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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA

RODRIGO STRAESSLI PINTO FRANKLIN

UM ENSAIO SOBRE A DEPENDÊNCIA A PARTIR DAS RELAÇÕES


ECONÔMICAS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

PORTO ALEGRE
2012
RODRIGO STRAESSLI PINTO FRANKLIN

UM ENSAIO SOBRE A DEPENDÊNCIA A PARTIR DAS RELAÇÕES


ECONÔMICAS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-


Graduação em Economia da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em Economia do
Desenvolvimento.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Cezar Dutra Fonseca.

PORTO ALEGRE
2012
RODRIGO STRAESSLI PINTO FRANKLIN

UM ENSAIO SOBRE A DEPENDÊNCIA A PARTIR DAS RELAÇÕES


ECONÔMICAS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-


Graduação em Economia da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em Economia do
Desenvolvimento.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Cezar Dutra Fonseca.

Aprovada em: _____________________________________________________________________.

Prof. Dr. Pedro Cezar Dutra Fonseca – Orientador


Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Prof. Dr. Luiz Estrella Faria


Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Prof. Dr. Hermógenes Saviani Filho


Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Prof. Dr. José Elesbão de Almeida


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN
AGRADECIMENTOS

Realizar um trabalho de tal monta requer um esforço que com certeza não pode ser realizado
sem a ajuda de muitas pessoas, não apenas no plano intelectual, mas também no plano afetivo. Sen-
do assim, tenho muito que agradecer aos meus familiares e amigos, que souberam compreender
minha ausência e privação nestes últimos dois anos.

Agradeço também aos amigos que fiz em Porto Alegre e que muito contribuíram com conver-
sas descomprometidas pelos cafés da Cidade Baixa ou pelos bares da “Calçada da Fama”, tornando
minha estada nesta maravilhosa cidade um momento de minha vida que nunca esquecerei. Tanto os
amigos que fiz no mestrado da UFRGS, dentre eles Rafael Guimarães, Fábian Domingues, Carlos
Vinícius Soares, Alexandre Markoski, Giliad de Souza, Augusto Beteba, quanto aos amigos e cama-
radas do curso de especialização da FAPA e do Sindbancários, dentre os quais Fernando Mattoso,
Vanessa Gil, Sílvio Carneiro (é claro!), Francisco Magalhães e Júlio Vivian.

Não poderia deixar de fora os meus irmãos que calorosamente me acolheram no frio glacial
de Porto Alegre. Para Airton Bonacheski, Antônio Meireles, Abraão Rocha, Luiz Mousquer, e para
todos os demais envio meu tríplice e fraternal abraço.

Agradeço ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS, que


contribuiu de modo ímpar para minha formação intelectual, em especial ao meu orientador, professor
Dr. Pedro Cezar Dutra Fonseca, por todo seu apoio, contribuição e compreensão durante minha jor-
nada.

Aos meus amigos que me auxiliaram a refinar os pensamentos que aqui depositei, com logos
debates, sugestões e indicações dos caminhos que poderia seguir. Sou muito grato à Lyncoln Wchoa
e Heldo Siqueira pela amizade e apoio intelectual.
“Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será, será que será, que será, que será
Será que esta minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?”

Caetano Veloso, “Podres poderes”.

“É certo que a arma da crítica não pode substituir a


crítica das armas, que o poder material tem de ser
derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-
se em força material quando penetra as massas.”

Karl Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel”.


RESUMO

O presente trabalho busca, por meio de uma análise crítica da teoria da dependência, estabelecer os
princípios metodológicos e os elementos centrais para a aplicação do aludido referencial teórico ao
caso concreto brasileiro das últimas duas décadas. Para tanto, resgata-se os desenvolvimentos ante-
riores da teoria, buscando desde suas origens na escola estruturalista da CEPAL, com os trabalhos
de Raúl Prebisch e Celso Furtado, até a sua consolidação nas duas vertentes marxistas da teoria da
dependência, os neomarxistas, com as contribuições de Ruy Mauro Marini, e os cardosianos, a partir
da análise das obras de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. É realizada, então, uma crítica
metodológica das referidas vertentes marxistas, com o intuito de extrair dos escritos precedentes
aquilo que poderia servir de base para a construção de uma teoria adequada tanto à situação históri-
ca atual quanto às interpretações contemporâneas da obra de Karl Marx. Por fim, com base nas críti-
cas realizadas, busca-se construir uma nova proposta para a análise, em que a categoria da depen-
dência se constrói como síntese das relações de exploração, subordinação e vinculação entre países
centrais e periféricos. Para que a referida categoria e suas múltiplas determinações sejam compatí-
veis com a realidade brasileira contemporânea, utiliza-se para a sua construção de dados referentes
às relações econômicas entre o Brasil e os Estados Unidos nos últimos vinte anos.

Palavras-chave: Economia do Desenvolvimento; teoria da dependência; Relações Internacionais;


Materialismo Dialético.
ABSTRACT

Through a critical analysis of the dependency theory, the present work attempts to create the
methodological principles and core elements for the usage of the aforementioned theoretical
framework to the Brazilian case of the last two decades. To do that, the prior developments of the
theory are rescued, since its origins in the structuralist school of ECLAC, with the work of Raúl
Prebisch and Celso Furtado, until its consolidation in two different Marxists strands of Dependency
Theory, the Neo-Marxists, with the contribution of Ruy Mauro Marini, and the Cardosianos, through the
work of Fernando Henrique Cardoso and Enzo Faletto. Then, a methodological critic of these Marxists
strands is done, in order to extract what could be used as base for the construction of an adequate
theory both to the present historical situation as to the contemporary interpretations of the work of Karl
Marx. Finally, based on these critics, a proposal for a new framework is made, in which the
dependency category is built as a synthesis of relations of exploitation, subordination and linking
between central and peripheral countries. For this category and its multi-determinations to be
compatible with contemporary Brazilian reality, data concerning about the relations between Brazil and
United States in the last twenty years are used in its construction.

Keywords: Economic Development, Dependency Theory, International Relations; Dialectical Material-


ism.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 8

2. BASES TEÓRICAS DA DEPENDÊNCIA ..................................................................................... 12


2.1 O estruturalismo cepalino .................................................................................................. 15
2.1.1 Prebisch e a deterioração dos termos de troca ..............................................................16
2.1.2 A dinâmica dependente de Celso Furtado .....................................................................17
2.2 Neomarxistas ...................................................................................................................... 19
2.2.1 Ruy Mauro Marini e a Dialética da Dependência ............................................................21
2.3 Cardosianos........................................................................................................................ 28
2.3.1 O weberianismo cardosiano: a classificação falaciosa ...................................................29
2.3.2 Método da análise integrada do desenvolvimento ..........................................................31
2.3.3 Dependência e desenvolvimento ...................................................................................34

3. ENTRE O ECONOMICISMO E O SOCIOLOGISMO: BUSCA DE UM MÉTODO PARA OS


ESTUDOS DA DEPENDÊNCIA ........................................................................................................ 41
3.1 Impasses do neomarxismo ................................................................................................ 41
3.1.1 A crítica cardosiana .......................................................................................................41
3.1.2 Para além da crítica cardosiana.....................................................................................48
3.2 A insuficiência da dialética cardosiana ............................................................................. 59
3.3 Base metodológica para uma nova abordagem sobre a dependência ............................ 64

4. PROPOSTA PARA UMA NOVA ABORDAGEM DA DEPENDÊNCIA.......................................... 68


4.1 A dependência nas relações Brasil x EUA nas décadas de 1990 e 2000 ......................... 69
4.1.1 Exploração dos desiguais ..............................................................................................70
4.1.2 Subordinação econômica da independência formal .......................................................88
4.1.3 Vinculação ou desenvolvimento combinado...................................................................93
4.2 A lógica concreta da dependência no Brasil contemporâneo .......................................... 96

5. CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 102

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS .......................................................................................... 106


8

1. INTRODUÇÃO

A década de 1980 vivenciou o triunfo do pensamento liberal de uma forma inimaginável até
mesmo pelos seus maiores entusiastas. Ao mesmo tempo em que o capitalismo declarou sua vitória
sobre o socialismo real, pondo fim ao mais tenso cenário internacional que a humanidade já presen-
ciou, o livre mercado atestava sua soberania sobre as políticas desenvolvimentistas e keynesianas,
acusadas de terem mergulhado grande parte do mundo em uma prolongada estagnação. Dito de
outra forma, não só o capitalismo “comprovara” a sua superioridade, como ficara claro também que
ele deveria ter um caráter liberal.

A força com que a história alçou a hegemonia do pensamento liberal permitiu que seus adep-
tos difundissem em todo mundo a ideia de que um consenso havia sido alcançado entre os econo-
mistas das “principais” correntes teóricas. E esse “pensamento único”, cristalizado no Consenso de
Washington, se constituiu na base das políticas que seriam implantadas no decorrer das duas déca-
das seguintes tanto nos países que abandonavam a alternativa socialista quanto naqueles que expe-
rimentaram o fracasso das políticas desenvolvimentistas (ou inflacionistas como diriam os mais críti-
cos).

O fim da história foi decretado. A humanidade entraria agora em uma lenta fase de difusão
das democracias liberais de mercado que, em função da prosperidade que trariam para todos os paí-
ses que aderissem aos seus princípios, em algum momento culminaria no surgimento do “Estado
homogêneo universal” hegeliano1.

Na outra face da moeda, o pensamento crítico passava por uma grave crise. Vários teóricos
marxistas, vendo na queda do muro de Berlim uma prova da insuficiência do pensamento marxista,
abandonaram sua perspectiva teórica, havendo até mesmo aqueles que foram se filiar ao pensamen-
to liberal. Os que restaram não conseguiram dar voz a uma proposta alternativa, talvez por uma ca-
racterística intrínseca da esquerda de não conseguir se aglutinar em torno de uma unidade.

No Brasil, a implantação das políticas liberais foi intensificada a partir da ascensão de Fer-
nando Collor de Mello à Presidência da República em 1990. Mas foi no governo de Fernando Henri-
que Cardoso que esse conjunto de políticas tornou-se hegemônico no debate econômico dentro do
país. A abertura comercial e financeira, a privatização das empresas estatais e o início do desmante-
lamento da rede de proteção social caminharam a passos largos nesse período, e as “reformas estru-
turais” de cunho liberal que estavam na pauta do dia eram consideradas como inevitáveis – tanto que
mesmo a ascensão de um governo de oposição, em 2003, não foi capaz de refreá-las, senão ao con-
trário, de acelerá-las.

Por fim, chegara a vez de o liberalismo dar as cartas. Mas, da mesma intensidade do entusi-
asmo que dominava o pensamento liberal no início da década de 1990, foi a frustração diante dos
resultados colhidos após duas décadas de políticas liberalizantes. Mesmo tendo se consolidado como
única alternativa, mesmo sem contar com críticas capazes de mobilizar a opinião pública, em outras
1
Essa tese foi apresentada por Francis Fukuyama em um artigo intitulado “O fim da história” e posteriormente no livro “O fim
da história e o último homem” (FUKUYAMA, 1992).
9

palavras, dispondo de todos os meios necessários para a implantação de suas políticas, a difusão do
Consenso de Washington não só gerou pífios resultados em termos de desenvolvimento para os paí-
ses periféricos como levou a uma das maiores crises que o capitalismo já viu e que, inclusive, veio a
eclodir exatamente no centro do capitalismo mundial.

No cenário nacional, as últimas duas décadas apresentaram uma taxa de crescimento do PIB
per capita muito inferior não só se comparado às três décadas precedentes como também em compa-
ração aos países mais ricos do mundo. Além disso, muitos autores têm apontado para uma modifica-
ção na pauta de exportação brasileira, indicando a ocorrência de um processo de reprimarização da
economia, como resultado do desmantelamento do parque industrial nacional ocorrido durante o pro-
cesso de abertura comercial.

Esse panorama deixou os teóricos liberais de tal forma desconcertados que os mesmos fo-
ram obrigados a fazer uma avaliação das políticas que defendiam ardentemente até então. O Con-
senso de Washington foi declarado parte do passado e o debate sobre as funções do Estado como
regulador do mercado voltou à pauta do dia.

Com isso, o pensamento crítico toma um novo fôlego. Resgatam-se os debates – originários
da década de 1950 – sobre os limites e possibilidades do desenvolvimento em um país com inserção
periférica no cenário internacional, como o caso do Brasil. Dentre as várias matizes teóricas sobre o
tema, destaca-se a teoria da dependência, que busca compreender o desenvolvimento brasileiro
como um desenvolvimento capitalista, dotado de dinâmica própria, mas ao mesmo tempo influenciado
pelo capital internacional.

Por outro lado, o desempenho dos países periféricos durante a recente crise financeira inter-
nacional contraria, ao menos na aparência, as conclusões teóricas da teoria da dependência. Dentro
dessa teoria, os países periféricos, de inserção dependente do mercado mundial, teriam seu desen-
volvimento vinculado ao desempenho das economias centrais. Não obstante, esses mesmos países
foram os que, aparentemente, se recuperaram mais rápido da crise e são apontados como os novos
motores do crescimento mundial. Além desse aspecto, pelo menos no Brasil, o desempenho econô-
mico foi acompanhado de um processo de redução do nível de pobreza e da concentração de renda,
algo que também contraria a tese de muitos dos autores dependentistas.

Diante do exposto, levando em consideração que compreensões equivocadas sobre a reali-


dade podem levar a resultados desastrosos em termos de ação prática, o presente ensaio apresenta
uma proposta de pesquisa no sentido de repensar a teoria da dependência como paradigma teórico
capaz de explicar o desenvolvimento brasileiro nos últimos vinte anos. Teoria essa entendida como
um esforço do marxismo em adaptar-se às peculiaridades latino-americanas, motivo pelo qual acredi-
tamos que promover uma releitura desse pensamento é, ao mesmo tempo, uma reafirmação do mar-
xismo como um corpo teórico adequado para o entendimento do capitalismo em sua fase atual.

Essas relações de dependência manifestam-se de vários modos – tais como políticos, soci-
ais, ideológicos, tecnológicos e financeiros – sendo que aqui nos focaremos nas formas econômicas
que determinam as relações de dependência. No que consiste essas relações de dependência eco-
10

nômica, quais são suas determinações e sua lógica, e como essa relação se manifesta na realidade
brasileira contemporânea são, portanto, os pontos centrais de nossa pesquisa.

Em certo sentido, o presente trabalho se atém a tentar responder uma das questões que é
central nos estudos da economia do desenvolvimento, e um dos primeiros temas da economia em
geral: por que uns países são ricos e outros pobres? Ou então, qual é a natureza e quais são as cau-
sas da riqueza das nações?

Desde a obra seminal de Adam Smith, economistas de todo o mundo buscam responder a
essa questão. O que apresentamos aqui, portanto, não é nada de novo, mas apenas uma forma de
abordar essa mesma pergunta com um olhar que vai além da economia tradicional. Um olhar que vê
na existência da riqueza a própria pobreza, que vê o capitalismo como um sistema por essência desi-
gual. Um sistema que tenta varrer para baixo do tapete todos os males que cria, apontando a culpa
da miséria nos próprios miseráveis.

Nossa pesquisa encontra-se dividia em quatro partes, além dessa introdução. A primeira de-
las, nosso segundo capítulo, consiste em um levantamento das versões da teoria da dependência e
como se desenvolvem seus principais conceitos. Essa parte da pesquisa consistirá em uma revisão
bibliográfica, na qual iremos recorrer tanto aos autores dependentistas quanto àqueles que os prece-
deram. Apresentaremos os elementos centrais da análise estruturalista, tendo por base o pensamen-
to de Celso Furtado, e das vertentes marxistas da teoria da dependência, os neomarxistas e os car-
dosianos.

No capítulo seguinte, realizamos uma crítica metodológica às vertentes marxistas da teoria da


dependência com o objetivo de averiguar sua adequação para a aplicação em uma tentativa de inter-
pretar a realidade brasileira de hoje. Nesse capítulo, indicamos quais são os aspectos metodológicos
que exigem um esforço para a reelaboração da teoria da dependência, assim como os elementos
trabalhados pelos autores precedentes que devem ser preservados.

O quarto capítulo apresenta uma proposta para uma nova leitura da teoria da dependência,
indicando os caminhos que podem ser seguidos para a construção da categoria abstrata da “depen-
dência” a partir da análise das relações econômicas entre Brasil e Estados Unidos no período que vai
de 1991 a 2010. Nesse capítulo, contrapomos a economia brasileira à norte-americana por esta se
constituir naquela que hegemonizou o cenário internacional do período analisado. A partir de dados
estatísticos sobre as relações entre ambos os países que evidenciam a forma que as relações mate-
riais se desenrolam na sociedade contemporânea, propomos uma nova interpretação do conceito de
dependência e indicamos como ele poderia ser utilizado para compreender o movimento do capital
em escala mundial.

Dessa forma, usando um conceito já trabalhado anteriormente, no entanto repensado para


apresentar uma maior adequação teórica tanto à realidade atual quanto às interpretações contempo-
râneas do materialismo histórico e dialético, propomos uma teoria da dependência cujo sentido último
se encontra não em compreender a influência que a dinâmica capitalista mundial gerará no desenvol-
11

vimento da sociedade brasileira, mas ao contrário, compreender como a sociedade brasileira, com
suas relações com outras economias, irá influenciar a dinâmica capitalista mundial.

Por fim, apresentamos uma conclusão com os principais elementos de nossa análise e uma
indicação dos próximos passos que deverão ser seguidos nesse amplo projeto de pesquisa.
12

2. BASES TEÓRICAS DA DEPENDÊNCIA

O debate acerca da teoria da dependência foi extremamente frutífero nas décadas de 1970 e
1980, tendo-se reduzido bastante nos últimos vinte anos. Suas origens remontam às primeiras inter-
pretações cepalinas sobre as economias latino-americanas.

O pensamento cepalino se desenvolveu como crítica às concepções do mainstream sobre o


comércio internacional, cuja base remonta à teoria das vantagens comparativas de David Ricardo,
erguendo-se como contraponto às proposições etapistas desenvolvidas posteriormente por Walt
Whitman Rostow, que via o desenvolvimento do capitalismo como um processo linear no qual as
economias latino-americanas se encontrariam em uma etapa anterior a das economias europeias e
norte-americanas. A teoria cepalina buscou evidenciar as dinâmicas próprias das economias periféri-
cas, as quais se diferenciariam das economias centrais, de modo a deixar clara a inexistência de uma
linearidade que levaria a transformação de uma nas outras.

A primeira crise da teoria cepalina, que veio com a estagnação econômica que assolou diver-
sos países latino-americanos no início da década de 1960, impulsionou alguns autores marxistas a se
debruçarem sobre o tema. Esses, ao mesmo tempo, seriam tentados a se afastar das teses do mar-
xismo ortodoxo, propalado pelos quadros burocráticos da União das Repúblicas Socialistas Soviéti-
cas, ao contrastarem tais teses com os processos históricos que culminaram na revolução socialista
cubana, chamando a atenção para a geopolítica latino-americana.

Desses autores nasceu a teoria da dependência, que buscava evidenciar as peculiaridades


da formação histórico-social dos países latino-americanos, afirmando-os como plenamente capitalis-
tas, mas com um capitalismo diferente, fadado ao subdesenvolvimento. Apresentavam, então, como
caminho de superação desse subdesenvolvimento a revolução socialista.

Tal teoria recebeu uma crítica feroz de vários setores da academia e de segmentos da própria
esquerda, sendo a mais severa a crítica de Fernando Henrique Cardoso, que buscou evidenciar os
desvios que esses autores apresentavam com relação à dialética marxista. Como resultado natural do
processo da crítica cardosiana, o referido autor lançou as bases de uma segunda vertente marxista
da teoria da dependência, diferenciada da anterior, sobretudo, quanto ao método.

Antes de nos aprofundarmos no debate sobre a dependência, perscrutando as argumenta-


ções presentes em cada uma das vertentes, é importante esclarecermos alguns conceitos acerca do
status teórico desses estudos. Alguns autores questionam se essas investigações teriam envergadura
2
o suficiente para tratá-las como uma “teoria” . Ao invés disso, preferem utilizar os termos “aborda-
gem”, “escola”, ou “aporte” da dependência. A origem dessa querela remete a um debate entre Fran-
cisco Corrêa Weffort e Fernando Henrique Cardoso no início da década de 1970, em um seminário
promovido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – FLACSO, em Santiago. Weffort
(1971) apresenta uma crítica ao conceito de dependência tal como utilizado pelas teorias tanto mar-
xistas quanto estruturalistas Para o autor, a dependência:

2
Cf., por exemplo, Machado, 1999.
13

[...] oscila, irremediavelmente do ponto de vista teórico, entre um approach


nacional e um approach de classe. No primeiro, o conceito de nação opera
como uma premissa de toda a análise posterior das classes e relações de
produção; ou seja, a atribuição de um caráter nacional (real, possível e de-
sejável) à economia e à estrutura de classes joga um papel decisivo na aná-
lise. No segundo, pretende-se que a dinâmica das relações de produção e
das relações de classe determine, em última instância, o caráter (real) do
problema nacional (WEFFORT, 1971, p. 6).

Assim, ao utilizar a categoria da dependência para buscar compreender a dinâmica de clas-


ses, os dependentistas incorreriam no erro de substituir a categoria de classes pela de nação, sendo
esta última insuficiente para o “entendimento da sociedade como conjunto” (WEFFORT, 1971, p. 9).

Em resposta à crítica de Weffort, Cardoso – em um texto intitulado “’Teoria da dependência’


ou análises concretas de situações de dependência?” – argumenta: “[...] rigorosamente não é possí-
vel pensar numa ‘teoria de dependência’. Pode haver uma teoria do capitalismo e das classes, mas a
dependência, tal como caracterizamos, não é mais do que a expressão política, na periferia, do modo
de produção capitalista quando este é levado à expansão internacional” (CARDOSO, 1973, p. 128).
Fica claro que a argumentação do autor refere-se à tentativa de se pensar a dependência dissociada
de uma teoria de classes (ou seja, como pautada unicamente no conceito de nação).

Mas as palavras fortes do autor, combinadas com o título de seu referido texto, difundiriam a
tese de que o próprio Cardoso possuiria um comportamento hesitante ao tratar sobre a dependência.
Isso o leva a tentar corrigir o equívoco no artigo “Notas sobre o estado atual dos estudos sobre a
dependência”3, publicado originalmente em 1972. Explica:

Eu não penso que a categoria [...] de dependência possua o mesmo status


teórico das categorias centrais da teoria do capitalismo. A razão para isto ‘r
óbvia; não se pode pensar na dependência sem os conceitos de mais-valia,
expropriação, acumulação etc. A idéia de dependência se define no campo
teórico da teoria marxista do capitalismo.

Isto posto, não há razão para negar a existência de um capo teórico próprio,
embora limitado e subordinado à teoria marxista do capitalismo, no qual se
inscrevem as análises sobre a dependência. E neste caso, não há por que
utilizar as aspas na expressão teoria. Existe, pois, a possibilidade de pen-
sar-se na teoria da dependência, sempre e quando ela se inscreva no cam-
po teórico mais amplo da teoria do capitalismo ou da teoria do socialismo
[...] (CARDOSO, 1993, p. 100-101).

Mas a polêmica já estava lançada. E a tese de que os estudos sobre a dependência não
constituía uma teoria ganhava adeptos. Em um texto de divulgação de Gabriel Palma, publicado em
1978, seis anos depois da correção de Cardoso, sob o título “Dependency: a formal theory of under-
4
development or a methodology for the analysis of concrete situations of underdevelopment?” , o autor
afirma que, para Cardoso, seria enganoso ver a dependência como uma teoria formal, e que nenhu-
ma implicação geral poderia ser abstraída de sua análise.

3
Aqui é citada a versão publicada sob o título “A dependência revisitada” (CARDOSO, 1993).
4
Vale observar a semelhança do título com o texto-resposta de Cardoso. Tal similitude nos indica que, mesmo tendo acesso e
conhecimento sobre o segundo texto, Palma opta por se alinhar ao lado da polêmica.
14

Parece-nos que a interpretação de Palma deriva de uma leitura descontextualizada dos textos
de Cardoso. Mais ainda, no fim do referido artigo, Palma afirma: “I have shown that there is no such
thing as a single 'theory of dependency'; under the dependency label we find approaches so different
that we may at best speak of a 'school of dependency'” (PALMA, 1978, p. 912). O autor parece forçar
uma tentativa de abandonar o status teórico da dependência. Mas, a argumentação de que existem
tantas abordagens distintas dentro do mesmo que elas não conseguem se articular em uma metodo-
logia única, a despeito de ser verdade, não nos parece permitir a desqualificação proposta por Palma.
Como tema relevante para a realidade latino-americana, é de se esperar que diferentes autores de
diferentes inclinações teóricas se debrucem sobre o assunto. Nesse sentido, a relação de dependên-
cia é um objeto de estudo, objeto sobre o qual tratarão várias correntes teóricas, cada uma com a sua
própria teoria da dependência.

A extrapolação do argumento de Palma a outros ramos da pesquisa econômica evidenciam o


equívoco de sua lógica. Seria similar a uma tentativa de se refutar a existência de uma teoria do de-
senvolvimento econômico, já que não há unidade metodológica nos que a desenvolvem – uma vez
que se trata de um tema ao qual já se dedicaram autores neoclássicos, institucionalistas, keynesia-
nos, schumpeterianos, marxistas, entre vários outros. Claro que há um debate entre os autores de
diferentes correntes teóricas, mas eles não procuraram, em nenhum momento, construir um pensa-
mento único juntamente com os autores de outra escola. O mesmo pode-se dizer, por exemplo, da
teoria da firma. No entanto, esses temas não são alvos da mesma crítica que sofrem as teorias da
dependência.

Portanto, não só é autêntico falar de uma teoria da dependência, como também é fundamen-
tal caracterizá-la pela abordagem teórica que utiliza. Mesmo porque não houve a tentativa, até hoje,
de se construir uma teoria sobre o assunto dissociada de métodos e categorias de análise dadas por
uma perspectiva teórica a priori. Além disso, cada vertente da teoria da dependência pode ser dife-
renciada das demais tanto devido ao núcleo de hipóteses fundamentais como ao método. Claro está
que, mesmo assim, essas teorias se inserem em programas de pesquisa mais amplos, tratando-se de
fato da forma como esses abordam a questão da relação entre países.

Nesse sentido, cabe destacar a diferenciação entre a teoria cepalina e as demais correntes
no que tange ao próprio entendimento da relação de dependência. Enquanto os teóricos estruturalis-
tas da CEPAL compreendem a dependência como uma dinâmica de desenvolvimento econômico de
um país, de modo que sua superação compreenderia apenas modificações nas estruturas econômi-
co-sociais internas do mesmo, os teóricos das vertentes marxistas a compreendem como a relação
que se dá entre esses países e os países centrais. Ou seja, para a teoria cepalina, a despeito da
dependência se expressar nas relações do comércio internacional, ela é fruto dos elementos estrutu-
rais internos dos países periféricos, de modo que sua superação pode ser alcançada por meio de
uma transformação desses elementos sem prejudicar a lógica de acumulação do capital nos países
centrais. Enquanto que para as vertentes marxistas, a dependência resulta não só da lógica interna
de cada país, mas também dos processos de expansão imperialistas do capital oriundo dos países
centrais.
15

No que tange ao método, o estruturalismo cepalino consiste em complementar a visão do ma-


instream com variáveis que antes se achavam ignoradas por essas teorias. A base dessa construção
metodológica consiste em reconhecer que as teorias tradicionais foram elaboradas com o intuito de
se observar os movimentos econômicos dos países centrais, países que possuem certas semelhan-
ças em termos de estruturas político sociais. Nesse sentido, aplicar o mesmo método de às economi-
as periféricas sem incluir as divergências nessas variáveis estruturais comprometeria o resultado da
análise.

A argumentação é que são essas variáveis estruturais que modificam a dinâmica das socie-
dades periféricas, de modo que as conclusões sobre as economias centrais não podem ser compre-
endidas sem comprometer o resultado da análise. Partem, portanto, da hipótese de que, uma vez
resolvidas as divergências estruturais, esses países periféricos abandonarão esse status e passarão
a se comportar como as economias centrais.

Já as vertentes marxistas da dependência se apoiam em distintas leituras sobre o método do


materialismo dialético. Nesse ponto, podemos dividir os teóricos marxistas em dois grupos: os neo-
marxistas, que se apoiam na construção metodológica de Ruy Mauro Marini, com uma dialética que
privilegia os processos econômicos materiais; e os cardosianos, que se alinham com as elaborações
de Fernando Henrique Cardoso sobre a dialética marxista, colocando a luta de classes e os elemen-
tos políticos como o principal fator dinâmico para explicar as especificidades de cada situação concre-
ta de dependência.

Vejamos agora, os elementos centrais presentes nas distintas teorias que tratam sobre a de-
pendência.

2.1 O estruturalismo cepalino

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) é um órgão das Nações
Unidas criado em 1948 com o intuito de apoiar o planejamento econômico dos países latino-
americanos. Do ponto de vista acadêmico, o órgão ganhou notoriedade com a publicação do artigo
seminal “O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus principais problemas” de
seu então secretário-executivo, Raúl Prebisch (1949). Nesse texto, que foi calorosamente recebido
pelos intelectuais latino-americanos, o autor apresentou o núcleo do que viria a ser conhecido como a
tendência à deterioração dos termos de intercâmbio, que consiste no fato de que os países da Améri-
ca Latina não aproveitam dos frutos do progresso técnico do mesmo modo que os países industriais,
ocasionando uma situação perversa no comércio internacional que se manifesta nos preços dos bens
primários.

Muitos outros intelectuais proeminentes integraram também a CEPAL nesse período, de mo-
do que a Comissão ganhou projeção como uma escola de pensamento econômico, a primeira genui-
namente latino-americana de proeminência mundial. Dentre estes, destaca-se Celso Furtado, que
veio a se tornar o maior expoente do pensamento estruturalista. Foi Furtado que introduziu a depen-
dência como lógica própria dos países subdesenvolvidos, de modo que sua contribuição tem impor-
16

tância para a fundação da teoria da dependência, corpo teórico que se ergueria a partir da crítica à
primeira geração do pensamento cepalino.

A teoria estruturalista cepalina não se configura, ela própria, como uma teoria da dependência
visto que, a despeito de considerar a existência de uma dinâmica dependente nos países periféricos,
não possui essa relação como objeto central de suas análises. Ao invés disso, trata-se de fato de
uma teoria do desenvolvimento econômico, ampla o suficiente para conceber a existência de cami-
nhos distintos de desenvolvimento. A seguir analisaremos alguns elementos fundamentais do pensa-
mento destes dois autores e que servirão de base para uma adequada compreensão da teoria da
dependência.

2.1.1 Prebisch e a deterioração dos termos de troca

Até a publicação da seminal obra de Prebisch, a teoria econômica sobre o comércio interna-
cional baseava-se, sobretudo, na obra de David Ricardo e na teoria das vantagens comparativas. Do
ponto de vista dessa teoria, a especialização produtiva no setor de maior produtividade relativa de um
determinado país levaria sempre a um ganho absoluto para o comércio internacional. Essa teoria
apontava, então, para a formação de uma divisão internacional do trabalho, em que os países da
América Latina acabavam por se especializar na produção de bens primários (devido ao excesso de
terras e mão-de-obra desqualificada, o que tornava a produtividade relativa desse setor maior do que
a dos setores industriais), enquanto os países dito avançados (nos quais se incluíam grande parcela
dos países europeus e os Estados Unidos) concentravam-se na produção industrial. Mantido tudo o
mais constante, as premissas dessa teoria garantiriam que o progresso técnico seria repartido de
modo igual entre todos os países.

No artigo de 1949, Prebisch questionou a validade da teoria clássica das vantagens econômi-
cas da divisão internacional do trabalho, ao colocar em questão a premissa de que os frutos do pro-
gresso técnico se repartem igualmente entre todos os países por meio do comércio internacional. Tal
proposição não teria validade ao se inserir na análise os países periféricos da economia mundial. O
fundamento do questionamento consiste em que os fatos não corroboram a premissa, uma vez que
haveria uma tendência secular de deterioração dos preços dos produtos primários em comparação
aos produtos manufaturados, causado por diversos fatores. Vejamos, então, a argumentação de Pre-
bisch para a existência de tal tendência.

Em primeiro lugar, considerando-se que os produtos manufaturados apresentam um elevado


conteúdo tecnológico, em contraste com os bens produzidos pelas economias primário-exportadoras,
aqueles observariam ampliações de produtividade mais elevadas do que estes. No entanto, mesmo
que a ampliação da produtividade passasse para os setores exportadores dos países periféricos por
meio de aquisição de equipamentos, esse progresso técnico não seria igualmente distribuído entre os
países. O autor aponta que há uma tendência de se ampliar a remuneração tanto do trabalho quanto
do capital nos países centrais a partir dos aumentos de produtividade, de modo que os frutos do pro-
gresso técnico se dividam por todas as classes econômicas. Essa tendência deriva do grau de orga-
17

nização da força de trabalho nesses países, que conseguem pressionar os salários para cima quando
há uma ampliação das margens de lucro, e dos grupos empresariais, que conseguem manter os pre-
ços elevados a despeito dos ganhos de produtividade alcançados.

Já nos países periféricos, tal tendência não se verificaria, pois o progresso técnico traduz-se
normalmente em preços mais baixos. A falta de uma organização sindical capaz de pressionar para a
ampliação da remuneração da classe trabalhadora é arrolada pelo autor como o elemento responsá-
vel por essa transferência da produtividade para os preços.

Desse modo, haveria um elemento estrutural, e não meramente conjuntural, responsável pela
ampliação da desigualdade entre os países industrializados e os países periféricos primário-
exportadores. Para reverter esse processo seria necessário lançar mão do Estado para incentivar o
setor privado a desenvolver produção de maior conteúdo tecnológico, acelerando o processo de in-
dustrialização. Também seria necessário mudar o foco da produção, voltando-a para o mercado in-
terno – e novamente aqui o Estado teria o papel fundamental de aquecer a demanda desse mercado.

Essas seriam as linhas gerais da teoria de Prebisch apresentada em seu artigo de 1949. A
tendência à deterioração dos termos de intercâmbio viria a servir de inspiração para uma variada
gama de economistas, dentre os quais Celso Furtado que, juntamente com Prebisch, seriam os maio-
res nomes da escola estruturalista de pensamento econômico.

2.1.2 A dinâmica dependente de Celso Furtado

A ampla obra de Celso Furtado apresenta uma visão sobre o subdesenvolvimento que o re-
conhece não como uma etapa de um processo de desenvolvimento que culminaria em uma estrutura
produtiva similar aos países “avançados” 5, mas como fenômeno que apresenta uma lógica econômica
distinta. A visão de Furtado foi apresentada com maestria e de forma mais completa na obra “Teoria e
política do desenvolvimento econômico” (FURTADO, 1983).

Considerando-se o desenvolvimento em seu aspecto puramente econômico, isto é, como


ampliação da produção por unidade de trabalho, o autor aponta para a existência de duas lógicas
econômicas distintas, uma referente aos países centrais e outra aos países periféricos. Os países
centrais possuiriam uma dinâmica que Furtado denominou de autônoma, contra a dinâmica depen-
dente dos países periféricos. Para compreender a diferença entre essas duas dinâmicas, vejamos
primeiro como o autor compreende o processo de desenvolvimento econômico.

Para Furtado, o desenvolvimento, compreendido como ampliação da produtividade, pode ser


resultado de três fatores distintos, mas relacionados: a) aumento da dotação de capital por trabalha-
dor; b) progresso tecnológico; e c) modificações na estrutura produtiva decorrente da alteração no
perfil da demanda, ou seja, transferência de recursos de um setor menos produtivo para um setor
mais produtivo (FURTADO, 1968, p. 20). O primeiro desses fatores, o aumento de dotação de capital
por trabalhador, ou a ampliação do investimento, é um elemento necessário para o desenvolvimento
5
Como fazia crer Walt W hitman Rostow em sua obra ”Etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não-comunista”
(ROSTOW, 1974).
18

econômico, mas ocorrer sempre combinado com algum dos outros dois elementos. Nesse sentido, o
impulso original do desenvolvimento repousará ou sobre o progresso tecnológico ou sobre a modifi-
cação do perfil da demanda – ou ainda, uma combinação desses dois elementos.

Além do mais, a dinâmica econômica funciona, na visão de Furtado, dentro de uma lógica
causal circular, de modo que independente de qual seja o impulso original, todos os três elementos
irão se combinar para elevar a produtividade do trabalho. Sendo assim, seja a ampliação da produti-
vidade fruto do progresso tecnológico ou da modificação no perfil da demanda, seus efeitos levarão
necessariamente à ocorrência do outro fator, intermediados pela acumulação de capital.

A diferença, então, entre as lógicas de acumulação autônoma e dependente consiste exata-


mente no impulso original que anima o desenvolvimento econômico (FURTADO, 1968, p. 22). Para
as economias de dinâmica autônoma, o impulso original encontra-se no progresso técnico, que, en-
tão, é materializado em ganhos de produtividade quando é alvo de novos investimentos – tanto como
empreendimento novo quanto como investimento para reposição de capital já depreciado. Esses ga-
nhos de produtividade serão distribuídos pelas classes econômicas conforme a capacidade dos traba-
lhadores em reivindicar melhores salários, por meio de sindicatos organizados, e a capacidade dos
empresários em manterem preços elevados. Essa distribuição da renda levará a uma modificação no
próprio perfil da demanda, que exigirá novos investimentos (já incorporando os novos progressos
tecnológicos).

A dinâmica dependente, típica das economias subdesenvolvidas, possui sua força motriz na
modificação do perfil da demanda. As economias primário-exportadoras não alcançam um grau de
ampliação da produtividade como ocorre nas economias industriais. A dinâmica dessas economias
repousa, então, na alteração da distribuição de renda, normalmente fruto das transações comerciais
com o exterior, cujos rendimentos são apropriados nas mãos de um seleto grupo de empresários. A
demanda que essa nova situação de renda irá incentivar provavelmente será de bens de consumo
duráveis, cuja indústria será alvo de investimentos para fazer frente a essa nova demanda. Como
esses investimentos baseiam-se em bens de capital importados, os países subdesenvolvidos obtêm,
assim, os ganhos de produtividade dos avanços tecnológico dos países centrais.

Desse modo, aponta Furtado (1968, p. 23) que “[...] O desenvolvimento de uma economia
dependente é o reflexo do progresso técnico nos pólos dinâmicos da economia mundial. Contudo,
convém assinalar que o elemento dinâmico não é a irradiação do progresso tecnológico, e sim o des-
locamento da curva de demanda”.

A dinâmica dependente resulta, portanto, de dois fatores. Em primeiro lugar da especialização


produtiva típica dos países dependentes, que se concentram, sobretudo, em bens primário-
exportadores. Mas, mesmo quando um país periférico como o Brasil abandona a lógica primário-
exportadora pela acumulação voltada para o mercado interno, há alguns elementos estruturais que
impedem que o desempenho econômico desse país se iguale ao dos países centrais.

Dentre esses elementos estruturais estariam a elevada concentração da riqueza e da renda,


a concentração fundiária, o elevado grau de oligopolização do setor produtivo, o excesso estrutural de
19

mão-de-obra e a baixa organização dos trabalhadores para lutarem por ampliação de seus salários.
Esses elementos restringem os próprios efeitos da ampliação da produtividade derivado das modifi-
cações no perfil da demanda. Com a renda cada vez mais concentrada, o mercado interno de bens
de consumo duráveis apresenta um público sempre muito restrito. Como os bens de capitais importa-
dos dos países centrais são desenvolvidos baseados em uma economia em que há escassez de
mão-de-obra e que possuem um mercado interno muito amplo, o resultado da aplicação desse tipo de
tecnologia nos países dependentes é duplamente prejudicado: cada vez gera-se um maior excesso
estrutural de mão-de-obra; e diante de um público muito restrito e uma capacidade produtiva muito
elevada, a indústria nacional não é capaz de se aproveitar dos ganhos de escala derivados da aplica-
ção dessa tecnologia (FURTADO, 1968, p. 41).

Por fim, o processo de desenvolvimento perde força na medida em que se torna cada vez
mais dependente de bens restringidos (seja pela importação de bens de consumo duráveis ou de
bens de capital para a internalização da produção) com impactos de longo prazo no balanço de pa-
gamentos. Em suma, os mecanismos de propagação de um impulso inicial em uma economia depen-
dente como a brasileira não permitem que se aproveitem plenamente os frutos, em termos de aumen-
to da produtividade, do progresso tecnológico.

Convém observar, agora, as características específicas da teoria da dependência que se de-


preende dos escritos de Celso Furtado. Em primeiro lugar, a dependência a que se refere sua teoria
consiste na dependência tecnológica, que gera um desenvolvimento restringido pela importação de
bens de capital e no que o autor denominou de deslocamento dos centros de decisão, ou seja, com a
ampliação dos oligopólios de participação estrangeira nos países periféricos, grande parte das deci-
sões sobre os investimentos nessas economias passam a ser tomadas levando-se em conta interes-
ses que não se relacionam diretamente com as necessidades nacional.

Em segundo lugar, a dependência é fruto unicamente de fatores internos à economia periféri-


ca. Não há influência de fatores externos que coaja algum país a ocupar a posição periférica. Desse
modo, a dependência poderia ser resolvida mediante algumas reformas estruturais que, inclusive,
contrariaria apenas os interesses de alguns grupos nacionais – reduzidos em termos numéricos, mas
não, obviamente, em termos de poder econômico.

2.2 Neomarxistas

A teoria cepalina do desenvolvimento econômico pareceu dotar os países do entendimento


necessário para pôr em marcha um processo de industrialização capaz de superar a dinâmica de-
pendente da periferia latino-americana. De fato, algumas de suas prescrições foram adotadas como
política econômica por alguns países da América Latina – de modo consciente ou não – que logra-
ram, por certo, algum grau de industrialização. Mas, no decorrer da década de 1960 parecia que es-
ses países encontravam os limites da expansão industrial diante das estruturas sociais postas. Inici-
ou-se a fase das teorias estagnacionistas, que afirmavam a impossibilidade do desenvolvimento eco-
nômico (ampliação da produtividade e diversificação da indústria) nos países latino-americanos.
20

Por outro lado, a teoria crítica marxista apregoava as formulações teóricas eurocêntricas do
marxismo ortodoxo, propalado localmente pelos Partidos Comunistas nacionais e derivado das teses
para os países coloniais e atrasados apresentadas pela III Internacional Comunista (Komintern) –
organização fundada por Vladimir Lenin para reunir os partidos comunistas de todo o mundo. As te-
ses do Komintern apregoavam que esses países atrasados se encontrariam em um momento históri-
co de passagem de uma realidade feudal ou semifeudal para o capitalismo industrial, mas que esse
processo seria dificultado pela ação imperialista do capital internacional que, aliados às oligarquias
rurais, pilhavam e extraiam o excedente gerado na periferia.

Para romper com esses limites, caberiam aos partidos comunistas articularem o proletariado
nascente, aliando-se ao campesinato e à burguesia industrial nacional (também nascente) para lutar
por uma revolução democrático-burguesa, pondo fim às amarras das relações tradicionais. Essa seria
o caminho a ser seguido pelos países latino-americanos, adequando-os às etapas históricas de de-
senvolvimento de uma sociedade: o comunismo primitivo, seguido pelos modos de produção escra-
vista, feudal, capitalista e, então, socialista.

Esse esquema do marxismo ortodoxo se viu ameaçado pela realidade com que se depara-
vam os militantes e intelectuais de esquerda a partir da década de 1960, tanto por verem o avanço da
industrialização desses países – e os golpes militares que prosperavam no continente, demonstrando
que a burguesia nacional não estava disposta a formar aliança com o proletariado e campesinato –
quanto pela revolução cubana de 1959, que tomava rumos socialistas, evidenciando que poderia
haver uma divergência entre o grau de desenvolvimento das forças produtivas e a organização políti-
ca – ou seja, colocava em xeque a tese etapista do marxismo ortodoxo.

Para responder a esse cenário latino-americano, alguns intelectuais marxistas começaram a


desenvolver teses que seriam compreendidas como “uma teoria do imperialismo do ponto de vista
dos países periféricos” – a teoria da dependência em sua vertente neomarxista6. Esses autores, ani-
mados pelos escritos de Paul Alexander Baran, sobretudo por sua obra “Economia política do desen-
volvimento” (BARAN, 1977), em que aponta para uma dinâmica de desenvolvimento diferenciada
para os países da periferia mundial (desviados do seu caminho tradicional pelos processos imperialis-
tas do capitalismo avançado), buscaram explicar o destino da América Latina a partir da categoria da
“dependência”.

Entre os neomarxistas, comumente enquadram-se os seguintes autores: André Gunder


Frank, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vania Bambirra, entre outros. André Gunder Frank é
apontado como aquele que inaugurou o debate da teoria da dependência na vertente neomarxista. A
obra de Frank que apresenta os elementos fundantes dessa corrente é “Capitalismo e subdesenvol-
vimento na América Latina” (FRANK, 1970). Nela, o autor desenvolve o que seria um modelo de um
sistema capitalista mundial, descrito como uma constelação composta pelas metrópoles (centros) em
torno das quais girariam os países satélites (periféricos). O autor vai contra as teses vigentes no mar-

6
Cabe deixar claro que apenas utilizamos esta nomenclatura visto que muitos dos autores dessa corrente da teoria da depen-
dência assim se denominam (cf. SANTOS, 2000), além de também ser amplamente utilizada pela historiografia da teoria da
dependência (HUNT, 1989 e HETTNE, 1990). Mas é importante salientar que alguns dos autores assim caracterizados, como é
o caso de Ruy Mauro Marini, nunca pretenderam ser nada mais que um “marxista”. Não acreditamos, de todo modo, que o dito
“neomarxismo” constitua-se em um corpo teórico próprio, mas apenas uma releitura peculiar da obra de Karl Marx.
21

xismo ortodoxo, que apontava a predominância de relações feudais nos países atrasados. Para
Frank, seguindo uma linha que já havia sido apontada por Caio Prado Júnior, o capitalismo já se en-
7
contrava presente e predominante nas relações sociais de produção dos países periféricos .

Frank ainda indica a existência de um processo de transferência de mais-valia da periferia em


direção ao centro, motivo que levaria, na análise do autor, ao estagnacionismo econômico nos países
periféricos. Sendo assim, o capitalismo possível nos países centrais seria apenas um capitalismo
subdesenvolvido, baseado em uma superexploração do trabalho, necessária para garantir a acumu-
lação tanto da classe capitalista local como a transferência de mais-valia para os países centrais.
Assim, os países periféricos se encontrariam inseridos em uma relação de dependência que fortale-
ceria seu subdesenvolvimento. A única solução possível para esse dilema seria a opção por uma via
socialista.

Os trabalhos de Frank sofreram grandes críticas nos meios marxistas, principalmente no que
tange a sua visão tida como mecanicista e estática de tratar as relações sociais de produção, sendo
acusado de abandonar a análise da luta de classes. Crítica que buscou superar, sem sucesso, em
“Acumulação dependente e subdesenvolvimento” (FRANK, 1980). Não obstante Frank possa ser
apontado como aquele que inaugurou a vertente neomarxista da teoria da dependência, foi a Ruy
Mauro Marini que coube resgatar a dialética do processo da dependência e a dar um tratamento eco-
nômico para o tema.

2.2.1 Ruy Mauro Marini e a Dialética da Dependência

A compreensão econômica do fenômeno da dependência, conforme concebido pela vertente


neomarxista dessa teoria, é tributada a Ruy Mauro Marini, o primeiro autor a dar um tratamento pro-
priamente econômico para o tema. A despeito de possuir obra muito vasta, seu modelo da depen-
dência é elaborado em um pequeno conjunto de ensaios intitulados “Dialética da dependência”, “Em
8
torno da dialética da dependência” e “As razões do neodesenvolvimentismo” , esse último constituin-
do uma resposta ao texto crítico “As desventuras da dialética da dependência” (CARDOSO; SERRA,
1980). Outros ensaios do autor abordam o tema da dependência, mas representam antes uma apli-
cação da teoria referida em situações históricas concretas do que elaborações posteriores do modelo
da teoria da dependência. Figuram entre esses, “Subdesarrollo y revolución”, “Dialética do desenvol-
vimento capitalista no Brasil”, “El movimiento revolucionario brasileño” e, por fim, “Processo e tendên-
cias da globalização capitalista”.

O ensaio intitulado “Subdesarrollo y revolución” (MARINI, 1977) descreve o processo de inte-


gração da América Latina ao mercado mundial, desde o período colonial até a eclosão das ditaduras
tecno-burocráticas. Nesse ensaio, o autor apresenta o movimento como se dá no âmbito da luta de
classes, tendo por base a teoria da dependência.

7
Não obstante, como bem ressalta Santos (2000), Frank incorria no equivoco de definir um sistema como capitalista a partir
das relações presentes na circulação.
8
Os três ensaios, originalmente em espanhol, foram publicados pela primeira vez em português em “Dialética da dependência:
uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini” (MARINI, 2000), obra utilizada aqui como referência.
22

Nos ensaios “Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil” (MARINI, 2000.) e “El movi-
miento revolucionario brasileño” (MARINI, 1977), Marini aborda a luta de classes no Brasil desde o
período varguista até meados da ditadura militar de 1964. Trata-se, de fato, de uma tentativa de com-
preender os movimentos que geraram o golpe militar de 1964, contra as expectativas da esquerda
revolucionária brasileira, e as posteriores possibilidades de resistência. Nesses ensaios, Marini en-
quadra o Brasil no processo de subimperialismo que deriva da perspectiva teórica elaborada em “Dia-
lética da dependência”.

Em “Processo e tendências da globalização capitalista” (MARINI, 2000), escrito em meados


da década de 1990, Marini analisa os novos fenômenos do período neoliberal sobre a lógica da de-
pendência. Observa o recrudescimento das relações trabalhistas não só na América Latina, mas até
mesmo nos países do centro capitalista, como os Estados Unidos. Sem apresentar, entretanto, qual-
quer lógica que represente uma ruptura com a teoria da dependência, mas tão somente a sua reafir-
mação em termos mais rígidos.

De modo geral, esses ensaios apresentam um processo de luta de classes que, diante das
impossibilidades de se reverter as leis econômicas inexoráveis do capitalismo dependente, apontam
apenas para a revolução socialista como alternativa para a melhoria da qualidade de vida do traba-
lhador. Discurso que muda um pouco em seu último ensaio, onde enfatiza a luta para a ampliação da
democracia e do controle do Estado sobre os mercados. Vejamos, pois, as bases da teoria da de-
pendência de Marini que sustentam tais interpretações feitas pelo autor.

Para a elaboração de sua teoria da dependência, Marini busca mimetizar o método utilizado
por Marx na elaboração d’O Capital e seguir suas indicações metodológicas na “Introdução à contri-
buição à crítica da economia política” (MARX, 2008a). O autor reafirma, então, a célebre frase de
Marx de que “a anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco” (MARX, 2008a, p. 264),
que diz que é a partir das formas mais complexas que se pode compreender as formas mais simples
ainda não desenvolvidas.

Não obstante, Marini conclui que o estudo da dependência deve ser coincidente com o estudo
dos movimentos históricos que lhe deram origem, já que “[...] o desenvolvimento ainda insuficiente de
uma sociedade, ao ressaltar um elemento simples, torna mais compreensível sua forma mais com-
plexa, que integra e subordina esse elemento” (MARINI, 2000, p. 106-107). Isso quer dizer que,
mesmo concordando que para se compreender as formas econômicas que antecedem a dependên-
cia é preciso compreender a própria dependência, o autor acredita que a compreensão desta última
deriva da análise histórica de sua formação (ou seja, da forma mais simples para a mais complexa).
Esse seria o “duplo sentido” da verdade, como afirma Marini, por trás da referida citação de Marx.

Com isso o autor conclui que, para compreender a dependência, precisa-se avaliar o proces-
so histórico do surgimento do capitalismo na América Latina a partir das categorias marxistas de aná-
lise. Desse modo agindo assim tais categorias seriam capazes de antecipar seu desenvolvimento
posterior. Mas devem ser utilizadas de modo ponderado, visto que não se constituem nas categorias
concretas de tais sociedades.
23

O caminho que usa, então, para compreender esse desenvolvimento histórico é atribuído, pe-
lo autor, ao modo como Marx expõe sua pesquisa n’O Capital. A pesquisa da dependência deve se-
guir, diz Marini, um caminho que vai “da circulação à produção, da vinculação ao mercado mundial,
ao impacto que isso acarreta sobre a organização do trabalho, para voltar então a recolocar o pro-
blema da circulação” (MARINI, 2000, p. 131). Caminho esse que, para o autor, “corresponde ao mo-
vimento real da formação do capitalismo dependente” (MARINI, 2000, p. 130).

No entanto, não iremos reproduzir aqui esse caminho traçado por Marini. Ao invés disso, ire-
mos expor primeiramente o que o autor compreendia por dependência, para depois, então, evidenciar
o caminho do desenvolvimento histórico que legou aos países da América Latina um capitalismo de-
pendente. Inverter a lógica de exposição de Marini traz à tona, de imediato, um problema: como o
autor busca explicar a dependência pelo seu desenvolvimento histórico, em nenhum momento se
dedica a esclarecer exatamente em que consiste essa categoria de análise.

No início do ensaio “Dialética da dependência”, Marini (2000, p. 109) afirma compreender a


dependência como “uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo
âmbito as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegu-
rar a reprodução ampliada da dependência”. Mas o que isso quer dizer? O que significa essa subor-
dinação? O que caracteriza essas nações formalmente independentes? E quais são essas relações
de produção que reproduzem essa relação de subordinação?

A primeira coisa a se deixar claro é que Marini, ao tratar da dependência, refere-se a relações
entre países capitalistas – em uma época que se compreendia um país tipicamente capitalista como
um país industrial. Mas que tipo de industrialização era essa que se verificava nos países subordina-
dos? Era uma industrialização que se focava na produção de matérias-primas9 para o mercado inter-
nacional e para a produção de bens de consumo suntuário para consumo interno, restringido a uma
pequena parcela da população (excluindo a massa proletária).

Portanto, uma nação dependente é aquela que, a despeito de atingir elevado nível de diversi-
ficação industrial, direciona grande parte da sua produção para as exportações – daí a subordinação,
ou seja, a determinação, por parte de grupos estrangeiros, sobre o que será produzido em um país
que é formalmente independente (que, em teoria, teria autonomia para decidir sobre seu próprio mo-
do de produção) – e que apresenta um problema de realização na parcela de sua produção que é
direcionada para o mercado interno.

A resolução desse problema interno de realização em parte é dada por meio da ação do Es-
tado e em parte pela prática do subimperialismo, que é a busca pelo domínio de mercados de con-
sumo suntuário em outros países periféricos. Esse subimperialismo, no entanto, não é suficiente para
permitir que o país rompa com a lógica dependente, já que não é capaz de inverter a relação de pro-
dução que reproduz a dependência: a superexploração do trabalho.

A superexploração do trabalho é, para Marini, a essência da dependência e pode ser com-


preendida como uma “maior exploração da força física do trabalhador, em contraposição à exploração
9
E outros bens intermediários que correspondem ao que Marini chamou de etapas inferiores da produção industrial (MARINI,
2000, p. 145).
24

10
resultante do aumento de sua produtividade” (MARINI, 2000, p. 160) . Ela contempla três mecanis-
mos distintos: a mais valia gerada de forma absoluta, por meio da extensão da jornada de trabalho; a
mais valia gerada pela ampliação da intensidade do trabalho; e a mais valia apropriada pelo capitalis-
ta por meio da redução do consumo do trabalhador além do nível normal. Como resultado, a supe-
rexploração “[...] tende normalmente a expressar-se no fato de que a força de trabalho se remunere
por baixo de seu valor real” (MARINI, 2000, p. 160), gerando um desgaste maior da força de trabalho,
que a impediria de se reproduzi de modo adequado, tendo como resultado uma “redução progressiva
da vida útil do trabalhador, assim como nos transtornos psicofísicos provocados pelo excesso de
fadiga” (MARINI, 2000, p. 163).

Essa superexploração deriva de uma tendência presente no capitalista da periferia de buscar


a compensação pela redução de seus lucros nessa exploração extensiva, ao invés de buscá-la na
ampliação da produtividade do trabalho. E, uma vez que um determinado modo de produção se paute
na superexploração do trabalho, ele vê obstruída a possibilidade de passar para a etapa seguinte,
que é a da produção de mais valia relativa. Isso porque a superexploração engendra um modo de
circulação que lhe corresponde, ou seja, um modo de circulação que não só é fruto da superexplora-
ção como a reforça. Nos países dependentes, a superexploração do trabalho impede que a massa
proletária participe do mercado de bens de consumo de luxo, que corresponde ao que Marini chamou
de “alta” esfera da circulação. Com isso, o desenvolvimento tecnológico, que se concentra nesse
segmento da produção, não é capaz de influenciar o valor da força de trabalho nos países periféricos.

Em contraposição à lógica dependente, os centros imperialistas se concentram nas etapas


mais elevadas da industrialização, que correspondem à produção de elevada concentração tecnoló-
gica, permitindo que os mesmos se apropriem do monopólio dessas referidas tecnologias. Esses
países, então, exportam para os países dependentes bens de capital, que são adequados para a
produção dos países centrais. Daí que o desenvolvimento tecnológico tende a se concentrar na pro-
dução de bens suntuários.

Mas, nos países centrais, o efeito dessa concentração do desenvolvimento tecnológico gera
um efeito diferenciado. Como os países centrais encontram limites para expandir as exportações de
bens de luxo, sobretudo derivada da baixa distribuição de renda nos países dependentes – que cria
um mercado de dimensões insuficientes para sustentar a referida expansão – a expansão dessa in-
dústria resulta em uma conversão desses produtos em bens de consumo popular no interior dessa
referida economia (MARINI, 2000, p. 139). Assim, uma ampliação da produtividade do trabalho nessa
referida indústria reduz o valor da força de trabalho nos países centrais, reforçando um modo de pro-
dução baseado na mais valia relativa.

A grande questão que aflora nesse ponto é que, para que os países centrais se concentrem
em formas de produção que apresentem um grau de exploração mais amena, permitindo inclusive a
massificação de consumo de produtos de luxo, é necessária a existência, na outra ponta do mercado
mundial, de economias dependentes onde ocorre a superexploração do trabalho. Ou seja, a concen-

10
Em um ensaio precedente, ao qual este faz referência, o autor apresenta uma definição um pouco diferente sobre a supe-
rexploração. Resolvemos considerar essa definição, pois se trata da última releitura do autor sobre o tema.
25

tração das etapas “superiores” tanto da circulação quanto da produção nos países centrais faz com
que parte do excedente gerado pelas economias dependentes se transfira para aquelas e lá seja
distribuído entre as diversas classes (inclusive a classe trabalhadora).

Essa transferência de valor se dá, sobretudo, pelo fenômeno da “deterioração dos termos de
intercâmbio”, que resulta do que Marini denominou de “intercâmbio desigual”. Este consiste em um
distanciamento entre preços e valor, ou seja, em preços que expressem trocas entre não equivalen-
tes. O autor classificou os mecanismos que geram o intercâmbio desigual em dois grupos: um relativo
a relações dentro de uma mesma esfera de produção e outro relativo a esferas de produção distintas
(MARINI, 2000, p. 120).

Dentro de uma mesma esfera de circulação, ocorre uma diferenciação entre os preços de
produção praticados por diferentes países de modo que aquele que apresenta um nível de produtivi-
dade mais elevado é capaz de obter preços de produção mais reduzidos. Nem por isso esses países
vendem suas mercadorias por preços mais reduzidos, ao contrário, eles sustentam os preços de mer-
cado similares aos dos países dependentes, o que permite uma absorção de um lucro extraordinário
que se desloca destes para aqueles. Como indica Marini, esse mecanismo age de forma similar à
mais valia extra obtida por meio de uma ampliação da produtividade em um empreendimento dentro
de um país11.

Quando se trata de mecanismos atuantes em distintas esferas de circulação, o autor afirma


que a partir do momento que um determinado país obtém o monopólio da produção de determinado
ramo, ele se torna capaz de estabelecer preços superiores ao valor de suas mercadorias. Normal-
mente essas duas formas de intercâmbio desigual se combinam, de modo que uma parcela do valor
excedente gerado pelas economias dependentes se direcione para os países centrais, contrapondo à
tendência declinante da taxa de lucro nestes, mas ampliando sua queda naquelas.

A forma de os países periféricos responderem a essa queda em suas taxas de lucro é por
meio da ampliação da superexploração do trabalho. Assim, ao ampliarem a jornada ou a intensidade
do trabalho, os capitalistas dos países dependentes são capazes de produzir uma massa cada vez
maior de valor excedente (mesmo mantendo-se o valor individual de cada mercadoria constante).
Com isso, lançam no mercado mundial uma quantidade de mercadorias que vai além da demanda
social, o que reduz o preço de mercado das mesmas. Esse é o resultado prático observado da deteri-
oração dos termos de intercâmbio conforme a teoria de Marini.

Além da transferência de valor por meio do intercâmbio desigual, os países dependentes


também desempenham outras funções essenciais para a acumulação dos países centrais. Em primei-
ro lugar, os países dependentes são responsáveis pela produção de alimentos que são consumidos
pelos trabalhadores dos países centrais. Esses artigos, cujos preços são constantemente pressiona-
dos para baixo (conforme acima exposto), auxiliam na redução do valor da força de trabalho dos paí-
ses centrais, ampliando a massa de mais valia gerada e a taxa de exploração (e, portanto, a taxa de

11
“Isto se expressa, para a nação favorecida, em um lucro extraordinário, similar ao que constatamos ao examinar de que
maneira se apropriam os capitais individuais do fruto da produtividade do trabalho” (MARINI, 2000, p. 120).
26

lucro), permitindo ainda que esses países abandonem (ou reduzam) a forma de produção baseada na
superexploração do trabalho.

Em segundo lugar, os países dependentes também se especializam na produção de maté-


rias-primas para o ciclo industrial dos países imperialistas. Assim, como essas matérias-primas tam-
bém são alvos do intercâmbio desigual, a composição valor do capital dos países centrais se reduz –
já que reduz o custo com uma parte do capital constante, constituindo-se em outro modo da relação
de dependência colaborar como uma contra tendência do declínio da taxa de lucro.

Mas, qual é a origem da relação de dependência? Por que os países da América Latina se
encontrariam presos na espiral da dependência, enquanto os países centrais floresceriam com a pro-
dução de mais valia relativa? E mais importante: seria a dependência uma relação gerada pela lógica
do capital ou apenas uma forma que calhou de acontecer devido a fatores históricos conjunturais?

Em seus ensaios, Marini responde a essas questões apontando a formação econômica da


América Latina como a causa fundamental da dependência. A integração da América Latina ao mer-
cado mundial foi fruto da expansão da economia europeia, que estabeleceu no continente um conjun-
to de colônias ligadas diretamente às metrópoles na Europa e cujo modo de produção correspondiam
aos interesses e necessidades dos países centrais.

A produção de ouro, artigos exóticos e produtos alimentícios, em que se concentrava econo-


mia colonial, teria sido fundamental para impulsionar o processo industrialização europeu. Em primei-
ro lugar, o excesso de meios de pagamentos gerou um fortalecimento do capital bancário e comercial,
permitindo que esses países se concentrassem na produção industrial. Após a industrialização euro-
peia e da independência das colônias americanas, juntamente com o fim do trabalho escravo, as
jovens nações voltaram-se para a produção de matéria-prima, de modo a complementar a matriz
produtiva dos países europeus. Nesse momento iniciou-se o processo que resultou no intercâmbio
desigual, pois: a) os países latino-americanos não se especializavam em mercados de maior grau
tecnológico, monopólios dos países centrais; e b) mesmo quando os países centrais e periféricos
concorriam em um determinado setor, a elevada produtividade relativa dos países centrais legava a
eles um lucro extraordinário. Essa etapa correspondeu a uma fase intermediária da industrialização
dos países latino-americanos, a qual se completaria a partir do que outros autores denominariam de
choques exógenos – com as crises comerciais limitando a oferta de produtos industrializados anteri-
ormente importados. A indústria na América Latina surgiu, assim, para fazer frente a uma demanda
pré-existente que passava a não ser mais atendida pelas importações.

Como a superexploração, que é impulsionada pelo intercâmbio desigual, separava a circula-


ção nos países dependentes em uma esfera baixa, de consumo interno e bens de massa, e outra
alta, de consumo de bens suntuários provenientes de mercados estrangeiros, esse processo de inter-
nalização da produção de bens de luxo não foi capaz de integrar essas duas esferas de circulação,
mas apenas de separá-las ainda mais. Uma vez que a produção de bens manufaturados não influen-
ciava o valor da força de trabalho, a saída para a realização do consumo dessas mercadorias seria a
ampliação do consumo das camadas médias, cuja remuneração deriva da mais valia.
27

Além disso, a busca pelo aumento da produtividade dar-se-ia, nesses países, quase que ex-
clusivamente pela absorção de tecnologias estrangeiras. Mas,

[...] dado que não representam bens que intervenham no consumo dos tra-
balhadores, o aumento de produtividade induzido pela técnica nesses ra-
mos de produção não pôde traduzir-se em maiores lucros através da eleva-
ção da taxa de mais-valia, mas tão-somente mediante o aumento da massa
de valor realizado (MARINI, 2000, p. 148).

Os bens suntuários produzidos na América Latina não encontravam, então, um mercado in-
terno capazes de absorver sua produção. A saída para essas economias foi, de um lado, a atuação
do Estado e a geração de um processo inflacionário que pressionava os preços dos bens salários
(ampliando a superexploração da força de trabalho). De outro lado, iniciou-se o processo de subimpe-
rialismo, em que o capital dos países dependentes busca resolver esse problema de realização da
esfera “alta” de circulação expandindo-se para os mercados de outros países também dependentes.
O resultado é uma economia que funciona mediante a lógica dependente, anteriormente descrita:
pautado na superexploração do trabalho e sem perspectiva de superá-la enquanto se mantiver a lógi-
ca de produção capitalista.

Fica claro que, para Marini, as economias latino-americanas não estão em uma fase anterior
do desenvolvimento capitalista em comparação com as economias europeias. Ao contrário, a “Dialéti-
ca da dependência” mostra que a dependência dos países da América Latina é fruto de um desenvol-
vimento concomitante e ao mesmo tempo desigual ao observado na Europa. A grande divergência
com o processo histórico que resultou em um modo de produção baseado na ampliação da produtivi-
dade do trabalho (em contraposição à superexploração) é que, naqueles países, a industrialização se
deu pelo processo da acumulação primitiva. Assim, a criação do mercado de massa ocorreu concomi-
tante ao surgimento da grande indústria. Ou seja, a oferta e a demanda de bens manufaturados surgi-
ram ao mesmo tempo, diferente do que ocorreu na América Latina.

Além disso, diante da impossibilidade dos países centrais avançarem sobre os mercados de
bens suntuários dos países periféricos (tendo em vista a concentração de renda e reduzida dimensão
desse mercado), a solução para esse problema da circulação se deu pela assimilação da massa dos
trabalhadores nesse mercado. Essa transformação de bens suntuários em bens de consumo de mas-
sa só foi possível devido à ampliação do salário real dos trabalhadores do centro, resultado da oferta
de alimentos fornecida pela América Latina com preços abaixo do valor.

Esse é o caminho que percorre a dialética da dependência dos países latino-americanos, e


com isso Marini busca demonstrar que:

[a] produção capitalista, ao desenvolver a força produtiva do trabalho, não


suprime, mas acentua a maior exploração do trabalhador e [...] que as com-
binações de formas de exploração capitalista se levam a cabo de maneira
desigual no conjunto do sistema, engendrando formações sociais distintas
segundo o predomínio de uma forma determinada (MARINI, 2000, p. 160).

Em outras palavras, o sistema como um todo apresenta a tendência de ampliar a exploração


do trabalho, mas uma exploração que se concentra de forma mais intensa na periferia (na forma da
superexploração) e se apresenta mais amena nos países imperialistas do centro.
28

2.3 Cardosianos

A segunda vertente marxista da teoria da dependência é a que denominamos de cardosiana.


Tal nomenclatura serve para nos referirmos a todos aqueles autores que se alinham ou se aproximam
das perspectivas metodológicas elaboradas por Fernando Henrique Cardoso. Dentre os principais
autores da referida corrente, além é claro do próprio Cardoso, citamos Enzo Faletto e Francisco Wef-
fort, entre outros.

A referida perspectiva metodológica começou a se materializar na obra “Capitalismo e escra-


vidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul” (CARDOSO,
1962), pesquisa que se inseria dentro de um programa mais amplo, proposto por Florestan Fernan-
des para ampliar a compreensão da sociologia sobre o fenômeno do preconceito racial no Brasil. Em
tal obra, Cardoso apresenta uma primeira consolidação de sua compreensão sobre o método do ma-
terialismo dialético, fortemente influenciado tanto por seu orientador, Florestan Fernandes, como pelo
seminário de estudos marxistas, composto por professores e alunos da Universidade de São Paulo
que ocorreu no período que vai de 1958 a 1964. Além disso, em “Capitalismo e escravidão no Brasil
meridional” Cardoso já evidenciava o poder explicativo que o patrimonialismo teria em seus escritos
posteriores.

Em seguida, o autor se dedica aos estudos sobre a formação ideológica do empresariado


brasileiro, em “Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico” (CARDOSO, 1972), publicada
em 1963. Na referida obra, Cardoso evidencia o importante papel que os elementos ideológicos, ou
os “móveis do empresariado” (como poderia sugerir Florestan Fernandes), possuiriam dentro de seus
esquemas teóricos. Após uma pesquisa empírica junto à burguesia industrial brasileira, o autor con-
cluía que a burguesia nacional não aspirava à formação de qualquer aliança com o proletariado, nem
se afastava tanto da oligarquia rural como do capital estrangeiro. Essas conclusões iam em direção
contrária às teses do marxismo propaladas pelo Partido Comunista Brasileiro, de que a revolução
burguesa no país aconteceria a partir da aliança entre o proletariado e a burguesia nacional contra o
imperialismo e os grandes latifúndios rurais.

Já os escritos de Cardoso sobre a dependência tiveram origem como uma crítica à primeira
geração da escola cepalina, desenvolvidos enquanto integrava o Instituto Latino-Americano e do Ca-
ribe de Planificação Econômica e Social (ILPES), ligado à CEPAL. Sua principal obra, “Dependência
e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica” (CARDOSO; FALETTO,
1970), publicada em 1969, foi elaborada em coautoria com Enzo Faletto e tinha por objetivo apresen-
tar a relação entre as transformações internas das nações latino-americanas e as redefinições do
modo desses países em se relacionar com o exterior. Para tanto, os autores construíram um método
de análise que buscava integrar tanto elementos sociológicos quanto econômicos, e a categoria da
dependência aparecia aí como elemento necessário para dotar de sentido esses vínculos entre ex-
terno e interno, e econômico e político.

A obra de Cardoso e Faletto esbarrava nos limites inerentes a qualquer trabalho de caráter
ensaístico: a falta de dados para embasar empiricamente as teses levantadas. Cardoso escreve,
29

então, o livro “Política e desenvolvimento em sociedades dependentes: ideologias do empresariado


industrial argentino e brasileiro” (CARDOSO, 1978), em que busca embasar com dados os esquemas
teóricos previamente elaborados. Assim, Cardoso dedicou grande parte do seu tempo para a produ-
ção intelectual sobre o tema da dependência, relacionando-o também com o patrimonialismo e com o
autoritarismo presente nos mais significantes países da América Latina no período. Sua produção
intelectual se reduziu a partir de meados da década de 1980, quando cada vez mais Cardoso se em-
brenhava no cenário político brasileiro.

Após essa breve introdução, vejamos no que consiste a teoria da dependência elaborada pe-
la pena de Cardoso. Apresentaremos os principais elementos em duas seções. Na primeira, coloca-
remos em evidência o método utilizado por Cardoso, que se trata de uma leitura sobre a dialética
marxista. Por fim, apresentaremos o cerne de seu pensamento como aparece em suas principais
obras, sobretudo na que desenvolve em coautoria com Faletto, “Dependência e desenvolvimento na
América Latina”. Mas antes de adentrar na obra cardosiana, faz-se necessário, em virtude da ampla
gama de marxistas que classificam os trabalhos do autor como de matiz weberiana, discutir sobre o
adequado lugar que sua obra deve ocupar no “panteão” da dependência.

2.3.1 O weberianismo cardosiano: a classificação falaciosa

A partir da primeira década do século XXI, surgiu uma tendência entre aqueles que estudam
o pensamento latino-americano de classificar a obra de Cardoso e Faletto como uma vertente webe-
riana da teoria da dependência12. Acreditamos que essa interpretação tenha surgido como forma de
afastar a obra de Cardoso do campo de estudos da dependência, sobretudo após os mandatos presi-
denciais que exerceu no Brasil, período em que ganhou grande antipatia não só por parte da esquer-
da marxista como por amplos setores da academia, sobretudo na área da sociologia.

Não obstante, não é possível se observar elementos objetivos suficientes para endossar tal
categorização da teoria da dependência desenvolvida por Cardoso e Faletto. Nem, tampouco, é essa
a posição em que se colocam os próprios pesquisadores. Tanto Cardoso quanto Faletto são enfáticos
a afirmar que seus pensamentos são influenciados muito mais pela obra de Karl Marx do que de Max
Weber. Comecemos analisando o método sociológico proposto por Weber e sua não correspondência
com o praticado por Cardoso.

Do ponto de vista metodológico, os elementos essenciais da sociologia compreensiva webe-


riana podem ser apontados como a ação social, evidenciando o individualismo metodológico, e o tipo
ideal como instrumento de análise. A ação social, o objeto central de estudo da sociologia segundo
Weber, refere-se a uma ação tomada por um agente ou conjunto de agentes, tendo em vista o com-
portamento dos outros. Nesse sentido, o adjetivo social diz respeito exatamente ao fato de que só
pode ser compreendida se analisada dentro do contexto social em que foi expressa.

12
Cf., por exemplo, RIBEIRO; SALOMÃO, 2010.
30

A ação social exprime o foco nos elementos subjetivos que animam o comportamento do
agente, que podem ser de origem racional (tanto com relação aos objetivos do agente ou a um con-
junto de valores pelos quais se pauta), afetiva ou tradicional. Portanto, é a compreensão do motivo
por trás da ação social a forma de se desmistificar a conduta do agente social. A relação do individua-
lismo metodológico com o conceito de ação social consiste exatamente no fato de que não há que se
“presumir a existência já dada de estruturas sociais dotadas de um sentido intrínseco; vale dizer, em
termos sociológicos de um sentido independente daqueles que os indivíduos imprimem às suas
ações” (COHN, 2002, p. 26).

Podemos perceber que a análise cardosiana não partilha dessa perspectiva metodológica.
Pode haver alguma confusão nesse sentido tendo em vista que, como Cardoso e Faletto explicitam,
uma das perspectivas de sua análise consiste exatamente em “compreender, nas situações estrutu-
rais dadas, os objetivos e interêsses que dão sentido, orientam ou anima o conflito entre os grupos e
classes e os movimentos sociais que ‘põem em marcha’ as sociedades em desenvolvimento”
(CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 21). Mas, em primeiro lugar, para Cardoso e Faletto, esses interes-
ses não abarcam os elementos afetivos e tradicionais presentes na sociologia compreensiva. Os au-
tores definem os móveis dos movimentos sociais como “objetivos, valores e ideologias”, de modo que
consideram apenas a perspectiva racional da questão. Em segundo lugar, e o ponto mais fundamen-
tal desse aspecto, o método cardosiano não é, de forma alguma, individualista. Para os autores, há
uma estrutura econômica e social que antecede e vincula a ação dos grupos e classes sociais. Para
compreender as estruturas de dominação 13 que daí se erguem é necessário partir das estruturas
(macroestruturas) econômico-sociais que as antecedem. Como deixa claro Cardoso:

De qualquer forma, um dos aspectos implícitos na idéia de história, neste


contexto, salienta que em sentido delimitado existe uma “invenção do mun-
do”. Mas, ao mesmo tempo, nem todas as “opções” são socialmente viáveis.
Convém insistir, apesar da obviedade da asserção, que a rigor esta “opção”
não tem a ver diretamente com os “valores” e com as “escolhas” individuais,
nem pode ser concebida no plano de uma “dialética da consciência”. Ela, se
bem se expresse por intermédio de objetivos e ideologias que se exteriori-
zam individual ou grupalmente, tem suas leis de movimento assentadas nas
contradições postas pela articulação dos componentes do modo de produ-
ção (CARDOSO, 1993, p. 96).

Portanto, não há nada de individualismo metodológico, nem constitui a motivação dos agen-
tes o elemento central para a significação das ações sociais que animam as transformações da soci-
edade. Transformações, inclusive, que para Cardoso derivam exclusivamente da luta de classes.
Devemos lembrar que Weber reconhece a existência da luta de classes, mas nega o caráter irrecon-
ciliável das mesmas. No âmbito do marxismo, esse conflito é insuperável dentro do capitalismo, visto
que é a manifestação da relação de exploração típica da acumulação de capital. Para Weber, essa
oposição entre capital e trabalho não é nem um elemento necessário, nem único, para explicar os
processos de transformação social. Desse modo, na perspectiva weberiana, o marxismo teria ignora-
do importantes elementos relacionados com outras formas de poder (que, para Weber, não é uma
variável dependente da questão econômica).
13
Conceito que também não se articula com o homônimo weberiano, como gostaria Ribeiro e Salomão (RIBEIRO; SALOMÃO,
2010, p. 15).
31

A própria definição de classes sociais da análise marxista foi fortemente criticada por Weber.
A crítica vai no sentido de Marx ter ignorado, com esse modo de segmentar os interesses da socie-
dade, outras possíveis formas de hierarquização social derivada de situações não econômicas, como
os grupos de status, formados pelas condições de riqueza, prestígio e honra. Além disso, há a rela-
ção de poder derivada da situação estamental. Em ambas as situações, grupos formados por ques-
tões não econômicas podem interferir inclusive nas condições de mercado.

A análise de Cardoso é pautada em última instância nas classificações sociais derivadas da


estrutura econômica. Até mesmo o tratamento que o autor dá aos elementos estamentais serve para
subjugá-los às classes econômicas – como os conceitos de “burguesia de estado” e “anéis burocráti-
cos” os quais, apesar de significarem o reconhecimento de um grupamento derivado de uma situação
estamental, mostra a subordinação do estamento aos interesses das classes econômicas. Portanto, a
hierarquização social cardosiana se mostra derivada da análise marxista, e não weberiana.

Quanto ao “tipo ideal” enquanto instrumento de análise, até mesmo uma leitura superficial da
obra de Cardoso e Faletto pode evidenciar que este não é utilizado pelos autores. O “tipo ideal” we-
beriano trata-se de um objeto categoricamente construído, um tipo puro que se manifesta na realida-
de apenas por aproximação. Ou seja, é uma categoria de análise que se circunscreve ao âmbito teó-
rico. Já as tipologias presentes em “Dependência e desenvolvimento na América Latina” referem-se,
sempre, a uma realidade concreta, de modo que para cada realidade concreta distinta, os autores
tratam de estabelecer uma tipologia que dê conta de seus aspectos específicos. Portanto, as tipologi-
as, enquanto categorias teóricas, são necessariamente temporárias, pois para se completarem preci-
sam ser historicisadas. Ou seja, o referencial último da tipologia é o processo tal como se manifesta
no concreto.

Podemos concluir, então, que a análise cardosiana não apresenta similitudes suficientes com
o método da sociologia compreensiva para que possa ser caracterizado como weberiana. Já com
relação ao marxismo, pelo contrário, é forte a referência aos métodos e escritos deste autor (como
veremos mais adiante). Sendo assim, negar a caracterização marxista dos escritos cardosianos con-
siste em negar a própria legitimidade do pensamento do autor e não passa, a nosso ver, apenas de
uma tentativa de excluí-los do campo de debate a que pertencem.

2.3.2 Método da análise integrada do desenvolvimento

Como pudemos ver, a análise de Cardoso constitui-se em uma análise não só marxista, mas
fundamentalmente marxista, conforme a caracteriza o próprio autor. “Não tem sentido inventar proce-
dimentos teórico-metodológicos supostamente novos para caracterizar a corrente de pensamento a
que me estou referindo. Implícita ou explicitamente a fonte metodológica é a dialética marxista”
(CARDOSO, 1993, p. 91), afirma Cardoso ao tratar de seus estudos sobre a dependência. Vejamos,
então, qual é o sentido dado por Cardoso à dialética marxista e como, a partir dela, constrói seu “mé-
todo integrado” para “análise de situações concretas”.
32

Para compreender a interpretação cardosiana da dialética hegeliano-marxista faz-se mister


iniciarmos pelo entendimento do conceito de totalidade. Cardoso toma muito cuidado ao diferenciar a
categoria da totalidade de um empirismo puro e simples:

O conceito de totalidade não se refere, ou pelo menos não se resume, na


dialética, à reprodução de tôdas as condições, fatôres, mecanismos e efei-
tos sociais que interferem na produção de um fenômeno, processo ou situa-
ção social. Na explicação dialética o conceito de totalidade é utilizado como
um recurso interpretativo pelo qual se visa compreender, como Marx escre-
veu explìcitamente no posfácio da Contribuição à Crítica da Economia Polí-
tica, não a identidade, o padrão de invariância, mas as diferenças em uma
unidade, tal como são engendradas numa totalidade determinada
(CARDOSO, 1962, p. 11).

A seguir, recorre à famosa passagem de Marx: “o concreto é concreto porque é a síntese de


muitas determinações, isto é, unidade do diverso”. A totalidade concreta é a reprodução do concreto
no próprio pensamento, um esquema interpretativo que pressupõe um conjunto de relações que se
estabelecem entre essas diversas determinações que a compõem.

[...] A totalidade assim entendida pressupõe, não apenas a existência de di-


ferenças numa unidade, mas também a existência de “conexões orgânicas”
que explicam, ao mesmo tempo, o modo de inter-relacionamento existente
entre as determinações que constituem as totalidades e o próprio processo
de constituição das totalidades (CARDOSO, 1962, p. 11).

A dialética de Cardoso busca, na análise da totalidade, a identificação dos “determinantes es-


senciais”, ou seja, aqueles capazes de dar sentido tanto à realidade concreta como aos processos
histórico-estruturais que lhe deram origem. O processo de formação dessa totalidade, desse esque-
ma interpretativo, parte do próprio concreto, mas só faz sentido a partir do momento em que as cate-
gorias abstratas organizam e hierarquizam as relações presentes no concreto, reproduzindo-o como
concreto pensado.

Eis o motivo pelo qual, no método de Cardoso, o foco dos estudos da dependência devem se
dar no plano da análise da situação concreta de dependência, pois a análise deve partir de uma situ-
ação concreta e resultar em uma análise concreta:

Se é certo que as análises sobre a dependência devem partir de processos


sociais reais, este ponto de partida reaparecerá no pensamento como resul-
tado, como síntese. Metodologicamente, trata-se de um esforço de elevação
do particular para o geral no qual as relações parciais (particulares) vão
sendo circunscritas em teias de relações e vão se especificando e determi-
nando de tal modo que a síntese resultante (o todo, a totalidade) apareça,
não como um amálgama confuso, indeterminado, “geral”, mas como um
conjunto hierarquizado e articulado de relações. Este conjunto articulado de
relações só se alcança por intermédio da produção de conceitos que po-
nham a nu o modo de relação entre as partes que compõem o todo e as leis
de seu movimento (CARDOSO, 1993, p. 91).

O caminho do pensamento que se eleva do concreto ao abstrato consiste, nessa interpreta-


ção, na produção desses conceitos que servirão para desenredar a dinâmica da totalidade concreta.
Mas a análise só se completa quando se volta o olhar para o todo, no sentido da sua formação histó-
rico-estrutural, a partir das categorias elaboradas.
33

E qual seria esse conceito de análise que nos permitiria compreender (hierarquizar) as rela-
ções presentes nas situações concretas dos países latino-americanos? Seria a “dependência” essa
categoria totalizante? Cardoso é enfático ao afirmar que não. “Está claro que seria ingênuo pretender
transformar a noção de dependência num conceito totalizante” (CARDOSO, 1973, p. 127), afinal,
essa categoria não poderia fazer mais do que: a) revalorizar “as análises do processo histórico de
constituição da periferia” como forma de “explicar a dinâmica da relação entre as classes sociais no
nível interno das nações”; e b) realçar o papel dos “condicionantes externos”, que “reaparecem inscri-
tos estruturalmente tanto na articulação da economia, das classes e do Estado com as economias
centrais e com as potências dominantes, como na articulação dessas mesmas classes e no tipo de
organização econômica e política que prevalece no interior de cada situação de dependência”
(CARDOSO, 1973, p. 125). E continua: “Até por entendimento semântico, quem depende, depende
de algo; está condicionado, não é condicionante. Pretender elevar a noção de dependência à catego-
ria de conceito totalizante é um non sens” (CARDOSO, 1973, p. 128).

Nesse sentido, a dependência não é a categoria totalizante visto que não é nem o elemento
que dá a identidade (a invariância) entre essas realidades concretas nem o elemento que as diferen-
cia. Mas é capaz de dar sentido às relações que vinculam os elementos econômicos e políticos, com
seus fatores internos e externos, que condicionam os movimentos históricos e as situações concre-
tas.

E quais seria, então, esse elemento, essa categoria totalizante que rege o movimento das so-
ciedades dependentes? A análise de classes, mas realizada de tal modo a evidenciar as especifici-
dades das situações concretas de dependência (por isso da relevância de tal conceito) e articulada
com os elementos econômicos no que Cardoso chamou de “análise integrada”. O método da “análise
integrada” foi apresentado por Cardoso e Faletto (1970) que, na tentativa de superar o determinismo
economicista que atribuíam ao marxismo vulgar, resgatam a importância da análise sociológica para
a compreensão das transformações sociais.

Como bem sintetiza Almeida (2009, P. 98), “a idéia subjacente à abordagem sociológica con-
siste no seguinte: na medida em que as diferentes classes e grupos sociais conseguem impor sua
ordem e sua dominação ao conjunto da sociedade, as estruturas políticas e sociais vão se modifican-
do”. Já as análises econômicas, na visão de Cardoso e Faletto, se baseiam apenas nos condicionan-
tes estruturais, relacionados estritamente com o modo de produção de determinada sociedade. Por-
tanto, apontam que é necessário ir além e incorporar a esses condicionantes estruturais tanto os fato-
res sociais que o compõem (a divisão de grupos e classes que derivam de sua posição no processo
produtivo), como os fatores que põem em marcha as sociedades – “o conflito entre os grupos e clas-
ses e os movimentos sociais”. Apenas assim será possível construir um método que “ao realçar as
mencionadas condições concretas – que são de caráter estrutural – e ao destacar os móveis dos
movimentos sociais – objetivos, valôres e ideologias – analise aquelas e êstes em suas determina-
ções recíprocas” (CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 21). A partir dessas considerações, pode-se pon-
derar que os autores tem a pretensão, portanto, de realizarem uma análise integrada por evidenciar,
também, essas determinações recíprocas entre estruturas econômicas e sociais e os processos histó-
34

ricos, animados pelos conflitos de classe, nada muito diferente da célebre frase de Marx que Cardoso
e Faletto tentam resgatar em sua análise integrada: “A história de toda sociedade até nossos dias é a
história da luta de classes”.

A análise integrada evidencia a forma adequada dessas determinações recíprocas: enquanto


das estruturas econômicas depreende uma determinada estrutura social, dividida em classes e gru-
pos (estrato de classes ou grupo de classes), o conflito entre essas classes e grupos, animados pelos
móveis dos movimentos sociais, implicará novas transformações nos elementos estruturais (e, portan-
to, modificações da estrutura social e de dominação). Assim, “[...] o problema teórico fundamental é
constituído pela determinação dos modos que adotam as estruturas de dominação, porque é por seu
intermédio que se compreende a dinâmica das relações de classe” (CARDOSO; FALETTO, 1970, p.
22).

[...] É através do processo político que uma classe ou grupo econômico ten-
ta estabelecer um sistema de relações sociais que lhe permita impor ao con-
junto da sociedade um modo de produção próprio, ou pelo menos tenta es-
tabelecer alianças ou subordinar os demais grupos ou classes com o fim de
desenvolver uma forma econômica compatível com seus interêsses e obje-
tivos. Os modos de relação econômica, por sua vez, delimitam os marcos
em que se dá a ação política (CARDOSO; FALETTO, p. 23).

Nesse sentido, o método de análise integrado propõe-se a detectar e dar sentido aos eventos
dinâmicos da sociedade, relacionados com a luta de classes, indo além da análise econômica que
foca apenas nos “estéreis” condicionantes estruturais. A característica particular do pensamento car-
dosiano consiste exatamente nesse ponto: a despeito de possuir relevância para a determinação do
plano em que se dá o conflito político, os elementos econômicos não são dotados de movimento pró-
prio, sendo toda a dinâmica do sistema derivada da luta de classes (categoria totalizante).

Diante da metodologia estabelecida, a análise integrada deve abordar os seguintes elemen-


tos:

[...] os condicionantes econômicos do mercado mundial, inclusive o equilí-


brio internacional do poder; a estrutura do sistema produtivo nacional e seu
tipo de vinculação com o mercado externo; a configuração histórico-
estrutural de tais sociedades, com suas formas de distribuição e manuten-
ção do poder, e sobretudo os movimentos político-sociais que pressionam
para a mudança com suas respectivas orientações e objetivos (CARDOSO;
FALETTO, 1970, p. 23-24, grifo nosso).

Procedendo de tal modo, os autores pretendem evidenciar a estrutura econômica e política


que atua como base do conflito entre grupos e classes e que provocam os processos de transforma-
ção econômica. Vejamos agora como, a partir do método estabelecido, que Cardoso e Faletto com-
preendem o fenômeno da dependência na América Latina.

2.3.3 Dependência e desenvolvimento

Na teoria cardosiana, a dependência não representa um conceito totalizante, isto é, não re-
presenta a forma como o capital se manifesta na periferia, mas apenas a forma como ele se vincula
35

com o capital dos países centrais em uma situação histórica específica. Nesse sentido, a dependên-
cia, enquanto categoria abstrata, representa um esquema interpretativo, um conjunto de relações que
manifesta seu sentido nas situações empíricas em função do modo de conexão entre os componen-
tes estruturais (econômico e sociais) e políticos, em suas dimensões internas e externas. Nas pala-
vras de Cardoso e Faletto (1970, p. 27): “[...] a noção de dependência alude diretamente às condi-
ções de existência e funcionamento do sistema econômico e do sistema político, mostrando a vincu-
lação entre ambos, tanto no que se refere ao plano interno dos países como ao externo” .

Mas, no que consiste de fato a situação de dependência? Trata-se da subordinação das deci-
sões que afetam a produção e o consumo de uma economia aos interesses e dinâmica do capital dos
países centrais. Essa situação de subordinação derivava, por sua vez, de uma relação entre as clas-
ses e grupos internos que permitem a reprodução de uma estrutura econômica e social que se vincu-
la ao exterior. Ou seja, são os elementos dinâmicos da luta de classes internas às nações dependen-
tes, expressas nas alianças políticas entre classes e segmentos de classes, que vão determinar a
relação de dependência.

A dimensão estrutural da dependência, ou dependência estrutural, consistia no modo em que


as formas de exploração das economias dependentes se vinculavam “ao modo internacional de pro-
dução industrial-capitalista, adotando suas técnicas produtivas e mantendo relações financeiras com
ele” (CARDOSO, 1978, p. 178). Já em sua dimensão política, consistia no modo como os interesses
dos grupos nacionais se vinculariam com os interesses dos grupos estrangeiros.

Essa situação de dependência, por sua vez, pode ocorrer em conjunto com uma série de
condições distintas de desenvolvimento. Isso significa dizer que a dependência influencia – mas não
condiciona – a situação de desenvolvimento em um determinado país. Antes de prosseguir na análise
do pensamento cardosiano devemos, portanto, compreender qual a concepção dos autores sobre o
desenvolvimento e subdesenvolvimento.

De modo coerente com o discurso econômico da época, desenvolvimento se aproximava a


um sinônimo de industrialização, mas abarcava pouco mais do que isso. Uma nação para ser consi-
derada desenvolvida precisava, além de contar com uma estrutura industrial diversificada, ter seu
foco econômico no mercado interno. Como destaca Almeida (2009, p. 80-81), para Cardoso:

[...] o conceito de desenvolvimento está relacionado com a idéia marxista de


capitalismo progressista e, à semelhança do que ocorre nos países capita-
listas mais industrializados, teria de ser concentrador, espoliativo, desigual,
excludente e explorador. A rigor, essa definição de desenvolvimento está
associada à idéia de modernização e crescimento, a qual não supõe redis-
tribuição igualitária de renda, [...] mas consiste fundamentalmente em acu-
mulação de capital, a qual ocorre mediante relações de espoliação, explora-
ção e geração de desigualdades.

É importante notar que a situação da distribuição de renda ou a qualidade de vida da massa


da população não se apresentavam como elementos distintivos da situação de desenvolvimento, de
modo que um país poderia ser considerado desenvolvido (i.e. industrializado) e mesmo assim apre-
sentar péssimos indicadores sociais.
36

Em contraposição, havia a situação de pouco desenvolvimento e sem desenvolvimento. Esta


última era compreendida por aquelas economias que não mantinham relações de mercado com os
países industrializados. Já a situação de pouco desenvolvimento, ou subdesenvolvimento, consistia
em uma economia com certo grau de industrialização, mas sempre pouco diferenciada, concentrada
em produtos para a exportação.

Nesse sentido, para Cardoso e Faletto a situação de dependência poderia combinar-se com o
subdesenvolvimento ou até mesmo com o desenvolvimento, apresentando algumas características
distintivas. As situações de dependência e subdesenvolvimento, por exemplo, são divididas em dois
grupos distintos: as economias de enclave e as economias cujo controle do sistema produtivo se en-
contra sob o domínio de grupos nacionais.

As economias de enclaves consistem naquelas em que os núcleos de atividades primárias


eram controlados diretamente pelo exterior. Nesses casos, a própria expansão econômica da econo-
mia dependente era vinculada ao dinamismo econômico dos países centrais. A partir do momento em
que o sistema produtor local já não pode crescer independentemente da incorporação de técnicas e
capitais externos, ou de sua subordinação a sistemas internacionais de comercialização, o dinamismo
dos produtores locais começa a perder significação no desenvolvimento da economia nacional. A
relação de dependência aparece como um fenômeno político, no sentido de que os grupos nacionais
se veem impedidos de sustentar um sistema autônomo de autoridade.

Já na situação de dependência e subdesenvolvimento em que os grupos nacionais controla-


vam o sistema produtivo, a vinculação ao mercado mundial ocorre via o controle do comércio interna-
cional e investimentos internos em infraestrutura que se originam a partir do exterior. Essa situação
permitiu o fortalecimento de grupos produtores nacionais e a constituição de um Estado Nacional com
relativa força, ao mesmo tempo em que o baixo grau de diversificação da indústria já era suficiente
para fazer surgir novos grupos de interesses internos (urbano-industriais, comerciais e financeiros)
que se encontravam fora da estrutura de dominação anterior.

A despeito de essas nações possuírem o controle do processo produtivo, evidenciando que


as decisões de investimento passavam por deliberações internas, estas só podem ser compreendidas
se levarem-se em conta as decisões tomadas no mercado mundial, cujo controle do comércio perma-
necia na mão dos países centrais. Mas havia, de modo significativo, uma formação interna de capital
no setor exportador, mesmo que incapaz de dar autonomia para a dinâmica do desenvolvimento. Os
países permaneciam dependentes do fluxo de capitais que fluíam do exterior na forma de investimen-
tos em infraestrutura e na importação de bens de capitais.

Essas duas situações de dependência e subdesenvolvimento foram formadas após a ruptura


do pacto colonial e a partir da integração das novas nações ao mercado mundial. A capacidade de
um país assumir uma ou outra dessas configurações dependia, conforme apontam Cardoso e Faletto,
de condições relacionadas com o grau de diferenciação e expansão alcançadas anteriormente e,
derivado daí, da capacidade dos grupos que controlavam a produção local em estabelecer alianças
políticas com as oligarquias locais não vinculadas ao sistema exportador e em subordinar sua produ-
ção aos interesses dos grupos estrangeiros.
37

Mas o decorrer do século XX observou a transformação dessa situação de subdesenvolvi-


mento que permitiu o surgimento do desenvolvimento dependente. O êxito de algumas nações em
alcançar um grau de diferenciação industrial capaz de caracterizar o desenvolvimento dependente foi
determinado, mais uma vez, pela dinâmica da luta de classes durante a fase de transição, ou seja,
durante a fase de formação do mercado interno.

Não cabe aqui entrarmos em detalhes sobre quais foram os caminhos que permitiram um
“melhor ou pior” desenvolvimento na fase de transição e de consolidação do mercado interno. Não é
nosso objetivo analisar as situações concretas de dependência, como Cardoso preferiria, mas com-
preender exatamente o que há de igual nas diversas relações de dependência, ou seja, as caracterís-
ticas distintivas desse fenômeno. Não pretendemos com isso dissolver as “diferenças entre as várias
‘partes’ que compõem uma situação de dependência”, mas apenas compreender qual é o elemento
característico dessa condição, ou seja, o que permite os autores utilizarem esse conceito específico
para tratar de casos tão distintos e, ao mesmo tempo, recusarem fazer uso de outras categorias (co-
mo a do imperialismo).

Com esse intuito, buscaremos observar, portanto, como que, com maior ou menor êxito, al-
gumas nações que antes eram dependentes e subdesenvolvidas, por um reflexo da dinâmica das
economias centrais – que devido suas crises e transformações no início do século XX colocaram em
crise o próprio modelo de crescimento “para fora” das economias dependentes – foram capazes de
alçar para uma nova situação: o desenvolvimento dependente.

Apenas para resumir esses caminhos apresentados pelos autores em sua obra seminal, fo-
ram as alianças entre grupos formadas a partir das novas classes – que surgiam com a diferenciação
econômica – os elementos dinâmicos que iriam impulsionar o Estado e/ou o capital nacional na dire-
ção de uma nova etapa de diferenciação. Mas uma nova diferenciação do sistema produtivo formava,
por sua vez, um novo conjunto de grupos sociais que permanecia de fora das alianças de poder – a
grande massa urbana.

Foram, então, as tentativas de abarcar as grandes massas da população que levaram ao fim
da trajetória de desenvolvimento impulsionado por grupos nacionais. As alianças se rompiam, e o
único modo de dar continuidade à acumulação era estabelecendo novas alianças, normalmente auto-
ritárias, entre os grupos nacionais e o grande capital internacional. Foi esse processo, chamado de
internacionalização do mercado interno, que permitiu impulsionar ainda mais o desenvolvimento de-
pendente.

Vejamos, pois, no que consiste a nova situação de dependência conforme os autores. Nela, a
relação de dependência permanecia, mas agora se dava “pelo estabelecimento de laços entre o cen-
tro e a periferia que não se limitam apenas, como antes, ao sistema de importações-exportações;
agora as ligações se dão também através de investimentos industriais diretos feitos pelas economias
centrais nos novos mercados nacionais” (CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 125). Ou seja, as relações
de vinculação entre a economia nacional e os centros dinâmicos das economias centrais ocorriam
dentro do próprio mercado interno dos países dependentes.
38

Os fluxos de capitais e o controle das decisões econômicas continuavam passando pelo exte-
rior. A despeito das decisões de investimento levarem em consideração as condições do mercado
interno, isso ocorria apenas parcialmente, de modo que os lucros gerados no sistema nacional pode-
riam ser direcionados para reinvestimento, por parte da matriz estrangeira, nas próprias economias
centrais ou em economias periféricas distintas daquelas que os geraram (CARDOSO; FALETTO,
1970, p. 126).

Mas, de modo geral, essa nova situação de dependência representava uma saída de exce-
dente relativamente reduzida, tendo em vista a necessidade de realizar reinvestimentos, sobretudo no
setor de bens de capital. Além disso, garantia um elevado grau de diversificação da economia, a for-
mação de uma mão-de-obra mais especializada e desenvolvida – o que se materializava em uma
distribuição de renda mais equilibrada no setor urbano – e, por fim, a formação de um mercado inter-
no capaz de absorver essa produção (CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 127).

Por esses motivos, os autores afirmavam que o sistema capitalista que se firmava nos países
latino-americanos que lograram alcançar tal forma de industrialização poderia ser considerado como
um desenvolvimento (visto que diversificado) que era ao mesmo tempo autônomo – já que contava
com a produção para o mercado interno como setor dinâmico – e dependente. Dependência essa que
se firmava duplamente: como dependência da “capacidade de importação” de bens de capital e de
matérias-primas para atender ao novo grau de diversificação do sistema produtivo – o que levava a
uma vinculação dependente ao sistema financeiro internacional – e como internacionalização das
condições do mercado interno – que induzia uma perda da capacidade do mercado interno em inten-
sificar o processo de industrialização tanto do ponto de vista econômica (dependência dos fluxos de
capital) quanto política (externalização dos centros de decisões).

Mas, considerando essas três formas básicas nas quais a dependência se manifesta nos paí-
ses latino-americanos, qual é o motivo que torna a dependência a forma de vinculação necessária
com o mercado externo nesses países? Em outras palavras, qual é a origem e quais são as possibili-
dades de superação desse fenômeno por parte dos países periféricos? As respostas para essas per-
guntas se encontram apenas implícitas no pensamento cardosiano e para respondê-la precisamos
observar as entrelinhas de seus textos.

Em primeiro lugar, qual a origem do fenômeno da dependência? A resposta mais clara que
pode ser obtida é que a relação de dependência e a forma como ela se manifesta vai ser definida
pela relação entre as classes e grupos no plano nacional. Esse seria o elemento dinâmico a ser con-
siderado. Mas, junto a ele, atuam outros elementos de forma subordinada. Melhor, enquanto os ele-
mentos estruturais agem para determinar o conjunto de possibilidades de desenvolvimento histórico
de uma nação, é a luta de classes permitirá compreender qual possibilidade dentro deste conjunto
será efetivada14.

14
Por isso que, para os autores, o único modo de compreender a forma concreta da dependência é por meio da análise da luta
de classes (compreendida simplificadamente como a estrutura de dominação, ou o conjunto de alianças políticas que permite a
um grupo a manutenção das relações de poder e o controle do Estado).
39

Mas quais seriam esses elementos que agem de forma subordinada? Esses seriam os ele-
mentos ligados à estrutura tanto econômica quanto social de uma determinada sociedade. Por estru-
tura econômica compreende-se o grau de diferenciação de uma determinada economia, ou seja, a
estrutura produtiva instalada na sociedade nacional. A estrutura social é aquela que se depreende da
econômica, ou seja, o conjunto de classes e grupos que se formam diante de uma determinada estru-
tura produtiva.

A determinação desses elementos seria alvo, no entanto, do “efeito demonstração”, que con-
sistiria em uma tendência a “tornar semelhantes as pautas sociais e as orientações valorativas nas
sociedades desenvolvidas e nas sociedades subdesenvolvidas” (CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 20).
No plano econômico, o efeito demonstração seria responsável por uma modificação na pauta de con-
sumo dos países subdesenvolvidos, que levaria a um “desvio em relação às ‘etapas’ da industrializa-
ção características dos países adiantados”. Os autores complementam:

[...] Como os investimentos, quando se pensa em um desenvolvimento au-


tônomo, dependem em grande medida da poupança interna, a mesma
pressão modernizadora do consumo pode constituir-se em um freio ao de-
senvolvimento, enquanto favorece as importações de bens de consumo,
como também as de bens de capital relacionados à produção daqueles, e
induz a que se faça investimentos em setores que não são básicos para a
economia (CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 20).

Combina-se, portanto, ao efeito demonstração, o fato de que o processo de desenvolvimento


(ou diversificação da estrutura produtiva) só pode ser realizado, mesmo após a formação de um mer-
cado interno, se a nação contar com um conjunto de pré-condições que normalmente não se verifica-
va nos países periféricos: excesso considerável de capital, “uma numerosa soma de conhecimentos
tecnológicos e graus avançados de organização empresarial, os quais implicam desenvolvimento
científico, complexidade crescente e diferenciação da estrutura social, acumulação e investimentos
prévios” (CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 128). É a combinação de uma escassez relativa desses
elementos nos países periféricos com uma abundância relativa nos países centrais que geram a rela-
ção de dependência. Em outras palavras, foi o fato de as nações centrais terem sido as impulsionado-
ras do processo de industrialização da periferia que gera o fenômeno da dependência.

Haveria, então, alguma possibilidade de um país periférico superar essa relação de depen-
dência? Os autores indicam que sim, mas só no caso em que essas nações optaram por refazer o
sistema produtivo, ou seja, recriar as condições técnicas necessárias para o processo de industriali-
zação.

O que se deve ressaltar é que as condições políticas, sob as quais se logrou


simultâneamente desenvolvimento e autonomia, implicaram – é certo que
de distintas formas – um desenvolvimento baseado principalmente na mobi-
lização de recursos sociais, econômicos e de criatividade tecnológica e or-
ganizatória encontrados no interior da nação. Tal processo supôs, por outro
lado, um período de relativo isolamento econômico (caso da URSS e Chi-
na), pelo fechamento parcial do mercado, que dificultou as pressões para a
ampliação do consumo de bens e serviços, características das sociedades
industriais de massas. E impôs, geralmente, a ampliação do contrôle estatal
do sistema produtivo e a orientação dos novos investimentos para os seto-
res considerados estratégicos ao desenvolvimento nacional, tais como os de
40

infra-estrutura ou os que absorvem conhecimentos tecnológicos avançados


e mesmo os vinculados à defesa nacional. Tudo isso implica uma reordena-
ção consistente do sistema social, uma disciplina relativamente autoritária
(mesmo nos casos como o Japão, onde se manteve o regime capitalista) e
uma revolução nos objetivos nacionais, inclusive, e não de forma desprezí-
vel, nas prioridades educacionais (CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 128).

Pode-se observar, então, que havia uma possibilidade estrutural para a superação da depen-
dência por parte dos países latino-americanos. Isso passava por uma ruptura, mesmo que temporá-
ria, das relações com o exterior e exigia tal situação política que não foi alcançada por nenhum país
da América Latina – talvez com Cuba sendo a única exceção.

Para os autores, a superação da dependência era, portanto, um caminho possível, mas não
provável diante das relações de classes existentes nos países da América Latina. E mais, era por
meio da ampliação da relação de dependência que se mostrava o caminho mais rápido para o de-
senvolvimento, que poderia incluir, até mesmo, certo grau de distribuição de renda e melhoria da
qualidade de vida das massas.

Diante de tudo que foi exposto, podemos resumir a tese cardosiana sobre o desenvolvimento
dos países da América Latina da seguinte forma: o desenvolvimento do capitalismo periférico se deu
no bojo das transformações do capital dos países centrais, mas foi fortemente condicionado pela
dinâmica interna de cada nação – sendo que a dependência é a categoria que deve ser utilizada para
dar sentido à luta de classes que anima as relações econômicas e políticas estabelecidas entre os
países.
41

3. ENTRE O ECONOMICISMO E O SOCIOLOGISMO: BUSCA DE UM


MÉTODO PARA OS ESTUDOS DA DEPENDÊNCIA

No presente capítulo pretendemos avaliar, do ponto de vista das concepções teóricas, o al-
cance das vertentes marxistas da teoria da dependência. Com isso, pretendemos fomentar o debate
para a construção de uma perspectiva metodológica para a análise da dependência compatível com
as atuais interpretações sobre o marxismo.

Não se trata, é bom deixar claro, de uma rejeição das teorias previamente elaboradas. Ao
contrário, reconhecendo que foram teorias elaboradas para atender necessidades históricas que se
punham diante dos autores, necessidades essas que divergem das condições históricas atuais, te-
mos em mente resgatar as contribuições que nos permitirão um processo de superação de tais ideias.
Uma superação no sentido dialético do termo, ou seja, que ao mesmo tempo nega, preserva e eleva
essas referidas teorias a um patamar superior.

Então, após procedermos à análise criticado método das duas correntes, restará a tarefa de
resgatar as contribuições de ambas para a formação de uma proposta para uma nova abordagem
metodológica para a teoria da dependência.

3.1 Impasses do neomarxismo

Tendo em vista que nosso objetivo consiste em elaborar um estudo da dimensão econômica
da teoria da dependência, concentraremos a análise da vertente neomarxista nas obras de Ruy Mau-
ro Marini, principal referência teórica até os dias de hoje. Dividimos esta seção em duas partes, uma
dedicada às fortes críticas que Marini recebeu da vertente cardosiana, e por fim levantamos alguns
pontos que acreditamos que merecem maior aprofundamento.

3.1.1 A crítica cardosiana

A vertente neomarxista da teoria da dependência sofreu fortes críticas de Cardoso e outros


que compartilham de sua perspectiva. Dentre os textos que apresentam críticas diretas à obra de
Marini, destacam-se “A dependência revisitada” (CARDOSO, 1993)15 e “As desventuras da dialética
da dependência” (CARDOSO; SERRA, 1980). Em “A dependência revisitada” Cardoso realiza uma
crítica em linguagem bem mais branda do que a que viria a elaborar em conjunto com Serra anos
mais tarde. Trata-se, de fato, de um texto que não se dirige unicamente à Marini, mas a todo o con-
junto dos estudos sobre a dependência – incluindo as obras da CEPAL, do próprio Cardoso e de ou-
tros neomarxistas.

15
Publicado pela primeira vez com o título “Notes sur l’etat actuel des études sur la dépendance” em 1972.
42

Já “As desventuras da dialética da dependência” trata de uma crítica direta e quase que ex-
clusiva aos escritos de Marini. Nesse texto “truculento”16, muito das críticas se deve às distorções que
os autores realizam no texto de Marini enquanto outras são fruto de incompreensões dos críticos
quanto a alguns aspectos teóricos, como com a relação entre “deterioração dos termos de intercâm-
bio” e “intercâmbio desigual”.

Certo é que grande parte das críticas apontadas por Cardoso e outros pode ser imputada à
falta de compreensão sobre a obra de Marini, enquanto outra parte pode ser atribuída a distorções
que mais parecem propositais com o intuito de diminuir a obra do autor. Mas, no meio de toda a ar-
gumentação de Cardoso, podemos identificar algumas críticas legítimas, sendo que umas foram res-
pondidas por Marini, outras não. Na presente seção, iremos nos ater apenas a esses elementos.

O pano de fundo da crítica cardosiana está no plano metodológico. Consiste em certa denún-
cia de um método que mistura uma construção metafísica de teorias abstratas com um excessivo
economicismo que põe de fora a luta de classes. Nesse sentido, Cardoso acusa Marini de “descobrir”
leis e regras no texto de Marx e estabelecer conexões de modo equivoco entre elas, construindo uma
teoria que nada tem a ver com a realidade.

[...] Na perspectiva marxista, o conceito não se produz pelo desdobramento


da Razão sobre si mesma. Assim, não seria devido pedir que a dependên-
cia enquanto “teoria” pudesse constituir-se pelo desdobramento lógico da
dialética abstrata das oposições entre conceitos anteriormente constituídos.
Embora hoje seja possível dar impressão de que assim é (basta formalizar
os conceitos e derivar conseqüências lógico-metodológicas da teoria sobre
a expansão e a negação do capitalismo), a ordem histórica da pesquisa e
da elaboração dos conceitos é distinta. E esta distinção não é “acidental”,
nem deriva da “falta de rigor metodológico” dos autores que elaboraram o
tema da dependência. Ao contrário, ela deriva de que as categorias e teori-
as são constituídas na prática política e na prática intelectual de um conjun-
to de pessoas socialmente situadas (CARDOSO, 1993, p. 91)17.

Acreditamos que essa crítica está diretamente relacionada com o método ensaísta da obra de
Marini, sem a preocupação maior com a evidência empírica. O método marxista não abre espaço
para a criação de conceitos sem o devido alicerce na realidade material do pesquisador. Essa é, in-
clusive, parte da crítica de Marx ao idealismo dos economistas políticos de sua época, que faziam
surgir conceitos abstratos de lugar algum e os explicavam por meio de “mitos da criação” robinsonia-
nos.

A análise do concreto, ou seja, a reprodução do mundo concreto pelo pensamento, deve ter
como alicerce inicial um conjunto de conceitos abstratos que, de antemão, possui o pesquisador. Mas
esses próprios conceitos abstratos pressupõem a existência da realidade material. Portanto, o cami-
nho da pesquisa científica é aquele que vai do concreto ao abstrato e depois retorna do abstrato ao
concreto pensado. Ou, como diria Marx: “[...] o concreto aparece no pensamento como o processo da

16
Como adequadamente caracteriza Marini em sua resposta “As razões do neodesenvolvimentismo” (MARINI, 2000).
17
Em uma clara resposta à crítica que Marini faz ao ecletismo do sociologismo no início de “Dialética da dependência”. Marini,
ao tratar de um tipo de desvio metodológico “mais freqüente no campo da sociologia”, afirma: “diante da dificuldade de adequar
a uma realidade categorias que não foram desenhadas especificamente para ela, os estudiosos de formação marxista apelam
simultaneamente a outros enfoques metodológicos e teóricos; a conseqüência necessária deste procedimento é o ecletismo, a
falta de rigor conceitual e metodológico e um pretenso enriquecimento do marxismo, que na realidade se trata de sua negação”
(MARINI, 2000, p. 105).
43

síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e,
portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX, 2008a, p. 258-259). O
ponto de partida, portanto, da construção das determinações abstratas que “conduzem à reprodução
do concreto por meio do pensamento” (MARX, 2008a, p. 259).

Já Marini acha-se preso em uma espécie de “dialética do pensamento” 18, em que os concei-
tos abstratos vão se desenvolvendo, compondo-se entre si, e transformando-se em categorias cada
vez mais complexas, mas que não possuem mediação com a na realidade concreta. A “dialética de
Marini”, além do mais, não só parte de abstrações puras, ancoradas em conclusões retiradas de tex-
tos “sagrados”, como se volta, também, para o próprio mundo abstrato. As análises históricas do au-
tor estão, via de regra, ausente de fatos, baseando-se em uma série de suposições que garantem a
coerência de um texto que se esconde sob as escusas do “ensaio”. Um ensaio só pode ter validade
acadêmica quando se apresenta como uma etapa de um processo de pesquisa que, necessariamen-
te, se voltará para a realidade concreta em algum momento. Não é o caso de Marini, que produz en-
saios atrás de ensaios como forma de corroborar as ideias ensaiadas anteriormente.

Adiciona-se a isso, a pouca relação que estabelece entre a luta de classes e a dinâmica es-
trutural. Esse elemento, que Cardoso chama vulgarmente de economicismo, busca reduzir todas as
causas da exploração às leis econômicas inexoráveis do capital, ignorando os processos políticos
subjacentes19. Afirmam Cardoso e Serra: “o reducionismo economicista que faz repousar a impossibi-
lidade da expansão capitalista da periferia em limites estruturais de tipo dos apontados por Marini [...]
matam o nervo da análise política, levando-a a basear-se num catastrofismo que não se cumpre.”
(CARDOSO; SERRA, 1980, p. 52). Assim, uma vez que não há alternativa para um desenvolvimento
capitalista que permita a sobrevivência do trabalhador, a única alternativa que se ergue é a luta revo-
lucionária pelo socialismo. “Logo, só o assalto final [...] ao Estado, no dia do Juízo Final, poderá pôr
um ponto definitivo a tanto peso das estruturas da dependência [...]. Passa-se assim, imperceptivel-
mente, do economicismo equivocado ao voluntarismo político suicida” (CARDOSO; SERRA, 1980, p.
77).

Ignorar os espaços que a luta de classes possui na determinação do grau de exploração de


um sistema, ou ainda nas transformações de questões estruturais que resultam necessariamente na
dependência, faz a luta pelo socialismo se mover apenas por uma “crença teleológica” e perder a
capacidade de agir concretamente conforme as possibilidades determinadas por conjunturas especí-
ficas.

Exatamente porque o estilo economicista das interpretações da “dialética da


dependência” desfiguram o movimento do real e procuram manter a idéia de
Revolução ancorada em obstáculos intransponíveis de natureza econômica,
a análise política se torna ao mesmo tempo ardorosa e inerme. Fazem-se
apostas nos lances finais, quando, “em bloco”, os oprimidos poderão reagir
diante da decomposição inevitável da ordem econômica, mas deixam-se as
conjunturas específicas sem resposta. Supõe-se que se vá da repressão
absoluta (o fascismo, a barbárie) ao socialismo, sem que se diga como: ao
18
Como caracteriza Cardoso.
19
Por outro lado, Cardoso vai ao outro extremo, quando afirma que a dinâmica do desenvolvimento capitalista deriva da luta
entre as classes (CARODOS; SERRA, 1980, p. 52). Como veremos mais adiante, essa posição acaba levando Cardoso ao que
Marini chama vulgarmente de “sociologismo”.
44

invés de propostas de caminhos que permitam às classes operárias e aos


assalariados em geral aumentar sua força concreta, ouve-se o coro de slo-
gans principistas. Para não falar do horror que a política inspirada pelo ca-
tastrofismo e pelo principismo sente diante da necessidade de definir os
campos dos aliados e de interferir, para alargar, nas brechas postas como
possíveis pelas contradições que minam a coesão das classes dominantes
(CARDOSO; SERRA, 1980, p. 78).

Marini responde às acusações sobre seu economicismo alegando que nada mais faz do que
seguir os métodos de análise usados por Marx. Alega adequadamente que a luta de classes não se
explica por si mesma e que, portanto, o pesquisador deve buscar sua significação na realidade con-
creta. Mas, continua: “A luta de classes não é um processo que age em um marco estrutural: a luta de
classes é a síntese das condições em que os homens produzem sua existência e se acha, por isso
mesmo, regida por leis que determinam seu desenvolvimento” (MARINI, 2000, p. 183). Portanto, a
visão economicista, de que há uma determinação no sentido que vai da infraestrutura econômica
para a superestrutura política, é conscientemente defendida por Marini.

Insiste que o que faz não é mais que mimetizar o método utilizado por Marx:

Ao sustentar que a história é a história da luta de classes, Marx não se limi-


tou a descrever a luta de classes: esforçou-se em distinguir os modos de
produção que constituem seu fundamento e dedicou toda a sua vida ao es-
tudo das leis do modo de produção capitalista, para armar ao proletariado –
teórica, ideológica e politicamente – em sua luta de classe contra a burgue-
sia. Construiu um aparato conceitual para explicar a luta de classes que se
exerce nesse modo de produção; [...] (MARINI, 2000, p. 183-184).

Se é adequado esse pensamento que Marini expõe, o mesmo não se pode dizer da relação
inexorável e determinística entre essas leis do modo de produção capitalista e a luta de classes. Claro
está que, por exemplo, a tendência a declinar da taxa de lucro, por ser uma lei econômica que deriva
do progresso da produtividade social do trabalho não pode ser anulada pela luta de classes enquanto
essa se mover sobre o campo do capitalismo. Mas essa mesma luta de classes pode agir no sentido
de contrariá-la ou impulsioná-la (espaço que Marini não permite em sua análise sobre a dependên-
cia). Vejamos alguns exemplos breves.

Ao discutir o determinante do valor da força de trabalho, no Livro I d’O Capital, Marx utiliza o
mesmo método para determinar o valor de qualquer outra mercadoria: a quantidade de tempo de
trabalho socialmente necessário para a sua produção e reprodução. No caso específico da força de
trabalho, seu valor consiste, então, no “valor dos meios de subsistência necessários à manutenção de
seu possuidor”. Seria, portanto, o valor da força de trabalho determinado por leis econômicas objeti-
vas? Não. Pelo menos, não completamente. Uma parte dos bens necessários para a reprodução do
trabalhador se ligam às suas necessidades naturais e fisiológicas. Mas, continua:

[...] a extensão das chamadas necessidades imprescindíveis e o modo de


satisfazê-las são produtos históricos e dependem, por isso, de diversos fatô-
res, em grande parte do grau de civilização de um país e, particularmente,
das condições em que se formou a classe dos trabalhadores livres, com
seus hábitos e exigências peculiares. Um elemento histórico e moral entra
na determinação do valor da fôrça de trabalho, o que a distingue das outras
mercadorias. Mas, para um país determinado, num período determinado, é
45

dada a quantidade média dos meios de subsistência necessários (MARX,


20
1985a, p. 191) .

Em que consiste esse elemento histórico e moral? Exatamente no espaço que cabe à luta de
classes na determinação do valor da mercadoria força de trabalho. Ou seja, quando esse fator in-
gressa na lógica do valor, a lei que antes era “exata” passa a conter uma parcela flexível à luta de
classes. Desse modo, não há como buscar nas leis econômicas inexoráveis uma explicação para o
valor da força de trabalho em um determinado país e num período determinado: há que se voltar para
a análise dos processos históricos influenciados pela luta de classes. Uma análise que não sofre de
um economicismo nem de um sociologismo. Uma análise materialista e dialética da realidade concre-
ta.

Vejamos mais um exemplo em que há espaço para a luta de classes dentro da análise eco-
nômica de Marx. Ao debater sobre os limites da jornada de trabalho, Marx inicia: “[...] a jornada de
trabalho é, portanto, determinável, mas, considerada em si mesma, é indeterminada” (MARX, 1985a,
p. 262). Quer dizer ele que por conter uma parte que varia conforme o trabalho excedente, não rela-
cionado com o tempo necessário para a reprodução da força de trabalho, não existe lei econômica
que determine sua duração exata.

No entanto, aponta para limites mínimos e máximos dentro dos quais pode se estabelecer a
duração da jornada de trabalho. Em primeiro lugar, a jornada de trabalho, dentro do capitalismo, não
pode ser menor do que o tempo de trabalho socialmente necessário para a reprodução da força de
trabalho. Como limite máximo, se estabelece duplamente: primeiro pelo limite físico da força de traba-
lho, que exige um tempo para se recompor – período em que o trabalhador irá dormir, alimentar-se,
etc; segundo, há um limite moral, referente ao tempo necessário para satisfazer “necessidades espiri-
tuais e sociais cujo número e extensão são determinados pelo nível geral de civilização” (MARX,
1985a, p. 262).

Assim, na determinação da jornada de trabalho, há um duplo espaço para a luta de classes:


primeiro, para determinar em que consiste esse conjunto de necessidades morais do trabalhador, e
segundo, para estabelecer a jornada de trabalho em qualquer ponto entre seu limite mínimo e limite
máximo. Portanto, não há outra forma de entender a duração da jornada de trabalho em determinada
nação que não passe pela análise dos processos históricos de luta de classes – ainda que não seja
elemento suficiente para tanto.

Esses dois exemplos em que a luta de classes passa a integrar a análise econômica marxis-
ta, explicando e sendo explicada, sendo ao mesmo tempo elemento dinâmico determinante e deter-
minado – já que a forma em que se dá essa luta de classes, a oposição entre capital e trabalho, é
fruto de uma determinação econômica – mostram que até mesmo a lei da tendência declinante da
taxa de lucro pode ser influenciada por elementos que escapam ao economicismo. O valor da força
de trabalho e a duração da jornada de trabalho são os dois elementos que determinam a taxa de

20
Além desses elementos já expostos, Marx também cita a necessidade da reprodução do trabalhador, ou seja, da formação
das novas gerações que irão substituir a atual quando a vida útil desta mercadoria se findar e dos custos de aprendizagem
(educação e treinamento) para a formação do trabalhador. Fica claro que esses dois elementos também estão relacionados
com questões históricas.
46

exploração de uma nação. Caso a luta de classes aja de modo a reduzir a taxa de exploração, haverá
a taxa de lucro de se reduzir além dos impulsos da lei tendencial. Por outro lado, caso a luta de clas-
ses não se resolva em benefício da classe trabalhadora, a ampliação da taxa de exploração, por meio
da extensão da jornada de trabalho ou da redução do valor da força de trabalho21, deverá agir como
um fator contrário à lei tendencial.

Sobre essa crítica metodológica de fundo, erigem-se algumas críticas elaboradas por Cardo-
so que merecem o devido destaque. Vejamos primeiro a questão da superexploração. Para Cardoso,
o elemento central para explicar a existência da superexploração é a luta de classes, não uma lei
econômica inexorável derivada do perverso intercâmbio desigual.

Na crítica que elabora em conjunto com Serra (CARDOSO; SERRA, 1980), os críticos argu-
mentam que a tese de Marini é insuficiente, visto que o capitalista não se interessa pela taxa de mais
valia senão apenas na medida em que ela influencia seu verdadeiro objetivo: a taxa de lucro. Portan-
to, se os capitalistas sentem suas taxas de lucro pressionadas, eles poderão tomar qualquer atitude
para ampliá-la, incluindo, por exemplo, a redução do valor do capital constante. Sendo assim, a am-
pliação da produtividade do trabalho nos ramos produtores de capital constante, mesmo que isso não
influenciasse de qualquer forma o valor da força de trabalho, seria algo não só de interesse dos capi-
talistas, como perseguido por eles. Além disso, não há razão para supor que os produtos industriais
(tanto os produzidos nos países centrais quanto nos países periféricos) não entrassem na cesta de
consumo dos trabalhadores. Os autores alegam que a parte do consumo com mercadorias que iam
além da alimentação e habitação eram consideráveis já na década de 1970. Além disso, lembram que
“parte dos alimentos são semi-industrializados e que mesmo para os que não são, o processo de
produção, transporte e comercialização requer insumos industriais” (CARDOSO; SERRA, 1980, p.
71).

Os autores utilizam-se de dados para sustentar que a ampliação da produtividade do trabalho


era um fenômeno significativo e recorrente no Brasil. Portanto, não haveria motivo que levasse o capi-
talista brasileiro a preferir a superexploração do trabalho.

Marini responde a essas críticas alegando que “a superexploração do trabalho é incentivada


pelo intercâmbio desigual, mas não se deriva dele e sim da febre de lucro que cria o mercado mundial
e se baseia fundamentalmente na formação de uma superpopulação relativa” (MARINI, 2000, p. 177).
Ora, em sua resposta a superexploração existe em função da superpopulação relativa, tese que não
está presente em seus escritos anteriores. E se não é o intercâmbio desigual que gera a superexplo-
ração do trabalho, qual seria o processo econômico que põe em marcha “um mecanismo monstruoso”
que impediria as economias dependentes de abandonarem essa forma brutal de exploração do traba-
lho?

Enquanto procuramos uma resposta que nos parece não existir na teoria de Marini, passe-
mos para o último elemento realmente significativo apresentado pela crítica cardosiana. Cardoso

21
Claro que estamos tratando aqui da mais valia relativa, mas apenas da redução do valor da força de trabalho que se deriva,
sobretudo, da redução dos salários abaixo do valor por um tempo continuado.
47

contesta a tese de Marini de que a relação de dependência e sua gênese foram essenciais para o
desenvolvimento do capitalismo central. Cardoso argumenta:

O mecanismo descrito por Marini justifica ex-post a função do capitalismo


dependente e explica a razão pela qual dá-se uma superexploração da for-
ça de trabalho sem que isso acarrete problemas de realização do produto.
Mas creio que seria possível mostrar que o capitalismo central, no que ele
possui de específico e dinâmico, depende da produção de mais-valia relati-
va e do aumento da produtividade – que atinge, por certo, os produtos ne-
cessários à reposição da força de trabalho –, não da pura espoliação das
regiões periféricas (CARDOSO, 1993, p. 109).

O autor questiona a hipótese de Marini de que a América Latina tenha fornecido alimentos e
matérias-primas que teriam sido essenciais tanto para o desenvolvimento quanto para a manutenção
do capitalismo central. Cardoso sugere que os países latino-americanos que provavelmente mais
contribuíram para o mercado de alimentos na Inglaterra, por exemplo, parecem ter sido a Argentina e
o Uruguai, países que apresentavam as melhores condições para a classe trabalhadora comparando-
se com outros países da região (CARDOSO, 1993, p. 109)22. Do mesmo modo, pouca participação os
países da América Latina possuíam no fornecimento de lã para a Inglaterra, principal matéria-prima
da indústria inglesa no final do século XIX.

A resposta de Marini a esse ponto restringe-se a indicar cinco questões que deveriam ser le-
vadas em consideração para uma investigação mais rigorosa sobre o problema exposto por Cardoso
(MARINI, 2000, p. 181-182): 1) definir o impacto do comércio exterior na taxa de lucro; 2) explicar por
que os países avançados lançaram mão do comércio com países atrasados para a ampliação da taxa
de lucro; 3) analisar a composição e o destino e a evolução dos preços relativos das exportações da
América Latina; 4) levar em consideração na análise o conjunto dos países centrais; e 5) ponderar as
transferências de valor que podem ocorrer de modo circular ou indireto.

De todo modo, trata-se de um reconhecimento de que a tese da necessidade das relações de


dependência para o desenvolvimento das características específicas do capitalismo central não está
adequadamente fundamentada. O que não implica (nem assim faz crer Cardoso) que a relação de
dependência não teria funcionalidade no sentido de garantir uma absorção de mais valia gerada pela
exploração na periferia.

Portanto, a parte relevante da crítica cardosiana poderia ser resumida nos seguintes pontos:
a teoria de Marini apresenta uma incoerência metodológica que o permite se distanciar da realidade
concreta, mergulhando em um economicismo que o faz abandonar a perspectiva da luta de classes;
esses desvios metodológicos teriam levado o autor às infundadas conclusões que a relação de de-
pendência foi fundamental para viabilizar o surgimento do capitalismo dos países avançados e que
essa mesma relação de dependência apoia-se sobre tendência de superexploração do trabalho na
periferia.

22
O argumento foi repetido em Cardoso e Serra, 1980, p. 53.
48

3.1.2 Para além da crítica cardosiana

Resta-nos agora ir além da crítica cardosiana, ou seja, identificar na obra de Marini equívocos
não observados pelos críticos cardosianos, de modo a extrair da mesma mais elementos que possam
ser aproveitados para a reconstrução de uma teoria da dependência. Iniciemos pela crítica metodoló-
gica.

No início do ensaio “A dialética da dependência”, Marini busca esclarecer sua compreensão


acerca do materialismo dialético enquanto o método que o guiará em sua investigação. Mas como
veremos, a intepretação do autor apresenta dois equívocos que comprometerão os resultados de sua
pesquisa. Primeiramente, baseado nas notas metodológicas apontadas por Marx na “Introdução à
contribuição à crítica da economia política”, Marini acaba por confundir a gênese da categoria abstra-
ta com a gênese da categoria concreta. Pois vejamos.

Marini busca compreender a relação de dependência a partir do processo histórico que inse-
riu a América Latina no mercado mundial. Aparentemente, parece-nos que o método proposto consis-
te exatamente no oposto do materialismo histórico, que consistiria em compreender a inserção da
região no mercado mundial a partir da relação de dependência vigentes na atualidade – afinal, (com
as próprias palavras de Marini) “é o conhecimento da forma particular que acabou por adotar o capita-
lismo dependente latino-americano, o que ilumina o estudo de sua gestação e permite conhecer ana-
liticamente as tendências que desembocaram neste resultado” (MARINI, 2000, p. 106).

Essa citação de Marini é adequada às indicações metodológicas apontadas por Marx, que
diz: “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores
indica uma forma superior, não pode, ao contrário, ser compreendida senão quando se conhece a
forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc” (MARX, 2008a, p.
264). Mas é claro que é somente o conhecimento crítico do modo de produção burguês que nos dá
luz sobre a dinâmica das sociedades anteriores, e não o conhecimento apologético da economia polí-
tica burguesa (ou da economia vulgar).

Portanto, o caminho que parece adequado, diante desse raciocínio, seria o de se identificar
as categorias abstratas – que se erguem do concreto já presente no pensamento como pressuposi-
ção – capazes de preencher de significado o concreto com que se depara o pesquisador, levando-o
ao concreto pensado, e só então observar o seu processo de gênese – a gênese da categoria con-
creta.

Mas como Marini faz a inversão desse pensamento? Diz o autor:

[...] se é certo que o estudo das formas sociais mais desenvolvidas projeta
luz sobre as formas mais embrionárias (ou, para dizê-lo nos termos de
Marx, “a anatomia do homem é uma chave da anatomia do macaco”), tam-
bém é certo que o desenvolvimento ainda insuficiente de uma sociedade, ao
ressaltar um elemento simples, torna mais compreensível sua forma mais
complexa, que integra e subordina esse elemento (MARINI, 2000, p. 107).

De onde conclui o autor esse “duplo sentido da verdade”? Das próprias palavras de Marx, se-
gundo Marini.
49

[...] a categoria mais simples pode expressar as relações dominantes de um


todo não desenvolvido ou as relações subordinadas de um todo mais de-
senvolvido, relações que já existiam historicamente antes de que o todo se
desenvolvesse no sentido expresso por uma categoria mais concreta. Só
então o caminho do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao com-
plexo, poderia corresponder ao processo histórico real (MARX apud
MARINI, 2000, p. 107).

Portanto, Marini se apoia no supracitado trecho da obra de Marx para afirmar que a “essência
do método dialético” consiste em fazer “coincidir o exame teórico de um problema com seu desenvol-
vimento histórico” (MARINI, 2000, p. 153). Mas, será que é realmente esse o significado do trecho
citado por Marini? Não nos parece a interpretação mais adequada.

A pergunta que Marx se faz e que antecede o trecho citado é: “Porém, essas categorias sim-
ples não têm também uma existência independente, histórica ou natural, anterior às categorias mais
concretas? Ça depend” (MARX, 2008a, p. 260). Por “categorias simples” Marx se refere às categorias
abstratas que o pesquisador obtém a partir da análise do concreto23, de modo que a pergunta que se
faz é se a categoria abstrata possui existência antes da realidade concreta, ou da sua manifestação
nesse todo concreto. A resposta, Marx já dá de antemão: depende.

O trecho citado por Marini trata da possibilidade da categoria abstrata simples possuir exis-
tência em um todo concreto pouco desenvolvido, ou seja, um todo que representa uma etapa anterior
no desenvolvimento da concreta que existe na atualidade. Ao concluir pela possibilidade da ocorrên-
cia anterior da categoria simples antes da categoria mais complexa, tal como se expressa no concre-
to, Marx indica que seria possível, somente nesse caso, que o caminho do pensamento coincidisse
com o processo histórico real. Não é, portanto, nenhuma regra do método dialético – ao contrário – a
coincidência do exame teórico com o processo histórico é uma exceção à regra.

Se voltarmos para o texto de Marx, podemos observar que logo em seguida ao trecho citado
por Marini, é apresentada a possibilidade oposta. O autor conclui:

[...] embora a categoria mais simples tenha podido existir historicamente an-
tes que a mais concreta, não pode precisamente pertencer em seu pleno
desenvolvimento, interno e externo, senão a formações sociais complexas,
enquanto que a categoria mais concreta se achava plenamente desenvolvi-
da em uma forma de sociedade menos avançada (MARX, 2008a, p. 262).

Ou seja, por mais que o caminho do pensamento que vai do abstrato ao concreto possa coin-
cidir com o desenvolvimento histórico, a categoria abstrata simples só é plena de sentido diante da
realidade concreta mais complexa. Por isso a necessidade de se estudar as formações anteriores a
partir do modo de produção atual.

Mas como hierarquizar as categorias, senão pela forma como aparecem historicamente? A
resposta é simples: elas devem ser hierarquizadas conforme as relações que estabelecem entre si na
sociedade moderna.

23
“[...] do concreto representado chegaria a abstrações cada vez mais tênues, até alcançar as determinações mais simples”
(MARX, 2008a, p. 258).
50

Ao confundir a gênese da categoria abstrata com a gênese da própria categoria concreta, Ma-
rini sustenta sua teoria em um “mito da criação” da dependência, mito esse que não tem a ver com o
movimento do real. E só poderia acertar em sua pesquisa como fruto do acaso, posto que não esta-
beleceu de antemão o que é a relação de dependência, a categoria abstrata – já não simples, mas
complexa – que quer utilizar para compreender a totalidade concreta.

O segundo problema metodológico (não presente na crítica cardosiana, a despeito de ter apa-
recido na crítica de outros marxistas) que Marini apresenta em sua obra é o caminho tortuoso que
“deriva” do método presente n’O Capital. Consiste em “partir da circulação para a produção, para
empreender depois o estudo da circulação que esta engendra” (MARINI, 2000, p. 153). Afirma Marini
que esse “corresponde rigorosamente ao caminho seguido por Marx”. Diz o autor:

Basta recordar como, em O Capital, as primeiras seções do Livro I estão


dedicadas a problemas próprios da esfera da circulação e só a partir da ter-
ceira seção se entra no estudo da produção; além disso, uma vez concluído
o exame das questões gerais, as questões particulares do modo de produ-
ção capitalista são analisadas de forma idêntica nos dois livros seguintes.
Mais além do simples ordenamento formal da exposição, isso tem que ver
com a própria essência do método dialético, que faz coincidir o exame teóri-
co de um problema com seu desenvolvimento histórico; é assim que essa
orientação metodológica não só corresponde à formula geral do capital, mas
também dá conta da transformação da produção mercantil simples em pro-
dução mercantil capitalista (MARINI, 2000, p. 153).

Portanto, para Marini, além de Marx ter elaborado O Capital seguindo a ordem dos processos
como aparecem na história, ele o fez da circulação para a produção e de volta para a circulação! Não
nos parece, por outro lado, que o modo mercantil simples tenha tido existência histórica real, mas que
se trata, simplesmente, de uma abstração teórica mais simples para compreender categorias abstra-
tas mais complexas, como o capital. Nem tampouco, que Marx tenha chegado à categoria abstrata do
capital a partir do desenvolvimento histórico dessa forma. Ao contrário. Vejamos n’O Capital, por
exemplo. Este inicia com uma análise sobre a mercadoria. Por que a mercadoria? Por que, dentro da
forma complexa que se manifesta o capital, encontra-se de modo subordinado, a categoria de dinhei-
ro, seguido pela categoria de mercadoria, trabalho e então valor.

Quando Marx se debruça, então, sobre a mercadoria, buscando compreender seus mistérios,
volta-se para aquilo que ela tem de essencial: o trabalho. Mas será, conforme afirma Marini, o traba-
lho, seja ele na sua dimensão concreta ou abstrata, um fenômeno que se apresenta na esfera da
circulação? Igualmente, não nos parece.

Mas se não é o esquema obscuro de Marini que Marx segue, qual é a origem de tal hierarqui-
zação da pesquisa? Por que começar pela mercadoria, desvendar os mistérios do dinheiro para de-
pois chegar ao capital? O que Marx teria a nos dizer sobre isso? O que Marx teria a nos dizer sobre a
dialética de Marini? Vejamos:

Seria, pois, impraticável e errôneo colocar as categorias econômicas na or-


dem segundo a qual tiveram historicamente uma ação determinante. A or-
dem em que se sucedem se acha determinada, ao contrário, pela relação
que têm umas com as outras na sociedade burguesa moderna, e que é pre-
cisamente o inverso do que parece ser uma relação natural ou do que cor-
51

responde à série da evolução histórica. Não se trata do lugar que as rela-


ções econômicas ocupem historicamente na sucessão das diferentes for-
mas da sociedade. Menos ainda de sua série “na ideia” (Proudhon), que
não passa de uma representação falaciosa do movimento histórico. Trata-se
de sua conexão orgânica no interior da sociedade burguesa moderna
(MARX, 2008a, p. 267).

Assim, o capital, como elemento de análise, apresenta-se como uma categoria complexa que
subordina um conjunto de outras categorias mais simples, mas ao mesmo tempo se subordina a outro
conjunto de categorias que se eleva a partir dela. A ordem da pesquisa deverá seguir então a hierar-
quia dessas relações. É assim que Marx deriva os passos que viriam a guiar sua pesquisa:

1º – as determinações gerais abstratas, que pertencem mais ou menos a


todas as formas de sociedade [...];

2º - as categorias que constituem a organização interior da sociedade bur-


guesa, sobre as quais repousam as classes fundamentais. Capital. Trabalho
assalariado, propriedade rural. Suas relações recíprocas. Cidade e campo.
As três grandes classes sociais. A troca entre estas, circulação. Crédito (pri-
vado).

3º. A sociedade burguesa compreendida sob a forma de Estado. O Estado


em si. As classes improdutivas. Impostos. Dívidas do Estado. O crédito pú-
blico. A população. As colônias. Emigração;

4º - relações internacionais da produção. Divisão internacional do trabalho.


Troca internacional. Exportação e Importação. Curso do câmbio;

5º - o mercado mundial e as crises (MARX, 2008a, p. 268).

Portanto, podemos concluir que do ponto de vista metodológico, além dos equívocos aponta-
dos pela crítica cardosiana à obra de Marini, seu método se afasta da dialética materialista por con-
fundir a gênese da categoria abstrata com a da categoria concreta e por criar um caminho para a
pesquisa que vai da circulação para a produção e desta novamente para a circulação, contrariando a
proposta marxista.

Com esses deslizes metodológicos, já seria difícil que Marini conseguisse alcançar um resul-
tado compatível com o “rigor metodológico” que parece apreciar tanto. Mais difícil ainda se torna sua
empreitada tendo em vista as confusões mais substantivas que faz com as categorias marxistas que
usa em sua análise. Iniciemos pelo conceito de superexploração do trabalho.

Marini define a superexploração do trabalho como sendo uma “maior exploração da força físi-
ca do trabalhador, em contraposição à exploração resultante do aumento de sua produtividade”
(MARINI, 2000, p. 160) e seria resultante de três modalidades distintas: pela prolongação da jornada
de trabalho, ou seja, a mais valia absoluta; pela ampliação da intensidade do trabalho e pela redução
do consumo do trabalhador abaixo do seu limite normal (ou estabelecido). E completa: “a superexplo-
ração [...] tende normalmente a expressar-se no fato de que a força de trabalho se remunere por bai-
xo de seu valor real” (MARINI, 2000, p. 123).
52

Há, no entanto, certa incoerência teórica nessa definição de Marini. Em primeiro lugar, não há
uma relação objetiva entre ampliação da exploração pela mais valia absoluta ou relativa e pagamento
de salário abaixo do valor da força de trabalho. Vejamos como Marini chega a essa conclusão:

[...] nos três mecanismos considerados, a característica essencial está dada


pelo fato de que se nega ao trabalhador as condições necessárias para re-
por o desgaste de sua força de trabalho: nos dois primeiros casos, porque
ele é obrigado a um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria
proporcionar normalmente, provocando-se assim seu esgotamento prematu-
ro; no último, porque se retira dele inclusive a possibilidade de consumir o
estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado
normal. Em termos capitalistas, estes mecanismos [...] significam que o tra-
balho se remunera por baixo de seu valor e correspondem, então, a uma
superexploração do trabalho (MARINI, 2000, p. 126).

Que o trabalho se remunera por baixo de seu valor no capitalismo não é nenhuma novidade –
de fato, essa consiste o âmago da teoria da mais valia de Marx. Talvez o que Marini esteja se referin-
do seja à força de trabalho, e não ao trabalho em si. Assim, vejamos o motivo do autor afirmar que a
mais valia absoluta rompe com a lei do valor.

Para Marini, ao se ampliar a jornada de trabalho, esgota-se prematuramente a força de traba-


lho. Mas, como vimos na seção anterior, a jornada de trabalho não é uma grandeza determinada,
podendo variar dentro de certos limites sem ferir a integridade do trabalhador. Dentro desse intervalo,
qualquer aumento da jornada pode ser realizado sem que o salário recebido pelo trabalhador torne-se
menor que o valor da força de trabalho – mesmo mantendo-se o salário constante. Será então que
Marini estava querendo se referir apenas ao aumento da jornada de trabalho além de seu limite má-
ximo aceitável? Talvez seja isso que o autor tenha pensado, mas não há qualquer indicação sobre
isso em seus textos. Acreditamos que seja mais plausível deduzir que essa visão de Marini sobre os
limites da jornada de trabalho se derivem da falta de espaço que a luta de classes possui em seus
escritos econômicos. Assim, a jornada de trabalho seria, pela lógica econômica do capital, estabele-
cida sempre no limite do possível e qualquer extensão da mesma consistiria em uma redução do
tempo de vida útil da força de trabalho. Nesse caso, a única forma de se respeitar a lei do valor seria
se o aumento da jornada de trabalho fosse acompanhado de aumento do salário que compensasse
esse desgaste.

Todavia, mesmo se considerando a referida interpretação, a categoria de superexploração


não seria adequada para caracterizar o modo de produção de uma nação, ou seja, a extensão da
jornada de trabalho para além desse limite, ao ser aplicada de modo generalizado, não iria gerar tal
divergência entre salários e valor da força de trabalho. Sendo essa uma prática generalizada nos
países dependentes, a tal ponto que se constitua a regra e não a exceção, e considerando-se que as
leis econômicas são tendências que só se realizam pela média, não haveria porque falar de superex-
ploração, mas apenas de exploração, mesmo esta sendo maior do que a verificada nos países cen-
trais. Afinal, “o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho requerido para que
seja fornecida de acôrdo com sua qualidade normal” (MARX, 1985a, p. 193). Assim, caso a expectati-
va média de vida útil de um trabalhador em um país periférico fosse de 10 anos, nada mais justo do
que o trabalhador receber exatamente o necessário para se reproduzir durante esses 10 anos. Mas,
53

caso um trabalhador realizasse uma jornada de trabalho que reduzisse sua expectativa de vida útil
para 5 anos, ele deveria receber o dobro do que a média. Do mesmo modo, se esse mesmo traba-
lhador realizasse uma jornada que ampliasse a expectativa de vida útil para 30 anos, deveria receber
1/3 do salário médio. Essa é a lei do valor em plena execução.

Claro que sempre haverá um grupo de trabalhadores que serão “superexplorados”, mas tam-
bém sempre haverá aqueles que serão “subexplorados”. A lei econômica só exerce sua influência
pela média. Mas não há elementos que nos permitam dizer que no país em que a expectativa de vida
útil do trabalhador é de 10 anos há superexploração, enquanto no que a expectativa é de 30 não há24.
Acreditar que superexploração do trabalho – ou seja, remunerar abaixo do valor da força de trabalho
– é o mesmo do que um trabalhador receber o suficiente para viver uma expectativa de vida média da
25
sociedade em que vive, é atribuir uma questão moral para a lei do valor que não existe . Portanto,
nesse sentido, não há como a superexploração ser a regra em uma sociedade. Ela sempre existirá,
mas nunca será a maior parte das relações de trabalho.

Portanto, a superexploração como regra não é compatível com o conceito de mais valia abso-
luta. Vejamos no que se refere à intensidade do trabalho. Vamos considerar, primeiramente, que não
há espaços para a luta de classes na teoria de Marini, ou seja, a intensidade do trabalho é sempre a
mais elevada possível, de modo que sua ampliação consistiria, necessariamente, em uma redução da
vida útil do trabalho do mesmo modo que causaria uma ampliação da jornada de trabalho26.

Marx deixa claro que, em uma situação em que a exploração do trabalho pelo capital é levada
ao limite, o fenômeno da ampliação da intensidade do trabalho está inversamente relacionado com a
ampliação da jornada de trabalho. Nesse sentido, não há como, em um único processo (e conside-
rando os pressupostos supracitados), ampliar-se a jornada de trabalho e a intensidade do trabalho.
Nem ao menos seria possível ampliar a intensidade do trabalho e se manter a mesma jornada. Sim-
plesmente porque os trabalhadores não conseguiriam atingir um nível de concentração necessário
para tanto. Como afirma Marx:

[...] Compreende-se [...] que, num trabalho que não se caracteriza por auges
espasmódicos mas pela uniformidade cada dia invariàvelmente repetida, há
de se chegar a um ponto em que se excluem a extensão e a intensidade do
trabalho, de modo que o prolongamento da jornada só se possa combinar
com o trabalho de intensidade mais fraca, e um grau maior de intensidade
apenas com uma jornada de trabalho menor. [...] [A redução da jornada de
trabalho], com o poderoso impulso que dá ao desenvolvimento da fôrça
produtiva e à poupança das condições de produção, impõe ao trabalhador
maior dispêndio de trabalho no mesmo tempo, mais elevada tensão da fôrça
de trabalho, preenchimento mais denso dos poros da jornada, em suma, um
tal grau de condensação do trabalho que só pode ser alcançado reduzindo-
se o dia de trabalho [...] (MARX, 1985a, p. 467).

O primeiro efeito da jornada de trabalho diminuída decorre dessa lei eviden-


te: a capacidade de operar da fôrça de trabalho está na razão inversa do

24
Por outro lado, podemos dizer que em um país a exploração é maior do que no outro.
25
“É sentimentalismo barato considerar brutal esse método de determinar o valor da fôrça de trabalho, método que decorre da
natureza do fenômeno” (MARX, 1985a, p. 193).
26
Caso contrário, a ampliação da intensidade do trabalho não causaria uma distorção da lei do valor mesmo quando os salá-
rios se mantivessem fixos.
54

tempo em que opera. Por isso, dentro de certos limites, o que se perde em
duração, ganha-se em eficácia [...] (MARX, 1985a, p. 468).

Há um limite para a ampliação da intensidade do trabalho originado de impossibilidade mate-


rial. Não se trata de forçar o trabalhador para além das suas capacidades normais de modo a se
comprometer a reprodução da força de trabalho, mas sim de uma incapacidade física deste executar
mais trabalho em um mesmo montante de tempo. Portanto, a ampliação da intensidade do trabalho
só se mostra como alternativa (sem a redução da jornada) num cenário em que o grau normal de
intensidade se encontra aquém desse limite superior.

Sendo assim, poderíamos divisar dois cenários distintos para a ampliação da intensidade do
trabalho. Há a situação em que a concentração de trabalho por unidade de tempo é tão baixa que sua
ampliação nem ao menos prejudicaria a reprodução da força de trabalho, ou seja, não comprometeria
a vida útil do trabalhador. Enquanto o grau normalmente aceito se encontrasse dentro dessa condi-
ção, não haveria uma possibilidade de superexploração enquanto derivação desse mecanismo.

Um segundo cenário seria aquele em que a concentração do trabalho já se elevou a tal nível
que posteriores incrementos só seriam possíveis à custa de uma redução do tempo de vida útil da
força de trabalho. Sendo assim, uma ampliação que não fosse acompanhada de um aumento da
remuneração na medida adequada seria suficiente para caracterizar superexploração – similar à am-
pliação da jornada de trabalho além do seu limite normal, como exposto anteriormente. Para esse
segundo caso, poderemos estender a conclusão que chegamos antes: a despeito da possibilidade de
ocorrência da superexploração em uma sociedade, ela não será a regra, ou seja, a média das rela-
ções sociais de produção.

Por fim, resta analisar a possibilidade da redução do consumo do trabalhador abaixo do limite
normal, em outras palavras, a conversão do fundo de consumo dos trabalhadores em fundo de acu-
mulação de capital. Em que consiste exatamente essa questão? A tentativa de reduzir o valor da
força de trabalho pela redução do padrão de consumo é um modo de se ampliar, de modo relativo, o
tempo excedente presente em uma dada jornada de trabalho. Trata-se, portanto, de uma forma de
mais valia relativa em que o capitalista tenta reduzir o valor da força de trabalho pela redução de seu
salário e consiste em se comprimir os elementos históricos e morais que compõem o valor da força
de trabalho27. Após a redução de salário, os trabalhadores são forçados a ajustar seu novo padrão de
vida à nova renda. Isso gera, por fim, uma redução do próprio valor da força de trabalho (que aceita,
inclusive, uma redução do tempo de vida útil do trabalhador). Mas o importante desse ponto é que a
lei do valor é por fim reestabelecida e, portanto, não há nada além dos processos tradicionais de ex-
ploração do trabalho.

A única alternativa de se falar em permanente pagamento de salários abaixo do valor da força


de trabalho seria uma situação em que a classe trabalhadora não pudesse se reproduzir enquanto
classe. Mas, nesse caso, tal sociedade estaria fadada ao colapso em um período de poucas décadas
se não fosse capaz de superar esse processo. Sem classe trabalhadora, o capital não teria como dar

27
Como vimos na seção anterior, o valor da força de trabalho, definido como o valor das mercadorias necessárias para a re-
produção do trabalhador, possui um elemento que o diferencia do valor das outras mercadorias: aquilo que Marx chama de
elemento histórico e moral.
55

continuidade ao ciclo de acumulação. Seria o fim do capitalismo. Vemos, portanto, que a categoria da
superexploração do trabalho apresenta um conjunto de inadequações teóricas que a torna inapropri-
ada à análise econômica.

Parece-nos muito claro que a base do equívoco de Marini ao considerar a categoria de supe-
rexploração do trabalho é deixar de fora o elemento da luta de classes. Marini considera que os capi-
talistas dão preferência mais para um modo de exploração que a outro. Não percebe que o capital
não escolhe a quem ou como explorar, ele apenas explora. O limite para o grau de exploração é dado
de fato pela luta de classes28. Portanto, se verificamos uma divergência na taxa de exploração de
diversos países, a questão fundamental não é qual a lógica econômica que gera a exploração desi-
gual, mas quais os elementos que tornam a luta de classes mais desfavorável para os trabalhadores
nos países periféricos.

Além da categoria de superexploração, outro elemento substantivo que merece atenção é a


teoria do intercâmbio desigual desenvolvido por Marin primeiramente em “Dialética da dependência” e
reapresentada na complementação posterior “Em torno da dialética da dependência”. Para o autor, a
troca desigual, que se manifesta na aparência como uma tendência secular de deterioração dos ter-
mos de intercâmbio29, é a base do processo de apropriação de excedente por parte dos países cen-
trais (e que impulsiona as economias periféricas para a superexploração). Vejamos como Marini trata
a questão:

No meu ensaio tratei de demonstrar que é função da acumulação de capital


em escala mundial e, em particular, em função de seu mecanismo vital, a
taxa geral de lucro, como podemos entender a formação da economia de-
pendente. No essencial, os passos seguidos foram: a) examinar o problema
do ponto de vista da tendência à baixa da taxa de lucro nas economias in-
dustriais e b) colocá-lo à luz das leis que operam no comércio internacional
e que lhe dão o caráter de um intercâmbio desigual (MARINI, 2000, p. 155).

Ao tratar das “leis que operam no comércio internacional e que lhe dão o caráter de um inter-
câmbio desigual” parece muito claro na passagem acima de que está se referindo à tendência a for-
mação de uma taxa geral de lucro. Mas, a taxa geral de lucro se forma por ter todos os capitalistas de
um determinador setor (ou esfera de produção) que vender seus artigos pelo mesmo preço de produ-
ção30. Mas no ensaio anterior, não deixa dúvida de que não é o mecanismo de igualar a taxa geral de
lucro a que faz referência.

“Na prática”, afirma Marini, “se observam diferentes mecanismos que permitem realizar trans-
ferências de valor, passando por cima das leis de intercâmbio e que se expressam na maneira como
se fixam os preços de mercado e os preços de produção das mercadorias” (MARINI, 2000, p. 120).
Portanto, o intercâmbio desigual seria fruto do modo como se fixam tanto os preços de produção
quanto os preços de mercado, sendo que apenas os primeiros são resultados da formação da taxa
geral de lucro. Ainda assim, afirma que esses mecanismos se agrupam naqueles que agem dentro de

28
Não obstante, em última instância há de fato um limite econômico para a exploração que consiste na manutenção de uma
classe trabalhadora que dê suporte à acumulação.
29
Conforme tese elaborada por Prebisch. Cf. p. 16.
30
Que podem sofrer variações por inúmeros fatores, gerando os preços de mercado. Mas, o “centro gravitacional” desses
preços de mercado consiste no próprio preço de produção.
56

um mesmo setor e em setores diferentes. Quanto aos mecanismos que agem dentro de um mesmo
setor, afirma Marini: “[...] por efeito de uma maior produtividade do trabalho, uma nação pode apre-
sentar preços de produção inferiores a seus concorrentes, sem por isso baixar significativamente os
preços de mercado que as condições de produção destes contribuem a fixar” (MARINI, 2000, p. 120).

O autor parece indicar que, por se tratarem de países distintos, a formação da taxa geral de
lucro seria um fenômeno interno de cada país, de modo que distintos países apresentariam distintos
preços de produção para um mesmo setor. Ou seja, a formação de uma taxa geral de lucro levaria
um mesmo setor a apresentar preços de produção distintos – e, portanto, taxas de lucro distintas –
em países diferentes.

O autor completa: “[...] isto se expressa, para a nação favorecida, em um lucro extraordinário,
similar ao que constatamos ao examinar de que maneira se apropriam os capitais individuais do fruto
da produtividade do trabalho” (MARINI, 2000, p. 120). Ou seja, esse lucro extraordinário a favor dos
países centrais seria similar à mais valia extra. Para recordar, a mais valia extra permite uma transfe-
rência de valor entre empresas de um mesmo setor de produção posto que aquelas que possuem
uma produtividade maior produzem mercadorias cujo valor individual é inferior ao valor socialmente
determinado, enquanto que as de menor produtividade produzem mercadorias com valor individual
acima do valor socialmente determinado. O mecanismo de Marini pode ser compreendido, então,
desse modo: em um determinado país, a formação de uma taxa geral de lucro determina um preço de
produção para um setor que é inferior ao preço de produção que esse mesmo setor apresenta em
outro país, sendo ainda o preço de mercado um intermediário entre esses dois preços de produção.

Similar ao fenômeno da mais valia extra, esse processo deve gerar como resultado empresas
que apresentam divergentes taxas de lucro em um mesmo setor. Não fosse assim, por que haveria o
capital dos países dependentes de apresentar uma tendência a compensar essa transferência de
valor se a taxa de lucro que expressa é a mesma das economias centrais? A resposta é clara: não
haveria. Não haveria o capital do país dependente de apresentar qualquer vontade de explorar a for-
ça de trabalho de sua nação maior do que a apresentada pelo capital dos países centrais.

A taxa de exploração que se estabelece, sendo superexploração, mera exploração ou subex-


ploração, é resultado da dinâmica da luta de classes em cada país, e não de leis econômicas inexo-
ráveis relacionadas com a formação da taxa geral de lucro em escala internacional. E mais, essas
taxas de exploração só podem se manter diferentes em diversos países enquanto houver barreiras à
mobilidade espacial e intersetorial da força de trabalho.

Quanto aos mecanismos que agem sobre setores diferentes, Marini afirma: “o mero fato de
que umas [nações] produzem bens que as demais não produzem, ou não o podem fazer com a mes-
ma facilidade, permite que as primeiras eludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços
superiores a seu valor (MARINI, 2000, p. 120). Marini está claramente fazendo referência ao poder de
monopólio, um elemento que auxilia a frear a formação de uma taxa geral de lucro (pois reduz a mo-
bilidade do capital). Por fim, conclui que esses dois mecanismos de transferência de valor (interseto-
rial ou intrasetorial) podem agir em conjunto e ainda assim não ser evidente para a nação desfavore-
cida, “já que seus diferentes provedores podem vender todos a um mesmo preço, sem prejuízo de
57

que os lucros se distribuam desigualmente entre eles e que a maior parte do valor cedido se concen-
tre em mãos do país de produtividade mais alta” (MARINI, 2000, p. 121). Portanto, não é a formação
de uma taxa média de lucro em nível internacional de que Marini está tratando.

No entanto, no ensaio-prefácio que se seguiu ao “Dialética da dependência”, Marini afirma


que pretendia tratar da formação da taxa geral de lucro. Argumenta que o influxo de capital dos paí-
ses centrais para os periféricos (derivados da existência de taxas de lucro divergentes) gera dois
fenômenos:

Um primeiro resultado disto é a elevação da composição orgânica do capital


nessas economias e o aumento da produtividade do trabalho, que se tradu-
zem na baixa do valor das mercadorias e que (se não houver a superexplo-
ração) deveriam levar à baixa da taxa de lucro. Em consequência, começam
a declinar regularmente os termos de intercâmbio, como se indica no meu
ensaio.

Por outro lado, a presença crescente do capital estrangeiro no financiamen-


to, na comercialização e inclusive na produção dos países dependentes,
assim como nos serviços básicos, atua no sentido de transferir parte dos lu-
cros obtidos ali para os países industriais (MARINI, 2000, p. 157).

Mas essa passagem nos levanta uma série de questões: em primeiro lugar, se a variação da
taxa de lucro dos países dependentes se dá pela ampliação da composição orgânica, não haveria o
resultado de ser um mercado em que as mercadorias se trocam pelo seu valor? Afinal, os preços de
produção são aqueles estabelecidos entre setores que possuem divergentes graus de composição
orgânica. Se a mobilização de capital entre países iguala a composição orgânica de todos eles, os
preços de produção serão iguais aos valores das mercadorias31.

Mas, ao contrário do que acredita Marini, o fenômeno da formação de preços de produção re-
pousa sobre a ampliação da oferta de mercadorias no setor mais lucrativo, até que o preço caia a um
ponto em que a taxa de lucro se iguale em todos os setores. Portanto, não há uma elevação necessá-
ria da composição orgânica do capital nos países receptores de investimentos. Os novos investimen-
tos podem ser realizados por meio da absorção de parte do exército industrial de reserva, utilizando-
se o coeficiente técnico médio da relação capital x trabalho.

O que nos leva a outra questão: está Marini tratando da taxa geral de lucro ou da taxa média
de lucro de um mesmo setor? De acordo com a teoria marxista, dentro de um determinado setor,
diferentes empresas apresentam diferentes taxas de lucro. Essas taxas de lucro estão relacionadas,
entre outros fatores, com o grau de exploração, com a composição orgânica que cada empresa pode
sustentar e com o montante de capital investido. Aqueles setores que possuem menor taxa de lucro
transferem, por meio de preços que são inferiores ao valor de suas mercadorias, um montante de
mais valia extra para os que possuem maior taxa de lucro. Não seria um fenômeno similar a esse a
que Marini estaria fazendo referência no ensaio anterior32? Mas nesse caso, o capital não irá fluir para
as empresas de menor composição orgânica de um mesmo setor, pois são essas que possuem me-
nor taxa de lucro.

31
Supondo a mesma taxa de exploração. Em caso de taxas divergentes, o país de maior taxa de exploração poderia ter uma
menor composição orgânica. Mas, mesmo assim o valor seria igual ao preço de produção de todos os setores.
32
Cf. citação p. 56.
58

O fenômeno que descreve no ensaio da citação de referência diz respeito à divergência da


taxa média de lucro de distintos setores. Mas no ensaio precedente, o autor afirma que o mecanismo
do intercâmbio desigual no âmbito de distintas esferas de produção trata-se do poder de monopólio
que permite a manutenção de preços de mercado acima do valor. Parece-nos que o autor confunde,
portanto, a taxa geral de lucro com a taxa média de lucro de um setor.

Um terceiro questionamento: se a superexploração do trabalho impede a queda da taxa de


lucro do capital que se faz presente na periferia (seja ele proveniente do centro ou do próprio país em
que se encontra), por que o capital para de fluir em direção a este país, já que é a divergência entre
as taxas que geram esse movimento? De acordo com a teoria marxista, o capital se move entre seto-
res até que a taxa média de lucro de todos os setores se iguale. Portanto, indo ao paroxismo, a capa-
cidade ilimitada da periferia lançar mão da superexploração do trabalho deveria fazer com que todo o
capital fluísse dos centros, que seriam transformados em grandes campos desertos de valor.

As falhas de Marini na compreensão da formação da taxa geral de lucro o impediram de es-


tabelecer uma relação adequada com a deterioração dos termos de intercâmbio, originalmente de-
senvolvida por Prebisch. Esse movimento que reduz os preços relativos dos bens produzidos pelos
países periféricos é fruto da locomoção de capital entre setores que apresentam diferentes taxas de
lucro. Os setores com maior composição orgânica do capital33 apresentam uma menor taxa média de
lucro. Assim, o capital flui das empresas menos lucrativas desse setor para outros setores, os quais
apresentam uma composição orgânica menor e, portanto, uma taxa de lucro mais elevada. A amplia-
ção da oferta desse setor, resultado do influxo de capital, gera uma redução nos preços dessas mer-
cadorias, ao mesmo tempo em que o setor de origem desse influxo observa uma redução de sua
oferta de produtos e uma ampliação dos preços. O resultado é a formação de uma taxa geral de lucro
e os preços que estabelecem essa taxa são os preços de produção.

Nesse sentido, se um setor possui uma tendência maior a ampliar a composição orgânica que
os demais, haverá uma tendência ao capital sempre fluir desse setor para os demais, na medida em
que inovações reduzam a taxa de lucro média desse setor em comparação com os demais. Quando o
capital se desloca, há uma variação dos preços devido à variação na oferta de cada setor: os preços
do setor em que o capital sai aumentam (devido à redução da oferta) e o setor que recebe o capital
tem seus preços reduzidos (pois aumenta a oferta de mercadorias).

Mas essa tendência é contraposta por outra: a tendência a se reduzir o valor individual das
mercadorias, que é o próprio fenômeno da inovação que dá origem ao movimento descrito. O resulta-
do tendencial final, portanto, dependerá da força com que cada uma dessas tendências apresenta em
um determinado momento histórico, de modo que não há motivo para crer que os termos de inter-
câmbio irão se deteriorar sempre em prejuízo dos países periféricos. Não obstante, esse processo
gera como resultado preços de produção que ampliam cada vez mais o montante de valor transferido
entre os setores (e países). Em outras palavras, o país que se concentra na produção de mercadorias
menos dinâmicas tem que realizar uma quantidade cada vez maior de trabalho para obter uma mes-
ma massa de mercadorias do país com setores mais dinâmicos.

33
Abstraindo-nos das divergências de taxas de exploração.
59

Podemos concluir, com essas observações, que a despeito de apresentar o caminho ade-
quado a se seguir nos estudos da dependência, o próprio Marini falha ao dar prosseguimento em
suas “investigações”. De um lado, por uma inadequação do método de pesquisa, que confunde a
gênese da categoria abstrata com a gênese da categoria na realidade concreta e que estabelece um
caminho de pesquisa não preconizado pelo método dialético e, de outro, por uma série de incompre-
ensões do autor sobre as categorias marxistas que estão por trás dos conceitos de superexploração
do trabalho e intercâmbio desigual.

De todo modo, não podemos deixar de render o devido tributo ao pioneirismo desse autor,
nem de apontar em quais sentidos podemos nos aproveitar de seus estudos para a elaboração de
uma teoria capaz de pensar a especificidade da realidade brasileira.

Em primeiro lugar, a principal proposição da teoria da dependência é a de que o sistema capi-


talista deve ser analisado como um todo no âmbito do mercado mundial. Não se trata de buscar a
explicação da realidade concreta da nação dependente no desenvolvimento do mercado mundial,
mas de retirar as leis tendenciais do desenvolvimento do mercado mundial da própria relação de de-
pendência. Apenas assim, poderemos compreender a existência de graus de acumulação e de taxas
de exploração distintas entre países.

Em segundo lugar, essas leis tendenciais são frutos de tendências que já existiam no capita-
lismo mesmo ao ser considerado como um sistema “isolado”. Leis tendenciais que, ao se ampliar a
integração econômica entre países, passam a atuar de modo global, gerando desenvolvimentos desi-
guais de acordo com o modo de inserção de cada país. Portanto, é a partir do momento em que a
tendência a declinar da taxa de lucro e a da formação de uma taxa geral (intersetorial) de lucro atuam
em todos os países como uma única grande tendência que surge a relação de dependência.

3.2 A insuficiência da dialética cardosiana

A vertente cardosiana da teoria da dependência foi amplamente acusada pelos neomarxistas


de se pautar por um sociologismo exacerbado. Como vimos no capítulo anterior, tal crítica culminou
na errônea classificação do pensamento cardosiano como de origem weberiana. Na presente sessão,
apresentaremos quais os fundamentos da crítica ao “sociologismo” – de fato presente nas teses car-
dosianas – além de discutirmos algumas outras questões substantivas que devem ser levadas em
consideração na construção de uma teoria da dependência capaz de explicar a realidade contempo-
rânea.

Do ponto de vista metodológico, a “análise integrada” proposta por Cardoso e Faletto pauta-
se pela celebre frase de Marx presente no início do “Manifesto Comunista”: “A história de toda socie-
dade até nossos dias é a história da luta de classes” (MARX, 2008b, p. 23). Assim, os autores estabe-
lecem uma estrutura de análise que vê nos processos políticos o movimento dinâmico essencial de
transformação da sociedade. Aos condicionantes econômicos estruturais é legado um papel passivo
no processo de transformação social, sendo modificados apenas pelos resultados da luta de classes.
60

O que os autores querem evidenciar é que há um processo de determinação recíproca entre


estrutura econômica e processos políticos, de modo que ambos se influenciam constantemente. Mas,
repousam a dinâmica da transformação social sobre a luta de classes, como se ignorassem os pro-
cessos materiais que as estruturas econômicas põem em marcha de modo automático e que atuam
de modo incremental. Tais transformações quantitativas incrementais, que podem acumular-se ao
ponto de gerarem modificações nas próprias estruturas econômico sociais, são deixadas de lado na
análise cardosiana.

Vejamos como a construção metodológica de Cardoso e Faletto elimina o processo econômi-


co das causas das transformações sociais. Primeiramente, os autores estabelecem uma relação entre
estrutura econômica e estrutura social:

Em têrmos puramente econômicos, o grau de desenvolvimento de um setor


produtivo pode ser analisado através de um conjunto de variáveis e de rela-
ções entre variáveis que refletem o processo de diferenciação da economia.
A partir dessa análise e principalmente levando-se em conta o comporta-
mento da renda e a estrutura do emprêgo, pode-se inferir a forma que as-
sume a estrutura social (CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 18).

Assim, a estrutura econômica determina uma estrutura social específica. Mas como se dá,
então, as transformações na estrutura social?

[...] a mudança das estruturais sociais, longe de ser sòmente um processo


acumulativo no qual se agregam novas “variáveis” que se incorporam à con-
figuração estrutural, implica fundamentalmente um processo de relações en-
tre os grupos, fôrças e classes socais, através do qual alguns dêstes tentam
impor ao conjunto da sociedade a forma de dominação que lhes é própria
(CARDOSO; FALETTO, 1970, p. 18).

Ou seja, os processos que transformam a estrutura social fundam-se na luta de classes, nos
processos políticos que estabelecem determinado modo de dominação. Mas como esses processos
políticos ganham preponderância sobre os elementos econômicos no pensamento de Cardoso? Ocor-
re que eles são os responsáveis pela escolha das diversas possibilidades estruturais:

Os conflitos ou acôrdos entre essas distintas fôrças não obedecem a uma


mecânica determinista. O resultado de suas interações, em situações espe-
cíficas, pode possibilitar trajetórias históricas absolutamente diferentes [...].
Mas na medida em que o sistema de relações sociais expressa-se por um
sistema de poder, instaura històricamente um conjunto de possibilidades es-
truturais que lhe são próprias. Dentro do marco dessas possibilidades estru-
turais, conseqüência de práticas sociais anteriores, definem-se trajetórias
específicas e excluem-se outras tantas alternativas (CARDOSO; FALETTO,
1970, p. 118-119).

Sendo assim, a estrutura econômica age, no pensamento cardosiano, apenas como o plano
de fundo da luta de classes, sendo que não há espaço para as transformações sociais que seriam
fruto dos processos econômicos reificados, como as leis tendenciais derivadas da lógica de funcio-
namento do capitalismo. Esse é o desenvolvimento metodológico que está presente nas teses sobre
a transformação social do ensaio “dependência e desenvolvimento na América Latina”.

De fato os autores têm o mérito de combater o mesmo economicismo do qual Marx foi, há
muito, injustamente acusado. Mas, no afã de fazer pesar seus argumentos, Cardoso e Faletto perdem
61

o fiel da balança e acabam encontrando-se quase no outro oposto: o idealismo. Digo quase visto que,
por fim, os autores defendem uma visão ontológica em que o componente material possui o mesmo
peso do componente ideológico, mesmo que o sentido da dinâmica de transformação repouse ape-
nas neste último.

Para identificarmos o equívoco de Cardoso e Faletto, vejamos como e em que sentido Marx
põe a questão e qual é o tratamento dado pela pena de Engels aos escritos de Marx. A querela nos
parece ter origem no polêmico trecho do prefácio da “Contribuição à crítica da economia política”, em
que Marx afirma o eixo central que guiou suas interpretações econômicas:

[...] na produção social da própria existência, os homens entram em rela-


ções determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas re-
lações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvi-
mento de suas forças produtivas e materiais. A totalidade dessas relações
de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real so-
bre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual corres-
pondem formas sociais determinadas de consciência (MARX, 2008a, p. 47).

O autor separa a totalidade concreta em dois elementos: a infraestrutura e a superestrutura,


cabendo a um os determinantes materiais e a outro os elementos de conteúdo ideológicos, políticos
etc. Funda, então, a base, ou o determinante último, da superestrutura nas relações econômicas de
produção e reprodução da sociedade.

Mas qual o motivo de tal determinação? Qual preocupação de Marx está por trás da necessi-
dade de tal assertiva? O autor busca, de fato, combater a visão idealista da história, marco filosófico
da tradição hegeliana. Afirma: “[...] as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem
ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações
têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades [...]”
(MARX, 2008a, p. 47). Portanto, é um argumento que, claramente, busca criticar o idealismo da dialé-
tica hegeliana que reconhece uma dinâmica autônoma dos elementos da superestrutura.

Parece-nos, no entanto, que a definição de Cardoso, com o intuito oposto – de combater o


materialismo vulgar – é compatível com a argumentação de Marx. Ora, não é na estrutura econômica
que Cardoso vê as bases dos conflitos políticos que animam as transformações sociais? Não busca a
determinação das ideologias, valores e objetivos dos grupos e classes na posição que ocupam na
estrutura produtiva de determinada sociedade? Adequadamente. Porém, qual o motivo de Cardoso
ao afirmar que a luta de classes é o componente dinâmico dessa relação? Por que o autor atribui um
papel aparentemente passivo às transformações da própria estrutura econômica?

Aí que reside a contradição da interpretação dialética de Cardoso, do sociologismo excessivo


que lhe garantiu a imerecida alcunha de weberiano. Em famosa e amplamente reproduzida carta que
Friedrich Engels escreve para Joseph Bloch, ele deixa clara a adequada relação que os elementos da
infraestrutura econômica possuem com os da superestrutura política, em uma tentativa de combater o
economicismo vulgar.

According to the materialist conception of history, the ultimately determining


element in history is the production and reproduction of real life. Other than
this neither Marx nor I have ever asserted. Hence if somebody twists this in-
62

to saying that the economic element is the only determining one, he trans-
forms that proposition into a meaningless, abstract, senseless phrase
(ENGELS, 1978, p. 760).

A infraestrutura é o determinante último do desenvolvimento histórico, de modo que a ela se


combinam uma série de outros elementos – tais como a luta de classes e seus resultados, as formas
das instituições jurídicas e até mesmo as concepções ideológicas, filosóficas e morais – para definir o
curso que a história tomará.

There is an interaction of all these elements in which, amid all the endless
host of accidents (that is, of things and events, whose inner connection is so
remote or so impossible of proof that we can regard it as non-existent, as
negligible) the economic movement finally asserts itself as necessary. Oth-
erwise the application of the theory to any period of history one chose would
be easier than the solution of a simple equation of the first degree (ENGELS,
1978, p. 760-761).

Portanto, mesmo que todos esses elementos da superestrutura possuam sua dinâmica pró-
pria – os móveis que as animam – é errôneo ignorar os movimentos da própria estrutura econômica.
É essa facilidade em aplicar a teoria aos períodos históricos da América Latina que Cardoso e Faletto
encontram em sua obra. Não importa qual o resultado final obtido, basta supor uma aliança de clas-
ses que iria se beneficiar com tal resultado que salta aos olhos a “explicação” da situação concreta!

Do mesmo modo, para projetar os resultados de suas teorias, basta supor qual conjunto de
alianças de classes e grupos sociais seria viável no momento atual. Já que o elemento econômico
age apenas como determinante passivo na teoria de Cardoso, não há porque considerá-lo como algo
a mais do que uma mera questão de dotação inicial.

Mas, ao contrário, no materialismo dialético, as relações materiais de produção engendram


leis econômicas tendenciais que irão influenciar decisivamente a dinâmica das transformações soci-
ais. O que não significa que basta olhar para essas leis tendenciais para realizar as devidas previ-
sões. Como evidencia Engels na carta citada:

The reaction of the state power upon economic development can be one of
three kinds: it can run in the same direction, and then development is more
rapid; it can oppose the line of development, in which case nowadays state
power in every great people will go to pieces in the long run; or it can cut off
the economic development from certain paths, and prescribe certain others.
This case ultimately reduces itself to one of the two previous ones. But it is
obvious that in cases two and three the political power can do great damage
to the economic development and result in the squandering of great masses
of energy and material (ENGELS, 1978, p. 762).

Como podemos ver, portanto, o materialismo dialético concebe uma dinâmica autônoma pró-
pria por parte dos elementos estruturais, dinâmica que Cardoso deixa de considerar em seus escritos.
No afã de combater o economicismo, parece subestimar qualquer papel dinâmico desempenhado
pelos processos econômicos. Podemos concluir na análise desse ponto que a base do materialismo
dialético é que, enquanto os elementos da infraestrutura podem apresentar movimentos próprios (au-
tônomos) que vão influenciar o movimento da totalidade concreta, toda a dinâmica da superestrutura
só pode se realizar mediada pelas transformações que causa na própria infraestrutura.
63

O comprometimento da análise que abandona a dinâmica econômica é total. Como veremos


adiante, nossas principais críticas aos elementos substantivos da análise cardosiana esbarram exa-
tamente nesse equívoco metodológico. Mas antes, devemos analisar ainda dentro do âmbito metodo-
lógico a ânsia de Cardoso em elaborar estudos para tratar de “situações concretas”.

Afirma o autor que a totalidade concreta que se reproduz no pensamento diz respeito a uma
situação concreta específica. Portanto, não vê sentido em elaborar teorias que expliquem os elemen-
tos que perpassam várias realidades concretas.

No nosso ponto de vista, isso não passa de um excesso de zelo do autor. A análise que vai
do abstrato ao concreto, que busca reproduzir no pensamento o concreto pensado, não precisa ne-
cessariamente fazer referência a uma situação específica de um momento histórico que se analisa.
Podemos, portanto, partir da análise da realidade brasileira, por exemplo, para compreender a própria
essência do capitalismo, já que o modo de produção do país é determinado pelas relações capitalis-
tas. Portanto, o grau de proximidade com a realidade imediata que se analisa depende da totalidade
que se define. Cada totalidade concreta é formada por um conjunto de determinações que, por sua
vez, podem ser compreendidas como totalidades a parte.

Mas, se buscamos compreender uma determinada totalidade concreta é para as relações en-
tre seus elementos determinantes que devemos olhar, mas do mesmo modo, cada um desses deter-
minantes possuem relações internas que devem ser analisadas. Por isso a construção da categoria
abstrata que serve como base da análise deve seguir o caminho da mais simples para a mais com-
plexa (que, como vimos, não é necessariamente o caminho do desenvolvimento histórico).

Portanto, se Cardoso estabelece o nível da totalidade concreta como a realidade de um de-


terminado país da América Latina, isso não passa de uma escolha do pesquisador. Todas as limita-
ções de se generalizar as relações de dependência depreendem-se dessa escolha (que sempre é
arbitrária). Mas se, como o fizeram os autores neomarxistas, o pesquisador estabelece a totalidade
como o mercado mundial, nada mais natural do que se estudar a dependência como a relação entre
os diversos determinantes (ou os diversos capitalismos nacionais) que a compõem.

Quando Marx analisa a realidade da Inglaterra para extrair dela o fundamento do modo de
produção capitalista, não está preocupado com a forma concreta que esse capitalismo se manifesta
naquele país. Não se detém a explicar, por exemplo, como que a instituição monárquica sobrevive no
país que se encontra no estágio mais avançado do desenvolvimento capitalista. Qual o motivo disso?
Porque vê o autor que esse elemento não faz parte do todo que busca estudar (o capitalismo), mas
que é apenas uma forma específica com que esse todo se materializa em uma situação concreta
dada: a Inglaterra.

Ademais, não é por não ter especificado as leis gerais da dependência que não há uma teoria
sobre isso no pensamento cardosiano. De fato, a lógica desse movimento permanece implícito e sub-
jacente a toda sua análise. Não enfrentar o problema (da lógica da dependência) de frente apenas
torna a teoria cardosiana incompleta. Por exemplo: mesmo que tenha eliminado qualquer dinâmica
autônoma dos elementos econômicos, Cardoso e Faletto reconheceram algumas relações econômi-
64

cas da dependência, mas não as especificaram adequadamente. Como se dá o vinculo econômico


entre centro e periferia? Se há transferência de excedente entre países dependentes e economias
centrais, como ela ocorre? Quais são as formas dessas transferências (dependência financeira, tec-
nológica, etc) e quais são seus mecanismos?

Sem responder a essas questões, ou seja, sem esclarecer adequadamente o papel funcional
da dependência para os países centrais, não há como analisar a possibilidade de superação da de-
pendência. E, ainda, ignorando o aspecto tendencial das relações econômicas da dependência (posi-
ção que deriva da perspectiva metodológica adotada) não é possível prever adequadamente os ca-
minhos possíveis que a totalidade concreta poderá seguir, mesmo se se compreende perfeitamente
os processos políticos (luta de classes) que se desenrolam.

Falta, então, na teoria cardosiana um tratamento econômico e teórico sobre a dependência.


Claro que, considerando a formação sociológica dos autores, não há que se esperar de Cardoso e
Faletto a elaboração de tal teoria, mas o método que estabeleceram para a pesquisa dificulta que
outros pesquisadores que se filiem a tal vertente estabeleçam a referida teoria econômica. Nesse
sentido, a única contribuição que podemos obter da vertente cardosiana para a construção de uma
teoria econômica da dependência é o resgate da luta de classes como elemento essencial para a
análise.

3.3 Base metodológica para uma nova abordagem sobre a dependência

Com o objetivo de compatibilizar nossa análise com as críticas até então realizadas sobre as
teorias precedentes, é imprescindível uma reflexão sobre a aplicação do método do materialismo
histórico nos estudos da dependência. O intuito que nos guia na presente seção é o de realizar uma
análise que permita preservar o rigor teórico do marxismo clássico ao aplicá-lo a uma situação con-
creta contemporânea. Para tanto, partiremos das indicações metodológicas apresentadas por Marx
na introdução à “Contribuição à crítica da economia política” (MARX, 2008) e dos escritos de Friedrich
Engels acerca da dialética, presente na obra “Anti-Dühring” (ENGELS, 1976).

O marxismo clássico se debruçou sobre o desenvolvimento do capitalismo europeu no século


XIX, utilizando o método do materialismo histórico. Esse método concentra-se em estudar a realidade
como um processo, de modo que, ao se deparar com um conceito totalizante, o pesquisador busque
empreender esse conceito não por meio de sua decomposição por partes e pelo estudo de cada par-
te separada, mas pela forma como essas partes se relacionam entre si, evidenciando as transforma-
ções que esses movimentos implicam no todo. Movimento esse animado pelo conflito, pela contradi-
ção das partes que compõe o todo. O todo possui movimento próprio, pois consiste em uma unidade
de contrários.

Certamente, desde que nos limitemos a focalizar as coisas como se fossem


estáticas e inertes, contemplando-as isoladamente, cada uma de per si, no
tempo e no espaço, não descobriremos nestas coisas nenhuma contradi-
ção. Encontrar-nos-emos com determinadas propriedades, umas comuns e
outras diferentes e até mesmo contraditórias entre si, mas que não encer-
65

ram uma contradição verdadeira uma vez que esta se encontra distribuída
entre diversos objetos. Nos limites desta zona de observação podemos apli-
car o método vulgar da metafísica sem nenhum perigo. Mas a coisa é dife-
rente se quisermos focalizar os objetos dinamicamente, acompanhando-os
em sua mobilidade, vendo-os transformar-se, viver, e influir uns sobre os ou-
tros. Ao pisar neste terreno, cairemos imediatamente numa série de contra-
dições. O próprio movimento, por si mesmo, é uma contradição [...]
(ENGELS, 1976, p. 102).

Portanto, o movimento do todo é fruto das relações contraditórias entre as partes. Relações
essas que determinam movimentos tendenciais quantitativos que, antes de indicar a realidade como
ela é, indicam em que direção ela se move. As leis tendenciais da dialética materialista são, portanto,
uma indicação do sentido no qual as relações materiais de reprodução transformam a sociedade co-
mo um todo.

Assim, uma totalidade concreta, sob os efeitos das leis tendenciais que relacionam suas par-
tes, acumulará modificações quantitativas até o ponto que tal acúmulo exija uma transformação quali-
tativa nessa própria totalidade. No entanto, a passagem do quantitativo para o qualitativo na realidade
social não implica qualquer tipo de certeza. O resultado final de tal transformação não pode ser com-
pletamente previsto pela teoria, mas apenas apontado.

Como afirma Marx (2008, p. 258), “[...] o concreto é concreto, porque é a síntese de muitas
determinações, isto é, unidade do diverso [...]”. Ele é formado por uma junção entre o conjunto das
relações materiais de produção (estrutura) e das relações políticas, jurídicas e culturais correspon-
dentes (superestrutura) (MARX, 2008, p. 47). As leis tendenciais da dialética materialista se constitu-
em em movimentos das relações materiais de produção, mas as transformações sociais ocorrem por
meio de uma interação dialética entre os elementos da estrutura econômica da sociedade e os de sua
superestrutura correspondente, de modo que os mesmos se influenciam mutuamente.

Deste modo, a compreensão dos movimentos gerados pelas relações materiais de produção
não é suficiente para prever as transformações na totalidade concreta. Parte dos determinantes des-
sa transformação será influenciado pelo resultado da luta de classes e de outros elementos objetivos
e subjetivos que compõem a superestrutura dessa totalidade. De todo modo, a adequada compreen-
são dos movimentos da dimensão material é fundamental para embasar as ações dos indivíduos e da
coletividade.

Uma vez caracterizada a visão ontológica que embasa o método da dialética, passemos para
o método em si. Como deve o pesquisador proceder na análise da realidade concreta? Conforme
sugere Marx (2008, p. 258-259),

[...] o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como


resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de
partida e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representa-
ção. No primeiro método, [que eleva o pensamento do concreto ao abstra-
to,] a representação plena volatiliza-se na determinação abstrata; no segun-
do, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por
meio do pensamento.
66

A identificação dos movimentos da totalidade concreta segue, assim, duas etapas. Em um


primeiro momento, é necessário evidenciar as relações que predominam entre as partes constitutivas
dessa realidade. Trata-se da construção da categoria abstrata delas derivada. Essa construção, não
obstante seja caracterizada como abstrata, funda-se na realidade material presente diante do pesqui-
sador – por isso o concreto também ser considerado como ponto de partida, pois está presente nas
concepções abstratas do pesquisador, mesmo que como intuição.

Só após a construção do conceito abstrato deve, então, o pesquisador retornar para a análise
da totalidade concreta. Esse processo significa retornar ao concreto, ou seja, apreender o processo a
partir das categorias abstratas capazes de dotar o difuso de sentido, desmistificando as formas com
que aparecem as relações sociais.

Mas, a construção do concreto pensado só se completa após a análise histórica, afinal, “a


anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que aparece nas espécies animais inferio-
res indica uma forma superior, não pode, ao contrário, ser compreendida senão quando se conhece a
forma superior” (MARX, 2008, p. 264). Portanto, a relação de dependência – como categoria crítica
do processo de “globalização” – é que dará luz aos processos históricos que a antecederam.

“A chamada evolução histórica descansa em geral no fato de que a última


forma considera as formas ultrapassadas como graus que conduzem a ela,
sendo capaz de critica a si mesma alguma vez, e somente em condições
muito determinadas [...] inclusive como tempos de decadência” (MARX,
2008, p. 265).

Esse processo permite a ressignificação dos fatos históricos diante das categorias que de-
terminam as relações materiais da atualidade. Em outras palavras, os eventos resultam na formação
de um modo de produção só podem ser adequadamente compreendidos quando esse modo de pro-
dução já se encontra desenvolvido. Assim, a pesquisa se completa com a identificação dos fenôme-
nos concretos que deram origem à categoria abstrata, do funcionamento dessa categoria e das leis
tendenciais que impulsionam as transformações para além do momento histórico atual, ou seja, em
direção à sua superação.

Para exemplificar a lógica desse raciocínio, faremos uma breve comparação com alguns ele-
mentos presentes n’O Capital de Karl Marx (1985a e 1985b). Para compreender a totalidade do modo
capitalista de produção, Marx se debruça sobre a contradição entre capital e trabalho, entre trabalho
morto e trabalho vivo, ou seja, entre a relação das partes constitutivas desse modo de produção.
Conclui que essa relação se estabelece por meio de um processo de exploração que constantemente
espolia o trabalho em função do capital, da qual deriva a lei geral de acumulação capitalista.

Ao contrastar essa relação de exploração com o processo histórico de formação capitalista,


Marx desvenda o segredo da acumulação primitiva de capital, dando um significado novo – no senti-
do que não poderia ser capitado antes do desenvolvimento do conceito de exploração capitalista –
para os processos históricos que separaram o trabalhador dos seus meios de produção. E chega, por
fim, à tendência histórica da acumulação capitalista, que consiste na superação do modo capitalista
de produção por meio da coletivização dos meios de produção. Essa tendência, no entanto, depen-
dente do resultado da luta de classes – podendo até mesmo nunca se realizar –, mas é favorecida
67

pelos movimentos materiais frutos das relações entre capital e trabalho, como a lei geral da acumula-
ção capitalista.

Desvenda, assim, os movimentos a que está sujeita essa totalidade concreta que é o modo
de produção capitalista. Totalidade que, por sua vez, pode ser compreendida como parte constitutiva
de uma totalidade ainda mais ampla. E é exatamente nesse ponto que se encaixa a teoria da depen-
dência.

O conceito totalizante com que se depara a teoria da dependência é o mercado mundial, cu-
jas partes constituintes podem ser compreendidas como os diversos modos de produção nacionais.
Nesses termos, o dinamismo dessa totalidade é resultado das relações desses diversos “capitalismos
nacionais”, motivo pelo qual o estudo da dependência centra-se na divergência entre as formas de
inserção de cada país no mercado mundial.

A categoria abstrata central utilizada na análise é a própria dependência, que consiste na


forma da relação entre economias capitalistas com características distintivas. No caso, a característi-
ca distintiva básica diz respeito ao grau da acumulação capitalista, ou seja, buscaremos analisar as
relações entre economias capitalistas que possuem razões distintas entre capital e trabalho34.

A construção dessa categoria abstrata deve ter como base uma formulação lógica a partir da
realidade material com que nos deparamos. Como buscamos identificar relações que nos auxiliem na
construção do concreto pensado de nossas realidades, portanto, da realidade brasileira contemporâ-
nea, colocamos nossa âncora material nas relações econômicas entre o Brasil e os Estados Unidos
no período que pode ser caracterizado como da mundialização neoliberal.

Após a construção da categoria abstrata, resta fazer o caminho contrário, dotando de sentido
a forma de inserção do Brasil no cenário internacional, identificando as leis tendenciais imanentes
dessa relação. Por fim, deve-se proceder a análise histórica, identificando não apenas os elementos
que deram origem à relação de dependência, mas também as tendências históricas que as relações
materiais reservam para dinâmica do capitalismo mundial. O fim último de nossa análise, portanto, é
compreender em que sentido as leis tendenciais resultantes das relações de dependência direcionam
as transformações no mercado mundial. Ou seja, como as relações entre centro e periferia determi-
nam não a condição do centro ou da periferia, mas a dinâmica do próprio capitalismo mundial.

34
Como a característica distintiva das sociedades que analisamos é o grau de acumulação de capital, compreendida como a
quantidade de capital per capita, entendemos que a terminologia que se refere às economias latino-americanas como periféri-
cas, em contraposição às economias europeias e estadunidense, denominadas de centrais, não se mostra de toda adequada.
No entanto, para compatibilizar o debate, adotaremos a terminologia de economia central, país central, etc como sinônimo de
país rico, ou seja, de um país que possui uma maior quantidade de capital per capita em comparação a outro, que seria o
periférico, pobre, dependente, etc. Na necessidade de compararmos três países com diferentes graus de acumulação de capi-
tal, utilizaremos a terminologia, emprestada da teoria dos sistemas mundo, de semiperiferia. A semiperiferia, obviamente,
apresentaria, portanto, maior riqueza que os países periféricos, mas ainda estaria em menor grau de concentração do que os
países centrais.
68

4. PROPOSTA PARA UMA NOVA ABORDAGEM DA DEPENDÊNCIA

Vimos no capítulo anterior que, a despeito dos equívocos metodológicos dos autores depen-
dentistas, estes conseguem avançar em uma análise marxista da América Latina em alguns pontos.
Avançam, em primeiro lugar, ao considerar o capitalismo como um sistema mundial e não como um
conjunto de unidades nacionais isoladas que nada tem que ver uma com a outra. Portanto, partem do
pressuposto que para compreender a realidade histórica de qualquer país capitalista, seja ele central
ou periférico, é necessário compreender a forma como se relaciona com os demais.

Além disso, as categorias que desenvolvem em suas análises, inclusive a própria dependên-
cia, representam em muitos casos avanços na análise, por apresentarem de forma intuitiva (mas
equivocada) relações que se fazem presente na realidade concreta dos países latino-americanos. A
partir dessa análise, propusemos a base metodológica para os estudos sobre a dependência.

O presente capítulo pretende, diante das críticas e da metodologia levantadas, ensaiar uma
proposta teórica para uma nova abordagem da dependência. Uma abordagem sobre uma realidade
que vai além das elaborações do marxismo clássico, sem, no entanto, recorrer a uma teoria nova. Ou
seja, pretendemos olhar para um problema novo com um olhar antigo. Claro que nesse novo olhar,
muita coisa deve se reinventar, mas é preciso ter claro que o capitalismo de hoje é o mesmo capita-
lismo de antes – apenas com algumas diferenças quantitativas.

Para isso, proporemos a reconstrução da principal categoria abstrata da análise, a dependên-


cia, a partir de dados das relações econômicas entre o Brasil e os Estados Unidos, e completaremos
a análise ao fazer o caminho inverso, dotando de sentido para relações econômicas entre os dois
países e pondo em evidência suas leis tendenciais. O último passo consiste na análise histórica dos
processos que deram origem ao fenômeno da dependência.

A envergadura de tal empreitada nos impede de chegar a alguma resposta na presente pes-
quisa, motivo pelo qual nos dedicamos aqui ao primeiro passo, qual seja, o de caracterizar, por meio
da combinação do desenvolvimento lógico e da análise concreta, as relações entre economias desi-
guais. Até mesmo porque, antes de nos questionarmos sobre o impacto das relações de dependência
na dinâmica do capitalismo mundial, é necessário nos questionarmos sobre no que consiste exata-
mente essa relação de dependência – inclusive se ela existe de fato.

Seguindo essas orientações, o capítulo se divide em duas seções. Na primeira seção propo-
remos uma reformulação da categoria da dependência a partir das análises acerca das relações eco-
nômicas entre o Brasil e os Estados Unidos da América no período que vai de 1991 a 2010. Essa
categoria é compreendida com uma síntese de relações de exploração, subordinação e vinculação, e
resgatamos o significado de cada uma delas a partir dessa realidade concreta. Na segunda seção,
articulamos todos os elementos que compõem a categoria da dependência para evidenciar a lógica
por trás desse modo de inserção internacional e as possibilidades de sua superação.
69

4.1 A dependência nas relações Brasil x EUA nas décadas de 1990 e 2000

A dependência é a categoria abstrata central de nossa análise. Como categoria abstrata, será
seu papel preencher de sentido os movimentos que observamos no concreto, de modo que possa-
mos reconstruí-lo como concreto pensado. Não obstante se tratar de uma categoria abstrata, é mister
que sua construção parta da própria realidade concreta, presente não só como pressuposição mas
como a materialidade observável.

Assim, apresentamos aqui uma proposta para a construção dessa categoria abstrata tendo
por base as relações econômicas entre o Brasil e os Estados Unidos da América durante o período
de 1991 a 2010. Nosso objetivo é construir essa categoria de análise apresentando a lógica da de-
pendência para que, em um momento futuro, possamos avançar a análise com a ressignificação dos
processos históricos, que nos irão evidenciar as origens e a dinâmica das leis tendenciais geradas
pela dependência.

A primeira grande questão que se põe aos autores que buscam estudar as relações de de-
pendência entre os países diz respeito exatamente ao significado desse conceito. Mas poucos são os
autores que conseguiram responder sem recair no óbvio e no senso comum, tentando explicar um
conceito pelo seu sinônimo.

A dependência é a síntese das relações de subordinação, vinculação e exploração que ligam


países com distintos graus de acumulação capitalista. São nesses três sentidos que a periferia de-
pende do país central. Depende, pois perde sua autonomia, sua independência formal e passa a
atender aos interesses que não lhe são próprios. E depende, também, já que seu destino se vincula
ao do país central, sendo seu “desenvolvimento” um reflexo da expansão do capital estrangeiro e, ao
mesmo tempo, restringido por ele. Mas essa dependência só se preenche de sentido se a periferia
desempenha um papel funcional para o centro, um papel que dá razão para a existência da relação
de dependência: a transferência de excedentes das economias periféricas para as centrais.

Assim, a relação de dependência é a forma fenomênica em que se expressa esse processo


de exploração entre países. É na exploração que se pode buscar o sentido e a lógica da dependên-
cia, visto que se revela como seu fundamento. Mas essa só se apresenta na forma acabada quando
o centro subordina e vincula a periferia. Eis a síntese da dependência.

Os autores que se dedicaram ao tema da dependência utilizam a referida categoria de modo


a privilegiar uma ou outra das relações que a compõem. Mas de modo geral, sobretudo entre os auto-
res das vertentes marxistas, a categoria é utilizada como uma síntese dessas três relações, mesmo
que em nenhum momento seus significados tenham sido explicitados. A ausência de uma análise
explícita sobre os elementos constitutivos da dependência pode dar margem para equívocos e confu-
sões.

Portanto, com o intuito de evidenciar nosso entendimento pela categoria “dependência”, apre-
sentaremos a seguir o significado de cada uma dessas relações que a compõem e a forma como se
70

manifesta nas transações econômicas entre os países do caso em estudo. E para desmistificar esse
conceito, começaremos pela sua essência, pelo que lhe dá sentido, que é a relação de exploração.

4.1.1 Exploração dos desiguais

A relação de exploração presente na dependência é apontada exclusivamente por autores


das vertentes marxistas da teoria da dependência. Na vertente neomarxista, Marini, ao apontar o que
chamou de intercâmbio desigual, ou seja, a divergência entre valor e preços que atuaria no sentido
de prejudicar os países em posição periférica no comércio internacional, faz referência a um processo
de transferência de excedentes entre estes. No caso da vertente cardosiana, a relação de exploração
subjacente à condição de dependência encontra-se implícita na análise, sem que seus autores te-
nham dado muita ênfase em suas origens e seus mecanismos.

O reconhecimento da relação de exploração entre países é necessário para a compreensão


do papel funcional dos países periféricos para a acumulação de capital nos países centrais. Se não
há situação de exploração, o papel desempenhado pelos países periféricos poderia ser facilmente
internalizado nos países centrais, ou então poderia ser dividido entre os países que compõe o núcleo
do capitalismo mundial.

Mas apenas a exploração entre países permite a existência de nações com elevado padrão
de vida para a classe trabalhadora. A inobservância desse fenômeno levou os autores cepalinos a
apontar a situação de dependência como um processo derivado de uma distorção das estruturas
internas das sociedades periféricas, sem uma relação funcional para os países centrais.

Vejamos, pois, em que consiste esse processo de exploração e como ela poderia ser captada
a partir das relações comerciais entre Brasil e EUA.

O capitalismo é um modo de produção baseado na exploração do proletariado, na exploração


daqueles que são despossuídos dos meios de produção. O proletário se relaciona enquanto classe
com a classe capitalista, em um processo que permite a estes a extração da mais valia daqueles, ou
seja, a geração de um valor que excede o quantum de trabalho socialmente necessário para a repro-
dução da classe trabalhadora e que é apropriado pela classe capitalista.

A exacerbação do liberalismo econômico que caracteriza o fenômeno da mundialização ob-


servado no mundo contemporâneo permite que as classes internas de um país se relacionem direta-
mente com as classes de outros países. Assim, ampliam-se as possibilidades de relações entre as
classes capitalistas de dois países e entre uma classe capitalista estrangeira com uma classe traba-
35
lhadora local .

Com essa aproximação, as barreiras geográficas, políticas e culturais que antes separavam
os modos de produção em unidades nacionais passam a se desvanecer. O capital industrial interna-

35
No âmbito dos países capitalistas que ocupam locais de destaque nas relações econômicas internacionais, não se observa a
liberdade da classe trabalhadora estrangeira em optar por se relacionar com a classe capitalista de lá, mas apenas o contrário
– um fenômeno que deixa muito claro que, uma vez sendo o capital o sujeito histórico do capitalismo, é a ele que se refere o
liberalismo apregoado pela teoria econômica tradicional, e não aos indivíduos.
71

cionaliza-se, de modo que os elementos da lógica capitalista passam a ser aplicados além das fron-
teiras nacionais, ampliando o impacto das relações econômicas para além das relações de comércio
internacional.

Analisaremos as possibilidades da exploração entre países como resultados de dois proces-


sos distintos: da internacionalização do capital industrial; e da aplicação da lei do valor ao próprio
processo de trocas internacionais.

Para vermos como a lógica do capital industrial se modifica, analisá-la-emos decompostas em


suas partes constitutivas, ou seja, nas “formas específicas de funcionamento do capital industrial”,
que, conforme aponta Marx (1983a, p. 53) seriam: “nos estádios de circulação [...] a de capital-
dinheiro e a de capital-mercadoria; no estádio de produção, a forma de capital produtivo”.

O capital produtivo é a forma do capital que busca sua valorização através da extração de
mais valia, ou seja, da apropriação de trabalho não pago, trabalho que excede o valor da força de
trabalho. Essa forma do capital é internacionalizada quando o capital industrial, inicialmente fruto da
acumulação em determinada sociedade nacional, é impelido para fora dos limites da nação para inici-
ar um ciclo de acumulação em outro país. Ele pode ser remetido para o exterior na forma de capital
dinheiro ou de uma combinação deste com a forma de capital mercadoria (meios de produção), de
modo que sempre uma parcela desse capital se transfere na forma de dinheiro, para finalizar a “fase
precursora e introdutória do [...] estádio de funcionamento do capital produtivo” (MARX, 1983a, p. 38).
Mas a transferência do capital para solo estrangeiro preserva, nessa forma, tanto a propriedade como
o controle nas mãos de seus possuidores originais36.

O que impulsiona o capital produtivo para países estrangeiros é a busca por uma maior ren-
tabilidade daquela proporcionada em solo nacional. No caso, a maior rentabilidade pode ser proporci-
onada por uma redução dos custos provenientes de uma aproximação dos mercados tanto consumi-
dores quanto fornecedores. Atua nesse sentido a redução dos custos com transporte do produto final,
além da suplantação de possíveis barreiras fiscais. Tais elementos, a despeito de não ampliarem a
geração de excedente, elevam a taxa de lucro do capital industrial.

Outra fonte importante de ampliação da rentabilidade desse tipo de capital, e talvez a mais
significativa, é a possibilidade de o capital poder usufruir de taxas de mais valia maiores do que as
encontradas em seu país de origem, permitindo a intensificação do processo de reprodução amplia-
da. Em outras palavras, o capital industrial encontra nas nações a que se dirige uma força de trabalho
cujo valor é menor do que a existente em seu país de origem, ou que gera uma quantidade de valor
maior.

Por esses motivos, ao se direcionar para outro país, normalmente o capital não transfere to-
dos os elementos de seu ciclo produtivo. Apenas algumas partes são instaladas em solo estrangeiro,
podendo ser tanto uma parte intermediária do processo produtivo como a parte final. Mas, via de re-
gra, os processos produtivos que são internacionalizados possuem como exigência um tipo de traba-
lho que é mais próxima do trabalho simples do que a média da oferta no país de origem.

36
O que o diferencia da forma de capital de empréstimo, que será visto em seguida.
72

De todo modo, a mais valia que esse capital estrangeiro expropria dos trabalhadores pode ser
remetida para seu país de origem ou então reinvestida no país hospedeiro. O que se observa, nor-
malmente, é que passa a existir um fluxo regular de mais valia, na forma de lucro, para o país de
origem.

Na falta de um indicador mais adequado, podemos utilizar o Investimento Estrangeiro Direto


(IED) para avaliar esse processo de internacionalização do capital industrial norte-americano no Bra-
sil. É caracterizado como IED todo o investimento para implantação de novos empreendimentos,
aquisição de empresas e ações ordinárias (com direito a voto) acima de 10% do total da empresa
local.

Nas relações econômicas entre Brasil e Estados Unidos, observa-se a existência de um fluxo
contínuo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) líquido no sentido dos EUA para o Brasil (Gráfico
4.1). Podemos observar que, para os anos em que há dados disponíveis, esse influxo de capital para
o Brasil é sempre maior do que a quantidade de capital brasileiro que se direciona para os EUA na
mesma modalidade.

Gráfico 4.1 – Fluxo líquido de Investimento Estrangeiro Direto entre Brasil


e Estados Unidos conforme país de origem (em US$ bilhões de 2000)

Fonte: FIRCE/CONAP até 1995, Banco Central do Brasil de 1996 em diante. Cálculo próprio.

Desconsiderando-se a brusca redução dos fluxos de investimento que pode ser observada
em 199537, observamos duas quedas significativas do IED no período analisado. A primeira consiste
em uma tendência de queda que se inicia em 2000 e finaliza em 2003. Provavelmente deve-se à
crise das empresas “ponto com” que ocorreu no decorrer do ano 2000, seguido pela crise gerada
pelos atentados de 11 de setembro de 2001.

O outro período de queda no fluxo de IED ocorreu na recente crise financeira de 2009. Ob-
serva-se que a mesma teve um impacto muito menos significativo do que o ocorrido no período de
2000 a 2003. Mesmo assim, fica patente que 1) há uma tendência a se ampliar o fluxo de IED para o
Brasil proveniente dos EUA; e 2) essa tendência foi muito mais significativa na década de 1990, per-
dendo força na década seguinte.

Comparando com os fluxos de IED entre o Brasil e EUA com o Gráfico 4.2 que mostra os flu-
xos entre o Brasil e o restante do mundo, excluindo o país norte-americano, observamos que os EUA

37
A causa provável dessa variação do fluxo em 1995 é a crise mexicana que ocorreu no biênio 1994-1995 e que provavelmen-
te contagiou as relações econômicas entre o Brasil e o resto do mundo. Como se trata de um fenômeno que não está diret a-
mente relacionado com a economia brasileira ou estadunidense, nos absteremos de aprofundar as análises sobre esse ponto.
73

têm perdido participação em todo IED direcionado para o Brasil durante as duas últimas décadas. Em
1991, o IED proveniente dos EUA representavam cerca de 36% de todo o IED recebido pelo Brasil.
Já em 2010, esse percentual não passa de 12%. Mas o dado verdadeiramente relevante é que, a não
ser pelo ano de 2006, em que o Brasil remeteu mais investimento direto ao exterior do que recebeu,
existe uma tendência a se ampliar a quantidade de capital estrangeiro no país, tanto proveniente dos
Estados Unidos quando do restante do mundo.

Gráfico 4.2 – Fluxo líquido de Investimento Estrangeiro Direto entre Brasil


e resto do mundo conforme origem (em US$ bilhões de 2000)

Fonte: FIRCE/CONAP até 1995, Banco Central do Brasil de 1996 em diante. Cálculo próprio.

Claro que essa tendência deve gerar um fluxo no sentido inverso na forma de lucro e que
também tenderá a se ampliar. O Gráfico 4.3 apresenta os dados das remessas líquidas de lucro do
Brasil para todo o mundo (inclusive os Estados Unidos) e do Brasil para os EUA. A tendência, além
de ser crescente, evidencia que os investimentos norte-americanos captam cerca de 40% de todo o
lucro que o Brasil envia ao exterior. Em 2010, a remessa de lucros para o exterior representou 1,13%
do PIB, sendo que destes, 0,47% foram direcionados para os EUA.

Gráfico 4.3 – Remessas líquidas de lucro do Brasil para o exterior


(em US$ bilhões de 2000)

Fonte: Banco Central do Brasil e U.S. Bureau of Economic Analysis. Cálculo próprio.

O motivo que atrai esses capitais para o Brasil parece ser, sobretudo, o anseio de participar
do mercado interno. Cerca de 85% da produção dessas empresas é direcionada para o mercado
interno (78% no caso dos Estados Unidos) 38. Independente do fato desse fluxo se interessar pelo
mercado consumidor ou pela baixa remuneração da força de trabalho local, a questão é que a insta-

38
Dados do Censo de Capitais Estrangeiros no País realizado em 2005 pelo Banco Central do Brasil, último ano em que há
dados disponíveis.
74

lação de capitais norte-americanos em solo brasileiro gera um fluxo de mais valia na forma de lucro
em direção aos EUA.

Já no estágio da circulação, o capital industrial se internacionaliza enquanto capital dinheiro e


capital mercadoria. O que nos interessa aqui é a forma autônoma do capital portador de juros, deriva-
da do capital dinheiro (mas também aplicável ao capital mercadoria) e do seu desdobramento: o capi-
39
tal fictício .

O capital portador de juros surge a partir do momento em que o capital-dinheiro torna-se ele
mesmo uma mercadoria – a mercadoria capital40. Sendo assim, o proprietário do dinheiro cede o
mesmo a outro capitalista (D – D), que será responsável em por em marcha o processo de acumula-
ção. O resultado desse processo, D’, é composto pelo montante inicial, que deve ser integralmente
devolvido ao prestamista, além do adicional da mais valia, ΔD, que será dividido entre o prestatário,
na forma de lucro, e o prestamista, na forma de juro. Esse movimento do capital portador de juros
expressa-se conforme a equação:

D – D – M – D’ – D’ (1)

Esse processo aparece para o proprietário do capital em sua forma resumida D – D’, mistifi-
cando, assim, a origem da mais valia. Contudo, esse movimento só faz sentido se aquele que pega
emprestado inverte esse dinheiro na forma de capital, ou seja, converte a mercadoria capital em capi-
tal dinheiro. De todo modo, o que vale notar é que tanto a parte inicial da equação (1) como a parte
final (D – D e D’ – D’), que podem ser resumidos na forma D – D’, não representam troca de equiva-
lentes. De fato, não há troca nesse conjunto de transações, mas apenas a cessão temporária do direi-
to a uso desse montante de dinheiro e o juro é apenas uma parte do lucro, i.e. da mais valia, com a
qual o capitalista é obrigado a remunerar o dono efetivo do capital41.

No caso de ser o prestamista um capitalista de país estrangeiro, pode ele remeter o juro que
recebe pela cessão do direito ao uso de seu capital para o país de origem. Não tivesse a quantidade
de capital dinheiro disponível para empréstimo relacionado com o grau de acumulação de uma de-
terminada economia, ou seja, com o nível de acumulação de “capital real”, essa forma não teria qual-
quer interesse para nossos estudos, pois ou o fluxo de capitais de empréstimo entre países seria
equilibrado, ou flutuaria ao saber de elementos que não se relacionam com as diferenças objetivas
que estamos aqui considerando.

Essa relação entre a acumulação de capital dinheiro e de capital real deve-se ao fato de que
a todo o momento em que o capital precisa converter-se na forma dinheiro, ele passa a compor fun-
dos que, devido ao desenvolvimento do sistema de crédito, tornam-se disponíveis para empréstimo.

39
Deixaremos de lado as formas autônomas do capital comercial e do capital financeiro por considera-los pouco significativas
no cenário econômico atual.
40
Como acabamos de afirmar, o capital mercadoria também pode assumir a forma de capital portador de juros. Mas, como
afirma Marx (1985c, p. 398), “todo capital emprestado, qualquer que seja a forma dele, como que a natureza do valor-de-uso
modifique o modo de devolução, é sempre forma particular do capital-dinheiro, pois o que se empresta então é sempre deter-
minada soma de dinheiro sobre a qual se calculam os juros”.
41
“Não se transfere a propriedade, pois não há troca, não se recebe equivalente. O retorno do dinheir o do capitalista industrial
para o prestamista apenas completa o primeiro ato, a cessão do capital” (MARX, 1985c, p. 401).
75

Somam-se a esses fundos o dinheiro destinado para o consumo, provenientes das rendas que se
gastam de forma parcelada.

O excesso de capital dinheiro disponível para empréstimo diante do capital real em circulação
pressiona para baixo as taxas de juros dos países com maior grau de acumulação. Por esse motivo, o
capital flui, então, para os países que dispõem de uma menor oferta de fundos e, portanto, possuem
taxas de juros mais elevadas. Em sentido inverso ao do fluxo de capital dinheiro para empréstimo,
surge um fluxo de juros, que consiste na apropriação de parte da mais valia gerada no país depen-
dente.

De tal forma, em países que possuem um grau similar de acumulação de capital os fluxos de
juros tenderão a se compensar. Mas, no caso de dois países que possuem graus distintos de acumu-
lação de capital, aquele que apresenta menor quantidade de capital disponível na forma de mercado-
ria capital (país periférico), ou seja, de capital portador de juros, deve apresentar um fluxo sempre
desfavorável de juros em direção do outro país (país central).

Soma-se às remessas de juros para remunerar a mercadoria capital os juros que devem re-
munerar também o capital fictício, aquela parcela de empréstimos que não representam a remunera-
ção de um capital real. O capital fictício surge da exacerbação da lógica do capital portador de juros.
“A forma do capital produtor de juros faz que toda renda monetária determinada e regular apareça
como juro de um capital, derive ela ou não de um capital” (MARX, 1985c, p. 534). Ao se capitalizar
essa receita periódica à taxa média de juro, constrói-se capital fictício (MARX, 1985c, p. 536), de mo-
do que “desaparece o último vestígio de conexão com o processo efetivo de valorização do capital e
reforça-se a idéia de ser o capital autônomo que se valoriza por si mesmo” (MARX, 1985c, p. 537).

Esse é o caso da dívida pública e do capital acionário. No caso da dívida pública, uma deter-
minada soma de dinheiro é adiantada ao Estado, que o gasta de modo não produtivo (ou seja, de
modo a não gerar mais valia). Nesse caso, o prestamista adquire o direito transferível de ser remune-
rado a juros pelo montante do capital emprestado. Fica claro que o dinheiro adiantado no empréstimo
não constitui capital, já que não foi utilizado para iniciar qualquer ciclo de acumulação. Além do que,
tendo sido dispendido pelo Estado, tal quantia não existe mais, de modo que o título de dívida em
propriedade do prestamista se constitui em um capital “ilusório, fictício” (MARX, 1985c, p. 535).

A remuneração desse tipo de capital fictício não consiste necessariamente de mais valia. Sua
fonte vem da arrecadação do governo que pode ser obtida por meio da tributação das empresas –
situação em que é fruto de uma dedução da mais valia que remunera o capitalista – ou das contribui-
ções de pessoas físicas – caso em que representaria apenas uma quantia de valor cristalizada na
forma social, o dinheiro. De todo modo, o fluxo de recursos direcionado para a remuneração desse
capital que não é real constitui um quantum de valor que se transfere.

O capital acionário, por sua vez, possui origem em um capital real, que de fato é posto para
participar do ciclo de acumulação de capital. Esse capital se converte em um título que dá direito ao
seu possuidor de obter como remuneração uma parte da mais valia captada pelo empreendimento.
76

Mas esse capital não existe duas vezes, uma como valor-capital dos títulos,
das ações, e outra como o capital efetivamente empregado ou a empregar
naquelas empresas. Só existe na última forma, e a ação nada mais é que tí-
tulo de propriedade sobre a proporção da mais valia a ser realizada por in-
termédio desse capital (MARX, 1985c, p. 537).

Seu caráter de capital fictício torna-se mais evidente na medida em que a remuneração do tí-
tulo excede a taxa de juros corrente, de modo que o processo de capitalização dessa renda resulte
em um valor desconexo com o valor do capital real utilizado no empreendimento.

Gráfico 4.4 – Remessa de juros entre Brasil e todo o mundo


(em US$ bilhões de 2000)

Fonte: Banco Central do Brasil. Cálculo próprio.

As remessas líquidas de juros a todo o mundo são apresentadas no Gráfico 4.4, a seguir.
Vale destacar que, conforme a definição anterior, acrescentamos aos juros os lucros que remuneram
investimentos estrangeiro em carteira (capital acionário)42. O que podemos observar é que a quanti-
dade de recursos destinados à remuneração do capital portador de juros e do capital fictício apresen-
ta uma tendência crescente.

O período de maior crescimento desse tipo de rendimento foi durante a década de 1990,
momento em que a economia brasileira sofreu um forte processo de abertura econômica. Esse fluxo
parece ter se estabilizado a partir da década de 2000, mas, em termos líquidos, a remessa de juros
ao exterior tem diminuído devido à ampliação dos fluxos em direção ao Brasil a partir de 2006.

Gráfico 4.5 – Remessa de juros entre Brasil e Estados Unidos


(em US$ bilhões de 2000)

Fonte: U.S. Bureau of Economic Analysis. Cálculo próprio.

42
Consiste na remuneração de ações preferenciais ou de ações ordinárias que não somem 10% do capital total da empresa.
77

Com relação aos Estados Unidos (Gráfico 4.5), cujos dados só estão disponíveis a partir de
1999 em diante, podemos observar, também, que as remessas de juros em termos líquidos para
aquele país têm se mantido estável durante o período analisado. Por esse motivo, tem se reduzido o
total que esses fluxos líquidos representam do PIB brasileiro – 0,09% de um total de 0,79% enviados
ao exterior em 2010, contra 0,27% de um total de 2,75% enviados ao exterior em 1999.

Podemos observar ainda, por meio do Gráfico 4.5, que esses fluxos de juros sofreram fortes
reduções após o ano 2000, provavelmente como resultado da crise das empresas “ponto com” e dos
atentados de 11 de setembro, e no ano de 2009, como resultado da crise financeira que atingiu os
EUA nesse período.

No momento da crise, quando os ciclos de acumulação do capital real se interrompem, há


uma redução do crédito comercial pelo fato de se amontoarem capital na forma de mercadoria, de ter-
se rompido a confiança na fluidez do processo de reprodução e pela redução na procura desse tipo
de crédito (MARX, 1985c, p. 555). Por esses motivos, no momento das crises, há uma redução do
capital de empréstimo encaminhado para os países periféricos.

No entanto, logo após o momento inicial da crise, esse capital de empréstimo passa a existir
em excesso, pois a parte do capital que se encontra na forma de capital dinheiro (ou que se reverte a
essa forma durante o período da crise) não se encontra disposta a iniciar outro ciclo de acumulação.
Essa sobra de capital pressiona a taxa de juros para baixo de modo que, mesmo se reestabelecendo
os fluxos de capital entre os países, os fluxos de juros que vão em ambas as direções se reduzem.

Além da internacionalização do capital, a exploração subjacente às relações econômicas in-


ternacionais também deriva da aplicação da lei do valor em escala internacional. A lei do valor, lei que
estabelece que as trocas sejam realizadas entre equivalentes, entre uma soma de mercadorias que
possuam a mesma quantidade de trabalho socialmente necessário para sua produção, só pode ter
validade quando as trocas são um fenômeno frequente. Por esse motivo, alguns autores apontam
que no comércio internacional haveria certa dificuldade em se operar essa lei (CARDOSO; SERRA,
1980). Mesmo que essa tenha sido a realidade no período em que tal crítica era realizada, argumento
que não nos parece válido, ele se mostra bem infundado para a análise do comércio internacional
hoje, dado o montante das trocas de mercadorias entre os países.

Mas a lei do valor, ao mesmo tempo em que estabelece a equivalência entre as mercadorias,
autonomiza o valor na forma do dinheiro, e estabelece a forma adequada de expressão da magnitude
do valor das mercadorias como a forma preço.

A possibilidade de divergência quantitativa entre preço e magnitude de va-


lor, ou do afastamento do preço da magnitude de valor, é, assim, inerente à
própria forma preço. Isto não constitui um defeito dela, mas torna-a a forma
adequada a um modo de produção, em que a regra só se pode impor atra-
vés da média que se realiza, irresistìvelmente, através da irregularidade
aparente.

A forma preço não só admite a possibilidade de divergência quantitativa en-


tre magnitude de valor e preço, isto é, entre magnitude de valor e sua pró-
pria expressão em dinheiro, mas também pode esconder uma contradição
qualitativa, de modo que o preço deixa de ser expressão do valor, embora
78

dinheiro seja apenas a forma do valor das mercadorias (MARX, 1985a, p.


115).

A divergência quantitativa a que alude Marx diz respeito ao fato de que os preços podem ex-
pressar magnitudes divergentes do valor social de cada mercadoria. Algumas das circunstâncias que
levam a essa divergência são anuladas, em longos períodos, por serem as que fazem os preços gra-
vitarem em torno da magnitude do valor (como, por exemplo, nas flutuações entre oferta e demanda).
Nesse caso, a lei do valor teria validade na média, não no caso individual. Mas, de todo o modo, não
deve se relacionar de forma significativa com as divergências entre o grau de acumulação de cada
país.

A despeito disso, outros fenômenos permitem um distanciamento dos preços com relação à
magnitude do valor das mercadorias, sem implicar em um retorno a média, também tomam lugar no
sistema de trocas do capitalismo, como é o caso da transformação do valor em preços de produção –
derivada do processo de formação de uma taxa geral de lucro – e da mais valia extraordinária.

Impulsionado pelo desejo de ampliar seus lucros, o capitalista busca a ampliação da força
produtiva do trabalho, ou seja, a produção de uma maior quantidade de produto com uma mesma
quantidade de trabalho. Ao alcançar tal ampliação da produtividade, o capitalista precisará, para cada
trabalhador, de uma maior quantidade de capital constante – seja na forma de capital fixo, hipótese
em que a produtividade aumenta devido ao uso de novas máquinas e equipamentos, ou circulante,
quando aumenta-se a quantidade de matéria-prima necessária para a produção de uma maior quan-
tidade de mercadorias.

Uma vez que consegue produzir uma quantidade maior de produtos com a mesma quantida-
de de trabalho, o fenômeno que o capitalista não observa é que seus produtos passam a conter indi-
vidualmente uma quantidade de trabalho cada vez menor, de modo que esta irá divergir da quantida-
de de horas socialmente necessárias para a produção da referida mercadoria. Ou seja, “[...] o valor
individual de cada uma dessas mercadorias fica então abaixo de seu valor social, isto é, custa menos
tempo de trabalho do que o imenso volume dos mesmos artigos produzidos nas condições sociais
médias” (MARX, 1985a, p. 365). Melhor para o capitalista, que obterá uma quantidade maior de valor
do que a que lança no mercado, visto que “[...] o verdadeiro valor de uma mercadoria [...] não é o
valor individual e sim o social” (MARX, 1985a, p. 365).

Mas, de onde vem esse valor excedente, essa mais valia extra? Uma vez que a magnitude do
valor é determinada pela quantidade de horas socialmente necessárias para a produção de uma mer-
cadoria, e que entram nesse cômputo tanto as horas do trabalho mais produtivo quanto a do trabalho
menos produtivo, o mesmo montante que o capitalista inovador receberá a mais pelos seus produtos
será reduzido da receita daqueles que, agora, produzem com uma produtividade abaixo da média da
sociedade43. Por fim, quem paga a mais valia extra é o comprador, mas a massa de compradores não
é penalizada, pois o que essa massa paga a mais para um capitalista, paga a menos para outro.

43
“[...] Quando a oferta das mercadorias ao valor médio, isto é, ao valor da massa situada entre aqueles dois extremos, satisfaz
a procura corrente, realizam as mercadorias, de valor individual abaixo do valor de mercado, mais-valia extra ou superlucro,
enquanto as de valor individual acima do valor de mercado não podem realizar parte da mais-valia nelas contida” (MARX,
1983b, p. 202).
79

A mais valia extra persiste até que a nova técnica de produção se difunda para todo o setor.
Mas antes disso, podemos observar outro fenômeno que acontece de modo concomitante. A busca
pela mais valia extra amplia a composição orgânica média do setor em que se dá a inovação. Supon-
do que partimos de uma situação em que todos os diversos setores da economia possuíam uma igual
composição orgânica e taxa de exploração do trabalho, poderemos observar que o setor inovador
verá reduzida sua taxa de lucro média.

Essa redução da taxa de lucro ocorre pelo fato de ela ser calculada sobre todo o capital adi-
antado (tanto constante quanto variável). Como vimos, a massa de lucro do setor inovador se mante-
ve a mesma (já que o ganho de um capitalista foi compensado pela perda de outros), mas a quanti-
dade de capital constante (fixo e/ou circulante) utilizada pelo capitalista inovador aumentou. Assim,
uma mesma quantidade de lucro irá remunerar uma quantidade crescente de capital, o que resulta
em uma menor taxa de lucro média.

Inicia-se, então o processo que iguala as taxas de lucro de todos os setores:

[...] O capital [...] deixa o ramo com baixa taxa de lucro e lança-se no que
tem taxa mais alta. Com essa migração ininterrupta, em suma, repartindo-se
entre os diferentes ramos segundo sobe ou desce a taxa de lucro, o capital
determina uma relação entre a oferta e a procura, de tal natureza que o lu-
cro médio se torna o mesmo nos diferentes ramos [...] (MARX, 1983b, p.
221).

Portanto, parte do capital que está presente no setor inovador irá se direcionar para os seto-
res que possuem uma maior taxa de lucro. Qual parte será essa? Provavelmente aquele que apre-
senta uma composição orgânica menor que a média do setor (e, portanto, uma taxa de lucro menor
do que a média do setor).

O abandono pelo capital de menor composição orgânica causa dois efeitos no setor de onde
se desloca: primeiro, a redução da oferta de mercadorias impulsionará os preços desse setor para
além da magnitude do valor; segundo, a composição orgânica média irá se elevar. Esses dois efeitos
possuem impacto distintos na taxa de lucro do setor, sendo que o resultado final dependerá da po-
tência de cada um deles.

Enquanto isso, o setor que recebe o novo capital tem sua oferta de mercadorias ampliada, o
que pressionará seus preços para baixo da magnitude do valor. Desse modo, a taxa de lucro do setor
receptor se reduz. Nesse cenário, a transferência de capital de um setor a outro irá se repetir até que
a taxa de lucro dos dois setores se iguale. No fim, haverá um setor inovador, que apresentará preços
acima da magnitude do valor de suas mercadorias, e outro setor que apresentará preços abaixo da
magnitude do valor.

Assim como a mais valia extra, quem paga por essas diferenças é o consumidor, mas em
conjunto não sofrem qualquer efeito, pois o preço que excede em um setor se compensa pelo que se
reduz em outro. Os preços que geram essa igualdade entre as taxas de lucro são chamados de pre-
ços de produção. Como aponta Marx (1983b, p. 221) “o nivelamento contínuo das disparidades in-
cessantes é tanto mais rápido 1) quanto mais móvel for o capital, quanto mais fácil se transferir de um
ramo ou de um local para outro, e 2) quanto mais rápida se puder fazer, de um ramo ou de um local
80

para outro, a transferência da força de trabalho”. Por isso, fica claro que não significa que a taxa de
lucro de todos os setores seja igual, mas que no capitalismo operam forças econômicas que pressio-
nam essas taxas para um mesmo ponto. Outros elementos existem que irão alterá-las ou dificultar
esse processo de convergência.

Além disso, Marx ainda aponta: “esse nivelamento encontra obstáculos maiores, quando ra-
mos de produção numerosos e importantes, explorados por métodos não capitalistas [...] se inter-
põem entre as empresas capitalistas e com elas se entrelaçam“ (MARX, 1983b, p. 221). O limite da
expansão do capitalismo mundial é, portanto, um limite também para a formação de uma taxa média
de lucro entre todas as nações. Por isso, podemos imaginar que a ocorrência desse processo em
escala global é muito mais significativa na atualidade do que no momento histórico em que Marx es-
creveu aquelas palavras. Vejamos, pois, como isso ocorre no mundo de hoje.

Com a ampliação das relações comerciais internacionais, esse fenômeno passa a ocorrer em
escala mundial, já que a oferta mundial de dada mercadoria irá influenciar os preços dessa mesma
mercadoria em todos os mercados que estejam conectados com essa rede de comércio, ou seja, em
todos aqueles que concorram para a formação do valor social da mesma. E ainda, o grau de acumu-
lação de capital em cada país será decisivo para determinar qual terá preços de produção acima ou
abaixo da magnitude do valor de suas mercadorias. Exemplifiquemos a questão com a hipótese de
que ocorra alguma inovação em algum setor de produção que exista apenas nos EUA 44. A ampliação
da composição orgânica desse setor reduzirá sua taxa de lucro média, o que fará com que parte do
capital desse setor se direcione para algum outro de composição orgânica menor.

Esse outro setor poderá ser tanto em solo estadunidense quanto em qualquer outro lugar do
mundo. Independentemente de onde ocorra essa produção, esse deslocamento de capital irá ampliar
os preços do setor que abandona e reduzir os preços do setor que o recebe no mesmo montante.
Desde que essas mercadorias possam ser ofertadas no mercado mundial, o efeito desse desloca-
mento afetará todos os países que produzem o mesmo produto – mesmo aqueles que não comercia-
lizam com os Estados Unidos, mas que estão conectados de alguma forma nessa rede de comércio
internacional. Nesse exemplo, a ampliação dos preços no setor inovador exclusivo do país central
será compensada por uma redução dos preços em setores presente em vários outros países.

Outra hipótese seria uma inovação em um setor não exclusivo dos Estados Unidos. Nesse
caso, os demais países que possuem capitais investidos no mesmo setor verão seus preços reduzi-
dos na medida da mais valia extra capitada pelas empresas norte-americanas. Assim, são as empre-
sas estrangeiras – aquelas que possuem uma composição orgânica menor do que a média de seu
setor e, portanto, uma taxa de lucro também menor do que a média do setor – que irão se deslocar
para outros setores.

Nesse caso, enquanto o capital presente nos Estados Unidos tende a se concentrar nos seto-
res de maior composição orgânica, aqueles países com menor acúmulo de capital – e, portanto, me-
nor capacidade de inovação – concentrarão sua produção nos setores de menor composição orgâni-

44
Manteremos aqui a hipótese das taxas de exploração iguais apenas para facilitar a exposição.
81

ca. O resultado final é uma taxa de lucro que tende a se igualar em todos os países, mas preços que
tendem a ser maiores do que os valores sociais das mercadorias nos países centrais, sendo o contrá-
rio no caso dos periféricos.

Desse modo, mesmo que o país periférico não mantenha relações comerciais com o país
central, desde que as mercadorias de ambos sejam cotadas nos mesmos mercados, ele irá contribuir
para a ampliação da riqueza do centro. Na prática, isso se concretizará em um fluxo de valor – mas
na sua forma originária de valor (horas de trabalho), não na forma diretamente social (dinheiro) – no
sentido dos países periféricos para os países centrais.

Com o intuito de verificar se essa transferência ocorre na prática, levantamos os dados acer-
ca das horas de trabalho dedicadas aos produtos de exportação nas relações entre Brasil e Estados
45
Unidos (considerando-se apenas o trabalho produtivo) . Podemos observar que, nos dados apresen-
tados no Gráfico 4.6, para todo o período em que há dados disponíveis, as exportações brasileiras
superaram as norte-americanas em termos de horas trabalhadas.

Gráfico 4.6 – Horas trabalhadas nas exportações entre Brasil e


Estados Unidos (em bilhões de horas trabalhadas)

Fonte: Banco Central do Brasil, IBGE, IPEA, U.S. Bureau of Economic Analysis, U.S. Bureau of
Labor Statistics, U.S. International Trade Commission. Cálculo próprio.

Comparando o saldo comercial em horas trabalhadas (Gráfico 4.6) com o saldo comercial em
dólares (Gráfico 4.7), vemos que, como é de se esperar, as exportações líquidas em termos de horas
trabalhadas sofre grande influência das exportações líquidas em termos monetários. Mas, mesmo nos
períodos em que houve um déficit nos saldos monetários, o saldo em horas permanece superavitário.

45
Tais dados foram levantados a partir da matriz insumo e produto calculadas pelo IBGE (no Brasil) e pelo U.S. Bureau of
Labor Statistics (nos EUA), considerando-se somente os setores produtivos e cruzando essas informações com os dados sobre
as horas trabalhadas em cada setor. Também foram acrescidas as horas trabalhadas na produção dos insumos e no desgaste
do capital. Para o cálculo das horas trabalhadas nas exportações, cruzamos os dados sobre o comércio entre os países, consi-
derando que os exportadores possuem a composição orgânica igual à média de seu setor. Não nos preocupamos, no presente
trabalho, com a consistência estatística de tais dados, visto que nosso objetivo é apenas indicar uma possibilidade de aproxi-
mação do problema, o suficiente para o intuito do presente ensaio. Para a construção de tais dados foram adotados os seguin-
tes pressupostos implícitos (que em uma futura pesquisa deverão ser flexibilizados): 1) todo o trabalho realizado nos setores
produtivos é trabalho produtivo; 2) não há divergência entre a complexidade do trabalho nos diversos ramos da produção; 3)
Não há diferença entre a complexidade do trabalho entre os países; 4) toda parte alíquota do capital possui a mesma composi-
ção orgânica que a média de seu setor.
82

Gráfico 4.7 – Saldo comercial entre Brasil e Estados Unidos


(em US$ bilhões de 2000)

Fonte: U.S. International Trade Commission. Cálculo próprio.

O saldo comercial entre países apresentam, normalmente, variações cíclicas devido ao im-
pacto que constantes déficits ou superávits geram no câmbio. Mas, não é o que observamos em ter-
mos de horas de trabalho. Isso se explica porque a quantidade média de trabalho representada em
US$ 1,00 exportado pelo Brasil é cerca de 13 vezes maior do que a quantidade média de trabalho
representada pelo dólar exportado pelos EUA, demonstrando o claro distanciamento entre preços e
magnitude do valor46.

Durante o período analisado, as exportações líquidas de horas para os Estados Unidos cor-
responderam a uma média de 2,37% das horas trabalhadas em cada ano no Brasil, já o superávit
comercial apresenta uma média de 0,31% do PIB anual do país. A divergência entre essas percenta-
gens evidencia esse mecanismo de transferência de valor por meio dos preços de produção e da
mais valia extra.

Gráfico 4.8 – Evolução da composição orgânica média


(em horas de trabalho)

Fonte: Banco Central do Brasil, IBGE, IPEA, U.S. Bureau of Economic Analysis, U.S. Bureau of
Labor Statistics. Cálculo próprio.

Conforme a hipótese que apontamos, esse intercâmbio desigual seria fruto tanto da mais va-
lia extra captada pelos empreendimentos norte-americanos como da divergência entre magnitude do
valor e preços de produção. O Gráfico 4.8 apresenta evolução da composição orgânica média dos
dois países analisados. Para que ocorra sistematicamente esse processo de transferência de valor

46
Um questionamento plausível sobre a comparação realizada é quanto à possibilidade do trabalhador dos EUA realizar uma
forma de trabalho complexo que represente um múltiplo de um trabalho mais simples realizado pelos trabalhadores brasileiros.
Por outro lado, o distanciamento entre a qualidade dos trabalhos realizados teria que ser demasiado significativa para explicar
plenamente a diferença entre as horas trabalhadas nas exportações dos dois países.
83

via preços, a composição orgânica dos Estados Unidos deve ser sempre mais elevada do que a com-
posição orgânica do Brasil, hipótese que se verifica durante todo o período em que há dados disponí-
veis.

Como é a tendência a igualar as taxas médias de lucro que gera essa divergência entre pre-
ços e valor, não haverá uma necessidade do capital dos países periféricos em compensar a perda de
valor por meio de uma superexploração da força de trabalho, como aponta a tese de Marini. De fato,
como capital, qualquer soma de valor busca se valorizar o máximo que puder. O único limite que en-
contra é o dado pela luta de classes. Assim, o grau de exploração de cada país será fruto da situação
dessa luta (que possui determinantes tanto internos quanto externos) 47.

A diferenciação no grau de exploração entre países irá ampliar as distorções até agora apon-
tadas. O primeiro efeito de uma redução no grau de exploração de um país é o que diz respeito à
modificação na própria qualidade da força de trabalho do mesmo. Um trabalhador capaz de realizar
um trabalho simples e que vê sua remuneração ampliada para além de suas necessidades materiais
de reprodução irá, necessariamente, se reproduzir enquanto trabalhador que executa um trabalho
mais complexo que anteriormente.

O valor da força de trabalho é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário


para a produção das mercadorias necessárias para a reprodução do trabalhador. Mas essa massa de
mercadorias sofre influências de elementos “históricos e morais”, como afirma Marx48. Se, por algum
acaso, amplia-se a remuneração da forca de trabalho para além da magnitude de seu valor, com o
passar do tempo, e a incorporação de novas mercadorias à massa de mercadorias necessárias, o
próprio valor da força de trabalho se altera, tornando-se mais elevado.

No entanto, quando o trabalhador direciona parte dos gastos de modo a ampliar sua capaci-
dade produtiva – como os gastos que despende em educação, saúde, acesso a cultura, etc – a quali-
dade do próprio trabalho que executa se modifica. Seu trabalho compara-se a um trabalho simples
multiplicado, ou seja, passa a ser trabalhador capaz de realizar trabalho complexo.

Essa mudança qualitativa irá amenizar o efeito da redução da taxa de exploração com uma
ampliação da produtividade do trabalho, apesar de provavelmente não poder superá-lo. Ademais, o
país que se vê provido com uma quantidade mais elevada de trabalhadores mais qualificados pode
se especializar em áreas que antes não poderia. Isso porque, a despeito de se reduzir o trabalho
complexo a um múltiplo do trabalho simples no cálculo do valor, a verdade é que nem todo trabalho
complexo pode ser realizado por um conjunto de operações simples.

O segundo efeito da redução do grau de exploração seria a transferência de toda a produção


(ou parte intermediária do processo produtivo) que requer um trabalho mais simples para as regiões
com a maior taxa de exploração. Note que não há qualquer elemento econômico que determine qual
a composição orgânica do capital desse tipo de indústria, podendo ela ser maior ou menor do que a
média do sistema capitalista global.
47
Portanto, se há alguma relação existente entre o grau de acumulação de uma nação e a magnitude da taxa de exploração da
mesma (como nos parece existir), essa relação deve ser buscada nos elementos históricos e não na mera lógica econômica de
cada nação. Por esse motivo, não nos aprofundaremos em estudar essa possível relação no presente trabalho.
48
Cf. citação p. 44-45.
84

Não obstante, é intrínseco ao processo de inovação que o mesmo seja mais facilmente exe-
cutado pelo trabalho complexo. Inclusive, com o contínuo desenvolvimento das forças produtivas, a
49
complexificação do trabalho de aperfeiçoamento das mesmas é historicamente crescente .

A inovação eleva a composição orgânica do capital que, por sua vez, gera uma apropriação
de valor além do contido na mercadoria, seja por meio dos meios de produção ou da mais valia extra
absorvida de setores estrangeiros. Assim, as sociedades que apresentam uma menor taxa de explo-
ração são aquelas mais propensas a se concentrar em ramos de produção que permitam a manuten-
ção de preços acima do valor das mercadorias que lançam no mercado.

Baseado nos dados das horas trabalhadas por ano e estimando a quantidade de horas ne-
cessárias para a reprodução da força de trabalho, projetamos a evolução das taxas de exploração
potencial do Brasil e dos Estados Unidos, levando-se em consideração apenas os setores que de-
sempenham trabalho produtivo. O Gráfico 4.9 apresenta os resultados dessas estimativas. Podemos
observar que os EUA apresentam uma taxa de exploração potencial maior do que a do Brasil para
todo o período da análise.

Isso se explica porque, no período analisado, a quantidade de horas de trabalho necessárias


para a reprodução do trabalhador no país norte-americano foi menor do que no Brasil – em média,
foram necessárias 400 horas de trabalho para a reprodução de um trabalhador por um período de um
ano nos EUA, contra 540 horas no Brasil. A jornada de trabalho média de trabalho foi de 2.050 horas
para um trabalhador norte-americano (42,7 horas por semana, considerando-se 11 meses de trabalho
por ano) contra 2.070 horas para um trabalhador brasileiro (43,1 horas por semana).

Gráfico 4.9 – Evolução da taxa de exploração potencial

Fonte: Banco Central do Brasil, IBGE, IPEA, U.S. Bureau of Economic Analysis, U.S. Bureau of
Labor Statistics. Cálculo próprio.

Não obstante os dados mostrarem que a taxa de exploração é potencialmente maior nos Es-
tados Unidos do que no Brasil, isso não é o que se verifica na prática. Isso se deve ao fato de que os
trabalhadores, em ambos os países, recebem mais do que o valor da força de trabalho, o que se cris-
taliza em um consumo de trabalho improdutivo por parte da classe trabalhadora. Nos Estados Unidos,
para o período analisado, os trabalhadores produtivos receberam cerca de 87,5% mais do que o valor

49
Não é difícil observar que a cada novo paradigma tecnológico desenvolvido pelo capitalismo, há a necessidade de um trab a-
lho muito mais qualificado para a manipulação das novas tecnologias. Desse modo, os países que concentrarem uma maior
capacidade de trabalho complexo, tenderão a concentrar, também, as inovações.
85

da força de trabalho. No Brasil esse percentual foi de apenas 19,4%. O Gráfico 4.10 mostra a evolu-
ção da taxa de exploração efetiva nos dois países.

Gráfico 4.10 – Evolução da taxa de exploração efetiva

Fonte: Banco Central do Brasil, IBGE, IPEA, U.S. Bureau of Economic Analysis, U.S. Bureau of
Labor Statistics. Cálculo próprio.

Assim, podemos chegar a algumas conclusões a respeito da relação de dependência. Em


primeiro lugar, desconsiderando-se as possíveis divergências na intensidade do trabalho, parece que
ambos os países buscam a ampliação da mais valia por meio da mais valia relativa e não a absoluta,
já que a jornada de trabalho apresenta certa estabilidade no período analisado, sendo a queda no
valor pago pela força de trabalho o elemento responsável pela ampliação da exploração.

Além disso, os dados não nos permitem concluir sobre a existência de uma superexploração
da força de trabalho no Brasil, já que até mesmo nesse país a força de trabalho é remunerada acima
de seu valor50. Poder-se-ia, no entanto, falar de uma maior exploração relativa, ou antes, de uma
“subexploração” dos trabalhadores norte-americanos (termo, inclusive que não nos parece muito
adequado). De todo modo, o que permite que os trabalhadores dos Estados Unidos sejam menos
explorados do que os do Brasil, sem gerar uma redução da taxa de lucro do capital norte-americano,
seria exatamente a transferência de valor que aquele país recebe das demais economias periféricas
com que transaciona.

Além da divergência quantitativa entre preço e magnitude do valor, a autonomização do valor


na forma dinheiro permite o surgimento de outra contradição bem mais aguda, a contradição qualitati-
va. Coisas que não são por si mercadorias podem ser ofertadas no mercado em troca de uma soma
de dinheiro, ou seja, mesmo algo que não tenha valor pode ter um preço. Exemplifica Marx (1985a, p.
115):

Coisas que, em si mesmas, não são mercadorias, por exemplo, honra,


consciência etc. podem seus donos considerar alienáveis por dinheiro, e,
assim, receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria. Uma coisa po-
de, formalmente, ter um preço, sem ter um valor. A expressão preço torna-
se, aqui, imaginária, como certas grandezas matemáticas. Além disso, a
forma preço imaginária pode ocultar uma relação de valor verdadeira embo-
ra indireta como, por exemplo, o preço da terra não cultivada, que não tem
nenhum valor, por não se ter nela realizado nenhum trabalho humano.

50
Estamos nos referindo à remuneração média.
86

Mas se não possui valor, como pode, então, ter preço a terra? E como se determina tal gran-
deza? O preço da terra é obtido ao se capitalizar os rendimentos futuros que, por direito, devem ser
pagos a seu proprietário, similar ao processo de formação de capital fictício. Mas a semelhança para
por aí, pois enquanto a natureza do capital fictício está relacionada com a origem de seus rendimen-
tos, assim também está o preço da terra relacionado com a renda fundiária. A despeito de tanto o
capital fictício quanto a terra gerar renda, essa renda possui origem distinta. Mas de onde provém a
renda?

A renda é o “rendimento que deriva de mera propriedade, ou seja, é rentista todo aquele que
tem direito a uma parcela do valor socialmente produzido pelo mero fato de ser proprietário”
(PAULANI, 2011, p. 4). Assim, a renda do capital fictício é derivada da propriedade sobre um direito,
normalmente cristalizado na forma de um título (ex. títulos públicos, ações, etc) que pode ser transfe-
rido para terceiros. Já a renda da terra surge da propriedade “de uma dada porção do globo terrestre”.
No entanto, para gerar renda, essa propriedade precisa se constituir algo monopolizável, para que
possa gerar renda diferencial ou absoluta.

No capitalismo contemporâneo, como apontam alguns autores51, essas fontes de rendimento


(diferencial e absoluta) ganham importância e se apresentam de formas que vão além da renda fun-
diária. Como afirma Paulani (2011, p. 11), “apesar de ser considerada de início como um pecado
contra o capital, a renda (e o rentismo) vem se tornando um traço marcante do processo contemporâ-
neo de acumulação”. A forma específica desse rentismo apontado pelo trabalho de Paulani que nos
interessa no presente ensaio diz referência à renda devida à propriedade intelectual, ou seja, a pro-
priedade monopolizável de um conhecimento ou procedimento que surge na forma de renda absolu-
ta. Afirma a autora:

Marx disse sobre a propriedade fundiária, que ela não produz em si mesma
renda, mas que ela dá a seu detentor o poder de subtraí-la à produção agrí-
cola até o preço dos bens cuja produção ela possibilita sejam altos o sufici-
ente para proporcionar-lhe uma renda, no caso, renda absoluta. Pois pode-
mos dizer o mesmo da propriedade de um bem intangível como o software,
mas que, ao contrário da terra, não se caracteriza pela escassez (que em
última instância é o que proporciona o poder de monopólio inerente à pro-
priedade da terra) e sim pela abundância. O software, justamente pela sua
natureza de bem sem valor (não é preciso trabalho para reproduzi-lo) tem o
caráter de um bem livre, ou seja, abundante, e por isso não deveria ter pre-
ço. Mas quem detém a propriedade intelectual do software tem o poder de
subtraí-lo à produção de outros bens (ou à sua utilização como bem final) se
uma renda não lhe for paga. É essa propriedade juridicamente garantida
que ergue barreiras à utilização do conhecimento objetivado no software, a
menos que uma renda apareça para seu proprietário. [...] A propriedade in-
telectual, ao tornar o conhecimento uma mercadoria e ao torná-la um insu-
mo tão indispensável à produção de todas as outras como o é, por exemplo,
o transporte, obriga a transformação de parte do valor produzido nos demais
setores em renda do saber, subtraindo, portanto, essa parcela de valor do
processo de formação da taxa geral de lucro que engloba todos os demais
setores. Assim, apesar de aparecer formalmente como lucro, o ganho das
empresas que produzem esse tipo de bem é de fato constituído por renda,
uma renda do saber, que se estabelece simplesmente porque alguém se
apresenta como dono do conhecimento e, enquanto tal, exige uma renda

51
Cf. PAULANI, 2011, e TEIXEIRA, 2009.
87

para “liberá-lo” para os demais, Trata-se, portanto, de uma forma moderna


de renda absoluta, a qual vem se tornando cada vez mais importante e se
impondo de modo cada vez mais decisivo (PAULANI, 2011, p. 17).

No entanto, a renda que remunera o “conhecimento”, a “renda do saber”, diverge da renda


absoluta tal como Marx desenvolve no livro III d’O Capital (MARX, 1985d) pelo motivo de que, en-
quanto a renda que se paga à propriedade da terra deriva da característica de ser a mesma monopo-
lizável, a renda que se paga aos elementos intangíveis são resultados de monopólios artificiais, ou
seja, monopólios construídos por instituições jurídicas para beneficiar aqueles que criaram tal “ativo” –
ou melhor, para beneficiar os capitalistas que direcionaram seus recursos para a criação desses “ati-
vos”. Esses monopólios artificiais são garantidos por alguma forma de poder coercitivo, que impede a
adoção de práticas por aqueles que não pagaram pelo direito ao uso, na forma de patentes, direitos
autorais, royalties, etc.

Aqui, se verifica uma conjunção entre fatores políticos e econômicos. Não há qualquer lei ine-
xorável da economia que estabeleça uma relação entre a acumulação de capital com a quantidade de
recursos que o mesmo deverá receber a título desse tipo de rendimento. O que há é uma convenção
jurídica estabelecida sobre um status político que, este sim, é determinado por condições econômi-
cas.

Esse raciocínio se torna claro ao se contrapor os resultados de uma ruptura desse tipo de ins-
tituição jurídica com outra que possua lastro nas relações econômicas. Por exemplo, caso um país
decida interromper os pagamentos a títulos de licenças de uso de patentes, o mesmo poderá conti-
nuar a usar as referidas patentes sem prejuízo para o país originário, posto que a difusão e o uso de
52
patentes não exige qualquer tipo de trabalho por parte daqueles que a deram origem . A única forma
de se impedir seu uso seria por meio de ações coercitivas, frutos de decisões políticas, e não econô-
micas.

Mas, no caso de um país que decida, por exemplo, não remunerar com juros o capital de em-
préstimo, o mesmo será alvo de um fenômeno econômico que é a fuga desse capital. Ele não poderá
utilizar o capital não remunerado sem causar prejuízos ao país de origem do capital (que poderia
direcioná-lo para outro uso). A fuga do capital é um fenômeno econômico, que obedece às leis do
mercado e só poderia ser revertido por decisões políticas coercitivas (como, por exemplo, barreiras à
saída do capital, etc).

Não obstante, como os países que dominam o cenário econômico são aqueles que normal-
mente dominam o cenário político – uma vez que é sobre a estrutura material da sociedade que se
ergue a superestrutura política e jurídica –, os mesmos estabelecem uma série de instituições que
possuem o duplo objetivo de dificultar o desenvolvimento dos países mais pobres e a obtenção de
novos recursos sem a necessária troca de equivalentes.

O Gráfico 4.11 apresenta os recursos líquidos direcionados ao exterior para o pagamento de


royalties, licenças de exploração de patentes, de direitos de marcas e autorais, além do uso e proces-

52
Como afirma Teixeira (2009, p. 439): “[...] a única diferença formal dessa mercadoria conhecimento com relação à terra é o
fato de ela ser reprodutível (não o conhecimento em si, como vimos, mas o substrato material que o transporta), e reprodutível
sem dispêndio de tempo de trabalho, ou com um dispêndio exíguo”.
88

samento de informações. Nota-se que os recursos direcionados para esse tipo de despesa apresen-
tam uma tendência crescente tanto para todo o mundo quanto para os Estados Unidos. No ano de
2010, cerca de 42% de todo o fluxo de valor para atender a esse tipo de despesa que o Brasil direci-
onou para o exterior foi para os EUA, o que representa 0,12% do PIB do país.

Gráfico 4.11 – Pagamentos líquidos de royalties, licenças, direitos autorais e


uso e processamento de informações (em US$ bilhões de 2000)

Fonte: Banco Central do Brasil e U.S. Bureau of Economic Analysis.

Sumarizando, apresentamos aqui a relação de exploração entre países que está contida na
relação de dependência. Essa exploração se dá tanto pela internacionalização do capital na forma de
capital produtivo, capital portador de juros e capital fictício, quanto pela divergência quantitativa e
qualitativa entre preços e magnitude de valor. Esses fenômenos da exploração se relacionariam no
âmbito econômico, com o grau de acumulação de capital de cada país, e no âmbito político, com as
instituições jurídicas internacionais e a luta de classes interna de cada nação.

Em média, podemos observar que a soma desses fenômenos de exploração seriam respon-
sáveis pela transferência de 2,5% de toda riqueza gerada no Brasil para os Estados Unidos. A des-
peito de ser uma magnitude considerável, não parece ser de tal monta que impeça o desenvolvimen-
to do capitalismo brasileiro, relegando-o a uma eterna condição de dependência. Mas, há que se
pesar até que ponto o Brasil não se encontraria em uma posição semiperiférica, capaz de atenuar os
efeitos dessa dependência.

Já para o país norte-americano, se considerarmos que o mesmo mantém relações similares à


brasileira com outras nações em situação de dependência, nos parece plausível inferir que esses
fluxos de valor possuem grande relevância para a manutenção de suas reduzidas taxas de explora-
ção. Isso evidencia, mais uma vez, o papel que os países periféricos desempenham na ampliação da
riqueza dos países centrais e na reversão da tendência a declinar da taxa de lucro.

4.1.2 Subordinação econômica da independência formal

O fantasma da subordinação persegue o imaginário latino-americano desde que os países


dessa região conseguiram romper com os grilhões coloniais que os ligavam formalmente às metrópo-
les europeias. Uma vez formalmente independentes, esses países conseguiriam manter sua autono-
mia diante da força com que outras nações se erguiam no cenário internacional?
89

Muitos teóricos se lançaram na aventura de responder a essa questão essencial. Na área


econômica coube à corrente cepalina dar voz a essa hipótese. Esses autores foram pioneiros ao indi-
car que a inserção internacional dos países da América Latina gerava, para os mesmos, uma dinâmi-
ca econômica que diferia das economias ditas desenvolvidas. A lógica do desenvolvimento depen-
dente, como indica Furtado (1983), permite a subordinação dos países periféricos com o que chamou
de externalização dos centros de decisão.
53
O mesmo princípio foi aproveitado por Cardoso e Faletto (1970) , que o ampliaram um pou-
co, de modo que a influência sobre as decisões de produção poderia ser exercida de modo direto ou
indireto (situação em que o controle do processo produtivo estaria na mão de grupos empresariais
nacionais). Esses autores atrelam, então, o próprio processo de diversificação industrial (que chamam
de “desenvolvimento”) com os interesses de grupos estrangeiros, vinculados ao empresariado nacio-
nal e ao setor público na forma de burguesia de estado.

Na vertente neomarxista da teoria da dependência a subordinação também se faz presente.


Marini utilizou exatamente esse conceito para caracterizar o que entendia por dependência, mas sem
se aprofundar muito em seu significado – apenas sugerindo que se refere a uma capacidade da na-
ção central em modificar as relações de produção dos países subordinados com o intuito de se repro-
duzir essa própria subordinação (MARINI, 2000, p. 109). Além de trabalharem a questão da subordi-
nação no sentido estritamente econômico, outros autores também apontaram os elementos políticos,
culturais e sociais desse fenômeno.

Nosso interesse aqui, no entanto, restringe-se à forma econômica da subordinação, ou seja,


em como um determinado conjunto de relações de produção é capaz de estabelecer o domínio de um
sobre o outro. Vejamos, pois, como podemos compreender a subordinação entre nações dentro do
fenômeno da dependência e como essa subordinação se relaciona com o processo de exploração já
examinado.

A subordinação, enfim, é o processo em que coloca os meios à disposição do sujeito que to-
mará as decisões capazes de modificar o rumo da história. No capitalismo, sistema pautado pela
alienação do trabalho, esse sujeito histórico é o próprio capital. O capital, valor que se valoriza, opta
necessariamente por transformar a sociedade na única direção que lhe dá sentido: na direção da
acumulação perpétua, acumulação sem propósito, acumulação pela acumulação. Portanto, o único
objetivo divisável no capitalismo é a ampliação do capital, do trabalho morto que comanda, aprisiona
e explora o trabalho vivo. Controle sobre o trabalho vivo: esse é o sentido último de toda a subordina-
ção no capitalismo.

Não seria diferente a subordinação entre países no sistema capitalista mundial. A subordina-
ção, como fenômeno da dependência, consiste na sessão do controle sobre o trabalho vivo, o capital
variável, por parte dos países da periferia em favor do centro. A aplicação da força de trabalho passa,
então, a depender de decisões tomadas pelos capitalistas dos países centrais.

53
O conceito de subordinação é o elemento central da relação de dependência estabelecida pela vertente cardosiana. Mas
nela, é denominada de vinculação, termo que, não para confundir, utilizamos com outro sentido (e que será exposto na seção
seguinte).
90

Propomos aqui a análise desse processo de subordinação em duas formas distintas: a que
chamaremos de subordinação real, que se dá na relação entre a classe capitalista estrangeira e a
classe trabalhadora local, e a subordinação velada, que se manifesta como resultado da concorrência
intercapitalista entre os países.

A subordinação real resulta da ampliação da integração econômica internacional e da diver-


gência entre as taxas de exploração entre os países. Ela consiste na expansão do capital estrangeiro
em solo nacional. Como vimos na seção anterior, há uma tendência do capital industrial dos países
centrais em direcionar parte do seu processo produtivo para os mercados periféricos.

Essa tendência coloca uma quantidade cada vez maior da capacidade produtiva dessas na-
ções nas mãos de classes estrangeiras. No Brasil, há muito que o capital estrangeiro na forma de
Investimento Estrangeiro Direto representa uma parte significativa da economia. Estimativas apontam
que esse tipo de investimento representava 43% do estoque de capital e 50% da produção das mil
maiores empresas brasileiras em 1974 (SERRA, 1982).

Tudo indica que em algum momento do desenvolvimento econômico do país a tendência de


expansão do IED se reduziu, mas que voltou a crescer com a abertura econômica da década de
1990. Os dados do censo de capitais estrangeiros no país, levantado pelo Banco Central do Brasil,
indicam que a participação do IED no estoque de capital do país apresentou um crescimento conside-
rável no período de 1995 a 2010 (Tabela 4.1). Além disso, até o ano de 2005, último período em que
os dados sobre a produção dessas empresas estão disponíveis, o IED foi responsável por uma pro-
dução que equivale à aproximadamente 50% de todo o produto da economia brasileira.

Tabela 4.1 – Participação do IED na economia brasileira conforme origem


Estados Unidos Todo o Mundo
1995 2000 2005 2010 1995 2000 2005 2010
No estoque de capial 1,4% 2,6% 2,3% 4,5% 5,3% 10,9% 14,0% 25,1%
Na produção 5,7% 9,1% 6,1% * 26,1% 35,9% 49,7% *
Fonte: Banco Central do Brasil, censo de capitais estrangeiros no país. Dados sobre o estoque de capital do país: IPEA. Cálcu-
lo próprio. * Dados não disponíveis.

Os Estados Unidos são o país que apresentam maior estoque de IED no Brasil (cerca de 18%
do total em 2010). Não obstante, sua participação parece ter decaído após o ano 2000, provavelmen-
te como resultado da mudança de política econômica que se seguiu aos atentados às torres gêmeas
em 11 de setembro de 2001. Mas, como indicamos no Gráfico 4.1, os fluxos de IED voltaram a se
ampliar a partir de 2004. O país norte-americano chegou a manter sobre controle direto cerca de 9%
do produto brasileiro, em 2000, tendo reduzido esse montante para 6% em 2005.

A subordinação real permite aos países centrais moldarem com grande liberdade a estrutura
produtiva do país subordinado. No caso do Brasil, observamos que o principal alvo dos investimentos
provenientes dos EUA concentram-se no setor de serviços (47,9% do estoque de IED em 2005), sen-
do grande parcela direcionada para atividades improdutivas, como o setor financeiro e comercial. O
capital produtivo concentra-se nos ramos da indústria transformação de média-alta tecnologia
(27,4%).
91

Podemos, portanto, observar que, a despeito do coeficiente de exportação dos empreendi-


mentos alvos do IED ser maior do que aqueles puramente nacionais, o foco desse capital é a partici-
pação no mercado interno. Além disso, a quantia de lucro remetida ao exterior parece desproporcio-
nal à participação dessas empresas no produto, o que indica que o capital envolvido nesse tipo de
atividade busca manter o processo de acumulação dentro do país, sem a preocupação imediata de
remeter os lucros ao exterior.

Não obstante, considerando que a lógica que impulsiona o capital para os países periféricos é
a busca por maiores remunerações do que as encontradas nos países centrais, seja por se aproxima-
rem mais do mercado consumidor, por reduzirem certos custos intermediários que existiriam caso a
produção ocorresse em outro país, ou porque a remuneração da força de trabalho local é relativa-
mente menor (e, portanto, a taxa de exploração é maior), o fato é que esses empreendimentos devem
apresentar uma composição orgânica menor do que os investimentos que se mantêm localizados no
país de origem.

Dessa forma, por mais que o Investimento Estrangeiro Direto contribua para ampliar a com-
posição orgânica do país periférico, ele jamais, por definição, irá alçá-la para além da composição dos
países centrais. A subordinação real é, portanto, antes fruto do que causa da exploração, mas ainda
assim não se constitui de qualquer forma em uma contra tendência da dependência.

A subordinação velada, no entanto, desempenha um papel bem distinto na reprodução da


dependência. Ela consiste em se moldar a estrutura produtiva nacional condicionando-a ao mercado
internacional, ou seja, consiste em um impulso presente nos países periféricos de atender a uma
demanda estrangeira, ou se posicionar de determinada forma na divisão internacional do trabalho.

Impulso esse que deriva da necessidade de obtenção de divisas para fazer frente às importa-
ções que demanda. Mas um país não precisa de moeda estrangeira, a não ser para obter produtos
de outras nações. Mas dizer que há uma “necessidade” em se obter divisas, ou seja, em se adquirir
bens estrangeiros, significa dizer que essas mercadorias não podem, por algum motivo, ser alvos de
produção interna.

Essa incapacidade de se internalizar a produção pode ocorrer tanto porque, diante da concor-
rência internacional, a produção de determinada mercadoria não seria viável dentro das fronteiras
nacionais, ou seja, que o nível de produtividade de um país estrangeiro seria tão elevado que torne
sua produção economicamente inviável; como pelo fato do país em questão não ter acesso a algum
elemento necessário para dar início ao processo de acumulação, seja um elemento do capital cons-
tante, como máquinas de determinado padrão tecnológico ou matérias-primas escassas, ou um ele-
mento do capital variável, como uma forma específica de trabalho complexo que o referido país não
consegue reproduzir.

Como vimos na seção anterior, a busca pela remuneração do capital acima da taxa de lucro
média leva os capitalistas a impulsionarem um processo de inovação que tem como resultado a am-
pliação do capital constante dos países centrais em comparação com os países periféricos. É esse
processo de persistente ampliação da composição orgânica que impossibilita os países de menor
92

grau de acumulação de reproduzirem os mesmos ciclos de capital industrial que se realizam nos paí-
ses centrais. O resultado é a especialização dos países periféricos em um conjunto de mercadorias
que se mostra complementar à produção dos países centrais.

Chamamos de “velada” essa forma de subordinação porque as mudanças nas forças produti-
vas do país dependente, a despeito de necessárias, aparecem como uma opção para se adaptar ao
status da concorrência internacional. Assim, o país que possui o maior grau de acumulação de capital
pode influenciar a estrutura produtiva dos países mais pobres simplesmente ao se especializar em
determinado ramo de produção (desde que o mesmo não possa ser replicado na economia periféri-
ca).

O que é importante deixar claro é que essa especialização é fruto do desenvolvimento históri-
co da economia nacional, e não um reflexo das predisposições naturais da nação. Portanto, as teori-
as que afirmam as vantagens comparativas, ou seja, as vantagens em cada país se especializar na-
quilo que possui maior produtividade, ignoram que essas diferenças de produtividade são frutos de
um desenvolvimento histórico das forças produtivas e, portanto, são criadas. O progresso tecnológico
nos países centrais concentrado em determinados setores gera uma desigualdade na taxa de lucro
setorial, de modo que as empresas das economias periféricas (com menor grau de desenvolvimento
das forças produtivas) passam a obter lucros abaixo da média do referido setor. Com isso, esses
capitais – realizando o movimento descrito na seção anterior – se direcionam para os setores mais
lucrativos (aqueles que possuem composição orgânica média inferior). O movimento contínuo do
capital em busca da maior rentabilidade, que gera a tendência a se igualar a taxa média de lucro de
todos os setores, forma estruturas produtivas que se complementam.

Como resultado, há uma ampliação cada vez maior da integração econômica entre os países
e uma definição cada vez mais clara da divisão internacional do trabalho. Desse modo, os países
centrais também se veem presos nessa própria teia de dependência que criam para aprisionar a peri-
feria. Não obstante, sua condição de dependente se torna não um problema, mas uma solução na
medida em que se especializa em um nicho de produção que não só possui uma maior composição
orgânica do capital, mas como é o mais dinâmico em termos da ampliação dessa composição.

Tabela 4.2 – Distribuição média anual de capital constante nos


setores produtivos no período de 1995 a 2008

Fonte: Banco Central do Brasil, IPEA, U.S. Bureau of Economic Analysis, U.S. Bureau of Labor Statistics. Cálculo próprio.

A Tabela 4.2 apresenta a distribuição do capital constante entre os setores produtivos da


economia brasileira e norte-americana. Podemos observar que enquanto o capital no Brasil se con-
centra no setor agropecuário e na indústria de transformação de baixa tecnologia, nos Estados Uni-
93

dos há uma maior distribuição maior dentro da indústria de transformação. Contrastando os referidos
dados com os presentes na Tabela 4.3, verificamos que a baixa concentração de capital constante
nos setores de média-alta e alta tecnologia é compensada por importações de produtos norte-
americanos, enquanto as exportações brasileiras agrupam-se, sobretudo, nos setores menos tecno-
lógicos. Nesse sentido, acreditamos que os dados apontam para uma possibilidade de que a com-
plementação produtiva gerada pelo comércio internacional influencia a concentração dos capitais nos
setores produtivos, conforme o processo de subordinação descrito.

Tabela 4.3 – Distribuição média das transações do Brasil com os


Estados Unidos por setor produtivo no período de 1995 a 2008

Fonte: U.S. International Trade Commission. Cálculo próprio.

Esse processo de subordinação, portanto, dá sustentação à exploração entre as nações pelo


fenômeno da formação da taxa média de lucro, como demonstrado na seção precedente. No entanto,
essa subordinação velada se mostra mais frágil do que a subordinação real, já que nela o controle
formal do processo produtivo continua nas mãos das classes locais, que podem, a depender da di-
nâmica das alianças de classes e dos condicionantes políticos, redirecioná-la para outro sentido. Ou
seja, é uma subordinação que abre espaço para a sua superação.

Em suma, o processo de subordinação pode ser dividido entre subordinação real – aquele em
que as forças produtivas de uma nação estão sob o comando direto de classes externas – e subordi-
nação velada – quando as forças do mercado são as responsáveis pelas transformações nas estrutu-
ras produtivas dos países periféricos. Ambas as formas de subordinação seriam decorrências neces-
sárias da existência de países com diferentes graus de acumulação de capital e da relação de explo-
ração entre esses.

4.1.3 Vinculação ou desenvolvimento combinado

O capitalismo na América Latina surgiu a partir da expansão do capitalismo europeu e, duran-


te todo o período colonial, seu desenvolvimento respondia diretamente aos estímulos econômicos
das metrópoles. Com a independência dos países latino-americanos há a possibilidade destes se
desatrelarem das forças estrangeiras e criarem seus próprios destinos. Mas isso aparece apenas
como possibilidade.

A ampla integração econômica que se observa no mundo, sobretudo no século XX, atrela o
desempenho das economias periféricas com o das centrais. A questão controversa sobre esse ponto
reside em saber em que medida cada país está comprometido com o outro. Haveria uma interdepen-
94

dência entre os países que participam do comércio internacional, ou os países mais ricos preservari-
am alguma autonomia frente aos mais pobres?

Esse processo de vinculação aparece como unilateral, como se a periferia fosse um apêndice
da economia central. Mas o que ele esconde é que, em essência, as economias centrais se vinculam
às periféricas no mesmo momento que as acorrentam e freiam seu desenvolvimento. É uma vincula-
ção, portanto, que aparece invertida. Para compreendermos isso, analisemos, pois, como ocorre a
integração de dois países em um mesmo processo de acumulação capitalista.

Analisemos primeiramente a vinculação entre economias na hipótese em que o ciclo de acu-


mulação realize-se inteiramente em um único país, ou seja, que todo o processo da metamorfose do
capital ocorra de modo completo dentro das fronteiras de uma mesma nação, devendo o capital se
transferir para o solo onde realizará sua função de espoliador. Essa transferência pode ocorrer man-
tendo-se o capital sob o controle do capitalista estrangeiro, quando aparece na forma de Investimento
Estrangeiro Direto, ou transferindo-o para um grupo capitalista local na forma de capital de emprésti-
mo.

No caso da relação econômica de países com desiguais níveis de acumulação, como vimos,
há um influxo desse tipo de capital em direção do país mais pobre. Isso resulta tanto da busca do
capital industrial por maiores taxas de exploração quanto pelo excesso de capital dinheiro disponível
para empréstimo em busca de taxas de juros mais elevadas. Sendo assim, a manutenção e expansão
do capital nas economias centrais são fundamentais para que esse capital continue a se converter em
novos ciclos nas economias periféricas.

Nos momentos de crise das economias mais ricas, esse fluxo de capital se reduz. A crise
aparece como a expressão mais severa da tendência declinante da taxa de lucro. O ciclo do capital é
interrompido, uma parcela dos meios de produção é, então, eliminada. O excesso de capital, que gera
a crise, se manifesta então como seu oposto: uma escassez relativa de capital de modo momentâ-
neo. É essa escassez que é sentida nos países periféricos, que veem o fluxo de capital estrangeiro
reverter-se momentaneamente.

Uma segunda hipótese seria aquela em que há uma ampliação do ciclo de acumulação do
capital, de modo que o mesmo passe a incorporar uma quantidade cada vez maior de países, em um
intrincado esquema de divisão internacional do trabalho. Assim, a mundialização funde em um único
processo de acumulação o ciclo do capital de países distintos. No entanto, ao mesmo tempo em que
passam a compor um mesmo e um único processo, eles ainda permanecem separados e preservam
suas lógicas internas.

Do ponto de vista do processo como um todo, a acumulação do capital tem início em um país
e se completa em outro. Entretanto, o ciclo que desenvolve em cada país continua constituindo um
processo completo e separado. O fim do processo de metamorfose que passa o capital em um país
(M’ – D’) é o início de outro processo em outro (D – M). Tratam-se, portanto, de dois processos distin-
tos, mas interligados. Um país não pode iniciar a metamorfose do capital sem a mercadoria proveni-
95

ente do outro, que por sua vez só pode realizar a mais valia contida em sua mercadoria com a venda
para o primeiro.

No entanto, os países não se diferenciam pela posição que ocupam na compra e venda. Isso
porque todos eles hora buscam alienar suas mercadorias nos mercados estrangeiros, hora recorrem
a esses mercados em busca de meios de produção para dar continuidade ao ciclo de acumulação.
Do mesmo modo, as economias periféricas desempenham simultaneamente os dois papeis, só que
em ramos diferentes de produção. Esse posicionamento deve-se, sobretudo, aos resultados do pro-
cesso de subordinação descritos na seção precedente.

Como vimos, as economias centrais, devido ao alto grau de produtividade do trabalho, são
capazes de ofertar alguns meios de produção a preços mais vantajosos do que os países dependen-
tes podem produzir. Além de que contam com acesso a recursos, sejam de capital constante ou vari-
ável, que lhes permitem produzir mercadorias que não podem ser reproduzidas pelas economias
periféricas.

As economias periféricas respondem a esse fenômeno transformando suas estruturas produ-


tivas de modo a complementar a economia central, ou seja, voltam-se para a produção de mercadori-
as que exigem uma menor composição orgânica do capital. A conexão criada entre esses sistemas
capitalistas nacionais vinculam o desempenho econômico de ambos os países.

Não obstante, enquanto os países dependentes estão vinculados a um pequeno grupo de pa-
íses centrais, estes últimos se sustentam sobre uma miríade de países periféricos. Por esse motivo, a
interdependência que existe entre as nações se oculta na forma de uma vinculação unilateral, uma
vinculação que se expressa enquanto resultado de um processo de dependência, que ao mesmo
tempo subordina e explora essas nações.

A vinculação entre as economias se expressa com o crescimento dos países dependentes li-
mitados pela sua capacidade de importar os meios de produção necessários para a expansão da
acumulação capitalista. Essa capacidade de importar depende, de um lado, da aceitação de seus
produtos no mercado internacional e, de outro, da disponibilidade, determinada pelo vigor da econo-
mia central, dos referidos bens de capital.

Mas, no momento da crise, a lógica se revela. Após os impactos iniciais da ruptura do ciclo de
acumulação na economia central, os países dependentes retomam sua trajetória econômica depois
de internalizar parte do que era antes produzido fora. Ou seja, o resultado das crises que se localizam
nos países centrais é uma elevação relativa da composição orgânica dos países periféricos.

A superação da crise nos países periféricos é tanto mais rápida quanto maior for a capacida-
de do capital em fluir de um ramo a outro da produção, o que vai depender, sobretudo, do grau de
desenvolvimento do sistema de crédito. Claro está que a resposta do país dependente não é automá-
tica, e seu desempenho dependerá de fatores como o estado atual da acumulação capitalista, a di-
nâmica interna da luta de classes, entre outros fatores.

A questão é que são essas crises que evidenciam os limites proporcionados pelo desenvol-
vimento dependente. O processo de diversificação industrial que se seguiu à crise de 1929, ampla-
96

mente estudado pela literatura econômica brasileira, revela exatamente que, se a expansão da eco-
nomia dos países hegemônicos impulsiona a economia nacional, sua estagnação age como um re-
médio amargo contra os vínculos de dependência que se estabeleceram.

Se o desenvolvimento da economia periférica está associado com a expansão da economia


central, trata-se exatamente disso: do desenvolvimento dessa economia enquanto economia periféri-
ca, ou seja, dependente. É a reprodução do processo de espoliação e subordinação. E é exatamente
esse processo que se vê comprometido quando as crises cíclicas impedem o avanço do capitalismo
no país central. Esse é o único vínculo que pode ser rompido por essas crises.

E quando o vínculo se rompe, a única alternativa que resta para os países periféricos é se re-
produzir enquanto economias autônomas. Um caminho que de fato é mais lento em seu início, mas
depois se mostra mais proveitoso. Por quê? Porque a economia periférica se desatrela da economia
do centro, um sistema econômico que apresenta elevada composição orgânica do capital e, portanto,
baixas taxas de lucro. Uma economia que é, por definição, mais lenta. Mas que deixa de ser lenta
pois se aproveita do dinamismo da periferia. Suga esse dinamismo.

Portanto, a integração comercial entre países ricos e pobres realmente favorece o desenvol-
vimento do capitalismo na periferia, mas um desenvolvimento dependente, um desenvolvimento que
subjuga o trabalho vivo, transfere o valor excedente e vincula o crescimento dessa economia com o
bem estar da economia central.

Tampouco a ruptura econômica entre centro e periferia serve como elemento necessário e
suficiente para a superação da dependência. Mesmo não se relacionando diretamente com os países
centrais, desde que estejam presos a uma mesma teia de comércio internacional, a composição or-
gânica do capital estrangeiro irá continuar determinando os preços de produção dos países mais po-
bres.

4.2 A lógica concreta da dependência no Brasil contemporâneo

Vimos assim, a partir dos dados sobre as relações contemporâneas entre Brasil e Estados
Unidos, em qual consiste a lógica do desenvolvimento dependente. Bastam dois sistemas capitalistas
com graus divergentes de acumulação se relacionarem economicamente para que se estabeleça a
dependência entre eles.

Essa relação surge das leis econômicas imanentes do capitalismo. A busca desenfreada para
se livrar do trabalho vivo, impulsionada pelo estimulo cego da mais valia extra, leva o capital a ampliar
a produtividade do trabalho, com o resultado de elevar a composição orgânica do capital. Esse pro-
cesso é favorecido nas localidades em que há maior concentração de capital.

A tendência declinante da taxa de lucro, que deriva daí, obriga o capital do mundo todo a se
movimentar em direção dos setores com menor composição orgânica. Incapazes de acompanhar a
ampliação da composição orgânica requerida para fazer frente à concorrência com os países mais
97

ricos, os países pobres moldam suas economias para complementarem o interesse daqueles, selan-
do o destino de ambas as nações.

A tendência de se igualar a taxa média de lucro, tendência que permite a transferência de


mais valia entre setores de uma mesma sociedade capitalista, se aplica em países diferentes de todo
o mundo. Não obstante a maior massa de valor por capital adiantado seja a das economias periféri-
cas, a taxa de lucro se aproxima da média e o valor que excede nos países pobres se transfere, via
54
comércio internacional, aos países mais ricos .

A tendência a igualar a taxa média de lucro de países de diferentes graus de riqueza, que
culmina na venda de mercadorias com preços que divergem da magnitude do valor (individual e soci-
al) nelas contidas, é um mesmo processo que subordina o trabalho vivo das economias periféricas,
vincula todos os ciclos do capital em uma mesma rede de acumulação e se apropria da exploração do
trabalhador da periferia.

Essa é a forma adequada da dependência, pois é a única que, ao mesmo tempo, gera os três
fenômenos dos quais a dependência é a síntese. As outras formas de exploração, vinculação e su-
bordinação apresentadas agem apenas como elementos acessórios, auxiliando a impulsionar um
processo que possui sua força própria.

Também porque esse é o processo que deriva das leis imanentes do capitalismo. O processo
que determina que, enquanto a lógica do capital imperar nas relações econômicas entre nações e
houver desigualdades no nível de acumulação dos países, haverá, necessariamente, a formação de
relações dependência. Uma relação que mistifica a exploração de mercados desiguais.

A dependência, portanto, é a forma aparente da relação de exploração entre nações via o


mercado mundial. A dependência não só mistifica a exploração, ela é a própria forma de se expressar
dessa exploração. É uma forma invertida de se observar os reais movimentos do valor. Não é a peri-
feria que depende do centro, mas o centro que depende de suas relações comerciais com o conjunto
dos países periféricos – pois é esse que depende dos fluxos de valor para manter o ciclo de acumula-
ção de capital e taxas de exploração mais amenas.

O centro explora a periferia, e a periferia aparece como um parasita que colhe os frutos do
desempenho econômico das nações hegemônicas, e floresce. A essência aparece como seu oposto.
A exploração, que estabelece a dependência, no sentido de vinculação, da economia central com
uma miríade de economias periféricas, aparece como uma relação de vinculação no sentido contrário.
E a exploração aparece não como é, mas como uma dádiva daquele que explora.

A exploração, que se funda na dependência, ameniza a tendência declinante dos lucros, dan-
do um folego a mais ao capitalismo do centro. Enquanto, para a periferia, apenas prolonga o caminho

54
Podem, inclusive, os países periféricos apresentarem taxas de lucro menores do que a dos países centrais. De fato, essa
deve ser, provavelmente, a hipótese mais próxima da realidade. Acontece que a taxa de lucro média de cada setor é determ i-
nada por parcelas do capital que se distribuem por vários países. Como é provável, a parcela dos setores que concentram-se
nos países centrais absorvem mais valia extra – devido ao nível da produtividade – enquanto a dos países periféricos, vendem
os preços abaixo do valor. Assim, o capital dessas localidades pode apresentar uma taxa de lucro abaixo da média do setor,
enquanto o do centro apresenta uma mais elevada que a média. De todo o modo, a taxa média de todos os setores permanece
a mesma.
98

da pobreza. É assim que a dependência garante a ampliação da riqueza no centro, sustentando um


capitalismo de bem-estar, em detrimento da penúria na periferia.

Mas por estar vinculado ao destino das nações hegemônicas, o país dependente se vê preso
em uma lógica na qual anseia pela exploração, e a vê como a solução para a superação de sua con-
dição periférica. O capital periférico não pode ir além de perceber que essa condição apenas o impul-
sionará cada vez mais para a dependência.

Mas o capital periférico não se importa. Afinal, como parte alíquota do capital mundial cabe a
ele um mesmo tanto no quinhão da espoliação dos trabalhadores (a taxa média de lucro). Por isso
tanto faz, para o capital, se seu desenvolvimento é autônomo, subdesenvolvido, desigual e combina-
do ou dependente e associado. Em essência, o capital não possui nacionalidade, não possui precon-
ceitos, não possui sentimentos que sejam capazes de se sensibilizar por causas ufanistas. Para o
capital, a única coisa que importa é a acumulação, é sugar, do trabalho vivo, trabalho excedente. E
isso o capital, em escala global, fará na mesma magnitude, com ou sem dependência.

A dependência não amplia a massa de mais valia gerada pelo sistema capitalista mundial.
Apenas a redistribui. Assim, a tendência a igualar a taxa de lucro se manifesta também como a ten-
dência a se diferenciar a taxa de exploração em cada país. Não se trata, porém, de um fenômeno de
superexploração, como indicado pela vertente neomarxista da teoria da dependência.

O capital do país periférico não é acometido por uma fome desproporcional por mais valia,
por um desejo a mais de explorar a força de trabalho que submete. Essa é a própria essência do
capital, que age da mesma forma sobre o país central e periférico. Portanto, o capital realizará a su-
perexploração da classe trabalhadora onde quer que consiga. Mas a dependência não gera nem de-
pende dessa superexploração. Há, sim, uma exploração maior da classe trabalhadora na periferia, o
que não implica que lá se pague salários abaixo do valor da força de trabalho.

Pode-se, portanto, falar de superexploração relativa da força de trabalho, mas ainda assim o
termo não seria o mais adequado. O que há é a remuneração do trabalhador acima do valor da força
de trabalho nos países centrais. Em contrapartida, a qualidade do trabalho desempenhada por essa
massa de trabalhadores se amplia, como um todo, devido à ampliação da capacidade desses traba-
lhadores em desempenharem o trabalho complexo55.

A situação de dependência, portanto, preocupa apenas aos trabalhadores da periferia, que se


veem como superexplorados. A situação se aguça ainda mais quando o discurso que apregoa a li-
berdade de mobilidade para o capital é o mesmo discurso que tolhe o trabalhador dessa mesma li-
berdade.

Essa classe trabalhadora, representada pelos intelectuais que pensam sua condição depen-
dente, unida com um pequeno grupo de capitalistas que reivindicam o status de representantes de
um capital nacional, mas que não passam de uma parcela de capitalistas acometidos por um anseio

55
Vale notar, no entanto, que esse trabalho se constitui enquanto complexo exatamente por não poder ser realizado pelos
trabalhadores da periferia. Uma vez que a situação da classe trabalhadora melhore como um todo, e a qualidade do trabalho
por ela realizada se homogeneíze, o trabalho simples se eleva a um novo patamar.
99

ufanista que é real e concreto, mas que não tem vínculo necessário com causas econômicas, se co-
loca a seguinte questão: é possível superar a dependência?

Cada vertente da teoria da dependência responde essa questão de modo divergente, indi-
cando a possibilidade ou impossibilidade dessa superação. Mas as indicações apresentadas no pre-
sente ensaio sugerem uma análise mais detalhada sobre isso.

A condição de dependência parece poder sim ser superada em um determinado país. Claro
está que essa superação não pode, no entanto, se dar pela lógica do valor. É exatamente essa lógica
que cria a condição de dependência, para superá-la uma nação precisa contornar as forças econômi-
cas do mercado para contra arrestar as tendências indesejáveis do modo de produção capitalista
sem, todavia, contrapor-se a seus fundamentos.

Cabe ao Estado, como agente representante da coletividade, a tarefa de buscar ampliar a


composição orgânica do capital, seja no setor privado ou estatal. Movimento esse que vai contra a
lógica de acumulação dependente, que relega aos países centrais a tarefa de fazer avançar a frontei-
ra tecnológica.

Outro elemento importante é a ampliação das relações econômicas com os demais países
periféricos, com o intuito de absorver parte do valor que seria direcionado para os países centrais. A
absorção de parte desse fluxo de valor pode ocorrer tanto pelo “intercâmbio desigual” como pela ex-
ploração direta ou pela absorção de juros para remunerar o capital de empréstimo (seja fictício ou
não). No entanto, como essas últimas formas de apropriação de mais valia depende de se ter no pais
um excesso de capital, elas não devem ser tão significativas para a semiperiferia até que a mesma
atinja um elevado grau de acumulação.

Como indicamos em seção precedente, a tendência a igualar as taxas médias de lucro trans-
forma a forma preço das mercadorias em preços de produção. Na média da sociedade, os preços de
produção devem ser iguais à magnitude do valor das mercadorias, mas a distribuição por setores faz
com que aqueles que se concentram em países periféricos possuam preços abaixo do valor. O resul-
tado aparece como se os setores de menor composição orgânica do capital transferissem a mais
valia para os setores mais avançados tecnologicamente.

Mas não é dessa forma que acontece de fato. São os compradores individualmente que são
beneficiados ou prejudicados pelos preços divergentes. Mas, enquanto coletividade, eles apenas
funcionam como um intermediário para essa transferência de valor. Se um determinado comprador
concentra sua demanda em bens cujo preço está abaixo do seu valor, será ele, então beneficiado.
Nesse sentido, a semiperiferia que direciona sua demanda aos países de menor composição orgâni-
ca pode se aproveitar de uma distorção que é gerada pelos países centrais.

Essa absorção de valor excedente seria fundamental para que o país reduzisse a taxa de
mais valia que capta da classe trabalhadora. A redução da exploração seria essencial para a eleva-
ção do valor da força de trabalho – i.e. a ampliação do tempo de trabalho necessário para a reprodu-
ção da classe trabalhadora – que poderia gerar uma melhoria da qualidade do trabalho realizado,
transformando o trabalho simples em trabalho complexo.
100

Assim, os países semiperiféricos vão se dotando, aos poucos, dos recursos que o permitiriam
superar a subordinação velada que especializa de forma prejudicial sua estrutura produtiva. O cami-
nho para se romper a dependência passa, portanto, em se alçar a uma condição temporária de semi-
periferia. Essa condição semiperiférica consiste em tentar prender na teia da dependência países que
não se encontram totalmente integrados ao modo de produção capitalista, ao mesmo tempo em que
se relaciona de forma dependente com os países do centro.

A despeito do presente trabalho ter focado na identificação da relação de dependência entre


Brasil e Estados Unidos, há indícios suficientes para supor que o Brasil ocupa, atualmente, uma posi-
ção semiperiférica na América Latina. Status que alcançou devido à atuação do Estado Desenvolvi-
mentista que imperou no Brasil no período que vai da década de 1930 a meados da década de 1980.

Durante o referido período, o Estado foi responsável por ampliar a composição orgânica do
capital nacional, além de direcionar o capital estrangeiro, seja na forma de capital de empréstimo ou
de capital industrial, para ramos com elevada composição orgânica. Enfim, parecia haver um proposi-
to do Estado em superar a lógica de subordinação propagada pela dependência.

Mesmo com as políticas de redução do aparelho do Estado, amplamente praticadas na déca-


da de 1990, o setor público continua sendo o impulsionador do processo de ampliação da composi-
ção orgânica, derivado das inovações tecnológicas. Isso é o que evidenciam os dados acerca dos
registros de patente no Brasil no período que vai de 1990 a 2007, que indicam que aproximadamente
75% dos pedidos de registro de patente de instituições de pesquisas não acadêmicas são provenien-
tes de instituições públicas (NUNES; OLIVEIRA, 2011).

Não obstante, a falta de uma proposta desenvolvimentista do governo nessa nova fase libe-
ral, que tem início no fim dos anos 1980, parece começar a reverter essa posição semiperiférica al-
cançada em fase anterior. Essa reversão coincide com a ascensão cada vez maior da economia chi-
nesa, indicando que esse país, que usa seu estado de semiperiferia para reproduzir a dependência
nas relações sul-sul, pode vir a integrar em breve o grupo de economias centrais.

A China, desde março de 2009, tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, superando
os Estados Unidos quanto ao destino das exportações. Ao mesmo tempo, o Brasil apresentou uma
trajetória de reprimarização de sua produção. Diante da teoria aqui exposta, podemos concluir que o
avanço da posição semiperiférica da China, fortalecida pela crise que afetou os Estados Unidos em
2008, inicia um processo de subordinação e vinculação da economia brasileira, que começa a condi-
cionar seu sistema produtivo do modo complementar à economia chinesa.

O problema da reprimarização, assim considerado, não consiste na ampliação nas relações


entre Brasil e China, já que a lógica dessas relações é a mesma lógica dependente propagada nas
relações entre Brasil e EUA, mas unicamente a falta de um projeto de desenvolvimento liderado pelo
Estado brasileiro, capaz de modificar a inserção internacional do país. Enquanto a lei do valor e o
modo capitalista de produção imperarem no comércio entre nações, a lógica do subimperialismo se-
miperiférico se apresentam como a única forma de um país, individualmente, superar a condição de
dependência.
101

Mas, a despeito de vislumbrarmos uma possibilidade teórica da superação da dependência


dentro das fronteiras nacionais, a dependência em si não é passível de superação como lógica de
relação econômica entre países no âmbito do mercado capitalista mundial enquanto persistirem paí-
ses com diferentes graus de acumulação. Portanto, uma superação positiva da dependência, ou seja,
uma superação que elimina esse modo de relação entre países, não se mostra possível dentro do
modo de produção capitalista mundial.

Nem, tampouco, a superação da dependência, a despeito de melhorar a situação da classe


trabalhadora na periferia, é elemento necessário e suficiente para a emancipação dos trabalhadores.
O simples motivo para isso é que exploração e alienação do trabalho são a essência do modo capita-
lista de produção, e não fruto da relação de dependência.

A luta pela emancipação do trabalho humano pode ser beneficiada, em certa medida, pela
superação da dependência em um país, já que existe como possibilidade – e apenas como possibili-
dade – que a classe trabalhadora conclua esse processo com um maior nível de organização e mobi-
lização. Mas os processos históricos vivenciados pela América Latina comprovam que o grau de or-
ganização da classe trabalhadora, a despeito de ser influenciado pelo grau de acumulação do capital
nacional, não é de modo algum determinado por ele.

Assim, a superação positiva da dependência é a própria superação do capitalismo mundial.


Mas, como a dependência se relaciona com a possibilidade dessa superação? Em outras palavras,
como as relações de dependência influenciam a tendência histórica do capitalismo, que é a de cami-
nhar para a sua própria superação? Para compreendermos o movimento da dependência em escala
histórica é necessário perscrutarmos a origem dessa própria relação. E para compreender a origem
do fenômeno da dependência é necessário nos debruçarmos sobre os eventos históricos que a ante-
cederam sob a luz da lógica dependente.

Esse é o processo que nos permitirá deslindar um novo significado dos movimentos históricos
e a origem da dependência. Mas, esse é trabalho para outra empreitada. Aqui nos coube apenas
evidenciar sua lógica e mostrar que a dependência é um fenômeno real, embora um fenômeno que
mistifica a verdadeira relação de exploração, e que ainda se aplica à realidade da condição brasileira
de hoje.
102

5. CONCLUSÃO

Em nossa pesquisa, nos propusemos a resgatar a categoria de dependência como uma for-
ma adequada para a compreensão do capitalismo brasileiro contemporâneo dentro da perspectiva
marxista.

Começamos nossa busca levantando o significado dessa categoria na literatura econômica.


Para isso, recorremos à três vertentes teóricas que abordam o tema da dependência, sendo que duas
delas se inserem dentro da perspectiva teórica marxista: o estruturalismo cepalino, uma teoria do
desenvolvimento que foi pioneira ao tratar a questão da dependência nos países da América Latina, e
as teorias da dependência nas vertentes neomarxistas e cardosiana.

A linha cepalina, ou estruturalista, apresenta a dinâmica dependente dos países periféricos


em contraposição à dinâmica autônoma dos países centrais. Para a teoria estruturalista, o que difere
as sociedades periféricas das centrais são os elementos estruturais daquelas, frutos de suas consti-
tuições históricas. A teoria estruturalista foi pioneira ao concluir que a dinâmica dependente não seria
capaz de levar os países da América Latina ao desenvolvimento econômico experimentado pelos
Estados Unidos e demais países europeus.

Resgatar esses elementos da teoria estruturalista nos auxiliou a compreender as distintas


vertentes marxistas da teoria da dependência que se erguiam enquanto uma crítica a ela. Analisamos
primeiro a vertente neomarxista, cujos maiores expoentes foram André Gunder Frank, Ruy Mauro
Marini e Theotonio dos Santos.

A vertente neomarxista apresenta a dependência como uma lógica complementar ao capita-


lismo europeu. Para essa vertente, os países latino-americanos estavam fadados à estagnação e a
uma lógica de acumulação que beneficiava os países centrais com um fluxo de mais valia e superex-
plorava a força de trabalho local. A única solução para a superação dessa condição de dependência
era uma revolução socialista, resultado de uma aliança entre o proletariado e a massa camponesa,
que libertaria a América Latina da pobreza, da dependência e do fascismo que se instalava no conti-
nente.

Já a vertente cardosiana, derivada dos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso, entre ou-
tros, tenta compreender, através dos movimentos políticos e da luta de classes, a dinâmica depen-
dente dos países da América Latina. Diante das alianças de classes e grupos de classes que divisa-
vam como possível, os cardosianos não viam a revolução socialista como uma realidade, mas tam-
bém não como a única alternativa. Ressaltavam, então, que o novo caráter da dependência, voltado
para a internacionalização do mercado interno – em contraposição à dependência que gerava eco-
nomias voltadas para a exportação – seria capaz de gerar algum desenvolvimento para os países
latino-americanos. Mesmo se tratando de um desenvolvimento dependente e associado ao capital
internacional, ele seria capaz de diversificar a indústria doméstica e até mesmo elevar o padrão de
vida da classe trabalhadora.
103

Após apresentarmos os elementos centrais de cada uma dessas vertentes, procedemos à in-
vestigação de em que medida essas teorias seriam adequadas para realizarmos uma leitura do capi-
talismo contemporâneo brasileiro. O que pudemos observar foi a existência, em ambas as vertentes,
de imprecisões metodológicas que comprometiam seriamente seus resultados.

Na corrente neomarxista, o principal equívoco apontado foi o fato de se pautar na criação de


categorias abstratas de análise sem relacioná-las com a realidade concreta. Isso deriva de uma in-
versão metodológica de buscar a construção da categoria no movimento histórico, ou seja, os neo-
marxistas confundiam a gênese da categoria abstrata com a gênese da categoria na realidade con-
creta. O resultado era uma categoria capaz de explicar uma realidade não condizente com os proces-
sos históricos dos países latino-americanos.

Além disso, mostramos a insuficiência teórica da categoria de superexploração como abstra-


ção para explicar a dinâmica dos países dependentes e da teoria das trocas desiguais enquanto lógi-
ca responsável pela transferência de valor entre países. No que tange à superexploração, mostramos
que, em primeiro lugar, os processos de ampliação da taxa de exploração via extensão da jornada de
trabalho ou ampliação da intensidade do trabalho não reduzem a remuneração do trabalhador para
menos do que o valor da força de trabalho. Em segundo lugar, partindo da teoria do valor trabalho,
não há como um sistema capitalista ser pautado pela remuneração da força de trabalho abaixo de
seu valor.

Com relação à “troca desigual”, mostramos que o desenvolvimento de Marini apresenta uma
série de inconsistências com relação à teoria marxista – como uma confusão entre taxa média geral e
setorial de lucro – e com sua própria tese da superexploração do trabalho.

Já quanto à vertente cardosiana, o desvio metodológico que apresenta, que lhe garantiu a in-
justificada alcunha de vertente “weberiana”, foi o de realizar um inversão do materialismo dialético. Ao
considerar que as possibilidades de transformação de uma sociedade passam em última instância
pela “luta de classes” (compreendida como a situação de alianças políticas entre os grupos nacio-
nais), os autores cardosianos suprimem a dinâmica derivada das transformações estruturais gerada
pelas leis econômicas tendenciais. Os resultados alcançados por essa vertente, portanto, ignoram as
verdadeiras possibilidades de transformação da realidade concreta.

Entretanto, ambas as vertentes da teoria da dependência avançaram em muitos pontos. Em


primeiro lugar, avançaram ao considerar o capitalismo como um sistema mundial, e não como partes
isoladas de um mesmo todo. Portanto, concluem que a realidade de nenhum país, possua uma eco-
nomia central ou periférica, pode ser compreendida sem analisar a sua relação com os outros países.

Em segundo lugar, no caso da vertente neomarxista, por indicar que esse processo de de-
pendência deve ser pensado diante das leis tendenciais do capitalismo. Por fim, como contribuição da
vertente cardosiana, o resgate da luta de classes como elemento significativo para compreender cada
situação concreta de dependência.

A partir dessas averiguações, propusemos um conjunto de princípios metodológicos para gui-


ar os estudos sobre a dependência, apontando os passos a serem seguidos em uma investigação.
104

Nesses termos, a tarefa que nos coube no presente trabalho foi a de elaborar uma proposta para a
construção da categoria central da análise da dependência a partir das relações econômicas concre-
tas entre o Brasil e os Estados Unidos da América durante o período neoliberal que se seguiu ao fim
da guerra fria.

Nossa proposta foi a de construir tal categoria enquanto síntese de três relações distintas que
se estabelecem entre nações de divergentes graus de acumulação: a subordinação, a vinculação e a
exploração. ‘De modo que a nação dependente seria aquela que é ao mesmo tempo subordinada e
vinculada à economia central além de explorada por essa mesma economia.

A relação de exploração refere-se ao processo de transferência de excedente entre as na-


ções. Apontamos, nesse sentido, para as transferências de valor resultados da internacionalização do
capital industrial e da divergência entre valor e preços, tanto na sua dimensão quantitativa – na qual
destacamos o papel da formação dos preços de produção – quanto na sua dimensão qualitativa –
56
onde indicamos as rendas que remuneram o direito de propriedade e o poder de monopólio .

Já a subordinação compreende a capacidade dos países centrais em mobilizarem o trabalho


vivo das economias dependentes, de modo que possam modificar a estrutura produtiva desses, re-
produzindo a lógica de exploração exposta. Essa subordinação ocorre tanto por meio da ação direta
do capital sob o domínio da classe capitalista dos países centrais – que denominamos de subordina-
ção real – quando de se por em marcha os mecanismos de mercado que garantem a integração eco-
nômica e especialização produtiva mesmo com o controle formal sobre o trabalho vivo sendo mantido
nas mãos das classes capitalistas locais – que chamamos de subordinação velada.

Por fim, a relação de vinculação entre os ciclos de acumulação dos países, resultado da am-
pliação da integração econômica, age de modo a impulsionar o “desenvolvimento” dos países perifé-
ricos, mas um desenvolvimento que se mostra necessariamente como dependente – ou seja, que não
rompe com a lógica exposta – e restringido – pela capacidade dessas economias se relacionarem
com os países centrais. Indicamos, por outro lado, que essa vinculação das economias periféricas ao
capital dos países centrais mostra a forma invertida da relação de dependência, pois as nações he-
gemônicas dependem da contínua expropriação do excedente gerado na periferia.

Essa relação tríplice é fruto da tendência a igualar a taxa média de lucro dos diversos capitais
existentes em países com graus de acumulação divergentes. Esse fenômeno ao mesmo tempo em
que subordina o trabalho vivo das economias dependente aos desígnios do capital dos países mais
ricos, vincula os processos produtivos de ambos – mas de um modo que aparece como uma vincula-
ção unilateral dos países dependentes – e permite a apropriação por parte da economia central da
mais valia gerada pela exploração do trabalho na periferia.

A dependência que surge daí é a forma com que aparece a relação de exploração entre paí-
ses. Trata-se de uma forma que mistifica essa exploração e inverte a verdadeira relação de depen-
dência. A sustentação das economias dos países centrais depende da continuidade desse processo

56
Mesmos os artificialmente construídos, como é o caso dos direitos da propriedade intelectual.
105

de exploração, mas essa dependência se expressa como se os grandes beneficiados pelas relações
econômicas internacionais fossem os países mais pobres.

Compreendida dessa forma, a dependência constitui-se em uma categoria essencial para a


compreensão da realidade brasileira contemporânea. No entanto, nosso objetivo aqui foi apontar um
caminho para se reconstruir uma teoria da dependência compatível com a realidade de hoje, de modo
que algumas tarefas permanecem em aberto. Em primeiro lugar, resta ainda nos aprofundarmos na
construção da categoria de subimperialismo e estudar a sua validade empírica. A categoria de subim-
perialismo, que se articula com o conceito de semiperiferia, foi apenas apontada nesse trabalho, ca-
bendo seu desenvolvimento para pesquisas posteriores.

Outra tarefa que ainda se apresenta é de, uma vez desvelado essa categoria abstrata que
nos permite compreender a realidade contemporânea, nos aprofundarmos na gênese dessa categoria
na realidade concreta. Assim, através da ressignificação dos processos históricos que geraram o
fenômeno da dependência, poderemos compreender as tendências históricas geradas pelas relações
entre nações capitalistas desiguais.
106

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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