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Raízes

v.34, n.2, jul-dez /2014

REDENÇÕES, EXPURGAÇÕES E OUTROS CASOS DE REPARAÇÕES COLETIVAS POST-MORTEM


NAS CANONIZAÇÕES POPULARES DA AMÉRICA DO SUL

Luís Américo Silva Bonfim

RESUMO
Este artigo analisa alguns casos de devoções não-canônicas no Brasil, Argentina, Chile e Venezuela, com o objetivo
de compreender os diversos mecanismos de reparação post-mortem, requisitos para a consagração dos santos po-
pulares. Apresenta-se aqui um segmento dos resultados de uma pesquisa etnográfica que originalmente abordou as
práticas devocionais e votivas na América do Sul e localizou, entre outras taxonomias, um vigoroso complexo de
motivações sociais fundadas na comoção coletiva ante uma morte que, em dada medida, viole ou acentue os víncu-
los de coesão social. Como resultado, foi possível estabelecer um quadro de referência dinâmico que, ao modo es-
quemático do “martirológio romano”, situa as motivações devocionais em dois grandes grupos: o de exaltação de
virtudes e o da reparação de martírios, lato sensu. Concluiu-se que a matriz religiosa católica, de decisivo impacto
na formação da moral sulamericana, imprimiu um modelo de produção de crenças e práticas livremente interpreta-
do pelas populações, e que se renova de acordo com as demandas de cada tempo e espaço.

Palavras-chave: Canonizações Populares; Morte; Coesão social; América do Sul.

ABSTRACT

REDEMPTIONS, EXPURGATIONS AND OTHER CASES OF REPAIRS COLLECTIVE POST-MOR-


TEM CANONIZATIONS POPULAR IN SOUTH AMERICA

This article analyzes some cases of devotions non-canonical in Brazil, Argentina, Chile and Venezuela, with the ob-
jective of understanding the various mechanisms of repair post-mortem, requirements for the consecration of the
popular saints. We present a segment of the results of an ethnographic research that originally approached the de-
votions and votive practices in South America and found, among other taxonomies, a vigorous complex social mo-
tivations based on collective emotion ante a death that, in particular measure violates or accentuate the bonds of
social cohesion. As a result, it was possible to establish a frame of reference that dynamic, the schematic mode the
“Roman martyrology”, is the motivations devotional in two large groups: the exaltation of virtues and the repair of
martyrdom, lato sensu. It was concluded that the matrix Catholic religious, of decisive impact in the formation of
moral in South America, printed a production model of beliefs and practices freely interpreted by people, and that
is renewed in accordance with the demands of each time and space.

Keywords: Popular Canonizations; Death; Social Cohesion; South America.

Doutor em Ciências Sociais. Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe. E-mail:
americobonfim@gmail.com

Raízes, v.34, n.2, jul-dez /2014


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APRESENTAÇÃO ra-se desde a mais radical das intervenções mi-
A tradição ibérica proporcionou o de- raculosas à concessão de pequenos favores. Co-
senvolvimento de formas expressivas da fé re- mo em nenhum outro tempo, as comunidades
ligiosa muito particulares na América Latina. de tradição católica, especialmente na Améri-
O culto católico é caracterizado por uma na- ca Latina, mostram-se livres para construir seus
tureza personalista persuasiva, acentuada pela próprios vínculos de religiosidade, independen-
consignação dos santos, traço distintivo que se te do crivo regulamentar das autoridades ecle-
reafirmou após o Concílio de Trento, com uma siásticas. É o que justifica a renovada e vigorosa
notável valorização das representações figura- atividade simbólica dos santos, canonizados ou
tivas. Essa referência individuísta e iconográ- não, apesar da expansão de outros movimentos
fica tornou-se um modelo livremente assimi- religiosos muitas vezes antagônicos, de nature-
lado e reajustado por populações de diferen- za iconoclasta. Curiosamente, a construção es-
tes vocações nas antigas colônias do Atlântico pontânea de novas divindades revela, em mui-
sul, conforme ainda se pode observar, de for- tos casos, a emergência de uma sociabilidade e
ma paradigmática, em países como Brasil, Ar- de um sentimento de solidariedade social que
gentina, Chile e Venezuela. Santos canoniza- impressionam pela sua força, alcance e simila-
dos pela Santa Sé e santidades espontaneamen- ridade. Em alguns países da América do Sul as
te consagradas pelo credo popular disputam a canonizações populares são um objeto de estu-
veneração de fiéis em sociedades tão espacial- do relativamente recente, com crescentes con-
mente dispersas quanto heterogêneas. tribuições a partir da década de 1960, especial-
Os santos católicos sempre funcionaram mente de autores oriundos de áreas como a an-
como pessoas morais, seja pelo exemplo como- tropologia, a história e o jornalismo. No Brasil
vente da “heroicidade das virtudes”, seja por não chegou a se constituir como o foco princi-
despertar piedade na resistência ao martírio1. pal de estudos mais vultuosos, mas destacam-
As histórias de vida dos santos apresentam um se as contribuições esparsas dos folcloristas
rol inesgotável de dilemas ontológicos, supera- Luís da Câmara Cascudo (2000, 2001), Veríssi-
ções e renovações espirituais facilmente identi- mo de Melo (1964) e de Alceu Maynard Araú-
ficadas nas histórias de vida dos crentes, numa jo (1967), além das citações pontuais de Luiz
espécie de cosmologia do ser e do viver. Além Beltrão (2004), ao se referir às práticas voti-
de inspirarem os “modelos exemplares” (ELIA- vas como veículo jornalístico. Ao simples modo
DE, 2001) da conduta cristã, aos santos católi- de citação, tais referências não se ocuparam de
cos atribuem-se, em frequências e intensidades aprofundar a estrutura universal dos fenôme-
desiguais, uma eficácia simbólica: o dom da di- nos, mas ao menos listaram e localizaram ocor-
vina providência. Na relação íntima do cren- rências sem a preocupação asséptica dos estu-
te com os intercessores celestiais, em geral por dos de base teológica. Na Argentina, o assun-
via do estabelecimento de pactos votivos, espe- to despertou muito mais a atenção dos círcu-

1 Neste artigo, para além da definição cristã de ‘martírio’ como o sofrimento e morte em defesa da fé, adotaremos a simples no-
ção de testemunho de sofrimento ou suplício, físico ou moral, independente das crenças ou opiniões do martirizado.
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los acadêmicos. São célebres alguns estudos, co- droeiro dos motoristas e muito simpático aos
mo os de Adolfo Colombres (1984), Félix Co- delinquentes, bandidos e foras-da-lei.
luccio (1994), María de Hoyos e Laura Migale Supostamente morto no ano de 1878, as
(2000), Edmundo Jorge Delgado, Ramón Mer- narrativas sobre o mito do Gauchito Gil são va-
cado, Olga Rodríguez (2004), Hanna Skartveit riadas. Em comum, guardam o fato de que sua
(2009) e Gabriela Saidon (2011). No Chile, morte foi injusta, num excesso da força poli-
destacam-se os ensaios de Oreste Plath2 (2012). cial. O seu principal santuário foi erigido no lo-
cal de seu martírio, nas proximidades da cida-
de de Mercedes, província de Corrientes. Ali,
1. UM SANTORAL PROFANO
centenas de milhares de fiéis chegam em todos
os tipos de veículos e de todas as partes do país
O conjunto de cultos e canonizações po- para celebrar o senhor das estradas. Observa-se
pulares dispersos em países como a Argentina, um vasto e vistoso palco de dramas e glorifica-
o Chile, o Brasil e a Venezuela é dos mais ricos ções, narrativas expressas em placas votivas, de-
da América Latina. É vasta a galeria de tipos de- senhos e pinturas, peças de automóveis, fervo-
vocionais: sanadores, iluminados e guias espiri- rosas preces, enfim, por toda sorte de ex-votos.
tuais, menores inocentes (anjinhos), mulheres Nos últimos anos a Igreja Católica tem
heroicas, celebridades, mendicantes, gauchos3 se aproximado gradativamente do culto. No
e foras-da-lei. Em comum, vidas marcadas por ano de 2012, pela primeira vez, a diocese de
tragédias pessoais e mortes de estrondosa co- Goya deslocou ordinário religioso para cele-
moção pública, seguidas de uma peculiar re- brar missa na Iglesia Nuestra Señora de Las
denção, dentro do imaginário coletivo. Mercedes. Não se tratava exatamente de uma

Na Argentina, comemora-se todos os missa no Santuário, nem declaradamente de-
anos, em 08 de janeiro, o dia do mais popular dicada ao gaucho santo, mas confirmava a in-
dos santos populares do país: Antonio Mamer- tenção eclesiástica em participar ativamente da
to Gil Nuñez, o Gauchito Gil, também evocado organização do trabalho religioso em torno do
como Curuzú Gil, Gauchito Milagroso, El Gau- mito promissor. Contrariando suas qualidades
chito. Na nação albiceleste, as entranhas são de de fora-da-lei, o discurso eclesiástico destaca
um vigoroso vermelho. Não há estrada, de uma suas virtudes heroicas e o seu sangue, inocente,
ponta a outra do país, onde não se encontre, ao derramado. Gil sai da condição de quase bandi-
passar de poucas dezenas de quilômetros, inú- do à condição de injustiçado. Sem dúvida uma
meros santuários dedicados ao santo rutero, pa- credencial mais digna para a ressignificação da

2 Cognome de César Octavio Müller Leiva (1907-1996).


3 O gaucho é um tipo humano mestiço das matrizes indígena, ibérica e africana, em geral ligado ao trabalho na pecuária, e cuja
presença se espalha desde a região do río de la Plata (especialmente nos Pampas) até a Patagônia, cortando Argentina, Paraguai,
Uruguai e Brasil. Não encerra exatamente um arquétipo, mas um estereótipo, aos olhos dos grupos urbanos e mais lustrados, do
mestiço pouco instruído e dado às tarefas pesadas, especialmente no campo. Historicamente também é associado, de forma pejo-
rativa, a um comportamento de bravura e um senso de justiça alheio aos padrões normativos oficiais.
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sua personalidade e para o ingresso no rol dos va vivo, alimentado pelo leite que ainda jorra-
servos de Deus. ra do seu seio. Não tardaram os relatos de mi-
Além de Antônio Gil, a lista dos gau- lagres atribuídos à defunta. Hoje, na árida pai-
chos milagrosos da Argentina é grande: Juan sagem do Vallecito, o Santuário Difunta Cor-
Bautista Bairoletto (santuário em San Rafael), rea é especialmente repleto de coloridas minia-
Juan Francisco Cubillos (Mendoza), Olega- turas de casas e outras infinidades de ex-votos,
rio Alvarez/Lega (Saladas), Andrés Bazán Frías vivificando o aspecto ocre da região. Ali e por
(Tucumán), José Dolores Córdoba (San Juan), todo país, pequenos santuários de beira de es-
Curuzú Jheta e Antonio María (Concepción), trada relembram o martírio de Deolinda, com
Curuzú José (General Paz), Francisco José Ló- abundante oferta de garrafas de água para ma-
pez, Turquiña/Miguel de Galarza/Guadaña/ tar a sede da mãe heroica.
Chuña (Mburucuyá), Mariano Córdoba/Ma- No nordeste do Brasil, merecem desta-
rianito (Tucumán), Juan de los Dios Campos que ao menos cinco casos típicos de devoções
(Santiago del Esteros), Julián Baquisay, Gaucho espontâneas de caráter reparador: a Jararaca, a
Altamirano, Finado Chiliento (Monteros). A João Baracho, a Zé Leão, à Menina Sem Nome
estes, somam-se outros personagens sulameri- e à Finada Auta Rosa. Cultuados como santos,
canos de conduta social controvertida: Emilio em cemitérios ou capelas, se estão distantes da
Dubois (Valparaíso/Chile), Jararaca/José Leite possibilidade de canonização, já gozam peran-
Santana, Zé Leão e Baracho (nordeste do Bra- te a população de uma inquestionável autorida-
sil), Corte Calé ou Malandra, no culto a María de quando o assunto é o poder de intervenções
Lionza, na Venezuela4. miraculosas.
Em contraponto, uma personagem mar- Jararaca (José Leite de Santana) era can-
cante das devoções populares argentinas é Deo- gaceiro do bando de Lampião e fez parte da
linda Correa, venerada como a Difunta Correa. tentativa de invasão da cidade de Mossoró (Rio
Conta a tradição de sanjuanina que na primeira Grande do Norte), em 13 de junho de 1927. A
metade do século XIX sua vida sofrera um re- prosperidade econômica local da época atraiu
vés. Desamparada pela ausência do pai e do es- o bando, que após sequestrar o coronel Antô-
poso, assediada pela sua beleza e exposta a to- nio Gurgel, prática então comum, fez uma sé-
dos os riscos de uma mulher solitária e com um rie de pedidos para poupar a invasão da cidade.
filho menor, Deolinda decidiu atravessar a pé Contudo, o prefeito Rodolfo Fernandes de Oli-
a zona desértica do Vallecito em busca de me- veira não aceitara a imposição e contando com
lhores condições de vida. O sol inclemente, a soldados e com a parte da população que não
sede e o cansaço foram mais fortes. Seu cor- partira em retirada, resolvera enfrentar o ban-
po foi encontrado dias depois, mas o bebê esta- do. Após horas de combate, a população en-

4 A Corte Calé ou Malandra é composta por Freddi José Saavedra/El Pavo Freddi, Ismael Sánchez/Ismaelito/El Plana, Elizabeth
Castillo, Ratón Perez, La Chama Isabel, El Gran Jhonny, El Causa Antonio, El Chamon Ramon, El Loko Machera, Luis Sánchez/
El Gran Luisito, Tomasito, El Negro Miguel/Miguelito, Pedro, Manuel Sánchez, El Chamo Gabriel, Pez Gordo, María Luisa Blan-
dín, El Chamo William, el Negro Antonio, entre outros.
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trincheirada resistiu ao ataque e viu o grupo de e apropriação de terras. Bem aparentado e sem-
cangaceiros se retirar5. Dois, no entanto, foram pre montado num belo cavalo branco, tinha a
abatidos: Colchete, que quedara morto, e Jara- preferência das moças da cidade. Pelas rivali-
raca, que foi baleado com tiros nas costas e na dades conquistadas, conta-se que foi embosca-
perna. Uma das versões de sua morte conta que do nos arredores da vila por grandes proprie-
depois de cinco dias aprisionado, tendo inclusi- tários da região, no dia 20 de janeiro de 1887:
ve concedido entrevista ao jornalista Lauro da cortaram-lhe as pernas e lhe atiraram numa fo-
Escóssia, para o jornal O Mossoroense6 , Jarara- gueira, da qual pulava para fora insistentemen-
ca fora “justiçado” por um grupo de soldados – te, sendo novamente reconduzido, resistindo à
resignado, mas não rendido – pagando “com a morte até não mais poder. Um dos assassinos,
própria vida os crimes praticados na sua cami- arrependido, voltara dias depois e fincara uma
nhada sangrenta. Em seu túmulo, no cemitério cruz no local do martírio, logo atraindo a aten-
de Mossoró, ardem velas na intenção de sua al- ção da população, que começou a atribuir mi-
ma, que pela crendice popular “obra milagres” lagres ao finado Zé Leão. Tive a oportunidade
(MAIA, 2004). de visitar a cruz e a capela que se erigiu depois,
No mesmo estado do Rio Grande do hoje caminhando para se tornar um parque re-
Norte, nos idos da década de 1960, um ban- ligioso. Conversei com devotos que comprova-
dido aterrorizava as noites da cidade da capi- ram que, passados mais de cento e vinte anos
tal, Natal. Acusado de assassinar três taxistas, do martírio, a referência de José Leão segue fir-
João Rodrigues Baracho foi preso algumas ve- me no imaginário popular da cidade que ficou
zes, mas sempre conseguia fugir. Na sua úl- conhecida como “terra do mata e queima”.
tima fuga da polícia a perseguição foi árdua. Já o caso da Menina Sem Nome choca
Pediu guarida a uma mulher, que além de ne- duplamente. Uma garota, com aproximadamen-
gar esconderijo, também lhe negara um copo te oito anos de idade, foi encontrada morta por
d’água. Baracho acabou alvejado por trinta ti- um pescador na Praia do Pina, na cidade do Re-
ros e morreu sedento. No seu túmulo, no Ce- cife, estado de Pernambuco, em 22 de junho de
mitério do Bom Pastor, entre ex-votos de vá- 1970. Com marcas de estupro, o corpo a crian-
rios tipos, encontram-se garrafas de água, para ça passou dias à espera do reclame dos paren-
matar sua sede eterna. tes, já que o caso havia sido noticiado ampla-
A narrativa sobre Zé Leão, em Florâ- mente pela imprensa. Ninguém se apresentou e
nia, ainda no estado do Rio Grande do Nor- a menina foi sepultada como indigente, em co-
te, também apresenta muitas versões diferen- va comum. Como em muitos outros casos, con-
tes. Entre tantas, ouvi uma que dizia tratar-se ta-se que meses após o sepultamento o túmulo
de um forasteiro vindo da Paraíba, que acumu- foi reaberto, para a realização de outro enterro,
lou riqueza na região à custa de roubo de gado e o corpo da criança permanecia intacto. Hoje

5 Por este ato de resistência, Mossoró ostenta até hoje o título de “Cidade Invicta”, tendo muitos logradouros a relembrar o fei-
to heroico.
6 O Mossoroense, no 844, ano XXVI, edição de 19 de junho de 1927.
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a Menina Sem Nome é dona de um dos mais vi- entre 1905 e 1906. Todos prósperos empresá-
sitados túmulos do Cemitério de Santo Amaro, rios e estrangeiros. Instantes antes de ser fuzila-
na capital pernambucana, distinta por sua ação do, disse aos presentes:
milagreira perante setores da população.
Registre-se ainda o caso da Finada Au- Se necesitaba de un hombre que respondie-
se de los crímenes que se cometieron y ese
ta Rosa, cujo túmulo ainda se assenta, de for-
hombre he sido yo. Muero, pues, inocen-
ma assustadora, fora dos muros do Cemitério te por no haber cometido yo esos crímenes,
São Gonçalo, na cidade de Amarante, estado do sino porque esos crímenes se cometieron.
Piauí. Conta-se que Auta Rosa morreu em 1891, Ejecutad .8
e pela sua condição de mulher pobre e negra (era
uma ex-escrava), vítima de tuberculose, foi pre- No imaginário popular Dubois encar-
terida pela população da época e acabou tendo nou uma espécie de Robin Hood, vez que os
um sepultamento indigno. Hoje seu túmulo é lo- empresários mortos seriam agiotas, e os assas-
cal de peregrinação e há um clamor crescente sinatos representariam um ato de justiça social.
pelas obras miraculosas da “santa amarantina”. Sem o risco de cometer um exagero, po-
Além desta seleta de casos na Argenti- de-se dizer que a Venezuela é o berço de um
na e no Brasil, há espalhados pelo Chile e Ve- exuberante e complexo sistema religioso, estru-
nezuela inúmeros outros exemplos de devoções turado em torno da figura mitológica de María
que, pela espontaneidade popular, demonstram Lionza9. A partir dos arquétipos da feminilida-
o poder de assimilação e auto-ajuste das de- de e da maternalidade, formam-se cortes, refle-
mandas práticas e místicas locais. xos do hibridismo cultural e da rica fragmenta-
O túmulo de Emilio Dubois, no Cemen- ção do imaginário místico venezuelano. Den-
terio Playa Ancha (Valparaíso, Chile) foi trans- tre os tantos reinos marialionceros10 , destaca-
formado numa animita7. É repleto de placas vo- se aqui a Corte Calé ou Corte Malandra, forma-
tivas, flores e regalos. Executado em 1907, o su- da pelos espíritos de jovens cuja história de vi-
posto imigrante francês Louis Amadeo Brihier da se conduziu para a contravenção, com mor-
Lacroix, foi acusado de ter assassinado quatro tes trágicas e violentas, em especial a partir da
distintas personalidades da sociedade chilena, década de 1980: malandros, vidaloka, trafican-

7 Espécies de cenotáfios populares, obras da fé espontânea, em geral erigidas em vias públicas. São monumentos que rememoram
as almas dos que se foram de forma trágica, num convite à caridade e à compaixão. São identificados na América do Sul por di-
ferentes denominações: animas/animitas (Argentina e Chile), almas (Peru), capelinhas/cruzeiros de acontecido (Brasil). Em Portu-
gal são conhecidas como alminhas.
8 Periodico El Mercurio, 27 de marzo de 1907.
9 La Reina María Lionza (também María de la Onza, Lara, Guaichía) é uma entidade feminina mística venezuelana, de composi-
ção indígena, africana e europeia. É representada como uma mulher branca, com uma coroa dourada na cabeça e, nas mãos, uma
rosa e uma bandeira com a inscrição da sua missão: “Protectora de las aguas, Diosa de las cosechas”. Seu culto espalha-se por to-
do país, mas o santuário principal localiza-se nas Montanhas de Sorte, região de Chivacoa, estado de Yaracuy.
10 Corte Celestial (santos católicos), corte indígena venezuelana, corte negra, corte libertadora (heróis da luta contra a Coroa es-
panhola), corte dos Don Juan, corte médica, corte chamarrera, corte de las ánimas milagrosas (almas milagrosas), corte egípcia,
corte das rainhas, corte dos encantos, corte bruxa, entre outras.
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tes e justiceiros. Apesar do culto marialioncero rito piacular (DURKHEIM, 2000), e ao que tu-
ser descentralizado, o túmulo de Ismaelito (Is- do indica, expiam um pouco do sentimento de
mael Sánchez), no Cementerio General del Sur culpa da consciência coletiva, ao tempo em que
(Caracas, Venezuela), é um dos seus mais im- restitui parte da honra violada. Aparentemente
portantes marcos para o contato com as prá- esta reparação surge porque a causa das mortes
ticas religiosas, em especial fora da Montaña contrariou o ideal de coesão social. Não foram
Sorte (Chivacoa, Yaracuy), o Monumento Na- mortes punitivas, no sentido do direito repres-
tural Cerro María Lionza. Parte da população sivo, mas mortes arbitrárias, que deixam no ar
se identifica e venera os jovens mortos como se uma incômoda noção de desequilíbrio moral,
santos fossem, realizando frequentes romarias de baixa solidariedade, de anomia. Não é raro
ao local. A iconografia da Corte Calé espelha a parte destes cultos serem atribuídos aos “san-
estética das periferias latinoamericanas, e as no- tos anômicos”. Esta emergência indenizatória
vas divindades ostentam bonés, óculos escuros, é, sem dúvida, uma elaborada forma de autor-
roupas de grifes esportivas, motocicletas e pis- regulação social, um tipo de oferta que não se
tolas na cintura, ocupando um espaço ativo no retribui (como nas práticas votivas muitas vezes
imaginário da jovem população das periferias ensejadas na devoção à nova divindade), mas se
venezuelanas, especialmente em Caracas. restitui – uma dádiva que advém de uma dívida.
Ao que tudo indica, assim como a pu-
2. A GÊNESE SOCIOANTROPOLÓGICA nição deve ser proporcionalmente exemplar
DOS SANTOS ao ato daquele que atenta contra a coesão do
grupo (isso efetivamente não aconteceu em ne-
nhum dos casos apresentados, todos impunes),
Os casos comentados são exemplos pon-
aqueles que foram ameaçados ou violentamen-
tuais de um fenômeno que, apenas limitando-
te afetados pelo corpo social devem ser recom-
se aos estudos que realizo em países da Amé-
pensados, a qualquer tempo, a fim de se prote-
rica do Sul, conta aproximadamente trezentos
ger a coesão do grupo. Esta forma espontânea
perfis cuja narrativa se assemelha na estrutura e
de reparação manifesta aparentemente um re-
guarda uma forma universal: as venerações pos-
conhecimento (coletivo, talvez até inconscien-
t-mortem são mobilizações que funcionam co-
te) da honra que brota do sentimento natural e
mo uma espécie de esforço póstumo e coletivo
de um senso gregário mais profundo e não ne-
– conscientemente ou não – pela valorização de
cessariamente de uma ordem jurídico-institu-
virtudes ou ressarcimento da honra perdida por
cional estabelecida.
alguém no grupo, na reparação social de uma
circunstância trágica ensejada socialmente ou Dessa forma, ao se tornar uma prática
de um ato de violência simbólica, se não execu- restitutiva, a veneração ao ente comum torna-
tado, ao menos permitido pelo próprio grupo se outra matriz de coesão social, fazendo cres-
(especialmente na morte de inocentes, como é cer novas formas de solidariedade, em escalas
o caso do Gauchito Gil ou da Menina Sem No- diferenciadas: ao mesmo tempo em que é uma
me). Funcionam como o desdobramento de um aderência, é uma forma de penitência, de ex-
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purgação de culpa. Aquele que deixara de ser to (a Finada Auta Rosa e a Menina Sem Nome,
pessoa comum, tornara-se pessoa sagrada, ao no Brasil). Por fim, o apelo que parece pecado
ser alçado ao lugar de alma protetora, inter- no mundo dos homens, justifica-se pela empá-
ventor miraculoso, funcionando como um ti- tica conduta do interventor divino (os santos
po de pessoa moral, investido socialmente de delinquentes da Corte Calé). Compreende-se,
uma autoridade normativa, mesmo que porta- dessa forma, como se erguem cultos aparente-
dor de uma missão que lhe foi dada à sua reve- mente paradoxais.
lia. Uma moderna e licenciosa variação do que Com tanto em comum, o santoral apó-
Émile Durkheim denominou “totemismo indi- crifo sulamericano aponta para direções mui-
vidual”: to próximas. Independente de funcionarem co-
mo venerações isoladas ou num sistema religioso
Há assim, toda uma parte de nós mesmos mais complexo (Corte Calé/Malandra ou a Corte
que tendemos a projetar para fora de nós. de Ánimas, no culto marialioncero da Venezue-
Essa maneira de nos concebermos acha-se
la), evoca-se ao semelhante, ao de dores solidá-
tão bem fundada em nossa natureza que
não podemos escapar a ela, ainda que ten- rias. Justiceiros, espécies de Robin Hood moder-
temos nos pensar sem recorrer a nenhum nos, tais entidades simbolizam a reorganização
símbolo religioso. Nossa consciência moral dos quadros de injustiça social e abuso de poder,
é como um núcleo em torno do qual se for- em muitos casos calcados no ideal de redistri-
mou a noção de alma; no entanto, quando buição social, como nos demonstra Eric Hobs-
ela nos fala, dá-nos a impressão de uma for- bawm, ao afirmar que “como fenômeno especí-
ça exterior e superior a nós, que nos dita a
lei e nos julga, mas que também nos ajuda e
fico, o banditismo não pode existir fora de or-
nos sustenta (Durkheim, 2000, p. 298-99). dens socioeconômicas e políticas que possam ser
assim desafiadas” (HOBSBAUM, 2010, p. 22).
E os nossos mártires são símbolos, com Claramente este grupo de santidades é
a mesma função moralizante dos santos regu- cultuado, principalmente, por aqueles que se
lares. Naturalmente, o que era conduta social- identificam com as causas de seus descaminhos,
mente repreensível torna-se diminuto junto a ou pelos que querem delas fugir. Em alguns ca-
virtudes reveladas na tragédia que pôs fim à vi- sos as pinturas do Gauchito Gil nas paredes de
da do novo santo (a humilhação pública ou a casas humildes na Argentina é um apelo pro-
execução sumária de Gil, Dubois, Baracho, Ja- tetivo contra assaltantes. Por outro lado, de-
raraca e Zé Leão). O que era sofrimento torna- linquentes têm um apreço especial pelo santo,
se um sacrifício glorificado e, do mesmo modo em cujo mito se apoiam e vingam. Os jovens
que em Jesus Cristo, liberta e reaviva o próxi- da Corte Calé podem até conceder proteção às
mo (resistir à doença, à fome e à sede, à mor- ações delituosas de seus devotos, algo que, cer-
te inesperada: Difunta Correa, la cantante Gil- tamente, não caberia favor dos santos tradicio-
da, Carlos Gardel, Rodrigo Bueno/El Potro, na nais, regulares.
Argentina). O que era rejeição e um ato de de- O que temos, enfim, é conformação
liberado de discriminação, torna-se acolhimen- quase que espontânea de um instituto moral
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que se torna um fato social total ao ser assimi- CONCLUSÃO
lado institucionalmente. Talvez este modelo cí-
clico calcado na personalização fosse imprová-
Principalmente no século XX, foi abun-
vel algumas décadas atrás: o ordinário religioso
dante a veneração dos ditos “santos popula-
católico historicamente pensou o sagrado como
res”, por todo o continente sulamericano. Per-
uma categoria vertical, de movimento ortodo-
cebidos em vários países, os sinônimos são va-
xo e descendente, o que do ponto de vista ins-
riados: “santos não-canônicos”, “santos irre-
titucional, sempre manteve o locus sacrum ne-
gulares”, “santos profanos”, “personalidades
cessariamente dentro de limites muito bem de-
mana”, “carismáticos”, “santidades”. Com ba-
finidos. Só que a categoria empírica do sagrado
se na percepção e validação fenomênica des-
também se manifesta em espaços ditos profa-
tas entidades, apresentei, em um estudo ante-
nos, sacralizados conforme a funcionalidade do
rior (BONFIM, 2007), uma possibilidade me-
crente. Cada santuário espontaneamente erigi-
todológica para a definição de tipologias devo-
do é a prova viva desta autonomia. Verifica-se,
cionais, dentro da escala de um índice canôni-
assim, a produção de um instituto moral que
co de referência católica. Este índice conside-
reorganiza e equilibra o poder físico e simbóli-
rou a efetividade de quatro grandes tipos ideais
co do grupo.
do outro votivo, segundo seu posicionamento
Esta interpretação popular do catolicis- devocional: 1) o tipo canônico (constituído por
mo constrói novas formas de culto. Um cul- figuras dogmaticamente reconhecidas pela San-
to que é obra do agir individual, impulsiona- ta Sé – os “santos regulares”); 2) o tipo trans-
do por pessoas ordinárias, com efeito de pes- canônico (constituído por devoções que esta-
soas morais, é algo que subverte a própria orto- belecem uma correspondência direta entre dois
doxia, sem necessariamente negá-la. É obra do cânones religiosos, a exemplo da relação sinc-
anônimo, deste crente que construiu sua cren- rética entre o Catolicismo e os cultos de ma-
ça quase sozinho, é fruto não só dos laços de fa- triz africana ou ameríndia); 3) o tipo protoca-
mília e da tradição, mas do próprio caráter, em nônico (que situa as venerações com canoniza-
certa medida instintivo, de preservação da coe- ção já reivindicada ou em vias de reivindica-
são social. E isso não implica necessariamen- ção na Santa Sé); e 4) o tipo não-canônico pro-
te num afastamento irreversível da ortodoxia priamente dito (que define as venerações a en-
– nem tanto por conta do crente, mas da pró- tes instados como extraordinários estritamente
pria ortodoxia. pela admiração popular, cuja trajetória de vida
Especialmente quando alguém tem um não é necessariamente vinculada ao campo reli-
pecado e o poder coletivo (institucionalizado gioso, mas pode vir a ser).
ou não) o julga e, principalmente, o condena A partir da projeção arquetípica e de
arbitrariamente, este coletivo passa a ter o mes- uma eficácia simbólica em torno das práticas
mo pecado, e é através da redenção no coleti- votivas deste último tipo, histórias de vida tor-
vo que se expia, que o sistema de forças pode se tuosas ou virtuosas tornam-se uma importante
reequilibrar. matriz de regulação social. Talvez seja este vi-
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goroso apelo popular – antes social do que es- __________. Superstição no Brasil. São Paulo:
tritamente religioso – que pode garantir a reno- Global, 2001. 496p.
vação das práticas e, consequentemente, das re-
lações religiosas em torno do Catolicismo que, COLUCCIO, Félix. Cultos y canonizaciones
especialmente nos últimos anos, incorpora de populares de Argentina. Buenos Aires: Edicio-
forma gradativa elementos da devoção popu- nes del Sol, 1994. 206p.
lar, garantindo, ao menos neste setor específi-
COLOMBRES, Adolfo. Seres sobrenaturales de
co, sua conservação institucional. Dentro da-
la cultura popular argentina. Buenos Aires: Edi-
quilo que Mircea Eliade (2001, p. 85) titulou
ciones del Sol, 1984.
como “realidades sagradas”, a construção do
extraordinário se dá plenamente a partir da ex- DELGADO, Edmundo Jorge; MERCADO,
periência hodierna, ordinária, que pela sua re- Ramón; RODRÍGUEZ, Olga. Devociones, ‘san-
levante função reguladora, se projeta assim pa- tos’ y creencias: cultos populares en la Argenti-
ra a eternidade. na, in Todo es Historia. N. 440, marzo 2004.
Buenos Aires, 2004.
Trabalho recebido em 15/04/2014
Aprovado para publicação em 20/06/2014
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