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Chacais

De Apolon Apolonius Dionysaccai


Esta história é uma homenagem ao mito de
Hipólito, Fedra e Teseu. Uma possível releitura contemporânea
Dramatis Personae

- Túlio;

- Faela;

- Inácio;

- O Coro:
- A jornalista;
- A empregada;
- A Youtuber;
- A vizinha.

(A dramaturgia também sugere áudio off com voz de multidão e turba ao longo da peça,
eventualmente, para dar ambiência e reforçar na imaginação do espectador a idéia da
multidão que se apresenta na forma das quatro personagens do coro. Contudo, esta é uma
opção da direção).

Ação Dramática (pode ser usada como sinopse)

É ano de eleição. Uma multidão inconformada, em busca de justiça e informação, se junta


em frente à casa de uma família de empresários e políticos, protestando e comentando sobre
o crime que acabou de acontecer dentro da casa, envolvendo pai, filho e madrasta,
membros dessa família tradicional.
Som de burburinho. A jornalista e a empregada aparecem em cena. A Youtuber e a vizinha
também, mas estão de costas para aquelas outras duas. Um foco ilumina as quatro juntas
como se estivessem apertadas no meio de uma multidão, que comenta e gera o burburinho
(o resto do palco em penumbra ou sem luz). Pela opção do diretor este burburinho pode
permanecer durante todas as cenas de coro.
A cena se passa em frente à porta do condomínio predial onde mora a família Brandão e a
vizinha.

1. A jornalista (tem um radinho na mão. Algum objeto para anotar ou


gravar a conversa com a empregada) A senhora trabalha pra essa família Brandão
há anos.

2. A empregada Eu to arrependida.

3. A jornalista Então!

4. A empregada Eu me arrependi de sair, de ter vindo aqui fora falar contigo.

5. A jornalista A senhora pode ajudar a imprensa. Pode ajudar a nação!

6. A empregada Imagina se meus patrões descobrem...

7. A jornalista Mas é disso que se trata, senhora: seus patrões! São parte da
tradição política brasileira! Um é filho de empresário e a outra filha de chefe de
partido político.

8. A empregada Não sei porquê eu saí de casa pra falar com jornalista, dona.

9. A jornalista A senhora sabe! O que vem dessas famílias afeta o país


inteiro. Ainda mais o que aconteceu aí dentro hoje. Se a senhora saiu de casa, é
porque sua consciência quer me contar alguma coisa. Do contrário, não teria vindo.

10. A empregada Acho que eu só quis fugir de lá de dentro. A dona sabe...

11. A jornalista (cortando, tornando-se íntima) Me chame de você...

12. A empregada ...você sabe: depois do ocorrido, a polícia veio aqui,

13. A jornalista ...eu sei, cheguei aqui com meu jornal, um pouco antes dos
policiais chegarem...

14. A empregada ...eles me fizeram umas perguntas, mas eu disse que tava
dormindo, que não sabia de nada. Afinal, eu não sou mais que uma empregada, não
é mesmo? Então, levaram seu Túlio pra delegacia...

15. A jornalista ...sim, ele foi preso...


16. A empregada ...aí, depois, a polícia voltou pra cá. Agora, tão lá em cima,
fazendo perguntas pros familiares. Até gente da família de dona Faela veio aqui pra
casa. Ta todo mundo aí! Eu desci, porque não quero mais envolvimento com
ninguém que ta lá: nem com a parte de dona Faela, nem com a parte de seu Túlio,
muito menos com a polícia!

17. A jornalista A senhora está querendo proteger alguém?

18. A jornalista Não. Eu não me meto nos assuntos dos patrões. Olha, eu
tenho que voltar, tenho muitos afazeres lá dentro. (macabra, fazendo sinal da cruz)
Tenho sangue pra limpar, minha filha.

19. A Youtuber (virando-se, impedindo a passagem da outra. Neste momento,


a luz abre deixando aparecer um pouco mais do resto do palco. A Youtuber está
agitada, como a massa. É veemente) Por causa deste sangue que o meu canal
convocou toda essa gente aqui. Em solidariedade à esposa e em repúdio ao marido
(para a jornalista). Que você registre isso aí no seu jornal! (toma o radinho que a
jornalista usa para a entrevista e fala, registrando seu discurso) Mais um crime
como esse não pode ficar em pune. (exalta-se) E o povo quer justiça! (o som da
multidão aumenta, também exaltado).

20. A jornalista (se esquivando da multidão, pedindo calma, pega de volta seu
radinho e o som baixa) Calma. Gente, calma! Olha, senhora, você vê toda essa
gente? Elas estão enfurecidas. Mas não com você. Se a senhora colaborar, todos te
apóiam. É melhor a senhora falar com a gente, comigo que sou jornalista...

21. A empregada ..mas eu já falei tudo o que eu sabia...

22. A jornalista ...ou é melhor falar com a polícia que ta lá dentro? (A


empregada ainda hesita)

23. A empregada Eu não devo mais nada a ninguém!

24. A vizinha (virando-se, impedindo a reação de fuga da empregada) A


policia não vai pensar assim.Você conviveu a vida toda lá naquele apartamento com
eles, eu sei, sou vizinha dos seus patrões há anos.

25. A empregada A polícia já falou comigo. (reconhece ela) A senhora sabe,


porque...

26. A vizinha (se fazendo íntima com uma certa distância)...pode me tratar
de você...

27. A empregada ...você sabe, porque tava aí, de madrugada, de botuca vendo
eles falaraem comigo do lado de fora do apartamento quando eu recebi eles. Se não
viu, ouviu, porque a senhora sabe se esconder tão bem, quanto tem o ouvido grande!
28. A vizinha Alto lá! Eu investigo meus arredores pra não ser pega de
surpresa. (voltando ao assunto) Olha, quando os policiais acabarem de ouvir os
figurões envolvidos, vão querer ouvir alguns detalhes das figurinhas E você vai ser
a primeira das figurinhas que eles vão abordar. Se já te fizeram perguntas, pode crer
que vão fazer de novo, porque, com certeza, alguém da família vai falar teu nome
em depoimento.

29. Jornalista e Youtuber Eles não estão preocupados com a senhora.

30. Jornalista Para não se complicar, me conta tua história.

31. A Youtuber Fala o que sabe!

32. A jornalista Eu tenho uma amiga advogada. Ligo pra ela e peço pra ela te
ajudar. O jornalista sempre protege sua fonte.

33. O coro (menos a empregada. As outras três instigam a fofoca) Sabe


como são as coisas, não é verdade?

34. A empregada Como são as coisas, na verdade?

35. O coro Caso de cachorro grande. Família finíssima.

36. A empregada E daí?

37. O coro Pra onde acha que vai estourar a lama?

38. A empregada A lama já estourou!

39. O coro Então, ajuda a manter na cadeia quem já foi preso.

40. A vizinha Conta o que sabe pra gente!

41. A jornalista A gente te ajuda.

42. A empregada Posso contar com isso, dona?

43. O coro (menos a empregada) Junte-se à nós!

44. A Youtuber Ele acabou com a vida dela!

45. A empregada Seu Túlio não foi o único culpado nessa história.

46. O coro (menos a empregada) Diz que esse Túlio sempre deu
problema com mulher.
47. A empregada Até depois da responsabilidade, minha filha. Continuou dando
problema, mesmo depois do casamento com a Dona Faela

48. O coro Pobre mulher! Ela foi a grande vítima!

49. A empregada Não tem inocente nessa história, não.

50. O coro Como não tem? Conta pra nós. Como realmente tudo
aconteceu?

51. A empregada Lá em casa, as coisas sempre foram assim, ninguém se


entendia com ninguém. Muito dinheiro, mas meus patrões nunca pareciam
sartisfeitos...

O coro começa a fofocar entre si, com atenção à empregada e sai do foco da cena.
Inácio e Faela vão entrando no palco, ganhando o foco, e simulam uma mesa do café
da manhã com três cadeiras. Os dois atores podem trazer as três cadeiras para se
sentar. Ele em pé à mesa todo o tempo, ela começa sentada. As memórias acontecem
diante deste coro desfocado, como se fosse a multidão curiosa e brava. O coro espia
tudo, enquanto fofoca essa parte da história que a empregada conta.

52. Faela Bom dia! Dormiu bem?

53. Inácio Não tem como, Faela...

54. Faela Nem acordou melhor?

55. Inácio Não.

56. Faela Senta um pouco. Toma um café com calma. Quer que eu te
faça um pão?

57. Inácio Eu já estou saindo.

58. Faela Mas nem levantou direito.

59. Inácio Quanto menos tempo aqui, melhor. Não agüento muito tempo
com ele.

60. Faela A gente precisa ter paciência com ele.

61. Inácio Eu não preciso nada. Ele não me traz nada de bom.

62. Faela Não é possível que você não tenha nenhuma lembrança boa
dele.

63. Inácio Nenhuma, Faela. Às vezes eu tento. Mas não vem nada.
64. Faela Ele precisa da gente.

65. Inácio Ele que precisa da gente?

66. Faela É! Acho que ele se sente sozinho, no final das contas.

67. Inácio Coitado, não é?

68. Faela A gente precisa dar apoio.

69. Inácio Eu tenho que me preocupar com ele, mas ele não precisa se
preocupar comigo?

70. Faela Inácio!!

71. Inácio Eu sou o filho, Faela. Ele nunca me aceitou direito. Não me
deixa ter minha convicção de ser fiel e querer encontrar alguém especial. Me
provoca. Não conseguimos ficar do lado sem uma briga. Me exige ser dedicado aos
negócios do meu avô, sendo que ele nem é, porque é um boa vida...

72. Faela (doce) Não fala assim...

73. Inácio Eu falo. Eu digo, sim! Meu pai só pesa pra imagem ridícula
que essa família insiste em manter! Todo mundo aqui fica tendo que abafar
escândalo dele - gastam um dinheiro, Faela. Por causa de um “tiosão” idiota que
pensa que é um playboy eterno, encostado no dinheiro e na posição da família. E ele
ainda dá um jeito de dizer na minha cara que eu sou uma decepção pra ele quase
todo dia. Não é coisa da boca pra fora. É como se ele não me aceitasse, como se eu
fosse errado só por ter nascido.

Faela baixa a cabeça. Silêncio. Inácio senta. Túlio entra com uma garrafa de whiskey
de metal na mão e eventualmente bebe ao longo da cena. No entanto, Túlio está e
permanece absolutamente sóbrio na cena. Ele senta à mesa. Inácio se levanta.

74. Túlio Bom dia.

75. Inácio Estou de saída.

76. Faela Já, Inácio?

77. Túlio Não dá nem bom dia pro seu pai?

78. Inácio E adianta?

79. Túlio Está vendo só, Faela?


80. Faela Meninos, por favor...

81. Túlio Não, não. Olha isso! Depois sou eu quem provoca. Eu não
estou fazendo absolutamente nada! Dar bom dia é questão de educação. Parece que
esse menino não foi educado.

82. Inácio Se eu seguisse seus exemplos, eu teria sido realmente mal


educado.

83. Túlio Você se acha homem, mas é um garoto. Tudo o que eu faço é
tentar te ensinar a ser homem de verdade. A honrar e seguir a tradição da família.

84. Inácio Que tradição, pai?

85. Túlio Uma tradição de homens viris!

86. Faela Vocês não se cansam?

87. Inácio De novo esse papo? Eu nunca ouvi meu avô se vangloriando
disso. Ele ta mais preocupado só com o dinheiro mesmo. E com a forma de ganhar o
dinheiro. Trabalho, eu quero dizer! Essa coisa de tradição é sua. Adora status. Quer
o lucro, sem suar.

88. Túlio E você, faz o que mesmo da vida pra ganhar dinheiro, hein,
filho?

89. Inácio (gagueja) Eu..eu... eu...

90. Faela Túlio, o garoto está em idade de estudar e é isso que ele vem
fazendo brilhantemente.

91. Túlio Estuda de mais esse menino. Pra quê tanto estudo, não
entendo! Eu não perdi tanto meu tempo com isso. Fiz o que precisava e só. Essa
coisa de faculdade...isso é porra nenhuma se você não tem dinheiro. Eu nem
precisei fazer isso, porque eu tenho dinheiro.

92. Inácio Eu to fazendo o possível para parar de depender de você o


mais rápido que eu puder e viver a minha vida. Independente. A questão não é o
dinheiro, até porque eu não ligo pra essa quantidade de dinheiro. Todo sujo!

93. Túlio Ninguém liga até sofrer a perda! Fica sem esse dinheiro sujo e
eu quero ver as suas viagens por causas nobres, suas doações pras essas obrinhas
pra ajudar pobre, sua roupa feita de tecido que não sofre isso, isso e aquilo de
trabalho escravo ou de exploração da natureza... Vai fazer isso, sem esse dinheiro
que você cospe tanto em cima.
94. Inácio Eu faço isso, sim. E vou continuar fazendo como uma forma
de reverter o uso dessa grana toda pra alguma coisa que vale a pena.

95. Túlio E você acha que isso diminui a sua culpa no uso desse
dinheiro, ô salvador da pátria, redentor do mundo novo!? Olha aí, Faela,, nosso
samaritano querendo comprar o lugarzinho dele lá no céu! Dinheiro sujo é dinheiro
sujo, garoto! Não interessa pra o quê você tá usando. Interessa é que você ta usando.
Essas tuas idéias ocas aí acabam até servindo pra imagem da família. Essas causas
blá blá blá, quando você aparece com elas, dão até uma credibilidade pra nós. Até
com imposto a gente trabalha em cima dessas tuas obras aí, e você nem deve ta
ciente. Pior, nem está ganhando nada pra você com isso.

96. Inácio Eu não quero ganhar nada! Então, vocês aproveitam pra
limpar as tuas cagadas com o que eu faço de bom?

97. Faela Garotos, vocês vão transformar uma briga familiar em uma
briga política?

98. Túlio Ele já tem vinte aninhos, Faela! Ta na hora de aprender o que
é a vida! Tem que botar o pé no chão e parar de viver no mundo da fantasia! Pra
alguma coisa as presepadas com pobre que esse garoto arruma tem de servir. Prá
alguma coisa esse garoto tem que servir. Assim, ele prova que não é uma total
decepção.

99. Faela (interrompendo a próxima ação verbal de Inácio, já iniciada)


Chega! Vamos respeitar o início de um novo dia? A manhã nem começou ainda,
mas vocês dois já começaram com tudo! Bom dia pra você também, Túlio.

100. Inácio Eu estou de saída, “família”. Até mais tarde e bom dia
pra vocês.

Inácio sai.

101. Falea Já bebendo no café da manhã! Quando você vai parar?

102. Túlio Eu bebo porque não me conformo, Faela!

103. Faela Você bebe desde sempre, Túlio.

104. Túlio Esse garoto é muito diferente de mim. Tem tudo,


como eu sempre tive. Mas não tem a vitalidade que eu tinha! Se depender dele passa
mais tempo dentro de casa, dentro da universidade, dentro dos livros! Passa mais
tempo dentro do que fora. A ele, parece, que não lhe agradam as mulheres!

105. Faela Deixa ele, Túlio! Deixa ele, que saco! Que ladainha
sempre. Você teve seu tempo. Agora deixa o garoto curtir o tempo dele. Dojeito
dele.
Túlio se insinua para ela.

106. Túlio Tive meu tempo? (agarrando-a e passando um pouco


dos limites) Bem que você ainda gosta!

107. Faela (tentando se desvencilhar, mas ele faz força) Me


deixa, Túlio. Pára. Eu não gosto desse jeito.

108. Túlio E tem jeito pra isso?

109. Faela Tem que ter jeito pra tudo!

110. Túlio Você é muito fresca.

111. Faela Falta em você a sensibilidade do Inácio! Não sei de


onde veio isso nele. Deve ter vindo da coitada da mãe dele!

112. Túlio “Sensibilidade”, “coitada”...não me venha com essas!

113. Faela Seu filho costuma ser mais compreensivo comigo do


que você, que é meu marido.

114. Túlio (se exalta. Agressivo. Como se esmurrasse a mesa)


Compreensivo!? (se contendo) Se a mulher quisesse compreensão na hora de
escolher o seu macho, não levava tantas outras coisas em consideração como
critério. Tipo dinheiro e condição social! Por isso que ele ta aí sozinho. Se ele se
mostrasse mais, e fosse menos compreensivo, comia muito mais mulher. Tem
dinheiro, é pintoso, tem condição. Tanto homem queria estar na condição dele.
Espero que esse garoto não seja bicha!

115. Faela Não tem nada a ver com isso. Você é muito grosso
mesmo! O seu filho é de outra geração. Não é desse tipo teu. Tacanho! Você não
consegue entender o ser sensível que é seu filho e eu pedin...

116. Túlio (interrompendo Faela e saindo de cena) Não quero


saber de entender sensibilidade de ninguém. Esses moderninhos é que tem que
entender o que é certo! (sai. A empregada entra)

117. A empregada Posso tirar a mesa, dona Faela?

118. Faela (bufando de tristeza pelo que ouviu) Ah, obrigada,


pode, sim. (ela retira o objeto que ele levou para se sentar. Faela a interrompe,
antes de ela sair e se juntar ao coro. Desabafa) Não sei como eu consigo continuar
casada com alguém com uma cabeça dessas?

119. A empregada A senhora escolheu casar com ele.


120. Faela Não dá pra entender certas escolhas.

121. A empregada Certas escolhas a gente consegue desescolher.

122. Faela Tem umas que são tarde de mais pra desfazer.

123. A empregada Quem sabe se é cedo ou tarde é só o tempo, dona


Faela.

O coro para de espectar, ganha foco novamente e entra em cena. Faela sai

124. O coro E o tempo foi cruel!

125. A Youtuber Cruel, não! O tempo passou pra eles como sempre
passou pra todos!

126. A vizinha Sem pena.

127. A jornalista Inexorável, como dizem. E eu não deixo passar nada


sem ser visto! Mostro tudo.

128. A Youtuber Mostra o que quer!

129. A jornalista Mostro o que apuro!

130. A Youtuber Filtra o que mostra.

131. A jornalista Mostro sem filtro.

132. A Youtuber Meu canal é que mostra sem filtrar.

133. A empregada Notícia não é água que precisa ser filtrada, minha
filha!

134. A jornalista E é por isso, senhora, que a gente mostra aquilo que
deve ser mostrado. Tal como foi!

135. A Youtuber Só Deus, e às vezes a fonte, é que sabe tudo tal como foi.
(para a jornalista. Acusativa) Por exemplo, até hoje ninguém sabe nada sobre a mãe
do Inácio.

136. A vizinha (desconfiando) Antiga namorada do anterior que morreu no


parto...sei!

137. A Youtuber (ainda acusando a jornalista) Vocês não procuraram saber


muita coisa na época, não é? Aceitaram as notícias da assessoria da família, deram
notas discretas, cobriram o casamento monumental e pronto. Eu boto tudo isso em
“cheque” no meu canal investigativo!

138. A jornalista Você não sabe de nada, aspirante à jornalista investigativa!


(se referindo não só à Youtuber, mas também à vizinha, que se disse “investigadora
dos arredores onde mora” no início da peça) Investigação ta muito na moda hoje!
Todo mundo questionando tudo, achando que ta criando a roda, colocando a “boca
no trombone”, jogando verdades por aí! Eu tentei saber mais na época, mas eu era
estagiária, ô Youtuber! Não consegui nada. Faço o meu melhor, mas você vai
aprender que tem limites difíceis de ultrapassar. Você esbarra neles e ou você joga
com o limite ou nunca deixa de ser estagiária!

139. A vizinha (para a Youtuber) Essa gente envolvida com política e


esses donos de império, como meus amados vizinhos, são blindados, menina.
Inalcansáveis, praticamente.

140. A Youtuber Exato: (enfatizando com ironia o advérbio)


praticamente inalcansáveis. Se, vinte anos atrás, em ano de eleição, o aparecimento
de um filho bastardo e sem mãe não conseguiu abalar as estruturas dessa família de
safados, com esse escândalo que aconteceu ontem, eles estão acabados.

141. A empregada A família sempre abominou escândalo.

142. A vizinha (desdenhando) Abominou escândalo...Túlio teve não


sei quantas mulheres na vida! Eu via passar cada uma na minha porta! Cada bafafá.

143. A jornalista Já foi notícia algumas vezes por causa disso. Depois
parou.

144. A vizinha Qualquer uma podia ser a mãe da criança.

145. A Youtuber Como engoliram a história da namorada antiga do


interior? E essa namorada, gente, a mãe do menino? Não entendo como ninguém
nunca conseguiu descobrir a identidade dela!

146. A empregada Pra quê mexer no passado agora?

147. A jornalista Porque agora que é a hora de a verdade toda aparecer.


E, pra isto, eu preciso de toda a ajuda da senhora. E da sua também. Você é vizinha
dos Brandão, então?

148. A vizinha Eu sou. Sempre fui “encucada” com essa história do


filho, o Inácio. Na época, saiu na imprensa que a família disse que a mãe morreu ao
dar a luz, foi o que falaram! Anota aí, jornalista: os Brandão sempre camuflaram
muito bem suas maracutaias, sendo muito discretos. Ainda mais depois que
começaram a financiar o partido do pai da Faela. Parecem anjos, maravilhosos,
filantrópicos na frente de todo mundo. Sei! Gente que é capaz de comprar Deus e o
diabo pra esconder as arruaças do filho com mulher e, sabe-se lá com o quê mais!
Não têm boa índole. Não têm boa índole! Hoje, finalmente, alguma coisa apareceu e
tudo foi comprovado. Eles não merecem estar no meio de famílias de bens. Ou
melhor, de famílias de bem!

149. A Youtuber Foi com a imagem de “Caridosa família Brandão”,


depois desse acolhimento do Inácio, que eles se promoveram mais! Os jornais da
época adoraram noticiar isso. Eu fiz minhas pesquisas!

150. A jornalista Nossa!! E você conseguiu toda essa informação em


dez minutos de Internet, antes de falar no seu canal e vir pra cá? O golpe foi muito
bem dado, “investigadora”! Eles esconderam Inácio, e só mostraram o menino para
imprensa alguns meses depois que ele nasceu. A família conseguiu abafar até um
bebê!

151. A vizinha Do nada, Túlio aparece pai de uma criança com meses
de idade...

152. O coro (menos a empregada)...Quem é a mãe de Inácio, meu


Deus?...

153. A vizinha ...e de casamento marcado com Faela, a atual mulher


dele, filha de político! Tudo ao mesmo tempo e em ano de eleição.

154. A jornalista O pai de Túlio Brandão deu foi muito dinheiro pro
partido do pai de Faela...Todo mundo lucrou muito. Elegeram tantos candidatos do
partido depois desses vinte anos, que agora estão concorrendo à presidência!

155. A vizinha Casamento de conveniência! Aposto que nunca foram


felizes!

156. A empregada (deixa escapar) Com dinheiro é fácil esconder tudo. E


por dinheiro é menos doído fazer as coisas...

Todas olham para a empregada, que permanece calada

157. O coro Fala mais! A gente quer saber mais!

158. A empregada Eu não sei se devo...

159. O coro Deve!

160. A vizinha Empregadas sabem muito! Sobretudo dessas que


servem no dia-a-dia. Que dormem na casa, lidam com a família toda. Se minha
diarista, que é que minha diarista, deve saber cada coisa de mim, você, então, deve
saber o mundo sobre eles! Todo mundo sabe, não é surpresa pra ninguém, que todo
empregado tem inveja da vida do patrão. Bisbilhotam tudo. A gente vive tendo que
se defender de “ólhos górdos” “ôlhos gôrdos”!

161. A empregada Mas era sempre a senhora que ia pedir um punhado de


açúcar lá na casa pra bisbilhotar. Vizinha cara de pau. O açúcar faltava na sua casa
todos os dias! Nem pra mudar o ingrediente de vez em quando. Nessas horas, você
não precisava da sua empregada, não é? Ia em pessoa buscar a encomenda!

162. A vizinha É a crise, minha querida! Às vezes, a gente fica sem


empregada e tem que ir a luta sozinha! Além do mais, só começou a faltar açúcar
para os meus bolos, depois que as brigas dentro da casa dos seus patrões ficaram
insuportáveis de ouvir. No fundo, eu tentava saber um pouco mais do que se
passava ali dentro pra tentar evitar o que aconteceu....

163. A empregada Muito prestativa a senhora....(para a jornalista) Está


vendo? Essa aí também sabe das suas. Se bobear, sabe mais do que eu, que trabalho
pra família há anos.

164. Jornalista Então ajuda esta senhora a elucidar pra gente o que
está por trás dessa história!

165. A vizinha Ah, eu ajudo, sim. Olha. Teve um dia que fui lá pedir
um punhado de açúcar e...

Faela entra. O coro volta a sair do foco e espiar, mas a vizinha sai do coro para viver
a cena. A empregada também. Ela entrega uma vasilha pequena contendo açúcar e
entrega para Faela.

166. A empregada Aqui está, Dona Faela. (sai de cena e volta ao coro)

167. A vizinha Ouvi umas coisas esquisitas aqui na casa de vocês


ontem a noite....tá tudo bem?

168. Faela (despistando) Ta tudo ótimo. (cínica) O que que você


ouviu?

169. A vizinha Uns gritos. Parecia briga. Acho que eram os meninos
discutindo, me parece.

170. Faela ...“os meninos discutindo”...que meninos discutindo?

171. A vizinha Ué...ora...ah...os...não sei...pareciam dois homens


discutindo aqui ontem a noite!

172. Faela (Faela pensa e desconversa) “Dois velhos rabugentos”


!
173. A vizinha O quê?

174. Faela É o nome do filme que assistimos aqui em casa ontem


a noite. Botamos a televisão com volume bem alto, porque adoramos filmes antigos.

175. A vizinha Ah! Filme antigo...sei...Então, eu não quero mais


tomar seu tempo.

176. Faela Que ótimo.

177. A vizinha Já vou indo...

Ela vai saindo e esquece a pequena vasilha do açúcar

178. Faela Vai fazer seu bolo sem o açúcar?

179. A vizinha Ai, que cabeça a minha! (volta, pega a vasilha da mão
de Faela e se prepara pra sair, quando entra Inácio carregando uma mala)

180. Inácio (um tanto nervoso) Bom dia.

181. A vizinha Oi, Inácio! (percebe a mala. Assunta) Vai viajar, é?


Parece que o filme de ontem te inspirou!

182. Inácio Filme?

183. Faela Olha, eu agradeço a visita, não precisa agradecer o


açúcar, mas agora a gente precisa tratar de assuntos de família. Se você puder me
dar licença...(ela vai se livrando da vizinha, que fica escutando atrás da porta a
conversa. A empregada sai do coro e, vivendo a cena, observa a cena e a vizinha
observar a cena, sem que ninguém a note)

184. Inácio Que história de filme é essa?

185. Faela Esquece isso, Inácio. E que história de mala é essa?


Você vai viajar mesmo? Não disse nada.

186. Inácio Eu vou sair dessa casa, Faela. Não agüento mais as
cobranças do meu pai.

187. Faela Sair de casa?

188. Inácio Está insuportável. Todo dia briga. Procuro ficar o


mínimo possível no mesmo ambiente que ele, falar o mínimo possível, mas meu
pai, o Grande Túlio, sempre dá um jeito de se fazer de bonzinho pra me provocar.
Pra me comparar a ele na juventude dele!
189. Faela É o jeito dele, Inácio.

190. Inácio Pois eu estou farto do jeito dele! Você não sabe o que
ele fala de você, às vezes, nas suas costas...

191. Faela Eu sei...

192. Inácio Eu não sei nem como falar, não quero falar, não to
falando nada, aliás. Mas ele é um sem vergonha, Faela. Eu também tenho o meu
jeito, será que é difícil de mais pra ele perceber que eu não o quero como referência
pra mim? Ele simplesmente não aceita.

193. Faela É uma maneira de se importar com você. Ele tem lá os


medos, as ideias dele.

194. Inácio Que jeito maravilhoso de gostar. Dispenso. Ele que conviva e
que fique com os medos e com as idéias dele! Eu já to de saco cheio. Eu nunca vou
tratar as mulheres como meu pai trata (se encaminha para a porta. A vizinha se
assusta, dá um solavanco, sai correndo e se reintegra ao coro, como se ainda
estivesse contando para o coro a conversa acima de Inácio e Faela. A empregada,
continuando sem ser vista, se coloca no lugar que a vizinha estava para ter uma
melhor visão do que acontece)

195. Faela Calma, menino. Espera. Não vai embora. Essa casa vai ficar
tão vazia sem você.

196. Inácio Por que você não vai embora também? Ele te trata mal, Faela!
Não respeita você, assim como não respeita a mim.

197. Faela Embora? Não...não posso...eu sou casada com ele há anos.
Desde que você era criança ainda. Eu basicamente ajudei a te criar. Não tenho o
direito de jogar esse tempo fora. Eu acredito que tem alguma coisa boa nele. Em
algum momento, há muito tempo a gente já teve dias bons...e às vezes, quando ele
quer, ele me dá um presente, um carinho...

198. Inácio Você atura o monstro que ele é em troca de migalhas? Vai
embora daqui. Você pode conseguir coisa melhor.

199. Faela Mas...eu não sei...Pra onde eu iria? O que eu poderia fazer da
minha vida?

200. Inácio Recomeçar, Faela!

201. Faela Como? Eu me dediquei tanto a esse lar...eu acho que não sei
fazer outra coisa...
202. Inácio Você é uma mulher incrível. Atura meu pai todo esse tempo,
faz vista grossa pra tudo que ele faz com você, e não é pouco! Ele te agride
verbalmente, te (a palavra “trai” engasga)...você é quase uma santa por agüentar
isso tudo.

203. Faela Santa, não, Inácio. Sou só mulher.

204. Inácio Eu admiro vocês. A raça humana é odiosa nos seus modos de
pensar, e a raça masculina é asquerosa no seu modo de agir com quem acha que é
aparentemente mais frágil. Não importa se é homem também, ou se é mulher.
Sobretudo, se é mulher. (hipnotizado pela presença feminina de Faela. Um clima
acontece entre eles) Eu por mim, colocaria todas vocês em um pedestal, não as
tiraria mais de lá, vocês nos geram, vocês nos nutrem, vocês são deusas...

205. Faela (ela quase coloca os seus dedos sobre os lábios de Inácio
para que ele se cale, mas seus dedos param no ar muito perto da boca do garoto,
suspensos) Não diga isso! Pedestal, não. Nenhuma mulher é intocável. Eu sou
humana, Inácio! Quero que você me veja assim.

206. Inácio (cortando a suspensão do clima) E é assim que eu te vejo. Por


isso que repito pra você deixar essa casa, largar meu pai...assim como eu estou
fazendo.

207. Faela Não vai! Fica. Eu te peço. Eu não vou ter forças de agüentar o
Túlio sozinha. (hipnotizada por Inácio) Se eu agüento o que agüento é por você
(para um tempo para contemplar a feição do menino. Volta ao normal e ele se
assusta um pouco. Ela desconversa)....por...por todos esses anos que eu passei com
vocês aqui nessa casa, te criando como...(ela se interrompe)

208. Inácio ...como uma mãe. Pode dizer. (confuso) É assim que eu devo
sentir.

209. Faela Fica Inácio. Eu não consigo abandonar tudo que eu construí
aqui. (vai acariciar o rosto do menino, mas se interrompe. Desta vez, ele não corta
o clima e a mão dela fica no ar, novamente em clima de suspensão.Eeles estão cada
vez mais próximos) E preciso de você pra me dar força.

210. Inácio Eu fico. Pra te dar essa força, eu fico. Mas não sei até quando
eu suporto...

Túlio grita o nome de Faela do lado de fora da cena. O enteado e a madrasta notam o
clima que aconteceu entre eles e disfarçam assustados. Túlio entra em cena. A cena dos
três congela. A empregada, chocada, se reintegra ao coro, mas sem ser notada por ele,
indicando que ela esconde do coro essa última parte da conversa que só ela, e não a
vizinha, ouviu.
211. A vizinha E aí, foi isso. O menino reclamava das brigas com o pai.
Nesse dia que eu tava falando que fui lá pedir o punhado de açúcar, ele chegou com
uma mala dizendo que ia embora e não agüentava mais. Mas eu sou muito discreta.
Quando notei que o assunto estava ficando íntimo, eu pedi licença e fui embora.

212. A empregada (duvidosa) Ah, sim. E seu Inácio, que pouco aparecia na tua
frente, tão reservado que era; que não soltava um “ai”, que não fosse “bom dia, dona
fulana”, e só, na frente de quem não tinha intimidade com ele; ia dizer essas coisas
na sua presença!? (cínica) Há tanto tempo pedindo açúcar, há tanto tempo espiando
atrás da porta, não é? Depois, é a empregada que sabe das coisas, que fica
escutando...

213. A vizinha Filha, eu...minha filha...não...eu não escuto atrás da porta,


não, eu...!

214. Coro (liderado pela empregada, acusam a vizinha) De fofoca, que


feio!

215. A empregada Pode confessar! Eu vi a senhora escutando atrás da porta


nesse dia do punhado de açúcar, que a senhora tava contando. E vi a senhora
escutando outras vezes também.

216. A vizinha Ah, viu?!

217. A empregada Vi!

218. Coro Ela disse que viu!

219. A empregada Confirmo que vi!

220. Coro (inclusive a empregada) Ainda vai negar?

221. A vizinha (lógica) Tudo bem, mas se você me viu observando atrás da
porta, é porque me observava também. E provavelmente não estava ali para me
observar apenas! (acusativa) O que mais você ouviu depois que fui embora? O que
mais você ouviu durante esse tempo que trabalha ali?

222. Coro (agora, o coro, liderado pela vizinha, se volta para a


empregada) Não esconde o jogo. Não entra em briga de cachorro grande. Essa
gente fina não quer saber de você.

223. A empregada Gente fina...cachorro grande. As merda que essa gente faz é
tão grande quanto os cachorro que eles são. E de fina, eles não tem nada.

224. O coro Eles não te tratavam bem?


225. A empregada Dona Faela era a melhorzinha dali. Mas também foi uma sem
vergonha! Criou o menino desde pequeno. Quase uma mãe!

226. O coro Como pode ela ser a sem vergonha?

227. A empregada Me pergunto se não mereceu.

228. O coro Nunca diga isso, minha senhora!

229. A empregada O destino brinca com a gente o tempo todo.

230. O coro O que a senhora está dizendo?

231. A empregada Eu estou falando da grande ironia nesta história. Daquilo que
a família lutou pra esconder há vinte anos.

232. O coro Tem a ver com a mãe de Inácio?

233. A empregada Eu não sei se posso...

234. O coro Conta, senhora!

235. A empregada O tempo foi matreiro. Não conseguiu curar seu Túlio.
Aconteceu ontem a mesma coisa que aconteceu há vinte anos. Ele acabou com a
vida de todo mundo de novo. Mas desta vez, não sei se alguém se salva. Nem o
menino, que soube de tudo da pior maneira, coitado, mas que também não foi
nenhum santo nisso tudo. O destino resolveu usar de ironia, porque seu Túlio não
aproveitou a segunda chance que a vida lhe deu, e desafiou a piedade dos céus.

236. O coro (menos a empregada) Os céus não tem nada a ver com isso. O
sangue que pinga das mãos de Túlio pinga na terra. Ele é um monstro. Inácio foi
justo!

237. A jornalista Mas o que é isso que se repetiu vinte anos atrás?

238. A vizinha O que Inácio soube da pior maneira?

239. A Youtuber Qual culpa do menino na história?

240. A empregada Que a luz do sol e as estrelas sejam misericordiosos com


todos eles!

241. O coro (menos a empregada) E que porra de ironia é essa que a


senhora fala?

242. A empregada Não teve namorada antiga do interior.


243. O coro (menos a empregada) Eu sabia!

244. A empregada Mas o que vocês não sabem é o mal que Faela trouxe para
esta família, e que começou naquele dia que ela (aponta para a vizinha) tava
contando para vocês ainda agora. Depois que essa aí foi embora, eu vi seu Túlio
quase chegar e dar de cara com um momento entre seu Inácio e dona Faela.

245. O coro (surpresos) Um momento íntimo? Inácio e Faela tinham


um...?

246. A empregada (cortando o coro) Foi nesse dia do punhado de açúcar, que ela
tava contando pra gente, que começou o que não devia, o que não podia ter
começado. Nesse dia, ela quase tocou o lábio dele com os dedos, quase acariciou o
rosto dele com as mãos!!! (respira)

A empregada respira sôfrega, enquanto a luz tira o coro do foco da cena, e aparecem
Túlio e Faela

247. Túlio Precisamos de vinte anos e uma dezena de eleições. Algumas


tentativas e agora, finalmente, vai! Essa eleição é praticamente a renovação de
nossos votos de casamento, minha esposa. Ganhamos um bônus para pular direto
para as bodas de ouro! Até que enfim, estamos nas cabeças para eleger um
presidente. Teu pai teve que fazer muita coligação. Mudar muito de lado. Meu pai
gastou muito dinheiro. Teve que levantar fundo não sei de onde, burlar muito
federal, dar muito jeitinho, muita propina disfarçada de doação eleitoral. Mas,
enfim, o nosso esquema está armado. Cinco anos comendo pelas beiradas, dez
participando do banquete principal dos outros, e mais cinco pra poder servir o nosso
banquete. Depois de vinte anos, Faela, nós podemos servir!

248. Faela Que bom.

249. Túlio Você devia estar feliz.

250. Faela Eu estou feliz.

251. Túlio Duplamente feliz: nem tive tempo de beber. Meu pai acabou
de me ligar falando dos indicadores de intenção de voto.

252. Faela Ô! Que maravilha. E você está sóbrio ainda!

253. Túlio (percebendo a frieza irônica da mulher) Quanto apoio eu


posso esperar da minha mulher!

254. Faela Eu te apoio, Túlio. Desde o dia que a gente se casou. Aliás foi
pra isso que agente se casou, não é verdade?

A empregada, se desta do coro e entra


255. A empregada Posso servir o jantar?

256. Túlio Não tem jantar hoje. E pode ir pro seu quarto. Vai dormir,
obrigado, boa noite. (ela pede licença e sai, faz que espia, como na cena anterior,
mas, desta vez, não participa da cena e se mantem integrante do coro) Hoje eu
quero comemorar com a minha esposa.

257. Faela Não estou disposta hoje, Túlio.

258. Túlio Qual a novidade desta vez, Faela?

259. Faela Que novidade?

260. Túlio Há quanto tempo você nega disposição, mesmo? (ela olha pra
ele e desvia o olhar em seguida) Não sei porque eu vou fazer essa pergunta de novo,
mas eu faço. Pra não dizerem depois, que eu não sou um marido compreensivo!
Está acontecendo alguma coisa?

261. Faela Não.

262. Túlio Sempre a mesma resposta. (puxa sua pequena garrafa de


whiskey de metal do bolso e começa a beber) Sabe do que mais? Não é mais
eficiente essa resposta. Se não tem problema, não tem porque me negar o que é meu
de direito. (avança pra ela)

263. Faela (se desvencilha. Ele bebe)) Tira a mão, Túlio. Eu não sou tua!

264. Túlio Então é de quem?

265. Faela Ninguém me possui.

266. Túlio Eu sou teu marido. Eu te possuo. Posso te possuir a hora que
quiser.

267. Faela Eu não sou obrigada a nada que eu não queira. (ele bebe e
avança)

268. Túlio Você não ama seu marido, a sua família?

269. Faela (se desvencilha, ele bebe) Não se trata de amor. Me larga,
Túlio.

270. Túlio Eu não agüento mais suas histórias. É por isso que, vira e
mexe, eu dou meus pulos!
271. Faela E eu não reclamo! Nunca reclamei (ele, já um pouco alterado
da bebida, bebe mais, avança e a agarra) E não sou mais obrigada a fazer o que eu
não quero, quando eu não quero, só pra te agradar. Pára, Túlio. (ela se desvencilha.
Ele bebe) De uma vez por todas, não vai acontecer mais assim!

272. Túlio Assim como? Não tem nada de diferente. De uns tempos pra
cá é sempre assim. Eu tenho que forçar um pouquinho pra você parar de resistir.

273. Faela Vamos fazer o seguinte. Nossos pais renovaram nossos votos
hoje, como você disse, certo?

274. Túlio Foi uma brincadeira!

275. Faela Foi a mais pura verdade. Tudo acordo, marido. Foi tudo
acordo! Eu me casei com você pra abafar mais uma merda que você tinha feito.
Aliás, a pior de todas! Uma das mais abomináveis.

276. Túlio (ele bebe) E o partido do seu pai tem ganhando tanto, mas
tanto financiamento, que hoje está em vias de eleger o presidente da República
Federativa do Brasil!

277. Faela Bem lembro como seu pai colocou o negócio. “Um dote às
avessas. Você me dá a noiva. Eu te dou o dinheiro”.

278. Túlio E teu pai disse sim.

279. Faela No final das contas, não passou de um financiamento que


durou vinte anos. Tudo, tanto esforço, tanta negociata, pra chegar a isso!

280. Túlio E você está reclamando do que? Temos tudo do bom e do


melhor, Faela. Uma família de revista!

281. Faela Nisso você tem toda razão!

282. Túlio Como assim?

283. Faela Família de revista pra mim não é família perfeita, não, Túlio.
Família de revista pra mim é justamente aquela que é só aparência. Que pode
parecer o que quiser pra uma gente carente de tudo, que precisa da aparência da
felicidade pra sobreviver, tanto quanto do pão.

284. Túlio (ele olha profundamente pra ela. Dá um gole) Se você fosse
mãe dele, não seria tão parecida!

285. Faela O ponto é esse. Família perfeita pra mim tem filho envolvido
e nem um filho você quis me dar!
286. Túlio Ah, esposa, isso você não pode falar!

287. Faela O que?

288. Túlio Nesse acordo dos nossos pais, o seu ganhou dinheiro, o meu
manteve a reputação e ganhou...digamos...influências. Por causa disso, meu pai
ganhou mais dinheiro também! E você ganhou um filho, sem precisar parir. Eu te
dei Inácio. (ela não acredita no que ouve)

289. Faela Que nojo isso que você está falando. Eu não sei nem o que
dizer. Inácio não é meu filho. Em respeito à mãe dele, eu dei todo amor que eu
podia dar pra ele, mas nunca quis que ele me visse como mãe. Eu nunca quis tomar
o que foi tirado dela.

290. Túlio Negociado com ela!

291. Faela Eu não sei como você enxerga as coisas ou o que você tem no
coração, Túlio. Mas saiba, que não me fez nenhum favor em me evitar um parto. Eu
queria ter tido um filho meu!

292. Túlio (agora, bêbado) Cruz credo! Comigo não! Já chega uma
burrada na vida. Duas é idiotice.

293. Faela Teu filho foi a melhor coisa que você podia fazer pelo mundo.
E foi, sim, a melhor coisa que eu ganhei deste casamento.

294. Túlio Eu não fiz muita questão, não. (bebe) Por mim esse garoto
não tinha ficado! Mas, imagina, se tempos depois, aparece uma criança, um
bastardinho, na família Brandão? Impressionante como assessor pensa em tudo!
(imitando o assessor) “Pega! Cria logo o menino. A gente inventa uma história...”
(volta a si, debochando) a tal da namorada antiga do interior. Morreu no parto!
(imita o assessor) “...e agrega valor à família, através de uma imagem de
altruísmo!”. Bingo! Livres de escândalos no futuro. (Desenhando as aspas no ar,
trazendo novamente o assessor) “Arestas aparadas”

295. Faela Nota-se bem que se não fosse por mim esse garoto não saberia
o que é afeto. Não sentiria...amor.

296. Túlio Chega de falar do Inácio. Eu não quero mais discutir (avança,
ela foge)

297. Faela Então. Não vamos mais discutir. Nunca mais! Túlio, depois
que essas eleições passarem, depois que se elegerem todos o que eles querem que
sejam eleitos, a gente se separa.

298. Túlio (surpreso) Que brincadeira é essa?


299. Faela Não precisa ser formalmente em um primeiro momento.
Eu...Eu...eu posso viajar, ficar afastada. A gente deixa a nossa imagem juntos se
desgastar, não sei. Mas não dá mais

300. Túlio (bêbado e infantil) Eu não quero me separar.

301. Faela Nosso casamento já não tem mais serventia. Depois que essa
família colocar no poder o presidente que ela quer, nada mais segura ela nesse
mundo. Nossa separação vai rapidinho ser apagada com qualquer joguinho de
futebol, ou com a separação de algum casal amigo que, inevitavelmente, vai seguir a
nossa, porque a sociedade tá toda desmoronando, mesmo, graças a deus!

302. Túlio Mas eu me acostumei com você. Eu ainda quero você.

303. Faela Acabou, Túlio. Eu vou ligar pro meu pai. Você devolve a
noiva e ainda continua com o dote. Não tem prejuízo pra vocês.

304. Túlio Vem cá, Faela, deixa de frescura. (ele avança para ela)

Ela sai correndo de cena e ele vai atrás. Eles atravessam as coxias da direita para a
esquerda, da esquerda pra direita, e cada vez que Faela volta ao palco, correndo, indo
de uma coxia para outra, seu figurino aparece mais violado, até que completamente
rasgado, e de dentro da coxia ouvem-se os gritos de Faela sobre o gozo de Túlio.
Silêncio. Inácio entra como quem chega em casa. Ela volta à cena como quem sai do
quarto transtornada, abalada e ferida. Se surpreende, dando de cara com Inácio

305. Inácio O que aconteceu?

306. Faela Nada.

307. Inácio Não tem condição de você, neste estado, não ter...Faela,
espera aí. Faela, aquele monstro fez...Eu não to acreditando. (Ele não sabe como
agir. Se a toca, se não toca...percebe o constrangimento. Mantém a distância)

308. Inácio Vamos agora pra delegacia.

309. Faela Ele é seu pai, Inácio.

310. Inácio Não interessa quem ele é. Interesse o que ele é.

311. Túlio (entrando em cena com uma outra garrafa na mão. Desta vez,
de vidro, bebendo seu whisky direto da garrafa original) E o que eu sou?

312. Inácio Seu monstro! (feroz, quer partir pra cima dele, mas ela não
deixa)

313. Faela É o seu pai. Se acalma. Sai daqui, Inácio.


314. Túlio O defensor dos oprimidos ataca novamente!

315. Inácio Eu vou te denunciar, seu escroto!

316. Túlio (em sua despreocupação de bêbado)Vai nada.

317. Inácio Eu vou acabar com a sua vida.

318. Faela Chega, vai embora.

319. Inácio Eu fico!

320. Túlio Ele não vai fazer nada, Faela. (para Inácio) Tem certeza que
você vai comprometer a nossa eleição à presidência por uma besteira?

321. Inácio E você diz que o que aconteceu aqui foi uma besteira? Tem
noção do que você está falando? Está tudo errado! Está tudo errado!

322. Túlio Pára de frescura, Inácio!

323. Inácio (transtornado, perdido) É de família. Não pode ser. O meu


avô: empresário que ultrapassava os limites de dinheiro, até quando era permitido
empresa financiar campanha. Depois que proibiram as empresas de dar verba pra
político, meu avô deu o jeito dele pra continuar na jogada! Só quer mais poder,
mais, mais! E ainda tem que usar esse dinheiro pra apagar os incêndios do filho
dele, o meu pai. O meu pai que é...é isso aí. O filho, o herdeiro de uma das
principais famílias do país. Homem feito, que nunca fez nada pra ninguém. A sua
família está envolvida com partido que pode eleger presidente da República daqui a
alguns dias, mas, ao invés de dar algum exemplo, você estupra sua mulher, diz que
é besteira e caga pra toda responsabilidade dessa merda imunda que você acabou de
fazer.

324. Túlio Que merda, Inácio? Não teve cagada nenhuma! Não fala uma
coisa dessas, que não teve essa violência aí que você falou, não. Como pode? Eu,
marido, fazer uma coisa dessa com a esposa?! Gente conhecida não faz isso com
gente conhecida, não! Você está maluco! Era só o que faltava.

325. Inácio Você não entende as coisas como elas são, não? Marido,
esposa, não interessa. Não é possível que você não perceba quando alguém não
quer!

326. Túlio (bebe) Você está falando igual pai. O que aconteceu aqui é
plenamente natural! O marido dando conta da esposa rebelde. Isso é o que acontece
nas melhores famílias. Nunca afetou a posição e o dinheiro que te dá a boa vida que
você tem, seu otário.
327. Inácio Meu Deus, como eu posso ter vindo de um ser como você?!
Não tem explicação. Eu vou acabar com a sua festa. Vocês nunca mais vão se
aproveitar de ninguém.

328. Faela Para com essa discussão! Chega. (os ânimos baixam)

329. Inácio Olha aqui a tua mulher, seu imundo! Se vocês são capazes de
fazer uma coisa dessas com quem demonstra mais amor por vocês, não dá pra
imaginar o que vocês são capazes de fazer com o povo que vocês controlam,
governam, enganam, mas nem conhecem. Ta todo mundo fodido mesmo se não
abrir o olho. Fodido, não, pior. (olha pra Faela) Violado.

330. Túlio É agora os aplausos? A família está perdendo um belo


candidato. Pelo menos assessor, pra escrever discurso. Não tem vontade, não?

331. Inácio Se você não fosse meu pai...

332. Túlio Opa, agora chegamos no que interessa!

333. Faela Já deu, Inácio. Vamos embora daqui.

334. Túlio Vamos? Você vai com ele pra onde?

335. Faela Eu vou tirar ele de perto de você, porque você é nocivo. Você
transforma em bosta tudo que toca, mas o Inácio eu não vou permitir. Eu nunca
permiti e não vai ser agora.

336. Túlio Do que você está falando? O garoto é meu filho e você é
minha esposa. Vocês ficam! Ninguém sai da porra dessa casa.

337. Inácio Papai, eu nunca votei nos seus candidatos. Seus valores não
me dizem nada, suas ordens não me representam. Você não tem o direito de me
dizer o que fazer.

338. Túlio Enquanto eu for o poder maior aqui dentro dessa casa, vocês
vão ter que se curvar e obedecer. É de mim que sai o dinheiro, eu tomo as decisões,
eu governo os rumos dessa casa. (para Faela) Você me elegeu como seu marido...

339. Inácio Mas eu não te elegi como meu pai! Essa palhaçada termina
hoje.

Inácio ajuda Faela a se recompor e vão se retirando, quando Túlio quebra a garrafa
que traz consigo e ameaça os dois.

340. Faela Túlio, o que é isso?


341. Túlio Pra onde você está levando a minha mulher? Ta querendo
roubar ela de mim? Isso aqui vai virar a briga final dos varões pela donzela?

342. Inácio Você está bêbado. (se vira para ir embora com Faela. Túlio
puxa ele pelo braço). Larga meu braço, me deixa ir emhora.

343. Túlio Quer ir vai, mas deixa sua madrasta.

344. Inácio Ela vai comigo.

345. Faela Eu fico, Inácio.

346. Túlio Ta vendo, ela não quer ficar com o filho sensível do dono do
pedaço. Ela quer o dono do pedaço. Elas sempre querem.

347. Inácio Eu to indo pra polícia, Faela. Eu vou denunciar esse maldito
pra polícia. E aproveito pra denunciar logo essas farsas do meu avô e dessa família
toda. Acabar com a palhaçada desse bando de enganadores.

348. Faela Você que não merecia ter vindo nesta família.

349. Túlio Que família pode ser melhor que esta, meu amor?

350. Faela Vai, Inácio, embora. Esfria a cabeça. Quando tudo se acalmar,
você volta e a gente se entende. Sempre foi assim. Não deixa isso que você viu aqui
queimar teus nervos. Eu sempre agüentei tudo por você. Não se preocupa. Eu
suporto tudo por você, que nunca teve culpa de nada.

351. Inácio Nem você, Faela. Você não precisa suportar isso. Como eu ia
saber?

352. Faela Eu compactuo com eles todo esse tempo. Seu pai tem razão.
Ninguém aqui é santo. (ela acaricia o rosto dele) Nem eu.

353. Túlio Não é mesmo! Sua madrasta sabia muito bem onde ela tava se
metendo quando casou comigo. Ela ta certa! Acredita nela.

354. Inácio Cala a sua boca, pai. Você não consegue dizer uma coisa que
preste. Minha mãe deve ter, mesmo, é morrido de desgosto por ter conhecido um
homem como você.

355. Túlio Morreu nada, Inácio. Bom, não sei se depois de todo esse
tempo ela morreu, porque eu não tenho notícia dela desde que a gente deu uma
grana boa pra ela ir embora dessa casa e deixar você com a gente.

356. Inácio O que?


357. Faela Túlio, cala a boca. Ele está mentindo, Inácio. Sua mãe morreu
quando te deu a luz. É isso que você sabe e é isso que deve saber.

358. Túlio Tua mãe te deu pra mim por um bom dinheiro, filho. O
mesmo dinheiro que te dá tuas regalias hoje em dia.

359. Inácio Você não tem amor por ninguém. Não consegue ter respeito
nem pela mulher que teve o seu filho, quando fala dela?

360. Túlio Respeito? A tua mãe era empregadinha dessa casa. E, com a
gente, aconteceu uma única vez. Depois que eu terminei com ela, ela estava aí. Igual
Faela ta agora. Do mesmo jeito, igual um trapo. Toda rasgada, reclamando que um
homem de verdade sentiu desejo por ela, e lutou por esse desejo até o fim!

Inácio, impactado, com a notícia fica sem reação

361. Faela Inácio, fala comigo.

362. Túlio Vamos ver se assim, depois da aula de educação sexual com o
professor Túlio, Inácio vira homem e faz jus à fama que o pai dele um dia teve.
Agora, já sabe como veio ao mundo.

363. Inácio (em choque, desamparado, enumera as vítimas de Túlio)


Faela, você, a minha mãe...e mais...e mais quantas...?

364. Túlio O tempo passa, Inácio, e a gente tem que aproveitar cada
minuto. O corpo vai dando sinais claros! Você aí, com a vida inteira na mão, a
vitalidade de um touro! Desperdiça se importando com quem não faz a menor
diferença pra vida que você leva, pro mundo que você vive. Um bando de
carneirinho que depende da caridade alheia pra sobreviver. Você só quer saber de
usar nosso dinheiro para “causas”, pra estudar! Não desfruta esse conforto pra
viajar, conhecer mulheres! Aproveita esse dinheiro pra fazer isso que você chama
de cagada, Inácio. Não é cagada, é poder! A gente pode tudo e você só quer se
preocupar com o ser humano!

365. Inácio (entredentes) Faela, vamos embora daqui agora.

366. Túlio Quanto apego! Se não fosse madrasta eu desconfiaria.(bebe)

367. Inácio É aí que está seu erro, seu cuzão. Você devia ter desconfiado.

368. Túlio (engasga-se, tossindo) Como é que é? (se recompõe) Não


admito que você brinque com isso!
369. Inácio Isso não é uma brincadeira. E depois de tudo o que eu
descobri aqui hoje, pode parecer até como uma vitória, mas não é. O otário aqui não
sou eu, não, pai. Enquanto você está aí, achando que tem o controle dessa casa...

370. Faela ...pára, Inácio...

371. Inácio ...a tua mulher te trocou pelo seu filho!

Túlio respira, engole seco. Encara Faela. Ela desvia o olho e não retribui.

372. Túlio (seco) Há quanto tempo?

373. Faela Não importa isso agora, Túlio.

374. Túlio (explode) Claro que importa, tudo importa!!

375. Faela A decisão já está tomada. Definitivamente você não merece o


afeto de ninguém.

376. Túlio Era por isso, então, a história de se separar? De viajar, se


separar aos poucos...?

377. Faela Eu estava só esperando passar esse ano de eleição, esse


momento de eleição...

378. Túlio Ano? Há quanto tempo, Faela? Desde que você trocava as
fraldas dele?

379. Inácio Cala a boca, seu cretino! A decisão foi minha. Ela não me
forçou a nada, aliás foi ela quem quis esperar essa porra de eleição passar. Por mim
eu já tava longe daqui com ela faz tempo!

380. Túlio Seu filho da puta! (parte pra cima de Inácio com a garrafa
quebrada em punho. Eles brigam e o objeto cai no chão. Faela, desesperada, sem
saber como conter a situação, pega o objeto do chão e se dirige para fora de cena,
andando de costas, olhando para os dois varões, chamando a atenção de ambos,
com o vidro apontado para um de seus pulsos)

381. Faela Parem com isso! (ao chegar fora de cena, ela solta um grito
de dor e seu antebraço aparece desfalecido em cena, cheio de sangue, saindo do
pulso. Os dois estacam)

A cena se dilui e o coro volta ao foco, sem fôlego, com a empregada desesperada, como
se tivesse terminado de contar a história.
382. A jornalista (concluindo, para si mesma, com um certo asco) Então, o
casamento de túlio e Faela não passou de um tratado político para ocultar um crime
de violência contra mulher? (recebe uma mensagem no celular)

383. Vizinha + Youtuber Que nojo! A prisão foi merecida. Mas ainda é pouco
pra Túlio.

384. A jornalista Parece que nem isso. Acabei de receber outro furo aqui.
Conseguiram um hábeas corpus relâmpago pra ele. Ele saiu da prisão. Está
voltando pra casa.

385. A Youtuber Absurdo! Esse Túlio merece morrer!

386. A vizinha É um abusador!

387. A Youtuber Minha senhora, o que a Faela tem de sem vergonha? Cadê a
culpa dela nessa história?

388. A empregada Você não prestou atenção na hora que eu contei, minha filha.
Ela era apaixonada pelo enteado. Se ela não tivesse sucumbido a esse amor sem
vergonha, não ia rejeitar o marido e os varões não iam brigar! Vocês não percebem?

389. A Youtuber Eu não posso acreditar que a senhora acredite no que está
dizendo.

390. A jornalista Brigar? Brigar, minha senhora? Você ouviu mesmo tudo que
contou pra gente? O garoto em vias de se acertar com a mulher que ele ama, não
interessa se é a madrasta ou não, chega em casa e a vê violentada e, ainda descobre
que ele próprio é fruto de uma violência também. É muita pauta, é muita coisa...é
muito absurdo...é muita pauta.

391. A empregada Ela ajudou a botar filho contra pai. Agora ela está lá internada
no hospital e é seu Inácio que está lá com ela, não o marido...

392. A Youtuber Ainda bem que não é o marido! Nada justifica. Nada! Nada
justifica o que Túlio fez.

393. A vizinha Eu to chocada. Todo castigo pra um bandido desses é pouco.

394. A empregada Você não nota que isso é quase como uma mãe se
apaixonando por um filho? Ela criou ele desde menino, seduziu o menino e traiu o
marido

395. O coro (menos a empregada) Faela não queria ser vista como mãe,
esposa ou objeto. Faela só queria ser vista como mulher!
396. A Youtuber Ela não era mãe dele. Não foi ela quem pariu. Túlio ainda
deixou claro isso pra ela!

397. A jornalista Não é isso que está em questão. Como a senhora pode ainda
se preocupar com uma coisa dessas, depois do que o Túlio fez. E ainda mais
sabendo tudo o que a mãe de Inácio deve ter sofrido há vinte anos.

398. A vizinha Eu tenho uma filha e não conheço meus próprios vizinhos. E
essa mulher, gente, essa mãe de Inácio, está viva?

399. O coro (para a empregada) A senhora sabe dela?

400. A empregada Não sei mais dela, não. Ela só trabalhou três meses na casa,
era muito bonita. Seu Túlio ficou em cima dela o tempo todo e não sossegou
enquanto não conseguiu o que queria.

401. A Youtuber Inácio fez certo. Denunciou o pai pra polícia!

402. A vizinha O menino mostrou que tem coragem. Resta saber se vai ter
brios pra levar toda a denúncia sobre a família adiante, porque até agora a polícia
não falou nada.

403. A jornalista Mas agora nós sabemos. E temos uma fonte super confiável.
(olha para a empregada, que está cabisbaixa, pensando sobre tudo o que está
acontecendo) E a senhora? Levou algum dinheiro também, não levou?

404. A vizinha Como se garantir o emprego, e não se queimar com as outras


madames já não fosse pouco!

405. A Youtuber Pode falar, senhora. Ninguém aqui vai te julgar.

406. A empregada Com o dinheiro que eles deram, eu comprei uma casinha pro
meu filho e comecei uma caderneta de popança pra mim também. É importante ter
uma caderneta! Era só eu que sabia, foi só eu que tava na casa no dia, que vi o que
seu Túlio fez com a moça. Aí, meus patrões disseram que precisavam de uma
testemunha do lado deles, falaram pra eu não confiar numa menina que começou a
trabalhar ali só tinha três meses. Depois que tudo ficou resolvido, que eles calaram a
menina e pegaram seu Inácio pra criar, eles me pediram pra esquecer. Mas eu nunca
esqueço.

407. A Youtuber Túlio merecia continuar lá preso.

408. A vizinha Ainda dá tempo de a senhora se arrepender do que fez.


Começa agora, cuspindo na cara daquele maldito quando ele passar aqui.
409. A Youtuber (direcionada para a turba) É o que todo mundo aqui devia
fazer! (para a empregada) Lembra de tudo que aconteceu, lembra de toda essa
história que você acabou de contar pra gente e pensa em todas nós.

410. O coro Vamos cuspir na cara dele quando ele passar!

411. A Youtuber (direcionada para a turba) Atenção!! Vocês ouviram essa


história escabrosa toda que a senhora aqui contou, não é? Não foi uma só a vítima
dele, não. O mesmo que aconteceu com Faela, ontem aqui, aconteceu com a mãe do
Inácio, também aqui, vinte anos atrás. Mas, agora, meu povo, fiquei sabendo que,
parece que o estupr...

412. A jornalista (ela toma a palavra) ...Fui eu quem disse, ta tudo no site do
meu jornal a esta hora. Em primeira mão! Sabemos que o estuprador...

413. Youtuber + jornalista ...vai conseguir responder o processo em liberdade e tá


voltando pra casa.

414. O coro Agora ele vai ter que olhar no nosso olho!

415. A Youtuber E depois que ele olhar no nosso olho o que a gente vai fazer?
Vocês querem que suas irmãs, suas mães, (olha para a vizinha), suas filhas, (olha
para a empregada) e suas iguais, passem pelas mãos de um covarde desses?

416. A vizinha A gente tem o poder de fazer com ele o que a gente quiser!
(para a empregada) E a senhora já tem a sua caderneta de poupança há anos.

417. A Youtuber (reitera para a empregada) Não deve mais nada a eles. (A
empregada se encoraja com o aval das duas)

418. A empregada Eu vou fazer isso, sim! Eu vou cuspir na cara de seu Túlio.
Vou pedir demissão da casa. Eu to arrependida dessa nojeira toda!

Sirene de polícia soa, como se estivesse estacionando

419. A empregada Ai, nossa senhora, mais polícia. É lá dentro da casa fazendo
perguntas, é aqui fora!

420. A jornalista Devem estar trazendo o Túlio de volta da cadeia.

421. A vizinha A senhora deve contar tudo que sabe pra eles.

422. A empregada Você pode me arrumar aquela advogada que prometeu?

423. A jornalista Eu não te prometi nada. Mas posso tentar ajudar. Deixa passar
tudo isso, que a gente se fala melhor. Agora, eu preciso dar esse furo no meu jornal!
Tem matéria pro mês inteiro nessa gravadorsinho: da política ao social! (para a
Youtuber) Graças a mim, você vai ter fofoca pra todo mês também.

424. A Youtuber Eu não lido com fofoca. Mas com política eu lido.

425. A jornalista Fofoca, política: hoje em dia todo mundo trata igual...

426. A Youtuber Com certeza, vou jogar a merda toda no ventilador.

427. A jornalista Calma! Cola comigo, garota. A gente pode pensar em fazer
uma parceria. Seu canal, meu jornal...apoiar seu canal...seu canal promover meu
jornal, jogar junto com ele...(a Youtuber não deixa de se interessar)

Túlio chega escoltado por uma policial (a mesma atriz que faz Faela), que o segura
firmemente. Ele está transtornado e visivelmente ultrajado fisicamente. Rasgado,
ensangüentado, machucado, violado, humilhado, com resquícios de fezes e sangue
espalhados pelas calças arrebentadas. O coro não sabe como reagir àquela situação.
Aos poucos as mulheres começam uma a uma a zombar de Túlio.

428. A policial Sabe como é que é estuprador na cadeia. Quando fulano não
tem estudo superior e cai na cela comum, tem que dançar conforme a lei dos presos.
E olho por olho, dente por dente é a que funciona nesses casos dentro no presídio. É
só a gente levar o elemento pra cela e anunciar o que ele fez. Logo na primeira noite
tem festa! Ninguém espera, porque ninguém perdoa. Todo mundo, uma vez na vida
ali, já teve mãe. Ou já soube o que é uma. A maioria, pelo menos.

429. O coro Foi o que ele mereceu!

430. A Youtuber (como um espasmo na multidão) Foi pouco!

431. Túlio Me solta! Eu quero entrar em casa. É uma injustiça. Eu não


fiz nada de errado.

432. A policial Ah, não?

433. Túlio Eu não fiz com minha esposa nada que um homem não faça
com uma mulher.

434. A policial (para a multidão) Ele ainda ta rebelde e acha que tem razão.
(Para Túlio, que tenta se desvencilhar das mãos da policial) Calma. Não precisa ter
pressa. Vai responder o processinho em liberdade, não vai?

435. Túlio Vai usar de abuso de poder, sua vadia?!

436. A policial Bem rebelde, aliás.


437. Túlio Você sabe muito bem quem eu sou. Você e seu parceiro ali
dentro do carro. Meus advogados estão chegando aqui em seguida. (o barulho da
turba começa a se agitar)

438. A policial (ela nota a turba agitada e violenta) Estou achando melhor
eles se apressarem.

439. Túlio (ele também nota a agitação e se agita também) Não tem
nada que possam fazer contra mim. Eu já fui solto. Já sofri dentro daquela cadeia
tudo o que eu poderia sofrer dez anos em uma única noite. Caralho! (reclama dor ao
se agitar) Agora, a lei está a meu favor. (a agitação na turba permanece e aumenta)

440. A policial Mas parece que a opinião pública não está. Os meninos na
prisão já tiveram a vez deles. As meninas aqui da multidão parecem que não. E
parecem que estão loucas pra isso.

441. Túlio O que você vai fazer?

442. A policial (para o coro) Vocês querem ter um pouco da honra? (o coro
se agita mais, o som de turba aumenta, se agita)

443. Túlio (ameaça) To sabendo que tem policial aí dentro da minha


casa com minha família, apurando melhor a denúncia de Inácio contra mim, que
Inácio fez contra o próprio pai dele!

444. A policial Coitadinho da vítima! Até meus parceiros chegarem aqui...sei


se dá tempo de eles fazerem alguma coisa, não...

445. Túlio Se algo acontecer comigo, você vai levar a culpa!

446. A policial Culpa por não ter conseguido segurar sozinha um elemento
que foi puxado das minhas mãos pela força de uma multidão enfurecida? Acho que
não.

447. Túlio Inácio é um mentiroso. É um traidor! Traiu o pai. Roubou a


mulher do pai! Denunciou o pai! Você vai me jogar para os chacais?

448. A policial Está mais para “as” chacais!

449. Túlio Vamos conversar. Vamos comigo lá em cima, pra tudo tem
um jeito.

450. A policial (ultrajada pela tentativa de suborno, mas cínica) Acho que
vou chegar lá em cima sem você, pedindo reforço pros policiais que estão tomando
depoimento: “Eu meio que perdi o elemento na multidão, e meu parceiro está lá
embaixo sozinho tentando conter a turba”. (o som vai às alturas e é agressivo. Ela
solta o elemento no meio da multidão que o lincha efusivamente. O policial, seu
parceiro, que estava dentro do carro, interpretado pelo mesmo ator que faz Inácio,
entra pra tentar conter a turba, mas é contido por sua parceira)

Fim

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