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Deixêmo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado
ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à luza dum
lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca,
celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a
fazer-se lembrado.
Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam
os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cór, conhece-os
pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas
as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na
idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos
mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o
amor – mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja
soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.
[...]
Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar
dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a
escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca:
Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo
da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo
– “que sabe-me”…
Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor – dor
gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.
Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima
ânsia.
E morreu.
De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que
com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos
Pronomes.
De gramática guardo a memória dos maus meses que em menino passei decorando, sem
nada entender, os esoterismos do Augusto Freire da Silva. Ficou-me da “bomba” que levei, e
da papagueação, uma revolta surda contra a gramática e os gramáticos, e uma certeza: a
gramática fará letrudos, não faz escritores. [...] tentei refocilar num Carlos Eduardo Pereira.
Impossível. O engulho voltou-me – a imagem do Freire e da bomba. Dá-me ideia duma
morgue onde carniceiros de óculos e avental esfaqueiam, picam e repicam as frases,
esburgam as palavras, submetem-nas ao fichário da cacofonia grega. A barrigada da língua
é mostrada a nu, como a dos capados nos matadouros – baços, fígados, tripas, intestino
grosso, pústulas, “pipocas”, tênias. Larguei o livro para nunca mais, convencido de que das
gramáticas saem Silvios de Almeida, mas não Fialhos. Mil vezes (para mim) as
ingramaticalidades destes do que as gramaticalidades daqueles. E entregueime a aprender,
em vez de gramática, língua – lendo os que a têm e ouvindo os que falam expressivamente
(LOBATO, [1944] 2010: 329).