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Buzato, Marcelo El Khouri (Org.)

Cultura digital e linguística aplicada: travessias em linguagem, tecnologia e sociedade


Marcelo El Khouri Buzato (Org.) / Campinas, SP : Pontes Editores, 2016

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-700-4

1. Meios auxiliares de ensino - cultura digital 2. Linguística aplicada


3. Comunicação 4. Formação de professores I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Meios auxiliares de ensino - cultura digital - 371.32


2. Linguística aplicada - 410
3. Comunicação - 302.23
4. Formação de professores - 370.7


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2016 - Impresso no Brasil


sumário
Travessias e travessuras: uma apresentação.................................. 7

Primeiro Aglomerado: Colaboração, Produtos, Processos

Mediação, Interação, Compreensão: fazendo a


diferença entre colaborar e cooperar.............................................. 19
Débora Secolim Coser

Curadoria Digital como Hibridização entre Narrativa


e Banco de Dados: apropriação pela mídia tradicional
e participação de outras vozes.................................................................... 45
Nayara Natalia de Barros

Mashups Políticos nas Jornadas de Junho: afinal,


o gigante acordou ou não?.............................................................................. 69
Rafael Salmazi Sachs

Segundo Aglomerado: Espaço, Identidade, Conexão

Construções Identitárias no Facebook de Professoras


Brasileiras em Formação.................................................................................... 105
Bárbara Cristina Gallardo

Espaço-temporalidade e Construção de Sentidos em uma


Rede de Letramentos: uma análise de transposições
semiótico-materiais................................................................................................ 127
Camila Lawson Scheifer

Terceiro Aglomerado: Estética, Ética, Cibernética

Transcodificação cultural nos gêneros digitais


de um MUD: encontrando o espaço de inovação do
usuário via língua(gem)...................................................................................... 147
Dáfnie Paulino da SIlva

Cidadania pós-social e encontros pós-humanos:


integrando sentido, informação e emoção..................................... 173
Marcelo El Khouri Buzato

Sobre os Autores........................................................................................................205
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Travessias e travessuras:
uma apresentação

A Linguística Aplicada é um campo de estudo cujo objeto central


é a linguagem em uso, o que torna seus objetos e percursos teóricos
de pesquisa inter e transdisciplinares, conforme apontam Cavalcanti e
Signorini (2009) e Moita-Lopes e Fabrício (2006), entre outros. Desde
suas origens, em meados do século XX, como um ramo de aplicação
da(s) teoria(s) linguística(s), a disciplina ganhou uma relativa autono-
mia praxiológica, especialmente no Brasil, por meio da incorporação
de conceitos, métodos e instrumentos oriundos de uma variedade de
outras disciplinas e campos de estudo, sempre com o objetivo de dar
inteligibilidade à relação entre significação (não necessariamente vista
como restrita à atividade linguística) e certos “problemas sociais”
complexos em vista de sua constituição material e ideológica, assim
como de sua dinâmica funcional. Em alguma medida, ao longo das
últimas duas décadas, pelo menos, a complexidade dos problemas,
e, portanto, dos objetos, vem sendo ampliada por conta dos aportes
funcionais e ideológicos de “tecnologias discursivas” (LEMKE, 2001)
de base computacional imiscuídas nos modos de significação e inter-
ação do quotidiano, os quais têm trazido repercussões epistemoló-
gicas, políticas e ontológicas, dentre elas, algumas das tratadas nos
trabalhos de pesquisa recentes aqui reunidos.
Mais do que novos suportes ou portadores de textos, as assim
chamadas tecnologias digitais da informação e da comunicação
(TDIC, doravante) são importantes mediadores da vida social con-
temporânea, no sentido de que passam a enredar nossas práticas
e formas de significação em circuitos informacionais vinculados a
um globalismo econômico e midiático interveniente em contextos
institucionais que se tornam mais desafiadores em relação às formas

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

cientificas de produção de inteligibilidade. Tais contextos, cada vez


mais interconectados, nos facultam cada vez mais a produção da
significação na forma do que Jay Lemke (2001) chamou de travessias,
isto é, percursos atravessadores de instituições (da escola à igreja,
do trabalho à família, do crime organizado ao ativismo político, da
ciência aberta às culturas de fãs, e assim por diante), linguagens, mí-
dias, gêneros e, porque não, “formas de existência” (LATOUR, 2013).
Essa diversificação e proliferação de objetos e formas complexas
de interação têm incentivado os linguistas aplicados brasileiros a
intensificarem, ainda mais, seus percursos transdisciplinares de inves-
tigação, não apenas passando por disciplinas relativamente próximas
como psicologia, antropologia, sociologia e história, além da própria
linguística, mas também pelas ciências da computação, pela geografia,
pelo direito, engenharia, estudos sociais da ciência e tecnologia, no caso
do grupo aqui representado, em particular, e muitas outras. Longe de
representarem uma perda de foco ou um exercício teórico fútil, esses
percursos transdisciplinares são claramente focalizados em um objetivo
explícito: a construção de explicações alternativas, com a consequente
proposição de estratégias de equacionamento inovadoras, para situações
de sofrimento humano, especialmente as intensificadas, nas últimas
décadas, pelas pressões de estandardização cultural e dominação tecno-
lógica intrinsecamente ligadas à mundialização da economia capitalista,
pressões sofridas, sobretudo, por grupos humanos e indivíduos situados
à margem tanto dos mercados quanto da cidadania.
Os trabalhos aqui reunidos exemplificam, em alguma medida,
essa tendência geral da disciplina, mas, como não poderia deixar de
ser, trazem algumas particularidades – para além do fato de terem
sido realizadas por membros de um mesmo grupo de pesquisa – que
nos animaram a reuni-los em um mesmo volume, a despeito da va-
riedade de temas, contextos e objetos contemplados. Uma primeira
particularidade está no fato de serem trabalhos desenvolvidos, em sua
maior parte, por jovens pesquisadores, cuja carreira se inicia já em
plena vigência da cultura digital, isto é, são tanto pesquisadores for-
mados numa LA engajada com os problemas trazidos pelos processos
de mundialização e hipertecnologização da vida quotidiana, quanto
cidadãos e consumidores que não veem o digital como revolução, mas
como parte do seu quotidiano desde sempre.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Além disso, têm em comum também as pesquisas aqui reportadas


o fato de voltarem-se para a temática mais ampla da relação entre lin-
guagem, tecnologia e sociedade, reivindicando, de certa forma, novos
lugares e parceiros de interlocução interdisciplinar para a LA, mas
nem por isso deixando de dar a devida importância a temas tradicio-
nais da LA, tais como: a educação linguística do cidadão, a formação
de professores e a mediação tecnológica no ensino de línguas.
A relação linguagem–tecnologia–sociedade, tal como a enten-
dem os autores aqui reunidos, começa a ser formulada em torno de
um questionamento sistemático sobre a noção de “inclusão digital”
(BUZATO, 2007). Mais precisamente, neste grupo, parte-se da ideia
de que a apropriação tecnológica, seja qual for a tecnologia envolvida,
produz movimentos cíclicos e quotidianos de inclusão e exclusão, já
que instaura uma tensão permanente entre homogeneização e proli-
feração da diferença, tradição e modernidade, necessidade e liberdade.
Rejeitando tanto determinismos tecnológicos e sociológicos quanto
o instrumentalismo acrítico que costuma caracterizar a relação entre
tecnologia e sociedade no senso comum, nossa abordagem enfatiza a
continuidade material entre o social e o tecnológico fundamentada em
uma visão mais simétrica (humana e não humana) do social inspirada
na imanência da linguagem (LATOUR, 2005).
Tal mediação, postulamos, pode ser pensada tanto em uma
versão moderada quanto numa versão radical. A versão moderada,
que subsidia a maior parte dos trabalhos aqui apresentados, ainda
preserva uma compartimentalização a priori entre cada uma das três
“coisas”, i.e., tecnologia, sociedade e linguagem, e desenvolve entre
elas uma relação interativa, isto é, enfatiza a linguagem em uso como
o lugar onde tecnologia e sociedade apropriam-se e transformam-se
mutuamente. A versão radical, com a qual flertam alguns dos traba-
lhos mais recentes do grupo, instaura, por princípio, uma continui-
dade “intra-ativa” entre o social (humano, cultura) e o tecnológico
(não humano, natureza) (LATOUR, 2005). Trocando em miúdos:
buscamos compreender como os textos constituem relações entre
as máquinas e as pessoas, mas também tentamos desvendar os enre-
damentos entre coisas e pessoas que constituem o social do mesmo
modo como olhamos os enredamentos entre signos e enunciados que
constituem textos.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Assim sendo, entendemos que este volume cumpre, de certa


forma, a função de exemplificar os vários esforços de transição, se
não de ruptura, entre enfoques tradicionais e enfoques inovadores
na pesquisa em linguagem e tecnologias, no âmbito da LA e de ou-
tras disciplinas. Mais especificamente, nos trabalhos deste volume, a
transição poderia ser descrita como sendo entre enfoques epistemo-
cêntricos e enfoques ontocêntricos das práticas digitais de linguagem
ou letramentos digitais, se assim preferirem.
De modo bastante objetivo, transitar de uma ênfase epistemoló-
gica para uma ênfase ontológica, puxando os fios de redes heterogê-
neas que hora facultam a circulação dos textos, ora tornam-se, elas
mesmas, o texto em exame, significa perguntarmo-nos menos sobre
como as tecnologias funcionam, e qual sua relação com aqueles que as
conhecem ou desejam conhecer, e mais sobre que tipo de mundo e que
tipo de gente as tecnologias, articuladas como cadeias de máquinas
(e outros não humanos), pessoas e signos, fazem existir.
Está em curso nas ciências humanas, como sabemos, um mo-
vimento chamado “virada ontológica”, que, como outras “viradas”
do passado, demanda uma réplica dos estudos da linguagem no
campo aplicado no Brasil. Contudo, sabemos que as tecnologias
digitais da informação e comunicação nos fornecem, neste momento,
não só condições práticas excepcionais para o acesso, o registro,
a combinação, a simulação e a organização de dados, quanto o de-
safio metodológico de buscamos métodos afinados com uma nova
imaginação sociológica, e acrescentamos, um novo olhar sobre a
significação, um olhar menos suscetível às formas de purificação e
objetivação da ciência tradicional e mais aberto a diferentes formas
de vida (LATOUR, 2013).
Do ponto de vista prático, buscamos marcar essa ótica sobre
nossos objetos privilegiando, em cada capítulo, a ideia de mediação,
tal qual já referida nesta apresentação. Mais concretamente, tomamos,
como mote dos capítulos reunidos o tema das mediações tecnológicas
que enredam os cidadãos brasileiros, especialmente os mais jovens,
em suas práticas semiótico-discursivas em diferentes domínios da
vida, tais como o da educação formal e informal, da participação em
espaços de lazer e ativismo cívico, do consumo de conteúdos midi-

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

áticos e estabelecimento de laços afetivos translocais, e das relações


do cidadão com empresas e governos via sistemas de informação.
Os capítulos exploram, com respeito a esses domínios específicos,
questões igualmente específicas, mas oferecem ao leitor, também,
alguns “ganchos explícitos” que sugerem percursos transversais de
leitura do volume. Para dar maior organicidade ao volume que, como
já dissemos, não é uma coletânea, no sentido tradicional, mas uma
espécie de relato de trajetos sobre um mesmo território, achamos útil
dividir os capítulos em três aglomerados (ou clusters) que, imagina-
mos, podem corresponder a agrupamentos relativamente frequentes
de interesses e preocupações dos nossos leitores, que não chegam,
entretanto, a constituir um bloco temático “sólido”.
No primeiro aglomerado, intitulado “Colaboração, Produtos,
Processos”, estão reunidos os trabalhos de Débora Secolim Coser,
Nayara Natalia de Barros e Rafael Salmazi Sachs. Os três textos, coin-
cidentemente dos três autores mais jovens, focalizam, pela observação
de práticas digitais específicas, o modo como se busca hoje construir
colaborativamente “novas” formas textuais e/ou de aprendizagem,
na esteira de certas novas possibilidades de participação social, for-
mação cidadã e aprendizagem de línguas vinculadas às redes digitais.
Débora Secolim Coser compara o funcionamento de um portal de
afinidade em prática de línguas, de uso gratuito, com um curso online
de intercompreensão entre falantes de línguas próximas. Partindo de
um conceito amplo de “mediação” como a vinda à existência de um
agente híbrido a partir da ligação entre pessoa e tecnologia, a autora
mostra que o tipo de plataforma de colaboração utilizada, assim como
o nível de conhecimento sobre as línguas de cada participante, em cada
caso, condiciona menos a qualidade da colaboração e da aprendizagem
do que a relação estabelecida entre mediação tecnológica e mediação
pedagógica. Conclui de sua comparação que é necessário pensarmos
em mediações que não cedam nem à noção utópica de uma cidadania
global que exclui o desejo de experimentar a localidade no lugar do
outro, nem a fantasia, comercialmente engenhosa, mas educacional-
mente inócua, de o conhecimento de nossa própria língua e o acesso
a um canal de comunicação serem suficientes para “ensinar” o outro
a ser global em nossa língua.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Deslocando o foco da apropriação tecnológica para a prática da


comunicação social, Nayara Natalia de Barros examinou, no capítulo
2, o modo como um jornal tradicional utiliza a curadoria digital para
envolver usuários de redes sociais na produção de um objeto digital
chamado story, um híbrido de notícia-repercussão apoiado na forma
híbrida narrativa-banco-de-dados. As stories evidenciam, para a au-
tora, uma suposta (re)negociação, em tempos de cultura digital, dos
papéis e das relações de poder entre jornalistas, leitores, anunciantes
e concorrentes. Examinando como as operações curatoriais do jorna-
lista são transformadas em movimentos de apropriação tecnológica,
conclui, a despeito do potencial educacional e da formação cidadã
implícitos na noção de curadoria (digital), que curadoria não implica
necessariamente destacar outras vozes que não as vozes de poder já
existentes. Deve-se, por isso, observar e analisar, contextualmente,
as apropriações e de que maneira elas acontecem, caso a caso.
Fechando o primeiro “cluster” de trabalhos, Rafael Salmazi Sachs
apresenta uma proposta de reflexão metodológica acerca de uma con-
cepção da linguagem e dos textos digitais como processo que ocorre
em diferentes escalas, a dos textos em si e a da prática discursiva em
que os textos são gerados e circulados. Embora essa forma de conce-
ber a tarefa do analista de textos e discursos não seja nova, a escolha
do corpus (mashups políticos feitos por usuários de redes sociais), do
contexto de produção (as jornadas de junho de 2013 no Brasil), e do
escopo de análise (que engloba a multimodalidade do texto e o proces-
so de ressemiotização pelo qual ele vai sendo transformado ao longo
do tempo) torna o trabalho instigante. Ao partir de uma concepção
do político como modo de enunciação em que os enunciados visam a
instaurar o que são a realidade e o interesse públicos, o autor retra-
ça o percurso pelo qual “o gigante”, figurativização do Brasil como
nação, acordou e voltou a dormir. Destaca o autor, como conclusão,
que focalizar a força política dos textos digitais vai além de exaltar os
seus efeitos metassemióticos; é preciso estimular e auxiliar os jovens
aprendizes brasileiros a consolidarem um repertório de referências
culturais e sociais que permitam a percepção da transtextualidade
em suas diversas manifestações, cotidianamente.
O segundo aglomerado, denominado “Espaço, Identidade,
Conexões”, traz trabalhos que enfatizam o fenômeno espacial das

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

tecnologias digitais, isto é, o conjunto de novas possibilidades de in-


teração via presença metafísica trazidas pela globalização digitalizada.
Entendendo que essas possibilidades colocam a noção de “contexto”
como algo a ser problematizado, os dois trabalhos do bloco adicio-
nam à ótica territorial e sócio-histórica, usualmente empregada em
LA, uma outra, mais propriamente espaciotemporal, capaz de trazer
novas perguntas sobre identidade e aprendizagem (ou formação) na
cultura digital.
Bárbara Cristina Gallardo, formadora de professores de inglês,
formada no “sul maravilha”, mas que atua numa região de agronegó-
cio, no interior do Brasil, estudou o potencial formativo do estabele-
cimento de vínculos de “amizade” entre seus amigos anglófonos e as
licenciandas de Letras brasileiras sob sua supervisão, via Facebook. A
autora mostra, a partir de uma análise discursiva crítica das interações
desenvolvidas por esse meio, que, diferentemente do vínculo trans-
local que pretendera estabelecer para a formação das licenciandas,
o que elas fizeram foi estabelecer vínculos do tipo “transnacional”, a
partir de identidades imaginárias, apoiadas em referências discursivas,
visuais e verbais, ao “sul maravilha”.
Em um profundo trabalho teórico visando a contrapor às teorias
de base sócio-histórica que normalmente orientam estudos sobre
aprendizagem escolar no Brasil a uma ótica socioespacial vigente na
geografia pós-moderna, Camila Lawson Scheifer analisa percursos
espaciais e semióticos que caracterizaram aberturas e fechamentos
de terceiros espaços, caracterizados como espaços propiciadores da
aprendizagem, num conjunto de eventos discursivos de que participam
uma professora e seus alunos do ensino fundamental, ao longo de um
projeto de aprendizagem interdisciplinar que contemplava diferentes
contextos de aprendizagem: a escola, a rádio da cidade e o ciberespaço.
Mostrando com clareza os modos de orquestração discursiva-semiótica
dos tempos e espaços típicos da escolarização tradicional empregados
em cada espaço e na sua interconexão, a autora propõe linhas mestras
do que poderia vir a ser uma pedagogia do terceiro espaço em harmonia
com o fenômeno espacial das tecnologias digitais.
Finalmente, no aglomerado “Estética, Ética , Cibernética”,
Dáfnie Paulino da Silva e Marcelo El Khouri Buzato investigam, em

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

situações práticas bastante diversas entre si, efeitos éticos e estéticos


do convívio nem sempre pacífico, e da interpenetração mútua, do
cultural com o computacional na prática discursiva dos brasileiros,
na esteira do que alguns têm chamado “computadorização da cultura”
no globalismo digital.
Dáfnie Paulino da Silva, como pesquisadora e participante
“graduada” de um MUD (Multi-user dungeon), isto é, um jogo de
RPG executado em servidor de Internet, neste caso, com conteúdo
baseado na literatura de fantasia de J. R. R. Tolkien, mostra como
nossa compreensão sobre gêneros digitais pode ser ampliada quando
investigamos o modo pelo qual jogadores (neste caso, usuários de
outros espaços, participantes de outros gêneros) utilizam a porosi-
dade entre a camada computacional e a camada cultural para agir no
universo ficcional, e ao mesmo tempo na vida “fora do personagem”,
promovendo inovações estéticas que revelam o modo de partici-
pação do humano, ao lado do não humano, no desenvolvimento e
transmutação desses gêneros. A autora conclui que a exploração da
porosidade entre o cultural e o computacional deve ser um aspecto
priviliegiado no trabalho educativo voltado para os gêneros digitais,
pois é a partir desse trabalho que os sujeitos podem apropriar-se da
própria agentividade que lhes permite ser mais do que meros usuários
tanto dos softwares, quanto de suas línguas.
Fechando o aglomerado 3, assim como o volume, Marcelo El
Khouri Buzato apresenta uma reflexão filosófica e prática sobre “cida-
dania aumentada”, por analogia ao conceito de “realidade aumentada”,
que descreve os novos acoplamentos entre o biológico e o cibernético
proposto, por exemplo, pelos novos designs de computadores vestíveis.
Enfatizando o sofrimento humano causado por uma falsa equiva-
lência entre informação e sentido nas interações entre consumidor/
cidadão e corporações/Estado mediada por sistemas de atendimento
computadorizados, o autor denuncia o “descarte da emoção” nos cir-
cuitos heterogêneos de práticas envolvendo humanos e não humanos
que produzem a realidade do quotidiano. Propõe, como estratégia de
resistência nesse sentido, um esforço interdisciplinar de pesquisa e
intervenção baseado no acoplamento de uma semiótica do signo a
uma semiótica material.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

À guisa de conclusão e contextualização para o leitor, reforço


que, ao organizar esta obra, foi nosso desejo menos oferecer uma
síntese ou totalização de uma linha de pesquisa, ou território inter/
transdisciplinar, por menor que fosse, do que simplesmente resga-
tar e sistematizar percursos de jovens, e nem tão jovens, linguistas
aplicados brasileiros que têm dedicado sua carreira, desde sempre, à
investigação de como, e com que implicações, linguagem, tecnologia
e sociedade interagem e/ou “intra-agem” para constituir um “mundo
novo”, que, por vezes, se mostra admirável, e, por outras, abominável.
A contribuição pretendida por este grupo de autores é relativamen-
te clara: diversificar, conectar, ampliar o escopo dos contextos, das
práticas, das metodologias, e assim por diante, na esperança de ver
emergir como objetos, o que experimentamos como fenômenos, de
modo um tanto vago, no dia a dia da sociedade da informação e da
cultura digital. É bastante óbvio que o trabalho a que nos propomos
só ganhará corpo e força de maneira responsável se alicerçado em
sólidas parcerias inter/transdisciplinares, assim como na certeza de
que qualquer separação entre teoria e prática é falaciosa. Esperamos,
portanto, encontrar entre nossos leitores de dentro e de fora da Lin-
guística Aplicada mais e bons companheiros para nossas travessias
e travessuras.

Marcelo El Khouri Buzato


San Diego, setembro de 2015

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Referências

LATOUR, B. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory.


Oxford; New York: Oxford University Press, 2005.
LATOUR, B. An inquiry into modes of existence: an anthropology of the
moderns. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2013.
LEMKE, J. L. Discursive Technologies and the Social Organization of
Meaning. Folia Linguistica, v. 35, n. 1-2, 2001.
MOITA LOPES, L. P. DA; FABRÍCIO, B. F. (Org.). Por uma linguística aplicada
indisciplinar. São Paulo, SP: Parábola, 2006.
SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. DO C. (Org.). Linguística aplicada e
transdisciplinaridade: questões e perspectivas. Campinas, SP, Brasil:
Mercado de Letras, 1998.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Primeiro Aglomerado: Colaboração,


Produtos, Processos

Linguagem Tecnologia Sociedade

Mediação “Mediação,
Intercompre- Dinâmicas
Débora Coser

Tecnológica Interação, Com-


Capítulo 1:

ensão sociais
Plataformas de preensão: fazendo
Comunicação Agentes sociais
aprendizagem a diferença entre
Mediada por Política e Peda-
colaborativa colaborar e coo-
Computador gogia
online perar”

“ Curadoria
Cultura partici- Digital como
pativa Hibridização
Nayara de Barros

Algorítimo
Formação de entre Narrativa e
Capítulo 2:

Hibridismo curador
opinião Banco de Dados:
Narrativa Banco de dados
Mídia tradicio- apropriação pela
Textualidade Plataforma cura-
nal mídia tradicional
torial
Apropriação e participação de
tecnológica outras vozes”

Inter/transtex-
tualidade
Política ���”Mashups
Multimodali-
Rafael Sachs
Capítulo 3:

Mídia social Mobilização Políticos nas Jor-


dade
Mídia tradicional Espaço Público nadas de Junho:
Ressemioti-
Remix Heterogenei- afinal, o gigante
zação
dade acordou ou não?”
Regime de
enunciação

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Mediação, Interação, Compreensão: fazendo


a diferença entre colaborar e cooperar
Débora Secolim Coser

Introdução
O uso da Internet para o ensino de línguas abriu possibilidades
sem precedentes de combinarem-se aprendizagem informal e forma-
ção de cidadãos ao permitir aos sujeitos lidarem com interlocutores
reais e conteúdos significativos na língua-alvo. Isso mediante sua
participação em coletivos que agem colaborativamente em torno de
objetivos específicos, quer se trate de grupos de afinidade ou comu-
nidades virtuais mais estáveis.
Nessas situações, cabe aos usuários/aprendizes não somente
compreender a língua-alvo ou desenvolver fluência nela, mas, mais
concretamente, traçar trajetórias individuais de aprendizagem por via
do acionamento consciente de sua capacidade agentiva1 (BUZATO,
2008; 2013), vinculando seus interesses individuais aos objetivos
coletivos.
Temos esperança de que as novas arquiteturas de participação
social que ganharam corpo com a Web 2.0 possam vir a trazer às
práticas educacionais em línguas, com maior frequência e amplitude,
modos menos encenados e estereotipados de agir do que em geral é
possível fazer em sala de aula, com o apoio de livros didáticos e ativi-
dades de simulação, como diálogos inventados a partir de esqueletos
na lousa. Não nos iludamos, contudo, supondo que a simples oferta
desses espaços de encontro e socialização online já garanta uma ex-

1 Buzato (2008, p. 326) define o conceito de agentividade como “maneiras pelas quais sujeitos
subalternos produzem, sob aparência de sujeição e conformidade e dentro de um sistema disci-
plinar que não podem ignorar, formas de inclusão que não se igualam à padronização e às formas
de diferenciação que não implicam o isolamento.”

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

periência de aprendizagem livre de estereótipos e encenações (ver


GALLARDO, neste volume).
Embora muitos docentes ignorem este fato, a mobilização da
agência social dos aprendizes e dos seus interesses individuais em
trajetórias informais de aprendizagem colaborativa/cooperativa
já são experimentadas em alguma medida fora da escola, quando,
por exemplo, empreendem aventuras colaborativas em universos
ficcionais online (ver SILVA neste volume), ou contribuem em co-
munidades de conhecimento criadas em torno de seus conteúdos
midiáticos favoritos (JENKINS, 2009) e, especialmente, de mobili-
zações cívicas em torno de questões políticas diversas (ver SACHS,
neste volume).
Tais práticas oferecem, potencialmente, caminhos significativos
de aprendizagem de línguas e formação de cidadãos, os quais não
são necessariamente reconhecidos pela escola. Porém, não custa en-
fatizar, é ingênuo pensar que a simples participação dos aprendizes
em espaços colaborativos vá resultar em aprendizagem ou formação
cidadã sem que haja algum tipo de mediação2 nesse sentido. Mais
concretamente, o sentido e o resultado dessa participação estarão
sempre em clara relação com pelo menos dois tipos específicos de
mediação: de um lado a (i) mediação tecnológica que dá suporte às
práticas discursivas nos espaços de iteração online e, de outro, a (ii)
mediação político-pedagógica que permite a um aprendiz aproximar-
se de determinado conhecimento, em determinado contexto socio-
cultural e institucional.
A plausibilidade de relacionar esses dois tipos de mediação num
mesmo plano de análise apoia-se numa concepção de tecnologia
alternativa à do senso comum. Trata-se de pensar-se em tecnolo-
gias, entre elas a(s) (da) escola, não como artefatos materiais com
conhecimentos científicos “embarcados”, máquinas utilizadas como
meios técnicos neutros para fins materiais e intelectuais específicos.
É necessário pensar em tecnologias como redes que congregam uma
grande quantidade de agentes humanos e não humanos e os vinculam

2 No escopo deste capítulo, o termo mediação faz referência à intervenção de um determinado


elemento, ou conjunto de elementos – sejam eles simbólicos ou concretos, humanos, técnicos,
políticos, ou de outra natureza – na relação entre os aprendizes que participam de comunidades
virtuais de aprendizagem de línguas e a língua que desejam aprender.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

mutuamente em empreendimentos coletivos nos quais as ações e os


sentidos são constantemente traduzidos e transportados (LATOUR,
1994; ver BUZATO neste volume).
Neste capítulo, busco explorar a forma como se relacionam esses
dois tipos de mediações ou, mais especificamente, como as diferentes
possibilidades de relacionamento entre esses dois tipos de mediação
afetam os modos de o aprendiz agir e aprender em diferentes situações
e/ou contextos de prática colaborativa online
Com tal propósito em mente, faço inicialmente uma reflexão
teórica sobre mediação (tecnológica e pedagógica). Em seguida, tomo
como focos de análise dois casos específicos de iniciativas voltadas
para a aprendizagem de línguas online. Uma delas, chamada Galanet,
é capitaneada por universidades europeias e fortemente institucio-
nalizada. A outra, chamada Busuu, é uma iniciativa liderada por
empreendedores privados na Internet, aberta ao público em geral e
caracterizada por um alto grau de informalidade.
Com base em dados gerados pela interação online entre os apren-
dizes em cada caso, o capítulo compara as respectivas dinâmicas de
participação e colaboração, visando a caracterizar os modos de apren-
dizagem e agência que foram, ou deixaram de ser, entrelaçados. Trago
dessa análise resultados que mostram como diferentes mediações
desviam os significados e as atividades previstas pelos criadores de
ambas as plataformas, ao mesmo tempo em que habilitam o aprendiz
a fazer muito além do que poderia fazer sem que lhe fosse franqueado
qualquer tipo de mediação.

O conceito de mediação

Usualmente nos estudos sobre ensino-aprendizagem online,


utiliza-se a palavra mediação em referência ao trabalho de profes-
sores/tutores “virtuais”, chamados, por vezes, de “mediadores”.
Contudo, vários outros agentes de natureza tecnológica, didática e/
ou político-institucional também podem ser vistos como mediadores
entre o conhecimento-alvo e os aprendizes. Sobretudo, os próprios
aprendizes podem agir como mediadores uns em relação aos outros,
ainda que, em geral, reproduzam, para isso, formas de mediar trazidas

21
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

de suas experiências como aprendizes no ensino escolar tradicional


(SECOLIM-COSER, 2013).
Sendo assim, sem descartar a importância da atuação do tutor
como agente mediador, tomo aqui uma concepção de mediação mais
“simétrica” (LATOUR, 1994), isto é, utilizo o conceito de mediação
para descrever modos de agir de todos os tipos de agentes envolvidos
na prática social que denominamos ensino-aprendizagem online, quer
sejam humanos ou não humanos.
É no âmbito da comunicação mediada por computador (do-
ravante CMC), especialmente, que o termo mediação expressa
claramente a pertinência dessa simetria conceitual. Podemos dizer
que há uma mediação tecnológica na comunicação mediada por
computador, porque o instrumento técnico utilizado tem carac-
terísticas materiais e funcionais que restringem a forma comuni-
cativa de algum modo; e que há uma mediação social, porque os
sentidos produzidos no uso do instrumento técnico moldam-se
pelo “corpo social” (isto é, as relações funcionais e simbólicas
estabelecidas pelos atores sociais ‘humanos’) e se regeneram nele
(JOUËT, 1993). No âmbito da CMC voltada para a aprendizagem
colaborativa de línguas, damos a essa regeneração e moldagem
do uso dos elementos técnicos com um sentido de aprendizagem
o nome de mediação político-pedagógica.
Uma maneira mais direta e radical de abarcar todas essas
mediações sob um mesmo enfoque analítico é adotar o conceito
de mediação proposto pelo filósofo material Bruno Latour (1994).
Nessa vertente teórica, desconsideram-se, por princípio, as di-
ferenças de status agentivo dadas, a priori, para os mediadores
humanos e não humanos. Mesmo não dispondo de intenção e
consciência, os mediadores não humanos são vistos como dotados
de interesses próprios, e de capacidade para agir, ainda que apenas
resistindo e desviando ações humanas. Busca-se, assim, enfatizar
as transformações sofridas pelos agentes humanos e não humanos
quando vinculados entre si. Para exemplificar, Latour (1994) toma
o tradicional debate sobre o direito ao porte de armas de fogo nos
EUA, resumindo as duas posições em jogo nessa controvérsia da
seguinte forma:

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Armas matam pessoas.


Pessoas matam pessoas, não armas.

No primeiro slogan, há uma visão que o autor chama de materia-


lista, na qual a arma atuaria por virtude própria dos seus componentes
materiais (técnicos) e não pelas qualidades sociais do seu portador.
O segundo slogan traz a visão sociológica da Associação Nacional de
Armas (National Rifle Association – NRA), segundo a qual a arma
seria neutra e agiria apenas de acordo com a vontade ou índole de
quem a porta e puxa o gatilho.
Para Latour (1994), ambos os argumentos perdem qualquer vali-
dade quando se constata que quem mata é um terceiro agente trazido
à existência pela união entre homem e arma. A ação desse terceiro
agente, contudo, não pode ser prevista com precisão, justamente
porque suas ações resultam de tensas negociações de interesses e
competências entre os dois agentes que o constituem, ambos capazes
de transportar e desviar ações, embora de modos diferentes.
Com o surgimento desse novo agente, criam-se também novas
metas para concluir (dar sentido) a uma ação, metas essas que não
pertencem isoladamente a nenhum dos dois agentes originais. Essa
incerteza sobre as metas é chamada pelo autor de “translação”, ou
seja, um deslocamento na direção da agência, uma invenção por meio
da qual objeto e sujeito tornam-se uma só coisa e desempenham certa
trajetória diferente do que cada ator/elemento (técnico e humano)
teria estabelecido isoladamente.
Uma translação tanto pode dar em nada de concreto e durável,
quanto pode produzir algo de novo no mundo (inclusive, aprendi-
zado!). Tudo depende de haver ou não um alinhamento perene dos
interesses e capacidades dos mediadores vinculados entre si. Em
verdade, quanto mais heterogêneo for o conjunto, mais difícil será
obter tal alinhamento, mas, uma vez obtido, tão mais poderoso será
o novo agente criado (LATOUR, 1987).

23
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Mediações nas plataformas Busuu e Galanet

Levar o conceito de mediação descrito acima para o contexto


das plataformas Busuu e Galanet significa pensar em um aprendiz
não como um sujeito humano autônomo que manipula um instru-
mento técnico neutro, voltado para uma meta intelectual por ele
controlada. A ideia seria pensar tal agente como o conjunto usuário
+ plataforma + elementos didáticos e institucionais, um agente que,
como dito, pode atuar sem maiores consequências por algum tempo
e então desintegrar-se, antes que qualquer aprendizado seja atingi-
do, ou pode efetivamente agir de forma consequente, trazendo para
cada um dos envolvidos capacidades novas, oriundas de conexões
que antes não havia.
A nova identidade do aprendiz será constituída, portanto, em
relação à identidade desse novo elemento em que ele se envolveu ao
conectar-se via CMC, caso o mesmo venha a vingar. No caso do Ga-
lanet, um dos elementos agregados à rede para constituir o agente
é um projeto político-pedagógico voltado para a intercompreensão.
Esperam os fundadores da plataforma que, assim constituído, esse
agente possa tornar-se alguém que resiste à hegemonia do inglês
na era da globalização. Ao participar dessa translação, o aprendiz
deveria, em tese, tornar-se um “cidadão global” sem “desvincular-se”,
para tanto, de sua identidade local, expressa pelo uso de sua língua
nacional. Já no caso do Busuu, o terceiro elemento em constituição,
numa escala “global”, é um “cliente” que gera ganhos financeiros para
os acionistas de modo alternativo ao que seria possível em escolas
tradicionais. Trata-se de alguém que aderiu, conscientemente ou não,
a um modelo de negócio no qual as pessoas fazem “escambo” de suas
competências linguísticas adquiridas em sua socialização primária ou
em experiências de aprendizagem anteriores.
Quanto à mediação como incerteza sobre as metas devido aos
deslocamentos e redirecionamentos constantes dos agentes, ela se
revela de várias formas em ambas as plataformas. No caso do Busuu,
podemos citar, por exemplo, usuários que, tendo lá se encontrado,
migram para o Skype ou WhatsApp ou outra plataforma de CMC,
“traindo” o plano de negócios estabelecido. No do Galanet, vemos os

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

aprendizes que, tendo encontrado, na plataforma, falantes de línguas


que lhe interessam aprender, deixam de enfatizar a intercompreensão,
e passam a dedicar-se ao desenvolvimento de capacidade de expressão
na língua nacional do outro.
Para prevenir e gerenciar esses desvios, sustentando o alinha-
mento entre os agentes de modo que a translação se encaminhe na
direção por eles proposta, os gestores das plataformas servem-se não
apenas de recursos técnicos, mas, também, de um tipo de mediação
“moral” expressa na forma de um contrato tornado mais ou menos
claro, de modo mais ou menos formal, conforme o caso. No caso do
Galanet, trata-se de um “contrato didático” (REBELO; MATHIAS;
MARQUES, 2007) estabelecido entre aprendizes e tutores; no caso
do Busuu, trata-se de “termos de uso”, aos quais os usuários aderem,
no mais das vezes, sem lê-los.
Comparar as formas de mediação vigentes nas duas plataformas,
portanto, é comparar os caminhos pelos quais os interesses dos atores
envolvidos são negociados em várias escalas, por meio de diferentes
formas simbólicas e modos específicos de agir. Trata-se de explicitar
não operações de uso desse ou daquele recurso para essa ou aquela
finalidade, mas de seguir percursos de translação gerenciados por
coletivos híbridos, sujeitos a movimentos de estabilização e desesta-
bilização sucessivos.

Mediação tecnológica

Muitos dos autores que escrevem sobre “mediação tecnológi-


ca” tratam de como os discursos veiculados pelas mídias afetam o
estabelecimento da hegemonia e de outras questões macrossociais e
ideológicas que, embora relevantes, não são o foco de minha reflexão.
Interessam-me mais propriamente, aqui, os modos “materiais” como
os meios técnicos (mídias, mediadores) afetam os usos situados da lin-
guagem, inclusive em situações comunicativas do tipo que observamos
no Busuu e no Galanet. Para dar conta desse aspecto da discussão
sobre “mediação”, recorro aos trabalhos de Herring (2004a, 2004b).
Herring (2004a) formalizou uma vertente de pesquisa chamada
ADMC – Análise do Discurso Mediado por Computador. Para a

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

autora (2004a), cada forma ou serviço de CMC (chat, email, listserv


etc.) apresenta sua própria história e cultura de uso (culture of use)
sendo que grupos que utilizam instâncias de uma mesma forma de
CMC também produzem “línguas sociais” particulares. São esses
usos que permitem ao analista estabelecer identidades coletivas a
partir dos traços linguístico-discursivos3 em diferentes contextos
de interação online.
“Mediação” seria entendida, para a autora, como os efeitos res-
tritores de variáveis técnicas específicas de cada ferramenta de CMC
nas formas e nos usos linguístico-discursivos desenvolvidos pelos
praticantes. Mais especificamente, tais variáreis são:

• Tamanho das mensagens permitidas;


• Persistência do texto na tela;
• Tipos de comandos comunicativos disponíveis (grita com, fala reser-
vadamente com etc.);
• Facilidade de incorporar partes de mensagens anteriores na mensagem
corrente;
• Possibilidade de mandar mensagens anonimamente;
• Possibilidade de filtrar ou ignorar mensagens dos outros;
• Canais disponíveis além do texto digitado (áudio, vídeo, animação etc.).

Apoiada em Herring (2004b), mas aproximando sua concepção


do conceito de mediação adotado nesta pesquisa, proponho que as
mesmas variáveis possam ser vistas não apenas como restritores, mas
também como propiciadoras, isto é, como affordances que estabelecem
possibilidades novas de uso da língua ou de ação pela língua. Por
exemplo, nas salas coletivas de bate-papo, é possível a um interlo-
cutor recuperar turnos passados antes de seu ingresso na conversa e
reconstruir a lógica de um argumento, sobrepassando, assim, certos
limites cognitivos usuais numa situação de conversa face a face. Da
mesma forma, podemos pensar na possibilidade de se recorrer a um
motor de busca ou um verbete de enciclopédia online a fim de procurar
uma informação desconhecida, ou numa foto instantânea que possa
ser enviada para o interlocutor para “mostrar” algo, ou, ainda, no caso
de quem recorra à tradução automática em alguns momentos de um
3 Tomando como exemplo os sistemas de chat IRC e ElseMOO, a autora explica que o uso de
certas formas linguísticas (não padrão) habituais em um dos sistemas é reconhecida por usuários
do outro sistema como uma marca da “estrangeiridade”.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

bate-papo online em uma língua estrangeira. Enfim, podemos pensar


em mediação tecnológica como algo que afeta a produção linguístico-
dicursiva não apenas no sentido restritivo, mas também no sentido de
ampliação da competência ao longo de uma trajetória em que o agente
vai se constituindo mediante vínculos com outros agentes.
Considere-se ainda, finalmente, o modo como as variáveis
técnicas podem ser “enredadas” com recursos pragmáticos e socio-
discursivos para gerar novas possibilidades de ação pela linguagem.
Por exemplo, em determinadas situações comunicativas, a latência,
isto é, o tempo transcorrido entre o envio e a chegada do sinal que
carrega a mensagem entre dois dispositivos de CMC interconecta-
dos, pode ser interpretada como silêncio, ou o silêncio como latência.
Obviamente, isso pode afetar o percurso discursivo, assim como a
relação social entre os interlocutores (BUZATO; SEVERO, 2010;
BUZATO, 2014).
Em suma, uma vez que passamos a pensar sobre “mediação tecno-
lógica” não apenas como restrição, mas também como constituição de
novos agentes e abertura das possibilidades de percurso agencial, nos
aproximamos da concepção de mediação proposta por Latour (1994).
A partir dela, podemos, inclusive, considerar os diversos efeitos das
novas possibilidades quantitativas e qualitativas de ação coordenada
em grande escala possibilitadas por softwares sociais, tais como as
plataformas de CMC empregadas pelo Busuu e pelo Galanet.

Mediação político-pedagógica

Para falar sobre mediação político-pedagógica, levo em con-


sideração os conjuntos de acordos, normas, diretrizes e princípios
relativos ao uso das línguas nas plataformas estudadas; também aos
objetivos pedagógicos estabelecidos e vinculados aos respectivos pla-
nos estratégicos (de negócios ou político-pedagógicos) e, finalmente,
os termos de uso que, em geral, regem as diversas plataformas de
ensino-aprendizagem de línguas online na Internet criadas nas últi-
mas duas décadas.
No ambiente digital, assim como nos ambientes educacionais
offline, o contrato didático se faz cumprir pelo uso de mediadores, isto

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

é, agentes (humanos e não humanos), tais como docentes, currículos,


mecanismos de registro da frequência, arquiteturas de informação e
navegação (físicas ou online) que obrigam a atenção dos aprendizes
a circular de determinadas formas, ou os obrigam a fazer tarefas em
determinadas sequências, e assim por diante.
Cabe aos tutores, como agentes humanos de mediação político-
pedagógica, entre outras coisas, propiciar e/ou restringir formas de
produção linguístico-discursiva, quer seja intervindo diretamente
nas interações entre aprendizes, quer seja como organizador de ati-
vidades e percursos temáticos que, em tese, implicarão maior chance
de aprendizagem para os participantes. Muitas vezes, essa mediação
não é necessariamente explícita ou intencional, como quando, por
exemplo, a presença de um tutor humano na sala de chat inibe o uso
de determinada língua e favorece o uso de outra, ou acaba motivando
um estilo de escrita mais monitorado (e, portanto, mais formal) por
parte dos aprendizes; ou, ao contrário, motiva nos aprendizes certos
modos de resistência que implicam em um aprofundamento da sua
atenção para a forma e o significado das palavras na língua que es-
tiver sendo utilizada.
Enfim, assim como a mediação tecnológica, a mediação político-
pedagógica não necessita ser vista apenas como efeito restritivo so-
bre as formas de atividade possíveis, mas também pode ser pensada
a agregação de novos elementos que ampliam as capacidades dos
agentes a partir do seu enredamento mútuo. Porém, novamente neste
caso, há que se ter em mente que os resultados desses enredamentos
não são totalmente previsíveis, ainda que se tenha partido de algo
como um “contrato”, formalizado ou tácito, justamente porque cada
agente traduz, com sua ação, o significado e a direção da ação dos
outros agentes.

Encontros e desencontros e seus efeitos

Tendo explicado o que considero serem as mediações tecnoló-


gica e político-pedagógica vigentes nas duas plataformas, passo a
mostrar alguns efeitos do encontro ou do desencontro desses dois
tipos de mediação em cada caso. O que os dados mostrarão, a se-

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

guir, é que, apesar de haver em ambos os casos a disponibilidade de


novas propiciações técnicas e sócio-discursivas, as relações e papéis
estabelecidos no ensino escolar tradicional acabam atuando como
mediadores mais poderosos nas práticas desses aprendizes. Porém,
esse fato tem repercussões distintas quando levamos em conta a na-
tureza das plataformas estudadas e dos objetivos de aprendizagem
considerados. Antes, porém, descrevo brevemente o funcionamento
de cada plataforma.

A plataforma Galanet

A plataforma Galanet foi implementada pelo projeto europeu


Sócrates Língua (2001-2004) a fim de permitir - “aos locutores
de diferentes línguas românicas a prática da intercompreensão,
ou seja, uma forma de comunicação plurilíngue em que cada um
compreende as línguas dos outros e se exprime na(s) língua(s)
românica(s) que conhece, desenvolvendo, assim, em diversos níveis,
o conhecimento dessas línguas4”. Assim sendo, o projeto político-
pedagógico apoiado no ambiente tecnológico está centrado no
combate à hegemonia do inglês como língua global, propondo
como alternativa a intercompreensão entre falantes de línguas
próximas no cenário europeu.
O espaço de prática da intercompreensão dá suporte a um cenário
pedagógico que permite aos usuários de origens culturais e geográ-
ficas variadas – brasileiros, franceses, italianos, belgas, argentinos,
portugueses, espanhóis e romenos – desenvolverem diversas etapas
de um trabalho colaborativo nos múltiplos espaços de comunicação
mediada por computador que o compõem, com o objetivo final de
elaborarem um dossiê5 plurilíngue sobre um tema específico, esco-
lhido pelo próprio grupo.
Os participantes são provenientes de instituições de ensino su-
perior, em sua maioria da Europa, não estando a plataforma aberta

4 Plataforma acessível via http://www.galanet.eu. Página de entrada. Acesso em: 03 jul. 13.
5 O dossiê consiste em um trabalho que reúne textos em diversas línguas românicas sobre o assunto
escolhido como tema da sessão. O tema é desenvolvido pelos usuários durante as quatro etapas de
interação na plataforma e os materiais trocados nessas interações são compilados pelos redatores
das equipes, que são eleitos pela frequência com que se engajam nas interações da plataforma.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

para a participação de indivíduos quaisquer interessados em se en-


gajarem espontaneamente nas interações plurilíngues. A liderança
dos processos que se dão na plataforma está a cargo de animadores
do site (tutores/mediadores humanos), em geral, professores e pes-
quisadores ligados ao projeto.
O espaço virtual do Galanet é apresentado por meio de uma
metáfora espacial, com diversos ambientes designados para funções
específicas, como mostra a Figura 1. Há, por exemplo, escritórios de
identificação individual e de equipe, bibliotecas, espaços de autofor-
mação e recursos didáticos, sistemas de rastreamento das últimas
conexões dos usuários e uma sala de apoio técnico. Destacam-se
dentre esses espaços, do ponto de vista da pesquisa realizada, aqueles
em que a CMC permite que a competência colaborativa – principal
responsável pelo desenvolvimento da intercompreensão plurilín-
gue – seja operacionalizada de diversas maneiras. Neste trabalho
exploratório, focalizo unicamente na plataforma Galanet os eventos
comunicativos que se dão em sessões de chats com caráter pedagógico,
em sua maioria pré-programados entre as equipes6.

Figura 1 - O espaço online da plataforma Galanet que reproduz


ambientes físicos de interação

6 Cada equipe é nomeada de acordo com a instituição de ensino superior que representa e composta
por alunos, professores da instituição, além de outras pessoas convidadas pelos responsáveis
do grupo. Dentro de uma mesma equipe pode haver falantes de diversas línguas, o que ocorre
principalmente nas equipes provenientes da Europa.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Na descrição oferecida pelo próprio site, antes de sua reformu-


lação no ano de 2013, o Busuu7 se autodenominava “a maior comu-
nidade de aprendizagem de línguas online8”. A plataforma (Figura
2) é aberta para todos os públicos, independentemente de idade ou
grau de instrução, e foi criada por iniciativa de dois fundadores leigos
em pedagogia de línguas, mas que afirmam ter sofrido pessoalmente
com métodos tradicionais para aprendizagem de língua estrangeira
por serem sempre “cansativos, caros e complicados9”.

A plataforma Busuu

Figura 2 - Página inicial do usuário da plataforma Busuu

7 Plataforma acessível via http://www.busuu.com. Acesso em: 03 jul 2013.


8 Essa informação estava disponível na versão anterior do site no link http://www.busuu.com/pt/
about. Atualmente ainda é possível verificar a autodenominação do Busuu como comunidade
online para a aprendizagem de idiomas.
9 Descrição feita pelas palavras dos próprios fundadores, disponível na página http://www.busuu.
com/pt/about - Sobre o Busuu. Acesso em: 03 jul. 2013.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Diante dessas apreciações, os idealizadores do Busuu decidiram


criar “um novo conceito” em aprendizagem de línguas baseado em três
pilares fundamentais: (i) aprender com falantes nativos, (ii) gratuita-
mente e com a ajuda de (iii) materiais didáticos baseados em som e
imagem. Pretenderam, ainda, disponibilizar aos seus usuários o maior
número possível de línguas, de forma a colaborar com a diversidade
de línguas no mundo todo. O próprio nome da plataforma demonstra
esse interesse. Busuu é uma língua falada apenas por oito pessoas
em Camarões e como a política do site é, supostamente, promover
a diversidade de línguas que podem ser aprendidas online, o desafio
proposto pelos fundadores é o de, um dia, se ter a possibilidade de
aprender Busuu por meio da própria plataforma10.

Comparando as mediações

Esta pesquisa partiu do pressuposto de que os tipos de mediação


tecnológica e pedagógica oferecidos em cada uma das plataformas
teriam reflexos possíveis de serem detectados no nível micro das
interações entre pares/grupos engajados nas tarefas colaborativas.
Para identificá-los utilizei um corpus para o Galanet de mais de 10
mil linhas de chats plurilíngues realizados no período de meados de
fevereiro a dezembro 2009, dentro de duas sessões chamadas La
Tchatche e Dialoghi Interculturali, das quais participei, e sobre as quais
desenvolvi um projeto de iniciação científica (SECOLIM-COSER,
2010) financiado pela FAPESP. Para o Busuu, frente às impossibi-
lidades de um grande número de registros de chat, selecionei nos
fóruns da plataforma as mensagens dos dez tópicos mais recentes,
dos dez fóruns de discussão mais ativos no site. Quanto aos chats,
foram selecionados registros completos de oito chats, que totalizam
aproximadamente 490 linhas. Dentre eles, encontram-se quatro
conversas das quais participei como aprendiz de línguas francesa
e espanhola, e como praticante de língua inglesa, dialogando com
usuários comuns do Busuu.
Os objetivos da pequena análise que apresento a seguir foram
(1) levantar as principais características de mediação tecnológica e
10 Informações provenientes de “About Busuu.com”, disponível em <http://www.busuu.com/enc/
about>. Acesso em: 18 dez. 2012.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

mediação pedagógica em cada um dos contextos de prática explo-


rados e compará-los; e (2) levantar as percepções e avaliações dos
participantes acerca desses dois tipos de mediação. Os resultados
que obtive, apresento, resumidamente, a seguir.

Diferenças, semelhanças, implicações

Para levantar as principais características de mediação tecno-


lógica e mediação político-pedagógica em cada um dos contextos de
prática explorados, foram traçados onze critérios de comparação,
sendo seis para a mediação tecnológica e cinco para a pedagógica.
Os critérios permitiram uma varredura nos chats de ambas as plata-
formas e os resultados estão sumarizados nos Quadros 1 e 2, abaixo.
Usa-se negrito para destacar elementos mediadores específicos que
se destacaram na análise.
Com relação à mediação tecnológica:

Critérios / Plataformas Galanet Busuu


Perfil linguístico-discur- Usa-se internetês e emoticons Usa-se internetês e emoticons
sivo dos eventos de CMC moderadamente, e com as moderadamente, e com as
mesmas funções pragmáticas mesmas funções pragmáticas
dos eventos usuais de CMC; dos eventos usuais de CMC;
Tendência à preservação das Sequências com pares adja-
estruturas de pares adjacen- centes (pergunta, resposta
tes (ex: afirmação e comen- comentário) misturadas com
tário, pergunta e resposta); turnos isolados, que aparecem
poucos turnos isolados ou muito frequentemente, princi-
ignorados pelos demais par- palmente nos fóruns;
ticipantes; Sequências off topic aparecem
A maior parte das sequências com frequência.
é on topic.
Multimodalidade Não se verifica o uso de fi- Uso frequente e abundante de
guras, vídeos ou links para cores e estilizações visuais da
qualquer recurso visual escrita, mas, em geral, para a
fora do site; os usuários ge- correção de exercícios ou para
ralmente não usam cores ou ornamentar o avatar do parti-
estilizações visuais nem em cipante ou o título do fórum.
seus nomes de usuários, nem
no corpo das mensagens.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Hipertextualidade Os participantes não utilizam Os participantes não utilizam


hiperlinks em suas postagens, hiperlinks em suas postagens,
embora acionem recursos embora acionem recursos ex-
externos como tradutores ternos como tradutores e
e dicionários online eventu- dicionários online eventual-
almente. mente.

Serviços de web, widgets Recomendação do uso de tra- Usuários compartilham dicas


e mashups para aprender dutores automáticos na pági- de ferramentas, tradutores
línguas na de recursos. Usuários, às e outros recursos, além dos
vezes, postam na plataforma disponíveis no site. Alguns
materiais de ensino de suas participantes montam páginas,
línguas maternas, sobretudo blogs ou mashups externos re-
os aprendizes romenos, cuja lacionados ao ensino-apren-
língua é considerada a mais dizagem de suas línguas e os
difícil pelos demais. Há um divulgam nos fóruns do Busuu.
recurso chamado “olho” que, O site sinaliza de algumas for-
em tese, avisaria os apren- mas a presença de outros usu-
dizes sobre a presença de ários online, assim como ajuda
outros aprendizes no site, os usuários a encontrarem-se
mas o recurso, na prática, em função de seus objetivos e
funciona mal. nível de aprendizagem.
Anonimato Não é possível. Todo parti- É possível. Os participantes
cipante é, necessariamente, adentram o site mediante um
vinculado a alguma institui- cadastramento simples em que
ção participante, e necessita o único procedimento formal
utilizar seu nome civil como é confirmar o endereço de
nome de usuário. e-mail informado por meio de
um link.
Adesão à funcionalidade As ferramentas de CMC têm Uma mesma ferramenta de
prevista para as ferra- funções bem definidas que são CMC, o fórum, é readaptada
mentas respeitadas pelos aprendizes pelos usuários para diversas
e pelo moderador. Even- funções: discussão, correção de
tualmente, aprendizes não exercícios, sugestões de temas
esperados em determinado e de recursos externos, pro-
evento aparecem e juntam-se postas de mobilização interna
à conversa, mas sem causar dos usuários contra políticas do
maiores interferências no site e protestos, distribuição de
andamento da colaboração. exercícios, mural de recados e
solicitações de parcerias.

Quadro 1 - Diferenças de mediação tecnológica e seus efeitos

34
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Com relação à mediação pedagógica:

Critérios / Plataformas Galanet Busuu


Tarefas Tarefas estruturadas em Não há estruturação de tare-
etapas com objetivos e crité- fas coletivas, exceto objetivos
rios de mensuração definidos propostos pelos criadores
(dossiê); de fóruns, alguns orientados
para ensino/aprendizagem
de conteúdos gramaticais e
funcionais, outros orientados
para a prática espontânea das
línguas;
O moderador, que pode
ser um professor ou um A qualquer momento, ini-
aprendiz que toma esse papel ciativas individuais podem
momentaneamente, trata de subverter os objetivos do
fazer com que a atividade vá fórum/chat, e, sendo seguido
convergindo com o objetivo por outros usuários, pode fazer
da etapa de trabalho em que com que a atividade divirja for-
o evento se encaixa. temente do objetivo anunciado
do fórum.
Recursos Além do professor tutor/mo- O site oferece exercícios tra-
derador e de alguns tutoriais dicionais de ensino de lín-
disponíveis para professores guas, frequentemente de
e alunos, os principais recur- base estruturalista, e algu-
sos dos usuários são as pró- mas tutorias sobre como usar
prias semelhanças diacrô- os recursos e ferramentas do
nicas e sincrônicas entre site. O principal recurso do
as línguas envolvidas (todas usuário é sua competência
românicas) e o engajamento linguística na própria língua
pessoal com o princípio da a ser “negociada” com outros
intercompreensão ao longo falantes de outras línguas.
do processo.
Contrato didático Específico e explicitamen- Contratos ad hoc e vagos, Es-
te reforçado quando neces- tabelecidos entre pares e entre
sário, e com cumprimento proponentes de fóruns e seus
“policiado” pelos modera- usuários. Podem ser rompidos
dores. e retomados a qualquer mo-
mento. O policiamento é feito
pelo staff do site, mas envolve
apenas a violação de termos de
uso da plataforma, e não as ati-
vidades, conteúdos e métodos
de ensino-aprendizagem em si.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Padrões/ Sequências Predominam sequências de Predominam sequências de


reparo: o locutor retoma o correção explícita solicitada,
turno e “conserta” o que dis- havendo também casos de cor-
se/escreveu anteriormente, reção não solicitada. O locutor
ou parafraseia o que o inter- corrige o que foi dito/escrito
locutor tentou dizer de forma pelo interlocutor a qualquer
mais clara ou apropriada em momento, independentemente
termos lexicais e sintáticos, do impacto dessa correção no
procurando manter a con- andamento da conversa ou da
versa/troca de mensagens troca de mensagens.
em andamento.
Aderência aos objetivos O objetivo central é a in- O objetivo central é aprender
do contrato didático tercompreensão, porém, em ou praticar uma língua es-
situações menos monitoradas trangeira, porém, em algumas
pelos moderadores, alguns situações, os usuários passam
usuários rompem momen- a manifestar-se em suas lín-
taneamente o contrato e guas maternas para falar de
engajam-se em tentativas de suas afinidades, ou mesmo
produção de seu discurso para tirar dúvidas sobre a
pessoal na língua do inter- norma de sua própria língua
locutor. materna com outros falantes
da mesma língua.

Quadro 2- Diferenças de mediação político-pedagógica e seus efeitos

Em complemento às comparações feitas mediante os critérios


expostos nas primeiras colunas dos Quadros 1 e 2, foram compara-
das, também, as valorações feitas pelos próprios participantes sobre
os dois tipos de mediação. Isso porque, conforme meu pressuposto
inicial, os participantes estariam, de alguma forma, cientes de seu pa-
pel “agentivo”. Exponho, a seguir, os resultados desse levantamento.
No Galanet, a maior parte das referências feitas à mediação tec-
nológica está centrada nas discussões sobre o funcionamento do site.
Nos primeiros chats, em cada grupo, fala-se muito do funcionamento
dos diferentes recursos e espaços da plataforma, tais como o espaço
de autoformação, o funcionamento do fórum e o arquivamento dos
chats. Em geral, fala-se desses recursos de forma neutra, sendo poucos
os usuários que questionam ou criticam o modo de implementação
da mediação tecnológica e/ou sugerem outras possibilidades de
mediações tecnológicas mediante sua experiência quotidiana em
outras práticas digitais. Há, contudo, queixas acerca da dificuldade

36
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

de encontrar o espaço em que se darão as interações síncronas, o


que, para alguns participantes, justificaria a pouca participação dos
usuários nos chats programados.

Excerto 1
Chat G.LT.V.1.Extra

[22:13:52][MathildeA] J’ai invité mes ètudiants à participer à ce petit


chat, mais je coris qu’ils ne savent pas où ça se passe... C’est pas toujours
facile de comprendre commet naviguer sur cette platteforme.

Frequentemente, também a velocidade dos chats é tida como um


complicador para as interações no Galanet, ou seja, a mediação tecno-
lógica é responsabilizada por um certo tipo de sobrecarga cognitiva:

Excerto 2
Chat G.DI.V.3.Inter

[19:47:29][Alx_b]Mais il va à 200KM/H ce chat!!![...]


[19:50:40][SeHong] vamos mais devagar
[19:50:49][SeHong] está muuuuuuuuuuuuuuito rápido

Pelo mesmo motivo, os participantes do Galanet acreditam que,


por estarem em “mais de um lugar online ao mesmo tempo”, dificulta-
se a sua concentração nas tarefas.

Excerto 3
Chat G.LT.V.2.INTER

[21:52:06][ClaraCM] Opa... problema de comunicação... eu estou falando


em três sites de relacionamento ao mesmo tempo e deu um engarrafamento
aqui...
[21:53:16][AnaC] Há pouco também estava falando num outro sitio e fica
meio dificil de se concentrar

No caso do Busuu, é a falta de domínio da língua-alvo, e não a


ação dos mediadores tecnológicos, a maior causadora de ansiedade
nos eventos síncronos de CMC. No excerto 4, por exemplo, obseva-se
que a usuária (eu mesma) recorre a uma manobra de code switching
para sustentar a interação, mediante a sobrecarga.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Excerto 4
Chat B.F.E/I.08/11/12
DeboraCoser: Gracias! estoy “confundindo” spañol com italiano! ajajaj
F#####.: Brasil is growing a lot, isnt it?
DeboraCoser: Si, mucho!
F#####.: you are welcome! english and italian is similar
DeboraCoser: are similar
F#####.: thanks! I speak italian too
DeboraCoser: So, let me change my language to English now! I just
discovered I don’t even know how to speak spanish, even if it’s so close
to portuguese!

Em comparação com os participantes do Galanet, os usuários


do Busuu são mais críticos e explícitos no que se refere à mediação
tecnológica. Por exemplo, nos fóruns de discussão do Busuu, há
protestos contra a eliminação de um fórum de usuários que, supos-
tamente, violavam os termos de uso do site. Encontrei, também, um
debate acerca das vantagens e desvantagens de usar o Skype para
aprender línguas em comparação com o Busuu e uma proposta de
transformação do Busuu em “uma espécie de Facebook”, além de
críticas e elogios ao design do site.
Destaca-se, também, no uso dos fóruns e chats do Busuu, a troca
de dados de contato pessoais (MSN, Skype, e-mail etc.) entre os par-
ticipantes, o que parece indicar que alguns deles utilizam o Busuu
mais como um lugar de encontro e busca de parcerias do que efeti-
vamente um ambiente de aprendizagem online. Isso não surpreende,
já que é possível observar uma grande flexibilidade nos usos que
os participantes dão às ferramentas de CMC do próprio Busuu. Os
fóruns, particularmente, são usados, simultaneamente, como murais
de recados, áreas de divulgação ou busca de parceiros e como meca-
nismo de entrega e correção de exercícios.
Com relação à mediação político-pedagógica, verifica-se, no
Galanet, que ela é pouco referida explicitamente pelos aprendizes, os
quais, inclusive, tendem a interpretar a situação, inicialmente, como
sendo de aprendizagem de línguas, e não de prática da intercompreen-
são. Nessas ocasiões, o contrato didático é, às vezes, explicitado pelos
animadores/moderadores, ou por participantes mais experientes,
comprometidos pessoalmente com esse princípio.

38
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Excerto 5
Chat G.DI.V.3.Inter

[20:13:15][DanielaRS] acredito que a função aqui não é o aprendizado da


língua, mas fazer com que pessoas que falam diversos idiomas consigam se
compreender - cada uma através de sua língua materna

No caso do Busuu, o que observei nos fóruns de discussão não


foi propriamente a existência de discussões ou explicitações sobre
mediações pedagógicas, mas formas de mediação pedagógica a cargo
dos próprios usuários, ora mais informais, ora mais “autoritárias”, e,
sempre, baseadas em suas próprias crenças sobre ensino e aprendi-
zagem, e/ou em padrões interacionais trazidos da sua experiência
escolar tradicional. Na Figura 3, por exemplo, vê-se que o partici-
pante Y11 “corrige” a produção textual do participante X utilizando
o “símbolo” da caneta vermelha do professor tradicional.

Figura 3- Captura de tela do Fórum “Parle Français”

Com relação aos modelos de mediação trazidos pelos usuários


de sua experiência escolar fora do Busuu, pode-se dizer que esses
modelos aparecem também, de alguma forma, nos propósitos estipu-
11 Embora a plataforma seja aberta, creio ser de bom tom omitir os nomes dos usuários que parti-
ciparam dos chats para dificultar a identificação dos sujeitos, já que não era factível entrar em
contato com cada um e pedir permissão para divulgar suas interações na plataforma. No entanto,
mantenho o uso dos nomes de usuários dos fóruns, já que as interações nos fóruns são de livre
acesso na plataforma.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

lados para os fóruns criados pelos usuários, quer seja no que tange
à proposta de gradação de aprendizagem (básico, intermediário,
avançado), ou no que tange à forma de organizar e nomear expli-
citamente o conhecimento sobre a língua do mesmo modo como o
fazem as escolas.
Note-se ainda, em casos como o do Excerto 6, a adoção de sequ-
ências de correção explícita em momentos de socialização informal.

Excerto 6
Grupo “Bienvenidos a Madrid” (Busuu)

Mahid: hola , me llamo majid, yo soy de Irán , me gustaría ir a barcelona


mucho , me encanta tu cultura y lo se, tienes los personas muy divertidos
, muchas gracias por invitación

Soymalíssima: Hola , me llamo Majid, yo soy de Irán, me gustaría mucho


ir a Barcelona. Me encanta tu cultura sé que la gente es muy divertida.
Muchas gracias por la invitación.

Em contraste com o uso disseminado desse tipo de sequência


discursiva no Busuu, observa-se, no Galanet, o predomínio de sequ-
ências de reparo e esclarecimento, como no Excerto 7.

Excerto 7
Chat G.LT.V.1.Extra
[21:56:26][FioreM] mais eu sou contadora publica
[...]
[21:56:49][AnaC] o que é contadora püblica
[21:57:43][FioreM] contadora do sector publico , que trabaha para el
estado
[21:58:04][AnaC] fazendo o quê? Contando histörias
[21:58:36][EdileneR] Acho que CONTADORA é uma atividade relacio-
nada ao setor administrativo, não é Fiore?

Nota-se, a partir desse contraste, que embora ambos os casos


privilegiem o papel da competência dos falantes nativos com seus
repertórios comunicativos como instrumento de mediação político-
pedagógica, o Galanet aposta na capacidade reflexivo-dialógica do
aprendiz como elemento mediador, ao passo que o Busuu parece tomar
essa mesma competência e repertórios como recursos (conteúdo)

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

trazidos pelos usuários para o negócio, em troca dos quais se lhes


oferece materiais de apoio e um certo tipo de mediação tecnológica
gratuitamente.

Considerações finais

Vivemos um momento em que o ensino de línguas é chamado


a haver-se com novos tipos de mediação tecnológica que demandam
uma reinvenção, em algum grau, dos tipos de mediação pedagógica
com os quais temos trabalhado nas últimas décadas, mesmo aquelas
que consideramos avançadas em relação ao que tradicionalmente se
faz, como é o caso do Galanet.
Está claro que as novas mediações pedagógicas têm muito a ver
com efeitos da mediação tecnológica na cultura digital, especialmente
com as dinâmicas de “produsagem” (produção de mídia capitaneada
pelos próprios usuários) que passam a pautar a relação das pessoas
com as mídias e seus conteúdos, e, portanto, com suas representações
de mundo e culturas de aprender. Plataformas como o Busuu tentam
aproveitar a energia produtiva aí disponível, mas, aparentemente,
estão tão carentes de fundamentação efetiva em boas pedagogias de
aprendizagem colaborativa de línguas quanto o está a maioria dos
educadores com relação ao funcionamento da colaboração e da par-
ticipação do usuário das novas mídias na cultura digital.
É fundamental, diante desse quadro, não apenas pensarmos em
formas de compatibilização das mediações tecnológica e pedagógica
que aproveitem efetivamente as novas possibilidades de ser e de fa-
zer que nos são dadas pelos vínculos com as tecnologias digitais da
informação e da comunicação, mas, sobretudo, tomando o cuidado
de pensarmos em profundidade sobre o que significa mediar, para
não cedermos à noção utópica de uma cidadania global que exclua
o desejo de experimentar “ser local em outro lugar”, nem à fantasia,
comercialmente engenhosa, mas educacionalmente inócua, de que
reproduzir nossas crenças e interpretações de experiências pessoais
passadas seja alguma forma de inovação na nossa obrigação de saber
“ensinar” o outro a ser global em nossa língua, se ele assim desejar.

41
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Referências

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42
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

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SECOLIM-COSER, D. Plurilinguismo, intercompreensão e mediação tecnológica
na aprendizagem colaborativa envolvendo falantes de línguas próximas: o
caso Galanet. Monografia (Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos
da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. 2013.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Curadoria Digital como Hibridização entre


Narrativa e Banco de Dados: apropriação
pela mídia tradicional e participação de
outras vozes
Nayara Natalia de Barros

Introdução

Ainda que não haja uma compreensão uniforme sobre o conceito


de curadoria digital por parte dos estudiosos que vêm se debruçan-
do sobre essa prática, poder-se-ia defini-la como a possibilidade de
selecionar, organizar e apresentar conteúdo na internet, em dife-
rentes plataformas e redes sociais, a partir de critérios elencados
pelos usuários da web, sejam estes profissionais da rede ou simples
amadores.
A ânsia pelo colecionamento de conteúdo específico frente à
grande quantidade e diversidade de informações relevantes – com
as quais se deparam os consumidores de conteúdos midiáticos cons-
tantemente em suas práticas cotidianas – tem sido ampliada pela
descentralização da produção e da distribuição do conteúdo que a
internet promove. E é esse deslocamento da produção e o aumento
da circulação de dados que consolidam a necessidade do exercício da
curadoria digital.
Quando pensamos na curadoria digital, podemos perceber que
a prática reverbera, em algumas instâncias, a curadoria tradicional,
ao mesmo tempo em que se distingue dela em outros aspectos. En-
tre as razões para essa distinção, é possível destacar que o curador
de artes é o indivíduo responsável por selecionar, compor, montar
e expor obras em um espaço museal. Já o curador digital se presta

45
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

à seleção, intercalação e organização de um todo sistematizado de


qualquer tipo de mídia em diversos tipos de atividades sociais. Além
disso, a curadoria digital possui dois agentes que atuam em conjunto:
o curador humano e o algoritmo curador.
A compreensão de que a curadoria digital é uma prática híbrida
(humana e não humana) nos faz ressaltar a necessidade do pesquisador
e/ou educador interessado em curadoria digital considerar o papel
do agente não humano – o algoritmo de busca – em relação ao que
era a curadoria tradicional, isto é, estudar curadoria digital é estudar
uma prática que integra o humano e não humano na geração de uma
memória que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva.
Finalmente, junto com as transformações nessa prática cultural
tradicional, e com as novas possibilidades técnicas disponíveis, surgem
também novas formas textuais, frutos de apropriações da curadoria
por comunidades discursivas diversas. Por essa razão, este capítulo
se presta a justificar a necessidade de compreendermos o tipo espe-
cífico de hibridismo que constitui esses novos objetos textuais; um
funcionamento cuja compreensão não parece esgotável por teorias
usuais no campo dos estudos aplicados da linguagem, tais como as
de gêneros textuais/discursivos digitais.
Para essa demonstração, elegi a plataforma Storify – cujo ser-
viço permite agregar e intercalar conteúdos veiculados em diversas
redes sociais online, e do qual resulta uma story, isto é, um agregado
multimodal em forma de texto, diagramado em coluna e publicado
na plataforma. Apresentarei, para isso, a análise discursiva e técnica
dos mecanismos de produção da forma textual mencionada.

Curadoria digital e apropriação tecnológica

A curadoria digital costuma assumir outras nomenclaturas, como


curadoria na web ou curadoria de informação. Apesar desses diferentes
nomes, é possível delimitar o seu escopo de atuação, o que ajuda a
compreendê-la concretamente. De acordo com Steven Rosembaum
(2011, p.4, tradução minha),

46
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

A curadoria tem a ver com seleção, organização, apresenta-


ção e evolução. Embora os computadores possam agregar
conteúdo, informação ou qualquer formato ou tamanho de
dados, agregação sem curadoria é apenas uma grande pilha
de coisas que parecem estar relacionadas, mas não têm orga-
nização qualitativa.

É essencial lembrar que a apropriação tecnológica se dá


quando as tecnologias fabricadas são utilizadas para propósitos
específicos e são, desse modo, transformadas, em alguma medi-
da, por um conhecimento coletivo, colaborativo e compartilhado
que, muitas vezes, não é detido por seu construtor. Sobretudo, a
apropriação importa a um grupo específico, e, por isso, torna a
tecnologia algo igualmente específico. Segundo Buzato (2010),
apropriação tecnológica é um conceito aplicável em diferentes
escalas e níveis de análise (tecnologia-indivíduo; tecnologia-grupo;
tecnologia-instituição; tecnologia-cultura nacional etc.). Além
disso, é algo que acontece numa via de mão dupla, um encontro
de processos de top-down (de cima para baixo), dirigidos por ações
corporativas, com processos bottom-up (de baixo para cima), enca-
beçados pelos consumidores e idealistas criativos. Isso significa
que, ao nos apropriarmos dessas tecnologias em nossas práticas,
devemos ter ciência de que também nossa atividade é apropriada
por alguém (BUZATO, 2012).
É também como um processo bidirecional que Jenkins (2009)
conceitua o processo de “convergência” que caracteriza as atuais
relações de produção e consumo nas mídias. Para o autor, os consu-
midores, usuários de internet e antigos espectadores (receptores de
informação), demandam agora o direito de participar ativamente dos
processos que antes eram monopolizados pelas grandes indústrias de
mídia, o que promove e fomenta a criação de plataformas, de ambientes
e de serviços de internet que facilitam a assim chamada “produsagem”
(produsage, em inglês), a qual sustenta a força e a irreversibilidade de
uma cultura participativa que tende a se consolidar cada vez mais
firmemente, a despeito de sua complexidade.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Curadoria digital como prática de hibridizar


narrativa e banco de dados

Considero que a teoria de Manovich (1999; 2001) acerca do banco


de dados como forma simbólica – base sobre a qual fundamento a
análise de uma forma curatorial denominada story – oferece uma chave
conceitual para a compreensão do que são formas/objetos textuais
produtos de curadorias digitais, as quais são, como dito, práticas
híbridas, protagonizadas por humanos e não humanos.
Para Manovich, o banco de dados enquanto forma cultural con-
temporânea, e não apenas como objeto técnico, vem contrapor-se ao
privilégio dado à narrativa, como forma simbólica, pelas sociedades
industriais. Ao iniciar sua discussão sobre o tema, o autor expõe a
definição de banco de dados oferecida pela Ciência da Computação:

[...] o banco de dados é uma coleção estruturada de informações.


As informações contidas num banco de dados são organizadas
para buscas rápidas e recuperáveis pelo computador e, portanto,
nada mais é que uma simples coleção de itens. Há diferentes tipos
de banco de dados que se diferenciam na forma como organizam
as informações: hierárquico, em rede, relacional e orientado ao
objeto (MANOVICH, 2001, p. 194, tradução minha.)

Note-se que, ao definir banco de dados como uma “coleção


estruturada”, o autor já nos dá uma pista sobre sua possível rela-
ção conceitual com a prática da curadoria e com as próprias stories.
Para Manovich, se o banco de dados representa o mundo como uma
lista de itens e recusa-se a ordená-la de forma sequencial/linear; já
a narrativa “cria uma trajetória de causa e efeito de itens (eventos)
aparentemente desordenados” (MANOVICH, 2001, p. 199).
Tentando aproximar-se do campo dos estudos da linguagem, o
autor traduz seu argumento nos termos da heurística do paradigma
versus sintagma, oriunda da semiologia europeia (BARTHES, 1999
[1968]), ou seja, Manovich coloca a narrativa como forma sintagmá-
tica em que os elementos estão relacionados em praesentia, enquanto
os elementos na dimensão paradigmática (correspondente ao banco
de dados) o estão em absentia.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Colocando-se de outra forma, na história da cultura até o pre-


sente momento, o banco de dados, que abriga as possíveis escolhas
e representações da cultura em objetos ou formas significativas es-
truturadamente, teria estado implícito. Em contrapartida, as narra-
tivas – correspondentes aos sintagmas – são explicitadas nos textos
analógicos e performances orais a que temos acesso em nossas vidas
cotidianas. Porém, com as novas mídias tornando cada vez mais os
objetos culturais digitalizados e, portanto, acessíveis imediatamente
em grande escala pelas pessoas comuns, essa relação estaria sendo
subvertida. O banco de dados (o paradigma) adquire existência ma-
terial, enquanto a narrativa (o sintagma) desmaterializa-se, passando
a existir virtualmente, como possibilidade de associação e percurso
por entre os itens disponibilizados nas memórias digitais.
É importante destacar-se, entretanto, que existe uma diferença
clara entre uma simples trajetória de navegação e um banco de dados
(algo que LEMKE, 2002, chamaria de trajetória semiótica) e uma
narrativa enquanto forma cultural plena:

[...] se o usuário simplesmente acessa diferentes elementos,


um depois do outro, em ordem randômica, não há razão para
assumir que esses elementos formarão uma narrativa, neces-
sariamente. (MANOVICH, 2001, p.201, tradução minha).

Para ser uma narrativa, um objeto cultural tem de satisfazer a


alguns critérios que Manovich (2001) cita com base em Bal (1985):
“deve conter um ator e um narrador; três níveis distintos, consistindo
no texto, na história, e na fábula; e seu conteúdo deve ser uma série
de eventos causados ou vivenciados por atores” (MANOVICH, 2001,
p. 201, tradução minha).
Objetos midiáticos tais como páginas da web, perfis pessoais
de redes sociais online, entre outros, nem sempre possuem começo,
meio e fim, tampouco apresentam partes relacionadas em termos de
causa-efeito. Ao invés disso, eles muitas vezes se constituem como
coleções de itens individuais, em que cada um possui o mesmo nível de
significância que os demais, e podem ou não ser fruídos em sequência
linear, de acordo com a interface oferecida ao leitor. Assim sendo, é
muito mais lógico e plausível relacioná-los ao banco de dados. Isso

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

quer dizer que a criação de um percurso narrativo pode ser mais


bem entendida como uma possibilidade, entre outras, de criação de
uma interface para um banco de dados de diferentes objetos culturais
(MANOVICH, 2001, p.226). Podemos nos perguntar como ficam,
então, narrativas interativas (hipernarrativas) tais como videogames,
hipernovelas ou MUDs (ver SILVA neste volume), assim como outros
tipos de mundos virtuais que “contam histórias”.
Para esses casos, Manovich explica que

o “usuário” da narrativa está atravessando um banco de


dados, seguindo links entre seus arquivos como estabelecido
pelo criador do banco de dados. Uma narrativa interativa
[...] pode então ser entendida como a soma de múltiplas
trajetórias através do banco de dados (MANOVICH, 2001,
p.200, tradução minha)

Alguns objetos new media, como é caso de uma lista de classificados


online, explicitam a lógica do banco de dados, enquanto outros, não. No
entanto, por trás de sua superfície, praticamente todos os objetos new
media, efetivamente “interativos”, são constituídos a partir de bancos
de dados.Vale lembrar, ainda, que nem todos os objetos culturais que
produzimos fora das novas mídias são ou eram narrativas. Podemos
interpelar boa parte dos arranjos semióticos que constituem nossas
práticas socioculturais como sendo textos, ainda que não tenham
forma narrativa. Por exemplo, em casos como o da visita a uma ex-
posição, um passeio pelas ruas da cidade ou uma “batida de pernas”
perante as vitrines de um shopping center, estamos, de alguma for-
ma, executando trajetórias em que fazemos seleções de itens de um
determinado universo e os quais relacionamos sequencialmente, mas
não em termos de causa-efeito, complicação e resolução1. Trata-se
de representar algo conceitualmente, ou meramente do registro ou
expressão de uma experiência cujo significado pessoal ou coletivo
não está convencionalizado (LEMKE, 2001).
Por essa razão é que Manovich (2001), apesar de organizar sua
discussão a partir de uma suposta dicotomia entre banco de dados e
narrativa, a conclui dizendo que é preferível pensar em narrativa e
1 A respeito desses percursos que não se configuram como estruturas causais ou sequências nar-
rativas, contudo são imbuídas de sentido, ver Lemke (2009) e Sachs neste volume.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

banco de dados como duas imaginações concorrentes, dois impulsos


criativos básicos, duas respostas essenciais ao mundo. Acrescento
que, se isso é verdade, devemos ser capazes de apontar, sobretudo no
universo digital, formas ou objetos em que mesclam concretamen-
te tais impulsos básicos e lhes dão algum tipo de forma ao menos
parcialmente convencionalizada. Proporei que as stories sejam uma
dessas formas de hibridização.

O que é uma story?

Considerando o que foi discutido teoricamente até aqui, nesta


seção, pretendo elucidar como se dá a prática da curadoria digital
no Storify, quando um jornalista d’O Estado de S. Paulo se apro-
pria do software para efetuar sua prática jornalística. Esse jornal
foi escolhido por possuir uma linha editorial bem definida, o que
me permite falar mais confortavelmente sobre sua apropriação da
ferramenta para finalidades específicas, e de um certo impulso de
convencionalização.
Além disso, O Estado de S. Paulo é uma corporação midiática
tradicionalmente envolvida nas mudanças de distribuição e consumo
viabilizadas pelas novas mídias. Por fim, essa escolha me pareceu
interessante porque o jornal é um dos únicos brasileiros a utilizar o
Storify desde as versões mais primárias da plataforma.

Figura 1 - Página de criação da story

51
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

A escolha da story que analisarei foi realizada porque a consi-


dero especialmente representativa de como o jornalista trabalha
para articular, ao novo objeto cultural story, seus compromissos
com a prática do jornalismo tradicional, isto é, sua suposta neu-
tralidade, sua relação com um possível anunciante – a empresa de
telefonia e internet TIM – sua responsabilidade como jornalista,
e ainda sua relação com os leitores do jornal e com a concorrên-
cia midiática. Em suma, destaco em minha análise o sentido da
apropriação.
O Storify foi inicialmente elaborado para ajudar jornalistas e
blogueiros a filtrar o conteúdo (depoimentos, links, vídeos, imagens
etc.) de redes sociais diversas, como Facebook, Twitter, sites de com-
partilhamento de vídeos, como o YouTube, ou de compartilhamento
de fotografias, como o Instagram, a fim de que escrevessem “matérias”
de teor mais rico, incorporando vozes e impressões relevantes à pro-
dução textual denominada story.
O processo de elaboração das stories é bastante simples, tecni-
camente, para o usuário. A tela se divide em duas colunas: do lado
esquerdo fica um boxe para onde o usuário arrasta os itens das
mídias sociais que servirão como fonte para o texto; acima ficam as
ferramentas de edição da story que se está elaborando, com espaço
para inclusão de título, descrição, foto de exibição e textos para
encadear e intercalar com o conteúdo trazido de diferentes fontes
(Figura 1). O resultado final é um mosaico de postagens, vídeos e
fotos sobre um mesmo assunto que “contam uma story” (Figura 2).
A story pronta pode, por sua vez, ser instantaneamente republicada
nas mesmas redes sociais de onde vieram as postagens utilizadas e
também pode ter seu endereço (URL) incluído, na forma de insert,
em qualquer outro website.
É possível asseverar que, mesmo não sendo efetivamente “es-
tórias”, isto é, narrativas, as stories têm relações lógico-semânticas
como base em sua linearidade/sequencialidade. Tais relações,
no entanto, podem ser de muitos tipos. Além disso, parte do que
possibilita ao leitor atribuir coerência a uma story jornalística,
como é o presente caso, é a forte conexão intertextual explícita
que ele guarda com a notícia, reportagem ou fato isolado, de re-

52
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

percussão pública, que o jornalista que a produziu, usualmente,


explicita no título.
À parte dessa relação intertextual com uma narrativa que lhe
dá certa consistência temática, a story pode ser pensada, conside-
rando o que diz Manovich (2001), como interfaces ou “caminhos
projetados” pelo jornalista sobre as redes sociais. Mais ambicio-
samente falando, a story pode ser vista como uma trajetória de
“opinião pública” sobre determinados fatos ou notícias em voga.
Como toda interface, uma story precisa partir de formas e referên-
cias culturais que permitam ao leitor transformar os dados em
informações e, possivelmente, em juízos e itens de conhecimento.
Nesse caso, a referência-chave é um intertexto narrativo. Mais do
que um texto, contudo, uma story é também um serviço, já que ela
oferece ao leitor o que seria um retrato instantâneo da repercussão
do fato ou notícia.
Como qualquer retrato, uma story também não é neutra, a
despeito da sua aparente objetividade ou analogia com a “realida-
de”. Como numa foto de jornal, ou na montagem de uma primeira
página, ao arranjar os elementos da story em uma ordem particu-
lar, o editor constrói um argumento (BARHTES, 1990), e, com
esse e outros recursos de edição e estilização, marca, na maioria
dos casos, um posicionamento do jornal a ser identificado como
sendo neutro.
Em entrevista que me foi concedida por um profissional d’O
Estado de São Paulo que produzia parte das stories do jornal, em
2014, aparece uma preocupação verbalizada com o “balanceamento
de opiniões”, principalmente quando se trata de temas polêmicos.
Isso indicaria uma intenção e uma tendência do jornal à impar-
cialidade:

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 2 - Story “Falhas no sinal da TIM repercutem nas redes sociais”

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

P: Quais são os critérios de escolha do que entra ou não entra


em uma story?

R: Buscamos comentários inteligentes, que incitem reflexão.


Não publicamos ofensas. Tomamos o cuidado de contrabalan-
cear as opiniões, especialmente em temas polêmicos. Quanto
às fotos e aos vídeos, damos destaque ao conteúdo produzido
por leitores, não profissionais.

No caso do jornal O Estado de S. Paulo, observa-se que, realmen-


te, é inserido na story tanto aquilo que confirma a opinião do jornal,
como eventualmente algum item de mídia que representa distorção e/
ou contradição em relação às outras apreciações. Se isso não aparece
na story, eventualmente pode aparecer nos comentários, quando eles
existem. Mas aqui pesa o papel dos algoritmos, o de busca e o cura-
dor. Uma vez que os comentários não são capturados pelo algoritmo
de busca, também não são selecionados/ordenados pelo algoritmo
curador, e, por fim, não ficam marcados como uma parte da story que
é de responsabilidade d’O Estado de S. Paulo.

Os agentes e as vozes

A criação de uma story envolve pelo menos três papéis principais


para agentes humanos: o storifier (neste caso um jornalista), o leitor
das stories, e os usuários das redes sociais, produtores das postagens.
Pode-se notar que esses três grupos de vozes humanas entram para
o processo de elaboração da story com funções determinadas, algumas
regras e certas responsabilidades específicas.
As postagens são, então, reunidas por um quarto agente, não
humano, o algoritmo de busca, que, não tendo voz, participa da story
pela troca de sinais codificados numericamente. Essa troca se dá en-
tre o programa que faz funcionar a plataforma e os bancos de dados
estocados, igualmente, na forma de representações numéricas. As
postagens de redes sociais, por sua vez, são trazidas à tela para que
o storifier execute sobre elas certas operações curatoriais.
O papel do storifier (doravante OESP) é selecionar e organizar
os elementos trazidos pelo algoritmo em forma de Story. É ele quem

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

gerencia a produção a partir de parâmetros e regras próprias do


campo do jornalismo, as quais o levam a conceber essa produção
textual como “um retrato instantâneo” da repercussão social de uma
notícia. Como tal, a story precisa despertar curiosidade e emoção por
parte do leitor, instigando-o a participar e a interagir ao longo da
“vida” da story.
Parte da responsabilidade criativa do storifier é usada na esco-
lha de um título e de uma descrição breve do tema das stories. Outra
parte, exercida de modo um pouco mais implícito, é fazer escolhas
estilísticas e de efeitos de sentido pretendidos quando da seleção de
conteúdo vindo dos bancos de dados. Na entrevista que fiz com o
jornalista responsável pelas stories OESP, em 2014, apurei que, nem
para o jornalista, nem para o Storify de modo geral, há uma preo-
cupação com violação de propriedade intelectual (copyright) no que
tange a origem dos posts escolhidos para compor stories. Contudo, há
a predileção por evitar posts que possam causar injúrias, assim como
preocupação em exibir opiniões dos vários “lados” envolvidos em
temas polêmicos. No tocante às fotos e vídeos, o conteúdo seleciona-
do é também geralmente produzido por usuários não profissionais.
Entretanto, não ficou claro, na entrevista, se isso seria uma estratégia
para privilegiar a participação do público na produção do conteúdo,
ou se para evitar custos que estariam envolvidos na republicação de
material profissional de caráter comercial.
O papel do leitor da story é de comentarista, e pode ser exercido
por meio da funcionalidade “comentar” da plataforma. Não há nenhu-
ma regra explícita a ser seguida para a produção desses comentários,
exceto, é claro, as regras genéricas de uso da plataforma, expressas
nos termos de uso (não fazer spam, apologia à violência etc.). Assim
sendo, em tese, o leitor pode fazer o tipo de comentário que quiser,
mantendo ou desviando-se do tema da story, assim como do seu pa-
drão estilístico, se houver. Também não há nenhuma responsabilidade
evidente do leitor para com o conteúdo ou forma da story, já que os
comentários não são moderados.
Finalmente, o papel dos usuários das redes sociais é o de for-
necedores de conteúdo para a story. Não precisam seguir nenhuma
regra, exceto, novamente, os termos de uso dos sites de rede social

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

em que publicaram suas postagens originalmente, uma vez que quem


seleciona seus enunciados é o storifier, e cabe a ele decidir o que é
apropriado ou não para entrar na story. Sua responsabilidade única,
portanto, é sobre o que disseram em suas próprias páginas de redes
sociais.
pode-se concluir dessa distribuição de papéis e vozes que o poder
de traçar um “retrato instantâneo da repercussão de uma notícia”
ainda é do jornalista, como tem sido desde sempre no caso do jornal
impresso tradicional. Pode-se dizer que, muito mais do que mera
agregação automática de conteúdo para a produção de uma interface, a
prática curatorial, sendo uma prática jornalística, efetivamente, reúne
dois tipos de operações. Há operações protoautorais, cognitivamente
mais simples, e discursivamente pouco definidas, embora “quantitati-
vamente pesadas”, que são delegadas em grande parte a algoritmos.
E há outras operações, efetivamente autorais, cognitivamente e dis-
cursivamente bastante mais sofisticadas, realizadas por um curador
humano que tem compromissos institucionais e restrições normativas
a respeitar, e que produz soluções editoriais e estilísticas específicas
para cada story. Na análise que apresento a seguir, busco ilustrar essas
soluções e remetê-las aos referidos compromissos.

A story “Falhas no sinal da TIM repercutem nas


redes sociais”

É importante ressaltar que todas as stories de OESP estão liga-


das a fatos e temas do cotidiano, quer sejam notícias apresentadas
e vinculadas à própria página do jornal, por meio de links dispostos
ao lado das stories, ou não. A story “Falhas no sinal da TIM reper-
cutem nas redes sociais” é composta por postagens realizadas em 7
de agosto de 2012 e faz parte de um corpus maior, de 10 stories d’O
Estado de S. Paulo estudadas por mim (BARROS, 2014). O objetivo
da análise é mostrar como o jornalista se apropriou do hibridismo
narrativa+banco-de-dados numa story jornalística.
Para tanto, isolo cada uma das postagens que fazem parte da
story e identifico o tipo de manobra discursiva utilizada pelo jorna-
lista para fazer com que os elementos trazidos do banco de dados

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

e relacionados à notícia (o intertexto narrativo) se articulem com


questões institucionais típicas do jornalismo. Com isso, busco expli-
citar o movimento de apropriação jornalística da prática curatorial.

Excerto 1 - Cabeçalho

Verifica-se no cabeçalho da story a seleção de um título que aponta


diretamente para a notícia relacionada, ou seja, as falhas de sinal de
telefonia celular que aconteciam, à época, com os usuários dos serviços
da empresa TIM. Foi possivelmente com essas mesmas palavras que
o jornalista incumbiu o algoritmo de encontrar, no Twitter, os itens
de mídia que integram a story. Note-se que a escolha de palavras no
título “Falhas no sinal da TIM repercutem nas redes sociais” é cui-
dadosa no sentido de não fazer juízo de valor. O curador-jornalista
apenas se coloca como uma voz que relata, ou retrata, de que forma
os usuários de redes sociais reagem à notícia.
A própria escolha do sujeito da oração – “falhas no sinal” – de-
monstra o desejo por certa neutralidade diante do que é relatado, uma
vez que com as postagens seguintes, como veremos, fica evidente que
a reclamação geral é de que a empresa TIM cortaria o sinal telefônico
propositalmente e que o órgão de fiscalização governamental não faria
nada a esse respeito. O teor jornalístico da apropriação fica marcado,
então, por essa tentativa de isenção de juízo acerca do fato noticiado.
Logo abaixo, no espaço destinado à descrição da story, é apontado
o fato sobre o qual ela se constrói: a descoberta da Agência Nacional

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

de Telecomunicações (Anatel) – agência reguladora dos serviços de


telecomunicações do país – sobre o corte proposital da empresa TIM
do sinal de seus clientes do plano Infinity.
As opiniões negativas sobre a TIM são veiculadas nas postagens
dos usuários do Twitter, não sendo feitas, diretamente, pelo jorna-
lista. Essa é uma demonstração clara da apropriação do profissional
da comunicação para manter uma suposta imparcialidade diante da
notícia. Ele consegue esse efeito ao trazer a voz de uma fonte externa
e não a dele próprio. Apesar de aproveitar o formato que o software
fornece, ele não transforma, em nada, o lugar de onde produz seu
discurso e lugar a partir do qual os usuários o leem.

Excerto2

O excerto 2 pede que a notícia seja divulgada e compartilhada,


algo que, de alguma forma, o jornal está fazendo ao publicar a story,
mas, nesse caso, deixando para o usuário @edutrevisam a autoria
do pedido. A hashtag é uma paródia de um dos slogans originais da
empresa (“viver sem fronteiras”). Novamente, o usuário diz algo que
vai ao centro do fato jornalístico, porém de uma forma paródica, que
claramente isola a crítica à empresa da voz pessoal do jornalista, ou
da forma como uma empresa jornalística manifestaria sua opinião,
por exemplo, em um editorial.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Excerto 3

Ao trazer o post de @sidarthaneves, o jornalista mobiliza


novamente uma crítica, dessa vez ao governo federal (ao qual está
vinculada a autoridade da Anatel) que, na voz do internauta, “não faz
nada”. Ademais, o elemento “Brasil-il-il” remete a pouca ênfase dada
ao assunto “grave” pela imprensa “popular” ou “menos séria” (vin-
culada aos esportes ou entretenimento, e preocupada em promover
o produto “olimpíadas”).

Excerto 4

Depois de duas postagens negativas acerca do corte de sinal,


o jornalista provê, conforme o Excerto 4, uma terceira, positiva,
o que claramente remete ao princípio jornalístico de trazer vozes
contraditórias para “balancear” opiniões.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Excerto 5

O usuário @Fabianopark confirma a indignação pela queda


de sinal proposital por parte da empresa denunciada pela Anatel, e
propõe, indiretamente, que a venda de chips da empresa poderia ser
suspensa em todo o país. Pode-se pensar, neste caso, que a escolha
do jornalista contempla, ao mesmo tempo, uma expectativa de de-
senvolvimento futuro da notícia e um “autoelogio” ao próprio jornal
(@Estadao), novamente feita pela voz do internauta.

Excerto 6

Ao selecionar a postagem de @jooseane, que faz uma brincadeira


com o nervosismo sentido pela ocasião do jogo de vôlei feminino entre
Brasil e Rússia no dia 7 de agosto de 2012, o jornalista novamente
manobra discursivamente no sentido de “apresentar os dois lados”,
em referência à crítica à imprensa esportiva (e aos leitores fãs de
esporte) feita no Excerto 3.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Excerto 7

Na captura de tela de celular incluída como item de mídia agre-


gado à story, lê-se uma mensagem de texto enviada pela empresa ao
usuário em questão, dizendo que a venda de chips está totalmente
normalizada. Contrapondo-se à mensagem, no entanto, há o enun-
ciado do usuário em descrédito à empresa, já que apesar de estar a
500 metros de uma antena de celular, o sinal aparentemente ainda
está ruim.
Aqui o storifier retoma, pela ação, voz e olhos do internauta,
uma prática jornalística típica, qual seja, mandar um repórter às ruas
para verificar se algo que um agente institucional com interesses na
notícia declarou está de fato acontecendo. De quebra, ilustra a pos-
sibilidade, apontada na seção teórica deste capítulo, do uso de uma
(micro) narrativa como item de um banco de dados.

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Cultura digital e linguística aplicada:
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Excerto 8

Ao trazer a voz de @rodrigocolatto, o jornalista-curador não


só “amplia o problema” para outros pontos problemáticos do negó-
cio de telefonia no Brasil, como o dos planos comercializados, como
cita nominalmente uma empresa concorrente daquela envolvida na
narrativa-intertexto da story. A apropriação nesse caso remete à deli-
cada questão da relação entre veículos jornalísticos e anunciantes. Ao
veicular uma notícia negativa sobre determinada empresa, o jornal
arrisca-se a perder essa mesma empresa como anunciante. Selecionar
uma voz de internauta que cita nominalmente um concorrente é uma
forma sutil encontrada pelo jornalista para preservar sua relação
com todas as empresas do setor, por “mostrar” que não se trata de
“perseguir” uma delas em particular.

Excerto 9

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

A postagem de @atitudedejovens, ao evocar um outro e mais


recente slogan da empresa – “Você sem fronteiras”–, estabelece a
oposição entre a metáfora da propaganda e a realidade cotidiana do
usuário, na qual muitas vezes, somente ao se atravessar a rua, fica-se
sem sinal. O critério do jornalista-curador terá sido, possivelmen-
te, não apenas o caráter criativo da postagem, mas o fato de que a
personagem se identifica como @atitudedejovens. Ocorre que, a
despeito de ser verdade ou “propaganda da concorrência”, OESP é
um veículo cuja imagem é associada à sisudez e ao tradicionalismo,
algo que afasta a marca OESP dos jovens. Não é descabido supor
que essa escolha de post esteja alinhada, nesse sentido, com a mesma
estratégia mercadológica que levou OESP a apropriar-se da curadoria
digital, especificamente de Storify: aproximar-se do público jovem que,
sabidamente, afasta-se cada vez mais do jornal impresso tradicional.

Excerto 10

No Excerto 10 o curador aproveita novamente a criatividade


estilística de uma internauta para elaborar a síntese entre
olimpíadas/esportes e o problema do sinal de telefonia que aparece
em outros momentos da story. Trata-se, talvez, do fragmento da story
que mais claramente a aproxima da ideia de “retrato do momento”,
mencionada pelo curador em entrevista como sendo sua concepção
de uma story jornalística.

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Cultura digital e linguística aplicada:
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Excerto 11

Na última postagem, desta vez extraída do Facebook, o usuário


incita a indignação dos usuários da operadora e estimula que bus-
quem os seus direitos, tendo em vista o caso de queda proposital de
sinal por parte da TIM. Mais do que isso, nos comentários, é possível
perceber que um usuário realiza um jogo de palavras com o nome da
empresa ao escrever “TIMganei” no lugar de “te enganei”, em clara
crítica à suposta falta de idoneidade da empresa.
Nesse caso, a fonte referida pelo internauta é a Folha de S. Paulo,
tradicional concorrente de OESP. A Folha é citada de modo bastante
sutil, como ‘apud’ do agregador de notícias Brasil MSN, o que per-
mite ao curador, sem fazer homenagem ao concorrente, atender a
uma norma institucionalizada no jornalismo: dar crédito quando a
notícia é dada por outrem. Ao mesmo tempo, porém, a escolha do post
é perspicaz no sentido de mostrar ao anunciante TIM que a postura
da concorrente (Folha) é bastante mais agressiva, ou mesmo para
sugerir que a Folha se aproveita do que apurou junto à Anatel para
agravar a “revolta” dos usuários de celular.

Considerações finais

Manovich (2001) já previa que narrativa e banco de dados viriam


a estabelecer uma disputa nas nossas preferências de formas de ver o
mundo no âmbito da convergência de mídias e da cultura digital. Na

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

análise aqui apresentada, pude ilustrar como isso ocorre de maneira


situada e vinculada a uma prática específica, relacionada a um processo
de apropriação tecnológica por um agente institucional.
Nesse caso específico, o jornalista descreve sua story como sendo
um retrato/panorama de uma situação presente, portanto, uma mos-
tra do que existe em relação a outras coisas que existem, algo que
remete diretamente ao banco de dados. Contudo, esse é um retrato
ou panorama “instantâneo”, uma espécie de congelamento e corte
ortogonal de um “fluxo dos fatos”, que vai remeter sempre a um fato
ou algum tipo de evento narrado no título da story.
Logo, o que o jornalista de O Estado de S. Paulo faz é, de fato,
hibridizar narrativa com banco de dados não apenas como formas,
mas como estratégias de construção do real. O que caracteriza sua
apropriação, mais especificamente, é que ele tenta, com isso, ofere-
cer uma interface ao leitor do que seria “a realidade” e, portanto, “o
interesse público” em determinado momento ou atividade, função
que se espera da mídia jornalística enquanto “quarto poder”. A di-
ferença é que, agora, o curador-jornalista tem condições de parecer
ainda mais neutro do que no contexto tecnológico anterior lhe era
possível. Primeiro, porque ele usa um intermediário não humano que
supostamente não tem opinião própria para reunir as informações
– o algoritmo – e, segundo, porque ele usa diretamente as vozes de
internautas como se fossem testemunhas, e não apenas “personagens
jornalísticas”.
Isso demonstra uma prática que tenta “domesticar” a nova forma
textual chamada story, para continuar a produzir textos baseados nos
mesmos preceitos institucionais utilizados para produzir um texto
jornalístico tradicional. Assim, é possível concluir que a curadoria
não implica uma democratização e, necessariamente, uma participação
massiva de outras vozes que não as vozes de poder.
Do ponto de vista educacional, convém que observemos e ana-
lisemos o potencial de novas práticas viabilizadas pelo digital, tais
como a curadoria digital, segundo as apropriações que delas se tem
feito. Embora o usuário enfocado, neste trabalho, tenha sido O Estado
de S. Paulo, há também outras apropriações dessa mesma plataforma
por universidades, ONGs e outros atores, assim como há stories que

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

que se destinam a outras esferas de atividade sócio-discursiva. O


que dizer de curadorias, por exemplo, que façam coleções em prol
da construção de uma participação política mais sólida por parte do
cidadão? Das curadorias que visem à construção de repertórios pes-
soais de conhecimento? Ou daquelas que, como tem acontecido nas
Linhas do Tempo do Facebook, representem curadorias “de si”, novos
tipos de texto biográfico que agregam performances e representações
pessoais para a construção de uma imagem pública?
É muito provável, por exemplo, que stories ou formas textuais
semelhantes possam ser úteis em situações de aprendizagem mas-
siva ou colaborativa online, nas quais os aprendizes desempenham,
ou deveriam desempenhar, um papel de curadores das suas próprias
fontes, experiências e propostas de aprendizagem (ver SECOLIM
COSER neste volume).
Finalmente, espero que a discussão aqui realizada acerca da
hibridização entre narrativa e banco de dados também possa servir
como uma contribuição de ordem metodológica, para o estudo de
outras formas textuais resultantes de curadoria digital.

Referências

BAL, Mieke.  Narratology: Introduction to the Theory of Narrative. Toronto: 


University of Toronto Press, 1985.
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990
BUZATO, Marcelo. E. K. Letramentos em rede: textos, máquinas, sujeitos
e saberes em translação. Revista Brasileira de Linguística Aplicada,
v. 12, n. 4, p. 783–809. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1984-63982012000400007, 2012a.
Acesso em: 01 ago. 2013.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.
LEMKE, Jay L. Travels in Hypermodality.  Visual Communication, v. 1, n. 3,
p. 299-325. 2002.
______. Discursive Technologies and the Social Organization of Meaning.
Folia Linguistica, v. 35, n. 1-2, 2001.
MANOVICH, Lev. Database as a symbolic form. Disponível em: http://
transcriptions.english.ucsb.edu/archive/courses/warner/english197/
Schedule_files/Manovich/Database_as_symbolic_form.htm>. Acesso
em: 12 fev. 2013.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

______. The language of new media. Cambridge/Massashusetts: MIT Press,


2001.
ROSENBAUM, Steven. Curation Nation: How to Win in a World Where
Consumers are Creators (McGraw-Hill, 2011).
STORIFY: Plataforma digital de curadoria, que permite agregar e reunir
informações de mídias sócias diversas. Disponível em: www.storify.
com. Acesso em: 15 ago. 2011.
O ESTADO DE S. PAULO. Jornal de circulação nacional. Versão online do
portal de notícias. Disponível em: http://www.estadao.com.br. Acesso
em: 29 jun. 2013.

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Cultura digital e linguística aplicada:
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Mashups Políticos nas Jornadas de Junho:


afinal, o gigante acordou ou não?
Rafael Salmazi Sachs

Introdução

Este capítulo tem por objetivo apresentar um conjunto de


reflexões e análises empíricas sobre a relação entre texto e con-
texto na linguagem digital concebida como processo (MILLER,
2011). Para tanto, parto da associação proposta por Iedema (2001)
entre formas de análise oriundas da Semiótica Social e um enfoque
processual voltado para o enredamento de entidades dispersas em
uma “unidade existencial” coletiva, inspirado na Teoria Ator-Rede
(LATOUR, 2000) (ver também BUZATO neste volume). Tais
princípios são utilizados na análise de um conjunto de montagens
multimodais postadas no Facebook ao longo das mobilizações polí-
ticas que tomaram as ruas brasileiras em 2013, conhecidas como
“Jornadas de Junho”. Meu propósito é mostrar que as referidas
montagens e o referido contexto de produção podem ser tratados
como processos materiais, analisáveis com base em uma metalin-
guagem abrangente. Trata-se de uma proposta experimental, cuja
motivação central foi trazer a formulação de Miller (2011) sobre a
linguagem digital como processo para consideração teórica e em-
pírica concreta no campo aplicado dos estudos da linguagem. Esse
objetivo está relacionado a outros trabalhos de análise de textos
multimodais digitais realizados em pesquisas anteriores (SACHS,
2012; 2015), aos quais retomo brevemente para contextualizar a
proposta do presente capítulo.
Como a popularização do computador e da internet resultou
na ampliação de processos automáticos de manipulação de todo

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Cultura digital e linguística aplicada:
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tipo de mídia, publica-se hoje, diária e ininterruptamente, uma


avalanche de textos nos mais diversos gêneros multimidiáticos
(JENKINS, 2009), havendo a necessidade de compreendermos
melhor os processos mais amplos em que essas produções se in-
serem. Com esse objetivo, em trabalho anterior (SACHS, 2012),
focalizei as produções textuais resultantes de práticas de fãs do
seriado norte-americano Glee na plataforma Tumblr, e mais tarde,
os textos publicados no contexto das Jornadas de Junho de 2013
(SACHS, 2015), aqui retomados.
No primeiro estudo, ficou demonstrado que a interação com-
plexa dos fãs entre si e com os conteúdos que produziam a partir
de cenas do seriado os levava, em alguns casos, a reflexões meta-
discursivas (SACHS, 2012), o que salienta um aparente potencial
crítico desse tipo de prática e produção (BUZATO; SACHS, 2015).
Já no segundo estudo, no qual baseio o presente capítulo, analisei
textos multimodais publicados em páginas do Facebook durante as
Jornadas de Junho, objetivando compreender como os processos
de montagem envolvendo texto e imagem expressavam o conflito
mais amplo de interesses e opiniões que caracterizou os protestos
nas ruas do Brasil naquele período (descrito, por exemplo, em
PARRA, 2013).
Esses estudos têm como base comum a proposta de que a análise
do discurso (digital) não deve ser apenas ferramenta para estudar
o que aconteceu em determinado texto/evento, mas também um
modo de “olhar muito além dos eventos imediatos”, quaisquer que
sejam, para realmente poder compreendê-los em sua complexidade
(LEMKE, 2011).
A multimodalidade amplia as possibilidades para esse tipo
de análise, já que textos assumidamente multimodais tendem a
produzir significados de maneira multiplicativa, o que em geral os
torna mais específicos, permitindo a expressão de sentidos que não
seriam possíveis caso uma modalidade ficasse em destaque sobre as
demais (LEMKE 2002). Além disso, defendo que textos produzidos
em mídias digitais, a partir de técnicas de sampleagem, montagem
e colagem, tendem a evidenciar mais claramente do que textos
impressos o “percurso semiótico” de sua construção, já que o pro-

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

dutor desse tipo de texto busca assumidamente, no mais das vezes,


destacar, em lugar de apagar, o modo como foi capaz de integrar
fontes heterogêneas num mesmo objeto “sem costura”(BUZATO
et al, 2013).
Tomem-se para exemplo mashups como o apresentado na
Figura 1 (uma das montagens analisadas mais adiante). Postada
em uma página do Facebook criada especificamente para discutir
as Jornadas de Junho, a montagem agrega elementos verbais e
pictóricos que remetem a outras fontes. Isto, obviamente, para
o leitor cujo repertório permite recuperar as referências trans-
textuais nele expressas, quer seja diretamente de sua memória
discursiva, ou de bancos de dados de imagens disponíveis na Web
(ver BARROS neste volume).
Na modalidade pictórica, por exemplo, a imagem do gigante
de pedra se levantando tem por fonte uma propaganda em vídeo da
empresa de uísque Johnny Walker, que retratava o Brasil como gigante
a despertar para o capital global, e que foi reduzida, neste caso, a um
único fotograma, e utilizado como imagem estática. A este foi sobre-
posto (justamente nas mãos do gigante) um mastro com a bandeira
brasileira (inicialmente ausente da peça publicitária), imagem extraída
de outra fonte textual, não tão facilmente identificável, porém possível
de ser rastreada mediante buscas de Internet.
Na modalidade verbal, por sua vez, a frase “O gigante acordou!”
reproduz um bordão muito repetido nas ruas brasileiras em 2013,
vinculado ao intertexto “Hino Nacional Brasileiro”, em que o “gi-
gante pela própria natureza” está “deitado eternamente em berço
esplêndido”. O leitor que domina essas referências discursivas po-
derá, portanto, flagrar no texto não apenas o sentido do enunciado
(re)montado, entendido como “produto”, mas também o processo de
montagem, a partir dos pontos de encaixe/assentamento (BUZATO
et al, 2013) aproveitados pelo montador.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 1 - Mashup 1: Representação das Jornadas de Junho como gigante que


desperta (Fonte: AMaiorArquibancadaDoBrasil, 2013)

Meu argumento, no presente capítulo, é o de que articular tais


interesses ao processo de montagem em si é uma forma de trazer para
um mesmo plano de análise tanto a instância microscópica do texto,
quanto o processo mais amplo do que vinha ocorrendo no Brasil no
momento em que a montagem foi publicada1.
Cabe, contudo, antes de prosseguir, fazer uma ressalva: não é mi-
nha pretensão discutir especificamente as Jornadas de Junho a partir
de aportes das Ciências Sociais, nem apresentar qualquer descrição
totalizadora dos eventos e acontecimentos que as constituíram. Trata-
se, apenas, de tomar esse momento da história recente do Brasil como
o contexto de produção das montagens analisadas aqui, na tentativa

1 Formas textuais como essa, em que fragmentos de duas ou mais fontes são reproduzidas num
novo texto, que as articula por meio de justaposições e sobreposições, foram caracterizadas
por Buzato e colegas (2013) como mashups a partir da na Teoria do Remix de Navas (2010). É
verdade que as teorias linguísticas e semióticas já abordaram o caráter processual da textualidade
em todas as suas manifestações, como nos estudos da transtextualidade de Genette (2006) e Koch
(2004), ou nos trabalhos do próprio Lemke (2009) na Semiótica Social. Com efeito, Buzato et al
(2013) endossam que todo texto é processo, dado que, a rigor, constitui-se numa assemblage de
enunciados capturados em circulações discursivas que ganham vida nova em cada ocorrência;
contudo, nem todo texto apresenta um efeito metassemiótico (de algo claramente montado para
ser ressignificado) tão pronunciado como o acima exposto. Assim, é possível tomar como mashup
toda forma textual, desde que se ressalte que, em alguns textos, as referências ao próprio processo
de sua composição são mais explicitamente declaradas que em outros.

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de perscrutar, com a análise, o potencial da proposta metodológica


iniciada por Iedema (2003) em vista do insight de Miller (2011) sobre
a linguagem digital.
Assim, na seção a seguir, aprofundo esse insight, descrevendo a
noção de linguagem digital como processo. Em seguida, discuto a
articulação teórica entre os trabalhos de Latour (1994; 2000) e Iedema
(2001). Posteriormente, exponho à guisa de ilustração, os resultados
de sua aplicação a uma parte do corpus reunido em Sachs (2015).
Em minhas considerações finais, procedo à discussão dos re-
sultados e às contribuições que esse tipo de procedimento analítico
pode oferecer a pesquisadores e educadores interessados no estudo
de produções digitais para o ensino e/ou para a formação de cidadãos
participativos.

O texto digital como processo ou “meaning in


the making”

Amparando-se em Manovich (2001), Miller (2011) explica que


as mídias digitais, por serem armazenadas em código binário (re-
presentação numérica), estão sujeitas à manipulação matemática, via
algoritmos, o que permite que sua reprodução, circulação ou mesmo
edição sejam (cada vez mais) automatizadas (ver BARROS neste
volume). Disso decorre que os objetos de mídia digital podem ser
constantemente disseminados, republicados, manipulados, montados
e remontados em uma série de outras versões seja por ação do usu-
ário que os criou/publicou, seja por ação de outros a ele associados
(MILLER, 2011).
Desse modo, todo conteúdo digitalizado existe sempre em
múltiplas versões, que, embora pareçam idênticas, são constante-
mente reconstruídas em cada aparelho e em cada situação em que as
requisitamos (algo que MANOVICH, 2001, inclui como o princípio
da “variabilidade” nas novas mídias) (Ver SILVA, neste volume). A
rigor, o texto que se vê na tela é um conjunto de pixels recriado a
cada exibição, de modo instantâneo e ad hoc e sustentado por uma
circulação de dados e energia em rede que pode ser interrompida a
qualquer momento.

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Embora pareçam estáticos, textos digitais são fluxos de códigos e


regras de montagem/exibição, em grande parte automatizadas e (re)
construídas incessantemente, de maneira iterativa e interativa. Assim,
da mesma forma como atuam agentes informáticos não humanos no
processo, também aqueles que têm acesso ao texto em seu contexto
de circulação podem, e frequentemente o fazem, gerar outras instân-
cias, textos derivados, novas versões de obras anteriores, recriados de
maneira processual, ora por um, ora por muitos usuários, em etapas
sucessivas de reconfigurações cumulativas.
Para elucidar esse raciocínio sobre a linguagem digital como pro-
cesso, Miller (2011) compara as mídias digitais à conversa quotidiana
(conversation), que ele descreve como um processo ou uma experiência
social contínua, que pode ter início, mas não apresenta necessariamente
um propósito ou um encerramento ligado claramente a seu momento
inicial (MILLER, 2011). Uma experiência de conversação, argumenta
o autor, é construída continuamente, e frequentemente marcada por
desvios em relação a seus rumos iniciais, o que pode conduzir o proces-
so a rotas imprevistas. Do mesmo modo, acrescento, a representação
digitalizada do Brasil como um gigante, por exemplo, começou como
propaganda de uísque, mas veio a ser transformada, em diferentes mon-
tagens, num ícone para muitos participantes das Jornadas de Junho e,
posteriormente, por meio de outros mashups, em instrumento de crítica
aos rumos que tomaram as manifestações, como será exposto adiante.
De certo modo, formas textuais como essa são objetos em que a
dinamicidade do texto e da prática social espelham-se mais explicita-
mente do que nos é possível, em geral, flagrar nos textos impressos,
de modo empiricamente explícito, com a mesma facilidade. Trata-se
de textos em algum sentido “mais vivos”, já que recuperam constan-
temente, a cada exibição, os fluxos intertextuais que estabelecem com
suas fontes, não apenas como experiências vividas na interpretação
feita por cada leitor/usuário, a depender de seu repertório cultural
e de sua memória discursiva, mas também no sentido mais concreto
da sua reconstituição calculada nos códigos e operações numéricas
entabulados em conexão “viva” com outros sítios da rede.
Afinal, como conciliar uma concepção de textos digitais como
processos com a necessidade de, em alguma medida, “dissecá-los”

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como se fossem produtos? Como analisar textos digitais destacan-


do seu caráter processual, sem enfatizar excessivamente o produto
final? A tentativa de sugerir uma resposta para essas questões passa,
neste trabalho, pela associação entre a Semiótica Social, com a noção
de ressemiotização (IEDEMA, 2001), e a Teoria Ator-Rede, com a
noção de translação (LATOUR, 1994).

Translação e ressemiotização

A associação entre o conceito de ressemiotização e a Teoria


Ator-Rede (doravante TAR) (ver também SCHEIFER neste volu-
me) passa pela compreensão de que, para esta, toda entidade é uma
entidade semiótica, todo ator social, não importa se uma instituição,
uma pessoa, um texto, uma ideia, uma lei, ou qualquer outra, é uma
rede que congrega outros atores/entidades. Trata-se de uma teoria
de base semiótica no sentido de que, assim como um texto é um “te-
cido” feito com fios intertextuais que, quando vinculados de modo
coeso e coerente, trazem algo de novo ao mundo, tudo o que há no
mundo, para a TAR, são também atores-redes ou redes-atores que
estabeleceram vínculos perenes e estáveis entre si, independente
das substâncias de que são constituídos (BUZATO, 2014, p.14; ver
também BUZATO neste volume).
Nesse sentido, a TAR oferece uma chave para a compreensão,
aqui almejada, dos acontecimentos das Jornadas de Junho e dos textos
que nela circularam como faces de um mesmo “processo em aberto”,
isto é, um mesmo momento de constituição de algo novo a partir
de relações ainda não estabilizadas e direcionadas de forma perene,
como teria sido, por exemplo, o estabelecimento de um novo regime
político ou a criação de uma instituição política oficial nova.
O conjunto de associações que caracteriza um ator, para a TAR,
é definido por Latour (1994) como translação — em inglês, transla-
tion, que também significa “tradução”. Toda translação descreve “um
processo que envolve, simultaneamente, desvios de rota na circulação
de ações (transporte) e articulações nas quais cada elemento expressa
os interesses dos demais elementos em sua própria linguagem (tra-
dução)” (BUZATO, 2012, p. 67).

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Para Latour (1994), qualquer translação envolve actantes e seus


programas de ação, duas noções derivadas da semiótica francesa utili-
zadas para explicar a constituição de textos narrativos. Por actantes,
entendem-se os agentes mais abstratos em processo de associação,
sejam humanos ou não; cada um deles é dotado de um programa de
ação: seus objetivos e funções, ou, em outros termos, o papel que
tendem a continuar exercendo em determinado processo, caso nada
os interrompa nem os faça desviar.
Assim sendo, uma segunda noção-chave, necessária para que
compreendamos um mashup como uma translação, está em considerar-
mos as affordances semióticas dos elementos agrupados num mashup,
isto é, as potencialidades de produção de sentido que essas entidades
(KRESS, 2005) como os interesses e/ou formas de resistência que
determinam a constituição de associações possíveis entre elas.
Ao se inserirem numa translação, os diferentes agentes envol-
vidos, chamados actantes, como na semiótica francesa, adquirem
identidades específicas, tornando-se atores. Esses atores, novamente
como na semiótica, adquirem determinadas figurativizações à medida
que se tornam enredados com os demais atores. Quando estabeleci-
das, as relações entre os atores alteram os seus respectivos atributos,
produzindo, assim, novas identidades.
Quando uma translação é malsucedida na manutenção desses
interesses e associações, acaba por esfacelar-se, mas, se for bem-
sucedida, consolida-se como um ator-rede, que passa a funcionar
com relativa estabilidade. Esta, se continuada, pode vir a tornar
opacos os arranjos e vínculos que constituem o ator-rede em
questão, que é descrito então como uma caixa-preta (LATOUR,
1994; LATOUR et al, 2012).Torna-se, assim, algo identificável
como uma entidade individual, a despeito de sua constituição he-
terogênea. Caso algum desses vínculos apresente dificuldade em
se manter, porém, a caixa-preta se abre, revelando toda a rede de
relações que a compõe.
A proposta que faço, aplicar o modelo de descrição das trans-
lações da TAR a textos propriamente ditos, não é exatamente nova,
visto que o próprio Latour (2000) o fez repetidas vezes para mostrar
como determinado fato científico ou inovação tecnológica ia surgindo

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à medida que enunciados e atores de textos científicos tornavam-se


enredados em translações. Latour explica, retomando, conscientemen-
te ou não o princípio dialógico da linguagem, que a caracterização
de determinado enunciado (sua força, seu impacto, sua veracidade)
sempre resultará das associações que enunciados posteriores fizerem
a seu respeito: diante de qualquer enunciado, produzem-se outros,
que podem confirmá-lo ou contestá-lo, dependendo dos interesses
de quem enuncia.
As montagens que integram o corpus deste trabalho constituem,
justamente, enunciados políticos, interessados em estabelecer uma
definição do momento vivido no Brasil durante as Jornadas de Junho.
Para criar textos como esses, os montadores agenciaram, tendo em
vista seus próprios interesses, uma série de enunciados até então dis-
persos, de modo a construir sua concepção acerca do que significava
participar das Jornadas e, em muitos dos exemplos, do que significava
ser brasileiro. Diante da possibilidade de controvérsia e de debate,
esses textos convocaram e mobilizaram, por meio da montagem, uma
variedade de actantes vindos de outras translações, e apagaram, no
processo, as vozes dissidentes, eliminando fragmentos indesejáveis
das obras fonte. Em outras palavras, o processo do texto e o proces-
so social se imiscuem em diferentes etapas, produzindo mudanças
de rumo tanto nos acontecimentos como na definição do que está
acontecendo. A isso, o semioticista social Rick Iedema (2001; 2003)
chama de ressemiotização.
O conceito de ressemiotização é tributário do de translação, uma
vez que descreve, com aportes da TAR e da semiótica social, o modo
como enunciados vão sendo desviados e tornados mais concretos ao
longo de cadeias de operações semióticas associadas a etapas distintas
de processos sociais. Iedema (2001) exemplifica a discussão descre-
vendo o modo como o processo de construção de um prédio público
(um hospital, no caso) envolve uma longa cadeia de transformações
semióticas, em que determinados significados vão ganhando corpo
em materialidades cada vez mais estáveis, conforme diferentes pro-
cessos sociais se desenrolam. De maneira simplificada: nas primeiras
reuniões em que a construção é discutida, o hospital não passa de
um conjunto de enunciados orais, que depois são transformados em
documentos escritos (para possibilitar um registro mais duradouro),

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Cultura digital e linguística aplicada:
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posteriormente se convertem em plantas arquitetônicas (que possibili-


tam a análise visual da construção projetada), em seguida em pedidos
de compra de material e contratos de serviços e, finalmente, numa
construção de concreto propriamente dita (que possibilita sustentar,
de maneira estável e duradoura, a separação entre espaços internos
e externos ao prédio).
Como se vê, em todas essas transformações, estão envolvidos
não apenas os interesses dos seres humanos que negociam o projeto,
mas também as affordances (KRESS, 2005) de cada um dos modos
semióticos e materialidades discursivas acionados ao longo das etapas.
Assim, fica evidente que a lógica da translação pode ser aplicada até
mesmo a formas textuais, em que a produção de sentidos pode ser
entendida como um jogo de associações entre diferentes modalidades,
de acordo com os interesses (affordances) de cada uma.
Desse modo, a ressemiotização, como um tipo específico de
translação, se preferirmos assim defini-la, gera efeitos ontológicos
ou de definição do que existe/está existindo/deve existir. O ponto
que distingue a presente proposta é que os estudos de Iedema (2001,
2003), em geral, têm como interesse atividades institucionalizadas,
ao passo que, neste capítulo, trato de um processo em que estão em
jogo tanto interesses de institucionalização quanto de desinstitucio-
nalização da política. Da mesma forma, os estudos de ressemiotiza-
ção da Semiótica Social estariam mais direcionados ao que, na TAR,
chama-se de constituição de “caixas-pretas” ao passo que, no presente
estudo, focalizo um momento em que certas “caixas-pretas” estariam,
de alguma forma, à mercê de reabertura.
Como já sugeri, essa mesma dinâmica de ressemiotização é
claramente flagrada nas diferentes versões e etapas de criação dos
mashups estudados aqui, como mostrarei mais adiante. Vale notar,
entretanto, que os mashups que analisarei aqui, ao pretenderem definir
determinada situação, não procuram um “apagamento de costuras”,
como no caso de uma caixa-preta: ao contrário, sua força enuncia-
tiva está justamente em que as costuras entre as obras-fonte sejam
reconhecidas, e o percurso de desmontagem e remontagem dessas
obras seja evidenciado e aclamado pelo leitor (BUZATO et al, 2013).
Exatamente por isso, considero que analisá-los com essas ferramentas

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teóricas permite olhá-los não apenas como produtos, mas como rege-
nerações do próprio processo de sua composição, e, por conseguinte,
da controvérsia política em que tiveram origem (no caso, as Jornadas
de Junho). Para melhor descrever essa controvérsia, recorro agora à
noção de política enquanto regime de enunciação (LATOUR, 2003).

Política como regime de enunciação

O que foram as Jornadas de Junho? Caracterizadas pela ebulição


massiva de protestos que reuniram diferentes grupos sociais e econô-
micos, as Jornadas de Junho constituíram um evento sui generis, em
que uma suposta crise de representatividade revelou-se justamente
quando muitos vieram a público para tentar definir os acontecimentos
e, de algum modo, canalizar sua força política na defesa de interesses
próprios (PARRA, 2013). Justamente por constituírem um momento
em que entidades dispersas começam a negociar o sentido das suas
ações como sendo “público” ou “coletivo”, em função de interesses até
então desconexos, proponho entender as Jornadas à luz das reflexões
de Latour (2003) a respeito da política como modo de enunciação.
Para Latour (2003), o teor político de um enunciado não se define
por seu tema, por quem o profere, nem mesmo pelo espaço (público
ou privado) em que esse enunciado é proferido, mas por uma certa
“maneira de dizer” que pode se manifestar em qualquer espaço, e
pode ser utilizada por quaisquer atores. A política deve ser entendida,
assim, como um modo de se engajar discursivamente, que, por sua
vez, define certos objetivos, intenções e características do que viria
a ser “público”, quanto ao que se diz. Diferentemente do regime de
enunciação da ciência, por exemplo, em que se busca produzir fatos
pela circulação de referências semióticas apresentadas como a “voz
da natureza”, na política, para o autor, o objetivo dos enunciados é
construir o contexto, isto é, reunir pessoas em torno do que seria seu
próprio interesse traduzido como interesse público, num agregado
de interesses, vozes, identidades e competências que podem ser re-
presentadas por um único ator.
Para Latour (2003), a ideia tradicional de representação política
na democracia é apenas uma das maneiras de construir essa unida-

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de na coletividade, justamente aquela que, nas Jornadas de Junho,


revelou-se em crise. Contudo, Latour (2003) afasta da noção de crise
de representação qualquer sentido simplista do tipo “faltam políticos
honestos”, quando explica que cada representante falará sempre por
muitos interesses heterogêneos entre si, mas traduzidos em uma
unidade, o que, obviamente, só será possível por meio de transfor-
mações nas identidades e nos sentidos de quem diz e do que é dito,
isto é, desvios e traduções como “traições”.
Os mashups estudados neste trabalho, por sua vez, ao mesmo
tempo em que materializavam pela linguagem tentativas de estabili-
zação de definição do que estava acontecendo na esfera pública, davam
margem à discussão acerca dos interesses agregados no movimento,
porém não devidamente pactuados ou negociados em torno de um
ponto de passagem obrigatoriamente comum. Assim, ao mesmo tem-
po em que constituem tentativas de estabilizar o sentido de certos
enunciados políticos proferidos nas ruas, esses mashups funcionaram
efetivamente como tentativas de definições de realidade política,
que produziam em seus leitores e espectadores tanto o sentimento
de filiação e pertencimento, quanto de repulsa, a depender de cada
proposta. Advém daí a importância de sua análise: diferentemente
de slogans e anúncios de campanhas eleitorais, mais comumente
associados ao que seria a política como um regime de enunciação,
esses mashups evidenciam a política como a tentativa de definição da
realidade e, em particular, daquilo que na realidade deve ou pode ser
mudado, como um processo de traduções, e, portanto, de traições, de
enunciados anteriores.

Estratégias metodológicas

Para melhor descrever as montagens aqui analisadas, cabe deta-


lhar que o título “Jornadas de Junho” foi um dos nomes que recebeu
o conjunto de manifestações populares que tomaram as ruas de di-
versas cidades brasileiras (em especial as capitais) a partir do dia 13
de junho 2013, que não só tiveram grande impacto em muitos sites de
redes sociais, como utilizaram esses serviços como suporte para sua
organização e estruturação. Com a motivação inicial de contestar o
aumento anunciado dos preços de tarifas de transporte público nas

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

capitais brasileiras, os protestos foram ganhando a adesão de milhares


de brasileiros de muitos municípios, e abriram-se para agregar, sem
organização centralizada, uma série de reivindicações dos mais diver-
sos grupos sociais. Como resultado, houve, em diversas localidades,
a redução das tarifas de transporte público e, em diversos níveis de
governo, a aprovação acelerada de medidas específicas, por exemplo,
de auxílio no combate à corrupção de agentes públicos, que visavam
claramente a acalmar o furor da população.
Uma narrativa um tanto mais completa sobre as Jornadas de
Junho não poderia passar sem a menção a outros elementos marcan-
tes, como a presença massiva nas ruas da máscara de Guy Fawkes2,
ou os embates violentos entre a polícia e grupos de manifestantes,
ou ainda a tentativa, por diversos grupos de interesse, de “domesti-
car” (PARRA, 2013) a força política daqueles acontecimentos a seu
próprio favor. Nesse mesmo sentido, houve e ainda há uma disputa
acadêmica e política quanto ao significado das Jornadas de Junho e a
que definição de “realidade brasileira” elas remetem.
Além da multiplicidade de requisições, participantes e interpreta-
ções envolvidos, as Jornadas foram marcadas pela cobertura constante
da imprensa brasileira e de grupos de mídia alternativa na internet,
bem como pela presença dos chamados blackblocs (do inglês, black,
“negro”, e bloc, “agrupamento de pessoas para uma ação conjunta”),
formados por manifestantes de rosto coberto que aplicavam táticas de
ação direta contra lojas, agências bancárias e prédios de instituições
governamentais, quebrando fachadas e pichando paredes. De modo
geral, divulgou-se que os blackblocs agiam nos momentos finais de
cada ato público, e a polícia fazia uso disso para justificar a repres-
são, efetivada com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo
contra os manifestantes; em contrapartida, relatos e gravações em
vídeo in loco publicadas na internet mostravam que, muitas vezes, a

2 A máscara remonta à participação do soldado inglês Guy Fawkes na chamada Conspiração da


Pólvora, que em 1605 pretendia explodir o Parlamento inglês durante uma sessão em que seus
membros estavam reunidos com o rei protestante Jaime I, dando início a um levante católico na
Inglaterra. O soldado, encarregado de guardar os barris de pólvora em local adequado no Parla-
mento, foi capturado, torturado e morto, não sem antes revelar os nomes de outros membros da
Conspiração, que acabaram vivendo o mesmo destino. Posteriormente, no filme “V de Vingança”,
a imagem do rosto de Guy Fawkes foi usada como máscara pelo personagem principal, como
símbolo da revolução que ele próprio buscava inaugurar em uma Inglaterra fictícia, na década
de 1990, também a partir de uma explosão do Parlamento.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

ação policial dispersiva precedia qualquer gesto agressivo dos ma-


nifestantes, atingindo-os mesmo quando os protestos eram pacíficos
(OLIVEN, 2013).
Uma vez que versões conflitantes dos fatos passaram a circular
pela televisão, pelos jornais e pelos sites de redes sociais, não é possível
(nem era à época) definir com clareza os detalhes do que efetivamente
ocorreu nos protestos, bem como o direcionamento que a opinião
pública tomou na segunda quinzena de junho. Havia quem dissesse
que as manifestações já não passavam de arruaça e bagunça, havia
jornais descrevendo-as como “atos de vandalismo”, e havia quem
defendesse que os blackblocs e seus atos de depredação eram, na re-
alidade, operados pelos próprios policiais, infiltrados nas multidões
no intuito de deslegitimá-las3. A controvérsia estendeu-se das ruas
aos sites de redes sociais, e foi nesse turbilhão discursivo, alimentado
pela disputa de sentidos para os fatos – e para a conexão/desconexão
de agentes e interesses envolvidos nas ações nas ruas – que os textos
aqui analisados foram produzidos e circulados. Assim, como já dito,
o grau de explicitude dessas disputas e enredamentos, o modo como
certos atores foram agregados e as “costuras” entre estes foram feitas
ou desfeitas, apagadas ou realçadas, trazem à luz o funcionamento do
modo de enunciação político de uma maneira particularmente propí-
cia e fazem do mashup (político) uma forma textual particularmente
adequada para o tipo de análise que proponho.
Os cinco textos aqui analisados foram extraídos de um corpus
utilizado por Sachs (2015), composto por 88 postagens de Facebook,
caracterizadas no Quadro 1.

3 À época, circularam pela internet alguns vídeos que supostamente mostram policiais preparando-
se para se misturar às manifestações à paisana. Um exemplo pode ser encontrado no vídeo Policiais
infiltrados em manifestação do Passe Livre” (2013), disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=9HNxpvYpyB0>.

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Quadro 1 - Composição do corpus completo

Opções
Forma de
Quantidade “curtir” da Endereço
coleta
página
Armazenamento
livre de posta-
gens considera-
Corpus Não se
31 das relevantes Variável
preliminar aplica
no período das
Jornadas de
Junho

https://www.
Página Entrada dos ter- facebook.com/
12 560 mos vemprarua
vempraruabrasil vemprarua-
e Facebook no brasil
Google, coleta
das montagens
com evidências https://www.
Página
25 2969 de retrabalho facebook.com/
VemPraRuaBr
postadas em VemPraRuaBR
junho de 2013
nos três primei- https://www.
Página ros resultados facebook.com/
AMaiorArqui- oferecidos pelo
20 35785 AMaiorArqui-
ban-cadaDo- buscador bancadaDo-
Brasil
Brasil

Em Sachs (2015), o corpus em questão foi analisado em detalhes,


na busca por evidenciar o papel dos vários participantes e processos
representados em relação às disputas sobre o significado das manifes-
tações. No presente capítulo, por questão de espaço, optei por focalizar
os resultados referentes a um mesmo e único elemento semiótico, o
gigante de pedra, já apresentado na Figura 1 da introdução. A partir
dessa escolha, as cinco montagens acima foram agrupadas de acordo
com as diferentes propostas acerca do significado das manifestações
e, para a análise, elegi como instrumentos (i) as categorias da Semi-
ótica Social, sobretudo para signos visuais (tal qual sumarizado no
Quadro 2), com base em Lemke (2002; 2009), Kress e Van Leuween
(1996) e Iedema (2001; 2003); e (ii) o conceito de translação da teoria
Ator-Rede, com as categorias por ele abrangidas (LATOUR,1994).
Tomando o gigante de pedra como “ator-focal” da translação,
passei a seguir os vínculos (materiais e semióticos) que o constituem.

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Cultura digital e linguística aplicada:
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Como já dito, os “interesses” dos atores envolvidos foram com-


preendidos em termos das suas propiciações semióticas (affordances)
na situação em tela.

Quadro 2 - Sumário das categorias para análise de signos visuais

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Cultura digital e linguística aplicada:
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O Quadro 3 apresenta informações gerais sobre os cinco mashups


selecionados. Destaco que o mashup 2, por aparecer em diferentes ver-
sões, com diferentes adendos textuais referentes à realização de um ato
de ocupação da Rede Globo de Televisão, foi analisado apenas quanto
a seus componentes visuais, e que a publicação original do mashup 5,
datada, no Facebook, de julho de 2013, não pôde ser recuperada.

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Cultura digital e linguística aplicada:
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Quadro 3- Dados gerais sobre os mashups selecionados para análise detalhada

LEGENDA
DATA PÁGINA DE PUBLICAÇÃO
ADOTADA

Mashup 1 Entre 18 e AMaiorArquibancadaDoBrasil


(Figura 1) 21/06/2013 Disponível em: http://tinyurl.com/lycpohz

OcupaARedeGlobo
Mashup 2 Entre 29/06 e Versões variáveis disponíveis em: http://
(Figura 3) 03/07/2013 tinyurl.com/mnstrab e http://tinyurl.com/
ky8xe83

Blog Apócrifo da Esbórnia (link republicado


Mashup 3
19/06/2013 no Facebook)
(Figura 4)
Disponível em: http://tinyurl.com/nhby9xp

Mashup 4 Blog do V.P. (link republicado no Facebook)


15/07/2013
(Figura 6) Disponível em: http://tinyurl.com/otdtrsx

Publicação original apagada, última refe-


Mashup 5 rência publicada em 04/11/2013, no portal
13/07/2013
(Figura 7) Gerador de Memes.
Disponível em: http://tinyurl.com/n7c25jz

Caminhos do gigante como percursos


de ressemiotização4

Mashup 1: o gigante e suas affordances


O mashup 1, já exibido na Figura 1, será tomado como ponto de
partida da análise, ou o momento em que começo a acompanhar meu
ator focal, sob o pressuposto de que a produção desse texto pode ser
vista como uma translação que faz convergir as diferentes affordances
semióticas dos elementos que o compõem, a partir de uma “proble-
matização” (LATOUR, 2000) do montador. Em outras palavras,
4 No presente capítulo, focalizo, exclusivamente, o percurso "semiótico" dos atores, sem levar em
conta os percursos espaciais e temporais que são também constitutivos da ressemiotização enquanto
fenômeno. Porém, para agregar à "fotografia do processo" que aqui apresento os componentes
espaciais e temporais da ressemiotização, seriam necessários dados etnográfricos e instrumentos
"cartográficos" como aqueles utilizados por Sheifer (este volume), dos quais não disponho.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

descreve-se a forma como esse montador, assim como muitos outros


envolvidos nas Jornadas, definiu a realidade das manifestações como
um momento de conflito entre dois “Brasis”: de um lado, um Brasil
como uma população inerte, alienada, imóvel diante das decisões dos
poderes constituídos; de outro, o povo nas ruas, um Brasil ativo, que
se levanta na defesa de seus próprios interesses.
O enunciado insere-se claramente no regime político (LA-
TOUR, 2003), uma vez que tenciona traduzir toda a coletividade
da “nação brasileira” num representante unificado. Esses elementos
se evidenciam em várias características do mashup: o uso de cores-
símbolos do Brasil, o cenário da baía de Guanabara e o Rio de
Janeiro, a presença da bandeira brasileira, e os próprios atributos
do gigante (grande como o Brasil, e vinculado à natureza, porque
feito de pedra e coberto por vegetação). Além disso, o gigante está
numa posição que sinaliza a ação não transacional de levantar-se,
reforçada pela modalidade verbal, traços cooptados pelo montador
para descrever as Jornadas como processo de mudança da inércia
para a atividade  – interpretação que, posteriormente, veio a ser
questionada. Outros traços usuais da figura de um gigante (força
física, energia) ajudam a construir a imagem do Brasil como país
que, ao protestar, apruma-se para enfrentar seus adversários, como
revela o alinhamento entre o verbo “preparar-se” no imperativo,
indicando alerta, e a imagem do mastro da bandeira brasileira, que
pode ser vista como uma arma (uma espada, um porrete), dado seu
formato e sua posição na mão do gigante.
Muitos desses traços também revelam as referências transtex-
tuais contidas na Figura 1, e sua composição a partir de operações de
desmontagem aplicadas a um vídeo publicitário da empresa Johnnie
Walker (KEEP WALKING, BRAZIL, 2011), constituído por várias
tomadas que representam o despertar do monte Pão de Açúcar
como gigante, observado por milhares de pessoas na cidade do Rio
de Janeiro. Com trilha sonora instrumental épica, o vídeo se inicia
exibindo tremores e rachaduras no monte, que aos poucos se levan-
ta e segue, de cabeça erguida, para o Oceano Atlântico. Ao final, o
slogan “O gigante não está mais adormecido” é entremeado ao andar
da criatura, e, em seguida, logo antes de se revelar a marca Johnnie
Walker, aparece um segundo slogan: “Keep Walking, Brazil” (“Continue

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

andando, Brasil”). Esses elementos visuais aparecem reproduzidos


nas capturas de tela da Figura 2, que, no mashup 1 foram eliminadas,
com exceção do Quadro 2.
Como revelam alguns blogs e notícias a respeito da propaganda5,
a Johnnie Walker publicou esse anúncio, de nome “Keep Walking,
Brazil”, em outubro de 2011, reconhecendo o alto crescimento do
faturamento da empresa com o país naquele ano, que alcançou a marca
dos 30%. Acompanhando o vídeo, postado no canal da empresa no
Youtube, havia uma breve narrativa, com referências literais ao Hino
Nacional Brasileiro e ao Brasil como gigante adormecido que, num
momento de clímax, se levanta.

Figura 5 - Sequência de capturas de tela de vídeo publicitário da empresa Johnnie


Walker (FONTE: KEEP WALKING, BRAZIL, 2011)

5 Dois exemplos são os textos do Jornal do Brasil e do portal Meio e Mensagem a respeito, respec-
tivamente nos endereços <http://tinyurl.com/8428zbd> e <http://tinyurl.com/pv4u3qj>, ambos
com acesso em 12 set.2014 (LORENTE, 2011; PROPAGANDA da Johnnie Walker com Pão de
Açúcar que vira gigante faz sucesso, 2011).

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Depois de muito sonhar [...] sobre si, o gigante finalmente


despertou com a resposta. Acordou, ergueu-se sobre a terra da
qual era parte e ficou de frente para o horizonte. Tirou então
um dos pés do chão e, adentrando o mar, deu um primeiro
passo. Um passo decidido em direção ao mundo lá fora para
encontrar seu destino. Agora sabendo que o que o faz um
gigante não é seu tamanho, mas o tamanho dos passos que dá.
(KEEP WALKING, BRAZIL, 2011).

Vídeo e texto mostram, assim, que a própria produtora do


comercial é quem primeiro havia cooptado as affordances descri-
tas anteriormente, com o interesse de retratar, com o gigante, o
Brasil em mudança, mas, no caso, quanto à posição como mercado
emergente. Para criar o mashup a partir dessa peça publicitária,
o montador paralisa o vídeo em um momento específico (o qua-
drante 2 da Figura 2) e recorta tal quadrante, tomando boa parte
das associações promovidas pela empresa de uísque como “caixa-
preta” (LATOUR, 2000), sem desfazer os vínculos que já haviam
sido estabelecidos. A partir disso, o usuário constrói, porém, uma
nova cena: apaga os slogans que remetem à empresa, e promove,
em lugar destes, associações com outros atores, instaurando uma
nova translação, a partir da adição de palavras e outras imagens,
extraídas de outras fontes.
A posição da mão do gigante, por exemplo, é tomada como
ponto de assentamento, que permite ao montador encaixar sobre
a cena o mastro com a bandeira do Brasil, que, como mencionado,
alude ao civismo que a bandeira representa, mas tem o formato de
uma arma. Modificações como essas são operações de ressemiotiza-
ção, que envolvem uma redistribuição e reorganização, no mashup,
dos elementos de cada fonte, de acordo com as affordances a elas
associadas.
Isso fica bastante visível, por exemplo, na polarização que caracteri-
za a montagem final. É comum, quanto ao eixo vertical de representações
pictóricas, que elementos ideais e potenciais (abstratos) ocupem a posição
superior da imagem, enquanto o que é concreto ocupa normalmente os
quadrantes inferiores. Já no eixo horizontal, associa-se o lado esquerdo
ao que é dado, e ao direito, o que é novo. Essas affordances da modali-

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

dade pictórica foram claramente cooptadas pelo montador de acordo


com seus interesses: no quadrante escolhido, a figura do gigante, por
exemplo, ocupa posição intermediária em ambos os eixos, apontando
para a direita, numa possível representação de um novo Brasil que está
em processo de concretização, que ainda carece, porém, de renovação.
Entretanto, não se identificam, na modalidade pictórica, nem o espaço
para onde o gigante caminha, nem contra quem pega em armas: o mastro
em suas mãos funciona como vetor que aponta apenas para o mar, para
o desconhecido, para o que ainda é incerto e novo.
Também ocorrem desvios e acréscimos na modalidade escrita,
os quais particularizam a interpretação da modalidade visual. As
menções à Johnnie Walker são substituídas por um alerta a “políticos
inertes e corruptos”, apontados como futuro alvo do gigante, termo
posicionado não mais como vocativo (função que ocupava no Hino
Nacional), mas como sujeito e agente do verbo “acordar”. Isso ca-
racteriza a ação como algo que parte dele próprio, e opõe-se à carac-
terização do Brasil como um país “deitado eternamente” (portanto
imóvel e inofensivo).
Finalmente, o fato de que, do ponto de vista orientacional, a cena
se coloque como oferta ao observador, que a vê de lado, sem troca
de olhar com o gigante, sugere que o montador a produziu como
provocação ao cidadão brasileiro, que é convidado a se posicionar no
suposto combate à corrupção que caracterizaria as Jornadas.
Essa concepção dos protestos de 2013 é bastante diferente
daquela pretendida, por exemplo, pelos grupos que os iniciaram,
como o Movimento Passe Livre, que tinha objetivos bem específicos
quanto à tarifa de transporte público, e que veio a recuar no comando
dos protestos, quando estes, ao unirem vozes outras (e múltiplas),
passaram a gritar por causas contraditórias e, em alguns momentos,
vinculadas ao conservadorismo. À época em que “o gigante acordou”
virou mote das Jornadas, houve muitos que questionaram se o tal
colosso não estaria, na realidade, sonâmbulo, denunciando contra-
dições e uma série de entraves à própria sustentação dos protestos,
bem como às reações que os poderes constituídos e a mídia estavam
assumindo frente a estes. Mensagens com esses enunciados são o
foco do item a seguir.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Os mashups seguintes: o gigante acordou?

São representativos dessa outra narrativa das Jornadas os


mashups 2 e 3, reproduzidos respectivamente nas Figuras 3 e 4. O
primeiro caso emprega a mesma figura do gigante (na mesma posição),
mas acrescenta a esta um novo ator: a figura mecânica e igualmente
gigantesca da Rede Globo. Já no mashup 3, é a bandeira brasileira
que recebe alterações e acréscimos: o círculo azul que fica ao centro
da flâmula é representado como um olho entreaberto, no qual um
policial espirra spray de pimenta.

Figura 6 - Mashup 2: representação do embate entre o gigante Brasil e o gigante Rede


Globo (FONTE: OCUPAAREDEGLOBO, 2013)

Os dois mashups remetem a grandes acontecimentos das Jorna-


das de Junho: no primeiro, a maneira como as grandes empresas da
mídia brasileira mudaram seu discurso sobre os protestos conforme
estes se ampliavam, e aos poucos passaram a tentar direcioná-los para
seus próprios interesses (PARRA, 2013); no segundo, a utilização
da repressão policial, justificada pela suposta ocorrência de atos de
vandalismo, para dispersar as multidões das ruas (SOARES, 2013).
Nos dois casos, a polarização entre esquerda e direita é elemento
significativo: os atores ligados aos poderes constituídos (mídia e
polícia) ocupam a posição associada ao que é dado, ou conhecido, e
atingem materialmente os atores associados ao que é novo, recém-
revelado – os protestos.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 7 - Mashup 3: representação da disputa entre manifestantes e forças policiais


(FONTE: APOCRIFODAESBORNIA, 2013)

Para além disso, são montagens que sugerem processos reativos


resultantes do embate entre dado e novo. No mashup 2, a posição
do gigante (cooptada anteriormente para implicar seu despertar)
é tomada como traço de vulnerabilidade, o que faz com que o robô
Globo o ataque e, em posição verticalmente superior, tente torná-lo
submisso, aprisionando-o; no quadro seguinte, porém, convoca-se
outro quadro da propaganda da Johnnie Walker, numa cena em que o
gigante está de pé, para marcar a inversão: é o gigante, agora, quem
subjuga a Rede Globo, acorrentando-a.
As affordances semióticas aproveitadas ficam evidentes: a modali-
dade visual permite, por exemplo, destacar atributos similares para o
gigante de pedra e o da Rede Globo (mesmo tamanho, mesma forma
física básica, mesmos gestos e atitudes de guerreiros). Isso os coloca
como adversários, em tese, simétricos em termos de poder. Tendo
posicionado os gigantes numa mesma linha horizontal, ainda que com
alturas diferentes, o montador empreende um processo conceitual clas-
sificatório que torna povo e Rede Globo entidades análogas, algo que
verbalmente seria mais difícil, dado que “povo” e “corporação de mídia”
possivelmente não são co-hipônimos em nenhum campo semântico.
Os processos materiais e a variação da posição vertical de am-
bos os gigantes, por sua vez, também são affordances cooptadas para

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

enunciar que o despertar efetivo do gigante só poderia ocorrer se as


corporações de mídia fossem enfrentadas. Isso pode ser associado, em
referências às ruas, ao grande volume de gravações, fotos e relatos
publicados na internet, durante as Jornadas, pelos próprios manifes-
tantes, pela assim chamada Mídia Ninja e por outros grupos e ONGs.
O mesmo tipo de reflexão é evidenciado no mashup 3, em que
policial e bandeira estão em confronto material, numa relação bitran-
sitiva em que um olha para aquilo que tenta cegá-lo, e o outrocega
aquilo que tenta olhá-lo. Aqui, são rastreáveis os dois textos fonte:
a representação artística da bandeira brasileira com um olho, em-
pregada em algumas postagens junto à legenda “o gigante acordou”
(Figura 5, à esquerda); e uma fotografia feita nos protestos do dia
17 de junho em São Paulo, que exibe um policial atacando com spray
um cinegrafista (Figura 5, à direita). O montador recorta o policial,
cooptando o vetor correspondente ao jato de spray, e substitui seu
alvo por outro: um olhar que simboliza o de todo o povo brasileiro.

Figura 8 - Imagens utilizadas como fonte para o mashup 3 (FONTES: GAZETAONLINE,


2013 (à direita)); FRASESNOFACEBOOK, 2013 (à esquerda).

Fundamental, nesse conjunto, é o texto verbal, manobra de


ressemiotização: diante da cena, o montador questiona, dirigindo-
se ao leitor, se efetivamente o Brasil está acordado, e se será capaz
de suportar seus opositores. Aqui, a affordance visual cooptada é
a ambiguidade da representação do olho entreaberto, que pode
tanto significar que o povo está acordando, como que está sofrendo
pela ação do spray, e tende a fechar-se. Em suma, os mashups 2 e
3 contrapõem-se claramente ao mashup 1; são mashups recalci-
trantes (para usar um termo da TAR) em relação a certas visões
mais ingênuas acerca das Jornadas inicialmente circuladas pela
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Cultura digital e linguística aplicada:
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mídia oficial e pelas redes sociais online. Não obstante apresentem,


eles próprios, traços de ingenuidade – ao manter, por exemplo,
a representação de manifestações tão múltiplas como um mesmo
gigante – sua recalcitrância se manifesta justamente quando con-
vocam elementos ufanistas do primeiro texto para questioná-lo,
desviando a direção dessa interpretação inicial, que a primeira
montagem tentava estabilizar.

Terceiro momento: o gigante voltou a dormir?

Os mashups 4 e 5, reproduzidos respectivamente nas Figuras 6


e 7, foram publicados no momento de dissipação das manifestações,
correspondente à primeira quinzena do mês de julho de 2013. Frente
às manobras dos governantes, à disseminação (espetacularizada
em telejornais) de atos de depredação nos protestos, e ao recuo
de grupos militantes assustados com o conservadorismo nas ruas,
os protestos foram se reduzindo gradativamente, eventualmente
vindo a cessar, com reações múltiplas de alívio, descontentamento,
ou como nos mashups 4 e 5, questionamentos sobre os reais efeitos
daqueles acontecimentos.

Figura 9 -Mashup 4: representação do gigante Brasil voltando a dormir


(FONTE: PEIXOTO, 2013)

O mashup 4 seleciona da propaganda da Johnnie Walker uma


cena que apresenta o gigante em uma posição intermediária entre

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Cultura digital e linguística aplicada:
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horizontal e vertical, o que torna impossível determinar para onde


aponta o vetor de seu movimento: estaria ele se levantando ou se dei-
tando? A ambiguidade visual é reforçada pela interrogação no texto
escrito, que propõe um questionamento, empregando uma sentença
que circulou em blogs6 até mesmo durante os próprios protestos. Nela
se reconhece o despertar do gigante (“o Gigante acordou”), mas se
questiona o propósito disso e a efetiva continuidade desse movimento
(“mas voltou a dormir”). Para além disso, a menção ao “fazer xixi”
sugere que o despertar das ruas teria sido efêmero, equiparável a
um desabafo, à mera busca por despejar alguns incômodos que então
bloqueavam o retorno dos envolvidos à sua habitual apatia política.

Figura 7 - Mashup 5 representação do gigante Brasil deixando o próprio território.


(Fente: GERADORDEMEMES, 2015).

Trata-se, assim, de uma montagem que parte das mesmas fontes


que o mashup 1, mas as remonta de modo a contrapor o otimismo
inicial do primeiro texto. O mesmo ocorre com o mashup 5: no quadro

6 Um exemplo pode ser encontrado em Carvalho, 2013.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

superior, aparece a mesma cena da Figura 1, o que evidencia o evi-


dente processo de “desressemiotização” (desmontar para remontar)
operado, com a exclusão de alguns elementos da primeira montagem
(a menção textual à luta contra a corrupção), e a associação a novos
elementos do quadrante inferior. Este faz uso de outro frame da mes-
ma propaganda utilizada pelos demais (uma cena também aparece no
mashup 2), em que o gigante aparece em pé, levemente voltado para
o mar, e em posição que insinua movimento de caminhada.
Tanto texto escrito quanto imagem são reproduções quase
idênticas de fragmentos que já haviam aparecido no mashup 1; con-
tudo, há aqui uma polarização da imagem entre o que está em cima
(associado, convencionalmente, ao que é ideal) e o que está embaixo
(correspondente ao que é real): no segundo quadrante, já não há mais
gigante a despertar, já que a posição deste em relação à paisagem (de
pé, virado para o mar) foi aproveitada pelo montador para produzir,
com a modalidade escrita, a narrativa de que o colosso, após se le-
vantar, optou por deixar o Brasil.
Parece formular-se, aí, uma crítica mais dura a visões idealistas
acerca dos levantes de junho de 2013: a princípio, o questionamento
parece admitir a visão das Jornadas como um despertar; contudo,
o segmento inferior não representa um mero retorno à apatia, não
representa um “voltar a dormir” como no texto anterior, mas, sim,
um verdadeiro rompimento: visualmente, o gigante parece dar as
costas ao Brasil, e a modalidade escrita atribui a ele o enunciado “vou
me embora ‘dessa merda’”. Esse enunciado já não tenciona criar um
grupo, um público, um contexto, já não demonstra a intenção de
traduzir como brasilidade, expressa na figura do gigante, o conjunto
de interesses levantados pelas Jornadas de Junho, mas diz justamente
o contrário: o gigante não representa mais nada, porque o país não
é visto como grupo, não chegou a constituir um único público, uma
coletividade, é simplesmente uma massa material, uma “merda”.
Trata-se, portanto, de um enunciado que já não é tão claramente
político, na definição de Latour (2003), e talvez possa ser descrito até
mesmo como antipolítico, uma vez que expressa a negação do que
seria um novo “público” e questiona a existência de um novo inte-
resse comum, unificado. Nesse sentido, pode ser entendido como um

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Cultura digital e linguística aplicada:
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mashup que recria o sentimento vivido por muitos, no Brasil, após o


fim dos protestos e até nos anos posteriores, de que a efervescência
tão marcante nas Jornadas de Junho não alcançou nenhuma conquista.
Para além disso, pode ser compreendido também como um
mashup que ironiza suas fontes, como que parodiando aqueles que
vinham representando o Brasil de maneira tão ufanista, mas que,
diante dos primeiros entraves a suas reivindicações, voltavam a cri-
ticar o país, ameaçando (no caso de grupos mais abastados) trocá-lo
por uma vida no exterior.
Com esta análise, finaliza-se a descrição do percurso de produção
de significados, aqui mapeado em três momentos distintos das Jor-
nadas de Junho: sua eclosão, e o otimismo que lhe foi característico;
seu ápice, em que a incerteza aflorou frente aos conflitos de interesses
que passaram a se expressar nas ruas; e seu arrefecimento, marcado
pelo aparente retorno de alguns grupos à apatia política, pela intensi-
ficação do descontentamento de outros, diante das poucas mudanças
alcançadas e da efemeridade dos movimentos, e pela visão crítica, de
outros ainda, frente à maneira como as Jornadas foram representadas
conforme ocorriam.

Considerações finais

Este capítulo propôs reflexões sobre o caráter processual da


relação entre texto e contexto a partir da análise de diferentes vín-
culos semióticos entre atores intratextuais às montagens digitais
aqui apresentadas e aqueles pertencentes à translação maior em que
foram criadas: as Jornadas de Junho.
Mostrar algumas das operações de ressemiotização empregadas
para promover a associação de certas figuras a determinada visão
de Brasil a partir de um ator como o gigante de pedra demonstrou
que este, sintetizando movimentos contraditórios, foi desmontado e
remontado de vários modos, prestando-se à produção de enunciados
questionadores, críticos e desertores de uma proposta inicialmente
unificadora e otimista quanto às manifestações em todo o país. Com
efeito, ao vincular o gigante a outros fragmentos de textos visuais,
ao rotulá-lo com diferentes enunciados verbais, ao apresentá-lo de

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Cultura digital e linguística aplicada:
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outros ângulos, com outros enfoques, os montadores dos textos


analisados tornaram explícito o caráter processual da linguagem na
cultura digital (MILLER, 2012) e ilustraram a proposta de Buzato
et al (2013) de que o mashup é um texto vivo: a cada vez que foi uti-
lizada, a imagem do gigante regenerava e revivia seus outros usos,
as outras vozes que também a enunciaram.
Mais do que meramente constatar a expressividade da figura do
gigante, essa percepção sugere uma explicação para a recorrência de
práticas de montagem e colagem na contemporaneidade: trata-se de
processos extremamente expressivos, cuja força vai muito além do mero
efeito metassemiótico típico de certos mashups. Por conta das diferentes
associações que um texto ou fragmento de texto reproduzido atualiza,
envolvê-lo em novas translações torna-se muito mais significativo do que
meramente recriá-lo (redesenhá-lo, mencioná-lo) em um novo enunciado.
À luz dessa percepção, a produção de diferentes tipos de montagens,
embora derive do muito mal visto “copiar-e-colar”, é uma operação dis-
cursiva complexa, que torna possível reconhecer cada texto (ou mesmo
fragmentos de um texto) como um conjunto de potenciais associações
semióticas, constantemente atualizadas a cada nova ocorrência.
Com isso, evidenciam-se também as limitações do estudo apre-
sentado: há certamente muitos outros textos que possam empregar a
figura do gigante em outras propostas de discussão acerca das Jorna-
das, outras propostas que, por exemplo, questionem de maneira mais
clara o próprio uso do ator em questão para descrever movimentos tão
múltiplos. Ademais, houve outras figurativizações do mesmo actante
empregadas com igual recorrência em outros sites de redes sociais
que não foram aqui consideradas. A despeito dessas considerações,
penso que as análises aqui apresentadas sinalizam os ganhos de se
empregar, no estudo de textos como o remix e o mashup, teorias que
tratem a linguagem digital como processo de forma explícita e radical.
Considero que, se estendida à reflexão sobre a educação lin-
guística de jovens cidadãos, essa forma de pensar o digital reforçará
a necessidade de que o ensino de língua materna incorpore as novas
tecnologias digitais não no sentido de “ressemiotizar” as práticas
já consolidadas (e talvez retrógradas), mas no sentido de trabalhar
a formação crítica dos alunos como cidadãos, de modo que possam

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

efetivamente se engajar na política, estando mais conscientes da rede


de relações semióticas, sociais e materiais que a constituem.
Suscitar essa percepção foi também um dos grandes objetivos
pessoais deste trabalho, que, espero, possa ajudar a promover cada
vez mais análises e perspectivas que revelem as intrincadas teias de
associações e interesses ocultos nos acontecimentos políticos, ou,
como propõe Dagnino (2013), que explicitem e retracem as cadeias de
causas mascaradas em decisões e posturas políticas que se apresentam
como inevitáveis, mas que, no fundo, resultam de profundos conflitos
de interesses – em que, acrescento, a maior parte da população, às
vezes sonâmbula, acaba sufocada por outros gigantes, que, embora se
pretendam neutros e idôneos, já estão há muito acordados e vigiam,
incessantemente, por oportunidades de manutenção de seus privilégios.

Referências

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

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Cultura digital e linguística aplicada:
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102
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Segundo Aglomerado:
Espaço, Identidade, Conexão

Linguagem Tecnologia Sociedade

Análise Crítica
do Discurso
Multimodali-
Bárbara Gallardo

”Construções
dade Identidades
Capítulo 4:

Identitárias no Fa-
Gramática Rede Social Translocalidade
cebook de Profes-
Sistêmico- Online Transnaciona-
soras Brasileiras
funcional lidade
em Formação”
Língua estran-
geira

“Espaço-tempora-
lidade e Constru-
Camila Scheifer

Ressemioti- Sala de Aula ção de Sentidos


Capítulo 5:

Poder
zação Rádio em uma Rede de
Aprendizagem
Transletra- Livro Didático Letramentos: uma
Análise espacial
mentos Blog análise de transpo-
sições semiótico-
materiais”

103
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Construções Identitárias no Facebook de


Professoras Brasileiras em Formação
Bárbara Cristina Gallardo

Introdução

Os avanços tecnológicos, o surgimento da cultura digital e a


expansão dos fenômenos da globalização possibilitaram a forma-
ção de novas subjetividades antes limitadas às restrições do meio
social presencial. Na internet, a expressão dessas subjetividades se
dá principalmente por meio da construção linguística e semiótica,
exigindo, assim, uma linguagem que dê conta de suprir a presença
pessoal nos contextos de interação. Neste capítulo, analiso as cons-
truções identitárias de duas professoras de inglês em formação no
Facebook, na interação com estrangeiros que elas conheceram neste
site. Interessa-me compreender até que ponto, nesse novo e importante
espaço de sociabilidade, com recursos mediacionais específicos que
possibilitam a participação simultânea em espaços físicos locais e vir-
tuais transnacionais, os sujeitos participantes sustentam, modificam,
reinterpretam ou cristalizam essas identidades. Escolhi professores de
inglês em formação como participantes porque o contato transnacio-
nal pode ser concebido como uma possibilidade de desenvolvimento
da competência intercultural1 na formação de futuros professores de
inglês que vivem em regiões periféricas2 do Brasil, e como forma de
estudar a apropriação de recursos tecnológicos em uma perspectiva
mais abrangente do que o simples domínio técnico.

1 Ou seja, a construção discursiva em língua estrangeira, para interlocutores de outra cultura que
não conhecem a cultura brasileira.
2 Neste estudo, a referência à região ou a lugares periféricos indica cidades do interior do Brasil,
localizadas nas regiões norte, nordeste e centro-oeste do país, de acesso rodoviário precário e
que estão distantes das capitais em um raio igual ou superior a 200 km.

105
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Tratando-se de análise de comunicação mediada, a noção de


mediação a qual me atenho refere-se ao conjunto de restrições, funcio-
nalidades e propiciações do software e do meio digital que, ao mesmo
tempo, habilitaram/apoiaram a criação desse espaço social para que
houvesse a interação. Observo, nessa perspectiva, como a mediação
influenciou as maneiras possíveis de construir sentidos, de acordo
com as possibilidades previstas nos termos descritos por Herring
(2004)3, no que concerne a Comunicação Mediada por Computador4.
Busquei, no entanto, ir além das situações descritas por esta autora
com o intuito de verificar como o software poderia apoiar a manuten-
ção de relações transnacionais, tanto em termos de tempo e espaço,
como de possibilidades de encontros que, de outro modo, não seriam
possíveis para as participantes desta experiência.
Além disso, pretendia, a partir dos resultados, refletir sobre a
relação entre as identidades construídas em um novo meio de co-
municação e a identidade do professor crítico de línguas do século
XXI e, assim, incluir este tema na formação de professores, de forma
mais pontual.
A respeito da relação on/offline, compartilho a noção de que, com
ou sem a internet, as ações locais e globais não acontecem/aconte-
ciam de forma isolada, sem influenciar, em alguma medida, umas às
outras (LATOUR, 2005). Com o advento tecnológico, a comunicação
consciente e rastreável de sujeitos distantes geograficamente tornou
visível a circulação da informação e propiciou novas formas de contato,
novas formas dos sujeitos se posicionarem no mundo e novas formas
de participação social. Neste estudo, por exemplo, participantes bra-
sileiras interagiram com interlocutores estrangeiros, cujas imagens
construíram-se ao longo dos anos, em tempos pré-internet, de forma
indireta, por meio de outras mediações tecnológicas sinalizadoras de
modos de vida em lugares distantes.

3 Herring (2004) define as variáveis técnicas (perda de feedback instantâneo, limitação de espaço,
sobreposição de mensagens nas trocas, etc.) e variáveis situacionais (tópico tratado, objetivo e
status da mensagem, experiência do participante, etc.) do contexto virtual que moldam as con-
dições de produção e que diferem do contexto offline.
4 Partindo da abordagem proposta por Herring, COSER, neste volume, por exemplo, investiga os
efeitos e consequências da mediação digital na interação entre falantes de línguas românicas em
um espaço digital de aprendizagem colaborativa.

106
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Para discutir a construção identitária das professoras partici-


pantes em um contexto virtual, apresento a seguir o “contexto”5
desta pesquisa – o Facebook – com foco nos recursos disponíveis
para tal construção. Em seguida, pontuo a compreensão do termo
identidade a qual o estudo está embasado, uma vez que há diferentes
olhares para este tema, mesmo nas pesquisas realizadas na moderni-
dade tardia. Apresento brevemente a perspectiva da Análise Crítica
do Discurso, utilizada na análise linguística e semiótica dos dados.
O método utilizado vem a seguir. Por fim, faço considerações sobre
os resultados da análise no “contexto” escolhido, na perspectiva do
viver o espaço de trânsito local-global e os impactos da tecnologia
para professores de línguas.

Redes Sociais Virtuais: a construção discursiva


do ‘eu’ em um espaço de sociabilidade digital

As práticas e os desdobramentos da cultura digital de que tra-


tam, em geral, os capítulos deste volume fazem parte de um movi-
mento que pontua a existência de uma nova cultura. Esta acontece
em um momento de globalização no qual, obviamente, está também
implicado, um momento em que mais pessoas querem participar e
experimentar as propiciações disponíveis no contexto online e que
permitem construções identitárias improváveis ou inalcançáveis, para
alguns, nas interações offline. Dentre elas está a das relações culturais
transnacionais. As redes sociais virtuais (doravante RSVs) fazem
parte dessa cultura porque incentivam a participação por meio da
distribuição de informação pública e privada de conteúdo. Por meio
das práticas descritas nesta seção, as identidades são remediadas6
em contextos de Comunicação Mediada por Computador (doravan-
te CMC) porque perdem as pistas contextuais disponíveis no meio
offline e passam a ser veiculadas por meio dos recursos linguísticos
próprios dos contextos virtuais. O Facebook, por exemplo, incentiva

5 “contexto” vem entre aspas porque são representações informadas por meio do discurso noFa-
cebook: representações do local do falante, do espaço digital e do local do interlocutor. É um
terceiro espaço, de acordo com os argumentos de SCHEIFER, neste volume.
6 Aqui, faço referência ao conceito de remediação que, conforme Bolter e Grusin (2000), com-
preende diferentes tipos de mídia. A remediação acontece no surgimento de um novo meio de
comunicação, já que este incorpora elementos de mídias anteriores, renovando-os e proporcionado
uma nova forma e um novo tipo de uso, por exemplo, a construção de identidades na CMC.

107
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

a circulação de informação, a manifestação criativa, crítica etc. dos


usuários, havendo formas próprias para atuar nesse espaço. Outros
espaços virtuais, por exemplo, fóruns de discussão, oferecem outras
possibilidades de participação e, assim, outros modos de construção
identitária (GALLARDO, 2013). Os recursos e as restrições de cada
espaço no meio virtual moldam a participação do usuário.
Escolhi o Facebook como contexto online deste estudo pelo seu
caráter social, interativo e de abrangência internacional atual. O in-
teresse pelas identidades construídas nas interações transnacionais
online também influenciou na escolha, pois este site difere das redes
sociais offline em geral, tais como as estudadas por sociólogos e so-
ciolinguistas (BUZATO, 2014). Isto porque toda a sua informação é
representada explicitamente pelos próprios participantes por meio
de recursos semióticos, tomando o usuário como centro de uma rede
egocêntrica. Nela, o usuário é incentivado a gerar conteúdo sobre
si mesmo e a comentar o conteúdo criado pelas pessoas de sua rede
(BOYD; ELLISON, 2007).
À medida que expandiu e se tornou popular, o Facebook foi
incorporando atividades de outros espaços de sociabilidade susten-
tados pela CMC, o que o torna atualmente um espaço que abrange
múltiplos gêneros previamente transportados para a tecnologia
digital, mas que se localizavam em ferramentas e serviços digitais
distintos, tais como: o e-mail, o bate-papo virtual, o blog etc. Em boa
parte dos casos, esses gêneros funcionam como o que Buzato (2012)
chama de objetos fronteiriços, isto é, como um meio de tradução em
que a atividade social do usuário é integrada à atividade comercial
ou técnica do site sem que cada um dos lados envolvidos interfira na
atividade do outro diretamente, ou compartilhe das mesmas inter-
pretações para as mesmas ações e símbolos.
O site, no entanto, não se limita a fornecer esses serviços que
acolhem diferentes gêneros, mas lança mão de gêneros próprios,
para instigar a circulação de informações sobre os usuários, como
explicam Buzato e Severo (2010). Por exemplo, o espaço destinado
à livre postagem está localizado bem no centro da página principal
e instiga o usuário a falar sobre si por meio da pergunta “No que
você está pensando?”, oferecendo a possibilidade de adicionar fotos

108
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

e vídeos à descrição. A comunicação via som e vídeo, que antes era


possível apenas por meio de programas específicos como o Skype7,
atualmente também pode ser feita por meio de acesso ao Facebook.
A função bate-papo online deste site funciona do mesmo modo que
mensageiros instantâneos como o WhatsApp. O recurso para envio
de mensagem privada difere em poucos detalhes do e-mail tradicional,
como a eliminação do cabeçalho indicando o assunto.
O site também absorve e mistura atividades do meio offline às do
online não apenas ao encorajar os usuários a indicarem, ou convida-
rem para o site, as pessoas com as quais mantêm laços sociais na vida
cotidiana, mas encorajando a organização de encontros com o recurso
para criação de uma página de eventos, que podem ser virtuais ou
offline (festa de aniversário, almoço entre amigos, reuniões etc.). Por
meio dessa página, é possível mandar convites virtuais aos amigos
do Facebook selecionados. Estes têm a opção de confirmar ou não
a presença, ou ainda indicar indecisão, clicando na opção “não sei”.
É certo que existem RSVs específicas para o compartilhamento
de afinidades e que favorecem o estabelecimento de amizades “especia-
lizadas” (WELLMAN; GULIA, 1997), como é o caso da PrayerGroup.
org para cristãos, o Myspace8 para os fãs de música, o Dogster9 para
os donos de cachorros etc. Porém, também é certo que o usuário não
se conecta ao Facebook para se tornar fã de perfis, mas acaba parti-
cipando dessa atividade proporcionada pelo site. A popularidade do
Facebook também pode ser percebida pela adesão de outras RSVs a
essa rede. Por exemplo, as RSVs acima citadas têm dois caminhos de
acesso: via cadastro de e-mail e via conta cadastrada no Facebook.
O resultado é a expansão cada vez maior deste site que, conse-
quentemente, atrai não só amigos e familiares que querem manter
contato, ou pessoas que querem fazer novas amizades, mas anun-
ciantes, patrocinadores e instituições interessadas em se conectar às
redes formadas, não exatamente para encontrar amigos do passado
ou cultivar amizades do presente, mas com interesses diversos.

7 http://www.skype.com/intl/en-us/home.
8 http://www.myspace.com.
9 http://www.dogster.com.

109
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Especificamente para a comunicação transnacional, essas redes


abriram possibilidades para o contato entre pessoas com diferenças
étnicas, geográficas e culturais aprenderem por meio da interação,
do conhecimento que circula nas redes egocêntricas conectadas entre
si por conexões sociais entre pessoas desconhecidas, e, portanto, até
então, improváveis. O interesse, muitas vezes, não é explicitamente
ou conscientemente o de adquirir conhecimento, mas o de se relacio-
nar com o mundo por meio de uma nova interface. Nessa perspectiva,
compartilho a perspectiva de Moita Lopes (2006) quando aponta que,

[...] a possibilidade de viver a vida dos outros para além da


vida local é talvez a grande contribuição da vida contempo-
rânea, ao nos tirar de nosso mundo e de nossas certezas que
apagam quem é diferente de nós e não nos possibilitam viver
outras formas de sociabilidade. (p. 92).

No contexto virtual, as RSVs são espaços de práticas sociais globais


abertas para o mundo. Além das estratégias de interação, para viver essas
práticas, os usuários podem experimentar identidades que até então não
tinham sido requeridas, ou ainda, que não cabem na interação com ami-
gos com os quais se tem contato face a face. Pode-se dizer que algumas
dessas identidades não foram sempre reconhecidas; pelo contrário, foram
sufocadas por outras impostas pela sociedade, instituições e Estados
nacionais. Ainda assim, hoje, mesmo com a ilusão de liberdade online
para experimentação de ser o que quiser, as imposições do passado ainda
marcam o discurso dos usuários. Na perspectiva da construção de uma
identidade nacional, por exemplo, muitos deles esforçam-se para reforçar
discursivamente, acionando múltiplas modalidades, a positividade de
um Brasil imaginado por si e pelo outro estrangeiro, conforme análise
multimodal dos dados, exibida adiante neste capítulo.

Construções identitárias nas RSVs

As características do Facebook apresentadas acima servem ao


propósito de ilustrar o fato de que as construções identitárias são sem-
pre dependentes de mediações técnicas, além das mediações culturais
em sentido lato. O meio offline oferece recursos semiótico-discursivos

110
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

não disponíveis no meio online e vice-versa. Por exemplo, as pistas


não verbais são somente captadas pessoalmente e, no meio virtual, é
possível fazer uma descrição mais detalhada de características (gestos
que denunciam nervosismo ou insegurança, por exemplo) que pes-
soalmente, provavelmente, não passariam despercebidas. A diferença
nas possibilidades oferecidas é que o fato das mediações propiciarem
e restringirem recursos semiótico-discursivos específicos não implica
que as pessoas necessariamente se engajem em projetos identitários
diferentes em meios diferentes. Ou seja, apenas a alternância das
mediações não garante diferenças nesses projetos. Isso porque é pre-
ciso considerar outras condições contextuais, como os interlocutores
envolvidos, os objetivos da interação e as outras atividades e redes
sociais que os usuários participam tanto em um contexto quanto em
outro (LEANDER; MCKIM, 2003).
Nessa perspectiva, parto da noção de identidade como algo ina-
cabado, que está em constante processo de construção que diante das
novas condições de mediação no meio digital – e novos interlocutores
– os estrangeiros – encontra novas possibilidades de constituição.
Conforme argumenta Schutz (1962), os fatos não surgem de um
vazio, mas das experiências em situações tanto online quanto offline,
com interlocutores diversos:

Todos os fatos são, desde o início, selecionados por atividades


de nossa mente a partir de um contexto universal. São, por-
tanto, sempre fatos interpretados, quer sejam observados iso-
lados de seus contextos por meio de uma abstração artificial,
ou fatos considerados dentro de cenários específicos. Tanto
em um caso, como no outro, eles carregam seus horizontes
interpretacionais interiores e exteriores10. (p. 05)

A internet, nesse caso, é concebida como um produto e um


espaço cultural, pois os usuários estabelecem formas específicas
para comunicação desses fatos, diferentes da comunicação face a
face (MARKHAM, 2004). Uma delas é a representação escrita das
identidades. Isso significa que os fatos analisados pelo pesquisador
10 “All facts are from the outset facts selected from a universal context by the activities of our
mind. They are, therefore, always interpreted facts, either facts looked at as detached from their
context by an artificial abstraction or facts considered in their particular setting. In either case,
they carry along their interpretational inner and outside horizons.” (p. 05)

111
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

passam por uma seleção e interpretação prévia feita pelo partici-


pante para ser registrada na internet. Diferente das interpretações
produzidas na comunicação face a face, na comunicação online as-
síncrona essas interpretações podem ser mais elaboradas devido à
maior disponibilidade de tempo para a elaboração e monitoramento
dos enunciados, com vistas à construção da credibilidade entre os
interlocutores. Mesmo na comunicação síncrona, as imagens dis-
poníveis no meio online, por exemplo, são usadas como estratégias
para dar credibilidade ao discurso11, conforme apresento na análise
dos dados, neste capítulo.
Ao mesmo tempo em que a descrição dos dois espaços, su-
postamente distintos, mas, na verdade, mutuamente implicados ou
relacionados dialogicamente, apresenta características relevantes,
este estudo tenta caracterizá-los em um mesmo contínuo de cons-
trução das identidades, como o proposto por Leander e MacKim
(2003) e por Buzato (2007). Neste estudo, contudo, diferentemente
de Leander e Mackim (2003), em lugar de rastrear as circulações
de textos por meio dos quais online e offline se conectam aos pro-
cessos identitários, optei por focalizar as normas socioculturais e
práticas de representação de si que entraram na negociação de um
espaço transnacional mediado pelo Facebook. Dessa forma, pude
tratar as identidades ali construídas como temporais e espaciais,
de acordo com o argumento de Moje (2004). Segundo essa autora,
mesmo as identidades dadas (professora, bem-humorada, sovina)
podem ser construídas de modos diferentes em um mesmo espaço,
de acordo com o grau de afinidade com o grupo ou com deter-
minadas pessoas do grupo, com o número de pessoas presentes
(grupos pequenos ou grandes) e com o tempo de pertencimento
àquele grupo.
Mesmo com essas possibilidades, o exercício para incorporação
de identidades preestabelecidas – ser um bom professor, um bom
aluno, um brasileiro, um cristão etc. - é contínuo. Formas de agir e
pensar são adquiridas desde cedo, por meio da socialização em um
meio já dado e onde as escolhas são escassas (CUCHE, 2002). Em uma

11 Por exemplo, a declaração feita para um estrangeiro “No Brasil tem muita mulher bonita” pode
ser preenchida com muitas imagens de mulheres bonitas. Na comunicação presencial, este tipo
de estratégia é inviável.

112
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

perspectiva sociocultural, a multiplicidade de vozes e de modos de


ver o mundo em uma só cultura já requisita uma gama de diferentes
identidades. A concepção do espaço virtual transnacional como espaço
alternativo, onde os usuários estão relativamente mais livres de alguns
de seus confinamentos sociais offline, aciona a possibilidade de expor
a si próprio e a sua cultura obedecendo, por gosto, escolha ou coerção,
a outras regras sociais. Essa prática influi, direta ou indiretamente,
na performance das identidades sociais que atuam em outros espaços
de circulação, pois identidades são sempre relacionais. A situação é a
mesma de antes da internet, quando as identidades requisitadas em
diferentes contextos offline e com diferentes interlocutores influíam
na formação do ser humano. A diferença é que elas se tornam mais
abrangentes, tendo, assim, acesso a outras visões e práticas sociais
e outras subjetividades expressas em outros sistemas linguísticos-
semióticos. Essa é uma funcionalidade das RSVs que pode beneficiar
os usuários, no sentido de compreender a diversidade sociocultural
mundial e pensar em alternativas para melhores formas de viver o
que está a sua volta.
Neste estudo, por exemplo, a descrição das identidades nacio-
nal e cristã que as participantes Amanda (1) e Joyce (2) almejavam
apresentar foi facilitada pelos recursos da internet. Amanda nunca
tinha tido contato com estrangeiros que falavam a língua inglesa.
Procurou nomes estrangeiros aleatoriamente e lhes enviou uma
solicitação de amizade. Joyce era cristã, tinha amigos estrangeiros
e atravessou páginas de cantores e bandas Gospel para encontrar
novos amigos. À medida que interagiam com os estrangeiros,
construíam e reconstruíam aspectos peculiares de representação,
conforme as declarações e as opiniões de seus interlocutores. A
autorrepresentação, nesses casos, foi construída por partes de
todos os lugares e discursos que as alcançaram em situações reais
ou veiculadas pela mídia, para então serem vividas, pelo menos no
imaginário, ou ainda, na experiência digital. A distância geográfica
do lugar físico e as possibilidades da internet (postagem de fotos
tratadas, envio de endereço de sites etc.) foram determinantes para
alcançarem seus objetivos.

113
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

O discurso na perspectiva crítica de Fairclough

Sendo a questão identitária vista como uma construção social


na perspectiva da Análise Crítica do Discurso (doravante ACD) e o
discurso como sendo um reflexo ou reprodução das relações sociais,
utilizo essa teoria para investigar os elementos utilizados pelas par-
ticipantes deste estudo em suas práticas discursivas no meio virtual.
Discuto, brevemente adiante, as escolhas lexicais, as legendas e as
imagens escolhidas pela participante 1 para mostrar-se às interlocu-
toras estrangeiras. Analiso, nos dados da participante 2, as escolhas
lexicogramaticais para sua construção identitária.
A ACD estabelece uma visão multidisciplinar de estudos da
linguagem, concentrando-se na relação entre o discurso e as estru-
turas sociais. Segundo Fairclough (2003), o discurso é uma forma
de ação social, por meio do qual as pessoas podem agir no mundo
e sobre outras, além de ser o mediador das práticas e da estrutura
social onde ele é criado. Esse método tem como objetivo investigar
questões relacionadas a poder e ideologia por meio da análise lin-
guística e sociológica que constitui o discurso. Essa análise envolve
o estudo dos aspectos lexicogramaticais, pragmáticos e visuais que
constituem os textos (discursos), em consonância com os contextos
socioculturais de produção e circulação.
Fairclough (2003) argumenta que a vida social é feita de eventos
sociais formados pelas práticas sociais, estruturas sociais e agentes
sociais. As práticas medeiam as estruturas e os eventos sociais em
que os agentes participam. Por meio do discurso, como sinônimo da
prática social, modos diferentes de fazer sentido formam-se a partir
dos gêneros (modos de agir), discursos (modos de representar) e
estilos (modos de ser) que estão representados semioticamente nas
estruturas, práticas e eventos formadores da realidade social (CHOU-
LIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999).
As questões linguísticas são abordadas na ACD por meio da
Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) de Halliday (1994). Segundo
este autor, todo texto é multifuncional, pois apresenta três funções
simultaneamente: representa a realidade (metafunção ideacional),
constrói identidades e estabelece relações (metafunção interpessoal)

114
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

e organiza o texto de forma coerente (metafunção textual). Na aná-


lise dos dados adiante, neste capítulo, concentro-me na metafunção
ideacional, buscando identificar como o mundo é representado pelas
participantes, na construção virtual de suas identidades.
No que concerne às imagens escolhidas e postadas pela partici-
pante 2, a análise baseia-se nos pressupostos da Gramática do Design
Visual (GDV) de Kress e van Leeuwen (2006). A GDV compartilha
com a GSF a visão dos sistemas semióticos como: repertórios se-
mânticos que permitem escolhas a partir de uma situação concreta
de comunicação e do contexto de cultura; suportes para a intera-
ção social; sistemas que se organizam em torno das metafunções
ideacional (por meio de configurações espaciais, vetores e olhares),
interpessoal (relações entre o produtor da imagem, o observador e
os objetos representados) e a textual (possibilidades de disposição
dos elementos visuais e como elas produzem diferentes efeitos de
sentidos) (MEURER; BALOCCO, 2009).
Fundamentada nesses pressupostos teóricos, apresento uma
breve análise das interações de Amanda e Joyce com estrangeiros no
Facebook, a fim de responder a seguinte pergunta: “de que maneira
elas se apropriaram das possibilidades e restrições envolvidas na
mediação para negociar suas identidades transnacionais?”.

Método

O paradigma qualitativo é utilizado na abordagem dos dados,


uma vez que este tem por princípio admitir que as subjetividades tanto
do pesquisador quanto dos participantes fazem parte do processo da
pesquisa. Nesse sentido, a estrutura do campo social e o significado
das práticas além da pesquisa influenciam nas considerações do fe-
nômeno pesquisado. Duas estudantes brasileiras de Letras, de uma
universidade estadual da região centro-oeste do Brasil, estabeleceram
contato com adultos estrangeiros no Facebook e com eles interagiram
em língua inglesa por um período de seis meses, sob observação não
participante da pesquisadora. Os instrumentos de coleta utilizados
foram o armazenamento (em um arquivo) de mensagens trocadas,
duas entrevistas semiestruturadas (no início e no final) feitas com

115
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

as participantes brasileiras e resultados de questionários aplicados


preliminarmente às observações.
As participantes autorizaram a continuidade do estudo após o
término da coleta de dados. Para isso, me reuni com cada uma e ex-
pliquei os objetivos traçados. Elas assinaram um termo de consenti-
mento esclarecido e também autorizaram a publicação dos resultados,
desde que tivessem suas identidades/nomes preservados.
Entendo que, no que tange ao presente estudo, é importante
levar em conta que Amanda e Joyce eram alunas de graduação de
um Curso de Letras-inglês no qual eu ministrava a disciplina de
estágio supervisionado. É plausível supor que a assimetria de poder
entre pesquisador e pesquisados tenha, nesse caso, sido reforçada,
se não ampliada, por esse motivo. Também por esse motivo, mas
agora como uma possível vantagem, a pesquisa reproduz, em alguma
medida, o tipo de situação em que, até o momento, se imagina como
ponto de partida para algum tipo de aplicação pedagógica que envolva
interações transnacionais de forma menos estruturada e monitorada
do que já se tem feito em projetos educacionais como o Teletandem
(ARANHA; TELLES, 2011) ou em grandes projetos colaborativos
como o Galanet (COSER, 2010; este volume).
Tendo como objetivo fazer amigos estrangeiros para praticar
a língua inglesa, as duas participantes escolheram estratégias dife-
rentes. Amanda usou o recurso “procure pessoas, coisas e locais” na
página inicial do site, escolheu aleatoriamente dez nomes de estran-
geiros (Hellen, Elizabeth, Shannon etc.) e enviou-lhes solicitações
de amizade via mensagem.
Na época da coleta dos dados, Amanda tinha 19 anos e estava
no último semestre do Curso de Letras Português-Inglês. Aprendeu
inglês em uma escola de idiomas e tinha acesso à internet em casa.
Gostava de usar a internet para ler as notícias, estudar e manter
contato com amigos e a irmã que morava na Itália.
O discurso dessa participante girou em torno do tema nação e
o adjetivo beautiful (bonito) foi recorrente na descrição dos lugares
do Brasil que escolheu para construir uma identidade nacional. Para
ilustrar essa representação, apresento e analiso nesta seção, algumas

116
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

imagens postadas por ela que supervalorizaram o seu país por meio
de estereótipos da vida em um país tropical. Considero essas imagens
como estratégias que funcionaram como recursos multimodais para
ressemiotização12 (IEDEMA, 2003) desses estereótipos, marcantes
em seu discurso.
A representação dos sentidos por meio de figuras e palavras é
tratada nos estudos sobre multimodalidade como uma associação
de recursos semióticos além dos transmitidos pela língua escrita,
como é o caso das figuras, cores, design de páginas etc., conforme
os pressupostos da GDV apresentados previamente (KRESS; VAN
LEEUWEN, 1996). Em uma perspectiva discursiva, os significados
multimodais só fazem sentido dentro de contextos, sendo, por esse
motivo, analisados sob a perspectiva da teoria linguístico-semiótica
cuja atenção volta-se ao significado tridimensional da linguagem
(ideacional, interpessoal e textual). Neste caso, a análise multimodal
implica lidar com uma complexidade maior, por conta da multipli-
cação e diversificação dos sentidos. Devido à limitação de páginas
deste artigo, a análise que faço a seguir investiga de que maneiras
Amanda prolongou o uso daquelas estratégias para o visual, sem
abarcar todas as modalidades envolvidas13, como seria o caso numa
análise multimodal completa (BALDRY; THIBAULT, 2006).
As fotos do Brasil enviadas a duas norte-americanas sustenta-
ram a descrição positiva dada pela brasileira. São fotos de praias do
Nordeste e da cachoeira de Foz do Iguaçu. São fotos tratadas digi-
talmente, que tiveram elementos plásticos, tais como: intensidade de
cor, iluminação, contraste, brilho, entre outros recursos ajustados
visando à obtenção de um ponto ótimo de fruição estética por meio de
ferramentas do computador e que foram conseguidas via programas
de busca de imagens na internet.

12 “a ressemiotização está relacionada ao modo como o processo de produção de significados muda,


de um contexto a outro, de uma prática a outra, de um estágio de prática a outro.” (IEDEMA,
2003). Para uma descrição detalhada desse processo, ver os capítulos de SACHS e o de SCHEI-
FFER, neste volume.
13 SACHS, neste volume, faz uma análise mais densa de imagens do seriado Glee sob a perspec-
tiva da GDV para sustentar que as práticas de fãs podem contribuir para o desenvolvimento de
letramentos críticos fora do contexto escolar tradicional.

117
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Imagem Legenda: Comentários de


Amanda

Foto (a) State: Alagoas

Foto (b) Ceará (it’s the most beautiful


state in Brazil, for me)

Foto (c) State: Alagoas

Foto (d) Foz do Iguaçu

Quadro 1 -Fotos utilizadas pela participante Amanda para representar o Brasil.14

O conjunto de imagens (a) a (d), em princípio díspares entre


si, ganha uma estrutura coesiva, de certa forma, pela remissão aos
mesmos elementos da natureza brasileira e os mesmos símbolos de
beleza natural tropical (sol, mar, céu azul). Onde há pessoas (foto c),
14 Fonte: Alagoas:https://www.google.com.br/search?q=alagoas&biw=1366&bih=643&source=lnm
s&tbm=isch&sa=X&ei=WWwwVfzSHfGHsQTjz4H4Bg&ved=0CAcQ_AUoAg; Ceará:https://
www.google.com.br/search?q=alagoas&biw=1366&bih=643&source=lnms&tbm=isch&sa=
X&ei=WWwwVfzSHfGHsQTjz4H4Bg&ved=0CAcQ_AUoAg#tbm=isch&q=cear%C3%A1;
Foz do Iguaçu: https://www.google.com.br/search?q=alagoas&biw=1366&bih=643&
source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=WWwwVfzSHfGHsQTjz4H4Bg&ved=0CAcQ_
AUoAg#tbm=isch&q=foz+do+iguacu

118
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

estas estão com os corpos desnudados em parte e em contato direto


com os elementos naturais como a água do mar. Todas as fotos são
enquadradas de frente, em planos bastante amplos e distanciados, o
que sugere uma grande distância social entre os participantes repre-
sentados e o leitor, e uma atitude objetiva em relação ao conteúdo
das fotos que sugere “isto é o Brasil” ou “o Brasil é assim” (KRESS;
VAN LEEUWEN, 2006).
As belezas naturais do Brasil as quais, supostamente, são reco-
nhecidas internacionalmente, remetem a um país de clima quente,
uma característica que pessoas de outros países podem desejar para
seus países. Amanda se insere na representação da imagem (b), “it’s
the most beautiful state in Brazil, for me” (é o estado mais bonito
do Brasil, para mim). A legenda (imagem b) também estabelece que
esta paisagem é a sua realidade, já que não inseriu nenhuma foto
sua, e nem mesmo do seu próprio estado da federação. Além disso, o
enunciado que acompanha esta imagem sugere, pelo uso do superla-
tivo aplicado, vinculado ao Brasil inteiro como escopo, que Amanda
conhece todos os outros estados da federação, o que, segundo relatou
em entrevista, não é fato, tendo o Ceará sido o único estado do Brasil
onde já estivera, além do seu próprio.
A imagem (d) mostra as Cataratas do Iguaçu, um ponto turísti-
co reconhecido dentro e fora do Brasil. Essa imagem traz variedade
ao conjunto da representação visual do país. Em outros momentos,
na representação escrita, Amanda ressaltou a variedade e a beleza
das cachoeiras do país. Na sua cidade, por exemplo, há inúmeras
cachoeiras. Escolheu, no entanto, a imagem de uma que nunca viu
pessoalmente, mas que é referência nacional e internacional, sendo,
assim, uma representante ideal de todas as outras para compor a
imagem que tinha construído previamente na escrita.
O que ficou marcado no discurso virtual de Amanda é que ela
escolheu construir-se de forma higienizada, realçando o que acre-
dita que os estrangeiros veem positivamente no Brasil. Com essa
estratégia, distanciou-se de suas experiências no cotidiano, graças
ao uso estratégico das possibilidades e restrições presentes no tipo
de mediação técnica oferecida pelo Facebook.

119
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

A participante Joyce tinha 18 anos e cursava o segundo semestre


de Letras na época da coleta de dados. Sua estratégia foi a de atravessar
páginas de cantores gospel que gostava e de mandar solicitações de
amizade aos usuários que gostavam dos mesmos cantores. A partir das
respostas recebidas, construiu sua identidade cristã usando duas estra-
tégias, principalmente: i) mostrar apreciação e conhecimento sobre a
produção cultural internacional gospel; ii) pontuar as ações relacionadas
a Deus e à igreja que frequentava. Os enunciados de Joyce oscilaram
entre construções mais centradas nas palavras da Bíblia - God knows
what we need (Deus sabe o que nós precisamos) - ou mais descontraídas,
com referências à qualidade das melodias das músicas e dos clipes dos
cantores – Gavin DeGraw’s new album is great (o álbum de GD está
ótimo), ou a sua avaliação I love it! (eu adorei!) –, as quais a conectaram
aos amigos virtuais. Analiso, em sua construção identitária, trechos do
texto escrito que sinalizam sua representação no meio virtual.
Por exemplo, temas que não a interessavam, tais como naciona-
lidade ou diversão, foram descartados por Joyce com a inserção de
perguntas relacionadas ao tema música gospel. Ao contrário, quando
a resposta à solicitação de amizade agradava a brasileira, sua dispo-
sição em responder ficou evidenciada por haver mais enunciados,
exemplos mais particulares e demonstração de domínio do assunto
(linhas 1 a 9):
Excerto 1
L 1 – V: it’s ok. :) hi. You can call me Val for short. :) I’m from the Phili-
ppines. Your nickname? Yes! I really love her songs and her talent in her
guitar inspires me too. Are you a christian? hmmmm… do you also believe
in Jesus? :) it’s X’s inspiration, right? :) how old are you? Tell me more
about you. God Bless you! :)

L 5 – Joyce: Hi Val! That’s great, you can call me Joy. Yes, I’m Christian
too, I was born on a Christian family, and that’s amazing. I’m 17 years old.
I have studied English for four years. I really love international Christian
music. Bethany, Brook Fraser, BarlowGirl, and a lot more… My favorite
songs from Bethany are From my love and When you love someone. Tell
me more about you too. How old are you? God bless you too!15

15 L1 – V: ok. :) Oi, pode me chamar de Val. :) Eu sou das Filipinas. Você tem apelido? Sim, eu
adoro as músicas dela e o seu talento na guitarra me inspira também. Você é cristã? hmmmm...
você também acredita em Jesus? É a inspiração de X, né? Quantos anos você tem? Fale mais
sobre você. Deus te abençoe! :)

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

No excerto 1, Joyce falou sobre sua vida pessoal e expôs o conhe-


cimento que acreditava que dividia com a estrangeira sobre um tema
em comum. O fato de pertencer a uma família cristã e a variedade de
nomes de cantores citados eram características que provavelmente
agradariam sua interlocutora. Esse fato aliado à identidade cristã
que desejava construir para aqueles interlocutores foram marcados
pelos adjetivos great (ótimo) e amazing (incrível) – “That’s great (li-
nha 5); “that’s amazing” (linha 6) – e processos mentais16 – “like” e
“love” (gostar e amar) em “i really love international Christian music”
(eu adoro música gospel internacional, linha 7) e “my favorite songs
are…” (minhas músicas favoritas são …, linha 8).
Excerto 2
L 10 - J: Cool! My favorite song from him is Follow through, but I love We
belong together, I don’t wanna be and the new one... I’m in love with a girl.
If I start listening to one song I have to hear them all! He’s really good :D
I knew him at the One Tree Hill Show. Do you know?
L 14 Fanny: No I didn’t know. I’ve never see one tree hill. Is it any good?
I have no idea what it’s about. That’s neat though, I never knew he was
an actor.
L 16 - J: Oh I love it. The first four seasons are the best. Gavin just gave a
short appearance in the First season. The oficial music of the show is his
(I don’t wanna be).
L 18 - F: Awesome, I had no idea. So what other types of music do you like?
L 19 - J: I like John Mayer, Coldplay, Michael Bublé, Colbie Cailat, Ben
Harper...And I like christian music too Francesca Battistleii, Brandon Heath,
Hilsong, Brook Fraser, tenth Avenue North, Swtichfoot, Life house, Kari
Jobe and a lot more... What about you?
L 22 - F: I love tons of music, Scott wiggs band, Thousand foot krutch,
Eli Young band, Johnny Cooper, bleu edmondson, and a lot more...it’s hard
to list just a few! :)
L 24 - J:Yeah, you’re right. Music is a remedy! Have a nice day F!17
L5 – Joyce: Oi Val! Que ótimo, pode me chamar de Joy. Sim, eu também sou cristã. Eu nasci em
uma família cristã e isso é incrível. Tenho 17 anos. Estudei inglês por quatro anos. Eu adoro
música gospel internacional, Bethany, Brook Fraser, BarlowGirl e muitos outros ... Minhas
músicas favoritas da Bethany são Do meu amor eQuando se ama alguém. Fale-me mais sobre
você também. Quantos anos você tem? Deus te abençoe também!
16 Na Gramática Sistêmico-Funcional (GSF), o processo mental é representado pelos verbos relacio-
nados aos sentimentos (gostar, amar, odiar), à cognição (pensar, saber, perceber) e à percepção (ver,
ouvir, saborear). Os participantes envolvidos neste processo são o Experienciador e o Fenômeno.
O primeiro é aquele que sente, pensa, percebe as coisas e as pessoas; o segundo corresponde ao
fato sentido, pensado e percebido. Segundo Halliday (1985), as crenças e os valores dos falantes
podem ser identificados pela análise do processo mental que, diferente do processo material que
descreve ações, possibilita a expressão de opiniões, pensamentos e gostos, tornando-se assim
possível identificar em que medida a realidade afeta o falante (GALLARDO, 2001).
17 L 10– J:Legal! Minhas músicas favoritas dele são Follow through, mas eu amo We belong
together, Eu não quero ser e a nova ... Estou apaixonado por uma garota. Se eu começar a ouvir

121
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

O entusiasmo de Joyce pelo tema que discutiu no excerto 2 pode


ser verificado na exposição de conhecimento dos shows que assistia
e das músicas e cantores que conhecia.
A possibilidade de atravessamento de páginas de pessoas famo-
sas, tais como: cantores, atores, apresentadores de shows de televisão
etc. chamou a atenção ao objetivo comercial dos donos dessas pági-
nas. Ou seja, elas servem para que os fãs as curtam, deixem recados,
geralmente com mensagens positivas sobre o dono da página, e ve-
rifiquem informações atualizadas de shows, novos clipes e músicas,
filmes etc. Nesse sentido, essas páginas não foram pensadas para a
função a elas dada por Joyce, ou seja, a de ponte de acesso para o perfil
de outros fãs. Essa pode ser uma prática mais comum nas páginas
de amigos para o encontro com os amigos do dono do perfil (amigo
do amigo). A diferença desta e da estratégia de Joyce é que a rede de
usuários internacionais tem o poder de unir pessoas de qualquer lugar
do mundo (com acesso à internet) que tenham os mesmos gostos e
interesses e que tanto o usuário buscador quanto o amigo dono da
página não conhecem.
Joyce usou o espaço transnacional para expressar sua identida-
de cristã. A religião, o compromisso com a igreja e as experiências
relacionadas à música gospel a ajudaram a trocar experiências sobre
temas em comum com os amigos virtuais. O fato de saber a língua
inglesa ou o de ser brasileira não influenciou tanto sua estratégia de
construção identitária transnacional no meio virtual quanto o seu
pertencimento a um espaço de afinidades vinculado a outra narrativa,
a da religião cristã evangélica. Já o fato de pertencer a uma religião
que é globalizada (cristianismo protestante) forneceu um espaço de
identificação anterior à criação da nação e que vem sendo reforçado

uma música eu tenho que ouvir todas! Ele é muito bom :D Eu o conheci assistindo ao show One
Tree Hill. Você já viu?
L 14 Fanny: Não, eu nunca vi o one tree hill, é bom? Eu nem sei sobre o que é. Mas, é bom saber,
eu não sabia que ele era ator.
L 16– J:Ai, eu adoro. As quatro primeiras temporadas são as melhores. Gavin fez uma pequena
participação na primeira temporada. A música oficial é dele (I don’t wanna be).
L 18– F:Fantástico, eu não faço ideia. Então, que outros tipos de música você gosta?
L 19– J:Eu gosto de John Mayer, Coldplay, Michael Bublé, Colbie Cailat, Ben Harper ... E eu
gosto de música gospel também, Francesca Battistleii, Brandon Heath, Hilsong, Brook Fraser,
tenth Avenue North, Swtichfoot, Life house, Kari Jobe e muito mais ... e você?
L 22– F:Eu gosto de milhares de músicas, Scott wiggs band, Thousand foot krutch, Eli Young
band, Johnny Cooper, bleu edmondson, e muito mais ... é difícil listar só algumas! :)

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

na fase da globalização atual, em função de conflitos, tais como, os


entre os Estados Unidos e a Europa contra países islâmicos e grupos
extremistas em ambos os lados.

Considerações finais

A análise dos dados sugere que a sensação de fluidez do espaço


eletrônico funcionou como um dispositivo para a construção de iden-
tidades que poderiam estar suprimidas até então, pelos discursos e
práticas sociais no meio offline de circulação das duas participantes,
pelos diferentes propósitos de se conversar com alguém, pelos tipos
de amizade etc.
O uso estratégico das possibilidades e restrições presentes
no tipo de mediação técnica oferecida pelo Facebook permitiu que
Amanda construísse uma imagem higienizada, distanciando-a, assim,
de seus interlocutores. Escolheu essa construção a partir de suas ex-
periências no meio offline. Esse pode ser dado como um exemplo da
impossibilidade de se definir o local e o global (mesmo que dentro de
um mesmo país) de forma fechada e nas novas formas de construção
em uma CMC.
A certeza de Joyce de que seu interlocutor sabia do que ela es-
tava falando motivou a troca de afinidades ao mesmo tempo em que
lhe deu a confiança necessária para atingir seu objetivo. Essa certeza
está associada à interpretação dos fatos que ela selecionou de suas
experiências em contextos online e offline, em um contexto universal,
conforme aponto na seção sobre construções identitárias, no excerto
de Schutz (1962).
A possibilidade de: i) encontrar virtualmente pessoas em qual-
quer lugar do mundo (com acesso à internet) por meio de envio de
solicitação de amizade e; ii) atravessar páginas dentro de um site para
conhecer amigos com características específicas realçam ainda o pa-
pel dos gêneros disponíveis no Facebook como objetos fronteiriços
que permitem construções identitárias alternativas, e não apenas a
coordenação de identidades distintas, já dadas a priori.
É certo que com a popularização dos tablets e a melhoria da banda
larga no Brasil, as opções de CMC disponíveis e a portabilidade dos

123
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

dispositivos vêm aumentando, de modo que as pessoas já podem,


atualmente, usar mais videochat com as outras de um smartphone�,
de um lugar público com Wi-Fi disponível e, com isso cada vez mais
vai haver outras possibilidades de estratégias de aproximação, afas-
tamento, anonimato, implicação física etc. Será então interessante
observar até que ponto essas novas estratégias vão afetar as maneiras
como as pessoas constroem suas identidades e seus contextos perante
os outros nas trocas transnacionais.
Nesse contexto, a tecnologia é fundamental na proposta de
uma educação contra-hegemônica porque a globalizaçao vem, em
tese, para padronizar, conectar, fazer circular as mesmas coisas em
todos os lugares, e será só por meio dela, e não a ignorando ou a
usando como mera ferramenta de produtividade na educação, que
será possível se fazer o contrário, ou seja, promover a circulação da
diferença, o contraste com os diferentes, a projeção do local frente a
outros locais, sem que se passe por velhos intermediários, tais como:
a nação, a igreja etc. A produtividade, nesse caso, está relacionada,
por exemplo, ao aumento do desempenho dos alunos em testes es-
tandardizados (BUZATO, 2010).
Ademais, esta análise buscou apontar como as RSVs e a trans-
culturalidade evidenciam relações entre linguagem, tecnologia e
sociedade e, assim, discutir como uma tecnologia permite uma so-
ciedade representar-se para si mesma, mas nunca de modo neutro ou
independente da mediação (MAZZARELLA, 2004). Assim também
são as identidades em uma época em que as pessoas estão se tornando
mistos de usuário e produtor das mídias.

124
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

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Cultura digital e linguística aplicada:
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126
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Espaço-temporalidade e Construção de
Sentidos em uma Rede de Letramentos: uma
análise de transposições semiótico-materiais
Camila Lawson Scheifer

Introdução

As tecnologias digitais da informação e comunicação (doravante


TDICs) e o ciberespaço nos colocam a necessidade de revermos a
imaginação espacial que tem orientado a forma como letramentos
e aprendizagem têm sido estudados no campo aplicado dos estudos
da linguagem. Esse é um dos aspectos da relação entre linguagem,
tecnologia e sociedade sobre o qual a Linguística Aplicada (do-
ravante LA) precisa debruçar-se no intuito de ser responsiva aos
complexos efeitos da incorporação das TDICs pelas sociedades
modernas. Entre eles, talvez os mais perturbadores sejam a possibi-
lidade de experimentarmos em dimensões jamais vividas antes for-
mas de compressão espaço-temporal1 que viabilizam a participação
concomitante em espaços sociais múltiplos e/ou geograficamente
dissociados e a corolária constatação de que o que frequentemen-
te tomamos por um único lugar é, na verdade, um amálgama de
espaço-temporalidades sobrepostos e concorrentes. Tais efeitos
repercutem em termos de novas práticas de subjetivação (BUZA-
TO, 2012a; 2012b), formas de socialização (GALLARDO, 2013) e
epistemologias (SCHEIFER 2013; BARROS, 2014), e processos
semióticos altamente hibridizados (LEMKE; 2009; BUZATO et al;
2013). Em seu conjunto, traduzem o ethos (LANKSHEAR; KNO-
BEL, 2007) característico do que vem sendo aludido como cultura
do pós-humano (SANTAELLA, 2008).

1 Ou espaciotemporal.

127
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

As consequências espaciais da cultura digital vêm sendo já timi-


damente abordadas no campo do Ensino a distância (EAD); porém
discussões nesse sentido parecem ainda pouco avançar em virtude de
não proporem um aparato conceitual capaz de forjar uma imaginação
espacial outra que aponte para caminhos que permitam, por exemplo,
abrir o espaço-temporalidade da escola para além de seus limites,
integrando-a a outros tempos e espaços. Para que a discussão de tais
efeitos espaciais seja frutífera, é preciso antes reivindicar uma noção
de espaço mais congruente com a nova ordem contemporânea, mar-
cada por um emaranhado crescente de fluxos econômicos, culturais
e semióticos (APPADURAI, 2006; 2009). Fluxos esses que fazem
com que a nossa realidade se assemelhe mais a uma rede que conecta
e justapõe momentos dispersos da nossa experiência, tornando-os
simultâneos, do que a uma vivência cumulativa de experiências por
meio do tempo histórico e cronológico.
Isso significa abandonar o entendimento do espaço/contexto
como um vácuo social preexistente às práticas de linguagem em
favor de uma concepção que assuma o espaço como dinâmico,
contingente e performativo, ou seja, como uma prática social
(SCHEIFER, 2015). Supõe pensar o próprio espaço como re-
sultado das referidas redes, sem, no entanto, negar a dimensão
temporal daqueles processos (tanto simbólicos, quanto materiais)
cujo encontro culmina em determinada configuração espacial
(MASSEY, 2005) – argumento que explica a adoção do termo
espaço-temporalidade. Logo, ao falar em espaço, penso-o como
uma esfera aberta de relações e multiplicidades, contrariando,
assim, a lógica euclidiana que o toma como distância fixa entre
pontos e, com isso, autoriza interpretações que remetem à ideia
de espaço como depositário das práticas sociais.
É na esteira desse entendimento que a noção de espaço começa
a atualizar-se na Linguística Aplicada por meio de um movimento
chamado de Virada Espacial nos Estudos de Letramento (LEANDER;
SHEEHY, 2004; SCHEIFER, 2014), que traz da Geografia para o
campo da linguagem uma proposta de reconceitualização do espaço.
Os insights desse movimento tornam possíveis novas teorizações
sobre como os sujeitos produzem sentidos em face da realidade es-
pacial atual, particularmente no que se refere aos tipos de relações

128
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

e multiplicidades semiótico-materiais que serão construídas a partir


de configurações espaciais que estão acontecendo.
Amparados nos trabalhos de geógrafos como Lefebvre (1991),
Soja (1996) e Massey (2005), teóricos dos estudos de letramento,
passam, então, a afirmar que o espaço se equipara, em status ontoló-
gico, às dimensões históricas e sociais dos fenômenos. Essa mudança
paradigmática afronta os pressupostos da teoria sociocultural sobre a
qual se assentam grande parte dos estudos das práticas de linguagem,
em especial a área dos Novos Estudos de Letramento, ao indicar a
inoperância da noção de espaço que subjaz a maneira como contexto
e situacionalidade têm sido tratados nesse campo, conforme discuti
em outro momento (SCHEIFER, 2014).
No que tange à relação entre espaço e práticas de linguagem,
essas tomadas sob o enfoque dos estudos de letramento, a Virada
Espacial, enquanto movimento amplo no nas Ciências Sociais, chama
a LA a um diálogo transdisciplinar que se propõe a compreender: (i)
a relação entre linguagem e espaço, focalizando os mecanismos por
meio dos quais a linguagem produz e mobiliza espaciotemporalida-
des, servindo, por exemplo, a práticas de dissidência e resistência;
(ii) o papel agentivo das tecnologias do letramento como elementos
materiais co-produtores da prática espacial; (iii) o engajamento do
corpo nos processos de significação que trabalham para construir o
espaço social, desafiando a LA a pensar-se para além da dimensão
representacional.
Instigada por essas questões ainda muito incipientes na LA
brasileira, por ocasião de meu doutorado sanduíche junto ao grupo
de pesquisa “Space, Learning and Mobility”, coordenado pelos pro-
fessores Kevin Leander e Rogers Hall na Vanderbilt University
(USA), precisei desterritorializar o corpo para reterritorializar meu
entendimento do espaço e sua relação com processos de aprendiza-
gem. Nesse deslocamento e desencaixe, tornaram-se críticos todos
os meus territórios, movimento que me permitiu ressignificar o
próprio sentido de espaço, assim como o de fronteira, lugar e perten-
cimento, acarretando no despertar da sensibilidade espacial que tem
nutrido meu interesse pela problemática do espaço, especialmente
no que se refere a pensar formas de flexibilizar a dimensão espaço-

129
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

temporalidade da escola com vistas a torná-la mais permeável aos


espaços de vida de seus alunos.
Em suma, grande parte do meu investimento intelectual nos
últimos tempos tem sido no intuito de entender a natureza da espa-
cialidade no tocante ao papel da linguagem nesse processo, para, a
partir disso, poder propor alternativas de reespacialização do espaço
escolar que não se baseiem em mecanismos de desconexão dos fluxos
semióticos e culturais característicos da vida contemporânea, tais
como: restrições de acesso à rede e proibição do uso de celulares e
tablets em sala de aula. O que justifica essa preocupação é a constatação
de que a escola tem perdido relevância social na proporção em que
aumenta a comunicação digital no mundo e, com ela, os espaços de
acesso a novos saberes (GARCIA-CANCLINI, 2008), novas formas
de consumir e produzir conteúdos (LEMKE, 2009; 2010; JENKINS,
2006; BUZATO et al., 2013) e novos processos de subjetivação e par-
ticipação social (CASTELLS, 1999; 2012; BUZATO, 2007; 2012a).
Voltando ao estágio sanduíche, com o término do programa,
ao reterritorializar o corpo, percebi, então, desterritorializado o
entendimento. O que apresento a seguir é parte de meus esforços de
reterritorializá-lo em alguma intersecção que possamos chamar de
Linguística Aplicada. Esse empreendimento, é válido lembrar, dá-se
meio que como um processo de antropofagização, ideia que tomo
emprestada de Haesbaert e Mondardo (2010), segundo os quais: “de-
voramos outros territórios para torná-los, de alguma forma, nossos,
não por uma simples assimilação mecânica, mas pela incorporação
dialógica de traços ou componentes que nos são mais enriquecedo-
res” (p. 44). No escopo deste trabalho, pretendo delinear um enfoque
espacial que se pretenda enriquecedor à LA, pois que elucidativo das
dinâmicas espaciais, de caráter tanto simbólico quanto material, que
ocorrem em paralelo às práticas de linguagem analisadas.
Para isso, apresentarei no que se segue um breve recorte de
meu estudo de doutorado2 sobre os movimentos de ressemiotização
(IEDEMA, 2001; 2003, ver também SACHS neste volume) que
caracterizam um conjunto de eventos de letramento referentes a

2 Estudo de doutorado desenvolvido no programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, no


Instituto de Estudos da Linguagem, sob a coordenação do Prof. Dr. Marcelo Buzato.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

um projeto interdisciplinar desenvolvido em uma instituição de


ensino fundamental. À luz da Teoria Ator-Rede (TAR) (LATOUR,
2001;2005), tentarei mostrar como um grupo de alunos engaja-se em
processos de significação enquanto atravessa diferentes espaços ao
mobilizar letramentos, textos, discursos, atores, mídias e modalidades.
Buscarei focalizar a dinâmica espaço-temporal articulada no percurso
semiótico que vai da visita a uma emissora de rádio à confecção de um
mural sobre essa atividade em sala de aula. Entendo que esse recorte
colocará em evidência a questão da espaciotemporalidade em relação
aos letramentos de que os alunos participam dentro e fora da esfera
escolar e, em última instância, em relação à aprendizagem.

Sobre o estudo das multiplicidades

Focalizar a relação entre processos de significação e espaciali-


dade na construção de multiplicidades implica atentar para o papel
agentivo das tecnologias nas práticas de construção de sentido de
que fazem parte. Isto é, o papel ativo e independente da ação humana
desempenhado por objetos que participam de práticas de letramento
específicas (BARTON; HAMILTON, 2005). Propor a análise do papel
dessas tecnologias em práticas de letramento não é algo necessaria-
mente novo. Essa questão já foi colocada há mais de uma década por
Brandt e Clinton (2002), quando as autoras, influenciadas pela leitura
de Bruno Latour, afirmaram que as tecnologias em que se amparam
os letramentos são também dotadas de agência, visto serem media-
dores3 ativos dos processos de significação, dada a sua capacidade de
trazerem de uma escala global sentidos que se manifestam em escala
local. No entanto, propor caminhos metodológicos que coloquem em
evidência o coprotagonismo de artefatos não humanos em processos
de significação tradicionalmente compreendidos como de natureza
unicamente simbólica é ainda algo embrionário na LA, sendo o tra-
balho de autores como Leander e Lovvorn (2006) e Buzato (2012a;
2012b) precursores nesse sentido.
Sob a ótica da Teoria Ator-Rede, tomo tecnologia em sentido
amplo como qualquer artefato não humano que acumule investimento
3 Por mediação, sob a ótica da TAR, entende-se a possibilidade de interferência na produção de
um efeito da rede (BUZATO, 2012a).

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

humano, medeie a nossa interação com outros tempos e espaços, e


resista a nossas vontades, a exemplo de um programa de computador
que permite a editoração de um arquivo de texto, ou, citando Buzato
(2012a, p. 67), de um pedaço de papel que acolhe, para transportar, a
forma linguística de um enunciado, ainda que seu significado mude
radicalmente em outro contexto. Soma-se a isso a possibilidade desses
artefatos resistirem à ação ou vontade humana. No caso do programa
de computador mencionado, sua animidade e volição ficam patentes
quando, ao tentar fazer a edição do arquivo, notamos que aquilo que
visualmente tomamos como um texto é, na verdade, uma imagem.
Já no que compete ao pedaço de papel, isso é manifesto quando o
papel, em virtude de sua fragilidade material, rasga-se, impedindo o
transporte do enunciado.
Feita essa ressalva sobre as tecnologias em que se amparam os
letramentos, recorro a Buzato (2012a; 2012b) para pensar letramento
de uma perspectiva que não o dissocie dos planos da linguagem, sujei-
tos e práticas. Informado pela TAR, Buzato defende que letramento
consiste numa prática de espacialização que permite aos sujeitos
des-recontextualizarem-se ao longo de cadeias de ressemiotização
e, assim, construírem representações sobre si mesmos e sobre o
mundo. Essa noção de ressemiotização é oriunda de Iedema (2001;
2003) e refere-se a “como a produção de sentido muda de contexto
para contexto, de prática para prática, ou de um estágio da prática
para outro” (p. 41), a partir das restrições e affordances de cada modo
semiótico diferente. Em vez de produzir similitude, a transposição
entre diferentes modos semióticos acaba por introduzir discrepâncias
nos sentidos, visto representar “um conjunto de múltiplos canais e
direções”, nos termos do próprio Iedema (2003, p. 33).
Sendo assim, a noção de ressemiotização aproxima-se da noção
de translação em Latour (2005), conforme aponta o próprio Iedema
(2001). Para a TAR, translações são um tipo de relação que se baseia
na coexistência de elementos (atores) que, justamente por relacio-
narem-se, formam uma determinada configuração reticular, ou seja,
um determinado espaço. São processos que envolvem mudanças nas
rotas de circulação das ações de atores humanos e não humanos da
rede. Por propor-se uma abordagem metodológica para o mapeamento
das circulações que têm como efeito uma determinada articulação

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

reticular do social, a TAR concilia a temporalidade das trajetórias


semiótico-materiais (ou práticas de letramento) com a espacialidade
da rede que tais trajetórias, conjuntamente articuladas, compõem.
Por esse motivo, oferece ao analista a possibilidade de mapeamento
temporal de cadeias semióticas por meio da descrição da rede, ao
mesmo tempo em que permite o estudo da significação para além da
semiose em si.

Movimentos de ressemiotização e práticas


de espacialização: mapeando a rede

Para estudar o percurso semiótico empreendido desde uma sa-


ída de campo escolar, em que um grupo de alunos do quinto ano de
ensino fundamental visita uma emissora de rádio do município em
que está localizada a escola, até à elaboração de um mural em sala de
aula sobre essa atividade, tomarei a dinâmica espaço-temporal como
recorte analítico. Para tanto, focalizarei especificamente as transposi-
ções semióticas, materiais e discursivas que se dão na medida em que
os sujeitos vão engajando-se com diferentes letramentos, discursos,
atores, objetos, mídias e modalidades ao atravessarem diferentes
espaços, a saber: o espaço da sala de aula, o espaço da rádio, o espaço
de casa e o ciberespaço. Na descrição dos movimentos de ressemio-
tização, considerarei as affordances e restrições colocadas por atores
humanos e não humanos na constituição da rede semiótico-material
que caracteriza os eventos selecionados para análise.
A saída de campo caracteriza-se por um conjunto de eventos que
incluem: trocas verbais entre os participantes da atividade, escrita
de anotações e escrita de produção textual sobre a visita, elaboração
de mural com comentários dos alunos sobre a atividade (figura 01).

133
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 01: Movimentos de Ressemiotização

A análise na íntegra do percurso semiótico que caracteriza esse


conjunto de eventos escapa aos limites e ao escopo deste trabalho. Na
discussão que se segue, meu foco recairá nos processos de ressemioti-
zação e práticas de espacialização relativos à elaboração de um mural
em sala sobre visita à emissora. O contexto maior da atividade é um
projeto interdisciplinar no qual os alunos estão estudando sobre o
rádio nos tempos modernos. Após a classe fazer uma visita guiada a
uma emissora local, quando então puderam vivenciar o funcionamento
real de uma rádio e discuti-lo com os profissionais que lá trabalham,
é publicada no site da emissora uma nota4 sobre a atividade:

Alunos e professores da escola XX <nome da escola>, da


cidade XX <nome da cidade>, estivem visitando os estúdios
da Rádio XX <nome da rádio>, na manhã de quarta-feira,
20. Crianças entre 6 e 8 anos puderam tirar as dúvidas exis-
tentes e matar a curiosidade, que mais tarde será relatado nos
trabalhos em sala de aula.

Após uma conversa na sala do Gerente, XX <nome do geren-


te>, o qual respondeu os questionamentos dos estudantes e
professores, os alunos foram levados para conhecer os estúdios
ao vivo. No final, tiraram varias fotos para levar de recordação.
(Nota sobre a visita, publicada no site da emissora)

4 Texto tal qual postado pela rádio, incluindo erros de digitação.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Ao retornar à sua residência e entrar no site da emissora, incum-


bido pela professora de elaborar uma produção textual sobre a visita,
um dos alunos (A1) lê a nota e decide imprimi-la para compartilhá-la
com a classe no dia seguinte. Abaixo do texto, o aluno organiza uma
seção para a escrita de comentários, a modelo daquelas que existem
em sites de notícias e venda de produtos (figura 02). Tal gesto pode ser
lido como uma tentativa de reconectar a classe à cadeia enunciativa
que foi instaurada na visita à emissora. Isso porque, ao entrar no site
da rádio, em sua casa, o aluno tenta reestabelecer, usando o corpo
e a memória como mídia, o fluxo de sentidos que foi estabilizado
quando foi proposto pela professora que a visita foi ressemiotizada
como produção textual.

Figura 02: Seção de comentários criada pelo aluno

De volta à escola, A1 entrega o texto e a seção de comentários


à professora (P), que o lê em voz alta e comenta-o. Nesse momento,
as crianças manifestam a sua indignação com o fato de a nota jor-

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

nalística ter errado a verdadeira idade delas, que, ao contrário do


que é informado, têm entre 8 e 9 anos. A indignação dos meninos
justifica-se em virtude de, durante a visita, o gerente da emissora
ter conversado sobre o papel do jornalismo em falar a verdade e ser
fiel aos fatos. Em resposta à nota do site, a professora solicita que as
crianças (As) montem um mural de comentários, no qual cada aluno
dá o seu parecer sobre a atividade.

Excerto 1
P: Meninos, a foto que o A4 baixou da internet vem com um texto assim
(lê a nota).
As: (Falam entre si, indignados, sobre o fato de a rádio dizer que eles têm
entre 6 e 8 anos de idade).
P: Meninos, a professora vai mandar uma mensagem agradecendo e pedindo
correção, tá bom? Bom, que eu quero mostrar aqui é o seguinte: ontem,
falou-se lá em planejamento e o bacana, o A4 planejou. Ele baixou e plane-
jou que nós colocássemos os nossos comentários. Então, para aproveitar
bem o fato do A4, vamos colocá-lo aqui (aponta para a parede), eu vou
dar a parte dos comentários numa folha avulso, avulsa, e aí vocês podem
escrever, tirar a limpo.
A1: E as outras coisas que tá escrito atrás?
[...]
A2: Professora, que que é pra pôr no comentário?
P: Eu gostei, não gostei. Eu gostei porque isso. Eu não gostei porque aquilo.
A1: Professora, por que que, já que tu vai fazer umas tirinhas com a gente,
por que embaixo tu não bota, ãh, 5 estrelas em branco pra gente pintar e
dar a nota que a gente quer?
P: Boa idéia. Vocês podem desenhar as estrelas?
A1: Pode.
P: Tá, então desenhem.

Ao trocar a mídia da atividade pelo papel, antepor a modalida-


de escrita, e restringir a circulação dos enunciados à esfera escolar,
em vez de os fazer circular na rede, a professora acaba por fixar os
enunciados dos alunos no tempo e espaço da sala de aula. Com isso,
desconecta coercitivamente o espaço de sala de aula do espaço virtual
que desencadeou a atividade, produzindo um efeito de localidade
como isolamento. Essa é uma tentativa, ainda que inconsciente, de
homogeneizar a voz dos meninos, desvinculando-a do espaço da ex-
periência, onde sentidos são disputados, onde a verdade da notícia é

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

posta em xeque. Para lidar com esse conflito, a professora privilegia


a representação da experiência, visto ser o espaço que a ela é possível
controlar. A cartolina entra em cena como um ator que segura, dá
visibilidade e organiza os enunciados dos meninos, coibindo a sua
força ilocutória, logo a possibilidade de confronto com o mundo fora
da escola.
Se por um lado o cartaz é, do ponto de vista da professora,
uma forma de responder à expectativa de A1 de manifestar-se so-
bre a atividade; por outro, é também o ator que permite coordenar
o interesse do ator aluno com os interesses do ator professora. Ao
mobilizar folhas avulsas de papel para a publicação dos comentários
no mural, a professora toma proveito da motivação dos meninos para
produzir sentidos e transforma o locus latente de enunciação aberto
pelo gesto de A1 e pela indignação das crianças num espaço para a
tarefa escolar de “escrever”. O cartaz, portanto, reduz a dimensão
pragmática da atividade à dimensão semântica. Simulando um espaço
legítimo de enunciação, ele desvia a ação das crianças, o seu impulso
de engajarem-se com o mundo que existe para além da escola, para
o espaço simbólico do falar sobre a atividade.
A mudança de esfera de circulação enunciativa tem como con-
sequência o esvaziamento do sentido da atividade para os alunos,
conforme fica evidente na pergunta de A2: “Professora, que é para pôr
no comentário” (excerto1, linha 6). Implícito nessa pergunta está o
entendimento de que o interlocutor da enunciação não é mais a rádio,
mas a professora. Respondendo que os alunos devem manifestar-se
sobre o que gostaram ou não gostaram, a professora tenta territo-
rializar a voz dos meninos num espaço de representação binário que
exclui tanto a possibilidade desse “gostar” ser relativizado quanto
apreciações de qualquer outra natureza.
O aluno parece compreender a negociação posta pela professora
e colabora para construí-la quando propõe um sistema de avaliação
baseado em estrelas. Fora do espaço-temporalidade escolar, tomando
como referência os mecanismos de enunciação típicos do Facebook,
ele tem a experiência de que para falar que gostou ou não de alguma
coisa é necessário clicar no curtir, neste caso nas estrelas, não escrever
se gostou ou não (figura 02). As estrelas correspondem a uma forma

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

de adverbializar o gostar, de romper com o binarismo do gostar/não


gostar, pois que instauram a possibilidade do gostar um pouco, gostar
muito, ou gostar mais ou menos.

Figura 03: Comentário de A1

O desenho das cinco estrelas (figura 03) ressemiotiza o enunciado


verbal “Eu gostei porque aprendemos muito sobre o rádio”, cujo in-
terlocutor é a professora, não a emissora. O desenho do polegar para
cima, indicativo do gesto “curtir” do Facebook ratifica a enunciação
que se dá no plano textual e visual, correspondendo a uma marca
de subjetividade do aluno que remete ao modo como ele materializa
suas apreciações no ambiente digital. Trata-se de uma tentativa de
resistir à desconexão espaço-temporal empreendida pela professora.
Isso porque, no papel, o símbolo “curtir” do Facebook é apenas uma
referência a um mecanismo enunciativo do site. Ou seja, o desenho
do menino é uma representação visual daquilo que, ao ser acessado
no site, gera um ato de fala que se espalha pela rede.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 04: Comentário de A2

Figura 05: Comentário de A3

Na figura 05, o comentário de A3 (“Eu achei legal, mas não


gostei que disseram que eu tenho 6 anos, mas eu também achei difícil
fazer tanta coisa) constrói-se a partir de duas orações coordenadas

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

adversativas no mesmo enunciado. Essa construção cria duas oposi-


ções diferentes, conforme esquema abaixo (figura 05): “Achar legal e
não gostar” e “Não gostar e achar difícil” (difícil no sentido de achar
interessante o fato do funcionamento de uma emissora envolver
tantas atividades).

Figura 06: Contraposições discursivas

Essas oposições têm função de relativizar o gostar do menino,


que é, por sua vez, ressemiotizado pelas três estrelas que atribui à
atividade. Os “6 anos”, escritos em letras maiores que as demais,
ressemiotizam a indignação dos alunos em relação ao erro da nota
postada pela rádio e contrapõe-se aos “+ de 8 anos” que rubricam “o
curtir” do menino. A mão chifrada, símbolo do rock heavy metal, por
sua vez, ressemiotiza o polegar para cima indicativo do “curtir” do
Facebook, marcando a identidade do aluno como alguém que aprecia
esse tipo de música nada infantil, ou seja, um menino não infantilizado
como se espera que sejam as crianças dessa faixa etária.

Considerações finais

Do percurso semiótico descrito, conclui-se também que letra-


mentos e aprendizagem não se dão como atividades espacialmente
circunscritas, mas envolvem sempre atores vindos de outras locali-
dades. Atores esses que, agenciados, criam um determinado efeito
de situacionalidade que torna invisível a multiplicidade de práticas
e discursos que trabalham na sua construção.
Nas práticas analisadas, observa-se um conjunto de movimen-
tos de ressemiotização que engendram espacializações em que a
rádio, a escola e o ciberespaço interpenetram-se via a mobilização

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

de diferentes atores. Essa dinâmica espacial revela um embate no


qual os meninos tentam abrir o espaço de sala de aula no intuito de
reconectá-lo a outras espaciotemporalidades (como o espaço-tempo
da visita à emissora e o espaço-tempo da postagem virtual da nota)
e, com isso, quebrar a homogeneização espaço-temporal que lhes é
imposta com a proposta de elaboração do mural.
A nota impressa que o aluno leva para a sua professora reconecta
a escola ao espaço-tempo da rádio, reabrindo a esfera de enunciação
à multiplicidade de posicionamentos e sentidos. O cartaz, em contra-
partida, torna possível perenizar a voz dos meninos no tempo-espaço
de sala de aula e, assim, promove o fechamento do locus de enuncia-
ção aberto quando o aluno trouxe a postagem do site para a escola.
Desse embate, apreende-se que para a professora (e para a escola de
um modo geral) a aprendizagem parece corresponder à busca de uma
síntese simbólica que apague vozes dissidentes e elimine a natureza
aberta e conflituosa dos processos de significação.
Ainda assim, a professora parece reconhecer intuitivamente a
relevância pedagógica de validar conexões com outros espaços, o
que fica manifesto em sua escolha em levar os alunos para visitar a
emissora local de rádio e na elaboração de um mural de comentários
sobre essa visita. Tais conexões, entretanto, representam um risco à
estabilidade do espaço escolar, pois implicam o rearranjo de sentidos,
papéis e práticas, conforme foi possível apurar.
Para que o sistema escolar funcione adequadamente, de modo a
garantir à escola a transmissão dos conteúdos e saberes tidos como
legítimos, é preciso que certos agenciamentos sejam mantidos em
determinada configuração reticular. No exemplo descrito, isso inclui a
mobilização do cartaz como mídia que, por tornar possível estabilizar
os sentidos e resolver o inesperado, coloca a todos no espaço-tempo
da pedagogia da professora, em última instância, no espaço-tempo
da escola.
A análise aqui empreendida parece orientar-nos a pensar uma
pedagogia que dessubstancialize a sala de aula, visto que todas as
práticas que nela acontecem possuem valor mutável, a depender da
circulação e conexão de atores. A própria homogeneidade, assim sen-
do, aparece como um efeito da rede, conforme discutido. Isso significa

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

que o valor da aprendizagem vai sempre depender da rede da qual ela


faz parte, de tal modo que qualquer tentativa de compreender práticas
de letramento e aprendizagem precisa, primeiramente, considerar
o que e sob quais circunstâncias é naturalizado e validado como tal
(FENWICK; EDWARDS, 2010, p. 51).
Sem uma análise dessa natureza, corremos o risco de tomar como
forças ostensivas certos conhecimentos, relações de poder e discursos,
em vez de compreendê-los como continuamente produzidos pela ar-
ticulação de atores humanos e não humanos (LATOUR, 2001). É jus-
tamente essa compreensão que torna possível empreender qualquer
mudança na rede que estrutura o que tomamos por social (ou escola,
letramento, ensino, aprendizagem etc.), por meio da mobilização de
atores que venham a rearranjá-la de modo a produzir espaciotempo-
ralidades que sejam mais relevantes a propósitos específicos.

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Cultura digital e linguística aplicada:
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144
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Terceiro Aglomerado: Estética, Ética,


Cibernética

Linguagem Tecnologia Sociedade

“Transcodificação
Dáfnie Paulino

Multiuser cultural nos gêneros


Capítulo 6:

Gêneros
Dungeon Transcodifi- digitais de um
digitais
New media cação cultural MUD: encontrando
Inovação
Software o espaço de inova-
linguística
Modelagem ção do usuário via
língua(gem)”

Presença
metafísica
Sentido In- Cidadania “Cidadania pós-
Marcelo Buzato
Capítulo 7:

formação Sistemas de Ética social e encontros


Emoção atendimento Intersubjeti- pós-humanos:
Semiótica automático vidade integrando sentido,
(material) Interobjetivi- informação e emo-
dade ção”
Modos de
vida

145
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Transcodificação cultural nos gêneros


digitais de um MUD: encontrando o espaço
de inovação do usuário via língua(gem)
Dáfnie Paulino da SIlva

Introdução

Este trabalho pretende, a partir dos resultados iniciais obtidos


em um trabalho anterior (SILVA, 2012), desenvolver um exame do
construto gênero digital, considerando as mediações no sistema
desempenhadas por agentes computacionais. O objetivo é ampliar
escopo da reflexão para os agentes cibernéticos que modelizam e
influenciam a constituição do gênero digital em um processo de-
nominado transcodificação cultural, por Lev Manovich. Para isso,
iremos examinar mais de perto, dentre outros, a construção de gê-
nero discursivo “objeto” em um jogo de RPG multiusuários, em uma
plataforma textual de produção colaborativa, chamada MUD Valinor.
Aplicamos o termo “modelizar”, pois, conforme Irene Machado,
os gêneros digitais podem ser concebidos como “formas arquitetô-
nicas cujas estruturas são modelizadas por linguagens artificiais,
criadas pela engenharia digital, para combinação e reprocessamento
de sistemas de escrita e de gêneros literários” (MACHADO, 2003,
p1). A autora utiliza o conceito de modelização para embasar sua
escolha, explicando que:

[...] é um termo forjado no campo da informática para sig-


nificar, não a reprodução de um modelo, mas o processo pelo
qual se cria uma linguagem tendo em vista uma estrutura
dinâmica como ponto de partida. Os semioticistas russos
tomaram esse termo para designar o processo semiótico por
meio do qual é possível transferir a estruturalidade da língua

147
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

natural para sistemas semióticos carentes de uma estrutura


lingüística. (MACHADO, 2003, p. 121)

A transcodificação cultural é um princípio das novas mídias


derivado do fato de os objetos digitais serem constituídos por uma
camada computacional (código digital/representação numérica) e
por uma camada de interface cultural (interação como usuário) que
se influenciam mutuamente no uso do objeto.
No caso dos gêneros digitais, os elementos concretos da camada
cultural estão representados nas interfaces textuais dos programas de
computador, as quais são modelizados pelo software, isto é, impreg-
nadas por lógicas, estruturas e aspectos legados da camada compu-
tacional. Assim também, em princípio, a camada computacional é em
parte modelizada por elementos da camada cultural, como palavras
tiradas de línguas naturais para constituir linguagens artificiais de
programação ou relações e formas de equivalência formal expressas
matematicamente. Manovich (2001) afirma que:

[...] Os exemplos de categorias na camada cultural são enci-


clopédia e uma história curta; história e enredo; composição
e ponto de vista; mimese e catarse, comédia e tragédia. Os
exemplos de categorias sobre a camada computacional são de
processos e de pacotes (como em pacotes de dados transmiti-
dos através da rede); classificação e correspondência; função
e variável; uma linguagem de computador e uma estrutura
de dados (p.63)

Nos gêneros digitais do MUD essa característica surge de forma


muito mais evidente e ativamente integrada à prática dos usuários
do que no caso de interfaces ditas “intuitivas”, devido ao modo como
o software e o usuário interagem. Mais especificamente, no MUD, a
mecânica de jogo e a fantasia (literária) em texto verbal (RPG) são
mescladas de tal forma que a relação simbiótica entre as camadas de
programação e a narrativa seja facilmente evidenciada, sobretudo,
quando se estuda os gêneros textuais constitutivos do jogo.
Nosso objetivo geral é investigar a maneira como o conheci-
mento técnico e a percepção da relação simbiótica entre a camada
cultural e a camada de software abrem espaço para uma participação

148
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

mais ativa e criativa do sujeito dentro dos assim chamados sistemas


de informação. Especificamente, a partir do exemplo investigado,
nos propomos a buscar modelos mais abrangentes e alternativos de
análise de gêneros digitais, pois acreditamos que a análise desses ob-
jetos e textos deve acompanhar o mesmo movimento de integração/
hibridização entre o cultural e o técnico que constitui tais objetos e
as práticas discursivas digitais atuais.
O jogo MUD Valinor é suportado por um software denominado
Vsmaug que, como já dito, atua modelando os gêneros discursivos e
práticas letradas que os usuários desenvolvem no ambiente do jogo.
Isto porque o software gerencia e condiciona as dinâmicas de funciona-
mento dos textos, mediante propiciações que oferece e limitações que
impõe (ver a esse respeito o conceito de “mediação tecnológica” em
COSER neste volume). Em Silva (2012), identificamos e analisamos
dez gêneros específicos que constituem o jogo, a saber: sala, objeto,
NPC1, roteiro de conversação com NPC, mural, título, description,
prompt de comando, biografia e mudmail. No presente capítulo, nossa
análise focalizará especificamente o gênero “objeto”, visto que ele
oferece um exemplo mais rico de como algoritmo e linguagem natural
entram em relação no processo de transcodificação cultural, e como
o usuário intervém no jogo (e no mundo) a partir da sua percepção
desse processo de hibridização (ver BARROS, neste volume, acerca
de hibridizações entre narrativas e bancos de dados).
O capítulo defenderá a tese de que a compreensão acerca do
funcionamento do algoritmo e do software capacita o usuário a uma
participação mais crítica e “semanticamente transformadora/inova-
dora” nos gêneros digitais. Adicionalmente, pretendemos sugerir que
o tipo de análise aqui empreendida coloca em relevo a necessidade
de recorrermos a modelos alternativos de análise de gêneros discur-
sivos para compreender gêneros digitais em sua real complexidade,
isto é, modelos que nos permitam ir além da forma, do estilo e do
conteúdo temático do texto em si, para flagrar o funcionamento das
modelagens informáticas nas dinâmicas culturais do nosso tempo,
de modo mais amplo.

1 NPC: Non player character, dentro do jogo são personagens artificiais (não humanos) com os
quais os jogadores podem lutar, conversar, comprar serviços, aprender lições e outras interações
limitadas.

149
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Os Princípios das Novas Mídias

Os princípios das novas mídias, que subjazem os processos


de modelização dos gêneros digitais, foram apresentados por Lev
Manovich em seu livro The Language of New Media (2001). Ob-
jetos digitais ou new media são objetos exclusivamente “criados
em computadores, distribuídos através de computadores, arma-
zenados e arquivados em computadores” (MANOVICH, 2001,
p. 63). São eles: (1) Representação Numérica, (2) Modularidade,
(3) Automação, (4) Variabilidade e (5) Transcodificação Cultural.
Considerando que o princípio 5 da Transcodificação Cultural é
dependente dos princípios 1 (Representação Numérica) e 2 (Modu-
laridade), é fundamental fazer uma breve revisão desses conceitos
antes de trabalharmos transcodificação cultural e mediação em
gêneros digitais.
O princípio de representação numérica enfoca o fato de que todos
os objetos digitais são expressos matematicamente, o que permite
aos canais de mídia digital “processá-los” mediante algorítimos.
Independente de sua forma ou dos gêneros discursivos a eles asso-
ciados, tais objetos podem ser gerados como diferentes instâncias e/
ou sampleados, isto é, transformados em código binário por algum
tipo de digitalização de um objeto analógico anterior.
O sampling não se resume a uma conversão pura e simples, mas
um tipo de mediação, já que transforma uma unidade contínua em
pacotes de dados fragmentados “descontínuos” e depois os quantifica
em intervalos regulares, para que possam ser interpretados dentro
de escalas/resoluções específicas. Assim, digitalizar um objeto é
torná-lo manipulável algoritmicamente, o que permitirá simulá-lo,
reproduzi-lo, mesclá-lo, enfim, sujeitá-lo às propriedades interativas
da nova mídia.
Além da representação numérica, o princípio (2) da modularidade
é essencial para tratarmos da transcodificação cultural. Os objetos
digitais (sejam compostos no computador ou sampleados) apresentam
estrutura fractal, ou seja, é possível parti-los em partes menores que
passam a ser independentes e combináveis, sem prejuízo das suas
partes componentes independentes (ou seja, “módulos”).

150
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Assim, textos pertencentes a quaisquer gêneros discursivos, se


efetivamente digitais, são textos que manifestam, no gênero (digital)
em questão, representação numérica e, consequentemente, modulari-
dade. Essas propriedades, por sua vez, são aproveitadas pelos parti-
cipantes humanos e não humanos (programas) do gênero para gerar
efeitos semióticos e sociocomunicativos específicos, em diferentes
escalas, sendo tais efeitos, no seu conjunto, o que Manovich (2001)
chama de transcodificação cultural.

Aprofundando o conceito de transcodificação


cultural

Segundo Lev Manoivich:

Na linguagem de novas mídias, “transcodificar” alguma


coisa é traduzi-la em outro formato. A informatização da
cultura gradualmente realiza transcodificação semelhante
em relação a todas as categorias e conceitos culturais. Ou
seja, as categorias e conceitos culturais são substituídos,
no nível de significado e/ou de linguagem, por outros no-
vos que derivam da ontologia, epistemologia e pragmática
computacionais. As novas mídias atuam, assim, como um
precursor desse processo mais geral de re-conceituação
cultural2. (MANOVICH, 2002, p.64-65)

Podemos conceber que os objetos digitais são compostos de


duas camadas, a primeira delas é a camada cultural e a segunda é a
camada computacional. A primeira camada concentra características
culturais no plano da representação da cultura humana, está carregada
de convenções semióticas e sociais, relações intertextuais, tradições
históricas, mitemas, sememas, etc.; em contrapartida, a segunda
camada consiste nas formas computacionais (matemático-abstratas)
aplicadas para arquivar, apresentar e disseminar os dados. Há modelos
e linguagens computacionais de processamento e estrutura de dados,

2 The computerization of culture gradually accomplishes similar transcoding in relation to all


cultural categories and concepts. That is, cultural categories and concepts are substituted, on
the level of meaning and/or the language, by new ones which derive from computer’s ontology,
epistemology and pragmatics. New media thus acts as a forerunner of this more general process
of cultural re-conceptualization.

151
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

algoritmos, operações-chave (filtros, tags, dinâmicas interativas, input/


output), em resumo “uma ontologia, epistemologia, e pragmática
computacionais, as quais influenciam a camada cultural das novas
mídias: sua organização, seus gêneros emergentes, o seu conteúdo”
(MANOVICH, 2002, p. 64).
É importante reforçar que, assim como a camada cultural é mais
bem compreendida como um processo (ver SACHS neste volume), do
que um produto estático, se considerarmos a concepção bakhtiniana
de gêneros como conjuntos de enunciados “relativamente estáveis”,
também a camada computacional é relativamente instável: evoluiu
de acordo com as mudanças conceituais e técnicas de hardwares e
softwares ao longo do tempo. A diferença está em que mudanças na
camada computacional são normalmente planificadas e controladas
por grupos técnicos oficiais, acontecem de forma relativamente pre-
visível e autorizada por instâncias acadêmicas, dentro de práticas
objetivistas da tecnociência. Certos gêneros digitais, como os que
subjazem aos textos que circulam em um MUD, deixam mais evi-
dente, “a olho nu”, o processo de transcodificação cultural, em ambas
as direções. É por essa razão que utilizamos um desses gêneros para
desenvolver e ilustrar nosso argumento em favor de uma ampliação
do escopo de análise dos gêneros digitais em geral.

O mud e seus gêneros: transcodificação flagrada

A comunidade Valinor (como se autodenomina) é um portal que


dá suporte a alguns espaços3 de afinidade vinculados à temática das
obras literárias do autor J. R. R. Tolkien: fórum, chat, sites e projetos
menores, dentre os quais o jogo MUD Valinor. Cada um desses espa-
ços abriga um coletivo social de fãs do autor literário e do universo
narrativo transmidiático gerado pelas franquias O Senhor dos Anéis/O
Hobbit, da empresa Warner Bros Entertainment.

3 Aplicamos a nomenclatura distintiva “portal” e “espaço”, baseando-nos em James Paul Gee.


Consideramos um espaço de afinidade como um tipo de configuração social contemporânea, uma
forma de afiliação social, que possui e existe em torno de um conteúdo e da geração dele, nos
espaços de afinidade os indivíduos interagem com este conteúdo. Em contrapartida, um portal
é aquilo que dá ao indivíduo uma porta de acesso ao conteúdo e modos de interagir com ele ou
outros sujeitos (GEE, 2009). Para mais informações, ver PAULINO, 2012.

152
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Além de um jogo, o MUD Valinor é um projeto colaborativo


desenvolvido por jogadores produsuários (produsers), termo de Axel
Bruns para definir os sujeitos que consomem e produzem, simulta-
neamente, um determinado conteúdo (BRUNS, 2007).
A palavra MUD é a sigla para Multi-User Dungeon (ou Multi-
User Dimension), o MUD consiste em um jogo de RPG (Role Playing
Game) multiusuários em plataforma predominantemente textual.
A criação desse tipo de software é anterior à expansão da internet,
já que o programa foi desenvolvido em 1975 e popularizado por
Roy Trubshaw, um estudante da Universidade de Essex no Reino
Unido e criador de um MUD aperfeiçoado em 1978 sob este nome
(MURRAY, 2003). Sendo anterior à expansão digital, tal tipo de
jogo é o ancestral dos jogos massivos multiplayer atuais e, embora
tenha perdido público com a evolução de plataformas gráficas, ele
permanece como uma atividade apreciada por certos nichos da
cultura digital.
Um MUD é desenvolvido a partir de uma metáfora espacial
e composto por várias “áreas”, isto é, módulos ambientais que
estruturam a ação narrativa espacialmente: fortalezas, estradas,
castelos, cidades, campos, montanhas e afins. Essas áreas, por
sua vez, são formadas por três elementos básicos, que também
correspondem a gêneros digitais típicos do jogo: (1) salas pelas
quais os jogadores transitam, (2) objetos que podem ser utilizados
de muitas maneiras (roupas, armaduras, bebidas, armas, fogueiras
etc.) e (3) NPCs (Non-Player Charaters, móbiles), personagens
representados por agentes computacionais, com os quais os joga-
dores podem lutar, simular conversas, aprender lições ou de quem
podem adquirir objetos.

153
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 1 – Captura de tela do MUD Valinor, indicando como o jogador percebe salas,
objetos, NPCs e demais usuários.

A Figura 1 apresenta uma captura de tela, exibindo uma sala


do MUD Valinor, tal qual o jogador a vê. O jogo é composto por
diversas áreas interligadas. Áreas são definidas como conjuntos de
salas conectadas entre si, todas preenchidas com objetos e NPCS,
conforme o exemplo da captura.
A criação de uma área corresponde, na camada do software, à
gravação de um arquivo de área. Para criar esse arquivo, usa-se um
programa de interface amigável (como Area Editor) que gera, auto-
maticamente, o código correspondente, que poderá “rodar” como um
módulo do código geral do MUD. Este, por sua vez, está hospedado
em um servidor (código de base, codebase e engine são todos termos
aplicáveis). O código do MUD interpreta o arquivo de área e converte
os dados em um espaço dentro do jogo, utilizável pelos jogadores. Da
mesma forma, aos demais gêneros correspondem arquivos digitais
que são escritos de forma direta, via código, ou de forma semiautoma-
tizada, por editores próprios. Assim, as representações culturais dos
jogadores são modelizadas pelos atributos codificados no software e,
então, disponibilizadas como contexto da ação coletiva no jogo, agora
dentro de uma narrativa ficcional mestra.

154
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

MUD e dualidade: uma camada de fantasia sobre-


posta à representação numérica de linguagem C

Como já dito, as práticas dos usuários de um MUD constituem


um caso bastante propício à investigação sobre a transcodificação
cultural nos gêneros porque a prática de jogar MUD leva o usuário a
lidar explicitamente com a lógica computacional subjacente (o engine
Vsmaug) ao mesmo tempo em que age na camada cultural, que toma
forma de uma narrativa digital colaborativa de fantasia, baseada num
universo ficcional oriundo da literatura.

Figura 2: Convenções semiótico-sociais versus formas computacionais

Um exemplo de como essa dualidade constitui a prática é o


emprego, na comunidade de jogadores, dos conceitos de IC (In-
Charater) e OOC (Out-of-charater), isto é, respectivamente, “dentro do
personagem”, ou seja, na fantasia do jogo e “fora do personagem”, na
“vida real” do jogador. O sujeito-personagem que age no universo da
narrativa é um avatar controlado pelo usuário, um papel interpretado
e que progride naquele mundo virtual. O personagem é o produto
direto da imersão na fantasia do jogo e, ao mesmo tempo, o agente
que manipula parâmetros do software conforme o conjunto de regras
estocado no servidor.
O sujeito-jogador é aquele que coordena as ações e realiza a
manutenção do avatar em aspectos externos à narrativa: progredir

155
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

em níveis, aprender habilidades, usar comandos técnicos para inserir


descrições nas salas, customizar itens, sugerir alterações de jogabi-
lidade, reportar bugs e erros, entender como funciona a sintaxe do
programa e, dessa forma, compreende como pode usar isso a seu favor
na manutenção do avatar. Assim sendo, o sujeito-jogador interage
com a interface textual consciente de que seu desempenho depende
do conhecimento da camada de programação.
A porosidade entre IC e OOC transparece nas situações do jogo.
Por exemplo, o sujeito-personagem obtém uma espada mágica, tal
objeto é belo e temível, pois o texto descreve uma lâmina ornamentada
com diamantes. Porém, isso é apenas uma camada textual sedutora
que reflete propriedades digitais. O jogador sabe que a espada é apenas
um objeto do MUD e aplicará comandos para descobrir seus dados
mecânicos: quantos pontos de damroll?4 Quais valores de dano mí-
nimo e máximo? Quais magias o objeto lança e em qual quantidade?
Por quantos ticks?5 Está bugada?6 Ela é ofertada por alguma rotina
aleatória do programa do MUD? Com qual frequência? Enfim, para
o jogador, todos os atributos que dependem do engine do software
são tão importantes para a constituição da espada quanto a sua “co-
bertura” textual atraente.
Assim sendo, o jogador pode produzir o jogo e interagir com
ele cada vez mais vantajosamente conforme percebe o modo como a
mecânica do sistema, com lógica computacional, modeliza o universo
narrativo-ficional; ou seja, o jogador progride no jogo ao equilibrar-
se sobre a camada cultural devido à sua competência de leitor do
estrato computacional.

O gênero objeto e a transcodificação cultural

Em Silva (2012), aplicamos a concepção bakhtiniana de gênero


(BAKTHIN, 1979) para descrever treze gêneros específicos de MUD,
gerando uma tipologia sumarizada no Quadro 1. Como gêneros
4 Damroll: Valor em um jogo que indica a capacidade de dano que o jogador pode causar ao
oponente, durante um combate.
5 Ticks: Medida de tempo particular do jogo, composta por um intervalo que varia entre 45 e 75
segundos.
6 Bug: Comportamento equivocado, atípico ou imprevisto de um programa, que pode prejudicar
ou favorecer um jogador.

156
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

digitais, eles se constituem e processam suas funções vinculadas à


esfera de atividade no jogo, de maneira que esses tipos de enunciados
estão marcados por condições de produção específicas em sua forma
composicional, em seu conteúdo (temático), assim como por um estilo
característico, alcançado pela seleção consciente de recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais (BAKTHIN, 1979).
Apesar de os gêneros mudianos apresentarem pequenas dife-
renças na composição, eles compartilham uma unidade estilística:
há predomínio do modo indicativo; emprego usual do pronome de
tratamento você; pouco uso da tipologia textual injuntiva; predomí-
nio de tipologia descritiva e elevada adjetivação. Esses recursos de
estilo derivam da funcionalidade desses textos e de seu destinatário:
um jogador, tentando interpretar um personagem e imergir em uma
narrativa online.

Quadro 1 – quadro sinóptico de generos no mud “valinor”

Conteúdo Construção Tipologia


Gênero Estilo
temático composicional textual
Predomínio do modo
indicativo (presente).
Emprego do pronome
de tratamento ‘você’
(3°pes.).
Vocativos (ex: Caro
Título com as iniciais
aventureiro).
capitalizadas, exceto
Metáfora espa- O repúdio ao texto
nos conectivos. Descritivo;
cial, injuntivo gera uma
Sequência textual de Narrativo.
D e s c r i ç ã o d e modalização da fun-
Sala 1 parágrafo.
lugar, local am- ção conativa: o texto
Extensão de 200-800
bientado na apresenta sugestões,
caracteres.
temática. ressalta possibilidades,
sem usar ordem direta.
Eventual uso de ele-
mentos gráficos (co-
res).
Formatação justifica-
da.

157
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Descrição ‘curta’: tex-


Predomínio do modo
to não capitalizado.
indicativo (sobretudo
Sintagma nominal
presente).
(artigo + substantivo)
Uso elevado de adje-
Sintagma preposi-
tivação;
cional
Eventual emprego da
Descrição de um
2º pessoa do singular
objeto em parti- Descrição ‘longa’:
(você). Descritivo;
Objeto cular: material, Um enunciado com-
Uso em larga escala de Narrativo.
cor, qualidades, pleto declarativo ou
advérbios de contexto
origens, usos. exclamativo.
espacial.
(Opcional) Descrição
Formatação justifica-
extra:
da.
Sequência textual de
Uso de recursos grá-
1 paragráfo, com ex-
ficos (diagramação e
tensão entre 140 e
ascii art).
700 caracteres.
Predomínio do modo
indicativo (sobretudo
presente).
Uso elevado de adje-
Descrição da tivação.
aparência e ca- Uso elevado de expres- Uma sequência textu-
racterísticas psi- sões com conotação al de 1 parágrafo, com
NPC Descritivo.
cológicas de uma emocional. (como for- extensão entre 140 e
personagem do ma de humanização). 700 caracteres.
jogo. Eventual emprego da
2º pessoa do singular
(você).
Formatação justifica-
da.
Sequência textual de
Eventual emprego da 1 parágrafo;
Descrição da apa-
Campo 2º pessoa do singular Extensão até 4096
rência física da Descritivo.
Descrição (você). caracteres, mas ocor-
personagem.
re uma média de 400
caracteres.
Estrutura relativa-
Narrativa da his- mente aberta, mas em
Predomínio do preté-
tória da perso- geral é uma sequência
rito perfeito do indi-
nagem: origem, textual composta de
Biografia cativo, e imperfeito do Narrativo.
família, grandes introdução + desen-
subjuntivo.
feitos, traumas volvimento.
Tom memorialista.
etc. Extensão até 4096
caracteres.

158
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Sintagma nominal,
(artigo + substantivo
/ adjetivo),
Linguagem informal e
Título Um epíteto. Sintagma preposicio- Descritivo.
objetiva.
nal (prep. + nome)
Extensão até 50 ca-
racteres
Título (assunto).
M e n s ag e n s d e Informativo;
Destinatário (s).
usuários com: Linguagem informal, Argumenta-
Data.
Mural Avisos, anúncios, objetiva, em geral bus- tivo;
Sequência te xtual
debates, artigos cando concisão. Expositivo;
com um ou mais pa-
de opinião; Dissertativo.
rágrafos.
Remetente;
Uma mensagem
Destinatário; Informativo;
pessoal, privati-
Saudação; Argumenta-
va. Eventualmen-
Mudmail Linguagem informal. Sequência textual de tivo;
te mais formal,
até 4000 caracteres; Expositivo;
dependendo do
Despedida / assina- Narrativo.
interlocutor.
tura
Mensagem bre-
ve enviada pelo Uma breve sequência
Linguagem concisa,
servidor, customi- de dados estatísticos
objetiva.
zavél, reporta as- em formato textual,
PROMPT Diagramação e colo- Informativo.
pectos mecânicos em geral, alfanumé-
ração marcantes, cla-
da jogabilidade: rica, com média de 65
rificando a informação.
pontos de vida, caracteres.
“mana”, horário.
Linguagem informal, e
mais coloquial.
Pronomes de trata-
mento, como forma de
aproximação. Saudação / pedido
Alto índice de expres- de ajuda
sões emocionais, ou Palavras-chave que
ações de valor emo- desencadeiam uma
Diálogo com uma cional (visando a criar sequência textual.
personagem arti- uma ilusão de huma- Uma sequência tex- Argumenta-
Scripts de con- ficial, programa- nidade). tual curta entre 3 e tivo;
versação com da para interagir, Textos ambíguos, mais 200 caracteres que Injuntivo;
NPC responder e simu- abertos, genéricos, vi- fornece um gancho Narrativo;
lar comportamen- sando a menor chance para a próxima pa- Descritivo;
tos humanos. de incoerência. lavra-chave, dando Informativo.
Te x t o s n o s q u a i s prosseguimento ao
predominam função diálogo com novas
fática. Uso de meca- sequências textuais.
nismos de prosecução
do diálogo: perguntas,
ganchos informativos
para prosseguimento
da conversa, charadas.

159
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

A partir da concepção bakhitniana de gênero utilizada em Silva


(2012), compreendemos que características composicionais são in-
trínsecas e derivadas da situação de enunciação dos textos. No caso
dos sistemas informacionais e dos gêneros discursivos que circulam
dentro deles, tais características e até a dinâmica de comunicação
são justificados devido à utilidade ou limitações do software, agente
não humano que, de certa forma, também “enuncia” (faz circular)
tais gêneros.
Do mesmo modo que a situação comunicativa modela a lin-
guagem, o software integra a situação comunicativa, de tal forma
que no contexto informatizado, composição estrutural e estilo
passam obrigatoriamente pela constituição técnica do software.
Portanto, torna-se pouco proveitoso trabalhar a noção de gêne-
ro bakthianiana (investigando a composição estrutural, estilo,
circulação) e explicar seu funcionamento sem adentrar aspectos
técnicos do software.
Por exemplo, características de estilo como linguagem ambí-
gua/respostas genéricas, mecanismos de prossecução de diálogo
e uso de palavras-chave (ver o gênero script, no quadro 1) são
produtos diretos da incapacidade do computador em lidar com
contextos inesperados/variados. Isso ocorre porque programas
não possuem repertório semântico compatível com línguas na-
turais. Igualmente, a composição estrutural do gênero objeto, o
qual é alvo deste capítulo, é resultado direto de uma limitação do
software VSmaug, cujo parâmetro $J não possui comportamentos
para responder ao grande número de contrações preposicionais
existentes na linguagem natural.
No caso de gêneros digitais, a concepção bakhthiana nos
permite identificar características textuais de gêneros (até certo
ponto), todavia, é preciso uma perspectiva embasada na transcodi-
ficação cultural para sustentar uma análise do texto que o conecte
às práticas discursivas (integradas ao software), e tal conexão
exige perceber a vinculação entre o texto e a sua modelização por
formas computacionais.

160
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

O gênero mudiano OBJETO – revelando a trans-


codificação cultural

Além de oferecer a melhor exemplificação de transcodificação


cultural e participação do usuário consciente dessa relação, a seleção
do gênero objeto justifica-se por ser a sua constituição no nível da sin-
taxe computacional a mais rígida ao passo em que suas propriedades
funcionais são excelentes para construção de sentidos alternativos
aos previstos pelos criadores do jogo.
Nesta análise, fazemos menção às unidades estruturais de duas
sintaxes, uma pertence à camada linguística-cultural (sintaxe das
linguagens naturais); a outra pertence à camada computacional
(software, sintaxe das linguagens artificias). Todas as linguagens de
programação (Kobol, html, c++ etc.) possuem expressões, unidades
programadas e instruções que determinam a ordem e as combinações
possíveis para que um engine possa reconhecer e compilar (interpretar)
uma determinada instrução dada em outra linguagem compatível.
Assim como as linguagens naturais, as linguagens de computador
possuem unidades sintáticas de níveis diversos; por exemplo, os lexe-
mas são unidades de baixo nível e apresentam várias categorias como
identificadores, operadores, literais inteiros e elementos afins, que
são reconhecidos por símbolos chamados tokens (SEBESRA, 2011).
Embora linguagens de computador tenham regras formais vol-
tadas para a produção do sentido a partir de lógicas sequenciais, como
as têm as línguas naturais, é relevante destacar que computadores
são máquinas puramente sintáticas. Assim, embora haja semelhanças
entre os dois tipos de linguagem, que determinam a “porosidade”
entre as camadas técnica e cultural, são as diferenças que permitem
a transcodificação em si, isto é, permitem que, a partir de determi-
nada modelagem, o gênero evolua culturalmente pelo processo da
enunciação.
Quando falamos em “propriedades funcionais”, estamos nos
referindo às funções e às possibilidades de uso do “objeto” dentro
do jogo: um objeto pode ser lido e explorado, assim como uma sala.
Todavia, o objeto funciona para ser “vestido” e “carregado” pelo jo-
gador no seu modo de existência in-character;. também para fornecer

161
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

atributos, transmitir significados sobre o usuário, diferentemente do


que outros gêneros permitem realizar-se, tanto dentro da narrativa
do jogo quanto fora dela (NPC, biografia, sala, mural etc.).
O conteúdo temático do gênero objeto apresenta a descrição de
um item do jogo cujo uso é variado: o item pode destinar-se a uso do
jogador ou cenário (uma espada, uma árvore frutífera, uma cadeira
etc.). O conteúdo detalha sua cor, material, qualidades, origens e usos.
O estilo é semelhante aos demais gêneros mudianos, o texto é
informal e subjetivo, os recursos estilísticos incluem grande adjetiva-
ção, extenso uso de pronomes demonstrativos (esta, este, essa, esse)
e advérbios que rementem ao contexto espacial/temporal (aqui, já,
agora...). Nos demais gêneros mudianos, evita-se descrever ou pressu-
por emoções do leitor, pois isso atrapalha a imersão; porém, no gênero
objeto, há certa liberdade para descrever emoções do leitor, como
em: “Você fica maravilhado ao examinar esta exuberante espada.”.
Esses recursos de estilo refletem a dinâmica do jogo: o texto ex-
pressa a perspectiva do jogador, ele é um “herói” dentro de situações
que narram o contexto imediato experimentado.
A construção composicional constitui ponto importante, pois a
partir dela é possível visualizar a relação direta entre lógica compu-
tacional e interface textual. A composição do gênero objeto apresenta
três sequências textuais conhecidas como (a) descrição longa, (b)
descrição curta e (c) descrição extra.
Embora o software do jogo não suporte formatos avançados
de imagem (como GIF, JPG), é possível usar os caracteres do texto
verbal para forjar recursos gráficos em Ascii Arts, combinando na
estrutura com modalidade textual e imagética.
A descrição longa tem uma função de jogo restrita, ela é exibida
apenas quando o objeto está “jogado no chão”. Assim, a descrição
longa consiste em um enunciado completo exclamativo ou declarativo,
com extensão entre 30 e 120 caracteres. Uma descrição longa supe-
rior a 75 caracteres, contudo, gera quebra de linha, algo antiestético
na diagramação do jogo. Todavia subversões são possíveis, como se
vê na captura de tela abaixo com casos superiores a 75 caracteres ou
descrição de emoções do leitor.

162
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 3 – Como a descrição longa do gênero objeto aparece no jogo.

A descrição curta consiste em um sintagma nominal obriga-


toriamente composto de artigo + substantivo (por exemplo: uma
espada), podendo haver modificação por adição de mais sintagmas
preposicionais e adjetivais. (ex: uma espada de aço); a sua extensão
média varia entre 5 e 55 caracteres. A descrição curta é inserida em
diferentes aplicações no jogo: ações de pegar, usar, guardar, lançar, co-
mer, visualizar etc. Logo, a descrição curta deve ser versátil, de modo
que o sintagma possa ser inserido em diversas funções sintáticas
(sujeito, objeto direto, indireto, adjunto adverbial e afins) sem causar
equívocos na regência verbal e nominal, como se vê na Figura 4.
Para se encaixar em várias sequências sintáticas definidas pelo
programa, o formato do texto “objeto” deve ser simples, rígido e
destituído de detalhes que diminuiriam sua versatilidade: o artigo
inicial nunca é capitalizado (maiúscula); não se aceita pontuação (vír-
gula, ponto, ponto e vírgula); não se aceita bem códigos numéricos,
diagramação ou formatação fora de padrão.

163
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 4 – Descrição curta do gênero objeto contextualizada em sintaxes do jogo.

Ocorrem no jogo 32 comandos básicos para uso de objetos. Cada


um destes comandos executa uma função diferente no sistema, ou
seja, ele insere a descrição curta dentro de uma função diferente na
sintaxe da linguagem e da programação.

Quadro 2 - Padrões sintáticos e lexemas identificadores

Sintaxe Sintaxe com a descrição curta


$n arremessa $p em $v. Setzer arremessa um pedregulho em Seraph.
Setzer arremessa um pedregulho no ferreiro.
$n começa a esfregar $p em $N... Setzer começa a esfregar uma pomada em Hanya.
Setzer começa a esfregar uma pomada na bruxa.
Sn pegou $p de $j Hanya pegou uma boneca de um baú.
Hanya pegou uma boneca do armário.
Hanya pegou uma boneca da estante.
$n deu $p para $N. Darin deu um anel de ouro para Escamas da Noite.
$N dilacera $n com suas garras... Escamas da Noite dilacera Darin com suas garras...

164
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

$n tomba aflit$O aos pés de $r Darin tomba aflito aos pés do feiticeiro Saruman.
Hanya tomba aflita aos pés da bruxa.
$n acerta $R com um tremendo Darin acerta a Derinthuck com um tremendo
pontapé. pontapé.
Os ferimentos $R são suavizados Os ferimentos de Derithuck são suavizados por
por $n. Darin.

No Quadro 2, apresentamos alguns padrões sintáticos nos quais


a descrição curta é inserida no MUD. Os exemplos mostram que
a sintaxe computacional usa identificadores (tokens) que definem a
função sintática de cada descrição curta, tanto na computação quanto
na linguagem natural: dependendo do uso do jogador, a descrição
curta pode ser representada pelos lexemas identificadores $n, $p,
$v, $j, além de outros.
A partir do comando aplicado ao objeto (pegar, usar, comer...),
o engine interpreta diferentes tokens sintáticos computacionais visan-
do a construir regências e fazer contração preposicional na sintaxe
linguística. Portanto várias unidades da sintaxe computacional do
MUD foram criadas e adaptadas pelos programadores visando a
não ferir a sintaxe linguística. Isso explica a grande quantidade de
tokens sintáticos computacionais para identificar um mesmo elemento
(descrição curta): era necessário preservar a coesão e a coerência do
discurso IC na camada cultural7.
Além de nesses contextos, a descrição curta também é inserida
na aparência do personagem, e utilizada em contextos que listam
objetos de maneira resumida (dentro de uma bolsa ou no inventário
daquilo que o jogador está segurando).

7 O engine do MUD Valinor é o VSMAUG, um software para MUD em língua inglesa. Uma das
primeiras dificuldades da criação do jogo, em 2002, foi adaptar as sintaxes computacionais para
respeitar as regências da língua portuguesa, realizar contração preposicional, não ferir gênero,
número etc. O trabalho para produzir uma sintaxe computacional que produzisse um resultado
fluido na sintaxe da linguagem continuou a ser aperfeiçoado por anos.

165
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 4: Descrições curtas quando se olha para um personagem e mostra vestuário.

No gênero objeto, a estrutura composicional da descrição curta


(sintagma nominal composto por artigo + substantivo) é resultado
direto da limitação do software VSmaug em trabalhar com contrações
preposicionais. Enquanto a língua portuguesa (linguagem natural)
possui quase 80 contrações preposicionais, a linguagem computa-
cional do software Vsmaug está preparada somente para lidar com
parâmetro $j, o qual permite processar somente as contrações do>
de + o e da> de + a. Assim, sem analisar a modelização pela sintaxe
computacional, sua lógica e limitação, não podemos compreender as
possibilidades de enunciação previstas pelo programador, tampouco
o modo como essas previsões são subvertidas por jogadores criativos.

Figura 5: Descrição curta na listagem de objetos.

166
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

O último campo da estrutura composicional do gênero objeto é


a descrição extra. Ela tem caráter opcional e é exibida para o jogador
por meio do comando EXAMINE. A descrição extra é uma sequên-
cia textual de um parágrafo com extensão de 200 a 800 caracteres,
tipologia descritiva, aceitando os recursos gráficos já mencionados
(cores e ascii art).

Figura 6 – Descrição extra, misturando texto verbal com ascii art e cores.

O gênero objeto e o caso do coração de pedra

Como fica evidenciado pelo Quadro 2, uma matriz executada


pelo código do software do MUD condiciona quais criações são pos-
síveis no nível da interface textual, ou seja, surge a lógica sintática
computacional influenciando a lógica cultural do texto.
Assim, quando o jogador assimila a lógica computacional (o
algoritmo utilizado para exibir os dados), ele aprende a manipular a
interface (camada cultural de convenções textuais). O usuário com-
preende que a sintaxe do algoritmo sempre será Sn pegou $p de $j,
assim descobre meios para manipular e criar dados que por um lado
se encaixem nesse algoritmo do gênero textual, mas que por outro
transformem a convenção do gênero mudiano.
Tomemos como exemplo o caso do jogador Hikkyen. Nesse
caso, documentado junto com outros semelhantes por Silva (2012),
Hikkyen criou um item do gênero objeto, mas fez uma pequena mu-

167
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

dança na estrutura composicional do gênero, a fim de criar sentidos


novos quando a matriz técnica do jogo interagisse com o objeto.
O jogador valeu-se de um objeto do tipo container, “coração de
pedra”, cuja funcionalidade é acumular outros itens em seu interior. O
objeto era originalmente um portal extradimensional, utilizado para
estocar itens de jogo. Conforme expusemos anteriormente, a estrutu-
ra composicional do gênero objeto possui uma descrição longa, uma
descrição curta e uma descrição extra. Na descrição curta, o usuário
não inseriu um artigo, mas sim um pronome possessivo (“seu”):

Descrição curta nova= seu coração de pedra


Descrição longa nova= O coração de pedra de Hikkyen foi deixado por
ele aqui!
Descrição curta original= um portal extradimensional
Descrição longa original = Um ser poderoso esqueceu um portal extradi-
mensional aqui.
--- Descrição extra ---
Nome da ED: coracao coração pedra
Esse coração de pedra foi rusticamente esculpido, porém, polido com muito
esmero. Sua cor é vermelho-vivo, e ele esquenta em suas mãos, dando a im-
pressão de ter vida própria. Nota-se uma estranha luz que emana do interior
deste coração, e olhando dentro você percebe que seu interior abrange várias
dimensões. Apesar da aparência frágil, este coração é resistente como os
ossos da terra, sendo impossível de quebrar, e aparentemente de domar. Na
parte frontal foi entalhado um nome, &R”Hikkyen”&w. Talvez seja o dono
deste estranho coração!

Figura 7: Registro no servidor de objeto customizado

Pode parecer um detalhe mínimo no plano gramatical e, da


mesma forma, a alteração não interferiu causando um bug na rotina
computacional de controle do jogo; contudo, a substituição do arti-
go “um” pelo pronome possessivo “seu” resultou em uma alteração
importante de sentido nos contextos de uso do gênero objeto.
A invenção do jogador baseou-se na percepção do algoritmo
sintático do software VSMAUG. Para entender como o jogador
transformou um pequeno detalhe em ampliação de sentido, é preciso

168
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

investigar como o analisador sintático do MUD manipula os segmen-


tos textuais “descrição curta” em suas sintaxes.
Em uma linguagem de programação, há regras lexicais que de-
terminam um rol de combinações válidas de caracteres, reconhecíveis
pelo programa (que formam tokens), e há também regras sintáticas
do software que definem como os tokens podem ser combinados para
formar instruções válidas.
Um token é um segmento textual ou símbolo que pode ser mani-
pulado/ interpretado por um analisador sintático (nesse caso, o engine
do MUD). Para o software do jogo, o nome do avatar e a descrição
curta funcionam como tokens diferentes, sendo que a descrição curta
de um item assumirá a forma de tokens diversos, dependendo de sua
posição na sintaxe computacional.
Convém simplificar a explicação aplicando ao caso do MUD: a
sintaxe computacional para o comando GET (pegar) é $n pegou $p
de $j. Na linguagem de programação, essa sentença corresponde a
uma linha de programa e deve surgir com ordem e tokens específicos
em situações diferentes, de forma a ser interpretada/processada cor-
retamente pelo engine do jogo. Na sintaxe computacional, a descrição
curta do gênero objeto pode assumir a posição tanto de $p quanto
$j, pois ambos os tokens são para isso.
O analisador sintático do jogo está preparado para interagir com
tokens $p prefixados por artigos, inclusive masculino ou feminino,
fazendo a contração da/do, conforme exemplo:

$n Pegou $p DE $j
Darin Pegou uma espada uma sacola.
Darin Pegou uma espada DE o armário.
Darin Pegou uma espada DE a sacola

A saída do texto, após manipulação do analisador sintático com-


putacional para produzir sintaxe linguística, fica sendo:

169
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

• Darin pegou uma espada DE uma sacola.


• Darin pegou uma espada DO armário.
• Darin pegou uma espada DA sacola.

Nesse caso, como o $j do item “seu coração de pedra” não tem


prefixo masculino ou feminino, o programa não faz contração, apli-
cando a sintaxe de “um/uma” para o pronome possessivo SEU, a qual
funciona sem bugs, mas cria efeitos de sentido mais interessantes
para a ação GET. No caso do comando GET, a descrição curta “seu
coração” funcionará como $j, mas pode atuar como $p, ou inserir-se
na posição de vários outros tokens, dependendo do comando e sintaxe
GIVE, PUT, DROP, BURN, SPIT etc. Com isso, geram-se novas
possibilidades de sentido como, por exemplo em : “Hikkyen colocou
uma espada de ferro em seu coração de pedra” (dramático), “Hikkyen
deu seu coração de pedra para Kandake” (afetivo), “Hikkyen colocou
um cadeado de aço em seu coração de pedra” (simbólico) ou ainda
“Hikkyen colocou seu coração de pedra no cesto de lixo (cômico)”.
Os contextos de enunciação acima são somente os gerados pelos
comandos GET PUT, e GIVE. Considerando os outros 32 comandos
de interação com objetos, e os mais de 700 comandos sociais como
SPIT (ex: Hikkyen cuspiu em seu coração de pedra), a possibilidade
de gerar sentidos novos, que contornam a modelagem inicial do
programador é extensa.

Considerações finais

Resumindo nosso argumento neste capítulo, quando o jogador


começa a enxergar a lógica computacional e suas possibilidades, ele
pode forjar sentidos novos a nível textual, pode inclusive reestrutu-
rar um gênero digital, pois o formato do texto e as possibilidades de
sentido são influenciados por propiciações da programação.
A importância do exemplo, assim como a importância da discus-
são aqui desenvolvida, é destacar que o jogador percebe na relação de
coconstituição do gênero, pelas camadas cultural e computacional,
um espaço para agentividade que lhe permite ser mais do que um

170
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

“usuário disciplinado” tanto do sistema quanto de sua língua. Por


isso, defendemos que esse deve ser um modo privilegiado de trabalho
com gêneros digitais na formação dos sujeitos letrados, visando tanto
a espaços em que a transcodificação cultural é mais explicitamente
disponível à análise, como um MUD, quanto a outros espaços dis-
cursivos online, talvez até mais significativos em relação à formação
acadêmica e política dos cidadãos, e nos quais o processo de trans-
codificação não se deixa capturar tão imediatamente.
Finalmente, a noção de camadas cultural e computacional in-
tegradas é algo que transcende a escala de um MUD, e, conforme
Manovich, pode ser pensada para a sociedade como um todo, via o
conceito de “sociedade do software” (software society) (MANOVICH,
2013), pois é fato que vivemos em um mundo onde em lugar de clas-
sificar e separar o técnico do cultural, todo o movimento conduz a
conectar, integrar, verificar semelhanças, relacionar conhecimentos
culturais e funcionamento técnico, nesses dois campos isolados arti-
ficialmente por nossos discursos acadêmicos.

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Valinor. 2012. 205 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) _
Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2012.   

172
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Cidadania pós-social e encontros pós-


humanos: integrando sentido,
informação e emoção
Marcelo El Khouri Buzato

Introdução

O capitalismo pós-industrial global, apoiado em tecnologias da


informação e comunicação digital, tem propiciado transformações
na forma como as pessoas vivem e interagem quotidianamente nos
contextos ditos “locais”, transformações essas que parecem ocorrer
“sem sujeito” (HAY, 2002). Tais mudanças, embora mais claramen-
te explícitas nas práticas e ambientes de trabalho, lazer e educação,
atingem também as relações afetivas, o convívio intergeracional, a
participação cívica (ver SACHS neste volume), e o cuidado de si exer-
cido por cada um de nós. São transformações que, de modo geral,
simplificam e “otimizam” dinâmicas de inclusão e exclusão, que, sendo
desde sempre constitutivas do que chamamos de sociedade, agora
operam sob a lógica da (des)conexão (GARCÍA-CANCLINI, 2005).
Para os fins do presente capítulo, interessa-nos destacar, dentre
tais mudanças, o contínuo e sempre mais abrangente gerencia-
mento computacional das relações entre cidadãos e consumidores
e instituições privadas e estatais, nos mais variados domínios da
vida social. Mais ainda, interessa-nos notar que os cidadãos e con-
sumidores não só vão deixando de tomar a privacidade como um
valor democrático a ser defendido, como também parecem cada vez
mais “encantados” com uma falsa sensação de poder e liberdade
individuais (DELEUZE, 1992, BUZATO; SEVERO, 2010). Tal
sensação, penso, é engendrada, em parte, pelo acesso a uma “’visão
superior’ (God-like view) do mundo em que todos os tipos de in-

173
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

formação, envolvendo toda sorte de lugar, tornam-se nivelados em


equivalência” (MILLER, 2011, p. 66).
Esse parece ser um fator chave para a compreensão do hiperin-
dividualismo que nos caracteriza neste início de século, mudança de-
tectada por psicólogos e sociólogos já há tempos (KNORR-CETINA,
1997; TURKLE, 2012), a qual, mais recentemente, manifesta-se
visivelmente na crescente seletividade dos sujeitos em relação aos
encontros face a face que outrora caracterizavam o grosso de sua
atividade social, seletividade essa possibilitada pelas tecnologias que
nos permitem sustentar o que Miller (2012) chama de “presença
metafísica em rede”.
Nossa capacidade recém-adquirida de desvincular atenção subje-
tiva de presença corporal sem o recurso a fármacos ou rituais xamâ-
nicos nos dá a impressão de termos adquirido “poderes ontológicos”
pelos quais modelamos nossos pequenos mundos globais (KNORR-
CETINA, 2001). Nesses pequenos mundos, só têm existência efetiva
aqueles com os quais mantemos vínculos informacionais de alguma
natureza, e deles expulsamos, com um simples gesto de desconexão,
aquilo ou aqueles pelos quais não desejamos nos responsabilizar. O
‘nós’ a que me refiro aqui é, obviamente, apenas uma pequena parte
do assim chamado “Brasil emergente”, aquela parte urbana, conectada
à banda larga, e de certa forma sujeita a uma hiperconexão informa-
cional que vai moldando os eventos locais sempre em função de/ou
em relação com agentes remotos, situados materialmente em cantos
do mundo para os quais jamais viajaremos. Tal hiperconexão, argu-
mento, está ligada a uma certa tendência de “desresponsabilização”
pessoal e/ou local por parte das poucas pessoas com quem ainda
necessitamos conversar face a face para poder consumir ou demandar
serviços do Estado.
Não me refiro aqui ao temor local das repercussões de grandes
eventos mobilizadores de atenção “global” como o “bug do milênio”
na virada do século XXI, a crise financeira global de 2008, ou a
ação de redes internacionais de terrorismo, embora, é claro, o fato
de esses eventos irremediavelmente locais – do ponto de vista de
uns – tornarem-se globais – do ponto de vista do resto do mundo,
exemplifica, em grande escala, os “poderes ontológicos” que ima-

174
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

ginamos estar exercendo quando compartilhamos mensagens ou


“bloqueamos” alguém em rede social online. Tenho em mente, ao
contrário, eventos locais corriqueiros, mas causadores de pequenos
sofrimentos que vão se acumulando a ponto de tornarem as pessoas
muito infelizes. Por exemplo, as milhares de vezes em que alguém
abdica do horário do almoço para pagar uma conta no banco e não
consegue fazê-lo porque “o sistema caiu”, os milhares de idosos que
não conseguem alterar seu plano de TV a cabo ou de telefonia porque
não conseguem lidar com menus de voz e longos tempos de espera
na linha, ou os milhares de adolescentes inseguros que mandam uma
declaração de amor via WhatsApp e não sabem se a falta de resposta
é sinal de que seu amor não é correspondido ou de que o ser amado
está passando por um túnel...
Não se trata simplesmente de atribuir a “falta de iniciativa” ao
hiperindividualismo dos sujeitos locais, pois essas duas coisas, des-
responsabilização social e hiperindividualismo, são faces da mesma
moeda. Trata-se, isto sim, de entender que, numa sociedade hiper-
conectada, quando alguém decide tomar para si, ou para sua comu-
nidade, a responsabilidade de mudar determinado estado de coisas
local, isso certamente envolverá submeter-se aos mesmos sistemas e
protocolos de ação que estabeleceram as “condições de emergência”
do problema em primeiro lugar. Se o caixa do banco quiser receber a
conta “informalmente”, para ser gentil com o cliente faminto, perderá,
formalmente, a proteção contábil e legal que o sistema lhe fornece
perante o banqueiro. Se o idoso não sabe seu número de cadastro, a
atendente poderá tentar recuperá-lo, mas precisará de outro número
pertinente a outro cadastro que o identifique de maneira inequívoca
(seu CPF, seu número de telefone, seu RG etc.). Se os créditos do
celular acabaram justamente no momento de responder à tão aguar-
dada declaração de amor, a maneira mais fácil de obter mais créditos
é utilizando o próprio celular para comprá-los. Em suma, o sistema
nunca é só “nosso” ou só “deles”, ele é o que acontece enquanto algo
circula entre “nós” e “eles”. Já “nós” e “eles” somos o que somos
enquanto houver essas circulações, enquanto dispusermos dessas
conexões (LATOUR, 2012).
Da mesma forma como a escrita enquanto sistema informacio-
nal projetou sobre os agentes “locais” a suposta “impotência” dos

175
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

analfabetos, também a informática projeta sobre os seus usuários


um certo tipo de impotência. Não se trata mais, contudo, apenas da
necessidade de aprendizagem ou domínio de um código global para
que os agentes locais “tenham voz”. O caso agora é a necessidade de
oferecer ao sistema performances lógico-matemáticas cujos significados
estão muito além, ou muito aquém, de nossa capacidade cognitiva. Se
não pudermos realizar tais performances por algum motivo, não fica-
remos apenas sem voz, ficaremos destituídos de existência enquanto
agentes num simulacro de realidade modelado lógico-formalmente
(ZUNIGA, 2001).
A execução de processos lógico-formais é o único “simulacro de
compreensão” (Di FELIPPO, 2010) possível para um computador
hoje, não importa o quanto saibamos sobre linguística, psicologia ou
engenharia. Da realidade pragmática fora dele, dos objetos no mun-
do aos quais as línguas e outros sistemas semióticos nos permitem
referir, o computador nada pode saber de fato. É por isso exatamente
que, a despeito de todo o esforço dos seus engenheiros e progra-
madores, o computador costuma ignorar alguns de nossos deslizes
mais retumbantes e, ao mesmo tempo, condenar pequenos desvios
de forma que seria mais correto socialmente ignorar-se. Quem já
não se aborreceu com o corretor ortográfico do seu smartphone ou do
seu software processador de texto por isso? Paradoxalmente, é cada
vez maior a possibilidade de manifestarmos nossa própria agência
metafisicamente, de forma distribuída e incorpórea, porém mediada
por esses simulacros de compreensão. Isso parece ser o que nos define
como seres humanos e sociais hoje.

Materialidade, moralidade e engenharia


de nós mesmos

A ascensão da presença metafísica em rede como nosso modo


preferencial de ser e estar perante o outro tem despertado reações
extremadas, algumas utópicas, outras distópicas.
Na versão utópica, estaríamos experimentando uma espécie
de “liberação existencial”, rumo à superação de nossa finitude em
vários sentidos, desde a extensão de nossos corpos biológicos por

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Cultura digital e linguística aplicada:
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meio de próteses as mais variadas, até a superação da inexorabilidade


da morte, pelo reimplante de nossos conteúdos subjetivos em subs-
tratos de duração indefinida (PTOLOMEU et al., 2011)1. Trata-se,
em síntese, de buscar-se uma nova condição humana, na qual assu-
miríamos o controle de nossos próprios mecanismos evolucionários
(BOLSTRON, 2003).
Já na versão distópica, o que está havendo é uma “crise de pre-
sença“ (a crisis of presence) (MILLER, 2012) que acelera e explicita
o processo de falência do conceito “moderno” de sociedade que nos
trouxe até aqui, isto é, a imaginação socioógica baseada na distinção
entre sujeito e objeto, e na exclusividade humana da agência e do
protagonismo sociais. Estaríamos, portanto, não apenas nos tornando
hiperindividualistas, mas também, antissociais. Miller (2012) destaca,
como evidência dessa transição, certas práticas sociodiscursivas tais
como o flaming, o trolling, e a porn revange, práticas essas que, em boa
parte das vezes, causam sofrimento emocional comparável, senão
superior, ao causado por comportamentos antissociais offline. A esses
exemplos poderíamos acrescentar certos clichês contemporâneos
como a imagem de uma mesa de bar em que os convivas dão mais
atenção às telas dos seus respectivos smartphones do que às pessoas
presentes fisicamente ao seu lado, ou então a “praga” das selfies que
interrompem a todo momento a experiência do aqui e agora para
fabricar seu fantasma ali outrora.
Independentemente de qual das versões o leitor prefira, a “crise
da presença” evidencia um fato para o qual Latour (1992), e também
Latour e Venn (2002) já chamavam a atenção muito antes da revolu-
ção digital: não se pode desvincular ordenamentos éticos/morais das
redes sociotécnicas que os medeiam. Tecnologias não são artefatos
neutros moralmente, nem pelo viés dos usos que lhes damos, nem
pelo dos programas de ação que elas nos impõem em amplas escalas
de tempo e espaço.
Tal qual enunciados deônticos encadeados entre si, agentes hu-
manos e não humanos enredados sociotecnicamente constrangem,
desviam ou estabilizam programas de ação uns dos outros (LATOUR,
1 São muitos os blockbusters holiudianos que difundem tais ideias neste início de século XXI,
dentre os quais o que melhor explicita a utopia transhumanista talvez seja "Transcendence: A
Revolução" (PFEISTER, 2014.)

177
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

1992). Para tomar um exemplo do próprio autor, como poderia um


pai cumprir o imperativo moral de proteger a integridade física de
seu filho menor de idade e, ao mesmo tempo, dirigir um automóvel
para levar a criança à escola diariamente se não pela mediação de
um cinto de segurança ou outro dispositivo do tipo? Como justificar
eticamente que o Estado multe alguém por dirigir sem usar o cinto
senão porque o cinto poupa leitos de hospital para todos nós? Se
é certo que as tecnologias exercem a microfísica que nos mantém
dóceis e disciplinados, nós também as usamos como delegados ou
porta-vozes éticos e morais, dividimos com elas, ou delegamos a elas,
em alguns casos, nossa responsabilidade para com o outro e as do
outro para conosco.
Entre a crise da presença e a engenharia de nós mesmos, o que
parece ser novo é que nos tornamos agentes éticos/morais não apenas
numa escala interindividual ou intersubjetiva, mas também numa
escala intraindividual, por assim dizer, que nos permite (ou nos im-
põe?) uma (suposta) desvinculação entre corpo (emoção) e cognição
(sentido) pelo “bisturi metafísico” da informação2. O hiperindividua-
lismo, neste caso, não seria a expressão do fim da rede ética que nos
conecta com os outros, mas fruto de um exercício de coletivização
e fragmentação de nossa própria subjetividade pelo qual sujeito e
objeto passam a ser categorias não dicotômicas. O que significaria
ser ético/moral, nesse caso?

O pós-social e o pós-humano

Karen Knorr-Cetina (2005) define a pós-sociedade como um


processo de transição para um novo tipo de agregação social em que
objetos passam a substituir outros seres humanos enquanto parceiros
e enquanto contexto. Dito de outra forma, trata-se da passagem de
2 Tendo em vista a proposta interdisciplinar que orienta este trabalho, utilizo aqui a noção de
informação utilizada pelas Ciências da Computação, isto é, não a concepção usual no campo
dos estudos da linguagem, em que informação corresponde a “conteúdos relevantes” para a
produção de conhecimento por um agente, ou mesmo um estímulo sensorial que afeta processos
cognitivos, mas informação definida em relação ao conceito físico de entropia, pela assim cha-
mada Teoria Matemática da Comunicação (SHANNON; WEAVER, 1998), isto é, informação
como uma medida da liberdade de escolha envolvida na produção de uma mensagem. Como
consequência dessa definição, tem-se que o que pode ser entendido como informação é algo que
possui regularidade, que se distingue do acaso, entendido, por sua vez, como ruído.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

uma sociedade concebida como efeito global de infindáveis microin-


terações entre sujeitos humanos, por outra em que há reciprocidade
entre sujeitos (humanos) e objetos (não humanos), isto é, um social
feito crescentemente de relações interobjetivas.
Para que essa postulação faça sentido, há que se notar que os
objetos de que fala a autora não são toda e qualquer coisa no mundo,
mas os ditos “objetos epistêmicos” (knowledge objects) – em especial
dispositivos e sistemas de informação computacionais presentes nos
ambientes de trabalho, estudo, lazer e residência no ocidente pós-
industrial. Diferentemente de outros tipos de objeto que participam
do social enquanto mercadorias e/ou artefatos, os objetos epistêmicos
são produtos de culturas epistêmicas (knowledge cultures), são objetos
capazes de desdobrarem-se infinitamente, tal como o objeto de pes-
quisa do cientista, que vai se tornando mais e mais especializado, ou
como a inovação construída pelo engenheiro, que se desdobra em ou-
tros problemas imediatamente após resolver um problema anterior. O
argumento de Knorr-Cetina é que há entre as pessoas e esses objetos
um alto grau de reciprocidade, sendo reciprocidade a matéria-prima
do social em última análise. Mais especificamente, trata-se de uma
reciprocidade afetivo-cognitiva pela qual o desdobramento do objeto
alimenta nosso desejo de ser e de saber.
Justamente porque as relações sociais que nos definem como
atores sociais são claramente cada vez mais interobjetivas, tam-
bém a visão de ser humano que orienta boa parte do pensamento
sociológico pode ser revista. Em vez do sujeito liberal humanista,
o indivíduo atomizado, puramente biológico, racional e autossufi-
ciente de que falamos usualmente, o sujeito pós-social é, em alguma
medida, também um ser pós-humano, um ser “tecnologicamente
(e biologicamente) melhorado, cognitivamente distribuído e emo-
cionalmente fragmentado”, melhor entendido como “presença ‘es-
trutural’ e ‘nó’ [de uma rede heterogênea]” ou ainda como “uma
região densa onde as coisas se cruzam e, até certo ponto, convergem
“ (KNORR-CETINA, 2001, p. 525).
A pergunta que norteia as seções seguintes do presente capítulo
é, basicamente, a de como, em vista desse cenário, devemos ou pode-
mos estudar os usos “situados” da linguagem nas diversas formas de

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

interação que constituem a vida social das pessoas hoje. Defendo que
tal pergunta é crucial para uma agenda de pesquisa em linguagem,
tecnologia e sociedade no século XXI.

Cidadania aumentada e ética interobjetiva

Quero utilizar o conceito de cidadania, nesta reflexão, de um


modo muito peculiar, basicamente focalizando o pós-social e o pós-
humano e tomando de modo muito tangencial, embora respeitoso, a
noção cidadania como um conjunto de direitos, ou sob o prisma da
tensão entre tais direitos e diferentes identidades culturais/indivi-
duais (REIS, 1997). Sem adentrar certos debates acerca da relação
entre tecnologia e cidadania, debates tais como o da atribuição de
direitos civis/legais às florestas ou aos embriões conservados em
laboratórios de pesquisa, proponho pensarmos em uma cidadania
pós-social como um tipo de relação entre local e global que pere-
niza encontros éticos entre atores sociais que se desdobram como
redes no tempo e no espaço, tanto física quanto metafisicamente.
Falo, portanto, do que, metaforicamente, se possa considerar uma
“cidadania aumentada”, a qual estaria para a cidadania “tradicional”,
assim como o que chamamos de “realidade aumentada” está para a
“realidade virtual”.
Explicando melhor, Azuma (1997) argumenta que as tecno-
logias de realidade virtual produzem um ambiente sintético, isto
é, um ambiente que inevitavelmente reduz o mundo material a um
conjunto de sinais informacionais que, traduzidos em estímulos
sensoriais precisamente calculados, manipulam nossa “maquina-
ria” neurológica de modo a produzir no usuário uma “sensação” de
imersão corporal. Da mesma forma, pensar a cidadania enquanto
conjunto de direitos é, de algum modo, virtualizá-la, de modo a
criar um “ambiente jurídico”, mediante uma certa “maquinaria”
discursiva/institucional. Já a realidade aumentada, conforme o
mesmo autor, funciona suplementando informacionalmente a “re-
alidade” material na qual o corpo do usuário está imerso, em lugar
de reduzi-la. A analogia, neste caso, seria com a possibilidade de
uma “cidadania metafísica em rede”, pela qual o sujeito dos direitos

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

de cidadania ganhará, em vez de perder, possibilidades de exercê-la


a despeito de certas limitações materiais.
Pensar cidadania em termos de presença metafísica em rede não
é tarefa trivial, pois como habitantes de estados-nações, tendemos a
vê-la como algo vinculado “naturalmente” a um território, ao espaço
da Polis, por assim dizer. Isso porque, além de servir como abrigo à
hostilidade dos outros (humanos ou não humanos), o território deli-
mitado implica organização das circulações dos corpos, o que induz
o encontro face a face entre os cidadãos e, por conseguinte, renova
as ocasiões em que se pode/deve tratar do que é comum a todos. No
entanto, a presença metafísica em rede nos permite um certo tipo de
circulação que, por ser metafísica, não coaduna com uma cidadania
constantemente atualizada no corpo a corpo.
Miller (2012) aborda essa questão brilhantemente ao invocar a
relação entre encontros éticos (cidadãos) e espacialidade a partir de
uma concepção de base fenomenológica, proposta por Lévinas (1969).
Na concepção levinasiana, os encontros face a face são “o nascedouro”
da ética enquanto relação intersubjetiva, porque o contato dos olhares
entre os sujeitos gera, inevitavelmente, uma sensação pré-cognitiva
de responsabilidade, isto é, demanda de cada um dos sujeitos algum
tipo de resposta.
Parece relativamente óbvio que a concepção Levinasiana de
ética acarreta a necessidade da copresença física nos encontros entre
os sujeitos. Contudo, como explica Bergo (2008), o que o filósofo
pretendeu não foi defender a necessidade de delimitação espacial ao
que é físico, mas a inevitabilidade do sentimento ético, isto é, o fato
de que a ética se estabelece em “um continuum de sensibilidade e
afetividade, em outras palavras, senciência e emoção em sua interco-
nexão” (BERGO, 2008, s.p.). Daí podermos supor, tendo como base
grande parte nossos encontros metafísicos quotidianos, que também
um encontro à distância, mediado tecnologicamente, pode ser ético,
desde que tal mediação permita aos participantes estabelecerem o
referido continuum sensibilidade (senciência) e afetividade (emoção).
Não seria descabido acrescentar que esse continuum será tão mais
facilmente estabelecido quanto maior for o grau de “implicação da
corporeidade” dos participantes no plano de expressão da mensagem

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

(LÈVY, 1999, p,82-3)3, por exemplo, quando se conversa por telefone


ou videoconferência, em comparação com quando se troca emails ou
mensagens de SMS. O fundamento dessa relação entre implicação
do corpo, afetividade e expressão semiótica, por sua vez, é dado
por Damásio (2000), cujos estudos neurológicos e neurocientíficos
mostram que “a alma respira através do corpo, e o sofrimento, quer
comece no corpo ou numa imagem mental, acontece na carne” (p. 18).
Em síntese, até onde se possa considerar válida a concepção
de cidadania tal qual a proponho aqui, os encontros pós-humanos e
pós-sociais que nos definem como sujeitos éticos que compartilham
o mesmo mundo material e responsabilizam-se uns pelos outros
devem ser vistos como conexões. Essas, por sua vez, se estabelecem
ou se rompem conforme o funcionamento de circuitos de informa-
ção, emoção e sentido. Assim, a “cidadania aumentada” de que falo
tem que ser pensada não apenas do ponto de vista de (i) as conexões
semiótico-discursivas (intersubjetivas) em que o sentido é produzido
conforme encadeamos palavras, imagens e sons, como é usual nas
sociedades democráticas modernas, como também dos pontos de
vista (ii) das conexões materiais (interobjetivas e/ou sensíveis) em
que o sentimento ético pré-cognitivo é produzido conforme encade-
amos pessoas e coisas entre si e umas com as outras, e ainda, (iii) das
conexões informacionais que tanto podem reduzir como suplementar
os dois tipos de conexões anteriores.
Tendo encerrado a seção anterior com a pergunta sobre como
estudar os usos “situados” da linguagem por um viés pós-social e
pós-humano, coloco aqui, como resposta provisória4, que devemos
fazê-lo integrando semióticas de pelo menos dois tipos: uma ou mais
semióticas dos signos/do discurso e uma semiótica material, do tipo
Teoria Ator-Rede (LAW, 2008). O que apresento, a seguir, é um pe-
queno exercício ilustrativo, que não tem pretensão outra senão a de
tornar um pouco mais tangível e “situada” tal proposta.

3 De alguma forma estou aqui tangenciando o conceito de interatividade tal qual problematizado
por LEVÝ (1999, p. 82-3), porém, enquanto o conceito de interatividade serve basicamente
para especificar propriedades de um meio, o que pretendo, ao falar em implicação do corpo do
falante, pela voz ou pela imagem, é especificar a qualidade sensível (pré-cognitiva) do encontro
propiciado.
4 Este capítulo precede em algumas semanas o início de um projeto de pós-doutorado voltado para
um aprofundamento teórico-metodológico da proposta (BUZATO, 2015).

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Um exercício especulativo

Este exercício começa com uma vinheta que descreve, em três


atos, um episódio policial verídico, e foi montada a partir de um diá-
rio escrito produzido pela vítima como forma de “desabafo” e como
precaução para um possível futuro acionamento da justiça em busca
de reparação por danos morais. São dados puramente anedóticos,
fortemente carregados de apreciações subjetivas e certamente bas-
tante parciais, mas nem por isso inverossímeis. Os nomes, locais e
algumas circunstâncias específicas foram modificados para proteger
o anonimato dos envolvidos.

PRIMEIRO ATO
São 22h30 de uma segunda-feira. A vítima está na sala de sua casa, na zona
rural de uma cidade do interior paulista. Entretido pelos emails profissionais
que respondia naquele momento, demora-se a notar o toque metálico e frio
de um revólver em sua têmpora direita. Seu grito de pavor, impossível de
evitar, é contido pela mão cheirando a droga do ladrão que se comporta
como líder da dupla que invadira a casa. Entre insultos e ameaças, a vítima
é obrigada a deitar-se no chão, de bruços: “Se olhar pra mim de novo eu te
mato, seu arrombado!”, diz o líder. A precaução parece exagerada, pensa
a vítima, já que ambos os ladrões têm camisetas sobre o rosto, deixando à
mostra apenas seus olhos. “Pelo amor de Deus, moço, leva tudo, mas não
me mata que eu tenho uma filha pra criar”, suplica a vítima. “Pensa que só
você é que tem filho pra criar, playboy de merda?”, retruca ladrão, “Cadê o
cofre, cadê os dólares, hein? Não tem uma roupa de marca não, seu bosta?
Fala se não eu vou te matar, já falei!”.

Sob a mira do revólver, a vítima assina três cheques em branco e anota a


senha do seu cartão bancário num pedaço de papel. O segundo ladrão, a
essa altura, já acomoda tudo o que havia de valor na casa dentro do carro
da própria vítima, enquanto o líder amordaça a vítima e a amarra à sua
própria cama, trancando o quarto. “Fica na sua pelo menos umas duas horas,
entendeu? Fica de boa aí que já vai acabar. Faz silêncio, não tenta sair, que
tem um parceiro nosso aí fora te vigiando. Seu carro você vai achar daqui
a uns dias. Mas não chama a polícia, seu vacilão, se não vai ficar ruim pra
você, copiou?”, são as palavras finais do líder.

183
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Alguns minutos após o ronco do motor se tornar inaudível, a vítima aposta que
não havia de fato um terceiro ladrão, consegue desatar as mãos com os dentes,
e sai correndo pela estrada vicinal, em total escuridão, em busca de ajuda.

SEGUNDO ATO
Tendo explicado a situação aos gritos, a vítima pede o celular emprestado
à vizinha e chama a polícia. O celular não tem créditos, mas, por obrigação
legal, a operadora completa a ligação para 190. Com a polícia a caminho,
a vítima se acalma e começa a pensar sobre que medidas precisa tomar:
cancelar a linha do próprio telefone celular, mudar a senha do cartão do
banco, sustar os cheques, conseguir um meio de locomoção para ir fazer o
boletim de ocorrência que, a vítima sabe, será exigido pela seguradora do
automóvel, pelo banco, pela operadora telefônica e até pelas vítimas do uso
indevido dos seus cheques assinados.

Como o celular sem créditos é inútil em todos esses casos, a vítima sai
correndo novamente pela estrada vicinal até a casa de outro vizinho, um
jovem estudante cujo celular, também pré-pago, tem créditos suficientes
para apenas mais uma ligação. A vítima então liga a cobrar para um irmão
que reside em outra cidade, dizendo “sou eu, mano, sou eu” em voz alta ao
ouvir o tanã-tananã-tananã que anuncia a ligação a cobrar. Por sorte, e por
ter reconhecido a voz da vítima, o irmão aceita a ligação interurbana e, após
explicações, deposita cinquenta reais em créditos para o telefone do vizinho,
usando o aplicativo de home banking do próprio celular.”Fica calmo”, diz
o irmão, “o importante é que você está bem, podiam ter te matado”. “Que
bom é ter um irmão nessas horas!”, diz a vítima ao vizinho, que a essa altura
havia conseguido o telefone do banco em que, por sorte, ele também tinha
conta. “Que bom que ele tem cinquenta reais pra te emprestar, né? ” retruca
o estudante, numa tentativa malsucedida de aliviar a tensão.

O telefone do banco é um 0800. “Que burro, não precisava dos créditos,


afinal!”, lamenta a vitima. É claro, eles sabem que a pessoa provavelmente foi
assaltada, né?”, conclui o vizinho, enquanto a vítima circula todo o perímetro
da casa buscando o tracinho indicador de sinal no celular do vizinho, que
havia sumido, por alguma razão. Uma voz feminina, porém algo artificial,
atende, já informando que “Este número recebe apenas ligações de telefone
fixo. Para uso de telefone celular, ligue para <número pago>”. Repetindo
os números em voz alta para si mesmo, por medo de esquecê-los, a vítima
refaz a ligação, agradecendo ao universo, outra vez, pela existência do irmão.
“Bem-vindo ao Banco <nome de um banco muito grande e tradicional>. Por
favor, tecle o número de sua agência, substituindo o ‘x’ pelo zero quando
houver”, diz a voz. A vítima tecla cinco números, mas, no escuro, usando um
telefone com cuja interface não está habituada, comete um erro. “Informação

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Cultura digital e linguística aplicada:
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incorreta”, avisa a porta-voz do sistema. “Por favor, tecle o número de sua


agência, substituindo o ‘x’ pelo zero quando houver”. A vítima agora tecla
o número correto, pensando consigo mesmo onde os ladrões já estariam
com seu cartão àquela altura, quase meia hora após o roubo. “Tecle o nú-
mero de sua conta, substituindo o ‘x’ pelo zero quando houver”, continua
a voz. “Tecle sua senha de seis dígitos, a mesma utilizada no terminal de
autoatendimento”, acrescenta, sendo imediatamente atendida. “Por favor,
aguarde um momento. Seu saldo é de <valor do saldo>, devedor”, diz a voz.
“Que ótimo”, desabafa a vítima com o vizinho, “em vez de me deixar cancelar
logo o cartão, me contam bem devagar o quanto os ladrões já conseguiram
gastar com minha senha, os filhos da...”. “Normal”, interrompe o estudante,
“assim já fica registrado que, até chegar nesse valor, eles não sabiam de nada,
e, portanto, quem perdeu o dinheiro foi você, e não o banco, né? Banco é
fogo, meu amigo, já dizia Brecht!”.

A voz oferece, finalmente, as opções de serviço, dentre as quais a vítima


tenta localizar a que permitirá cancelar o cartão: “Cartão de crédito, de
débito e cartão pré-pago, tecle um. Saldo e lançamentos na sua conta, tecle
dois. Transferências, tecle três. Pagamentos, tecle quatro. Empréstimos e
financiamentos, tecle cinco. Aplicações e resgates, tecle seis. Outros serviços
e produtos, tecle oito”. “Deve ser a opção 1”, pensa a vítima, erroneamente.

De fato, pode-se fazer praticamente tudo que diz respeito a cartões nas
opções subordinadas à opção 1, exceto comunicar um roubo. “Deve ser nos
outros serviços, então”. “Oito”, diz a voz, confirmando a opção digitada, e
então “para consórcio, tecle um, crediário, tecle dois, beneficiário do INSS,
tecle três, consulta de ordem de pagamento do exterior, tecle quatro, para
comércio exterior, tecle cinco, consulta e restituição de imposto de renda,
tecle seis ...”.

O vizinho avisa que os créditos já devem estar acabando novamente, já que a


ligação é para fixo, muito mais cara, no plano dele. A vítima desespera-se. O
vizinho tenta ligar, dessa vez, mas logo é interrompido por policiais, trazidos
pela primeira vizinha. Um deles, barrigudo, com cara de sono e beirando a
aposentadoria, traz nas mãos uma prancheta. Tem pressa em voltar à casa
da vítima e fazer o registro da ocorrência. O vizinho explica o problema do
cancelamento do cartão, enquanto a vítima atende a ligação do irmão, que
quer saber sobre o cartão. O segundo policial, que até então está quieto,
dentro da viatura, resolve intervir: “o senhor não precisa digitar o número
da conta nem a senha para bloquear o cartão!”. “Então o senhor diz isso
pra essa vagabunda aqui, seu guarda!”, dispara a vítima, alterada. “Como o
senhor é da polícia, quem sabe ela diz como é que faz pra cancelar essa m...
de cartão!”. O policial avisa que a vítima não deve se alterar e explica: “É só
não digitar a senha, que daí entra a opção de comunicar o roubo, entendeu?”.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

A vítima liga novamente e compreende, perplexa, que se apressara em fazer


o que a voz pedia, das outras vezes, sem esperar pela segunda oração do
período “para cancelar um cartão perdido ou furtado, permaneça na linha”.
Alguém tropeçara na hora de conciliar a arquitetura do discurso com as
arquiteturas da informação e da navegação no sistema. Dois imperativos
no mesmo período. Dois links unidirecionais para opções distintas. “ Se
fosse por escrito”, pensa a vítima, enquanto o policial barrigudo preenche
seu formulário, “eu teria ‘visto’ a segunda opção. Mas é falado! Será que foi
isso? Será que algum ‘gênio’ escreveu um roteiro de atendimento e não se
deu conta de que seria ouvido e não lido? Não, não pode ser, deve ser para
filtrar os casos em que o cliente desejar apenas saber o saldo de sua conta
rapidinho, justamente porque ele tem que pagar a ligação. Então foi com
boa intenção. Mas e se foi negligência? Talvez, burrice. Talvez, falta de
experiência. Talvez alguém do marketing tenha mudado alguma decisão de
alguém da análise de sistemas ou vice-versa. Nesse caso a culpa é de quem?
Seja o que for, pra conseguir que o sistema faça o que eu preciso que ele faça,
eu tenho que não fazer o que ele diz que precisa que eu faça! Isso é que é o
Brasil!”, lamentou mentalmente5.

O policial agora pede que a vítima assine o formulário preenchido com todos
os detalhes do ocorrido, inclusive a lista dos pertences roubados. “Que bom!
Então esse já é o BO, né?”, diz o amigo da vítima, avisado da necessidade pelo
vizinho estudante, a partir do back up, na nuvem, dos contatos do celular
da vítima, que a essa altura já não se importava em dividir sua senha com
o vizinho. “Não senhor”, responde o policial, “esse é nosso. O seu o senhor
tem que fazer no distrito mais próximo. Mas pode esperar até 48 horas”.

São três horas da manhã, agora, e o amigo, que precisa acordar cedo no dia
seguinte, evita olhar para a vítima. Esta, mesmo assim, entende que o melhor
é ir dormir na casa do amigo. Na manhã seguinte, a vítima vai à delegacia
e registra a ocorrência. Alertado pela gerente do banco, leva consigo um
extrato para comprovar o uso do cartão e a sustação dos cheques.

TERCEIRO ATO
Um dos investigadores pede para olhar o extrato e, examinan-
do-o com atenção, sorri, pois o sistema do banco registra os
horários e números de terminais de caixa em que os cartões
de débito e crédito são utilizados. Solicitando os arquivos em
vídeo da vigilância do supermercado, a polícia chega a dois

5 À época em que preparava este capítulo, repeti passo a passo todos os procedimentos aqui rela-
tados e constatei, com alívio, que a ordem dos imperativos foi trocada. O fato de que o policial
sabia do problema, contudo, sugere que muitas outras vítimas de furto ou perda de cartão devam
ter passado pelo mesmo tipo de sofrimento físico e constrangimento moral.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

suspeitos, que a vítima é chamada, na semana seguinte, para


reconhecer. Vendo os homens perfilados e algemados através
de uma fresta improvisada na porta da cozinha da delegacia, a
vítima meneia a cabeça. “Não senhor, eu estaria mentindo se
dissesse que os reconheço”, diz a vítima, “até porque, doutor,
eles estavam com os rostos cobertos, e eu de cara no chão,
como está no BO, né?”. “Não seja por isso”, diz o delegado,
“o que importa é o que o senhor disser agora, entendeu?”.

A vítima entende perfeitamente o recado: aí está sua oportu-


nidade de retribuir aos ladrões, em alguma medida, a violência
que sofrera. A vítima pensa por um instante, mas confirma sua
posição: “Não reconheço mesmo, doutor, me desculpe, viu?
Se eu puder ajudar de outra forma...”. “Pode sim”, diz uma
investigadora com quem a vítima já havia conversado no dia
da confecção do boletim de ocorrência. “Veja este aparelho de
Blue Ray que achamos na casa de um deles. É seu, não é?”,
pergunta a moça alta, atlética, com a roupa amassada, e olheiras
indisfarçáveis. A vítima examina o aparelho por um momento
e nota que aquele é, de fato, da mesma marca, cor e modelo do
seu aparelho. “Pode ser, policial, mas pode não ser, né? Quantos
dessa marca e modelo existem?”, argumenta a vítima. “Só se
eu for atrás da nota fiscal, mas eu nunca guardo essas coisas”.
“Olhe com bastante calma, por favor”, pede a policial, forçando-
se a sorrir de um modo tão artificial quanto soara a voz do
sistema bancário, mas olhando a vítima direta e fixamente nos
olhos. “Nós temos certeza que foram eles... o mais novinho já
confessou, mas tá com medo de dedurar o mais velho, entendeu,
<primeiro nome da vítima>? Posso te chamar de <primeiro
nome da vítima>, né?”. “Entendi sim, e agradeço muito seu
esforço”, diz a vítima, um pouco tensa, “mas, veja, a marca e o
modelo são só uma forma, uma informação, né? Como eu vou
saber se esse aparelho que está aqui é o meu aparelho mesmo?”.
“E como vai saber se não é?”, replica a policial.

Organizo a análise que se segue tendo como critério recortes


temáticos e, dentro de cada recorte, recorro às “lentes” de uma se-
miótica específica (escolhida entre outras possíveis) ou da semiótica
material, conforme interesse compreender como o que dizem os
agentes envolvidos produz sentidos ou, então, como o que fazem
sustenta a existência de algo. Ao final, reflito brevemente sobre o
significado dos resultados do exercício.

187
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Prática discursiva versus prática ontológica

Do ponto de vista de uma semiótica do signo ou do discurso,


podemos tentar compreender os modos como os enunciadores e
enunciatários agem e reagem uns sobre os outros mediante a arti-
culação e entrelaçamento de planos distintos de significação. Isso, é
claro, dentro de determinada situação de comunicação ou contexto
material e psicossociológico que atualiza, a cada momento, o sentido
dos enunciados. A rigor, qualquer semiótica a que recorrêssemos nos
seria útil nesse sentido6, mas utilizo aqui, de forma bastante pontual,
porém respeitosa, alguns conceitos de semiótica Greimasiana. Tal es-
colha tem, no presente trabalho, uma função puramente “ilustrativa”,
isto é, não pretendo derivar de seu uso conclusões do mesmo tipo que
se busca obter numa efetiva análise semiótica de, por exemplo, um
corpus literário. O que justifica o uso dessa semiótica aqui é, de forma
objetiva, apenas e tão somente o fato de que foi nessa teoria semiótica
em particular que Bruno Latour e seus seguidores fundamentaram a
Teoria Ator-Rede7 como uma forma alternativa de pensar “o social8”.
A semiótica Greimasiana tem por princípio estabelecer relações
entre o que ocorre no plano mais superficial do discurso, isto é, na
forma e nas figuras empregadas nos enunciados proferidos, com o
que acontece nas relações acionais estabelecidas entre os atores do
programa narrativo que subjaz ao discurso e, ainda como as oposições
lógico-semânticas mais fundamentais, subjacentes aos dois planos
anteriores, e fontes imanentes de onde provém a energia, por assim
dizer, que anima o programa narrativo empreendido e sua materiali-
zação no discurso. No caso da vinheta, poderíamos tomar como parte
dessas relações semânticas fundamentais as da Figura 1, emprestada
de Ribeiro (2009, p.28):

6 Em outros lugares, tanto eu pessoalmente quanto alguns dos demais colaboradores deste volu-
me utilizaram a Teoria Ator-Rede em conjunção com a semiótica social, seguindo o insight de
IEDEMA (2001; 2003).
7 Para uma análise aprofundada das implicações e limites dessa vinculação metodológica da TAR
com a semiótica de Greimas, ver (Høstaker, 2005).
8 Vale lembrar, contudo, que a Teoria Ator-Rede é igualmente tributária da cibernética e de outras
teorias que apontam para a noção de sistemas dinâmicos abertos, teorias essas que, por sua vez,
são úteis para a compreensão de como os agentes não-humanos, em especial os computadores,
participam do que experimentamos como "realidade social" . Nesse sentido, a ilustração que se
segue é também uma forma de sugerir a necessidade de incorporação dessas teorias à compreensão
mais geral do quadro de uma cidadania pós-social (BUZATO, 2015).

188
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 1 – Quadro semântico subjacente ao sentido dos eventos


e enunciados da vinheta

Partindo dessas relações, podemos entender melhor, por exem-


plo, a razão pela qual tanto a vítima quanto o ladrão invocam a neces-
sidade de sustentar filhos, embora exerçam papéis e ocupem posições
distintas. Também a razão pela qual o ladrão xinga a vítima sem que
esta a tenha provocado, ou a razão por que a polícia toma o aparelho
de Blue Ray (que não seria “coisa de pobre”) como pista candidata à
evidência contra os ladrões.
Os vários atos verbais que vão construindo os estados de coisas
sucessivos na narrativa, tais como: ameaçar, xingar, suplicar, autorizar,
cancelar, reconhecer etc. têm efeito, contudo, não apenas pelo potencial
semântico subjacente ao discurso, mas por conta de condições objetivas,
materiais ou imateriais, que estão dadas, supostamente, a priori. Entre
as condições cognitivas/simbólicas presentes, há o fato de que todos já
sabem o que deve ser dito/feito, ou não, durante um assalto; também
de que todos demonstram ter a intenção real de dizer e fazer o que
dizem e fazem, e, ainda, a constatação de que cada um tem a autoridade
necessária para fazer o que diz ter o valor performativo pretendido.
Essas condições apontam para o que os estudos pragmáticos chamam

189
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

de “condições de felicidade” (AUSTIN, 1990) dos enunciados, e, como


sabemos, são trazidas ao local e ao momento das ações/enunciados
pelos próprios falantes (nesse caso, sujeitos), basicamente, pela sua
competência cultural e/ou sua memória discursiva e/ou afetiva.
Também estão presentes condições materiais para o sucesso dos
atos, as quais são trazidas ao contexto por agentes não humanos que,
embora não sejam dotados de linguagem, volição, memória ou com-
preensão, ainda assim agem no processo: a noite trouxe a escuridão e
a invisibilidade aos ladrões, a arma trouxe a letalidade à sua ameaça, a
regulamentação legal da telefonia no Brasil que garante gratuidade para
ligações ao 190 trouxe a polícia, na falta de créditos, o extrato trouxe
os “laranjas” do supermercado aos olhos do policial, e assim por diante.
Seguindo os desdobramentos dessas circulações, sem restrin-
girmos previamente quem pode/deve ser visto como sujeito e quem
deve/pode ser visto como objeto, mas tendo em vista basicamente o
fundamento relacional do ser e do fazer que anima tanto a semiótica
do signo quanto a semiótica material, podemos coordenar a produção
do sentido com a produção da existência dos próprios atores.
Por exemplo, para existir um ladrão, deve haver, no mínimo,
um coletivo “homem + revólver”, ao passo que para haver uma víti-
ma deve haver, no mínimo, um coletivo ‘homem + pertences’. Sem
a arma, o ladrão é apenas alguém que, na maior parte das vezes, a
vítima poderia encontrar na rua e simplesmente ignorar. Da mesma
forma, a vítima é vítima porque dispõe de pertences de valor. Uma
vítima sem pertences não é vítima, é uma perda de tempo, alguém
que, da mesma forma, pode-se ignorar na rua.
As redes que constituem ladrão e vítima, no entanto, agregam
outros elementos, além dos mínimos necessários, tanto acima quanto
abaixo da escala individual que associamos aos seus corpos biológi-
cos (ou sua identidade de enunciador ou enunciatário). O ladrão tem
um rosto que, se somado aos pertences da vítima em outro tempo e
lugar, poderá trazê-lo de volta à cena do crime, transformando-o de
alguém que se poderia ignorar na rua em indiciado num inquérito
policial. A camiseta sobre o rosto é, portanto, um mediador a mais
no ator-rede ladrão, uma forma de proteger o alguém genérico que
se juntara à arma para transformar-se em ladrão e praticar o roubo.

190
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Do mesmo modo, o cartão da vítima é um elemento mediador que


permite a um sujeito genérico tornar-se titular de uma conta bancária
no momento de realizar uma compra. Se, ao livrar-se do capuz e da
arma, o ladrão torna-se um ser humano genérico, este mesmo sujeito
genérico munido do cartão de banco da vítima, com a senha correta,
também pode tornar-se titular da conta, pelo menos temporaria-
mente. A prática discursiva está, dessa forma, entrelaçada com um
certo tipo de prática ontológica na qual um sistema de informação
computadorizado realiza um papel central.

De textos e móveis imutáveis

O que dizer, especificamente, dos textos escritos envolvidos nesse


conjunto interobjetivo? Do mesmo modo que um ladrão sem revól-
ver é apenas alguém na rua, ou um revólver sem munição é apenas
um pedaço de metal, também um cheque sem assinatura é apenas
um formulário, e um cartão magnético sem uma senha de acesso é
apenas um pedaço de plástico. Pode-se usar o revólver sem munição
como martelo, assim como se pode usar um cartão sem senha para
encarreirar cocaína, e um cheque sem assinatura para aspergi-la, mas
nesse caso já não se produzem nem vítima, nem ladrão.
Uma assinatura pessoal ou uma senha, contudo, são mediadores
especialíssimos, em comparação com balas de revólver, porque são
entidades puramente formais, mediadores cujo valor independe da
substância em que estejam fixados ou sejam transportados em deter-
minada ocasião. Em semiótica material, esses elementos chamam-se
“móveis imutáveis” (LATOUR, 2000)9, referências combináveis e
cumulativas que permitem tornar comensuráveis coisas e lugares
até então totalmente dispersos, estabelecendo fatos onde antes havia
vozes contraditórias (LATOUR, 2000) ou “globalidade” onde antes
havia dispersão (LATOUR, 2005).

9 Note-se que falo da assinatura enquanto forma visual que pode ser reconhecida pelo banco,
digitalizada, fotocopiada, combinada e comparada com outras formas visuais, não à porção de
tinta espalhada sobre a folha de cheque que os ladrões levaram. Do mesmo modo, uma senha
de cartão magnético pode ser anotada, memorizada, transmitida, criptografada etc., mas trata-se
apenas de uma sequência alfanumérica, sendo a sequência escolhida o que a torna uma senha, e
as representações alfanuméricas em si, quer sejam anotadas, memorizadas, desenhadas etc.

191
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Dentre os móveis imutáveis identificáveis na vinheta, a senha


do cartão de crédito talvez seja o mais interessante no sentido
de mostrar como corpo, sentido e informação se enredam para
produzir a existência dos atores que levam o programa narrativo
adiante. Isso porque uma senha de cartão bancário é não apenas
uma representação formal passível de ter valor cognitivo para um
ser humano (embora ela se torne mais fraca enquanto senha quanto
mais for possível para um humano lhe atribuir um valor semiótico
ou afetivo), como também é uma entidade matemática/probabilís-
tica com valor para um computador. Isso implica que a senha oscila
entre sinal no sentido semântico, mais precisamente no sentido
de vincular uma entidade no mundo a uma forma de apresentação
dessa entidade que, no entanto, não garante sua existência (FRE-
GE, 1968), e sinal no sentido informacional, isto é, uma entidade
matemático-probabilística que, na falta de acesso ao mundo material
de que padecem os sistemas computacionais, impõe artificialmente
uma identidade ainda mais precisa do que um nome próprio entre
um suposto objeto no mundo (o usuário/cliente) e uma forma única
e inequívoca de apresentação (alfanumérica).
Quem paga jurídica e financeiramente por esse “desencontro
ontológico”, na vinheta, é justamente alguma das entidades no
mundo (referências, no sentido fregeano) que tenha corpo/mate-
rialidade, mais precisamente a vítima e os ladrões, embora não se
possa descartar a responsabilidade do banqueiro, do legislador, do
caixa do supermercado entre outros atores. É justamente o fato de
alguém ter ocasionalmente que pagar por isso, não importa quem,
que evidencia a “ zona de fronteira” entre sentido e informação,
ou linguística e matemática, ou pessoa e usuário etc. como o lugar
onde implantar o “código fonte” da “cidadania aumentada” de que
falei anteriormente.

Intersubjetividade e interobjetividade

Nem todos os mediadores envolvidos na trama são coisas, tex-


tos ou móveis imutáveis. Em verdade, chama a atenção, especialmen-
te no segundo e terceiro atos, o modo como a vítima usa o discurso
para ativar laços intersubjetivos que habilitam, eventualmente, a

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Cultura digital e linguística aplicada:
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reorganizar o quadro ontológico que o roubo desorganizara com-


pletamente. Alguns desses encontros intersubjetivos se dão face
a face, e, em alguns desses casos, é muito clara a maneira como o
sentimento pré-cognitivo de responsabilidade ética é possibilitado
pela implicação do corpo (olhar, voz) na produção material dos
enunciados. Também se destacam as maneiras pelas quais certas
condições de felicidade disponíveis por virtude desses laços inter-
subjetivos suprem, de algum modo, condições materiais de sucesso
nas ações da vítima das quais, pelo roubo, ela se vira totalmente
desvinculada (como o empréstimo dos celulares de vizinhos ou a
carona para a delegacia dada pelo amigo).
É importante notar, contudo, que nem o status humano dos ato-
res engajados nos atos verbais, nem sua copresença física, garantem
que todos os encontros intersubjetivos relatados na vinheta sejam
éticos. Isso porque, em primeiro lugar, mesmo num encontro offline,
pode-se agir cognitiva e materialmente para impedir a possibilida-
de de atualização pré-cognitiva do vínculo ético, como no caso do
atendente que ignora intencionalmente a presença da vítima na
primeira delegacia. Em segundo lugar, porque, como já foi dito, as
relações não são “puramente” intersubjetivas, no sentido de que há
intercalações de mediadores não humanos sustentando o processo
enunciativo mesmo antes que se troque a primeira palavra. Dito
de outra forma, emprestando de Latour (2013), informalmente, o
termo, poderíamos dizer que os atores humanos ocupam, segundo
as formas de interobjetividade envolvidas, ao menos dois “modos
de existência”, análogos, grosso modo, ao que nos referimos pelas
expressões “pessoa física” e “pessoa jurídica”.
Do mesmo modo como uma camiseta sobre o rosto desvincula
o ator “ladrão” do ator “alguém na rua”, também a farda e o for-
mulário podem desvincular o agente policial do senhor barrigudo,
que bem poderia ser também um vizinho da vítima. Dito de outra
forma, as pessoas envolvidas podem, conforme a necessidade ou
conveniência, modular interobjetivamente seu vínculo ético com
o outro e, com isso, desconectar artificialmente sentido de emo-
ção, de forma até certo ponto análoga ao modo como o sistema
de atendimento telefônico computadorizado do banco conecta ou
desconecta informação de referência pela mediação de números e

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Cultura digital e linguística aplicada:
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tons DTMF10, conforme o caso seja consultar um saldo ou can-


celar um cartão.
Contudo, porque estão copresentes, ou porque ambos têm compe-
tências tipicamente humanas como senciência e empatia, que permitem
emergir o vínculo ético a partir de algum grau de implicação do corpo
na materialidade do enunciado, a vítima não precisa, por exemplo,
provar matematicamente que é um ser humano, ou mesmo que é a
vítima da ocorrência, antes de poder dirigir-se ao policial. Já no caso
do sistema de atendimento eletrônico, a vítima não será um cliente,
nem mesmo um ser humano, senão mediante uma performance infor-
macional (probabilística) que possa oferecer essa “certeza” a despeito
da sua impossibilidade de acesso à materialidade do mundo. Ainda que
se tratasse de um sistema com reconhecimento biométrico do cliente,
a materialidade do corpo entraria no processo apenas como matriz de
sampleagem para a matematização ou tradução do corpo em sinais
informacionais capazes de vincular artificialmente sinal e referente,
purificando a cadeia interobjetiva do elo humano, que esquece, que cede
a ameaças mediante armas de fogo, que mistura sinais informacionais
com datas e outros sinais semióticos, e assim por diante.
O encontro da vítima com o banqueiro, quando mediado pelo
sistema de atendimento telefônico, portanto, não só é menos ético,
no sentido levinasiano, do que o encontro com o irmão e os vizinhos,
ou mesmo com o ladrão, como o é em relação ao encontro com os
dois policiais que cumpriram sua obrigação de “pessoa jurídica”.
Isso porque enquanto a troca do sentido pela informação protege o
banqueiro do componente pré-cognitivo que induz o vínculo ético, a
farda e o formulário, mesmo permitindo ao policial separar emoção
de sentido, não o podem livrar do “desencantamento e recusa de um
mundo em que o outro caiu no esquecimento” (FABRI, 1997, p.21).
Não se trata, note-se bem, de igualar o valor moral, quer seja
positivo ou negativo, dos encontros entre vítima e ladrão, vítima e

10 Sigla correspondente a Dual-Tone Multi-Frequency (Multifrequência de dois tons). Trata-se de


um sistema de representação de números e letras por meio de combinações de duas frequências
distintas produzidas simultaneamente ao toque das teclas de aparelhos telefônicos mais modernos,
especialmente os celulares. O uso de duas frequências naturalmente incompatíveis entre si para
representar o número correspondente a cada tecla é uma estratégia pensada pelos engenheiros para
reduzir drasticamente a possibilidade de que os mesmos números possam vir a ser interpretados
pelo computador a partir de algum som característico da fala humana.

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

polícia ou vítima e banco, pois, certamente, roubar os pertences de


alguém mediante violência será moralmente diferente de recusar-se
a atender alguém que necessita fazer um boletim de ocorrência ou
programar um sistema de atendimento telefônico com os dizeres
imperativos na ordem errada. A não ser que, usando a lógica for-
mal e tirando a emoção e o sentido do circuito, tomemos a falha no
sistema de atendimento do banco como “roubo” de um dos modos
de existência do cliente. Voltarei a essa “especulação filosófica” nas
minhas considerações finais.
Por hora, seja como for, conclui-se que para poder compreender
esse encontro pós-social do ponto de vista de uma “cidadania aumen-
tada”, é necessário considerar-se o momento anterior à instauração
(cognitiva) do valor moral dos atos discursivos e determinar, via
semiótica material, as operações ontológicas que envolveram vin-
cular ou desvincular, em cada encontro, pessoas e pessoas, coisas e
coisas ou pessoas e coisas. No caso de nossa vinheta, essas mano-
bras de vinculação e desvinculação criam três versões da realidade
que destaquei em relação ao terceiro ato: uma intersubjetiva, uma
matemático-probabilística e uma jurídico-policial.

A ordem dos atores altera a qualidade


do existente

No terceiro ato, a vítima é chamada a ajudar na restituição do


vínculo entre os suspeitos e o local do crime para transformá-los ju-
ridicamente em réus. Trata-se de um encontro que visa a realizar o
que os semióticos chamam de debreagem enunciva (FIORIN, 2008, p.
203), isto é, extrair da vítima, enquanto um “eu”, “aqui”, “agora” a ins-
tauração no discurso de um “eles”, “ali”, “então” em relação ao roubo
sofrido que o sistema judiciário possa usar como prova testemunhal.
Inversamente ao que ocorreu na noite do roubo, agora é a vítima
quem aparece somada a um anteparo físico que impede os suspeitos
de levarem-na de volta a uma das muitas cenas de crimes que estão
em suas memórias. Essa precaução da polícia visa, supostamente, a
impedir que, ao saírem da cadeia, os ladrões possam trazer a vítima
de volta a esse momento infeliz de seus destinos. Igualmente ao que

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Cultura digital e linguística aplicada:
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aconteceu na noite do roubo, contudo, os policiais estão ali como


pessoa jurídica e, nesse modo de existência (no sentido de LATOUR,
2013), o valor de verdade dos enunciados depende, em parte, dos
mesmos mecanismos probabilísticos e lógico-formais utilizados
pelo computador: quanto mais vítimas reconhecerem os corpos dos
suspeitos ou os pertences apreendidos em suas casas, maior será a
certeza (probabilística) de os suspeitos serem os ladrões e, portanto,
mais “imparcialmente” a polícia terá produzido a prova como infor-
mação, protegendo a vítima da emoção dos ladrões, e os ladrões do
sentido antagônico que os relaciona com a vítima segundo a Figura 1.
Mesmo pretendendo portarem-se como agentes puramente
informacionais, contudo, os policiais são também pessoas físicas
providas do que Hayles (1999) chama de a dádiva da corporeidade.
Embora a situação vivida na delegacia pela vítima e os suspeitos
remeta em parte ao modo de existência (ou regime de enunciação,
conforme LATOUR, 2003) vigente na relação entre o cliente e o sis-
tema de atendimento do banco, já que em ambos os casos imperativos
lógico-probabilísticos são o principal critério de veredicção, o encon-
tro entre a vítima e a policial que lhe apresenta o aparelho de Blue
Ray permite o apelo pré-cognitivo à responsabilidade. É certamente
digno de nota que a investigadora faz escolhas discursivas-semióticas
que buscam aproveitar esse vínculo pré-cognitivo (afetivo) para ma-
nipular a vítima no sentido de agir conforme o programa narrativo
em que ela, investigadora, está engajada. E, para tanto, traz à cena,
discursivamente, elementos culturais e psicológicos, tais como: os
significados de diferentes graus de intimidade entre pessoas de gê-
neros opostos, a noção de reciprocidade/gratidão como fundamento
moral, e até mesmo um sentimento de vingança latente numa vítima
de roubo violento.
Mas o que está verdadeiramente em jogo, nesse processo de se-
dução/manipulação de um ator pelo outro, é a produção de um texto
chamado “termo de devolução”, cuja assinatura pela vítima acarreta,
juridicamente, o reconhecimento de que era dela o aparelho de Blue
Ray encontrado com os suspeitos. Fossem a investigadora e a vítima
amigos de infância ou amantes, talvez esse vínculo intersubjetivo
bastasse para a produção do documento, do mesmo modo como bas-
tou para que o irmão depositasse os créditos de celular no primeiro

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Cultura digital e linguística aplicada:
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ato. Mas, nesse caso, ceder à emoção seria correspondente a arriscar


o sentido de “falso testemunho” ao documento, algo que poderia tra-
zer grandes consequências negativas para a vítima. Inicialmente, a
vítima, talvez sensibilizada pelo que ocorreu no episódio do contato
telefônico com o banco, tenta resistir a essa forma de manipulação
propondo que o aparelho enquanto informação não pode ser igualado
artificialmente ao aparelho enquanto materialidade, não sem o recur-
so a algum tipo de violência ou custo para outrem. Mas, habilmente,
a policial invoca o valor informacional (probabilístico) do aparelho
em sentido oposto, insere-o no discurso como argumento, transforma
informação em sentido, novamente.
Fossem enunciador e/ou enunciatário computadores, nessa
situação, na falta de alguma estratégia lógico-probabilística ou pu-
ramente arbitrária, de ordem superior, pré-programada, haveria aí a
instauração de um loop paralisante, que eventualmente levaria a um
shut down do sistema, uma forma de aceitar, sem maiores problemas,
um mundo em que o outro caiu no esquecimento. Assim, quando
comparamos o encontro entre vítima e polícia com o encontro entre
vítima e sistema de informação computadorizado do banco, o que
efetivamente faz a diferença não é a natureza das instituições nem
mesmo dos atos discursivo-semióticos empreendidos, mas as “condi-
ções gerais da cidadania” estabelecidas pela copresença nos encontros
efetivamente éticos entre os atores enredados.

Figura 2– Reconhecimento dos suspeitos

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Figura 3– Cancelamento do cartão

É tentador pensar que essa diferença se estabeleça simplesmente


porque há ou não há relações interobjetivas envolvidas, mas isso seria
ignorar que, em todos os casos descritos na vinheta, intersubjetivida-
de e interobjetividade estão entrelaçados de algum modo, isto é, não
são encontros entre entidades puras, mas entre redes heterogêneas
(atores-redes) que os constituem enquanto vítimas, ladrões, policiais,
banqueiros, vizinhos, irmãos etc. A diferença não está, portanto,
numa suposta essência dos atores, mas na qualidade das mediações,
em quão “eticamente sensíveis” são os modos de enredamento entre
informação, emoção e sentido, em diversas escalas. As Figuras 2 e 3
ilustram. Em grande parte, a agenda de pesquisa que este exercício
procura ilustrar remete a como trabalhar melhor essas mediações
interdisciplinarmente.
A partir da reflexão que nos permitiu este exercício, podemos
especular que uma “cidadania aumentada”, pós-social e pós-humana,
não se construirá à base de purificações (no sentido de LATOUR,
1993), nem pela limitação dogmática das relações sociais às interações
que se dão entre humanos vistos como indivíduos liberais atomizados,
nem pela exclusão violenta da emoção e do sentido pelo “totalitarismo
da informação” nos processos comunicativos que constituem nossas
vidas quotidianas. Ao contrário, é preciso enriquecer o cenário dessa
discussão encontrando-se modos de integrar informação, emoção
e sentido em nossas análises e nossos designs, ou, se preferirmos,

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Cultura digital e linguística aplicada:
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assumir como tarefa epistemológica compreender o modo como


intersubjetividade e interobjetividade transformam ontologia em
política e vice-versa.
Esse “enriquecimento” do objeto de pesquisa traz consigo,
naturalmente, a necessidade de engajamento ético de cientistas,
engenheiros, designers e usuários em diálogos efetivamente inter e
transdisciplinares. Enquanto nós dos estudos da linguagem nos con-
tentarmos com entender como linguagem, tecnologia e sociedade se
relacionam tendo como única materialidade pertinente a do signo, esse
diálogo não avançará. Tampouco avançará enquanto os engenheiros,
designers e matemáticos não tomarem a relação entre informação,
sentido e emoção como um problema ético “para chamar de seu”.

Considerações finais: a pesquisa em linguagem,


tecnologias e sociedade e o conceito de “modos
de existência”

Já há alguns anos vivemos, nas ciências humanas, a assim cha-


mada “virada ontológica”. Como em outras viradas já claramente
delineadas, como a virada epistemológica do Século XIX ou a virada
linguística do Século XX (WILLIAMSON, 2004), trata-se de um
momento de tentativa de troca da chave interpretativa mestra de um
quadro sócio-histórico que já não se deixa abrir tão convincentemente
pelas chaves anteriores.
Em geral podem-se caracterizar essas viradas por meio dos tipos
de antigas e novas perguntas que importam. Por exemplo, a virada
epistemológica foi caracterizada pelo abandono da antiga pergunta “o
que é a realidade?”, estabelecida pelos filósofos clássicos, em favor da
nova pergunta “o que é o conhecimento (sobre a realidade)?”, estabe-
lecida por pensadores como Descartes e Kant. A reboque dessa nova
pergunta, como sabemos, vieram não só uma separação formal entre
os papéis da Filosofia e da Ciência (que a partir de então dedica-se
exclusivamente à pergunta anterior), como uma cisão entre sujeito
e objeto do conhecimento (LATOUR, 1994).
No caso da virada linguística, que tem no livro homônimo de
Rorty (1967) uma espécie de “pontapé inicial”, a pergunta sobre “como

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

conhecemos (pensamos)?”, passa a ser relativizada pela certeza de


que não há acesso direto nem ao pensamento nem ao que quisermos
chamar de “realidade” senão pela linguagem, o que, consequente-
mente, levou à pergunta “como a linguagem nos permite ou obriga a
pensar ou a representar uma realidade da qual ela, a linguagem, não é
espelho?”. De uma só tacada, como explica Viveiros de Castro (2012,
p. 166), a virada linguística “converteu todas as questões ontológicas
em questões epistemológicas, e subordinou toda indagação sobre o
real à questão das condições de nosso acesso a ele”.
Uma das tônicas da virada ontológica tem sido, segundo o mes-
mo autor, o “abandono da linguagem como paradigma do fenômeno
humano” e um “interesse inaudito pelos não humanos, pelas poten-
cialidades conceituais (espirituais, dir-se-ia então) da materialidade
mesma do mundo, pela agência das coisas [...]” (p. 166). Não é que a
linguagem não mais nos interesse, obviamente, pois que é justamente
na epistemologia dos estudos da linguagem que a semiótica material
permite a autores como Bruno Latour e John Law se refugiarem
das dicotomias que herdamos da virada epistemológica. Contudo,
comenta Viveiros de Castro (2012, p. 167), existe um certo “cansa-
ço com a linguagem” vista como “o epítome mesmo do que seria o
‘próprio do humano’”, e isso, justamente, porque “ já não queremos
mais tanto saber o que é próprio do humano ... Queremos saber o que
é próximo do humano, o que é próprio do vivente em geral, o que é
próprio do existente”.
É nesse sentido que se fará útil nos estudos sobre linguagem,
tecnologia e sociedade, talvez, o conceito de “modos de existência”,
tal qual delineado por Bruno Latour (2013). De forma drasticamente
simplificada, estes seriam análogos ontológicos do que, em semiótica
greimasiana, chamam-se de regimes de veredicção11 (GREIMAS;
COUTEZ, 2008). Trata-se, basicamente, de uma tentativa de pensar-
se as múltiplas formas de existir que se cruzam nas redes que cons-
11 Latour (2003) utiliza a expressão "regimes of enunciation" como análogo semiótico da sua
concepção de "modos de existência". Contudo, a tradução literal "regime de enunciação" não
corresponde a nenhum verbete de Greimas e Courtés (2008), referência principal à Semiótica
citada pelo autor em outros lugares (LATOUR, 2005, por exemplo). Ademais, o termo "regi-
mes de enunciação" (aforizante e textualizante) é utilizado por Maingenau (2010) com sentido
totalmente diverso do pretendido por Latour. Opto, então, como solução intermediária, pelo
termo "regime de veredicção", com base no trabalho de SHIMODA (2013) sobre o conceito de
conotação na obra de Greimas.

200
Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

tituem o que chamamos de realidade, empreendida por antropólogos


que já não veem na noção de representação a mesma força de outrora
para explicar as múltiplas formas de trazer ao discurso o que seria
uma realidade única (PINHEIRO DIAS et al, 2014), porém refugiados
no conceito de imanência da linguagem como preceito metodológico
(HØSTAKER, 2005) de suas investigações.
Trazer para a discussão o conceito de “modos de existência”
pode ser, então, uma forma de estabelecer algum tipo de “paridade
ética” entre os encontros humanos (intersubjetivos e/ou físicos) e
os encontros pós-humanos (interobjetivos e/ou metafísicos) que
produzem o que chamamos de realidade em nosso quotidiano, pa-
ridade sem a qual não se pode pensar sobre cidadania pós-social.
Particularmente, interessa notar como todas as possibilidades de
representação que nos são oferecidas pela potência computacional
que nos é disponibilizada hoje não nos podem proteger da incapa-
cidade de um computador para lidar com o sentido, exceto por in-
ferências probabilísticas baseadas em padrões informacionais. Essa
incapacidade, que muito provavelmente não será superada pela “força
bruta” de computadores cada vez mais potentes dedicados a cálculos
probabilísticos inferenciais na mineração de big data (CHOMSKY;
KATZ, 2012), aparentemente aprofundará, ainda mais, a impotência
dos seres humanos envolvidos em relações interobjetivas para pro-
tegerem a diversidade de seus modos de ser e existir no mundo. De
certa forma, como já buscamos sugerir em outro lugar (BUZATO;
SEVERO, 2010), ainda parecemos encantados com a (falsa) sensação
de liberdade que nos é trazida pela desvinculação desses modos, via
presença metafísica em rede; demasiadamente encantados para notar
o quanto essa mesma desvinculação nos torna cada vez mais “con-
formados” com uma crescente impotência ética. Há que se reagir de
forma interdisciplinar e democrática. Quem se habilita?

201
Cultura digital e linguística aplicada:
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travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Sobre os Autores

Bárbara Cristina Gallardo é mestre em Letras (Inglês e Literatura Corres-


pondente) pela Universidade Federal de Santa Catarina (2001) e doutora em
Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (2013), com
estágio sanduíche na Universidade do Texas, em Austin-USA (2011/2012).
É professora adjunta na Universidade do Estado de Mato Grosso, com
experiência na área de formação de professores de línguas estrangeiras.
Coordena o subprojeto “Multiletramentos em Língua Inglesa”, vinculado
ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Atua
na linha de pesquisa “Linguagens, tecnologias e ensino” e é membro dos
grupos de pesquisa “Linguagem, Tecnologia e Pós-sociedade” e ‘Escrituras:
sentidos em (dis)curso’.

Camila Lawson Scheifer é mestre em Letras (área de concentração Lin-


guística Aplicada) pela Universidade Católica de Pelotas (2008) e doutora em
Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (2014), com
estágio sanduíche na Vanderbilt University (EUA - 2012/2013). É professo-
ra do Curso de Graduação e de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Católica de Pelotas, onde atua na área de pesquisa “Aquisição, Variação e
Ensino” e coordena o Projeto de Pesquisa “Práticas de espacialização nos
Novos Estudos de Letramento”. Também atua junto aos grupos de pesquisa
“Linguagem, Tecnologia e Pós-Sociedade” (UNICAMP/CNPq) e “Ensino
de Língua Estrangeira, Formação Cidadã e Tecnologia: Multiletramento,
Plurilinguismo e Transculturalidade” (UNICAMP/CNPq). Seus interesses
acadêmicos concentram-se em: Linguagem, Novas Tecnologias Digitais
da Informação e Comunicação, e Educação; Novos Estudos de Letramen-
tos; Transletramentos e Ensino-Aprendizagem de Línguas; Práticas de
Espacialização e Construção de Sentidos; Pedagogia Crítica e Pedagogia
do Terceiro Espaço.

Dáfnie Paulino da Silva é mestra em Linguística Aplicada pela UNICAMP


(2012), seguindo a linha de pesquisa de Linguagem e Tecnologias; possui
especilização em Design instrucional EaD e é doutoranda em Linguística

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Cultura digital e linguística aplicada:
travessias em linguagem, tecnologia e sociedade

Aplicada, na área de Linguagem e Educação (2014-2018). É pesquisadora de


tecnologias, sociedade e educação (Grupo de pesquisa LiTPos) e atua como
designer instrucional e conteudista na produção de conteúdo e-learning.
Os seus interesses acadêmicos enfocam: Cultura de Convergência e Pro-
dusagem, Transmidiação, Transletramentos e Design Instrucional EaD.

Débora Secolim Coser é mestra em Linguística Aplicada pela UNICAMP


(2014), título obtido com a dissertação “Galanet versus Busuu: um estudo
comparativo das mediações tecnológicas e político-pedagógicas em dois
ambientes de aprendizagem colaborativas de línguas online”, desenvolvida
na sub-área de Linguagem e Educação. Atualmente, atua como professora
de ensino fundamental e médio em escolas da região de Campinas. Os seus
interesses acadêmicos centram-se em aprendizagem colaborativa de línguas
online; intercompreensão entre línguas românicas e mediações tecnológicas
na comunicação mediada por computador.

Marcelo El Khouri Buzato é Doutor em Linguística Aplicada pela UNI-


CAMP (2007), com estágio pós-doutoral na Universidade da Califórnia
(2015/2016). Atualmente é docente do Departamento de Linguística
Aplicada da UNICAMP, desde 2008, onde atua na linha de pesquisa “Lin-
guagens e Tecnologias”. Marcelo é membro de diversos comitês editoriais
nacionais e internacionais nas áreas de Estudos da Linguagem, Educação
e Psicologia Social. Co-organizou a coletânea New Literacies, New Agen-
cies? A Brazilian Perspective on Mindsets, Digital Practices, and Tools
for Social Action in and out of School”, editada globalmente (2013). Desde
2013, coordena o grupo de pesquisa LiTPos - Linguagem, Tecnologia e
Pós-sociedade/humanidade (UNICAMP/CNPq).

Nayara Natalia de Barros é mestra em Linguística Aplicada pela UNI-


CAMP (2014), cujo título foi obtido por meio da pesquisa “Apropriação da
curadoria na web por uma empresa de mídia tradicional: um caso de con-
vergência entre narrativa e banco de dados”. Atualmente, é doutoranda em
Linguística Aplicada (2014-2018) pelo Instituto de Estudos da Linguagem
(UNICAMP/CNPq). Atua junto ao grupo de pesquisa “Linguagem, Tec-
nologia e Pós-Sociedade” (UNICAMP/CNPq). Seus interesses acadêmicos
se concentram em: Linguagens, Novas Tecnologias Digitais de Informação
e Comunicação, Redes Sociais e Curadoria Digital.

Rafael Salmazi Sachs é mestre em Linguística Aplicada pela UNICAMP


(2015), título obtido por meio da pesquisa “O texto digital como processo

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e a política como regime de enunciação”. Atualmente, é doutorando em


Linguística Aplicada (2015-2019) pelo Instituto de Estudos da Linguagem
(UNICAMP/CNPq). Atua junto ao grupo de pesquisa “Linguagem, Tec-
nologia e Pós-Sociedade” (UNICAMP/CNPq). Seus interesses acadêmicos,
no momento, envolvem; Multimodalidade, Hipermodalidade, Cultura da
Convergência, Política e Estudos de Gênero.

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