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2010
RESUMO
Este trabalho tem o escopo de analisar alguns dos paradoxos normativos presentes no Título
VII da Constituição Federal de 1988 a partir da idéia de ironia na forma como trabalhada por
alguns pensadores da tradição filosófica ocidental. Tais paradoxos consistem em dispositivos
cujos conteúdos apontam para sentidos inversos, podendo acarretar um descompasso interno
no entendimento da ordem constitucional, implicando a possibilidade de surgimento de uma
zona anômica de indeterminação, fundada na inadequação e indeterminação destes conteúdos
paradoxais. Tal é o caso da oposição entre propriedade privada e função social da
propriedade, a um turno, e entre as diversas compreensões do conceito de livre iniciativa, a
outro. Em um primeiro momento, faz-se um estudo do conceito de ironia na esteira de alguns
filósofos que sobre o tema versaram, como Sócrates, Schlegel e Hegel, para, em seguida,
aceitar alguns pressupostos colocados por Vladimir Safatle. Após, passa-se à análise dos
paradoxos normativos presentes na ordem econômica constitucional, expondo as contradições
de seus conteúdos a partir da exposição das oposições no ordenamento positivo e da
divergência doutrinária e jurisprudencial acerca de seus aspectos substanciais. Na obra de
Diderot, O Sobrinho de Rameau, sobre a qual Hegel se debruça na Fenomenologia do
Espírito, há, de lado, Eu, o narrador, um filósofo, e Ele, o sobrinho do célebre compositor
Jean-Phillipe Rameau, um jovem sarcástico, inteligente, extravagante e imoral. Ao mesmo
tempo em que segue os valores da época, o sobrinho tenta perverter e questionar tais valores
com pretensão universal – os valores do Iluminismo. A época em questão era de desagregação
dos substratos normativos que dão unidade social. Ou seja, estava-se em um período de
mudança das estruturas normativas que legitimavam a sociedade de então. A consciência de
uma situação como essa se manifesta como ironização. O Brasil passou por situação
semelhante. Após o desfazimento das regulações normativas da anterior ordem autoritária,
constrói-se no País uma nova realidade jurídica de interação social e estatal. Entretanto,
subsistem ainda conjunturas internas à nova ordem constitucional através das quais não se
visualiza a coesão de disposições jurídicas unívocas. A Ordem Econômica Constitucional de
1988 está nesse contexto. A negatividade da ironização de seu conteúdo pode conduzir à
inversão e profanação da realidade constitucional. As conseqüências disso podem ser
significativamente danosas à ordem democrática. Por isso, calha uma interpretação
constitucional objetivando a relevância da unidade do texto com visas à consecução dos
objetivos constitucionalmente previstos.
ABSTRACT
*
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFC. Doutor em Direito pela UFMG/Universidade
de Frankfurt. Procurador do Município de Fortaleza.
*
Aluno do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC. Bolsista de Iniciação Científica do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
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This paper aims to demonstrate some of the paradoxical commandments in the Constitutional
Economic Order of 1988 starting with the idea of irony in the western philosophical tradition.
These paradoxical commandments are the rules which contents have inverted senses. It could
bring about an internal disturb in the constitutional order’s interpretation and also a possibility
of emergence of a anomie’s indetermination zone. That is the case of the opposition between
private property and social function of property, on the one hand, and between the several
interpretations of free enterprise’s concept, on the other hand. The analysis started on the
concept of irony of the western philosophical tradition, especially in Socrates, Schlegel and
Hegel. Still on this reflection, some conclusions were underlined in the guideline of Vladimir
Safatle's thought. Then, the paradoxical commandments are discussed in the perspective of
the legal text and of the doctrinaire and jurisprudential divergences. Diderot’s Rameau’s
Nephew, about what Hegel discusses in The Phenomenology of Spirit, shows two characters:
I, a narrator-like persona, a philosopher, and Him, the nephew of the famous composer Jean-
Phillipe Rameau, a sarcastic, smart, extravagant and immoral young man. Him followed the
rules of his time, but also tried to pervert the social principles of the time (the values of the
Enlightenment), arguing about their universality pretension. There was too much normative
disaggregation of the social unity in this epoch. It means there were lots of changes in the
normative structures that gave legitimacy in the society. The conscience of this situation
showed itself as ironization. Brazil had a similar situation. After the end of the authoritarian
normative regulation, a new juridical reality has been built in our country. However, some old
normative structures subsist, although the new constitutional order. That makes the cohesion
of the juridical commandments less strong. The constitutional economic order is part of this
context. The negativity of the ironization could make the inversion and profanity of the
constitutional reality. The consequences of that could be significantly damaging to the
democratic order. Because of that, it’s necessary a constitutional interpretation that projects
the unity of the text, aiming to achieve the constitutional objectives.
INTRODUÇÃO
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1 A IDÉIA DE IRONIA
sucessivamente aos seus interlocutores nos diálogos que travava, caracterizadas por uma
dialética negativa, isto é, perguntas e respostas cuja síntese resulta num negativo1, eram
revestidas pela ironia, essência do núcleo do posicionamento socrático2.
Em Protágoras, trava-se uma discussão entre Sócrates e Protagóras, acerca da
possibilidade ou não da virtude ser ensinada. Este, sofista, posta-se pela viabilidade de se
ensinar a virtude. Aquele, pela impossibilidade3. A ironia nessa obra consiste no fato de que
Sócrates, no intento de demonstrar a impossibilidade de se ensinar a virtude, transforma-a no
seu objeto de conhecimento, de estudo, provando, assim, o oposto, é dizer, que a virtude não
pode ser objeto de ensino 4.
O cerne d’O Banquete é uma discussão sobre a natureza e as qualidades do amor.
Tudo ocorre em uma festa mundana onde várias pessoas ilustres estão presentes, entre eles
Agaton, poeta trágico ateniense, Aristófanes, maior dramaturgo da comédia grega, e
Alcibíades, político ateniense. No primeiro contato com a ironia de Sócrates, o indivíduo se
sentia à vontade. Entretanto, após isso, Sócrates se postava não em igualdade de condições
nas relações de amor intelectual de que fazia parte, isto é, como amante, mas como amado5. É
nisso que consiste a ironia, que acalenta para depois atormentar, que diz o sim para significar
o não 6.
A República é um diálogo cujo tema central é o entendimento do que é a justiça. Ao
final do Livro I d’A República, Sócrates chega à conclusão de que não obteve resultado algum
a partir da discussão travada7. Aqui, o primeiro livro tem consciência de não só ter chegado a
um resultado vazio, mas a um resultado negativo. Ou seja, após toda a discussão, perguntas e
repostas e divagações desdobradas ao longo do Livro I, chegou-se a um resultado negativo:
continua-se sem nada saber. Com Kierkegaard, é possível visualizar o cunho irônico disso em
si e por si mesmo8.
1
É preciso observar que as perguntas e respostas nos diálogos platônicos são uma espécie de dialética, contudo
sendo precário o momento de unidade na síntese, posto que, para cada nova resposta, é possível uma nova
pergunta. Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates.
Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls. Vozes: Petrópolis, 1991, p. 41-42.
2
Cf. Ibid., p. 23-26.
3
Cf. PLATO. Protagoras. Tradução de C. C. W. Taylor. Oxford: Oxford University, 1991, p. 11 e 15.
4
Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. Op. cit., p. 61.
5
Cf. PLATÃO. O Banquete. Tradução de J. C. de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1972, p. 50-57. (Os
Pensadores).
6
Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. Op. cit., p. 50-53.
7
Cf. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1996, p. 52.
8
Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. Op. cit., p. 100.
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II. O interesse pelo infinito era temática recorrente entre os filósofos e poetas do
romantismo. Assim, Schlegel tentava, mediante suas reflexões filosóficas, chegar ao infinito.
Nesse percurso, apercebeu-se da filosofia e da arte como meios ao infinito. A consciência
filosófica permitiria a racionalização acerca do infinito9. Entretanto, Schlegel colocava que a
filosofia não concluía com inteireza seus percursos investigativos:
No que tange à arte, Schlegel diz que o artista renuncia e anula sua singularidade, no
intento de alcançar o infinito: “O artista que não renuncia a todo o seu si mesmo é um servo
inútil”11. Porém, muitos deles trazem o infinito para a arte com leviana e comprometedora
facilidade: “Há escritores que bebem o incondicionado como água, e livros em que até os cães
se referem ao infinito”12.
A partir da inconsistência tanto da filosofia como da arte para se alcançar o infinito,
surge, aqui, uma idéia trabalhada de modo interessante por Schlegel: a ironia. Esta, para o
filósofo do romantismo, é a mediação jocosa entre contrários inconciliáveis13. A consciência
da impossibilidade e da necessidade de conciliação entre o finito e o infinito é elemento
constitutivo da ironia, que é, justamente:
9
Cf. SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras,
1997, p. 26-27.
10
Ibid., p. 53-54.
11
Ibid., p. 158.
12
Ibid., p. 29.
13
“[...] a ironia, uma síntese absoluta de antíteses absolutas, alternância de dois pensamentos conflitantes que
engendra continuamente a si mesma.”. Ibid., p. 66.
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III. Sabe-se que Hegel era um crítico do romantismo. É preciso ainda colocar: Hegel
era um crítico da ironia romântica. Tal se dava no contexto de uma realidade política e social
peculiar da Alemanha da época de Hegel, sobretudo no que se refere à classe intelectual de
seu país.
Ao passo que países como a França e a Inglaterra, que tinham passado por
revoluções liberal-burguesas, a Alemanha no século XIX era um país agrário e atrasado do
ponto de vista do desenvolvimento. Entretanto, subsistia uma classe intelectualizada, em meio
ao marasmo nacional em que se achava a Alemanha: era a “miséria alemã”. Nesse passo, a
intelligentsia alemã estava envolta à solidão, à miséria, à falta de público, à exaltação e à
incapacidade do País em dar forma à razão capitalista que fazia o progresso prosperar nos
vizinhos do continente europeu17.
A intelligentsia romântica da época tinha plena consciência da situação malograda
em que se encontrava. Mas, para resistir a essa conjuntura, apegava-se à ironia, elemento de
sarcasmo em que se apoiava a intelectualidade alemã para suportar seu malogro existencial
em meio à decadência nacional. É dizer, a ironia era a atitude consciente da classe intelectual
no contexto da “miséria alemã”, onde, defronte ao marasmo político e a indeterminação
14
Ibid., p. 37.
15
Ibid., p. 28.
16
Cf. Ibid., p. 130.
17
ARANTES, Paulo Eduardo. Um reforma intelectual e moral. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento
da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã. São
Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 331-333; Por que permanecemos na província? In: ARANTES, Paulo Eduardo.
Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da
miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 349-351.
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subjetiva, o intelectual se agarrava para justificar sua infeliz situação18. É contra essa ironia
que Hegel se insurge19.
Ainda na seara do pensamento hegeliano, notadamente no que concerne às suas
relações com a ironia, um contexto diferente da conhecida crítica de Hegel à ironia romântica
deve ser sublinhado. Na esteira das contribuições teóricas de Paulo Eduardo Arantes e
Vladimir Safatle, as percepções hegelianas consignadas na Fenomenologia do Espírito e as
implicações que se fazem notar na obra O Sobrinho de Rameau, de Diderot, hão de ser aqui
mais detidamente consideradas.
Essa obra é um diálogo entre Eu, o narrador, filósofo, e Ele, Jean-François Rameau,
sobrinho do célebre músico Jean-Phillipe Rameau, um jovem ocioso que entende de arte e
música e que Eu apresenta como original, excêntrico, extravagante, imoral, provocador,
repleto de contradições e possuidor de bom senso e desrazão20. Na fala do sobrinho de
Rameau, percebe-se que ele está a tentar perverter valores tendentes à validade universal
incontestável, defendidos por Eu – os valores do Iluminismo 21.
Porém o sobrinho não rompe com a Ilustração. Apenas, com sua postura sarcástica,
questiona subliminarmente, no tentame de ironizar e interverter condutas incontestáveis, os
valores que aspiram universalidade22. Nesse sentido, a linguagem irônica do sobrinho
caracteriza a “palavra que, ao mesmo tempo, segue o código e o transgride”, representando “o
momento inaugural do advento das aspirações modernizadoras do Esclarecimento”23. A ironia
que a tudo perverte é um descompasso interno fundamentado na experiência de inadequação e
indeterminação 24.
A época retratada na obra em comento era de desagregação dos substratos
normativos que dão unidade social. Ou seja, estava-se em um período de mudança das
estruturas normativas que legitimavam a sociedade de então. A consciência de uma situação
18
Idem. Origens do espírito de contradição organizado. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da
dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã. São
Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 219-223.
19
“[...] Hegel sente a ironia como uma sombra sempre pronta a se deixar confundir com o corpo da dialética. E
lá onde a proximidade é grande, a violência da crítica deve ser ainda maior”. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e
falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 37; Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Paradoxo do intelectual.
In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel:
antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 40-44; HEGEL, Georg Wilhelm
Friedrich. Op. cit., p. 264-265.
20
DIDEROT, Denis. Le neveau de Rameau. Paris: Poulet-Malassis, 1862, p. 2.
21
Cf. SAFATLE, Vladimir. Op. cit., p. 42.
22
Cf. Ibid., p. 58; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Menezes.
4. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 359-364.
23
SAFATLE, Vladimir. Op. cit., p. 48.
24
Cf. Ibid., p. 58.
186
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como essa se manifesta como ironização25. O Brasil passou por situação semelhante. Após o
desfazimento das regulações normativas da anterior ordem autoritária, constrói-se no País
uma nova realidade jurídica de interação social e estatal. Entretanto, subsistem ainda
conjunturas internas à nova ordem constitucional através das quais não se visualiza a coesão
de disposições jurídicas unívocas.
Tal se dá no contexto da ordem econômica da Constituição Federal de 1988, em que
não se determinam as indicações normativas para um caminho a se seguir na construção da
nova realidade jurídica. Ao revés, vê-se normas que apontam em sentidos diversos e,
consequentemente, interpretações em sentidos opostos. Isso pode condicionar uma guinada
para uma zona de indeterminação capaz de inverter a realidade constitucional. A anomia,
gerada pela negatividade da ironização e subseqüente confusão normativa dos dispositivos
constitucionais contrários, pode gerar resultados incongruentes com as aspirações surgidas
com a nova Constituição.
É por isso que se faz imprescindível o estudo dos dispositivos constitucionais da
ordem econômica, bem como a abordagem das divergências doutrinárias no que se refere à
sua interpretação. Firmada a compreensão dos paradoxos que compões tais normas, coloca-se
o desafio ao Supremo Tribunal Federal de emprestar uma adequada compreensão aos opostos
sentidos existentes na Constituição, como forma de não permitir a negatividade da ironização
absoluta da realidade legar nossa ordem constitucional a uma zona de indeterminação jurídica.
I. Ao se ter em vista que o contexto em que foi elaborada a Carta foi de grandes
debates pautados em rígidas divergências político-partidárias, é possível visualizar o ânimo
dos constituintes em torno de disputas muitas vezes contrapostas. De um lado, encontravam-
se grupos favoráveis a uma participação diminuta do Estado no sentido da atuação na esfera
social e econômica. De outro, havia segmentos que intentavam ver prescritos na Constituição
direitos e garantias demandados pela população, em relação aos quais se impunha ao ente
estatal o dever de agir ativamente26.
25
Cf. Ibid., p. 65.
26
Sobre o tema, cf. PILATTI, Adriano. A constituinte 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem
econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
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27
HORTA, Raul Machado. Constituição e ordem econômica e financeira. Revista de Informação Legislativa,
n. 111, jul./set., 1991, p. 15.
28
Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 82 e 85.
29
Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 50.
30
“A declaração do caráter sagrado da propriedade, contida no art. 17, é um evidente anacronismo. Sagrada era a
propriedade greco-romana, intimamente ligada à religião doméstica, à casa de família, sede do deus do lar, e ao
terreno adjacente onde ficavam as sepulturas dos membros do gens. A sacralidade desses bens, aliás, era bem
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marcada pela sua fixidez e imobilidade: longe do caráter desprezível das coisas mobiliárias (res mobilis, res
vilis), a propriedade tradicional é sempre imóvel, à imagem das coisas divinas”. COMPARATO, Fábio Konder.
Op. cit., p. 152.
31
Cf. Ibid., p. 183. Sobre as principais modificações trazidas com a Constituição mexicana de 1917, cf. VAZ,
Isabel. Direito econômico das propriedades. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 77-99.
32
Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 195 e 198. Para um debate sobre a ordem econômica na
República de Weimar, ver: BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade
de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue, 2004, 25-64.
33
Cf. FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do direito privado. In: TIMM, Luciano Benetti;
MACHADO, Rafael Bicca. Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 146; MOREIRA,
Egon Bockmann. Reflexões a propósito dos princípios da livre-iniciativa e da função social. In: TIMM, Luciano
Benetti; MACHADO, Rafael Bicca. Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 241-244;
MATIAS, João Luis Nogueira. A função social da empresa e a composição de interesses na sociedade
limitada. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. 323 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação
em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 63-71.
189
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Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput), cujos objetivos fundamentais são
garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e marginalização e reduzir
as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, sem preconceitos
e discriminações, para construirmos uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art.
3º), a propriedade privada – com todas as implicações que a expressão significa ou
pode significar – não se legitima mais pelos frutos que dela extrai seu senhor, mas,
igualmente, pela função que desempenha no contexto da sociedade34.
Vale observar que não se deve entender a total superação ou mitigação do direito
individual de propriedade, ante a sua funcionalização a partir do texto constitucional37. Tal
não se coadunaria com a opção econômica capitalista feita pelo País. O que acontece é que,
mesmo em relação aos mais tradicionais e convencionais direitos individuais, como é o caso
da propriedade, não se pode visualizar sua garantia e exercício sem a existência de
regulamentação jurídica38. Desse modo, a potencialidade da autonomia da vontade existe, mas
a ela são impostas finalidades normativamente previstas que transcendem os intentos
individuais39.
34
PETTER, Josué Lafayete. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado e o alcance do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 132.
35
DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Função social da propriedade e livre iniciativa. Uma análise da
proibição de cobrança do uso do estacionamento pelos shopping centers. Nomos: revista do curso de mestrado
em direito da UFC, v. 27, jul./dez., 2007, p. 248-249. Sobre o caractere subjetivo do direito de propriedade, cf.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da função social da propriedade. Revista Latino-
Americana de Estudos Constitucionais , n. 2, p. jul./dez., 2003, p. 555-557.
36
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 611.
37
Como colocam Vladimir da Rocha França e Germano Schwartz e Rafael Machado Soares. Cf. FRANÇA,
Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista de Informação Legislativa,
n. 141, jan./mar., 1999, p. 14-15; e SCHWARTZ, Germano; SOARES, Rafael Machado. A função social do
direito e a questão da propriedade: expectativas normativas. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael
Bicca. Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 363.
38
Cf. SUNSTEIN, Cass R. Designing democracy: what constitutions do. New York: Oxford University, 2001,
p. 222; HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York:
Norton, 2000, p. 59-76; VERA, Flávia Santinoni. A função social do direito de propriedade e o conceito de
produtividade no Brasil. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca. Função social do direito. São
Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 335.
39
Cf. MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de Informação Legislativa, n.
168, out./dez., 2005, p. 190.
190
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40
LANE, Pedro. STF: decisões político-ideológicas nos casos de intervenção do Estado no domínio econômico.
Monografia (Escola de Formação). Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo, 2006, p. 7. Disponível
em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/85_Pedro-VersaoMarco2007.pdf>; Acesso em: 13 set. 2009.
41
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2001, 3 v, p. 106.
42
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 788.
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43
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 240.
44
Cf. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da constituição
de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36-37.
45
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.
202.
46
Ibid., p. 208.
47
Aqui, “intervenção” não tem maiores pretensões ideológicas, sendo somente sinônimo de “atuação” do Estado,
do mesmo modo que faz Gilberto Bercovici. Cf. BERCOVICI, Gilberto. O ainda indispensável direito
192
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econômico. In: BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita; BERCOVICI, Gilberto; MELO, Claudineu de.
Direitos humanos, democracia e república: homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier
Latin, 2009, p. 504, nota 3.
48
Seguiu-se, nesse item, uma linha expositiva semelhante à percorrida por: LANE, Pedro. STF: decisões
político-ideológicas nos casos de intervenção do Estado no domínio econômico. Monografia (Escola de
Formação). Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo, 2006, p. 18-28. Disponível em:
<http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/85_Pedro-VersaoMarco2007.pdf>; Acesso em: 13 set. 2009.
193
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Posto que o monopólio de uma atividade considerada econômica não deve ser
pertinente à atuação do Estado, que só age nesse domínio em casos excepcionais e
subsidiariamente, uma lei que prescreve tal exclusividade não se harmoniza com os
fundamentos ordenadores não só da ordem econômica (art. 170 e seguintes), mas sobretudo
da própria República (art. 1º, IV). Nessa linha, não merece, segundo o Ministro Marco
Aurélio, a lei nº 6538 de 1978 ser recepcionada pela Constituição Federal de 1988.
II. O Ministro Eros Grau, em seu voto, pontua esquematicamente, acolhendo os
fundamentos da tese veiculada pela parte argüida, que serviço postal não consubstancia
atividade econômica, pois se trata de serviço público. Não tem sentido, pois, a argumentação
da argüente que traz à baila ferimento aos princípios da livre iniciativa e da livre
concorrência:
[...]o serviço postal é serviço público. Portanto, a premissa de que parte a argüente é
equívoca. O serviço postal não consubstancia atividade econômica em sentido
estrito, a ser explorada pela empresa privada. Por isso é que a argumentação em
torno da livre iniciativa e da livre concorrência acaba caindo no vazio, perde o
sentido.
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ABRAED, no que foi acompanhado pela maioria dos ministros, que decidiram pela recepção
da lei questionada e conseqüente manutenção do monopólio dos serviços postais pela ECT.
Da análise dos votos em torno dos quais se agruparam os posicionamentos
majoritários dos ministros, é possível ver dois eixos interpretativos acerca da ordem
econômica na Constituição, bem como do papel do Estado nessa seara. Por um lado, há um
posicionamento que entende como mais adequada uma atuação estatal voltada para subsidiar
a atividade econômica privada, implicando uma concepção do fundamento da livre-iniciativa
plenamente ligada à tradição liberal, relacionada ao sistema capitalista de produção. Por outro,
há um posicionamento que reconhece que a atuação do Estado no domínio econômico é não
apenas importante, mas imprescindível na consecução dos fins advindos do texto de 1988. Tal
concepção dá por conseqüência um conceito distinto de livre iniciativa, em que esta é vista
também a partir da iniciativa do Estado em implementar os mandamentos constitucionais.
Essa posição se intenta pautada por uma visão não apartada da Constituição, sob a qual se vê
a ordem econômica relacionada aos fundamentos e objetivos escolhidos pelo povo e inscritos
na Carta.
3 CONCLUSÃO
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Sobre o tema, cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo:
Boitempo, 2004; Means without end: notes on politics. Tradução de Vincenzo Binetti e Cesare Casarino.
Minneapolis: University of Minnesota, 2000; Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Tradução de Daniel
Heller-Roazen. Stanford: Stanford University, 1998. Ver também: ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do
real!: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São
Paulo: Boitempo, 2003, p. 45-47; CORVAL, Paulo Roberto dos Santos. Teoria constitucional e exceção
permanente: uma categoria para a teoria constitucional no século XXI. Curitiba: Juruá, 2009, p. 57-151;
FIGUEIREDO, Ivanilda. As sentinelas de Berlim: por uma teoria dos direitos fundamentais imune a períodos de
exceção. In: VIEIRA, José Ribas. Constituição e estado de segurança nas decisões do Tribunal
Constitucional Federal Alemão. Curitiba: Juruá, 2008, p. 37-42.
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REFERÊNCIAS
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2004.
______. Means without end: notes on politics. Tradução de Vincenzo Binetti e Cesare
Casarino. Minneapolis: University of Minnesota, 2000.
______. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Tradução de Daniel Heller-Roazen.
Stanford: Stanford University, 1998.
ARANTES, Paulo Eduardo. Origens do espírito de contradição organizado. In: ARANTES,
Paulo Eduardo. Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel:
antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
______. Paradoxo do intelectual. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da
dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da
miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
______. Por que permanecemos na província? In: ARANTES, Paulo Eduardo.
Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos
sobre o ABC da miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
______. Uma reforma intelectual e moral. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da
dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da
miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
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