separando o dia em que Carolina e Maria Rita
haviam ‘topado’ participar de uma futura pesquisa conduzida por mim daquela manhã de setembro de 2013 em que
eu, ansioso, as aguardava na sala de visitas da escola.
O momento do reencontro foi emocionante. Trocamos fortes abraços cheios de afeto, exclamações de satis-
fação e risos ruidosos. Eu estava muito feliz em vê-las e elas também demonstravam bastante alegria em me reen-
contrar. A diretora logo se retirou para nos deixar à vontade e sentamos nas poltronas da sala. A primeira coisa que
perguntei foi: “Vocês sabem por que eu estou aqui?” A resposta de Carolina veio direta e entre risos. “Não!”
Naquele instante, percebi que eu chegava ao encontro preliminar com um sentimento de aproximação em
relação às meninas que não era compartilhado por elas em relação a mim. Desde o dia em que Carolina e Maria Rita
deram seu “sim” preliminar para a participação na pesquisa, e durante todo o processo de fundamentação e planeja-
mento do trabalho, consolidado na defesa do projeto de dissertação, eu estive muito próximo a elas. Ao ler e escrever
sobre entrevista narrativa, me via imaginando como elas reagiriam a esta ou àquela pergunta. Ao pensar ou falar sobre
o número de participantes, me via apenas remotamente considerando a possibilidade de contar com outro participante
além delas. Não tivemos, as meninas e eu, contato algum durante quase nove meses, mas a presença delas foi cons-
tante durante todo o trabalho que eu desenvolvia no curso de mestrado.
No entanto, a recíproca claramente não era verdadeira. Carolina e Maria Rita não faziam ideia do motivo que
havia me levado ao colégio para conversar com elas. Compreendi que aquele primeiro encontro, chamado por mim
de encontro preliminar, teria também uma finalidade diferente. Além de explicar às meninas o que seria a pesquisa
e convidá-las oficialmente a participar dela, eu precisaria cruzar a fronteira que separa o mundo em que eu estivera
envolvido até aquele momento – o mundo acadêmico – e me aproximar do mundo de Carolina e Maria Rita.
Maria Lugones (1987) chama esse movimento de “world”-travelling. Trata-se de um cruzar entre mundos culturais
diversos, geralmente envolvidos em relações desiguais de poder. Lugones (1987, p. 4) observa que, muitas vezes, os
indivíduos que pertencem a diferentes mundos culturais percebem os outros a partir de uma “percepção arrogante4”.
Em certo sentido, senti-me enxergando as meninas a partir dessa “percepção arrogante”, pois durante os últimos nove
meses eu habitava o mundo acadêmico em companhia delas, mas essa companhia era uma realidade apenas para
mim. Eu as via como participantes da pesquisa enquanto elas sequer sabiam da existência do trabalho.
Para fazer essa viagem do mundo acadêmico ao mundo da escola, onde Carolina e Maria Rita estavam, Lugones
(1987) recomenda assumir uma atitude de “percepção amável5”. Essa atitude parte da aceitação das diferenças entre
os distintos mundos culturais, da flexibilidade de posicionamentos, fazendo com que seja possível uma aproximação
de forma serena entre as pessoas que os integram. De saída vi que os quinze ou vinte minutos que eu havia planejado
para a realização do encontro preliminar não seriam suficientes.
Na narrativa que segue, o movimento do “world”-travelling (LUGONES, 1987) provoca a reconfiguração do encontro
preliminar.
Comecei lembrando às meninas da conversa que havíamos tido em dezembro de 2012, no salão do colégio.
Disse a elas que as manifestações de saudades da aula de música que ouvia de ex-alunos no pátio da escola tinham
me movido a propor esta pesquisa. Elas mesmas, Carolina e Maria Rita, eram exemplos dessas manifestações e por
isso eu as tinha sondado para serem participantes já naquele momento em que o trabalho estava em fase de pré-pla-
nejamento. Continuei explicando que nesse período em que não nos vimos eu já tinha escrito e defendido o projeto
de dissertação.
4 “arrogant perception” (tradução nossa).
5 “loving perception”(tradução nossa).
Carolina e Maria Rita me ouviam atentamente. Senti que poderia encaminhar o que para mim seria o momen-
to crucial daquele encontro e perguntei se elas aceitavam ser participantes da pesquisa. A resposta veio em forma de
um descompromissado “Uhun”, de Carolina, e um natural “Ahan”, de Maria Rita. Ao mesmo tempo em que fiquei
feliz, senti necessidade de uma confirmação mais enfática, pois me pareceu que elas talvez não tivessem compreen-
dido a dimensão do que eu acabara de explicar.
Prossegui explicando que tanto elas quanto os pais precisariam assinar o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), pois aquele era o documento que oficializaria a autorização da sua participação e também a
publicação do texto de pesquisa resultante. Enfatizei que a dissertação seria submetida a elas durante o processo de
escrita para que lessem e colaborassem com críticas, adendos ou supressões. Nesse momento, me pareceu que Caroli-
na e Maria Rita tinham uma expressão de seriedade que tanto poderia significar interesse quanto medo em participar.
“Posso acreditar que sim, que vocês toparam?”, foi a minha pergunta.
Dessa vez, a resposta afirmativa de ambas, ainda que monossilábica, me soou mais convicta e eu admiti que,
a partir daquele instante, eu efetivamente podia dizer que contava com duas participantes de pesquisa.
Após me ouvir falar sobre a rotina de mestrando, Carolina perguntou: “Mas sobre o quê que é exatamente a
pesquisa?”.
Expliquei o que tinha traçado como objetivos da pesquisa, como, por exemplo, entender “os sentimentos dos
alunos em relação à aula de música”. Mal tinha terminado de falar e Carolina disse: “Ah, se tu perguntar pra qualquer
um da sala, todos vão dizer que sentem saudades da aula de música.”.
O fato dos alunos sentirem saudades das aulas de música foi o que me intrigou desde o início da pesquisa
e Carolina parecia ter compreendido isso claramente. No entanto, eu buscava com o trabalho compreender os sig-
nificados que os alunos atribuem às experiências vividas na aula de música na escola. Foi isso o que eu disse como
resposta à Carolina.
Ao que pareceu, minha resposta não teve muita importância, pois continuei a explicar sobre a pesquisa e
minhas ideias enquanto Carolina e Maria Rita, sem que eu me notasse, se envolviam em relembrar acontecimentos
das aulas de música. Maria Rita disse:
“Sôr, esses dias a gente... eu, a Nadine, a Maristela6 – eu acho – a gente começou a cantar aquele ‘Peito,
Palma, Peito-Peito, Palma’. E aí a Maristela pegou, era... terceira série, eu acho... pegou e trouxe o caderno que tinha
a letra e a gente começou a cantar...”
Quando Maria Rita recordou esses momentos, imediatamente veio à minha memória a cena das professoras
das turmas de terceiro ano do ensino fundamental da escola, alguns anos atrás, me chamando para conversar. Elas
tinham por hábito estudar com as crianças um repertório de canções cuja temática envolvia a cidade de Porto Alegre,
pois a capital do estado era parte dos conteúdos para aquele nível. Naquele ano, porém, elas queriam fazer um traba-
lho diferente e pensaram na ideia de criarmos canções com as crianças para mostrar a visão dos alunos sobre a cidade.
Elas, as professoras generalistas, orientariam a criação da letra da música e caberia a mim desenvolver a melodia, o
ritmo e o arranjo musical com eles. Aceitei.
Para dar início ao processo de concepção musical, pedi aos alunos sugestões de estilos para a composição e
um grande número propôs que fizéssemos um rap. Sugeri, então, trabalharmos a seguinte célula rítmica inspirada em
uma batida rap utilizando a percussão corporal como instrumento:
Tendo essa célula como base rítmica, desenvolvemos a composição do Rap de Porto Alegre.
O que Maria Rita e suas amigas cantaram naquele dia, e que ela acabava de me narrar, era o seu Rap de Porto Alegre,
a canção da qual eram autoras. Da minha parte, lembrei-me de como surgiu a proposta da atividade. E mais, lembrei-
me de como me questionava se o processo de composição com as crianças estava tendo de fato a autoria das crianças
6 Nomes fictícios.
ou se estava sendo muito direcionado por mim; de como as apresentações das canções durante a Semana de Porto
Alegre7 na escola motivavam os alunos; de como a ideia tinha sido bem sucedida e a reeditamos nos anos seguintes;
de que, em determinado momento, eu decidi solicitar um caderno para as aulas de música a fim de criar um espaço
para o registro das produções dos alunos. Lembrei-me de tudo isso enquanto Carolina e Maria Rita sorriam, quem
sabe embaladas pelo som da lembrança dos seus Raps de Porto Alegre.
Começávamos a estabelecer as conexões necessárias para que as entrevistas narrativas, que estavam por vir, fossem
fluentes. As experiências vividas na aula de música eram o foco do estudo e era também o que nos aproximava.
Naquele momento, uma delas veio à tona espontaneamente, trazida por Maria Rita. O encontro preliminar, do modo
como eu o havia planejado, não previa que eu fizesse perguntas que suscitassem lembranças às meninas e, por isso,
resisti à tentação de levar adiante a conversa e saber mais sobre o que elas lembravam a respeito do Rap de Porto
Alegre. No entanto, não havia como desconsiderar que a fala de Maria Rita já era o início do processo de produção de
informações e ele ocorria, de forma não controlada e não planejada, por iniciativa das próprias participantes.
Além disso, aquele momento foi fundamental para que pudesse ter uma visão do mundo das meninas. Eu as convidava
a conhecer o mundo acadêmico em que vivia nos últimos nove meses e elas me davam a conhecer o seu mundo das
lembranças das experiências da aula de música. Estávamos exercitando o “world”-travelling e iniciando a produção
de informações.
Entrevistas individuais?
Eu precisava organizar com as meninas a dinâmica dos nossos próximos encontros, que seriam as entre-
vistas narrativas propriamente ditas. De acordo com meu planejamento, as entrevistas ocorreriam individualmente
com cada uma delas. A minha convicção de que esta seria a melhor alternativa ficou desestabilizada durante a nossa
conversa.
Eu tinha o receio de que, juntas, as meninas falassem ao mesmo tempo e isso gerasse confusão. Esse motivo
foi por água abaixo à medida que conversávamos os três há mais de vinte minutos e isso não havia acontecido. Por
outro lado, o fato de que a lembrança do Rap de Porto Alegre, trazida por Maria Rita, levou Carolina a lembrar de
que provavelmente ainda tivesse o caderno de música guardado (“acho que eu ainda tenho...”, ela disse) mostrou que,
se as duas meninas estivessem juntas, haveria grande possibilidade de que a fala de uma complementasse a da outra.
Lembrei-me do que disse a professora Margaret Barrett no seminário8 que participei. Nesse evento, tive a
oportunidade de submeter à apreciação da professora Barrett o resumo do meu projeto de pesquisa e ouvir sua opi-
nião. Quando a informei que pretendia realizar as entrevistas individualmente com as participantes, ela pensou um
pouco e sugeriu que eu as ouvisse juntas, pois assim elas poderiam compartilhar lembranças e, quem sabe, estabele-
cer um papel de complementaridade. O que a professora Barrett previu como uma boa possibilidade investigativa era
o que eu via acontecer no encontro preliminar com as meninas.
Outro fator me deixou inseguro para sustentar a ideia das entrevistas individuais. Foi algo que surgiu quando
encontrei as meninas naquela manhã e, portanto, não pude prevê-lo. Ocorreu-me a hipótese de que Carolina e Maria
Rita pudessem se constranger em conversar sozinhas comigo. Preocupou-me a possibilidade de que elas, meninas
adolescentes, se sentissem, de algum modo, intimidadas diante de mim, um homem adulto.
A minha abalada convicção a respeito das entrevistas individuais fez com que eu dissesse à Carolina e Maria
Rita que havia considerado, inicialmente, realizar entrevistas com cada uma em separado, mas que eu mesmo estava
achando, naquele momento, que poderia ser bom conversarmos os três juntos. Rapidamente Maria Rita disse: “Eu
achei bom assim” e Carolina determinou: “Juntos”.
Fui a campo para esse primeiro encontro com Carolina e Maria Rita disposto a assumir um compromisso ético com
elas e não apenas angariar sua participação na pesquisa.
7 Semana oficial de festividades alusivas ao aniversário da cidade de Porto Alegre, cuja data é 26
de Março.
8 Seminário de Pesquisa Narrativa em Educação Musical, realizado entre os dias 16 e 19 de Julho
de 2013, na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Promovido pelo
grupo de pesquisa EDUCAMUS, sob a coordenação da professora Leda Maffioletti.
mos no trabalho e para quais propósitos.9 (BARRETT; STAUFFER, 2012, p. 8, tradução
nossa)
Não era possível desconsiderar o que as meninas decidiam naquele momento. Ao dizer, mesmo que rindo, “é menos
vergonhoso”, Maria Rita explicava a razão pela qual ela e Carolina preferiam realizar juntas as entrevistas. Eu não
soube exatamente do que elas teriam vergonha, se conversássemos individualmente, pois elas não disseram e não tive
interesse em questionar. A decisão inflexível de que eu as entrevistasse juntas foi suficiente para mim.
Terceiro participante?
Carolina e Maria Rita começavam a interferir diretamente no meu planejamento do trabalho de campo e eu
queria me manter atento para ter a lucidez necessária para aceitar ou não essa interferência. Alguns minutos depois
que a decisão sobre a dinâmica das entrevistas narrativas estava tomada, pedi a elas que considerassem a ideia de
chamar algum colega de turma para também participar da pesquisa.
O planejamento da pesquisa contava com a participação de Carolina e Maria Rita pelo aceite informal que elas
haviam concedido. No entanto, estava aberto para a possibilidade de um participante a mais.
Fui à escola para o primeiro encontro tendo em mente aquela ideia. Estava programado para conversar com
toda a turma de Carolina e Maria Rita e assim ter contato com outros ex-alunos para, a partir daí, estabelecer uma
estratégia para convidar um terceiro participante. O fato de a própria diretora ter chamado as meninas na sala jogou
por terra a possibilidade de um contato meu com algum outro ex-aluno.
Por isso, decidi compartilhar com Carolina e Maria Rita essa questão e perguntar se elas podiam convidar
algum outro colega para participar. Diante disso, Maria Rita falou com sinceridade, mas em tom de brincadeira: “Não
quero, tenho ciúme”. Carolina, rapidamente, concordou: “Eu ia falar a mesma coisa”. As duas riram e completaram:
“Não precisa, não precisa...”
Dessa vez, fiquei um pouco surpreso. Não esperava uma reação assim das meninas, fechando o círculo de
conversas em nós três. De novo, optei por não insistir e concordei também com essa restrição. Não procurei me certi-
ficar de que o tom de brincadeira que elas empregaram ao falar, entremeado pelos risos, era mesmo um disfarce para
uma sinceridade dissimulada ou se realmente se tratava de brincadeira.
Fiquei com a primeira opção e, mais uma vez, definimos os próximos passos da pesquisa de acordo com a
vontade expressa por Carolina e Maria Rita. As entrevistas seriam realizadas com elas juntas e não haveria outro
participante.
Para mim, perceber e aceitar que as participantes estavam influenciando no rumo da pesquisa, já no encontro
preliminar, foi um sinal de que eu parecia estar engajado na proposta ética e relacional da pesquisa narrativa. Se
elas eram participantes da pesquisa, eu precisava encará-las como co-autoras do trabalho também nas questões de
planejamento que as envolviam diretamente. Se eu me propunha a assumir uma postura ética em termos ontológicos,
era preciso levar rigorosamente em consideração em que medida o trabalho de campo poderia implicar nas vidas das
meninas. Portanto, não submetê-las a constrangimento de forma alguma era mais do que uma condição do TCLE e
sim parte do compromisso com o rigor ético.
Entretanto, questiono-me se a aceitação por mim das condições reivindicadas por Carolina e Maria Rita foi devido à
postura ética de pesquisador narrativo que perseguia/persigo ou se, de certa maneira, eu já estava inclinado a tomar
aquelas decisões e, ao dividir a responsabilidade com elas, procurei reforço e justificativa para uma vontade que já
era a minha. Não tenho a resposta, mas pensar sobre isso me ajuda a manter a atenção e avaliar criticamente minha
postura durante o trabalho.
A lembrança do Rap de Porto Alegre foi o primeiro fio que as meninas puxaram da meada que nos envolveu durante
alguns anos, enquanto fomos professor e alunas, e que nos enredava novamente na narrativa que produzíamos a partir
9 “To take an ethical stance requires clear understanding of and willingness to interrogate ourselves
and our own motives. A narrative inquiry ethic prompts researchers to move beyond the allure of story
and to consider how we engage in the work and for what purposes.”
daquela manhã. Mas o religar das conexões entre nós não parou por aí.
Carolina me perguntou se sua irmã tinha sido minha aluna no colégio. Ela imaginava que sim e, juntos, tenta-
mos sem sucesso encontrar a resposta. Maria Rita disse que “até a minha vó fala de ti, sôr...” ao lembrar que quando
ela, Maria Rita, entrou no colégio, descobrimos que minha mãe era muito amiga da irmã de sua avó e, por consequên-
cia, conhecia a sua avó também. Carolina lembrou de uma vez em que levei minha filha mais velha para o colégio,
então com alguns meses de idade. “Ela ficou num cantinho, assim, ela nem chorava! Bem quietinha”. Também me
lembrei desse dia. Era um ensaio extra para alguma apresentação, então fui à escola em uma manhã diferente daquela
em que normalmente trabalhava, por isso não tive com quem deixar minha filha e a levei comigo. “Na cadeirinha”,
Carolina detalhou.
As lembranças desses fatos talvez tenham levado Carolina a buscar na memória pelo lugar onde as aulas de
música aconteciam. “Eu não me lembro onde é que era a sala de música”, ela disse pensativa. Maria Rita afirmou
que lembrava “direitinho”. Juntos, então, fomos localizando mentalmente o espaço onde, uma vez por semana, nos
encontrávamos para as atividades de aula. Disse a elas que imaginava que elas tinham passado por duas salas de mú-
sica diferentes enquanto alunas. Elas ficaram em dúvida e eu mesmo não sabia precisar em que ano a sala havia sido
trocada para outra bem maior, com espaço inclusive para um piano.
Identificar o local onde ocorriam as aulas de música transportou Carolina para dentro da sala, anos atrás.
“Eu lembro que tinha que subir num banquinho pra tocar naqueles tambores, que era muito alto pra mim”, ela falou.
Carolina e Maria Rita riram e eu, ao mesmo tempo em que agilizava o preenchimento do TCLE, também sorria e me
encantava com as lembranças que as meninas traziam e com as minhas próprias.
Além das lembranças, Carolina quis saber um pouco mais sobre mim. “Tu tá com quantos anos, sôr, que mal
lhe pergunte?” e “Tu tem dois filhos, né?” foram duas das suas perguntas. Maria Rita se lembrava de ter me visto
com meu filho mais novo na festa junina da escola do ano anterior, e tanto ela quanto Carolina quiseram saber a idade
de ambos. À medida que respondia sobre minha vida atual e embarcava nas recordações que as meninas tinham de
mim e minha família, percebia que estávamos nos reaproximando, recriando uma intimidade que tínhamos quando
compartilhávamos a sala de aula. Dessa vez, no entanto, não éramos mais professor e alunas, mas ex-professor e
ex-alunas que se encontravam e restabeleciam vínculos, porém exercendo outros papéis. Era prazeroso reencontrar
Carolina e Maria Rita e, ao mesmo tempo, era importante começar o trabalho de campo criando esta reaproximação.
Considerações finais
Em preparação ao trabalho de campo, me apoiei em extensa lista de artigos e livros a respeito da pesquisa narrativa. No
entanto, comecei a entender de fato o significado do que havia lido durante o encontro preliminar com as participantes
da pesquisa. Clandinin (2006), ao explicar o que fazem os pesquisadores narrativos, esclarece o trabalho de campo
pode começar contando histórias ou vivendo-as junto com os participantes. De uma forma ou de outra
Eu já estava no meio de uma narrativa durante o encontro preliminar. Ou de várias narrativas concomitantes. Era a
história do reencontro de um professor e duas de suas ex-alunas e era a história de um pesquisador construindo um
trabalho. Mas era também a história de duas jovens que reencontram um antigo professor de música e a história de
duas meninas que seriam participantes em uma pesquisa de mestrado.
Também procurei saber um pouco sobre elas: “E como é que vocês tão agora, suas vidas?”, foi o que per-
guntei. Depois de responder que estavam bem, Carolina acrescentou: “Virei gente, agora.” Não entendi o que ela
quis dizer e o que consegui articular, em um misto de espanto e graça, foi um: “Por quê?”. “Tô no grêmio”, Carolina
explicou, referindo-se ao grêmio estudantil da escola, entidade representativa dos alunos.
Maria Rita também deu seu depoimento a respeito de si mesma na atualidade: “E eu toco violão, sôr. Graças
10 “…we enter into the midst of stories. Participants’ stories, inquirers’ stories, social, cultural and institutional stories,
are all ongoing as narrative inquiries begin. Being in the field, that is, engaging with participants, is walking into the midst of
stories.”
a ti.” Talvez porque Maria Rita tenha falado com voz baixa, ou porque quisesse reforçar e acrescentar algo ao que a
amiga acabava de revelar, Carolina completou: “E ela canta. Tri bem! Ela toca e canta!”
Em seguida, Carolina se apressou em dizer que “eu não aprendi a tocar nada, mas eu ainda sei fazer aquela
batida no bumbo, sabe, para a mãozinha... eu sei fazer ainda.” E começou a fazer a mímica de um tocador de tambor, a
baqueta imaginária em uma das mãos e a outra mão livre para abafar o couro do instrumento, enquanto falava: “Tam,
Tam... não... bate, aí para com a mão. Bate, aí para com a mãozinha... eu lembro disso”.
Fiquei emocionado em saber que Maria Rita continuava cantando e que tinha aprendido a tocar violão. Ao
mesmo tempo, ver Carolina reproduzindo o ritmo do tambor que tocava na aula de música também teve um aspecto
emocionante. Enxerguei em ambas uma amostra de ressonâncias das experiências vividas nas aulas de música na sua
vida atual.
Percebi que o trabalho se transformava no momento da fase de campo e isso me proporcionou uma nova compreensão
sobre a metodologia da pesquisa, impossível de alcançar no estágio do planejamento. Os três lugares-comuns,
considerados como “um tipo de moldura conceitual para a pesquisa narrativa11” (CLANDININ; PUSHOR; MURRAY
ORR, 2007, p. 23), me ajudaram a compreender melhor a narrativa que Carolina, Maria Rita e eu construímos durante
nosso reencontro. O primeiro deles, a temporalidade, diz respeito a encarar os eventos como acontecimentos sempre
em processo de transição. A imprevisibilidade dos diálogos que produzíamos e os efeitos que eles causavam em
mim/nós me mostravam que a pesquisa era, de fato, um processo em constante transformação. Clandinin e Connelly
anotam que
A socialidade, o segundo lugar-comum da pesquisa narrativa, trata das relações sociais que são narradas pelos
participantes e também as que se estabelecem, inclusive, entre pesquisador-participante (CLANDININ; PUSHOR;
MURRAY ORR, 2007). Precisei estar atento a esse aspecto durante o encontro preliminar.
O terceiro lugar-comum, o lugar (CLANDININ; PUSHOR; MURRAY ORR, 2007), é entendido como a localização
tópica onde as experiências narradas aconteceram. Carolina e Maria Rita recriavam as histórias das aulas de música
as posicionando em um local e, muitas vezes, procurando reconstruí-lo em suas narrativas.
O papel do encontro preliminar se ampliou no processo desta pesquisa. Em primeiro lugar, ele foi, como planejado, um
momento preparatório para o que seria a fase de produção de informações, as entrevistas narrativas. No seu decorrer
ocorreram esclarecimentos sobre a pesquisa, leitura do TCLE junto com Carolina e Maria Rita e combinação de data
para a primeira entrevista narrativa. Ocorreram também tensões provocadas pela imprevisibilidade do trabalho de
campo, especialmente na constatação do distanciamento entre o mundo cultural do pesquisador e o das meninas e no
conflito de ideias em relação ao formato das entrevistas e ao número de participantes. Essas tensões se resolveram
através de negociações que influenciaram nos rumos procedimentais do trabalho e no meu posicionamento como
pesquisador e fortaleceram as bases éticas para que o processo da pesquisa seguisse adiante.
Em segundo lugar, o encontro preliminar assumiu o papel de início da fase de produção de informações da pesquisa,
uma vez que no seu decorrer, Carolina e Maria Rita já recontaram histórias vividas na aula de música ou que tinham
relação com ela. Essas narrativas ajudaram a restabelecer conexões entre mim e as meninas e, ao mesmo tempo, se
configuraram como produção de informações pela característica de lembranças que continham.
REFERÊNCIAS
BARRETT, Margaret S.; STAUFFER, Sandra L. Resonant work: toward an ethic of narrative re-
search. In: BARRETT, Margaret S.; STAUFFER, Sandra L. (Eds.). Narrative soundings: an anthology of
narrative inquiry in music education. Dordrecht: Springer, 2012.
CLANDININ, D. Jean. Narrative inquiry: a methodology for studying of living experience. Resear-
ch Studies in Music Education, n. 27, p. 44-54, dez., 2006.
CLANDININ, D. Jean; CONNELLY, F. Michael. Pesquisa Narrativa: Experiência e História em
Pesquisa Qualitativa. Uberlândia: EDUFU, 2011.
CLANDININ, D. Jean; PUSHOR, Debbie; MURRAY ORR, Anne. Navigating Sites for Narrative Inquiry. Journal
for Teacher Education, v.58, n.1, p.21-35, jan-fev., 2007.
11 “a kind of conceptual framework for narrative inquiry”.
JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin W. Entrevista Narrativa. In: BAUER, Martin W.;
GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som: Um Manual Prático. Petrópolis:
Vozes, 2008.
LUGONES, Maria. Playfulness, “world”-travelling, and loving perception. Hypatia, v.3, n.2, p.3-
19, Summer, 1987.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Autoria
Janaína Braga de Paiva
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
Curso de Doutorado em Saúde Pública/ Instituto de Saúde Coletiva
Universidade Federal da Bahia (ISC UFBA)
janainapaivanutri@gmail.com
Orientadora:
Profa. Leny Alves Bomfim Trad
Área de Concentração:
Ciências Sociais em Saúde
Linha de Pesquisa:
Comunidade, Família e Saúde
Salvador – Bahia
Setembro, 2014
Sumário
Considerações Iniciais 02
A Identidade Narrativa 10
O Cenário Relacional 12
Considerações Finais 14
Referências 15
RESUMO
As identidades são formadas no âmbito das narrativas com múltiplas configurações
mutáveis temporal e espacialmente. A dimensão "narrativa" da identidade supõe que a
ação só pode ser inteligível se reconhecermos as várias narrativas ontológicas e
públicas. O indivíduo não age tomando como base o resultado de uma categorização de
si próprio, suas ações sociais emergem de um contexto presente na sua história de vida.
Portanto, a abordagem da identidade narrativa considera o ator nas relações e histórias
que mudam ao longo do tempo e do espaço, não pressupondo que irá agir de maneira
uniforme e previsível, superando a estabilidade categórica. Possibilita uma mudança na
interpretação da ação, ao sair do foco de uma categoria a priori e focar as narrativas de
significado contingentes. Com base em revisão de literatura, objetiva-se à luz das teorias
sobre identidade narrativa compreender modos de vida de famílias agricultoras. A
terminologia “agricultura familiar” emerge no país na década de 1990. Popularmente
conhecido como aquele produtor que cultiva, juntamente com os entes da sua família,
para autoconsumo e vende o excedente da sua produção, o “agricultor familiar” emerge
como uma nova categoria não restrita às noções de pequeno produtor ou trabalhador
rural. As estratégias voltadas para o fortalecimento da agricultura familiar no país
vinculam-se tanto ao fortalecimento da economia local, à geração de emprego e renda e
ao combate à pobreza rural, quanto à promoção da alimentação adequada e saudável.
Esses são os pressupostos circundantes às políticas públicas, entretanto, reflete-se se e
como as famílias vivenciam tal perspectiva. Se a narratividade guia a ação e contribui
para a constituição das identidades, como estes sujeitos se identificam nos universos
simbólicos das suas narrações? Espera-se problematizar tal questionamento tomando-se
como base a abordagem (auto)biográfica.
1
Considerações Iniciais
2
(PNAN), a Promoção da Alimentação Adequada e Saudável é concebida como uma das
vertentes da Promoção à Saúde, sendo esta compreendida como:
3
especial com a aprovação da Lei 11.326 de 24 de julho de 2006, a qual estabelece as
diretrizes para a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos
Familiares Rurais. De acordo com o Art. 3° da referida Lei, agricultor familiar e
empreendedor familiar rural são considerados aqueles indivíduos que praticam
atividades no meio rural e atendem ao mesmo tempo aos seguintes requisitos: não são
proprietários de área maior do que quatro módulos fiscais; utilizam predominantemente
mão de obra dos membros da família nas atividades econômicas, dirigindo com o apoio
destes os seus estabelecimentos ou empreendimentos, de onde o percentual mínimo da
renda familiar é originado (BRASIL, 2006b).
Popularmente conhecido como aquele produtor que cultiva, juntamente com os
entes da sua família, para subsistência (autoconsumo) e vende o excedente da sua
produção, o “agricultor familiar” emerge como uma nova categoria não restrita às
noções de pequeno produtor ou trabalhador rural. Vale sinalizar que no Brasil, o
universo da agricultura familiar é considerado heterogêneo, quando se compara este tipo
de atividade nas distintas regiões do país no que se refere à: disponibilidade de recursos,
acesso ao mercado, capacidade de geração de renda e acumulação, sistemas produtivos
adotados e grau de capitalização (ABRANDH/IBASE, 2012).
Diante do exposto, o trabalho das famílias agricultoras na produção de alimentos
é situado como relevante para o que se concebe como promoção da saúde da população
brasileira. Esses são os pressupostos circundantes às políticas públicas, entretanto,
reflete-se se e como as famílias vivenciam tais perspectivas. Se a narratividade guia a
ação e contribui para a constituição das identidades, como estes sujeitos se identificam
nos universos simbólicos das suas narrações? Quais seriam as perspectivas de diferentes
gerações (idosos, adultos e adolescentes) e gêneros sobre a temática em questão? Longe
de responder a tais questionamentos, espera-se, a partir do arcabouço teórico dos
estudos interpretativos, abordar caminhos para esta compreensão.
Conforme mencionado, à luz das teorias identidade narrativa, espera-se ter
subsídios para compreender modos de vida de agricultores familiares, por meio das suas
histórias de vida (familiares/alimentares) com base em um recorte geracional e de
gênero. Para tanto, tomaremos como referências os trabalhos de Margaret R. Somers
(1994) – The narrative constitution of Identity: A Relational and Network Approach,
Elliot G. Mishler (2002) – Narrativa e Identidade: a Mão Dupla do Tempo e José
Manuel Oliveira Mendes (2002) – O desafio das Identidades.
4
Em específico sobre o trabalho de Somers (1994), vale contextualizar que a
autora faz uma ampla revisão de literatura sobre o tema para fundamentar o conceito de
identidade narrativa e trazer, através do conceito de narrativa, uma proposta de
reconfiguração ao estudo sobre identidade. Neste sentido, a livre tradução do seu artigo
e a extensa utilização de seu trabalho neste ensaio exige que o leitor, caso necessário,
busque no original as referências por ela citadas para maiores esclarecimentos.
A respeito do estudo sobre narrativa, Somers (1994) situa que, embora seja uma
abordagem originalmente utilizada por historiadores, foi apropriada e reconceitualizada
por outras disciplinas em seus quadros epistemológicos, a exemplo da medicina,
psicologia social, sociologia e antropologia. As diversas disciplinas buscaram a
superação do conceito, que estava limitado a um método ou forma de representação, e
contribuíram para formulação de novas abordagens, que definiram a narrativa e a
narratividade como conceitos da epistemologia social e da ontologia social. De acordo
com a autora, houve a transição de um foco da “narratividade representacional” para a
“narratividade ontológica”. (SOMERS, 1994)
Com os novos trabalhos neste campo, postularam que é através da narratividade
e da narrativa que constituímos nossas identidades sociais e podemos chegar a conhecer,
compreender e dar sentido ao mundo social. A autora contextualiza o argumento de que
todos nós, por estarmos localizados ou nos localizarmos em narrativas sociais
(raramente criadas por nós próprios), chegamos a ser quem somos, ainda que de forma
efêmera, múltipla e em constante mudança. (SOMERS, 1994)
A “nova narratividade ontológica” contribui então com o estudo sobre a
formação da identidade, por meio de abordagem relacional e histórica, a qual evita a
rigidez categórica. Isso decorre da ênfase na inserção da identidade em redes de relações
que se sobrepõem e que mudam ao longo do tempo e do espaço. Assim, direcionamos
nossa atenção à nova dimensão ontológica dos estudos sobre narrativas, ao vincular
pesquisas sobre a ação e a identidade à análise narrativa, o que possibilita o
desenvolvimento de pesquisa histórica e empiricamente pautada na ação social e na
agência social. (SOMERS, 1994)
5
Segundo Somers (1994), os estudiosos contribuíram para postular algo mais
substancial sobre a narrativa, situando que ela é uma condição ontológica da vida social.
Nos chamam atenção para o fato de que os relatos e histórias guiam a ação, sendo que
as pessoas constroem suas múltiplas e mutáveis identidades, sendo localizadas ou
localizando-se dentro de um repertório de histórias “enredificadas”. Neste sentido, as
pessoas agem ou não de uma determinada maneira em função das projeções,
expectativas e memórias derivadas de uma multiplicidade de repertórios de narrativas
sociais, públicas e culturais, as quais, embora limitadas, estão disponíveis. (SOMERS,
1994)
Para Somers (1994), apesar de existirem questões paradoxais que levam alguns
cientistas sociais a se distanciarem dos novos estudos sobre narrativa, tem havido
interesse na sociologia por temas abordados pelos estudos sobre a formação da
identidade. Com base na autora, o modelo que associa de um lado a ontologia e a
identidade à filosofia ou psicologia teórica e de outro a ação aos interesses, normas ou
comportamento, é limitado e priva os cientistas sociais de uma análise mais profunda,
possível por meio da vinculação entre os conceitos de identidade e ação. Assim, afirma
que é viável ampliar o foco analítico ao estudar a ação social à luz de uma lente que
permite também dar foco à constituição social da identidade e à ontologia social.
(SOMERS, 1994)
De acordo com a autora, a narrativa possibilita a compreensão dos eventos por
meio da conexão e relacionalidade entre as partes, as quais levam à configuração de
uma rede social, de uma constelação de relacionamentos, cravadas no tempo e no
espaço e composta por práticas simbólicas, institucionais e materiais. Assim, devemos
considerar, com base na narratividade, que o significado de qualquer evento possui
relação temporal e espacial e que estes são transformados em episódios pela
conectividade das partes através do processo de “enredificação”. A enredificação faz
com que instâncias independentes ganhem significação, e não a sua ordem cronológica,
e permite a construção de uma rede ou configuração de relacionamentos significante.
(SOMERS, 1994)
Sobre a questão da “mão dupla do tempo”, Mishler (2002, p.104-106) afirma
que para entender a maneira como as pessoas aprendem, mudam e se desenvolvem é
necessário considerar um alternativa ao modelo causal pautado na ordem cronológica do
“tempo do relógio”. Para o autor “o tempo narrativo é central para a maneira como uma
6
história é estruturada e entendida”, sendo crucial uma alternativa que dê aos indivíduos
“espaço para seus modos de reinterpretar o significado de eventos passados em termos
de consequências posteriores, por meio das quais eles redefinem quem são e revisam os
enredos de suas histórias de vida”. Neste sentido, alerta que o ato de narrativizar é capaz
de reatribuir significado aos eventos, não por considerar o lugar temporal de um evento
em uma sucessão dos demais, já que para ele o ordenamento temporal é uma simples
estratégia para organizar os diferentes eventos em um enredo.
Para Somers (1994) a enredificação causal (emplotment causal) contribui para
que acontecimentos ou experiências não sejam categorizados apenas de acordo com um
esquema taxonômico e trata da razão pela qual a narrativa tem uma determinada trama.
Conforme aborda, o indivíduo não age tomando como base o resultado de uma
categorização de si próprio, suas ações sociais emergem de um contexto presente na sua
história de vida, na qual (co)existem uma série de episódios. Assim, conferir
historicidade e relacionalidade no contexto da narrativa é fundamental para sua
compreensão e é por meio do enredo sequencial e da localização temporal que os
indivíduos conseguem explicar as relações entre os eventos. Neste sentido, o enredo
pode ser compreendido como a sintaxe ou a lógica da narrativa. (SOMERS, 1994)
A seleção dos acontecimentos da vida social, a sua organização em uma ordem e
a avaliação de arranjos e combinações fazem parte da formulação da narratividade, a
qual é relativamente abstrata. Assim, a possibilidade avaliativa no processo de
enredificação permite a definição temática do enredo e uma apropriação seletiva para
construção das narrativas. Conforme elucida Somers (1994), as narrativas são
estruturadas pela enredificação, relacionalidade, conectividade e apropriação seletiva,
sendo possível identificar os principais tipos de narratividade, a saber: narrativas
ontológicas, narrativas públicas, metanarratividade e narratividade conceitual.
As narrativas ontológicas são aquelas histórias elaboradas pelos atores sociais
para darem sentido às suas vidas, para saberem como agir e para definirem quem são, o
que consequentemente leva à produção de novas narrativas e novas ações. Este tipo de
narrativa, ao mesmo tempo que afeta, é afetada pelas crenças, atividades e consciência.
Desta maneira, a narrativa é condição para a ontologia, assim como a ontologia é
condição para a narrativa, sendo a relação entre ambas processual e mutuamente
constitutiva. (SOMERS, 1994)
7
Segundo a autora, as identidades, apesar de poderem ser efêmeras, ambíguas,
múltiplas ou contraditórias, são conferidas pela localização narrativa. Portanto, a forma
como as pessoas entendem o seu lugar em um número de narrativas dadas pode
influenciar a maneira como agem ou deixam de agir, embora estas mesmas narrativas
possam ser fragmentadas, parciais ou contraditórias. Para atender às suas próprias
identidades os agentes ajustam as suas histórias e, para atender às histórias,
“personalizam a realidade”. As narrativas ao longo do tempo são então transformadas e
sustentadas pelas teias intersubjetivas de relacionalidade, sendo as narrativas
ontológicas, sociais e interpessoais, acima de tudo. Assim, para Somers (1994), se
quisermos explicar a agência devemos reconhecer o lugar e a importância da narrativa
ontológica na vida social.
Já as narrativas públicas são aquelas relacionadas às formações culturais e
institucionais e como todas as narrativas possuem em suas histórias drama, enredo,
explicação e critérios seletivos. Assim, são maiores que o único indivíduo, tratando das
narrativas sobre a própria família, o local de trabalho (mitos organizacionais), a igreja, o
governo e a nação. Podem ser exemplificadas por meio da grande mídia ou do governo
quando apresentam histórias sobre eventos como a origem dos distúrbios sociais ou o
desemprego. (SOMERS, 1994)
A metanarratividade trata das “grandes narrativas” nas quais estamos imersos.
Estas são construídas com base em conceitos e esquemas explicativos que são em si
mesmo abstrações, o que talvez caracterize o seu aspecto mais paradoxal, o de
“desnarrativizar”. Por exemplo, conceitos e teorias sociológicas como “o progresso”, “a
industrialização” e “o iluminismo”, são codificados como aspectos destas narrativas, as
quais possuem todos os componentes necessários da narratividade (ação, personagens,
enredificação causal, principais linhas do enredo e transformação), no entanto deixam
escapar o elemento crucial de uma narratividade conceitual. (SOMERS, 1994)
O desafio da narratividade conceitual é conceber um vocabulário a ser usado
para reconstruir e enredar, ao longo do tempo e do espaço, as narrativas ontológicas e os
relacionamentos entre os atores históricos e as narrativas públicas e culturais que
informam suas vidas. A ser usado também para reconstruir e enredar a interseção
fundamental entre estas narrativas com outras forças sociais relevantes. Assim, na
narratividade conceitual estariam incluídos os conceitos e explicações construídos por
8
pesquisadores sociais, os quais devem considerar nestes as forças sociais, a exemplo dos
padrões de mercado e das práticas institucionais. (SOMERS, 1994)
Segundo Somers (1994), isso deve ser levado em consideração porque nem a
ação social, nem o fortalecimento institucional é exclusivamente produzido através de
narrativas públicas e ontológicas. A autora conclui que o desafio conceitual da
narratividade é desenvolver um vocabulário analítico social no qual estejam
acomodadas as contendas que a vida social, as organizações sociais, a ação social e as
identidades sociais representam narrativamente. Assim, este vocabulário é construído
através de narrativas ontológicas e públicas, de maneira temporal e relacional.
(SOMERS, 1994)
De acordo com Somers (1994), a narratividade conceitual é a mais importante,
embora os outros tipos sejam relevantes para a teoria social, porque é definida pelas
seguintes características: temporalidade, espacialidade, enredificação, relacionalidade e
historicidade. A autora, considerando a narrativa como uma característica constitutiva
da vida social, sugere que desenvolver conceitos que permitam capturar a narratividade
por meio da qual a agência é negociada, as identidades são construídas e ações sociais
são mediadas, é o primeiro desafio analítico. Sugere também a identidade narrativa e o
cenário relacional como os dois componentes centrais da narratividade conceitual.
(SOMERS, 1994)
Somers (1994) defende a reconfiguração do estudo sobre a formação da
identidade através do conceito de narrativa e propõe a identidade narrativa como
conceito chave para alcançar esta reconfiguração. Para a autora estudos sobre a
formação da identidade são de grande contribuição para nossa compreensão da agência
social, entretanto a tendência de confundi-las com categorias singulares “fixas”, como
as de raça, sexo, classe ou gênero, tem sido um problema recorrente. A crítica está na
superação do pressuposto de que pessoas em categorias sociais similares e em
semelhantes experiências de vida (sexo, cor, geração, orientação sexual) atuarão em
razão de atributos comuns. (SOMERS, 1994)
Segundo explica, uma maneira de evitar os riscos de enrijecer aspectos da
identidade em uma “entidade categórica enganadora” é incorporar as dimensões
categoricamente desestabilizadoras de tempo, espaço e relacionalidade na concepção do
núcleo da identidade. Assim, a nova proposta teórica propõe que o sentido das
características “desvalorizadas” da alteridade sejam transformada em um novo ideal de
9
individuação, restaurando a dignidade das diversas qualidades da alteridade. Desta
maneira, a autora busca historicizar a compreensão da identidade na tentativa de
combinar os estudos sobre este tema com a perspectiva da “narratividade conceitual”.
(SOMERS, 1994)
Mendes (2002) ao tratar da problemática da identidade, considera que ela é
distribuída, construída e reconstruída nas interações sociais. De acordo com o autor, o
indivíduo forma sua identidade por meio dos conflitos entre os distintos agentes e
lugares de socialização, entretanto, para manutenção de um sentimento contínuo de
permanência identitária é necessário trabalho biográfico constante. Assim, o indivíduo
elabora narrativamente esta permanência, sendo tal sentimento expresso pela construção
e ressignificação de uma identidade narrativa.
Para Mendes (2002), Mikhail Baktine e Paul Ricoeur são autores que avançam
nos estudos sobre este tema. Pautando-se na obra de Stuart Hall (1996 apud 2002, p.
522) afirma que “as identidades constroem-se no e pelo discurso, em lugares históricos
e institucionais específicos, em formações prático-discursivas específicas e por
estratégias enunciativas precisas”. Com base no enfoque de Schwalbe (1993 apud
MENDES 2002), situa que o sujeito necessita manter uma coerência interna, embora os
processos identitários exijam flexibilidade, adaptação e negociação permanentes. Desta
maneira, as identidades seriam então signos do valor pragmático do indivíduo e se
encontrariam pautadas nos significados derivados da pertença deste a determinadas
categorias ou a aspectos da sua biografia, os quais são culturalmente significantes.
A Identidade Narrativa
10
A narratividade conceitual é usada em abordagens atuais sobre a agência social e
permite transcender a imutabilidade da abordagem categórica ou essencialista de
identidade. A abordagem da identidade narrativa opõe-se à estabilidade categórica e
considera o ator nas relações e histórias que mudam ao longo do tempo e do espaço, não
pressupondo que irá agir de maneira uniforme e previsível. As identidades são então
formadas no âmbito das narrativas com múltiplas configurações mutáveis
temporalmente e espacialmente. (SOMERS, 1994)
Tomando-se como exemplo questões de gênero, destaca-se que na perspectiva
da identidade narrativa, a relacionalidade é usada de forma analítica e não de forma
normativa, como nas teorias das políticas de identidade. Assim, todas as identidades,
sejam homens ou mulheres, devem ser analisadas no âmbito de matrizes culturais e
relacionais, compreendendo que estas não existem fora desta complexidade. Nesta
abordagem assume-se, portanto, que a ação social só pode ser inteligível se
reconhecermos que as pessoas são orientadas a agir com base nas relações estruturais e
culturais em que estão inseridas, bem como pelas histórias através das quais elas
constroem, constituem suas identidades (e menos por causa dos interesses que
imputamos a elas). (SOMERS, 1994)
A abordagem da identidade narrativa possibilita aos pesquisadores considerar os
movimentos pertinentes aos episódios de vida e aos relacionamentos, de caráter
processual e sequencial, e situar as pessoas nestes. Assim, assume que as pessoas agem
de forma particular, indicando o não fazê-lo como uma violação sobre a noção, sobre a
ideia que o indivíduo possui sobre si próprio em um determinado tempo e lugar. Esta
mesma noção sobre si pode ser completamente diferente em outras circunstâncias de
tempo, espaço e contexto, já que as identidades narrativas são constituídas e
reconstituídas no tempo e ao longo deste. (SOMERS, 1994)
Segundo Somers (1994), a dimensão "narrativa" da identidade supõe que a ação
só pode ser inteligível se nós reconhecermos as várias narrativas ontológicas e públicas
nas quais os atores são “enredificados”. Desta maneira, a enorme gama de instituições e
práticas políticas e sociais, das quais o nosso mundo social emerge, media as narrativas.
De acordo com a autora,
Narrative identities are constituted by a person's temporally and
spatially variable place in culturally constructed stories composed of
(breakable) rules, (variable) practices, binding (and unbinding)
institutions, and the multiple plots of family, nation, or economic life.
(SOMERS, 1994, p. 625)
11
O Cenário Relacional
12
capazes de produzir um resultado decididamente diferente dos anteriores. A partir dessa
perspectiva, a mudança social é entendida através das transformações nas relações entre
os arranjos institucionais e as práticas culturais que constituem uma ou mais situações
sociais, e não como a evolução ou revolução de um tipo societário para outro.
(SOMERS, 1994)
Segundo Somers (1994), a representação espacial do cenário relacional pode ser
“visualizada” através de uma matriz de instituições conectadas umas às outras em
padrões variáveis contingentes, que interagem entre si em todos os pontos de
intercruzamento desta. Assim, não deve ser “imaginada”, concebida como uma
metáfora mecanicista, mas sim em uma perspectiva geométrica. Um cenário reúne ao
mesmo tempo os efeitos das práticas demográficas de uma comunidade, do mercado
externo e de políticas públicas locais, sendo que em cada um destes “fatores” existe uma
expressão narrativa que abarca dimensões simbólicas, geográficas e demográficas.
Assim, em um mesmo cenário é possível cruzar diversos níveis de análises. (SOMERS,
1994)
Em relação a esse caráter de transversalidade do cenário relacional a autora
situa,
This cross-cutting character of a relational setting assumes that the
effect of any one level (for example, the labor-market sector) can only
be discerned by assessing how it is affected interactively by the other
relevant dimensions, such as gender and race. (SOMERS, 1994, p.
627)
13
reivindicadas nos estudos de gênero e nas teorias da crítica racial. Quando uma
identidade não está expressa em uma narrativa pública dominante, as “contra-
narrativas” se tornam uma estratégia crucial. (SOMERS, 1994)
A autora ressalta ainda que os tipos de narrativas escolhidas para darem sentido
às situações das vidas das pessoas e os enredos particulares que dão significados a estas
narrativas serão sempre uma questão empírica e não “pressuposicional”. Assim, não
devem ser antecipadamente determinados. Afirma também que optar por narrativas para
expressar as múltiplas subjetividades é uma forma de rejeitar a neutralidade e aparente
objetividade comumente enraizada nas narrativas mestras (master narratives).
(SOMERS, 1994)
Tomando-se como exemplo a abordagem sobre classes sociais e classes
trabalhadoras, vale sinalizar que as identidades derivam do lugar que o ator social ocupa
em múltiplas narrativas simbólicas e materiais, nas quais estão inseridos ou nas quais se
identificam. Não derivam, portanto, dos atributos conferidos em um estágio do
desenvolvimento social, a exemplo das sociedades pré-industriais ou modernas, ou da
experiência de uma categoria social, como de artesãos tradicionais ou operários de
fábrica. Indivíduos de uma mesma classe trabalhadora podem diferir radicalmente se
levam em consideração os direitos das leis cidadãs, bem como se suas identidades e
atividades políticas variam a depender do cenário em que se encontram. Assim, no que
tange às identidades e à ação social, deve-se ter fascinação para variação das
contingências da agência e menos interesse no que antes seria considerado um “desvio”.
(SOMERS, 1994)
Considerações Finais
Referências
1. ABRANDH/IBASE. Relatório de Pesquisa: Agricultura Familiar, Alimentação
Escolar e a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada.
Financiamento: CONAB/FNDE. Brasília: 2012.
2. BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de
Atenção Básica. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Série B. Textos
Básicos de Saúde. Brasília: 2012.
3. BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de
Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília: 2006a.
4. BRASIL. Lei 11.326 de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes para a
Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais.
Diário Oficial da União 2006b.
5. CONSEA. A Segurança Alimentar e Nutricional e o Direito Humano à
Alimentação Adequada no Brasil. Indicadores e Monitoramento da Constituição
de 1988 aos dias atuais. Brasília: 2010.
6. CONSEA/ PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Building up the National Policy
and System for Food and Nutrition Security: the Brazilian experience. Brasília,
November 2009.
7. CONSEA. Grupo de Trabalho Alimentação Adequada e Saudável, Relatório
15
Final. Março de 2007.
8. MENDES, J.M.O. O desafio das Identidades. In: B.S. Santos (org.) A
Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez Editora, 2002, p. 503-
540.
9. MISHLER, E.G. Narrativa e Identidade: a Mão Dupla do Tempo. In: In: L.P.M.
Lopes e L.C. Bastos (org.) Identidades. Recortes multi e interdisciplinares.
Campinas: Mercado de Letras (CNPq), 2002, p.97-119.
10. SOMERS, M.R. The narrative constitution of Identity: A Relational and
Network Approach. Theory and Society, 23 : 605-649, 1994.
16
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
JANDERSON LACERDA TEIXEIRA1.
1.FACULDADE DIADEMA, DIADEMA - SP - BRASIL.
Este trabalho tem como principal objetivo responder a seguinte questão: “Em que medida projetos como o
Programa Escola da Família- PEF, contribuem para a democratização do espaço escolar? Para isso buscaremos
compreender como funciona o Programa Escola da Família – PEF, implantado por iniciativa da Secretaria
de Educação do Estado de São Paulo – SEE, desde o ano de 2003, em parceria com a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO até o ano de 2006 e sob responsabilidade,
desde então, do Fundo para o Desenvolvimento da Educação – FDE. Este estudo será desenvolvido com os
seguintes procedimentos metodológicos: a partir de um olhar autobiográfico considerando minha atuação
como educador profissional desde o ano de 2007. Análise bibliográfica, análise documental e empírica
sobre o PEF; a partir de dados de observações participativa; de documentos sobre o Programa e da análise
de entrevistas com dois expoentes da Academia, o Professor Dr. Décio Azevedo Marques de Saes e o
Professor Dr. Paolo Nosella. Os entrevistados foram escolhidos por sua filiação teórica na expectativa de
que as mesmas se manifestassem nas respostas obtidas, oferecendo assim oportunidade de cotejar pontos
de vista fundamentados em referenciais teóricos diferentes.
Palavras-chave: Programa Escola da Família; Democratização do Espaço Escolar; Educação não Formal
EIXO 1 - PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
O projeto epistemológico da pesquisa (auto)biográfica enquanto fundamento teórico para pensar a experiência
musical pode suscitar um modo sensível e profundo de compreensão da experiência humana. O objetivo deste
trabalho é analisar a potência teórica e riqueza compreensiva da abordagem (auto)biográfica no estudo dos processos
narrativos no campo da educação musical; constitui-se de um corpo teórico consistente capaz de oferecer caminhos
ao desenvolvimento da pesquisa em Educação Musical, seus princípios epistemológicos e possibilidades enquanto
projeto de formação docente. O estudo é guiado pelas questões: quais os desdobramentos da abordagem (auto)
biográfica no campo da Educação Musical? Quais seriam os princípios fundamentais e encaminhamentos específicos
desse enfoque? O que pode ser conhecido a partir desse tipo de pesquisa e como ela pode ser aprendida pelos novos
pesquisadores? Analisa os fundamentos teóricos e epistemológicos da Pesquisa Narrativa em Educação Musical
propostos por Margaret Barret e Sandra Stauffer (2009 e 2012), elegendo como critérios de análise os argumentos
históricos, os conceitos de experiência, conhecimento, temporalidade e ética como prática narrativa. Contribuíram
na construção teórica deste trabalho principalmente Abrahão (2006 e 2009), Passeggi (2010), Pinnegar e Daynes
(2007). Os encaminhamentos deste estudo apresentam os aportes do método (auto)biográfico como oportunidades
promissoras para a investigação em Educação Musical, ao mesmo tempo considera o estudo sobre o significado da
experiência sensível da música como uma dimensão que amplia compreensão ética e estética da existência humana
no campo do método (auto)biográfico.
Palavras-Chave: Abordagem (auto)biográfica, Fundamentos Epistemológicos, Educação Musical.
O campo da pesquisa qualitativa é um terreno complexo que abriga variadas orientações filosóficas e tendências
epistemológicas. Em vista de diversificadas nuanças, a definição de pesquisa qualitativa precisa considerar o contexto
histórico do seu surgimento, pois ela tem significados distintos nos diferentes períodos que marcaram a história
das escolhas metodológicas para interpretar os materiais de pesquisa. O material empírico da pesquisa qualitativa,
obtido por meio de um estudo de caso, de experiências pessoais, introspecções, história de vida, textos oriundos
de observações e textos históricos, interativos e visuais envolvem significados e problemáticas ligadas à vida
dos indivíduos. (DENZIN; LINCOLN, 2006). Enquanto campo de investigação, a pesquisa qualitativa atravessa
muitos temas, sem priorizar nenhuma prática metodológica ou prática interpretativa, sento até mesmo difícil definir
claramente em qual teoria ou paradigma se apoia. (DENZIN; LINCOLN, 2006).
Um marco importante na história da pesquisa qualitativa foi a influência da Escola de Chicago. Becker (1996)
comenta que na década de 30 os sociólogos da Escola de Chicago1 argumentaram sobre a necessidade de pautar
os estudos sobre a vida de grupos humanos com a utilização de métodos qualitativos e estratégias de pesquisa
específicos e adequados às Ciência Sociais. Nesse período, Chicago era uma cidade que abrigava muitos imigrantes
sendo eles, juntamente com o problema da pobreza, a razão do interesse pelos problemas sociais.
Becker (1996) entende que a compreensão da sociedade e de ação social teve grande avanço depois que os
pesquisadores da Escola de Chicago elaboram o conceito de “definição de situação”. Segundo o autor, Thomas
William, o pioneiro nos estudos dessa área, defendia que “se um homem define uma situação como real, ela se torna
real em suas consequências”. Dentre os trabalhos desse período destaca-se o de Florian Znaniecki, que reuniu em
cinco volumes entrevistas e histórias de vida de camponeses que viviam na Polônia e aqueles que haviam emigrado
para os Estados Unidos.
As discussões em torno dos métodos trouxeram desafios emergentes que influenciaram o panorama da época e as
perspectivas futuras para o campo. Conforme Becker (1996, p. 188) a Escola de Chicago foi importante no campo da
pesquisa qualitativa, porque fundou “um modo de pensar, uma maneira de abordar problemas de pesquisa que estão
muito vivos e presentes em boa parte do trabalho feito hoje em dia.”
A nova sociologia, conforme salienta Vidich e Lyman (2006), tomou para si a missão de analisar e compreender os
1 A escola de Chicago foi importante principalmente pela prática e métodos de pesquisa que influenciaram inúmeros trabalhos da
área da sociologia e antropologia (BECKER, 1996)
padrões de conduta, processos da sociedade e a base de valores e atitudes sobre os quais repousam a participação
individual e coletiva da vida social. Os pesquisadores dessa área deveriam ser sensíveis e curiosos não só para o que
é imediatamente visível, mas serem capazes de ter compreensão e empatia para compreender os valores do outro.
Essas habilidades seriam essenciais para compreender o mecanismo dos processos sociais que permitem entender
porque os atores e os processos são como são. A questão que perdura até a atualidade se traduz pela dúvida “como
podemos compreender o outro quando os valores do outro não são nossos valores?”. Acompanhando as ideias de
Vidich e Lyman (2006) entendemos que as pessoas são orientadas por seu próprio passado social e cultural. Ainda
que os pesquisadores sejam guiados por valores pessoais, estes não são exclusividade de sua própria experiência.
Do ponto de vista de Gergen e Gergen (2006), as influências mais significativas que incidiram sobre a pesquisa
qualitativas provém do diálogo intenso com a linguagem, de modo especial da relação da linguagem com o mundo,
ou o mundo que é criado pela linguagem. Conforme os autores, nossa compreensão do mundo não resulta do mundo
em si mesmo, mas de nossa imersão na tradição de práticas culturais que herdamos das gerações anteriores. Nossos
relatos somente são compreensíveis quando se aproximam das convenções culturais. É das relações com comunidades
interpretativas que provém o sentido e de onde deriva a nossa construção de mundo. A consequência desse modo
de conceber a realidade trouxe a crise nos fundamentos dos método de pesquisa, uma vez que, se não há meios
de combinar corretamente as palavras para definir mundo, então a garantia de validade científica está perdida. As
tensões, as contradições e as hesitações que surgem no campo da pesquisa qualitativa são vistas pelos autores como
a matriz das incertezas que nos fazem cruzar os limites do que está estabelecido, pois é “pela apropriação, reflexão,
criação, que se que se extrai a vitalidade da invenção qualitativa” (p. 385)
Ainda de acordo com Gergen e Gergen (2006, p. 384) as metodologias tornaram-se cada vez mais sensíveis à relação
dos pesquisadores com seus pesquisados, à relação do pesquisador com sua audiência e à negociação dos significados
dentro dessa relação. Assim, a atividade individual deixa de ser a prioridade, para voltar-se ao processo relacional. É
nesse contexto que as inovações narrativas “subvertem o individualismo metodológico, elas passam a gerar uma nova
forma de consciência. O que se celebra não é a mente individual, mas a conectividade integral”
As promessas de um paradigma alternativo, como descrevem Brockmeier e Harré (2003) parecem encontrar no
estudo das narrativas uma forma de abordar os padrões dinâmicos do comportamento humano. O que tornou a
pesquisa narrativa tão produtiva nas ciências humanas deve-se às características da própria narrativa enquanto
discurso. Os autores situam o interesse pela narrativa na área das ciências humanas como uma descoberta da década
de 1980, momento em que a explicação sobre a natureza e as condições da existência humana pôde ser pesquisada
com base no parâmetro linguístico, psicológico, cultural e filosófico. Em meio as mudanças emergem as formas e
gêneros da narrativa.
De acordo com Bolivar (2002), a “virada narrativa”, como esse movimento se tornou conhecido, abriu espaço para
a perspectiva interpretativa, a partir da qual os fenômenos sociais são compreendidos como textos e podem ser
autointerpretados, enaltecendo seu valor e significado, a partir dos próprios autores do processo. Do mesmo modo,
tem crescido o interesse pelo recorte hermenêutico interpretativo nas ciências sociais e, dentro dele, o enfoque
biográfico-narrativo. Nesse sentido, contar as próprias experiências e interpretar os acontecimentos da vida a partir
das histórias narradas tornou-se uma perspectiva de investigação. O autor cita Gadamer e Paul Ricoeur como
responsáveis pelos fundamentos dessa linha de investigação, ao lado de Jerome Bruner, por suas contribuições sobre
o modo narrativos de construir o conhecimento.
A bateria de testes desse autor desencadeou estudos em diferentes áreas do conhecimento musical e os pesquisadores
da área puderam questionar a ideia de “talento musical” e elaborar projetos para medir e avaliar as aptidões musicais,
como a discriminação e memória rítmica, melódica e harmônica.
A concepção de realidade como um fato em si mesmo e de experiência entendida como um exercício, gerou a
compreensão de que quanto maior a sensibilidade dos ouvintes para discriminar certas diferenças sonoras, maior
seria a sua sensibilidade para ouvir e perceber a obra musical (SEASHORE, 1938). Essa epistemologia apoia-se na
neutralidade da ciência e busca o “conhecimento verdadeiro”. As pesquisas na área da Educação Musical que adotam
a abordagem psicométrica apoiam-se na relação direta entre a estrutura do som e a sensibilidade auditiva, ou entre a
realidade física e a sensação aural. No Brasil, a bateria de testes de Arnold Bentley (1967) teve forte repercussão nos
estudos sobre a Educação Musical, inclusive na definição dos conteúdos específicos e modos de ensinar.
As críticas ao trabalho de Seashore trazem para o terreno da música as discussões sobre a generalidade dos resultados
da pesquisa e o caráter histórico e temporal dos conceitos, no caso, do conceito de conduta musical. Robert Walker
(1996), argumenta que as teorizações sobre o comportamento musical devem estar inevitavelmente enraizadas na
cultura. Sua crítica ao trabalho de Seashore incide precisamente na tendência em tornar universal o comportamento
que é próprio da cultura ocidental. A questão levantada por Walker “podemos compreender a música de outras
culturas?” é muito semelhante ao que Vidich e Lyman (2006) destacam como um dos movimentos da nova sociologia
iniciada na “Escola de Chicago: “como podemos compreender o outro quando os valores do outro não são nossos
valores?”. Insere-se também no quadro das pesquisas psicométricas os estudos sobre a mensuração da criatividade,
como influências importantes nas abordagens teóricas das pesquisas em Educação Musical.
A passagem do “número à palavra” pode ser observada nos estudos influenciados pela Psicologia do Desenvolvimento,
que desloca a atenção dos gráficos para as descrições sobre o modo como ocorre o desenvolvimento musical. As
teorias sobre o desenvolvimento da inteligência ocuparam um lugar de destaque nas pesquisa em Educação Musical.
Os pesquisadores Hargreaves e Zimmerman (1994) reconhecem que as teorias de Jean Piaget, Jerome Bruner e Lev
Vygotsky influenciaram as pesquisas na área da Educação Musical de Mary Luise Serafine, Swanwick e Tillman,
David Hargreaves (1986) e entre outros.
Tal como vimos acontecer na “Escola de Chicago”, os pesquisadores da Educação Musical afastaram-se dos
laboratórios experimentais e buscaram outras formas de analisar e compreender os padrões de conduta musical e os
processos de desenvolvimento musical. Esse movimento trouxe consigo a necessidade de considerar o contexto das
pesquisas como valores importantes na compreensão do objeto de estudo. Os pesquisadores, então, substituem os
laboratórios experimentais pela observação sistemática e coleta de dados diretamente no contexto onde eles emergem.
No Brasil, a preocupação com métodos de pesquisa e teorizações acompanha a criação dos cursos de pós-graduação
em música e a criação da Associação Nacional de Educação Musical, em 1991.
A pesquisa de Keith Swanwick e June Tillman (1986) foi importante por várias razões. Pela primeira vez o
desenvolvimento musical foi sistematizado em etapas estruturadas a partir da teoria do desenvolvimento da inteligência
de Jean Piaget. No entanto, a pesquisa de Swanwick e Tillman causou controvérsias no campo da Educação Musical.
Coral Davies (1992), a partir de seu trabalho sobre as invenções das crianças na área do canto, fez críticas veementes
aos resultados da pesquisa daqueles autores quanto à estrutura das composições e à sequência do seu surgimento
na teoria proposta. Em trabalho posterior a esse incidente, Keith Swanwick (1994) dedica-se sistematicamente aos
fundamentos teóricos do seu trabalho. Podemos encontrar na obra citada o que o autor pensa sobre o papel da
teoria na pesquisa, de que modo considera o conhecimento musical e os cuidados referentes ao método de pesquisa
empregado (p. 83-101). Nessa obra, o autor adota uma abordagem mais holística sobre o desenvolvimento musical e
desfaz a ideia de estágio de desenvolvimentos atrelados à idade cronológica.
Tomando como base as reflexões no campo da pesquisa qualitativa, podemos notar que a discussão de fundo que
suscitou críticas ao trabalho de Swanwick e Tillman (1986) encontra sentido na “virada narrativa” caracterizada
pelo reconhecimento da fragilidades dos métodos que pretendem descobrir as “leis e os fatos” e pela crença ainda
persistente na neutralidade científica.
Outra questão que se coloca nesse caso, é a suposta intemporatidade na relação entre pesquisador e pesquisado.
Quando Davies (1992) discorda da idade em que as crianças mostram preocupação com a forma de suas composições,
é de sua própria pesquisa e de suas crianças que ela está falando; o mesmo ocorre com Swanwick (1994), quando
defende seu ponto de vista, inclusive salientando a semelhança entre os resultados obtidos em pesquisa idêntica
desenvolvidas em contexto distinto. No entendimento de ambos, as transformações que ocorrem no comportamento
das crianças pertence a um tempo separado do tempo vivido pelo pesquisador; as mudanças no pensamento do
pesquisador supostamente não teriam afetado o fenômeno estudado. Sendo assim, no que se refere ao paradigma
que dá sustentação à pesquisa, a sequência do desenvolvimento musical admite a possibilidade de haver um tempo
independente, fora do tempo que caracteriza a relação entre o pesquisador e seus pesquisados. O que acabamos de
salientar foi o ponto de desgaste que enfraqueceu as pesquisas piagetianas e outras que se apoiaram somente na
psicologia do desenvolvimento.
De outra parte, com base na literatura analisada, observamos mais recentemente, um redirecionamento das pesquisa
em educação musical do “geral para o particular”, motivadas principalmente pelo interesse em produzir conhecimento
por meio de descrições densas de casos individuais. Diferente dos trabalhos identificados como pesquisa psicométrica,
ou pesquisa preocupada com as “leis e os fatos”, o paradigma que dá sustentação aos novos projetos incorpora os
quatro aspectos apontados por Pinnegar e Daynes (2007) como características da “virada narrativa”.
2 Conforme pesquisa no Diretório dos Grupos de Pesquisa na Plataforma Lattes, em agosto de 2014, há 189 grupos de Educação Musical; 18 grupos apresentam linhas de
Para abordarmos o aporte teórico da pesquisa narrativa em educação musical defendido pelas autoras, escolhemos
para estudo – por sugestão de Margaret Barett, em encontro de orientação3 – o primeiro capítulo da obra “Narrative
Soundings: an anthology of narrative inquiry in music education” intitulado “Resonant work: toward an ethic of
narrative research”.4
A pesquisa narrativa é o movimento mais recente na área da pesquisa em educação musical, motivada pela
necessidade emergente de transformações no modo de conceber a teoria, a política e a prática na educação musical5.
Os fundamentos históricos, ontológicos e epistemológicos da pesquisa narrativa em educação musical defendidos
por Barret e Stauffer permitem situar seus trabalhos no contexto da pesquisa qualitativa, mais especificamente, no
campo da narrativa descrita por Pinnegar e Daynes (2007). A consistência do trabalho das autoras pode ser apreciada
nos conceitos de experiência, concepção de tempo e história, concepção de conhecimento e posicionamento ético na
pesquisa. Juntos, eles formam os eixos que estruturam o paradigma da pesquisa narrativa defendida pelas autoras.
O conceito de experiência provém da filosofia de John Dewey, que da mesma forma apoia os trabalhos de Jean
Clandinin e Michael Connelly (2000) – autores de referência na área da pesquisa narrativa na literatura de língua
inglesa. A experiência é concebida como um processo contínuo e eternamente renovado, de agir e sofrer as influências
do meio ambiente; por ser continua ela é necessariamente cumulativa; o fato físico passa, mas o seu significado e
valor é mantido e integrado ao eu. A partir de Jerome Bruner (1986) as autoras consideram as narrativas “como uma
forma especial de conhecimento, assim com um meio de fazer sentido”6.
Outros autores que se relacionam com as ideias de Dewey contribuem na construção da posição ontológica e
epistemológica do trabalho de Barrett e Stauffer, como Lakoff e Johnson (1999), no que se refere à indissociabilidade
entre o corpo e a mente – uma antiga discussão filosófica sobre a origem do conhecimento humano.
Para abordar o conceito de tempo na compreensão da narrativa, Barrett e Stauffer retomam o modo como Dewey
compreende o tempo na experiência. Segundo ele, “o passado é trazido para o presente, de modo a ampliar e
aprofundar este último”. Nossas vidas se desdobram em narrativas de histórias provisórias e sucessivas, contadas
de diferentes formas e diferentes perspectivas a pessoas diferente. As autoras complementam as ideias de Dewey
assinalando que “a narrativa é temporal na medida em que provê uma oportunidade de revisitar o passado e considerar
suas relações para o presente”. (p. 5).
Considerando a abordagem de Barrett e Stauffer sobre os eixos que dão suporte à investigação narrativa em educação
musical, acreditamos que a contribuição mais fecunda e promissora do seu trabalho está na teorização das dimensões
da ética na pesquisa.
3 A primeira autora do presente trabalho recebeu orientação de Margaret Barrett no período em que foi Professor Visitante na Escola de Música da Universidade de
4 O que seque refere-se a um único texto, razão pela qual as referências não estão sistematicamente registradas.
5 1st International Conference on Narrative Inquiry in Music Education, 5-7 April 2006, School of Music, Herberger College of Fine Arts Arizona State University é
considerada um marco nos estudos do gênero; seguiram-se as publicações em divulgadas em periódicos internacionais
7 Afirmação de Margaret Barett conforme registro da orientação realizada dia 15/03/2014 (Brisbane, Austrália)
aspectos do nosso trabalho que nos causam desconforto” (p. 10). 8
A qualidade resiliência relaciona-se a todo o processo de pesquisa, a todos os momentos em que seja necessário ser
flexível e maleável para recuperar uma experiência ou retomar a caminhada. Um trabalho resiliente é duradouro, mas
não fixo, porque o pesquisador é aberto a novas interpretações e enfrenta a diversidade produzindo resultados novos.
A resiliência, enquanto abertura e flexibilidade, mantém as qualidades relacionais e os fundamentos epistemológicos
da narrativa.
Retomando o que vimos até então, o trabalho ressonante é respeitoso, responsável, rigoroso e resiliente,
como um modo de conceber a ética como pratica na pesquisa.
Referências
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AUTOFICÇÃO COMO PROBLEMA
LUCIENE ALMEIDA DE AZEVEDO1.
1.UFBA, SALVADOR - BA - BRASIL.
Resumo:
Se é verdade que as fronteiras da literatura sempre foram porosas, não é possível deixar de perceber que
na cena literária contemporânea muitos livros publicados nesse início de século acolhem calorosamente o
gênero (auto)biográfico e, ainda assim, parecem negociar uma acomodação no terreno da ficção. Partindo
dessa premissa, gostaria, portanto, de explorar melhor o termo autoficção na tentativa de recensear a
instabilidade conceitual de sua inserção no campo da reflexão contemporânea sobre as escritas de si,
tematizando, por exemplo, as tensões entre o romance autobiográfico e o termo autoficção, como faz o
estudioso francês do termo Philippe Gasparini. Mais do que a importância da nomenclatura, me interessa
o realce que algumas narrativas contemporâneas (seja o livro Divórcio de Ricardo Lísias ou a hexalogia
do norueguês Karl Ove Knausgard) dão à autonarração, ao caráter ensaistico da escrita, que a aproxima do
estado de laboratório, para usar uma expressão do crítico argentino Reinaldo Laddaga, em que é possível
observar o sujeito realizando um trabalho de curadoria de si próprio, recriando anotações, lembranças,
vivências na reconstrução da pessoa que se imagina que se é/foi. Deixando de lado, portanto, a facilidade do
argumento que identifica nessas narrativas a incidência do eu como mera espetacularização de si, é possível
pensar como Alberto Giordano que a própria noção de intimo, muito mais do que servir como marca de
autenticidade, pode levar o leitor a uma imersão imaginativa em outra vida, demonstrando os impasses da
subjetividade em pleno século XXI.
Palavras-chave: AUTOFICÇÃO;AUTONARRAÇÃO;ENSAIO
COMUNICAÇÃO
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
“SAIO DA VIDA PARA ENTRAR NA HISTÓRIA” A NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA NO
DISCURSO POLÍTICO: UM LUGAR DE EMOÇÃO
LUIS ÁLVARO PASSEGGI
UFRN, NATAL - RN - BRASIL.
Resumo:
A última frase da carta-testamento de Getúlio Vargas -- “... saio da vida para entrar na História” -- contém e
sintetiza a proposta do trabalho, a saber, a articulação da narrativa autobiográfica com o discurso político e
as emoções. Fazemos isso de duas maneiras: em primeiro lugar, considerando o discurso político como locus
da narrativa autobiográfica ou, em outras palavras, considerando de que maneira a narrativa autobiográfica
se realiza no discurso político, na complexidade dessa relação. Em segundo lugar, examinando o papel
dos sentimentos e das emoções no entrelaçamento das duas narrativas: a autobiográfica e a política,
as quais podem ser indistinguíveis em vários momentos. Os dados empíricos utilizados para ilustrar a
discussão provêm de dois discursos políticos: a carta-testamento de Getúlio Vargas (1882 - 1954) e o
discurso de renúncia do deputado Severino Cavalcanti à presidência da Câmara (2005), em decorrência do
“mensalinho” -- discursos bastante distantes no tempo, na relevância dos atores, nas emoções manifestadas
e na significação política e social. Esses discursos são examinados como construções textuais / discursivas,
com ênfase nos chamados “enunciados de emoção” presentes na narrativa autobiográfica. Em ambos os
discursos, verifica-se que as emoções são aspectos fundamentais dos efeitos pretendidos pelas narrativas
autobiográficas naqueles contextos políticos e sociais. Para concluir, e retomando o tema do congresso
-- “entre o público e o privado” --, sugerimos o interesse de um estudo amplo e comparativo de outros
universos de discurso públicos, além do político (por exemplo, discursos dos educadores / da educação, da
mídia, etc.) com base na perspectiva proposta: narrativa autobiográfica, universo de discurso e emoções.
Resumo
O presente trabalho procura suscitar algumas reflexões sobre a perspectiva trajetiva da juventude. Essa
atividade foi fomentada com a contribuição teórica de alguns estudos sobre juventude, da sociologia do
cotidiano e também da micro-história. A metodologia desenvolvida no trabalho foi a de pesquisa teórico-
bibliográfica. A noção de juventude remete a uma intensa disputa quando se observa tanto sua temporalidade
diacrônica quanto sua temporalidade sincrônica. Assim, pode-se encontrar diversas concepções que foram
e ainda são construídas em torno do jovem. Não obstante as diversas perspectivas no debate em torno
do conceito de juventude, o sujeito - que o envolve e é envolvido por ele - está presente em todas as
vertentes, por mais que não seja considerado ou não se tenha por protagonista em alguns desses olhares.
Propondo uma metodologia participativa entre pesquisador e pesquisado, a reflexão em pauta busca
debater as vertentes impositivas e procurar um olhar dialógico na construção deste sujeito. A abordagem
da perspectiva do trajeto será aqui pensada a partir do olhar atento às biografias dos sujeitos, relacionando-
as com as dinâmicas locais e com as nuances gerais. A pesquisa com esse enfoque pode colaborar com
uma percepção mais descolada das estabilizações austeras, através da reflexão das realidades vivenciadas
pelos participantes da pesquisa, colaborando para o desenvolvimento de uma compreensão com intenções
finalísticas, ou seja, menos realista/objetiva – já que é impossível obter a realidade em si – e mais dialógica.
As biografias – e os trajetos reescritos nelas – podem ter muito a colaborar na compreensão da juventude,
inclusive para auxiliar nas ações das políticas públicas.
A partir das disputas atuais em torno da infância e da juventude e discordando com uma “fronteira
bem percebida entre esses dois estados [...] tão distintos”, que Ariès acreditava existir, percebe-se, de outro
modo, que as discrepâncias na (in)definição da condição juvenil e também nos papéis desempenhados por
ditos jovens em outros tempos foi expandido sob os auspícios pós-modernos. Os teóricos que pesquisaram
a juventude no final do século XIX e no decorrer do século XX, utilizaram distintas perspectivas de estudo
e compreensão para construir e consolidar uma juventude.
Já no século XIX, a concepção etária, baseada em definições físico-biológicas, utilizando critérios
mediante a idade, estreou os primeiros estudos sobre a condição de juventude. Nesse escopo, “idade juvenil
surgiu como uma definição recorrente que se referia a um período pós-puberdade, entre 15-17 anos e um
limite que variava com a entrada no que seria definido como mundo adulto” (CASTRO, 2006, p. 2).
Esse critério, com esteio etário, foi relativizado “justamente porque as fases da vida [...] têm variado
enquanto tranches de idade ao longo da história (PAIS, 1990, p. 146)”. Dessa forma, dentro da própria
concepção adultocêntrica, as novas dinâmicas culturais, econômicas e sociais alteraram e diversificaram o
tempo de acesso ao mundo adulto, não sendo possível uma delimitação de idade em nenhuma região.
Pensando ainda acerca da perspectiva etária, ao refletir sobre juventude, José Machado Pais realça
duas correntes principais: a corrente geracional e a corrente classista.
De acordo com a reflexão de Pais, a corrente geracional considera que “as descontinuidades
intergeracionais estariam na base da formação da juventude como geração social” (PAIS, 1990, p. 152).
Nesse entendimento, a juventude seria compreendida como um grupo onde os sujeitos possuem idades que
pertencem a um período relativamente curto; onde os indivíduos convergem seus sentimentos dentro da
sociedade de modo distinto das gerações mais velhas e das mais novas; e onde se fixam os membros que
portam referências sociais e culturais diferentes e, muitas vezes, conflitantes com as das outras gerações. Na
corrente geracional se projeta uma cultura juvenil oposta a outras culturas geracionais.
Uma das principais críticas a essa corrente reside na generalização que a mesma promove. Ao se ater
a noção de geração, a análise desconsidera os múltiplos conflitos e disparidades intrageracionais e tende a
promover uma ótica homogênea sobre a juventude. Além disso, nessa perspectiva, existe a aproximação
à concepção de idade, onde se tem a fundamentação do termo geração numa ideia de proximidade etária,
tornando a idade num componente com bastante influência.
Na corrente classista, para Pais (1990, p.158), “as culturas juvenis são sempre culturas de classe”.
Deste modo, as culturas juvenis são compreendidas, muitas vezes, como culturas de resistência e/ou
confrontação. Nesse viés, a juventude seria sempre considerada em seu significado político. Por conta
disso, os teóricos dessa visão sempre voltam seus olhares para os movimentos de resistências ou exóticos
– este último acabava englobado como resistente também, mesmo quando não se enxergava desse modo.
Alguns óbices foram observados, por Machado Pais, nesse enfoque. Os estudiosos dessa corrente
tiveram muita dificuldade em lidar com alguns desvios aos parâmetros do enfoque empregado. As
intercessões extraclasses, elementos comuns aos jovens de condições sociais diferentes, e as divergências
intraclasse, elementos incomuns aos jovens de uma mesma classe, são embaçamentos nessa visão. E, de
forma sintética, o determinismo social induzido nessa perspectiva reduz a preocupação com esses desvios
e com as particularidades dos sujeitos em si, das trajetórias individuais, posto que é a classe que se foca na
narrativa a ser construída por esse belvedere teórico.
Nessa breve introdução foram apresentadas algumas das perspectivas, não de forma exaustiva, em
torno à volatilidade da juventude. Essa polissemia interpretativa da noção juvenil fomenta uma necessidade
de reflexão multidirecional quando se tem como foco esta categoria social. A convergência dos conceitos
de geração e de classe, associada à noção de protagonismo do sujeito conduz à compreensão do que Pais
(1990) e Carrano (2009) denominam de trajetória. Ao ter contato com esta concepção, percebi que havia
uma necessidade de relacionamento e imbricação de perspectivas macro e micro quando fosse trabalhar
com a noção de juventude. Entendi como necessário por conta do dialogismo entre outros enfoques que
é fomentado. E, ainda, acredito que esse olhar possibilita um modo de desvio ou uma forma de dirimir os
obstáculos e problemas encontrados nos enfoques acima apresentados. Porém, como fazer essa interligação?
Não se tem uma resposta pronta e não se sabe se algum dia alguém a vai conseguir. A despeito disso, uma
coisa é importante: a vertente do micro passa pela trajetória de vida dos sujeitos envolvidos e objetivados
nessa disputa conceitual. O olhar, desse belvedere, sobre os trajetos individuais não pode ser evitado ou não
lançado, visto que, além de nos tocar de forma específica, estes trajetos propiciam uma interpretação com
potência holística da juventude.
Trajetória como possibilidade de interpretação
Segundo José Machado Pais, “as ciências sociais exploram muito o ‘objectivo’ e o ‘subjectivo’ mas
muito pouco o ‘trajectivo’” (PAIS, 2005, p. 64). Essa observação do teórico português destaca a necessidade
e a possibilidade de se pensar na multiplicidade: as inserções sociais objetivas relacionadas às contingências
subjetivas engendrando as trajetórias dos sujeitos. Nesta imbricação subjetivo/objetivo que são trilhados os
trajetos onde os jovens passam.
No decorrer do século XX, com maior visibilidade a partir da segunda metade deste século, as
Ciências Humanas têm observado a multiplicação de metodologias e enfoques de pesquisa com a
emergência de vozes antes suprimidas e silenciadas ou ainda de imagens invisibilizadas. A preocupação
com as “microrrealidades” se expandiram nessa variação e expansão paradigmática. No campo dos estudos
históricos, por exemplo, à micro-história coube capitanear essa alteração.
Na teoria da História, a micro-história possibilitou na Historiografia Contemporânea um movimento
diferenciado. Desde o início do século XX, com a virada historiográfica da Escola de Annales, novas
abordagens foram colocadas em práticas e o campo do estudo histórico se ampliou para além das grandes
narrativas. As conexões da Nova História Cultural e da História das Mentalidades, surgidas a partir dos
Annales, possibilitou o surgimento da micro-história, cujo expoente mais conhecido é Carlo Ginzburg.
Nessa nova metodologia, o historiador utiliza os indícios documentais para construção de uma
perspectiva do passado a partir de uma personagem isolada não “extraordinária”. Segundo Ginzburg (1990,
p. 169) “quando as causas não são reproduzíveis, só resta inferi-las a partir dos efeitos”. Constrói-se assim
o método indiciário, que possibilita reflexão acerca desses efeitos deixados pelos homens para fomentar o
processo de construção da realidade histórica. Realidade histórica esta não num sentido objetivo/positivista,
mas sim na forma de possibilidade histórica, isto é, de uma narrativa histórica coerente em detrimento de
uma “história em si”.
Em seu célebre trabalho O Queijo e os Vermes (1987), Carlo Ginzburg praticou essa metodologia ao
explanar sobre a vida de um camponês da Idade Média que, ao ser inquirido pelos inquisidores religiosos,
expõe sua cosmologia “exótica” aos seus interpelantes. A partir da vida desse moleiro, Ginzburg recorre
à circularidade bakhitiniana (GINZBURG, 1987, p. 21) para analisar o relacionamento entre a cultura da
classe dominante e a cultura popular.
Reavivando o estudo biográfico, a micro-história sofreu diversas críticas pelo seu enfoque reduzido.
Contudo Ginzburg compreendeu a crítica e respondeu que “a ideia de se opor a chamada micro-história à
macro-história não tem sentido, assim como também é absurda a ideia de se opor a história social à história
política” (GINZBURG apud PALLARES-BURKE, 2000, p. 288). A possibilidade e a necessidade de
relacionar o micro ao macro foi o que o teórico quis realçar. E esse relacionamento pode ser visto na história
do moleiro com a atenção dada as nuances mais gerais da situação sócio-histórica daquela “sociedade com
características profundamente arcaicas” (GINZBURG, 1987, p. 57).
José Machado Pais (2003), do mesmo modo, vai colocar em pauta – na esfera sociológica na
perspectiva do cotidiano – essa necessidade de relação entre o “cume” e o “sopé” numa pesquisa. Faz isso
dizendo que só vê “vantagens em subirmos e descermos dos montes [...], evitando a imobilidade ou as
reduções mecânicas implicadas por enfermadas estadas de ‘cume’ o ‘sopé’ que perdem a complexidade do
mundo social” (PAIS, 2003, p. 55).
Essa “complexidade do mundo social” de modo algum pode ser apreendida em si mesma por
metodologia alguma. Faz mais de um século que críticas contundentes ao positivismo e suas variantes
têm alertado para essa impossibilidade de acesso objetivo da realidade. E, nesse sentido, temos como
movimentos de importante destaque o historicismo e o marxismo (por que que tem destaque?) (LÖWY,
1987). Ainda assim perspectivas com certa dimensão positivista (LÖWY, 1987, p. 18) podem ser vistas
trafegando em âmbito das próprias Ciências Humanas – sem considerar as demais ciências, nas quais essa
influência se propicia () numa tendência muito forte ainda.
O trajetivo, pautado nessa imbricação micro-macro, deve ter a preocupação com esse relacionamento
de grandezas distintas, contudo não excludentes. E esse relacionamento deve considerar, de acordo com
Paulo Carrano (2009, p. 11),
a dimensão pessoal da vida social... [e reconhecer] também que as pessoas não são
simplesmente moldadas por condições estruturais. Há um jogo de adaptação e interações
no qual elas conferem um sentido próprio às condições que tendem a determinar suas vidas.
A construção de um ator social não é engessada pelos determinantes sociais e, tampouco, não
significa exclusividade da agência do sujeito. De outro modo, a transitividade imbrica as trajetórias
individuais aos condicionantes sociais. A biografia do indivíduo torna-se um construto complexo que
circula entre as possibilidades limitadas aos ditos determinismos sociais e as práticas dos sujeitos que
fogem a essas supostas determinações. Considerando-se, contudo, que esses desvios nem sempre são de
cunho subversivo ou transgressor, no que concerne a uma intencionalidade de fuga. De outra forma, são
desvios como práticas que desconsideram imposições as quais os sujeitos estão submetidos. Agem, muitas
vezes, não para subverter transgredir a ordem de modo planejado e finalístico, mas trilham seus trajetos de
forma divergente e alheia aos rótulos sociais que lhes são cotidianamente impostos na medida em que vão
tendo sua biografia praticada. Isso, certamente, dentro dos limites de possibilidade de ação e nos vácuos ou
pontos mortos das determinações sociais e, do mesmo modo, enquadrados numa historicidade de inviável
apreensão.
No cotidiano, as microculturas transitam no emaranhado de relações entre particularidades e
generalidades – nesse devir existencial que a juventude também trafega. Nesse trajeto, em que podem ser
encontrados os indícios da circularidade entre os estruturantes e os contingentes, e, a partir dele, delineia-se
uma possibilidade de se construir uma ótica sobre a juventude.
Deste modo, na perspectiva trajetiva, ressalta-se que o ponto de partida deve ser a experiência, no
entanto ela deve ser induzida às estruturas. Nisso consiste a chamada análise ascendente (PAIS, 1990, p.
164) que se inicia nas realidades e a partir das relações sociais do indivíduo, no seu ser-fazer-diário, e se
expande para suas possibilidades generalizantes e referentes.
A ascendência necessária consiste numa preocupação que Dayrell explicitou ao comentar sua
análise da produção teórica sobre grupos musicais juvenis no Brasil:
... apesar de suas contribuições, essa produção teórica apresenta uma lacuna. Ao construírem
o seu objeto, tais investigações recortam de tal forma a realidade dos jovens que dificultam
a sua compreensão como sujeitos, na sua totalidade. Podemos até conhecer o jovem como
rapper ou um funkeiro, mas sabemos muito pouco a respeito do significado dessa identidade
no conjunto que, efetivamente, faz com que ele seja o que é naquele momento (DAYRELL,
2003, p. 40).
A análise indutiva que Pais e Dayrell destacaram serve para apreender o que está na “biografia
comum” e remete a uma noção mais ampla de sujeito. Assim como na micro-história a comunicação
com as histórias das estruturas constitui movimento irrevogável, na perspectiva trajetiva, o contato com
o posicionamento social – apesar de reconhecidamente não determinante – não deve ser desconsiderado.
A convergência dos diversos aspectos constitutivos de uma existência/experiência fomenta a produção de
sentido do sujeito. Não se pode ter a ambição kantiana ao propor refletir sobre tamanho embaraço instituído,
porém se permite engendrar um olhar coerente que possibilite a construção de um conhecimento verossímil
quando se trata de jovens e juventude.
Outras considerações
A fluidez das realidades da cultura juvenil não permite que conceitos estanques – ou que assim se
pretendam – enquadrem os jovens ou a juventude. Alguns podem até propor a utilização do uso pluralístico
do conceito: juventudes. Não obstante, a meu ver, a noção de juventude não se dissocia do diverso e do
múltiplo. E, aqui, não se trata de um olhar adultocêntrico – posto que o entendimento do conceito adulto
também remeta à multiplicidade imensurável. Por isso, a ausência da pluralidade no termo não deve ser
encarada como um problema que distorce e impossibilita trabalhar com a polissemia conceitual na noção
de juventude. A falta de diálogo com a juventude que deve ser encarado com um fator de encobrimento de
uma infinidade de particularidades que são as precípuas fontes na construção de um olhar ora minucioso ora
abrangente e da apreensão de uma narrativa do sujeito, em que o mesmo participe e se reconheça. Usando
juventude ou juventudes, em suma, que elas ou ela tenham voz e tenham respeitada suas ou sua diversidade.
Eu, por parcimônia e como pode ser visto ao longo do texto, fico prefiro usar juventude.
A juventude, no enfoque trajetivo, induz à diversidade e talvez seja dessa forma que os jovens
queiram ser compreendidos – ou incompreendidos. Cabe aos pesquisadores das Ciências Humanas ouvirem
o que os jovens têm a dizer de si. Porém, qual a importância de se ouvir o que o jovem tem a dizer? Na
proposta trajetiva, o que se tem por objetivo não é a reflexão sobre trajeto? Quem melhor para falar sobre
ou indiciar o trajeto do que o que nele trafega? Quem conhece os atalhos os pormenores desse caminho?
A partir do diálogo que Rita Ribes faz com Bakhitin, pode-se apreender que o diálogo entre
pesquisador e pesquisado contribui para uma aproximação da realidade, na qual ambos se debruçam no
acontecimento (PEREIRA, 2012) da pesquisa, cujo “processo dinâmico de interlocução e produção de
sentidos [...] implica um modo de ser no mundo” (PEREIRA, 2012). Essa perspectiva, explicitada no texto
de influência bakhitiniana de Rita Ribes, colabora para uma mudança na perspectiva da pesquisa: passa de
uma pesquisar sobre jovens para uma pesquisa com jovens.
Além desse aspecto do contato, deve-se lembrar, conforme dito no início deste trabalho, que essas
disputas em torno de uma juventude remonta uma das diversas disputas de poder projetadas na realidade
social. Uma série de políticas públicas é praticada, a partir de uma noção de juventude, para controle ou
intervenção social. E nesse aspecto, a urgência do diálogo também foi destacada por Pais (2005, p. 64-
66) ao indicar que as políticas públicas “não pisam o chão da juventude” e por isso tem suas intervenções
descontextualizadas não propiciando a efetividade adequada.
As políticas públicas partem de instâncias superiores e suas reverberações no cotidiano dos jovens
influenciam e têm relativa agência nas vivências juvenis. Esse reflexo pode tanto expandir os horizontes de
expectativas dos jovens como dificultar o acesso e promover desgastes para ambas as instâncias – esfera
política e juventude. Torna-se importante, por isso, considerar uma forma de produzir de conhecimento que
se aproxime do “chão social” e perscrute a diversidade com vistas na coletividade. Além disso, deve-se
buscar a atenção dos diretores políticos e da própria sociedade para a compreensão de que se é necessário
ponderar que “bons prognósticos (da acção política) devem assentar em bons diagnósticos (da investigação)”
(PAIS, 2005, p. 64). Entretanto, sensibilizá-los gera outra questão complexa a ser trabalhada.
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PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Manoela Falcon Silveira, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, manoela.falcon@
gm.ifbaiano.edu.br
Como gênero biográfico não canônico, a entrevista funda um retrato do sujeito que ultrapassa a própria
percepção de si mesmo. Na esteira dos estudos desenvolvidos por Philippe Lejeune, Leonor Arfuch e Diana
Klinger, analisaremos como a discursividade deste gênero traduz para os “outros” uma experiência vivida
que pode servir de espelho para o entrevistador ou leitor/espectador.
A análise das obras do escritor Antônio Torres e do cineasta Lírio Ferreira realizada aqui, problematiza
o caráter autobiográfico que engendram; assim como o alto índice subjetivo da nordestinidade afirmada por
estes indivíduos em entrevistas disponibilizadas para a mídia eletrônica.
O interesse pelo estudo da autoficção, da autobiografia e da entrevista, enquanto gêneros biográficos,
é justificado por acreditarmos que a escrita das experiências de vida tem contribuído para a ampliação da
discussão em torno dos sentidos e significados que essas narrativas representam para a sociedade. O uso das
entrevistas dos autores como material biográfico visa entender a forma como as suas subjetividades estão
paradoxalmente manifestas na composição das obras em estudo; e, por conseguinte, como podem auxiliar
na percepção da maneira que os mesmos elegeram para tecer o imaginário nordestino que povoa os espaços
representados pelas suas obras. O lugar da entrevista, como sugere Rachel Esteves Lima, pode ser visto
ainda como
Interessa-nos perceber como o falar de si reivindica o deslocamento do olhar para narrar “o outro”.
Interessa-nos analisar em que medida os relatos de “outridades” são perceptíveis nas obras e como são
capazes de traduzir as subjetividades representadas pelo ser nordestino ali construído. Este olhar que se
quer antropologizante, à medida que busca dialogar com as duas tendências das narrativas contemporâneas
chamadas de “retorno do autor” e de “virada etnográfica”, insere-se na complexidade da dupla inscrição
das narrativas em questão, para tentar avaliar a forma como esses territórios da memória estabelecem uma
relação direta a partir das considerações encontradas através da escrita textual e do sujeito da escrita, que
ora se inscreve no texto. Como destacou Arfuch em seu livro O espaço biográfico: dilemas da subjetividade
contemporânea,
Como gênero biográfico, mesmo não sendo considerada habitualmente entre os
“canônicos”, que apresentam vidas diversamente exemplificadoras, por excelência ou
defeito, a entrevista é também de educação, aspecto modélico por antonomásia. O “retrato”
que a entrevista brinda irá, então, para além de si mesmo, dos detalhes administrativos e
identificatórios, em direção a uma conclusão suscetível de ser apropriada em termos de
aprendizagem. Falando da vida ou mostrando-se viver, o entrevistado, no jogo dialético
com seu entrevistador, contribuirá sempre, mesmo sem se propor, para o “acervo” comum
(ARFUCH, 2010, p.153).
É esse acervo que pretendemos desvendar ao analisar algumas entrevistas do escritor Antônio Torres
e do cineasta Lírio Ferreira, todas acessadas através da mídia eletrônica.
Numa tentativa de mapeamento do caráter autobiográfico das obras a partir das entrevistas concedidas
pelos autores, faremos a análise de trechos de algumas delas concedidas pelo escritor Antônio Torres e em
seguida, a mesma atividade será realizada para as entrevistas concedidas pelo cineasta Lírio Ferreira.
Em entrevista intitulada ‘A seca não expulsa, é a civilização que atrai’, concedida ao jornalista
Rogério Assis, do Folha Imagem (1998), na ocasião de uma visita realizada pelo autor à cidade natal de
Sátiro Dias, podemos destacar algumas passagens instigantes da fala do autor, quando questionado pelo
entrevistador sobre as mudanças percebidas em relação ao espaço e ao tempo vividos na cidade do Junco e
a atual Sátiro Dias:
Num primeiro momento, a fala do escritor Antônio Torres parece convergir para a formulação da
hipótese de que a seca era responsável pela saída das pessoas do Junco em direção às grandes cidades. Mas
logo em seguida, ao ser questionado sobre o motivo de sua própria saída do Junco, o autor deixa a entrever
que o êxodo das pessoas ocorria menos pelo motivo da seca do que pelo deslumbramento causado a partir
do contato com as evoluções tecnológicas que chegavam à cidade do Junco e atiçavam o desejo das pessoas
do povoado:
Esta justificativa para o deslocamento migratório da região Nordeste para São Paulo é nitidamente
visualizada na narrativa romanesca de Essa Terra. Quando Totonhim descreve o motivo da partida de Nelo
em direção à cidade grande, vemos que o irmão sonhava em falar e se vestir como os homens do banco que
chegavam à cidade e deixavam as meninas sonhando com a volta deles. Na sequência da entrevista Antônio
Torres também é questionado sobre o processo de criação de Essa Terra:
É nesse momento que percebemos o índice mais elevado da presença da autoficção na criação narrativa
deste autor. Nesse contexto, somos levados a dialogar com as considerações tecidas por Klinger, quando
compreende
(...) a autoficção como uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si tem
como referente o autor, mas não como pessoa biográfica, e sim o autor como personagem
construído discursivamente. Personagem que se exibe “ao vivo” no momento mesmo de
construção do discurso, ao mesmo tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando-
se de forma crítica perante os seus modos de representação. (KLINGER, 2007, p.62)
Em entrevista publicada pelo jornal A Tarde, no lançamento da edição comemorativa dos vinte e
cinco anos do romance Essa Terra, o jornalista e também escritor Carlos Ribeiro dialoga com o escritor
Antônio Torres sobre a criação dos seus personagens e a sua própria condição de retirante, além de abordar
a perspectiva do tratamento dado pelo autor à forma de representar o sertão e o sujeito que o habita.
É esse o pacto ficcional assumido pelo autor do romance Essa Terra. Da experiência dos acontecimentos
vividos surge a narrativa. As subjetividades vão se intercruzando na construção do espaço autobiográfico e
sendo representadas de forma crítica diante dos aspectos sociais abordados pela narrativa construída. Essa
condição fica mais evidenciada na finalização da entrevista,
Folha - “Essa Terra” se passa nessa cidade há mais de 20 anos. Os personagens ainda
estão aqui?
Torres - Acho que não. O Brasil e essa terra mudaram muito. Em 1970, quando eu vinha
aqui, as pessoas me perguntavam: “Meu filho, você é aquele que mora naquelas terras tão
longe?”.
Agora ninguém mais me pergunta isso. A Embratel e o asfalto encurtaram essa distância.
Eles não são mais os personagens de Essa Terra. Eles são os personagens de O cachorro
e o lobo, que eu lancei no ano passado. Puxa, meu avô morreu em 77 sem ter visto uma
televisão ou um telefone! Conheceu só o correio e o rádio. Hoje estamos aqui na casa dele
e tem TV, videocassete, parabólica, som hi-fi, CDs do Sepultura. É um novo povo.
A não-identificação dos personagens do romance com as pessoas que habitam em 1998 a cidade de
Sátiro Dias - Bahia, apontada pelo escritor, revela o caráter reflexivo e a intencionalidade autoral voltada
para as diversas condições da forma subjetiva na contemporaneidade.
O escritor Antônio Torres, ao distanciar os atuais moradores de Sátiro Dias do contexto de formação
dos personagens de Essa Terra e aproximá-los dos personagens do romance O cachorro e o lobo (1997),
considera a relação espaço-temporal já referida neste trabalho em subcapítulo anterior, como uma relação
que veicula as subjetividades ao espaço nordestino mediado pelo fácil acesso às novas tecnologias.
Por ocasião do lançamento do romance O cachorro e o lobo, em 1997, Torres concede entrevista
à jornalista Patrícia Moreira, para o suplemento do Caderno 2 do Jornal A Tarde, em Salvador-BA. Dela,
destacamos um trecho extremamente significativo por envolver reflexivamente o posicionamento do autor
em relação à forma como o mesmo encara a relação entre escritor-personagem:
PM – Até que ponto você, enquanto autor experimenta o envolvimento com seus
personagens?
AT – Uma certa vez, um estudante de Letras me disse uma coisa fantástica: que eu escrevia
uma espécie de autobiografia abstrata. Meus livros não são autobiográficos, se baseiam nas
minhas referências, mas tudo acaba virando ficção. Sou ficcionista, tudo passa pela estratégia
do romancista, O cachorro e o lobo foi escrito em primeira pessoa, uma forma de me colar
ao personagem como se fôssemos uma mesma coisa. Tento quebrar o distanciamento entre
o autor e personagem, o que também, permite ao leitor se colar à história.
Antônio Torres: Frequentemente recebo notícias do sertão em que nasci, dando conta da
realidade de violência que o assalta, deixando-o em pânico. O que me leva a pensar que o
sertão que migrou acaba retornando carregado dos estereótipos (urbanos) da modernidade,
sendo o mais notório deles o do tráfico de drogas. No quadro atual, o sertão mítico, ao que
me parece, cede o seu lugar de referência a uma cultura de massa imposta pela lógica do
consumo – o que afinal está por trás dos índices de violência que conhecemos. A minha
sensação é que o mundo está todo igual – no que tem de pior.
A análise descrita por Antônio Torres sobre a atual condição do sertão nordestino coincide com
as imagens projetadas pela filmografia do diretor Lírio Ferreira. Em Árido Movie, as cenas de violência
apresentadas na pequena cidade de Rocha são provocadas por aqueles que comandam as áreas de latifúndios
de plantação de maconha e consequentemente, o tráfico da droga na região.
Se é perceptível a presença do pacto referencial, matizado pela reelaboração imaginária dos fatos,
nas narrativas literárias em questão, poderíamos afirmar que o mesmo acontece no filme de Lírio Ferreira.
Em entrevista intitulada “Por trás do seco, tem o mar” realizada pelo jornalista Rodrigo Campanella (do
Pílula Pop – BH) com o cineasta pernambucano, temos, a partir do título da entrevista, o primeiro indício da
tematização trazida pelo filme, que é o deslocamento da visão da aridez da seca para o mar e sua imensidão
de água. A presença versus ausência da água, como tema central da narrativa fílmica é parte integrante do
acervo comum experimentado por diversos nordestinos.
Já o título do filme Árido Movie se insere numa referência às experiências vividas por um grupo
de cineastas em Pernambuco, no mesmo período em que principalmente a música vivia um momento de
efervescência em Recife.
Nessa entrevista, Lírio Ferreira cita algumas referências diretas para a elaboração e processo criativo
da história e da técnica cinematográfica presente em Árido Movie.
Ao ser questionado em relação à estranheza experimentada pelo personagem principal e pelo próprio
espectador ao assistir o filme, o diretor revela que esse processo de estranheza encontra-se enraizado em sua
subjetividade, suas lembranças da infância. A ativação da memória aos tempos de infância, por exemplo,
representam para o próprio cineasta a sua condição de estrangeiro no espaço nordestino.
O filme do diretor Lírio Ferreira, ao apontar para a perspectiva de uma construção narrativa
autobiográfica, na qual a presença marcante da memória afetiva é parte integrante do constructo das
imagens projetadas na tela, possibilita através da arte cinematográfica o diálogo entre as diversas formas
de subjetivação que vão sendo configuradas entre os espaços rurais e urbanos dos “nordestes” que
habitam a cidade paulistana e o interior de Pernambuco. A maneira como este conflito identitário invade
as telas gera ao filme a crítica de ele ser muito aberto, pois o não fechamento das histórias de vidas das
personagens narradas causa a impressão de um fluxo subjetivo sempre inconcluso.
Em entrevista cedida ao Diário de Pernambuco em 09/08/2009, Lírio Ferreira foi questionado em
relação à controvérsia gerada por essa crítica. O cineasta reage, afirmando que se trata de um filme muito
generoso ao permitir que cada espectador saia do cinema com a liberdade de imaginação do seu final.
Em entrevista concedida à repórter Silvana Arantes, e confirmando o caráter autobiográfico do
filme, Lírio Ferreira comenta que a cena da ressurreição de Lázaro, pai de Jonas, foi a primeira lembrança
cinematográfica recorrente em sua cabeça, quando retornou para Recife e lembrou dos filmes que assistia
no antigo Cine Rivoli:
“Fechei os olhos na cena em que ele ressuscita”, lembra Ferreira, 41, voltando 36 anos no
tempo, até o Cine Rivoli, no bairro da Casa Amarela e de sua infância em Recife. Onde
havia o Cine Rivoli hoje há uma agência de banco.
Essa é uma das mudanças que Ferreira percebe sempre que volta à cidade que trocou pelo
Rio de Janeiro, em 1997, quando seu primeiro longa-metragem (“Baile Perfumado”, em
co-direção com Paulo Caldas) cumpria o objetivo de “colocar Pernambuco na geografia
cinematográfica do país”.
“Árido Movie” está repleto de memórias e referências à vida de Ferreira e a de seus amigos.
Homem de turma, como se define, e amigo dos bares, ele concebeu o longa com “uma idéia
na cabeça e um copo na mão”.
Ao confirmar a existência de algo pessoal na narrativa fílmica, incluindo nela suas neuroses e
memórias, Lírio Ferreira nos dá pistas para trilhar os caminhos dessa autoficção, em busca das “verdades”
criadas pelo autor para as suas próprias experiências. Klinger (2007), na esteira de Doubrovsky (1988),
afirma que
O sentido de uma vida não se descobre e depois se narra, mas se constrói na própria
narração: o sujeito da psicanálise cria uma ficção de si. E essa ficção não é nem verdadeira
nem falsa, é apenas a ficção que o sujeito cria para si próprio. É dessa concepção
psicanalítica da subjetividade como produção que Doubrovsky deriva o conceito de
autoficção: ‘ A autoficção é a ficção que eu, como escritor, decido apresentar de mim
mesmo e por mim mesmo, incorporando, no sentido estrito do termo, a experiência de
análise, não somente no tema, mas também na produção do texto’”. (Doubrovsky, 1988
Apud Klinger, 2007, p. 51-52).
A capacidade de transformação das coisas vistas ou ouvidas em atividade escrita faz surgir
o exercício das narrativas a partir da deglutição de experiências vividas, lidas, ouvidas e em seguida
transformadas em suas verdades. As entrevistas dão as pistas que precisamos seguir, pistas de vidas que
se inscrevem também como um “corpo”. Afirmando a passagem, ou melhor, o trânsito aberto entre as
obras analisadas, concluímos com um mergulho nas águas da citação foucaultiana, ao retomar a força que
a escrita tem e a forma como marcam os corpos, para em seguida submergir em outras histórias de vidas,
em outras escritas.
REFERÊNCIAS
Entrevistas:
Rogério Assis/Folha Imagem. A seca não expulsa, é a civilização que atrai. Disponível em: < http://www1.
folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq28089812.htm.> Acesso em: 13 abril.2013.
Carlos Ribeiro/Jornal A Tarde. Antônio Torres lança edição comemorativa de 25 anos do romance Essa
Terra. Disponível em: <http://www.antoniotorres.com.br/entrevista13.html.>Acesso em: 20 mar.2013.
- RESUMO -
Tendo como ponto de partida as narrativas de vida registradas no trabalho de pesquisa com um grupo de
jovens dançarinos de break em uma periferia de Porto Alegre, o presente trabalho busca analisar, a partir
principalmente da contribuição de Leonor Arfuch e Jorge Larrosa, dois eixos do uso dos relatos biográficos
na pesquisa com jovens. O primeiro eixo percebe os relatos como um modo de articulação na compreensão
da relação entre as determinações do meio social onde vivem estes indivíduos e os modos de vida por
eles produzidos, formas de interação no espaço social. As narrativas de vida, concebidas na perspectiva
da produção autobiográfica, apresentam uma dimensão simbólico-narrativa que possibilita uma forma de
subjetivação ao produzir uma imagem de (auto)reconhecimento, uma forma de constituição de si e de
definir sua identidade. Além disso, amplia a visibilidade de marcas e vestígios que compõe a trajetória dos
jovens, explicitando traços, percursos pessoais e coletivos que demarcam tomadas de posição no social,
constituindo um nexo que, mesmo sendo temporal, permite compreender o sujeito em suas interações. O
segundo eixo compreende estas narrativas – produzidas no cotidiano do trabalho de campo e nas entrevistas
- não apenas como um “dado” de pesquisa das Ciências Sociais e Humanas, mas como recurso metodológico
que transcende sua significação prática, pois ao abordar elementos da própria constituição do sujeito -
história e trajetória, experiência, memórias, sentimentos, entre outros -, produz um registro (talvez único)
de sua existência biográfica. Nesse sentido, faz-se necessária uma sensibilidade diferenciada por parte
do pesquisador, principalmente na pesquisa com jovens, a fim de comprometer-se eticamente com estes
registros, refletindo constantemente acerca dos usos e das formas de como operar com essas biografias.
Palavras-chave: Jovens de Periferia; Trajetórias; Narrativas (auto)biográficas
Ah! Essa é mais uma história do livro da minha vida.
(Relato de Jovem –Diário de campo: junho/2013)
A frase acima, escolhida como epígrafe para este texto, foi expressa por um jovem dançarino de hip
hop em uma periferia de Porto Alegre, na ocasião de uma conversa onde relatava a experiência participar
de um evento de dança de rua1 na cidade do Rio de Janeiro, onde passara uma semana se alimentando
apenas de sanduiches e dormindo em um ginásio de esportes (e uma noite na praia) por conta de não terem
dinheiro o suficiente para pagar as despesas, situação, entretanto, que não o impossibilitaria de participar
de um evento de grande relevância para ele e seu grupo. Ao narrar este evento, carregava em sua fala uma
riqueza de detalhes e relações que, mais do que o acontecimento em si, desvelava elementos de sua própria
história, de sua condição de vida, de suas escolhas, da dinâmica dos espaços sociais por onde transitava, de
uma condição de reconhecer-se enquanto sujeito de uma determinada experiência. Além disso, a referência
ao “livro da vida” remete, simbolicamente, ao plano de que a vida se faz perceber no exercício do relato,
do registro, de certa rememoração que coloca em cena o caráter narrativo construído de toda a experiência.
Como afirma Benjamin (2011), a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte, por excelência, a que
recorrem todos os narradores.
Esta narrativa – entre outras tantas que foram se (re)construindo na prática cotidiana de pesquisa –
acabaram por constituir o cerne do estudo acerca das práticas sociais e trajetórias de jovens dançarinos de hip
hop em uma periferia de Porto Alegre, o qual fundamenta, principalmente, este texto. O uso de narrativas de
vida – e outros métodos biográficos – como metodologia nas pesquisas qualitativas produziu, nas últimas
décadas, um notável incremento, ampliando as possibilidades de interpretações e intersecções múltiplas, de
reconhecimento de diferentes sujeitos e práticas (ARFUCH, 2010). Entretanto, ainda constitui-se um desafio
construir, a partir destas referencialidades, especialmente no campo dos estudos de juventude, práticas
metodológicas de pesquisa que operem com a narração na medida em que escapa às determinações teóricas
diretas, mas é central na compreensão das trajetórias dos sujeitos sociais e dos processos de construção de
suas identidades e práticas sociais.
Nesse sentido, este texto se propõe a apresentar algumas reflexões teórico-metodológicas acerca das
práticas de pesquisa com jovens de periferia, em especial das narrativas de vida concebidas como relatos
(auto)biográficos, a partir de dois eixos: o primeiro referente aos modos de articulação desses relatos como
uma produção de (auto)reconhecimento, uma forma de constituição de si e de definição de identidade que
não está dissociada das interações do espaço social onde vivem esses indivíduos; o segundo da utilização
destes registros não como “um dado” das ciências sociais e humanas, mas como um registro biográfico de
uma existência, exigindo uma sensibilidade e um posicionamento ético do pesquisador frente aos modos
como operar com estes relatos.
1 A dança de rua ou street dance é uma expressão cultural vinculado ao hip hop, composta por uma
diversidade de estilos – entre eles, o break -, é praticado por dançarinos conhecidos por bboys, que mis-
turam estilos, técnicas e passos na construção de coreografias individuais ou coletivas.
Narrar-se: possibilidades de compreender-se sujeito
Somos o relato que nos contamos e que nos contam, um relato inacabado, que não se pode
terminar. Somos o relato que só finaliza com a morte. […] Porém, enquanto isso, vivemos
brincando, narrando (MÉLICH, 2001, p. 279.).
Ao iniciar o acompanhamento das ações de um grupo de dança de hip hop em uma periferia de Porto
Alegre, uma pergunta inicial formulava-se como possibilidade de pesquisa: buscar compreender as práticas
coletivas destes sujeitos. De que maneira a dança de rua e a relação com a cultura hip hop constituíam-se
não somente como elementos idenitários, marcados em suas vestimentas, em seus gestos, linguagens entre
outros elementos simbólicos, mas também como prática social, ação coletiva que configurava uma fora
de relacionar-se com o social (MELUCCI, 2001). O grupo existia a mais de dez anos, encontrava-se pelo
menos três vezes por semana para ensaiar as coreografias, treinar novos passos, ensinar novos integrantes
entre outras atividades sempre relacionadas a dança de rua. Apresentavam-se em diversos eventos do
circuito hip hop e outros eventos culturais, o que lhes proporcionou certo reconhecimento na cidade de Porto
Alegre. O grupo não recebia nenhum apoio financeiro específico, alguns de seus integrantes trabalhavam
como oficineiros (educadores sociais) de hip hop em algumas escolas e projetos, tendo nesse trabalho sua
fonte de renda. Eram cerca de dez jovens, com idades entre 14 e 30 anos, com perfis variados: estudantes,
trabalhadores, desempregados, chefes de família entre outros, todos moradores de periferia, circunscritos
pelas possibilidades e limites de habitar este espaço, mas que não deixavam de se encontrar para exercitar
sua dança.
Entretanto, conforme participava das atividades desse grupo, o que mais se destacava eram
os diferentes relatos de vida que emergiam nas conversas e diálogos com os jovens participantes. Em
diversos momentos – em sua maioria na informalidade, elemento singular para esta pesquisa e que será
abordado posteriormente - estes jovens narravam suas experiências, contavam historias, rememoravam
acontecimentos marcantes em suas trajetórias singulares e coletivas que, em seu conjunto, expressavam um
modo de ser, possibilitando melhor conhecer e compreender os meandros de sua existência.
Nesta perspectiva, o narrar-se, como afirma Mélich (2001) na citação anteriormente colocada,
apresenta-se como uma possibilidade de existência: somos o relato que contamos e que nos contam.
Contar a sua vida, narrar-se, constitui uma forma de (auto)interpretação: o sentido do que somos, de quem
somos tanto para nós quanto para os outros, complementa Larrosa (2004; 2008), depende das histórias
que contamos, das construções narrativas onde cada um de nós é, ao mesmo tempo e de forma particular,
personagem, autor e narrador. As histórias que narramos (autobiografias, autonarrações, histórias pessoais,
entre outras) são formas de autointerpretar a própria experiência de vida, de compreendermos aquilo que
somos e perceber as tramas nas quais se desenvolve a própria existência.
As histórias que contamos e que nos constituem são sempre construídas, segundo o autor, em
relação com outras estruturas narrativas com que temos contato (escutamos, lemos, testemunhamos,
vemos nas mídias, etc), produzidas e mediadas no interior de determinadas práticas sociais mais ou
menos institucionalizadas (um confessionário, um tribunal, uma relação amorosa, uma reunião familiar,
um programa de televisão, entre outros), o que de certa forma, relaciona o sujeito a um fenômeno de
intertextualidade, uma vez que, ao narrar-se, produz uma atividade que lhe é construtiva, imaginativa,
compositiva, em que se é personagem de si mesmo; e, ao fazer isso, interpretar-se, produz um diálogo
consigo entre sua narrativa e outras modalidades discursivas que estabelecem sua posição de sujeito.
Larrosa (2004) destaca ainda que cada um de nós se encontra imerso em estruturas narrativas, que nos
preexistem, que impõem determinados significados, organizam um modo particular de existência que nos
torna singulares, mas sempre nos mantendo relacionados com o conjunto de histórias que “ouvimos” e com
as quais aprendemos a construir a nossa própria. Entretanto, destaca o autor, a narrativa não é a “irrupção
da subjetividade, mas sim uma modalidade discursiva que estabelece a posição do sujeito e as regras de sua
construção em uma trama” (LARROSA, 2004. p. 19, minha tradução).
A produção de narrativas surge, nessa perspectiva, como uma metodologia de pesquisa que possibilita
perceber vestígios da experiência constitutiva do sujeito. Ao narrar-se, a pessoa diz o que conserva de si
mesma, permite perguntar pelo modo como a experiência de si foi produzida pelos mecanismos específicos
que constituem o que é dado como subjetivo, revela modos de pensar e posicionar-se, marcas e vestígios
do que foi vivenciado como aprendizado em sua trajetória de vida. Ao ser personagem, autor e narrador,
o sujeito mesmo constrói o sentido para sua própria trama. Além de interpretar a si mesmo, o uso de
narrativas possibilita, ainda, perceber a relação daqueles sujeitos com o seu contexto social, com os grupos
de que participam, deixando transparecer suas posições frente às experiências que vivenciam. Nas palavras
de Errante:
Narrativas também revelam o alinhamento dos narradores com certos indivíduos, grupos,
ideias e símbolos através dos quais eles externalizam seus maiores valores, qualidades
positivas e de orgulho para si mesmos. Narrativas também revelam as dissociações dos
narradores “com” indivíduos, grupos, ideias, e símbolos através dos quais eles externalizam
as partes menos favoráveis de si mesmos. (ERRANTE, 2000, p.142).
A partir da série de relatos de vida que eram ouvidos e registrados, as narrativas destes jovens
ganhavam contornos que possibilitavam uma compreensão mais ampla de sua própria história e trajetória,
das relações que estabeleciam com o espaço social e as formas de posicionarem-se frente aos dilemas que
lhes eram colocados, construindo, muitas vezes, expressões de resistência às diferentes formas de sujeição
que sua condição lhes impunha.
Eu vivi minha vida toda na periferia, sempre morei nesse pedaço. Nunca morei em outro
lugar. Minha mãe sempre batalhou muito pra gente ter as coisas, pra poder estudar, pra não
passar necessidade. Sempre fomos pobres. Mas quem mora por aqui, sabe como é... é visto
como “bandido”. Acham que quem mora aqui, é bandido. E isso aparece muito quando a
gente sai daqui.
(Relato de Jovem –Diário de campo: julho/2013)
Na voz do sujeito jovem que narra a sua vida, numa condição de intérprete de si mesmo, percebe-
se uma forma de autoposicionamento frente ao social que é constitutivo de sua identidade. Ser morador de
periferia deixa um rastro em sua vida, pois socialmente, este habitar carrega em si contextos de contradições
e antagonismos produzidos como efeito das situações de pobreza e violência a que estão submetidos, de
uma inclusão precarizada na sociedade. Certamente estes elementos não são definidores das trajetórias de
vida dos indivíduos que habitam neste espaço, porém, influenciam e circunscrevem suas próprias tomadas
de posição enquanto sujeitos sociais. Por morar em um dos bairros de maiores índices de criminalidade,
seu relato desvela os efeitos da produção de uma representação que associa a pobreza com marginalidade,
demarcando sua condição de vida e os modos como se relaciona com os espaços sociais por onde circula.
Uma vez fomos convidados para nos apresentar num evento de dia inteiro que tinha camarim.
Não éramos os únicos, tinham muitos outros dançarinos e grupos de dança por lá dividindo
o espaço. Nós éramos os únicos de hip hop, de dança de rua. Quando chegamos, vestidos
desse jeito, com mochila nas costas, boné, tatuagem, brinco... com essa pinta de pobre,
alguns negros, já nos olharam diferente. Na metade da manhã já estávamos sozinhos no
camarim: todo o resto sumiu, foram pra outros camarins, juntaram as coisas e levaram pra
outros lugares, vazaram. Pensaram que essa galera de vila, só podem ser bandidos. “Vão nos
assaltar”. É essa a imagem que fazem da gente. Mas na hora da apresentação, arrasamos. Foi
legal ver todo mundo nos aplaudindo, gritando... Acho de desmanchamos um pouco essa
imagem.
(Relato de Jovem –Diário de campo: julho/2013)
Eu aprendi a andar “na rua” com esses caras ai [apontando para os participantes do grupo].
A dança mudou o meu mundo, mudou a minha vida, mudou tudo: eu me transformei com a
dança, e hoje as coisas não tem sentido sem ela.
(Relato de Jovem –Diário de campo: junho/2013)
A associação e participação no grupo possibilita, para estes jovens, uma experiência de mediação
em um sistema simbólico em que operarem de modo ativo na construção das próprias significações que os
regem, fundamentada num vínculo de amizade e solidariedade estabelecido com seus pares, manifestado
em práticas coletivas. O grupo emerge como um meio que permite ampliar (e por vezes ultrapassar) os
limites do social que circunscrevem os sujeitos, amparados pelos laços estabelecidos entre os indivíduos,
oportunizando, em suas ações, uma troca das percepções e reflexões acerca do vivido (socialização das
biografias e das trajetórias de vida). Assim, proporciona ao sujeito operar em seu campo simbólico:
questiona suas verdades e posicionamentos, faz refletir sobre a realidade da periferia, seus desdobramentos
e consequências, propõem modos de posicionar-se no social e sugere mudanças de rumo nas trajetórias
individuais.
A partir das histórias de vida que contam, daquilo que narram, percebe-se aqui uma dupla função da
narrativa (auto)biográfica que opera nas práticas coletivas desses jovens: uma forma de autointerpretação de
sua própria trajetória, de conhecimento de si, de avaliar as suas próprias ações, de perceber seus processos
de continuidade e de construção de identidade, construída numa relação do sujeito consigo mesmo; e
uma forma de socialização das experiências, de aprendizado, de escuta do outro e daquilo que é narrado,
numa dimensão de alteridade, de reconhecimento do outro como sujeito de sua própria trajetória. Dito de
outra maneira, as narrativa de vida socializadas por estes jovens em suas práticas cotidianas apresentam
uma dimensão simbólico-narrativa que possibilita uma forma de produzir um (auto)reconhecimento que
perpassa por um trabalho sobre si mesmo, ao operar com as marcas e vestígios que compõe a trajetória dos
sujeitos e suas interações, mas que se elabora na relação com o outro e na explicitação de um nexo que
permite compreender sua própria identidade, mesmo em sua transitoriedade e fluidez.
Nessa perspectiva, os jovens, ao produzirem narrativas sobre suas próprias vidas, o fazem inseridos
em uma rede de relações sociais mais amplas, na qual são produzidas sentidos e representações que, de
certa forma, tendem a caracterizar socialmente suas ações coletivas. Ao se tornarem narradores, produzem
discursos sobre si mesmos, ressignificando as representações acerca de si, do seu grupo, de suas práticas
e do espaço social onde vivem, tensionando as representações dominantes que circulam sobre si, dando
visibilidade a outras formas de compreender e interpretar suas ações.
Ao abordar as narrativas de vida como possibilidade metodológica de pesquisa com caráter (auto)
biográfico, é importante destacar que o pesquisador não opera com dados exatos e acabados, nem com
uma materialidade objetiva que possam estar disponível ao seu desejo. Como destaca Abrahão (2004),
a pesquisa (auto)biográfica opera com emoções e intuições, com subjetividades, com pessoas que estão
em constante processo de autoconhecimento e vivenciam, de forma diferenciada, suas experiências de
vida. Não é uma metodologia que busque estabelecer generalizações estatísticas ou grandes conjuntos de
ocorrências, mas elabora-se uma compreensão de fenômenos específicos a partir de processos subjetivos,
autorreferentes em que o sujeito se desvela para si e para os demais. Assim, como recurso metodológico, as
narrativas de vida transcendem sua significação prática, pois não se colhe um “dado” de pesquisa, opera-se
com o registro da própria vida do sujeito, uma forma de constituir-se simbolicamente, marcada por aquilo
que é mais precioso no ser humano: sentimentos e emoções; aprendizados, marcas e vestígios, possíveis
feridas e cicatrizes, felizes ou não, que constituem sua trajetória; as alegrias e felicidades que compõem sua
memória, e também perdas, tristezas e arrependimentos; enfim, um registro de sua existência.
A partir da experiência de pesquisa com estes jovens, emerge algumas reflexões e construções acerca
dos modos de se abordar metodologicamente as narrativas de vida. As práticas destes jovens apresentavam
características que tencionavam os métodos comumente utilizados neste tipo de pesquisa (entrevistas,
questionários entre outros), e por consequência, levando a um redimensionamento das estratégias
metodológicas a serem adotadas. Assim, pensar a pesquisa exige um rigor teórico-metodológico que não
significa, necessariamente, rigidez em suas práticas, mas um processo constante de (re)construção de seus
modos, exigindo revisões dos procedimentos, das técnicas e abordagens, a fim de melhor direcioná-las
frente aos desafios que emergem. Construir uma prática de pesquisa é uma tarefa que exige sensibilidade,
não é um trabalho mecânico, fabril, mas artesanal, que demanda atenção aos detalhes e sutilezas.
Nesse sentido, convém contextualizar algumas características dos sujeitos desta pesquisa que
inferiram em sua construção. Destaca-se, principalmente, , a mutabilidade e fluidez em suas dinâmicas de
vida, tendo em vista, principalmente, as dificuldades e limitações que vivem por sua condição financeira.
Apesar do grupo de dança ter mais dez anos de existência e encontrar-se, pelo menos três vezes por semana, a
participação de alguns jovens variava entre o ocasional e o fragmentário. O grupo não recebe nenhum apoio
financeiro e raramente gera renda em suas apresentações. Por vezes, dificuldades familiares (necessidade
de ajudar em casa), falta de dinheiro para pegar o ônibus (mobilidade urbana como um problema para
esses jovens, devido ao valor da passagem) ou algum trabalho extra que conseguem (em geral, apresentam
vínculos informais de trabalho), entre outras razões, fazem com que os jovens não participem dos ensaios e
eventos por determinado tempo, mas sem perder as referências com o grupo ou abrir mão de sua vinculação.
Da mesma maneira, nem sempre “cumpriam” as combinações de dias e horários: atrasos, saídas antes dos
horários de término, ausências mesmo quando confirmavam presença (em alguns casos, ligavam antes do
encontro e mesmo assim não apareciam) configuravam características da dinâmica interna do grupo. Porém,
estas práticas eram vistas com naturalidade pelos jovens, aceitas, de um modo geral, por seus participantes
sem que constituísse um prejuízo para as ações que desenvolviam. Buscavam compreender as diferentes
situações de vida de cada um, faziam acertos de modo que o grupo sempre continuasse suas atividades e
tinham no vínculo de amizade o elemento fundamental na relação estabelecida entre eles. De um jeito muito
próprio, apostando em sua própria organização, faziam o grupo funcionar.
A dinâmica de encontro do grupo era perpassada pela música: uma grande caixa de som era instalada
e diferentes dispositivos dos participantes – celulares e tablets, principalmente – continham as listas de
músicas que eram tocadas em sequencia, sem intervalo, durante todo o período de treino. Eram realizadas
em um ginásio de esportes, onde ocorriam outras atividades simultaneamente. A música deixava um clima
contagiante, próprio para as atividades de dança de rua, porém, dificultava um pouco o diálogo pelo barulho
no ambiente. Os jovens organizavam-se em círculo, voltados para o centro, espaço onde treinavam as
técnicas de dança, os movimentos, os passos e coreografias, característicos da dança de rua. Não havia
uma ordem estabelecida, a entrada no círculo era alternada, sendo aberto a todos os participantes, variando
estilos e técnicas. Em todos os momentos, os jovens conversam, trocam experiências, compartilham
técnicas aprendidas, buscando sempre ensinar o que aprende uns para os outros. Percebe-se no grupo uma
dinâmica marcada pela espontaneidade e amizade entre estes jovens, pela horizontalidade nas relações ao
acolherem, sem distinção, a todos os participantes, independente do seu nível de desenvolvimento na dança
(iniciante ou experiente), possibilitando um espaço aberto de trocas e aprendizagens. Desse modo, o grupo
acabava tornando-se um espaço de referência a esses jovens, de amizade e de aprendizado, de contato com
o hip hop, mais especificamente com a expressão da dança de rua, de sociabilidade e de desenvolvimento
de práticas culturais juvenis.
Algumas dessas características relatadas, entretanto, representavam um desafio para se pensar um
trabalho de campo sistemático, exigindo sensibilidade e adaptação do pesquisador em considerar esses
elementos na efetividade metodológica da pesquisa. Primeiramente, o fluxo de jovens que participavam do
grupo não mantinha uma regularidade, o que dificultava na escolha de indivíduos-chave para se realizar
um estudo. Era necessário um tempo muito maior de trabalho de campo para se mapear os participantes
e perceber seu papel dentro da dinâmica do grupo. O clima dos encontros do grupo impossibilitava a
realização de entrevistas gravadas devido ao barulho no ambiente e a inexistência de outro lugar para a sua
realização. Para se realizar entrevistas gravadas seria necessário recorrer ao espaço externo, o que retiraria
o sujeito da dinâmica do seu espaço. Além disso, o momento da entrevista traz consigo certa ritualidade, o
que gera certa “tensão” para o entrevistado: a presença do gravador, a sequência das perguntas e a atenção
do pesquisador, entre outros elementos, o que colocaria o jovem em uma posição “artificializada” em
relação ao seu cotidiano, produzindo um modo de postar-se, de conversar e de responder as questões mais
vinculadas a uma expectativa de resposta do que suas próprias opiniões e experiências.
Pretendia-se, durante a pesquisa, interferir o menos possível nas práticas destes jovens, respeitando
seu espaço de grupo e sua dinâmica, a interação com os outros participantes e, principalmente, o momento
singular de “treino” de cada indivíduo. Percebia-se que estar ali com seus amigos, dançando, dialogando,
interagindo, aprendendo, tinha um aspecto de trabalho sobre si mesmo, de construção simbólica de si
mesmo que era muito valorizado por esses sujeitos.
Assim, levando em conta estas especificidades e as diferentes questões apresentadas, centrou-
se metodologicamente em duas abordagens: a primeira, num extenso trabalho de acompanhamento das
atividades desses jovens em diferentes momentos, inspirado nos aportes da metodologia de etnografia
urbana – um olhar de perto e de dentro (MAGNANI, 2002; 2009), buscava-se acompanhar os jovens em
suas atividades (treinos, apresentações, eventos, entre outros), registrando elementos observados no diário
de campo. O segundo, na construção de entrevistas abertas (ZAGO, 2003), que proporcionavam momentos
em que os jovens pudessem “narrar-se” de forma livre, numa perspectiva dialógica, de modo que o sujeito
seja convidado a falar de si, sobre sua trajetória, suas inserções, opiniões, entre outros. Dessa maneira,
buscava-se adequar a metodologia de pesquisa às práticas dos jovens, buscando respeitar seu espaço de
encontro.
O investimento em um trabalho de campo mais extenso, ou seja, participar ativamente das atividades
promovidas por esses jovens – encontros, treinos, eventos, viagens – possibilitou a criação de importantes
redes de amizade que foram essenciais para a pesquisa. Estar com os jovens permitia uma vinculação mais
informal, participando de suas conversas cotidianas, momentos em que falavam de si de forma mais livre,
contava suas vidas, falavam de suas experiências, seus dramas e dilemas. Algumas vezes, perguntas feitas
pelo pesquisador favoreciam esses relatos; outras vezes, seguia-se a espontaneidade do momento.
A conversa informal não deixava de produzir relatos importantes sobre a vida desses sujeitos, pois
eram levados, ao longo do diálogo, a refletir sobre sua condição, pois a partir do processo de narrar-se, não
deixa de analisar sua experiência de vida, de (re)ver suas opiniões, valores e ideias acerca das formas como
vê o mundo, produzindo, assim, um ato de pensar sobre sua própria trajetória, um olhar reflexivo sobre si
mesmo. Nesse sentido, um acerto foi não optar por questionários fechados, mas deixar construir as questões
ao longo da dinamicidade dos momentos de diálogo propiciados pela pesquisa, ao adequar os tempos e
processos de acordo com as relações que foram sendo estabelecidas em campo, mais especificamente, na
relação com os sujeitos (ZAGO, 2003). Essa abertura propiciou descobrir elementos da vida e da trajetória
desses sujeitos que talvez não fossem desvelados por questões específicas propostas, mas que foram
abordados a partir dos vínculos de amizade e confiança estabelecidos entre os jovens e o pesquisador. O que
emergia nessas conversas, o que era relatado por esses jovens era, por fim, registrado não por gravadores,
mas pelo próprio pesquisador, que transcrevia os relatos no caderno de campo.
Importante destacar que estes relatos não se estabeleciam de forma linear, não seguiam, obviamente,
uma sequencia cronológica exata. Ao narrar sua história, o sujeito não consegue estabelecer uma totalidade:
constrói, a partir do que narra, uma lógica de registro de sua vida, uma estrutura de caráter provisório
que possibilita compreender a vida no momento em que a narra. O relato constitui-se como peças de
um mosaico que, a partir de diferentes cores e formas, estabelecem uma imagem que pode ser vista,
comunicada e interpretada, mas não fixada, pois sua composição permite outros arranjos possíveis. Dessa
forma, estas narrativas de vida não podem ser compreendidas, como afirma Arfuch (2010), como matéria
inerte, “conteúdos” fixados que possibilitariam ao pesquisador quantificar, citar, recortar, sublinhar, mas
como “acontecimento de palavras que convoca uma complexidade dialógica e existencial” (p.258). Além
disso, conforme a autora, os relatos propiciam “[...]conhecer, compreender, explicar, prever e até remediar
situações, fenômenos, dramas históricos, relações sociais, a partir das narrativas vivenciais, autobiográficas,
testemunhais dos sujeitos envolvidos” (ARFUCH 2010, p.250), ou seja, à medida que narravam, revelavam
elementos de sua singularidade, de sua vida e trajetórias; mas também davam a conhecer seus modos
de vida, as formas como se relacionavam com o social, os dramas que viviam em sua cotidianidade. O
fato destes relatos perpassem pela mediação, registro e interpretação do pesquisador – inevitável nesta
perspectiva, pois o relato de vida não é um dado “exato” e “imutável” -, não deixa de descaracterizá-lo
como um registro da ação humana destes sujeitos, com suas lógicas, personagens, tensões e alternativas,
uma forma de estruturação da vida (ARFUCH, 2010).
Ao acompanhar tais práticas cotidianas, faz-se necessário destacar a dimensão da escuta, necessária
ao pesquisador: ouvir os relatos, questionar acerca dos acontecimentos da vida dos jovens, interessar-se
pelos detalhes, pelos sentidos e significados que são atribuídos para além de suas hipóteses, elaborar a
sequência dos acontecimentos, perceber as formas como se constroem a si próprios, discursivamente. Trata-
se de pensar na narrativa como sempre relacionada a seus contextos, a outras histórias e formas narrativas
com as quais se relacionam e que compõem uma rede de discursos e acontecimentos que “capturam”
elementos das mais variadas ordens. Neste contexto, a escuta emerge como forma de alteridade, atitude de
acolhia e abertura, de sensibilidade e respeito em relação ao outro. Um desafio de alteridade, como destaca
Melucci (2004, p.128), pois “reside na capacidade de assumir o ponto de vista do outro sem se perder”.
Assim, a dimensão do encontro com estes jovens gerou conexões de “sim-patia”, “com-paixão”, “sentir-
com-o-outro”, “possibilidade de descobrir que o sentido não nos pertence e surge no encontro, mas, ao
mesmo tempo, só nós podemos produzi-lo” (MELUCCI, 2004, p.128-129). Nessa perspectiva, o vínculo de
amizade e confiança estabelecidos com o pesquisador são verdadeiros, o que produz um compromisso ético
com o que lhe é partilhado, refletindo constantemente acerca dos usos e das formas de como operar com
esses relatos. O silenciamento do pesquisador para a escuta do outro, a atenção ao registro de seu relato,
coloca o indivíduo numa condição de reconhecimento de autor/narrador/personagem, sujeito de sua própria
biografia.
No caso dos jovens desta pesquisa, as narrativas podem constituir a oportunidade de um registro
biográfico único desses sujeitos que insistem em viver suas vidas, apesar das condições contrárias que
encontram, que têm muito a narrar de suas experiências; mas cujo relato pode encontrar seu fim na
imprevisibilidade, nas vicissitudes que marcam aquelas vidas2. Nesse sentido, a pesquisa pode ser constituir
um registro da existência desses sujeitos, um modo de tornar conhecida a vida daqueles que não são escutados,
que não tem oportunidade de expressar-se ou são silenciados, deixados de lado enquanto testemunhas da
verdade científica ou midiática (ARFUCH, 2010). Uma questão a ser pensada, nesse sentido, refere-se ao
anonimato desses sujeitos e experiências, exigência colocada pela maioria das publicações acadêmicas,
mas que não deixa de constituir um silêncio sobre esses indivíduos que concordam em narrar suas vidas
e trajetórias. Não seria um reconhecimento do valor de sua própria história e experiências nomear esses
sujeitos? Essa é uma questão que, longe de consensual, deve pautar os temas de debate das comissões
científicas nas ciências humanas e sociais.
2 O bairro onde foi realizada esta pesquisa é um dos que apresenta maior índice de morte de jovens da
cidade de Porto Alegre. Não são raras vezes em que os participantes narram sobre a morte violenta de algum
conhecido ou vizinho com quem tem contato, ou mortes que ocorreram perto de seus locais de moradia e
que as veem descritas nas páginas dos jornais. A morte parece fazer parte do cotidiano destes sujeitos.
Em vias de conclusão, algumas reflexões finais
Referencias
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ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. (org.). A aventura (auto)biográfica: teoria e empiria. Porto
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ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2010.
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ERRANTE, Antoinette. Mas afinal, a memória é de quem? Histórias orais e modos de lembrar e contar.
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HERSCHMAN, Micael. GALVÃO, Tatiana. Algumas considerações sobre a cultura hip hop no Brasil hoje.
In.: BORELLI, S. FREIRE FILHO, J. Culturas juvenis no século XXI. São Paulo: EDUC, 2008.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do Eu e Educação. In.: SILVA, T.T (org.). O sujeito da educação: Estudos
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MÉLIC, Joan-Carles. A palavra múltipla: opor uma educação (po)ética. In: LARROSA, J. SKLIAR, C.
Habitantes de Babel: Políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
MELUCCI, A. A invenção do presente. Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes,
2001.
ZAGO, Nadir. A entrevista e seu processo de construção: relfexões com base na experiência prática de
pesquisa. In.: ZAGO, N. CARVALHO, M. P. VILELA, R. A. T. (orgs.) Itinerários de pesquisa. Perspectivas
qualitativas em Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.
EIXO 1: PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Iniciando a pesquisa
Persuadido de ser útil á historia, e precisando muitas vezes narrar certas miudezas de fatos,
receei menos o fastio do leitor, cuja censura devo supor que seja modificada; e confio
na benignidade do publico haja de desculpar o atrevimento desta empresa, certo de que
cuidadoso de lhe dirigir o fruto das minhas aplicações, não me desvelei na arte, na pureza
e na graça do dizer (circunstancias menos precisas do que a verdade, ídolo principal da
historia), ocupando-me mais em coligir os subsídios que devem servir de base a quem,
com pena culta, hábil e judiciosa, convier à composição de uma histeria do Continente
Brasileiro. (ARAÚJO, 1945, p.5)
Para contribuir com a compreensão do contexto histórico em que viveu e escreveu o personagem
observado, a gravura abaixo, de Leandro Joaquim (1738-1798), caracteriza esse período ilustrando a região
dos Arcos da Lapa, importante área da cidade do Rio de Janeiro, em que nasceu e viveu grande parte de
sua vida.
Gravura de L. Joaquim
José de Souza Pizarro e Araújo nasceu em 12 de outubro de 1753, filho do Coronel Luís Manoel de
Azevedo Carneiro da Cunha e de Dona Maria Josefa Pizarro e Araújo.
Logo após concluir no Brasil os Primeiros Estudos, seguiu para Coimbra, cidade portuguesa onde
completou seus Estudos Superiores na Faculdade dos Cânones, nesse momento já reformados por Marquês
de Pombal, no ano da Independência das Treze Colônias Inglesas, em 1776. Essa foi uma conjuntura
marcada pelas ideias revolucionárias do iluminismo que a partir da França se espalharam no continente
europeu e, em seguida, chegaram às Américas, sobretudo no Brasil, através dos estudantes que cursavam
no velho continente seus estudos. Em 1781, já de volta ao Brasil, tomou posse no Cabido do Rio de Janeiro,
a assembleia dos cônegos do Bispado.
O personagem além de ser cânone da Sé do Rio de Janeiro, integrou a Sociedade Científica e
Literária do Rio de Janeiro e foi Comissário do Tribunal do Santo Ofício. A Sociedade Científica e Literária
do Rio de Janeiro foi uma instituição fundada em 1786 por Silva Alvarenga, e compunha-se de intelectuais,
professores, profissionais liberais, onde discutiam os ideais iluministas. Em 1794, a sociedade foi fechada
pelo Vice-Rei Conde de Rezende e vários de seus membros sofreram a ação da devassa instituída pelo
governo português, que ficou conhecida como Conjuração Carioca. De menor importância ideológica e
política, compõe juntamente com a Conjuração Mineira, datada de 1789 e da Conjuração Baiana, ocorrida
em 1798, os primeiros movimentos de insurreição contra o domínio da metrópole portuguesa. Durante a
fase da devassa, nenhuma prova foi encontrada contra Monsenhor Pizarro.
Em 1794, inicia suas viagens pastorais pelo Bispado, nas capitanias do Rio de Janeiro, Espírito
Santo, São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais, entre outras regiões, mais tarde após a independência,
denominadas províncias. Novas visitas foram realizadas em 1799. Durante essas viagens recolheu material
e teve acesso a outras pesquisas da época, como as Memórias Eclesiásticas iniciadas em 1732, e elaboradas
por ordem de D. Fr. Antonio de Guadalupe. Essa obra que pretendia conhecer a situação eclesiástica da
região do bispado ficou incompleta até que Monsenhor Pizarro tomou a frente, decidindo-se por finalizá-la.
Pizarro decidiu escrever as Memórias Históricas do Rio de Janeiro após conhecer a ordem
dada por D. Fr. Antônio de Guadalupe, no intuito de suscitar as “Memórias Eclesiásticas”
da diocese, antes que o tempo as destruíssem. Com o objetivo de se ter um “bom proveito
e útil à História”, D. Fr. Antônio determinou que o secretário capitular escrevesse em
um livro todas as notícias da Sé, desde a fundação e criação da igreja Catedral, passando
pelas dignidades, cônegos meio cônegos, e as demais pessoas empregadas no seu serviço.
Também deveria escrever sobre as côngruas que tinham, de onde eram pagas; o número
de comarcas do bispado; em quais comarcas havia vigários da vara. (GALDAMES, 2007,
p38)
Em 1801, Monsenhor Pizarro volta à Portugal a fim de receber, segundo o historiador Américo
JacobinaLacombe (1949), uma recompensa pelos serviços militares prestados por seu pai. Retorna ao Brasil
na mesma nau utilizada pela Família Real quando da sua transferência em 1808, para instalação da sede
do Reino Português em terras americanas, que fugia das tropas francesas de Napoleão. Sua proximidade
com a Corte Portuguesa fica patente quando nomeado o Procurador-Geral das Ordens de Sua Majestade,
no mês de agosto do mesmo ano de seu desembarque. Era um cargo de grande poder, pois controlava
as irmandades e os religiosos, dava permissão para a criação de novas freguesias, tratava de queixas de
sacerdotes insatisfeitos com seus fieis e das queixas dos fieis contra seus párocos. Portanto, as questões
religiosas ocorridas na sede da Coroa Portuguesa passavam por suas mãos e autoridade.
Em 1825, quando o Brasil engatinhava em sua construção como Estado Nacional, oMonsenhor
Pizarro inaugurou, também, um novo momento em sua vida no cenário da política brasileira. Foi eleito
deputado na Assembleia Geral do país, e mais tarde se tornou presidente da mesma casa legislativa. Assumiu
função ainda na poder judiciário como Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, aposentando-se em
1828.
Cabe observar, portanto, que Pizarro ocupou diferentes cargos de destaque tanto da estrutura
portuguesa quanto da montagem do Estado Monárquico, único nas Américas.
Transitou com facilidade pelos meandros do poder, usufruindo das benesses do Padroado (instituição
que permitia à Coroa Portuguesa a administração da Igreja em seus territórios e que se manteve no Estado
Monárquico constituído após 1822).
Pizarro foi biografado por alguns nomes de destaque do mundo literário e acadêmico nacional,
dentre eles, podemos destacar Joaquim Manoel de Macedo e por Américo Jacobina Lacombe. Macedo, que
viveu entre 1820 e 1882, foi médico e escritor de romances, contos e peças teatrais, e ficou notabilizado
com “A Moreninha” – considerado o primeiro romance editado no Brasil, em 1844. Macedo, narra a vida
de Pizarro em Livro de Autographospublicada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional.
A primeira edição de Memórias Históricas aconteceu em duas etapas: em1820 foram publicados os
dois primeiros volumes pela Impressão Régia, e dois anos mais tarde, a edição da obra foi concluída pela
Imprensa Nacional.
(...) os limites territoriais com conservação; objetos para cultos; data das provisões de
criação das capelas existentes no seu território e o nome de seus fundadores; a disciplina
do clero e a participação dos fregueses; e as visitas de seus precedentes visitadores e bispos
e as medidas administrativas por eles recomendados ou tomadas. (...) Durante as visitas
também era realizado um censo demográfico, que consistia em uma contagem dos fogos
[residências], e também das almas sujeitas a sacramentos. (2007, p. 31/32)
Além dos dados apontados acima, podemos destacar ainda, a localização geográfica de povoados
e aldeias pelas províncias visitadas, permitindo que hoje sejam conhecidas as demarcações originais das
primeiras freguesias criadas na colônia portuguesa na América. A minuciosa descrição de Pizarro apresentada
para a Freguesia de São Francisco Xavier (Orago da Aldêa de Itagoahy) demonstra a propriedade de tal
delimitação:
Divide-se esta Freguesia pelo N., na distancia de 4 leguas pouco mais ou menos, com a da
Santa Família: pelo S., na distancia de 2. ½ léguas, com alguma diferença, com a Freguesia
de Nossa Senhora da Conceição de Angra dos Reis da Ilha Grande, pelo Nascente, na
distancia de 3 leguas na forma dita, com a de Nossa Senhora da Conceição de Mariapicú:
e pelo Poente, digo, e com a de S. Salvador do Mundo da Guaratiba, e pelo Poente, na
distancia de 3 leguas na forma dta., com a de S. João Marcos: e ultimamente pelo SW., com
a de N. Sra. da Guia da Aldêa de Mangaratiba.
(PIZARRO, 1945, Vol. V, p72)
Dentre os pesquisadores que se debruçaram sobre a obra em questão podemos destacar FaniaFridman
e historiadores de renome como Caio Prado Jr. Alguns trabalhos que examinam as memórias sobre os
primeiros proprietários de terras e sesmeiros das mais antigas capitanias apoiam-se em dados e informações
apresentados no trabalho de Monsenhor Pizarro.
O trabalho apresenta resultados de uma pesquisa em andamento que trata da formação das
freguesias no Rio de Janeiro. Estas aglomerações, que contavam com atividades agrícolas
e citadinas, constituíam-se em núcleos de povoamento e mercados locais. Até o final do
século XVIII, dezenas de freguesias haviam sido estabelecidas, partindo do litoral em
direção ao sertão. Tais polos cristãos, fundados pela Igreja em parceria com a “nobreza da
terra”, apontam para a existência de uma rede urbana e de estratégias territoriais no projeto
ultramarino português. (FRIDMAN, 2009, p. 91)
No caso de FaniaFridman, inclusive alguns mapas são elaborados a partir de informações detalhadas
retiradas das descrições
ç contidas em sua obra, como ppodemos observar na imagem
g abaixo.
A historiadora Maria Sarita Cristina Mota, em sua tese sobre a história social da propriedade, cujo
foco é a história fundiária das terras de Guaratiba da Capitania do Rio de Janeiro fundamenta-se em Pizarro
para explicar o povoamento e as disputas por terras de uma dada região.
Como informa Monsenhor Pizarro (1945, p.210, v.3), tratar-se-ia de uma terceira capela
na região, fruto dessa doação “por escritura à fôl. do Liv. 1627 a 1629 servido na nota dos
Tabeliães Jacinto Pereira, e João de Brito Garcez, que há poucos anos ocupava Faustino
Soares de Araújo”. A instituição de mais de uma capela na região, mais do que dizer do
crescimento do povoado, refere-se às disputas entre os senhores pelo reconhecimento
social, sobretudo pelos subalternos.
A descrição de Monsenhor Pizarro já demonstra a dificuldade de localização, naquela
época, do cartório de registro desta doação. As escrituras destas transações ainda existentes
no Arquivo Nacional (Corte de Apelação do Rio de Janeiro. Processos 3 e Processo 4, Caixa
1146) estão em péssimo estado de conservação, impossibilitando uma análise mais densa.
Tal doação gerou conflitos entre os sucessores e os carmelitas, conflitos que permaneceriam
anos depois na história fundiária da Freguesia de Guaratiba. (MOTA, 2009, p.143)
Mariana Muaze, historiadora da UNIRIO, quando pesquisou sobre a cultura cafeeira da região
fluminense, apoiou-se em Pizarro para comparar discutir a produtividade da região do Vale do Paraíba,
utilizando os dados apresentados por Pizarro sobre a produção da Tijuca, em seus primeiros anos de cultura
do café, e também, para localizar propriedades da época, na mesma região.
O padre e historiador monsenhor Pizarro atestou, por exemplo, que a Tijuca era a localidade
de maior produção no início do século XIX: “Não há chácara ou fazenda que deixe de
cultivar o precioso gênero”. (MUAZE, 2011, p. 299)
(...)
No início do século XIX, ao passar pela Fazenda Piedade, localizada na freguesia
de Conceição do Alferes de Serra Acima (atual município de Miguel Pereira), o historiador
monsenhor Pizarro comentou que o engenho de Inácio Werneck “distanciava 3 ½ léguas
em N. S. da Piedade, no rio Sant´Anna” (MUAZE, 2011, p.309)
Obra de História, de referência sobre a província do Rio de Janeiro do início do século XIX, constitui-
se como importante base documental para muitos estudos sobre o processo de ocupação e povoamento do Rio
de Janeiro. No campo da História da Educação a obra de Pizarro também pode representar uma importante
fonte de pesquisa e investigação, na medida em que fornece indícios dos povoamentos e aldeamentos das
diferentes regiões do Bispado, levantando a possibilidade de existência de escolas e professores.
A leitura cuidadosa do texto de Pizarro apresenta material e indícios para diferentes pesquisas no
campo da história. Sua descrição tão detalhada de localidades e de suas condições sugere muitos temas a
serem investigados, como:
Demarcação das províncias
Localização de fazendas
Localização de igrejas
Presença de engenhos
Quem foi Monsenhor Pizarro? Que lugar o religioso ocupou na sociedade em que viveu? Monsenhor
Pizarro foi contemporâneo de alterações políticas decisivas para o processo histórico brasileiro, as quais
acompanhou muito próximo ao poder. Ele nasceu no Rio de Janeiro, anos antes da cidade tornar-se a capital
da colônia, com o pomposo título de Vice-Reino do Brasil, em 1763, no Reinado de D. José I, sob o governo
pombalino. Em 1808, quando regressou ao Brasil em companhia da Família Real Portuguesa, assistiu o Rio
de Janeiro transformar-se em sede de todo o Reino Português, e mais tarde, em 1816, a tornar-se capital do
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Poucos anos após, em 1822 assistiu à emancipação política do
Brasil. E nesse novo momento, assumiu um papel decisivo, pois se tornou deputado na Assembleia Geral.
Monsenhor Pizarro nasceu em uma família de militares, como já citado anteriormente; seu pai
atingira a patente de coronel, mas também possuíra tios que fizeram parte da hierarquia da Igreja, assumindo
funções de autoridade no Rio de Janeiro. As tradições militares e o rigor eclesiástico vivenciados no
ambiente familiar talvez tivessem facilitado o desenvolvimento de um jovem dedicado e disciplinado em
seus afazeres.
Estudante aplicado nos Estudos Elementares foi orientado a completar o ensino superior em Coimbra.
Só após a morte de seus pais ocorrida depois de sua formatura, que se decidiu pela vida religiosa, quando
assume uma cadeira no Cabido do Rio de Janeiro, posto que já fora de um de seus tios.
A formação de Monsenhor Pizarro em Portugal, em um período sob forte marca do pensamento
iluminista levanta dúvidas sobre a possível influência revolucionária em seu caráter. Os cargos e funções
que ocupou ao longo de sua vida profissional e as atividades que desenvolveu, do ponto de vista cultural e
ideológico deixam fortes indícios de seu percurso contraditório. Apesar da austeridade que se presume tenha
sido sua formação, aproximou-se como intelectual-membro de uma sociedade de influência iluminista cuja
principal atividade consistia em debater o pensamento iluminista. Ele, portanto, parece ter sido formado em
um contexto de fortes rigores marcados pela hierarquia militar, mas também pela ordem disciplinar imposta
pela Igreja.
Mas o que era a História nos tempos de Monsenhor Pizarro? Como se constituía tal saber? Quem
era o historiador? Que ofício era esse? A História é ela própria uma construção histórica, situada em um
espaço e em um tempo bem definidos. A História, desde os gregos, buscava ressaltar a ação dos homens.
Era como advertia Heródoto a consagração dos empreendimentos humanos. A História possuía um método
que se expressava na pesquisa e na crítica dos fatos, de forma a eliminar lendas e mitos. Com os romanos,
o sentido utilitário da história converte-se em necessidade. Há que se exaltar as glórias do Estado Romano.
Até o Renascimento a história adquire uma dimensão filosófica com a presença forte da mentalidade cristã.
Para GLÉNISSON (1979), até o século XIX, a História era encarada como um conhecimento dos fatos e
das datas. A História preexistia ao historiador.
Entre os séculos XVII e XVIII, a História fez surgir o julgamento de veracidade, buscando discernir
o verdadeiro e o falso na história. Entretanto, a História efetivamente pouco se transformou desde a
antiguidade. Constituía-se de uma forma narrativa, quase uma experiência literária sobre o passado humano.
Por vezes, ela é um simples exercício de retórica, uma mescla de narrações e de discursos nos
quais os personagens, semelhantes aos da tragédia clássica, desvelam em bela linguagem
os segredos de suas ações... Ou, então é biográfica à maneira de Plutarco e Suetônio:
estudando com curiosidade a vida dos grandes homens, os historiadores deixam-se levar a
explicações muitas vezes pueris dos grandes acontecimentos. (DÉZERT& BRÉHIER apud
GLÉNISSON, 1979, p.19)
De toda a forma, a História faz-se com documentos, como afirmou MARROU (1974, p.61): “Não
podemos alcançar o passado directamente, mas só através dos traços, inteligíveis para nós, que deixou atrás
dele, na medida em que estes traços subsistiram, em que nós os encontramos e em que somos capazes de
os interpretar (...)”. E Pizarro apoiou-se em uma fonte denominada “Memórias Eclesiásticas”, antigo livro
do Cabido, datado de 1732, pertencentes ao Cabido, muito úteis para escrever os primeiros volumes, e
elaborados por ordem de D. Fr. Antonio de Guadalupe, cujo teor tratava desde a chegada dos portugueses
à Guanabara até a fundação da cidade do Rio de Janeiro. Apoiou-se, ainda, nos relatórios eclesiásticos
elaborados por ele próprio em suas primeiras visitas às freguesias, que forneceram subsídios para os
momentos mais recentes.
Pizarro praticou seu ofício de historiador como era esperado em sua época. Reuniu documentos,
buscou a veracidade dos fatos, e organizou-os em sua obra. Era um homem interessado em contribuir com
a sua pátria, como apresentado no início do texto. Ao escrever sua principal obra refletiu a visão de um
homem da elite política e religiosa de seu tempo. O seu trabalho transparece a preocupação em organizar
as memórias necessárias para a História da Igreja, como instituição no Brasil. A sua história procurou
descrever ambientes e narrar brevemente alguns fatos. As descrições compunham um quadro, que servem,
atualmente, como base para a apresentação de um momento histórico. PROST afirma que:
(...) as narrativas comportam quadros e, por sua vez, os quadros dispõem de relatos. No
miolo de Le Dimanche de Bouvines, encontrar-se-á uma narração de batalha, assim como
outras sequências de eventos. Do mesmo modo, no livro La Sociétéféodale, um grande
número de narrativas explicam como se processou a instalação dos principais elementos de
estrutura: as técnicas militares da lança ou o ritual do juramento de fidelidade. Inversamente,
as narrativas incorporam sequências descritivas e estruturais; algumas expõem, até mesmo,
a evolução de estruturas ou de configurações coerentes, aspecto pelo qual devem começar
sua descrição. (2012, p. 216)
A História como ciência só se estrutura em meados do século XIX e, por conseguinte, a figura do
historiador como um profissional decorre dessa conjuntura. Na França, conforme PROST (2012, p.33)
a profissão surgiu por volta dos anos de 1880, quando as Faculdades de Letras organizaram o ensino de
História: “Anteriormente, havia amadores – muitas vezes, de talento; e, às vezes, de gênio -, mas não uma
profissão, ou seja, uma coletividade organizada com suas regras, seus rituais de reconhecimento e suas
carreiras.”
Quanto às temporalidades da História tão bem explicitadas por Fernand Braudel (1976), Pizarro
trabalhou com o tempo breve. Dedicou-se ao fato de curta duração - o eventual - como era o presumível
na concepção de História de sua época. O tempo breve, o tempo dos acontecimentos políticos, sobretudo,
imperava na História até as primeiras décadas do século passado, em contraste com a média e a longa
durações, ou o tempo das conjunturas e o das mentalidades, que atualmente prevalecem na análise histórica.
Para BRAUDEL (idem, p. 12), a História tradicional, concepção em que se enquadra o escritor-personagem
dessa análise, “(...) atenta ao tempo breve, ao indivíduo e ao acontecimento, habituou-se desde há muito à
sua narração precipitada, dramática, de pouco fôlego.”
No Brasil atual, assim como no tempo de Monsenhor Pizarro, a profissão de historiador ainda não é
regulamentada. Atualmente, percorre os corredores do Congresso Nacional, aguardando a sua tão esperada
regulamentação em meio a debates entre os aspirantes ao ofício. Longo caminho em busca de oficialidade -
que remonta a 1968 -, quando a profissionalização do ofício da História, esbarrou em diferentes obstáculos,
dentre eles, um dos mais maciços foi representado pela contrariedade dos governos militares, que não se
opunham apenas à existência do profissional, mas, sobretudo, à própria ciência da história, a qual eles
pretenderam diluir na criação da disciplina Estudos Sociais.
O contato com a obra de Monsenhor Pizarro permitiu a descoberta de que, mais do que apenas uma
fonte para o estudo que envolve a origem e a localização dos atuaismunicípios e das antigas províncias
brasileiras, em que seu texto é primoroso, ele fornece pistas para muitos temas de pesquisa, inclusive, no
campo da história da educação.
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Resumo: Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, ancorada nas narrativas de vida e de trabalho
de pessoas que residem no Distrito de Brejinho das Ametistas, na zona de exploração mineral de pedras
semipreciosas (ametistas) do município de Caetité-BA, Brasil. O problema que impulsionou o referido
estudo foi investigar o que mobiliza as pessoas a trabalharem na mineração, já que é um trabalho que
envolve riscos, conflitos e afetam diretamente a vida e a saúde das pessoas, cuja intenção foi analisar as
narrativas de vida e de trabalho das pessoas que residem na área de mineração no Distrito de Brejinho
das Ametistas, Caetité-BA. Como instrumento de recolha de dados para análise utilizamos a entrevista
narrativa. Além disso, a investigação também intencionou identificar os sofrimentos acometidos pelos
mineradores e familiares decorrentes das atividades de mineração. Pesquisas que envolvem narrativa de
vida e de trabalho de pessoas que residem em áreas de mineração apontam possibilidades, a partir da
análise interpretativa-compreensiva dos percursos de trabalho na mineração e suas consequências na saúde
e qualidade de vida. Assim, esta investigação pode contribuir para apontar um modelo de atuação social
como moldura estratégica para a garantia de direitos civis de quem reside na área de mineração do Distrito
de Brejinhos das Ametistas, Caetité-BA.
O contexto da pesquisa
O Estado da Bahia-Brasil é o quinto maior produtor de minerais do Brasil, com diversos investimentos
desde privados a públicos e o interesse pela expansão na exploração dos minerais como urânio, cobre,
magnesita, ouro, cromo, talco, salgema, barita, bentonita e níquel, justificam-se principalmente pelo fato do
estado baiano ser um dos principais produtores no país, além de possuir significativa produção de rochas
(britadas), cascalho, areia, água mineral, rochas ornamentais, como a ametista, entre outras (A TARDE,
2011).
Apesar do potencial econômico dessas atividades mineradoras, essas também possuem um relevante
risco para a contaminação ambiental e para a saúde das populações residentes nas áreas de prospecção de
minerais na Bahia – Brasil, pois o estado baiano possui uma história na banalização dos riscos que resulta
em acidentes e problemas socioambientais, como nos asseguram Carvalho et. al. (2003); Cruz (2004);
Moniz et. al. (2012); Prado (2007); Veiga, Alves e Rocha (2002), ao afirmarem, em suas pesquisas, que o
desenvolvimento da mineração ocorre de forma irresponsável e sem o adequado planejamento ambiental
e epidemiológico, desconsiderando as demandas do meio ambiente e das comunidades desses territórios.
Nos últimos anos, o município de Caetité (Figura 1), no sudoeste do Estado da Bahia, situado
na região da Serra Geral, com grandes reservas de minerais como ametista, urânio, manganês e ferro
encontrados naturalmente na área, se tornou o centro de debates calorosos em noticiários, reportagens que
denunciam a questão dos riscos intrínsecos de acidentes e contaminação durante o processo de extração de
minérios pelas empresas mineradoras que ameaçam também a saúde dos moradores. Entre as pessoas em
estado de maior vulnerabilidade, estão os residentes que vivem no entorno da mina, como trabalhadores,
agricultores e pessoas desprovidas de recursos financeiros para buscar tratamento de saúde adequado.
Contar histórias implica duas dimensões: a dimensão cronológica, referente à narrativa como uma
sequência de episódios, e a não cronológica, que implica a construção de um todo a partir de suces-
sivos acontecimentos, ou a configuração de um “enredo”. O enredo é crucial para a constituição de
uma estrutura de narrativa. É através do enredo que as unidades individuais (ou pequenas histórias
dentro de uma história maior) adquire sentido na narrativa. Por isso a narrativa não é apenas uma
listagem de acontecimentos, mas uma tentativa de ligá-los, tanto no tempo como no sentido. (JO-
VCHELOVITCH; BAUER, 2012, p. 92)
Para Jovchelovith e Bauer (2012, p. 95), a entrevista narrativa é “uma forma de entrevista não estru-
turada, de profundidade, com características específicas” e, neste trabalho particular, ela foi utilizada para
dar visibilidades aos sujeitos da mineração, pois o método (auto)biográfico possibilita remexer o passado e
“[...] reordená-lo, contextualizá-lo no tempo, no espaço e no contexto de cada indivíduo, entretecê-lo na teia
da história – a história de uma pessoa – e compreendê-la na sua natureza multifacetada” (ALARCÃO, 2004,
p. 9), cujos relatos são feitos por meio das memórias e relatos orais de vida e de trabalho na mineração em
Brejinho das Ametistas em Caetité-BA.
Mineração em Brejinho das Ametistas: as narrativas de vida e de trabalho dos sujeitos com histórias
invisíveis
Para falar da mineração em Brejinho das Ametistas, faz-se necessário conhecer o sofrimento
acometido pelo trabalho de várias famílias que vivem desta atividade econômica em Caetité-BA, de modo
a dar mais visibilidade a essas sujeitos, cujas vozes, em sua maioria, foram e são silenciadas.
Representantes das comunidades do entorno das minas, como da Igreja Católica e principalmente
do Ministério Público reivindicam discussões e estudos esclarecedores sobre o problema que envolve a
mineração na região de Caetité-BA e seus impactos na saúde das pessoas.
Algumas iniciativas para descrever os impactos da mineração na saúde das pessoas na região
foram realizadas, entretanto, nenhum dos trabalhos investigou as narrativas de vidas dos sujeitos
que vivem e trabalham na mineração.
Das pesquisas realizadas sobre mineração e saúde das pessoas, podemos citar a dissertação
de Prado (2007) que reza sobre contaminação ambiental por urânio utilizando dentes humanos
como bioindicadores, onde os valores encontrados são cerca de 100 vezes maiores que a média
mundial indicando elevado risco de desenvolvimento de doenças em relação a outras populações do
Brasil e do mundo.
O Instituto de Gestão das Águas e Clima (INGÁ) e a ONG Greenpeace afirmam que exis-
tem poços contaminados pelo urânio em Caetité, mas a empresa Indústrias Nucleares do Brasil
confirma que os poços indicados encontram-se dentro dos padrões aceitos, aumentando as dúvidas
e incertezas da população da região, o que tem levado à realização de levantamentos científicos em
Caetité, utilizando técnicas de monitoramento ambiental e restringindo as informações sobre níveis
elevados do urânio e outras substâncias de potenciais tóxicos.
Meu pai e meu avó trabalhava no garimpo na Serra do Salto, no município de Licínio de Almeida,
na Bahia. Meu bisavô criou meu avô lá dentro porque naquela época o garimpo era deles. Depois
meu avô criou meu pai lá dentro e depois meu pai nos criou. Depois quando eu saí de lá, com 14
anos de idade, vim pra trabalhar em Brejinho, mexer com gado. Mexi com outras coisas, como leite
e fiquei por aqui, criei meus filhos, minha família aqui, mas meu filho foi trabalhar na mineração
porque não teve outro jeito, faltava emprego aqui [...]. Meu filho trabalhava lá na Serra do Salto,
ele trabalhava no compressor furando a pedra e ali tinha uma pedra muito dura, e eles não usavam
uma máscara e saíam assim todo coberto de pó de pedra e eu também trabalhava, mas num lugar
que tinha mais respiração, mas quando eu saia de tarde do serviço, sentia que meu queixo doía
muito [...] (Entrevista Narrativa do Sr. Dino, 2011).
Fica claro, neste excerto narrativo que o trabalho na mineração decorre de dois fatores. Primeiro,
é uma atividade que é passada de pai para filho, como uma herança cultural. Segundo, a atividade na
mineração ocorre por falta de outra opção por trabalho na região de Caetité-BA, levando muitas pessoas
a se inserirem na mineração porque não conseguem atividade remunerada em outras formas de trabalho,
como fica evidenciado no fragmento da narrativa do Sr. Pepeu, quando disse que:
Trabalhei na mineração por mais de 18 anos. Ganhava mixaria, mas era a dificuldade o que gente
fraco sujeita a qualquer coisa e eu trabalhava lá durante a semana e vinha pra casa na sexta-feira
e voltava no domingo. O dinheiro que eu ganhava era mixaria, mal dava para sobreviver. [...] Já
vi muita gente morrer por causa do pó no pulmão e da explosão na mineração. [...] Teve gente que
já morreu por causa do desmoronamento do uso de dinamite, mas quando isso acontecia eu saía e
ficava uns dias sem trabalhar porque ficava com medo de morrer como os outros. Quando eu via
assim, o fura fogo e eu via o fumaceiro eu pulava fora de lá, eu dizia: não vou mexer com isso não,
é perigoso! E, quem ficou perto da fumaça, ficou doente e morreu. Alguns iam para Salvador se
tratar, ia pra outro lugar, depois passava tempo e morriam, mas graças a Deus não aconteceu nada
comigo. Não sinto nada disso que muitos sentiram e morreram [...], mas tem uns 3 dias que eu senti
uma dor nas costas quando faço esforço e fui ao médico e ele disse que era problema de coração.
(Entrevista Narrativa do Sr. Pepeu, 2011).
De acordo com alguns grupos locais em Caetité-BA, formado por representes de associações locais
1 Os nomes reais dos quatro colaboradores foram substituídos por apelidos fictícios para preservar a
identidade deles.
e igrejas, as atividades das empresas e empreendimentos da mineração seriam os responsáveis pelo aumento
no número de casos das doenças e alterações genéticas e fisiológicas na população do município baiano de
Caetité. Em contrapartida, as principais empresas instaladas na região afirmam que seguem os padrões de
segurança exigidos no Brasil e que os casos de adoecimentos relacionados à exposição dos minérios ocorrem
naturalmente nessa região, não sendo provocados pelas atividades das mesmas, o que não é evidenciado nas
narrativas de vida e de trabalho das pessoas que vivem/viveram ou trabalham/trabalharam na mineração
nessa região, como fica registrado no excerto da narrativa do Sr. Dede, um ex-minerador, falecido seis
meses depois da concessão desta entrevista narrativa. Assim ele disse:
Não usava nenhuma proteção. Chegava a sair com o nariz entupido de pó, mas naquela época
ninguém achava que aquilo era prejudicial à saúde, pois durante o período de 3 meses eu furava a
rocha e quando não estava neste serviço, recebia o pó da rocha do mesmo jeito porque o serviço mu-
dava. Um tempo furava a rocha para achar a ametista e em outro período quebrava a ametista para
a empresa comercializar [...] e tomava aquele pó do mesmo jeito, mais fraco, mas também tomava.
Depois de 14 ou 15 anos de serviço na mineração, comecei a me sentir mal, quando precisei ir ao
médico em Rio Preto, em São Paulo e neste período eu estava muito mal de saúde. Estava muito
ruim do pulmão. Neste período eu já tratava de artrite reumática em São Paulo e aumentou com o
problema da silicose e enfisema. (Entrevista Narrativa do Sr. Dede, 2011).
Este excerto da narrativa do Sr. Dede contraria o que afirmam as empresas mineradoras na região de
Caetité, na Bahia. A narrativa deste senhor demonstra uma estreita relação entre o trabalho de mineração e
o adoecimento provocado pela exposição e condições inseguras de trabalho.
Em relação aos sintomas que caracterizam o quadro clínico da silicose, doença mencionada na
narrativa do Sr. Dede, o estudo liderado por Luz et. al. (2011) descreve como sintomas dessa patologia:
dispneia, tosse frequente e dolorosa, com expectoração mucopurulenta principalmente, insuficiência
respiratória crônica, astenia intensa e emagrecimento. O mesmo trabalho de pesquisa anuncia também que
a doença evolui progressivamente até incapacitar totalmente os pacientes para o trabalho. A doença provoca
ainda lesão pulmonar irreversível e, nas fases finais do processo, a insuficiência cardíaca congestiva.
Corroborando ainda com a entrevista do Sr. Dede sobre as condições de trabalho, apresentamos a
situação evidenciada na narrativa do Sr. Dino, quando diz:
No local da mineração, onde eu e meu filho trabalhava, tinha gente que trabalhava lá dentro e não
tinham uma proteção. Aí ele foi atacado por aquele pó da pedra e foi pegando no pulmão dele, mas
ele não sabia o que é que era e começou com uma canseira e depois com uma tossezinha seca, aí ele
veio aqui em casa, eu tava lá na Serra do Salto, aí eu perguntei que tosse era aquela e ele falou que
era uma gripe que ele tinha pegado, mas eu falei que não, que essa tosse seca era parecida com um
tipo de bronquite e que era para tomar um remédio chamado de emulsão Scott pra ver se limpava o
pulmão dele [...]. Então, ele tomou e não deu certo, aí ele, cada vez mais, piorava e fui conversar
com Doutor Miguel que trabalhava na mineração de manganês e nós conversamos sobre isso e foi
ele que me falou que seus trabalhadores tinham que trabalhar em ar livre de vez em quando e que
alguns morriam por causa desse pó da pedra, mesmo usando máscaras e que o pó ía para o pulmão
das pessoas e não tinha nada de remédio nenhum que resolvesse porque o pó secava o pulmão da
pessoa e isso aconteceu com meu filho. Aí nós foi pra São Paulo e quando chegou lá, o médico ti-
rou chapa do meu filho todo e o pulmão dele estava igual a uma renda e que só via uma partizinha
branca, o resto tudo estava preto e ele já estava com uma fadiga muito grande, e aí morreu. [...] E,
dessa maneira já morreu muitos e aqui em Brejinho que eu sei uns 25, principalmente as pessoas
que trabalhavam furando a pedra, que morreram mais ligeiro, como meu filho. (Entrevista Narrativa
do Sr. Dino, 2011).
Estes fragmentos narrativos expõem a situação de risco na qual estes sujeitos estão inseridos, pois,
segundo Luz et. al. (2011), no Brasil, estima-se que o número de trabalhadores expostos a poeiras com
potencial de causar a silicose é superior a 6 milhões, sendo cerca de 500 mil em mineração e garimpo.
O diagnóstico pode ser prejudicado devido os diversos tipos de forma clínica, resultado de períodos de
exposição diferentes, na silicose crônica a doença ocorre após o período de dez a vinte anos após a exposição,
sendo caracterizada pela presença de pequenos nódulos difusos. Na silicose subaguda, a doença surge
após cinco a dez anos do início da exposição, sendo caracterizada por nódulos com inflamação intensa e
descamação celular nos alvéolos. A silicose aguda ocorre após exposições maciças de poeira de sílica livre,
em períodos que variam de poucos meses até quatro ou cinco anos, representada por lesões alveolares e
inflamações, nos assegura Luz et al. (2011).
Em outra entrevista, ainda sobre a exposição e as condições de trabalho na região das minas em
Caetité, a senhora Bel, viúva do senhor Tonho, um minerador falecido no ano de 1998, de silicose, essa
doença associada à mineração, conhecida popularmente como doença do pó da pedra, diz que o serviço de
seu marido era:
[...] furador de fogo, furador, porque era ele que ficava com aquela máquina assim (faz gesto com
as mãos, sacudindo as mãos fechadas) furando, né?! Os outros serviços da mineração não prejudi-
cava tanto, como o serviço que ele fazia, o de furar pedra, onde saía muito pó e não tinha máscara
pra prevenir nenhuma doença e aquele pó entrava no nariz, até pelos poros [...] O médico falou
que todo mundo que trabalhou lá até pelos poros que penetra e ele disse que não é bom, e como ele
ficava lá furando e tomando aquele pó todo. (Entrevista Narrativa do Sra. Bel, 2011).
Segundo Mendes (1979), silicose é o estado de enfermidade crônica dos pulmões, devida à
inalação de partículas sílica-livre ou não combinadas, sendo uma das patologias que acometem os
pulmões, entendida como o acúmulo de poeira nesse órgão e suas reações teciduais provocadas pela
sua presença.
A silicose é reconhecida como doença do trabalho e na área de saúde a relevância dada a sua
prevenção e vigilância advêm da gravidade dos casos e das complicações nos sistemas respiratório
e cardiovascular, destacando ainda as infecções entre outros sintomas clínicos (MENDES, 1979).
Desta forma, para identificar riscos, danos, necessidades, condições de vida e trabalho que
determinam as formas de adoecer e morrer dos trabalhadores, o Ministério da Saúde divulga, em 2002, o
Caderno de Atenção Básica em Saúde do Trabalhador (BRASIL, 2001), um documento destinado a apoiar
a capacitação dos profissionais, em especial às equipes de saúde da família, para promover a inserção dos
trabalhadores na rede básica de atendimento.
Apesar do Ministério da Saúde promover orientações, com o intuito de alterar o atendimento da
atenção básica em relação aos trabalhadores, para assegurar a assistência à saúde de forma resolutiva, com
qualidade, e capaz de responder à maioria das demandas de saúde dessa classe, os esforços não refletiram
resultados na realidade dos trabalhadores locais, fato comprovado através da entrevista feita com a senhora
Bel que narra a forma de tratamento que seu marido recebeu e diz que os sintomas da doença começou com
uma tosse seca. Assim, ela narra:
No início [...] começou com uma tosse constante e seca e aí nós fomos em Caetité e fizemos exame
e eles disseram que era tuberculose, aí deram remédio de tuberculose para ele e ele não estava
cansando, não tinha nada, aí depois do remédio de tuberculose que deram para ele foi que ele come-
çou, cansando, entendeu?! Inclusive lá, em Rio Preto-SP, a médica disse que eu podia processar a
médica de Caetité porque deram um remédio contrário a ele, porque ele não estava de tuberculose e
ele já estava com início do problema do pó da pedra, a doença de silicose, que tem alguns sintomas
parecidos com a tuberculose, mas não era essa doença. Com isso, a doença veio mais rápido ainda,
aí ele foi pra Rio Preto e quando chegou lá já estava a doença muito avançada, aí constatou que
era silicose mesmo e deixou ele internado mais 15 dias em Rio Preto [...] e ele chegou a falecer. A
médica que atendeu ele em Rio Preto disse que se tivessem dito que era silicose e se tivesse dado o
remédio certo ele poderia viver muitos anos. (Entrevista Narrativa do Sra. Bel, 2011).
Os excertos narrativos do Sr. Dino, de dona Bel, viúva do Sr. Tonho e do Sr. Dede eviden-
ciam a precariedade de políticas públicas de saúde e assistência para a população que vive e tra-
balha na mineração, pois, apesar da Bahia ser o quinto estado da federação brasileira em produção
de minerais, não existe saúde preventiva, diagnóstico e capacitação das equipes de profissionais da
saúde que possam oferecer um tratamento adequado e eficiente, levando muitos trabalhadores da
mineração e seus familiares a um itinerário terapêutico no estado de São Paulo, pois muitos são os
casos de adoecimento e falecimento decorrentes da mineração na região, como bem coloca a Sra.
Bel, ao dizer que:
[...] na época em que meu esposo faleceu, outras pessoas também vieram a falecer. Eu lembro,
inclusive, que tinha um homem aqui que ele morava numa rua aqui pra cima e a mulher dele que
era até prima minha e ele tinha o mesmo problema do meu marido [...] não aguentava tomar banho
sozinho e eu era quem dava, não podia levantar os braços para cima porque cansava. Ele não con-
seguia fazer nada, nada, nada [...] emagreceu, ficou magrinho também, igual ao meu marido. No
início da doença, ele se tratou em Salvador por dois meses e depois foi para Rio Preto em São Paulo
e ficou uns 15 dias internado por lá, mas veio a falecer. (Entrevista Narrativa do Sra. Bel, 2011).
Neste fragmento narrativo, a Sra. Bel deixa claro que os sintomas da doença, decorrente da
atividade da mineração, são as mesmas, bem como os sofrimentos dos sujeitos que trabalharam, ou
ainda trabalham, neste tipo de atividade econômica.
Vale ressaltar que, em relação à vigilância de novos casos de doenças associadas ao trabalho,
é preconizado no Caderno de Atenção Básica em Saúde do Trabalhador, que as equipes de saúde da
família devem identificar e registrar as atividades produtivas existentes na área de atuação do grupo,
bem como os perigos e os riscos potenciais para a saúde dos trabalhadores, da população e do meio
ambiente. Entretanto, esse fluxo de trabalho não é rotina das equipes de saúde nas áreas de minera-
ção da região, fato observado repetidamente nas entrevistas dos colaboradores, já que o diagnóstico
e tratamento dos trabalhadores doentes são realizados no Sudeste no país de forma adequada, prin-
cipalmente no estado de São Paulo.
Políticas públicas e a implantação de gestão ambiental podem contribuir para melhorar as condições
de proteção à integridade física dos trabalhadores e garantir melhores condições de salubridade para o meio
ambiente. Segundo Pinto (2006), a avaliação dos fatores ambientais deve ser considerada em toda a sua
abrangência, pois o controle desses elementos proporciona melhores condições de higiene e segurança aos
trabalhadores.
Ressalta-se o uso de estratégias de enfrentamento das questões socioambiental e transformações
na estrutura de trabalho dos profissionais de saúde em regiões de mineração devem ser discutidas de
forma articulada para o desafio da assistência das pessoas em situação de vulnerabilidade nessas regiões já
que o problema é comum à comunidade, sendo facilmente verificado nas narrativas de vida dos sujeitos,
implicando em sofrimento, injustiça social e desassistências das pessoas que residem e trabalham nessas
regiões.
Considerações finais
Pesquisas que envolvem narrativa de vida e de trabalho de pessoas que residem em áreas de mineração
apontam possibilidades para possíveis melhorias na qualidade de vida, a partir da análise interpretativa-
compreensiva dos percursos de trabalho na mineração e suas consequências na saúde dessas pessoas.
Esta pesquisa denuncia que “[...] a partir das vozes dos atores sobre uma vida singular, vidas plurais
ou vidas profissionais, no particular e no geral, através da tomada da palavra como estatuto da singularidade,
da subjetividade e dos contextos dos sujeitos (SOUZA, 2006, p. 27), é possível conhecer as histórias de vida
e de trabalho nas áreas de mineração para poder intervir e melhorar a qualidade de vida das pessoas que ali
residem e vivem, sobretudo fazer valer as normas reguladoras da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT,
como a NR42 que regulamenta a segurança e a saúde no trabalho e determina que as empresas públicas e
privadas mantenham os serviços especializados em engenharia de segurança e em medicina do trabalho, cuja
finalidade é promover a saúde e proteger a integridade do trabalhador em seu local de trabalho, obrigando
as empresas a terem seguintes profissionais: médico do trabalho, engenheiro de segurança do trabalho,
enfermeiro, técnico de segurança no trabalho, auxiliar de enfermagem, cujo objetivo é verificar o uso dos
equipamentos de proteção individual, diminuir os acidentes de trabalho e as doenças ocupacionais.
Em suma, a narrativa de vida e de trabalho, como dispositivos de recolha de dados no recorte desta
pesquisa se constituiu como relevante para analisar o que mobiliza as pessoas a trabalharem na mineração e
os sofrimentos acometidos por esta atividade econômica, já que é um trabalho que envolve riscos, conflitos
e afetam diretamente a vida e a saúde das pessoas, pois, para Delory-Momberger (2008, p. 62), a narrativa
se constitui como “[...] um dos lugares onde experimentamos nossa própria construção biográfica [...]”,
construção essa que nos permite alargar horizontes, conhecer e visibilizar histórias de pessoas simples que
possuem histórias de vida e de trabalho marcadas pelo sofrimento na mineração em Caetité-BA, Brasil.
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MEMÓRIAS EM CAIXAS:
Introdução
1
Além desse material, tive acesso a outros papéis de Luzia que estão na guarda de sua prima Heloísa
Brenner, que contribuiu para completar os dados de sua vida familiar.
2
Na época não havia arguição oral, mas parecer por escrito.
conversarem e/ou fazerem labores manuais. No período de realização do meu doutorado
(1988-1994)3, foi uma interlocutora perspicaz e leitora atenta da tese.
Schütz (1994) considera que arquivar a memória individual ou coletiva é como
entrar em sótãos e porões, geralmente, a parte mais interessante dos velhos casarões,
ainda que esses casarões estejam apenas em nossa imaginação. Reúnem a maior
variedade de artefatos culturais, nada refugam, tudo podem receber. Organizam-se de
forma desordenada, aparentemente, sem neuroses nem traumas, numa riqueza em que os
modismos são postos de lado, as diferenças são aceitas e respeitadas. Tais artefatos
podem ser periodicamente recuperados e causar admiração pela atualidade que sua
antiguidade não apagou, ou pelo ensinamento que sua futilidade pode apresentar. Tudo
depende de quem remexe essas coisas empoeiradas: se alguém com olhos para ver,
sentir e aprender ou alguém voltado para a imediatez do seu tempo. Não que os novos
tempos não contenham a possibilidade de sabedoria. Mas essa se constrói sobre um
lastro de passado de cuja solidez depende a construção do contemporâneo (SCHÜTZ,
1994, p.7).
Para Mignot (2000; 2003), os porões são lugares onde se guardam utensílios
necessários ao dia-a-dia, públicos. Os sótãos são espaços de recordações, de segredos,
de guarda-memória. Nos sótãos e porões se guardam, entre tantos objetos
autobiográficos, papéis - fios que tecem a memória -, que despertam leituras diversas
por outros olhares, para múltiplas relações entre memória e escrita, escrita e redes de
sociabilidade, escrita e poder, escrita e cotidiano, escrita e subjetividade, escrita e
arquivamento, escrita e singularidade.
Luzia não teve intenção construir o seu baú de memórias (MIGNOT, 2000), sua
própria biografia - cultivando o registro de dados, alimentando um arquivo (GOTLIB,
1997, p.314). Para Philippe Artières (1998), ao analisar as práticas de arquivamento do
eu, destaca que há sempre uma intenção autobiográfica, isto é, “arquivar a própria vida
é se por no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si própria, e nesse
sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência
– arquivar a própria vida é querer testemunhar, é querer destacar a exemplaridade de sua
própria vida”.
Trabalhar com arquivos pessoais permite identificar outros atores sociais e as
inter-relações estabelecidas no meio social. Não podemos imaginar um sujeito particular
3
A tese foi defendida na FEUSP, com o título “O Novo e o Nacional em revista: a Revista do Ensino do
Rio Grande do Sul (1939-1942)
sem outros sujeitos e sem os fatos sociais que o rodeiam. São pistas e traços que
permitem ao pesquisador compor uma fotografia/mosaico de uma época. Apreender
uma época, a partir de uma figura singular, contribui para a afirmação do indivíduo
como sujeito da história, recuperando justamente a margem de ação individual existente
no jogo das estruturas normativas que regem a sociedade. Para Romani (1997), “em que
medida, o trajeto, a experiência pessoal do sujeito histórico estabelece uma aproximação
representando uma parcela da construção histórica do grupo com quem o indivíduo se
identifica?”. É importante esclarecer que “não é uma biografia que esclarece uma época
ou um século, mas uma época e um século que servem para explorar um personagem,
suas qualidades, defeitos e vícios, os quais a época ou o século atribuem uma
racionalidade preexistente” (LEVILLAIN, 1996, p.156).
Utilizar arquivos privados ou coletivos – na organização ou na pesquisa –
permite várias abordagens e olhares, mas com cuidados redobrados do pesquisador. Le
Goff (1990) considera que todo documento é um monumento, deve-se ter presente que
não é o documento que fala, mas o historiador/pesquisador que dialoga ao lhe fazer
perguntas. Portanto, é importante sempre a explicitação dos critérios e procedimentos
para definir o alcance de sua fala. Cada pesquisador faz uma apropriação singular dos
vestígios e traços da memória material (fotos, recibos, escritos). São distintos lugares de
memória que permitem diferentes leituras para uma apropriação singular de um ator
social.
Uma primeira questão a ser colocada reside no significado da conservação: o que
foi selecionado para se cristalizar no tempo e sacralizar o sujeito? O que foi descartado?
Assim, é fundamental realizar a biografia do acervo, a gênese de sua constituição, pois
essa define uma maneira de fazer e de ler a história. No processo de organização e de
leitura dos guardados, devemos nos questionar qual face privilegiar: pública ou
privada? (ABREU, 1996).4
Quando trabalhamos com a questão da escrita do eu – autobiografias, memórias,
cartas, agendas, diários -, temos consciência de que é seletiva, anotamos fatos e
emoções, que têm um significado de momento, o que permite dar forma e consistência
ao que foi vivido e guardar a vida nos detalhes que se perdem facilmente. Recentemente
uma pessoa disse-me que escreve os acontecimentos que quer esquecer, pois no ato da
escrita libera as emoções reprimidas por eventos marcantes. Para Edson de Souza,
4
Para este estudo, nos apoiamos no estudo de Fischer (2005), que também recebeu o acervo de uma
professora.
escrever pode nos ajudar a construir a ficção de nós mesmos (apud SACCOMORI,
2002).
Esse artigo objetiva descrever o conjunto de guardados disponibilizados por
Luzia e analisar o que privilegiou para conservar, por quase vinte anos. O que os seus
escritos nos contam? Como trabalhar com essas memórias, que leituras realizar? Ler
arquivos pessoais é desconstruir no tempo da leitura o tempo histórico de sua produção,
para espelhar outro eu (MIRANDA, 1992, p. 28). Essa é a tarefa do pesquisador, dar
sentido e vida para a vida de outrem, a partir de questões norteadas pelo seu
espaço/tempo, tendo consciência da provisoriedade de sua reflexão (CURY, 1995,
p.55).
5
Ordem fundada em 1648, em Puy na França, pelo padre Jesuíta Jean Pierre Madaille. Dispersas pelo
movimento revolucionário francês de 1789, se reorganizam no século XIX fundando a casa de Santo
Estevão, em 1807, Aix-le-Bains e Chambery em 1812. Vieram para o Brasil em 1858, estabelecendo-se
em São Paulo. Chegam ao Rio Grande do Sul, na cidade de Garibaldi, em 1898. Em Pelotas estabelecem-
se em 1910 (ARRIADA, 2008, p. 115).
6
Visava formar jovens moças de uma elite, onde a “boa educação” transcendia o conhecimento das
“disciplinas-saber”, aprendiam também, bons costumes, obediência, postura, canto, desenho e prendas
domésticas. Sobre, ver Arriada (2008).
7
O pensionato Instituto Maria Imaculada para Serviço Doméstico e Proteção das Jovens foi fundado em
31 de julho de 1938. Atualmente chama-se Pensionato Maria Imaculada Residência Feminina.
http://www.pensionatomariaimaculada.org.br/
Cacilda Becker, Paulo José e outros. Dessa experiência manteve, ao longo da vida,
grande interesse pelo teatro, atividades correlatas e vínculos com membros da classe
artística. Foi assiduamente frequente nos eventos do “Porto Alegre em Cena”8.
8
Porto Alegre em Cena é um festival de teatro realizado pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto
Alegre/RS anualmente, desde 1994, que inclui debates para artistas e profissionais de teatro, tornando-se
um dos mais importantes do Brasil em seu gênero. Compreende cerca de 50 espetáculos a preços
populares, em praças públicas, teatros e espaços alternativos, atraindo uma média de 100 mil espectadores
a cada edição. Em 2014, ocorre a vigésima primeira edição.
9
Sobre, ver Bastos et alii (2006).
10
Sobre, ver Araújo & Brzezinski (2006).
Nacional pour la Formation des Adultes’ (AINFA), no ‘Centre Peuple ET
Culture’ e em agências de teleducação. Na Inglaterra tive oportunidade de
fazer visita de estudos à Universidade Aberta – ‘Open University’ – que
começara a funcionar como modelo novo de universidade no ano anterior
(1971)”. (MELLO, 1982, p.24-25)
Para analisarmos o acervo de Luzia é importante termos presente que houve uma
seleção daquilo que desejava disponibilizar, isto é, uma pequena parte de sua vida que
podia ser publicizável. Como nos coloca Pedro Gonzaga (2014, p.3), “todos temos
dentro de nós uma biógrafa forçosamente autorizada (sua censura, o esquecimento,
11
Nos agradecimentos de sua dissertação, encontram-se nomes de pessoas que acompanharam sua vida
profissional, como colegas e/ou amigos: Sonia Moojen Kiguel; Marco Antonio Moreira; Neusa Junqueira
Armelini; Maria Carmem Rosa de Souza; Flavia Sant’Anna; Lygia Souto de Azambuja; Margot Ott;
Carmem Severini; Iula Hervé; Juracy Marques; Maria Estela Dal Pai Franco; Cícero Marcos Teixeira; D.
Clésia Faria Lima; Roberto da Costa Fachin; Ruth Angela Baquero; Tania Fischer; Içara da Silva
Holmeland; Erica C. Kramer; Regina Brasil; Maria Lúcia Wortmann; Teresa e Raul Kliemam; Helena
Osório Lehnen; Márcia Peter; Zilda Marassa; Sonia Mara Ogiba.
12
[LEIRIS, Michel. Biffures. Paris: Gallimard, 1948], apud COMPAGNON, 2007, p.38.
pertence a uma jurisdição que ainda não alcançamos), capaz de atualizar versões,
reescrever capítulos (...)”.
As caixas repassadas contêm cadernos com anotações; recortes de jornais13 e
revistas14, colados ou presos por clipes15; prospectos de eventos, de um período de sua
vida, de 1989 a 2010, quando já estava aposentada. No quadro 1, observa-se alguns
intervalos significativos de tempo – de 1992 e 1993, de 1999 a 2005. Para o ano de
2004 e 2006, há um conjunto de papéis avulsos, reunidos em dois envelopes datados.
13
A maioria dos recortes é do periódico gaúcho Zero Hora. Tenho conhecimento que assinava a Folha de
São Paulo, mas nos cadernos que analisamos para esse estudo, não localizamos nenhum excerto.
14
São poucas as matérias selecionadas de revistas: Manchete, O Cruzeiro, Época.
15
Uma atividade futura é listar todos os recortes de jornais e revistas, com a data de publicação, autor,
título e páginas, para realizar um repertório do acervo e analisar em profundidade as leituras que efetuava.
16
Para fins de pesquisa, procedemos a organização cronológica dos cadernos, a caracterização de acordo
com a forma. As escritas pessoais, como práticas com suas próprias temporalidades, em suportes
diversos, cujo autor busca impregnar ou não uma continuidade textual, muitas vezes não é percebido pelo
pesquisador ao dar uma ordenação ao acervo, devido à complexidade dos espaços de escrituras pessoais.
Portanto, optamos por manter o acervo conforme foi organizado pela autora.
eventos que participava. Em julho de 1982, participa do Seminário sobre Avaliação,
com o professor americano Dr. Robert Stake. O Ciclo de Estudos sobre Avaliação, em
agosto de 1982, traz a memória de Augusto Meyer, da obra “Segredos de Infância”
(1949), sobre os exames: “Diante das bancas de exame também, mais tarde, reproduzia-
se a mesma impressão, talvez com o automatismo das fixações da infância, que levam a
vida inteira a desintegrar-se e ressurgem quando menos esperamos” (p.70).
Há, ainda, uma série de fichas com registros de “depoimentos sobre tv, cinema e
teatro”, áreas de seu interesse desde jovem. São entrevistas realizadas no programa
“Canal Livre”, da rede Bandeirantes: Jorge Semprun17, Henriette Morineau, Raul
Cortez, Bibi ferreira, Jardel Filho, D. Helder Câmara e tantos outros. Os programas de
rádio da mesma forma são registrados, como a entrevista de José Lutzberger, à Rádio
Guaíba, sobre Reforma Agrária, em 25 de setembro de 1984, às 9h.
Nestas fichas é possível verificar algumas leituras que realiza no período: Zaia
Brandão (O Estado da arte da pesquisa sobre evasão e repetência); Hannah Arendt (A
Condição humana); Jürgen Habermas (Conhecimento e interesse); Luiz Cãmara
Cascudo (Folclore); Inácio de Loyola Brandão, Pedro Goergen. Outras, de 1984, trazem
excertos de pensamento: “Sapo não salta por boniteza, mas sim por precisão”
(Guimarães Rosa); “As tragédias dos outros são sempre uma banalidade desesperante”
(Oscar Wilde); “Ninguém sabe o que acontecerá quando as pessoas começarem a
acreditar nelas mesmas” (Fernando Gabeira).
No conjunto “Cultura” consta as anotações da palestra de Antonio Cândido, no
Instituto Goethe, em agosto de 1984, em treze fichas, preenchidas frente e verso.
Também há resumos de leituras sobre o tema cultura, das obras de José Guilherme
Merquior, Marilena Chauí e Ferreira Gular.
Além dos cadernos e fichas, consta do acervo uma pasta com lâminas e textos de
suas aulas no Curso de Especialização em Supervisão Educacional, em que ministrou
duas disciplinas: de Filosofia da Educação e Análise crítica da prática de supervisão. Os
textos conservados são de Ernani Maria Fiori – Conscientização e Educação (1970)18,
Alfredo Bosi – Cultura Brasileira (1983)19 e um quadro de Joffre Dumazedier – Modelo
de questionamento com vistas a desenvolver o espírito crítico e a imaginação social.
17
De Jorge Semprun, lê “Um belo domingo” e anota, da página 95, “SER estudante é mais do que uma
vocação, a consequência de certa carga sociológica”; “a fragilidade da felicidade”.
18
Conferência realizada em Wahington (EUA), em janeiro de 1970, com tradução de Hilda Costa Fiori.
19
In: SAVIANI, Dermeval et alii. Filosofia da educação brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1983. p. 135-173).
Também há um excerto de ideias sobre cultura de Ernani Maria Fiori, que,
provavelmente, distribuiu aos seus alunos, quando palestrou sobre “A Filosofia da
escola: busca de sua identidade”.
Em contato com parentes de Luzia, foi possível localizar fotografias suas e da
família. E uma agenda20, com dedicatória de sua irmã Maria Alice, datada de 27 de
outubro de 2000, o qual foi preenchido até novembro de 2001. Diferentemente dos
cadernos, esse traz somente escritos de Luzia, que também o divide, nas últimas
páginas, em seções: frases e ditos populares, diversos, dados, cinema, teatro e uma
listagem dos eventos que participou no período21, evidenciando uma vida cultural
intensa. Os escritos são relativos às suas leituras (Isabel Allende, Jacques Prévert,
Saramago, Sérgio Capparelli, Honoré Balzac, Oscar Wilde, Carlos Fuentes, Samuel
Beckett, Jorge Luiz Borges), apontamentos dos eventos culturais que participa, dos
filmes e programas de TV que assisti. Há somente dois registros pessoais. O primeiro,
intitulou “Re-lembranças 1980-1981”, do período que morou em Brasília, elencando as
viagens de férias (Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina), que
caracterizou como “andanças e o conhecer um pouco o universo interiorano do Brasil”.
O outro, em 26 de junho de 2001, às 22 horas, anota “Aleluia, Aleluia! Uma grande
notícia enfim: Maria Alice vem ao Brasil na próxima semana! (...) Sua vinda é como um
presente que a gente deseja, namora aquilo, espera ganhar um dia. Presente com dois
significados: tempo presente – estar aqui e agora; presente – algo bom e desejado que a
gente recebe. Alegria! Alegria! Alegria!”. Essa emoção extravasada decorre que a irmã
morava havia muitos anos nos Estados Unidos com os filhos, únicos parentes diretos.
20
Agenda, tamanho 17,5 cm x 11 cm, que não traz datas impressas; com capa de couro decorada.
21
Por exemplo, em setembro de 2001, participou do Porto Alegre em Cena, Seminário de Literatura,
Seminario Filosofia Política e Metafísica, Filosofia e Música, Fórum Mundial de Educadores, Exposição
de Fotografias.
em duas partes: Contos, reflexões abstratas, autobiografia; Educação: Currículo, Meios
de Comunicação de Massa.
A primeira parte inicia com uma série de palavras-chaves, que dão o sentido do
que pretende com suas escritas: Memória – Sonhos – Reflexões (C.G Jung). Viagens reais e/ou
imaginárias. O obstáculo como oportunidade para vencer: ousar, criar, rebelar-se, lutar, prazer,
criação, liberdade. Abaixo desses dizeres outras palavras, todas remetendo, com uma seta,
para o título maior: sentido, liberdade, totalidade (espaço, tempo, liberdade), ultrapassar as
fronteiras do tempo e do espaço.
A autobiografia começa logo no início dos registros, intitulada MUDANÇA,
datada de 1988, ano de sua aposentadoria, com uma listagem de emoções:
Reconciliação comigo mesma
Linha do tempo (?) (linear) – das influências intelectuais e da profissão, as
estantes de livros
Dilema: desfazer de guardar coisas importantes
Desfilar de minha vida sentada de madrugada só no quarto dos livros
AS BUSCAS DAS RAÍZES
Os retornos e as compreensões
O caos da mudança e a demolição da casa ao lado
OS SONHOS
Às queridas amigas
22
Abaixo cita a emigração de jovens para os Estados Unidos da América, por falta de oportunidade de
trabalho no Brasil, citando o caso da cidade de Governador Valladares/Minas Gerais.
Não podendo estar presente pessoalmente, e embora o sofrimento e a dor
física, quero enviar uma simples mensagem ao “querido grupo”.
Assim, a minha palavra hoje para nós é SONHO...
Como diz Oscar Niemeyer, exemplo de criatividade, de inovação, de vida,
enfim de sonho mesmo:
“A gente tem é que sonhar para que as coisas aconteçam, senão elas não
acontecem”.
Contudo, digo eu, isto não é fácil. É difícil, mas possível?
Acho que sim, não sei.
Numa peça teatral, que também é um poema, de Fernando pessoa, “O
Marinheiro
“, que eu representei um dia (há muitos idos!!!!), uma personagem que assim
fala, cujas palavras do poema ficaram até hoje na minha mente. Pergunta
ele:
“porque se morre? Talvez por não se sonhar o bastante. E não sonhar faz
mal à saúde. Não valeria a pena, então, fecharmo-nos nos sonhos, esquecer a
vida, para que a morte também nos esquecesse?”
Ah! Minha gratidão a vocês pelo incomparável apoio, pelo carinho,
compreensão, dedicação, doação, especialmente em momentos tão difíceis.
Um afetuoso abraço,
Luzia.
23
Capítulo do livro de Henry Levin – Educação e desigualdade no Brasil (Petrópolis: Vozes, 1984. p.
205-253).
Além desse material, encontram-se folhas avulsas, intituladas – remessa de
exemplares, convites -, com a listagem de nomes e instituições, a maioria de
pesquisadores paulistas, com seus endereços24. Como essas folhas não estão datadas,
podemos pensar que se referem à sua dissertação de mestrado, pois em um dos nomes
consta a observação de Luzia: “pesquisadora e professora universitária estudiosa da
questão TÉCNICA”.
Do ano de 1999, temos dois grandes cadernos. O primeiro abre com o título
“Memória” e interrogações: “Retalhos de Memória? Memória compartilhada? Sonhos
perdidos?”. Com ideias de Roland Barthes: “Memórias perdidas, entrelaçadas e
reinventadas pelo desejo; o fio da memória - a diversidade e o múltiplo”. Observa-se a
mesma sistemática dos cadernos anteriores: registros de suas leituras (literatura, artes,
teatro, política) - José Saramago, Domenico de Mais, Clarice Lispector, Machado de
Assis, Honoré Balzac, Décio Freitas, Moacir Flores, Tabajara Ruas, Jorge Luís Borges,
Levi-Straus -; de entrevistas que assistiu nos programas de Marília Gabriela (SBT); uma
imensa quantidade de recortes de jornais; vários excertos de ideias de diferentes autores;
transcrição de músicas de Carnaval (marchinhas); os acontecimentos locais (Expointer),
nacionais e internacionais (guerra do Kosovo, ditadura Argentina); de cinema (os filmes
são numerados e comentados25); seminários (Seminário de Filosofia no Instituto
Goethe, outubro de 1999). Os registros permitem constatar que Luzia, mesmo
aposentada, mantém a atitude de estudiosa, voltando várias vezes aos mesmos autores,
já citados nos seus primeiros apontamentos.
O segundo caderno de 1999, não tem uma datação que precise o início do seu
preenchimento. Mas na segunda página, em que assinala “Vivências”, divididas em
“sonhos e pesadelos”, data maio de 1999, com os seguintes escritos:
Sonhos
A pausa de um casamento como cenário para peça teatral ou filme;
O vestido da noiva, os acompanhamentos, a catedral, os assistentes, a
cauda do vestido, o filme de Fellini, Alan Bates;
O enfeite da cabeça (adorno na cabeça, a camélia);
A Igreja;
O perambular na rua;
Os salgadinhos;
Re-encontro com Osvaldo, o nordestino romântico. Carícias.
24
Documentos para uma análise futura das redes de sociabilidade que estabelece com seus pares.
25
No primeiro caderno de 1999, assistiu e comentou 24 filmes.
Pesadelos26
A rua vazia: D. Graciema;
Emoção compartilhada;
O sentido do andarilho: andar, andar, andar (junho de 1999);
O balcão para o salto mortal. O joelho segurando o corrimão;
O túnel, a rua vazia;
Nilbiamater.
CONCLUINDO...
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EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Primeiras Palavras
Na literatura acadêmica, a narrativa tem sido bastante abordada como metodologia nas
pesquisas em Educação (ABRAHÃO, 2007; ALLIAUD, 2011; HERNANDEZ, CORREA e
CASTAÑO, 2009; CARDOSO, CHAMBEL, RODRIGUES E MATIA, 2012; DÁVILA,
2011; FIAD e SILVA, 2009; FISCHMAN e SALES, 2010; GOMES e COSTA, 2012;
GOMES, DIAS e GALIAZZI, 2009; PEREIRA e ENGERS, 2009; ROZEK, 2013, entre
outros). Do ponto de vista teórico, tais abordagens, apresentam-se num espectro amplo de
possibilidades articulando-se a diferentes princípios e conceitos, principalmente, no que se
refere a investigações que focalizam a docência.
O investimento nessa forma de empeiria produz efeitos interessantes de serem
considerados, não só em relação à forma, mas também às posições de sujeito (FOUCAULT,
1986) que podem ser suscitadas para aqueles que narram.
Larrosa (1994), em Tecnologias do Eu e Educação, discute implicações entre formas
de expressão e fabricação de subjetividades, a partir do que é narrado e daquele que narra.
Como já ressaltado, na relação com a formação de professores, a produção e a audição de
narrativas vem sendo bastante praticada. Em relação às práticas de narrativa com vistas à
autorreflexão, ele aponta:
Nesse sentido, aponta claramente que o sujeito, sua história e sua constituição como
objeto de si mesmo compõem de fato um conjunto de tecnologias do eu, definidas por
Foucault como “aquelas nas quais um indivíduo estabelece uma relação consigo mesmo”, o
que leva a efeitos de produção.
É, nesse ponto, que usualmente se considera que práticas de narrar podem tornar mais
nítidas essas imagens no espelho. Como Larrosa nos lembra, “narrare" significa “arrastar
para a frente”. Na narrativa autorreflexiva, traz-se à frente a própria imagem a fim de
examiná-la, avaliá-la e agir a partir dela. Em seus dizeres: "O que narra é o que leva para
frente, apresentando-o de novo, o que viu e do qual conserva um rastro em sua memória. O
narrador é que expressa, no sentido de exteriorizar, o rastro que aquilo que viu deixou em
sua memória.” (LARROSA, 1994, p.68) Considerando a possibilidade de operar a narrativa
no sentido reflexivo, narrar seria proceder a uma decomposição de imagens associadas, uma
recuperação do rastro do que se viu de si mesmo, um “eu que recolhe esse rastro e o diz”.
Romper com essa perspectiva não é trivial. Podemos ser acusados de não sermos
propositivos, de nos negarmos a uma contribuição mais contundente ou ainda de considerar a
narrativa com baixo potencial formativo. No entanto, ao contrário, investimos na narrativa
como abordagem teórico metodológica, tendo em vista outras possibilidades de constituição
de subjetividades, de regimes de verdade e de (d)estabilização discursiva no campo da
Educação, em especial, nas práticas docentes.
3
O texto Infância em Berlim por volta de 1900 (BENJAMIN, 1994) apresenta-se como
um conjunto de fragmentos narrativos de acontecimentos cotidianos da infância, totalizando
quarenta e uma pequenas histórias. Tais fragmentos, na singeleza das histórias infantis,
produzem brechas a partir da quais é possível se visualizar aspectos significativos do processo
histórico pelo qual passava Berlim, naquele período, e também uma parte da Europa.
Evidentemente, isso tudo entrelaçado a fatos da vida de uma criança. (BATISTA, 2010)
À mônada atribui-se essa carga de significação, à medida que ela fica encarregada de
prover sentidos, num investimento que rompe com a ordem linear temporal dos
acontecimentos. Concordamos também com Galzerani (2002) que afirma que mônadas, que
são centelhas de sentidos que tornam as narrativas mais do que comunicáveis: tornam-nas
5
Leibniz, físico alemão, nos escritos de sua filosofia, traz a ideia da mônada como
"substância simples". Para ele, são elementos simples que constituem todas as coisas. Cada
mônada se distingue de outras, por possuir qualidades que variam no seu princípio interno. Ao
mesmo tempo, ela envolve uma multiplicidade na unidade e, por isso, pode expressar o
universo. Como já afirmei, para Leibniz, cada mônada possui em si a representação de todo o
Universo. (LEIBNIZ, 1974)
Enfim, parece evidente que a imagem da mônada, utilizada por Walter Benjamin em
seus escritos, é um desdobramento daquilo que preconiza Leibniz em sua obra
“Monadologia”. Schneider (2005) aponta que as mônadas “não têm janelas” e dão a ideia de
“algo que não tem fora nem dentro”. Daí deriva a sua ligação com o universal, pois a
substância simples – ou mônada – deve ter um “pormenor do que muda, que produza, por
assim dizer, a especificação e variedade” (LEIBNIZ, 1974, p. 64); contudo, algo muda e algo
permanece, gerando uma pluralidade de relações na substância simples – uma multiplicidade
na unidade. Dessa maneira, todas as mônadas “tendem confusamente para o infinito, para o
todo” (LEIBNIZ, 1974, p. 64).
6
Por isso, faz sentido afirmar que mônadas revelam o princípio da universalidade
dinâmica, já que são fragmentos dinâmicos que guardam em si centelhas de mudança. Jeanne
Marie Gagnebin afirma que mônadas são miniaturas de sentido, nas quais há produção de
imagens que abrem espaço a “algo outro que não si mesmo” e que são capazes de reter o
fluxo do tempo “na intensidade de uma vibração”. (GAGNEBIN, 2004, p. 80)
MÔNADA 1
Um dia, fui à escola com um vestido próximo ao joelho e na sala tinha um ventilador. Os
meninos ligaram o ventilador e o meu vestido, só mexeu, não chegou a subir, mas eles
assobiaram tão alto e em conjunto, que eu fiquei morrendo de vergonha. Eu queria que o chão
rachasse e eu entrasse dentro. Eu fiquei extremamente vermelha, sentindo meu rosto queimar.
Eu levei a coisa na brincadeira, mas eu estava em frangalhos. Eu disse: “Vocês nunca viram
uma mulher de vestido?” Eu passei muita vergonha. (professora Raquel1 - Ciências)
MÔNADA 2
Trabalhei em um projeto no qual havia uma atividade que eu e uma professora de Artes
adaptamos. As pessoas deveriam passar de olhos vendados por um caminho no qual existiam
coisas loucas que elas teriam que tocar. Havia professores que tinha muita dificuldade de
caminhar e tocar nos objetos. Teve casos de mulheres que me impressionaram, a pessoa tinha
um bloqueio muito grande e havia momentos em que eu, ou a outra professora do projeto,
pegávamos na mão dessas pessoas ou caminhava na frente para ajudá-las. E era engraçado
porque as pessoas se transformavam. Elas tinham muito medo e quando eu as tocava só
faltava me beijarem na boca. Havia casos de algumas que fingiam medo para poder me tocar.
E eu achava isso muito louco. Algumas não tinham medo, mas tinham momentos em que nós
tínhamos que pegar as pessoas em um determinado ponto e conduzi-las. Teve uma pessoa
que, quando eu a peguei pelo lado, imediatamente ela veio para cima de mim a ponto de
querer que meu corpo tocasse no dela e falou baixinho: “Diferente essa coisa que estou
tocando! É boa!” (professor Adriano - Ciências)
1
Como está sendo exposto um conjunto de mônadas oriundas de diferentes pesquisas, os
nomes fictícios adotados nas mesmas são aqui preservados como aparecem nos textos
originais dos trabalhos de Pacheco (2007), Rampini (2011) e, Petrucci-Rosa e Ramos (2014).
8
MÔNADA 3
Eu me destaquei
Quando estava na 6a. série, eu tinha um professor de Matemática que era muito bom. Eu
gostava muito dele! Ele ensinava Matemática mesmo! Lembro-me de uma aula que ele
passou 150 equações do 1º grau na lousa e eu fiz as 150 e fiquei muito bom naquilo.
Considero como futuro professor de Matemática, que é necessário aprender bem equação de
1º grau, que é a base para os outros anos. O pessoal tinha um pouco de dúvida, mas eu aprendi
direito. Fiz os 150! Vim de uma cultura que eu fazia tudo o que os professores falavam. Os
meus colegas não faziam! Eu me destaquei, no final da 6ª série! (professor iniciante de
Matemática)
MÔNADA 4
Ela não gostava de mim
Tive uma professora muito boa na 8ª série (9ºano). Ninguém gostava dessa professora e ela
também não gostava de mim, talvez porque eu era filho de funcionário. Não sei o que era, e
por birra eu estudava muito a matéria dela! E só tirava dez na prova dela, dez, dez, dez... E ela
não gostava de mim! Ela sempre confundia o meu número da chamada, e daí ela trocou minha
nota e eu fiquei com 3! Deu confusão na escola e ela voltou atrás. Eu me dedicava mais
exatamente por isso e sempre tinha um mal estar por eu ser filho de funcionário. Meu pai
ganhava R$ 700,00 e eu tinha uma bolsa de R$ 600,00, por isso havia uma pressão muito
grande! Tinha que ir bem na escola. No Ensino Médio, eu tinha mais facilidade, nem estudava
muito. Tirava uma nota seis, sete, mas nunca me preocupei em tirar dez! Eu sempre gostei de
Geografia e História, debatia com os professores, participava das aulas, mas sempre tive
muita facilidade em Matemática, por causa da minha dedicação anterior. (professor iniciante
de Matemática)
MÔNADA 5
Viajava
Escolhi fazer a licenciatura em Geografia, porque eu tinha uma professora que fez Geografia
na USP e foi dar aula lá no interior de São Paulo, onde eu estudava. Minha professora dava
uma aula...Nossa! Espetacular! Pelo menos viajava com ela, ficava: “Ai que delícia, conhecer
9
o mundo”. Aí ela contava do Egito, por exemplo...Tinha muita coisa para contar não é?
Naquela época, há quarenta e poucos anos atrás... (professora experiente de Geografia)
MÔNADA 6
Desamparada
Antes era mais tranquilo. Devido ao tempo que estou no Magistério, não via necessidade de
estudar muito, pois os conteúdos a serem trabalhados eram conhecidos e o que mudava
sempre eram as estratégias e a metodologia. Hoje estudo muito a Proposta Curricular2 para
avaliar o que é viável ou não, de acordo com a sala e série. Parece que depois da Proposta,
não sou mais professora. (professora Begônia - Língua Portuguesa)
MÔNADA 7
Ela exige
Quando iniciei meu trabalho no Ensino Médio, logo veio a Proposta Curricular. Então, ficou
assim, havia necessidade de preparar-me melhor para a aula porque o conteúdo do Ensino
Médio exige. Preciso estudar. Porque, na verdade tem conteúdos que nunca aprendi na escola,
então, tenho que estudar sim. Logo que peguei a Proposta, comecei a trabalhar com os itens
que ela pede, que ela exige. É o mesmo conteúdo que estaria no meu plano de ensino normal,
antes de vir a Proposta, mas ela não deixa o professor à vontade, sinto-me pressionada.
Obviamente, não estão evidentes aqui as temáticas das pesquisas nem tampouco os
problemas de investigação que as mobilizaram, pois o foco do presente artigo é discutir a
natureza das mônadas como dispositivo metodológico. No entanto, procuro fazer uma seleção
de fragmentos narrativos que guardam contornos relevantes na relação com as imagens
benjaminianas que definem as mônadas como forma potente de expressão. A potência
2
Em Rampini (2011), são investigadas histórias narradas por docentes tendo como referência
o advento do Programa São Paulo Faz Escola (2008), também conhecido como Proposta
Curricular do Estado de São Paulo.
10
Últimas considerações
Esse artigo centrou-se na intenção de expor como a obra benjaminiana relativa às
noções de narrativa e mônadas inspira a abordagem metodológica que construímos em nosso
grupo de pesquisa na FE/UNICAMP. Há, nesse investimento, uma tomada de decisão a favor
da assunção de um dispositivo teórico metodológico que nos coloque numa posição política
que nos anima no campo da Educação.
11
Operar com narrativas como mônadas, significa trabalhar com um campo empírico o
qual, no nosso caso, não passa por procedimentos usuais de categorização de conceitos, de
classificação de ideias, tampouco por métodos que preconizem um afastamento entre sujeitos
participantes da pesquisa (o narrador e seu ouvinte).
Nesse sentido, não há também a incorporação de procedimentos de triangulação no
contato com as narrativas. O que se pretende não é buscar "a verdade", mas sim, considerar o
terreno pantanoso dos regimes de verdade possíveis nas histórias que professores e
professoras contam.
As mônadas, como já afirmei, nos permite vislumbrar, na partícula, a dimensão
universal. Não são apenas histórias voltadas para si mesmo, com caráter eminentemente
reflexivo. São histórias que aconselham, que ensinam, que legitimam posições de sujeito e,
por isso, fortalecem os narradores, colocando a pesquisa no seu devido lugar.
Referências Bibliográficas
.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Resumo: O artigo apresenta questões teórico metodológicas da Pesquisa (auto)biográfica, apontando a entrevista
narrativa como uma importante fonte de recolha de dados (auto)biográficos. Ao destacar perspctivas de análise das
narrativas (auto)bigráficas, a partir de pressupostos hemenêuticos, o texto toma como referência três movimentos que
orientam a análise das narrativas 1) Construção de mapa analítico-compreensivo 2) Arquiologia das narrativas 3)
Produção de uma Hermenêutica de si. Ao propor um inventário sistemático de análise de narrativas, o texto sugere
um trabalho analítico imerso na subjetividade dos dados, ancorado numa perscpectiva interpretativa-compreensiva.
Em notas conclusivas, o texto apresenta-se como dispositivo didático e uma possibilidade metodológica que orienta
a análise de narrativas (auto)bigráficas.
Palavras-chave: pesquisa (auto)biográfica; Entrevista Narrativa; Hermenêutica de si
1 O trabalho com narrativa desenvolvido neste artigo vincula-se a Pesquisa de Mestrado intulada:
“Macabéas as avessas: trajetórias de professoras de Geografia da cidade na roça – narrativas sobre docência
e escolas rurais”, com ampliação e aprofundamentos adivindos dos estudos e pesquisas desenvolvidos no
âmbito do Grafho/PPGeduC/UNEB. Os princípios epistemológicos e metodológicos da abordagem (auto)
biográfica, tal como temos utilizado no espaço do GRAFHO , tem nos permitido apreender e discutir ques-
tões sobre as dimensões da vida, dos percusos formativos, das condições de trabalho docente, tencionando
elementos basilares na análise de narrativas.
Rupturas episemológicas e metodológicas: (Auto)biografia e pesquisa em educação
[...] É a narrativa que constrói entre as circunstâncias, os acontecimentos, as ações, relações de causa,
de meio e fim; que polariza as linhas de nossos argumentos entre um começo e um fim e os atrai
para sua conclusão; que transforma a relação de sucessão dos acontecimentos nos encadeamentos
acabados; que compõe uma totalidade significante em cada acontecimento encontra seu lugar de
acordo com sua contribuição à realização da história contada (DELORY-MOMBERGER, 2006, p.
39).
Assim sendo, com a técnica da entrevista narrativa, “cada eu tem um lugar de anunciação único,
em que “dá testemunho” de sua identidade” (ARFUCH, 2010, p. 130) de sua vida, de sua profissão e das
trajetórias percorridas. Trata-se, pois, de um momento epifânico, ou seja, de revelação de si. É a narrativa
que faz de nós o próprio “personagem de nossa vida, é ela enfim que dá uma história a nossa vida: nós
não fazemos a narrativa de nossa vida porque nós temos uma história; nós temos uma história porque nós
fazemos a narrativa de nossa vida” (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 39).
A entrevista narrativa foi concebida como um instrumento vinculado à pesquisa qualitativa,
configurando-se como não estruturada, de profundidade, conforme etapas e procedimentos sugeridos por
Jovchelovitch e Bauer (2010, p. 97): 1) Preparação: Elaboração do campo, Formulação de questões
exmanentes; 2) Iniciação: Formulação do tópico inicial para a narração, Emprego de auxílios visuais
3) Narração central: Não interrompe;r Somente encorajamento não verbal para continuar a narração;
Esperar pelos sinais de finalização; Fase da pergunta: Somente “Que aconteceu então?” Não dar opiniões
ou fazer perguntas sobre atitudes, Não discutir sobre contradições, Não fazer perguntas do tipo “por que”,
Ir de perguntas exmanentes para imanentes; Fala conclusiva: Parar de gravar- São permitidas perguntas
do tipo “por que’” Fazer anotações imediatamente depois da entrevista.
Diante das etapas explicitadas, que de algum modo, orienta metodologicamente a realização da
entrevista narrativa, podemos compreender que este tipo de entrevista configura-se como uma técnica de
pesquisa pertinente, ao evitar uma estrutura engessada do tipo tradicional de entrevista, buscando superar
a clássica dicotomia perguntas-respostas, optando-se pelo trabalho com eixos temáticos. As entrevistas
narrativas, constituem-se como um material biográfico primário, uma vez que são informações recolhidas
diretamente pelo entrevistador-pesquisador (face to face) com as entrevistadas (FERRAROTTI, 1988).
Desse modo, as narrativas das professoras oportunizadas pelas entrevistas narrativas validam a
importância desse instrumento de recolha de dados, especialmente no que se refere a reflexão biográfica
e ao “conhecimento de si” (SOUZA, 2006), que a prática da narrativa possibilita. A entrevista narrativa é,
portanto, estruturada a partir de “palavras autorizadas”, onde o próprio sujeito organiza e narra sua própria
experiência, sob a forma de um inventário do vivido.
Nesse sentido,
É importante ratificar que a análise empreendida nesse trabalho esteve imersa na subjetividade dos
dados, em seu valor heurístico, que se desvelou mediante a análise interpretativa-compreensiva (RICOUER,
1976) das trajetórias de vida-formação-profissão.
A análise compreensiva-interpretativa das narrativas busca evidenciar a relação entre o objeto e/ou
as práticas de formação numa perspectiva colaborativa, seus objetivos e o processo de investigação-
formação, tendo em vista apreender regularidades e irregularidades de um conjunto de narrativas
orais ou escritas, partem sempre da singularidade das histórias e das experiências contidas nas
narrativas individuais e coletivas dos sujeitos implicados em processos de pesquisa e formação
(SOUZA, 2014, p. 43).
Autopoiese/(Re)configuração de si
Fonte: MEIRELES (2014)
Assim sendo, a complexidade singular das interpretações dos sujeitos sobre o vivido, busca de certo
modo, “revelar as coisas enterradas nas pessoas que a vivem” (BOURDIEU, 2011, p. 708), um trabalho do
sujeito sobre si mesmos. Portanto, o sujeito, ao tomar a si mesmo como objeto de reflexão, constrói uma
identidade narrativa e elabora sua visão de mundo e seu(s) lugar(es) no mundo, consolidando o processo
de “democratização da postura hermenêutica” das ‘narrativas ordinárias’ que exprimem ‘experiências
comuns’.
Nessa perspectiva, o ato de narrar possui implicações na pessoa que narra, de modo que, cada
sujeito dá forma a sua narrativa e atribui sentido a vida vivida, fornecendo em sua narrativa instrumentos/
elementos de sua própria interpretação. Há portanto, uma conversão do olhar que o sujeito-narrador lança
a si mesmo, ao narrar coisas ‘comuns’ da vida, ao selecionar, interpretar e compreender acontecimentos
narrados.
Ao mobilizar recursos intrepretativos sobre o vivido, o sujeito opera com o fenônemo figurativo
de perspectiva hermenêutica. Trata-se, portanto de, através de aportes teóricos argumentativos “explorar a
capacidade de explicação e de abstração do informante como especialista e teórico do seu eu” (SCHÜTZ,
2010, p. 212). Assim, o rigor que atravessa a análise de narrativas (auto)biográficas, se inscreve na
preocupação de explicar as informações e significações pertinenetes nela contida” (BERTAUX, 2010) e
de compreender a hermenêutica de si, elabora pelo sujeito que narra suas experiências. O reconhecimento
de sua trajetória, pelo sujeito, nos permite ter a acesso a uma de rede de experiências que tornaram hoje a
essencia desse sujeito.
Considerações finais
Referências
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PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Este artigo discute, a partir dos dados de uma pesquisa empírica, os sentidos conferidos a trajetória
de vida de uma jovem moradora do Morro do Palácio, uma numerosa comunidade situada próximo ao centro
da cidade de Niterói (RJ). Trata-se de uma jovem que há cinco anos participou de um vídeo-documentário
produzido pelo Observatório Jovem/UFF, intitulado: Jovens do Palácio: cinco caminhos, cujo objetivo era
compreender os diferentes modos de vida dos jovens moradores da referida comunidade.
Visando analisar como vive a jovem Isabela hoje, quais as mudanças e permanências ocorridas em
sua vida após o primeiro relato, realizou-se um segundo vídeo-documentário, no qual foi possível observar
muitas transformações e algumas continuidades no percurso de vida da jovem. Em 2008, Isabela, então
com 21 anos, viúva e mãe solteira de um menino, narrou-se como alguém que vivia uma “nova vida”,
caracterizada pelo retorno a um grupo religioso (evangélico) do qual fizera parte em sua infância. Tal
condição a motivava a distanciar-se dos “perigos” da prostituição e da busca de prazeres, outrora vivenciada.
Isto a fazia concentrar suas atividades cotidianas unicamente na vivência religiosa e na maternidade.
Neste último documentário deparamo-nos com outra “nova Isabela”, termo definido pela própria
para caracterizar sua realidade atual, marcada por rupturas, retornos a antigas práticas, prazeres, superações,
readaptações e algumas continuidades. Agora com 26 anos, dois filhos, desligada da referida comunidade
religiosa, divorciada de seu segundo matrimônio, a jovem passa a combinar múltiplas identidades em
seu fazer cotidiano. Há uma justaposição entre a identidade religiosa, de foro íntimo, que subsiste como
uma “lente” através da qual ela dá significação às suas experiências no mundo, e a identidade juvenil,
caracterizada como um período da vida marcada pelo desejo de experimentar e “aproveitar a vida”. O
confronto entre essas múltiplas identidades reflete num contínuo jogo de prazer e culpa, o que a faz buscar
espaços de socialibilidades distintos, tais como as “festas”, “chopadas” e “baladas” e, em outros momentos,
refugiar-se em reuniões religiosas nas quais ela possa praticar sua religiosidade sem manter vínculos.
Os registros audiovisuais apresentados enunciam como estes diferentes contextos são constituídos em
sua vida através de distintos valores materiais e simbólicos. No que tange aos projetos de vida, observou-se
que, perante os inúmeros obstáculos e indeterminações de seu cotidiano, uma das escolhas feitas pela jovem
diante do futuro é “deixar a vida acontecer” sem grandes investimentos, lançando sempre para o amanhã
a adoção de estratégias que lhe possibilitem alcançar seus sonhos. A preocupação mais imediata expressa
pela jovem é criar meios de sobrevivência e de experimentações prazerosas no presente. Para compreender
essa trajetória de vida, adotou-se como método a abordagem biográfica, mais especificamente, a concepção
de relato de vida, introduzida no campo sociológico pelo sociólogo Daniel Bertaux.
1 Doutoranda em Educação da Universidade Federal Fluminense e professora da rede Estadual e Municipal do Rio de
Janeiro E-mail: marianecosta@ig.com.br
2 Mestranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora da rede esta-
dual do Rio de Janeiro. E-mail. vivinettoliver@hotmail.com
Segundo este autor, tal instrumento de coleta de informações permite ao pesquisador obter um
conhecimento do campo social estudado a partir da produção discursiva de contar (fazer relato de) para
outra pessoa, pesquisador ou não, episódios de suas experiências de vida. Bertaux parte, portanto, de uma
perspectiva etnossociológica que inspira-se nas técnicas de observação da tradição etnográfica sem deixar
de construir seus objetos com base nas problemáticas sociológicas (BERTAUX, 2010).
A entrevista foi registrada em vídeo documentário e realizada na Universidade Federal Fluminense-
UFF. No primeiro momento, foi solicitado a jovem Isabela que assistisse ao documentário em que participou
no ano de 2008, e, em seguida, narrasse as mudanças que ocorreram em sua vida ao longo desses anos. Do
ponto de vista teórico, este estudo dialogou com os conceitos de “suportes existenciais”, do sociólogo Danilo
Martuccelli, de “projeto” e “campo de possibilidades”, do antropólogo Gilberto Velho e de “identidades
juvenis”, de Paulo Carrano.
Através do processo analítico pôde-se compreender que a trajetória da jovem Isabela, mesmo
contendo todas as singularidades que lhes são próprias, remete a um contexto atual vivenciado por muitos
jovens, sobretudo pobres, no qual a principal marca é a não linearidade. Diante dos inúmeros desafios,
impostos pelo contexto de vulnerabilidades materiais e simbólicas, seu percurso de vida é construído de
maneira descontínua, caracterizando-se por situações oscilatórias, sinuosas e ondulantes.
As experiências dos sujeitos são recolhidas através de relatos, considerados significativos para a
construção do conhecimento sociológico que se pretende investigar. O
relato de vida na etapa investigativa constitui um instrumento de coleta de informações, que permite ao
pesquisador obter um conhecimento do campo social estudado a partir de uma produção discursiva de
contar para o pesquisador ou não, fatos de suas experiências de vida. O ato de relatar envolve a disposição
do outro em compartilhar informações sobre sua vida, a partir da construção seletiva da memória e das
representações dos sujeitos sobre fatos vivenciados.
Os relatos de vida constitui um caminho metodológico para levantar as de interpretações subjetivas
que guiam as condutas do indivíduo, através da interpretação do pesquisador dos fatos ditos pelo entrevistado.
Permitindo assim, compreender os modos como os sujeitos agem no contexto social, sem fixação a padrões
e enquadramentos posicionais que dificulta um olhar para as brechas, expressões e fatos não ditos nas
narrativas. Investigar, a biografia dos sujeitos, a partir de suas experiências, permite revelar melhor o que
escapa a estrutura, ou seja, aquilo o que não é inteiramente determinada por ela e perceber o que eles
dispõem e como mobilizam seus recursos sociais a fim de dar sentido a sua trajetória.
Muitas pesquisas que utilizam os relatos de vida, assim como outras metodologias qualitativas
que se apropriam das narrativas como fonte de dados empíricos, nem sempre são reconhecidos no campo
científico como dados fidedignos da pesquisa. Há falta de provas de que os fatos narrados são realmente
autênticos, o que leva, ainda hoje, muitos cientistas sociais a enfrentarem desconfiança daqueles que se
baseiam em estudos estatísticos. Sobre este fato, Bertaux (2005, p. 24) lança o questionamento também
sobre a veracidade dos critérios de metodologia elaborados para a pesquisa quantitativa:
Neste sentido, o filtro que orienta a produção dos relatos de vida neste estudo fundamenta-se na
pesquisa qualitativa, por entender que ela possibilita investigar o modo como se processa a experiência na
vida da Isabela e os significados das mudanças e permanências ocorridas após o primeiro vídeo documentário.
Os eventos narrados por esta jovem são organizados e analisados a partir das questões teóricas que dão
suporte para a compreensão dos diferentes aspectos da vida dos sujeitos.
3. Isabela: as narrativas de uma jovem do morro do Palácio
A trajetória de vida narrada por Isabela trazem alguns elementos que permitem compreender suas
experiências vida e as mudanças e as mudanças de percurso ocorridas desde sua participação no primeiro
vídeo documentário. Naquele momento, a jovem se declarara filiada a uma igreja evangélica, fato ocorrido
após um evento trágico em sua vida, que foi o assassinato de seu companheiro no contexto de envolvimento
com o tráfico de drogas. Isabela é uma jovem parda, que mora no Morro do Palácio e que se casou aos 17
anos com este rapaz dois anos mais novo que ela. Porém, após um ano de relacionamento tornou-se viúva
e mãe de um menino, fruto deste casamento.
Pode-se perceber, em seu modo de viver, uma realidade marcada pelos fatos intensos, como o
casamento, a maternidade, a viuvez, como também a identidade religiosa a qual ela considera de grande
significado em sua vida. Em continuidade ao primeiro documentário iniciou-se a entrevista narrativa
solicitando que Isabela narrasse as mudanças ocorridas em sua vida após cinco anos em que ela participou
do primeiro documentário.
Assim, o que mudou na minha vida e no meu cotidiano, desde a época que foi feito o
documentário e tal, é... eu casei. Eu falei que eu sonhava em casar, em ter filhos e tal,
mais filhos. Eu tive mais uma filhinha, agora ela tá com dois anos. A minha rotina mudou,
eu até permaneci na igreja por quatro anos, aproximadamente. E logo depois, até o meu
casamento, eu me afastei do evangelho, tem dois anos que eu estou afastada, pretendo
voltar, eu creio. Mas no momento mudou muita coisa. Assim, o casamento não deu certo,
eu me separei. Agora eu tenho saído, coisas que eu falava que não saía, que eu não ia
pra balada, que eu não botava shortinho e tal, isso tudo na minha vida se fez como novo
atualmente. Hoje em dia eu saio, vou pra balada... Assim, eu estou tendo uma vida que eu
não tive na minha adolescência (Narrativas de Isabela, 26 anos).
A partir de suas narrativas é possível conhecer sua realidade e seu contexto de vida, a qual denominou
trajetória ondulante, por relaciona-se com a necessidade de se pensar nas mudanças e oscilações que podem
ocorrer na vida dos jovens ao longo de seus percursos. Isto significa que não é possível compreender as trajetórias
juvenis de forma linear, uma vez que possuem idas e vindas, mudanças, retornos e recomeços realizados a partir
de processos reflexivos que ocorrem no processo da vida. O percurso biográfico de Isabela ultrapassa a visão
de uma vida contínua, homogênea e objetiva, já que se caracteriza por idas e vidas. A partir das mudanças em
seu trajeto, a saber, a aquisição de um novo relacionamento matrimonial, a concepção de mais um filho e sua
desvinculação com a igreja, percebe-se a construção de novas formas de conceber e viver a vida.
Outro ponto central identificado em seus relatos foi à concepção de identidade juvenil. De acordo
com Oslender (2002, p.6) “a formação da identidade se dá, em parte, por uma rede simbólico-cultural que
se materializa no espaço através da territorialização de grupos ou movimentos sócias que a vivem”. Nesse
sentido, entende-se que o espaço social em que os jovens estão inseridos tem profunda interferência na
formação de identidades individuais e coletivas.
No caso da jovem Isabela, a comunidade, a igreja, as casas noturnas e a escola, são os lugares
centrais que tem influenciado na formação de sua identidade. Em seus relatos nota-se que os amigos da
escola tiveram uma grande influência em sua vida e em suas escolhas no que se refere ao seu relacionamento
matrimonial e desejo de vivenciar um tempo juventude que não foi possível no período em que estava
casada e que tinha que cuidar do filho.
Assim, não me influenciou com palavras, mas elas por si só elas me influenciaram porque
eu vi que elas tinham uma vida muito mais leve do que eu tive, entendeu? Assim, a vida
deles era vida de adolescente e a minha vida... eu muito nova ainda, eu com vinte e seis
anos sou muito nova ainda, vivendo uma vida assim de gente grande, vamos botar, já com
vinte e cinco anos, com uma bagagem de viúva, de... de casada, de problema no casamento,
mãe de dois filhos e tal, e eu... então eu meio que fui vendo: “Ah, hoje eu vou comprar
tal blusa, hoje eu vou pra tal balada...”, (...) isso foi um, vamos dizer, um puxão pra que
eu observasse uma vida mais suave e... explodi, não aguentei mais a minha vida. Chegou
um belo dia que eu cheguei em casa e falei: “Não dá mais” e retomei, tô retomando uma
juventude que eu não vivi. (Narrativas de Isabela, 26 anos)
É possível identificar no relato de Isabela, uma transição marcada por um casamento precoce
e pela gestação de um filho em sua fase de adolescência. Esta jovem reconhece que passou a adquirir
responsabilidade de adultos muito cedo, de forma a pular fases, quando se casou aos dezessete anos e teve
seu primeiro filho.
A compreensão dos fatos vivenciados em sua vida conduziu o amadurecimento de suas escolhas e
uma reflexão sobre sua vida, de modo perceber que vivenciou uma transição para vida adulta muito cedo.
E um conselho que eu dou é não pula fase da sua vida, deixe tudo acontecer natural, tudo
no suave que vai dar certo, não tenta adiantar e não... ninguém jamais achar que é melhor
do que ninguém, ninguém achar que nunca vai fazer uma coisa, que o mundo realmente
literalmente ele dá voltas, ele muda, modifica, ele transforma, a... o tempo ultrapassa
barreiras, entendeu? A força de vontade ela constrói, a, a… a tristeza e o fracasso e a baixa-
estima destrói, e incentivo à ciclo da vida e deixar tudo no natural mesmo. (Narrativas de
Isabela, 26 anos)
Nota-se também em seu percurso, uma combinação entre a identidade religiosa (evangélica) que
dá significação às suas experiências no mundo e a identidade juvenil, caracterizada como um período
da vida marcada pelo desejo de experimentar e “aproveitar a vida”. O confronto entre essas múltiplas
identidades reflete em situações de escolhas permeadas por uma coerção coletiva do sistema religioso, o
qual ela considera de grande significado em sua vida, e por outros espaços de sociabilidade tais como, as
“festas”, “chopadas”, “baladas”.
A pertença religiosa é sempre vista como importante em sua trajetória de vida, porém a participação
no culto e o “seguimento do evangelho” parecem não combinar com o estilo de vida que ela escolhe.
“sempre adorei o evangelho e também sempre fui muito extrovertida, sempre gostei de dançar, sair, curtir...
Tudo isso pra mim é natural”. (Narrativas de Isabela, 26 anos)
No que se refere aos projetos de vida elaborados por Isabela, observou-se em suas narrativas que
ele se encontra indefinido e marcado pelo desconhecimento sobre as áreas profissionais. Ela reconhece
a importância dos estudos em sua vida e identifica a necessidade dar continuidade, seja pelo ingresso a
universidade ou pela realização de cursos. Porém a falta de conhecimento e orientação sobre as áreas
possíveis de ser realizadas em seu campo de possibilidade dificulta a elaboração de planos que favoreça o
alcance de seus objetivos.
Escola? É uma coisa que eu preciso ainda mais, que é a faculdade. Ano que vem eu vou
procurar a faculdade, hoje em dia eu estou tentando me encaixar em um emprego que dê
uma renda suficientemente para poder manter pelo menos a metade da parcela da faculdade,
entendeu? (...) e pelo menos a metade porque eu sei que a outra metade minha mãe vai me
ajudar. (...) Eu só estou um pouco confusa porque eu recebi alguns conselhos que tem a ver
um pouco com a minha personalidade sobre a faculdade. Eu tanto gosto da área da arte,
mas eu também sou uma pessoa de pulso, eu sou uma pessoa, assim, tenho coragem para
enfrentar as coisas. E algumas pessoas falam para mim sobre a área civil. Falam para mim
sobre segurança e tal, que eu gosto de luta e essas coisas assim. Eu gosto de muay thai, eu
gosto dessas coisas e de enfermagem” (...) Meus planos, é complexo. Eu sou eclética nesse
sentido, então pra mim fica muito difícil. Então, eu não sei definir, não tenho uma meta
ainda, eu acho que é por isso que nada ainda aconteceu, porque eu não tenho uma meta no
momento, depois que eu traçar a meta aí pode acontecer. (Narrativas de Isabela, 26 anos)
Por fim, observa-se que Isabela não tem um projeto de vida determinado e um planejamento de suas
ações que visem o alcance de conquistas futuras. Uma vez que, o antropólogo Gilberto Velho (1999, p.101)
define projeto como uma “antecipação do futuro, na medida em que busca, através do estabelecimento de
objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais esses poderão ser atingidos”.
Além da ausência de suporte que lhe possibilitaria na elaboração de projetos de vida, percebe que
existem outras questões em jogo, como as necessidades materiais e simbólicas que dificulta no planejamento
de suas ações. Nas narrativas de Isabela a escolarização precária que lhe foi fornecida pela escola, na
modalidade EJA, aparece como um dos obstáculos para que ela consiga atingir o seu desejo de cursar
uma universidade, como também a necessidade de trabalhar para atender as suas necessidades materiais
evidência as limitações encontradas na estrutura social em que ela está inserida.
A faculdade pública só existe pra quem tem pelo menos uma classe média. Pobre é
muito, muito, muito, muito, muito difícil entrar numa faculdade pública! Muito! Quase
inexistente, entendeu? Porque mesmo uma faculdade pública, ela exige gastos. Ela exige
um conhecimento que o pobre não tem. Porque a menina pobre tem que trabalhar cedo.
Você trabalhando cedo, o que acontece? Até por ajudar seus pais ou por fazer a vida cedo
igual a mim, ter filho cedo e tudo mais. O que ele faz? Ele procura uma EJA. O que a EJA
faz? Ela reduz na metade o conhecimento. Para mim entrar numa faculdade, só pagando.
Para pagar? Trabalhar. Trabalhar, e aí? Vou trabalhar, vou ter que pagar as contas, fazer
uma compra para casa e tal, minha mãe vai dar a metade, mais mesmo assim vai ser muito
arrastado. E aí, eu vou estudar que horas?Vou estudar de madrugada? Quem é que consegue
estudar de madrugada? Virar a noite estudando? Estudar, você exige relaxamento, uma
concentração. Não é a mesma coisa que trabalhar. (Narrativas de Isabela, 26 anos)
A inserção no trabalho aparece não ser apenas uma opção, mas sim uma forma de satisfazer suas
necessidades de básicas, advindas de sua origem social e familiar modesta. Vê-se os reflexos de uma socie-
dade desigual, marcada pela má distribuição de renda, na qual indivíduos de poder aquisitivo mais baixo se
tornam os mais vulneráveis a abandonar os estudos e se inserir no mercado de trabalho, ou conciliar uma
dupla jornada entre trabalho e escola/universidade.
Nessa reflexão sobre os principais aspectos que marcaram a trajetória de Isabela, há de se destacar
a condição de classe em que ela está inserida, uma vez que muitos jovens de baixa renda não encontram
na estrutura familiar apoio material e simbólico que lhes possibilitem ter uma trajetória escolar bem-
sucedida. No entanto, esse movimento de reconhecimento da importância de voltar a estudar aparece como
possibilidade de melhoria de vida devido à situação empregatícia incerta e precária em que se encontra.
Considerações finais
O percurso biográfico de Isabela certamente guarda fortes semelhanças com os cotidianos vivenciados
por muitos jovens, sobretudo pobres, na contemporaneidade. Limitações materiais, mudanças contínuas e
não planejadas e inúmeras readaptações, cujo único fio condutor parece ser o desejo de ser feliz. Analisar
a vida desta jovem nos permite sensibilizar o olhar para a realidade de muitos de nossos jovens e nos
distanciar de visões pré-concebidas que os caracterizam como sendo todos superficiais e irreflexivos. Isabela
é profundamente reflexiva e, à medida em que em que vivencia experiências, elabora sentidos e reordena
sua trajetória. Isso não se faz, como se fosse um “projeto arquitetônico, calculado matematicamente”, tal
como definiu Velho (1993), mas de maneira processual, realizado através de reavaliações contínuas de seu
campo de possibilidades.
Olhar para a trajetória de Isabela nos faz refletir também sobre a importância dos suportes
existenciais na vida dos jovens. Isabela possui suportes educacionais, materiais e simbólicos frágeis, o
que a deixa exposta a um contexto vulnerável e reduzidas de possibilidades de escolhas. Não se trata de
conceber a trajetória desta jovem a partir de um olhar vitimista, visão que a própria Isabela esforça-se para
se distanciar, mas de considerar que os jovens fazem escolhas a partir das possibilidades que encontra em
seu contexto social.
Diante das opções precárias de vivencia, jovens como Isabela dificilmente conseguem transformar
seus sonhos em metas de vida a serem alcançadas. Neste momento, faz-se importante expandir a reflexão
acerca da importância da escola, da religião e da família enquanto suportes existenciais na vida dos jovens
contemporâneos. O percurso de Isabela nos mostra que tais referenciais de forma alguma perderam sua
importância na construção das identidades juvenis, mas ganharam pesos diferenciados que precisam ser
profundamente investigados.
É neste sentido que a abordagem “relato de vida”, aqui apresentada, se coloca como um excelente
instrumento investigativo, permitindo olhares mais aprofundados sobre a juventude contemporânea. Analisar
as singularidades tendo mapeado o entorno dos indivíduos nos permite captar detalhes sutis referente a
construção identitária dos jovens na atualidade, detalhes estes dificilmente apreendidos quantitativamente.
Referencias Bibliográficas
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v.2.
HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e identidade a rede “gaúcha” no Nordeste. Niterói:
EDUFF, 1997.
CARRANO, Paulo Cezar; DAYRELL, Juarez Tarcísio. Relatório final de pesquisa. MEC, 2010.
Disponível em: <http:// www.uff.br/observatoriojovem/ >
GALLAND, O. Qu’est-ce que la jeunesse? (¿Qué es la juventud?). In: CAVALLI, A.; GALLAND, O. El
prolongamiento de la juventud. Paris: Actes Sud, 1993. p. 11-18.
PAIS, José Machado. Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalho e futuro. Porto: Âmbar, 2001.
PAPPÁMIKAIL, Lia. Relações intergeracionais, apoio familiar e transições juvenis para a vida adulta em
Portugal. National Report, Portugal, p. 91-116, 2004. Disponível em: http://www.socsi.ulst.ac.uk/policy/
fate/pubs/3%20Portugal%20national%20report.pdt
OSLENDER, Ulrich. Espacio, lugar y movimientos sociales: hacia una “Espacialidad de Resistência”.
Scripta Nova: revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Barcelona, v. VI, n. 115. Junho de 2002.
Resumo:
A comunicação visa apresentar pesquisa em andamento sobre história e memória autobiográfica de imigrantes
alemães que viveram no Brasil, com base em “trajetórias de vida” escritas por retornados à Alemanha
durante o III Reich. As fontes fazem parte das coleções de documentos pessoais do Rückwandereramt -
RWA, repartição criada no início do regime nacional-socialista especialmente para lidar com os cidadãos
alemães que retornavam para a Alemanha. Além de se debruçar sobre um tema e acervo até o momento não
investigados, esta pesquisa problematiza a prática da escrita de si num contexto institucional, no interior
do qual a escrita de si era prática obrigatória. Aquela repartição era responsável pelo cadastro, controle dos
antecedentes políticos e criminais, orientação e apoio dos retornados e tinha um papel relevante no interior
da política de migrações nacional-socialista. A exigência de um Lebenslauf (“trajetória de vida”), no
cadastro dos retornados, para que pudessem se reinserir na vida socioeconômica, evidencia o exercício de
poderes e de controle. Esta prática permitia adentrar na vida privada do escrevente, obter informações úteis
ao governo e também ter acesso a sua auto-representação. Nossa metodologia considera tanto a relação de
intersubjetividade estabelecida com o destinatário, como os interesses dos retornados ao escreverem sobre
suas vidas. Nos baseamos sobretudo na metodologia proposta pela historiadora alemã Christine Müller-
Botsch (2009), a qual, em seu estudo sobre biografias e ação política de funcionários do baixo escalão
do NSDAP, considerou como modelos institucionais, relevâncias e expectativas atuam internamente na
autocompreensão das pessoas. Buscamos compreender como a narrativa funciona na estruturação da vida
destes sujeitos em situação de retorno e as marcas desse tipo de deslocamento nas suas «trajetórias de vida»,
considerando narrativa não enquanto mero relato do vivido, mas um processo de criação de (um novo)
sentido (Ricouer, 1995).
Palavras-chave: espacios;maestro;cotidianeidad
PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Introdução
afetam a pesquisa em Educação, tanto no que se refere aos seus modos de fazer, como na
delimitação das suas possibilidades.
Quanto à metodologia de pesquisa, impõe-se, de início, a desnaturalização dos termos
que a conformam. No caso da pesquisa que motivou este artigo, implicou o questionamento
do seu próprio foco: a pesquisa sobre a escolarização do jovem morador de favela tornou-se,
então, uma pesquisa sobre os muitos sentidos que se atribuem a jovem, favela, escola,
escolarização, bem como sobre seus diferentes contextos de identificação e significação, em
que alguns sentidos prevalecem e outros são marginalizados. Mas também esse nível de
problematização se beneficia das proposições da desconstrução: a dúvida sistemática que
Derrida propõe em relação às dicotomizações que organizam e hierarquizam atores e
enunciados da nossa sociedade mostrou-se produtivo ponto de partida para tais
questionamentos.
Muito esquematicamente: uma oposição de conceitos metafísicos (por exemplo: fala/escrita,
presença/ausência etc.) nunca é o face-a-face de dois termos, mas uma hierarquia e a ordem
de uma subordinação. A desconstrução não pode limitar-se ou passar imediatamente a uma
neutralização: deve, por um duplo gesto, uma dupla ciência, uma dupla escrita, praticar uma
inversão da oposição clássica e um deslocamento geral do sistema. É somente sob essa
condição que a desconstrução achará os meios para intervir no campo das oposições que ela
critica, que é também um campo de forças discursivas. (DERRIDA, 1991, p. 36-37).
Desse modo, mais do que investigar sobre as memórias da escolarização dos jovens
entrevistados, tivemos que também questionar a construção da hierarquização jovem/adulto,
favela/asfalto, escola/não-escola, na conformação sociocultural mais ampla em que estavam
inseridos, o que entendemos conferir maior consistência e profundidade à pesquisa.
Problematizam-se as identificações recorrentemente atribuídas aos jovens, o que inclui as que
se referem à juventude como período de crise e de passagem para a fase adulta, que seria o
ideal a ser alcançado. Na dicotomização adulto/jovem, sabe-se que o primeiro termo é tido
como a fase da autonomia, da responsabilidade, da maturidade biológica e psicossocial, tudo
o que o jovem não seria. As perspectivas de cunho essencialista, com frequência, baseadas em
determinadas leituras da biologia, na psicologia e também das ciências sociais, abordam a
diferença que socialmente se constrói em relação ao adulto como desigualdade, pela sua
suposta incompletude e imaturidade. Quanto à identificação dos jovens pobres moradores de
favela, questionam-se identificações como violentos, desestruturados, desinteressados,
desocupados e/ou preguiçosos, reflexo direto de sua suposta posição na estrutura social. Desse
modo, a favela tende a ser a referência na identificação de seus moradores, sendo ela mesma
identificada como espaço de carências, precariedade, ilegalidade, irregularidade e violência,
em oposição ao asfalto, espaço-tempo da ordem e da civilidade.
ϰ
Quanto aos limites ao que pode responder a pesquisa em Educação, vale resgatar o
argumento base da crítica de Derrida ao estruturalismo, que nos leva a defender que não
pesquisamos para descobrir verdades, mas, sim, para questionar processos de significação e
identificação.
O filósofo explicita que, em concordância com a leitura desconstrutora que propõe,
não pretende negar o estruturalismo, mas reafirmá-lo e saturá-lo de dentro, em sua própria
lógica argumentativa. É assim que o filósofo vai desconstruir, na teorização de Saussure, o
conceito de signo. Ao propor que os valores linguísticos acontecem em função das diferenças
de um signo em relação aos outros, em um sistema, isto é, o valor está em ser o que o outro
não é, Saussure resolve a questão da possibilidade de significação. Derrida concorda que o
significado é relacional e diferencial, discordando, porém, que esta possibilidade, a da própria
significação, se concretize nos moldes saussurianos (RAJAGOPALAN, 2003). O autor
argumenta que, para que ocorra a possibilidade de significação, remete-se constantemente um
signo aos outros ou, em outras palavras, apela-se para a diferenciação. Essa diferença não se
faz totalmente presente, porque também está envolvida em processos de remissões
ininterruptas. Logo, não há signo que se faça presente a si mesmo e, se não há positividade, só
restam as infinitas diferenciações como possibilidade de significação (CULLER, 1997;
RAJAGOPALAN, 2003).
Ao contestar Saussure e defender que o signo necessita incessantemente de sucessivas
remissões à diferença, esta, por sua vez, descentrada, Derrida propôs a noção de différance,
que deriva, na língua francesa, do verbo différer, que pode ser traduzido como “retardar,
adiar, protelar” (JOHNSON, 2001, p. 38). Cunha o termo usando a escrita com a ao invés de e
– différence – mostrando, assim, como a diferença, neste caso, é uma questão gráfica e que
não altera o termo do ponto de vista fonológico, o que impossibilita a distinção entre os dois
termos quanto à pronúncia. Com isso, Derrida busca inverter o privilégio da fala em relação à
escrita, herança de uma tradição filosófica ocidental, e conduz a que se leia para perceber a
diferença que, neste caso, não é audível. Esta discussão, da oposição entre fala e escrita,
constitui marca central das teorizações e contestações, no campo da filosofia, empreendidas
pelo autor. Vejamos a explicação de Johnson (2001, p. 8):
Enquanto a fala é habitualmente associada à razão e à racionalidade (a noção grega de logos)
e a voz é percebida como mais próxima da ‘verdade’ interior da consciência individual, a
escritura é considerada uma extensão secundária ou suplemento da voz, uma tecnologia
auxiliar empregada pela razão humana mas não essencial a ela.
ϱ
Outro aspecto que amplia e complexifica, ainda mais, a discussão da différance é que,
em francês, o sufixo ance explicita a “substantivação do presente contínuo” –
différant/adiando – que significa uma forma de “extensão temporal” que não se traduz para o
português e que, para nosso entendimento aqui, pode ser concebida, como prefere o próprio
Derrida, como “movimento de diferença” (JOHNSON, 2001, p. 38). Com isso, entende-se
que a différance é o movimento que possibilita e institui a diferença, ao mesmo tempo em que
sempre adia e protela sua estabilização.
O que acrescenta, então, a noção de différance, proposta por Derrida? Para
Nascimento (2001, p. 56), a différance “interrompe a referência ao presente absoluto como
fundamento último da significação, que só pode ser entendida como um processo de
remissões”.
Por seu aspecto precário, deslizante, o significado “está sempre em processo e
‘posicionado’ ao longo de um espectro”, sem possibilidade de retorno a uma suposta “origem
nem destino final”; de igual modo, temos entendido que identidade e diferença são
estabilizações precárias e provisórias, o que impede que o “valor político” de ambas seja
abordado como essência (HALL, 2013, p. 67, grifos do autor). Essa afirmação desestabiliza
os binarismos que, no social, têm sustentado relações hierárquicas, desmascarando a operação
de naturalização da diferença (HALL, 2013). Portanto, além de fundamentar
epistemologicamente a pesquisa, a perspectiva da diferença oportunizada pelas proposições da
desconstrução traz argumentos potentes para o questionamento do adultocentrismo em geral
prevalente nas sociedades contemporâneas, para o quê também contribui sua apropriação pela
teórica feminista Judith Butler – mais especificamente, em suas teorizações sobre os
processos performativos de construção das identificações de gênero, que propomos
recontextualizar para pensar a identificação juvenil (LEITE, 2014, p. 147-148):
O entendimento de Butler a respeito dos processos de constituição das
identidades de gênero trouxe para a pesquisa importante argumento
antiessencialista, potente na contraposição às tendências adultocentristas em
geral prevalentes nas relações escolares que estudamos: assim como nas
questões de gênero, existem as práticas reguladoras da coerência da idade
que, “performativamente”, dicotomizam e hierarquizam a
criança/adolescente/ jovem relativamente ao adulto. A inversão entre
expressão e resultado, implicada na noção de performatividade proposta por
Butler, desnaturaliza não apenas o binarismo masculino-feminino, como
também pode ser mobilizada para desestabilizar a dicotomização apriorística
que costuma se colocar entre jovens e adultos.
130). Ressalta, no entanto, que os performativos podem ser “felizes” ou “infelizes”, de acordo
com os contextos em que são enunciados, que, por sua vez, dependem de “variadas condições
linguísticas e não linguísticas” (LEITE, 2014, p. 9-10; OTTONI, 2002).
A teorização que Austin desenvolve sobre o performativo interessa a Derrida
porquanto se afasta de discussões dicotômicas em torno do verdadeiro/falso, e propondo sua
abordagem como “valor de força, diferença de força” (DERRIDA, 1991, p. 27). E, ainda,
como afirma Culler (1997, p. 133), por recusar-se a “explicar o sentido em termos de um
estado de espírito”, propondo, antes, “uma análise das convenções do discurso”. No entanto,
Derrida aponta uma contradição que, como se verá adiante, parece reintroduzir o valor da
presença, dos julgamentos de verdade e falsidade no performativo austiniano (DERRIDA,
1991).
Austin pondera que os enunciados teriam que ser ditos de maneira séria, ou seja, não
poderia ser brincando, fingindo, ou encenando. Considerando-se tal objeção, pode-se concluir
que, para o autor, o performativo dependeria de uma vontade, como garantia, da seriedade e
de uma espécie de verdade como compromisso de uma suposta intenção do sujeito que
enuncia. Derrida, na desconstrução do texto austiniano, argumenta que, ao propor a exclusão
de performativos que estejam em circunstâncias pouco prováveis ou anormais – palcos de
teatro, recitais de poemas etc. – Austin retoma a mesma lógica de seus precursores, que
acreditavam que a língua, habitualmente, era usada para fazer afirmações verdadeiras ou
falsas (CULLER, 1997).
Desse modo, Austin retoma, em sua teorização, o pressuposto, antes recusado, de que
“o sentido de um enunciado depende da presença de uma intenção significante na consciência
de quem fala” e segue desconsiderando os casos de enunciados não intencionais, tidos como
resultado das circunstâncias (CULLER, 1997, p. 141). Com isso, privilegia “a intenção
consciente do falante, a unidade de sentido da palavra e também a estabilidade das
convenções sociais” como determinantes do contexto que oportunizaria a enunciação
performativa (LEITE, 2014, p. 10). Dito de outro modo, a força do enunciado performativo
seria totalmente dependente do contexto, este, por sua vez, entendido como passível de ser
apreendido em sua totalidade, pelo teórico.
Derrida, no entanto, aborda o contexto a partir de sua leitura das estruturas como em
permanente deslocamento, que não podem saturar os sentidos, sendo o próprio contexto
entendido como não determinável, múltiplo, deslizante. Esse deslocamento constante seria
ϴ
diferença supõe: são aspectos da noção de iterabilidade que propõe, afirmando que a
citação/repetição guarda a possibilidade de modificar o sentido que deveria repetir.
Destaque-se, contudo, que, ao invés de negar a possibilidade de algum efeito de
controle por parte do sujeito da enunciação, nega-se a pretensão da efetividade e da
transparência de uma suposta intenção consciente desse sujeito. Derrida entende que a
iterabilidade instaura essa ruptura que, por sua vez, desmonta o argumento austiniano de um
contexto total, pois, na sua lógica, seria necessário que ao menos a intenção fosse consciente.
“não linear, feita de informações parciais e dispersas, que foge aos cânones habituais do
gênero” (DOSSE, 2009, p. 307). Dosse entende que, nessa escrita, Barthes expõe o sujeito
que existe como efeito da linguagem, sem qualquer referência fixa, preexistente ao texto.
Além do sujeito plural, este momento do biográfico tem como marca também o rompimento
com o paradigma cronológico, que ditaria o ritmo da narrativa, a partir de uma suposta origem
e destino dados pela natureza, ou seja, do nascimento à morte (DOSSE, 2009).
No campo da educação, as pesquisas que adotam as formas autobiográficas têm se
dedicado a esta centralidade do narrativo como meio de se problematizar, entre outros temas,
as questões de aprendizagem e de formação (GOODSON, 1992; DELORY-MOMBERGER,
2011).
Considerando o argumentado no item anterior, temos buscado repensar nossas opções
metodológicas, o que nos levou às perspectivas (auto)biográficas nas entrevistas da pesquisa
acadêmica. Chegamos assim às teorizações de Leonor Arfuch, que propõe pensar o biográfico
em termos de um espaço em que se organizariam diferentes formas (não)semelhantes de se
contar a vida, que se apresentam na contemporaneidade, além das que já seriam mais
estabilizadas.
Problematizando o acontecimento do dizer – a entrevista – Silveira recorre a Arfuch,
quando introduz em sua teorização, inspirada pelo dialogismo bakhtiniano, a tese de que o
enunciado está irremediavelmente afetado “pela suposição da existência (concreta, em
presença, viva, pressuposta, virtual) de um interlocutor” (SILVEIRA, 2002, p. 122). Ao
concordar com as autoras, atualizamos, neste artigo, o entendimento de que o sujeito não tem
o controle total do que enuncia, nem mesmo propriamente a sua autoria, uma vez que o que se
pode dizer desses enunciados é que são repetições de sentidos que guardam a possibilidade de
relativos deslocamentos, a iterabilidade (DERRIDA, 1991).
Ao problematizar a situação da entrevista a partir dos questionamentos
contemporâneos relativamente à consciência, ao sujeito autônomo do pensamento cartesiano e
à estabilidade e transparência da linguagem, Silveira propõe concebê-la, na pesquisa em
educação, como “uma arena de significados” (2002, p. 139). Neste sentido, a interação que se
propõe é marcada por disputas e negociações, com as quais, valendo-se dos discursos de seu
tempo, perpassados por rastros que povoam os sentidos repetidos e refreados, entrevistador e
entrevistado constroem juntos a cena da entrevista.
No contexto das pesquisas autobiográficas, Arfuch argumenta que a entrevista
potencializa a reflexão sobre os processos de construção de sentidos e identidades
ϭϭ
Cenas, arenas
Para discutir sobre as implicações analíticas e operacionais da perspectiva da diferença
para as entrevistas na pesquisa em Educação, transcrevemos, a seguir, as reflexões da
pesquisadora que as realizou, acerca da cena dessa interação.
Minha identificação como ex-professora desses jovens, agora
pesquisadora, e de alguém que frequentara e que, portanto, conhecera aspectos
diversos dos modos de vida naquela localidade, ainda que
circunstancialmente, e alguns episódios de suas vidas, pode ter marcado a
realização da entrevista. Observei, por exemplo, recordando, lendo as
transcrições e anotações que fiz, quando da realização de cada entrevista, que,
ao perguntar “Onde você mora?” pairava um desconforto na conversa. Ambos
sabíamos a resposta. Seria algum tipo de armadilha, uma brincadeira ou
incoerência da entrevistadora?
A pergunta era, sim, provocativa e tinha de ser feita, porque
interessava não a confirmação (ou não) do local, o que já se sabia, o que
parecia óbvio e irremediável, mas o como eles o narrariam naquele contexto.
Privilegiar-se-ia, então, a discussão da “construção narrativa, os modos de (se)
nomear no relato”, ou seja, a reflexão em torno das palavras usadas em cada
resposta e em cada pergunta (ARFUCH, 2010, p. 75).
As respostas, quase sempre, vinham acompanhadas de um sorriso
desconfiado, quase que constrangido, a meu ver, como se quisessem dizer:
você sabe onde eu moro, o que espera que eu responda? E ainda aquele olhar
embaraçado de quem se sente acuado e confrontado, mas que encontra muitas
maneiras de dizer (ou não) uma mesma coisa. Interpelamo-nos mutuamente,
pelo olhar, aguardando a reação um do outro, ajustando-nos aos nossos
sistemas de coerência, de significação, sendo que entrevistador e entrevistado
vivenciaram o desconforto que a pergunta gerara de parte a parte.
Embora houvesse alguma familiaridade entre entrevistados e
entrevistadora, em geral, percebia-se o quanto esta relação é instável e
imprevisível, como já foi dito. A alteração na atitude diante de mim deveu-se,
provavelmente, à formalidade da situação, que se colocou pelo objetivo
declarado da conversa, previamente marcada, justificada, pontuada e situada,
além de registrada, inclusive, com a responsabilização assumida através de
“termo de consentimento livre e esclarecido”, assinado por ambos.
ϭϮ
Nota-se, assim, que temas sobre os quais conversaríamos,
informalmente, adquiriam outros significados para entrevistadora, implicada
com sentidos específicos, ainda que sem a pretensão de total controle da fala
do outro e da própria situação, mas direcionada por questões da pesquisa e dos
compromissos institucionalmente assumidos. Da outra parte – a do
entrevistado – notava-se também algum desconforto, como foi relatado por
alguns deles, agora, sim, de modo mais informal, após desligar o gravador.
Preocupações com a pronúncia de palavras, isto é, com falar corretamente, o
que foi explicitado por uma entrevistada, pode indicar como minha
identificação de professora e pesquisadora vinculada à academia pode ter sido
percebida. No mais, a própria gravação, o registro ou apreensão relativamente
a esse modo de falar, documentado, transcrito, e, logo, exposto, marcou esta
interação. [...]
Outras possíveis marcas tais como respostas curtas, pontuais e com
tom apreensivo parecem indicar desconforto semelhante. Em outra entrevista,
um jovem disse que os olhos da entrevistadora, fitos nele (estávamos frente a
frente, sentados numa mesa do shopping, gravador posicionado no centro da
mesma) era como se fossem uma câmera que o filmava, causando-lhe
nervosismo. Inevitável (ou não), o incômodo a que também se submete o
pesquisador, esse “ora arrogante, ora constrangido” personagem de
entrevistador, faz parte do jogo (SILVEIRA, 2002, p. 138).
entrevista, bem como do contexto da sua realização, o que não chega a constituir problema de
difícil resolução. Poucos são os periódicos que ainda publicam versões impressas, e poderiam
se valer do recurso do hipertexto para a publicação online dos seus artigos. Conquanto seja
compreensível a limitação do número de páginas dos textos dos periódicos, não há por que
não disponibilizar, em enlaces hipertextuais, o acesso aos materiais que justificam suas
proposições.
Nossos argumentos em torno da realização, interpretação e publicação de narrativas
construídas em entrevistas de pesquisas acadêmicas, a partir da perspectiva teórico-política da
diferença, por certo não esgotam os problemas que se apresentam para a operacionalização de
tais princípios, e menos ainda se pretendem resposta final para todo contexto de pesquisa.
Participam, contudo, de amplo movimento que, em eventos como este Congresso e em muitos
outros espaços-tempos de interlocução acadêmica, busca construir caminhos para a pesquisa
em Educação que respondam aos desafios teóricos e políticos dos nossos tempos.
REFERÊNCIAS
ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2010.
ARROJO, R. (org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino.
Campinas: Pontes, 2003.
CULLER, J. Sobre a Desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Rio de Janeiro:
Record; Rosa dos Tempos, 1997.
DERRIDA, J. Limited Inc. Campinas: Papirus, 1991.
DELORY-MOMBERGER, D. Fundamentos epistemológicos da pesquisa biográfica em
educação. Educação em Revista, v.27, n.01, p.333-346, abr. Belo Horizonte, 2011.
DOSSE, F. O desafio biográfico – escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2009.
GOODSON, Y. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu
desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, A. (org.). Vidas de professores. Porto, Portugal:
Porto Editora, 1992.
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2013.
O texto aborda sobre questões referentes aos procedimentos metodológicos em pesquisa (auto)biográfica.
O Objetivo é analisar o uso de entrevista narrativa como dispositivo para conhecer os processos de formação profissional de
professores. Na constituição da investigação, a abordagem foi utilizada como método para a elaboração de narrativa de vida
profissional dos professores, os quais narraram suas experiências através de um filtro (BERTAUX, 2010). Estudos como os
de Souza (2006), Pazos (2002), Frago (2002) e Pineau (1999), Delory-Momberger, (2008), Josso (2004), têm de-
monstrado que independente da abordagem tomada como aporte, o fato é que a pesquisa (auto)biográfica
utiliza-se de diferentes modos de narração para acessar e apreender as experiências formativas dos pro-
fessores. Com base em nosso objeto de pesquisa, escolhemos, dentre os modos, a entrevista narrativa. A
complexidade que envolve o conteúdo de uma entrevista narrativa tem levado alguns teóricos a investirem
na busca de procedimentos de análise mais adequados e mais eficazes para a compreensão das histórias
contidas nas narrativas, tais como Daniel Bertaux (2010), Jovchelovitch e Bauer (2005), Lejeune (2008),
Ricouer (1995). O uso de entrevista narrativa contribuiu para a apreensão das informações sobre a cons-
trução da docência dos sujeitos pesquisados, revelando dentre outras categorias, aprendizagens, imagens
construídas, formação, influências, escolhas, concepções e práticas docentes. O trabalho com entrevistas
narrativas revelou, dentre outras questões, a difícil tarefa de analisar as narrativas, pois requer do pesquisa-
dor conhecimento e sensibilidade para perceber e entender as relações e situações presentes nas narrativas.
Introdução
O texto tem por finalidade analisar o uso de entrevista narrativa como dispositivo para conhecer os processos de
formação profissional de professores que ensinam nos cursos técnicos integrados ao ensino médio na modalidade
Educação Jovens e Adultos, vinculados ao PROEJA1 do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia - IFCE.
As discussões são frutos de pesquisa desenvolvida no Doutorado a qual investigou a complexidade que envolve a
integração da Educação de jovens e Adultos com a Educação Profissional, no que se refere à identidade docente
dos referidos professores. Neste artigo, faremos um recorte para abordamos sobre os procedimentos metodológicos
utilizado na pesquisa (auto)biográfica realizada2.
Para conhecer e analisar o percurso identitário dos professores do PROEJA-IFCE, adotamos como referencial
metodológico o campo de estudo sobre história de vida e formação, cuja utilização tem evoluído em áreas como
a Literatura, Antropologia, Sociologia, Psicologia e Educação. No Brasil, esse tipo de pesquisa é denominada de
pesquisa (auto)biográfica ou método biográfico. A opção por esse referencial justifica-se por ele ser considerado um
meio potencial para a compreensão do diálogo entre a realidade individual e a sociocultural dos sujeitos participantes
da pesquisa; como método de pesquisa qualitativa essa abordagem atribui estatuto à subjetividade e às experiências
dos sujeitos e contribui para o entendimento de como constroem e dão sentido a suas identidades.
A relação entre a importância das narrativas (auto)biográficas e identidade é comunicada por autores como Josso
(2004), Delory-Monberger (2008) e Larrosa (2004). Este último autor ressalta que
El sentido de lo que somos o, mejora aún, el sentido de quién somos, tanto para nosostros
1 Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalida-
de de Educação de Jovens e Adultos.
2 Tomamos como referência a Parte III de nossa tese intitulada “A tessitura da pesquisa”.
mismos como para los otros, depende de las historias que contamos y que nos contamos y,
en particular, de aquellas construcciones narrativas en las que cada un de nosotros es, a la
vez, el autor, el narrador y el caráter principal, es decir de las autobiografías, autonarraciones
o historias personales. (LARROSA, 2004, p.12)
Como método de pesquisa, as “histórias de vida”3 foram introduzidas nas Ciências Sociais sob a influência da Escola
de Chicago, com o Paysan Polonais, de W.I. Thomas e F. Znaniecki, no início do século XX. Em tal trabalho, a
partir da abordagem em pauta, o pesquisador retratou a realidade de imigrantes nos Estados Unidos e problemas
sociais concernentes à época. Na Alemanha, Wilhelm Dilthey (1910) introduz a perspectiva nas Ciências Humanas,
considerando-a como uma hermenêutica da experiência e compreensão da vida. Com a Segunda Guerra Mundial,
há um retraimento desse tipo de pesquisa, sendo revitalizada apenas na década de 1960, com trabalhos na área da
Antropologia, Sociologia e Psicologia. (JOSSO, 2004, 2006; PINEAU, 2006).
O movimento surgido na área social influenciou as Ciências da Educação, que, desde o final da década de 1970,
vêm integrando a abordagem em suas investigações. Seja no âmbito da pesquisa-formação, como nos currículos da
formação de professor, evidencia-se uma “sensibilidade à história dos aprendentes e de sua relação com o saber”.
(JOSSO, 2004, p. 19). De acordo com Josso (idem), o interesse crescente pela perspectiva biográfica acontece
inseparável da reabilitação do sujeito e do ator. A autora situa como um dos marcos para essa reabilitação a Teoria
do Sistema proposta por Bertalanffy, na década de 1970, que, baseada no conceito de autopoiésis, reintroduziu a
abertura e a indeterminação na visão determinista, distinguindo, na área social, as individualidades. Autores como
Carl Rogers, Paulo Freire e Bernard Honoré, são citados pela autora como referenciais no campo da Psicologia e da
Educação como teóricos que contribuíram para a ampliação da abordagem biográfica na perspectiva da formação
tendo como referência o sujeito aprendente.
Em relação à contribuição de Paulo Freire para essa abordagem, vale ressaltar o estudo de Olinda (2011), no qual
são destacados alguns “pontos de encontros” entre a concepção de Freire e a pesquisa (auto)biográfica. A autora
apresenta dez pontos, tais como: ser humano é encarado como síntese totalizadora; multirreferencialidade; inter/
transdisciplinaridade; história de vida como fonte de conhecimento; valorização da experiência; educação intercultural;
reflexividade crítica; registro e valorização das lutas e resistências populares; efetivação do trinômio ação-reflexão-
ação e corpo e emoção como fonte de conhecimento. A partir desses pontos convergentes, Olinda reafirma a influência
de Paulo Freire para a pesquisa (auto)biográfica, pois toda sua obra “é um chamamento a tomar o sujeito aprendente
como centro dos processos formativos, respeitando-se e valorizando sua história pessoal” (p.174-180).
No decorrer de sua constituição, os estudos sobre história de vida e formação têm circulado em dois grandes eixos:
as histórias de vida como projetos de conhecimento e história de vida a serviço de lógicas de projeto. Conforme
distingue Josso ( 2004),
O segundo período, identificado por Pineau como período de fundação, tem início com a criação da L’Association
Internacionale dês histoires de vie et fomation (ASIHVIF), em 1990. Em seguida, assistiu-se a organização em
diversos países de associações e redes nacionais e regionais, tais como na Suíça, Quebec e França. Assiste-se, também,
o lançamento em Paris da Coleção Histoire de vie et formation, em 1996, que tem garantido o espaço de publicação
na área. O diálogo e o intercâmbio com a Associação Internacional e a consolidação das pesquisas contribuíram para
o fortalecimento deste movimento no Brasil. Josso (2004) caracteriza a década de 1990, como o período em que o
conceito de experiência foi apresentado “como um conceito aglutinador dos projetos de conhecimento da formação
no decurso da vida” (p.27).
Considerar a experiência como elemento constitutivo do decurso da vida do sujeito é considerar a experiência
enquanto constructo singular, biográfico. Nesse sentido, o biográfico é concebido como “categoria da experiência
que permite ao indivíduo, nas condições de sua inscrição sócio histórica, integrar, estruturar, interpretar as situações
e os acontecimentos vividos”. (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 26).
O terceiro período é o de desenvolvimento diferenciado que se inicia nos anos 2000 e tem sido representado pela
refundação de associações, retomada de colóquios e pela emergência de novos autores e atores que têm fortalecido
o movimento com novas publicações e ações, de onde emergem novas abordagens que visam responder a novas
questões teóricas e metodológicas. Como fruto desse movimento, foi realizado na cidade de Porto Alegre, em 2004,
o I Congresso Internacional sobre Pesquisa (auto)biográfica – I CIPA o qual oportunizou a criação de uma rede de
pesquisa (auto)biográfica brasileira. Os congressos do CIPA têm repercutido pela sua contribuição nas investigações
sobre formação e práticas (auto)biográficas nas diversas áreas de conhecimentos. Sua quarta versão foi realizada
no ano de 2010, na cidade de São Paulo, com o tema Espaço (auto)biográfico: artes de viver, conhecer e formar, o
qual teve como horizonte, “potencializar, simultaneamente, o exame do lugar instituído pelos estudos e perspectivas
(auto)biográficas e pelo espaço de produção subjetivo e intelectual dos atos (auto)biográficos” (IV CONGRESSO
INTERNACIONAL DE PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, 2012).
O crescente uso de histórias de vida em formação fez surgir várias correntes e uma diversidade de denominações
de abordagens. Pineau (2006, p.339-341) apresenta algumas diferenciações metodológicas, tais como: Biografias,
definida como a escrita da vida de outro, sendo considerada como abordagem biográfica; a Autobiografia é a escrita
da própria existência, da história individual. Este modelo representa um “exercício em um círculo diferente do
“curvar-se (fechar) reflexivo e do desdobrar-se (abrir) narrativo”; Relato de vida é a descrição de forma narrativa
de um aspecto ou parte da vida experienciada; História de vida é expressão escrita ou oral da experiência vivida,
podendo ser usada, “a serviço de um projeto” ou abarcar a “globalidade da vida em todos os aspectos”, conforme
salienta Josso (2004).
Pineau (idem), com base em estudo anterior (PINEAU e LE GRAN, 2002) e, tomando como referência o papel que
ocupa o pesquisador, na utilização dessas abordagens, apresenta três modelos diferentes, a saber: modelo biográfico,
em que a relação sujeito e pesquisador é caracterizada por um distanciamento, cada um exercendo o papel de acordo
com o lugar que ocupa; o modelo autobiográfico, centra-se na singularidade do sujeito, sendo desnecessária a presença
do investigador e o modelo interativo ou dialógico fundamenta-se na relação interativa entre o sujeitos pesquisador
e narrador, tendo em vista a co-construção e sentido da história narrada.
Elizeu Clementino Souza (2006), no texto intitulado A arte de contar e trocar experiências: reflexões teórico-
metodológicas sobre história de vida e formação, tomando como referências autores como Pazos (2002), Frago
(2002) e Pineau (1999), discutem sobre as diferentes tipificações utilizadas nas investigações no campo das
abordagens biográficas. Independente da abordagem tomada como aporte, o fato é que esse tipo de pesquisa utiliza-
se de diferentes modos de narração para acessar e apreender as experiências formativas dos professores. Seja por
meio de relatos orais e escritos, ou por meio de diários, memórias, cartas, entrevistas narrativas, fotografias, ateliês
biográficos, as vidas são narradas e relembradas, valorizando-se suas singularidades.
A importância desse tipo de pesquisa foca-se no fato de que, durante muito tempo, contar a sua própria história
sempre foi privilégio de membros da classe dominante: “o ‘silêncio’ das outras classes parece totalmente natural: a
autobiografia não faz parte da cultura dos pobres” (LEJEUNE, 2008, p.113). Graças à expansão dessas investigações,
as pessoas consideradas anônimas têm suas histórias evidenciadas e registradas como fonte de entendimento da
vida singular e em sociedade. Como afirma Pineau (2006,p.69), “neste inicio de milênio, a vida que busca entrar na
história não é mais somente a dos notáveis, mas a de todos aqueles que, querendo tomar suas vidas na mão, se lançam
nesse exercício, reservado até aqui à elite”.
Na constituição da presente investigação, a abordagem foi utilizada como método para a elaboração de narrativa
de vida profissional dos professores. De forma oral e dialógica, os sujeitos foram convidados pela pesquisadora a
contar suas experiências através de um filtro (BERTAUX, 2010). Nesse sentido, as narrativas dos professores foram
compreendidas como fragmentos de experiências formativas que constituíram e constituem os processos identitários
dos sujeitos pesquisados.
Fragmentos porque relataram parte de sua vida, especificamente, como se tornaram professor. Além disso, quando
uma vida é narrada, ela não é narrada em sua totalidade, pois a vida é constituída por diversos enredos ou histórias
e, mesmo que se escreva um livro, algo escapa da memória do narrador. Na tessitura de uma narrativa, os fios são
tecidos a partir das histórias que brotam das lembranças que o narrador considera importante; são fragmentos de
memórias, de uma cultura, de uma época, de um sujeito.
Ao narrar sua história o sujeito revela-se a si e aos outros, apropria-se de sua vida e se faz presente no mundo. Como
argumenta Delory-Momberger, “é a narrativa que faz de nós o próprio personagem de nossa vida; é ela, enfim, que
dá uma história a nossa vida: não fazemos a narrativa de nossa vida porque temos uma história; temos uma história
porque fazemos a narrativa de nossa vida” (2008,p.37). Tomando como parâmetros as realidades que são expressas
no ato de narrar uma história, Jovchelovitch & Bauer (2005, p. 110) elencam algumas proposições das narrativas, a
saber:
A narrativa privilegia a realidade do que é experienciado4 pelos contadores de história: a
realidade de uma narrativa refere-se ao que é real para o contador da história.
As narrativas não copiam a realidade do mundo fora delas: elas propõem representações/
interpretações particulares do mundo.
As narrativas não estão abertas à comprovação e não põem ser simplesmente julgadas como
verdadeiras ou falsas: elas expressam a verdade de um ponto de vista, de uma situação
específica no tempo e no espaço.
As narrativas estão sempre inseridas no contexto sócio histórico. Uma voz específica em
uma narrativa somente pode ser compreendida em relação a um contexto mais amplo:
nenhuma narrativa pode ser formulada sem um sistema de referente.
Em referências às ideias expressas pelas autoras supracitadas, pode-se dizer que há uma historicidade no exercício da
narrativa, os sujeitos estão inseridos numa história, numa cultura, num mundo social e isso os faz sujeitos singular-
plural, individual-coletivo e ao contar a sua história, eles narram a partir da realidade sócia histórica e cultural nas
quais se constituíram sujeito e às quais pertencem.
A pesquisa foi realizada no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, com
os professores que lecionam nos cursos profissionalizantes integrados ao Ensino Médio na modalidade Educação de
Jovens e Adultos, no campus de Fortaleza.
No ano de 2007, o IFCE-Fortaleza iniciou dois cursos nessa especificidade, sendo um na área de
Telecomunicação e outro na área de Refrigeração. No semestre em que a parte empírica dessa pesquisa foi iniciada,
2009.2, cada curso era composto por 32 professores, sendo que nove ensinavam nos dois cursos. Dos 64 professores,
14 eram do sexo feminino e 50 do masculino. Em relação à formação acadêmica, 29 eram formados em cursos de
Engenharias e 35 em licenciaturas ou cursos das áreas específicas das disciplinas do Ensino Fundamental e Ensino
Médio. Com base no critério, tempo de experiência docente nos cursos em investigação, no início do plano de
estudo, selecionamos um grupo com nove professores que trabalhavam há mais tempo nesses cursos (cerca de dois
anos e meio), sendo três da área de formação geral e seis das áreas específicas: três da Telecomunicação e três da
Refrigeração. Tendo em vista a disponibilidade de tempo de três sujeitos, participaram da pesquisa seis professores:
dois da área de formação geral, dois da Refrigeração e dois da Telecomunicação. A quantidade de sujeitos também é
justificada pela existência de fluxo razoável de docentes nos cursos, principalmente no de telecomunicação.
A análise das narrativas proporcionou, em primeiro momento, a identificação do nível de formação e experiência
docente dos sujeitos, como mostra o quadro abaixo:
Vale ressaltar que para não expor os nomes dos sujeitos da pesquisa, optei por identificá-los a partir de perfis
construídos com base nos indícios ou expressões deixadas por eles nas narrativas, que para mim, caracterizam a
imagem de suas formas de ser professor.
Com esse intuito, o professor que narrou sobre sua aprendizagem para docência em uma área para qual não tinha
formação específica, nem pedagógica, afirmando ser autodidata, identifiquei como Professor autodidata. O docente
que enfatizou sua formação básica e considera a docência como qualquer outra profissão, no viés da responsabilidade
profissional, eu denominei de Engenheiro professor. Outro sujeito falou que não percebeu quando deixou de ser
técnico para ser professor e que a docência é algo natural nele, chamei-o de Professor vocacionado. Nomeei de
Professor laboratorista, o docente que enfatizou suas atividades em laboratório, ensina no laboratório, preocupa-se
com a organização das aulas. O sujeito que tem formação em licenciatura em matemática e dá ênfase ao seu saber
matemático e a sua experiência prática docente, identifiquei-o de Professor de matemática. O último sujeito deu
ênfase a sua relação afetiva com os alunos, a forma de saber lidar com as pessoas. Enalteceu sua experiência religiosa,
gosta de ler mensagens nas aulas e tem cuidado com os alunos, por isso, denominei-o de Professor motivador.
É importante ressalvar que a identificação não tem intenção de fixar uma identidade, a caracterização é apenas uma
organização metodológica dos sujeitos de pesquisa.
No âmbito da pesquisa qualitativa, as preocupações e proposições acerca de suas metodologias têm recebido nos
últimos tempos profícua atenção. Destas, tem emergido uma quantidade efetiva de possibilidades no que se refere
aos instrumentos empregados na coleta de dados e de procedimentos para efetivar sua análise, entre elas, as mais
utilizadas são a observação e a entrevista. Especificamente, na pesquisa (auto)biográfica, podem ser utilizados
dispositivos, técnicas e instrumentos variados, tais como: diários, fotografias, memoriais, documentos e artefatos
pessoais, atelier biográfico, entrevistas narrativas, biografias educativas, entrevistas reflexivas, círculos reflexivos
biográficos. No caso do estudo em pauta, considerando que a identidade do professor é constituída por um processo
formativo que envolve socialização, conhecimentos, saberes e práticas docentes e, embora compreendamos que
as entrevistas narrativas (JOVCHELOVITCH E BAUER, 2005) são fortes dispositivos para evidenciar processos
identitários, optamos por usar também a observação em sala de aula, uma vez que esta, além de contribuir para a
construção de uma representação da realidade, por parte do observador, amplia o entendimento dos fatos e relações
entre os eventos do passado e presente, narrados pelos entrevistados.
Tendo como fito a análise do processo identitário dos professores do PROEJA-IFCE e concebendo a narrativa de vida
como método para as pessoas relatarem seus processos formativos e experiências que construíram sua vida individual
e coletiva, utilizamos a entrevista narrativa como dispositivo para conhecer os processos de formação profissional
dos sujeitos participantes da pesquisa.
Segundo Jovchelovitch e Bauer (2005, p.95) a entrevista narrativa “é considerada uma forma de entrevista não
estruturada, de profundidade, com características específicas”. Por meio desse tipo de entrevista, as perspectivas e
concepções do sujeito entrevistado são reveladas em suas histórias, visto que ele se expressa espontaneamente sem
muitas interrupções do entrevistador. No entanto, existem algumas regras de procedimentos da técnica proposta por
Schütz (2011) e reelaboradas por Jovchelovitch e Bauer (2005, p.96 a 100) que contribuem para a qualificação da
entrevista narrativa como método de pesquisa, dentre outras encontram-se: exploração do campo, não interrupção
da narrativa, esperar os sinais de finalização (“coda”), não discutir sobre contradição, fazer anotações depois da
entrevista.
Familiarizada com os docentes, devido à fase de observação, marcamos as entrevistas conforme as disponibilidades
deles, não encontrando nenhuma dificuldade com o grupo dos seis. As entrevistas foram realizadas em quatro fases,
com as regras propostas pelos autores citados anteriormente, que compõem a entrevista narrativa.
Na segunda fase, a narração central, os entrevistados narraram suas histórias sem interrupções do pesquisador,
indicando o início e o fim da mesma. Nesta fase, fomos anotando questões a serem esclarecidas ou completadas.
Após a escuta atenta da narração, iniciamos a terceira fase: questionamento. Fizemos algumas perguntas em busca de
novas informações ou de esclarecimentos sobre questões deixadas em aberto pelo entrevistado. Como cada um tem
a maneira singular de narrar seu percurso, as questões versavam sobre temas diferentes, dependendo da narrativa de
cada sujeito, ou seja, temas não mencionados ou que precisavam ser esclarecidos. Em síntese, foram feitas questões
sobre: as aprendizagens, a formação, a prática, EJA, análise das experiências. Ex: O senhor falou que aprendeu
a docência em sala de aula, por meio da relação com os alunos, com os seus questionamentos e falou que fez o
Esquema II. Qual o papel do curso Esquema II nesse processo?
Ao finalizar a entrevista, demos continuidade, com discussões descontraídas entre entrevistador e entrevistado. Foi a
fase da fala conclusiva, a qual serviu para conhecermos a opinião dos professores sobre o programa e como incentivo
às propostas de intervenção. Os professores ficavam mais livres para tecer qualquer comentário. Vale ressaltar que
dos comentários emergiram algumas propostas reveladoras da implicação de alguns sujeitos com o PROEJA e da
consciência de necessidade de mudança.
Os professores fizeram suas narrativas sobre o percurso formativo experienciado ao longo da carreira e no momento
atual, tendo como parâmetros as experiências formativas dos diversos espaços e tempo da formação profissional
e prática docente. As entrevistas foram realizadas nas dependências do IFCE, atendendo-se à disponibilidade de
tempo dos professores. No primeiro momento, as narrativas foram gravadas, em seguida transcritas e devolvidas aos
sujeitos para seu conhecimento e possíveis acréscimos.
Segundo Jovchelovitch e Bauer (2005), as narrativas são expressão da realidade vivida pelo narrador, propõem
interpretações particulares do mundo e expressam a verdade de um ponto de vista. No entanto, elas estão sempre
inseridas no contexto sócio histórico. Neste sentido, ela representa tanto a história do sujeito narrador quanto a história
do mundo além do sujeito. Essas proposições apresentadas pelos autores denotam a complexidade que envolve o
trabalho com narrativas e por consequência o processo de análise, pois requer do pesquisador “muita sensibilidade
para perceber as imaginações e distorções que configuram toda narrativa humana”, como também, para “prestar
atenção à materialidade de um mundo de história” (p.110).
A complexidade que envolve o conteúdo de uma entrevista narrativa tem levado alguns teóricos a investirem na busca
de procedimentos de análise mais adequados e mais eficazes para a compreensão das histórias contidas nas narrativas.
Os estudos realizados têm proposto diferentes procedimentos, dentre eles se encontram: a análise de conteúdo, como
apresentada por Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut (1995), composta por seis fases que compreendem a pré-análise,
clarificação, compreensão e organização do corpus, organização categorial e o somatório das histórias de vida.
A análise temática, um dos tipos da análise de conteúdo, é apontada por Jovchelovitch e Bauer (Op.cit) como um
dos procedimentos de análise das narrativas coletadas. Entre as outras técnicas indicadas por esses autores, uma é
a proposta de Schütze, que indica seis passos, tais como: transcrição, divisão do texto em material indexado e não
indexado; ordenamento dos acontecimentos; análise do conhecimento; agrupamento e a comparação das trajetórias
e identificação de trajetórias coletivas. O outro procedimento é a análise estrutural, que focaliza os aspectos formais
da narrativa. Nesse tipo de análise, todos os acontecimentos, pessoas, situações e ações são ordenados, mapeados e
comparados, buscando-se entender como os narradores usam o tempo e as explicações ou razões que dão sentidos
aos acontecimentos. Os autores advertem que
Compreender uma narrativa não é apenas seguir a sequência cronológica dos acontecimentos
que são apresentados pelo contador de histórias: é também reconhecer sua dimensão não
cronológica, expressa pelas funções e sentidos do enredo. (JOVCHELOVITCH E BAUER,
2005, p.93).
Daniel Bertaux (2010) sugere um processo de análise que compreende uma etapa de reconstituição dos fatos e
outra de interpretação dos acontecimentos. Na primeira etapa, o autor propõe que, após a transcrição das narrativas,
busque-se “reencontrar a estrutura diacrônica da história reconstituída”. Para tanto, é importante distinguir, as ordens
de realidades presentes na narrativa. A primeira compreende uma realidade histórico-empírica da história vivida pelo
narrador, denominado por ele de percurso biográfico (grifo do autor) que inclui não apenas a cronologia dos fatos,
mas também a forma como o sujeito experienciou os acontecimentos. A segunda realidade, a psíquica e semântica,
está relacionada ao que o sujeito diz e pensa de sua história, como também à síntese que ele faz de suas experiências.
A terceira compreende a realidade discursiva da narrativa que se refere à compreensão do que o sujeito quis dizer no
momento de relatar sua história para o entrevistador.
Reencontrar a estrutura diacrônica da narrativa se refere à reconstituição da sucessão temporal dos acontecimentos,
de forma que esses tenham relação entre si e deem sentido ao percurso e isso implica no reconhecimento da relação
entre a temporalidade biográfica do sujeito e o tempo histórico coletivo. Assim, esse trabalho de análise objetiva
preparar o entrevistador a
A interpretação da história é processada por meio da análise compreensiva que tem como elementos chave a
imaginação e o rigor. Através da imaginação o pesquisador mobiliza seus conhecimentos interpretativos, pois, muitas
vezes, ao contar uma história, o narrador não deixa implícita a lógica dos acontecimentos. Nesse caso, o pesquisador
constrói uma representação das relações e processos que compõem o enredo, identifica os fatos marcantes e coloca-os
em status de indícios da história situada.
Outro tipo de interpretação, mencionada por Bertaux (id) é a análise comparativa que envolve a confrontação das
narrativas coletadas em diferentes casos. A comparação das histórias permite a identificação das semelhanças e
diferenças que as distinguem, como também, a descoberta de mecanismos sociais nos diferentes percursos narrativos.
De acordo com Thiollent (1984), a metodologia de uma pesquisa é um conjunto de conhecimentos com o qual o
investigador procura encontrar subsídios para nortear suas pesquisas e a escolha do método é efetuada de acordo
com seus objetivos. Assim sendo, tendo como parâmetro os objetivos da pesquisa e a complexidade que envolve o
trabalho com narrativas, optei por desenvolver uma análise utilizando metodologias que considerei mais pertinentes
para a compreensão do mundo subjetivo e objetivo presentes nas narrativas. Considerando a especificidade desta
pesquisa, fizemos uma adaptação dos procedimentos propostos por Bertaux (2010) para a reconstituição das histórias
individuais e para compreender as narrativas coletivamente.
No primeiro momento, corroborando a ideia de Bertaux (2010), de que ao narrar sua vida o sujeito passeia, salta
adiante, depois retrocede, toma caminhos diversos e, com o objetivo de apresentar as histórias de cada um dos sujeitos,
durante a análise das entrevistas narrativas foi feito a reconstituição da estrutura diacrônica conforme propõe o autor.
Com isso, tentamos encontrar o núcleo comum das histórias, estruturando-as a partir dos fatos marcantes que se
sucedem antes/durante/depois, situando as relações presentes na “tessitura da intriga” dos principais acontecimentos
e, assim, reconstituir o percurso biográfico profissional dos professores. No plano formal, o tecer da intriga é definido
“como um dinamismo integrado, que tira uma história una e completa de um diverso de incidentes, ou seja, transforma
esse diverso em uma história una e completa” (RICOUER, 1995, p.16)
Este foi um trabalho de montagem e desmontagem, conforme orienta Lejeune (2008), no qual foram eliminados
os elementos considerados não pertinentes ou redundantes para a reconstrução ou remontagem da narrativa. Essa
etapa foi importante devido à existência de anacronias (retorno ao passado e antecipações) nas falas dos sujeitos,
resultando numa escrita mais organizada. Além disso, “a narração ‘montada’ é fundamentalmente unificadora e dá ao
desenrolar de uma via uma clareza que ela não possuía forçosamente de início para o próprio interessado, mas na qual
ele se reconhece” (LEJEUNE, 2008, p.178). Após reconstruir as histórias na terceira pessoa, as submeti novamente à
apreciação dos professores, para que eles reconhecessem suas histórias, obtendo aprovação de todos.
Após essa etapa, as entrevistas narrativas foram retomadas em busca dos significados contidos nas falas dos sujeitos.
Ciente da impossibilidade de compreender todas as significações contidas nas narrativas, buscamos identificar nas
histórias relatadas elementos que representassem não apenas as experiências formadoras especificas de cada professor,
como também as que fossem comuns ao coletivo, ao grupo de docente. Para tanto, foram efetuadas várias leituras
dos textos transcritos, a fim de apreendermos o conteúdo das narrativas. Nesse percurso, íamos anotando os temas
que emergiam de cada entrevista. Concluída esse momento, reorganizamos as anotações de forma a compor um
desenho desta etapa de análise. Os temas emergidos durante a leitura foram organizados em três blocos de categorias,
conforme apresentado no quadro abaixo:
Categorias
Formação e tempo de experiência Formação de base
Exercício profissional
Profissão docente Escolha, influências
Aprendizagens
Imagens construídas sobre a docência
Formação para a docência
Educação de Jovens e Adultos Inicio da docência
Concepções
Prática
Críticas
Problemas
Fonte: narrativas dos professores
Na tentativa de coerência entre pesquisadora e objeto de pesquisa, buscamos imprimir uma identidade na organização
das análises e atribuir um teor narrativo em sua estrutura. Com isso, metaforicamente, a análise foi organizada de
forma que representasse as dimensões individual (a pessoa) e coletiva (profissional) dos professores. Foram criados dois
cenários distintos, mas que se relacionam, denominados de Cena 1, na qual os sujeitos personagens foram apresentados
e a outra, Cena 2, em que discutimos os aspectos presentes nas narrativas que se configuram como indícios dos processos
identitários dos professores, representados pelas categorias de análise apresentadas no quadro 2.
Considerações finais
O trabalho com narrativas de vida profissional, além de servir para a apreensão das informações sobre a construção
da docência dos sujeitos pesquisados, revelou também a difícil tarefa de analisá-la, pois requer do pesquisador
conhecimento e sensibilidade para perceber e entender as relações e situações presentes nas narrativas e, assim,
reconstituir o percurso biográfico profissional dos professores.
Além disso, o estudo nos fez perceber o quanto é difícil narrarmos sobre a vida, relatarmos sobre nossas ações no
mundo, mesmo que tratemos de fragmentos delas. Observei, na maioria dos sujeitos, sentimentos como nervosismo,
vergonha, tensão, que sumiram ao longo da narração5. O desafio em desenvolver esse tipo de metodologia de pesquisa
é construir uma relação entrevistador e entrevistado, de forma que o segundo sinta-se a vontade para contar sua
história diante do primeiro, pois como afirma Benjamim (1994, p.108),
[...] são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num
grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos
privado de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar
experiências.
No mundo contemporâneo, cada vez mais automatizado, cada vez mais virtual, individualizado, o ato de narrar uma
história, evidenciar as experiências vai se tornando cada vez mais distante das ações humanas. Assim, as narrativas
não apenas reconstituem as histórias dos professores, como também são contributos para o resgate de uma ação
antropológica que é contar história. A narrativa por muito tempo fez parte da vida em sociedade, servindo em muitas
culturas como ação educativa entre os povos da mesma comunidade, contribuindo, assim, para o fortalecimento da
cultura identitária dos indivíduos. Existe uma dimensão tríade entre individuo, experiência e narração, no ato de
contar uma história, pois ao narrar uma história o narrador recorre às suas experiências e, ao contar, ele as incorpora
nas experiências de seus ouvintes, imprimindo, assim, a sua existência. Nas palavras de Walter Benjamim (1994, p.
9), a narrativa é uma forma artesanal de comunicação e não transmite o “puro em si”. “Ela mergulha a coisa na vida
do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro
na argila do vaso”.
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Jovita Maria G. Noronha e Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 113 a 205.
5 Esses sentimentos também foram vivenciados por mim, durante a escrita de minha (auto)biografia
no círculo reflexivo biográfico. Além da quebra de paradigma da escrita acadêmica, que provoca insegu-
rança e incerteza pela subjetividade presente no processo, (re)construir uma narrativa de vida provocou a
sensação de desnudez diante do outro e diante de mim.
OLINDA, Ercília Maria B. de. As contribuições de Paulo Freire para uma abordagem biográfica de pesquisa e de
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IDENTIDADE DO HISTORIADOR E ESCRITA DA HISTÓRIA DO BRASIL NA OBRA DE
PEDRO CALMON (1933-1959)
NAYARA GALENO DO VALE1.
1.UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL.
Resumo:
Pedro Calmon Moniz de Bittencourt nasceu na cidade de Amargosa (Bahia) no ano de 1902. Sua família
pertencia às aristocracias mineira e baiana, ligadas às administrações do Império e da República. Veio para o
Rio de Janeiro em 1922, onde cursou Direito. Tornou-se sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
em 1931 e membro da Academia Brasileira de Letras no ano de 1936. Começou sua carreira como historiador
profissional no Museu Histórico Nacional, em 1932. Esteve à frente da Reitoria da Universidade do Brasil
por dois períodos consecutivos: 1948 a 1950 e 1951 a 1966. Este trabalho tem por finalidade analisar a
constituição da identidade do historiador tomando como ponto de partida a trajetória e as publicações de
Pedro Calmon. A perspectiva teórica que orientou a pesquisa é a da história dos intelectuais, entendida
como uma área fluida, situada na intersecção entre o político, o social e o cultural. Os estudos erigidos
sob essa denominação visam articular os textos às condições externas de produção e analisar as ideias e
posicionamentos dos agentes envolvidos como parte do conjunto das práticas sociais. Discutem-se assim,
por meio da trajetória profissional de Pedro Calmon e de suas publicações, os modelos de historiador em
disputa na época. Pretende-se compreender a significação de seus livros como elementos de conformação da
identidade do autor como um intelectual que se dedicou ao estudo, à escrita e à divulgação de interpretações
acerca da História do Brasil.
Palavras-chave: Pedro Calmon;História do Brasil;trajetória
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Em 1986, a revista Actes de la recherche en sciences sociales publicou os volumes 62 e 63 numa edição única
com o título A ilusão biográfica. Apesar de conter 13 textos, os holofotes da discussão acadêmica acerca
do tema proposto se voltaram apenas para o ensaio de mesmo título, assinado pelo então editor e criador do
periódico, Pierre Bourdieu. Uma leitura superficial desse polêmico texto, republicado oito anos mais tarde
no livro Raisons pratiques: sur la théorie de l´action, pode levar a equívocos que alimentam interpretações
precárias a respeito dos problemas teórico-metodológicos, apontados por Bourdieu, em pesquisas que
utilizam relatos de histórias de vida nas ciências humanas e sociais em geral. Na tentativa de desmistificar
essa polêmica, o presente estudo percorrerá os 12 escritos restantes de L´illusion biographique analisando as
potencialidades teórico-metodológicas de pesquisas que se serviram de material autobiográfico, conforme
discutidas pelos autores: Michael Pollack, Nathalie Heinich, Aloïs Hahn, Pierre Pénisson, François Carlotti,
Pierre Encrevé, Bernard Zarca, Michel Pinçon, Paul Rendu, Patrice Pinel, Howard Becker, Gabrielle Balazs,
Jean-Pierre Faguer, Francine Muel-Dreyfus e Arakcy Martins Rodrigues. Variados olhares e práticas de
pesquisa compõem, portanto, a discussão em torno da ilusão biográfica. Espera-se que a análise desses
textos forneça novos elementos para a compreensão da crítica bourdieusiana à descrição finalista, tão
comum nas histórias de vida, e por ele aprofundada em algumas partes de As regras da arte e Meditações
pascalianas. Conclui-se que a noção de trajetória, livre da ilusão retrospectiva e da ideologia do dom e da
predestinação, merece especial atenção em pesquisas autobiográficas, como alternativa de apreensão dos
sentidos atribuídos às experiências por parte dos agentes e grupos sociais que investigamos.
O campo acadêmico é um espaço no qual as ideias são objeto de disputa e, ao mesmo tempo, armas
dessa disputa. Algumas ideias são sólidas o bastante para sustentar paradigmas, correntes, teorias e uma
infinidade de perpetuadores. Outras são apenas pontos de inflexão de uma teoria e servem para discutir
fundamentos e apropriações. Ainda há aquelas que traduzem tão somente tentativas de construir novos
conhecimentos ou novas formas de compreender o já conhecido, algumas das quais nem sempre exitosas.
Todas se prestam, no entanto, às disputas travadas por meio de pesquisas e seus produtos, discutidos
em livros, artigos, aulas, orientações de teses, grupos de pesquisa, eventos científicos e, até mesmo, em
conversas informais pelos corredores e demais pontos de encontro dos agentes sociais que disputam nesse
campo.
Este trabalho pretende discutir uma ideia que pode ser considerada um controverso ponto de
inflexão da teoria bourdieusiana, quando se faz uma leitura descontextualizada. Trata-se da noção de ilusão
biográfica, difundida a partir do título de uma edição da revista Actes de la recherche en sciences sociales
(doravante Actes), que continha artigo homônimo, assinado por Pierre Bourdieu, ao lado de outros doze
trabalhos.
Na tentativa de apresentar elementos que contribuam para o esclarecimento da falsa polêmica
em torno do valor das histórias de vida na sociologia de Pierre Bourdieu, este texto está organizado nas
seguintes sessões: apresentação da revista Actes, estrutura e conteúdos do volume L´illusion biographique,
principais aportes apresentados neste volume para a problematização de metodologias que recorrem a fontes
biográficas, recorrência do problema em escritos de Pierre Bourdieu e, finalmente, o que podemos aprender
sobre o uso de material de natureza biográfica, mediante a análise do conjunto dos trabalhos veiculados
nessa edição específica.
Actes
A revista se define como um periódico que “seleciona a produção de uma vasta rede internacional
de pesquisadores em ciências humanas e sociais, na perspectiva de uma sociologia crítica dos modos de
dominação”. Fundada, em 1975, por Pierre Bourdieu e um grupo de colaboradores vinculados ao Centro
Europeu de Sociologia, o veículo tem mantido a tradição de cadernos temáticos trimestrais que publicam,
além de artigos, notas de pesquisa, relatórios de campo em sociologia e disciplinas afins, dicas de leitura e
resenhas. A observação dos títulos e sumários das edições, ao longo de sua existência, revela a diversidade
de questões presentes na revista, considerada uma das mais prestigiadas internacionalmente em sua área,
em versão online e impressa.
O periódico contou com o prestígio acadêmico de Pierre Bourdieu no comando editorial até sua
morte, em 2002, quando a direção das publicações foi assumida por Jérôme Bourdieu, professor da Escola de
Economia de Paris, auxiliado por uma grande rede internacional de colaboradores, muitos deles alinhados,
há décadas, aos trabalhos desenvolvidos por seu pai.
Para contextualizar a edição de junho de 1986, correspondente aos volumes 62 e 63, intulada
L´illusion biographique, vale lembrar que a revista já estava em seu décimo primeiro ano de existência e
gozava de relativa importância no cenário acadêmico da época. Além disso, seu editor, autor do texto que
dá nome à edição, acumulava, até então, considerável experiência como etnólogo e sociólogo, expressa em
18 livros e dezenas de artigos. O conjunto de sua produção entre 1958 e 1986 atesta sua maturidade, na qual
se destaca a preocupação com as questões epistemológicas e metodológicas do trabalho científico1.
Como pode ser observado nas sumárias informações sobre cada um dos textos que compõem a edição
L´illusion biographique, a controversa expressão abarca um conjunto de trabalhos que problematizam,
criticam, refletem sobre e, majoritariamente, fazem uso de material biográfico como fonte de pesquisa.
Portanto, um primeiro e crucial ponto a ser compreendido, quando se considera a integralidade da edição,
diz respeito à inexistência de recusa ou de desprestígio das fontes (auto)biográficas pelos autores desses
trabalhos. Embora a maioria dos textos não contenha ponderações explícitas sobre a metodologia utilizada,
todos têm em comum o potencial de dar visibilidade aos limites e possibilidades de uso desse tipo de fonte
de pesquisa. Alguns trabalham com relatos biográficos de apenas um sujeito, outros utilizam entrevistas
com grupos de indivíduos caracterizados como pertinentes para ilustrar o problema investigado. Há ainda
dois casos de textos que se dedicam a analisar outros trabalhos da mesma edição, como nos dois primeiros
artigos (inclusive redigidos pelo mesmo autor) e os estudos sobre filhos de pastores que discutem um
fenômeno social controverso e problematizam a eficácia da generalização em estudos qualitativos com
universos insuficientemente representativos.
Deixando de lado os textos que não oferecem elementos para discussão da reflexividade de seus
autores sobre a opção metodológica adotada, vejamos as contribuições mais relevantes para a problematização
do uso das histórias de vida, das (auto)biografias, das entrevistas que recolhem relatos de vida, enfim, das
estratégias metodológicas que empregam fontes biográficas para a produção de conhecimento científico.
Nessa perspectiva, o relato de vida pode ser considerado como o condensado de uma história social
individual, suscetível de múltiplos modos de exposição em função do contexto em que esteja inserido.
A variação é restrita, não ilimitada, o que permite, ainda assim, que cada sujeito tenha a experiência de
variar o relato de uma parte de sua vida, enfatizando algum aspecto ou alterando-lhe o sentido. É como
se encarássemos cientificamente o fato, observado no cotidiano, de que nunca contamos a mesma história
do mesmo modo para duas pessoas diferentes em dois momentos e lugares distintos. Dessa maneira,
a história de vida é vista, por definição, como uma reconstrução a posteriori, um relato que ordena os
eventos que marcaram uma vida. Ademais, ao recontar uma vida, busca-se, geralmente, estabelecer alguma
coerência entre os acontecimentos mais significativos e uma continuidade cronológica, como se coerência
e continuidade assegurassem uma identidade.
O terceiro texto a ser destacado é o de Howard Becker, “Biografia e mosaico científico”, que propõe
uma reflexão sobre o lugar do método biográfico na sociologia contemporânea. Escrito originalmente em
inglês, vale informar o alerta dos tradutores sobre a opção de usar biographie para a expressão life history,
por julgarem que as expressões histoire de vie ou récit de vie não parecem ser suficientes para incluir
a responsabilidade do sociólogo na condução da pesquisa sobre um destino individual. Assim, o termo
biographie expressa melhor a ideia de que o trabalho sociológico não se encerra apenas com o material
fornecido pelo sujeito investigado, mas abarca dados externos e depoimentos de outros indivíduos sobre
ele, o que distingue a biografia de um simples relato ou da autobiografia.
A biografia não é um “material” ordinário nas ciências sociais. [...] Não se deve assimilá-la
à autobiografia clássica, ainda que compartilhe com ela a forma narrativa, o discurso em
primeira pessoa e um ponto de vista subjetivo. Não se pode comparar ao romance, apesar
de os melhores documentos biográficos comportarem uma sensibilidade, um ritmo, uma
tensão dramática que nem todo romancista exprimiria tão bem (BECKER, 1986, p. 105).
Para o autor, diferenciar biografia de romance ajuda a esclarecer o seu uso científico. Em linhas
gerais, o romancista não se preocupa com os fatos em si, mas com o impacto emocional e dramático,
com as formas e imagens, com a criação de um universo simbólico dotado de uma unidade estética, sem
necessidade de ser fiel à realidade. Já o autobiógrafo reconta sua vida buscando manter uma coerência entre
a história narrada e tudo que uma investigação poderia descobrir, escolhendo os fatos que representam
aquilo que interessa ao investigador. A prática biográfica3, por sua vez, é mais prosaica e se submete mais
aos objetivos do sociólogo que aos do seu narrador, menos preocupada com o valor artístico do produto
final que com a restituição fiel da experiência do sujeito e sua interpretação do mundo em que vive.
3 Como exemplo da tradição no uso de biografias em investigações sociológicas, fala de alguns trabalhos
desenvolvidos pela Universidade de Chicago, desde os anos de 1920, fundamentados na psicologia social de
Georges Herbert Mead.
Com essas diferenciações em mente, Becker afirma que o sociólogo que trabalha com biografia
deve assegurar que coletou informações sobre todos os acontecimentos importantes e que os fatos são
passíveis de confirmação por outros depoimentos, além da interpretação oferecida pelo próprio narrador.
Por isso a entrevista deve ser guiada conforme os temas que lhe interessam e buscando a comprovação dos
acontecimentos narrados. Apenas a rigorosidade metódica do pesquisador pode assegurar um resultado de
pesquisa adequado.
A metáfora presente no título do texto, mosaico científico, ilustra o pensamento de Becker ao
distinguir os trabalhos sociológicos. Para o autor, a figura do mosaico nos dá a perfeita dimensão de um
trabalho que se torna cada vez mais rico, quanto mais peças são nele encaixadas. Cada peça contribui para
a compreensão do quadro, apesar de nem todas terem a mesma importância na composição da figura do
mesmo modo que biografias de diferentes indivíduos terão diferentes pesos na comprovação ou refutação de
uma determinada teoria sociológica. No mosaico, há peças que são importantes no preenchimento da figura,
algumas na definição do contorno, outras estão ali apenas para compor o fundo da imagem. O conjunto das
peças forma o todo que deve ser visto. O mesmo se dá no trabalho científico que utiliza material biográfico
ao construir mosaicos de explicação de uma dada realidade social juntando estudos particulares ou tomando
um caso representativo como “pedra de toque” para julgar o valor de uma teoria, inclusive quando se faz o
exame de um “caso negativo”, ou seja, um caso particular que não se adéqua a uma teoria que lhe precede.
A biografia, portanto, “assim como outros tipos de informação, fornece uma base para fundar
as hipóteses numa realidade e uma indicação aproximativa da direção na qual se encontra a verdade”
(Idem, p. 108). Quando bem feita, revela detalhes do processo de socialização ao descrever as principais
sequências de interação nas quais novas vias de ação coletiva e individuais são forjadas e novos aspectos da
personalidade emergem. Sua riqueza de detalhes permite a análise de muitas variáveis com grande precisão,
o que pode levar o pesquisador, inclusive, a reorientar o sentido da investigação quando novos processos,
questões e variáveis são reveladas, na medida em que a biografia permite verificar as hipóteses e esclarecer
a organização da pesquisa.
A preocupação dos sociólogos com o desenvolvimento da teoria abstrata é apontada por Becker
como um dos fatores do declínio do método biográfico, pois eles priorizam as categorias abstratas de suas
próprias teorias, em detrimento daquilo que parece ser mais relevante para os grupos estudados. Outro fator
de declínio é a distinção entre psicologia social e sociologia propriamente dita, que cria “duas especialidades
ao invés de duas orientações num mesmo domínio”, priorizando as variáveis estruturais. O maior problema,
contudo, é o fato
[...] dessa técnica, talvez, não produzir o tipo de ‘resultados’ que os sociólogos
esperam de uma pesquisa hoje em dia. À medida que a sociologia se institucionalizou
e se ‘profissionalizou’, a ênfase é colocada, mais e mais, no que podemos chamar, para
simplificar, de estudo isolado (single study). (Idem, p. 209, aspas do autor).
O autor ilustra o “estudo isolado” com uma metáfora oposta ao do mosaico. Ele pensa os estudos
autônomos e independentes como tijolos (provas) num muro (teoria). Eles fornecem todos os elementos
de prova necessários para aceitar ou rejeitar as conclusões do muro da ciência, integrando o corpo do
conhecimento de modo a formular hipóteses a partir do já conhecido. Quando a pesquisa confirma o
que já se sabe, une-se ao muro (aquilo que já é cientificamente conhecido) e será usada como base para
pesquisas futuras. É como se as hipóteses fossem confirmadas ou invalidadas a partir do que se descobre
ao longo de uma parcela (tijolo) da pesquisa (muro), com critérios do modelo experimental que podem ter
“consequências nefastas” quando levam os sociólogos a negligenciar outras funções do trabalho científico,
principalmente reconhecer a contribuição de um trabalho para um projeto de pesquisa global, mesmo
quando seu estudo não produz, particularmente, resultados decisivos. Como sabemos, o método biográfico
não produz resultados definitivos e essa é uma das razões pelas quais alguns pesquisadores se recusam a
adotá-lo.
Critica, ainda, a tendência de se estabelecer conexões com os eventos, dando-lhes sentido e coerência,
como sendo uma criação artificial de sentidos, nem sempre existentes nos acontecimentos em si. Para isso
contribuem as instituições de totalização e de unificação de si, como o nome próprio (a constância nominal)
que só atesta a identidade de uma personalidade, como individualidade socialmente constituída, por uma
formidável abstração; além de outros mecanismos, como o estado civil, o currículo vitae e a biografia
oficial.
No bojo de sua análise, a história de vida pauta-se numa “sucessão longitudinal de eventos
constitutivos da vida considerados como história em relação ao espaço social em que ocorre” que conduz a
construção da “noção de trajetória como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente
(ou um mesmo grupo) num espaço em devir e sujeito a incessantes transformações” (Idem, p. 71, grifo do
autor).
Para compreender uma trajetória seria preciso conhecer os estados (aos menos os mais pertinentes)
sucessivos do campo em que ela se desenvolve para estabelecer relações objetivas entre os agentes nesse
mesmo campo e afrontados com o mesmo espaço de possíveis. Só assim se poderia descrever a personalidade
designada pelo nome próprio, ou seja,
“o conjunto de posições simultaneamente ocupadas num momento dado por uma
individualidade biológica socialmente instituída como suporte de um conjunto de atributos
e de atribuições que lhe são próprias e lhe permitem intervir como agente eficiente nos
diferentes campos” (Idem, p. 72).
O que Bourdieu alcunhou como ilusão biográfica é uma espécie de ficção de si, apoiada em instituições
de totalização e de unificação de si que direcionam a atribuição de sentidos e a busca de coerência aos
acontecimentos considerados, pelo narrador, como mais significativos na história de sua vida.
Vejamos agora como ele aprofunda essas reflexões em trabalhos posteriores. No livro As regras da
arte, dedicado a analisar a gênese e a estrutura do campo literário francês a partir da figura de Flaubert,
Bourdieu retorna brevemente à discussão da ilusão biográfica denunciando a monstruosidade conceitual
do “projeto original” sartreano, responsável por análises literárias que incorrem na ilusão retrospectiva, ou
seja, na crença de que os autores estudados são dotados de um dom ou de uma predestinação que justificam
suas vidas, organizadas como histórias que se desenrolam desde uma origem até um ponto final. A origem
tem múltiplos sentidos: início, ponto de partida, causa primeira ou princípio gerador. Dela decorre a vida
como um todo, um “conjunto coerente e orientado, e que só pode ser apreendida como a expressão unitária
de uma intenção, subjetiva e objetiva, que se anuncia em todas as experiências, sobretudo as mais antigas”
(BOURDIEU, 2005, p. 213).
No caso das análises do que chama de “personagens de exceção”, como os artistas que são tomados
como objeto de estudo, essa ilusão retrospectiva se mostra ainda mais forte pelo esforço dos biógrafos de
atribuir vocações conforme uma lógica presente na linguagem comum, na qual:
[...] a vida é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência individual
concebida como uma história e um relato dessa história: ela descreve a vida como um
caminho, uma carreira, com suas encruzilhadas e suas emboscadas, ou como uma
caminhada, um caminho que se faz e que está por fazer, uma corrida, um cursus, uma
viagem, um percurso, um deslocamento linear e unidirecional que comporta um começo
(‘uma estréia na vida’), etapas e um fim, no duplo sentido do termo e de objetivo (‘ele fará
seu caminho’ significa: será bem-sucedido na vida), um fim da história (Idem, p. 404, aspas
do autor).
Aqui estamos diante de um novo nível de crítica ao material de natureza biográfica que resvala na
relação com o público destinatário, determinada pela maneira de seleção, nem sempre consciente, daquilo
que deve ser exposto. Ao longo da análise, o autor sinaliza que “apenas pelo fato de que nos fixamos
em pensamento sobre nossa prática, que nos voltamos para ela para considerá-la, descrevê-la, analisá-la,
tornamo-nos de certo modo ausentes, e tendemos a substituir agente atuante pelo ‘sujeito’ reflexivo, o
conhecimento prático pelo conhecimento erudito” (Idem, p. 64, aspas do autor), num exercício de seleção
dos fatos merecedores de exposição que demanda uma espécie de cisão entre o sujeito que vive e o sujeito
que pensa sobre o vivido.
Esse conjunto de ideias, presentes nos três textos de Pierre Bourdieu, evidencia o valor das histórias
de vida em sua obra. Elas são entendidas como construções narrativas que, geralmente, padecem da
ilusão retrospectiva finalista ao apresentar uma história coerente, ordenada, cronologicamente organizada
e logicamente adequada ao contexto presente. Essas observações alertam para os cuidados que os
investigadores em geral devem ter diante desse tipo de material ao realizar suas pesquisas científicas. Como
sociólogo, certamente suas críticas enfatizavam os perigos que ele e seus pares incorreriam ao desconsiderar
a noção de trajetória frente aos relatos diacronicamente lineares que caracterizam as histórias de vida. Esses
cuidados não invalidam, no entanto, o uso de material biográfico, do qual as histórias de vida respondem
por apenas uma parcela.
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BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 2ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
_______________. Meditações pascalianas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
RESUMEN
El escritor bahiano Eulálio Motta (1907-1988), por más de sesenta años, archivó los borradores de sus obras literarias,
cartas, diarios, fotografías, postales, periódicos, revistas, libros, pequeños objetos etc. Al inventariar y estudiar ese
conjunto de documentos, Barreiros (2007; 2012) observó que Eulálio Motta tenía la intención de forjar una imagen de
sí a partir de la constitución de ese acervo. El poeta solitario, como se quedó conocido, siempre fue reservado y poco
se sabía de su vida, pero la investigación de su acervo está revelando las múltiples identidades del escritor. En este
artículo, se presenta una discusión sobre el acervo del escritor como un modo de construcción del yo y la metodología
utilizada para diseñarse la (auto)biografía de Eulálio Motta, a partir del estudio sistemático de su acervo personal. La
investigación está fundamentada por las discusiones alrededor de las prácticas sociales de la escrita de sí (CERTEAU,
2008; GOMES, 2004; FOUCAULT, 1992); del archivamiento del yo y de la construcción de sí (HEYMANN, 2011;
ARTIÈRS, 1998); de los mecanismos utilizados por los sujetos para forjaren sus identidades (RICOEUR, 2007;
BOUDIEU, 2006); por los estudios sobre los archives de escritores (BARREIROS, 2012; BORDINI, 2009, 2005;
VENÂNCIO, 2004); y por el pensamiento de Nora (1994) sobre los lugares de memoria.
Palabras Clave: Acervos. (Auto)biografia. Eulálio Motta.
Eulálio Motta nasceu em 1907, na vila Alto Bonito, em Mundo Novo-BA e faleceu em Salvador
em 1988. Durante sessenta anos, ele arquivou um volume de documentos relacionados à sua vida pessoal
e, principalmente, às atividades que desenvolveu enquanto escritor, jornalista e político. Esse acervo foi
cedido pelos familiares do escritor para a pesquisa que Patrício Barreiros (2012, 2007) está desenvolvendo
desde 1999 no âmbito da Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente, o acervo encontra-se
catalogado e inventariado (www.eulaliomotta.com.br).
A documentação inclui manuscritos avulsos, cadernos com textos inéditos, rascunhos de obras
publicadas, diários, cartas, postais, fotografias, a biblioteca do escritor, diplomas, datiloscritos e objetos
pessoas como a máquina de escrever. Esse conjunto de documentos é uma importante fonte sobre a vida de
Eulálio Motta, permitiu esboçar uma biografia do poeta mundonovense e publicar obras inéditas que tem
características autobiográficas.
O estudo sistemático do acervo tem revelado as múltiplas identidades do escritor que se autodenominava
Brás Cubas. Ironicamente, somente depois de sua morte e através dos documentos de seu acervo foi possível
ter uma dimensão de sua atuação enquanto escritor, jornalista, político e intelectual. Eulálio Motta não
se casou, não teve filhos, os seus irmãos já faleceram e seus sobrinhos dispersaram-se e sabem muito
pouco sobre o “Tio Lala” como era conhecido. O seu acervo é, indubitavelmente, uma fonte privilegiada
e conserva informações que estariam perdidas caso essa documentação fosse destruída. Nesse sentido, o
acervo assume o lugar da memória de onde emanam as múltiplas identidades do sujeito.
[...] “Recordar é viver.” Será? Recordar não será sofrer? Sua carta me fez reviver o Gi-
násio Ipiranga com Liota sonhando e escrevendo para as colunas de “Mundo Novo”. [...]
Meu caro que Deus lhe pague este presente que mexeu muito com esta emotividade que
os janeiros acumularam em mim... (MOTTA, 1978, f. 11vº e f. 12rº).
Nos fragmentos destacados acima, a carta e a fotografia estabeleceram uma relação com o passado
através da reminiscência, evocando experiências já esquecidas, reativando a memória. A carta e a fotografia
foram elevadas à categoria de lugar de memória e tiveram a capacidade de estabelecer uma relação afetiva
com o sujeito que se reconheceu num passado.
Para evocar as memórias do escritor Eulálio Motta, recorreu-se ao seu acervo pessoal que correspon-
de a documentos diversos arquivados pelo próprio escritor durante mais de sessenta anos. Nesse caso, o
acervo pode ser considerado como a extensão de sua memória, sendo capaz de representá-lo, construindo
uma imagem de si.
O sujeito que constitui um acervo é capaz de recordar a história de cada um dos artefatos que guar-
dou e explicar seus significados peculiares. Bastaria folhear as páginas de um álbum de fotografias ou reler
anotações, para recordar os acontecimentos ali registrados. No entanto, nem sempre se pode contar com a
presença daquele que compôs o acervo. Na sua ausência, cabe ao pesquisador tecer o fio narrativo de uma
história baseada nos fragmentos de memória que emanam da documentação. Mas, de acordo com Sandra
Pesavento (2005), o passado não pode ser apreendido em sua totalidade e, por isso mesmo, somente se
chega a ele através da representação que é
[...] fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar
de novo, que dá a ver uma ausência. [...] não é uma cópia do real, sua imagem perfeita,
espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele. [...] envolve processo de percep-
ção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão (PESAVENTO,
2005, p. 40).
Os objetos não falam por sim, eles se tornam lugares de memória para uma coletividade quando estão
associados a uma narrativa (escrita ou oral) que pode ser transmitida. A relação entre o sujeito e os objetos é
uma experiência individual e para que essa experiência seja compartilhada, faz-se necessário a constituição
de uma narrativa. Segundo Paul Ricoeur (1994), as narrativas passam a representar o acontecido e por isso
não se pode deixar de considerar a presença do ficcional operando em sua constituição. Por mais que se
busque a verdade, em toda narrativa há sempre inventividade e subjetividade.
Ao ordenar os acontecimentos da vida de Eulálio de Miranda Motta, com o intuito de compor uma
narrativa que expresse sua história, tem-se a consciência de que se alcança apenas uma, dentre as várias
formas de representar a história do escritor. Além disso, sabe-se que a vida do sujeito não é linear e ordená-
-la numa narrativa é uma transgressão de sua própria natureza fragmentada.
Por conta da complexidade da tarefa que se pretende realizar (esboçar os itinerários das memórias de
Eulálio Motta a partir da documentação do acervo), faz-se necessário uma breve análise das relações entre
memória, identidade, acervo pessoal e produção do eu.
Segundo Huyssen (2004), as sociedades vivem seduzidas pela memória e, com isso, criou-se um fetiche
em torno de artefatos capazes de evocar um tempo que já não existe. Arquivar papéis, fotografias e toda sorte
de vestígios do passado, são práticas sociais incorporadas ao cotidiano, à vida ordinária, com o intuito de
garantir o acesso às lembranças que são fundamentais na construção das identidades. Para Pierre Nora,
Os povos que não se preocuparam com o estabelecimento de lugares de memória e não criaram
estratégias de preservação material das lembranças dos acontecimentos, tornaram-se vulneráveis aos
processos de dominação. A ameaça da perda da identidade é que impulsiona o desejo de preservar as
lembranças. Segundo Norbert Elias (2011 [1939]; 1994 [1987]), as comunidades tribais isoladas não
sentiram essa necessidade porque não se viam ameaçadas. Ao ser dissolvida a unidade grupal, perdiam-se
os mecanismos de ativação do passado. Quando os sujeitos arquivam objetos com o intuito de preservar
as lembranças, a desestruturação do grupo não impede que cada indivíduo mantenha seus arquivos e, com
isso, conservam viva a memória.
Assim, a memória que emana dos arquivos pessoais difere daquela ancestral (tribal) que tem como
referência o sujeito e os ritos coletivos. As comunidades tribais não dependem de uma mediação interpretativa
(um discurso histórico) para recordar os acontecimentos, porque a sua memória é espontânea, atualizadora,
homogênea, sem rupturas e se efetiva em rituais coletivos nos quais os indivíduos vivenciam as experiências
(NORA, 1993). Segundo Ricoeur (2007), a memória das sociedades ditas civilizadas é fragmentada,
configurando-se como vestígio e trilha que conduzem a uma representação do passado, dependente de uma
narrativa (uma história) que seja capaz de acioná-la, restabelecendo, através da linguagem, o diálogo entre
o presente e o passado.
Quanto menos a memória é vivida de forma espontânea, mais ela precisa de suportes discursivos e de
referências sensíveis que possam representá-la. Segundo Nora:
Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória,
pois com a escrita descobri o remédio para a memória. [diz o rei] [...] Ela [a escrita] tornará
os homens mais esquecidos, pois sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória,
confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos
exteriores, por meios de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso não inventaste
um remédio para a memória, mas sim para a rememoração. Quanto à transmissão do
ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma mas apenas uma aparência
de sabedoria [...] (PLATÃO, 2000 [sec. III a.C.], p. 121).
A escrita não é a memória viva, mas ela tem a capacidade de rememorar, de evocar as lembranças,
de funcionar como reminiscência e como garantia de se ter acesso a uma aparência da verdade do passado,
de ser um lugar da memória. Pode-se dizer que a profecia do rei egípcio cumpriu-se, os homens passaram
a confiar na escrita a ponto de a utilizarem para tratar não apenas das coisas exteriores, mas também de si
mesmos.
Segundo Foucault (1992), a construção da subjetividade relaciona-se às práticas de escrita desde a
antiguidade. No ensaio intitulado A escrita de si, Foucault (1992) toma como exemplo um texto antigo da
literatura cristã do século IV, Vita Antonii, de Atanásio, com o intuito de demonstrar que o registro escrito
das ações e pensamentos cumpria a função de arma e combate espiritual. Ao escrever os pensamentos e
ações, estes não seriam esquecidos, mas convertidos em objeto de reflexão. Assim, o sujeito poderia reler
suas anotações, avaliar seus pensamentos e atitudes.
Para Foucault (1992), esse conjunto de características manifesta-se em duas formas de escrita praticadas
entre o público culto da cultura greco-romana do século I e II, são os hypomnemata e a correspondência. Os
hypomnemata eram cadernetas individuais nas quais se anotavam citações, fragmentos de obras, reflexões
ou pensamentos ouvidos, eram tesouro acumulado para a releitura e meditação posteriores (FOUCAULT,
1992, p. 136).
Ainda que a escrita de si exista desde a antiguidade, como sinaliza Foucault (1992), foi somente a
partir do século XVIII que ela se propagou no mundo ocidental, motivada pela popularização da leitura e
da escrita como prática extensiva ao cidadão ordinário. Segundo Chartier (2001), no século XVIII, a leitura
silenciosa e a escrita confessional manuscrita passaram a ser utilizadas largamente, convivendo com a
crescente circulação dos textos impressos através dos jornais.
As relações que se estabelecem entre os indivíduos e seus documentos também se configuram como
uma forma de produção do eu e estão incorporadas às práticas sociais do cotidiano (GOMES, 2004). Para
Philippe Artièrs,
[...] o anormal é o sem papel. O indivíduo perigoso é o homem que escapa ao controle do
gráfico. [...] a escrita está em toda parte: para existir, é preciso inscrever-se nos registros
civis, nas fichas médicas, escolares, bancárias. [...] Passamos assim o tempo todo a arquivar
nossas vidas: arrumamos, desarrumamos, reclassificamos. Por meio dessas práticas
minúsculas, construímos uma imagem, para nós e às vezes para os outros. [...] O indivíduo
deve manter seus arquivos pessoais para ver sua identidade reconhecida (ARTIÈRS, 1998,
p. 11-12).
Os sujeitos sentem a necessidade de manterem os registros de suas vidas como uma imposição social,
não somente como um meio de instituir uma identidade, mas para garantir seus direitos civis e políticos.
Isso contribuiu de forma expressiva para que os espaços privados das casas e dos gabinetes de trabalho
fossem transformados em teatros da memória, onde se materializam os acervos pessoais e se evidenciam
as histórias dos indivíduos, de seus familiares e dos grupos a que pertencem (GOMES, 2004). Por isso,
os acervos estão necessariamente vinculados à vida, por suas travessias sinuosas, trazendo as marcas dos
acontecimentos individuais e coletivos.
Os acervos pessoais inscrevem-se como labirintos a serem explorados e por isso, ao estudá-los, é
preciso tomar algumas precauções. Primeiro, deve-se compreender que as fontes preservadas nos acervos
não traduzem a realidade absoluta dos acontecimentos. Na documentação dos acervos estão encenadas as
identidades dos sujeitos que o constituiram e emerge a intenção de construir uma imagem para si.
O acervo enquanto fonte é representação e por isso precisa ser interpretado, lido. Segundo Giselle
Venâncio (2004, p. 112), cada documento do arquivo pessoal torna-se um desafio, um objeto singular a ser
decifrado, tanto em suas condições de produção, quanto na sua organização discursiva.
Quando um indivíduo propõe-se a escrever suas memórias, um diário íntimo, uma autobiografia
ou decide colecionar fotografias, guardar papéis, rascunhos, recortes de jornais, cartas etc., ele está
deliberadamente compondo uma imagem de si que pretende conservar para a posteridade. Esse não é um
ato inocente, muito pelo contrário, trata-se de uma forma de manipular a realidade, tendo em vista um
futuro leitor, evidenciando o desejo de ser lembrado (FRAIZ, 1998).
Assim, o volume de documentos acumulados ao longo da vida não corresponde à memória viva,
tal qual a realidade, mas à memória selecionada, manipulada em função de interesses específicos. Isso
não tira os méritos da documentação como fonte para se conhecer a biografia do seu titular, muito pelo
contrário, essa memória documental é imprescidível para se vislumbrar a história de vida do sujeito. Esses
documentos são o resultado de uma triagem feita por um indivíduo mediante algum critério que varia ao
longo do tempo. Portanto, o estudo sistemático dessas fontes pode revelar importantes dados históricos.
Segundo Luciana Heymann (2005, p. 5) não se deve apenas analisar as histórias que os acervos
contam, mas investigar as histórias que eles encerram em si mesmos, suas dimensões textuais e simbólicas,
seu significado e lugar de encontro entre culturas, entre saberes. Num acervo pessoal é comum encontrar
uma grande variedade de documentos relacionados à vida íntima, intelectual, profissional, política e cultural
de uma pessoa. Embora cada documento tenha sua própria história e mantenha um tipo específico de relação
com o titular, é preciso considerar o acervo em sua totalidade como uma “obra” que o titular atuou como
“autor-editor”, produzindo uma imagem de si que pode ser dada a ler por um terceiro.
Para Philippe Artièrs (1998, p. 11), “[...] arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor
à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática
de construção de si mesmo e de resistência.” Independente da condição social e do ofício do sujeito, os
documentos que compõem os acervos pessoais trazem sempre as marcas da subjetividade e “[...] uma
intenção autobiográfica” (ARTIÈRS, 1998, p. 11). Por isso mesmo os acervos pessoais podem ser
considerados como uma forma de escrita de si.
O acervo do escritor Eulálio de Miranda Motta pode ser entendido como uma modalidade de produção
do eu, capaz de esboçar os itinerários daquele que se arquivou, configurando-se como lugar privilegiado
de suas memórias. Esse acervo revela as identidades do escritor e esboça também o quadro sócio-histórico
das práticas culturais de leitura e de escrita de um sujeito que atuou num tempo e lugar específicos (século
XX no interior da Bahia).
O acervo de Eulálio Motta constitui-se de documentos acumulados pelo próprio escritor entre 1923 e
1988. Esse acervo compõe-se de materiais heterogêneos, incluindo rascunhos e esboços de obras inacabadas,
manuscritos e datiloscritos de textos éditos e inéditos, diários íntimos, cadernos de anotações diversas,
correspondências, fotografias, documentos de identificação, diplomas, esboços de projetos editoriais,
coleções de jornais e panfletos, parte da biblioteca particular além dos instrumentos de trabalho, como a
sua máquina de escrever. Pela natureza da documentação, esse rico acervo pode ser “lido” como um projeto
autobiográfico, revelando-se como um caleidoscópio de onde se projetam diversas imagens do escritor.
O exame do acervo e da produção intelectual de Eulálio Motta demonstra que o escritor consultava
constantemente o material arquivado, utilizando os documentos como fontes para a elaboração de novos
textos ou para planejar novas publicações. Isso indica que o acervo tinha uma funcionalidade prática,
relacionada à suas atividades como escritor, não se tratava apenas de uma coleção de lembranças do passado.
[...] a escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue” [...] Ela transforma-
se, no próprio escritor, num princípio de acções racional. [...] o escritor construiu a sua
própria identidade mediante essa relação das coisas ditas (FOUCAULT, 1992, p. 143-144).
O acervo de Eulálio Motta corresponde ao teatro de suas memórias, no qual o escritor esboçou
diversas imagens de si, dentre as quais se destaca a figura do escritor (lírico, cordelista, trovador, cronista,
contador de histórias e panfletário engajado em diversas causas). Nota-se que o grande projeto de vida
de Eulálio Motta foi tornar-se conhecido como escritor e para concretizar esse objetivo ele não mediu
esforços, escrevendo uma literatura com características autobiográficas e que se encontra inédita ou fora de
circulação, preservada apenas em seu acervo pessoal.
Nesse sentido, o acervo investe-se de um poder arcôntico, como diz Jacques Derrida (2001), fonte
única, capaz de evocar o autor e sua obra, lugar de autoridade com força de lei e de resistência. É a
documentação do acervo que permite conhecer o escritor e seus projetos políticos e literários. A seguir,
destacam-se algumas das faces de Eulálio Motta que se pôde depreender a partir da análise do seu acervo.
O escritor baiano Eulálio de Miranda Motta nasceu em 15 de abril de 1907, na vila Alto Bonito, no
município de Mundo Novo (BARREIROS, 2012). A infância no arraial e na Fazenda Morro Alto marcou o
imaginário do poeta que, em seus versos, cantou as lembranças das brincadeiras no terreiro de terra batida,
do gosto dos umbus verdes, das noites iluminadas pelos astros, do cheiro do curral. No panfleto Alto Bonito,
1 Expressão utilizada por Eulálio Motta para se definir enquanto escritor.
surgem os lampejos da experiência de menino de arraial:
Desde que Paulo Afonso chegou ao Alto Bonito, que sonhava com uma oportunidade de
ir lá, à noite, para apreciar a iluminação na terrinha onde vivi a minha infância. Naquele
tempo só se via rua clara no Alto Bonito quando a lua exibia sua cara redonda, “prateando
a solidão, como diria Catulo...” De dia, eram os cavalos de pau e as arapucas nas capoeiras
de cansa-cavalo ou moleque-duro da casa de Báia... [...] Naquele tempo Alto Bonito não
tinha rádio de pilhas, não tinha Paulo Afonso, não tinha televisão... [...] tinha umbuzeiros
dos pastos de Amado Bahia, alegria dos meninos... E a mangueira de Papai em cuja sombra
se fazia a feira, onde se vendiam brevidades e pipocas de goma de Mitila. E a boniteza
marcante de Vicentina, a menina mais bonita do arraial! [...] Neste Alto Bonito de hoje sou
quase um desconhecido. Parece que me vêem com cara de forasteiro... com ares de turista...
[...] Alto Bonito! De Jeremias... De Mãe Andreza... Alto Bonito de meu gado de osso... Alto
Bonito que já era... (MOTTA, 1978a).
De Alto Bonito, a família Motta mudou-se para a Fazenda Morro Alto, nessa ocasião Eulálio Motta
tinha 12 anos: “Foi, salvo engano, em 1919 que deixamos Alto Bonito para morarmos no mato: F. Morro
Alto. Ficaram para traz a vida no Alto Bonito, com nossos cavalos de pau, nossos currais de gado” (MOT-
TA, 1977, f. 40vº).
Aos dezessete anos, com o objetivo de dar seguimento aos estudos, iniciados na vila do Alto Bonito,
Eulálio Motta foi viver em Monte Alegre, onde trabalhou como balconista numa farmácia. Num panfleto
publicado na década de 1980, Eulálio Motta recorda esse tempo do Monte Alegre:
Contemplo-te de longe...
para recordação!
de quando te vi
és o mesmo monte,
com as mesmas pedras
e curvas do caminho...
[...]
uma ilusão
que se tornaria
meu tormento...
minha loucura...
minha obsessão...
(MOTTA, 1983).
Eulálio Motta mudou-se para Salvador, em 1925, e, segundo consta em seus versos, a jovem teria se
casado com outro. Diante da impossibilidade de ser correspondido, ele decide não ter outro amor, declaran-
do isso em vários poemas e cartas a amigos.
PENSAMENTO DE CELIBATÁRIO
Em 1925, Eulálio Motta ingressou no Ginásio Ipiranga com o propósito de continuar os seus estudos
e fazer os preparatórios para ingressar na universidade. A capital revelou-se diante do jovem do interior com
seus bondes, com a eletricidade, com os automóveis, bastante diferente do universo dos arraiais do sertão
de Mundo Novo. A agitada vida cultural da capital, os professores, os colegas, o cinema e, sobretudo, os
livros, influenciaram profundamente Eulálio Motta:
Quando comecei ver o mundo e sentir a fome dos “porquês”, o primeiro alimento que
recebi foi o mais infame que se possa imaginar. A mais baixa expressão do mais torpe
materialismo: “Palavras cínicas”, “Velhice do Padre Eterno” e outras desgraças. Depois
Haeckel, Renan, Le Dantec, pedaços traduzidos de Voltaire e de Anatole... E pronto: tornei-
-me materialista fanatico. E me enchia de bílis contra a Igreja. E me inchava de orgulho,
sentindo-me importante, “senhor do Universo”... (MOTTA, 1942, p. 2-3).
Essas leituras alteraram as concepções de mundo do jovem do interior que chegou a se declarar ateu
e se sentiu atraído para os ideais do comunismo: “Quando me interessava pelo Socialismo, li o “Destino do
Socialismo” de Otávio de Faria e achei seus argumentos irrefutáveis em defesa do Socialismo” (MOTTA,
1949, f. 6vº).
Eulálio Motta chegou a publicar um texto no jornal Mundo Novo declarando-se comunista e ateu.
Essas declarações chegaram ao conhecimento de seu pai que, pela sua formação religiosa e cultural, jamais
toleraria um filho ateu e comunista. Por esse motivo, o Sr. Antônio Manuel da Motta, convencido de que
a capital estava corrompendo o caráter do filho, exigiu que ele abandonasse os estudos e voltasse para o
interior, como se observa num texto no jornal Mundo Novo:
Em 1925, deixei Monte Alegre, vim dar comigo aqui na Bahia. Dias depois conheci um
rapaz que escrevia versos para “A Luva”. Pedi-lhe uma lição e ele me pintou a métrica
como sendo um bicho de sete cabeças... Fiquei no mundo da lua. Não podendo continuar
aqui por motivos que não valem a pena de lembrar, tive que voltar ao sertão. E, em 1926,
eis-me novamente empregado de farmácia, não mais em Monte Alegre, mas em Mundo
Novo. Ai, quando não estava ocupado a enrolar pílulas, escrevia versos (MOTTA, 1931a,
p. 6, grifo nosso).
Eulálio Motta retornou a Salvador e não deixou de confessar sua simpatia aos ideais do comunismo,
mas não voltou a se declarar ateu, nem comunista. Entre 1931 e 1932, ele publicou textos, no jornal Mundo
Novo, tratando do regime soviético:
Do “O Mez illustrado” revista que se edita no Rio, transcrevi o que se segue: [transcreve
um longo texto] (MOTTA, 1931b).
Eu quis transcrever os pontos principais do livro do Dr. Maurício de Medeiros. Maz, o livro
é todo de pontos principaes. Daí a necessidade que eu teria de transcrever todo o livro, o
que não é possível num jornalzinho ainda pequeno como é o “Mundo Novo” (MOTTA,
1932b).
Durante muito tempo, Eulálio Motta tentou ocultar ou atenuar a sua adesão aos ideais comunistas e
materialistas, porque, segundo ele, “não vale a pena lembrar”.
Eulálio Motta retornou fez os preparativos para ingressar na Faculdade de Medicina da Bahia, conse-
guindo matricular-se no curso de farmácia, mas permaneceu morando nas dependências do Ginásio Ipiran-
ga. Além dos estudos convencionais, o Ginásio Ipiranga oferecia o regime de internato reunindo jovens não
apenas da Bahia, mas também de outros Estados. Segundo anotações de Eulálio Motta no caderno Bahia
Humorística, a vida no Ginásio Ipiranga era bastante movimentada, debatia-se política, economia, história,
literatura, recitavam-se poemas e promoviam-se concursos literários. No poema, Os outros e eu, Eulálio
Motta demonstra a heterogeneidade de pensamento dos jovens do Ginásio:
é entusiasta do fascismo.
O do quarto 8 tem um Deus que é Hitler.
do integralismo
O do 15 acredita no catolicismo;
é Tristão de Athayde.
Já o seu visinho, o 16,
é catolico tambem
e acredita no amor.
No Ginásio Ipiranga, os jovens tinham contato com um universo cultural diversificado. Numa carta
a Nemésio Lima, Eulálio Motta comenta o tempo do Ginásio Ipiranga e suas colaborações com sonetos e
crônicas para a coluna Rabiscos do jornal Mundo Novo:
[...] Seu gesto de amor à terra toucou minha sensibilidade despertando imagens emotivas,
com velhas recordações. Recordações de meus vinte anos com “Rabiscos” e sonetos para
as colunas da gazetinha de Nemésio Lima, [...] Lembro-me que, então, eu dizia: “Nunca
terei saudade desta vida vivida no Ipiranga.” E agora 50 anos depois, repito: nunca terei
saudade daqueles dias... Um amor impossível que me atormentava naqueles dias [...] Meu
caro, que Deus lhe porque este presente que me mexeu muito com esta emotividade que os
janeiros acumularam dentro de mim... [...] (MOTTA, 1978, f. 11vº e f. 12rº).
Foi no Ginásio Ipiranga que ele conheceu Jorge Amado, com quem manteve amizade e se corres-
pondeu ao longo da vida. Na segunda edição do livro de poesias Canções do meu caminho, Eulálio Motta
inicia a obra transcrevendo a opinião de Jorge Amado: “Do melhor da literatura nacional: NÃO SEJA MO-
DESTO, SUA POESIA É DA MELHOR QUALIDADE, APENAS VOCÊ A ESCONDEU DE TODOS”
(MOTTA, 1983, p. 2). Jorge Amado foi a figura pública mais evocada pelo escritor mundonovense para
opinar e avalizar sua poesia.
Em 1929, Eulálio Motta e Jorge Amado publicaram juntos dois poemas na A Luva. O tom humorísti-
co dos poemas aproxima-se das epigramas típicos dos jovens poetas da Academia dos Rebeldes e discípulos
de Pinheiro Viegas:
A UMA FEIA
sem razão.
Porque somente
porque
EULÁLIO MOTTA
A UMA BONITA
com razão
Eu te digo,
o motivo
É que
não sei porque
não adoras
nem namoras
rapaz feio...
JORGE AMADO
(A LUVA, 1929).
No jornal Mundo Novo, de 5 de fevereiro de 1932, Eulálio Motta escreveu um artigo sobre a pu-
blicação da novela Lenita de autoria de Jorge Amado, Dias da Costa e Edson Carneiro. No texto, Eulálio
Motta elogia a novela, contrariando a opinião da crítica literária da época que não viu qualidades na obra.
LENITA
[...]
Pode o leitor amigo jogar fora
este pensamento porque a “Leni-
ta” a que me refiro é feita de
coisa muito diferente - é feita de
talento. É um romance ou no-
vela escrita por Jorge Amado,
Dias da Costa e Edson Carneiro.
O primeiro, de quem tenho a
honra de ser muito amigo, é o
maior talento que já conheci. Fa-
lando sobre êle, disse-me, cer-
ta vez, Alves Ribeiro: “Jorge
Amado é um talento como eu
nunca vi nem nunca ouvi falar”.
Quem conhece Jorge, quem lê
o que lhe sae da pena, não acha
exagero nas palavras de Alves
Ribeiro. Os outros dois, Dias da
Costa e Edson Carneiro, são tam-
bem, duas grandes inteligências
que toda Bahia conhece e adi-
mira.
Mas não lhes quero escrever
elogios. Não vale a pena. Os ad-
jetivos estão estragados, des-
moralisados.
[...] (MOTTA, 1932c, p. 6).
No romance Gabriela cravo e canela: crônicas de uma cidade do interior, Jorge Amado apresenta o
personagem Argileu Palmeira, um poeta de Mundo Novo (BARREIROS, 2012, p. 44). Quando a novela
Gabriela cravo e canela foi veiculada pela televisão, em 1975, Eulálio Motta escreveu um panfleto intitu-
lado Aos telespectadores da “Gabriela”: “Poeta” com aspas, no qual comenta sobre a sua amizade com
Jorge Amado e a possível relação entres essa amizade e a construção do personagem Argileu Palmeira.
No referido panfleto Eulálio Motta comenta: “[...] Não creio que tenha feito isto com a intenção de “bolir”
com o antigo companheiro de lides ginasianas” (MOTTA, 1975a). No panfleto, Aos telespectadores da
“Gabriela”: “Poeta” com aspas, Eulálio Motta revela importantes detalhes da convivência com Jorge
Amado no Ginásio Ipiranga e sobre a capacidade do novelista em escrever narrativas e criar personagens
emblemáticos para suas obras.
Ainda nos tempos do Ginásio Ipiranga, Eulálio Motta conheceu Adonias Filho, com quem manteve
amizade. No Caderno Bahia Humorística, há relatos dessa convivência:
[...] 18-10-933 - Hoje{me levantei tarde}[↑amanheci cerrado no sono.] E- ram mais de oito
horas. Sol no meio do céu. Uma gargalhada de
Adonias me acordou.
Em 1931, ele publicou em Salvador, pela gráfica da revista A Luva, seu primeiro livro de poesias,
intitulado Ilusões que passaram... e, em 1933, publicou o segundo também de poesias, intitulado Alma
enferma, editado pela Imprensa Vitória, em Salvador. A imprensa soteropolitana noticiou a publicação do
livro Alma enferma.
Em 1933, Eulálio Motta concluiu o curso de Farmácia pela Faculdade de Medicina da Bahia, deixou
a cidade de Salvador e retornou a Mundo Novo, onde, em 1948, publicou mais um livro de poesia intitu-
lado Canções de meu caminho, que foi reeditado provavelmente em 1983, com o título Canções do meu
caminho.
A partir de 1931, ele retomou com afinco uma tendência humorística que já existia em suas trovas e
nos textos publicados no jornal Mundo Novo, na coluna Rabiscos. Ressurgiu, então, o antigo Liota, pseu-
dônimo que Eulálio Motta utilizava nos textos humorístico e nas trovas. Nessa nova fase, o humor passou a
ser encarado como um projeto literário e, como parte desse projeto, em 1933, ele esboça um livro de causos
engraçados intitulado Bahia Humorística.
CONCLUSÕES
O acervo de Eulálio Motta permitiu esboçar os itinerários de suas memórias e a escrita de uma nar-
rativa sobre a vida do escritor. Considera-se essa narrativa como autobiográfica porque ela emana de uma
imagem de si forjada por Eulálio Motta na escolha e organização dos documentos arquivados. O escritor
selecionou cuidadosamente os documentos, estabeleceu uma ordenação com vistas a um futuro “leitor”.
Assim como numa autobiografia, o autor tenta controlar as informações a respeito de si, através de um sis-
temático exercício retórico. Todas essas características inerentes às autobiografias foram identificadas na
constituição do acervo de Eulálio Motta.
A única fonte sobre a vida do escritor é o seu acervo, nesse sentido, esse conjunto de documentos pas-
sou a ter autoridade como os arcontes gregos, capaz de instituir uma verdade. O que se sabe sobre Eulálio
Motta está em seu acervo. É como a voz do oráculo sussurrando, decifra-me ou te devoro!
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PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Resumo
Este trabalho é um recorte da dissertação de mestrado intitulada “Imaginário, Memória e Histórias de Vida:
Narrativas Biográficas de egressas do Asilo de Órfãs Felisbina Leivas” e pretende discutir a leitura das
narrativas biográficas através da transcriação. Tal dissertação objetivou compreender a institucionalização
de crianças no Brasil sob a ótica de mulheres egressas do Asilo de Órfãs Felisbina Leivas (Jaguarão/RS).
O trabalho aborda a História de Vida (JOSSO, 2009, 2010) e o Imaginário (MACHADO DA SILVA, 2006,
PERES, 1999, 2008, 2009 e BACHELARD, 1978, 2009), apresentando como ferramentas metodológicas a
Narrativa Biográfica (FERRAROTTI, 2010) e a Transcriação (CALDAS, 1999). O percurso metodológico
consistiu em coletar narrativas biográficas a partir de uma questão detonadora: ‘Registra imagens que
te marcaram positiva ou negativamente’ e na realização da transcriação destas narrativas, neste ponto
detive-me em tornar a narrativa uma história narrada, procurando trazer ao leitor o mundo de sensações
provocadas pelo contato com as protagonistas da pesquisa. Pontuo este processo como um grande exercício
de Imaginação Criadora, em que ao falar do outro falo de mim. São minhas opções teóricas, metodológicas
e de escrita que apresentarão o outro, apresentarão as mulheres da pesquisa e sua vida institucional. O
processo de transcriar as narrativas, possibilitou a apreensão das marcas vinculadas a estadia das egressas no
Lar, com o que pude compreender como as imagens fundadoras reverberam em suas histórias de vida, além
de evidenciar os processos educativos vivenciados na instituição asilar. As imagens fundantes identificadas
nas três narrativas estão associadas ao papel e a imagem de mãe. O fundamental apontado pelo empírico da
pesquisa, foi que mesmo com as dores das experiências negativas vividas no Lar, este configurou-se, para
as protagonistas desta pesquisa, como um lugar de proteção e amparo, que proporcionava segurança à quem
lá tinha sua vida resguardada.
1 – INTRODUÇÃO
O estudo que ora apresento foi desenvolvido durante o mestrado1 e aborda a temática da
institucionalização de crianças no Brasil a partir das narrativas de quem a viveu. Este trabalho apresenta
um recorte da dissertação intitulada “Imaginário, Memória e Histórias de Vida: Narrativas Biográficas de
egressas do Asilo de Órfãs Felisbina Leivas” e propõe-se a discutir a leitura das narrativas biográficas de
mulheres egressas da instituição de acolhimento referida através do processo metodológico de transcriação
de tais narrativas.
Tal dissertação objetivou compreender a institucionalização de crianças no Brasil sob a ótica de
mulheres egressas do Asilo de Órfãs Felisbina Leivas (Jaguarão/RS) através do olhar dos estudos do
Imaginário (MACHADO DA SILVA, 2006, PERES, 1999, 2009 e BACHELARD, 1978, 2009), apresentando
como principal ferramenta metodológica a Narrativa Biográfica (FERRAROTTI, 2010) e a Transcriação
(CALDAS, 1999), para além destes, o estudo é permeado pela compreensão da história de vida como forma
de compreensão dos processos de formação do sujeito (JOSSO, 2009, 2010ª, 2010b).
Apresento, neste trabalho, a compreensão do trajeto inicial da História de Vida de mulheres egressas
2 DEL PRIORI, 2013; RIZZINI e PILOTTI, 2011; RIZZINI, 2011; SCHUELER, 2011; IRMA RI-
ZZINI E IRENE RIZZINI, 2004; PASSETTI, 1999; PRIORE, 1999; WÜRDIG, AGUIAR E PEREIRA,
2010.
3 Neste trabalho não aprofundo as questões de gênero presentes na constituição do lar, reconheço
que poderia fazê-lo, porém opto por analisar questões relativas à formação humana presente na referida
instituição.
mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de
aspirar ao estar no mundo.
[...] Como motor, é o acelerador que imprimi velocidade à possibilidade de ação. O homem
age (concretiza) porque está mergulhado em correntes imaginárias que o empurram contra
ou a favor dos ventos. (Op. Cit., p. 11 – 12)
Sendo o Imaginário este reservatório que agrega, junta, une, acumula nossas experiências e que, o
sendo move, impulsiona, joga, movimenta nossas ações, tentei, com este referencial, ‘revirar’ esta reserva
motriz e desvendar quais são os vividos mais marcantes/significativos na história de vida das protagonistas
desta pesquisa (egressas do Asilo de Órfãs Felisbina Leivas) que emergem em seu vivente, ou seja, em seu
vivido presente.
A realização deste estudo pautou-se na importância de valorizar os conhecimentos das pessoas pelas
pessoas (PERES, 2008), ou seja, das egressas pelas egressas. Para viabilizar essa estratégia, optei pelas
narrativas biográficas como fonte importante para compor a história de suas vidas, bem como mostrar
os percursos da vida pessoal de cada sujeito identificado pela pesquisa e na transcriação como forma de
reorganiza-las a ponto de melhor compreende-las.
As análises da interpretação das histórias de vida narradas e registradas permitiram colocar em
evidência a pluralidade, a fragilidade e a mobilidade de nossas identidades ao longo da vida (JOSSO, 2010a).
Trabalhar com memórias é lidar com um “processo vivo, atual, renovável e dinâmico” (DELGADO, 2010,
p. 17), que se renova e amplifica constantemente. Segundo a autora
A memória, [...] é um cabedal infinito, onde múltiplas variáveis – temporais, topográficas,
individuais, coletivas – dialogam entre si, muitas vezes revelando lembranças, algumas
vezes, de forma explicita, outras vezes de forma velada, chegando em alguns casos a ocultá-
las pela camada protetora que o próprio ser humano cria ao supor, inconscientemente, que
assim está se protegendo das dores, dos traumas e das emoções que marcaram sua vida.
(Op. Cit., p. 16)
Sendo assim o que é lembrado e expresso é sempre fruto de ressignificações, é o passado posto no
presente, com suas sujeições e lançado para o futuro. Ao rememorar fatos e situações, o sujeito imprime
significações singulares. Como afirma Abrahão “Narrar a sua história de vida a outrem significa revelar o
sentido da sua vida” (2006, p. 150). Ela ainda afirma que em trabalhos que envolvem memória o pesquisador
deve ser
[...] consciente de que o ato narrativo se estriba na memória do narrador e que a significação
que o narrador deu ao fato no momento de seu acontecimento é ressignificada no momento
da enunciação desse fato, em virtude de que a memória é reconstrutiva, além de ser
seletiva, mercê não só do tempo transcorrido e das diferentes ressignificações que o sujeito
da narração imprime aos fatos ao longo do tempo [...] (Op. Cit., p. 151).
Mais que ressignificação, Bachelard (2009) nos fala na possibilidade de reimaginarmos nossa
infância a partir de nosso amontoado de memória. Ele aponta a permanência de um núcleo de infância
na alma humana, uma “infância imóvel, mas para sempre viva” (p. 94), permanente em nosso Imaginário
(reservatório-motor). Para ele memória e imaginação se sobrepõe ao darmos às lembranças a atmosfera de
imagens, e é nessa “união que podemos dizer que revivemos o nosso passado” (Op. Cit. p. 99).
Uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o
trabalho da reflexão e da localização, ela seria uma imagem fugida. O sentimento precisa
acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição
[...] Mas o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a qual está
maduro, a religiosa função de unir o começo e o fim, de tranquilizar as águas revoltas do
presente alargando suas margens [...] O vínculo com a outra época, a consciência de ter
suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma ocasião de mostrar
sua competência. Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos, ressonância.
(BOSI, 1994, p. 21 – 22)
Inspirada nas palavras de Ecléa Bosi (Op. Cit.) que falo de memórias, de lembranças, do forte
vínculo com outras épocas, não tão distantes, porém essencialmente significativas na vida das mulheres
desta pesquisa. Não como anciãs, mas como mulheres que buscam clarear suas águas turvas no presente
de suas vidas, mostrando/adquirindo a consciência de sua vida, do processo de sua formação, que terão em
meus ouvidos e olhos atentos, ressonância. Ouvidos e olhos que atentaram às mais sutis passagens vividas
no Asilo, e que, iluminados pela chama do imaginário, se esforçaram a perceber os silêncios.
Neste contexto as histórias de vida foram propulsoras do conhecimento e ponto de partida para
que se evidenciem recordações do Asilo que a posteriori serão identificadas (ou não) como referências,
como recordação referência, compreendida por Josso (2010a) como uma experiência formadora/fundadora
na medida em que o que foi apreendido (internalizado) serve “quer como referência a numerosíssimas
situações do gênero, quer como acontecimento existencial único e decisivo na simbólica orientadora de
uma vida” (Op. Cit., p. 37).
Procurei evidenciar neste trabalho acontecimentos que marcaram a vidas das egressas do Lar
sobremaneira a ponto de se tornarem um acontecimento que é referência para outros, tamanha sua
significação. Josso esclarece que
A história de vida relatada é uma mediação do conhecimento de si na sua existencialidade,
que possibilita que o autor reflita e se conscientize sobre diferentes registros de expressão e
de representação de si, assim como sobre as dinâmicas que orientam sua formação. (2009,
p. 121)
Estudar a história de mulheres abarca uma vasta e oculta história, que durante anos ficou dissolvida
no seio da família. Falar de mulher era falar de família, de filhos, de confinamento, de casa, mas este
panorama mudou. Falar-escrever sobre mulheres é abordar de sujeitos ativos em uma sociedade austera
como a nossa; é falar, mesmo que implicitamente, de suas lutas, seu trajeto na história da humanidade, sua
sensibilidade, suas transformações, partimos “de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na
vida provada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política,
da guerra, da criação” (PERROT, 2012, p. 15).
Este trabalho é de cunho qualitativo, ou seja, desenvolve-se em uma situação natural e é rica em dados
descritivos tendo um plano aberto e flexível focalizando a realidade de forma complexa e contextualizada,
e apresenta uma abordagem de estudo de caso, o qual possui como principal característica o interesse no
particular, no singular que tem valor em si mesmo (LÜDKE e ANDRÉ, 1986).
A ciência do Imaginário e sobretudo seus estudos critica toda hermenêutica “redutora” onde
a interpretação se resume a um único ponto de vista. Por isto tais estudos propõe uma hermenêutica
“instauradora”, a qual busca amplificar, abrir possibilidades de ler determinado fenômeno sem julgar e/ou
prescrever.
Sendo assim Gilbert Durand propôs o método de convergência que, na leitura de Peres (1999),
constitui a busca por estabelecer relações entre as diferentes modalidades de coleta de dados utilizados
no trabalho de campo, que para este trabalho foram: as narrativas biográficas, as histórias transcriadas
e as imagens fotográficas. Isto na tentativa de visualizar a presença de imagens pregnantes e os grandes
eixos norteadores presentes nas narrativas biográficas de onde pude identificar as imagens fundantes e os
processos educativos.
Adentrando as narrativas biográficas tive como intuito principal identificar os processos educativos
presentes nos fatos narrados, este visto como toda a formação que o sujeito teve durante sua vida a partir da
interação com o meio, dentro e fora da escola. Neste caso, o Asilo é encarado como grande reservatório que
vamos acumulando ao longo do trajeto de autoformação, dos conhecimentos adquiridos e que são motores
existenciais, questão que está relacionada ao Imaginário que incorporamos em nossa experiência de vida.
A história de vida surge como mola propulsora de experiências significativas para quem narra, na
medida em que ela ajusta-se como um
método de investigação-ação que procura estimular a autoformação, na medida em que
o esforço pessoal de explicação de uma dada trajetória de vida obriga a uma grande
implicação e contribui para uma tomada de consciência individual e coletiva. (PINEAU
apud NÓVOA, 2010, p. 167)
Ressalto, neste sentido, a importância da “comunhão dos olhares” entre pesquisador e pesquisado
(TIMM, 2012, p. 168, 169, 170), evidencio e priorizo o respeito ao compartilhar a história que é do outro.
O retorno das narrativas biográficas às egressas pautou-se na seguinte questão: O que das experiências
narradas você pensa estar presente em você hoje?
A partir desta questão selecionamos – eu e a egressa – fatos pregnantes que emanaram da narrativa
transcriada. Fatos que elas consideraram como constitutivos de sua história de vida constituíram a
sistematização e organização dos dados. Assim compus um “material narrativo constituído por recordações
consideradas pelos narradores como ‘experiências’ significativas das suas aprendizagens, [...] e das
representações que construíram de si mesmos e do seu ambiente humano e natural” (JOSSO, 2010a, p. 47).
A terceira, e última etapa, deu-se de forma a verificar e destacar das narrativas, das imagens e das
histórias transcriadas, dois focos de análise: imagens fundantes (JOSSO, 2010a) e processos educativos.
Utilizo-me da compreensão acerca do Imaginário e seu papel fundante em nossas vidas como modo
sensível de perceber as experiências das egressas do Asilo, como fundamentais em suas vidas cotidianas;
das narrativas de história de vida para tecer a fio condutor da pesquisa; na compreensão das imagens
(registradas ou rememoradas) como potente s e impulsionadoras do vivido; na compreensão dos aportes
fenomenológicos como forma de ação, reação, atitude frente ao fenômeno estudado. Olhar aguçado,
sensível, abrangente, registrado pelas imagens e legitimado nas narrativas.
Como vimos as três mulheres, hoje mães, se constituíram pela ausência, seja física ou afetiva, de
um ser que lhes fosse referência de acolhimento e amor. Esta imagem impregnou-se em seu cerne e refletiu
fortemente sobre suas ações e sobre a forma de criação de seus filhos. No campo do Imaginário a imagem
só se torna real e concreta no interior de um campo significativo e, acrescento eu, de ressignificação.
Ao voltar com os dados às egressas a fim de cotejar o que tinham dito e dar novo significado ao
vivido, retomei com uma segunda questão detonadora – O que das experiências narradas você pensa estar
presente em você hoje? – eis os fatos considerados, pela egressa, como pregnantes e que decorreram da
apropriação delas de sua narrativa transcriada.
Ana Paula – gratidão pela possibilidade de uma vida melhor. Nos relatos da relação maternal que o
que ela menciona é a compreensão da importância deste laço para a vida de uma pessoa, ela reconhece que
ter perdido sua mãe muito cedo a faz ser protetora de seus filhos e batalhadora para que eles possam ter um
destino diferente do dela, isto sempre regado de muito amor.
Carla – responsabilidade para com seus filhos. Sua mãe e a relação com ela não é mencionada em
nenhum momento durante sua narrativa, a única relação maternal relatada é a dela para com seus filhos.
Ela fala, indiretamente, da compreensão sobre seu abandono no Lar, ao falar que “filho nenhum aceita” ser
abandonado, rejeitado seja pelo motivo que for.
Dona Lenir – valorização do amor acima dos bens materiais. Essa é a egressa que relata com mais
intensidade a relação com sua mãe, ela menciona a todo momento a relação que tinha com ela, e ao refletir
sobre essa relação maternal, se remete aos filhos dizendo que sempre trabalhou muito para lhes proporcionar
os bens materiais que lhe foram ‘negados’, apreende também que por não ter recebido carinho, atenção e
amor não o soube dar a seus filhos, o que hoje lhe é muito caro.
É neste bojo de representações maternais que julgo estar presente o Imaginário mais pulsante das
egressas referente ao Lar, é ele que se sobressai frente às outras imagens presentes nas narrativas, como a do
trabalho por exemplo. Nas três narrativas são três os polos que posso inferir referentes a relação das egressas
com a imagem maternal: a supervalorização da presença da mãe em sua vida; a percepção do abandono, em
que por motivo algum a mãe deve abrir mão de um filho; e a última refere-se ao reconhecimento do amor
dedicado às filhas por uma mãe que almejava que elas conquistassem uma vida digna.
Impregnada pelas narrativas afirmo que o Lar de meninas Felisbina Leivas constituiu-se e representou
um Lar para as meninas que lá residiram e que integraram esta pesquisa. No Lar os medos eram menores e
maior era o amparo, tanto que elas reconhecem as relações que lá se estabeleciam como familiares: “Aqui
foi minha família, foi minha casa” (A.P. 22/06/2012); “Era como uma família, porque nós morávamos todos
juntos. Nós éramos uma família sim!” (C. 22/07/2012).
Nestes destaques podemos evidenciar o quanto a história de vida narrada proporciona a mediação do
conhecimento de si na sua existencialidade, na medida que possibilitou a egressa a reflexão e a conscientização
sobre diferentes passagens de sua vida no Lar e, até mesmo, de representações de si, caráter fundamental
da autoformação. Assim, a análise das histórias de vida permitiram colocar em evidencia a pluralidade,
a fragilidade e a mobilidade de nossas identidades ao longo da vida, vida que nos é cara pelos detalhes
significativos do vivido, pela sutileza dos laços estabelecidos, pela fúria, pela mágoa, pelos sentimentos
abandonados ou/e trazidos, vividos como se lá (no passado) ainda estivéssemos, pelas imagens, em nós,
indeléveis.
Dentro destas representações, imagens, vivencias narradas aparecem os processos educativos
que refletem fortemente a formação que os indivíduos tiveram durante sua estadia no Lar. Tais processos
apresentam-se intimamente ligados às intimações do meio em que as egressas estavam inseridas e que se
relacionam diretamente com a constituição de seu Imaginário. E foi nesta interação, como já visto, que
deram-se os principais processos educativos, já que é na interação que o humano constitui-se e constitui
cultura podemos inferir que, potencialmente, todos os espaços e tempos da vida são espaços e tempos de
formação e transformação humana (BRAGANÇA, 2011), assim os processos educativos permeiam todos
os espaços humanamente habitados.
Há muitas similaridades entre as narrativas biográficas. Tanto Dona Lenir, como Carla e Ana Paula
relatam experiências no Lar que se aproximam, tais como: a obrigação em comer a comida, as punições frente
aos desrespeitos das regras, a rotina e divisão do trabalho, a escolarização, o relacionamento de proteção
– apesar das disputas – entre as egressas. A diferença mais significativa que pude constatar pauta-se nas
condições de subsistência do Lar, de condições de vida, as meninas que residiram no Asilo novo tinham
chuveiro quente, roupas, cobertores, coisas simples que não se tinham no Lar em que Dona Lenir residiu.
A partir das visitas às memórias da institucionalização, posso perceber o quanto essa experiência
marcou a vida dessas mulheres. Positiva ou negativamente, isto deu-se a medida da importância e das
ressignificações que estar no Lar se constituíram para elas em cada momento de sua vida.
A partir do estudo realizado pude ampliar a visibilidade das mulheres Jaguarenses que residiram no
Asilo de Órfãs Felisbina Leivas; evidenciar os reservatórios do Imaginário e as experiências de vida dessas
mulheres; apontar quais eram os principais processos educativos que se constituíram no Lar; identificar
imagens fundantes das egressas.
O empírico da pesquisa, apontado neste trabalho, mostrou que mesmo com todos os ‘contras’,
todas as negatividades das experiências vividas no Lar, este constituiu-se como um lugar de proteção, que
proporcionava segurança à quem recebia resguardo para a sua vida.
Com isto, penso que como uma variável independente da pesquisa, este trabalho pode possibilitar a
reflexão e problematização sobre o papel da educação e de educadores de crianças que passaram/passam,
atualmente, pela experiência da institucionalização em casas lares, visto que a escola e a educação tornam-
se imprescindíveis para a conquista da autonomia e da individualidade destes sujeitos.
Muitas são as diferenças entre os antigos Asilos, como o exposto nesta pesquisa, e as atuais casas de
acolhimento. Atualmente meninos e meninas residem em uma mesma casa, os moradores são em número
reduzido, há vários educadores responsáveis pela manutenção da casa e pela educação das crianças, há uma
preocupação com a singularidade (os uniformes já não existem), a responsabilidade de manutenção desta
casa é do Estado, tem-se uma superação do antigo formato das instituições de acolhimento.
Porém as vozes de quem lá reside/residiu ainda é negligenciada, isto porque compreendo que há
aspectos que só são compreensíveis quando se leva em conta o ponto de vista dos abrigados (AGUIAR,
WÜRDIG, 2011), de quem passou pela experiência asilar, pois na medida em que compreendemos seus
modos de viver, agir e compartilhar, há a possibilidade de tornar visível e discutível as infâncias desse
grupo social.
Entendo que torna-se necessário dar continuidade as reflexões aqui apresentadas sobre as memórias
biográficas de histórias de vida com entendimento na abordagem do Imaginário, pois muito ainda há para
ser compreendido a partir das relações que deram-se nos abrigos. Conhecemos a história das instituições
de acolhimento no Brasil, mas pouco se fala das vidas que lá transcorreram, menos ainda a partir de suas
vozes.
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PESQUISA FILOLÓGICA E A BIOGRAFIA COMO DOCUMENTO MEMORIALÍSTICO:
EDITANDO O CÓDICE 132, UMA BIOGRAFIA DO MARQUÊS DE POMBAL
RAFAEL MARQUES MARQUES FERREIRA BARBOSA MAGALHÃES1.
1.UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, SALVADOR - BA - BRASIL.
Resumo:
O Marquês de Pombal é um dos personagens mais destacados na história portuguesa no século XVIII, famoso
pelo conjunto de medidas que adotou no âmbito da administração do Império, largamente conhecidas como
Reforma Pombalina, bem como seu protagonismo em momentos cruciais na história, como o Terremoto
de 1755, o julgamento e suplício dos Távora, o rompimento da Coroa com os Jesuítas, dentre outros. O
Códice 132, acondicionado no Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia é uma biografia de Sebastião
José de Carvalho e Mello, onde tais e outros fatos sobre sua vida foram registrados com riqueza de detalhe
por um membro da Corte. No compromisso de restituir à comunidade o conhecimento que detém, conforme
os ensinamentos de seu patriarca, o Mosteiro abre as portas de seu acervo à pesquisa, constituindo-se
como terreno fértil para as pesquisas filológicas e históricas. Partindo do pressuposto de que uma das
principais atribuições da Filologia é buscar desvelar o conteúdo e o sentido dos textos, propõe-se este
trabalho a explorar os fatos apresentados pelo documento a partir da perspectiva de Cláudio de Britto Reis,
doador do documento ao Mosteiro de São Bento da Bahia e estudioso do Marquês de Pombal, sobre quem
escreveu diversas obras, no sentido de prover o texto de aparato contextual e paratextual histórico, a fim de
possibilitar uma leitura crítica e segura. Para tanto, as preconizações de François Dosse nortearão o trato do
documento biográfico, em sua materialidade memorialística/histórica, pautando-se nos pressupostos mais
aceitos na contemporaneidade para o labor filológico..
rodrigomatos28@hotmail.com
Resumo: Este trabalho pretende abordar os movimentos recepcionais das obras de Elias Canetti no Brasil, e
seus processos de apropriação pelas Humanidades ora como objeto, ora como referencial teórico, ora como
ilustração, reportando a importante contribuição de seus escritos autobiográficos como campo de estudo
dos processos (auto)formativos. Do ponto de vista metodológico, para a elaboração deste artigo, foi desen-
volvido um levantamento das entradas de nosso autor nos principais bancos de dados nacionais, este levan-
tamento foi organizado tendo em vista as categorias de Apropriação Incidental , Apropriação Conceitual
Tópica , Apropriação do Modo de Trabalho e Apropriação de Conteúdo. Em sua faceta teórica este artigo
se aproxima do conceito chartieriano de apropriação, que procura lançar uma luz aos processos pelos quais
os sentidos são produzidos e, em seguida, apropriados nas Humanidades. No caso específico de Canetti, é a
que nos permite ver como este autor foi e está sendo lido nos espaços acadêmicos brasileiros, apontando os
modos como os textos canettianos estão sendo lidos, utilizados como categorias de análise ou funcionado
como operadores para interpretações no campo das artes, da literatura, das ciências humanas e da educação.
A recepção dos textos de Elias Canetti no Brasil se dá por conta das traduções1 desenvolvidas
por ocasião de sua premiação com o Nobel em 1981, um fenômeno pós-Nobel como nos diz Irene Aron
(1994a). Entre 1982 e 1990 são publicados os livros Auto-de-fé (em 1982, editado originalmente pela Nova
Fronteira e atualmente pela CosacNaify), Massa e Poder (em 1983, editado originalmente pela EdUNB/
Melhoramentos e atualmente pela Companhia das Letras), A Língua Absolvida (primeiro volume de sua
trilogia autobiográfica, em 1987, pela Companhia das Letras que, junto com os outros dois volumes de sua
trilogia autobiográfica, encontra-se atualmente em sua coleção de bolso, a Companhia de Bolso), As Vozes
de Marrakech (em 1987, pela Editora L&PM e atualmente pela CosacNaify), Uma Luz em Meu Ouvido
(segundo volume de sua trilogia autobiográfica, em 1988, pela Companhia das Letras), O Outro Processo:
As cartas de Kafka a Felice (em 1988, pela editora Espaço e Tempo, esgotado e sem reedição, mas presente
em A Consciência das Palavras como capítulo), O Todo-Ouvidos (em 1989, pela editora Espaço e Tempo,
também sem reedição), A Consciência das Palavras (em 1990, pela Companhia das Letras, atualmente em
sua coleção de bolso) e O Jogo dos Olhos (último volume de sua trilogia autobiográfica, em 1990, pela
Companhia das Letras).
1 Seus nove tradutores no Brasil são Markus Lasch (Festa sob as Bombas), Kristina Michahelles
(Sobre os Escritores), Rita Rios (Sobre a Morte), Samuel Titan Jr (Vozes de Marrakech – CosacNaify, He-
bel e Kafka), Marijane Lisboa (Vozes de Marrakesh – L&PM), Ruth Röll (Canetti: o teatro terrível), Sérgio
Telarolli (Massa e Poder, Jogo dos Olhos), Kurt Jahn (A Língua Absolvida, Uma Luz em Meu Ouvido) e
Herbert Caro (Auto-de-fé - Nova Fronteira e CosacNaify-, O Outro Processo: As cartas de Kafka a Felice
e A Consciência das Palavras, este último com Márcio Suzuki).
Após um interregno de uma década sem novos eventos editoriais, ocorre a publicação da coletâ-
nea Canetti: o teatro terrível (em 2000, pela editora Perspectiva), com três peças do autor: O Casamento,
Comédia da Vaidade e Os que têm Hora Marcada; e no ano de 2009 ocorre a publicação de três títulos do
autor: Festa Sob as Bombas e Sobre a Morte (ambos editados pela Editora Estação Liberdade) e Sobre os
Escritores (Editora José Olympio). Além de seus livros houve, isoladamente, no Cadernos CEBRAP, nº.
72, de 2005, a publicação da conferência Hebel e Kafka, proferida por ocasião do recebimento do prêmio
Johann Peter Hebel e publicada como adendo a O Almanaque de Johann Peter Hebel (2005).
Nos anos de 1980 Canetti foi inicialmente publicado pela Nova Fronteira, hoje selo editorial para
literatura estrangeira do grupo Ediouro, que fez as primeiras edições de Auto-de-fé no início da década (a
tradução feita por Herbert Caro é a mesma reeditada pela CosacNaify recentemente); pela L&PM, editora
contracultural do fim dos anos 1970, depois convertida em importante editora de livros de bolso; pela Es-
paço e Tempo, pequena editora carioca de produção não contínua, recentemente fundida com a Garamond;
e a EdUNB/Melhoramentos, parceria da Editora da Universidade de Brasília com a distribuidora e editora
de livros didáticos Melhoramentos. Os quatro grupos editoriais perderam direitos de publicação, que foram
adquiridos por outras editoras (é o caso de Vozes de Marrakech, Auto-de-fé e O Outro Processo: Cartas de
Kafka a Felice) ou mudaram seu ramo editorial, como a Espaço e Tempo, passando a ocupar-se de publica-
ções mais rentáveis comercialmente. O Todo-Ouvidos não despertou novo interesse editorial (e comercial)
e permanece esgotado.
Dentre as atuais casas editoriais de Canetti no Brasil estão desde a prestigiosa Companhia das
Letras; a CosacNaify, editora de volumes luxuosos e caros, com ampla distribuição nacional; e a Estação
Liberdade, pequena editora paulista, com distribuição incerta, mas com edição cuidadosa; e a Perspectiva,
importante editora acadêmica, uma das poucas editoras comerciais a ter um conselho editorial formado por
professores universitários.
A diferença na inscrição editorial de suas obras no país está marcada pela edição de uma conferência
na revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), muito conhecido por ser fundado por
intelectuais da Universidade de São Paulo por ocasião de seus “jubilamentos” compulsórios pelo regime
ditatorial instalado no país a partir de 1964. É uma edição caracterizada pelo não interesse comercial pela
obra, já que se trata de uma revista de divulgação científica e seu texto servir de ilustração ao comentário e
tradução feitos por Samuel Titan Jr de um texto de Hebel.
A partir deste pequeno sobrevoo sobre a edição de Canetti no Brasil podemos perceber como seus
textos foram desde o momento de sua “descoberta” pós-Nobel, publicados com frequência e qualidade,
tanto seus textos mais célebres como conferências e ensaios obscuros, o que permitiu sua leitura por
várias gerações e regiões do país, notadamente, com certa vantagem para aqueles localizados nos estados
do sudeste, sul e da capital federal, beneficiados pela concentração das editoras em seus estados e pela
distribuição sem maiores entraves para as livrarias – fato só minimizado após o surgimento do comércio
eletrônico de livros. Mas isto não significa dizer que ele seja bem editado, como ocorre na Espanha, na
Alemanha e nos Estados Unidos, onde existem edições completas do autor ora em estudo.
A localização histórica da recepção de Elias Canetti no Brasil não destoa de sua recepção no restante
do mundo, que só se popularizou por causa de sua láurea pela Academia Sueca, como anota Irene Aron
(1994) em seu artigo sobre o autor, no qual indica como a recepção dele ao redor do mundo sempre foi
difícil, com muitos revezes, e mesmo em língua alemã o autor só era reconhecido pelo que havia escrito até
1938, um romance, Auto-de-Fé (1982) e as peças de teatro O Casamento e Comédia da Vaidade (2000),
recebidos de forma negativa e reticentes como as críticas dirigidas a ele por Hans Magnus Eisenberger e
Marcel Reich-Ranick, que qualificaram o livro Auto-de-Fé como insuportável e monstruoso (apud ARON,
1994, p. 157).
Se, parte de seu desconhecimento pode ser creditado à dificuldade imediata que seus livros podem
despertar num leitor neófito, à sua conhecida reclusão e modéstia – no sentido de não buscar o espaço da
autopromoção e deixar que seus livros falem por ele. Outra parte, muito significativa, pode ser creditada à
consciência dos efeitos que seus escritos, sobretudo suas autobiografias, poderiam provocar nos persona-
gens ali retratados, além de retardar ao máximo a publicação de seus escritos autobiográficos, até o ponto
em que três deles recebessem dedicatórias póstumas nos três volumes de suas memórias (ao irmão mais
novo e as suas duas esposas), proibiu a publicação imediatamente após seu falecimento de seus diários e
espólio intelectual, que só serão abertos em 2024, trinta anos após sua morte (OJEDA, 2012); e proibiu a
publicação de sua autobiografia no Reino Unido, mesmo após sua consagração com o prêmio Nobel de lite-
ratura (THE ECONOMIST, 31 de março de 1982) – quem leu A Língua Absolvida sabe que não é elogiosa
sua relação com o lado “inglês” da família, cujos retratos são coloridos pelo rancor – e seu editor america-
no, à época, em resposta aos questionamentos da revista diz: “Canetti não quer sua autobiografia publicada
na Grã-Bretanha. Ele não vai falar sobre isso, mas não quer isto, e isso é definitivo2” (THE ECONOMIST,
31 de março de 1982).
Retomando o objetivo central desta seção, no Brasil, a leitura de nosso autor aumenta conforme suas
edições vão se tornando frequentes e o interesse acadêmico por seus textos, mesmo que modesto, apresenta
um panorama de como ele foi – ou pode - ser lido nas últimas décadas em nossas universidades. Para a ela-
boração desta seção foi desenvolvido um levantamento das entradas3 de nosso autor nos principais bancos
de dados nacionais4, este levantamento foi organizado em um quadro orientado pelas categorias desenvol-
vidas por Catani, Catani e Pereira (2001), que procuraram compreender as diversas formas de apropriação
de Pierre Bourdieu no Brasil, acrescentada de uma categoria construída tendo em vista a especificidade
deste trabalho.
2 “Canetti does not want his autobiography published in Britain. He will not talk about it, but he
does not want it and that is final” [Tradução Nossa]. Devo este fragmento, e mais um outro, da revista The
Economist, ao leitor K. Liepmann que, diligentemente, guardou-os em seu volume de Die Fackel Im Ohr
(1980), que pude (re)encontrar num sebo paulistano em 2012.
3 Foram utilizados os seguintes descritores: Canetti, Elias Canetti, Veza Canetti, Musil, James Joyce, Karl Kraus, Her-
mann Broch, Língua Absolvida, Jogo dos Olhos, Uma luz em meu ouvido, romance de formação, bildungsroman, romance au-
tobiográfico, autobiografia, Canetti Bulgária, Canetti Massa, Canetti Metamorfose, Canetti Kafka, Canetti autobiografia, Canetti
literatura alemã, memória de leitura e combinações entre estes descritores.
4 O Levantamento foi feito na biblioteca da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (USP), no acervo da CCS/EDUSP, no Banco de Teses da CAPES, no sistema BIBinet USP, no Catálogo Athena da Univer-
sidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho (UNESP), no portal SBU Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
na Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no banco de teses da PUC-Rio, no portal Scielo,
no portal Pepsic, nos anais da ABRALIC, nos anais da ANPOLL, nos anais da ABRAPLIP, no anais da ANPED, nos anais da
ANPUH, no indexador da Plataforma SEER, Periódicos CAPES, na plataforma SEER da Revista Brasileira de História da Edu-
cação, na Biblioteca da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), na Biblioteca da Universidade Federal da Bahia (UFBA); e
no Katalog der Bibliotheken do Goethe-Institut do Brasil. No período de setembro de 2012 a maio de 2013.
Por apropriação, no contexto deste artigo, e distanciando-me um pouco do conceito de apropriação
hermenêutico, para a qual apropriação é uma forma de compreensão de si a partir do texto (RICOEUR,
2011, p.64) e - de forma não excludente do que já foi dito, antes atuando de forma complementar – exclu-
sivamente na execução deste levantamento, tomarei o conceito desenvolvido por Roger Chartier (1990)
como norte, quando afirma que:
A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das interpreta-
ções, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais,
culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo aten-
ção às condições e aos processos que, muito concretamente, determinam as operações de
construção de sentido (na relação de leitura, mas em muitas outras também) é reconhecer,
contra a antiga história intelectual, que as inteligências não são desencarnadas, e, contra as
correntes de pensamento que postulam o universal, que as categorias aparentemente mais
invariáveis devem ser construídas na descontinuidade das trajectórias históricas (CHAR-
TIER, 1990, p. 26-7).
A apropriação que nos interessa ressaltar é a que nos permite ver como este autor foi e está sendo
lido nos espaços acadêmicos brasileiros, por isso procuraremos apontar os modos como os textos canettia-
nos estão sendo lidos, utilizados como categorias de análise ou funcionado como operadores para interpre-
tações no campo das artes, da literatura, das ciências humanas e da educação.
Foram levantados 41 (quarenta e um) textos nos quais aparecem citados os trabalhos de Canetti em
maior ou menor intensidade. Desse total 8 (oito) são artigos, 8 (oito) comunicações em congressos, encon-
tros e colóquios, 14 teses de doutoramento e 11 dissertações de mestrado. A instituição brasileira em que
nosso autor foi mais estudado é a Universidade de São Paulo, responsável por 20 (vinte) trabalhos desen-
volvidos, entre artigos, comunicações, teses e dissertações. O que se explica pelo fato da edição dos textos
de nosso autor, bem como sua circulação, nos primeiros anos de sua publicação nacional, estar circunscrito
geograficamente ao sudeste do país, centralizando assim seu estudo.
Do estudo de Catani, Catani e Pereira (2001, p 65) emergem três das categorias utilizadas no desen-
volvimento deste artigo: Apropriação Incidental (AI), Apropriação Conceitual Tópica (ACT), Apropria-
ção do Modo de Trabalho (AMT). Elaboro, para o desenvolvimento do trabalho com Elias Canetti mais
uma categoria, a Apropriação de Conteúdo (AC), cuja explicação encontra-se mais abaixo.
A Apropriação Incidental se caracteriza por apresentar referências rápidas ao texto do autor, por
arrolamento de seus títulos nas referências bibliográficas, sem citação no corpo do texto; e por menção em
nota de rodapé explicativa ou em meio a outros autores que eventualmente se ocupem da mesma temática.
“Nas apropriações incidentais não é possível estabelecer relação entre a argumentação empreendida no tex-
to e a referência, ou então a menção guarda relação muito tênue com o argumento desenvolvido” (CATANI;
CATANI; PEREIRA, 2001, p. 65) Dos textos classificados 48,7% integram esta categoria.
A Apropriação Conceitual Tópica caracteriza-se pelo uso pontual de citações ou conceitos do autor
para validar argumentações e o desenvolvimento de algum resultado, ampliando o quadro de referência do
estudo desenvolvido. Dos textos classificados 24,3% estão sistematizados nesta categoria.
A Apropriação de Conteúdo, a única categoria desenvolvida especialmente para este estudo, inte-
gram os textos que utilizam a obra de nosso autor como objeto de pesquisa, apropriando-se não apenas de
conceitos, mas do próprio material escrito para desenvolver análises textuais, culturais, sociológicas, psico-
lógicas, políticas e educacionais. Dos textos levantados 21,9% enquadram-se nesta categoria.
Os trabalhos identificados na categoria Apropriação Incidental (AI) apresentam, por sua natureza
pragmática e pontual, pouco material para o trabalho de análise. Aparecem, quase sempre, em notas de ro-
dapé, em enumerações de autores que trabalham temas comuns ou pontualmente como alusão a algum con-
ceito abordado, mas que não será objeto de estudo corrente pelo autor do texto. Figuram como uma espécie
de prestação de contas, na qual se informa aos leitores que determinada leitura sobre determinado tema foi
feita, porém não será usado de forma extensa no desenvolvimento do relatório/ensaio/artigo/comunicação
do estudo.
Uma dificuldade na construção deste tipo de categoria é que, como os textos citados não possuem
representatividade no corpo da produção, acabam por não entrar no resumo, dificultando sua identifica-
ção junto aos indexadores de pesquisa, buscadores, arquivos e bibliotecas. É preciso entrar no trabalho
e procurar a partir de algum indício, quase sempre, de forma derivada (em artigos resultantes de teses e
dissertações) ou insistindo em categorias alternativas àquelas pretendidas inicialmente. É um trabalho de
insistência.
Dos textos levantados sob o signo da Apropriação Incidental, a maioria, apresenta um interesse
pontual por Massa e Poder, seja em trabalhos que abordem a questão do trabalho operário e a repressão no
período da Era Vargas; seja em um debate sobre estética e filosofia, o que aponta os extremos de tratamento
possíveis dos estudos políticos de Canetti. Há, também, citações de A Língua Absolvida, A Consciência das
Palavras – em uma edição alemã, O Outro Processo: cartas de Kafka a Felice, Auto-de-Fé, Uma luz em
meu Ouvido e Vozes de Marrakech.
Um elemento que foge a este contexto de uso das citações pode ser encontrado em duas comuni-
cações que não citam nenhum texto do autor, mas mencionam-no em meio a outros autores que experi-
mentaram a migração como fenômeno de seu tempo, ou que foram impelidos a diáspora por conta de sua
condição judaica (AGUSTIN, 2008; RAONI, 2008), como no trecho a seguir:
Isso pode ser identificado no envolvimento que levou o povo judeu a traduzir suas tradições
religiosas e éticas, mediante a criação de gêneros textuais, os quais revelam a pluralidade
de faces assumidas pela identidade judaica ao longo dos últimos dois mil anos: A Bíblia,
comentários teológicos e filosóficos sobre a fé hebraica, a Cabala, narrativas épicas, poesia
sacra e profana. Com base nessa identidade cultural, sintomatizada em vários gêneros tex-
tuais, inúmeros escritores criativos judeus deram valiosas contribuições às várias literaturas
dos diferentes países em que foram acolhidos em meio à Diáspora, nos quais nasceram e
construíram suas existências. Assim, torna-se oportuno mencionar autores judeus signifi-
cativos como Heine, Franz Kafka, Samuel Usque, Philip Roth, Primo Levy, Bellow, Mala-
mud, Wasserman, Babel, Agnon, Aguinis, Bashevis Singer, Elias Canetti, Moacyr Scliar,
Samuel Rawett, Clarice Lispector, dentre outros (RAONI, 2008, p.2).
Talvez, mais do que qualquer outra apropriação intelectual da obra de Canetti seja o fato deste ser
percebido como sujeito de algum lugar, mesmo da diáspora, que torne a menção dele em meio a outros
autores de expressão judaica importante, já que este viveu toda uma vida de trânsito pelas nacionalidades,
convertendo-se em um sujeito das cidades por que passou, que pertenceu mais a Zurique, a Viena, a Lon-
dres que a seus respectivos estados-nação. De sujeito que viveu a margem da nação e se inscreveu na Nation
(BHABHA, 2010, p. 385) dos exilados deliberadamente. É uma forma de começar a localizar o sujeito que,
se não pertencer a algum lugar, pode desaparecer.
Os textos reunidos sob a etiqueta da Apropriação Conceitual Tópica formam um conjunto bem
significativo do processo de apropriação de Canetti nas universidades brasileiras, apresentando o uso de
conceitos e representações desenvolvidas pelo autor em cinco de suas obras mais conhecidas: A Língua Ab-
solvida, O Outro Processo: cartas de Kafka a Felice, Vozes de Marrakech, Massa e Poder e A Consciência
das Palavras. E ampliam as investidas sobre a produção canettiana para além do mero arrolamento ou do
uso pontual, inserindo-o como elemento de análise dos produtos acadêmicos desenvolvidos, seja disserta-
ção, tese ou comunicação. Abordarei as produções de acordo com a sua concentração em uma determinada
obra, dentre as mencionadas acima neste mesmo parágrafo.
O texto A Língua Absolvida aparece em lugar familiar para trabalho com este título de Canetti no
Brasil, A Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), pois este livro é objeto de tra-
balho nesta faculdade há quase três décadas, e orbita a atuação de docentes que, de alguma maneira, foram
influenciados pela escrita de Denice Catani sobre o autor, em seu artigo Pedagogia e Museificação (1990-
1991), texto inaugural do interesse canettiano no país.
Aguiar (2010) inicia sua abordagem do texto canettiano, justamente, falando da proposição de lei-
tura do livro numa disciplina da FEUSP
No início dos anos 90 do século passado, durante o meu curso de licenciatura em Língua
Portuguesa, na Faculdade de Educação da USP, ouvi falar pela primeira vez de um livro chamado
A Língua Absolvida, de Elias Canetti, um escritor búlgaro que passou um período de sua adoles-
cência na Suíça por conta da Primeira Guerra Mundial. O título era maravilhoso e causava em mim
qualquer coisa de profundo, mágico, trágico. Tanto que rapidamente fui buscar um exemplar na
biblioteca da faculdade e passei a percorrer suas páginas com uma curiosidade faminta, desejosa de
palavras que o livro tinha a me presentear.
Descobri, então, que se tratava de um texto autobiográfico. E seu teor revelava a intensa
relação de amor que o autor nutre com a sua língua (materna?). Mas não só. A questão é que não
sabia dizer o que havia a mais; só que isso não tinha importância. A Língua Absolvida de Canetti
tinha marcado a minha própria língua e isso me bastava como leitora naquele momento (p. 258).
É importante ressaltar que este relato de leitura não é fruto de um memorial inicial da tese, mas
elemento introdutório de seus resultados, nos quais se debate as representações do menino autor epistolar
como exemplos da escrita escolar e da condição autoral neste contexto, no qual são tecidas críticas aos
processos escolarizantes que retiram do sujeito a possibilidade de experimentar, a não ser pela leitura da
experiência de outrem (é um excesso, no qual a autora força por demais as situações vividas por Canetti, a
maioria delas não aprendidas nem incentivadas pela escola, como processos vividos no ambiente escolar. É
o caso das cartas escritas à mãe ou dos interesses literários e estéticos, muito mais fruto de sua relação com
as moradoras de sua pensão, de descobertas individuais e do legado parental).
O título O Outro Processo: cartas de Kafka a Felice aparece também em um único e óbvio uso na
comunicação Linguagem, Pensamento, Escrita e Existência – um breve estudo sobre as narrativas anima-
listas de Kafka (ALMEIDA, 2013), no qual se discute a questão da fala, da linguagem e do pensamento
na relação entre os sujeitos e a influência destes processos na construção das identidades. Kafka é o pano
de fundo para este debate. Curiosamente, apesar de inscrever esta abordagem sob o signo da Apropriação
Conceitual Tópica, preciso alertar o leitor de que há certa arbitrariedade nesta classificação, pois a autora
utiliza Canetti mais como apud, do que como objeto conceitual a ser trabalhado em seu estudo. No entanto,
o mantive aqui por perceber que quase todas as citações indiretas do texto de Kafka apontavam, antes ou
depois de sua inserção textual, para uma indicação de como nosso autor leu o autor de A Metamorfose a
partir de suas epístolas à sua pretendente, Felice Bauer.
Já a abordagem feita do texto Vozes de Marrakech pelos dois textos identificados, A Propaganda
Política do Islamismo Xiita (GAULAND, 2007) e Aprender pela Arte a Arte de Narrar: educação estética
e artística na formação de contadores de histórias (ROCHA, 2010), ambas teses de doutoramento na Es-
cola de Comunicações e Arte da USP, apontam usos distintos do mesmo receituário. Gauland (2007) utiliza
das imagens construídas pelo autor viajante em sua estadia num país de cultura islâmica – o Marrocos –
para discutir a representação orientalista construída no ocidente, que circunscreve territorialmente o outro,
indicando-lhe o lugar de pertencimento ao exótico, ao diferente de “nós”, sistematizado por Edward W.
Said em O Orientalismo (1990). E o texto de Rocha (2010) que, tomando as imagens dos contadores bedu-
ínos do deserto marroquino, propõe uma aproximação identificadora com fenômeno semelhante em todo o
mundo, que é do contador público de história, este que frequenta as feiras nas periferias de todo globo, de
Cabul a Caruaru, e que começa a se tornar raro.
Enfim, a discussão da categoria Apropriação Conceitual Tópica pode ser fechada com a identi-
ficação de quatro textos que fazem uso do volume de artigos, conferências e ensaios A Consciência das
Palavras, a saber, Santana (2008) que debate o texto de Canetti a partir dos estudos de Cláudio Magris;
Ardans-Bonifacino (1996; 2001), que aborda juntamente com a leitura de Massa e Poder (2011) o conceito
de Metamorfose; e Fantin (2008) que o aborda no debate sobre a narrativa. É importante ressaltar que estas
quatro apropriações tem como objeto de trabalho uma mesma conferência, O Ofício do Poeta.
A categoria Apropriação do Modo de trabalho, pretende evidenciar “apropriações reveladoras da
utilização sistemática de noções e conceitos do autor [...], bem como mostram preocupação central com o
modus operandi da teoria” (CATANI; CATANI; PEREIRA, 2001, p. 65), foram identificados apenas dois
textos: a dissertação Massa e Humanização: de Canetti a Sloterdijk (MARTINS, 2009) e a tese Povo, Mas-
sa e Multidões nos Contratos de Comunicação do Jornal Última Hora (PASSOS, 2009).
Para Martins (2009) a comparação de Canetti a Sloterdijk provoca o contrate de suas concepções
de Massa distintas, as quais ele qualifica como homogênea, monocolorida, negro para ser fiel à dissertação,
desenvolvida por Canetti em seu livro; e uma concepção mais líquida, uma aglomeração mais colorida e
pós-moderna, defendida, segundo ele, por Sloterdijk (MARTINS, 2009, p. 17-40).
Já o texto de Passos (2009, p. 71-108) faz um resumo do conceito de Massa presente no livro de Ca-
netti e seus desdobramentos explicativos, servindo-se aqui e acolá do auxílio de textos de Antonio Negri e
Gabriel Tarde na caracterização dos eventos de massa na contemporaneidade e sua expressão no jornalismo
impresso do jornal Última Hora.
Ambos os textos utilizam o conceito de massa canettiano, não ultrapassam este uso que, mesmo ex-
tenso, não se expande para outros livros nos quais o conceito é comentado, resumido, apreciado pelo autor
(CANETTI, 2008; 2010b; 2010c; 2011; 2013), configurando-se de fato um modo de apropriação apenas
do conceito de massa, observando, no cotejo com outros e na contraposição com perspectivas contempo-
râneas do estudo, a pertinência do conceito canettiano para os estudos das multidões humanas nos tempos
hodiernos.
Os textos aglutinados sob a categoria Apropriação de Conteúdo dizem respeito a estudos sistemá-
ticos dedicados ao autor, uma de suas obras ou conjunto de obras, cujo produto final deixa entrever mais
do que uma resenha ou resumo do autor, mas sua inserção como filtro de análise de problemas sociais,
culturais, filosóficos, estéticos, políticos e educacionais. Este tipo de estudo, muito comum em campos
como a filosofia, as artes e os estudos literários, ganhou contemporaneamente a concorrência das Ciências
Humanas na apropriação das narrativas ficcionais como campo empírico de suas investigações. Escolhi
apresentá-los por campo, pois alguma estabilidade pode ser observada, são eles a Educação, os Estudos
Literários e a Psicologia.
No campo da Educação, como já foi dito anteriormente em outros momentos neste texto, as apro-
priações de Elias Canetti estão marcadas pela leitura inaugural de Catani (1990-1991) sobre o primeiro
volume de sua autobiografia, A Língua Absolvida (2010a). Este foi o primeiro artigo a ser publicado sobre
nosso autor em um periódico acadêmico brasileiro e por uma professora de uma universidade brasileira
(existia uma recepção jornalística, curiosa do Prêmio Nobel de Literatura, de sua reclusão e até sobre seus
casamentos5).
Neste texto expõe a autora, à luz dos exemplos canettianos, críticas ao processo formativo e do tra-
balho do professor, para o qual se exige racionalidade e objetividade, deixando à margem a criatividade, a
fruição e a imaginação presentes na atuação de personagens como o professor Witz, sujeito da instabilidade
5 Especialmente nos Jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, na década de 1980 e
início dos anos 1990.
e, por isso, atraente aos olhos do jovem Elias; convoca seus leitores a pensar a multiplicidade de sentidos
impressos no tema da formação e a pensar a escola como espaço em que comportamentos se homogene-
ízam ao mesmo tempo em que abre espaço para a diferença; amplia suas críticas ao universo pedagógico
percebendo-o como espaço que excluí o que desconcerta e o que é inesperado:
[…] a pedagogia agarrada à ilusão dos controles justifica-se elaborando o discurso do “museu”:
classifica e organiza, isola e dirige o olhar, além de imprimir os folhetos que ensinam a percorrer
os conhecimentos selecionados como dignos, destituídos do seu “poder de sedução e inquietação”
(CATANI, 1990-1991, p. 26).
E propõe a leitura de A Língua Absolvida (2010a) como leitura provocativa aos temas da educação,
bem como para o uso de textos não pedagógicos no desenvolvimento dos debates sobre o fenômeno edu-
cacional.
Este texto, além de inaugurar a apropriação do autor provocou a abertura dos estudos sobre o autor
na Faculdade de Educação USP, como pode relatar Aguiar (2010) sobre as leituras feitas, nesta instituição,
do referido autor, nos cursos de licenciatura e de pedagogia e, diretamente, influenciou a escrita de outro
texto identificado na categoria AC: A Língua Absolvida: uma especulação para a formação de professores
(1998), de Marilda da Silva, que informa em nota ser o artigo uma produção para a disciplina Docência,
Memória e Gênero, oferecida pelo programa de pós-graduação em educação da FEUSP.
O texto de Silva (1998, p. 51), informa a autora, não está dando continuidade ao texto de Denice
Catani (1990-1991), mas aproveitando alternativas apresentadas no referido artigo; e discrimina as repre-
sentações de professor no texto de Canetti (2010a) como proposições questionadoras dos valores impressos
em uma cultura didática (em linhas gerais o artigo pouco avança em relação ao de Catani, deixando vidente
no excesso de citações e em considerações que pouco se apartam das apresentadas em Pedagogia e Musei-
ficação, seu caráter pragmático de exercício didático de disciplina de pós-graduação que foi publicado).
Somente 19 anos após a publicação do texto de Denice Catani (1990-1991) é que teremos, em
Educação, outra apropriação de Elias Canetti, mais uma vez de A Língua Absolvida, oriunda de um de-
bate metodológico do qual emergirá uma reflexão sobre o uso da autobiografia como fonte para o estudo
histórico-educacional (OSINSKI, 2011).
No texto de Osinski não aparecem citações de Catani nem das fontes utilizadas por estas na elabo-
ração de seu artigo, há outras filiações teóricas – e mais recentes – que, no entanto, aproximam a autora
dos escritos desenvolvidos no campo da pesquisa (Auto)biográfica no país, como Benjamin (1994), Pollak
(1992), Frago (1999) dentre outros para o desenvolvimento das discussões sobre narrativa, memória e lite-
ratura (OSINSKI, 2011). Este trabalho propõe observar na autobiografia de Canetti seu processo formativo
como intelectual no início do século XX e de como estes processos são indissociáveis da vida do sujeito.
Nos três textos não há indicação de que as produções são fruto de estudos mais verticalizados sobre
nosso autor, como tese, dissertação ou monografia. Exceto Marilda da Silva (1998) que aponta sua inscri-
ção na produção final para uma disciplina de um curso de pós–graduação. Esta constatação nos informa da
precariedade dos, assim chamarei, estudos canettianos no campo da educação brasileira, que encontraram
vazão em produções pontuais nas últimas três décadas, com interregnos de quase dez anos entre suas entra-
das, o que poderia significar uma falta de interesse no estudo do autor de Auto-de-Fé, caso outros campos
não se interessassem também pelo complexo emaranhado, misto de memória, romance e ensaios que carac-
terizam a produção de Elias Canetti.
No campo dos Estudos Literários é preciso ressaltar o trabalho de divulgação do autor perpetrado
por Irene Aron (1994a; 1994b; 1995) junto à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Univer-
sidade de São Paulo (FFLCH/USP). A autora publica no início textos no formato de comunicação durante a
Semana de Literatura Alemã, Auto-de-Fé (1994b) e Elias Canetti: testemunho de um sobrevivente (1995),
textos que informam, respectivamente, sobre a importância da leitura do romance e da autobiografia de Ca-
netti, tratam-se mais de textos informativos que de análise, o que não é o caso de Elias Canetti: um destino
judaico (1994a), publicado pela Revista USP.
Neste artigo (1994a), ela oferece ao leitor importantes questões sobre a recepção canettiana na
Alemanha (e nos países de expressão germânica), na Inglaterra e Estados Unidos e no Brasil, reforçando a
representação de nosso autor como um personagem da diáspora judaica, exemplo de sujeito cosmopolita e
autor de expressão alemã (isso pode parecer estranho de se dizer de um autor de língua alemã, mas Canetti
demorou em ser reconhecido como autor de língua alemã justamente por seu trânsito transnacional como
exilado, apesar de identificá-lo como búlgaro, o fazemos mais por comodidade e por ser o país de seu nasci-
mento, do que por sua nacionalidade final, a de suíço, também, anoto, seria difícil inscrevê-lo como austro-
-búlgaro-britânico-helvécio, o que seria mais adequado). Identifico neste texto a mesma relevância para o
campo das letras que o trabalho de Catani (1990-1991) tem para a educação, ambos são textos fundacionais,
porém o impacto dos estudos de Aron (1994) não pode ser percebido através de citações em outros textos.
Há, ainda, no campo dos Estudos Literários, uma tese de doutoramento que faz uso extensivo de
dois livros de Canetti, em língua alemã, Die Gerettete Zunge (A Língua Absolvida) e Die Fackel im Ohr
(Uma Luz em Meu Ouvido), de Luis Sérgio Krausz (2006), que busca nos dois primeiros volumes da au-
tobiografia canettiana, ecos do modo de vida dos judeus alemães no final do século XIX e início do século
XX. Canetti é o principal informante do modus operandi da vida vienense da tese de Krausz (2006), no en-
tanto, como a tese se dedica a outro autor, Joseph Roth, as inserções dos livros canettianos citados aparecem
como elementos para se melhor compreendê-lo.
No caso de Canetti é perceber como seus textos ultrapassam a abordagem óbvia que teriam no cam-
po dos Estudos Literários e encontram caminhos e sentidos em outros campos de conhecimento, o que nos
diz alguma coisa sobre o caráter não fechado de seus textos e de sua liberdade, mas também da capacidade
criativa de nossos pesquisadores, que abordam de forma não ortodoxa a obra canettiana.
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EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
1
Ainda que nossas pesquisas tenham também essa perspectiva tridimensional que os autores defendem, não é a
ela que estamos nos referindo quando falamos de pesquisa narrativa em três dimensões, mas sim a três “lugares”
articulados da narrativa: nas fontes de dados, no registro da dissertação/tese e no modo de produzir
conhecimento.
hablamos de investigación biográfico-narrativa (lo que los alemanes llaman
pädagogische biographieforschung, los franceses l’approche biographique,
los anglosajones biographical research o narrative inquirí), y no de método
biográfico-narrativo, porque (…) entendemos que actualmente, más que una
estrategia metodológica (como, por ejemplo, la entrevista biográfica), ha
llegado a ser un enfoque propio o perspectiva especifica. (Bolívar,
Domingo, Fernández, 2001, p. 54)
A narrativa figura nesse tipo de pesquisa como fonte de dados, método e o uso
formativo (promover mudanças na própria prática e formação através da narrativa do sujeito)
que se pode fazer das narrativas (Connelly e Clandinin, 1995).
A grande aproximação metodológica e epistemológica que temos com esses autores,
que são nossas referências principais no campo da pesquisa narrativa, e a necessidade de
explicitar como procedemos, em razão das peculiaridades em relação ao que eles defendem,
resultaram na caracterização que passamos a fazer.
Nosso pressuposto é que as pesquisas podem ser narrativas em três “lugares” – nas
fontes de dados, no registro do percurso e no modo de produção de conhecimento – e o
modo que pesquisamos se caracteriza como experiência narrativa em todos eles, de forma
articulada. Isso significa uma ousada aventura de autoria, uma vez que o autor produz
narrativamente a pesquisa, de forma progressiva, e produz narrativamente o seu registro por
escrito, também ele fonte de dados que se constitui no percurso – em diálogo com as
narrativas que são as fontes de dados iniciais. E esta não é uma escolha fácil de administrar ao
longo da pesquisa, por várias razões. Se a coerência estética que buscamos entre fontes de
dados, registro e modo de produzir conhecimento, sempre narrativos, sugere facilidades
óbvias pela suposta ausência de contradições acentuadas, esta é uma conclusão enganosa. Se
por um lado é certo que a convergência das escolhas favorece uma articulação orgânica, de
modo que a escrita progressiva de uma narrativa do processo é recurso privilegiado para a
produção de conhecimento, por outro existe uma tensão permanente entre o registro em uma
forma narrativa e o gênero em questão – que, no caso, será sempre dissertação ou tese (ou
outro tipo de relatório de pesquisa acadêmica), ainda que registrados narrativamente.
Para compreender melhor os efeitos provocados por esta tensão é importante ter em
vista os tipos de pensamento que se realizam nos discursos manifestos nos textos escritos.
Bruner (2002) argumenta que há dois modos distintos e complementares de
pensamento: narrativo e lógico-científico (ou paradigmático). São modos diferentes de
funcionamento cognitivo que remetem a modos diferentes de se relacionar com a experiência
e com a realidade e, segundo entendemos, definem modos diferentes de organização do
discurso e do texto que lhe dá materialidade. Diz assim o autor:
O modo paradigmático se apoia em argumentos lógicos e funciona como
uma tentativa de preencher o ideal de um sistema formal de descrição e
explicação, que lança mão de procedimentos de caracterização ou
conceitualização e das operações pelas quais as categorias são estabelecidas,
instanciadas e relacionadas umas às outras para formar um sistema (...) Seu
domínio é definido não apenas por elementos observáveis aos quais suas
afirmações básicas se referem, mas também pelo conjunto de mundos
possíveis que podem ser gerados logicamente e testados contra os elementos
observáveis – ou seja, é conduzido por hipóteses fundamentadas. (p.13-14).
Esse é o modo de pensamento que comanda o discurso acadêmico, os gêneros que são
porta-vozes desse discurso predominante na academia e as formas textuais de registro das
pesquisas. Transgredir as formas de registro pressupõe, para o pesquisador, subverter os
modos de se relacionar com a sua experiência, com a realidade que é objeto de sua análise,
com o discurso predominante e com as formas canônicas de apresentação do texto final.
Pressupõe “pensar de outro modo”. E, se a perspectiva for de privilegiar formas narrativas de
registro, será preciso então privilegiar um modo narrativo de pensar.
Ainda conforme Bruner (2002),
O modo narrativo de pensamento trata de ações e intenções humanas ou
similares às humanas e das vicissitudes e consequências que marcam o seu
curso. Ele se esforça para colocar seus milagres atemporais nas
circunstâncias da experiência e localizar a experiência no tempo e no espaço.
(...) A história tem que construir dois panoramas simultaneamente. Um é o
panorama da ação, onde os constituintes são os argumentos da ação: agente,
intenção ou objetivo, situação, instrumento, algo que corresponde a uma
“gramática da história”. O outro é o panorama da consciência: o que os
envolvidos na ação sabem, pensam ou sentem ou não sabem, não pensam ou
não sentem. Os dois panoramas são essenciais e distintos... (p.14-15).
Das três dimensões narrativas a que nos referimos, a que consideramos menos
complexa – talvez também porque mais exercitada por pesquisadores de diferentes
abordagens, que têm, inclusive, deixado ótimas contribuições – é a das fontes de dados.
Depoimentos orais, histórias de vida e de ficção, memoriais, entre outros gêneros, há muito
são utilizados nas pesquisas em ciências humanas e é grande o repertório de trabalhos desse
tipo que podemos consultar.
Foi a mudança paradigmática – quando a noção de ciência positivista começou a ser
contestada, pois os referenciais teóricos e metodológicos das ciências naturais já não eram
vistos como meios para compreender as questões das ciências sociais – que possibilitou que
as memórias, as narrativas e as biografias e autobiografias ganhassem espaço e
reconhecimento como fontes de dados nas pesquisas. (Souza, 2007, pp. 61 e 62).
Ao discorrer sobre essa mudança no campo educacional, Rivas Flores (2009, pp. 26 e
27) enfatiza que parte do tempo que antes era destinado para buscar maneiras de orientar a
prática do professor passa a ser destinado a compreender o que ocorre dentro das escolas e
com as pessoas que ali estão. E essa ascensão de um paradigma compreensivo implicou, “para
a produção de conhecimento, a emergência de uma concepção científica mais acessível à
pluralidade do saber humano”, bem como reconheceu “a perspectiva da complexidade como
estruturante da existência do ser no mundo” (SOUZA, 2007, pp. 64 e 65). Pluralidade e
complexidade que passam a ganhar visibilidade quando os pesquisadores trazem para a
pesquisa a voz dos sujeitos; quando depoimentos e textos sobre si e sobre experiências vividas
tornam-se conjunto de informações de uma pesquisa; quando a singularidade é considerada.
Assim, os pesquisadores que trabalham com a narrativa como fonte de dados usam
desse recurso para compreender como os sujeitos da pesquisa vivenciaram determinada
experiência e como vão significando e ressignificando o vivido.
2
Embora a perspectiva teórico-metodológica desta pesquisa não coincida exatamente com a abordagem de pesquisa do/no
cotidiano, praticada por Nilda Alves e seu grupo, os movimentos metodológicos que a autora propõe são totalmente coerentes
com a perspectiva que adotamos.
processo estou chamando de virar de ponta cabeça. Para ampliar os
movimentos necessários, creio que o terceiro deles, incorporando a noção de
complexidade, vai exigir a ampliação do que é entendido como fonte e a
discussão sobre os modos de lidar com a diversidade, o diferente e o
heterogêneo. Creio poder chamar a esse movimento de beber em todas as
fontes. Por fim vou precisar assumir que para comunicar novas
preocupações, novos problemas, novos fatos e novos achados é
indispensável uma nova maneira de escrever, que remete a mudanças muito
profundas. A esse movimento talvez se pudesse chamar de narrar a vida e
literaturizar a ciência.
Esse movimento entre o social e o individual pressupõe que o eu vá até seus outros,
veja o mais possível o que o outro lhe mostra de si, e vice-versa, e com um excedente de visão
– possibilitado pelo outro, ou por si mesmo enquanto outro de si – “volte” com um olhar
ampliado, potencializado, mais abrangente.
O deslocamento no tempo – passado presente e futuro – e no território social e
individual é também um navegar em contexto: ao mesmo tempo em que age sobre o contexto,
o lugar em que se encontra, e o modifica, o pesquisador também é por ele modificado. Afinal,
“toda experiência genuína tem um lado ativo que, de algum modo, muda as condições
objetivas em que se passam as experiências” (DEWEY, 2010b, p. 40).
Em outras palavras, o pesquisador, suas experiências – de investigar e escrever – e o
contexto da pesquisa modificam ele próprio, as experiências que vão acontecendo e o
contexto, sempre dialeticamente, em todo o percurso. Por isso, ainda que se tenha “uma
questão a compreender” e um plano esboçado de navegação para tanto, nunca se saberá ao
certo o lugar de chegada até lá chegar. Nossa convicção é de que o exercício da reflexão por
escrito “no durante” potencializa substancialmente a tomada de consciência, e de decisões, o
que nem sempre ocorre quando o registro é realizado ao final, depois de desenvolvida a
pesquisa.
Esse tipo de escolha metodológica pressupõe não rotinizar os acontecimentos, não
naturalizá-los como óbvios, não atropelar a singularidade e não acreditar em uma verdade
única, geral, absoluta, tal como postula a ciência positivista. Podemos afirmar que na nossa
maneira de pesquisar, ao atribuir sentidos às relações, construímos verdades pravdas e não
istinas.
É um triste equívoco, herança do racionalismo, imaginar que a verdade
[pravda] só pode ser a verdade universal [istina] feita de momentos gerais, e
que, por consequência, a verdade [pravda] de uma situação consiste
exatamente no que está tem de reprodutível e constante, acreditando, além
disso, que o que é universal e idêntico (logicamente idêntico) é verdadeiro
por principio, enquanto a verdade individual é artística e irresponsável, isto
é, isola uma dada individualidade. (Bakhtin, 2010, p. 92)
Sim, de nossa perspectiva não existe “a” verdade, existem muitas verdades: cada um
constrói sua/s verdade/s a partir da realidade que vive, da experiência de viver, da história de
sua vida, dos sentidos que atribui às coisas, ao mundo, a si, ao outro. A partir da investigação
sobre o vivido, a perspectiva é compreender a experiência e, dessa maneira, extrair lições dos
acontecimentos, ao invés de buscar somente o que tem de reprodutível e constante a
experiência.
A pesquisa narrativa, tal como a realizamos, em três dimensões articuladas, implica
construir saberes e conhecimentos a partir das interpretações e compreensões possíveis no
percurso, a partir das ações que vão acontecendo. Não para propor verdades absolutas, pois
não está absolutamente em questão defender uma verdade única, mas para dar sentido às
múltiplas verdades existentes.
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EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
O objetivo principal deste trabalho é discutir a aptidão das canções de alto-falante em desnudar demandas
afetivas e performatizar conteúdos biográficos. Inicialmente, considera-se importante ressaltar o fato de a
música ter uma presença marcante no cotidiano da vida brasileira, de uma maneira muito particular, uma
vez que o seu uso mais forte “nunca foi estético-contemplativo”, mas sim “como um instrumento ambiental
articulado com outras práticas sociais, a religião, o trabalho e a festa”.2
No Brasil, até o início do século passado, a música era reproduzida e ouvida ao vivo, seja nas salas
de concertos e saraus domésticos, seja nas rodas marginais de sambas ou outras festividades. Com o
surgimento do alto-falante,3 muda-se de forma considerável a maneira de produzir e consumir música. A
escuta musical passa a ser mediada por esse meio tecnológico4 e a chamada indústria cultural se torna a
grande responsável pela consolidação da música como um “instrumento ambiental articulado com outras
práticas”, em especial a canção. Principalmente na primeira metade do século passado, o rádio assume a
produção e a divulgação de ídolos da música popular brasileira. Nos locais aonde as emissoras radiofônicas
não chegavam, os sistemas de alto-falantes,5 também chamados de rádios de postes, assumiam a mediação
da escuta, amparados nos princípios do rádio. Já a televisão só irá assumir esse papel na segunda metade do
século passado, principalmente nos anos da década de 1960, quando os festivais e os programas comandados
por cantores e cantoras de sucesso tornaram-se os carros-chefes na busca por audiências. Entre esses, estão
o Fino da Bossa, a Jovem Guarda e os festivais de música popular brasileira.6 Atualmente, outros formatos
1 Doutorando em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal da Bahia. A sua pesquisa tem como título: Encenações biográficas pelas canções populares.
2 In: WISNIK, 2004, p. 177.
3 Estamos nos referindo ao aparelho tecnológico que transforma um sinal elétrico em pressão sonora.
4 Essa ideia de “escuta mediada por alto-falantes” é retirada da discussão feita por Garcia (2004,
p.46), sobre as grandes transformações, tanto tecnológicas como perceptivas, ocorridas a partir da invenção
e do desenvolvimento de novos meios e instrumentos de reprodução, transmissão e produção de sons.
5 O termo “alto-falantes”, nesse ponto, refere-se ao serviço de comunicação com campo de recepção limitado, também
conhecido como “rádios comunitárias”, “rádios amplificadoras”, “rádios de poste” e “rádios populares”. (SOLON, 2006, p.18).
Segundo Uribe, os sistemas de alto-falantes são apenas um parente da radiodifusão, uma vez que amplificam os sons, mas elimi-
nam a fase do receptor. Podem ser fixos ou móveis. Os fixos são aqueles instalados em casas comerciais, centros comunitários,
igrejas, entre outros. Já os móveis são instalados em carros, bicicletas, carrinhos rodantes, etc. (URIBE, 2004, p.114-115).
6 Fino da Bossa, programa comandado por Elis Regina e apresentado na TV Record, buscava recu-
perar o “samba autêntico” e adequar a tradição da Bossa Nova ao contexto pós-golpe militar de 1964. “O
Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, era um programa de música
jovem e visava competir com o Fino da Bossa, ambos da mesma emissora. Na verdade, (...) visava “trans-
formar o pessoal da “música jovem” em ídolos nacionais, fabricar calças, camisas, chaveiros, bonecos,
bonés, brinquedos e tudo o mais que pudesse ser comercializado com a marca Jovem Guarda”. (MOTTA,
2009, p.91). Os festivais, conforme Caetano Veloso, era uma ideia “emprestada do Festival de San Remo,
na Itália, mas, no Brasil, (...) ganharia características diferentes – e um outro peso. Depois da bossa nova,
de alto-falantes chegaram para diversificar, mais ainda, o processo de mediação e ampliação da escuta da
canção. São eles: celulares, ipods, tablets, canais da internet, caixas de som portáteis, etc.
Se a indústria cultural contribuiu, de maneira significativa, para que a música popular adquirisse uma
posição hegemônica em nosso cenário artístico,7 a competência da canção brasileira em traduzir conteúdos
humanos relevantes e a sua capacidade de se renovar, bem como a sua forte articulação com o cotidiano,
são, também, questões a serem consideradas. Vejamos.
Ao pensar a música popular brasileira, José Miguel Wisnik argumenta que, por estar tão presente nas
festividades, nas brincadeiras, na religiosidade, no trabalho, a canção se tornou “algo que completa o lugar
de morar, o lugar de trabalhar, (...) papel de parede, pano de fundo, ponto de fuga, (...) uma espécie de
cenário, jardim portátil”.8 Junto a isso, ainda que de forma artesanal, foi se instituindo como meio construtor
de uma “identidade sonora” e/ou como “um modo de pensar”9 que, segundo o próprio autor, começa a ser
explicitado a partir da bossa nova, quando se estabelece um dos traços mais notáveis da nossa música: a
permeabilidade entre a chamada cultura alta e as produções populares.10 Essa mistura, ao invés de gerar um
mero ecletismo, vai forjar critérios que tornam a nossa música
(...) capaz de trabalhar com a simultaneidade e a diferença de um modo inerente à enunciação
da poesia cantada, com delicado e obstinado rigor, mesmo sob efeito consideravelmente
homogeneizador ou pulverizador das pressões de mercado. (WISNIK, 2004, p.215).
Portanto, o movimento bossanovista vai oferecer elementos musicais e poéticos para a fermentação
política e cultural dos anos de 1960, elementos esses que vão ajudar outras gerações, principalmente os
tropicalistas, a compreenderem e a se apropriarem da “lógica paradoxal ou complexamente contraditória,
que nos distinguia e ao mesmo tempo nos incluía no mundo”.11 Nesse sentido, Wisnik afirma ser possível
(...) postular que se constitui no Brasil, efetivamente, uma nova forma da Gaia Ciência!,
isto é, um saber poético-musical que implica uma refinada educação sentimental (...), mas,
também, uma “segunda e mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais ingênua
e cem vezes mais refinada da qual ela pudesse ter sido jamais” (a frase é de Nietzsche na
abertura de A Gaia Ciência). (WISNIK, 2004, p.218).
Potencializada pela incorporação de variadas fisionomias, ao longo do Século XX esse “organismo mutante”
– que é canto de trabalho, é brincadeira, é “jardim portátil” – é, também, meio para o pensamento fruir e
traduzir conteúdos relevantes. Quanto à identidade sonora, através dos seus compositores, arranjadores e
intérpretes, a canção brasileira vem possibilitando que a gente dessa parte extrema do Ocidente, pelo menos
passara-se a levar música popular muito a sério no Brasil”. (VELOSO, 1997, p. 122).
7 Naves destaca que, pelo menos em determinados momentos do século XX, a canção adquiriu certa posição hegemônica
no cenário musical brasileiro, “estatuto que lhe foi conferido pelo público e outras vezes pela crítica” (NAVES, 2010, p.7).
8 In: WISNIK, 2004, p.181.
9 Ibdem, p.215.
10 Maria Eneida de Souza ratifica o argumento de Wisnik, quando afirma: “O cuidado em inaugurar
uma linguagem inventiva e desprovida de chavões parnasianos ganha espaço na música a partir da bossa-
-nova”. (In: SOUZA, 2002, p.148).
11 Wisnik chama de “lógica paradoxal” a potência do contexto político e cultural dos anos 60. Para
ele, “a democracia e a ditadura militar, a modernização e o atraso, o desenvolvimentismo e a miséria, as
bases arcaicas da cultura colonizada e o processo de industrialização, a cultura de massa internacional e as
‘raízes’ nativas não podiam ser entendidas simplesmente como oposições dualistas, mas como integrantes
de uma lógica paradoxal ou complexamente contraditória, que nos distinguia e ao mesmo tempo nos incluía
no mundo”. (2004, p.216-217).
a que fala português, nela se reconheça e, até, se justifique, como destaca Caetano Veloso.12
Por esses motivos e outros que, possivelmente, não foram aqui comentados, as canções têm sido, no cenário
artístico brasileiro, o meio pelo qual nos reconhecemos e nos justificamos e, também, demonstramos a
nossa capacidade de acolher, assimilar, lembrar, pensar, registrar e transformar memórias, informações,
dados históricos, afetos e influências diversas. Talvez em razão dessa potência, a nossa música tenha caído
nas graças dos meios elétrico-industriais, que foram, e continuam sendo, fundamentais para a sua difusão
e, consequentemente, para a sua hegemonia no cenário musical brasileiro.
As canções de alto-falante
Em seu livro de crônicas, intitulado Solidão no fundo da agulha, Ignácio de Loyola Brandão conta que ao
entrar em um restaurante, na cidade de São Paulo, estremeceu e ficou paralisado quando ouviu uma música
que havia desaparecido em sua memória. Diz ele: “Eu tremia por dentro, as noites de domingo de quarenta
anos antes voltaram”.13 Diante desse impacto, o autor afirma que, naquele momento, o pianista que tocava
lhe entregara tudo o que nunca perdera. E conclui: “O tempo anda, mas, até o final, as músicas vão me
devolver momentos que desenham a trajetória de minha vida”.14 A música emblemática dos seus dezoito
anos era um clássico dos anos de 1950 que o escritor ouvia no alto-falante da sua cidade.
A história narrada por Ignácio de Loyola Brandão, certamente, ilustra bem a potência das canções de
alto-falante. Mas, o que são canções de alto-falante? Torna-se importante destacar que a imagem do alto-
falante vem sendo pensada por diversos compositores da música popular brasileira. Em Tropicália,15
Caetano Veloso pinta um quadro cheio de contrapontos, misturas e contrastes, onde a convivência criativa
entre paradoxos é a tônica. De um lado, esse quadro/canção apresenta “uma presentificação da realidade
brasileira (...) através de uma colagem criativa de eventos, citações, rótulos e insígnias do contexto”;16 do
outro, constitui a matriz estética do movimento tropicalista.17 Ao construir essas imagens fragmentadas e
ambíguas do Brasil, Caetano quebra dicotomias, entre elas a da música comercial e música letrada, a do
popular e erudito. Isso fica claro nos versos da canção: Emitem acordes dissonantes / pelos cinco mil alto-
falantes. O alto-falante, aqui, é apresentado como símbolo da cultura de massa. No entanto, é ele quem
emite os acordes dissonantes, marca da sofisticação bossanovista. Ou seja, a convivência criativa de dois
mundos supostamente opostos: o popular e o erudito, o comercial e o letrado.
Também outra voz baiana se deteve a pensar o alto-falante. Em Tu És o M.D.C. da Minha Vida,18 Raul Seixas,
semelhante a Caetano em Tropicália, constrói uma colagem criativa de um determinado contexto brasileiro e traz
a imagem do alto-falante, utilizando-se da mesma expressão cunhada pelo seu conterrâneo e colega,
imprimindo-lhe um sentido pop: É por isso, / Que de agora em diante / Pelos cinco mil alto-falantes / Eu
vou mandar berrar / O dia inteiro / Que você é: / O Meu Máximo Denominador Comum!
12 “A canção brasileira é uma entidade em que as pessoas que por acaso se encontraram nesta parte do extremo Ocidente
em que se fala português reconhecem-se, quase se justificam. Dorival Caymmi é um centro dessa entidade. O centro. Um polo.
Um ponto fora da circunferência. Ele e só ele pode ser tudo isso.” In: Sob o jugo da calma. VELOSO, 2014.
13 In: BRANDÃO, 2012, p.142.
14 Ibdem, p.143.
15 Autoria de Caetano Veloso, Tropicália é a primeira faixa do disco Caetano Veloso, 1968.
16 In: CAMPOS, 1978, p.163.
17 In: FAVARETO, 2000, p.63. O referido autor argumenta que a canção Trocipália se constitui matriz
estética do movimento tropicalista por pressupor um “projeto de intervenção cultural e um modo de cons-
trução que são de ruptura”, configurando “um painel histórico e resulta em metaforização do Brasil” (p.63).
18 Essa canção, autoria de Raul Seixas e Paulo Coelho, está no disco Novo Aeon – Philips/Universal
Music – 1975.
O tema é retomado, mais recentemente, por Zélia Ducan em sua canção Borboleta.19 Diz a letra: Música
que nem borboleta / sai do casulo do alto-falante / Do carrossel e da roda-gigante / pra que você e todo
mundo cante. Nesse caso, o alto-falante é meio que viabiliza uma ideia musical produzida por compositores,
arranjadores e intérpretes. É ele que possibilita a canção voar pra onde quer, pousar em quem quiser. As
questões do fazer e do consumir são, na referida canção, exaltadas: do casulo sai música de toda cor / De
acalanto, de baile de amor / De restaurante, de elevador, bem ao gosto do freguês. Com essa analogia, Zélia
Ducan retoma a imagem do alto-falante como símbolo da cultura de massa e da cultura pop, apresentada
nas canções dos dois baianos, reafirmando ser esse o meio responsável pela amplificação da mensagem
musical e para que essa nos invada, nos tome de assalto, nos faça refém.
Assim, ao romper o casulo do alto-falante, os acordes e palavras das canções voam livres e leves para
pousar nos silenciosos ouvidos, às vezes suavemente, outras, violentamente, fertilizando novas memórias,
novos imaginários. Ao nos invadir sem pedir licença, a canção parece impregnar-se em nossos corpos, pois
depois que entra não quer mais sair / quer repetir, repetir, repetir.
Tomando como referência as imagens criadas pelos três compositores, pode-se dizer que o alto-falante
produz uma estética própria.20 Ao coletivizar a recepção de uma diversidade de estilos sonoros e poéticos,
transgride a dicotomia do bom e do ruim, do erudito e do popular, da música comercial e da música letrada;
entretanto, como sistema que não permite ao receptor desligar ou mudar de canal, impõe um discurso.
Observa-se, assim, uma estética que abriga certa ambiguidade. Na condição de mediador,21 o “alto”-falante,
pela força da música, produz um estado de suspensão. Vale a pena destacar que a ideia de suspensão não
pode ser confundida com a de alienação, uma vez que aquela, diferente dessa última, “não negligencia a
realidade, não subtrai o poder de crítica e da visão. Pelo contrário, é um estado propício à leitura mais atenta
das ruas e das cidades”.22 De outro lado, apesar de romper a dicotomia do erudito-popular, de possibilitar uma
“escuta autônoma” e de produzir um estado de suspensão, o alto-falante tem algo de autoritário: a recepção
da sua programação é compulsória, impositiva. Nesse caso, arrisca-se dizer que não se trata, apenas, de um
“alto”, mas de um “auto”-falante.23 Reafirmando, a sua estética é caracterizada pela ambiguidade entre o
democrático e o autoritário.
Portanto, levando-se em consideração essa estética, não se pode compreender as canções de alto-falante,
apenas, como aquelas chamadas de “brega” ou algo parecido, nem, tampouco, aquelas que, deliberadamente,
colocamos para tocar em nossos aparelhos de som domésticos, com o intuito de nos deleitarmos. As canções
de alto-falante, aqui, devem ser entendidas como aquelas que saem do casulo (dos cinco mil alto-falantes)
e pousam em diversos ouvidos, sem que se tenha controle da sua recepção, desnudando uma demanda
19 Canção de autoria de Marcelo Jeneci e Zélia Ducan, gravada no DVD Pelo Sabor do Gesto em
Cena – Zélia Ducan.
20 Nesse caso, o termo “alto-falante” se refere, especialmente, à forma autônoma de expressão, ao
sistema de transmissão local de curto alcance, fixo ou móvel, usado com finalidades políticas, comerciais,
religiosas, sociais e culturais, conforme definição de Uribe (2004, p.114-116), apresentada, em nota de ro-
dapé, na primeira página.
21 Martin-Barbero (2009) afirma ser a comunicação, mais que meio, mediação. Garcia, referindo-se às formas de ampli-
ficação sonora, argumenta: “Se a mediação dos alto-falantes proporcionou o desenvolvimento de uma escuta altamente refinada
por parte das pessoas que lidam diretamente com a produção sonora, também é verdade que ela é responsável pela autonomia
adquirida pelos ouvintes no século XX e pela grande variedade de formas que essa escuta autônoma pode assumir”. (GARCIA,
2004, p.94).
22 LOPES, Cássia. A pequena leitora. Disponibilizado no site: <http://www.caramure.com.br/a-pequena-leitora/>. Aces-
sado em 13/01/2013.
23 “Auto”, prefixo com origem na palavra grega autos, remete a ideia de si mesmo, si próprio.
afetiva e reverberando nas histórias individuais e coletiva, independente da sua estrutura rítmica, melódica,
harmônica ou poética. A princípio, podem ser entendidas como mera manifestação artística, como forma de
entretenimento. Contudo, ajudam a guardar momentos, a divulgar dados culturais de uma sociedade, bem
como a configurar imaginários, uma vez que performatizam dados biográficos e trazem nas suas estruturas
uma espécie de armadilha que faz o indivíduo nela se prender ou engatar-se. Daí o impacto de Inácio
de Loyola Brandão ao ouvir, inesperadamente, uma canção que costumava tocar no alto-falante em sua
juventude.
Nara Leão afirmava ser a música de alto-falante algo capaz de dar às pessoas mais que divertimento e
deleite. Para a musa da bossa nova, “A canção popular pode ajudá-las a compreender melhor o mundo
onde vivem e a se identificar num nível mais alto de compreensão”.24 Por sua vez, Maria Rita Kehl, em
Antibiografia, ratifica o argumento da cantora carioca, ao demonstrar que as canções, trazidas pelo vento,
ou seja, pelo alto-falante, possibilitaram-lhe mais que entretenimento. Argumenta:
(...). As canções me salvaram de ficar fora do mundo. Estavam todas no ar, trazidas pelo vento
diretamente para minha memória musical. Respirei as canções, sonhei canções, entendi o
Brasil desde o primeiro samba, porque existem as canções. Vivi sempre a condição dessa
cidadania dupla, uma vida no chão, outra no plano das canções que recobrem o mundo ou,
pelo menos, o país em que nasci. As canções ampliaram o meu tempo, transcenderam o
presente e, numa gambiarra genial, juntaram um monte de pontas soltas desde antes de eu
nascer até... (KEHL, 2011, p.24).
Canção: lugar do “ego difuso”
Diante do exposto, pergunta: de onde vem esse poder da canção? Luiz Tatit argumenta que há um esforço
consciente do cancionista25 para que a mensagem da sua obra se torne mais acessível, chegue mais fácil.
A banda Skank evidencia esse esforço ao afirma que uma canção é feita prá acender o sol / no coração da
pessoa / (...) / Uma canção é prá trazer calor (...) / Prá consertar / Prá defender a cidadela / Prá celebrar /
Prá reunir bairro e favela... (...) / Prá clarear a escuridão (...) / Prá reunir o céu e a terra... 26 Já José Miguel
Wisnik afirma ser a canção a criadora do “lugar onde se embala o ego difuso, irradiado por todos os pontos e
intensidades da voz, como de um alguém que não está em nenhum lugar, ou num lugar ‘onde não há pecado
nem perdão’”.27 O autor acrescenta, ainda, ser a partir desse lugar que ela [a canção] absorve fragmentos do
momento histórico, gestos, imaginários, pulsões latentes e contradições.
Ademais, ao performatizar fragmentos biográficos a partir desse ego difuso, a canção possibilita ao ouvinte
ressignificar as suas histórias, suas identidades e suas memórias, ampliar o seu tempo, transcender o seu
presente e, assim, juntar pontas soltas. 28 Por esse ego está em um lugar “onde não há pecado nem perdão”,
a canção parece possuir a capacidade de fisgar o que, muitas vezes, a linguagem não consegue dizer,
Considera-se oportuno destacar que fazer espetáculos com a pretensão de contar a história do artista em
cena é, sem dúvida, um grande desafio. Entretanto, Carvalho ressalta que ao abrir as cortinas, ao sentir
o refletor no rosto e ao se entregar totalmente à experiência da arte, fica mais fácil compreender o que
Nietzsche chama de “miraculoso ato metafísico”.45 Portanto, para ilustrar o argumento de que as canções
são fontes de fragmentos biográficos, retira-se do espetáculo Mar Noturno,46 estreado em julho de 2003
na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, dois exemplos. O primeiro, o fragmento que envolve a canção
Coração Materno, de Vicente Celestino; o segundo, Baby, de Caetano Veloso.
Para finalizar, convém destacar que o caráter performático dos seus espetáculos sugere uma experiência de
criação e reencontro. Retomando Glusberg (2011), performance é o lugar do reencontro permanente e da
criação. “A performance cria, principalmente, ao resgatar o rejeitado e não ao explorar o desconhecido”.57
Ao fazer do palco um espaço biográfico, encenando subjetividades,58 bem como canções que trazem marcas
do que é rejeitado, dando-lhes outros sentidos, o artista imerge no ato de criar algo novo. Assim, esse
reencontro com o sensível, com o biográfico, seja do próprio protagonista ou do que está impregnado
nas canções, vai criar o elemento político do trabalho artístico de Silvio Carvalho: uma posição frente à
vida, permeada por questões éticas, estéticas e poéticas. Ou ainda, para os que se interessam pelo aspecto
pedagógico da sua arte, conforme palavras da professora Eliana Yunes, “uma prática de leitura ao vivo, se
preferirem”.59
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54 Frederico Coelho (2010, p.70-71), em texto sobre a referida canção, entende ser “Baby” alguém
que parece não saber o que está acontecendo ao seu redor e, por isso, é alertada por alguém exigente, sabe-
dor de que estamos vivendo em um mundo em plena convulsão e que exige mudança.
55 In: ROSSI, 2003, p.22.
56 Ibdem, p.66)
57 In: GLUSBERG, 2011, p.103.
58 Essas encenações de subjetividades não passam de biografemas. Para Barthes, biografemas são
alguns pormenores, alguns gostos, algumas inflexões, “cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de
qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro”. (BARTHES, 2005,
p.XVII).
59 Mensagem da Professora Eliana Yunes, enviada para Silvio Carvalho, por e-mail, após assistir
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Brasileira, 2010. (Coleção contemporânea: Filosofia, literatura e artes).
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia. Tradução: Heloisa da Graça Burati. São
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ROSSI, Deise Mirian. O amor na canção: uma leitura semiótica-psicanalítica. São Paulo: EDUC; Casa do
Psicólogo; Fapesp, 2003.
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Teresina de meados do século XX. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História
do Brasil da Universidade Federal do Piauí para obtenção do título de mestre em História do Brasil. UFPI,
2006.
SOUZA, Maria Eneida de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
TATTI, Luiz. O cancionista. 2.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena História da Música Popular: da modinha a lambada. 6.ed. São Paulo:
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VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
_______________. Letra só; Sobre as letras. Organização Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
_______________. Sob o jugo de sua calma. In: Jornal A Tarde, Salvador – Caderno B, p.9. Domingo,
23/04/2014.
Resumo: A metodologia qualitativa nos apresenta um potencial investigativo que nos impõe desdobramentos
conceituais e de valores, provocando outro respeito à pessoa que/da fala, o cuidado, o rigor com aquilo que
transcrevemos e apresentamos à comunidade acadêmica, ao mundo. Os estudos orais foi o esteio de um
trabalho de pesquisa de tese que teve como intuito apresentar uma possibilidade teórica de pensar o ciclo
de vida profissional de professores universitários, a partir de suas bases formativas e de trabalho. No intuito
de nos apropriarmos das narrativas dos colaboradores, a História Oral Temática chegou como potencial de
reconhecimento das histórias daqueles de quem falamos, de valorização do território de onde se fala, de
valorização dos autores que presenciaram e fizeram parte de uma história, de uma época, de um momento
histórico. Na construção deste trabalho de pesquisa, a narrativa de uma professora aposentada foi decisiva
na construção da história do Instituto de Biologia da Universidade Federal de Uberlândia, estado de Minas
Gerais/BR. As fotos, as imagens, os documentários colhidos de jornais, de revistas, as entrevistas que ela
guardava em seu acervo particular fizeram um composto com sua narrativa e outras fontes escritas das quais
nos valemos que nos apresentou uma história, até aquela presente data, desconhecida para a comunidade
acadêmica, para a história da instituição. No intuito de apresentarmos uma história sobre ciclo de vida
profissional, fomos abrigados a ajudar a registrar e construir outra história. A metodologia baseado nos
estudos (auto)biográficos potencializa questões em ato, em momento de ação no diálogo com o campo, com
os colaboradores, e promove outras aventuras de lembrar, de escrever, de narrar, de memorizar a história
contada por quem fez parte dela.
Palavra-Chave: Instituto de Biologia da Universidade Federal de Uberlândia; História Oral Temática;
Narrativa e Memória.
Introdução
É objetivo do texto é apresentar a potencialidade metodológica da memória e da narrativa oral
a partir de uma experiência de pesquisa para recompor a história do Instituto de Biologia (INBIO) da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e que nos levou a conhecer a memória de uma mulher, professora
aposentada, que viveu várias fases daquele Instituto como pessoa, estudante, professora, coordenadora de
curso, diretora, pesquisadora e que, em sua simplicidade, nos apresentou uma memória, um registro que
por sua vez anunciou outras tantas perspectivas de entender um pouco mais sobre aquele lugar que até
então estava registrado nos documentos institucionais de forma fragmentada e limitada aos registros legais,
resoluções e atos de criação institucionais.
Desta maneira, foi no âmbito da metodologia dos estudos orais que transitamos entre as histórias
apresentadas nas fontes escritas e buscamos nas fontes orais outros elementos que alimentou aquilo
que chamamos neste texto de potencialidade desse campo de estudo. Entendemos que a metodologia
qualitativa nos apresenta um potencial investigativo que nos impõe desdobramentos conceituais e de
valores, provocando outro respeito à pessoa que/da fala, o cuidado, o rigor com aquilo que transcrevemos
e apresentamos à comunidade acadêmica e ao mundo. E os estudos orais, além desses aspectos por nós
conhecidos, também nos apresenta a possibilidade de conhecer a memória daqueles que falam, em sua
intimidade, do esquecimento, de lembranças exacerbadas e que enriquecem a todos que partilham daquele
momento de aventurar-se a remontar aspectos da história de um lugar, de uma história singular/pluralizada/
singular que se traduz em um baú com fotos, imagens, recortes de jornais, textos datilografados, documentos
que marcaram um tempo, um modo de produzir, um modo de edificar “coisas”.
Os estudos orais foram o esteio de um trabalho de pesquisa de tese desenvolvida entre os anos
de 2007 e 2011 que teve como intuito apresentar uma possibilidade teórica de pensar o ciclo de vida
profissional de professores universitários, a partir de suas bases formativas e de trabalho. De lá para cá a
minha relação com este campo teórico tem sido intensificada todos os dias, em outros trabalhos de pesquisa
que me implicam cada vez mais com o respeito a oralidade e seus desdobramentos para o estudo das coisas
do mundo, da vida, de mim mesmo.
Naquela pesquisa, no intuito de nos apropriarmos das narrativas dos colaboradores, a História Oral
Temática chegou como potencial de reconhecimento das histórias daqueles de quem falamos, de valorização
do território de onde se fala, de valorização dos autores que presenciaram e fizeram parte de uma história,
de uma época, de um momento histórico.
A narrativa da professora aposentada, Ana Maria Coelho Carvalho, foi decisiva na construção da
história daquele instituto.
Nas linhas abaixo contamos a história do INBIO e ao mesmo tempo apresentamos a mixagem de
narrativas que foram sendo somadas para compor a história de um grupo, de uma instituição ao tempo em
que apresentamos a forma que a narrativa ganhou espaço no palco da escrita junto com as fontes escritas.
O estudo sobre memória, fontes orais, forma de transcrever as entrevistas, construir o texto e
elaborar as reflexões, foram cada vez mais desafiando o meu caminho para entender que entre eleger uma
metodologia para dar conta de uma pergunta de pesquisa e desdobrar em ação metodológica, quem pesquisa
e escreve sobre o que pesquisa, precisa desafiar a si mesmo.
Naquele momento em que me arvoro no campo da História Oral, a História Oral Temática/HOT,
Meihy (1995), me mobiliza pela sua propriedade de apresentar uma parte da história da vida de uma pessoa
ou de pessoas de um grupo. Isso só reforçou a opção feita por mim para caminhar, valorizando partes
da vida de pessoas que contracenaram com passagens da história da vida política/social/econômica da
realidade pesquisada.
Na escrita da história da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), umas das obrigações do trabalho
de tese, a história do INBIO também teria que aparecer de maneira rica, histórica, política, representadora
de uma forma de pensar a formação de professores, de biólogos da época até aquele momento presente em
que a pesquisa fora realizada. Afinal, as narrativas dos cinco professores eram também fruto de suas escritas
sobre si no fazer-se profissão professor de ensino superior público e federal.
Nos diálogos travados com os achados de livros institucionais e outros trabalhos de dissertações e
teses, conheci a professora (CARVALHO), que havia se aposentado há pouco tempo. Esta pessoa trilhou
por várias experiências junto ao que conhecemos hoje como INBIO e percebi naquela fonte um potencial
que poderia me ajudar a compor o cenário que as outras fontes de pesquisa trabalhavam e faziam também
a história e sua história junto àquele lugar.
Para colher seu depoimento, construímos um roteiro que foi dado para ela com alguns dias de
antecedência, a seu pedido, para que ela ajuntasse o material que precisaria para remontar sua memória.
Fato importante, uma vez que há muitas controvérsias nas pesquisas de abordagem qualitativa quanto a este
procedimento. Na ocasião apostamos que poderia ser muito útil a revitalização da memória. Percebemos
que a entrega de roteiros previamente, para este tipo de pesquisa, pode contribuir muito, uma vez que
concordando com Bosi (2004), a memória é um movimento de recomposição do vivido, de reestruturação
de ações presentes, refeitura de passagens pela história de acordo com suas experiências do presente.
Lembrar é uma ação coletiva, pois recontar a experiência vivida, no caso dessa professora, é trazer
para o presente as experiências que foram construídas e partilhadas entre vários sujeitos durante sua vida:
professores, alunos, colegas, pais, maridos, esposas, amigos, filhos e todo um grupo que influenciou na
constituição daquela memória sobre o fato: a história do INBIO.
E nessa trama de entregar roteiro antes e agendar o encontro, que se deu em sua casa, no seu escritório,
ela começou apresentando uma série de imagens, recortes de jornais locais e fotografias do INBIO, dos
primeiros cursos de especialização, da fundação do museu e biodiversidade da UFU, traduzindo-se assim
uma mixagem de informações, de histórias de um grupo, singularizada em uma pessoa.
Ao nos contar a história do INBIO ela nos oferece algumas afirmações que coadunam com
algumas já encontradas em outras fontes como a história da fundação a universidade, no qual nos aponta
que o percurso de federalização da UFU se deu pela agregação de cursos ora existentes na cidade de
Uberlândia. O curso de Ciências – Licenciatura Curta – como era chamado, foi um deles, nos aponta
Carvalho (2000, p.1), em um documento produzido por ela datilografado1 para ser lido em cerimônia
sobre o curso:
O primeiro vestibular para o curso de Ciências – Licenciatura Curta foi realizado em 1970. Em
1973, passou a oferecer a habilitação em Biologia, criando assim a Licenciatura Plena. Esse novo curso,
como afirma Barcelos (1991, p.23),
Na verdade o meu foco era Zoologia, principalmente nessa parte eu orientei interação abelha e planta, que fez
parte do meu mestrado, mas eu orientei também na parte de mamíferos, de aves. Até porque não tinha muitos
professores de Zoologia e tinham muitos alunos que gostavam da área de Zoologia, daí o professor tinha que
ser mais generalista nessa área.. E a gente acabava orientando. Eu orientei na parte de répteis... Teve uma
época que a professora Vera saiu, o orientando dela ficou sob minha responsabilidade.
Os ingressantes, por exemplo, eu comecei em 1970 e me formei em 1972. Depois em 1971, as aulas passaram
a ser ministradas um pouco na Universidade Federal, na Faculdade de Engenharia. Por exemplo, as aulas
práticas de Química, de Física eram feitas nos laboratórios da Engenharia.
Em 1976 é que o curso passou a ser ministrado só no Campus Umuarama. Os professores se deslocavam para
lá, apesar de algumas disciplinas continuarem no Campus Santa Mônica porque alguns laboratórios estavam
lá.
Em 1978 aconteceu a Federalização. Até então as aulas eram noturnas. Após a Federalização o curso passou
a ser integral – aula de manhã e à tarde. E acabaram as aulas pela noite. Vamos falar que foi um marco: de
noturno passou para diurno, e de particular passou para público. Nessa época tinha um núcleo comum, depois
o aluno escolhia se queria Ciências, Química ou Matemática. Tinha uma resolução que permitia.
Sendo assim, se antes a escolha da habilitação era feita posterior ao ingresso no curso, agora o aluno
fazia sua escolha antes de prestar vestibular. Em 1987 foi extinta a Licenciatura Curta, mantendo-se apenas
a formação do Licenciado Pleno em Ciências e Biologia, ambos com a duração de quatro anos.
Houve um movimento para desmembrar esse Departamento em quatro. Então, um desses Departamentos foi
o de Biociências.
Este Departamento foi a mãe do Instituto de Biologia. Congregava as Áreas de Ecologia, Botânica,
Zoologia, Educação. Voltando ao curso, a gente tinha um Curso de Licenciatura Curta, depois passamos para
Licenciatura Plena, depois surgiu o Bacharelado – outro marco em 1992, porque antes as disciplinas eram
todas mais para Educação. Tinha as disciplinas específicas da Área que eu falei e as disciplinas na Área de
Educação para formar o licenciado, mas os alunos sempre pediam e a gente via que tinha uma necessidade
de fazer uma pesquisa no curso.
Antes era só Ensino, depois começou a Extensão, vários professores faziam Extensão. Então as atividades
acadêmicas iam se agrupando através dessas áreas. Já houve uma divisão de áreas Ecologia, Botânica,
Zoologia, Educação. E a atividade de Extensão veio primeiro que a de Pesquisa. Depois começou a mesclar,
o Departamento de Biociências começou a aumentar, apareceram vários professores formados fora da
cidade. Já havia concurso, vinha gente do Brasil todo. Aí surgiram professores mais experientes com
a pesquisa. Eles começaram a incentivar, orientar aluno, Mesmo não tendo a pesquisa formal no curso, os
professores já incentivavam os alunos e foi aí que surgiram os grupos de pesquisa. E o incentivo por formar
o Bacharelado. Nessa época eu já era coordenadora do curso, em 1992. Fiquei na coordenação do curso por
oito anos.
Todo esse processo de fazer um currículo para a implantação do Bacharelado foi na minha gestão. A gente
estudou e até pensamos em instituir a Biomedicina. Mas depois, eu pesquisei em várias Universidades e a
gente viu que na verdade o Biólogo pode fazer tudo, basta dar um leque de disciplinas optativas, onde ele
pode escolher as disciplinas mais voltadas para a formação que ele quer. Sendo mais importante oferecer a
Licenciatura e o Bacharelado do que abrir mais o leque, por exemplo, para Biomedicina. Porque ele poderia
fazer estágios em laboratórios, cursar disciplinas optativas como Parasitologia II junto com a Medicina,
Farmacologia. Ele teria uma formação mais voltada para aquilo que ele queria ser depois. Então quando
se instituiu o Bacharelado, o instituto foi crescendo em números de professores, um pessoal com mais
responsabilidade e foi aparecendo como consequência natural a pesquisa, entre 1992 – 1996, até que em
1998 culminou com a implantação do mestrado em Ecologia e Conservação dos Recursos Naturais. Vamos
falar assim, o mestrado foi uma consequência natural do crescimento do curso. Os professores já tinham
mais formação voltada para pesquisa. Na época eu fazia parte dos Conselhos Superiores da Universidade
e fui eu até que relatei esse processo de criação do Mestrado e o processo de criação do Doutorado, que
também foi uma consequência do crescimento do Mestrado. O Doutorado foi criado em 2005, eu já
estava aposentada. [...]
Percebe-se com isso que, não fugindo à regra da organização universitária, o INBIO nasce com
uma vocação para o ensino destinada a formar o professor para atuar na educação básica. Posteriormente,
na medida em que o currículo do curso se modifica e que a profissão de biólogo se solidifica no mercado,
outra vocação aparece – a pesquisa, começando pela monografia de final de curso e se prolongando/
afirmando/consolidando no curso de mestrado e posteriormente no doutorado e pós-doutorado.
Hoje o INBIO está constituído por quatro áreas específicas de conhecimento: Zoologia, Botânica,
Ecologia e Educação em Ciências. O Mestrado e o Doutorado também já se constituem realidade do
Programa de Pós-Graduação na Área de Ecologia e Conservação de Recursos Naturais.
Além da formação Strictu Sensu, ele oferece cursos de Especialização em Orientação Sexual,
Ecologia e Meio Ambiente; Ensino de Ciências e Biologia – com ênfase em Educação Ambiental.
Assim, temos um instituto que cresceu sob os mesmos movimentos pelos quais tanto as
universidades de uma maneira geral, quanto a UFU em particular, cresceram – é a micro-realidade
dialogando com a macro-realidade, nos proporcionando pensar que as questões que envolvem a prática
docente do INBIO se constituem como possibilidades de entender como tais profissionais se organizaram
em suas áreas; em sua condição como docentes e aprendizes da profissão. É nesse movimento que de
fato se materializam ou até mesmo cristalizam imagens que construímos sobre a realidade e sobre o
nosso fazer diante dessa realidade.
Eu percebo o instituto, no contexto da UFU, bem estruturado, bem respeitado, até porque o simples
reconhecimento do curso de Ciências Biológicas entre um dos melhores do país é muito bom para o Instituto
de Biologia, porque ele é o Instituto “mãe” do curso. E isso se deve ao fato das disciplinas do curso serem
ministradas por ele... pelo Instituto. Quanto à pesquisa, ela está bem, os alunos pesquisam, os professores
pesquisam, mas também depende do grau de exigência.
Percebe-se com isso que, não fugindo à regra da organização universitária, o INBIO nasce com
uma vocação para o ensino destinada a formar o professor para atuar na educação básica. Posteriormente,
na medida em que o currículo do curso se modifica e que a profissão de biólogo se solidifica no mercado,
outra vocação aparece – a pesquisa, começando pela monografia de final de curso e se prolongando/
afirmando/consolidando no curso de mestrado e posteriormente no doutorado e pós-doutorado.
Hoje o INBIO está constituído por quatro áreas específicas de conhecimento: Zoologia, Botânica,
Ecologia e Educação em Ciências. O Mestrado e o Doutorado também já se constituem realidade do
Programa de Pós-Graduação na Área de Ecologia e Conservação de Recursos Naturais.
Além da formação Strictu Sensu, ele oferece cursos de Especialização em Orientação Sexual,
Ecologia e Meio Ambiente; Ensino de Ciências e Biologia – com ênfase em Educação Ambiental.
Assim, temos um instituto que cresceu sob os mesmos movimentos pelos quais tanto as
universidades de uma maneira geral, quanto a UFU em particular, cresceram – é a micro-realidade
dialogando com a macro-realidade, nos proporcionando pensar que as questões que envolvem a prática
docente do INBIO se constituem como possibilidades de entender como tais profissionais se organizaram
em suas áreas; em sua condição como docentes e aprendizes da profissão. É nesse movimento que de
fato se materializam ou até mesmo cristalizam imagens que construímos sobre a realidade e sobre o
nosso fazer diante dessa realidade.
Algumas defesas...
O potencial dos estudos orais é poder circunstanciar as leituras e as fontes para produzir um texto
com conteúdo que traduzam as histórias de pessoas, lugares, grupos.
No caso deste produto apresentado, no tópico acima, que foi o diálogo entre várias fontes para
produzir uma história do INBIO, é percebido que as fontes orais qualificam muito daquilo que lemos e nos
apropriamos na superficialidade permitida pelos textos resolutivos, legislações e etc. A história contada por
quem passou e fez a história de um lugar, e fez a sua história também, é anunciado por esta pesquisa como
algo necessário para ser resguardado nas tramas desse tipo de metodologia.
A mixagem, termo utilizado em linhas anteriores para falar da mistura de textos e linguagens, é uma
alternativa para fazer texto. Talvez se apenas fosse utilizado as fontes documentadas como a nossa única
base, o texto não teria nos fornecido vida na história do INBIO.
Com isso afirmamos que a metodologia baseado nos estudos (auto)biográficos potencializa questões em
ato, em momento de ação no diálogo com o campo, com os colaboradores, e promove outras aventuras de
lembrar, de escrever, de narrar, de memorizar a história contada por quem fez parte dela.
Referência
ALBERTI, V. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
BERTAUX, Daniel. El enfoque biográfico: su validez metodológica, sus potencialidades . Em
Proposiciones. Vol. 29. Santiago de Chile: Ediciones SUR, 1981. Disponível em: <http://www.sitiosur.cl/
publicacionescatalogodetalle.php?PID=3258 &doc=&lib= &rev=&art=&doc1=&vid=&autor=&coleccion
=&tipo=ALL&nunico =15000029>. Acesso em: 20 jan. 2007.
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CAVACO, M. H. Ser professor em Portugal. Lisboa: Editorial Teorema. 1993. (Coleção Terra Nostra).
CORREA, R. La aproximacion biográfica como uma opcion epistemológica, ética e metodológica. Em
Proposiciones. Vol. 29, Santiago do Chile: Ediciones SUR, 2001. Disponível em: <http://www.sitiosur.cl/
publicacionesdescarga.php?id=3260&nunico =15000029>. Acesso em: 27 jun. 2007.
DE GAULEJAC, V. Histórias de vida e sociologia clínica. Revista Temas Sociales. Santiago do Chile:
Ediciones SUR, v. 23, mayo, 1999. 1ª Edicion. Disponível em: <www.sitiosur.cl/publicaciones/Temas_
Sociales/TemasSociales023.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2006.
DELGADO, L. de A. N. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
FERREIRA, M. de M. História Oral: um inventário das diferenças. In. ______. (Org.) Entre-vistas: abor-
dagens e usos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1994. 172 p.
Fonte Oral
CARVALHO, A. C. Uberlândia. 25 de outubro de 2009.
1
1. INTRODUÇÃO
2. NARRATIVA
“eus” e o “outro”, não se nasce sujeito, se constitui um. O si mesmo é marcado pela fluidez,
por um passado, um presente e um futuro que se entremeiam (três tempos: Passado-presente;
presente-presente; futuro-presente) e se atualizam, uma vida em aberto, na qual o inesperado
faz parte e a (re)leitura é permitida. A autora afirma que “é impossível estar no mundo entre
os homens sem que a ação e o discurso estejam presentes” (p. 35).
humanidade, tais como na música, nas lendas, nas pinturas, nas conversações, etc. Para o
autor, ao narrar, o ser humano busca extrair o sentido da realidade.
Bruner (1997) enaltece o pensamento narrativo em contraposição ao pensamento
lógico matemático. Descreve a narrativa como uma forma de expressão do vivido com
significado próprio articulado com os significados socioculturais resultantes da interação do
sujeito com a realidade. Para este autor a narrativa tem uma “paisagem dual”, ou seja,
concomitantemente há registros do “Mundo real” e eventos fictícios, frutos de sua percepção
e imaginação. A narrativa faz a ponte entre o mundo canônico da cultura (exterior) e o mundo
os desejos, crenças e esperanças (interior). A autonarrativa tem como objetivo o alcance de
coerência, vivacidade e adequação interna e externa. Por vezes, este objetivo não é alcançado,
como por exemplo, no autoengano. Conteúdo e forma da narrativa são importantes e
inseparáveis, esta conexão é singular e marca o estilo do narrador. Membros de uma mesma
cultura compartilham alguns traços de estilo semelhantes os quais facilitam o diálogo e a
compreensão do sentido. Esta mesma característica levada ao extremo valida algumas
narrativas e as tornam narrativas oficiais comprometendo a capacidade crítica e criativa de
construção textual.
A Psicologia cultural de Bruner (1997) apresenta duas exigências ao se estudar a
narrativa, a primeira é que a interpretação de sentido deve considerar tanto os aspectos
individuais quanto os culturais (sócio-históricos); a segunda é que além de explorar os
significados, é preciso explorar também os usos práticos da narrativa. A quem serve, o que
provoca, que regras defende, a que ideal de homem se aplica? A pesquisa das autobiografias
se presta a estas análises, a ênfase não está no registro fiel, cópia da realidade (até porque é
impossível), mas na dinâmica, no que a pessoa pensou que fez, porque ela pensou que fazia
alguma coisa, em que situação ela pensou que estava, como ela descreve seu sentimento e
apreensões desta situação descrita. O autor revela que a narração não apenas relata, mas
justifica, há uma leitura contextual em todo texto produzido. Há um enredo, uma
sequencialidade, um conjunto de escolhas e a busca de justificar o anticanônico. Neste
processo há a possibilidade de um desvelamento, uma nova apropriação e consequentemente
um novo posicionamento no mundo.
3. PESQUISA NARRATIVA
recolocar o sujeito no centro das ciências humanas (CATANI, 1997) com destaque para as
áreas da Antropologia, Sociologia, História, Filosofia, Educação e Psicologia. No Brasil, este
movimento ganha força a partir da década de 90 (SILVA; MENDES, 2009). Na Educação,
campo fértil para este tipo de pesquisa, com grande contingente de produções, há o destaque
para a pesquisa junto ao professor, que coaduna a dimensão dupla, de investigação e formação
(SOUZA, 2006; CUNHA, 2009). Destaca-se nesta perspectiva o papel ativo do pesquisador
como ator e investigador de sua própria história.
Pineau (1999 apud SILVA; MENDES, 2009) distingue quatro categorias relacionadas
à (auto)biografia
envolve o individual e o coletivo” (SILVA; MENDES, 2009, p. 7). E quando a narração trata-
se de um estudo autobiográfico, como proceder? Que caminhos seguir? Que dificuldades
podem surgir e como enfrentá-las? O próximo item busca discutir estes tópicos.
4. PROCEDIMENTOS SUGERIDOS
5. FACILIDADES E OBSTÁCULOS
Nesta proposta, a investigação não procura saber o que aquele que participa
de uma pesquisa quis dizer em determinado dito; procura-se a vontade que
toma a palavra, e essa vontade encontra-se vinculada às vivências que
constituem cada um de nós. Ouvir a narrativa de uma história sobre a vida de
uma pessoa neste contexto, não é mera captação acústica, mas busca de
sentidos das vivências. Deste modo, todas as pessoas que participam da
pesquisa são ativas no processo. Procura-se a vida que pulsa nos textos, nos
discursos, nas produções e, principalmente “captar melhor o que quer essa
vida ouvida” (SILVA, MORAES, MONTEIRO, 2011, p. 2).
A otobiografia não consiste em análise psicológica, ela se importa com os sujeitos e
sua autoria (SILVA Jr.; MORAES; MONTEIRO, 2011). Não sugerimos reduzir a análise
autonarrativa à análise otobiográfica, mas pensá-la como um possível operador de leitura a ser
articulado, visto que ela busca o autor e este não se separa de sua obra.
Há o perigo de cair na tentação de explicações simplistas ou canônicas. Neste sentido,
o exercício da observação de segunda ordem, o olhar fluido (MARQUES, 2005) e a
indagação constante são fundamentais.
7. CONSIDERAÇÕES GERAIS
REFERÊNCIA
BELEI, R. A. GIMENIZ-PASCHOAL, S. R.; NASCIMENTO, E. N; MATSUMOTO, P. H.
V. R.. O uso de entrevista, observação e videogravação em pesquisa qualitativa. Cadernos de
Educação. FaE/PPGE/UFPel. Pelotas, v. 30, p.187-199, jan/jun, 2008. Disponível em
<http://www.periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/caduc/article/viewFile/1770/1645>.
Acesso em Dezembro de 2013.
BOSSLE, F.; MOLINA NETO, V. No “Olho do Furacão”: uma autoetnografia em uma escola
da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Revista Brasileira de Ciências do Esporte.
Campinas. V.31, n.1, p.131-146, setembro de 2009. Disponível em
file:///C:/Users/Val%C3%A9ria%20Marques/Downloads/639-1905-1-PB.pdf. Acesso em
Abril de 2014.
13
______. Otobiografia como escuta das vivências presentes nos escritos. Educação e pesquisa.
São Paulo, v.33, n.3, p.471-484, set/dez/2007. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/ep/v33n3/a06v33n3>. Acesso em Abril de 2014.
SILVA, T. P.. O que dizem os escritores sobre a definição do que se tem chamado de
autoficção. Palimpsesto. Revista da Pós Graduação de Letras. ISSN 1809-3507. Ano11. N.
14. 2012. Disponível em
<http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/num14/dossie/palimpsesto14dossie04.pdf>. Acesso
em Abril de 2014.
Nesse trabalho discutiremos as narrativas infantis sobre a violência na escola pública, focalizando a
pesquisa educacional realizada com as crianças, e não sobre a criança. Nesse estudo consideramos a criança
enquanto sujeito de direito, compreendendo a infância em sua completude e centralizando-a como ator|autor
de sua história. A intenção deste trabalho é legitimar as narrativas infantis como fonte de pesquisa.
O objetivo deste artigo consiste busca discutir/refletir sobre o que contam as crianças sobre as
experiências de violência na escola a partir dos resultados evidenciados na pesquisa de mestrado da autora
e do plano de trabalho investigado pela coautora enquanto bolsista de iniciação científica.
Esse artigo estar organizado em três momentos; na primeira parte abordaremos a aproximação com
o objeto de estudo e defenderemos a originalidade dessa pesquisa no campo da Educação, apresentando um
levantamento realizado no Banco de Dados da Capes sobre a quantidade e o perfil das pesquisas realizadas
com crianças na atualidade; no segundo momento, discorremos sobre os pressupostos teórico-metodológicos
da pesquisa e sua abordagem (auto)biográfica, compreendendo as narrativas como fonte de pesquisa; e no
terceiro e último tópico sistematizaremos e discutiremos os resultados obtidos na pesquisa com crianças
sobre suas experiências de violência na Escola Pública de Natal/RN.
Ouvir as crianças e validar suas narrativas como fonte de pesquisa, implica em repensar o lugar em
que as elas ocupam nas práticas educativas.
O reconhecimento da criança enquanto sujeito de direito, se insere na nova conjuntura universal que
entende a infância como uma categoria social, rodeada de valores e direitos, para isso a Convenção sobre
o Direito da Criança da UNESCO (2004) “garante a criança o direito de exprimir livremente sua opinião
sobre questões que lhe digam respeito e de ver essa opinião tomada em consideração. (p.10)”. Sobre esse
assunto o artigo 12, colabora afirmando que à criança “tem o direito de exprimir livremente a sua opinião
sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança
de acordo com sua idade e maturidade (p.10)”. Perante as instâncias da Lei, os direitos da infância estão
garantidos e assegurados. É influenciado por essa nova ótica social que passamos a considerar a criança
como o sujeito principal da nossa pesquisa, encontrando em suas narrativas a expressão maior de seu
pensamento e linguagem.
Podemos considerar que a utilização das narrativas como fonte de pesquisa educacional, desponta
como uma prática inovadora que legitima a fala da criança como um sujeito de direito, segundo o texto
original do Projeto Narrativas Infantis (2011):
[...] a narrativa é concebida como uma sequência singular de eventos, estados mentais,
ocorrências, envolvendo seres humanos como personagens da ação. Cada elemento
constitutivo da narrativa adquire sentido a partir do lugar que ele ocupa no enredo e essa
sucessão depende da intencionalidade do narrador em suas relações com quem o escuta ou
o lê. (Projeto Narrativas Infantis, 2011, p. 7)
1 O Projeto de Pesquisa “Narrativas infantis. O que contam as crianças sobre a escola da infância” é finan-
ciado pelo Edital de Ciências Humanas (MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 07/2011), desenvolvido por pesquisadores
de seis universidades do Brasil: UFRN, UFPE, UNICID, UNIFIESP, UFF e UFRR. A pesquisa integra um projeto
internacional desenvolvido na Universidade de Nantes, França.
Sobre a violência simbólica
Eu sei. Pra estudar, aprender e ser alguém na vida. Porque se a pessoa não estudar, ninguém
vai querer pra um trabalho. Porque se ninguém saber, num vai saber ajeitar nada, na vida.
E tem que vir pra escola pra aprender e arranjar um trabalho muito bom. (CRIANÇA
PESQUISADA, 2012)
Sobre a violência física:
O que eu menos gosto [na escola] é da violência. Porque se um menino tá brincando com
o outro, depois ele pensa que é de verdade e já começa a bater. Uma vez, um menino bateu
no meu nariz e ficou sangrando. (CRIANÇA PESQUISADA, 2012)
Sobre a violência discriminatória
Ela não tem amigos, porque o povo chama a irmã dela de mudinha, e ficam achando graça
dela. (CRIANÇA PESQUISADA, 2012)
Sim, as pessoas a chamam de mudinha e eu não gosto. Eu falo para elas que a minha mãe
não deixa chamar ela assim. Ela não gosta. Por isso eu não gosto das pessoas. (CRIANÇA
PESQUISADA, 2012)
Assim, a partir dessas narrativas espontâneas sobre a violência na escola, sentiu-se a necessidade de
se aprofundar os estudos e as pesquisas sobre as experiências das crianças com a violência institucionalizada.
Desse modo, iniciamos o estudo, enquanto Bolsista de Iniciação Científica (IC – UFRN) através do plano
de trabalho “Narrativas infantis. O que contam as crianças sobre a violência na escola da infância”. E
estamos aprofundando a temática, atualmente, na nossa pesquisa de mestrado.
A partir dessa experiência piloto, iniciamos uma nova coleta de dados em outra Escola Pública do
Município de Natal/RN. Nosso intuito, agora, busca compreender: De que modo à violência nas escolas é
narrada e internalizada pelas crianças? Como elas identificam as experiências de violência na escola?
O objetivo deste trabalho é analisar as significações construídas narrativamente por crianças de
06 a 12 anos, regulamente matriculadas na Escola da Rede Pública do Ensino Fundamental 1, acerca da
violência na escola e suas experiências.
Para alcançar esse objetivo, delineamos os objetivos específicos para nortearem a nossa pesquisa,
dentre eles, podemos destacar: A utilização das narrativas como fonte de pesquisa para identificar como as
crianças compreendem a escola; descrever de que modo às crianças narram sobre a violência; e identificar
como as crianças percebem e internalizam as experiências com violência na escola.
Caminhos da pesquisa
Para verificar a originalidade da pesquisa com crianças sobre violência na escola, e para compor o
Estado da Arte da dissertação de mestrado, iniciamos uma busca no Banco de Teses da Capes, pelo endereço
eletrônico http://bancodeteses.capes.gov.br/, no dia 08 de setembro de 2014, com a combinação de alguns
descritores e refinando a busca para a área da Educação. A data de busca da pesquisa selecionou Teses e
Dissertações publicadas entre o período de 2010 até hoje. Na primeira busca, optou-se por uma pesquisa
de caráter quantitativo, no descritor “narrativas” visualizamos 2.150 registros, envolvendo diferentes tipos
de narrativas (Narrativas de professores, de negros, de índios...), quando refinamos a busca para “narrativas
infantis” o número de registros diminuiu para 26 registros.
Partimos então para buscar dissertações e teses sobre a “violência escolar” localizamos 221 trabalhos
publicados, dos quais 80 registros situavam se na área da Educação. Com os descritores “violência, escola,
infância” apareceram 30 registros, entre eles podemos destacar: violência sexual, violência doméstica,
brincadeiras violentas, vulnerabilidade social, atuação da gestão escolar frente à violência, violência na
família, justiça na escola, políticas públicas sobre a violência, inclusão social, representação da violência
na escola, bullying, violência física, entre outros. Restringindo as buscas para área de conhecimento da
educação, aparece 5 registros.
Refinando mais um pouco a busca, para “narrativas, violência, escola” apareceu 11 registros.
Entre eles, apareceram diferentes categorias, como: violência familiar, discurso de professores sobre a
violência, violência contra a mulher, à opinião dos professores sobre o bullying na escola e resiliência na
prática docente. Partimos então para a busca “narrativas, criança, violência”, nessa pesquisa localizamos
7 trabalhos, porém, apenas 1 enfatiza a área de conhecimento da educação, e discorre sobre narrativas
silenciadas.
Este é o pequeno Alien, ele vem de outro planeta muito longe daqui. Vocês o conhecem?
No planeta onde ele mora não tem escolas como essa. Então, ele quer saber como é a
escola, para que ela serve. (Texto do Projeto Narrativas Infantis)
Cenários da pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida entre os meses de agosto a setembro de 2014 em uma Escola Municipal
de Ensino Fundamental I situada em uma região da periferia da Cidade de Natal/RN. Segundo o Projeto
Político Pedagógico (PPP) da escola, a criação do espaço educativo tinha por objetivo atender os moradores
de uma antiga favela, que foi estruturada e readequada a um conjunto habitacional na cidade. A escola, hoje,
atende cerca de 350 crianças distribuídas nos turnos matutino e vespertino, abrangendo de 1º ao 5º ano.
Ainda sobre o a localização da escola, de acordo com o PPP: Existem problemas antigos que afetam
a comunidade, como: a falta de segurança, o envolvimento dos jovens (homicídios violentos) com uso e
venda de drogas, além de participação e formação de gangues.
Durante nossa permanência na instituição, a fim de realizarmos a coleta de dados, fizemos uma
pesquisa etnossociológica a partir das discussões de Daniel Bertaux (2010), para ele “a utilização das
narrativas de vida se mostra aqui particularmente eficaz, pois essa forma de coleta de dados empíricos se
ajusta à formação das trajetórias” assim, buscamos compreender a realidade a social, histórico e cultural
para melhor estabelecer as relações com as narrativas das crianças.
Participaram das rodas de conversas 14 crianças, distribuídas na faixa etária de 8 a 11 anos. Foram
realizadas 4 rodas de conversas com a quantidade variando entre três ou quatro crianças por roda. Os
participantes foram, previamente, selecionados por sorteio e participaram da pesquisa espontaneamente.
O período de oficialização da pesquisa na escola correspondeu a pouco mais de um mês, tempo em que
obtivemos o termo de anuência da instituição e as assinaturas no Termo de Consentimento de Livre e
Esclarecido e do Uso de áudio da imagem, dos pais e responsáveis para seguir as exigências do Comitê de
Ética na Pesquisa com criança.
Quadro 2 – Participantes da pesquisa
As marcas da violência na sociedade vêm a cada dia a mais sendo mais divulgada e difundida
como algo rotineiro, e por que não dizer “banal”. Fala-se hoje sobre mortes, tiros e brigas como algo que
já é “comum” em certas localidades. As crianças narram espontaneamente sobre tiroteios, armas de fogo,
assassinatos, com toda a clareza dos fatos, parecem recontar as cenas como um jogo de ficção, mais com a
certeza de que os acontecimentos são verídicos.
Durante a realização da nossa pesquisa, ficamos a indagar: para onde foi à infância inocente de
nossas crianças? Em que momento, suas narrativas sobre a bala de doces da lanchonete foram substituídas
pelas balas do revólver? Hoje, as crianças parecem ser vítimas de um amadurecimento precoce da vida, e
da realidade em que estão inseridas.
Para compreendermos melhor sobre os tipo de violência que essas crianças estão sendo expostas,
trouxemos uma descrição do Conselho Nacional de Justiça. Segundo o Portal CNJ, uma das formas de
violência é a psicológica, de acordo com o portal,
A violência psicológica se constitui por uma ação ou omissão destinada a degradar ou
controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de outra pessoa por meio de
intimidação, manipulação, ameaça direta ou indireta, humilhação, isolamento ou qualquer
outra conduta que implique prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação ou ao
desenvolvimento pessoal. (Portal CNJ)
Apesar de todo o percurso de coletas de dados ter sido realizado na escola, as crianças quase que
não relataram cenas ou atitudes violentas no interior da escola. Para ela a escola é um lugar seguro. O medo
e a insegurança vêm quando a crianças começam a relatar sobre o entorno da escola, sobre a localidade em
que a escola está inserida.
Ei professora, aqui, aqui um dia teve uma guerra! [...] Lá perto da minha casa, [...], ai
parecia uma guerra, um “bucado” de policial contra um “bucado” de ladrão. Tinha até um
helicóptero assim... (Judson, 2014)
Isso é tiroteio. (Bruno, 2014)
Ai uma mulher levou um tiro na barriga, no peito e na barriga... (Rita, 2014)
Durante suas narrativas as crianças descrevem detalhes de como foi a briga, o tiroteio e até o
assassinato ocorrido na proximidade de seus lares. Elas até sorriem quando relatam determinadas cenas:
É... O carro preto passar e dar uma “12” na cabeça dela.[...] É o carro preto... ele desce e
mete bala... (Bernardo, 2014)
É assim: Coloca a arma na cabeça, pergunta se ele vai, ou se vai morrer? (Léo, 2014)
Eles vão lá na minha rua para bagunças... Já mataram mais de 5, só lá na rua... (Clara, 2014)
A violência do mundo real também permeia o mundo imaginário, quando as crianças estão
descrevendo como deve ser a escola para Alien, uma das primeiras recomendações é que a escola tenha
cerca elétrica, fique perto de um posto policial, tenha portões de ferro e principalmente um vigia armado,
como podemos perceber nesse dialogo sobre segurança na escola:
Na escola do Alien pode ter, também, um vigia armado com uma “12” na cintura e um
colete... É claro, para proteger os alunos! (Bernardo, 2014)
E se o vigia “dê a louca” e atirar nos alunos? [Pergunta olhando para Bernardo] (Lara,
2014)
Ai, eu pego um “25” e” meto” na cabeça dele... (Bernardo, 2014)
diálogo fica evidente o jogo simbólico que Bernardo estabelece com o Alien, primeiro ele se distancia
e explica como deve ser o vigia da escola. Mas, quando problematizado por Lara, sobre o perigo de ter uma
arma na escola, Bernardo sai do mundo fictício (o Planeta do Alien) e volta ao mundo real, se colocando
como justiceiro do acontecimento.
Violência simbólica
Para o Alien estudar aqui ele tem que tirar as assas
dele porque senão vão estranhar... (Lara, 2014)
Em contrapartida a violência externa a escola, estar à violência simbólica que se inscreve nas relações
de poder e na forma de dominação de quem tem o poder para quem não o detém. Segundo L’Apiccirela
(2003), o conceito de violência simbólica foi criado pelo pensador francês Pierre Bourdieu para descrever o
processo pelo qual a classe que domina economicamente impõe sua cultura aos dominados. Para ela,
Bourdieu, juntamente com o sociólogo Jean-Claude Passeron, partem do princípio de que
a cultura, ou o sistema simbólico, é arbitrária, uma vez que não se assenta numa realidade
dada como natural. O sistema simbólico de uma determinada cultura é uma construção
social e sua manutenção é fundamental para a perpetuação de uma determinada sociedade,
através da interiorização da cultura por todos os membros da mesma. A violência simbólica
expressa-se na imposição “legítima” e dissimulada, com a interiorização da cultura
dominante, reproduzindo as relações do mundo do trabalho. O dominado não se opõe ao
seu opressor, já que não se percebe como vítima deste processo: ao contrário, o oprimido
considera a situação natural e inevitável. (L’APICCIRELA, 2003)
Uma das formas de violência simbólica é quando a criança justifica o motivo de estudar. Para Passegi e
Abrahao (20012, p.12) “[a criança] justifica a sua ida a escola com o discurso herdado do projeto de si: ‘para
ser alguém na vida’”. Percebe-se que essa afirmativa não é propriedade do discurso infantil, contudo esse
ensinamento foi internalizado socialmente e (re)significado na criança.
A pessoa vem para a escola para aprender a ler, se formar e ser alguma coisa na vida... Pra
brincar também... (Luisa, 2014)
Luisa primeiro narra aquilo que os adultos falam e explicam para ela, justificando que estuda para
ser algum na vida, mas depois de um pouco pensar, ela completa: Pra brincar também! A escola para a
criança é um espaço democrático, de socialização, de estudo e de brincadeira, trazer a responsabilidade de
torna ló o grande responsável pela ascensão social da criança, se constitui como uma forma de violência
simbólica.
Em outro momento da narrativa, a criança explica que o Alien não pode usar assas na escola porque
vão estranhar, na sua interpretação, ele precisa usar a farda e retirar as assas para ficar igual a todas as
crianças.
Para o Alien estudar aqui ele tem que tirar as assas dele, lá no planeta dele ele pode estudar
de assas, mas aqui não, porque se não vão estranhar... (Lara, 2014)
Por fim, identificamos mais uma forma de violência simbólica, porém essa se caracterizou no âmbito
econômico. A criança relata que quanto mais “roupas de marca” ele tiver, mais ele vai ser notório na escola.
O que o Alien precisa fazer para “se dar bem” na escola? (Pesquisadora)
Ser obediente.... escutar a explicação (do professor) E estudar em casa. (Lara, 2014)
Usar roupa de marca... No 1º ano eu já tentei... e deu certo! (Bernardo, 2014)
Você usou roupas de marca e tirou boas notas? (Pesquisadora)
Não... Boas notas, não.... Mas eu fiquei popular, por alguns dias... (Bernardo, 2014)
Para Bernardo, o conceito de “se dar bem” na escola perpassa os conhecimentos científicos do
ensino, e em oposição a Lara, também não entende a obediência ao professor como um fator primordial
para ter êxito na escola. Para ele o que mais importante é ser popular. Ao fazer essa narrativa, ele ficou
pensativo e sorriu ao lembrar-se do quanto foi popular no 1º ano. Os resultados da pesquisa evidenciaram
que as consequências da violência são duradouras e refletem no comportamento e no emocional dos alunos.
As crianças identificam diversas formas de agressão como formas de violência psicológica que implicam
no desenvolvimento psicossocial. A partir dessas discussões, esperamos ter chamado a atenção para os
diversos efeitos da violência provocados na subjetividade e na formação de personalidade das crianças.
(In)Conclusão
Tentamos estabelecer nessa pesquisa, um diálogo democrático e coerente. Deixamos as crianças
falar espontaneamente sobre a escola, família e sobre a comunidade em que estão inseridas. Para a nossa
alegria enquanto pesquisadoras, elas estavam prontas para falar, para narrar, para conversas... Ter alguém
para ouvi-las, mesmo que fosse um Alien, trouxe a elas um contentamento por reconhecer que são capazes
de refletir e de contar sobre a escola. Buscamos ouvi-las e compreende-las como vítimas de um antigo
problema social. Para Bazílio e Kramer (2006) a discussão da violência remete a desigualdade e a exclusão
como questões centrais, atuais e de difícil enfrentamento. (p.110) Concluímos que as narrativas infantis nos
permitem um novo entendimento sobre a infância e sobre as escolas da infância, entendendo que a violência
institucionalizada subtrai da criança o direito a educação.
Referências
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Cortez, 2006.
BOGDAN, R. C.; BILKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos
métodos. Porto: Porto, 2003.
PASSEGGI, Maria da Conceição.; ABRAHAO, Maria Helena Menna-Barreto. Reabrir o passado, inventar
o devir: a inenarrável condição biográfica do ser. In PASSEGGI, M. C.; ABRAHAO. M. H. M. B. (orgs.).
Dimensões epistemológicas e metodológicas da pesquisa (auto)biográfica – T. II. Porto Alegre: EDIPUCRS;
Natal: EDUFRN, 2012.
PASSEGGI, Maria da Conceição. ROCHA, Simone Maria da. A pesquisa educacional com crianças:
um estudo a partir de suas narrativas sobre o acolhimento em ambiente hospitalar. Revista Educação em
Questão. v. 44, n.30. 2012.
PASSEGGI, Maria da Conceição. FURLANETTO, Ecleide Cunico. CONTI. Luciane De. CHAVES
Iduina Edite Mont’Alverne Braun. GOMES, Marineide de Oliveira. GABRIEL, Gilvete Lima. ROCHA,
Simone Maria da. Narrativas de crianças sobre as escolas da infância: cenários e desafios da pesquisa (auto)
biográfica educação | Revista Educação Especial. Universidade Federal de Santa Maria. v. 39 . n. 1. p. 85-
104. jan./abri. 2014.
PROJETO DE PESQUISA. Narrativas Infantis. O que contam as crianças sobre as escolas da infância?
Edital de Ciências Humana [CNPq/CAPES 07/2011-2, Processo nº 401519/2011-2]. 2011.
PIGATTO, Naime. A docência e a violência estudantil no contexto atual. Ensaio: aval.pol.públ.Educ., Jun
2010, vol.18, no.67, p.303-324. ISSN 0104-4036.
SILVA, Juliana Pereira da. BARBOSA, Silvia Neli Falcão. KRAMER, Sonia. Questões teórico-
metodológicas da pesquisa com crianças. In: CRUZ, Silvia Helena Vieira. (Org.). A criança fala: a escuta
de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, p. 79 – 101. 2008.
UNICEF. A Convenção sobre o Direito das Crianças. Para todas as crianças saúde, Educação, Igualdade
Protecção. Adaptada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por
Portugal em 21 de Setembro de 1990. 2004. Disponível em: <https://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/
convencao_direitos_crianca2004.pdf> Acesso em: 01 set. 2014.
Resumo:
No Brasil o memorial acadêmico é um relato crítico da trajetória cultural e intelectual de um docente
universitário, exigido em concurso públicos de progressão de carreira, que remonta ao Exposé des titres
et travaux scientifiques, característico da carreira acadêmica francesa. Trata-se de uma manifestação
privilegiada da escrita autobiográfica em tal carreira profissional, em uma narrativa na qual se mesclam as
trajetórias pessoal e intelectual, caracterizando como um dos raros momentos no qual apresenta-se como
legítima a fala do intelectual sobre si mesmo. A partir da análise de alguns memoriais de concursos públicos
da USP, entre 2000 e 2012, buscamos discutir como estes se estruturam como um espaço de afirmações e
negações, do que se lembra e do que se esquece, do que se mostra e do que se omite, e mesmo que seu autor-
narrador possa imaginar-se como representante de interesses de classe, ator estratégico, figura do habitus,
ator racional, ser histórico ou agente socializado, entre outras possibilidades, está vinculado à relações
particulares com seu tempo e espaço de forma que sua narrativa não são simplesmente atos de resgate,
mas de reconstrução do passado. No texto o autor-narrador reorganiza as instâncias dicotômicas sujeito-
objeto através da inclusão explícita de sua persona como foco de análise, na qual ao mesmo tempo em que
o sujeito produz uma manifestação discursiva em que se coloca em relação consigo mesmo esta é mediada
pelas exigências de contratualidade, ou seja, as expectativas de um discurso em primeira pessoa como relato
crítico de sua trajetória cultural e intelectual, assim como de suas expectativas profissionais e acadêmicas.
Uma das riquezas do material é identificar a forma como as determinações e configurações normativas do
discurso acadêmico-científico se relacionam com a multiplicidade de identidades e referências que se criam
no espaço entre o vivido, o lembrado e o narrado.
RESUMO: Este trabalho faz parte de um projeto de extensão do Instituto Federal Baiano (IF Baiano),
campus Senhor do Bonfim, tendo como contexto de atuação a Licenciatura em Ciências da Computação.
Ao considerar as narrativas (auto)biográficas como elementos constituintes de um forte indicador formativo
docente, propomos em 2013 um projeto que apresentasse à comunidade acadêmica local as narrativas e as
experiências de vida como uma possibilidade formativa na licenciatura, proporcionando aos futuros docentes
a experiência de rememorar o passado, no intuito de contribuir para a compreensão da constituição do eu
profissional-emocional e para o (re)conhecimento de si e da importância da subjetividade nos processos de
formação. Os objetivos do projeto embasaram a questão investigativa deste trabalho: em quais aspectos é
possível entender a formação docente, assumindo a importância da subjetividade, explicitada nas produções
escritas nos diários digitais. Na busca de possíveis respostas realizamos encontros formativos com os
sujeitos selecionados para expor o projeto, seus objetivos e a metodologia. Utilizamos o computador e o que
chamamos de diário digital, para estabelecer espaços de escritas em torno da prática docente possibilitada
pelo estágio e pelo Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), momentos em que os
sujeitos atuam na docência específica da computação na Educação Básica. Dialogando com a perspectiva
das Experiências de Vida e Formação de Josso (2010) e com a Análise Textual Discursiva de Moraes &
Galiazzi (2007), analisamos as escritas dos sujeitos, tendo como método a categorização por recorrência.
Estes diálogos, nos permitiram, de forma inicial, inferir a apresentação de concepção de formação que os
sujeitos apontam por meio da escrita de si e a confirmação da importância das narrativas (auto)biográficas
nos processos de formação para a docência nos diários digitais.
A narrativa acima apresenta o contexto embrionário para o projeto de extensão que deu origem a este
artigo, partindo da condição de, através de edital próprio do IF Baiano, ter início, no âmbito da Graduação,
o contato acadêmico dos licenciandos com a pesquisa narrativa como uma possibilidade de formação
docente, associando o uso de recursos tecnológicos como interface de diálogos de si, para si e para/com o
outro. Para esse projeto, contamos com a colaboração de quatro estudantes da Licenciatura em Ciências da
Computação e participantes do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID).
Este trabalho tem o objetivo de analisar e discutir, em quais aspectos é possível entender a formação
docente, assumindo a subjetividade, tão explicitada nas produções escritas pelos sujeitos participantes da
pesquisa, através do uso das narrativas autobiográficas nos processos de formação para docência.
Aos participantes foi apresentada a proposta de trabalho, que contemplaria um espaço intitulado
de “diálogos formativos”, onde apresentaríamos o tema do projeto, seu objeto de trabalho, e os
encaminhamentos para a operacionalização do projeto. Num primeiro momento, ofertamos um curso a
respeito de Pesquisa Narrativa, tendo como convidada uma professora que havia realizado um estudo, sob
orientação do coordenador do projeto, sobre as narrativas de vida de professores em formação continuada.
Nos diálogos formativos que se seguiram propomos aos sujeitos que escrevessem narrativas de si que
dialogassem desde a infância, passando pelo processo de alfabetização, vivência escolar, a escolha do
magistério e a visão do futuro professor da licenciatura em Ciências da Computação. Para isso, utilizamos o
computador e o que chamamos de “diário digital”1, para estabelecer espaços de escritas em torno da prática
docente possibilitada pelo estágio e pelo PIBID, momentos em que os sujeitos atuam na docência específica
da computação na Educação Básica.
A seguir, buscamos, apresentar algumas narrativas e dialogar com as mesmas, costurando a proposta,
o caminho e as relações de análises possíveis, respaldadas nos teóricos que embasam nosso texto. Para
isso, devido ao espaço próprio para a produção, fizemos um recorte do que é possível aqui tratarmos e
intitulamos a seção “Encontrando Riquezas Formativas”, onde analisamos a compreensão em torno da
constituição docente dos colaboradores, considerando a importância da subjetividade impressa nas escritas
de si dos licenciandos.
É ancorando-nos, na Análise Textual Discursiva, com Moraes e Galiazzi (2007) que iniciamos a
análise das narrativas de cada sujeito para chegar aos objetivos desse estudo, que perpassa pela proposta das
narrativas formativas. Nesta perspectiva, os sujeitos, ao contarem sobre o que viveram estão se reafirmando,
e nós, enquanto pesquisadores temos a tarefa de nos situar no tempo, confrontando-nos no passado, presente
e futuro para tentar compreender tais histórias e atribuir sentidos que dialoguem com nossa pretensão de
discutir em quais aspectos é possível compreender a formação docente, considerando aquelas histórias
contadas, pois ao contar essas histórias nos reapropriamos de propostas de vida e formação que sustentam
tais histórias.
Todos os sujeitos deste estudo carregam consigo uma bagagem de conhecimentos, saberes,
influências que afirmam a importância de se considerar a subjetividade de cada um nos processos de
1 Criamos uma conta de e-mail para o qual os sujeitos encaminharam suas escritas, ao que chamamos
de “diário digital”.
formação. Somando suas bagagens às experiências da formação docente “academizada”, percebem que
tais trajetórias culminarão num perfil docente constituído não somente na academia, mas num processo
de vivências e experiências ao longo da vida, pois todos nós somos produto das inúmeras interações,
experiências, vivências e situações com as quais nos deparamos no percurso de nossas vidas. É com base
nisso que apresentamos a experiência de Valéria, um dos 4(quatro) participantes desta pesquisa, apresentada
nos diários digitais constituídos quando do início do processo.
Valéria percebe a importância das narrativas de si no processo de formação docente ao descrever sua
trajetória estudantil e reconhece que ensinar é algo intrínseco em sua identidade. Seus pais a incentivavam
a estudar, todavia deles nunca recebeu incentivo financeiro para continuar seus estudos. Ela conta com
pesar sobre isto, mas buscava alternativas para superar o que entendia como um percalço através das aulas
de reforço que ministrava desde muito cedo. Altamente crítica, Valéria fala também em sua narrativa sobre
a relação escola-professor-aluno no contexto de suas experiências, mas um ponto evidente em toda sua
produção é sua estreita relação com a docência.
O percurso profissional de constituição docente, para ela, estava entranhado em suas histórias de
vida, vividas e narradas, com um tom de apropriação da docência como sua experiência de vida. Segundo
Angelim (2010), os licenciandos, em formação inicial, já trazem em sua bagagem um grande repertório
docente, quando conseguem, reconstruir as práticas daqueles que foram seus professores e as apresentam
com uma significação sua, nas práticas cotidianas, sejam com seus colegas de classe, seja com familiares
ou ainda com vizinhos que solicitavam seus serviços de dadora de aula.
Percebe-se neste relato que a constituição docente se dá antes mesmo do indivíduo chegar à
universidade. Esta constituição nos permite entender que cada indivíduo levará consigo para sua atuação
em sala de aula algo exclusivamente seu. Mesmo que tantos outros tenham aprendido as mesmas técnicas
e métodos de ensino. Cada um será a soma de seus valores, sentimentos, crenças, costumes e de suas
experiências vivenciadas (JOSSO, 2010). Reconhecemos o quão profundo e inquietante é o exercício de
viajarmos em nós mesmos e nos percebermos enquanto sujeitos em constante formação. A esse respeito,
Clandinin e Connely (2011, p. 107), afirmam que.
Ao compormos nossas narrativas, nos movemos no espaço tridimensional, relembramos
histórias passadas que influenciam nossas perspectivas presentes através de um movimento
flexível, que considera o subjetivo e o social e que os situam em um dado contexto.
Falar sobre si próprios lhes permitiu fazer este movimento. De um lugar no presente, movidos por
uma circunstância, voltaram ao passado revivendo momentos importantes em suas vidas. Momentos estes
que contribuíram para estarem na posição em que se encontravam enquanto escreviam. Ou seja, olharam
para eles mesmos com um olhar diferente de quando estavam vivendo a experiência narrada, porém
conscientes de que foram as inúmeras experiências vivenciadas que os fizeram olhar para si desta maneira.
Analisar a constituição docente por esta lógica nos permite compreender a dimensão da importância da
subjetividade neste processo.
Parada Provisória
Considerando os objetivos desta investigação e os caminhos que tomamos para dela desenharmos os
ecos orientadores pertinentes à intenção, conseguimos apontar, de forma preliminar, algumas circunstâncias
que afirmam a importância da subjetividade nos processos de formação docente. Evidenciamos que o contato
com as narrativas autobiográficas possibilitou que os licenciandos sujeitos da pesquisa se reafirmassem,
aqui na pessoa de Valéria, à medida que escreviam sobre suas experiências. Quando se dispuseram a realizar
o exercício de rememorar o passado, no intuito de contribuir para a compreensão do seu eu profissional-
emocional, estavam ao mesmo tempo caminhando para o (re)conhecimento de si mesmos, e construindo
um perfil de formação docente implícito em sua vida cotidiana.
Pudemos concluir que por meio deste contato foi possível compreender melhor o caminho por
eles percorrido até o momento de suas escritas. Neste sentido, tais sujeitos desestabilizam a ideia de que
a formação ocorre somente em espaços e mecanismos formais de educação. Perceberam, no exercício
de refletir sobre suas narrativas, que a formação ocorre integralmente à medida que vivemos, que nos
relacionamos com a família, com a escola, nas relações de amizade e com a religião que professamos.
Referências Bibliográficas
JOSSO, M. C. A experiência de vida e formação. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010.
Resumo
Este trabalho apresenta o relato de uma experiência formadora vivenciada pelas autoras na
segunda etapa de uma pesquisa que tem por objetivo investigar as representações sociais de
professores sobre o trabalho que desenvolvem em Centros de Educação Tecnológica e
Profissionalizante (CETEPs) do Estado do Rio de Janeiro. Os sujeitos da pesquisa são
ministrantes de cursos de curta duração, que ensinam o ofício, mas não tiveram formação
específica para o magistério. São cabeleireiros, manicures, costureiras, instrutores de
informática e outros. A etapa da pesquisa abordada diz respeito às entrevistas/conversas com
professores do CETEP Teresópolis e mobilizaram as seguintes questões: Quanto à formação,
o que esta experiência proporcionou às pesquisadoras? Quem eram/são as autoras depois das
escutas das narrativas dos profissionais do CETEP? O que aquelas narrativas lhes ensinaram?
Adotamos como abordagem teórico-metodológica as narrativas de vida, como relatos de
experiências formadoras que foram construídas ao longo da vida e exercem dupla função: um
meio de investigação e um instrumento pedagógico da formação. Nesse sentido, destacamos o
entrelaçamento entre memória, narrativa e experiência, pois acreditamos que as experiências
tecidas ao longo da vida são mobilizadas pela memória e ressignificadas na narração. Os
resultados apontam para a reafirmação da relevância do olhar etnográfico e etnobiográfico da
educação, como ferramenta de (auto)reflexão e (auto)formação.
A aterrissagem
As entrevistas/conversas foram realizadas nas salas de aula do CETEP de Teresópolis.
Conversamos individualmente com quatro profissionais: uma manicure, uma cabeleireira,
uma instrutora de informática e, ainda, a coordenadora do Centro.
Tendo o roteiro de conversa como apoio, ao iniciarmos as conversas, adotamos uma
escuta ativa procurando viver a história das narradoras; ao mesmo tempo, éramos remetidas as
nossas próprias histórias, estabelecendo relações com fatos, situações, afetos, desafetos que
eram narrados. Aprendemos com relatos que se constituem em exemplos de superação e
coragem que se deram pela via da formação. Esta experiência nos fez concordar com Josso
(2010), sentimos na escuta das histórias daquelas profissionais o processo experiencial que
envolve uma relação entre consciência de si, linguagem e conhecimento. O fato de termos o
roteiro como apoio para as conversas possibilitou-nos identificar e focar nas fases e pessoas
críticas, nos aspectos sociais que provocaram mudanças/impacto na vida, nos sucessos
profissionais e institucionais. Para Bolívar (2012), fases críticas são momentos nos quais
questionamos determinados pressupostos e pessoas críticas são aquelas que influenciaram a
nossa história de vida.
Delory (2008) afirma que não ouvimos passivamente o discurso do outro porque a
escuta desta narrativa constitui-se um laboratório das operações de biografização que
realizamos da nossa própria vida. Os contrapontos que fizemos com a memória de nossa
infância em família, as distintas oportunidades de acesso ao conhecimento, tudo o que
ouvimos nos levou à reflexão de como é complexo e entrelaçado o processo de formação das
pessoas que não se restringe aos bancos escolares. Com essa experiência, nos apossamos das
histórias, das pessoas, das lembranças que podiam ser integradas à nossa própria vida, pois de
certa forma correspondiam ao nosso próprio mundo. Vimos o quanto o exercício da escuta
nos possibilitou dar novos sentidos a fatos, sentimentos e aprendizagens. Percebemos,
também, que o mesmo se dava com nossas entrevistadas que, ao narrarem a própria história
reavaliavam e davam novos sentidos a fatos, situações, afetos e isto nos era permitido
perceber pela manifestação espontânea de suas emoções. A temporalidade das narrativas
ziguezagueava entre passado e presente, estruturando-se “num tempo da consciência de si”,
assim como nos explica Souza (2008, p. 95). Nessa perspectiva, concordamos com Josso
(2010) quando ela diz que as experiências tecidas ao longo da vida são mobilizadas pela
memória e ressignificadas na narração.
Concluímos assim que embora nossa tarefa no CETEP de Teresópolis tenha sido
apenas recolher dados para a pesquisa por meio das narrativas, o movimento de elaboração
descrito por Bragança (2009) foi experienciado pelas investigadoras e pelas narradoras que
instituíram novas formas de ser e de estar no mundo. Sendo assim, reafirmamos a relevância
do olhar etnográfico e etnobiográfico da educação, como ferramenta de (auto)reflexão e
(auto)formação para todos os envolvidos no processo narrativo. Mas percebemos que as
profissionais que atuam como ‘professoras’ no CETEP de Teresópolis, e que participaram da
pesquisa, ainda, formam-se para a docência de maneira artesanal, ou seja, na prática do ofício,
observando em serviço e fazendo pequenos cursos nas áreas que atuam e não sobre a forma de
ensinar. O conhecimento destas profissionais sobre a prática pedagógica é apreendido de
lembranças pretéritas de suas experiências escolares ou de pessoas que consideram como
referência no ensino.
REFERÊNCIAS
BOLÍVAR, Antonio. Metodología de la investigación biográfico-narrativa: Recogida y
análisis de datos. In: V Congresso Internacional de Investigação Autobiográfica, 2012, Rio
Grande do Sul.
BRAGANÇA, I. F. S. . Histórias e Memórias de Professoras. Aleph (UFF. Online), v. 5, p. 5,
2009.
BRAGANÇA, Inês F. de S; MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Histórias de vida e práticas de
formação. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; SOUZA, Elizeu Clementino (Org.).
(Auto)Biografia: formação, territórios e saberes. SP: Paulus, 2008.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto.
Tradução de Maria da Conceição Passeggi, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi. Natal,
RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Natal: EDUFRN; São Paulo:
Paulus, 2010.
NÓVOA, Antônio; FINGER, Mathias (Org.). O método (auto)biográfico e a formação.
Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010.
SOUZA, Elizeu C. Histórias de vida, escrita de si e abordagem experiencial. In: SOUZA,
Elizeu C; MIGNOT, Ana Chrystina V. Histórias de vida e formação de professores. RJ,
Quartet: FAPERJ, 2008.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Resumo:
Este trabalho tem como objetivo relatar a vida e as obras do músico e compositor Russo Igor Stravinsky.
Stravinsky foi um compositor que participou de algumas tendências musicais mais relevantes da primeira
metade do século XX com grande prestígio e influência. Suas primeiras obras foram inspiradas no folclore
russo e escritas em um suntuoso estilo romântico. O método de pesquisa foi realizado através de pesquisas
bibliográficas, consultas de fontes e materiais sobre a carreira artística e trajetória da vida do compositor.
O primeiro tema a ser abordado é o contexto histórico ocorrido entre 1882 e 1971 da vida de Stravinsky.
O segundo tema abordado são os marcos históricos na vida do compositor entre os anos de 1902 e 1971.
O terceiro tema abordado explica as características das obras compostas por Stravinsky, explicando todo o
contexto histórico desde o período do Neoclassicismo até a música serial ou chamada música dodecafônica.
O trabalho de pesquisa sobre o compositor foi fundamental para aprofundar o conhecimento sobre a Música
Moderna no início do século XX e viabilizar o contexto histórico musical da vida de Igor Stravinsky.
Introdução
Este trabalho relata a vida de Igor Stravinsky e suas obras (1882 - 1971). Compositor Russo. Forçado pela
família a estudar Direito, enquanto cursava a faculdade, frequentava a casa de Rimsky-Korsakov com quem aprendeu
os elementos básicos da técnica de composição. Stravinsky foi um compositor que participou de algumas tendências
musicais mais relevantes da primeira metade do século XX com grande prestígio e influência. Suas primeiras obras
foram inspiradas no folclore russo e eram escritas num suntuoso estilo romântico, sendo influenciado por Rimsky -
Korsakov. Porem foi um dos grandes responsáveis por estabelecer o período chamado neoclássico, onde chamou esse
tipo de música, de idéias do século XVIII vistas através dos olhos do século XX que acompanhou suas composições
nos próximos 30 anos seguintes. Onde também passou a estudar webern e a compor a música serial ou dodecafônica,
porem sempre utilizando do seu colorido musical e versatilidade de instrumentos mantendo seu estilo sem perder
nada do habitual e sua originariedade.
Sendo o pai um cantor lírico (ópera), estava determinado em que os filhos tivessem vidas profissionais menos
expostas ao acaso. Stravinsky cresceu em um ambiente musical. Estudou direito na universidade e não foi senão
após a morte do pai, em 1902, que pôde estudar composição adequadamente com Rimsky - Korsakov. Descoberto
por Sergei Diaghilev (fundador do Ballets Russo), que depois de ter ouvido Fogos de Artifício, foi contratado para
escrever a música de um balé fantástico baseado numa história folclórica russa, Pássaro de Fogo. Em 1909, o
Pássaro de Fogo, ainda dentro da estética dos nacionalistas russos, alcançou um grande sucesso em Paris, em 1910,
o que alavancaria o nome deste jovem promissor rapidamente. Este balé marcaria o início de uma longa colaboração
com a companhia de Diaghilev.
A música O Pássaro de Fogo foi a sensação da temporada de 1910 de Diaghilev em Paris, e foi seguido por
dois sucessos ainda maiores, Petrushka e A Sagração da Primavera.
Segundo Candé, (vol.2, p. 239), os dois balés seguintes se transformariam nas obras mais
executadas de Stravinsky, Petrouchka (1911) e A Sagração da Primavera (1913). A Sagração
seria a sua obra-prima, escrita aos 30 anos de idade e que marcaria a sua obra. “Numa época em
que a vanguarda musical, representada na França por Debussy e Ravel, se distinguia por um
extremo refinamento, esse ritual primitivo [crença milenar russa da vida que nasce da morte,
onde há a adoração da terra e na segunda parte o sacrifício de uma jovem ao deus da primavera]
acompanhado por uma música violentamente contrastante, devia naturalmente surpreender... O
primitivismo do tema e da coreografia, em que os dançarinos assumiam poses inabituais (pés
para dentro, joelhos dobrados, braços rígidos...), sem dúvida chocou mais do que a música,
encoberta uma parte do tempo pelo barulho da sala.
Harmonicamente não apresenta nada de novo para a sua época, utilizando-se de recursos de agregações
politonais, só surpreende pela maneira assimétrica como é tocado. Ritmicamente, com bruscos contrastes, desde os
sutis accelerandos e dos rallentandos nos primeiros compassos, até as mudanças de compasso da Dança sacral, tudo
é empregado para criar uma espécie de enfeitiçamento, seja pela regularidade das pulsações, associada a ostinatos
encantatórios, seja por uma assimetria perturbadora.
No período de 1914 a 1922, foi a fase mais agitada de sua trajetória viajando para vários países da Europa.
Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), passaria a maior parte de seu tempo na Suíça, saindo apenas para
apresentações na França, Hungria e Estados Unidos. Nesse período escreveu Lês Noces, Renard e A História do
Soldado. Por causa da revolução comunista, de 1917, ficou radicado na França durante o período de pós-guerra, até
naturalizar-se francês em 1936. Nesta fase, aos poucos trocou o estilo agressivo da fase russa pelo estilo neoclássico.
Desta fase, pertencem as obras Pulcinella (referência ao barroco italiano), Sinfonia de Instrumentos de Sopro, Mavra,
Édipo Rei, Apollon Musagète, Perséfona, O Beijo da Fada (referência a Tchaikovsky) e Jogo de Cartas.
Boa parte escrita para a dança. Nesse período também, Stravinsky inaugurou uma arte de extrema clareza, em que
empregou pequenas formações instrumentais, frequentemente não usuais, e uma escrita ais contrapontística do que
harmônica, utilizando também de recursos e procedimentos do jazz. Stravinsky comentou: “Não escrevi mais música
por causa da dificuldade em encontrar bons intérpretes”.
Suas primeiras obras foram inspiradas no folclore russo, e eram escritas em um suntuoso estilo romântico,
influenciado por Rimsky - Korsakov. Na suíça, no entanto, começou a descobrir e a fazer experiências com o Jazz e
seu som limpo, sua orquestração esparsa e seus ritmos picantes, logo deixaram marcas na música de Stravinsky. Em
1920, para Diaghilev, ele escreveu Pulcinella (referência ao barroco italiano) um balé com a história de Arlequim e
Colombina e música baseada em peças do compositor do século XVIII Pergolesi. Stravinsky utilizou as melodias de
Pergolesi, e algumas de suas harmonias, mas colocou muito molho no ritmo, acrescentou discordâncias, acrescentou
discordâncias espirituosas e ajustou esse resultado brilhantemente para uma orquestra moderna. Chamou este tipo
de música como ideias do século XVIII vistas através dos olhos do século XX, de “neoclássica”, e este foi o seu
principal estilo musical durante os trinta anos que se seguiram, duas dúzias de suas melhores obras.
Nas décadas de 1920 e 1930, além de compor, Stravinsky dedicou algum tempo à carreira de pianista e
regente, habitualmente de suas próprias obras. Já na velhice ele calculou ter regido sua suíte O pássaro de fogo mais
de mil vezes em cinqüenta anos, isto é, uma média de vinte vezes por ano ou uma vez a cada duas ou três semanas. Em
1939, depois de sua mãe, sua esposa e sua filha terem morrido de tuberculose, ele emigrou para EUA e estabeleceu-
se em Holly-Wood com sua segunda mulher, recusando incansavelmente todas as ofertas para compor músicas de
filmes (por ex., um milhão de dólares para escrever a música de A Bíblia, ou dois milhões caso concordasse em deixar
uma outra pessoa escrever a música e usar o seu nome). Na década de 1950, estando já na casa dos setenta anos
exatamente quando todo mundo achava que sua inspiração estava secando, Stravinsky começou a estudar webern, e
a música dos seus últimos quinze anos (principalmente religiosa) é serial, e intelectualmente compacta, sem perder
nada do habitual “Som de Stravinsky”. Sua imensa na velhice, ele era o compositor moderno de que todo mundo
já tinha ouvido falar no Picasso da música, que levou a dois outros projetos fascinantes: uma gravação completa de
suas obras, sob sua própria supervisão, e uma série de “conversações”, livros de memórias em forma de espirituosas
e divertidas respostas a perguntas feitas por seu amigo Robert Craft.
“Da mesma maneira que a “ferocidade” das partituras da “fase russa” havia outrora sido
substituída pela calma, às vezes hierática, às vezes cínica, da “fase neoclássica”, desta vez
o aparato neoclássico era colocado de lado a fim de fazer nascer partituras pontilhistas e
repletas de dissonâncias não resolvidas. Elas apontavam para o fato de que o compositor, já
septuagenário, se recusava à acomodação. Ao contrário: dava mostras de preferir o risco das
novas aventuras sonoras. Que voltaram a fazer com que ele retomasse o diálogo com as novas
gerações de compositores. Boa parte desse período revela, além do apego ao serialismo, uma
preocupação cada vez maior para com a música sacra e seria encerrada com os Cânticos de
Réquiem...”
Os três grandes balés para Diaghilev, no início da carreira de Stravinsky, foram sensacionalmente brilhantes
e bárbaras, nunca perdeu o gosto pela fascinação, um dos compositores que criaram os sons instrumentais mais
notáveis. Como diz (MCLEISH e HORTA, 1986; p-202) “sua música é melodiosa, fantasticamente harmonizada,
refrescantemente orquestrada, com ritmos firmes e constantemente variados”.
Marcos históricos de Stravinsky
Início de sua carreira: que compreende a partir de 1909 á 1913 Stravinsky utiliza a música folclórica
ou nacionalista Russa, com características de rica orquestração e o brilhantismo dos instrumentos com todo seu
colorido como Petruchka, rico em melodias e texturas polifônicas do folclore Russo. Como também Le sacre que
foi uma das mais famosas do início do século XX. Destaque para os motivos rítmicos bem como a combinação
dos efeitos orquestrais combinando com os acordes, algo inédito para época. Já no período da primeira grande
guerra, suas composições se restringiram a novos caminhos. Segundo (GROUT, 1988; p - 721) “foi levado a uma
mutação estilística que se evidenciou entre 1913 e 1923. A característica mais obvia destas peças é o abandono das
grandes orquestras, substituídas por pequenas combinações de instrumentos”. Algumas peças evidenciam isto como
L’histoire Du soldat (1918), Les Noces (1917 a 1923), Pulcinella (1919-1920) e o octeto para instrumentos de sopro
(1922 a 1923).
A música serial ou dodecafônica: Na década de cinquenta, já com setenta anos começa a estudar Webern,
cujo passa a influenciar sua música nos próximos quinze anos, com foco na música religiosa, servindo-se da música
serial com seu sistema de doze notas. Técnicas dodecafônicas bem exploradas em Movements (1959) e nas variações
orquestrais (1964) e na sinfonia dos salmos - 3º movimento - salmo 150.
Referências Bibliográficas
ª
CANDÉ, Roland de. História da Música Universal. São Paulo, Ed. Martins Fontes, vol. 2, 2 ed. 2001 (p. 178 em
diante).
GROUT, Donald J. História da música ocidental.Portugal, Ed. Gradativa Ed.1997 (p.721 e 722).
MCLEISH, Kenneth e Valerie e HORTA, Luiz Paulo. Guia do Ouvinte de Música clássica, Rio de Janeiro, Ed.Jorge
Zahar Ed.1988 (p.201 em diante).
DOCUMENTOS GUARDADOS: O PEDAGOGIUM DA TRAJETÓRIA DO DIRETOR DA INSTRUÇÃO
PÚBLICA MEDEIROS E ALBUQUERQUE
Quando esta cidade estiver cortada de avenidas magníficas, quando ao que fez a natureza
nos dando um bello porto, se juntar ao trabalho do homem dotando-a com um ancoradouro,
que facilite as operações do commercio, é impossível que não salte à vista de todos a
necessidade de fazer com que por essas avenidas não passem tantos analphabetos e que,
se é justo gastar rios de dinheiro para bem calçar as ruas, mais justo é ainda despender
o cêntuplo para construir escolas, para lhes dar todos os meios de desenvolvimento.
(ALBUQUERQUE:1903)2
1 (GONDRA, 1997, pág 376) Em seu trabalho sobre a Revista Pedagógica destaca a criação da Ins-
trução Pública, que surge com o advento da república. “ O projeto republicano para a educação ganhou,
inicialmente, um lugar a partir do qual o mesmo foi articulado e executado. Desta forma, instituiu-se, atra-
vés do Decreto n° 346 de 16/4/1890, a Secretaria de Estado dos Negócios da Instrucção Publica, Correios e
Telegraphos, que teve o estatuto de um mistério. Para ocupar esta pasta, foi designado o marechal Benjamin
Botelho de Magalhães Constant, auxiliado pelos majores Dr. Lauro Sodré e João Bittencourt Costa (Revista
Pedagogica, n. 1,1890)”.
2 Este trecho foi retirado do documento que se encontra na Academia Brasileira de Letras, que traz
o discurso de Medeiros e Albuquerque na entrega de diplomas as normalistas recém formadas no Pedago-
gium, no ano de 1903.
(Foto da fachada do Pedagogium )
Em seu discurso, no Ano de 1903 como Director da Instrucção Pública do Distrito Federal,
Medeiros fala as normalistas recém formadas no Pedagogium. Destaca em sua fala o árduo trabalho que as
moças teriam pela frente contrastando seus ideais com as realidades sociais do mesmo período. Destaca a
importância do ensino primário e da luta em combate ao Analfabetismo, o que considerava ponto crucial
para o processo civilizatório que caracterizava uma das principais bandeiras da propaganda republicana.
Durante os últimos anos antecedentes a esta transição do Pedagogium para a municipalidade, a
instituição de uma forma geral passava por diversas dificuldades refletidas não só em seu prédio como
também na publicação da Revista Pedagógica, que possuía um papel fundamental O periódico fazia
parte do projecto de implantação e desenvolvimento da educação nacional posto em prática a partir da
proclamação da República, em 1890( FERNADES, 2010, p. 107.)
A revista circulou no período de 1890 e 1896 e acabou retornado em 1897, após o processo de
municipalização, chamando-se Revista educação e Ensino, como aborda Maria Helena Câmara Bastos
(2006) em Pro Pátria Laboremus: Em julho 1897, com o encerramento da Revista Pedagogica, é criada a
Revista Educação e Ensino, da Instrução Pública Municipal e do Distrito Federal, cujos diretores seriam
o Diretor – Geral de Instrução Pública e o diretor do Pedagogium.
Ao analisar esta revista que só dispõe de apenas um exemplar localizado até hoje podemos entender
um pouco das mudanças que ocorreram no Pedaogoium durante este período de transição, assim como
objetivos e propostas destinadas a este Instituto a partir da diretoria da Instrução Pública do então Distrito
Federal dirigida por Medeiros e Albuquerque, no ano de 1897. Consta em suas primeiras páginas algumas
explicações sobre esta mudança como veremos abaixo:
Por acto do Congresso Nacional, do anno passado, foi transferido o Pedagogium para o Governo
do Dsitricto Federal e, em fevereiro do Corrente anno, effectuou-se a passagem. Semelhante facto,
como era natural, trouxe uma profunda alteração á vida deste Instituto. Foi preciso modifical-o de
acordo com o regimen municipal dando-lhe uma feicção mais pratica de alcance immediato e mais
intimamente ligada aos institutos de Instrucção Publica a cargo do Districto Federal. Foi mister
um novo regulamento e novos serviços foram creados. Com isto suspendeu-se, por algum tempo, o
funcinamento regular d’este instituto, inclusive o serviço da Revista Pedagógica, cujo o utimo número
foi publicado em janeiro do corrente. 3
Pode-se identificar a partir deste primeiro trecho a pausa das atividades do instituto e não o seu
fechamento. E é exatamente neste momento de transição que um novo olhar é dado a Instituição, por conta dos
problemas que existiam, quando chega às mãos das esferas da municipalidade, os principais representantes
atentam para a urgência de reformas e também disponibilizam verba para compra de materiais.
Por meio de mais três fontes importantes se faz notória a quantidade relevante de verbas
disponibilizadas em grande maioria emitidas por Medeiros e Albuquerque. Trata-se de três livros de contas,
que trazem toda a movimentação de compras de materiais e utensílios para o Pedagogium. Observamos
diversos casos, como a contratação de firma para prestar o serviço de iluminação, o pagamento de serviços
prestados pela Gazeta de Noticiais ao Pedagogium e diversas compras de utensílios em geral, desde a
compra de barbantes, tintas, giz e tinta a livros franceses como Revue Encyclopedique, Revue Pedagogique,
Bueletim Bibliographique e Monde Moderne
Quando assume este cargo de caráter administrativo de Diretor da Instrução, também nos revela o
caráter acima de tudo político e pedagógico, à frente de diversas questões que envolvem o Pedagogium,
sendo essas principalmente: dirigindo a Revista Educação e Ensino que se caracteriza como uma continuação
da Revista Pedagógica ao Lado do Diretor Manoel Bonfim e também com a criação de um laboratório de
Psicologia Pedagógica, como próprio esclarece em seu livro de Memórias:
Na Instrução Pública, julgo também ter tido iniciativas fecundas. Nunca houve período
administrativo de que a politicagem, fosse mais banida do que o do meu tempo de serviço. Em
certos pontos não cheguei realmente a ser compreendido. Assim o laboratório de Psicologia
Pedagógica que fundei no Pedagogium em 1897, pareceu uma extravagância e foi logo
suprido. Minha vida da Infância a Mocidade. (1933, p. XII)
Para Medeiros, essa foi uma de suas principais iniciativas à frente da Instrução, e tal iniciativa
foi realizada no Pedagogium, podemos interpretar isto como uma iniciativa não só administrativa, mas
pedagógica e política. Escolher o Pedagogium para instalar um laboratório como este pode ser entendido
como uma forma de promover a educação republicana.
Considerações Finais
Ao examinar os principais acontecimentos e fatos importantes levantados pela análise das fontes
desta pesquisa, e fazendo uma breve análise de fatos importantes da vida deste intelectual, podemos
(identificar as questões que nos possibilita entender um pouco mais sobre os seus trabalhos realizados
no âmbito educacional, dando ênfase ao Pedagogium, trazendo novos olhares e informações para esta
Instituição que representava a proposta do governo Republicano para a Educação. E que por conta da
dispersão documental, pouco se sabe de sua história.
3 PEDAGOGIUM. Revista Educação e Ensino. Distrito Federal, Tomo I- julho/1897 (Pág. 5).
Por meio destas fontes identificadas em diversas instituições de guarda, podemos lançar
novos olhares e novas interpretações, na tentativa de trazer à tona e emergir o que esta dispersão acaba
ocultando. Ao trabalhar nas pistas e cruzando as primeiras fontes encontradas no Arquivo Geral da Cidade
do Rio de Janeiro e na Revista Educação e Ensino a figura de Medeiros e Albuquerque aparece como um
caminho a percorrer a fim de entender mais sobre o Pedagogium.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Medeiros e. Discurso de Medeiros e Albuquerque. In: ALBUQUERQUE, Medeiros e
et al. Discursos: proferidos na solemnidade da entrega de diplomas ás normalistas que terminaram o seu
curso no anno escolar de 1903. Rio de Janeiro: Typ. do Instituto Profissional, 1904. 85 p., 27 cm. p.11-29
RESUMO:
Ao direcionar toda a minha atenção para ouvir e capturar muitas vezes as falas que não eram ditas, mas
faziam–se entendidas através de expressões faciais, pude identificar o quanto de mim tinha naquelas
falas, o quanto pude deixar para traz de conceitos que não eram compreendidos em sua total significância,
mas principalmente entender qual caminho deverá ser percorrido, de que forma e como se dará depende
exclusivamente do quanto estou disposta a me doar.
Não se trata apenas de compreender o meio em que se esta inserida e lidar muitas vezes com
toda complexidade que o envolve, mas a imensa possibilidade de se fazer compreendido
e principalmente compreender a si mesmo, quando nos utilizamos do recurso da escrita
como uma forma de expressão. (PASSEGGI, ABRAHÃO, MOMBERGER, 2012b, p.35).
As experiências, práticas profissionais, relações com os pares e as diversas formas de lidar com as políticas
educacionais apresentadas pelo município, me permite avaliar o quanto é relevante ter a possibilidade do
contato com a perspectiva (auto) biográfica.
Entendo o quão rico é esse campo de pesquisa que me foi apresentado através de um trabalho do curso
superior, ampliando mais do que poderia imaginar um entendimento que vem processualmente a cada novo
semestre do curso de Pedagogia.
A pesquisa (auto) biográfica revelou-se uma grata surpresa apontando o quanto era ainda desconhecido o
meu próprio eu, demonstrando que mesmo não tendo qualquer grau de parentesco, algum tipo de convívio
social, sem nenhum vínculo, foi possível me identificar com algumas falas daquelas professoras, pois
representam a voz de um coletivo.
Tornando-se uma importante ferramenta de trabalho, pois além de um olhar perceptivo para com meus
futuros alunos, se faz necessário ouvidos atentos, dispostos a dar o valor devido aos relatos a serem trazidos,
a fim de criar-se um ambiente favorável para além de uma construção acadêmica, mas fazer parte nesse
processo de formação do sujeito como conhecedor de si.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
2. BASTOS, Maria Helena Câmara. “Memórias de professoras: reflexões sobre uma proposta”. In:
MIGNOT, Ana Crystina Venâncio; CUNHA, Matia Teresa Santos (Org.) Práticas de memória
docente. (Coleção cultura, memória e currículo; v.3) - São Paulo: Cortez, PP 135-148, 2003.
4. TIM, Zanini Edgar. “Histórias de vida: alguns aportes filosófico-literários como contribuição à
reflexão.” IN: ABRAHÃO, M. H. M. B. e PASSEGGI, Mª da C. (Orgs.). Dimensões epistemológicas e
metodológicas da pesquisa (auto) biográfica- Tomo II – Natal: EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS.
Salvador: EDUNEB, 2012, 312 p. (Coleção pesquisa (auto) biográfica: temas transversais).
EIXO TEMÁTICO: ESPAÇOS FORMATIVOS, MEMÓRIAS E NARRATIVAS
INTRODUÇÃO
DESENVOLVIMENTO
O projeto foi desenvolvido na Escola Estadual Cândido Portinari, situada na cidade de Belo Horizonte,
sendo a mesma, uma das escolas-parceiras da PUC Minas no Pibid. Nesta escola, além do subprojeto de
Educação Física também estão presentes as seguintes áreas: Geografia, História e Ciências Sociais. As
áreas desenvolvem dois projetos de intervenção junto à comunidade escolar: um primeiro de natureza
interdisciplinar e outro centrado nas especificidades e singularidades das respectivas áreas de conhecimento.
No tocante ao projeto de área da Educação Física o mesmo conta com a participação de um professor
supervisor e cinco acadêmicos. O referido projeto de área privilegiou no primeiro semestre de atuação dos
bolsistas, uma estratégia de mapeamento e diagnóstico do cotidiano escolar, com ênfase na compreensão
do lugar ocupado pelo componente curricular Educação Física, no projeto pedagógico da escola. A partir
da análise dos dados produzidos por meio desta estratégia, o grupo de bolsistas definiu coletivamente pela
elaboração de um Portfólio que contivesse narrativas dos sujeitos (estudantes, professores e acadêmicos)
sobre os diferentes modos de ensinar e aprender nas aulas de Educação Física.
A opção pela elaboração coletiva de um Portfólio se deu pela aproximação do grupo com alguns
estudos recentes que tratam das potencialidades formativas das narrativas autobiográficas (SUAREZ, 2007
e ALMEIDA JUNIOR 2011).
As escolas estão repletas de histórias e os sujeitos que habitam esse espaço são, ao mesmo tempo, os
autores/atores e contadores dessas diversas tramas e enredos. Em um processo de produção de narrativas, ao
narrarem e serem narrados, esses sujeitos podem recriar cotidianamente sentidos do processo de escolarização
e, nesse movimento, reafirmam ou reconstroem sua identidade coletiva profissional. (SUÁREZ, 2007)
Neste trabalho, baseando-nos em Almeida Junior (2011), compreendemos a narrativa como a
qualidade estruturada da experiência entendida e vista como um relato que se constitui em formas de produzir
sentido a partir de ações pessoais, em determinado contexto de tempo e espaço, por meio da descrição e
análise de dados biográficos. A narrativa constitui-se, então, numa forma particular de reconstrução da
experiência, através da qual, mediante um processo de reflexão, dá-se significado ao acontecido ou vivido.
Todos nós, sabemos quão grande é o desafio de escrever, quanta energia e persistência são necessárias
para assumir a tarefa de escrita de um texto. Ao longo de nossos processos formativos, de nossa trajetória de
formação profissional, fomos acostumados a produzir textos somente para os outros e não para nós mesmos.
Tornamo-nos produtores de textos impessoais produzidos para um leitor modelo: nossos professores.
Aprendemos a produzir textos que não nos permitiam o exercício da reflexão isto é: textos escolares.
Prado e Soligo (2007) afirmam que os textos produzidos, sobre e no contexto de nossa ação,
permitem-nos conhecermos melhor quem somos nós, tanto na dimensão pessoal, quanto profissional. Além
disso, os autores indicam que o exercício da escrita pode favorecer o movimento de reflexão sobre o que
fazemos e pensamos, permite a sistematização de saberes que produzimos, e por fim, pode se constituir
numa plataforma de lançamento para múltiplas possibilidades de aprendizagem.
Para a elaboração do Portfólio o grupo de bolsistas utilizou diferentes estratégias de produção de
narrativas. No tocante ao grupo de estudantes, foram acompanhadas as aulas de Educação Física de três
turmas (6º, 7º e 8º anos). Ao longo das aulas foram produzidas várias fotografias. Os temas abordados nas
aulas foram os seguintes: Futsal, Dança, Lutas e Handebol.
Em seguida, os estudantes puderam escolher a fotografia que mais lhe chamava a atenção. Após a
escolha, os alunos foram desafiados a produzirem uma narrativa sobre a fotografia selecionada.
Inicialmente, percebemos que os alunos sentiam dificuldade em produzir uma escrita livre, de cunho
subjetivo. Desta forma, utilizamos algumas perguntas norteadoras da elaboração das narrativas, a saber:
“quem está na foto?”, “o que você sentiu nesta aula?”, “o que você estava pensando nesta atividade?”, “Do
que você mais gostou?”.
Na produção de narrativas pelos bolsistas (professor supervisor e acadêmicos) as mesmas se deram
por meio de um movimento de registro dos momentos mais relevantes das aulas, buscando articular a
dimensão pessoal da escrita aos referenciais teóricos. Após a elaboração das narrativas as mesmas foram
socializadas entre os bolsistas.
O Portfólio foi elaborado tendo como referência, portanto, as diferentes narrativas produzidas pelos
estudantes, acadêmicos e professor supervisor. Após a elaboração do Portfólio, que será apresentado
à escola nesse semestre, passamos para o processo de análise e interpretação das narrativas, tendo com
base as contribuições de Ginzburg (1989). A seguir, apresentamos uma síntese de nosso primeiro mergulho
analítico e interpretativo nas narrativas elaboradas pelos estudantes.
CONCLUSÃO
A partir das análises iniciais das narrativas, percebemos que os estudantes significam a aula de
Educação Física como um tempo/espaço para “brincar”, “extravasar”, “aprender” e “socializar”. Sendo
que, esses múltiplos sentidos/significados são produzidos a partir de um forte, e por vezes tenso diálogo
com o professor de Educação Física e acadêmicos.
Entretanto, o processo de interpretação das narrativas produzidas pelos estudantes também nos
possibilitou ver, rever e, em certa medida, “transver”, as aulas de Educação Física. Nessa primeira
aproximação também foi possível perceber indícios que apontam que as aulas, vêm se tornando um espaço
significativo de ensino e aprendizagem, superando, gradativamente, uma perspectiva mais tradicional de
educação dos corpos ou mesmo de um tempo/espaço de “lazer”.
Por fim, é possível perceber que a escrita dos alunos se deu, inicialmente, em um padrão/forma
escolar, dificultando um movimento de livre escrita, voltada para o caráter pessoal/subjetivo. Entretanto,
percebemos que ao retirarmos, gradativamente as questões norteadoras, os estudantes dissertavam de maneira
mais informal e significativa sobre diferentes momentos das aulas de Educação Física, possibilitando a
produção de textos mais dinâmicos, mais “fluidos”, menos “sérios”, mas nem por isso menos densos.
Os alunos assumem a autoria de seus escritos e isso é o que torna a narrativa um texto único, pessoal e
revelador.
Por fim, entendemos que a escrita narrativa resgata potentes cenas do cotidiano escolar, que muitas
vezes transitam pelo limbo da produção textual, formal das escolas, e as coloca, juntamente com seus
agentes – professores e estudantes – no centro da discussão. As narrativas explicitam e traduzem diferentes
desafios e dilemas, possibilitando elementos de diálogo e reflexão.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA JUNIOR, Admir Soares. Foto e Grafias: narrativas e saberes de professores/as de Educação
Física. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas, 2011.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Companhia das Letras, 1989.
PRADO, G. V. T.; SOLIGO, R. (Org.). Porque escrever é fazer história: revelações, subversões e superações.
Campinas: Alínea, 2007.
Introdução
No decorrer dos últimos anos observa-se um número significativo de estudos relacionados às nar-
rativas autobiográficas no Brasil. O crescimento de estudos calcados em autores como Pineau; Michèle
(1983), Nóvoa (1999), Josso (2004), dentre outros, bem como, a utilização de narrativas como caminho
metodológico em pesquisas de pós-graduação, demonstram a pertinência do assunto que apresentaremos a
seguir.
Um grupo de pesquisa, Grupo de Estudos Narrativos em Educação - GENE, pertencente ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-
-grandense, propõe um projeto de pesquisa intitulado: Um estudo acerca do uso das narrativas (auto)
biográficas no período de 2004-2012 no Brasil, com o objetivo de analisar os usos das narrativas, através
dos trabalhos publicados nos Anais do maior evento específico desta área, na América Latina – Congresso
Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica – CIPA –, a partir da questão: “Como estão sendo utilizadas as
narrativas (auto)biográficas nos trabalhos de formação e de pesquisa apresentados no CIPA no período de
2004-2012?”.
A análise realizou-se com base em trabalhos publicados no CIPA, totalizando 57 artigos, que foram
lidos e observados, a partir de seus objetivos e metodologias e registrados em Ficha, desenvolvida por este
grupo de pesquisa. Esta ferramenta foi elaborada a partir da necessidade observada entre os pesquisadores
do grupo. A Ficha foi desenvolvida contemplando uma perspectiva apresentada por Nóvoa (1992), que pro-
pôs um quadro que possibilitaria buscar a criação de uma matriz compreensiva no âmbito dessas pesquisas.
Esse quadro sofreu influência dos pesquisadores do grupo e foi ampliado. A Ficha, como um todo, contem-
pla ainda título do trabalho, nome do pesquisador, instituição de ensino responsável, ano da publicação,
resumo, descrição de objetivos, formas de coleta de dados, número de casos em que se baseou, contexto
e forma de produção do material, dispositivos utilizados para mobilizar o acesso a memória dos sujeitos,
formas de análise e referencial teórico.
É com o respaldo nas informações contidas nestas, cujo desenvolvimento e registro foi discutido
com os demais componentes do grupo, que apresentamos, então, resultados preliminares, com o escopo
precípuo de produzir conhecimento no que diz respeito às narrativas (auto)biográficas, suas funções e me-
todologias.
Pensamos que é pertinente registrar aqui, também, o comprometimento deste grupo com a constituição de
conhecimento teórico válido, a partir dos estudos com o tipo de narrativa citada acima, que venha a servir como
referência no campo de metodologia de Pesquisa em Educação, e que possa auxiliar na formação inicial e continuada
de professores. Finalidade esta, também registrada no Projeto de Pesquisa aqui desenvolvido.
O que temos encontrado nos artigos fichados
Um número significativo dos trabalhos fichados não apresenta explicitamente seus objetivos1. Queremos
pontuar aqui que tivemos certa dificuldade em perceber qual a discussão, ou mesmo, a descrição que propunham;
qual(s) a(s) articulação(s) possível entre o(s) objetivo(s) e o desenvolvimento de pesquisas que venham a contribuir
na constituição de conhecimento teórico válido referencialmente, principalmente em se tratando de metodologia de
Pesquisa em Educação, cujo interesse maior deste GP já foi explicitado.
Em relação à forma de coleta de dados, os trabalhos utilizaram-se de pesquisas narrativas, escritas de si,
grupo de investigação e formação; outros utilizaram outras forma de coleta, tal como publicações no Orkut, grupo
focal, produção própria acerca de outras narrativas, pesquisas narrativas no portal da CAPES, desenhos animados ou
entrevista com professores aposentados, ateliês biográficos. Não há, nesses trabalhos, uma padronização visível que
indique mecanismos de coleta mais pertinentes em se tratando de abordagens centradas em histórias de vida. Alguns,
inclusive, parecem fugir ao enfoque que, convencionalmente, temos pensado como (auto)biográfico. Pensamos que
a possibilidade de fuga esteja se dilatando aqui, na ausência de definição sobre estratégias pertinentes a este tipo
de abordagem, no que tange a coleta de dados, não que sirvam como prescrição, mas como parte de um arcabouço
teórico-metodológico aberto, porém rigoroso.
Em um artigo intitulado Dimensiones epistemolígicas y metodológicas de la investigación (auto)biográfica,
Antonio Bolivar, ao discutir o método de pesquisa (auto)biográfico no cenário da crise da ciência moderna – cuja
gênese estaria em seu caráter epistemológico –, defende a justificação de fontes de evidência:
No obstante, entendemos que, más que un abandono o derribo de esta problemática, lo
que precisa la epistemología es una “reconstrucción”, (...). Defendemos que también los
conocimientos narrativos precisan justificar sus fuentes de evidencia. Otra cosa es que
los criterios de evidencia no coincidan con los estabelecidos en la ciencia convencional.
(BOLIVAR, 2012, p.29).
O autor reconhece a não coincidência entre os critérios cartesianos e a(s) perspectiva(s) que trabalham com
autorreferências a cerca das fontes de pesquisa e da relação sujeito/objeto e suas possibilidades. Mas ainda assim
chama atenção a esse aspecto, visto compreendê-lo com fundante nessa empreitada que tem sido a conquista de
legitimidade deste método de pesquisa em meio a essa estrutura científica em vias de mutação, mas cujas definições
não são conclusas, potencializando a todo o momento o recurso a critérios de verdade. Diz ainda “precisamos
fundamentar epistemológica y metodológicamente la investigación (auto)biográfica” (BOLIVAR, 2012, p.30).
Não estamos com isto defendendo a aproximação ou a recorrência às dimensões metódicas de pesquisa.
Busca-se com o desenvolvimento deste método exatamente o contrário, a valorização do sujeito, da vida. Mas esta
perspectiva emerge em meio a indefinições. Nesse panorama prevalecem ainda exigências modernas de pensamento
no que tange à produção de conhecimento. Logo, as reflexões sobre o que é possível, em que rios poderemos nadar,
a profundidade que nos é possível, o mergulho e, principalmente, se contra a correnteza, como faremos, como
subiremos as cachoeiras, nos são centrais, sob pena do afogo.
Chama atenção, ainda, o fato de 44 desses trabalhos não mencionarem forma de análise. Os 13 artigos
restantes indicam formas de análise, variadas: análise hermenêutica, análise temática, e Análise de Conteúdo. Não
mencionar formas de análise não implica necessariamente não fazer análise, não lançar mão de alguma metodologia
apropriada, no âmbito das ciências humanas, para exame rigoroso de dados. Ocorre que, também aqui, careceu-nos,
muitas vezes, achar sentido ou coerência entre a coleta de dados, o manuseio rigoroso desses dados e a preocupação
com a pesquisa e formação. Se vislumbramos como parte dos objetivos deste Grupo de Pesquisa, e desta apreciação
preliminar, discutir caminhos potenciais para enriquecimento teórico e metodológico deste tipo de abordagem, alguns
elementos referentes à metodologia de pesquisa são fundamentais e, dentre eles, preferencialmente deva aparecer os
mecanismos empregados para análise e avaliação de dados científicos empregados na produção do conhecimento. Não
1 Reforçamos aqui que estamos analisando os artigos publicados no CIPA, muito embora, tenhamos
percebido que muitos destes trabalhos são ou podem ser recortes de pesquisas maiores, dissertações ou
teses. Nestas, possivelmente, elementos que não apareceram nos artigos podem estar contemplados.
estamos querendo fazer defesa da utilização de algum modelo de análise de tipo cartesiano, moderno ou metódico.
Não há exigência aqui de explicações, a partir da fragmentação dos objetos de pesquisa, mas uma reflexão acerca das
possibilidades de compreensão e apreensão a partir do material investigado.
Em relação ao enquadramento desses 57 artigos na matriz que aproveitamos de Nóvoa (1992), ainda que
de maneira ampliada, apresentamos a seguir como ficaram distribuídos. Porém, antes, gostaríamos de anunciar
que a primeira coluna esta reservada para trabalhos essencialmente teóricos relacionados à investigação, em que o
profissional é encarado como “objeto” da investigação; a segunda coluna é resevada para trabalhos com objetivos
essencialmente práticos relacionados com a formação, em que o profissional é encarado como “sujeito” da formação;
a terceira, servirá para trabalhos que contemplem as duas perspectivas anteriores, em que o profissional é visto
como “ator” da investigação-formação; a última destas colunas, reserva-se para trabalhos que não se enquadram
em nenhuma das perspectivas anteriores. As linhas servirão para identificar os aspectos dimensionais aos quais são
empenhados maiores atenções em cada trabalho, se para pessoa, práticas, profissão ou outro.
Prática 14 3 1
Profissão 7 4
Outros 5 4
A maioria dos textos situa-se na primeira coluna, a qual contempla objetivos teóricos, relacionados apenas
à investigação, o que se observou igualmente nas discussões com o grupo, referentemente aos outros artigos e,
consequentemente, poucos trabalhos localizam-se nas colunas que contemplam objetivos essencialmente práticos
relacionados com a formação, ou essencialmente emancipatórios relacionados com a investigação-formação.
Ao elaborar o prefácio da coleção: Pesquisa (Auto)Biográfica: temas transversais, Delory-Momberger
(2012b), faz um breve histórico do CIPA, com o intuito, de situar-nos sobre os caminhos do evento, fazendo um
“balanço” sobre este ao longo de sua existência. Segundo a autora, o I CIPA, respondia à necessidade de refletir
acerca das discussões teóricas e metodológicas da pesquisa (Auto)Biográfica. No encontro de 2012, as questões
metodológicas e epistemológicas, voltam a ter destaque. Nas palavras de Delory-Momberger (2012b, p. 13-14) “[...]
a ocasião é amplamente favorável para anunciar outras perspectivas epistemológicas e metodológicas.”
Observa-se aqui a preocupação e o investimento na problematização dos percursos metodológicos das
pesquisas biográficas. Tais objetivos, os de refletir acerca dos caminhos metodológicos dos estudos auto referenciais,
estão presentes não somente na história do CIPA, mas na necessidade de afirmação das pesquisas sobre histórias de
vida no campo acadêmico.
Resta ainda, continuando com Delory-Momberger (2012a), além de uma necessária conceituação da pesquisa
biográfica, acomodar, aplanar o terreno, de maneira a apreender o objeto de pesquisa. O processo metodológico de
coletar as informações é o que torna possível diferenciar a entrevista biográfica de outras entrevistas. Apreender e
entender que a fala está carregada de significações e de ser atravessada pela história, pelo social, crenças e discursos
alheios, dentro de um tempo, é um processo fundamental para “separar o que é interioridade social e interioridade
pessoal” (DELORY-MOMBERGER, 2012a, p. 526).
A forma de análise é pertinente por ser uma ferramenta de melhor compreensão e interpretação de um
córpus de pesquisa (escritas de si, por exemplo). O pesquisador, ao ter acesso a determinado texto, narrativa, ou
qualquer outro material, necessita “trabalha-lo” com intensidade e aprofundamento para assim, poder ouvir e colher
as singularidades tão enriquecedoras para as pesquisas biográficas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se por um lado para alguns, as pesquisas biográficas possuem frágil consistência metodológica, de outro, essas
dão origem a práticas e reflexões estimulantes e férteis e contam com defensores vorazes. Através desta abordagem
podem-se realizar reflexões sobre “como o indivíduo torna-se um indivíduo?” (DELORY-MOMBERGER, 2012a,
p. 523), provocando e estimulando, movimentos de mudança e emancipação. Para o pesquisador não é apenas uma
entrevista ou um documento, mas sim, uma forma de “colher” e apreender singularidades. Não se pretende aqui
nestas linhas, determinar o arcabouço metodológico mais adequado para as pesquisas sobre histórias de vida, mas
sim, defender a necessidade de recursos metodológicos que auxiliem na resposta à pergunta: “Quem entrevista quem
na entrevista de pesquisa biográfica?” (DELORY-MOMBERGER, 2012a, p. 527) .
Relativamente ao enquadramento das pesquisas, novamente não se têm aqui qualquer tipo de objetivo
prescritivo. Como docentes, face às limitações e possibilidades de nossa profissão, buscamos percursos que
possibilitem aprendizagens e trocas em nosso cotidiano. “O educador é o principal utensílio do seu trabalho e que é
o agente principal de sua formação”. (NÓVOA, 1992, p. 114). Acreditamos para tanto que as pesquisas biográficas
que trazem como objetivo a reflexão da prática/formação e objetivos emancipatórios relacionados com a investigação
formação poderiam estar mais presentes, nas produções sobre histórias de vida.
Para o movimento socioeducativo das histórias de vida em formação e da pesquisa (auto)
biográfica em Educação, refletir e escrever sobre as experiências e expectativas de vida,
justifica-se pela mirada de uma formação-emancipação, cujas origens estão culturalmente
enraizadas no poder-emancipador do retorno reflexivo sobre si mesmo. (PASSEGGI,
ABRAHÃO, DELORY-MOMBERGER, 2012, p.32).
Referências Bibliográficas
BOLÍVAR, A. Metodología de la investigación biográfico-narrativa: recogida y análisis de dados. In: Dimensões
epistemológicas e metodológicas da pesquisa (auto)biográfica: Tomo I. Natal: EDUFRN; Porto Alegre:
EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2012. Coleção pesquisa (Auto)Biográfica: temas transversais.
DELORY-MOMBERGER, C. “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?” In: Dimensões epistemológicas
e metodológicas da pesquisa (auto)biográfica: Tomo I. Natal:EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador:
EDUNEB, 2012b. Coleção pesquisa (Auto)Biográfica: temas transversais.
PINEAU, Gaston; MICHÈLE, Marie. Produire sa vie. Autoformation et autobiographie. Montreal: Editions Saint
Martin, 1983.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
INTRODUÇÃO
O Instituto das Irmãs Passionistas, que tem seu início com a figura de Maria Maddalena Frescobaldi
Capponi, insere-se em uma Europa do século XVIII e XIX, marcada por guerras. Todo este contexto
interfere diretamente nos passos percorridos por Frescobaldi até a criação da sua obra social.
Depois da sua morte, tem-se o declínio, seguido da reativação do Instituto, com as Irmãs Crocifissa
e Pia, juntamente com Monsenhor Fiammetti. Esse novo momento permite fortalecer os pilares desta
congregação católica italiana, até sua chegada ao Brasil, em 1919, a convite dos Padres Passionistas.
Tem-se nessa época uma onda de imigração, que teve seu início no final do século XIX, com a crise
europeia. O cenário brasileiro e mais especificadamente paranaense, do período, também era propício para
a imigração. Os que aqui chegavam, contribuíam para o crescimento populacional e organização das vilas,
através da construção de igrejas, comércios e escolas.
O desenrolar desta história, teve como reflexo a fundação da colônia italiana Alfredo Chaves,
uma das únicas a se tornar município no Paraná, em 1892, passando a ser chamada de “Colombo”. Os
imigrantes italianos que chegaram nesta colônia tinham saído de uma Itália recém unificada, logo não
tinham cristalizado a consciência de pertencimento étnico vinculado ao seu país de origem; o que os faziam
sentir parte de uma identidade eram os costumes campesinos e a religião católica.
Deste modo, não tardou para que estes imigrantes construíssem em Colombo uma Igreja e uma
escola, que compactuasse com seus valores culturais, criando-se assim o Colégio Santo Antonio, que até
hoje tem relação com as Irmãs Passionistas.
Para compreender a filosofia destas religiosas, desde a sua criação, reativação e chegada a Colombo,
teve-se como fonte de pesquisa os documentos organizados pelas Irmãs, junto com cartas escritas pelos
personagens de destaque neste trabalho.
Olhar as congregações por dentro, ainda que através de textos produzidos pelas irmãs
para si mesmas, é adentrar um espaço perpassado por restrições. Enveredar pelas formas
através das quais as freiras se compreendiam a si mesmas, como pensavam sua instituição
e suas ações e as reinventavam, é esbarrar constantemente em silêncios. No entanto, esses
documentos fornecem à pesquisa muito mais do que a simples constatação de censuras.
(LEONARDI, 2011, p. 107)
O movimento tinha, por objetivo, preparar pequenos núcleos cristãos destinados a serem
fermento evangélicos nas Cortes Europeias e entre a aristocracia, para influenciar na
atuação de uma política a favor da doutrina da Igreja e para a promoção das classes sociais
mais necessitadas. (KOINONIA, 1999, p. 10)
Após o período em Viena, no início dos anos de 1800, Frescobaldi retorna para Florença e se torna
membro do grupo Amigos e Amigas de Florença, lá começa a frequentar o Hospital de S. Bonifazio, onde
se depara com a figura da mulher prostituída. Através de sua relação com Lucrezia Ricasoli,
Lucrezia destacou a importância de criar uma escola, em carta endereçada ao diretor da Amizade
Cristã, Lanteri, em 2 de setembro de 1808. Porém, a ideia da escola não deu certo, pois segundo Lucrezia,
na mesma carta, “por não dispormos de uma casa particular, como desejávamos, o que se aprendia durante
o dia, voltando de tarde para casa, tudo se perdia”2.
Os documentos não fornecem informações precisas sobre a escola, mas percebe-se, desde o início,
na obra de participação de Maria Maddalena, o ideal de trabalhar com uma filosofia religiosa, atrelado a
uma educação escolar.
Mesmo não se concretizando a abertura da escola, teve-se um aumento no número de voluntárias
trabalhando em prol das mulheres, no Hospital, organizando-se assim a fundação da Confraria As Ancilas
da Caridade. Procurando ajudar estas jovens entregues a prostituição, em 1811, Maria Maddalena aluga
uma casa, para acolher estas, oferecendo uma instrução intelectual e moral, voltada também para o trabalho.
Desta forma, uma ação social iniciada em um hospital, desenvolve-se para um ambiente físico
próprio. Em 1812 tem-se a abertura oficial do local, chamado Ritiro Santa Maria Maddalena Penitente, e,
em 1815, quatro jovens frequentadoras da casa tomaram o hábito religioso, orientadas por Frescobaldi, que
1 “Le due amiche si sentono interpellate a rispondere in maniera adeguata a questa sfida. Compren-
dono che non si tratta di aiutare solo un corpo malato, ma di sanare le irigini di una malattia più grave, l’i-
gnoranza. La proposta per aiutarle è presto pensata e attuata: <<... principiammo a mettere su una scuola>>
- scrive Lucrezia”
Para todos os textos em italianos apresentado nesse artigo, fez-se a livre tradução, mantendo os originais
em nota de rodapé.
2 “[...] non essendo riuscita in una casa particolare, come si desiderava, poiché quello che si otteneva
nel giorno si perdeva nel ritornare alle loro case la sera [...]”
a partir de então se tornaria a fundadora da congregação católica conhecida hoje como Irmãs Passionistas
de São Paulo da Cruz.
Com a morte do seu marido, Pedro Roberto, em 1825, Maria Maddalena se dedicou ainda mais as
suas obras, e assim mais pessoas abraçam a sua ideia, entre elas, Luisa Tognoni, que aproximadamente na
metade da década de 1830, entra para o Ritiro e ao tomar o hábito recebe o nome de Irmã Crocifissa do
Calvário.
Após a morte de Maria Maddalena, em 08 de abril de 1839, Ir. Crocifissa assume a missão de guiar
a obra, com a ajuda de Michelagnoli, superintendente do Ritiro e Gino Capponi, filho de Frescobaldi.
Os dois proporcionaram a Instituição uma série de mudanças, controlando a entrada de novas vocações.
Consequentemente, essas ações trouxeram um não crescimento ao Instituto.
Em 1865, com a transferência da capital do novo Reino da Itália, de Turim para Florença, obrigam a
retirada da cidade do Ritiro. Então, Gino entrega a obra para outro instituto religioso; com isso em 1866, a
comunidade foi dissolvida. A partir de então, três religiosos surgem, para manter viva a obra de Frescobaldi.
Do declínio à reativação
Ir. Crocifissa, que nasceu no dia 24 de dezembro de 1819 e entrou com apenas 17 anos no Ritiro,
conviveu três anos com Frescobaldi, antes de assumir a direção da obra da Marquesa, após a sua morte. No
início de sua liderança na obra de Maria Maddalena, o Ritiro vivia em perfeita harmonia. Porém, em 1866
tem-se a supressão da Instituição e as religiosas que ali viviam se dispersaram para outros conventos, menos
Ir. Crocifissa que quis ficar a disposição para o designo de reerguer a obra.
Sem o hábito religioso, Crocifissa passa a procurar uma casa onde possa se alojar e dar início a
algum trabalho, que lhe garantisse o sustento econômico e que também estivesse de acordo sobre ajudar a
mocidade. Neste meio tempo, se comunica via cartas com Ir. Pia Frosali, nascida em 30 de janeiro de 1840,
que aos 22 anos de idade entrou para o Instituto, naquele tempo coordenado por Ir. Crocifissa.
Ao encontrar uma casa onde pudessem dar continuidade as obras de Frescobaldi, Crocifissa escreve
a Pia, no dia 18 de março de 1867:
Em resposta a sua última e para sua tranquilidade digo-lhe somente que encontrei a casa de
cinco cômodos em Castel de Signa, porque aqui não é possível encontrar senão a um preço
muito alto. Se eu devesse ir morar lá sozinha, não poderia adaptar-me, mas com você vou
contente. Conforme as coisas se desenrolarem, parece que o Senhor nos quer naquele lugar.
Bem, esperemos!3
Assim, unida a Pia, as duas dão início a uma escola de trabalhos e curso primário. Não traziam o
hábito religioso, mas mantinham a filosofia do Retiro Capponi, destinando a obra a um grupo de crianças
e jovens. Em carta a Carraresi, secretário de Gino Capponi, datada em 23 de maio de 1867, Crocifissa
escreve:
3 “In replica dell’ultima tua e per tua quiete ti dico soltanto che la casa l’ho trovata di cinque stanze nel Cal-
tello di Signa, perché qua non è stato possibile trovarne, se non a prezzo enorme. Se là vi dovessi andar sola, non
potrei adattarmi, ma con te ci vado volentieri. A come sono andate le cose, pare che il Signore ci voglia in quel luogo.
Speriamo bene!”
Comecei já a dar aula a algumas crianças, e acredito que logo aumentará o número.
No próximo mês virão quatro jovens de 15 a 20 anos para aprender ler e escrever, e
também aritmética, somente. Se o senhor tiver, para favorecer-me, algum livro instrutivo
e moralizante, em vários exemplares, faria uma grande caridade, porque assim poderei
ensinar a vários ao mesmo tempo.4
De 1868 a 1870, Crocifissa e Pia tiveram várias mudanças, até se estabelecerem definitivamente
em 1870, em Castel di Signa, próximo da paróquia de Dom Giuseppe Fiammetti, que nasceu no dia 23 de
março de 1834 e com apenas 11 anos já se ligava a filosofia religiosa, quando entrou para o seminário. Nesta
época, o diretor espiritual das ex-ancilas morre e Fiammetti passa a orientar as duas.
O ano de 1872 marca a reativação do Instituto das Irmãs, quando Ir. Crocifissa e Ir. Pia retomam o
hábito religioso, dando início ao Instituto Feminino de S. Paulo da Cruz, reconhecida posteriormente como
Confraria da Congregação dos Passionistas, assinando “um contrato com o Ministério do Interior para os
serviços educativos das convertidas e periclitantes, jovens marcadas pela miséria, violência, ignorância e
exploração”. (KOINONIA, 1999, p.24,)
O legado de Ir. Crocifissa na Instituição foi encerrado no dia 23 de fevereiro de 1879, data da sua
morte. A partir de então, quem assume a liderança do Ritiro é a Ir. Pia. Durante o seu governo, a Congregação
teve um grande desenvolvimento, com ela a pequena comunidade Passionista começa a se expandir.
Neste período de prosperidade para as Irmãs, entra para o Instituto, Angélica Michelagnoli, que com
a morte da Ir. Pia, no ano de 1896, assume a direção das Irmãs. Ir. Angélica dá continuidade ao trabalho com
as jovens e meninas órfãs. Neste período, Fiammetti continua a orientar as Irmãs, até o dia 3 de agosto de
1905, data de sua morre. Todo o trabalho desenvolvido no processo de reativação e afirmação do Instituto
das Irmãs Passionistas permitiram que estas se expandissem para outros países.
4 “Ho già cominciato a fare scuola ad alcune bambine, e credo chepresto aumenterà il numero. Nel mese
venturo vengono quattro ragazze dai 15 ai vent’anni per imparare leggere, scrivere ed aritmetica solamente. Se Ella
avesse da potermi favorire con qualche libro instruttivo e moralizzato e a più copie, mi farebbe una grande carità,
perché così potrei farne leggere più insieme.”
Diferente das demais escolas que funcionavam junto às sociedades de mútuo socorro do
centro da capital, a Scuola Santo Antonio trazia como simbologia não o nome de um herói
da pátria, mas a de um santo católico. [...] a Scuola Santo Antonio tinha a aprovação dos
membros da igreja católica local. Sendo assim, ainda que a escola usufruísse do material
disposto pelo governo italiano, garantia que a catequese e a moral católica fossem ensinadas
irrestritamente nas aulas. (MASCHIO, 2012, p.284)
Porém, esta escola atendia apenas aos filhos dos sócios, meninos. Com o desejo de manter viva
a cultura da pátria de origem, junto com a propagação dos ideias católicos, no ano de 1917 o Colégio é
expandido para o atendimento de meninos e meninas, sendo coordenado pelas Irmãs Apóstolas do Sagrado
Coração de Jesus. Esta Instituição “surgiu, portanto, como elemento importante para a não diluição da
cultura dos italianos e como um ambiente modelador de futuros religiosos”. (ZOCA, 2007, p. 156)
Com a ajuda das religiosas providas de Colombo, a Congregação das Irmãs Passionistas continuavam
a se desenvolver no estado de São Paulo.
Em 1927, tem-se a partida das Irmãs do Sagrado Coração do Colégio Santo Antonio, com isso, a
coordenação de tal instituição passara para as Irmãs Passionistas. Ali as religiosas assumiram a educação
escolar dos descendentes italianos, que viam no catolicismo uma forma de manter sua cultura e tradição,
juntamente com o desenvolvimento de um ambiente modelador para os futuros padres e freiras Passionistas.
A atuação das Irmãs Passionistas em Colombo aconteceu em dois momentos, o primeiro, de 1927
até 1933 e o segundo, de 1951 até hoje. As causas que motivaram a vinda das Irmãs a Colombo, nos
dois momentos, foram: “atendimento à educação até a 4ª série primária, atuação na catequese, Cruzada
Eucarística e a Colaboração na formação dos Seminaristas Passionistas por meio da educação”. (ZOCA,
2007, p.16)
Desde as raízes do Colégio Santo Antonio, a prática católica é priorizada, enfatizando as relações
sociais, que nos remete a tradição dos imigrantes que chegaram nesta cidade. Esta educação católica
desenvolvida nesta instituição de ensino, principalmente na coordenação das Irmãs Passionistas, manteve o
carisma original das obras de Frascobaldi na Itália, mas de forma indireta, pois assumiu-se a possibilidade
de formar no Colégio religiosos que poderiam atuar em outras obras sociais das Passionistas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De um ideal solitário na Itália, Frescobaldi inicia uma pequena obra, objetivando acolher mulheres
prostituídas, através de um trabalho espiritual atrelado ao intelectual. Mesmo após a supressão de sua
obra, os três religiosos que se propuseram a reerguer o Instituto (Ir. Crocifissa, Ir. Pia e Mons. Fiammetti),
preocuparam-se em manter o carisma da reeducação espiritual, mas também moral e intelectual, pois
queriam que aqueles sujeitos que frequentavam o Ritiro, pudessem ter uma reinserção na sociedade.
As histórias de vida aqui destacadas, “capazes de demonstrar as tensões existentes entre a ação
humana e as estruturas sociais, colocando o personagem e seu meio numa relação dialética e assegurando à
História o caráter de um processo com sujeito”, reverberaram em projetos educacionais pela Itália, mas que
chegam ao Brasil, no início do século XX e estão presentes até hoje. (AVELAR, 2010, p. 158)
O crescimento das obras das Irmãs Passionistas pode ter influenciado na perspectiva educacional
desta congregação, que necessitando de mais pessoas para trabalhar em prol da sua causa, buscou orientar
também, educacionalmente os futuros candidatos à vida religiosa. Ressalta-se nesta perspectiva que a
instrução não ficou presa somente a escola, as “práticas educativas têm ocorrido, ao longo do tempo, fora
dessa instituição e, às vezes, com maior força do que se considera, principalmente para certos grupos
sociais e em determinadas épocas”. (LOPES; GALVÃO, 2005, p. 24)
Este exemplo pode ser observado no Colégio Santo Antonio, em Colombo, onde lá surgiram às
primeiras candidatas que foram a São Paulo, auxiliar na primeira obra em que as Irmãs coordenaram neste
país. Pode-se destacar o entrelaçamento que este Colégio possibilitou através da educação católica, como
forma de manter viva a cultura dos imigrantes italianos, desta cidade, juntamente com uma formação
religiosa.
REFERÊNCIAS
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Universidade Católica do Paraná, (Dissertação de mestrado), 2007.
DOCUMENTOS
Carta de Ir. Crocifissa para Ir. Pia (Montughi – 18 de março de 1867)
Introdução
O Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Auto.Biografia, Representações e Subjetividade
- GRIFARS/UFRN/CNPq, liderado pela Professora Dra. Maria da Conceição Passeggi, vem, ao longo dos
últimos anos, desenvolvendo pesquisas com crianças sobre sua educação em diversos contextos, tais como:
hospitalar, quilombola e escola pública regular.
Neste trabalho vamos apresentar um recorte da pesquisa de mestrado que vem sendo empreendida
na cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte. Traremos para discussão como a pesquisa vem sendo
desenvolvida com uma das três crianças com deficiência visual (cegueira), em uma escola regular da rede
municipal pública de ensino.
As atuais pesquisas empreendidas pelos pesquisadores do GRIFARS estão unidas, em primeiro
lugar, por estarem inseridas no campo da Pesquisa (Auto)Biográfica em Educação, e, em segundo lugar, por
utilizarem a mesma metodologia de rodas de conversas que tem a figura de um ET, o Alien, como mediador. A
metodologia presente nas pesquisas segue o protocolo sugerido pela pesquisa interinstitucional “Narrativas
infantis. O que nos contam as crianças sobre a escola da infância?” (MCT/CNPq/CAPES-07/2011-2), o
objetivo geral da referida pesquisa foi “investigar as significações construídas narrativamente por crianças
de 04 a 10 anos de idade acerca das escolas da infância (na Pré-escola e nos anos iniciais do Ensino
Fundamental) em instituições educacionais de municípios de quatro estados da federação: Natal|RN; São
Paulo|SP; Recife|PE; Rio de Janeiro|RJ”, conforme nos explica Passeggi et al. (2014).
Nossa opção pela Pesquisa (Auto)Biográfica se dá por compreendermos que ela contempla a
complexidade dos nossos objetos de estudo. Segundo Passeggi (2010), essa abordagem tem ganhado espaço
nos últimos trinta anos nas Ciências Humanas e Sociais, inscrita num movimento científico e cultural
que impulsionou o retorno do sujeito-ator-autor. Esse fez emergir a valorização das vozes, experiências e
histórias de vida dos indivíduos e dos grupos sociais, antes silenciados e tidos como sem relevância para a
compreensão de seus mundos sociais. Desse modo,
[...] face ao declínio dos grandes paradigmas – estruturalismo, marxismo, behaviorismo
– a linguagem como prática social, o cotidiano como lócus da ação e o saber do senso
comum passam a ocupar um lugar central na tessitura de outros laços entre sujeito/
objeto, indivíduo/ sociedade, determinismo/emancipação, inconsciente/consciência... A
atenção dos pesquisadores centra-se então nas noções de reflexividade, representações,
sentido, crenças, valores... e se volta para a historicidade do sujeito e das aprendizagens.
(PASSEGGI, 2010, p. 1).
Ao adotarmos a perspectiva da pesquisa (auto)biográfica, devemos admitir, como sugerem Rocha
e Passeggi (2013, p. 111) que
[...] as histórias narradas pelas crianças conduzem a processos reflexivos e de reinvenção
de si, não apenas para as crianças que contam suas experiências, mas também para o
pesquisador em formação, pela reflexividade que se desencadeia tanto no ato de ouvir,
quanto no ato de narrar.
A colaboradora da pesquisa é uma menina de oito de anos de idade, matriculada no 2º ano do ensino
fundamental, possui cegueira congênita, faz uso de óculos escuros e bengala. É acompanhada por uma
professora auxiliar em sala de aula. Sempre muito alegre e espontânea, surpreende todas as pessoas que a
rodeiam por ser muito esperta e gostar de conversar.
Metodologia da pesquisa
Partilharmos dos mesmos princípios e métodos do projeto interinstitucional “Narrativas infantis. O
que contam as crianças sobre a escola da infância?” (MCTI/CNPq/CAPES-07/2011-2), contudo, algumas
adequações foram realizadas, sobretudo, no Alien, pois como as crianças da nossa pesquisa tem deficiência
visual foi preciso pensarmos em um boneco-personagem com dimensões maiores que o utilizado no projeto,
e também, com um tecido de textura mais consistente, tendo em vista que as crianças com deficiência visual
enxergam com os outros sentidos, conforme nos esclarece Silva et al (2011, p. 22)
Logo é importante que possamos ampliar o nosso conceito de “ver”, “enxergar”, “olhar”
a partir dos conceitos já existentes para que não incidamos na desconsideração das
possibilidades de a pessoa cega ou com baixa visão interagir socialmente, a “ver” o mundo
a partir dos demais sentidos que lhes restam, ou seja: o tato, a audição, o olfato, o paladar,
os sentidos cinestésicos e os sentidos vestibulares. Um “ver” que também é aprendido.
O trabalho com a diversidade se configura, assim, como uma das finalidades da educação para o
século XXI, que deve ser pautado em uma concepção de ensino-aprendizagem voltada para desenvolver o
aluno como um ser integral e único.
Diante da discussão que apenas iniciamos neste artigo, pretendemos mudar o foco de análise que
até os dias atuais vem se constituindo na pesquisa educacional sobre inclusão de pessoas com deficiência,
ou seja, pretendemos desenvolver um olhar para as práticas pedagógicas, não mais sob a ótica do próprio
professor ou da observação de sua prática educativa, mas queremos ouvir a voz dos sujeitos aos quais essas
práticas se destinam, isto é, queremos fazer ressoar a fala das crianças, especialmente, as crianças cegas que
são nosso objeto de estudo. Nesse sentido, algumas questões surgem problematizando nossa pesquisa: qual
a visão das crianças cegas sobre seu processo de escolarização? Como se sentem e o que pensam sobre seu
processo de escolarização/inclusão em sala de aula regular? O que pensam sobre suas escolas?
Acreditamos que ninguém melhor que as próprias crianças saberá nos contar sobre sua escola,
sobre sua aprendizagem, sobre sua sala de aula, sobre seu convívio com os colegas e professores etc. Que-
remos legitimar as vozes das crianças por confiar na “verdade” das palavras ditas sobre suas próprias vidas
e assim estabelecer uma relação reflexiva sobre si mesmas, colocando o pesquisador na posição de alguém
que realmente busca descobrir mais, desvelar o universo da criança cega a partir de suas próprias narrativas
e não como alguém que é dono do saber e que, portanto, pode pré-julgar ser “verdade” ou não as experiên-
cias compartilhadas.
Referências Bibliográficas
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MANTOAN, Maria Tereza Égler. (Org.). A integração de pessoas com deficiência: contribuições para uma
reflexão sobre o tema. São Paulo: Memnon, 1998.
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
1 - Introdução
Este conselho que meu pai me deu de deixar de contar às amigas a minha
vida e os meus segredos e escrever no caderno é na verdade bom por um lado
e ruim por outro.
Helena Morley, 25 de novembro de 1894.
Este texto pretende apresentar alguns escritos autobiográficos, livros que foram
publicados a partir de diários e outras cadernetas e cadernos escolares, no final do século XIX,
em Diamantina-MG, arquivados pelos seus produtores. Além desses livros, iremos descrever
uma série de diários produzidos coletivamente por alunas duma escola normal rural, na
mesma cidade, em meados do século XX. Portanto, trata-se de duas categorias distintas de
escrita autobiográfica.
A primeira delas – livros de memórias – forjados por uma escrita mais livre, talvez,
feita na intimidade, no quarto de portas fechadas, no fundo do quintal, às escondidas, e que
atendia a diferentes demandas sociais e afetivas daqueles que as criavam. Porém, uma vez que
eles foram transformados em livros, certamente, revisões e limpezas foram realizadas,
deformando o texto original. Já a segunda categoria de escrita - o “Nosso Diário” escolar -,
seria um ‘jornal diário’ que relataria o dia de funcionamento da escola. Esse jornal tinha, no
mínimo, dois objetivos: informar sobre a rotina da escola para seus gestores e, desenvolver
nos diaristas as habilidades necessárias à prática científica da escrita.
Abordaremos a produção desses materiais como prática de arquivamento das vivências
da intimidade, da vida privada. Assim como registro do cotidiano das experiências sociais e
coletivas de uma população. Por isso, defendemos os diários como testemunhos históricos
positivos1, embora marcados por sutis armadilhas discursivas que dificultam sua
interpretação. Isso em parte por se tratar do resultado de gestos voluntários de alguém que
quer arquivar algo para o futuro, ou uma folha de informações a serem lidas coletivamente.
Nos dois casos, os documentos aqui reunidos são filtrados, são edições, seleções e cortes da
realidade vivida. O diário seria, entre outras coisas, o saldo por escrito de uma triagem feita de
acontecimentos cotidianos, segundo as convicções do escrivão e as condições postas pela sua
situação sócio-institucional.
O texto será composto de dois momentos. No primeiro, apresentaremos parte do
corpus selecionando, buscando caracterizar as condições históricas que os permitiram
emergir. E, para fechar essa parte, comentaremos algumas hipóteses sobre as potencialidades
dessa massa de textos como fonte para a história da educação.
E, na segunda parte, aventaremos alguns dados teóricos e metodológicos acerca da
exploração de autobiografias como fonte de pesquisa histórica. Apontaremos, então, alguns
campos de conhecimento que estudam a prática da escrita da história individual pelo próprio
indivíduo. Dessas referências analisaremos sugestões, maneiras de abordar os textos
autobiográficos como estojo de informações, testemunhos, vestígios e depoimentos sobre
determinadas experiências históricas.
Antes de iniciar a descrição das fontes, convém sublinhar que a ocasião de surgimento
desses livros autobiográficos e diários flutua entre os anos de 1940 e 1970, tendo como
nascedouro o território de Diamantina-MG. É preciso ressaltar que esse contexto estava
fortemente marcado pelos fenômenos do êxodo rural, pelas políticas de urbanização e
industrialização da sociedade brasileira. Lembraremos esses aspectos por considerar que o
corpus em questão está explicitamente interessado no jogo de forças estabelecido entre os
adjetivos arcaico e moderno, ou melhor: o urbano como atualizado e o rural como obsoleto.
Se se considerar o conceito acima, fica explicito que toda ação humana pode assumir a
feição de fonte histórica. Isso claro, se ela tiver sido gravada, textualmente ou não, e persistir
1
São relatos que, na maioria das vezes, foram escritos em primeira pessoa se baseiam em fatos e na experiência
cotidiana.
a corrosão do tempo. Os documentos em questão nesse estudo persistiram ao tempo, embora
desgastados, eles se transformaram em acontecimentos do passado cotidiano e escolar da
região de Diamantina-MG. A exemplo disso, veja abaixo o que diz um memorialista sobre sua
marca material.
A escrita no estilo de diário, por seu lado, também opera com verbos no pretérito, mas
pretende lembrar-se, normalmente, de um passado recentíssimo, e, além disso, usa o
dispositivo da datação no cabeçalho de cada texto, para marcar a passagem dos dias. Esse
aspecto, porém, não aparece no livro de memórias acima citado, embora várias datas
apareçam salteadas no corpo do texto.
Focaremos igualmente a obra Minha vida de menina (1893, 1895), da normalista
Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant). Trata-se dos escritos avulsos
de uma adolescente que foi publicado em livro, em 1942, nos quais ela narra o dia-a-dia em
família, as relações de vizinhança, as experiências escolares, as atividades econômicas, o fim
da escravidão, a alimentação, a religiosidade, a moda entre outros temas. Por ser filha de
garimpeiros, a menina desenha um significativo quadro da crise da mineração e das
expectativas produzidas por essa circunstância.
Essa obra preservou a datação dia-a-dia, como se quisesse se manter na forma de
diário, porém, o fato de ter sido manipulada para publicação certamente implicou vários
cortes e correções. Apesar disso, diferente de Arno (que escrevia nos anos de 1940, sobre sua
infância e juventude), Morley publicava, na mesma época (1940), os escritos de 1893-1895.
Para Morley o diário era uma alteridade. Ela reconhecia o diário como alguém
diferente do grupo social que habitava, mas o tratava como um amigo passivo, que apenas
ouvia... íntimo. O diário seria como os vestígios de conversas secretas, datadas, escritos para
serem lidos no futuro, e, ao mesmo tempo, era uma maneira de dizer de forma livre, privada,
o que se queria dizer espontaneamente sem temor.
Não se pode esquecer que as provocações que geram os pensamentos que por sua vez
dão conteúdos aos escritos diários são acontecimentos sociais diversos, que impactam os
sentidos, os valores, as ideias dos diaristas de fora para dentro. O texto seria, portanto, uma
forma de objetivação da reação subjetiva, dos pensamentos e emoções, acarretadas por tais
afetações sociais.
Diferente dos elementos de seu grupo social, o diário seria como que uma pessoa de
outra cultura, capaz de ouvir a moça como um estrangeiro, respeitando seus pontos de vista.
O diário seria diverso, um amigo imediato, democrático.
O diário significava o lugar de arquivar os pensamentos fortes, objetivos e também
involuntários. A forma empregada era “narração simples”, quase rudimentar. Uma narração
da “vida” social e “escolar” (ANTIPOFF, 1948, p. 16). “Escrevo tudo neste caderno que é o
meu confidente e amigo único.” (MORLEY, 25 de novembro). Concretamente, ela parece
conversar com uma pessoa a quem se confiam segredos, ou talvez um interlocutor intelectual
que desempenha o papel de “espaço de análise e questionamento, um laboratório de
introspecção” (LEJEUNE, 2008, p. 262).
Dir-se-ia ainda que o diário realizava a intermediária entre a realidade e a
subjetividade, revelando, as vezes, um pensamento quase imoral, difícil de ser praticado
oralmente, num jantar, na rua da Quitanda, ou noutro situação pública. O diário, como “marca
material”, seria a morada da memória dessas turbulências mentais e a possibilidade de intrigas
geradas pelas tensões da vida social persistirem ao tempo.
O diário era a maneira dos pensamentos críticos não serem destruídos pela regras do
regime moral vigente, pois estariam arquivados para serem revistos no futuro. “O diário é um
espaço onde o eu escapa momentaneamente à pressão social, se refugia numa bolha onde
pode abrir sem risco, antes de voltar, mais leve, ao mundo real” (LEJEUNE, 2008, p. 262).
“Hoje vou contar aqui uma coisa que eu não quero escrever para Seu Sebastião e que só
confiarei a este caderno, que me guardará ainda por uns dias o segredo”, declarou a menina
ruiva, Morley, em 25 de novembro, 1894.
Com efeito, o diário, como forma de vida, era um trabalho de composição árduo que
impactava no corpo. Deforma o corpo. Era uma prática social que envolvia desabafo,
pensamento, resistência e ação. “Depois deste conselho de meu pai de conversar com o
caderno a minha vida piorou e penso que emagreci ainda mais” (MORLEY, 25 novembro).
Cumpre sublinhar que a produção dos cadernos como instrumrnto de registro e observação de
um período da vida, consumia tempo e energia, significava dedicação.
Um traço metodológico positivo desses dois livros acima citados é que eles se
restringem a ambiência de uma mesma família, permitindo um mergulho profundo nesse
grupo social, porém, o material versa sobre elementos das elites locais, aspecto que reduz as
possibilidades de generalização para a população como um todo, uma vez que se refere ao
estilo de vida de uma minoria instruída.
Doravante, o Nosso Diário (1950-1972), registros das normalistas da Escola Normal
Regional D. Joaquim Silvério de Souza complementam o corpus delimitado para esse
trabalho. É imperativo apontar as finalidades pelas quais essa instituição foi criada. Fundada
na década de 1950, tal escola tinha como objetivo a formação de professoras para o meio
rural. Situava-se em Conselheiro Mata, distrito rural de Diamantina-MG, e assumirá um
método formativo que girava em torno das hipóteses escolanovistas, mas atravessadas por
uma ambiência religiosa. Era marcada ainda por um ensino experimental, defendendo formas
de aprender com a mão e os órgãos do sentido.
A produção de diários como prática de formação e reflexão foi um meio pedagógico
característico dessa escola normal, pois as normalistas descreveriam minuciosamente a
realidade por elas observada (ANTIPOFF, 1948). Os escritos eram produzidos com o intuito
de armazenar dados do cotidiano da escola rural. Desse modo, uma aluna era escalada para
esse trabalho conforme uma lista mensal, logo ela deveria observar e registrar os fatos da
maneira mais objetiva possível.
O “Nosso Diário” deveria funcionar como um “relato de viagem”, a princípio, uma
escrita quase pueril, mas “objetiva”, sistemática, e de cunho científico. Os dados deveriam ser
fonte de conhecimento, de deliberação e ação. Um plano de trabalho, talvez. Esse diário se
constituiria numa “narração simples” da vida, do passar do tempo no espaço da escola rural,
que desenvolveria a capacidade de formar hábitos de trabalho e vida comum (ANTIPOFF,
1948).
Desse modo, o “Nosso Diário” funcionava como um registrado do trabalho de
observação num dado ‘sítio’ de informação. Mas era ele também o lugar no qual “cada
narrador começa a revelar seu próprio jeito de dizer as coisas” (ANTIPOFF, 1948). Portanto,
as folhas avulsas e os cadernos, quase íntimas, mas nem sempre, significariam locais de
iniciação a um estilo de expressão, um exercício de formação literária. “Mantém-se um diário
porque se gosta de escrever” (LEJEUNE, 2008, p. 264), ou porque se quer que as normalistas
aprendam a gostar de escrever.
“Amanhã contarei aqui, meu caderno amigo, o que resolver sobre o broche furado sem
brilhante no meio”, escreveu Morley, em 25 de novermbro, 1894.
O linguista francês, Philipe Lejeune, no seu clássico “Pacto autobiográfico”, sustenta
um argumento que diz ser o diário um plano de trabalho, uma forma de produzir deliberações
e seguir em frente. “Fazer o balanço de hoje significa se preparar para agir amanhã.” (2008, p.
263). “Há em mim debate e diálogo: passo a palavra às diferentes vozes de meu ‘foro íntimo’.
Essas discussões podem se repetir, levar a uma decisão, ou ao contrário, estimular a esitação”
(Idem).
Em verdade, “Nosso Diário” são manuscritos relatando às condições climáticas, as
tarefas cotidianas, as atividades pedagógicas, as refeições, entre outras práticas do
funcionamento da realidade escolar. Um importante elemento a ser destacado nos diários são
as observações subjetivas apresentadas, as alegrias e tristezas, as atitudes censuráveis ou os
comportamentos inadequados das colegas, o pensamento do dia, as anedotas e a elaboração de
desenhos sobre as tarefas realizas no dia ou sobre assuntos das aulas.
Os diários deveriam ser “autênticos”, “trazer a tona coisas deveras interessantes” que
uma vez objetivadas, descritas, serviriam de caminho para a elaboração de algum plano de
intervenção social que pudesse fazer progredir a qualidade de vida no “ambiente rural”
(ANTIPOFF, 1948, p. 18). “O diário, advoga o estudioso, também permite acompanhar de
perto uma tomada de decisão” (LEJEUNE, 2008, p. 262). Por certo então, essa elaboração das
observações do ambiente e a preparação por escrito das mesmas era um instrumento mais ou
menos precioso na hora de fazer escolhas e agir.
Não era por acaso que ao final do dia, a diarista deveria ler para as colegas e
professoras o texto, e essas sugeriam e corrigiam alguns trechos. A estratégia dos diários
materializaria o exercício da observação e do registro, para que as normalistas, quando
professoras, constituíssem uma quantidade de dados objetivos sobre as escolas de distantes
comunidades rurais onde viessem a lecionar. Abaixo pode-se ver como o “Nosso Diário”
promovia a materialização de certas observações da vida cotidiana da escola normal.
Essa passagem acima formulada pelo historiador Francês apresenta uma constatação,
qual seja, o lapso por parte dos historiadores quanto ao uso dos diários pessoais como fonte de
pesquisa. Ele parece perplexo em relação a essa atitude passiva da historiografia no trato com
tal artefato cultural. E ao mesmo tempo parece convocar seus colegas a entrarem na disputa e
no debate acerca desse objeto ao lado dos Estudos Literários.
A escrita de diários, cartas, memórias pode estar entrelaçada pela necessidade de
invenção da identidade pessoal e social. Assim, a narrativa visa responder a uma
autoindagação: quem sou eu?
A escrita autobiográfica é um elemento de interesse na produção da cultura ocidental
há séculos, ou pelo menos desde que Santo Agostinho deu a ver suas Confissões. Mas é
preciso ressaltar que esse interesse flutua segundo época e lugares. Conforme Viñao, a
preocupação recente da historiografia com esse documento pode estar relacionada a mudanças
na cultura historiográfica que “durante uma longa temporada se dedicou a “aspetos
estruturales o a la génesis y evolución em el tiempo de procesos de larga duración em los que
los sujetos, como tales, desparecían” (VIÑAO, 2000, p. 9).
Já o problema para o campo da história da educação era outro, precisava-se combater
uma historiografia de ideias sem contexto e sem sujeitos. Para Viñao (2000, p. 9) “y en el
caso de la história de la educación, por último, porque lo habitual, hasta fechar no muy
lejanas, era tanto o predomínio de los discursos especialistas y normativistas, como el de uma
história abstrata e irreal de unas ideas o, como se decía, pensamiento pedagógico”. Mais uma
vez se nota uma renovação de método para resistir a uma história desencarnada e atemporal.
A escalada para uma história que também descreve vida de pessoas comuns, não
representativas das elites políticas, religiosas e militares reforçou os investimentos em fontes
autobiográficas. Nesta fecunda perspectiva, Viñao (2000, p. 10) sublinha que “en el campo de
la historia social, por la historia de los de abajo y de las llamadas classes subalternas al
intentar sacar a luz y revalorizar la biografia personal de determinados protagosniostas de los
movimentos obreros y populares, o de personagens anónimos, y aparentemente irrelevantes”.
Essa demanda revela , portanto, uma falha da historiografia, qual seja, a de pensar que a vida
social é feita apenas pelos grandes vultos.
Se por um lado os documentos pessoais se tornaram um rico caminho para outras
histórias da educação, por outro, eles colocam alguns problemas de classificação, uma vez
que são bastante diversificados. Partindo dessa premissa, Viñao (2000, p. 12) ressalta que “lá
diversidad y variedad de este tipo de textos por debajo de su aparente uniformidad”. Estudar
tal aparência exige, “primero, establecer una tipologia de los mismos cuya construcción,
cuando se há intentado con motivo de algún catálogo, inventário o estúdio, há mostrado su
evolución temporal e las dificultades que conllevan el establecimiento y la caracterización de
los diversos tipos y modalidades”. Vale ressaltar aqui que tais formas de escrita são variáveis
conforme a época e autor, o que também resulta em problemas de identificação, descrição,
categorização e seriação dos textos autobiográficos.
Quando se escreve sobre si, de forma a arquitetar uma unidade lógica e linear da vida,
também se produz uma invenção literária a partir de experiências reais, objetivas e subjetivas.
Porém, isso não quer dizer que se fabrica ficção pura, mas sim, um entrelaçamento entre o que
foi e o que memória e a narrativa permitem dizer desse passado. O resultado dessa produção,
como nota Viñao (2000, p. 15), pode ser paradoxal e sedutor. “Cuando lo público se privatiza,
lo privado se hace público y deviene objeto de interés geral. Ocupa el espacio de lo público,
transformando los refúgios del yo em refúgios, al menos potencialmente, de todos”. Uma vez
que a invenção do eu ganhou publicidade, ela pode desnaturalizar o binômio privado/público
e assim servir de norte para outras pessoas organizarem suas vivências a partir da comparação
e do exemplo.
Assim, a escrita autobiográfica funciona como espelho para outras pessoas, uma vez
que a intimidade é publicada, ela serve de parâmetros para outros indivíduos ordenarem o
caldo e o caos de suas vivências. Ora, se a ideia de espelho se sustentar, pode-se dizer,
portanto, que tal escrita se faz a partir da apropriação de elementos do contexto social comuns
ao tipo de sociabilidade da qual se comunga.
Ana Galvão, investigadora interessada na questão da cultura escrita, entende que o
“gênero (auto)biográfico tem sido objeto de estudos por historiadores – ‘micro-historiadores’
–, na medida em que coloca no centro da atividade de pesquisa dois problemas nucleares e
pouco resolvidos para a História: a memória e a relação entre indivíduo e meio social”
(GALVÃO, 2006). Desse argumento vale comentar o termo “pouco resolvidos”, pois indica
que a fonte autobiográfica poderia ser uma das chaves para avançar sobre o problema: como o
social se revela no indivíduo, assim como este espelha aquele.
Parece-nos que a narrativa de si só pode ganhar sentido se costurada a uma narrativa
do entorno de si, ou seja, o ‘meio social’. Desse modo, o personagem ao contar sua vida
pessoal, elaboraria um vaivém entre o eu e o contexto e, logo, ao se construir, também
construiria uma escrita testemunhal de sua época. Portanto, a escrita de si pode ser vista como
história espontânea, amadora, se quiser. E mais que isso, ela pode significar um invólucro de
indícios históricos, tricotando uma gama vasta de temas que dizem respeito à esfera da vida
social e privada. Ela demonstra, provavelmente, a coletividade que circunda e condiciona o
ator social, que o força a dizer umas coisas e a calar-se sobre outras.
Outra preocupação metodológica é considerar que a centralidade do indivíduo reserva
armadilhas interpretativas entre o que foi e o que poderia ter sido sua experiência, visto que o
autor produz um movimento contínuo e entrelaçado entre a exposição do real e a criação
literária. Segundo Verena Alberti (1991, p. 66) “o ancoramento ao indivíduo – que em
princípio se destaca ainda mais no caso da autobiografia – não implica uma posição
‘monolítica’ e ‘linear’ do sujeito da criação, uma vez que o escritor, no processo de produção
da narrativa, se move continuamente entre o que é e o que poderia ser”. Aqui, portanto, o
problema para o historiador é o de como separar o que foi da criação literária.
Para Alberti a autobiografia reúne, organiza e completa as lacunas da memória. “Isso
ocorre porque a literatura constitui uma das modalidades de expressão e operação da
totalidade do indivíduo”. Logo, deve-se forjar um sujeito não despedaçado. Por isso, “no
processo de criação, o escritor procura, em seu foro íntimo, na completude de sua solidão,
uma lógica cósmica que reúne ao mesmo tempo sua experiência de vida, a experiência do
mundo e o incomensurável”. Criação como concatenação coerente dos estilhaços de memória,
às vezes, inconciliáveis: “dando-lhes sentido e conferindo uma totalidade própria àquilo que
antes parecia fragmentado” (1991, p. 72). Ao historiador compete desmontar esses arranjos e
diagnosticar as contradições.
Cabe sublinhar que a escrita de si é o lugar da incongruência, do entrelaçamento
inovador entre o arcaico e o moderno, entre a informação e a ficção. “Paradoxalmente”,
escreve Albert (1991, p. 73), a autobiografia, “nascida e legitimada no contexto da
modernidade, atualiza uma modalidade discursiva, que, segundo Benjamin, estaria
retrocedendo para o arcaico”. Ela era, no mundo pré-moderno, um dos discursos pedagógicos
de harmonização social, de manutenção da tradição.
Com efeito, essa afirmação do indivíduo via construção narrativa, movendo-se em
direção à ficção, defronta-se com os limites postos pelas barreiras do real condicionando o
acordo autobiográfico. Alberti (1991, p. 74) observou que para o “escritor, a tensão entre o
imaginário e o real sofre um rebatimento para o plano do ‘eu’”. Desse modo, o imaginário
tem relação direta com o “ângulo de refração” das experiências pessoais do escritor. “Assim,
ao mesmo tempo em que o imaginário permite a transformação do escritor em personagem
que nada tem a ver com ele, tal transformação é alimentada pela refração de sua experiência
pessoal”. Isso matiza a qualidade ficcional do personagem, recolocando-o no seu contexto
social.
Podemos supor que a tensão entre o imaginário e o real, de que se ocupa a escrita de
si, acaba por efetivar um resultado que, se não observado, entrega ao pesquisador ideias
distorcidas da realidade como sendo o fato ocorrido, já que também na autobiografia se
pratica uma linguagem simbólica.
Alberti (1991, p. 77) coloca essa questão da seguinte maneira: “tomando-se o próprio
texto autobiográfico, é possível supor que, como texto, também se aproxima do relato
mítico”. Em outras palavras, uma fabulação edificante. Assim se criaria “uma história
narrada, na qual se justapõem contradições, que caminha em direção a uma solução final,
espécie de alívio para a contradição antes experimentada entre o que ‘fui’ e o que ‘sou’”.
Logo, o personagem construído como um projeto sonega as contradições para se chegar num
ápice. Contudo, mesmo mítica, tal ficção estará suturada de realidade.
Raymond Williams (1984, p.13) adverte que a escrita autobiográfica esconde
intenções subjetivas. “Ainda que necessariamente adote procedimentos impessoais de
exposição e análise, há sempre, por trás de tudo, um ímpeto, um engajamento pessoal”. Isto é,
não há relato livre de desejo, de imaginação.
Williams (1984, p. 25) assim se indaga: “será apenas o velho hábito de usar o passado,
os bons tempos de antigamente, como desculpa para criticar o presente? Sem dúvida algo do
gênero está em jogo, mais isso não resolve todas as questões”. Seria preciso descrever como
cada autor formula sua crítica. Assim, “teremos que realizar uma análise precisa de cada tipo
de retrospecção à medida que forem surgindo. Veremos as sucessivas etapas de crítica
fundamentada na retrospecção: a religiosa, a humanista, a política, a cultural. Cada uma
dessas etapas em si merece uma análise”. Tal pensamento sugere formas de escrita pelo jogo
de memória que realiza maneiras distintas e estetizadas de fuga temporal do presente.
A linguística disponibiliza metodologias importantes para a análise das autobiografias.
Nesse sentido, Lejeune (2008, p. 14) apresenta sua definição de autobiografia em quatro
categorias:
DEFINIÇÃO: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de
sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular
a história de sua personalidade. Nessa definição entram em jogo elementos
pertencentes a quatro categorias diferentes:
1. Forma da linguagem:
a) Narrativa;
b) Em prosa.
2. Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade.
3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma
pessoa real) e do narrador
4. Posição do narrador:
a) Identidade do narrador e do personagem principal;
b) Perspectiva retrospectiva da narrativa.
Entretanto, o autor aponta para outros gêneros que circundam essa definição como a
memória, a biografia, o romance pessoal, o poema autobiográfico, o diário e o autorretrato ou
ensaio. Segundo Lejeune (2008), o texto deve ser principalmente uma narrativa, afinal ela é
estruturante nessa escritura. Além disso, destaca-se o caráter retrospectivo desse gênero: “isso
não exclui nem seções de autorretrato, nem diário da obra ou do presente contemporâneo da
redação, nem construções temporais muito complexas” (LEJEUNE, 2008, p. 15). E por fim,
participam dessa composição a vida individual, a formação da personalidade e a história
sociopolítica.
A identidade narrador-personagem principal constitui o componente de análise que
nos auxilia na compreensão do “eu” das escritas autobiográficas. A colocação na primeira
pessoa é utilizada na maior parte das vezes, entretanto pode ocorrer narrativa em primeira
pessoa sem que o narrador seja a mesma pessoa que o personagem principal. Nesse universo,
é completamente possível que haja identidade entre narrador e o personagem principal sem o
emprego da primeira pessoa.
A essa indecisão pode ser acrescida o fato de o uso da identidade do narrador ser
colocado, em alguns casos, em terceira pessoa. Esse artifício foi utilizado em diversas
circunstâncias e causa diversos efeitos. Afinal, sublinha Lejeune (2008, p. 16-17): “falar de si
na terceira pessoa pode implicar tanto um orgulho imenso (...), quanto uma certa forma de
humildade”. Nas duas formas, o narrador assume um distanciamento do personagem que
proporciona resultados de contingência, de desdobramento ou de distanciamento irônico.
Outra apreciação oferecida por Lejeune é o sentido de Pacto autobiográfico, como a
afirmação no texto da identidade do autor. Isso ocorre através de diversas manifestações no
escrito e tem o desígnio de garantir sua assinatura. Nesse contorno, o leitor pode alçar
questões sobre a similaridade, mas não sobre a identidade do autor.
A autobiografia são textos referenciais que da mesma forma que discursos científicos,
históricos ou políticos tem como objetivo fornecer informações a respeito de uma “realidade”
ou uma semelhança sobre o verdadeiro, localizado fora do texto. Essa imagem do real é
denominada por Lejeune como “pacto referencial”.
Considerações finais
Referências bibliográficas
ANTIPOFF, Helena. Coletânea das obras escritas de Helena Antipoff. CDPHA (org). Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1992.
ARAÚJO, Maria da Conceição Ferreira. O diamante que não foi lapidado. Belo Horizonte:
Editora Autor, 1982.
MORLEY, H. Minha vida de mocidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
VIÑAO. A. A modo de prólogo, refúgio del yo, refúgios de otros. In: MOGNOT, Ana
Chrystina Venâncio et all (org.). Refúgio do eu: educação, história e escrita
autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000.
RESUMO
Desenvolvo neste artigo algumas reflexões em torno das narrativas (auto)biográficas, oriundas das discussões
realizadas no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-
UFRN, juntamente com minhas experiências trilhadas enquanto pesquisador implicado neste processo.
Busco problematizar: como as narrativas (auto)biográficas contribuem para o processo de autoformação
do pesquisador no cotidiano da pesquisa com professores iniciantes. Este estudo tem como objetivo
compreender como as narrativas (auto)biográficas possibilitam um processo de autoformação do pesquisador
no cotidiano da pesquisa realizada com professores iniciantes da escola pública fundamental. Trata-se
de uma pesquisa biográfica qualitativa do ponto de vista teórico-metodológico-epistemológico, dando
primazia como espaço/tempo de tessitura do conhecimento o cotidiano escolar tecido junto com professores
iniciantes da escola pública fundamental. Depreendo que as narrativas (auto)biográficas materializadas pela
escrita – a qual venho desenvolvendo e os professores pesquisados também – desempenham um papel
significativo no processo de constituição da identidade do pesquisador, possibilitando a criaçãoconstrução2
de epistemologias, teorizações e reflexões fundamentais que o cotidiano, com seus desdobramentos e
indeterminações apriorísticas ricamente reveladas propiciam. Assim esses dispositivos acessam zonas de
inteligibilidades, suscitam novos modos de praticarpensar o cotidiano e potencializam criativamente o
trabalho de pesquisa, tão necessários na produção do conhecimento hoje.
1 Introdução
As ideias construídas neste artigo são oriundas das minhas práticasdiscussõesreflexões tecidas
ao longo da disciplina “Seminário: Histórias de vida e formação do formador II”, cursada no 2º semestre
de 2013, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-
UFRN, sob orientação da profa. Dra. Maria da Conceição Passeggi, articuladas com minha investigação
de Mestrado em Educação no PPGEd/UFRN, que estou desenvolvendo numa escola localizada em uma
cidade interior do Maranhão, e que trata sobre a mobilização dos saberes e fazeres na prática pedagógica
cotidiana de professores iniciantes do ensino fundamental, pesquisa esta financiada pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Nível Superior-CAPES.
Busco problematizar: como as narrativas (auto)biográficas contribuem para o processo de
autoformação do pesquisador no cotidiano da pesquisa com professores iniciantes?
Este estudo tem como objetivo: compreender como as narrativas (auto)biográficas possibilitam um
processo de autoformação do pesquisador no cotidiano da pesquisa realizada com professores iniciantes
da escola pública fundamental. Trata-se de uma pesquisa biográfica qualitativa do ponto de vista teórico-
metodológico-epistemológico, dando primazia como espaço/tempo de tessitura do conhecimento o cotidiano
escolar; em consonância com essas perspectivas desenvolvo uma investigação bibliográfica, articulada com
minhas reflexões tecidas no cotidiano da pesquisa com professores iniciantes da escola pública fundamental.
Autores como Delory-Momberger (2008), Oliveira (2008; 2012), Nóvoa (2009) entre outros
trazem alguns diálogos que contribuem para ampliar as compreensões acerca do que estou propondo neste
artigo.
Algumas das minhas compreensões acerca do processo investigativo que estou vivenciando,
tenho registrado por meio de escritas (auto)biográficas em um diário, e que tenho percebido o potencial
reflexivo, crítico e autoformativo, os quais tem se configurado como um divisor de águas na produção do
conhecimento. Tenho vivenciado o que Delory-Momberger (2008) chama de “heterobiografia”, em que
para compreender a narrativa do outro preciso vivenciar a aventura de tecer minhas próprias biografias,
questões essas fundamentais no processo de investigação científica, pois compreendo o processo de como
se dá a construção dessas narrativas eu mesmo fazendo-as no meu cotidiano de pesquisador, e percebo as
múltiplas facetas que essas narrativas propiciam na produção do conhecimento e compreensão da realidade
que me circunda.
Nesse sentido, busco nos entremeados processos de pesquisa com professores iniciantes, captar
suas narrativas do cotidiano, as quais são por eles registradas e concedidas a mim, e que são tecidas
compreensões e reflexões a posteriori, que se complexificam à medida que passo também a desenvolver essas
dimensões, quando registro (como as pesquisadas o fazem), minhas (auto)biografias a partir das suas, e das
observações em sala de aula que faço acerca de suas práticas pedagógicas desenvolvidas, exteriorizando
os meus saberes e passando a teorizar, ampliar e construir epistemologicamente saberes e práticas contra-
hegemônicos (SANTOS, 2006), que enriquecem e contribuem produtivamente para outros modos de fazer
ciência, conhecimento e pesquisa.
Estruturo este artigo em três capítulos, os quais: o primeiro traz uma breve “introdução”, buscando
clarificar o que é tecido ao longo das discussões aqui presentes; o segundo tematizado por “Espelhos
de significação no transcurso do trabalho de pesquisa no cotidiano de professores iniciantes”, mostra as
múltiplas facetas que se apresentam a mim, enquanto pesquisador, em que estou imerso neste processo e que
me aproprio, crio e desenvolvo saberes que as narrativas do cotidiano me possibilita; o terceiro intitulado
“considerações em processo”, sintetiza as ideias contidas neste, trazendo entendimentos e reflexões acerca
da temática aqui proposta.
Inicio esta seção intitulada de espelhos de significação fazendo uma analogia com relação a
quando me olho no espelho, vejo-me propriamente e sei que quem está a minha frente não é outro fora
de mim mesmo, e que às vezes, esse exercício deve ser levado em consideração também com relação
ao trabalho de pesquisa desenvolvido no cotidiano, sobretudo, com professores iniciantes, o qual estou
tecendo, uma vez que ao pesquisar com professores (quando também se é um), não posso negar que
acontecem imprevisibilidades, pairam incertezas, e desdobram-se práticas, saberes e reflexões que vão além
dos instituídos e, consequentemente, saltam as prerrogativas institucionais. Vejo isso como construções
criativas de práticas emancipatórias (OLIVEIRA, 2008; 2012) que contribuem de maneiras diferenciadas
de fazer educação, ensino e pesquisa permitindo outras significações para além das existentes.
Nesse sentido, esses saberes e saberesfazeres mobilizados pelos professores iniciantes me
mostram, enquanto pesquisador, que também tenho a possibilidade de trazer outras perspectivas e construtos
metodológico-epistemológicos que venham a potencializar a pesquisa científica, dando outras significações,
muitas vezes, mais substanciais e que podem produzir impactos positivos na educação e na própria pesquisa
científica.
E quando se está pesquisando no cotidiano, não se pode traçar aprioristicamente categorias, métodos
ou modos fechados de pesquisar, uma vez que por este prisma não posso valorizar o que acontece tal e qual
pelos sujeitos praticantes do cotidiano (CERTEAU, 2012), ou seja, não posso “[...] mergulhar em suas redes,
partilhar do miudinho dos fazeressaberes dos sujeitos que lá estão” como me alerta Ferraço (2006, p. 171),
questões essas que para os cotidianistas, como eu, faz todo um sentido e diferença em nossas pesquisas.
Assim, o cotidiano escolar é um campo complexo, rico e multivariado de relações, acontecimentos, práticas
e saberes potencialmente significados que se apresenta à realidade do pesquisador, e que este deve perceber
o que é salutar e essencial, para o estabelecimento de relações profícuas entre pesquisador/pesquisados,
bem como para a construção da pesquisa, na seleção, condução, reflexão e compreensão dos saberes
empreendidos durante a pesquisa, que surtirá na culminância do trabalho de pesquisa. Dessa forma, esse
complexo espaçotempo do cotidiano de pesquisa me permite mobilizar saberesfazeres e reflexões, os quais
se revelam de maneiras as mais variadas possíveis, chegando, inclusive a muitas vezes sem que eu saiba.
Assim como os professores iniciantes (pesquisados), eu (enquanto pesquisador) tenho a possibilidade de
utilizar os “saberes não-sabidos” (DELORY-MOMBERGER, 2008; TARDIF, 2012; CERTEAU, 2012), os
quais projeta-se nas instabilidades cotidianas que a pesquisa educacional me permite na instituição escola,
e que são revelados, conforme a pluralidade de saberes que possuo construídos nos diferentes momentos, e com
diferentes sujeitos, oriundos de vivências e experiências que me situo e que trilho cotidianamente, como me
mostra Tardif (2012). É essa multiplicidade de contextos e situações que faz com que eu mobilize saberes
e saberesfazeres potencialmente significativos na pesquisa.
Infelizmente, o processo de escolarização pelo qual passamos, não estimulou a nossa criatividade,
inviabilizando uma constituição pessoal e profissional fortalecida, baseada numa autonomia e emancipação
de ações e atitudes que pudessem ser tomadas no cotidiano de nossas vivências e experiências, sejam
escolares, como nos diferentes espaços sociais com os quais travamos relações. Por isso, é tão difícil nos
desprendermos e ousarmos criativamente em cada realidade em que desenvolvemos o nosso trabalho de
pesquisa e produção do conhecimento, pois, fomos ensinados a trilhar os caminhos da ciência, da unicidade,
sem agregar outros saberes e conhecimentos fora do âmbito científico, passando a desvalorizar o senso
comum, como se não pudesse gerar riquezas e significações à vida, ao conhecimento e a própria ciência.
Quem bem retrata essa segregação é Morin (2010), quando enfatiza que:
Na escola primária nos ensinam a isolar os objetos (de seu meio ambiente), a separar as
disciplinas (em vez de reconhecer suas correlações), a dissociar os problemas, em vez de
reunir e integrar. Obrigam-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a separar o que está
ligado; a decompor, e não a recompor; a eliminar tudo que causa desordens ou contradições
em nosso entendimento (MORIN, 2010, p. 15).
Partindo do exposto acima, problematizo: ora, como posso eu, então, enquanto pesquisador,
mobilizar criativamente no meu trabalho de pesquisa saberes e fazeres, se no meu próprio processo de
formação me foram negadas tais possibilidades? A resposta pra essa pergunta carrega uma polissemia com
a qual, se perguntada a um grupo de vários pesquisadores, obteria respostas similares, por um lado, mas,
em sua maioria teria uma mistura de respostas diferentes umas das outras, caracterizadas pela nossa própria
trajetória de vida pessoal e profissional, uma vez que somos abarcados por vários contextos, constituídos
de diferentes pessoas e aparatos científico-tecnológicos-cultuais que interferem no modo de pensar e
refletir acerca da realidade, da pesquisa, dos saberes e fazeres implicados neste processo, mas que vai
me amadurecendo quanto mais eu mobilizar outras experiências e vivências, ampliando a minha tessitura de
conhecimentos em rede (OLIVEIRA, 2012).
Contra a verticalidade do pensamento hegemônico pregado pela ciência positivista e cartesiana
(SANTOS, 2006; OLIVEIRA, 2008; 2012), defendo a ideia de que o desenvolvimento das potencialidades
criativas do pesquisador, sobretudo dos que investigam nas ciências humanas, porque lida com pessoas, fatos
e subjetividades, deve primar, primeiramente pelo que este pensa e reflete no seu trabalho cotidiano. Com
isso, considero as narrativas (auto)biográficas como um dispositivo de autoformação dos pesquisadores,
que em contato com os sujeitos da pesquisa, buscando compreender o que as narrativas dos outros dizem,
permitem refletir sobre a sua escrita, que são materializadas por si, fazendo articulações do passado, do
presente e, consequentemente, de um futuro que estar por vir e que se acelera em escalas aceleradas na
sociedade, impactando naquilo que estamos vivenciandoexperienciando, mais essencialmente, dos saberes
e saberesfazeres que possuímos e/ou poderemos possuir. Compreendo, então, que “as narrativas são
dispositivos heurísticos configurados para se analisar/compreender os riscos, benefícios e potencialidades”
(PASSEGGI, 2013) que são tecidas nos processos cotidianos de pesquisa.
E esse processo descrito acima, pode ser beneficiado pela construção das narrativas (auto)biográficas
no cotidiano da pesquisa, o que de certo modo traz uma semelhança e ao mesmo tempo uma diferença. Ou
seja, enquanto pesquisador, tenho praticado a construção das narrativas do cotidiano como uma possibilidade
de compreender o que se tece nas narrativas, quais os saberes materializados e suas relações com o processo
de pesquisa com os professoras iniciantes, e pelo mesmo viés, estes últimos se situam na produção de suas
narrativas, enquanto professores, que foram solicitadas por mim, imprimindo suas características pessoais
relacionadas com o início da profissão na docência e que revelam um híbrido de informações e saberes.
Por outro lado, as diferenças residem no fato de que as narrativas ganham outros enfoques, pois revelam as
singularidades de cada sujeito, seus ideais, saberes, reflexões, enfim sua autoria, considerando a formação
educacional, cultural, econômica e política que cada um tem trilhado e continua complexificando conforme
nossas interações no meio em que vivemos. Por isso “[...] nas narrativas autobiográficas, a pessoa que
escreve é, ao mesmo tempo, o autor empírico do texto, o narrador e o protagonista do enredo da história”
(PASSEGGI & CUNHA, 2013, p. 45), uma vez que se coloca e revela o que vive, o que é e o que faz.
Uma das condições para que o trabalho de pesquisa seja conduzido por uma pluralidade de saberes,
é preciso que haja o imbricamento de diversas práticas e saberes, bem como frequentar outros espaços,
realizar outras leituras para além das pedagógicas, enfim vislumbrar outros campos de possibilidades que
estejam até mesmo fora do trabalho de pesquisa, pois, o que utilizo na produção do conhecimento e nos
espaços das instituições que desenvolvo as pesquisas científico-educacionais são saberes e fazeres da minha
própria vida enquanto sujeito presente nas diversas esferas que me constituo pessoa e profissional, e aí
trago o que Nóvoa (2009, p. 39) diz acerca da formação de professores, mas que se aplica também aos
pesquisadores, sobretudo, das ciências humanas, com ênfase para a educação, de que é preciso construir
“uma teoria da pessoalidade no interior de uma teoria da profissionalidade”. Assim, não tem como separar a
pessoa do profissional, pois, ao mesmo tempo em que produzo ideias, compartilho experiências e desenvolvo
investigações no processo de pesquisa enquanto pesquisador, imprimindo minhas características subjetivas
a partir do que vivencio e experiencio em vários espaços que frequento, oriundo também do que construí no
passado e estou projetando no presente, fazendo articulações também com o futuro. Da mesma forma também
percebo que os professores iniciantes, tecem conhecimentos e compartilham modos diferentes de ser e fazer
educação e ensino. Essa perspectiva vem me permitindo refletir no processo de pesquisa, contribuindo para
minha autoformação, além de observar que, de igual medida tem ocorrido com os partícipes da pesquisa
que venho desenvolvendo no cotidiano escolar.
Essa é, pois, uma compreensão que os pesquisadores devem incorporar como necessárias para
impulsionar criativamente o desenvolvimento da pesquisa científica, visto, não como meramente um
cumprimento de metas, normas, prescrições conteudistas e fechadas, mas, aberto a novos saberes e
possibilidades a encetar, que vai sendo tecido na construção do conhecimento, paulatinamente. Por isso,
acredito que “[...] revalorizar os saberes cotidiano e outros modos de conhecer o mundo, reconhecendo
em todos eles incompletudes e potencialidades significa promover a horizontalização das relações entre os
diversos saberes” (OLIVEIRA, 2008, p. 171), questão essa que tenho enfrentado, passando a compreender e
mobilizar cada vez mais saberes, atitudes e reflexões no cotidiano da pesquisa com os professores iniciantes.
Nesse sentido, tecendo com outras palavras o que Paulo Freire (1996) já havia dito noutro momento, ouso
dizer que eu aprendo ao pesquisar, e pesquiso ao aprender, produzindo sentidos e atribuindo significações
quanto mais eu me aprofundo e me interajo com os sujeitos praticantes do cotidiano (CERTEAU, 2012).
3 Considerações em processo...
Fascinante. Eis, pois, a palavra que defino as narrativas (auto)biográficas ao utilizá-las como
dispositivo de investigação no cotidiano de professores iniciantes. Ao dizer isso, não estou descrevendo
com apenas um fascínio efêmero e contagiante, e tampouco, fruto de uma ingenuidade epistemológica
acerca do método/da pesquisa, mas pelo fato de que, o processo de descobrir-me como um sujeito implicado
de saberes que passam a ser revelados pela escrita que faço do meu cotidiano, está sendo construído, numa
escala processual e pessoal, e ao mesmo tempo, compreendendo-me e compreendendo o outro a partir
do que escrevo em consonância com o que o outro escreve também, estabelecendo, assim uma relação
recíproca, auto e heterobiograficamente (DELORY-MOMBERGER, 2008).
Os professores, sejam eles iniciantes ou experientes, não aderem as investigações em seus
contextos facilmente. Primeiro porque a utilização das narrativas (auto)biográficas requer reflexão e tempo
para descrevê-las, e segundo, porque muitas vezes, os fazeres na escola e em outras atividades acabam
por envolvê-los, de tal forma que consideram laborioso esse exercício a mais para se deter fazendo. Por
outro lado, quando o pesquisador se envolve no espaço de trabalho de seus participantes da pesquisa e vai
esclarecendo os desdobramentos da pesquisa, vai garantindo certa confiança que lhe permitirá conseguir
obter melhores êxitos no transcurso da pesquisa e atenuar os impactos que possam trazer algumas questões
destoantes.
Enfim, uma investigação em educação, e nesse caso, com professores iniciantes do ensino
fundamental, ao utilizarem as narrativas (auto)biográficas permitem trazer ao universo do pesquisar a
possibilidade de revelar como são mobilizados seus saberesfazeres cotidianos, como também os “saberes
não-sabidos” e construir criativamente outras oportunidades que venham a se consolidar em sua trajetória
pessoal e profissional, ou seja, trata-se de uma “[...] produção identitária dos professores (NÓVOA, 2009,
p. 29)”, somando a outros saberes oriundos de suas experiências.
Percebi que as narrativas (auto)biográficas construídas por mim no cotidiano, enquanto
pesquisador e ao mesmo tempo professor iniciante, estreitou os laços compreensivos e relacionais com o
método biográfico que primei para desenvolver essa investigação, e passou a me permitir construir zonas
de inteligibilidade as quais ainda não tinha percebido e até mesmo refletido sobre os meus escritos afinco,
bem como dos sujeitos participantes da pesquisa.
Referências
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 19. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
FERRAÇO, Carlos Eduardo. Os sujeitos das escolas e a complexidade de seus fazeressaberes: fragmentos
das redes tecidas em pesquisas com o cotidiano. In.: GARCIA, R. L.; ZACCUR, E. (Orgs.). Cotidiano e
diferentes saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra,
1996.
MORIN, E. A cabeça bem-feita: Repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobino. 17.
ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
NÓVOA, António. Formação de professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Estudos do cotidiano e pesquisa em educação: interfaces com as narrativas
autobiográficas na compreensão do potencial emancipatório das práticas educativas cotidianas. In.: SOUZA,
E. C. de & PASSEGGI, M. da C. (Ogs.) Pesquisa (auto)biográfica: Cotidiano, imaginário e memória.
Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. (Coleção Pesquisa (Auto)Biográfica e Educação).
_____. O currículo como criação cotidiana. Petrópolis, RJ: DP et Alii; Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012.
PASSEGGI, Maria da Conceição. & CUNHA, Luciana Maria da. Narrativas autobiográficas: a imersão no
processo de autoria. In.: VICENTINI, P. P.; SOUZA, E. C. de & PASSEGGI, M. da C. (Orgs.). Pesquisa
(auto)biográfica: Questões de ensino e formação. Curitiba, PR: CRV, 2013.
SANTOS, Boaventura Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In.:
Santos, B. S. (Org.) Conhecimento prudente para uma vida decente: Um discurso sobre as ciências
revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
SESSÃO DE CONVERSAS
EIXO 1. PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DO DISCURSO E DA INTERAÇÃO PARA A ANÁLISE DE
NARRATIVAS: DIÁLOGOS COM O GRUPO NARRATIVA, IDENTIDADE E TRABALHO
Resumo:
Na presente Sessão de Conversa a proposta é pensar as metodologias de pesquisa (auto)biográficas
em particular, especialmente o trato de dados e informações em processo de interpretação. A pesquisa
autobiográfica utiliza diversas fontes, como por exemplo as narrativas de vida, os memoriais de formação,
a história oral, os diários, vídeos, fotos, documentos em geral, peças prenhes de memória de vida. Sem
direcionar a conversa, mas como parte dela, lembramos dimensões analíticas que trabalhadas por Bolívar
em relação à construção de histórias de vida, por exemplo, apresentam-nas como possíveis desde que haja
por parte do sujeito da narração um esforço reflexivo para a construção de uma trama narrativa que dê
sentido às diversas experiências do vivido, mediante “uma síntese do heterogêneo”, como quer Ricoeur.
Essa síntese, apreendida pelo pesquisador, não elide, ao contrário, procura perceber fatores contextuais que
condicionam a vida pessoal/profissional do narrador. Essa visão contextual pode conversar com o construto
de Marinas denominado por ele e por Santamarina de compreensão cênica mediante a qual, pelo esforço
interpretativo compreensivo, se vão aproximando as cenas constituintes dos contextos narrados, quer
aquelas que se constroem no interior da narração entre narrador e pesquisador, quer as cenas do cotidiano,
quer, ainda, as cenas esquecidas ou reprimidas por parte do narrador. Todas essas, a serem compreendidas
segundo um processo orgânico em que as cenas se influenciam. A compreensão cênica privilegia, ao invés
da estrutura amostral de uma história segundo o sentido originário de textos narrativos ou dos elementos
de profundidade de seus sentidos ocultos, o entendimento de que a origem e o sentido profundo dos textos
é algo que construímos pari passu, diuturnamente. Bolívar e Marinas, estando presentes no VI CIPA, são
convidados naturais dessa Sessão de Conversa.
Palavras-chave: Pesquisa (auto)Biográfica;Fontes;Compreensão analítica
PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
Introdução
A formação de um professor, como prática social que é, carrega em si a possibilidade de
ocorrer mediante diferentes contextos, conteúdos, encaminhamentos teórico-metodológicos e sujeitos.
Especificamente sobre a formação docente em Ciências, há uma vasta literatura oriunda de pesquisas e
práticas que informam sobre problemas, êxitos e necessidades formativas e que propõem e defendem
tendências, modelos e alternativas visando a novos perfis da docência naquela disciplina escolar (VILLANI
e FREITAS, 1998; CARVALHO e GIL-PÉREZ, 2001, 2002; FREITAS e VILLANI, 2002). Toda essa
produção tem fornecido parâmetros e estimulado a busca por outras possibilidades de compreensão e de
investigação de processos formativos para a docência em Ciências.
Por entender que pesquisar a formação inicial docente “requer a busca de possibilidades que
potencializem uma escuta sensível da voz do professor em processo de formação inicial” (SOUZA, 2006,
p. 25) e que “narrar o vivido envolve rever concepções e práticas e o resgate de trajetórias pessoais e
profissionais, o que se mostra fundamental para a formação profissional das professoras e dos pesquisadores”
(FERNANDES e PRADO, 2008, p. 16), a reflexão aqui proposta trata das potencialidades de narrativas
(auto)biográficas nos processos formativos da docência em Ciências. Para tanto, tomamos como guia o
seguinte questionamento: que contrapartidas formativas podem emergir quando conectamos narrativas
(auto)biográficas e necessidades formativas de futuros docentes de Ciências?
Ao perseguir empiricamente tal pergunta em um contexto de orientação de estágio, partimos das
vivências de docentes de Ciências em formação inicial com foco em suas experiências como alunos daquela
disciplina escolar. Assim, no presente texto, o resgate de tais vivências escolares é situado no âmbito de um
projeto de ensino, o qual é descrito na seção a seguir. Após tal descrição, especificamos a maneira como tal
resgate vem sendo feito nos desdobramentos desse projeto. Por fim, avaliamos as contrapartidas suscitadas
por tal empreitada no sentido da lapidação de um objeto de pesquisa.
Antecedentes institucionais
Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o Projeto do Curso de Licenciatura em Ciências
Biológicas passou a reservar um conjunto de componentes curriculares (PEC0179, PEC0180, PEC0181
e PEC01822) voltados especificamente a diferentes dimensões do pensar e executar as aprendizagens da
docência no ensino fundamental e médio (UFRN, s/d). Entretanto, a institucionalização de tais componentes
tem enfrentado desafios, seja pela sua recente implantação, seja pela dificuldade dos licenciandos e das
escolas que os recebem em desvencilhar-se da antiga concepção de estágio como “prática do ensino”, como
mero treinamento na ministração de aulas.
Em atenção a tais desafios, iniciamos em 2013 um projeto de melhoria das atividades de estágio
▪ 1ª postagem: “Fui aluno, durante anos, em escolas. De que experiências consigo lembrar?”. Pense
nesta pergunta e procure respondê-la resgatando algumas memórias de suas vivências escolares. Para
tanto, escreva uma carta narrando suas vivências enquanto alun@ do Ensino Fundamental/Ensino Médio.
Dirija a carta a um(a) professor(a) do passado e diga a el@: como era o cotidiano da(s) escola(s) que você
frequentou; como era sua rotina de alun@ nessa(s) escola(s) e de que você mais gostava nela(s); com qual/
quais disciplina(s) você se identificava; que bons professor@s você teve nessa(s) escola(s) e o que você
falaria d@s que não eram tão bons.
▪ 2ª postagem: Especifique sua dupla e a escola (nome, endereço completo, equipe da direção e/ou
coordenação que recebeu @ estagiári@) escolhida como campo de estágio em 2014.2. Escreva e reflita
sobre o contato inicial com a escola e as dificuldades encontradas para a formalização do estágio neste
semestre. Compare, em semelhanças e diferenças, esta escola com aquela(s) descrita(s) por você em sua
carta.
▪ 3ª postagem: Caracterize a turma em que você fará o estágio de regência, imaginando que tipo de atuação
seus professores de Ciências/Biologia do passado teriam com essa mesma turma. Escreva e reflita sobre suas
facilidades e dificuldades quanto à escolha e organização dos elementos (seleção de conteúdos, objetivos
e método de ensino, estratégias didáticas, formas de avaliação, bibliografia a ser utilizada) do plano de
unidade que você posta aqui e que irá cumprir.
▪ 4ª postagem: Escreva e reflita sobre os conteúdos ministrados neste início de regência: descreva e analise
como esses conteúdos foram abordados, em termos das relações que você e seus alunos estabeleceram com
eles.
▪ 5ª postagem: Escreva e reflita sobre como você tem administrado suas aulas/turma. Fale de sua organização
(se e como estabelece rotinas, como prepara recursos didáticos), de sua gestão da sala de aula (como
organiza o espaço e tempo da aula, se diversifica tarefas, se equilibra atividades), de como você lida com o
comportamento d@s discentes. Use esses mesmos elementos para comparar, em semelhanças e diferenças,
sua atuação com a de seus/suas professor@s de Ciências/Biologia no passado.
▪ 6ª postagem: Escreva e reflita sobre como você organiza sua prática pedagógica. Fale de suas expectativas
de ensino (se e como estabelece metas para você e seus discentes, se orienta experiências e delega
responsabilidades), de como executa o ensino (como articula objetivos, conteúdos e formas adequadas de
abordagem dos mesmos), e como aproveita o tempo (se concentra o foco da aula no ensino, na aprendizagem
e em conteúdos relevantes para vida d@s discentes). Use esses mesmos elementos para comparar, em
semelhanças e diferenças, sua atuação com a de seus/suas professor@s de Ciências/Biologia no passado.
▪ 7ª postagem: Escreva e reflita se você tem procurado assegurar a qualidade do ensino durante a regência.
Faça essa análise com base nos seguintes parâmetros: diversificação de estratégias de ensino, estímulo
ao questionamento, perspectiva de complexidade, valorização de expectativas, de necessidades e do
envolvimento discente. Use esses mesmos elementos para comparar, em semelhanças e diferenças, seu
empenho pela qualidade em relação ao de seus/suas professor@s de Ciências/Biologia no passado.
▪ 8ª postagem: Escreva e reflita sobre a evolução de suas habilidades de ensino durante a regência. Compare
suas habilidades de ensino com aquelas de seus/suas professor@s de Ciências/Biologia no passado: em
quais habilidades você consegue superá-l@s e em quais ainda não?
▪ 9ª postagem: Escreva e reflita sobre suas práticas de avaliação durante a regência. Faça sua análise com
base nos seguintes parâmetros: conteúdo, forma e frequência das tarefas de casa; formas de monitoramento
do progresso d@s discentes; formas de retorno às necessidades e capacidades discentes. Compare suas
práticas avaliativas com aquelas de seus/suas professor@s de Ciências/Biologia no passado: em quais
vocês se aproximam e em quais se distanciam?
▪ 10ª postagem: Reveja suas postagens anteriores e faça um balanço de sua regência com base nos seguintes
parâmetros: cuidado e interação com @ alun@; formas de motivação; dedicação ao trabalho; entusiasmo,
respeito, justiça e reflexividade. Que tipo de necessidades de formação ainda lhe restam?
Referências bibliográficas
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RESUMO
O cotidiano da pesquisa em educação representa um construto epistemológico que vai sendo tecido pelo
pesquisador diante das inúmeras complexidades com que se apresenta à realidade da pesquisa. Neste texto,
caracterizado por uma abordagem qualitativa, articuladas com as memórias e reflexões, oriundas dos nossos
contextos de atuação profissional e acadêmico em educação, buscamos inferir enquanto problema: como
as narrativas do cotidiano escolar de professores em exercício, contribuem para a criação epistemológica
na construção da pesquisa e do conhecimento em educação? Nesse sentido, elaboramos como objetivo:
compreender como as narrativas tecidas pelos professores, que são sujeitos praticantespensantes1 do
cotidiano, contribuem para construções epistemológicas na pesquisa em educação. Desenvolvemos
este artigo, a partir de referenciais teórico-epistemológicos das pesquisas biográficas em educação, em
consonância com os estudos do cotidiano, os quais buscam captar as sutilezas presentes nas narrativas e
vivências escolares cotidianas, desinvisibilizando as práticas sociais dos sujeitos, e passando a conceder
outros novos significados substanciais. Nesse contexto pensamos a formação continuada de professores
– produzidas através das narrativas cotidianas – como espaçotempo de construção de conhecimentos,
permitindo potencializar os processos de pesquisa e criações epistemológicas fundamentais às investigações,
ajudando-nos, enquanto pesquisadores nas tessituras de novos saberes e fazeres que desenvolvemos na
educação.
Apresentamos neste artigo algumas discussões acerca das narrativas biográficas de professores, que
têm sido conduzidas por nós nas investigações no cotidiano escolar.
Não trazemos as narrativas ipsis litteris dos sujeitos pesquisados, e sim tecemos alguns
desdobramentos e implicações que essa metodologia-epistemologia nos propicia enquanto pesquisadores,
por um lado, e as múltiplas possibilidades de construções/criações epistemológicas, que são teorizadas
oriundas das experiências e vivências que professores têm empreendido nos contextos de sua atuação
profissional e que temos travado relações formativas e investigativas na construção do conhecimento.
Defendemos o cotidiano escolar de professores da escola pública fundamental como espaçotempo
de produção de saberes e atribuições de significados, que são fundamentais ao processo de escolarização
e que favorece, por meio de suas narrativas, como aqui estamos considerando, processos substanciais
de construções de conhecimentos e criações epistemológicas para além das práticas existentes, muitas vezes
ultrapassando o currículo programado (MEIREIU, 2005), e que, de certo modo, enquanto investigadores, passamos
a dar voz e vez a estes sujeitos através de suas práticas que se encontram invisibilizadas pela supremacia técnica-
científica-civilizacional (MORIN, 2013), e que nos processos de pesquisa que tecemos juntamente com estes sujeitos
praticantes do cotidiano (CERTEAU, 2012), partilhamos a possibilidade de legitimar os seus saberes e saberes-
fazeres pelo que realizam, sem coações e determinismos apriorísticos e imperativos categóricos.
Pautamos-nos em estudiosos das biografias educativas como Delory-Momberguer (2008), Catani
et al (2004), Josso (2010), entre outros. Enquanto na perspectiva do cotidiano escolar embebemo-nos
de Oliveira (2012), Ferraço (2006; 2008) e Certeau (2012) que nos ensinam que no contexto em que
desenvolvemos nossas pesquisas, descobrimos outras práticas e saberes democráticos e emancipatórios,
essenciais à produção da vida, do conhecimento e acima de tudo, de uma nova sensibilidade para compreender
a educação, a sociedade, a ciência e o conhecimento.
Neste texto, caracterizado por uma abordagem qualitativa, tendo como perspectiva teórico-
epistemológica uma pesquisa biográfica, articuladas com os estudos do cotidiano, em que tecemos as nossas
memórias e reflexões, oriundas dos nossos contextos de atuação profissional e acadêmico em educação,
buscamos inferir enquanto problema: como as narrativas do cotidiano escolar de professores em exercício,
contribuem para a criação epistemológica na construção da pesquisa e do conhecimento em educação?
Elaboramos como objetivo: compreender como as narrativas tecidas pelos professores, que são
sujeitos praticantespensantes do cotidiano, contribuem para construções epistemológicas na pesquisa em
educação.
Este artigo está estruturado em quatro capítulos, os quais: o primeiro com a “introdução”, trazendo
numa perspectiva geral o que o estudo discute, com suas caracterizações e abordagens teórico-metodológicas
e epistemológicas adotada; o segundo com tema “As narrativas docentes e seus desdobramentos nas pesquisas
cotidianas”, apontam as contribuições que as narrativas trazem tanto para os professores em serviço, como
para os investigadores educacionais; o terceiro designado por “Múltiplas possibilidades de produção de
saberes e fazeres que o cotidiano escolar nos revela”, trazendo experiências e vivências de produção de
saberes e fazeres que os professores criam e desenvolvem no cotidiano escolar, muitos dos quais revelados
pelas suas narrativas; e as “Algumas considerações preliminares”, explicitando as compreensões que o
estudo nos trouxe e continua trazendo, além de tecer alguns direcionamentos assertivos na produção do
conhecimento e da criação de outros saberes que o cotidiano nos permite.
2 As narrativas docentes e seus desdobramentos nas pesquisas cotidianas
Trata-se, pois, de dar legitimidade aos saberes que são produzidos no cotidiano escolar pelos
professores, e que, de certo é fundamental para o estabelecimento de novas relações de escolarização, de
educação e de ensino. Questões essas que temos considerado ao longo de nossas investigações com esses
sujeitos praticantes do cotidiano (CERTEAU, 2012), que revelam saberes e práticas criativas, diferentes
e não rotineiras, contudo, práticas democráticas e emancipatórias (OLIVEIRA, 2008; 2012), tecidas
cotidianamente.
Por trilhar caminhos que valorizam a subjetividade, os acontecimentos e os fatos do cotidiano, as
narrativas dos professores em serviço permite perceber/compreender, por outros ângulos, o que acontece
nos entremeados processos os quais se tecem saberes e saberesfazeres que extrapolam o currículo oficial,
e que nós, enquanto pesquisadores passamos a entender que, para além das práticas institucionalizadas,
existem outras possibilidade de produção de saberes na escola, que são conduzidos das mais variadas
formas e que trazem contributos fundamentais ao processo de escolarização, potencializando, assim, o
processo ensino e aprendizagem.
Quando passamos a um processo de análise/compreensão das narrativas do outro, o que Delory-
Momberger (2008) nos chama de “heterobiografia”, antes desse processo construímos as nossas próprias
narrativas do que estamos fazendo no cotidiano da pesquisa com os nossos sujeitos. Isso permite estabelecer
graus de compreensibilidade que é fundamental para nós investigadores, e que amadurece as relações tidas
entre pesquisador/pesquisados ao entrarmos em contato com estes sujeitos e captar as suas narrativas.
Passamos a entender, inclusive, por este prisma o que realmente nos move a registrar (quando escrita) ou
falar (em conversas) as nossas narrativas que nos marcam e que elencamos como reveladoras em nossas
narrações. Ou como nos diz Josso (2010, p. 36). “A situação de construção da narrativa exige uma atividade
psicossomática em vários níveis, pois pressupõe a narração de si mesmo, sob o ângulo da sua formação,
por meio do recurso a recordações-referências, que balizam a duração de uma vida”. Portanto, o que
revelamos através de uma narração são elementos-chave oriundos de inúmeros contextos, com os quais
nos relacionamos, muitas vezes caracterizados por desafios, fatos, acontecimentos etc., mais impactantes,
nos fazendo dialogar com quem se aproxima de nós, ou de outro modo, que estabelecemos relações de
proximidade.
O mais relevante da pesquisa com narrativas, desenvolvidas com professores no cotidiano escolar, é
que diante do que nos expõe, esses sujeitos se envolvem numa trama complexa de informações significativas
de suas experiências que se apresentam de múltiplas formas e possibilidades. Algumas das quais embebidas
de criatividade, reflexões e saberes potencialmente significativos, que nos fazem também adotar essa
perspectiva em nosso trabalho investigativo. Dessa forma, não se trata apenas de produzir conhecimento
pelas contribuições das narrativas do outro o que fazemos, mas sim, de buscar outros modos de educação
e ensino que estão sendo socializadoscriados pelos praticantes do cotidiano, passando a nos estimular
e a servir também como experiência de vida e de profissão que nos conduz a momentos de reflexão e a
tessituras de saberes e práticas do que vivenciamos nos processos de pesquisa, passando a extrapolar-se em
outros contextos que possamos nos defrontar. Por isso as narrativas biográficas construídas pelos sujeitos
de nossas investigações, conduzidas por nós, não são apenas um método de pesquisa, mas um instrumento
de formação, de (auto)formação e de existencialidade como nos mostra Pierre Dominicé (2010), os quais
se beneficiam os participantes e os pesquisadores. Assim, nós passamos a criá-las (narrativas) por uma
necessidade que sentimos no processo de amadurecimento e desenvolvimento de nossas ideias que nos
impulsionam, e isso se intensifica na medida em que surgem mais dúvidas e incertezas em nossa trajetória
cotidianamente trilhada.
3 Múltiplas possibilidades de produção de saberes e fazeres que o cotidiano escolar nos revela
À medida que a investigação avança, os professores vão percebendo que a construção das suas narrativas
cotidianas não servem unicamente para atender a um dispositivo solicitado de fora para cumprir uma exigência
burocrática e institucional, mas veem-se propriamente como implicados de significação, por passarem a identificar
que ali nos escritos ou falados, não se encontram nenhum manual, ideias distantes e nem muito menos teorias
produzidas em laboratórios de experimentos científicos destituídos da figura humana, pelo contrário, sentem-
se implicados no processo e passam a perceber-se como sujeitos de ação e transformação de suas próprias
práticas, construindo epistemologias e tecendo saberes democráticos e emancipatórios no cotidiano escolar
(OLIVEIRA, 2008; 2012), tecidos pelas narrativas de vida de cada sujeito, uma vez que “[...] Construímos
a existência dentro de uma estrutura narrativa” (BOLÍVAR; DOMINGO; FERNANDEZ, 2001, p. 20.
Tradução nossa), como discorrem e refletem os sujeitos com os quais investigamos.
Assim, esses sujeitos estão produzindo significativas práticas e saberes revelados em suas narrativas
nos processos de formação continuada, permitindo aos mesmos uma perspectiva de (auto)formação e que
nos faz (re)pensar como estamos desenvolvendo nossas investigações, que saberes e fazeres estamos
mobilizando, desde o contato inicial que estabelecemos com os professores e a nossa caminhada na produção
do conhecimento.
Compreendemos, portanto, que professores e pesquisadores, ao utilizarem as narrativas biográficas
enquanto pesquisa e formação, estão dando lugar para criações epistemológicas ricas, para além das já
existentes, contribuindo para uma nova forma de fazer saberes, ciência e existência, todavia, saberes e
práticas plurais, democráticos e emancipatórios tecidos em processos de formação continuada. A tessitura
das narrativas biográficas no cotidiano dos professores busca, então, fazer com que estes possam “[...]
personalizar seu percurso profissional e tornar-se autor de sua história” (PASSEGGI & CUNHA, 2013,
p. 44), assim como acontece com nós investigadores educacionais. São, pois dispositivos de formação e
existencialidade que acabam contribuindo, para a construção de “[...] permanentes possibilidades criativas”
(SEVERO, 2013, p. 373).
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EIXO 1: PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA, FONTES E QUESTÕES
PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA E ANÁLISE DE DISCURSO (PARA A) CRÍTICA: FORMAS
DE SER, FORMAS DE LER
Sahmaroni Rodrigues de Olinda
Universidade Federal do Ceará
sahmuray@yahoo.com.br
RESUMO: O presente trabalho, oriundo de minha pesquisa de Doutorado (Educação Brasileira – UFC) em
andamento intitulada “Artes de fazer-se(r): relatos ecobio/gráficos de artistas da palavra que margeiam a ordem dos
livros”, visa discutir como podemos ler o material oriundo das entrevistas narrativas, como analisar material (auto)
biográfico. A par dessa questão, objetivo-me elencar as contribuições que a Análise (para a crítica) de Discurso
pode oferecer à pesquisa (auto)biográfica, como abordagem teórico-metodológica que auxilie a desvelar processos
de subalternização, dominação quase sempre dissimulados nas narrativas de grupos sociais deslegitimados pelas
instituições sociais. Para tal empreitada, discuto a perspectiva de pesquisa (auto)biográfica utilizada em minha
pesquisa, trazendo elementos teóricos da Análise de Discurso (AD) que podem elucidar questões sobre o discurso
literário e suas margens, e em seguida aponto categorias de análise da AD, aplicáveis às narrativas de si, utilizando
como exemplo uma das narrativas - as quais nomeio relatos ecobio/gráficos - de um de meus interlocutores. Nesta
análise, destaco: a construção identitária de si como artista subalternizado por estar às margens do discurso literário
legitimado, elementos interdiscursivos (discurso escolar, discurso empresarial/editorial) e intertextuais que localizam
a imagem de si como escritor que não possui livros editados. Finalizo argumentando sobre a importância da AD para
uma crítica às relações imperceptíveis de dominação que são textualizadas na entrevista analisada, e levantando
questões a serem pensadas por nós pesquisadores/as adeptos/as da pesquisa (auto)biográfica.
Palavras-chave: Análise de Discurso, Análise (auto)biográfica, imagem de si.
Meu objetivo principal é articular um referencial teórico-metodológico amparado nas contribuições
da Análise de Discurso (AD) para analisar dados produzidos na pesquisa (auto)biográfica. Ler criticamente
de modo a desvelar nas narrativas a presença de discursos, que tornam certos modos de ser legítimos,
em detrimento de outros, transformam o outro no inferior, a partir da dominação sutil do imaginário.
Faz-se necessário um aparato analítico crítico, uma vez que a dominação se faz de forma silenciosa, sem
estardalhaços, geralmente naturalizando determinadas concepções que são inculcadas nos indivíduos
durante seu percurso social, apesar de haver resistências e insurgências.
A partir de naturalizações de acontecimentos sócio-históricos, produz-se uma ideia de literatura/
arte atemporal, como algo que sempre esteve e estará em voga: o gênio, a obra, a sensibilidade. Mas
haveria efetivamente algo fora da história? Haveria algum elemento essencialista na arte literária? Se
não questionarmos nossas percepções moldadas pelas instituições que selecionam o que deve ou não ser
transmitido como cultura – incluindo aí o que é considerado bom e o que não é -, estaremos naturalizando
construções sociais que serão reproduzidas, uma vez que, por exemplo, a universidade, como uma destas
instituições, forma professores/as de literatura a partir de preferências tornadas hegemônicas (OLIVEIRA,
2009).Além disso, uma vez legitimadas certas formas de perceber, de ver – e, portanto, de não ver -, produz-
se o desvalor atribuído às práticas artístico-literárias que não estão nos moldes e referências legitimados
hegemonicamente, uma vez que, como nos lembra Bourdieu e Darbel (2007), parte-se geralmente daquilo
que é legitimado pelas instituições artísticas para considerar algo como artístico ou não.
Assim, é preciso questionar o conjunto de posicionamentos discursivos que tiram a literatura do
domínio comum dos seres humanos, e, a partir de definições produzidas sócio-historicamente, eternizadas
de modo a conferir a poucos o epíteto de gênio inalcançável, apresentando a obra literária como um exercício
solitário, sem apresentar o trabalho coletivo operado pelo mercado editorial, e dando a alguns a legitimidade
de ponderar sobre o que seja literatura e atribuir valorações consideradas atemporais para certas obras.
Se somos formados pelos nossos percursos sociais entre instituições, relações, em que existem
relações de poder, e de desigualdade na distribuição deste poder, torna-se lícito entendermos as falas
de nossos interlocutores de pesquisa como algo transpassado por estas percepções que muitas vezes
os deslegitimam em suas ações de tentar se legitimar. Se pretendemos produzir uma pesquisa crítica, e
portanto dialógica, devemos buscar modos rigorosos de ler, e tornar nosso modo de ler uma leitura crítica da
palavramundo. Para tanto, em termos de pesquisa (auto)biográfica, confluo com as proposições elencadas
por Delory-Momberger (2008,2012).
A seguir, discuto elementos da AD que podem ser alinhados à pesquisa (auto)biográfica, tanto
na perspectiva teórica como na metodologia analítica que visa desvelar deslegitimações nas falas de
interlocutores de pesquisa. Em seguida, faço um exercício de análise da entrevista narrativa de Keka, uma
das narradoras de minha pesquisa de Doutorado. Nesta análise, devido às limitações de espaço do artigo,
buscarei compreender somente como a jovem artista constrói uma imagem de si enquanto escritora de
literatura.
Modos de ler: Análisede discurso (para a) crítica
Dominique Maingueneau, em discussão sobre as diversas vertentes da AD, observa que há uma
“certa coerência nos movimentos essenciais que conduzem à AD” (1993, p.20). Segundo o autor, as diversas
abordagens convergem ao recusar a ideia de linguagem como simples suporte para transmitir informações.
Ao invés dessa concepção, a AD, de maneira geral, entenderá a linguagem como forma de construção
e modificação das relações sociais situadas em diferentes campos discursivos (op.cit. p.20), concepção
próxima à de Fairclough, (2001) para quem os discursos constroem ou constituem as relações sociais.
Deste modo, Maingueneau, que considera a AD como a periferia da Linguística, propõe que “o
conteúdo das múltiplas “análises do discurso” que aí se desenvolvem varia em função das disciplinas vizinhas
em que se apoiam” (MAINGUENEAU, 1993, p. 12), questionando perspectivas que se autolegitimam mais
linguísticas do que outras, pois: “optar pela linguística, de modo privilegiado mas não exclusivo, consiste
em pensar que os processos discursivos poderão ser apreendidos com maior eficácia, considerando os
interesses próprios à AD” (op.cit. p.17).
Assim, para os propósitos de meu trabalho, entrecruzo a bordagem de Fairclough à de Maingueneau,
sabendo que elas se aproximam de lugares diferentes, mas partem de trabalhos em comum: o trabalho de
Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Entrecruzo-as enquanto ferramentas teórico-analíticas, para interpretar
o modo como os interlocutores de minha pesquisa constroem uma imagem de si, produzindo no texto
suas identidades artistas.Utilizarei a terminologia proposta por Ramalho e Resende (2011) “Análise de
discurso (para a) crítica”, pois a minha proposta – que não se afasta da ideia de crítica social da ADC ou da
proposta de Maingueneau que busca situar sócio-historicamente a partir dos posicionamentos – articular
um referencial analítico, um modo de ler à crítica aos ahistoricismos, a certos sentidos – discursos – que
aparecem naturalizados na forma como nos constituímos.
Um primeiro posicionamento é o de que devemos entender que o discurso não acontece pela
linguagem, como uma espécie de camada, mas se materializa na língua, ou, como diz Possenti, “é pela
exploração de certas características da língua que a discursividade se materializa”, constituindo-se, portanto,
“pelo trabalho com e sobre os recursos de expressão, que produzem determinados efeitos de sentido em
correlação com posições e condições de produção específicas” (POSSENTI, 2002, p.18).
A partir dos modos de narrar socialmente apreendidos, o sujeito se constrói ao construir na
narrativa uma imagem de si, entendendo-o nem como livre, nem assujeitado, mas como uma posição ativa
“no interior de semi-sistemas em processo” (POSSENTI, 2002, p.91), isto é, posiciona-se, é posicionado
e é também uma atividade, uma vez que determinados efeitos de sentido são produzidos pelo modo como
certos recursos linguísticos são utilizados.
Fairclough, propõe que os textos simultaneamente representam/produzem “a realidade, ordenam
as relações sociais e estabelecem identidades” (2001, p.27). Estes seriam os “significados do discurso” aos
quais chamará de significados representacionais, relacionais e identificacionais, respectivamente, sendo
possível encontrá-los nas marcas linguísticas que criam um modo de apresentação de si e do mundo.
Parece-me importante buscar localizar os jogos interdiscursivos, isto é os modos como diferentes
discursos se articulam na narrativa, como se articulam entre si, pois se “o sujeito inscreve-se de maneira
indissociável em processos de organização social e textual” (MAINGUENEAU, 1993, p. 60, itálicos do
autor), que naturalizam determinadas concepções legitimadas pelo “conflito ordenado” dos discursos, é
preciso compreender como diferentes discursos se articulam para naturalizar, mas também para questionar,
insurgir-se contra determinadas concepções estéticas hegemônicas.
Figurações de si
Existe uma identidade de escritora?Quais os traços, os marcadores corporais que produziriam tal
corpo? É possível falar em identidade de escritor sem complemento para este substantivo? Identidade será
entendida aqui como algo criado, produzido nas interrelações sociais, algo cambiante, múltiplo, fragmentado,
produzido a partir de dispositivos (AGAMBEN,2009),isto é, pensar a identidade de escritor/a é pensar a
relação que se estabelece entre “seres viventes” e a escrita considerada artística, não qualquer escrita, mas
aquela que em que indivíduos posicionam-se, mesmo que perifericamente, pelo campo discursivo literário.
É o posicionamento no campo que produzirá tal identidade.
Na narrativa que faz de si, o rótulo identitário “escritora” é questionado, ao mesmo tempo em que
é “naturalizado”. Discorrendo sobre seu estilo de escrita, Keka diz que gosta de ser crua, “não de ser cheia
de pontasde hostilidades como tem muitos escritores. E também nem me considero escritora até... mas
alguém que escreve”. O interessante deste posicionamento na fala da artista é que ela se compara a outros/
as escritores: seu estilo é sucinto, cru – aí temos a preocupação artístico-literária da jovem: ela reflete, cria,
intenta construir de um determinado modo -, diferentemente de “muitos escritores” que são “cheios de
pontas, de hostilidades”. Assim, Keka posiciona-se ante as possibilidades estilísticas ao se comparar com
outros/as artistas da palavra, e ao comparar-se, Keka se põe como escritora – uma vez que tem um estilo
literário diferente de outros escritores.
Concomitantemente, ela nega a si o atributo de escritora, pois para ela “ser escritora” não é o
mesmo que “ser alguém que escreve”. Interessante é que a marcação aparece como uma escolha pessoal:
“E também nem me considero”, apontando para uma autorreflexividade, o que reforça a ideia de que
este é um posicionamento individual. O verbo reflexivo “se considerar”, desse modo, aponta para uma
autodeslegitimação, uma vez que considerar significa reputar, apreciar, tendo como pressuposto aí a
depreciação: escrevo mas não me considero escritora. Fica a dúvida: como alguém que escreve não é
escritor? Se pensarmos que em nossa língua os substantivos derivados com terminação em -or – eleitor,
leitor, etc- designam pessoas que participam de determinadas ações, qual a razão de tal posicionamento?
Sem dúvida, poderíamos ligá-lo ao valor que este vocábulo desempenha em nossa sociedade:
escritor é aquele que escreve textos literários, um “homem de letras”, conforme o Dicionário Silveira
Bueno, excluindo de tal definição gêneros ordinários que são produzidos em nosso cotidiano. Ou seja,
esta palavra está ligada ao discurso literário, ao fato de produzir-se determinados gêneros de tal campo
discursivo. Inclusive, Keka deixa claro desde o início da entrevista quais gêneros produz: “mas é isso, contos
e crônicas. Acho que a maioria vai pros blogs ... e.... os microcontos vão pros fanzines, ou pedaços de diário
mesmo”. No decorrer de sua fala, a jovem ainda traz à tona outro gênero por ela praticado: as cartas. Por
um lado isso aponta aquilo que nos fala Maingueneau (2001), que não nos confrontamos com A literatura,
mas com determinados gêneros deste campo, em detrimento de outros, podendo isso variar de acordo com
os posicionamentos dos/as sujeitos/agentes no campo. No caso em análise, Keka liga esses investimentos
genéricos ao estilo que prefere: sintético, cru, sem ser cheio de pontas como outros/as escritores/as.
Assim, Keka aceita e utiliza certos vocábulos do campo literário (conto, miniconto, crônica, carta,
inclusive citando referências para legitimar determinadas escolhas: “E uma vez eu li um filósofo, Comte-
Sponville, que ele falava sobre as cartas”), entretanto nega-se a receber o epíteto de alguém que escreve
textos literários: “nem me considero escritora”. Da mesma forma, a entrevistada “assusta-se no início da
entrevista quando peço para que ela conte “o percurso pra você ter desejo de escrever e publicar uma obra
biográfica [correção] uma obra literária. Keka: Obra literária. É tão forte. (...)” Ou seja, ela produz contos,
crônicas, e outros gêneros reconhecidos como “gêneros do discurso literário”, mas questiona seu trabalho
como obras literárias. O que pesa aqui, mais que as palavras, talvez seja o peso da tradição arraigado a elas.
De onde vem essas recusas? Aqui, percebemos como ocorre o trabalho de materialização de certos
discursos em nossos corpos, ao mesmo tempo que se começam a desnudar os interdiscursos e as instituições
e agentes ligados a eles no que concerne à naturalização de determinadas “realidades sociais”. Falando
de suas experiências com a escrita e o meio que faz para circular seus trabalhos –zines e blogs – e o
entrecruzamento com outras identidades, Keka nos diz:
Porque se tem uma coisa que eu não gosto... que vejo muito isso na academia.... é a sacralização
da literatura, sacralização da escrita... como se o escritor, o autor, o livro fosse uma coisa
inalcançável e não é. Todo mundo pode escrever, por isso eu sou relutante com essa palavra
“escritor”, todo mundo pode escrever... bem ou mal, mas pode.
De um lado, está implícito aí que “todo mundo pode escrever’ e se escreve é escritor”, uma vez
que a escrita não é inalcançável como ela “vê na academia”, conforme o regime de visibilidade produzido
aí. Por outro lado, Keka se posiciona contra esta ideia da academia – e a referência ao discurso acadêmico
é apresentado como uma visão da narradora “eu vejo isso na academia” – de sacralizar a literatura e outros
elementos ligados a ela: a escrita, o autor, o livro. Desse modo, se de um lado a jovem se contrapõe a
este discurso sacralizador , novocabulário religioso daquilo que Bourdieu e Darbel (2009) chamam de
“salvacionismo cultural”, que retira do domínio dos mortais aquilo que “qualquer um” pode fazer, criando
outra identidade para si, a de “alguém que escreve” diferindo de “escritora”, de outro a jovem também
naturaliza e perpetua a sacralização operada em tal discurso, uma vez que ela continua deixando a identidade
“escritor” de lado e posicionando-se como “alguém que escreve”.
Além disso, a entrevistada perpetua tal definição. Isso é, ao se contrapor ao rótulo “escritora”
pois este é ligado à determinada sacralização que não a agrada, Keka eterniza algo que é produzido em
um determinado momento histórico, e produz para si a imagem de “alguém que escreve”, ou seja, uma
mortal, do mundo profano, e não uma “escritora” do universo do sagrado. “Escritora” continua com seu
sentido eternizado, não é questionado tal sentido, ainda que seja questionado o fato de qualquer um poder
escrever.Ambivalente, tal posição provoca um deslocamento, ao mesmo tempo em que reifica e paralisa
determinado sentido que não é questionado. É como se tivéssemos aqui duas práticas: uma sagrada,
legitimada e sacralizada pela academia, e outra dos mortais, dos que agem no mundo dos homens, no
mundo profano. Outra presença na fala de Keka, mostra-nos novo motivo de recusa à identidade escritora
para se autorreferir:
Isso dá um paradoxo, né, porque eu falei que todo mundo pode escrever. (...) eu acho que assim..
tem escritor que é escritor profissional que vive daquilo que trabalha com texto e passa anos
escrevendo um livro, que realmente vive daquilo, não só daquilo, que no Brasil não dá certo
não. Mas que... que... que investe suas energias naquilo, “eu vou trabalhar nesse livro, eu vou
trabalhar nesse projeto” e eu não. Eu sou uma escritora de vez em quando, não é meu ganha pão.
Continuado minha análise quanto à recusa de se autodenominar escritora, vemos surgir na fala
de Keka outras discursividades que produzem sua identidade no texto, seu corpo-escrito. Keka traz agora
o substantivo escritor junto de um adjetivo “escritor profissional” para se contrapor ao que ela faz. Pode-
se pressupor por este trecho relacionando-o ao que já discuti, que a jovem se considera escritora mas não
“escritor profissional”, pois há pessoas que “vivem daquilo que trabalha com texto e passa anos escrevendo
texto”. Assim, ao colocar o adjetivo “profissional” parece que há um contraponto entre quem escreve e
quem escreve profissionalmente.
Podemos perceber aqui o discurso mercadológico-editorial operando na definição dada, uma vez
que aparece aqui um produto do mercado editorial: o livro. Inclusive, reforça esta leitura o fato de a definição
apresentar uma naturalização que vem sendo bastante questionada por historiadores como Roger Chartier
(2011), que nos lembra que escritores não escrevem livros, escrevem textos: os livros são produto de um
trabalho coletivo que é silenciado de modo a ser destacado a ideia de autor, surgida há alguns séculos. Desse
modo, não se fala da produção de livros como algo mercadológico em que um conjunto de profissionais
operam mudanças no texto produzido pelo autor, de modo a torná-lo algo vendável.
Mesmo escrevendo contos, crônicas e outros gêneros literários, Keka se deslegitima como escritora
por não ser “profissional” e não escrever “livro”, uma vez que este “não é meu ganha pão”, o que aponta para
a presença de outros discursos que produzem o posicionamento de Keka quando esta afirma que escreve
mas não é escritora. Naturalizações, dissimulações, eternizações: sentidos que mantém “a literatura” como
algo “sacralizado”, ainda que questionado por minha interlocutora.
Podemos dizer que o que a imagem de si construída por Keka desvela são as relações de poder
operadas no campo discursivo literário e os interdiscursos que sustentam certas concepções hegemônicas:
de um lado, Keka insurge-se em relação a tais concepções produzindo para si uma identidade que visa se
contrapor a tal sacralização que é questionada por ela. De outro lado, põe a nu as diversas coerções sociais
que a fazem burlar concepções ao mesmo tempo que as reproduz, pois quando não se afirma escritora –
ainda que afirme ser uma opção – ela parece continuar a sacralização de tal rótulo, guardando “para poucos”
tal identidade.
Considerações finais
Parece-me inquestionável que as contribuições da Análise de Discurso para análise de material
oriundo de pesquisas (auto)biográficas podem ajudar em pesquisas que visam produzir outras percepções
sobre os modos de ser e de fazer(-se), uma vez que se os discursos produzem nossos corpos, nossas
identidades, nossos modos de vida – e a arte é um modo de vida -, fica claro que fazer a crítica a determinadas
naturalizações que podem servir para dominação e invisibilidade pode ser útil para lermos os modos de ser
como modos de insurgência ante tantos elementos que visam nos fazer silenciar.
Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio.O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São
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CHARTIER, Roger.Do livro à leitura. In: CHARTIER, Roger (Org). Práticas de leitura. São Paulo:
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DELORY-MOMBERGER, Christine.Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto. Natal, RN:
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______ A condição biográfica: ensaios sobre a narrativa de si na modernidade avançada. Natal, RN:
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RAMALHO, V.; RESENDE, V. M. Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa.
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