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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

Centro de Ciências Humanas

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Júlia Francisca Gomes Simões Moita

2019.1

Nível: Doutorado

Gênero e Identidade: a lésbica como (im)


possibilidade

Trabalho para a disciplina de TÓPICOS


AVANÇADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS I, ministrada
pelo professor Elizabeth Maria Beserra Coelho.
Resumo: O artigo analisa o desdobramento do conceito de identidade da
perspectiva de Stuart Hall, para isso o discutiremos a partir da teoria feminista
contemporânea. Utilizaremos os conceitos de performatividade e abjeção em
Judith Butler (2003 e 2011); heterossexualidade compulsória e continuum
lésbico em Adrienne Rich (2010) e pensamento hetero em Monique Wittig
(2006). Vamos abordar os conceitos considerando-os em diálogo (ou ruptura)
com a noção de descentramento do sujeito em Hall (1999).

Palavras-chave: identidade lésbica; performatividade; heterossexualidade


compulsória
Não acho que exista uma forma humana singular, não acho que
exista uma capacidade humana singular, mas o que eu acho sim,
provavelmente na base do meu trabalho há essa suposição, é que
os seres humanos, se as condições sociais forem solidárias – e
esse é um requisito importante –, se as condições sociais forem
solidárias, os seres humanos, como os outros animais, buscam
persistir em seu próprio ser. (Judith Butler, em entrevista a Patrícia
Knudsen)

O campo de conhecimento conhecido como Estudos Culturais se inicia no


Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), em Birmigham, Inglaterra,
nos anos cinquenta. Os fundadores dessa visão são Richard Hoggart, Raymond
Williams e Edward Palmer Thompson, professores do centro que iniciam
investigações a respeito da cultura da classe operária no Reino Unido
(ESCOSTEGUY, 2010). A perspectiva revoluciona as ciências sociais porque
inverte os pólos tradicionais de análise. Assim, a cultura de "baixo" passa a ter
voz privilegiada nos eventos históricos estudados.

Nos anos sessenta, Stuart Hall assume a direção do centro e nela


permanece por onze anos. Hall, embora não seja considerado um fundador dos
Estudos Culturais, contribuí de forma definitiva para alargar o campo de
pesquisa. Ele inicia os estudos de subculturas e, aos poucos, o centro se torna
uma referência para pesquisas de gênero, raça e etnia. O sociólogo jamaicano
considerava que o feminismo era o mais disruptivo campo de saber do período
e o centro passa a contar com um departamento de estudos de gênero
Hall aponta o feminismo como uma das rupturas
teóricas decisivas que alterou uma prática
acumulada em estudos culturais, reorganizando sua
agenda em termos bem concretos. Desta forma,
destaca sua influência nos seguintes aspectos: a
abertura para o entendimento do âmbito pessoal
como político e suas conseqüências na construção
do objeto de estudo dos estudos culturais; a
expansão da noção de poder, que, embora bastante
desenvolvida, tinha sido apenas trabalhada no
espaço da esfera pública; a centralidade das
questões de gênero e sexualidade para a
compreensão da própria categoria “poder”; a
inclusão de questões em torno do subjetivo e do
sujeito e, por último, a “reabertura” da fronteira entre
teoria social e teoria do inconsciente – psicanálise.
(ESCOSTEGUY, 2010, p. 37)

A contribuição do feminismo para os Estudos Culturais nos interessa,


nesse trabalho, porque são justamente as discussões sobre gênero que
conseguem estabelecer a ruptura mais radical em relação ao conceito de
identidade. Para que esse rompimento ocorra, entretanto, a noção de
descentramento do sujeito (HALL,1999) é fundamental.

Sturt Hall, em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade (1999),


discute aquilo que as ciências sociais denominaram de "crise de identidade". Tal
crise, segundo ele, está ligada ao descentramento do sujeito. As categorias
estáveis que, antes, definiam o ser social não existem mais. Assim, é possível
que alguém transite entre identidades ao longo da vida.

Para compreender o descentramento do sujeito é necessário ter mente as


concepções anteriores de identidade. Hall (1999) identifica duas concepções que
permeiam o debate acadêmico nas humanidades. A primeira, iluminista, tem o
sujeito como pessoa humana. Racional e unificado, esse sujeito possui um
núcleo que o acompanha durante toda a vida. A segunda, sociológica, percebe
o sujeito em relação aos outros. Assim, identidade seria aquilo que liga a pessoa
à estrutura social.

A crise do final do século XX é a crise do sujeito sociológico. Isso porque


a ligação com a estrutura não é mais estável. O sujeito percebe-se como
integrando vários universos e reivindica para si essa multiplicidade.

Hall (1999) difere das ciências sociais porque não vê aí uma crise mas
sim a emergência de um novo sujeito: o sujeito pós-moderno. A identidade,
pensada como fixa, nunca foi estável. Isso porque o "sujeito assume identidades
em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um
'eu' coerente" (p. 13).

Assim, a marca da pós-modernidade seria a transitoriedade. Um mundo


em permanente transformação evoca um sujeito que também está transitando.

Esse descentramento é, na verdade, um deslocamento no próprio


discurso acadêmico e científico, propiciado pelo marxismo (que situa o sujeito
numa perspectiva de classes e, portanto, não-universal), pela psicanálise (já que
a ideia de inconsciente detona o sujeito racional), pela linguística de Saussure
(que verifica na linguagem uma instabilidade quanto aos significados), pela
filosofia de Michel Foucault (que coloca a disciplina das instituições modernas
como controladora dos desejos individuais) e, enfim, pelo feminismo. Que
desloca público e privado e coloca questões como gênero e sexualidade no
cerne do debate sobre identidade (HALL, 1990)

A família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a


divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as
crianças, etc. [...] enfatizou, como questão política e
social, o tema da forma como somos formados e
produzidos como sujeitos generificados. Isto é, ele
politizou a subjetividade, a identidade e o processo
de identificação [como homens/mulheres,
mães/pais, filhos/filhas] [...] expandiu-se para incluir
a formação das identidades sexuais e de gênero
(HALL, 1999, p. 45-46).
A questão da identidade foi pensada pelo feminismo desde o início da
Segunda Onda1. A preocupação teórica inicial era encontrar o especificamente
feminino para que a categoria Mulher fizesse sentido. As bases biológicas do
feminino, entretanto, foram rejeitadas pelas teóricas e o construtivismo social era
o ponto comum entre as diversas vertentes.

Simone de Beauvoir (1967), filósofa existencialista francesa, por exemplo,


analisou as diversas abordagens para a construção do feminino. No célebre O
Segundo Sexo, lançado em 1949, ela discorre sobre as diferentes abordagens a
respeito da desigualdade entre os sexos. Da mulher passiva, biologicamente
explicada pela passividade do óvulo durante a concepção às explicações
freudianas envolvendo a inveja do pênis e à visão engel-marxista que coloca a
propriedade privada como central para a derrota histórica do sexo feminino,
Beauvoir procura compreender como esses discursos se articulam e colocam a
mulher em posição de desvantagem.

Sem questionar, entretanto, que a Mulher existe, Beauvoir é o ponto de


partida epistemológico para que o sexo não seja visto como determinante para
a diferença entre homem e mulher. A partir das discussões da francesa, a
categoria gênero passa a ser utilizada para se referir à construção do feminino e
do masculino como produtos da cultura humana. Tal debate domina a cena
feminista e os Estudos de Gênero se tornam fundamentais no campo das
humanidades.

Em 1990, a norte-americana, Judith Butler, lança o livro Problemas de


Gênero. E, se Beauvoir havia destituído a categoria sexo como ferramenta para
pensar as desigualdades entre masculino e feminino, Butler (2003) questiona até
que ponto gênero também não se naturaliza e se torna um destino. Ao fazer tais
questionamentos, ela acerta, claro, o conceito de identidade. Que aqui não é
apenas descentrada e, sim, uma ficção que busca, sem sucesso, aprisionar os
sujeitos em um essencialismo.

A filósofa (2003) considera que não devemos entender gênero como


identidade mas, sim, como atos performáticos recriados cotidianamente. Assim,

1
Segunda Onda Feminista é como ficou conhecida a retomada do movimento na década de sessenta do
século XX. Após o movimento sufragista (Primeira Onda), o feminismo viveu uma espécie de hiato
político que foi interrompido durante a contracultura.
faz-se homem ou mulher ao agir como homem ou mulher. Tal visão se afasta da
noção de construção social (e de identidade) porque o processo não cessa,
precisa ser continuamente recriado e vivido. Além disso, esse processo é
marcado pela exclusão. Ou seja, a performatividade obriga que haja coerência
entre diversos aspectos da vida para que o sujeito não seja estranhado.

O abjeto, de acordo com a filósofa Judith Butler (2001), seria o ser que
não possui o status de sujeito porque os atos performativos realizados por ele
não teriam coerência do ponto de vista social. A coerência discutida em
Problemas de Gênero é, principalmente, entre sexo, gênero e orientação sexual.
Se alguém é biologicamente mulher, deve se apresentar como mulher e ter
relações afetivas e sexuais com homens. Todo o ser que escapa dessa
coerência é visto como abjeto pelas sociedades ocidentais.

A zona de abjeção, explica Butler, seria fundamental para a constituição


dos sujeitos, uma vez que não basta a identificação com o normativo do sexo
mas deve haver, também, um repúdio por aqueles que não compactuam com
ele.

A lesbiandade, de acordo com essa visão, é uma zona de abjeção. Isso


acontece porque, entre as lésbicas, não há coerência entre sexo/gênero e
orientação sexual. A questão da identidade lésbica é amplamente discutida pela
literatura feminista contemporânea.

Lesbiandade e identidade

Ao discutir a questão do lesbianismo/travestismo, Simone de Beauvoir


(1967) nos traz a noção de inversão sexual. O termo, embora aponte para a
fragilidade da argumentação da autora, é interessante por remeter à desordem
trazida por qualquer sujeito que não mantenha a coerência entre sexo, gênero e
orientação sexual exigida pela sociedade. O texto é cheio de problemas, já
debatidos por autoras de diversas áreas (FALLAIZE, 1998; SWAIN, 1999;
WITTIG, 1980): Beauvoir trabalha sem o aporte do conceito de gênero (que
aparece algumas décadas depois) e não faz distinção entre as identificações ou
condutas masculinas e femininas e orientação sexual. Isso significa que ao
longo do texto, o termo lésbica é usado como sinônimo de transgênero, como
entendemos nos dias atuais.

O que nos interessa aqui é perceber o feminino como mutilador do ser, o


que se torna o feminino uma identidade de exclusão e a lésbica, então, como
pastiche. Beauvoir (1967) afirma que há uma tentativa de colocar a invertida
numa posição de inautenticidade. Como se a imitação do masculino a deixasse
eternamente inacabada. Ela rechaça essa ideia e considera que o desejo de
autonomia por parte das mulheres é, sim, autêntico e, mais do que isso,
esperado

Definir a lésbica "viril" pela sua vontade de "imitar o


homem" é votá-la à inautenticidade. Já disse a que
ponto os psicanalistas criam equívocos aceitando as
categorias masculina-feminina tais como a
sociedade atual as define. Com efeito, o homem
representa hoje o positivo e o neutro, isto é, o
masculino e o ser humano, ao passo que a mulher é
unicamente o negativo, a fêmea. Cada vez que ela
se conduz como ser humano, declara-se que ela se
identifica com o macho. (BEAUVOIR, 1967, p. 148)

Embora não trabalhe diretamente com o conceito de identidade, Simone


de Beauvoir (1967) nos lembra que a naturalidade da escolha pelo travestismo
ou a lesbiandade não é possível num mundo que lembra continuamente lésbicas
e transgêneros da escolha que fizeram. A consciência de si nunca deixa de estar
presente, porque é sempre preciso reafirmá-la. Uma consciência de si tão aguda
não permite, muitas vezes, que tais sujeitos sigam a vida de maneira leve e
autêntica.
No livro El pensamiento heterosexual y otros ensayos (2006), Monique
Wittig subverte a famosa afirmação de Beauvoir que inicia O Segundo Sexo
("Ninguém nasce mulher, torna-se mulher"). Para Wittig (2006), as feministas
tem interpretado a frase procurando as raízes biológicas e históricas da
opressão. Porém, esse ponto de partida estaria equivocado pois não questiona
a heterossexualidade e sim os sujeitos que emergem dela. Considerar a relação
homem e mulher como dada é ignorar o que, de fato, é a base desigual da
sociedade: a heterossexualidade.

Esta tendencia a la universalidad tiene como


consecuencia que el pensamiento heterosexual es
incapaz de concebir una cultura, una sociedad, en la
que la heterosexualidad no ordenara no sólo todas
las relaciones humanas, sino su producción de
conceptos al mismo tiempo que todos los procesos
que escapan a la conciencia. Estos procesos
inconscientes se tornan, por otra parte,
históricamente cada vez más imperativos en lo que
nos enseñan sobre nosotras mismas por medio de
los especialistas. Y la retórica que los expresa,
revistiéndose de mitos, recurriendo a enigmas,
procediendo por acumulaciones de metáforas, cuyo
poder de seducción no subestimo, tiene como
función poetizar el carácter obligatorio del «tú-serás-
heterosexual-o-no-serás». (WITTIG, 2006, p. 42)

Wittig (2010) entende que a invisibilidade lésbica está enredada na


maneira como os discursos são permitidos e autorizados na sociedade ocidental.
De acordo com ela, a linguagem é apropriada pelos poderosos e retroalimentam
o sistema de opressão. Assim, obter acesso à fala é complicado já que o discurso
estabelecido
Todos los oprimidos lo conocen y han tenido que
vérselas con este poder que dice: no tienes derecho
a la palabra porque tu discurso no es científico, ni
teórico, te equivocas de nivel de análisis, confundes
discurso y realidad, sostienes un discurso ingenuo,
desconoces esta o aquella ciencia. (WITTIG, 2010,
p. 50)

Por isso, ela propõe uma mudança de perspectiva em relação às lésbicas.


“A lésbica não é mulher”, afirma (WITTIG, 2010). Porque não participa do jogo
heterossexual, assim poderia criar uma identidade independente e autônoma.
Dessa forma, a relação lésbica não aconteceria entre mulheres porque, para
existir, uma mulher precisa se subalternizar discursivamente na
heterossexualidade.

A feminista norte-americana Adrienne Rich (2010) também coloca a


heterossexualidade como central para a discussão da opressão de gênero. Ela
propõe dois conceitos que se tornam comuns para pensar a lesbiandade
(heterossexualidade compulsória e continuum lésbico). Em "Heterossexualidade
compulsória e existência lésbica" (2010), ela afirma que as feministas ocidentais
nunca questionaram a heterossexualidade, o que levou ao apagamento da
existência lésbica e, mais importante, levou as mulheres heteros a abrigarem-se
no semelhante e deixarem-se assimilar pelo dominador.
Quando nós encaramos de modo mais crítico e claro
a abrangência e a elaboração das medidas
formuladas a fim de manter as mulheres dentro dos
limites sexuais masculinos, quaisquer que sejam
suas origens, torna-se uma questão inescapável que
o problema que as feministas devem tratar não é
simplesmente a “desigualdade de gênero”, nem a
dominação da cultura por parte dos homens, nem
qualquer “tabu contra a homossexualidade”, mas,
sobretudo, o reforço da heterossexualidade para as
mulheres como um meio de 35assegurar o direito
masculino de acesso físico, econômico e emocional
a elas. Um dos muitos meios de reforço é,
obviamente, deixar invisível a possibilidade lésbica,
um continente engolfado que emerge à nossa vista
de modo fragmentado de tempos em tempos para,
depois, voltar a ser submerso novamente. (RICH,
2010, p. 34)

De acordo com ela, a hierarquia homem/mulher está contida na


heterossexualidade e as relações entre mulheres (mesmo relações não
sexuadas) são vistas como fúteis ou sem importância. A identidade lésbica, aqui,
é uma impossibilidade, estaria sempre no lugar do desvio e da incompletude. Por
isso, Rich (2010) propõe que pensemos num continuum lésbico, que envolveria
as experiências de identificação entre as mulheres, sendo um locus de criação
e recriação dos significados. Um vínculo poderoso contra a opressão exercida
pelos homens dentro da heterossexualidade compulsória. Esse continuem já
existe na forma de rede de amparo entre mulheres de diversos estratos sociais.
Segundo a autora, um feminismo da ação, sem teoria, tem aparecido em todas
as culturas humanas.
Considerando a possibilidade de que todas as
mulheres existam em um continuum lésbico – da
criança mamando no seio de sua mãe até a mulher
adulta que experimenta sensações orgásticas
enquanto sua própria criança está mamando, talvez
relembrando o cheiro do leite de sua mãe em seu
próprio leite, ou considerando até duas mulheres [...]
que dividiam um laboratório , ou, ainda mais, se
consideramos até mesmo a mulher que está
morrendo aos noventa anos, tocada e amparada por
mulheres – podemos nos ver como a mover para
dentro e para fora desse continuum, mesmo se não
nos identificamos como lésbicas. (RICH, 2010, p. 38)

Rich (2010) não reivindica uma identidade para a lésbica, antes considera
que esta é engendrada pelo mesmo mecanismo que institui a “mulher” e o
“homem”. Uma vez que essas duas categorias deixassem de existir, a própria
lesbiandade seria uma impossibilidade. Entretanto, a feminista reivindica
politicamente essa identidade.
Em Corpos que Pesam (2011), Butler explica que o sexo é uma prática
regulatória que produz os corpos que ela controla. Assim, o sexo é materializado
através da reiteração dessas normas. Por serem normas coercitivas,
percebemos que os corpos não se conformam com essa materialização.
Nesse sentido, o que constitui a fixidez do corpo,
seus contornos, seus movimentos, será plenamente
material, mas a materialidade será repensada como
o efeito do poder, como o efeito mais produtivo do
poder. Não se pode, de forma alguma, conceber o
gênero como um constructo cultural que é
simplesmente imposto sobre a superfície da matéria
- quer se entenda essa como o "corpo", quer como
um suposto sexo. Ao invés disso, uma vez que o
próprio "sexo" seja compreendido em sua
normatividade, a materialidade do corpo não pode
ser pensada separadamente da materialização
daquela norma regulatória. O "sexo" é, pois, não
simplesmente aquilo que alguém tem ou uma
descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma
das normas pelas quais o "alguém" simplesmente se
torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a
vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural.
(BUTLER, 2011, p. 152)

Se entendermos sexo como norma, o gênero pode ser considerado o


resultado dessa materialidade. Assim, o corpo sexuado, embora pareça estável,
está sempre a ponto de irromper e desmistificar a sua normatização (“A formação
de um sujeito exige uma identificação com o fantasma normativo do sexo”, p.
155). Os corpos que resistem à produção de sexo/gênero mostram um caminho
para romper com a normatização. Pensar em termos de identidade, nesse caso,
seria um expediente meramente político e estratégico que não envolveria a
ontologia do ser. Isso criaria uma relação paradoxal em que à medida em que o
sujeito não se identifica, forma uma coletividade que o faz

De fato, pode ocorrer que tanto a política feminista


quanto a política queer sejam mobilizadas
precisamente através de práticas que enfatizem a
desidentificação com aquelas normas regulatórias
pelas quais a diferença sexual é materializada.
Essas desidentificações coletivas podem facilitar
uma recontextualização da questão de se saber
quais corpos pesam e quais corpos ainda devem
emergir como preocupações que possam ter um
peso crítico. (BUTLER, 2011, p. 152)
O processo de materialização do sexo no corpo, inclui, também o que
chamamos de orientação sexual. Para Butler (2015), a heterossexualidade não
existe num tempo pré-discursivo, não é uma categoria anterior cuja autenticidade
estaria na raiz da sexualidade humana, antes

"...o gay é para o hetero não o que uma cópia é para


o original, mas, em vez disso, o que uma cópia é
para uma cópia (...) o original nada mais é do que
uma paródia da ideia do natural e do original"
(BUTLER, 2015, p. 67)

Pensar a lesbiandade como identidade, então, seria render-se ao


binarismo de gênero, abandonando as ambiguidades da sexualidade humana.

Conclusão

A noção de identidade começa a ser duramente questionada pelos


Estudos Culturais na década de sessenta. Instáveis e descentrados, os
processos de identificação do sujeito na pós-modernidade encontram um mundo
em transformação e as ciências sociais buscam adequar seus conceitos a essa
nova “realidade”.

Stuart Hall (1999) pondera que talvez as identidades sempre tenham sido
transitórias. Essa consideração abre caminho para que o conceito seja discutido
de maneira tão radical a ponto de quase eliminá-lo.

Wittig (2006) e Rich (2010), por exemplo, pensam na identidade lésbica


como um resíduo da sociedade que tem como pilar organizativo a
heterossexualidade compulsória. Uma vez que se forjam as identidades de
homem e mulher, os homossexuais aparecem como desvio das relações
naturalizadas.
Butler (2003 e 2011) enxerga no “desvio”, a inoperância do sistema de
generificação. Para ela, os corpos são produzidos através da ideia de sexo
biológico. Uma vez que o corpo esteja criado, espera-se dele coerência. De um
corpo masculino, espera-se um homem; de um corpo feminino, espera-se uma
mulher. De ambos, espera-se heterossexualidade.

Mas são justamente os corpos que não cumprem seu destino que nos
mostram as possibilidades de escapar dessa produção. Assim, ela percebe que
o que chamamos de identidade são, na verdade, atos performativos. Nossos
corpos repetem aquilo que deles se espera porém há possibilidade perene de
erupção. Assim, não estaríamos descentrados, antes estaríamos
performativamente criando novas possibilidades.

A identidade, na visão butleriana, seria importante, entretanto, do ponto


de vista político, uma vez que as lutas sociais precisam se agrupar em torno de
atores e atrizes concretos.

A necessidade de uma identidade lésbica como ato político é, também,


considerada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens (1993). Para ele, a
homossexualidade, na modernidade tardia, adquiriu uma nova face pública,
tornando-se um "processo reflexivo em que um fenômeno social pode ser
apropriado e transformado através do compromisso coletivo" (p.23). Ele acredita
que as pessoas homossexuais encaram a sexualidade como algo que se possa
"ter", como propriedade do eu. Os relacionamentos gays estariam, de certa
forma, na vanguarda do que se tornaram os relacionamentos amorosos em
geral, já que sempre funcionaram sem as estruturas do casamento tradicional.

Assim, em tensão com as estruturas que formam o ser social e


prescindindo da chancela tradicional, a homossexualidade (e a transgeneridade)
são terrenos fecundos para que pensemos diferentes questões
contemporâneas.
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