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TORQUATO
___________
Literatura e artes visuais
Ano 1 – out.dez/2019
Revista
TORQUATO
Ano 1 – out.dez/2019
Manaus - AM
4 APRESENTAÇÃO
Por que abrir as gavetas do Norte |
Daniel Amorim e Susy Freitas
6
RESUMÉ
Poemas traduzidos de Dorothy
Parker | Susy Freitas
8 SILÊNCIOS DE
Rafael Ramos
14 PROSA
Nathalie Lourenço | 15
Daniel Amorim | 18
Thiago Roney | 23
Bruno Oliveira | 27
31 POESIA
Priscila Lira | 32
Márcia Kambeba | 34
Susy Freitas | 37
Paulo Monteiro | 41
P. F. Filipini | 43
Carlos Orfeu | 48
51 CHAMADA
APRESENTAÇÃO
Por que abrir as gavetas do Norte?
Daniel Amorim e Susy Freitas
S
pares
omos
invisíveis.
no
Nortistas.
máximo
Nossos
Ilegíveis
póstumos
respingam
e
as
Mais lembrado que Torquato Tapajós é
Torquato Neto. O trabalho do poeta
piauiense, bem mais efêmero e
tentativas de um cânone, enquanto os fragmentado que o de seu xará,
vivos predominam nas próprias gavetas, ironicamente engrandece seu nome.
conscientes da insignificância imposta
Nas ruas do Rio de Janeiro dos anos
às suas palavras. Mas buscamos
1960, Torquato Neto chorou e sorriu.
construir uma rota.
Traçou sua Geleia Geral e atravessou as
*** calçadas pensadas por Tapajós. Mas
sabemos qual Torquato é Torquato. O
Torquato Tapajós é o nome de uma das
doente, o poeta, o jornalista, o produtor
avenidas mais movimentadas de
das coisas “inúteis” é o que sobrevive de
Manaus. Dentre os que transitam ali,
fato na canção tropicalista que rola ao
poucos recordam o homem que a
fundo de um engarrafamento. Prova de
projetou, o qual emprestou seu nome à
que a escrita fala mais que o asfalto? A
via, e lembram muito menos de sua
busca por essa resposta nos move hoje.
carreira literária como poeta. Todos os
A busca por existência, e não
dias, o nome de Torquato se esvazia no
sobrevivência.
engarrafamento e é nada mais que uma
passagem para condomínios de luxo Somos periféricos. Navegamos nas
avizinhados por invasões, uma barreira franjas, em alguma das inúmeras
rodoviária, um shopping. margens nas quais nos alocam. Como
vampiros, nosso reflexos somem nas
Outro projeto de Torquato foi o bairro
representações do tecido social. Mas,
de Copacabana, no Rio de Janeiro.
como vampiros, nossa existência
Cartão postal, cena de novela, passeio
hipnótica suga a força vital do cotidiano.
de turista. Como Torquato escrevia seus
poemas? E por quê? Que Por isso convém nos ler. Temos
transcendência buscava? Será que ele a potência de confronto, força movente,
encontrou antes de ser acometido por narrativas de brechas no isolamento.
uma febre mortal na Amazônia aos 44 Haverá tesouro nas nossas gavetas?
anos?
RESUMÉ
ANEDOTA
FINIS
18 PODE APOSTAR
Daniel Amorim
No começo, é claro, tivemos uma fase de lua de mel. Abri com uma
faca de serra a caixa onde ela vinha, pedaços imersos em cobrinhas de isopor.
Encaixei tudo às pressas. A comi antes de sequer dar a primeira carga na
bateria. Era tão bonita, desligada. Ainda sem os cílios, as unhas e
sobrancelhas, que fui achar mais tarde no fundo da caixa, passada a urgência.
Por três ou quatro meses fomos loucos um pelo outro. Eu, de verdade, ela,
por causa da opção behavioral número 3. Como Joyce não anda, eu a
carregava da sala para o quarto, do quarto para a cozinha. Fazíamos tudo
juntos. Aos poucos, comecei a deixá-la para dormir na sala. Acabou que
depois de uns seis meses não fazíamos mais do que ver televisão. Eu, fazendo
pequenos comentários, ela, puxando informações sobre os atores no IMDB.
Comecei a achá-la monótona. Tudo que fazia era para me agradar e isso era
justamente o que mais me desagradava. Joyce não podia fazer nada a respeito.
Responder segundo os scripts que tinha acumulado sobre meus gostos por
tantos meses era inevitável. Os scripts não compreendiam que já me irritava
aquele mesmo jeito de rir-olhar-pro-lado-pegar-minha-mão, demoravam a se
reescrever. E então, Deborah. De carne e osso e proporções agradavelmente
assimétricas. Me pareceu curioso como minhas mãos afundavam ao
pressionar suas coxas. Seu calor era discreto e, em vez do zumbido constante,
seu corpo emitia pequenos gorgolejos. Já na segunda vez que saí com
Deborah, tivemos uma briga estúpida sobre a gorjeta do valet. Foi
maravilhoso. Deborah tinha pernas que funcionavam bem e que a levavam
para longe de mim. Agora você a vê. Agora não.
c
hegamos por volta das 9h e o corpo já estava estirado no asfalto,
coberto por um lençol com figuras de desenho animado. É o mesmo
seriado que Rubinho costumava assistir quando chegava da escola.
Sinto uma mistura de saudade e náusea ao deparar com o super-herói e seu
relógio com superpoderes cobertos de manchas de sangue.
“Esses caras fazem pouco caso da vida alheia”, resmunga Adamastor. Sinto
vontade de apontar a ironia daquela frase e percebo que talvez essa seja sua
verdadeira intenção. A viúva está parada ao lado do cadáver, abraçada por duas
mulheres que sussurram ao seu ouvido. Ela parece indiferente. Talvez já tenha
previsto o assassinato, alertado o amante sobre o castigo que recai sobre os
ímpios, aqueles que caminham pela seara do pecado e da morte. Um cachorro
imundo, de farta pelagem negra, observa o lençol esvoaçante enquanto arranha
o pescoço.
“E adivinha por que entrei? Seu Armínio flagrou a esposa no motel com o
motorista do jornal, um negão para mais de metro. Dizem que ele abordou o
casal na saída, jogou um pacote com a grana referente aos bens da mulher dentro
do carro e vazou. O cara, obviamente, foi demitido”.
Um período difícil. Passaralho nas redações, corte nas assessorias, “a fonte
secou”, diziam os reacionários não tão enrustidos assim. “Confio no seu talento”,
Fernanda repetia durante as refeições. Links de anúncios para vagas de emprego.
Meu conhecimento sobre mídias digitais era intuitivo, para não dizer nulo. “É só
uma fase ruim”, depois da trepada bêbada nas madrugadas de sábado, comendo
pizza de congelador. Você adormecia nos meus braços, tagarelando sobre
cachorros de rua.
“Enfim, a gente tem que estar preparado para o combate. Manter a guarda
levantada porque a vida, em essência, é uma grande batalha. É o conflito, e não
o dinheiro, que faz este mundo girar”.
Naquela noite senti cheiro de sexo atrás de sua orelha esquerda, e percebi
que estava tudo acabado. Planos, viagens, o curso de desenho do pequeno
Rubens. Você reclamava que eu andava de cueca pela casa o dia inteiro e só
resolvia tomar banho à noite, antes de dormir. “Vai me dizer que isso também
faz parte de seu processo criativo?”, você instigava, irônica, largando a bolsa no
sofá.
“Ele disse que ia tomar outro rumo na vida, pensava até em mudar de casa”.
“Eita porra”
“Três minutinhos”
“Muito tempo”
A
princípio pensei ser uma espécie de charme a escolha pela
solidão, como cerne da vida de escritor, feita por Enzo Juan
da Silva. No entanto, depois descobri ser apenas um chavão
do espírito performático desses seres. Solidão pra lá, solidão pra cá. Não é
sempre a palavra preferida dos escritores? A solidão é a essência da minha
escrita. A solidão é imprescindível para a minha literatura. Não são sempre
esses os jargões em qualquer entrevista? Pois é, sei que essas frases parecem
bonitinhas à primeira vista, era assim também que Enzo falava, mas não
passam de lugares-comuns no teatro literário. Antes eu ficava doidinha após
ver suas entrevistas no Youtube. Aquele ar sublime. Aqueles trejeitos.
Aquelas palavras. Aquela solidão. Tudo era um encanto. Contudo, depois
daqueles encontros, não consigo mais ver nenhum charme na dita solidão. Era
fanzaça do cara. Li todos seus romances e contos. Tive certa dificuldade para
entrar em contato com ele, mesmo não sendo tão conhecido; publicava por
editoras pequenas e quando, enfim, consegui conhecê-lo, putz, uma negação.
Nunca imaginaria que um gênio na literatura pudesse ser tão desprezível.
***
***
O Enzo me deixava molhadinha só com palavras impressas naquelas
folhas amareladas. Aquele conto safadinho, daquela Hilda que poderia ser eu,
arrepia-me até hoje. Os livros do cara me excitavam até o espírito. Gostava
daquela sua frase da solidão, pois desconfiava que fosse uma espécie de
saudade. “A solidão, às vezes, é uma saudade fudida de nós mesmos”. Achava
genial. Pensava: como não transar com esse cara? Mas o negócio foi broxante.
Estava toda feliz no dia do primeiro encontro. Tinha pintado tudo: unha,
cabelo, alma e o caralho a quatro. Havíamos começado a conversa sobre as
diversas cenas literárias. Estava tudo em sintonia até que o cara começou a ir
de tempos em tempos ao banheiro. Com trejeitos intranquilos começou a não
dar a mínima atenção para mim ali na mesa, mesmo depois de me achar maior
gostosa. Eu puxava o máximo de assunto tentando recompor o bom momento
do começo. Perguntei sobre o processo criativo e sobre o ato de escrever. Foi
quando ele conseguiu deixar o meu espírito molhadinho de novo. Respondeu
parecendo que tinha decorado um escrito. Mas depois disso o resto da noite
foi decepcionante. Parecia que o cara queria transar é com o banheiro. Voltava
se mordendo todo. Foram cervejas e banheiros em cima de cervejas e
banheiros. No final, a coisa foi um fiasco. Pensei que poderia ser apenas uma
noite ruim. Que nada. Descobri que quase todos os dias Enzo estava ali entre
cervejas e banheiros.
***
Não sei o que Hilda queria comigo. A mulher era neurótica. Não parava
de falar. Acho que Hilda não existe, só pode. Devia ter sido paranoia da droga,
associando uma imagem a minha personagem. Não lembro muito bem. A
mulher ficava me perseguindo (ou será que era o conto que não saía da minha
cabeça?). Talvez quisesse que eu fosse seu marido. Aí não rola. A solidão é
imprescindível para o meu fazer literário. Recordo vagamente ela dizendo que
pensava que minha solidão era uma espécie de aura metafísica. “Que porra
nenhuma”, respondi com a intenção de despachá-la, “o mais importante para
um escritor é viver a vida, essa é a sua solidão fundamental, e isso pressupõe
a solteirice”. Depois disso ela ficou furiosa. Mas, porra, a mulher não saía do
meu pé. Se não me engano, foi a última vez que nos encontramos. Sua
despedida foi uma frase digna de colocar num conto: – Enzo, vou te falar,
gosto pra caralho dos teus livros. Amo até. Negócio sublime. Mas tu, cara, é
um cuzão.
***
E
u juro, eu juro pra ti, menina, e de pé juntinho, que isso aconteceu:
eu conheci de verdade verdadeira o Mário de Andrade. É claro que
eu estava um pouco alterado, mas isso não afeta de modo algum a
narrativa.
Quem mandava o som naquela noite quente era a Pessoa Não Grata, e a
gente já tinha colocado uns seis litrões para dentro. Eles tocavam a última
música, em plena madrugada, quando começamos a discutir para onde
iríamos depois que a casa fechasse; o que fazer agora no centroso?
Cambaleantes, pegamos a Ferreira Pena em direção a Dez de Julho, e em
frente ao que restou da Santa Casa de Misericórdia, eu senti uma espécie de
vertigem, como se olhos nada imaculados nos observassem – podia ser os
viciados? Podia, sim; podia ser alguém comendo um travesti? Podia, sim;
podia eu estar alucinado? Podia, sim; mas eu sabia, no fundo, que esse algo
era o que meu materialismo negava. “Porra de fumaça da desgraça é essa?
Mas que cidade estranha”, eu pensei. Um ar cinzento foi tomando conta, o
grande prédio abandonado me vigiava, e eu tinha um sentimento panóptico
crescente, ao mesmo tempo que era tentado pelo seu encanto a invadi-lo. Eu
gelei com a possibilidade de entrar ali. Já ouvi relatos dos vultos, dos gritos,
das correntes, da dor, do sangue, da carne podre, do osso corroído; ou, o que
era pior, dos vivos que ainda o habitavam. Senti dificuldades para respirar,
para pisar o chão, seguir em frente até chegar ao Teatro. “Por que desgraça
eu ainda fumo tanto, se nem gosto, e faço só por pose?”. Fiquei encarando os
olhos vigilantes do prédio; que tamanha tentação entrar! Porém, a hipnose foi
interrompida. Um guardinha berrou de longe, enquanto ensaiava correr atrás
da gente, dizendo que chamaria a polícia caso não pegássemos o beco.
Fugimos. Mas ainda ouvimos o seu “baderneiros, filhas da puta. Não têm
mais o que fazer, não?”. Não tínhamos.
32 PRISCILA LIRA
34 MÁRCIA WAYNA KAMBEBA
37 SUSY FREITAS
41 PAULO MONTEIRO
43 P. F. FILIPINI
48 CARLOS ORFEU
LIÇÃO 6
A bruxaria da ferida é não ter mais que um sentido:
aquele que todos nós sabemos
e do qual não se pode fugir.
O fracasso te rasga,
o amor te rasga,
uma queda no asfalto te rasga,
o mundo te rasga
Garganta também:
te sufoca nas três sílabas
para estapear na tua cara o gosto que ela tem.
Gosto de coisa crua, coisa que tem gosto de sangue,
que te arranha três vezes
até a língua vomitar no último
A.
Tenha memória.
Um fantasma é
antes de tudo
uma longa história.
Derme.
Epiderme.
Suor.
Nesse embrulho me dou pra ti
e em algum lugar aí
entre os laços
e rasgos
há gestos
que burlam
qualquer economia de precaução.
Suor.
Sim.
Toque.
Como se coordena o tráfego
de invasor a convidado?
O que jaz atrás das cortinas?
A que se prendem as cordas
da marionete?
Tu não controlas nada.
Tu te moves graciosamente
como vídeos de demonstração
em expositores de TV.
Repetes histórias coloridas
e um looping de olhos te admira
e te atravessa em alta definição
mas tu não queres dizer nada.
Abrem-se os cílios
e sigo.
Em algum lugar aí,
entre os laços
e rasgos
eu resisto?
Inteira-porém-precária?
SUSY FREITAS nasceu em Manaus, Amazonas. É autora dos livros Véu sem
voz (Bartlebee, 2014) e Alerta, selvagem (Patuá, 2019), vencedor na
categoria Violeta Branca Menescal (poesia) do Prêmio Literário Cidade de
Manaus 2018.
OLHOS DE SERPENTE
figuras penduradas
no tempo
copos quebrados pela loucura
dedos amputados
guardados no congelador
amanhã tentarei costurá-los
minha fome aumenta
o tempo não aguenta mais as figuras penduradas
enquanto os anjos ainda pulam de prédios
e cabeças são perdidas em reuniões
na sexta-feira santa
fazendo sombra na calçada
onde moças caminham
com suas mãos engessadas
ainda há inocência
nos olhos da serpente.
LUSO – CACOFÔNICO EM OITAVA
debates anarco-monarquistas
na pista de minhas orelhas
falácias entregues ao povo faminto
seres invisíveis 365 vezes
servo da cacofonia
beijando a bunda de Ginsberg
na dor do outro
[...]
no fim de morrer
[...]
[...]
ratos visitam
a caligrafia das estradas
grafadas na lamúria das solas
no
ato
da
fome
devoram
o tempo
e os endereços
sem o esteio do retorno
da classe social
de
ordinárias
botas
tristes
NO FOCINHO DO FUZIL [...]
no focinho do fuzil
a paz mutilada
nas vielas
o incêndio dos sangues
a chacina dos sóis
fuzilam
a cor negra dos corpos
sua honra
concede pétalas de lágrimas
em revoada
sobre o asfalto
o declínio no beijo da mãe
com o fel de grito na articulação das juntas do pai
ajoelha cruzes no rosto do filho
(Bertold Brecht)