As paredes têm ouvidos, seus ouvidos têm paredes Operários demitidos quando olhamos as Mercedes
Dia 14 de junho, sexta-feira
A sexta-feira finalmente chegou, ou "sextou" na linguagem corrente pelas ruas
da cidade. E com ela veio a greve-geral e o ato em defesa da educação contra os cortes do orçamento das universidades e institutos que o governo federal vem realizando. Em contraposição à virulência do Estado, as ruas do Rio de Janeiro seguiam calmas, calmas no sentido relativo ao qual às ruas de uma cidade como o Rio de janeiro podem ser. Na aglutinação dos manifestantes pela cidade até o ponto focal da Cinelândia, havia um estudante de Filosofia da UFF, que não reunia muitas expectativas sobre o ato, e reclamou da fraca mobilização gerada. Porém, se a manifestação podia parecer desmobilizado para um de seus manifestantes, o mesmo não se podia dizer da mobilização do aparelho repressor da polícia e do exército. A um visitante estrangeiro que passasse desinformadamente pela Presidente Vargas naquele dia, haveria de pensar que vivemos em uma distopia totalitária saída da mente perturbada pelo álcool e pelas drogas de algum escritor ou cineasta. Distopia está com fartos recursos e sem nada mais útil para empregá-los. A polícia literalmente "embalava" e isolava o aglomerado heterogêneo da sociedade civil; formado por sindicalistas, movimentos sociais, coletivos dos mais variados, e estudantes; tal qual um bacilo nocivo à sociedade que mereça ser isolado do contato humano. Tal qual uma criança que não pode atravessar uma rua sozinha, as forças do Estado pastoreiam a procissão até a Central do Brasil, como se quisessem demonstrar que única e exclusivamente por sua boa-vontade é permitida à massa disforme seguir o seu rumo. Mas tal boa-vontade não dura muito, e as sete e dezoito da noite as primeiras bombas começam a explodir. Parece que a paciência havia acabado com o bacilo contagioso, este não deveria mais ser contido, e sim exterminado. Com a rapidez de quem realiza uma tarefa por lazer e não a trabalho, a polícia rapidamente dispersa a multidão e as sete e vinte e sete da noite tudo está acabado, com exceção das nuvens de gás lacrimogêneo que pairam sobre o centro. As sete e meia a Avenida Presidente Vargas fica absolutamente vazia, enquanto os policiais caçam os manifestantes pelas ruas ao redor. O que faz pensar que se a Estado demonstrasse tanta iniciativa e voluntarismo em outras questões, não haveria menos questões de segurança pública sendo debatidas. Como um ambulante descreve a situação para os passantes assustados que não convivem com esta realidade diariamente "no morro a bala come e ninguém se importa". As sete e quarenta as nuvens de gás lacrimogêneo se dispersam e, tal qual cantou o poeta, não há mais nada, porque não há mais nada do que gostar. Apenas restos de nada. Tudo que resta da manifestação é o carro de som do PCO parado em frente ao Palácio Duque de Caxias e sua tropa de cavalaria em guarda, nos lembrando que ela existia há apenas dez minutos atrás. Nem mesmo o PCO parece resistir muito e as sete e cinquenta se retira. Os trabalhadores voltam a circular em direção à Central do Brasil para voltarem para suas casas depois de um longo dia de trabalho. As ruas do Rio de Janeiro voltam a ficar calmas, calmas no sentido relativo ao qual às ruas de uma cidade como o Rio de janeiro podem ser. Tal qual cantou o poeta:
Nós somos a verdade do mundo
Somos restos de nada Vivemos como ratos do esgoto Entre o lixo de tudo (RESTOS DE NADA, 1978)