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* Leiga, esposa e mãe. Bacharel em Teologia pela Faculdade Dehoniana. Cursa o mestrado em teologia
sistemática na PUC-Rio de Janeiro.
Introdução
Para abordar a experiência mística de João da Cruz faz-se mister uma cronologia
de sua vida, ainda que sucinta. Sua vida foi breve, sem fatos insólitos ou curiosos. É no
curso do cotidiano – no sofrimento em silêncio, nas feridas abertas pela incompreensão,
nas esperanças reavivadas – que floresce a santidade deste primeiro carmelita descalço,
muito severo consigo mesmo, mas paciente e terno com todos os que o circundam1.
João tinha entre cinco e seis anos quando, ao brincar com outras crianças, faz uma
experiência que o acompanhou ao longo da vida. Ele se dirige a um charco lamacento
(existiam muitos na região) e começa a brincar alegremente: na água lançavam-se com
força uns gravetos, depois eram apanhados quando emergiam. Mas João, distraído,
debruça-se e cai no charco. Seus amigos pedem socorro, mas João vem à superfície e
afunda novamente. Quando estava quase se afogando, uma belíssima senhora lhe
1
Cf. JOÃO DA CRUZ. Obras Completas. Petrópolis: Vozes; Carmelo Descalço do Brasil, 1984, p 8.
2
VELASCO, Juan Martin. Doze místicos cristãos. Petrópolis: Vozes, 2003, p 13. Também BERARDINO, Pedro Paulo
di. São João da Cruz – doutor do tudo ou nada. S. Paulo: Paulus, 1992, p. 15-40.
1
estende a mão para salvá-lo. Ele, porém, evita pegá-la para não sujar aquela linda dama
com sua mão lamacenta. Por fim, João é salvo por um camponês que ali passava. Esta
experiência o acompanhará para sempre.
O Carmelo
Não é fácil dizer porque este jovem estudante de Medina del Campo, entre várias
possibilidades de futuro, escolhe a Ordem do Carmelo. Entre as muitas hipóteses, a mais
provável é o seu profundo e convicto amor por Maria:
3
VELASCO, Juan Martin, op. cit., p 38-39.
4
Idem, p 59-60.
5
A Espanha do século XVI é mergulhada na grandeza político-militar que alimenta o orgulho nacionalista do povo.
Contudo, nos escritos de João da Cruz não encontramos a presença do ambiente e do tempo como em Teresa de Ávila:
castelos, exércitos, capitães, etc. São figuras estranhas à doutrina do místico espanhol. João da Cruz é sensível a outro
tipo de pensamento, apaixonado pelos místicos do norte, pela reforma das ordens religiosas e pela fidelidade à Igreja.
Tenta superar as divisões internas geradas por Lutero e outros grupos em desentendimento com Roma. Ele pertence ao
período espanhol de 1559 a 1591, em que a vida espiritual é revalorizada: oração mental, meditação, teologia espiritual.
Sem dúvida, esta renovação influi positivamente no espírito perspicaz e ao mesmo tempo aberto à experiência mística
de João da Cruz (cf. Obras completas, op. cit., p. 15).
6
Os estudos de filosofia e teologia foram realizados em Salamanca, que na ocasião vivia um grande esplendor. Durante
sua experiência acadêmica, residiu no convento carmelita de Santo André. O rigoroso sistema de estudo sufocava a
vocação contemplativa de João. Em crise, ele admite a hipótese de entrar para a Cartuxa (eremitas cartuxos). Foi
quando aparece Teresa de Ávila, em agosto de 1567: ela o convence a procurar a perfeição na fidelidade à Ordem do
Carmelo. Desse encontro nasce grande empatia entre ambos, historicamente duradoura. Iniciam, assim, uma intensa
colaboração em prol da reforma do Carmelo. Em 1568, em Duruelo, João da Cruz lança um novo ramo da família
carmelita, assumindo definitivamente a proposta de reforma teresiana (cf. TEIXEIRA, Faustino [org]. Nas teias da
delicadeza – itinerários místicos. S. Paulo: Paulinas, 2006, p 59).
2
reforma que visa instaurar a vida contemplativa como ideal principal da Ordem
carmelitana:
Sua fundação é devida ao cruzado Bertolo de Calábria (+1195), que em 1185 fixou
seu eremitério, juntamente com dez companheiros, perto da chamada gruta de
Elias no monte Carmelo. O patriarca Alberto de Jerusalém deu à companhia uma
regra de caráter rigorosamente contemplativo (1207-1209) e o papa Honório III a
aprovou em 1226. Os próprios membros da Ordem, até os tempos recentes,
afirmam sua derivação da escola profética e eremítica de Elias; lenda cuja
credibilidade foi posta em dúvida especialmente por Daniel Paepbroch, suscitando
uma disputa literária que por algum tempo se prolongou com muita vivacidade. Os
carmelitas constituíram-se numa Ordem de frades mendicantes somente quando,
expulsos do Islam, desde 1238 transmigraram na maior parte para Chipre, Silícia,
França e Inglaterra, e a vida eremítica foi substituída por uma forma
completamente ou parte cenobítica. Seu primeiro superior geral no Ocidente foi o
inglês Simon Stock (1247-65). O Papa Inocêncio IV, em considerações às maiores
asperezas fez-lhes concessões tendentes a mitigar a regra e as comparou aos
mendicantes (1247). O hábito que levam é castanho. O desenvolvimento tomado
pela Ordem - à qual no século XV (1452) se uniu também a seção feminina das
Carmelitas - foi realmente relevante. Para a popularidade contribuíram
grandemente o incremento que a Ordem deu à devoção mariana e o escapulário.8
7
BERARDINO, Pedro Paulo di, op. cit., p. 78-79.
8
BIHLMEYER Karl; TÜCHLE Hermann. História da Igreja II - Idade Média. S. Paulo: Paulinas, 1964, p 307.
9
Cf. Obras completas, op. cit., p 16.
3
A reforma carmelitana
Frei João é encerrado por nove meses no cárcere. Jogado numa cela escura,
apertada e sem higiene. Alimentava-se estritamente com pão, água e sardinhas. Toda o
seu compromisso com reforma carmelitana foi tido por desobediência e rebeldia. Contudo,
é neste contexto de solidão, provação e até desolação interior que nascem os primeiros
versos de seu esplêndido Cântico Espiritual 10.
A experiência mística
Como toda pessoa humana, João da Cruz traz em sua personalidade algumas
marcas do ambiente histórico em que vive. Nos escritos, é possível distinguir ao menos
três fatores que exerceram nele considerável influência: sua época, a Ordem Carmelita e
a Bíblia13. Toda a sua doutrina é baseada na Palavra de Deus: as Sagradas Escrituras
10
No artigo “Nos rastros do Amado” (Nas teias da Delicadeza, op. cit., p 64-98) Faustino Teixeira analisa o Cântico
Espiritual a partir das clássicas “três vias” do caminho místico (purgativa, iluminativa, unitiva) presentes, séculos antes,
em São Boaventura.
11
Cf. Idem, p 21.
12
Idem, p 23.
13
Cf. Idem, p 14.
4
são guia e estrada segura que conduz o ser humano à mais íntima, profunda e vital
comunhão com Deus14.
No seu desejo de Deus, frei João cultiva a liberdade na pobreza. Vive tão
despojado de tudo quanto possa obstruir o caminho contemplativo que não possui uma
túnica a mais, nem sapatos: quando inicia a reforma da Ordem, passa dias caminhando
descalço, em sinal de humildade e persistência. Viverá assim por toda sua vida, provando
e ensinando a singeleza e a sobriedade (donde o apelativo de “descalços” que ele e seus
confrades recebem)15. Para João, ser pobre significa ser livre, para canalizar todas as
suas energias em uma só direção, única realidade digna de ser amada: Deus.
Para frei João, só na absoluta desnudez e no vazio total de todas as coisas, a alma
encontra quietude, paz e repouso. Não se trata de renegar as coisas de Deus, de
anatematizar as criaturas. O problema é outro: não se podem confundir as criaturas
com o Criador. As criaturas não podem competir com Deus no coração do homem.
Deus é Deus. As coisas existem porque Deus as quer. Separadas dele e em
oposição a Ele, nada existe. Frei João, aqui, vê claro. Dividir-se entre uma e Outro,
significa não conhecer a Deus16.
Para João, depois que Cristo revestiu-se de pobreza para apresentar-se ao mundo,
ela não é mais considerada falta ou privação de bens, mas sim capacidade e
possibilidade única para se acolher a plenitude de Deus. Trilhar a senda do Nada é o
melhor caminho para se chegar ao Tudo:
(...) nenhum fragmento da alma pode ser subtraído à presença de Deus. Quando já
provado e maduro – escreve na Subida do Monte Carmelo – não deixa espaço
para presenças que retém e conquistam. O itinerário traçado será genuinamente
evangélico e autenticamente carmelitano; pode ser resumido em duas palavras de
absoluta radicalidade TUDO ou NADA. A radicalidade do nada é indispensável a
qualquer um que deseja a plenitude.17
14
Cf. Idem, p 17.
15
Cf. BERARDINO, Pedro Paulo di, op. cit., p. 50.
16
Idem, p. 51.
17
Idem, p. 48.
5
A experiência mística no cristianismo é a experiência de um Deus encarnado. Fora
deste dado central e absolutamente necessário, não há cristianismo. Não havendo
encarnação, não há possibilidade de Deus assumir todas as coisas por dentro e
viver a história passo a passo, por assim dizer “na contramão” de sua eternidade.
Não havendo encarnação, não há cruz, não há redenção, não há salvação.18
A tradução viva dessa gratuidade do amor do Amado talvez seja a razão mais
maravilhosa da sedução de João da Cruz. Numa de suas obras mais clássicas,
Simone Weil tinha assinalado que a amizade dos amigos de Deus é o que mantém
viva a intensidade da mirada em Deus. E, para ela, João da Cruz foi um desses
“amigos de Deus”. O que mais impressionava no místico espanhol era sua
sensibilidade ao mundo, seus formosos versos sobre a “beleza do mundo”. E
lamentava que este traço estivesse quase ausente na tradição cristã. Para ela, a
grande aporia do cristianismo era reconhecer-se, de direito, “católico”, mas afastar
de si as riquezas do universo. 19
Uma experiência que não pode ser retida é totalmente aberta. A poesia de João da
Cruz sobreviveu à obscuridade da prisão, resistiu as Instituições e até ao clima das
Inquisições. Sua poesia é livre destas circunstâncias sombrias. João da Cruz quebra
todas as barreiras e apresenta a imagem de um Deus amoroso, benevolente, cheio de
graça e rico de futuro21.
Quem é Deus para João da Cruz? João da Cruz é um guia como poucos para o
conhecimento de Deus. Toda sua obra é orientada para alertar do perigo, de se confundir
Deus com a idéia que fazemos Dele, por mais sublime que seja essa idéia. Por ter feito
uma profunda experiência de Deus, “João sabe como ninguém, que Deus é um mistério
insondável, absoluta transcendência – embora a palavra não apareça em seus escritos –
que por isso não se opõe à sua íntima imanência em toda a criação. Deus está acima de
18
BINGEMER, Maria C. L. “A mística cristã em reciprocidade e diálogo – a mística católica e o desafio inter-
religioso”. In TEIXEIRA, Faustino (org). No limiar do mistério. S. Paulo: Paulinas, 2006, p. 68.
19
TEIXEIRA, Faustino. “Nos rastros do Amado”. In Nas teias da delicadeza, op. cit., p. 100.
20
Cf. Idem, p. 9.
21
Cf. Idem, p 101.
6
tudo. Se podemos saber algo dele, é por ele mesmo e a partir de sua presença em nós”22.
Através da poesia, João encontrou uma maneira de dizer o indizível.
2. Mohammad e o Islam
22
VELASCO, Juan Martin, op. cit., p. 144.
23
Cf. Idem, p 61.
7
acesso às narrativas do Gênesis e do Êxodo, recitação dos Salmos, história dos
patriarcas bíblicos e também sobre Jesus, mediante seu provável contato com a
comunidade judaica de Medina e os cristãos presentes na Arábia. O estudo atento do
Alcorão nos remete a fontes judaicas (Torá, Salmos e Talmud) e cristãs (sinóticos e
alguns apócrifos).
O Islam não se expressa apenas como movimento cultural, unificador dos povos
árabes e promotor de uma organização religiosa articulada. Além da dimensão
comunitária (Umma) e legal (Sharia), desenvolveu também a dimensão mística (Sufi).
Esta, é considerada um elementos original do Islam, inseparável da pregação profética de
Maomé. Todas as Ordens Sufi (Tariká) fazem seu carisma (baraká) remontar a um mestre
(sheik) e deste a Mohammad, lembrado como o primeiro de todos os sufis.
8
despertar sua vocação religiosa. Suas primeiras pregações manifestam uma admirável
intimidade com Deus. No confronto da idolatria, ele não mostra apenas persistência, mas
o consolo da vontade divina que o envia e sustenta. O Alcorão traz inúmeros versículos
que revelam a interioridade e a “viagem mística”26 de Maomé, na origem do que hoje
consideramos o caminho sufi, ou seja, a mística muçulmana.
Os sufis representam a face mística do Islam, com seus métodos de oração, sua
sabedoria espiritual e sua forma própria de ler e interpretar o Alcorão: pois fazem uma
leitura espiritual do nobre Livro, remetendo sempre a Mohammad a autoridade última:
26
Durante uma visão, o profeta foi transportado de Meca a Jerusalém e, depois, elevado ao “sétimo céu” na presença da
Divindade. Esta “ascensão mística” tem um fundo semita próximo à experiência de Paulo, narrada em 2Cor 12,1-4. NO
Alcorão, é narrada na Sura 17: A viagem noturna. Sobre isto, cf. CINTRA, Raimundo. Mergulho no absoluto. S. Paulo:
Paulinas, 1982, p. 132.
27
CINTRA, Raimundo. Mergulho no absoluto, op. cit., p. 132.
9
mestres e observavam as regras da vida cenobítica, assemelhando-se à vida
religiosa das Congregações católicas. 28
No século V aparece no sufismo algo semelhante ao culto aos santos (o que era
contrário à tradição islâmica fundante). Os sufis mais velhos, já venerados em vida por
causa do seu exemplo e sabedoria, começam a ser invocados como santos depois de
mortos:
Nada poderia ser mais alheio às primitivas idéias islâmicas. Apesar do Corão, da
Tradição do racionalista, da teologia ortodoxa (que considerava a invocação aos
santos como forma velada de politeísmo), a veneração aos santos se infiltrou, pelo
sufismo na comunidade islâmica. Um sufi chegou a afirmar: “Sabeis que o princípio
e o fundamento do sufismo estão no conhecimento da santidade dos santos e
Deus”. Tal semelhança, afirmaria que o sufi reconhece que só Deus é Santo, mas
que os homens que se santificam participam da santidade de Deus, de modo a
poderem ser invocados como protetores daqueles que lutam contra o pecado.30
28
BETTENCOURT, Estêvão, op. cit.,p. 64.
29
CINTRA, Raimundo, op. cit., p. 133.
30
Idem, p 137.
31
Êxtase religioso seria um estado alterado de consciência, no campo religioso, cujos fatores motivacionais têm
igualmente características religiosas. O corpo, o tom de voz, a expressão facial e o pensamento se alteram. O êxtase
provoca as experiências traduzidas pelas tradições religiosas como “vôos mágicos”, “ascensão aos céus”, “viagem
mística” ou “acesso às altas esferas”. Esses vôos mágicos - dificilmente explicados em palavras e coceitos restritos – se
expressam por símbolos e metáforas. Ademais, o êxtase só ocorre se a mente estiver “possuída” pelo mistério, isto é,
pela fonte última de sentido (cf. SANTOS, Roseleny Alves. Entre a razão e o êxtase. S. Paulo: Loyola, 2004, p 40).
32
Cf. CINTRA, Raimundo, op. cit., p. 134.
10
presentes na Turquia, Síria, Iran, África e algumas cidades da Europa e América. Aos
poucos
o sufismo se apresenta mais emotivo, como mais pessoal. Aparece então a vida
dos santos, que surgem como leitura espiritual popularizada, escritas por sufis
piedosos e impregnados de um ardor místico comunicável. Conseguiram através
destes escritos populares, escritos por gente humilde e convertida ao sufismo,
moldar a mística islâmica com uma força irresistível. O sufismo popular foi à
primeira catequese e apologia do islamismo. Durante o século V da era islâmica, foi
fantástico o desenvolvimento do sufismo. Os chefes ortodoxos, os radicalistas,
temiam que as concentrações sufitas rivalizassem com as mesquitas. Entretanto,
os teólogos se julgavam como que detentores da verdadeira doutrina islâmica e
seus legítimos expositores. O conflito entre os legalismos e conservadorismos do
islamismo dos chefes religiosos oficiais (ulemás) e o islamismo popular místico dos
sufis era incontrolável.33
Originalidade e desenvolvimento
Todos os autores místicos do Islã passarão a falar sem medo do amor, do Deus
Amado e de seus místicos amantes. A poesia dos sufis popularizará essas
imagens belíssimas de maneira perene. Embora os místicos estivessem longe da
retórica, o tema do amor divino aparece com extrema agudeza e clareza teológica.
Deste amor, Deus é o único objeto. Ele é desejado e amado por si mesmo,
independente das recompensas que poderia dar a seus amantes. Rabia al-Adawiya
possui trechos belíssimos no qual fala dos “dois amores”: o “amor que procura sua
própria felicidade”, e o “amor desinteressado”. O amante desinteressado, segundo
os místicos do Islam, conseguirá pelo seu total desapego, o verdadeiro
conhecimento (marifa) do Adorado, do Amado. Pois professada a sua Unidade
(tawhid) o crente possui a Verdade plena e professa o Culto verdadeiro de
submissão (muslim). Sendo assim, a recusa da ciência profana e o reconhecimento
da caducidade das coisas resultarão na exaltação do verdadeiro conhecimento
(marifa), pelo qual se possui a gnose da realidade última dos seres e das coisas.34
33
Idem, p. 136.
34
Idem, ibidem.
11
ulemás (chefes religiosos e intérpretes autorizados da Suna) – se mostravam humildes e
reverentes diante dos simples sufis35. No Ocidente, um dos místicos sufis mais
conhecidos é Jalal ud-Din Rumi36, autor da memorável obra Masnavi. Seus poemas são
muito apreciados e reconhecidos universalmente.
Rumi já nasce num contexto favorável à irradiação mística. A região oriental do Irã,
conhecida como Khorassan e que hoje pertence ao Afeganistão, tem em sua proto-
história a presença marcante de tradições religiosas diversificadas, como o
budismo, o zoroastrismo, o hinduísmo e o cristianismo nestoriano. Os especialistas
reconhecem que o Islã afegão foi plasmado pela mística e pela abertura à
diversidade.37
Dizer o indizível
Há algo que irmana místicos cristãos, como João da Cruz, e os místicos sufis no
momento sublime da união extática. Igualmente embriagados pelo vigor existencial
35
Cf. idem, p 138.
36
Jalal ud-Din Rumi nasce em 1207 d.C. na província de Balkh, berço da civilização persa. De seu pai, Baha’ud-Din
Walad (um desconhecido teólogo e mestre espiritual) ele herda o interesse pelas questões teológicas e místicas.
37
TEIXEIRA, Faustino. “Rûmi: a paixão pela unidade”. In TEIXEIRA, Faustino (org). No limiar do mistério, op. cit.,
p. 297.
38
CINTRA, Raimundo, op. cit., p. 139.
39
IBN ARABI. Los sufis de Andalucía. Málaga: Editorial Sirio, 1990.
12
do encontro com o Amado, suas “expressões amorosas” rompem radicalmente
com as regras do inteligível.40
Tanto os sufis, quanto João da Cruz, situam sua viagem mística numa “noite
escura”. No seu poema homônimo (verso 1), o místico carmelita escreveu:
40
TEIXEIRA, Faustino. “O desafio da mística comparada”. In TEIXEIRA, Faustino (org). No Limiar do místério, op.
cit., p. 22.
41
Importa esclarecer que “passividade” (na literatura mística em questão) não quer dizer inércia, mas uma específica
participação da pessoa na recepção generosa da graça. É disponibilidade de acolhimento do Outro absoluto. Tal estado
se expressa, sobretudo, mediante imagens esponsais, como o “matrimônio místico” de Cristo com a Igreja, ou de Deus
com a alma.
13
místicos sufis, que se prendia à lenda de Majnum e Laila: um casal de amantes que
se separa, ficando então Majnum para sempre vagando pelo deserto em busca da
amada de seu coração, que vai ser sempre identificada com a noite, na qual se
esconde e exacerba o desejo. Com seu nome noturno, Laila se converteu num
autêntico arauto da experiência mística: abraçar Laila era, na linguagem codificada
dos sufis, abraçar a noite escura da união com Deus. No poema Noche oscura,
João da Cruz começa sua busca do Amado de seu coração na noite (em uma noite
escura). Os grandes comentadores carmelitas espanhóis propõem sempre que a
noite para ele é simbólica, na qual o santo intui instintivamente o abismo noturno da
experiência transcendente, parecendo, no princípio do poema, contrastar a noite,
em sua escuridão, com a luz ardente e clara das chamas do coração do poeta,
quando, chegando ao fim, as exclamações celebram o encontro acontecido.42
Além dos princípios da razão, há outros princípios de luz – de elevado preço – para
serem conquistados pelo amor a Deus. Além desta tua razão, Deus tem outras
razões que te garantirão alimento celeste. Com tua razão carnal podes conseguir
alimento terreno; pela razão dada por Deus podes subir aos céus! Quando – para
conseguir o duradouro amor divino – sacrificas tua razão, Deus te concede
recompensa dez vezes maior! (...) Sim, ó amado, o amor de Deus torna limitados
os raciocínios, pois se refugia na perplexidade. Através do amor, a perplexidade
afeta o poder da fala: já não se atreve a pronunciar o que se passa; pois se dá uma
resposta, teme grandemente que seu tesouro secreto escape de seus lábios. Por
isso, cerra os lábios antes de dizer sobre o bem e sobre o mal, para que o tesouro
não se lhe escape.44
42
BINGEMER, Maria C. L. “A mística cristã em reciprocidade e diálogo, a mística católica e o desafio inter-religioso”.
In TEIXEIRA, Faustino, No limiar do mistério, op. cit., p. 59.
43
Ibidem, p 60.
14
Esvaziamento de si para acolher o Outro
Como não ficar surpresos, de início, pelo fato de a Bíblia e o Alcorão aparecerem
perpassados pelo mesmo sopro? Afinal, notamos que cristãos e muçulmanos partilham a
concepção similar de fé como entrega e abandono de sua vida Àquele que é o
fundamento de tudo o que existe.
Para ambos, este Deus Único se desvela, ao mesmo tempo, como lei e graça, juiz
e salvador, revelado e oculto, Senhor e Benfeitor. Tanto o monoteísmo trinitário, quanto a
afirmação da unicidade divina no Islam, têm o mesmo fim: salvaguardar o mistério único
de Deus e sua transcendência. O dogma trinitário, para os Pais da Igreja antiga, exprimia
com precisão este mistério do Deus indizível, aquele que não pode ser captado em
conceitos, mas somente suplicado e adorado46. Diante disso, poderíamos abraçar a
proposta de reler as nossas tradições místico-teologais à luz da tradição do outro, neste
caso, do Islam.
Para os cristãos, isso significa uma redescoberta da Aliança com Abraão e uma
ampliação de nossas noções de povo de Deus e eleição. Significa ainda, para nós, a
tomada de consciência clara de que Deus falou com autoridade, não somente na história
44
RUMI, Jalal ud-Din. El masnavi. Barcelona: Visión Libros, 1984, p. 300-301 (trad. de Marcial Maçaneiro).
45
Novamente Maria Clara L. BINGEMER no seu ensaio “A mística cristã em reciprocidade e diálogo”, op. cit., p 39.
46
Cf. GABUS, Jean Paul. “Atitude cristã em face do Islã”. In Concilium n. 116(1976), p. 53.
15
de Israel ou na Igreja cristã, mas igualmente em língua árabe e na tradição do Islam
(herdeiros das promessas abraâmicas através de Ismael, do qual descendem). Esta voz
de Deus no Islam não se insere, de algum modo, no prolongamento da tradição judaico-
cristã? Daí nosso cuidado em não falar do mistério de Israel ou do mistério da Igreja de
modo excludente – preferindo falar, como fazia Paulo, do mistério de salvação ou do
mistério da fé que inclui toda a humanidade na sua universalidade redentora (cf. Rm 11,
25-36)47.
Afinal, o que significa, hoje, salvar a humanidade? Nossa época proclama cada vez
mais uma crescente “morte de Deus” e, ao mesmo tempo, o advento do “homem novo”.
Esta “morte de Deus”, na verdade, significa uma volta ao politeísmo e ao relativismo: tudo
se torna sagrado, o homem, a nação, a cultura, a história etc. A “morte de Deus” significa
também a morte do homem; e isso implica a perda de sentido do outro como “sinal de
Deus para mim”. O homem que nega Deus a si mesmo, aliena-se e desumaniza tudo o
que encontra.
Foi entre a 3ª e 4ª Seção Conciliar, que foi votada a Declaração Nostra Aetate. O
curso do Concílio não teria sido este, se a autoridade de Paulo VI não tivesse se imposto
– discreta, mas resolutamente. De fato, entre a 3ª a 4ª Seção (na qual deveria ser
aprovada a Declaração Nostra aetate) Paulo VI publicou sua encíclica programática
Ecclesian suam e decretou a criação do Secretariado Pontifício para os Não Cristãos. Até
hoje sua encíclica permanece atual e é considerada a charta magma do diálogo inter-
religioso e inter-cultural.
47
Cf. idem, ibidem.
48
Cf. Ibidem, p. 52-54.
49
Nostra aetate 3.
50
MOUBARAC, Youaqim; HARPIGNY, Guy. “O Islã na reflexão teológica cristã contemporânea”. In Concilium n.
116(1976), p. 22.
16
Paulo VI nos mostra, com este documento, que é através da experiência mística
que se abre definitivamente a possibilidade do diálogo inter-religioso. Este diálogo tem
certamente algo de sedutor, e uma grande beleza em fazer experiência de Deus no
“diferente”. Mas o encanto que acompanha tal possibilidade não pode, porém, ocorrer
desconhecendo ou relegando o que há de único e irrevogável em cada religião. Há que
reconhecer que os místicos, em sua profundidade espiritual, teceram entre si uma intensa
confraternidade, com possibilidades de partilha. Basta meditar, lado a lado, as narrativas
de João da Cruz e Rumi:
Conclusão
Nas linhas deste artigo, percebemos que a experiência mística nos conduz à
abertura ao Amor absoluto – que, aliás, não é patrimônio de uma religião em particular,
mas dom misterioso de Deus a todo ser humano que ele criou. O que buscamos fazer
nestas páginas foi uma tentativa de aproximação do significado da busca pelo Amado
presente em João da Cruz e na mística sufi. Contatamos que, cristão ou muçulmano,
o místico é atraído por Deus. Sente-se e sabe-se amado por Deus. Neste “sentir
sabendo” e “saber sentindo”, falar de Deus é dizer desejo. O místico ama e quer
51
RUMI, Djalâl-od-Dîn. Rubâi’yât (fragmento). Tradução brasileira: TEIXEIRA, Faustino; BERKENBROK, Volney
(org). Sede de Deus – orações do judaísmo, cristianismo e islã. Petrópolis: Vozes, p. 26.
17
caminhar no amor. (...) É uma experiência singular. Tão radicalmente humana,
porém, que se torna universal. Além da originalidade de cada um, há semelhanças
sensíveis entre os místicos, quer do Ocidente, quer do Oriente.52
Quanto à união com Deus, João da Cruz, Rumi e Al-Hallaj usam a imagem do
enamoramento e da entrega. João da Cruz vai dos primeiros toques aos esponsais
místicos, expressando de modo figurado a união entre a pessoa e o divino:
De seu lado, com evidente ousadia poética, o místico Al-Hallaj declara: “Tornei-me
aquele que amo, e Aquele que amo tornou-se eu”53.
Por usa vez, Rumi tem ao menos oito narrativas sobre o amor do Amado e da
amada, no seu livro Masnavi. Os principais temas são: descrição do amor, Laila e seu
querido Majnum, debate por aplicar o termo “Noiva” a Deus, o Amado como causa da
beleza terrena, o amor que suporta os infortúnios do Amado, o verdadeiro amante busca
a união, o amor gera amor, as alegrias da união mística com o Amado.
Em certo momento, Rumi toca no segundo aspecto a que nos referimos nesta
conclusão: o respeito pelo Absoluto. Alerta para a distinção entre Deus e os afetos que
por ele sentimos; entre o Mistério e os retratos que dele pintamos. Faz isso de modo
inteligente, brincando com as palavras sufi (místico) e safi (puro). Diz que o sufi deve ser
safi – alguém que procura a Deus, mesmo na desolação, sem perder-se no gosto de seus
“raptos” místicos:
Quem se limita aos raptos religiosos (afetos e êxtases) não passa de simples
homem: algumas vezes seu rapto é excessivo, outras vezes é insuficiente.
Qualquer sufi pode ser “filho das estações” (apegado aos seus próprios estados
mentais e afetivos). Mas quem é puro (safi) é exaltado sobre as estações e seus
estados de ânimo. Ouve: “Tu és amante de teus próprios raptos, não de Mim: pois
te voltas a Mim, com a única esperança de experimentar êxtases”. Atenção: a casa
da lua não é a lua em si mesma; assim como o retrato da amada não é ainda a
amada. Qualquer sufi é “filho das estações”, ora água, ora fogo. Mas o puro (safi)
está mergulhado em amor irresistível. Quem nasceu de qualquer um nunca está
livre das estações e de seu estado de ânimo. Mas o puro, nascido d’Aquele que
52
Cf. MAÇANEIRO, Marcial. Mística e erótica. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 62.
53
Al-Hallaj apud CASPAR, Robert. La mística II. Roma: Città Nuova, 1984, p. 666.
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nunca foi gerado, está afogado na luz do Ingênito Deus. Vai, pois, e busca um
amor assim, se de fato estás vivo. Caso contrário, estás escravizado por tuas
próprias estações, tão inconstantes. Não contemples teus próprios retratos, belos
ou feios. Contempla, antes, teu amor sincero e o objeto de teu desejo. Não
contemples a visão de tua própria fraqueza ou vileza. Contempla o objeto de teu
desejo, ó exaltado!54
54
RUMI, Jalal ud-Din, El masnavi, op. cit., p. 153-154 (seleção e tradução de Marcial Maçaneiro).
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