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Maria Silva Klöchner, Lísia Coelho Leite

José Facundo Passos de Oliveira, Léia


Lísia C. Leite – Quando fui
convidada a participar desta mesa
para falar sobre Ser Psicanalista,
ocorreu-me que, em princípio, seria
um tema fácil, pois psicanalista é o
que somos; portanto, seria falar so-
José Facundo Passos bre a nossa identidade. Também fi-
de Oliveira quei pensando em como abordar
esse tema para pessoas que estão in-
teressadas em ouvir – porque há di-
versas maneiras de fazê-lo.
Acho que ser psicanalista, em
Léia Maria Silva primeiro lugar, é poder acreditar na
Klöchner existência de uma verdade incons-
ciente que nos comanda, muitas ve-
zes sem que saibamos, e que deter-
mina o que somos, o nosso sofri-
Lísia Coelho Leite mento e até o nosso adoecimento.
Quando comecei a pensar em algu-
mas idéias, estava assistindo a um
filme no DVD que muitos de vocês já devem ter assistido, um filme mexi-
cano cujo título em português é Como Água para Chocolate.
O filme trata da história de uma moça que, depois de muitos infortúni-
os, enlouquece.
A passagem que eu trouxe para ler, porque a achei relacionada ao tema
do encontro, é a fala que acontece no momento em que um rapaz, que é
médico e está apaixonado por ela, tenta trazê-la de volta à realidade, fazer
com que se ligue a algo novamente.
Vou ler essa fala para depois começar a colocar as minhas idéias:

Em 1669, Brant, um químico de Hamburgo que buscava a pedra


filosofal, descobriu o fósforo. Minha avó, Luz do Amanhecer, que era
uma índia Kikapoo, dizia que todos nós nascemos com uma caixa de
fósforos dentro, mas não podemos acendê-los sozinhos. Necessitamos,
como no caso do fósforo, de oxigênio e da ajuda de uma vela. Só que
no nosso caso, o oxigênio deve vir do hálito da pessoa amada, a luz da
vela poderá ser uma melodia, uma palavra, uma carícia, um som, qual-
quer coisa que dispare o detonador e acenda um dos fósforos.
Agora, cada pessoa tem de descobrir quais são seus detonadores para
poder viver, porque é a chama do fósforo que nutre a alma de energia.
Se não há detonador para os fósforos, a caixa umedece, e jamais pode-
remos acender nenhum deles.
Há muitas maneiras de secar uma caixa de fósforos úmida. Pode ter
certeza de que tem remédio.

Toda pessoa que sofre encerra em si uma criança desamparada, ferida,


que busca em vão dizer a sua dor.
A psicanálise sempre foi um recurso para aquele que sofre, e, quando
um analista recebe um paciente que vem pela primeira vez ao seu consultó-
rio, está com a disposição subjetiva de querer resolver os problemas do
paciente e participar de uma melhora desse estado.
Freud sempre insistiu que um domínio apropriado da psicanálise só
poderia ser adquirido pela experiência clínica, com pacientes, sem dúvida,
Maria Silva Klöchner, Lísia Coelho Leite
José Facundo Passos de Oliveira, Léia
mas acima de tudo oriunda da análise do analista. Ele nos diz também que
seremos recompensados toda vez que tivermos fé em nossos princípios
teóricos e técnicos.
Isso significa acreditar na existência de um Inconsciente, na existên-
cia de uma verdade que determina nossos atos sem que saibamos ou que
possamos dominar. “A verdade da psicanálise é a verdade do desejo”
(FREUD, 1900).
Em 1912, Freud coloca que o Inconsciente do analista é capaz, a partir
dos derivados do Inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse
Inconsciente que determinou as associações livres do paciente. Diz que
todos nós temos o instrumento que permite captar o Inconsciente do outro,
que é o nosso próprio Inconsciente, mas que não podemos tolerar resistên-
cias em nós mesmos que ocultem de nossa consciência aquilo que foi per-
cebido.
O psicanalista trabalha, antes de tudo, com seu Inconsciente.
Diz Freud que todos que desejem efetuar análises em outras pessoas
terão primeiramente de ser analisados por alguém com conhecimento téc-
nico, pois só assim obterão a respeito de si mesmos impressões e convic-
ções que seriam buscadas em vão no estudo de livros.
Devemos, então, estudar seriamente a técnica e seus princípios para
termos a liberdade de ser o mais Inconsciente dos sujeitos, esperando que a
verdade da análise irrompa em nós, nos surpreenda e ponha um limite ao
suposto domínio de nossa ação. Devemos ser os mais expostos aos efeitos
do Inconsciente, pois é então que a verdade aparece ao analisando, quando
ocupamos o lugar do objeto que causa essa experiência, do objeto que fala
do Inconsciente, de uma verdade inconsciente.
Nós, analistas, trabalhamos ativamente de uma forma que não consis-
te simplesmente em deixar que a palavra surja. Temos expectativas, objeti-
vos, decepções... Uma intervenção analítica não é exterior, ela é a expres-
são de um processo, uma manifestação daquilo que acontece na relação do
analista com seu paciente.
Focalizar nossa sensibilidade na pessoa do paciente não basta para
compreender seu sofrimento e ajudá-lo a livrar-se dele. É preciso experi-
mentar em nós esse sofrimento sem ficar perturbado. Não se trata de sentir
o sofrimento atual que leva o paciente ao consultório, mas a antiga dor de
seu trauma infantil, sentir em si o que o outro esqueceu.
No momento mais agudo da escuta, o analista se dissocia entre aquele
que controla a situação e aquele que, simultaneamente, mergulha em si
mesmo. É um delicado exercício de percepção psicanalítica que leva o ana-
lista a reviver em si as emoções esquecidas do analisando, e transmiti-las a
ele.
Násio coloca que a essência da técnica psicanalítica reside no desejo
do analista, que está nele quando pratica seu ofício. Para ele, não devemos
nos preocupar em querer curar nosso paciente; devemos primeiramente
escutá-lo, buscar estabelecer com ele uma relação de confiança durável,
aprofundar sua vida psíquica. Feito isso, por acréscimo, virá a cura. Ele nos
diz que o primeiro objeto de transferência do paciente é a relação que o
psicanalista tem com a psicanálise, e que o divã, a poltrona, a regra funda-
mental, todos os elementos característicos do processo analítico se torna-
ram uma espécie de constante invariável com a qual nos identificamos, que
a técnica psicanalítica é um Ideal do Eu no qual reconhecemos nossa iden-
tidade de analistas.
Assim, qualquer gesto técnico que um analista possa dirigir a seu pa-
ciente irá fazer com que veicule o ideal da análise, veicule a análise como
um ideal, inscrevendo-se a si e ao paciente numa filiação simbólica. A
identificação do psicanalista com a psicanálise irá passar ao paciente sem
que possamos impedir.
Para finalizar e para que possamos depois conversar mais sobre isso,
vou citar certa passagem de um livro de Rainer Maria Rilke, poeta alemão
contemporâneo de Freud. Um rapaz enviou-lhe seus versos, pedindo opi-
nião sobre eles e sobre a idéia de vir a se tornar um poeta. Rilke então lhe
respondeu:
Maria Silva Klöchner, Lísia Coelho Leite
José Facundo Passos de Oliveira, Léia
O senhor está olhando para fora e é justamente o que menos deveria
fazer neste momento. Ninguém pode aconselhá-lo ou ajudar – nin-
guém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Inves-
tigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes
pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: mor-
reria se lhe fosse vedado escrever? Escave dentro de si uma resposta
profunda. Se for afirmativa, se puder contestar aquela pergunta severa
por um forte e simples sim, então construa sua vida de acordo com essa
necessidade. Sua vida deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal
pressão.

O que importa, apenas, é prestar atenção ao que nasce dentro de si e


colocá-lo acima de tudo que observar ao seu redor. Os seus acontecimentos
interiores merecem todo o seu amor.
No fundo, ser psicanalista é nunca ter deixado o divã (NÁSIO).

FREUD, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In:


______. S. E. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.12.
_____. (1900). A interpretação dos sonhos. In:______. S. E. Rio de Janeiro: Imago,
1996. v.4 e 5.
NASIO, J. D. Como trabalha um psicanalista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999.
______. Um psicanalista no divã. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
RILKE, R. Cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Globo, 2001.

Léia M. S. Klöchner – Falar sobre esse ofício é um desafio estimu-


lante.
Vou destacar, brevemente, duas questões que podem servir como pon-
to de partida para nossa discussão: a aquisição de uma identidade compatí-
vel com essa função e o papel do psicanalista fora do consultório.
Quero também dizer que gostaria mais de ouvir as questões que virão
de vocês do que me alongar em uma apresentação.
Bem, quando chegamos a escolher este caminho, o de ser um psicana-
lista, já passamos pela aquisição de outros níveis de identidade, às vezes
vários. E esta é uma identidade muito especial, diferente das experiências
anteriores – é a identificação com uma escuta diferente de todas aquelas
que conhecemos antes. Essa escuta será dirigida a uma enigmática estrutu-
ra que não se curva às leis do tempo, nem do espaço: o Inconsciente.
Existe uma diferença enorme entre uma escuta fundamentada no ofí-
cio médico, por exemplo, e a escuta psicanalítica. Todos os profissionais
que buscam a área da saúde trazem consigo o desejo de ajudar seus seme-
lhantes em algum tipo de sofrimento. Eu diria que, em um primeiro nível, a
ajuda é concreta, imediata, como limpar um ferimento, fazer um curativo,
retirar um corpo estranho – digamos, o papel de um enfermeiro ou de um
técnico de enfermagem, ou de um médico, ou até de um farmacêutico que
avia uma receita, que prepara um medicamento com o objetivo de ajudar
alguém com sua dor. Os longos estudos médicos têm como foco o corpo e
a mente no seu sentido biológico, e só como exceção a mente é destacada
como algo especial e fonte de geração de sintomas no corpo e na vida das
pessoas. O foco é, mais seguidamente, o cérebro. Não está errado, não exis-
te mente sem cérebro, mas temos de ter cuidado com a excessiva valoriza-
ção da objetividade sobre a subjetividade.
Quem tem seu início na psicologia fica mais próximo das humanida-
des do que quem começa pelas ciências biológicas. Acredito que iniciar
nessa área seja um facilitador, mas, mesmo assim, difere do ser psicanalis-
ta, pois está misturado a outras técnicas de trabalho que são legítimas den-
tro da psicologia, como as psicoterapias, porém diferentes do que estamos
tratando aqui. Isso também é verdade para os médicos psiquiatras que se
qualificaram para isso e estão acostumados a aplicar as diversas formas de
psicoterapias.
Bem, falamos de níveis. Não que um seja melhor ou pior, mas que os
vários níveis são necessários para ajudar as pessoas. Algumas desejam e
podem tratar-se através de uma das variadas técnicas de psicoterapia, in-
cluindo a de orientação analítica, que usa o mesmo arcabouço teórico da
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psicanálise. Outras querem tomar um medicamento e o tomam, e melho-
ram, ou tomam e não é suficiente, têm uma curiosidade pelo que lhes acon-
tece. Querem saber, não somente serem aliviadas.
Nesse segundo nível, aparece algo que não é objetivo, mas que é bus-
cado e usado para investigar o que aparece de forma objetiva, uma queixa,
que por sua vez traz dentro de si algo extremamente subjetivo, escondido,
como uma mensagem em uma garrafa. Esse algo será o foco de atenção de
uma dupla, na qual a curiosidade e o temor da descoberta se mesclarão por
um tempo que não será possível prever. Isso é psicanálise.
E que escuta será necessária para guiar essa busca tão sutil? Como nos
guiar, abrindo mão de nossa escuta do dia-a-dia, de tudo que somos acostu-
mados, que nos traz segurança e auxílio? Ser psicanalista é não ter pinças
ou esparadrapo, nem estetoscópio ou exames, nem ter das palavras seu
sentido corriqueiro e simples, pão-pão, queijo-queijo. É ouvir as linhas e
ler nas entrelinhas, é montar as frases de forma a desmontá-las e remontá-
las, descobrindo sentidos escondidos até de quem as produziu. E serão os
sentidos corretos para encontrar o que buscamos? Estaremos mais perto ou
mais longe do enigma do Inconsciente?
Nesse nível, a proposta de ajuda é diferente. É necessário ser tolerante
e não ceder à tentação de encontrar logo uma resposta às perguntas, pois
nesse terreno muito intensamente a pressa é inimiga da verdade. É necessá-
rio muito mais tempo juntos e uma visão de maior profundidade para ver o
mundo do outro. Um mundo que nem ele mesmo tem conhecimento com-
pleto e consciente, um mundo do qual mesmo esse outro que vem a nós só
conhece alguns pontos turísticos, que ele traz como referência. Um mundo
que só revela sua riqueza, suas maravilhas e seus horrores sob a condição
de que seja encontrada a sua chave.
E essa chave é a linguagem.
Nós, os filhos da Torre de Babel, com as maiores dificuldades de nos
entendermos mesmo nas questões mais simples, temos a coragem de nos
aventurar nesse mundo desconhecido até por seu dono, nesse universo que
é o Inconsciente, na esperança de encontrar o caminho que leve ao entendi-
mento, usando como instrumento de navegação as palavras? Sim. Isso é
ser psicanalista. E o mais surpreendente é que nós vamos, e navegamos e
achamos tantas coisas que o trabalho prossegue, por anos, vivo, surpreen-
dente, e feridas são tratadas, suturas são realizadas, partes do eu são reabi-
litadas, paralisias são resolvidas.
Tenho muita alegria de ter podido conservar, até hoje, a emoção e a
alegria de receber uma pessoa que me procura. Quando alguém vem che-
gando, quando ouço seus passos no corredor do consultório, quando ouço
o barulho da porta da sala de espera, quando abro a porta e vejo esse al-
guém que veio ali, comigo, para procurar por si mesmo em um emaranha-
do que o faz sofrer, eu sempre tenho uma emoção e uma interrogação. Acho
que, enquanto eu conservar essa emoção, estarei viva para o ofício que
escolhi – porque essa emoção faz parte. Acredito que é uma condição para
que os sentidos sejam buscados, não dentro de mim, para serem dados
como uma resposta, como se eu fosse um oráculo. Mas é dentro de um
espaço dessa dupla que eu formo com cada um que me busca que é preciso
encontrar um sentido através de uma linguagem compartilhada, um dialeto
só dessa dupla. É necessário encontrar uma linguagem que traduza o que é
desconhecido, que às vezes nem nome tem, ainda, para que faça sentido
para o outro e possa, então, se inscrever no tecido vivo do pensamento e se
tornar útil, em lugar de ser fonte de angústia.
Essa tarefa se aproxima do ensinar, através da experiência de pensar
junto, de tolerar junto a ausência de sentido, enquanto o sentido não for
encontrado, sem desistir de buscar. E é essa função que irá junto com o
outro, quando ele for embora. É comum as pessoas pensarem que a análise
é para toda a vida, que não tem fim, e não tem, porque ela continuará, se
bem realizada, dentro do outro que se foi para viver sua vida por si mesmo.
Ela é uma aquisição.
Nesse ponto, o ser psicanalista se aproxima do ser mãe e do ser pai,
porque é criado um vínculo, uma intimidade, por muitos anos, e quando
quem nos buscou cresce para seguir sua vida sem nós, nós o deixamos ir e
ficamos para trás.
Maria Silva Klöchner, Lísia Coelho Leite
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Bem, e é isso? Acho que não é só isso, mesmo considerando o quanto
esse fator é importante, vasto e difícil. Acredito que também, fora do con-
sultório, o psicanalista tem um papel que só ele pode exercer. Ele é detentor
de um conhecimento da alma humana que precisa ser compartilhado além
das paredes do consultório. É possível que o mundo seja tão conturbado, e
os homens tão perdidos, porque seus verdadeiros objetivos sejam incons-
cientes. Se quem transita pelo Inconsciente permanecer na penumbra, es-
condido, que imenso tesouro será benefício de poucos?
Acredito que, além de fazer o possível para estender as vantagens do
tratamento psicanalítico à população menos folgada financeiramente, o que
nossa Sociedade se esforça por fazer, através da Clínica Social, também
formas de integração com outras disciplinas devem ser buscadas e
mantidas. Alianças que promovam o compartilhar do conhecimento são
necessárias e, eu diria, questão de princípio.
Felizmente, em nosso meio, temos visto essa integração evoluir e pro-
duzir frutos férteis. Espero que seja esse caminho sempre possível e aberto,
para que o ser psicanalista possa estar presente no tecido da cultura, como
uma função estruturante e uma saída possível para a nossa dor e a nossa
curiosidade.

José Facundo P. de Oliveira – Tentarei ser menos teórico e abordar


diretamente o tema, partindo da chama, luz que considero que Freud perso-
nificou, e tentar dizer o que penso sobre ser psicanalista.
Embora não consiga dizer tudo, por tratar-se de uma vida inteira, ao
ser apresentado pelo Flávio como analista didata da sociedade fundada por
nós, realmente fiquei muito orgulhoso com o título, pois foi conquistado
com esforço. Ser didata é uma posição muito complicada, porque, quando
achamos que sabemos alguma coisa, já passou, não se sabe mais. Estou
contente por ser aluno novamente, no momento cursando o doutorado, e
sentindo que é melhor aprender do que ensinar. Aprendemos quando tenta-
mos ensinar, mas aprendemos mais quando nos colocamos na posição de
receptores.
O analista só aprende a ser analista quando se lembra do paciente que
foi. Na formação do psicanalista, existe o conhecido tripé: a análise indivi-
dual, a supervisão e a formação teórica. Penso que a análise individual e
principalmente a escolha que o paciente faz do seu próprio analista é fun-
damental, porque esse pode ser o detonador de um processo do Incons-
ciente que está travado.
Parece-me que, no exemplo da caixa de fósforos, tratava-se de uma
caixa molhada que tinha de encontrar um detonador para acendê-la, mas
sobrevinha a questão de como utilizar uma caixa de fósforos que está mo-
lhada, como provocar a chama, como acender o fósforo molhado. Para tal,
é necessária uma chama.
Onde ela se encontra então? A chama seria o amor que aquece e deto-
na um fósforo, podendo acender os outros? Pareceu-me uma associação
interessante, um exemplo que vem a calhar e que eu quero reaproveitar
aqui. Acho que todos nós sabemos que a chama, o detonador dessa caixa
de fósforos, para a psicanálise, foi Freud. E acho que encontrar essa chama,
ou seja, encontrar no analista alguém que possa potencializar essa energia
que está apagada, molhada, é uma grande conquista. Na verdade, o fósforo
não é só o desejo, o fósforo é toda a carga pulsional, são as pulsões biológi-
cas que um dia podem se tornar desejo ou não, podendo haver ou não
representatividade dessas funções.
Considero a mente e o corpo uma coisa só, embora haja uma tendên-
cia nossa a separá-los. Leonardo da Vinci, em seu leito de morte, dizia que
a chama deseja permanecer no corpo, porque sem seus instrumentos físi-
cos, ela não pode fazer ou sentir nada.
Como e quando Freud tornou-se para mim um psicanalista?
No episódio da sua divergência com seu colega Breuer. Breuer foi um
médico, um clínico conceituado em Viena, e Freud, mais moço, aprendia
com ele. Começaram estudando os sintomas e casos de histeria, pacientes
que desmaiavam e tinham convulsões. Estudaram juntos o caso de Ana O.
Breuer visitava Ana diariamente em casa; ela tinha perdido o pai, vivia
uma situação complexa com inúmeros sintomas. Ana apaixonou-se por
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Breuer e ele entrou em pânico. Até sua esposa percebeu o impasse, e
Breuer, temendo uma situação constrangedora, disse a Freud que iria parar
o tratamento e desistir desses estudos. Este sentiu-se abandonado, e briga-
ram. Percebeu que algo estava errado, que o sentimento de Ana não envol-
via Breuer diretamente, e teve a capacidade de entender que aquilo repre-
sentava a transferência. A meu ver, este foi o início da psicanálise, porque
a transferência é a verdadeira chama que faz com que o paciente tenha
convicção do que está se passando.
Sem a experiência pessoal de análise, sem a repetição dos conflitos
primitivos na relação renovada com o analista, não há convicção na exis-
tência do Inconsciente.
Como conclusão, considero que o analista é quem pode acender essa
chama e que, através desse amor renovado, o paciente pode direcionar suas
pulsões, tentando evitar a repetição de seus conflitos utilizando a sua caixa
de energia fosfórica para aproveitar a vida.

Flávio Roitman* – Ouvindo vocês, ocorreu-me que há pessoas que


estão vindo para cá pela primeira vez e que devem estar muito acostuma-
das, hoje em dia, a ouvir falar que tal remédio resolve, e resolve de uma
forma muito rápida. Isso, muitas vezes, vai por um caminho bem diferente
do caminho da psicanálise. Eu quero dizer, por isso, que acho fundamental,
para se poder acreditar em psicanálise, poder-se pensar no que é um analis-
ta. É importante juntarmos alguns dados teóricos que fazem parte de um
conjunto e acreditarmos neles – transferência, associação livre, inconscien-
te –, mas acho que outra coisa muito importante também é se poder ter uma
idéia de que, internamente, mudanças podem ser feitas. A partir do mo-
mento em que uma pessoa com experiência de análise percebe mudanças
em si não devidas a fármacos, mas a todo um processo que se estabelece,
isso lhe dá uma idéia de que pode ter esperança; e se essa pessoa for um

* Coordenador da Comissão de Divulgação, Relações com a Comunidade e Informática.


analista, irá acreditar quando alguém a procurar que também poderá ajudá-
la a mudar.
Atualmente, existe o consenso de que os remédios é que são potentes
para resolver os problemas. Isso, paulatinamente, vai criando uma idéia de
que as pessoas são impotentes. É a cultura do remédio que se faz presente
a todo minuto.

Participante 1 – Bion disse que a cada dia tínhamos de nos perguntar


se continuávamos ou não sendo psicanalistas, conservando um estado men-
tal favorável para exercer esse ofício, pois esse estado não seria invariável.
Um tema bastante destacado aqui foi o do Inconsciente. Mas também foi
destacada a importância que o outro foi adquirindo na teoria e na prática
psicanalítica enquanto elemento vital para se manter a chama acesa.
Gostaria de perguntar, para as pessoas que estão aqui hoje, se nas suas
formações está sendo enfatizada a importância desses tópicos. Na área da
psiquiatria vem acontecendo de as pessoas terem de fazer outros cursos
depois das residências, para tomar mais contato com os aspectos da
psicodinâmica, pela falta de ênfase dada à noção de Inconsciente e de con-
flito psíquico em suas formações. Talvez os estudantes de psicologia ou
psicólogos aqui presentes pudessem me dar uma idéia do tipo de pensa-
mento que circula atualmente em relação à psicanálise dentro de suas fa-
culdades. No mais, parabéns pelos comentários feitos sobre Ser Psicana-
lista.

Participante 2 – O que eu entendo por relação transferencial é o pa-


ciente trazer e falar o que quiser, e o psicanalista saber que o único material
possível de se trabalhar na relação é esse material trazido. Ele tem de de-
volver o que é do paciente sob a forma de interpretações que aumentem a
percepção do paciente de si mesmo. É importante poder lidar com a preten-
são de querer saber o que o paciente vai fazer disso, porque não é mais de
sua conta, e só será se o paciente achar isso importante e trouxer esse mate-
rial em outro momento. É importante que ele saiba como trabalhar com a
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despretensão de não querer modificar os seus pacientes e permitir que eles
próprios se transformem.

Facundo – Vou aproveitar para dar um exemplo sobre o tema que o


Flávio comentou, muito instigante, que é o do uso da medicação. Tem se
dito muito que a psicanálise está em desuso, é coisa do passado; eu acho
exatamente o oposto: a psicanálise está em amplo desenvolvimento.
Quantos anos tem a psicanálise e quantos milhões de anos tem a humanida-
de? O próprio Freud sempre se preocupou em encontrar bases químicas, só
que os laboratórios, hoje, estão fazendo um desserviço horroroso à huma-
nidade. Não sou contra a medicação, uso-a quando necessário; ajuda em
uma série de situações, mas o prejuízo vem quando ela tenta substituir ou
prejudicar algo que tem um outro encaminhamento e um outro desenvolvi-
mento. Por exemplo: esta semana me procurou um rapaz, adolescente, um
homem-criança, vamos dizer, de 19 anos, que queria tentar se analisar por-
que eu tinha analisado o pai dele, há muito tempo, e ele achava que seu pai
era uma pessoa autêntica e verdadeira. Ele se sentia muito inibido numa
série de coisas, procurara um psiquiatra da cidade dele, e este o medicou.
Ele entrou na consulta, não sabia muito bem o que dizer, mas acabou
falando que uma das coisas de que ele tinha muita vergonha era o fato de,
por qualquer motivo, enrubescer. Odiava quando isso acontecia e, como
decorrência, tinha dificuldade de sair à rua. Quando sentia que ia ficar ver-
melho, afastava-se das garotas, das mulheres, das pessoas, e queria saber
como podia fazer para evitar isso.
A medicação que o psiquiatra lhe receitara era para resolver o proble-
ma.
Evidentemente, nós estamos entrando na área da psicossomática, um
tipo de reação vascular da pele, e que tinha uma série de conotações. Ao
começar a investigar, foi aparecendo o grande desejo que ele tinha, quando
se aproximava de uma moça, de agradá-la, de se exibir. Isso tinha uma série
de significados que nós fomos entendendo durante a sessão e sobre as quais
fomos conversando. Falei que ele ficava vermelho quando mostrava seus
afetos escondidos e, através do entendimento dessas emoções, revelava
quem era. E, afinal, não precisava se preocupar, pois ficava bonito quando
ficava vermelho.
Ele começou a rir dessa interpretação aparentemente sedutora, mas
junto com o riso veio a emoção e, nesse momento, enrubesceu. Ele disse:
“Engraçado, eu agora senti que fiquei vermelho, mas não fiquei mais cons-
trangido. Agora estou entendendo que isto aqui é completamente o oposto
de tomar uma medicação. É a minha timidez que eu tenho de tratar. Não
queria me analisar, mas acho que esse troço dá certo”.
Na psicanálise não há magia. O que existe é a possibilidade de mudan-
ça levada por um tipo de caminho, que é o da relação transferencial, e que
é a relação afetiva com a análise. Nós, em geral, ficamos muito assustados
em dar interpretações desse tipo, mas, se ficamos tímidos, estaremos di-
zendo para o nosso paciente que nós dois somos tímidos e que, portanto,
não será possível tratar a sua timidez; pior, ele não se sentirá autorizado a
se exibir, a se atrever.
Se não usufruirmos da relação transferencial com intensidade de afe-
to, nosso trabalho perderá a graça, não conseguiremos passar o dia inteiro
trabalhando no consultório, não nos divertiremos, não teremos chama ne-
nhuma.
[Faz-se um silêncio.]

Léia – No início, comentei que gostaria mais de ouvir as pessoas da


platéia do que de falar. Frente ao silêncio, fico com sentimento semelhante
ao que tenho no consultório quando estou esperando que venha a mim
aquela pessoa que ali chegou. Destaco isso por achar que o importante no
ser psicanalista é a disposição para a escuta, porque as pessoas da mesa que
estão identificadas com essa função querem ouvir, mas a platéia também.
Eles pensam: vamos ficar aqui ouvindo, eles vão dizer lá uma série de
coisas interessantes e vamos ficar quietos no canto, escutando. Mas nós
também queremos ouvir, porque estamos mais interessados na riqueza que
Maria Silva Klöchner, Lísia Coelho Leite
José Facundo Passos de Oliveira, Léia
está dentro de vocês do que aquilo que nós poderíamos dizer como certe-
zas, como verdades supostas. Eu acho que esse é um fenômeno que aconte-
ce também quando alguém busca ajuda. Ele vai lá pensando: bem, vamos
ver o que essa pessoa vai me dizer. Ela deve saber, eu que não sei nada,
então vou aprender, vou seguir as orientações que ela me der. Acho que, o
tempo inteiro, quem trabalha nesse tipo de função tem de tomar cuidado
para não se perder, para poder ficar disposto a escutar, mesmo quando o
silêncio é difícil de manter.

Participante 3 – Estou achando interessante justamente essa questão


da chama. Nesse debate, parece que um fica esperando que o outro acenda
a chama. Realmente, na questão da medicação, acho que o medicamento
pode atrapalhar, porque interrompe o percurso do desejo. O paciente me-
lhora aparentemente, nos sintomas, mas as falhas estruturais, as questões
que estão abaixo daquilo que a está levando a adoecer, continuam. É preci-
so um momento em que possa refletir sobre o seu sofrimento, e que a nossa
não seja uma atitude de bombeiro, do tipo: vou dar um comprimido e assim
apago a chama.
Freud nos ensinou que a transferência revive a chama numa relação, e
é o que vai fazer com que o paciente retome o percurso interrompido pelo
sofrimento.
Acho fantástica essa iniciativa da comissão liderada pelo Flávio, gos-
tei muito de assistir às colocações das colegas. Acho que esse é o nosso
papel fundamental, no momento: defender nossa posição de psicanalistas
frente a toda essa virada farmacológica. É vital essa iniciativa de se abrir
espaço para a escuta. Acho essa idéia meritória: criar um espaço para as
comunidades.

Facundo – O medicamento é bom quando, em vez da chama, é a vela


que está pegando fogo. Aí temos de apagar, temos de chamar o bombeiro.
Participante 3 – Sim, mas, de qualquer modo, sem a pretensão de
eliminarmos o problema.

Lísia – A idéia da fala que eu trouxe do filme (Como Água para Cho-
colate) queria transmitir que inicialmente nascemos com uma caixa de fós-
foros dentro, não úmida. Uma caixa de fósforos pronta para que cada fós-
foro seja aceso e detonado – o que significa que essa é uma tarefa que seria
da vida, das relações, de um bebê com as pessoas que o cuidam desde
quando nasce, e todo esse percorrido que vai, de alguma forma, constituir o
nosso aparelho psíquico.
A idéia da caixa úmida viria depois, quando surgem as falhas no pro-
cesso de desenvolvimento, no que se refere à história que cada um de nós
carrega consigo, as coisas que não deram certo. Acho importante poder-
mos pensar que a análise é um recurso que nos dá a chance de refazer isso,
de alguma forma de viver de novo aquilo que ficou mal, que está nos impe-
dindo de ir em frente, de poder ter uma vida mais satisfatória.
Estamos sempre falando em crise na psicanálise, mas isso prova que
ela continua com a chama acesa. Lembrei que existem textos antigos de
Freud, lá do início dos textos técnicos, nos quais ele fala da dita crise da
psicanálise. Penso “bem-vinda seja essa crise”, porque enquanto a tiver-
mos para discutir, a psicanálise estará viva, a chama acesa.
Não só existem os remédios, mas inúmeras formas de psicoterapia.
Temos também de ter presente que algumas doses e certos remédios podem
ser bons – as pessoas têm direito de escolher o que quiserem entre as alter-
nativas à psicanálise –, mas o fundamental é que nós, psicanalistas, possa-
mos não estar em crise com aquilo que escolhemos. Acho muito importan-
te podermos nos reunir para refletir sobre a crise no psicanalista, porque,
na verdade, a psicanálise somos nós que fazemos. Se ela não estiver em
crise internamente para nós, psicanalistas, muito provavelmente consiga-
mos levar isso como uma alternativa, e uma boa alternativa, para as pes-
soas que sofrem e que precisam de ajuda, um tipo de ajuda específica que
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temos para oferecer, entre várias outras que existem. Acho, portanto, que a
crise está dentro de nós e não no lado de fora.

Participante 3 – Mas, por outro lado, também penso que há uma crise
social que tenta eliminar as atividades; é uma questão da força da imagem,
a questão da guerra econômica, dos meios da mídia, a questão de que tudo
nos leva para resultados imediatos.

Participante 4 – Minha realidade é a de Santa Catarina, e, lá na uni-


versidade, a orientação não é muito voltada para a psicanálise, é muito
mais imediatista.
Quando ouvi o título do tema de hoje, lembrei-me de uma frase de um
escritor espanhol: “A vida encurta a visão e alarga a capacidade de enxer-
gar”. Também tem uma outra frase, de Einstein: “A mente é como um pára-
quedas, só serve se se abre”. Ao tratar de um paciente a partir de nossa
mente aberta, a partir da nossa análise individual, com a nossa chama, po-
deremos estimular o fogo. Afinal, fogo é que acende fogo.
Gostei muito, Leia, quando falaste da continuidade da análise; não da
análise interminável, mas da capacidade que adquirimos de estarmos sós
com a bagagem que nos foi legada por nossos analistas.
A mim parece que a psicanálise nunca vai estar em crise. O que mu-
dou foram os tempos, e com eles nossa tarefa. Hoje não temos mais no
consultório pacientes que vão quatro vezes por semana. Muitas vezes te-
mos de atendê-los uma vez por semana e temos de estar com a nossa chama
acesa para atender naquele dia e naquela hora, que é tudo o que ele pode.
Então, o que quero dizer é que a crise talvez exista para a psicanálise con-
vencional de quatro sessões semanais. Essa realmente está difícil. Hoje a
própria formação de análise quatro vezes por semana está sendo questiona-
da. Mas isso só torna nosso trabalho mais desafiante, pois temos de utilizar
toda a chama naqueles 50 minutos semanais.
Participante 5 – Entendo que o uso da palavra chama é uma metáfo-
ra, mas gostaria de vê-la de uma outra perspectiva. Às vezes temos de tole-
rar que a chama se apague. Todos que falaram até agora são pessoas da
Sociedade Brasileira ou ligadas a ela, pessoas que têm mais ou menos ex-
periência. Foi difícil sustentar o silêncio e a possibilidade de criar um mo-
mento de escuridão, à espera de algo que pudesse emergir das pessoas mais
distantes da Sociedade. Não é fácil suportar algo que se desconhece, poder
tolerar o silêncio para que algo novo surja. Se tomarmos uma distância
para pensar até que ponto a idéia de ter de manter a chama também inibe,
poderíamos vê-la de uma outra perspectiva, não só como fogo que sustenta
alguma coisa, mas como uma luz que às vezes se apaga, e se tem de tolerar
isso.

Lísia – A fala que eu li aqui a respeito da chama, no filme continuava


e dizia que é muito importante que a gente não tente acender todos os fós-
foros de uma vez só, porque isso pode acabar com tudo. Há sempre o risco
de matarmos o desejo.

Flávio – Hoje pela manhã, ao ler a Zero Hora, me detive no Caderno


de Cultura. Era um artigo sobre Érico Veríssimo em que havia a seguinte
colocação, que me chamou a atenção: “de manhã ele caminhava, de tarde
escrevia e de noite abria a casa para quem desejasse ir lá, porque ele queria
ouvir”. Eu estava refletindo exatamente sobre até que ponto já estamos “de
noite” aqui.

Lísia – Uma coisa importante para quem já é psicanalista, e especial-


mente para quem pretende se tornar, seria justamente podermos não nos
colocar no lugar de quem já sabe tudo e por isso pode falar, enquanto que
quem não sabe tem de ficar quieto. Na verdade, em análise, a idéia justa-
mente é a de que descobrimos com aquilo que nos surpreende, não com o
que já sabemos.
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Participante 6 – Uma pergunta clássica: o que os levou a serem psi-
canalistas ou o que leva uma pessoa a ser um psicanalista?

Facundo – Quando estava no 1º ano da Faculdade de Medicina e fazia


perguntas de psicologia a meus colegas, eles diziam “Vais ser psiquiatra?”
Eu respondia: “Estás louco?” Estavam me ofendendo, para mim, naquela
época, o sensato era ser médico. Psicanalista era algo muito estranho.
Durante o curso, começamos a observar o nascimento e o desenvolvi-
mento de bebês, grávidas, pacientes do ponto de vista emocional, etc.
Aí, pelo 4º ano, depois de desistir de ser endócrino, neurologista, ci-
rurgião, uma série de especialidades, resolvi estudar psiquiatria. Comecei a
perceber, nessas aulas, que precisava me tratar. Quando cheguei a Porto
Alegre e fiz o curso de psiquiatria, pensava em voltar a Pelotas e ser profes-
sor. Eu era de lá, meu pai havia sido fundador da Universidade, da Faculda-
de de Medicina, e eu teria uma carreira pronta lá, tranqüila, se é que pode-
mos falar assim dessa profissão; de qualquer maneira, estava pronto para
voltar. A pessoa com quem eu me dava e que era meu professor, em Pelotas,
analisava-se em Porto Alegre. Na época, a análise era quatro vezes por
semana e tinha de ser em dias diferentes, o que o obrigava a dormir aqui
para fazer uma sessão às seis da tarde e outra às sete da manhã. Hoje é
possível que essas sessões sejam feitas, dependendo da distância em que
esse colega está, no mesmo dia, em dois dias, enfim, algumas coisas foram
sendo facilitadas. Na época, isso era uma heresia, as sessões tinham de ser
em dias diferentes.
Ele vinha terça quarta, quinta e sexta, teve de comprar ou alugar um
apartamento em Porto Alegre para morar e poder se analisar. Eu não queria
isso para mim. Dei-me conta, então, de que não podia seguir trabalhando se
não me analisasse, por isso resolvi ficar por aqui, para me analisar um
tempo e depois voltar. E aí fui ficando. Não procurei a formação, e sim o
analista que fosse me ajudar. Escolhi um didata, porque tinha a pretensão
de que, se desse certo, poderia ir adiante. E aí fui me engatando, e estou
engatado até hoje.

Lísia – Duas coisas me ocorreram que não foram mencionadas espe-


cificamente – assuntos que a psicanálise trata e que são constituintes do
sujeito psíquico que somos todos –, que para mim são muito importantes: o
sentimento de desamparo e as dificuldades de lidar com a sexualidade,
comuns a todos nós, psicanalistas ou não-psicanalistas. Acredito, pelo me-
nos para mim foi assim, que buscamos a análise porque somos, por essên-
cia, seres desamparados e sós, e porque temos questões da nossa sexualida-
de com as quais temos de passar a vida lidando, e que são muito difíceis.
Uma das formas de se lidar com isso também é ser psicanalista, pois assim
estaremos eternamente nos analisando. Acho que isso leva as pessoas a
serem psicanalistas; no meu caso, com certeza.

Léia – Estava pensando, enquanto ouvia as colegas falarem, na minha


trajetória e de como foi evoluindo essa tua pergunta dentro de mim. Sou
médica e, desde os primeiros anos de escolha pela medicina e de faculdade,
e depois nos estágios, quando começamos a atender realmente os pacien-
tes, tinha sempre um sentimento de que aquela pessoa que estava ali na
minha frente precisava de algo mais do que o que estava explícito por trás
de muitas queixas físicas, até de doenças físicas. Quando fui para a psi-
quiatria, depois de ficar em dúvida entre outras especialidades – especial-
mente obstetrícia, que eu quase segui; gostava muito de passar a noite in-
teira no centro obstétrico, fazendo partos. Achava aquilo ótimo, e acho que
de certa forma continuo sendo obstetra, porque fazer psicanálise não deixa
de ser trabalhar por um segundo nascimento mais autêntico do ser humano.
Quando finalmente escolhi a psiquiatria, continuei com a sensação de que
ainda faltava alguma coisa para oferecer àquelas pessoas que me procura-
vam. Lembro-me, quando estava na residência, de uma pessoa que me pro-
curou. Era uma paciente tradicional, poliqueixosa. Passava o tempo inteiro
da consulta se queixando, se queixando, se queixando, e eu a ouvia. Eu não
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podia fazer nada – o marido batia, ela tinha dor de cabeça, os filhos tinham
ficado doentes, a mãe era muito má para ela, a vizinha tinha falado mal
dela, não tinha dinheiro: queixa, queixa, queixa. E tinha crises conversivas
e era levada para o Pronto Socorro, atendida com medicamentos e manda-
da embora.
Fiquei dois anos atendendo essa paciente e, quando terminei o meu
período, tive de sair. Para minha grande, enorme surpresa – e acho que essa
experiência foi decisiva para o meu próprio futuro profissional –, essa pes-
soa ficou arrasada com a minha saída, chorava, levou-me flores. Achei que
não fazia nada por ela, só a ouvia, não tinha experiência. E ela me disse que
eu havia sido a única pessoa que a tinha ouvido; que, em toda a sua vida,
todas as pessoas que ela tinha procurado somente haviam lhe dado remédi-
os, injeções; que haviam, enfim, encerrado a consulta logo, dizendo que
ela também era responsável por aqueles problemas e a mandavam embora;
e que eu era a única que a ouvia.
Essa paciente teve uma importância muito grande para mim, porque
me lembro da minha absoluta surpresa quando ela se modificou quando
saí, pois achei que eu não tinha importância nenhuma. Aí comecei a com-
preender a importância da escuta, mesmo que eu não pudesse fazer nada;
não poderia modificar, até pela minha pouquíssima experiência, mas ouvir
era o que ela mais precisava e o que nunca havia tido.

Participante 7 – Só queria contar um pouquinho sobre como é que


foi comigo. Fui médica, cardiologista, e em certo momento da minha vida
recebi uma credencial para atender pacientes do então INPS, hoje SUS.
Apesar de ser cardiologista, a minha credencial era para clínica médica.
Não podia exercer a cardiologia, porque não me era permitido solicitar
exames. Só me limitava a ouvir os pacientes e a encaminhar. Naquela épo-
ca, alguns clínicos gerais, os médicos que faziam isso, costumavam não ter
cadeira na sala para o paciente, para ser mais rapidinho. Mas minha sala
tinha uma cadeira, o paciente sentava, e eu o ouvia. E foi aí que descobri
que gostava de ouvir, que gostava de ajudar aquelas pessoas, de me envol-
ver com as suas histórias, e isso me interessou mais do que poder dar uma
medicação ou encaminhar. Acho que foi isso, então, o que me fez mudar de
rumo e procurar primeiro a psiquiatria e, depois, sentindo a necessidade de
me aprofundar mais, a psicanálise.

Léia – Vou fazer mais um comentário a respeito do uso de remédios.


Muitos pacientes realmente se beneficiam com medicação e acho que isso
pode levar a uma panacéia e a um cala-boca, porque alguns realmente sen-
tem que, quando é prescrita uma medicação está lhe sendo dito “vai lá
fazer isso e não enche, pára de te queixar, não incomoda”. Não dormes?
Toma medicação. Estás deprimido? Toma medicação. Estás ansioso?...
Algumas pessoas precisam de uma medicação, vão melhorar e até vão
poder se analisar melhor. Mas é preciso tomar muito cuidado com o exage-
ro e com a medicação como uma forma de recusa à escuta. E muitos pa-
cientes, às vezes, já chegam pedindo a medicação, mas ficam extremamen-
te aliviados quando, em vez dessa, lhes é dado espaço para ser ouvido.

Lísia – A respeito de motivação pessoal, eu fiz psicologia e também


gostava muito de escutar meus amigos, minhas amigas, e acho que isso me
levou a toda uma trajetória através de cursos de formação.
Mas eu queria assinalar que a pergunta veio de uma pessoa que eu
acho que ainda não está ligada a uma formação, ou a um pós-graduação, e
que nos remeteu à História, ao passado, ao desejo e ao futuro no aqui-agora
da nossa relação.
Maria Silva Klöchner, Lísia Coelho Leite
José Facundo Passos de Oliveira, Léia
Agradeço a presença de todos, lembrando que dia 21 de maio vamos
ter outro encontro aberto.

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