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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO
BACHARELADO EM DIREITO

ANA CAROLINA EID SOARES DA SILVA

ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO: UMA PERSPECTIVA ÉTICO-LEGAL

Niterói
2016
ANA CAROLINA EID SOARES DA SILVA

ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO: UMA PERSPECTIVA ÉTICO-LEGAL

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de


Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do diploma de bacharelado em Direito.

Orientador:
Prof. Dr. Nilton Cesar Flores

Niterói
2016
Universidade Federal Fluminense
Superintendência de Documentação
Biblioteca da Faculdade de Direto

S586 Silva, Ana Carolina Eid Soares da.


Animais como sujeitos de direito no ordenamento jurídico brasileiro:
uma perspectiva ético-legal / Ana Carolina Eid Soares da Silva. –
Niterói, 2016.
101 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) –


Universidade Federal Fluminense, 2016.

1. Animal. 2. Direito ambiental. 3. Proteção ambiental. 4.


Comportamento animal. 5. Meio ambiente. I. Universidade Federal
Fluminense. Faculdade de Direito, Instituição responsável. II. Título.

CDD 341.347
ANA CAROLINA EID SOARES DA SILVA

ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO: UMA PERSPECTIVA ÉTICO-LEGAL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de


Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção do diploma
de bacharelado em Direito.

Aprovada em de de 2016.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Nilton Cesar Flores – UFF

BANCA

BANCA

Niterói
2016.
RESUMO

O objetivo do presente trabalho é mostrar que o pensamento antropocêntrico enraizado na


cultura da humanidade conduz à perpetuação de práticas e condutas que não podem mais se
manter diante do ordenamento jurídico-constitucional. Para defender esse ponto, opta-se por
trabalhar com duas abordagens que dialogam entre si: sob a perspectiva da ética prática
contemporânea, busca analisar o estatuto moral dos animais não humanos; e sob a perspectiva
estritamente legal, pretende examinar o status destes animais no ordenamento jurídico
brasileiro, bem como a possibilidade de serem elevados à categoria de sujeitos de direito.
Busca reunir conhecimentos jurídicos normativos, jurisprudenciais e doutrinários capazes de
fundamentar a tese de que animais podem ser concebidos como legítimos sujeitos de direito
por meio das leis que os protegem, embora tais direitos tenham que ser pleiteados por
representatividade.

Palavras-Chave: direito dos animais; comunidade moral; ética antropocêntrica; ética


senciocêntrica; ética biocêntrica; direito constitucional; sujeitos de direito; teoria dos entes
despersonalizados.
ABSTRACT

The objective of the present paper is to show that anthropocentric thinking rooted in the
culture of humanity leads to the perpetuation of practices and behaviors that can no longer be
maintained against the juridical-constitutional order. To defend this point, we opt to work
with two approaches that dialogue with each other: from the perspective of contemporary
practical ethics, it seeks to analyze the moral status of non-human animals; and from the
strictly legal perspective, intends to examine the status of these animals in the Brazilian legal
system, as well as the possibility of being elevated to the category of subjects of right. It seeks
to gather legal, normative, jurisprudential and doctrinal knowledge capable of substantiating
the thesis that animals can be conceived as legitimate subjects of law by means of the laws
that protect them, although these rights have to be defended by representativeness.

Keywords: animal rights; moral community; anthropocentric ethics; sympatric ethics;


biocentric ethics; constitutional right; subjects of law; theory of depersonalized entities.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1 BREVE HISTÓRICO DO DOMÍNIO DO HOMEM SOBRE OUTROS ANIMAIS... 15


1.1 NOÇÕES GERAIS SOBRE O ANTROPOCENTRISMO ................................................ 15
1.2 O DOMÍNIO DO HOMEM OCIDENTAL SOBRE OUTROS ANIMAIS ....................... 17
1.2.1 O pensamento pré-cristão ............................................................................................... 17
1.2.2 O pensamento Cristão ..................................................................................................... 22
1.2.3 Iluminismo e o período posterior .................................................................................... 29

2 REFLEXÕES SOBRE O ESTATUTO MORAL DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS . 37


2.1 DA RELEVÂNCIA DA ABORDAGEM ÉTICA PARA O DIREITO DOS ANIMAIS.. 37
2.2 DA CONSTITUIÇÃO DA COMUNIDADE MORAL NA ÉTICA
ANTROPOCÊNTRICA ........................................................................................................... 39
2.3 DA TEORIA DOS DEVERES DIRETOS ......................................................................... 44
2.3.1 Ética Senciocêntrica ........................................................................................................ 45
2.3.2 Ética Biocêntrica ............................................................................................................. 51
2.3.3 Notas sobre o Ecocentrismo ............................................................................................ 57

3 OS ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO ......................................................................................................................... 60
3.1 DIREITOS DO HOMEM E DIREITOS DOS ANIMAIS ................................................. 60
3.2 A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO........................................................................................................................... 65
3.3 OS ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO .............................................................. 72

4 O GRANDE DESAFIO ....................................................................................................... 82


4.1 A JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES .............................................. 88

CONCLUSÃO......................................................................................................................... 98

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 100


11

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como escopo propiciar uma breve análise acerca do estatuto
moral dos animais não humanos, relacionando-o com o tratamento legal conferido aos
mesmos no ordenamento jurídico pátrio. É bem verdade que nossas intuições mais
espontâneas nos sugerem que é moralmente condenável submetê-los a um tratamento cruel e
degradante, de modo que tal preocupação, traduzida sob a forma de exigências humanitárias,
encontra-se em constante processo de positivação desde o século XIX, podendo ser vista, no
direito brasileiro, alcançar seu ápice no artigo 225, §1°, VII, da Constituição Federal.
Entretanto, como se justifica a manifesta vontade do legislador em vedar práticas que
submetam o animal à crueldade? Há limites para o modo como os seres humanos podem tratar
legitimamente os animais não humanos? Podemos tratá-los de qualquer maneira que nos
agrade? Se há limites, quais são eles? São suficientemente fortes para ensejarem implicações
em seu status jurídico, a ponto de serem elevados à categoria de sujeitos de direito?
Como se verá adiante, durante milênios o homem mantém uma posição de domínio
sobre os outros animais, destacando-se da natureza de tal maneira que a própria noção
tradicional da dignidade humana foi construída a partir da suposição de uma irredutibilidade
deste ao mundo natural. Não se olvida que a formação moral do indivíduo seja
antropocêntrica, vendo-o se afirmar incansavelmente na exploração e subjugação dos animais.
Todavia, os tempos são chegados. Já não é possível ignorar a pedagogia da crueldade inserida
na cartilha social dos povos. Sob a pressão de interesses econômicos diversos e diante de
tantas vidas vividas no “piloto automático” ao reproduzirem mecanicamente hábitos
transgeracionais, os seres humanos certamente infligem a um imenso número de animais
tratamentos mortíferos ou que vão em sentido contrários ao seu bem-estar.
Foi diante desse panorama assustador de violência institucionalizada que surgiu o
interesse em inaugurar tal estudo. É fato notório que o desenvolvimento das sociedades
industriais agravou deveras o problema do tratamento dos animais não humanos, deixando
para trás a visão utópica dos animais vivendo em seus ambientes naturais e trazendo, em seu
lugar, a realidade de grandes corporações auferindo lucros milionários por meio da “produção
industrial de carne”. Já não é possível ignorar que a vida lhes é negada e o ar que respiram é
viciado e irritante; que são mantidos em jaulas pequenas e áridas, onde são concebidos
artificialmente, onde crescem e são desdentados, engordados e enviados ao seu único destino:
o matadouro.
12

No primeiro capítulo, será abordada a história da relação entre homens e animais no


Ocidente, inegavelmente marcada pela dominação, controle e exploração. Por muito tempo,
permaneceu quase inquestionada – com raríssimas vozes destoantes – a visão tradicional
antropocêntrica de que todas as criaturas foram criadas para o bem do homem, sujeitas a seu
domínio e destinadas a seu uso e necessidades. Propõe-se, portanto, uma reflexão sobre o
sistema antropocêntrico, partindo-se dos dogmas da religião judaico-cristã, caminhando pela
história da filosofia ocidental grega, até chegar ao período Iluminista e o que se segue a ele,
momento caracterizado pelo racionalismo, cientificismo e capitalismo. Afinal, relatar as raízes
do especismo implica, indissociavelmente, acompanhar o pensamento antropocêntrico da
humanidade, ora protagonista atemporal da trama.
No segundo capítulo, procurou-se demonstrar a relevância da abordagem ética para o
Direito dos Animais, pois, como a ética não se identifica, a priori, com nenhum código moral
determinado, mas se ocupa de avaliar condutas e valores em um processo voltado à
normatividade (moral e direito), prescrevendo um dever ser, dessa avaliação abre-se a
possibilidade de denunciar códigos morais inadequados e, em última análise, proceder à
alteração normativa. Buscou-se investigar a existência de limites para o modo como os seres
humanos podem tratar os animais não humanos a partir do estudo da constituição da
comunidade moral nas três vertentes da ética prática contemporânea: antropocêntrico-
hierárquica, senciocêntrica e biocêntrica.
Com o estudo das teorias dos deveres indiretos e teorias dos deveres diretos,
constatou-se que as primeiras adotam como critério de pertencimento à comunidade moral a
posse da razão (atributo físico e não moral), o que excluiria boa parte dos próprios seres
humanos do âmbito da moralidade, além de não serem capazes de responder de forma
satisfatória ao questionamento sobre o tratamento dos animais, já que todos pensam que é, no
mínimo, moralmente condenável causar danos injustificados à estes. Todavia, também as
últimas enfrentam percalços em algumas de suas formas, mas alcançam, indubitavelmente,
maior êxito ao reconhecerem os animais não humanos, ao menos aqueles sencientes, como
portadores de um valor intrínseco. A consequência disso é que as restrições morais às
condutas humanas para com os animais têm por fundamento não mais o próprio interesse
humano, mas a proteção da integridade física, psíquica e moral dos próprios animais. Na ética
senciocêntrica, isto ocorre porque a capacidade de sofrer é eleita como o parâmetro para a
atribuição de consideração moral. De todo o modo, vislumbra-se a defesa de deveres diretos
de agentes morais para com os animais não humanos (pacientes morais), incluindo-se deveres
positivos (de beneficiência) e os negativos (de não-maleficiência). Faz-se importante ressaltar,
13

ainda, que ao se refletir sobre o estatuto ético dos animais, não se está negando o estatuto
ético dos homens; ao contrário, é aquele uma pedra de toque deste.
No terceiro capítulo, após repensar as bases tradicionais da ética, ingressa-se na esfera
jurídica, relacionando a inclusão dos animais no âmbito da moralidade humana com a própria
fundamentação dos direitos humanos. Em última instância, a análise da titularidade de direitos
morais conduz ao reconhecimento da própria condição de sujeito de direito. Afinal, os direitos
humanos, mais do que direitos legais – isto é, consagrados por uma ordem jurídica nacional
ou internacional, de modo a corresponderem a determinadas previsões legais -, são também
direitos morais e direitos naturais em sua essência. Propõe-se, em verdade, a expansão desses
direitos aos animais, tendo em vista que os direitos humanos fundamentais independem de
quaisquer performances ou desempenhos individuais, protegendo sob seu manto os chamados
“casos marginais” ou “não paradigmáticos”. Buscou-se afirmar que o denominador comum é
a capacidade de sentir dor e, se um indivíduo possui determinada característica, então deve ser
tratado de certa forma, mesmo que esse indivíduo não possua outras características.
Ademais, realizou-se um estudo acerca da tutela jurídica dos animais no ordenamento
jurídico brasileiro, questionando-se diretamente o status de propriedade dos animais não
humanos, na medida em que se explicita a importância de sua alteração, posto que a
categorização dos animais como coisas preclui a discussão acerca do reconhecimento dos
interesses destes. Nesse exato ponto, reuniram-se conhecimentos jurídicos normativos e
doutrinários capazes de fundamentar a tese de que animais podem ser concebidos como
legítimos sujeitos de direitos subjetivos por força das leis que os protegem, embora tais
direitos tenham que ser pleiteados por representatividade – da mesma forma como ocorre com
os seres incapazes.
Por fim, o quarto capítulo destaca os principais obstáculos que se impõem à alteração
do status jurídico dos animais, fazendo-se presentes uma gama de fatores relacionados às
estruturas ideológicas, culturais, sociais e econômicas que tendem a privilegiar os interesses
humanos mais banais em detrimento de interesses mais fundamentais titularizados pelos
animais não humanos. Sem dúvida, a barreira final que o movimento de libertação animal
enfrenta é o habito. Propõe-se uma reflexão acerca das demais formas de exploração animal
comumente presentes em nossa sociedade, dedicando especial atenção aos “animais de
laboratório”, utilizados em experimentos científicos e àqueles animais explorados e dizimados
pela atividade da pecuária, que aos moldes industriais, especializa-se na criação intensiva de
animais para o consumo humano.
14

Outrossim, procedeu-se à análise jurisprudencial de casos que assumiram grande


relevância nacional, em que a colisão entre o dever fundamental de não submeter animais a
crueldade e a proteção de manifestações culturais constantemente gera a necessidade de
ponderar os interesses envolvidos. Conforme se verá adiante, os Tribunais Superiores
manifestam acertada tendência em pautar suas decisões no mandamento constitucional do art.
225, §1°, VII, interpretando-o como norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê
unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, mas, pelo contrário, se
apercebendo que o sofrimento animal importa por si só ao captar o valor moral consagrado
pela referida norma.
A metodologia utilizada na presente monografia foi baseada em extensa pesquisa
bibliográfica de doutrina alienígena e nacional sobre o tema, bem como em estudos acerca dos
julgados mais emblemáticos que chegaram ao Judiciário brasileiro desde a década de 90.
15

1 BREVE HISTÓRICO DO DOMÍNIO DO HOMEM SOBRE OUTROS ANIMAIS

Coloque uma criança pequena num cercadinho com uma maçã e um coelho de
verdade. Se ela comer a maçã e brincar com o coelho, ela é normal; mas se ela
comer o coelho e brincar com a maçã, eu lhe compro um carro novo. Em algum
momento ao longo de nosso trajeto, fomos ensinados a fazer a coisa errada
(MAYNARD apud LOURENÇO, 2008, p. 354).

1.1 NOÇÕES GERAIS SOBRE O ANTROPOCENTRISMO

Conforme será demonstrado, o domínio dos animais humanos sobre outros animais
provém de uma lenta construção histórica e social pautada na concepção antropocêntrica do
mundo. Portanto, relatar as raízes históricas do especismo1 implica, indissociavelmente,
acompanhar o pensamento antropocêntrico da humanidade, ora protagonista atemporal da
trama.
O antropocentrismo2, que faz do homem centro incontestável de tudo que se
desenvolve na terra, tem raízes no pensamento judaico-cristão que há séculos vem moldando
a civilização ocidental. O homem ocidental desenvolvido sucumbiu à tentação de fazer-se, ele
próprio, o centro do mundo, proclamando que a glória dos demais seres estaria em servi-lo
(MILARÉ apud CARNEIRO, 2013, p. 14).
Sob essa concepção genérica, o homem toma para si o centro do Universo, tornando-
se

1
O termo especismo foi criado por Richard D. Ryder em 1970, sendo utilizado “para descrever a discriminação
habitual que é praticada pelo homem contra outras espécies” (MANSUR, 2013).
Nesse sentido, o especismo é uma forma de discriminação social análoga ao racismo e ao sexismo, cujas
justificativas são baseadas nas diferenças e atributos peculiares de cada ser. Tecendo um paralelo com tais
formas de preconceito, Peter Singer afirma que “deveria ser óbvio que as objeções fundamentais ao racismo a ao
sexismo levantadas por Thomas Jefferson e Sojourner Truth [refutando a noção de que negros e mulheres
possuíam capacidades intelectuais limitadas] aplicam-se igualmente ao especismo. Se o fato de possuir um
elevado grau de inteligência não autoriza um ser humano a utilizar outro para os próprios fins, como seria
possível autorizar seres humanos a explorar não humanos com os mesmos propósitos?” (SINGER, 2013, p. 11).
“Os especistas, nas palavras de Singer, ‘atribuem maior peso aos interesses de membros de sua própria espécie
quando há um choque entre os seus interesses e os interesses dos que pertencem a outras espécies. Os especistas
humanos não admitem que a dor é tão má quando sentida por porcos ou ratos como quando são os seres
humanos que a sentem” (SINGER apud LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 183).
2
Antropocentrismo “é a crença na existência de uma linha divisória, clara e moralmente relevante, entre a
humanidade e o resto da natureza; que o ser humano é a principal ou única fonte de valor e significado no mundo
e que a natureza não humana aí está com único propósito de servir aos homens” (ECKERSLEY, 1992, p. 51,
adaptado).
16

[...] a referência máxima e absoluta de valores (verdade, bem, destino último, norma
última e definitiva etc.), de modo que ao redor desse “centro” gravitem os demais
seres por força de um determinismo fatal.
[...]
Em última análise, mesmo considerando-se “centro”, o Homem distancia-se dos
demais seres e, de certa maneira, posta-se diante deles em atitude de superioridade
absoluta, abertamente antagônica. Surgem assim as relações equivocadas (para não
chamá-las às vezes perversas) de dominador x dominado, de razão x matéria, de
absoluto x relativo, de finalidade última x instrumentalidade banal destituída de
valor próprio (MILARÉ apud KURATOMI, 2011, p. 27).

Interessante destacar o paradoxo evidente na compreensão do que se entende constituir


humanidade. Para Daniel Braga Lourenço, antes mesmo que a ideia de “humano” coincidisse
com a noção de “direito”, o “apelo à noção de humanidade do homem serviu para estabelecer
critérios de inclusão e, portanto, também de exclusão social” (NEUNSCHWANDER apud
LOURENÇO, 2008, p. 39 e 40). Em outras palavras, o homem foi afirmando sua identidade
em relação ao ambiente, diferenciando-se e colocando-se como entidade autônoma e superior
em relação a ele, na medida em que construiu um muro aparentemente intransponível entre o
mundo dos homens e o mundo das coisas, pertencentes a realidades ontologicamente distintas.
Sob esse prisma, no presente capítulo se fará facilmente perceptível que “na história europeia,
a ideia de homem se exprime na maneira como este se distingue do animal. A falta de razão
do animal serve para demonstrar a dignidade do homem” (RABENHORST, 2007, p. 212). A
aludida frase, extraída da Dialética da Razão, de Adorno e Horkheimer (1983), sintetiza com
perfeição o pensamento majoritário não apenas na Europa, mas no Ocidente. De fato, a noção
tradicional da dignidade humana não teria sido construída a partir da suposição
de uma irredutibilidade do homem ao mundo natural? (RABENHORST, 2007).
O antropocentrismo reuniu grande força no mundo ocidental em virtude das posições
racionalistas, partindo-se do pressuposto de ser a razão (ratio) um atributo exclusivo do ser
humano, o que culminou, em segunda instância, na exclusão dos animais da comunidade
moral como sujeitos de direitos morais. Assim, concentrando a presente análise no Ocidente,
essa corrente foi reforçada pelas tradições do judaísmo e da antiguidade grega3, confluindo no
cristianismo e tornando-se prevalecente na Europa antes de influenciar a maioria das
sociedades humanas de hoje. Ressalta-se, ainda, que o desenvolvimento intelectual, científico
e tecnológico impulsionado pelo Iluminismo também contribuiu para a “coisificação” da
natureza.

3
Peter Singer acrescenta que “ao contrário de outras tradições da Antiguidade, como, por exemplo, a da Índia, as
tradições hebraicas e gregas fizeram do homem o centro do universo moral; na verdade, não apenas o centro,
mas, quase sempre, a totalidade das características moralmente significativas deste mundo” (SINGER, 1999, p.
282).
17

Portanto, com o intuito de realizar uma análise histórica esclarecedora para o tema ora
sob enfoque, procurou-se dividir a iminente discussão em ordem cronológica e em três partes,
acompanhando a metodologia utilizada por Peter Singer (2013) em sua obra Libertação
Animal: pré-cristã, cristã, e Iluminismo e o período que se segue a ele.

1.2 O DOMÍNIO DO HOMEM OCIDENTAL SOBRE OUTROS ANIMAIS

“A verdade é que exploramos outros animais e lhes causamos sofrimento


simplesmente porque somos mais poderosos que eles” (RYDER apud LOURENÇO, 2008, p.
452).

1.2.1 O pensamento pré-cristão

O Livro de Gênesis, relato bíblico da criação escrito por volta de 1.450 a 1.400 a.C.,
expõe claramente a concepção do povo hebreu acerca da relação entre homens e animais:

E disse Deus: produza a terra seres viventes segundo as suas espécies: animais
domésticos, répteis, e animais selvagens segundo as suas espécies. E assim foi.
Deus, pois, fez os animais selvagens segundo as suas espécies, e os animais
domésticos segundo as suas espécies, e todos os répteis da terra segundo as suas
espécies. E viu Deus que isso era bom.
E disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança;
que tenha domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra.
Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e
mulher Ele os criou. (SINGER, 2013, p. 271).

Em Gênesis 1, 24-7, trecho ora transcrito, o homem é tido como o único ser que
poderia dominar os peixes, as aves, os répteis e os animais domésticos, ou seja, dominar o
mar, o céu e a terra. A dúvida surge com relação à palavra “domínio” que, para os
ambientalistas, possui a conotação de “orientação” ou “guarda”, devendo tudo ser cuidado em
nome de Deus. Todavia, lamentavelmente, prevaleceu o entendimento de “domínio” no
sentido de “poderio”, aproximando-se de “opressão”, desencadeando atitudes arbitrárias para
fazer aquilo que bem entendesse sobre todas as coisas viventes (SINGER, 2002).
18

Observa Peter Singer que há referências bíblicas indicando que no estado original de
inocência, isto é, no Jardim do Éden, “éramos vegetarianos e alimentávamo-nos somente de
‘ervas verdes’; mas, depois da queda, da maldade que a seguiu e do dilúvio, tivemos
permissão para adicionar animais à nossa alimentação” (SINGER, 2013, p. 273). Nesse
sentido, após o dilúvio, “quando as águas baixaram, Noé agradeceu a Deus com oferendas
assadas ‘de todo animal limpo e de toda ave limpa’. Como retribuição, Deus abençoou Noé,
conferindo-lhe o selo final do domínio do homem” (SINGER, 2013, p. 273):

Abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e disse-lhes: frutificai e multiplicai-vos, e


enchei a terra.
Terão medo e pavor de vós todo animal da terra, toda ave do céu, tudo o que se
move sobre a terra e todos os peixes do mar; em vossas mãos são entregues.
Tudo quanto se move e vive vos servirá de mantimento, bem como a erva verde;
tudo vos tenha dado (SINGER, 2013, p. 273).

A tradição grega, também grande contribuinte para o pensamento ocidental, é palco de


tendências conflitantes, uma vez que o pensamento grego não é uniforme, mas divide-se em
escolas de pensamentos diversas, cada qual difundindo as doutrinas básicas de algum grande
fundador.
Antes de discorrer sobre os célebres filósofos naturalistas da Grécia Antiga, faz-se
importante tecer breves considerações sobre Hesíodo (séc. VIII a.C.), poeta grego do período
arcaico e contemporâneo à Homero (séc. X a.C.), conhecido por adotar a alimentação
vegetariana. O poeta oral grego, ao discorrer sobre o tema, afirmava que os animais
devoravam-se a si próprios porque a eles não fora dado o senso do que fosse certo ou errado.
O senso de justiça teria sido atribuído por Zeus somente aos homens, sendo esse o eixo do
mundo moral que distinguiria os homens dos animais. Desse modo, sustentava que entre os
seres racionais há um senso de justiça e entre os irracionais prevalece a necessidade
(CARNEIRO, 2013, p. 21).
Ainda no período Arcaico da história da Grécia Antiga (800 - 500 a. C), vislumbram-
se os filósofos pré-socráticos, também chamados naturalistas ou filósofos da natureza. Tais
pensadores tinham como escopo especulativo o problema cosmológico e buscavam o
princípio fundamental – o arché – de todas as coisas. Ademais, acreditavam na dinâmica das
coisas, na evolução das espécies e na origem animal do homem (LEVAI, 1998, p. 18).
Destaca-se, pela relevância para o tema ora sob análise, o filósofo e matemático Pitágoras de
Samos (570 - 490 a.C.), fundador da Escola Pitagórica ou Itálica.
19

Pitágoras4 é, com frequência, considerado o precursor do vegetarianismo no Ocidente.


Na sociedade fundada pelo filósofo, as mulheres eram admitidas em pé de igualdade com os
homens, e não se consumia carne com base na teoria da transmigração das almas, segundo a
qual a alma passava sucessivamente de um corpo para outro, inclusive para o corpo de outros
animais, de modo que o consumo da carne destes fosse comparável ao canibalismo (BERRY,
2003, p. 3-9, adaptado). O vegetarianismo, portanto, era imposto aos membros de sua
comunidade. Jâmblico e Diógenes Laércio, seus biógrafos, escreveram sobre o seu regime
vegetariano.
De acordo com Flávio Filóstrato, biógrafo do filósofo e taumaturgo neopitagórico
Apolônio de Tiana (15-100 d.C.), este teria proferido as seguintes palavras sobre Pitágoras:

Por mim, discerni uma certa sublimidade na disciplina de Pitágoras e como uma
certa sabedoria secreta capacitou-o a saber não apenas quem ele era a si mesmo, mas
também o que ele tinha sido; e eu vi que ele se aproximou dos altares em estado de
pureza, e não permitia que a sua barriga fosse profanada pelo partilhar da carne de
animais; e que ele manteve o seu corpo puro de todas as peças de roupa tecidas de
refugo de animais mortos; e que ele foi o primeiro da humanidade a conter a sua
própria língua, inventando uma disciplina de silêncio descrito na frase proverbial,
'Um boi senta-se sobre ela.' Eu também vi que o seu sistema filosófico era em outros
aspectos oracular e verdadeiro. Então corri a abraçar os seus sábios ensinamentos...
(FILÓSTRATO in WIKIPEDIA, 2016a).

Passando-se à análise do período Clássico da Grécia Antiga (500 - 338 a.C.), ainda na
filosofia pré-socrática, assevera Laerte Levai que, a partir dos sofistas, os gregos aderiram ao
antropocentrismo, considerando o homem o centro do universo. Protágoras de Abdera (481 -
420 a.C.), como um dos primeiros sofistas, define a base de sua filosofia na máxima “o
homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não
são por aquilo que não são” (PROTÁGORAS apud SÓ FILOSOFIA, 20[-]).
O individualismo, subjetivismo e ceticismo (niilismo) constituíam a base do
pensamento sofista, de modo que o logos deixa de ser divino para ser atribuído à razão
humana. O niilismo dos sofistas os fazia crer que não poderia haver uma ciência universal ou
verdade absoluta, apenas sendo correta a verdade de cada um. Em outras palavras, “todo o
conhecimento era relativo, os valores seriam subjetivos, o que impedia uma lei geral e
uniforme a ser aplicado a todos indistintamente” (COELHO apud NOGUEIRA, 2012, p. 11).
Dessa forma, o preceito revelado por Protágoras deve ser interpretado de forma restritiva, uma

4
Como era crédulo da metempsicose, colocava animais e homem em igualdade no plano espiritual, acreditando
que havia uma relação de parentesco entre esses seres (LOURENÇO, 2008. p. 51-52, 54).
20

vez que tudo é como parece ao homem, não aos homens em geral, mas a cada indivíduo em
particular.
Sócrates (469/470 - 399 a.C.), filósofo ateniense do período Clássico da Grécia
Antiga, provocou uma ruptura sem precedentes na história da filosofia grega, cuja
nomenclatura histórica passou a enquadrar os filósofos entre pré-socráticos e pós-socráticos.
Nesse contexto, “o aparecimento das cidades-estados, o desenvolvimento do comércio e a
utilização da razão sobre a força, fez de Atenas um berço cultural e cientifico propício para o
aparecimento da figura política do cidadão e o surgimento dos direitos subjetivos”
(NOGUEIRA, 2012, p. 11). Todavia, a concepção ontológica do direito excluía os animais
não humanos de qualquer merecimento legal (DIAS apud KURATOMI, 2011).
Assim como os sofistas, seus questionamentos filosóficos voltaram-se para a figura do
homem (antropologia) e não mais para a natureza (cosmologia). Entretanto, é certo que os
ensinamentos de ambos diferiam significativamente, tendo sido Sócrates um grande crítico da
filosofia sofista5. Assim, enquanto esta possuía uma visão relativa de tudo, aquele buscava a
verdade universal, tentando entender o universo por meio de uma lógica científica. A
reflexão exigida por Sócrates foi retratada no aforismo grego “conheça-te a ti mesmo”,
inscrição presente no tempo de Apolo em Delfos.
Dessa forma, é possível visualizar o fortalecimento da corrente antropocêntrica na
medida em que, para o filósofo, a questão fundamental da filosofia estava relacionada antes
ao estudo do homem em sociedade do que a compreensão dos fenômenos da natureza,
tendência abraçada por seus discípulos. “Segundo consta do trecho da obra Memorabilia de
Xenofonte6 (430 – 355 a.C.), aquele filósofo acreditava que o propósito dos animais era o de
servir aos homens. E tal afirmação constitui a primeira manifestação formal do
antropocentrismo teleológico” (KURATOMI, 2011, p. 23).
A despeito de a Escola Pitagórica ter deixado um legado extraordinário e pioneiro para
a matemática e a filosofia natural, a escola mais importante foi a de Platão (427 – 447 a.C.) e
de seu discípulo, Aristóteles (384 – 322 a.C.). Platão foi discípulo dos sofistas e de Sócrates,
sendo considerado o primeiro jusfilósofo do mundo ocidental. Dentre seus ensinamentos,
verifica-se a crença na reencarnação e na imortalidade da alma. Esta última teria uma origem
5
Os sofistas recebiam pelos ensinamentos que ministravam, tornando-se alvo de censura dos atenienses. Nesse
sentido, Sócrates acreditava ser “vergonhoso vender o saber, dizendo que o comércio da sabedoria não merecia
menos ser chamado prostituição que o tráfego da beleza” (BONNARD, 1980, p. 438).
Platão (apud HISTÓRIA DA FILOSOFIA, 2009) também discorre sobre o tema em sua obra O Sofista: “É
sofista aquele que, em sua disputa, se compromete ao afirmar coisas contraditórias, e com suas palavras engana
de maneira maravilhosa seus ouvintes”.
6
Xenofonte foi soldado e discípulo de Sócrates, sendo conhecido pelos seus escritos sobre a história do seu
próprio tempo e pelos seus discursos de Sócrates. (WIKIPEDIA, 2016c).
21

divina, que voltaria ao seio da divindade na ocasião de sua morte (PLATÃO, 2000, p. 44).
Entretanto, a alma racional era atribuída somente ao homem, ou melhor, alguns homens,
escravos e animais não a possuíam. Por essa razão, o jurista Herman Benjamin pondera que
“o platonismo espiritualizante ‘demonizou’ a natureza, relegando-a a uma condição menor, de
colônia a conquistar e de depósito inesgotável de bens a explorar” (BENJAMIN apud
NOGUEIRA, 2012, p. 15).
Em sua obra Fedon, Platão expõe sua posição acerca da moralidade de se matar
animais por meio do personagem Sócrates, asseverando que “ao tirar a vida de um ser
humano, causamos fúria aos deuses, enquanto que ao matar um animal somente causamos
raiva ao seu dono. Consequentemente, o dono de um animal poderá matá-lo quando quiser”
(PLATÃO apud KURATOMI, 2011, p. 23). Portanto, seria diferente tirar a vida de um
animal e de um ser humano.
Passa-se a análise de Aristóteles, discípulo de Platão e preceptor de Alexandre Magno
da Macedônia. A fim de se compreender o pensamento do filósofo a respeito do tratamento
reservado aos animais não humanos, faz-se importante tecer breves considerações sobre a
questão da escravidão. Nesse sentido, o apoio de Aristóteles à escravidão é notório, tendo
defendido a opinião de que a escravidão pertence à natureza das coisas. Nas palavras de Peter
Singer, o filósofo “pensava que alguns homens são escravos por natureza, e a escravidão, por
conseguinte, era correta e vantajosa para eles” (SINGER, 2013, p. 274).
Peter explica ainda que, para o filósofo, “o homem que é escravo por natureza é um
ser humano tão capaz de sentir prazer e dor como qualquer outro. No entanto, como é
considerado inferior ao homem livre quanto ao seu poder de raciocínio, Aristóteles o
considera um ‘instrumento vivo’” (SINGER, 2013, p. 274). Logo, julgando-se a diferença
entre o poder de raciocínio dos seres humanos fator suficiente para tornar alguns mestres e
outros seguidores, Aristóteles “deve ter pensado ser tão evidente o direito dos seres humanos
a dominar os animais que esse pressuposto não precisaria de argumentos”7.
Nesse sentido, cumpre ressaltar que a concepção aristotélica da natureza se baseia na
noção de hierarquia, “em que aqueles que têm menos capacidade de raciocínio existem em
benefício dos que têm mais” (SINGER, 2013, p. 275). Sob a mesma perspectiva, a Vânia
Márcia Nogueira discorre sobre a “pirâmide natural de Aristóteles”, destacando que o filósofo
“tinha com os animais a mesma relação de subordinação e opressão de seus antecessores, o
que o levou a criar uma pirâmide natural da vida, na qual reinou a hierarquia humana em

7
Aristóteles discorre abertamente sobre o escravo: “embora permaneça um ser humano, também é um artigo de
propriedade” (ARISTÓTELES apud SINGER, 2013, p. 274-275).
22

virtude da excelência e complexidade do ser humano” (NOGUEIRA, 2012, p. 17). Embora


reconhecesse que outros seres vivos possuíam alma e diferentes capacidades para sentir
sensações diversas, a razão seria atributo exclusivo do homem.
Em verdade, o homem seria o ser vivo mais perfeito do universo (ARISTÓTELES,
1996, p. 14-16) e, portanto, o mais elevado dessa pirâmide principalmente porque detinha a
linguagem, a razão e o senso de justiça8. Apesar de não negar ser o homem um animal, ao
observar a natureza de um ponto de vista sistemático e hierárquico, agravou-se a lógica de
domínio do homem sobre os animais não humanos. Mais do que isso, mais uma vez se
vislumbra o pensamento finalista, de modo que, para Aristóteles, os animais não tinham outra
finalidade que não fosse a de servir ao homem9. Assim, “embora fosse um homem que tivesse
‘apreço pela dinâmica da vida’, menosprezou as outras espécies viventes no planeta,
legitimando inclusive que o homem pudesse lhes retirar a vida por serem hierarquicamente
superior aos demais seres vivos” (NOGUEIRA, 2012, p. 17).
O seguinte trecho, retirado de sua obra Política, ilustra com precisão a concepção
aristotélica sistemática e finalista da natureza:

As plantas existem em benefício dos animais, e as bestas brutas em benefício do


homem – os animais domésticos para seu uso e alimentação, os selvagens (ou, de
qualquer maneira, a maioria deles) para servir de alimento e outras necessidades da
vida, tais como roupas e vários instrumentos.
Como a natureza nada fez sem propósito ou em vão, é indubitavelmente verdade que
ela fez todos os animais em benefício do homem (ARISTÓTELES apud SINGER,
2013, p. 275).

1.2.2 O pensamento Cristão

Com o advento das conquistas de Alexandre, o Grande e o fim da hegemonia Grega, a


pólis perfeita, até então representada por Atenas, competia em cultura e civilização com
outras cidades-estados em ascensão, destacando-se Roma e Alexandria. Nas palavras de Luiz
8
“O homem é um animal político em um aspecto em que uma abelha não o é, tampouco qualquer outra criatura
gregária tal como o gado. Como a natureza não produz nada em vão, somente o homem possui a linguagem. A
linguagem é algo diferente da voz, que é possuída por outros animais e também usada por eles para expressar dor
e prazer; já que a sua natureza lhes permite ter sensações de dor e prazer e transmitir essas sensações para outros.
Mas a linguagem, por sua vez, indica o que é útil para nós e o que é danoso, como também serve para indicar o
que é justo ou injusto. Nesse particular, o homem difere de todos os outros animais, pois somente ele possui a
percepção do certo e do errado [...]”. (ARISTÓTELES apud KURATOMI, 2011. p. 23).
9
Ele afirmava que os animais existem para servir aos interesses humanos, muito embora, ao contrário do autor
do Gênesis, não estabeleça nenhum abismo profundo entre seres humanos e o restante do mundo animal.
(SINGER, 2013, p. 272)
23

Fernando Coelho, a “filosofia desloca-se do contexto da civilização helênica e penetra no


mundo romano” (COELHO apud NOGUEIRA, 2012, p. 18). Nesse contexto, tem-se o
humanismo estoico, doutrina mais divulgada no mundo romano e que contribuiu para a
afirmação do direito natural que permeou a Era Cristã10.
Pode-se dizer que o Cristianismo agregou as ideia judaica e grega acerca dos animais.
Sendo fundado e tornando-se poderoso sob o Império Romano, deparou-se com condições
que não davam margem a que se acalentassem sentimentos de simpatia pelos fracos, haja vista
as sucessivas guerras de conquista responsáveis pela ampliação de território e poderio do
Império. Em Roma, homens e mulheres assistiam à morte de seres humanos e outros animais
como uma fonte normal de entretenimento e isso prosseguiu por séculos, com raros protestos.
O historiador irlandês W. E. H. Lecky faz o seguinte relato acerca da evolução dos
jogos romanos desde os primórdios, quando havia combate entre gladiadores:

O simples combate tornou-se, por fim, insípido, e todo o tipo de atrocidade era
concebido para despertar o interesse que diminuía. Certa feita, um urso e um touro,
acorrentados juntos, rolaram nas areias, num combate feroz; outra vez, criminosos
vestidos com peles de feras selvagens foram lançados aos touros, que eram atiçados
com ferros em brasa ou com dardos dotados de pontas em chamas. Quatrocentos
ursos foram mortos num único dia nos tempos de Calígula. [...] Com Nero,
quatrocentos tigres lutaram com touros e elefantes. Em um único dia, na
inauguração do Coliseu por Tito, quinhentos animais foram mortos. Com Trajano,
os jogos chegaram a durar 123 dias consecutivos. Leões, tigres, elefantes,
rinocerontes, hipopótamos, girafas, touros, cervos, até crocodilos e serpentes eram
utilizados para dar um toque de novidade ao espetáculo. Também não faltava
nenhuma forma de sofrimento humano. [...] Tão intensa era a sede de sangue que um
príncipe se tornava menos impopular se descuidasse da distribuição de milho do que
se deixasse de organizar os jogos (LECKY apud SINGER, 2013, p. 276-277).

Em verdade, destaca-se o significado dos jogos como um indicador de limites da


simpatia e compaixão de pessoas aparentemente civilizadas. Apesar de os romanos
demonstrarem grande consideração pela justiça, pelo dever público e até mesmo bondade para
com os outros, quando um ser se situava foram da esfera de consideração moral – criminosos,
militares cativos e animais –, a imposição de sofrimento era considerada mero
entretenimento11, sendo, portanto, conduta destituída de reprovabilidade. Assim, buscando-se
expandir a esfera moral limitada dos romanos,

10
Nos estoicos, encontrava-se inicialmente a ideia de que o direito natural era comum a homens e animais,
porém as razões humanas os distanciavam em direitos e moralidade. (NOGUEIRA, 2012, p. 18).
11
Como já demonstrado na tradição judaica, a mentalidade cultivada pelo cristianismo segue absorvendo os
animais, num utilitarismo arcaico, para auxiliar a manutenção social. Assim, a exploração animal era importante
nas sociedades cristãs pela utilidade que se traduzia ao ser humano. Para muitos estudiosos, foi a visão bíblica
quem mais autorizou a superioridade absoluta do ser humano sobre os animais. Para Fernando Levai, a visão
bíblica considerava os animais como criaturas brutas, desprovidas de alma ou intelecto, o que afastou do homem
24

o cristianismo trouxe ao mundo romano a ideia da singularidade da espécie humana


que herdou da tradição judaica, mas na qual insistia com grande ênfase em razão da
importância que conferia à alma imortal do ser humano. Aos humanos – e só a eles,
entre todos os seres vivos na Terra – estava destinada uma vida após a morte do
corpo. Essa noção introduziu a ideia cristã do caráter sagrado da vida humana
(SINGER, 2013, p. 277-278).

Todavia, o cristianismo deixou os animais não humanos fora do âmbito das


considerações morais e da compaixão, tal como sempre estiveram nos tempos da Grécia e
Roma Antigas. Tanto é verdade que, após a conversão do Império ao cristianismo, constatou-
se um processo de decadência dos combates entre seres humanos - haja vista que o gladiador
que sobrevivia matando o oponente era considerado um assassino e a simples presença nesses
combates tornava o cristão sujeito à excomunhão, até ocorrer sua completa extinção no final
do século IV -, ao mesmo tempo em que o status moral de matar ou torturar qualquer ser não
humano permaneceu inalterado (SINGER, 2013, p. 279). Atualmente, esses espetáculos
podem ser vistos na forma moderna de touradas na Espanha, Portugal, França e em alguns
países da América Latina, bem como na forma de apresentações circenses que exploram
animais.
No contexto privatista em que a noção do Direito alcançava apenas os cidadãos
romanos, a condição dos animais não humanos manteve-se sob o manto da coisificação, sendo
considerados res (coisas), com idêntico tratamento jurídico conferido aos objetos inanimados
ou à propriedade privada. De fato, os animais eram, como ainda são, classificados como
coisas.
Fernando Levai adverte que, durante a Idade Média, apogeu do cristianismo, o mundo
ocidental se manteve avesso a qualquer atitude complacente aos seres considerados inferiores
(LEVAI, 1998, p. 18). Durante tal período, os filósofos medievais disseminavam o
conhecimento dentro das bases morais do cristianismo, ao mesmo tempo em que participavam
da vida política da sociedade. Devido à importância de suas contribuições ao tema em
questão, faz-se mister destacar três filósofos eclesiásticos: Santo Agostinho, São Tomás de
Aquino e São Francisco de Assis.
A filosofia de Santo Agostinho (354-430) representou uma transição entre a
antiguidade e o cristianismo. Seguidor das ideias de Aristóteles, o teólogo firmou-se
antropocêntrico, sustentando a superioridade da espécie humana. Segundo leciona Vânia
Márcia Nogueira, embora ele reconhecesse que todos os animais irracionais seriam capazes de

uma moral para com os mesmos, fato que perdurou por toda a Idade Média, período de excelência da doutrina
cristã (LEVAI apud NOGUEIRA, 2012, p. 19).
25

sentir, somente o homem possuía a alma e o poder que ela tem de julgar, o que permitia que
aos últimos fosse concedida a apreciação moral dos seres vivos (NOGUEIRA, 2012, p. 20).
Referindo-se ao incidente em que Jesus induz dois mil porcos a se lançarem ao mar e
ao episódio em que amaldiçoa uma figueira, Santo Agostinho intenta provar que não é
necessário moldar nosso comportamento em relação aos animais segundo as leis morais que
regem tal comportamento para com outros seres humanos, quando escreve:

O próprio Cristo mostra que é o cúmulo da superstição refrear-se de matar animais e


destruir plantas, pois, julgando que não há direitos comuns entre nós, os animais e as
árvores, ele lança os demônios a uma vara de porcos e, com uma maldição, seca uma
árvore em que não encontrou frutos. [...] Certamente nem os porcos nem a árvore
pecaram (SANTO AGOSTINHO apud SINGER, 2013, p. 279).

Tomás de Aquino, por sua vez, ocupa uma posição de destaque nas diversas
digressões históricas sobre o tema. Se algum autor pode ser considerado representante da
filosofia cristã anterior à Reforma e da filosofia romana católica de seu tempo, é o frade
italiano da Ordem Dominicana. Assim como Santo Agostinho, Tomás de Aquino se uniu às
ideias de Aristóteles e buscou reconciliar o conhecimento teleológico com a sabedoria
mundana dos filósofos, demonstrando que não há contradição entre a teologia (fé) e a filosofia
(razão) (NOGUEIRA, 2012, p. 20).
Quanto à posição do italiano sobre a questão animal dentro do pensamento cristão,
também seguiu a doutrina Agostiniana, entendendo que a proibição cristã de matar, alicerçada
no mandamento de igual teor trazido pelo profeta Moisés, não se aplicaria às criaturas não
humanas, mas somente aos homens. Tal posicionamento é explícito no seguinte trecho da
obra Summa Theologica de Tomás de Aquino:

Não há pecado em usar algo para o fim a que se destina. Ora, a ordem das coisas é
tal que o imperfeito é feito para o perfeito. [...] Assim, coisas como plantas, que
meramente têm vida, são para os animais, e todos os animais são para o homem.
Portanto, não é proibido aos homens utilizar plantas para o bem de animais, e
animais para o bem do homem, como afirma o Filósofo [Política I,3].
Ora, um uso mais necessário parece consistir no fato de que animais usam plantas e
homens usam animais para alimentar-se, e isso não pode ser feito a não ser que esses
sejam privados da vida, sendo, portanto, legal tanto tirar a vida de plantas para o uso
de animais quanto de animais para o uso dos homens. De fato, isso está de acordo
com o mandamento do próprio Deus [Gênesis 1, 29-30 e Gênesis 9,3] (TOMÁS DE
AQUINO apud SINGER, 2013, p. 281-282).
26

Evidente a presença da “pirâmide natural” de Aristóteles no trecho supratranscrito, na


medida em que, na ordem da natureza, o imperfeito existe para servir o perfeito12 e o
irracional para servir o racional. Dessa forma, ao homem seria permitido usar as coisas abaixo
dele nesta ordem da natureza para suas necessidades. E, como não poderia deixar de ser,
destaca-se a visão bíblica que autorizou a superioridade sem fronteiras do ser humano sobre
os animais ao legitimar o domínio do homem sobre as demais espécies. Logo, o homem não
cometia pecado algum ao matar animais, porque a lei natural estabelece uma necessária
hierarquia entre as criaturas. Em verdade, para Tomás de Aquino, a possibilidade de existir
pecado está condicionada ao fato de o sujeito passivo ser Deus, o próprio pecador ou outro ser
humano. Não há uma categoria de pecados contra animais não humanos (SINGER, 2013, p.
283-284).
Ressalta-se, ainda, que apesar de reconhecer que mesmo os animais irracionais são
sensíveis a dor, o teólogo considerava a dor sentida pelos animais uma razão insuficiente para
justificar uma mudança de comportamento e, consequentemente um rompimento com a
mentalidade, já consolidada, do Antigo Testamento. Soma-se a isso o entendimento de que “a
única razão existente contra a crueldade com os animais é que ela pode levar à crueldade com
seres humanos” (SINGER, 2013, p. 283-284), revelando claramente a essência do
especismo13.
Nas palavras de Peter Singer, São Francisco de Assis seria “a ilustre exceção à regra
de que o catolicismo desestimulava a preocupação com o bem-estar de seres não humanos”
(SINGER, 2013, p. 286). O fato de ter sido canonizado apenas dois anos após sua morte
parece reafirmar que ele foi um seguidor deveras fiel de Jesus Cristo e de sua doutrina. Sua
fama de católico humanitário pode ser constatada na seguinte passagem que se diz ter ele
declarado:

Se ao menos eu pudesse ser apresentado ao imperador, rogaria, pelo amor de Deus, e


por mim, que emitisse um edital proibindo a todos de pegar ou prender minhas
irmãs, as cotovias, e ordenando a todos os que possuem um boi ou burro que os
alimentassem particularmente bem no Natal (SÃO FRANCISCO DE ASSIS apud
SINGER, 2013, p. 286-287).

12
“São Tomás, em sua obra Tratado da Justiça, explica que não é pecado usar algo para o fim ao qual se destina,
estando o imperfeito a serviço do perfeito. A perfeição era vista no seu limite à medida em que se aproxima de
Deus. O homem era a imagem e semelhança de Deus, portanto, próximo da perfeição, e poderia utilizar o que
não é perfeito na natureza: animais e plantas”. (NOGUEIRA, 2012, p. 20-21).
13
Em comprovação ao exposto, Tomás de Aquino interpretou uma passagem bíblica demonstrando cuidado em
enquadrá-la nos estritos limites da concepção moral escolástica: “Ora, é evidente que, se um homem sente
afeição piedosa pelos animais, estará mais inclinado a sentir piedade por seus semelhantes, razão pela qual está
escrito: ‘O justo olha pela vida de seus animais’ [Provérbio 12, 10]” (TOMÁS DE AQUINO apud SINGER,
2013, p. 284).
27

O santo italiano se referia aos animais como irmãos, ultrapassando a visão individual
do homem no mundo. Entretanto, também o Sol, a Lua, o vento, o fogo eram todos irmãos e
irmãs para ele. Seus contemporâneos o descreveram como “deleitando-se interna e
externamente com toda criatura, e quando ele as pegava ou as olhava, seu espírito parecia
estar no céu e não na Terra” (SINGER, 2013, p. 287-288). Explica Singer (2013, p. 287-288)
que, “embora esse tipo de amor universal extático possa ser uma fonte maravilhosa de
compaixão e de bondade, a falta de reflexão racional talvez faça muito no sentido de
contrapor suas consequências benéficas”. Isto é, ao dispensar mesma consideração aos
elementos citados, naturalmente perde-se de vista as diferenças essenciais entre eles, inclusive
quanto ao grau de senciência dos mesmos.
Com o Renascimento (séc. XIV – séc. XVII), surge a redescoberta e revalorização de
referências culturais da Antiguidade Clássica, voltando-se a um ideal humanista e naturalista.
A principal característica do humanismo renascentista, que se opôs à Escolástica, é sua
insistência no valor e na dignidade dos seres humanos, revivendo a máxima grega: “o homem
é a medida de todas as coisas”.
Jacob Burckhardt definia o período como uma época de “descoberta do mundo e do
homem” (WIKIPEDIA, 2016b). De fato, a lente utilizada para enxergar e interpretar a vida
deixou de ser a religião cristã e suas verdades reveladas pelos evangelhos (teocentrismo),
migrando-se para o homem e seu infinito potencial de desenvolver explicações racionais
sobre tudo (antropocentrismo). A deprimente concentração no pecado original e na fraqueza
dos seres humanos em comparação com o poder ilimitado de Deus cedeu lugar à
singularidade dos humanos, seu livre-arbítrio, seu potencial e sua dignidade. No entanto, no
tocante às atitudes para com os animais não humanos, esses permaneceram tão abaixo
daqueles como sempre estiveram, ressaltando-se que a valorização do homem foi moldada a
partir de seu contraste com a natureza limitada dos “animais inferiores” (SINGER, 2013, p.
289).
É nessa época que entram em cena os primeiros dissidentes genuínos: Leonardo da
Vinci (1452 – 1519), Michel de Montaigne (1533 - 1592) e Giordano Bruno (1548 – 1600).
Sem mais delongas, ressalta-se que da Vinci sofreu fortes críticas por se preocupar tanto com
o sofrimento, que se tornara vegetariano (SINGER, 2013, p. 289). A ele é atribuída a frase:
“Chegará o dia em que todo homem conhecerá o íntimo de um animal. E nesse dia, todo o
crime contra o animal será um crime contra a humanidade” (VINCI apud NOGUEIRA, 2012,
p. 26).
28

O humanista Montaigne, inspirado pelos ensinamentos de Plutarco, também se


posicionou contrário à supremacia dos homens diante dos animais e às ideias mecanicistas.
Pelo contrário, acreditava que os animais possuíam mais virtudes que os humanos,
apresentando inúmeras semelhanças existentes entre ambas as espécies. Edna Cardozo afirma
que ninguém foi mais convincente em desbancar o homem de seu trono do que Montaigne
(DIAS apud NOGUEIRA, 2012, p. 27), que chegara a afirmar em sua obra Ensaios:
“Presunção é nossa doença natural e original. [...] É pela mesma vaidade de imaginação que
[o homem] se iguala a Deus, atribuindo-se qualidades divinas e afasta-se e separa-se da
multidão de outras criaturas” (MONTAIGNE apud SINGER, 2013, p. 290).
O Giordano Bruno, por sua vez, apesar de frade dominicano, influenciou-se pela nova
astronomia de Copérnio, que abria a possibilidade da existência de outros planetas,
arriscando-se a afirmar que “o homem não passa de uma formiga na presença do infinito”
(SINGER, 2013, p. 289). Com isso, após um julgamento de oito anos pela Inquisição
Romana, o italiano foi queimado na fogueira em 1600 por ter-se recusado a se retratar das
supostas heresias.
Por último, alude-se ao filósofo René Descartes (1596 – 1650) como ilustre precursor
do movimento Iluminista. Diferentemente dos estudiosos supracitados, Descartes sustentou
que “tudo o que consiste de matéria é governado por princípios mecanicistas, a exemplo do
funcionamento de um relógio” (SINGER, 2013, p. 291-292), sendo claramente influenciado
pela ciência da mecânica. Introduzindo a ideia de alma, Descartes conseguiu evitar o conceito
de conteúdo herético de que seres humanos são máquinas. Entretanto, a consequência de tal
afirmação não poderia ter sido pior para os animais não humanos.
Ao passo que os seres humanos teriam consciência e esta era identificada com a alma
imortal, criada por Deus, “a doutrina cristã de que os animais não possuem alma imortal tem a
extraordinária consequência de levar à negação de que eles tenham consciência” (SINGER,
2013, p. 292). Assim, os animais seriam meras máquinas, incapazes de sentir prazer ou dor.
Mesmo na situação em que estivesses sendo cortados, contorcendo-se para tentar escapar,
agiam desse modo devido aos princípios mecânicos. Ademais, o filósofo francês relacionou à
razão o dom da linguagem, chegando a sustentar:

Eis a prova de que os animais não só possuem menor dose de razão do que os
homens, como não possuem absolutamente nenhuma, uma vez que é preciso muito
pouco para se saber falar (DESCARTES apud NOGUEIRA, 2012, p. 25).
29

Cumpre salientar, ainda, que o mecanicismo de René Descartes – manifestado em sua


teoria “animal-máquina”14 – serviu para justificar inúmeras práticas em prejuízo deles. Foi
nessa época que a prática da experimentação em animais vivos tornou-se amplamente
difundida na Europa. Singer esclarece que a teoria de Descartes permitia aos
experimentadores que desconsiderassem quaisquer escrúpulos diante das reações
comportamentais dos animais que a maioria de nós interpretaria como dor intensa. O próprio
Descartes realizava experimentos em animais vivos a fim de ampliar seus conhecimentos de
anatomia, tendo muitos dos fisiologistas renomados da época se declarado cartesianos e
mecanicistas. Chega-se ao ponto mais crítico da breve análise histórica do antropocentrismo
no Ocidente, de modo que a partir daqui, de fato, o status dos animais só poderia melhorar
(SINGER, 2013, p. 292-293).

1.2.3 Iluminismo e o período posterior

Se por um lado o Iluminismo foi conhecido como “Século das Luzes”, buscando,
através da razão, reformar a sociedade e o conhecimento herdado da tradição medieval, por
outro lado, muitos de seus representantes não demonstraram preocupação em questionar sem
amarras o status dos animais, reproduzindo pensamentos tradicionais com um leve toque de
benevolência trazido pelo período. O filósofo escocês David Hume (1711 – 1776), por
exemplo, expressou um sentimento bastante comum ao dizer que “somos obrigados, pelas leis
da humanidade, a usar gentilmente essas criaturas”15.
Assim também ocorre com o poeta britânico Alexander Pope (1688 – 1744) ao
posicionar-se contra a prática de experimentações em animais vivos, “argumentando que,
embora a ‘criação inferior’ estivesse ‘submetida a nosso poder’, teríamos de prestar contas
por seu ‘manuseio indevido’” (POPE apud SINGER, 2013, p. 295). Pope reitera a
objetificação dos animais e a velha máxima de que estes existem à serviço do homem,

14
“As teses de Descartes, mesmo após três séculos e meio, no decorrer dos quais as ciências da mente tiveram
seu florescimento e se afastaram, em muitos casos, das teses mecanicistas defendidas por ele, influenciam, até
hoje, o mundo da ciência experimental. A teoria mecanicista da natureza animal dá sustentação à crença
difundida entre os cientistas, pelo menos até há duas décadas, de que os animais são destituídos de consciência
da dor, por serem destituídos da linguagem e do pensamento”. (FELIPE, 2007 apud KURATOMI, 2011, p. 23).
15
“’Usar gentilmente’ é, na verdade, uma expressão que resume bem a atitude que começou a se espalhar nesse
período: tínhamos licença para utilizar os animais, mas devíamos fazê-lo de maneira gentil” (SINGER, 2013, p.
294).
30

provando também que as ideias religiosas quanto ao status especial dos seres humanos não
haviam desaparecido.
Ensina Singer (2013, p. 293) que a onda de experimentos dolorosos realizados em
animais teve importante participação na mudança perceptível de atitude, haja vista eles terem
revelado “uma extraordinária semelhança entre a fisiologia dos seres humanos e de outros
animais”. Apesar de não ter ocorrido, de fato, alteração radical, nota-se influências
significativas de cunho intelectual e moral em direção à um verdadeiro progresso nas atitudes
aferidas aos animais na época do Iluminismo e após este. Sobre a experimentação em animais,
Voltaire (1694 – 1778) chegou a expressar:

Há bárbaros que pegam este cão, que tanto excede o homem em fidelidade e
amizade, e o pregam numa mesa para dissecá-lo vivo, só para mostrar-te as veias
mesentéricas! Encontras nele os mesmos órgãos de sensação que também existem
em ti. Responda-me, mecanicista, a Natureza dispôs todas essas fontes de
sentimento nesse animal para que ele não possa sentir? (VOLTAIRE apud SINGER,
2013, p. 294).

Em suma, “a tendência da época era de maior refinamento e civilidade, mais


benevolência e menos brutalidade, e os animais se beneficiariam dessa tendência junto com os
seres humanos”(SINGER, 2013, p. 294). Fernando Levai (1998) cita alguns humanistas que
durante o Iluminismo mostraram-se opositores ao martírio animal e cujo modus vivendi tenha
sido marcado pelos laços de afeição e respeito com os demais seres vivos: Voltaire (1694 –
1778), Jean-Jacques Rousseau (1712- 1778), Jeremy Bentham (1748 – 1832) e Arthur
Schopenhauer (1788 – 1860). Posteriormente, influenciados pelo estudo sistemático da
natureza, destacam-se: Alexander Von Humboldt (1769 – 1859), Charles Darwin (1809-
1882) e Ernest Haeckel (1834 – 1919), esse último considerado o pai da ecologia moderna.
Sem a pretensão de exaurir o tema, passa-se ao estudo de pontos imprescindíveis que
compõem os legados de algumas das personalidades supracitadas. Nessa linha, volta-se
novamente para o filósofo e escritor francês, Voltaire, que se deleitava em atacar dogmas de
todos os tipos e chegou a criticar, em seu tratado sobre educação, Emílio, ou Da Educação, “o
uso de animais como alimento, considerando-o um assassinato sangrento, não natural e
desnecessário” (VOLTAIRE apud SINGER, 2013, p. 295). Nas palavras do professor
australiano Peter Singer (2013, p. 295), Voltaire

[...] foi mais longe do que os contemporâneos ingleses, defensores do tratamento


bondoso dos animais, quando se referiu ao bárbaro costume de nos sustentarmos
com a ingestão de carne e sangue de seres “como nós”, muito embora ele próprio
tenha, aparentemente, continuado a praticar esse costume.
31

Nesse mesmo diapasão, Rousseau nos remete ao apogeu do período de redescoberta da


natureza, em que se evidencia o parentesco com as “bestas”. Há que se frisar que o filósofo
contratualista criticou com veemência o estudo experimental em animais e teceu importantes
esclarecimentos sobre o tema em sua obra Devaneios de um Caminhante Solitário. Ademais,
segundo leciona Vânia Nogueira (2012, p. 28):

Para Rousseau, o que distinguia homens de animais não era a capacidade de sentir
dor e prazer, pois ambos possuíam essa capacidade, o que distinguia era a liberdade
de ceder aos instintos da natureza, capacidade exclusiva dos homens. O homem
podia optar por permanecer em liberdade porque tinha essa consciência. O animal,
por agir somente por instinto, não é um agente livre. Quando ambos estavam em
liberdade, no estado da natureza, homem e animal são corajosos, fortes e vigorosos
e, ao tornarem-se sociáveis e domesticados, respectivamente, tornam-se opostos,
fracos e medrosos.

Lamentavelmente, apesar de promover um intercâmbio intelectual nunca antes visto,


bem como inserir-se no especial contexto de aumento dos sentimentos anticlericais, o
Iluminismo não afetou de maneira semelhante todos os pensadores em sua atitude para com
os animais. Immanuel Kant instruía seus alunos nas aulas sobre ética negando os supostos
deveres diretos do homem para com os animais, arguindo que esses não possuem
autoconsciência e existem meramente como meios para um fim, que é o homem16 (SINGER,
2013).
Enfrentando a ideia kantiana, comumente defendida, de que os seres humanos são fim
em si mesmo, tem-se a interpretação que, de modo geral, “todo o ser racional, existe como
fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”
(OLIVEIRA, 2011). Esse valor também pode ser chamado de valor intrínseco. Os seres
irracionais cuja existência depende, não da nossa vontade, mas da natureza, têm, para Kant,
“apenas um valor relativo como meios e, por isso, se chamam coisas, ao passo que os seres
racionais se chamam pessoas, porque sua natureza os distingue já como fins em si mesmos,
quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio”17 (OLIVEIRA,
2011).

16
Segundo Kant, “os animais não são autoconscientes, eles são meros meios que existem para um fim. Este fim
é o homem. Nós podemos fazer a pergunta, ‘Por que os animais existem?’, mas perguntar ‘Por que o homem
existe?’ é uma questão sem sentido. Os nossos deveres em relação aos animais são, meramente, deveres indiretos
em relação à humanidade”. (KANT apud OLIVEIRA, 2011).
17
Com razão, Singer rejeita o argumento do valor intrínseco sob o fundamento de que não é possível atribuir
“algum tipo de dignidade ou valor a recém-nascidos, deficientes mentais, assassinos psicopatas e negarmos esse
valor a animais como baleias, gorilas, vacas, cavalos. Segundo Singer, mais argumentos são necessários para
32

Outrossim, no mesmo ano em que Kant fez tais considerações, em 1780, Jeremy
Bentham concluiu sua obra Uma introdução aos princípios da moral e da legislação e, numa
passagem, deu uma resposta definitiva a Kant: “A questão não é ‘Eles são capazes de
raciocinar?’ nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim: ‘Eles são capazes de sofrer?’”
(BENTHAM apud SINGER, 2013, p. 296). Singer consagra Bentham como talvez o primeiro
a denunciar o domínio do homem como uma tirania, e não como um governo legítimo, na
medida em que o filósofo prussiano compara os animais aos escravos negros de outrora,
“desejando ver chegar o dia ‘em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos
que jamais lhe poderiam ter sido retirados, a não ser pela mão da tirania’” (BENTHAM apud
SINGER, 2013, p. 296).
A primeira proposta de lei visando proibir a luta de touros com cães, prática conhecida
como “Bull-baiting”18, foi apresentada em 1800 à Câmara dos Comuns na Grã Bretanha.
Entretanto, restou rejeitada, sob o fundamento de que uma atitude prejudicial apenas aos
animais não seria merecedora de regulamentação específica19. Já em 1821, Richard Martin,
ativista irlandês proprietário de terras e membro do Parlamento por Galway, propôs uma lei
proibindo maus tratos aos cavalos, o que gerou escárnio entre os membros da casa legislativa
e a rejeição de mais um projeto. Todavia, no ano seguinte, outra proposta de Martin fora
aprovada, dessa vez tornando criminoso maltratar gratuitamente certos animais domésticos,
como cavalos e burros. Com o intuito de dar cumprimento à lei, o ativista e outros
humanitaristas criaram uma sociedade para reunir provas e impetrar ações judiciais,
inaugurando a primeira organização para o bem estar animal, que mais tarde se tornaria a
Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPPCA) (SINGER, 2013).
No ano de 1859, Charles Darwin20 tornou pública a obra A origem das espécies que,
em suas próprias palavras, lançaria uma luz no tocante à origem do homem e sua história, mas
evitando debater de forma incisiva e clara em que medida sua teoria da evolução poderia ser
aplicada a seres humanos. Finalmente, doze anos depois, quando muitos cientistas já haviam

justificar a crença de que somente os seres humanos têm algum tipo de valor especial, dignidade ou que são “fins
em si mesmos” (OLIVEIRA, 2011).
18
“O Bull-baiting era um ‘esporte sangrento’ muito popular, que envolvia cães e touros. Era um combate mortal,
onde um touro era preso e dois ou mais cães eram soltos sobre ele. [...] Este ‘esporte sangrento’ começou a ser
praticado na Inglaterra, na época da Rainha Anne” (WIKIPEDIA, 2016d).
19
Pressuposição compartilhada por The Times, que dedicou um editorial ao princípio de que ‘o que quer que
interfira na disposição privada pessoal do tempo ou da propriedade do homem é tirania. Desde que outra pessoa
não seja atingida, não há lugar para interferência do poder constituído’ (SINGER, 2013, p. 297).
20
“Alguns anos depois da aprovação dessa primeira modesta proibição legal, Charles Darwin escreveu em seu
diário: ‘O homem, em sua arrogância, acredita ser uma grande obra, merecedora da intermediação de uma
divindade. É mais humilde e, penso eu, mais verdadeiro considerar que foi criado a partir dos animais’”
(DARWIN apud SINGER, 2013, p. 298).
33

aceitado a teoria geral da evolução, o naturalista britânico publicou A origem do homem,


tornando explícito numa única frase o que havia escondido em sua obra precedente (SINGER,
2013).

Segundo a teoria de Darwin, tanto os organismos vivos como os que encontrou


fossilizados se originavam de um único ancestral comum e se transformavam ao
longo do tempo. Semelhante a uma bactéria, esse primeiro ser vivo sofreu
modificações até gerar toda a variedade de animais e plantas do planeta, seguindo
um padrão evolutivo (que permanece ativo). Assim, o homem deixou de ser visto
como um animal especial e mais evoluído para ser encarado como mais um ramo da
grande árvore da vida (MOÇO, 2009, p. 33).

Em apoio à sua teoria, Darwin apontou que as diferenças entre humanos e animais não
eram tão grandes quanto se supunha ao declarar, no capítulo 3 de A origem do homem, que:

Vimos que os sentimentos e a intuição, as várias emoções e faculdades, tais como


amor, memória, atenção e curiosidade, imitação, razão etc., das quais o homem se
orgulha, podem ser encontradas em estado incipiente, ou mesmo, por vezes, numa
condição bem desenvolvida, nos animais inferiores (DARWIN apud SINGER, 2013,
p. 299-300).

No capítulo subsequente dessa mesma obra, o autor afirma que “o senso moral
humano também pode remontar aos instintos sociais dos animais, instintos que os levaram a
sentir prazer na companhia uns dos outros, a ter simpatia uns pelos outros e a realizar serviços
de auxílio mútuo” (SINGER, 2013, p. 300). Com a publicação da obra The Expression of the
Emotions in Man and Animals, o brilhante naturalista fornece informações e provas de que
ambos possuem inúmeras semelhanças a nível emocional.
Há de se pensar na revolução despertada pelo cientista ao demonstrar não “apenas”
que todos os seres vivos integram a mesma escala evolutiva, mas ao aproximar biológica e
emocionalmente os homens dos animais. Contrapondo-se ao criacionismo, teoria que
perdurou durante mais de trinta séculos como uma verdade absoluta em diversas partes do
mundo, a teoria de Darwin lançou-se a luz, ensejando precursoras discussões sobre o direito
dos animais ao retirar do pensamento filosófico a hierarquia quase incontestável do homem na
natureza, colocando-o numa cadeia de vida, onde ele constitui mais uma espécie dentre
inúmeras outras.
Nesse sentido, Daniel Lourenço (2008, p. 274):

A reação ao pensamento darwiniano foi gigantesca, pois as implicações morais


advindas do fato de que os seres vivos tinham uma origem biológica comum eram
igualmente avassaladoras. Tais teorias lograram desconstruir, bloco por bloco, o
34

lugar da humanidade no universo natural, subvertendo a noção de como o mundo era


visto e, em última análise, a própria humanidade.

Nas reflexões de Peter Singer, tudo indicava que o peso das provas científicas em
favor da Teoria da Evolução seria suficiente para a reconsideração de todas as justificativas
anteriores quanto ao lugar supremo ocupado pelo homem na Criação e ao domínio bíblico
sobre os outros animais. Finalmente, “os seres humanos agora sabiam que não eram uma
criação especial de Deus, feita à imagem divina e considerada distinta dos animais; ao
contrário, passaram a compreender que eram, eles próprios, animais” (SINGER, 2013, p.
299). De fato, do ponto de vista intelectual, a Teoria da Evolução foi revolucionária. Afinal, o
que deu errado?
Ao examinar os pensadores que dissertaram sobre o tema desde o final do século
XVIII até os dias atuais, Singer constatou que, apesar de se deparar com a crescente aceitação
que os animais têm direito a algum grau de consideração, a maioria deles “detiveram-se antes
do ponto em que os argumentos os levariam a defrontar com a escolha entre romper com o
hábito profundamente arraigado de comer carne de outros animais ou admitir que não agiam
de acordo com as conclusões dos próprios argumentos morais” (SINGER, 2013, p. 301).
Salvo duas notáveis exceções no século XIX – Lewis Gompertz e Henry Salt -, sobram
exemplos para se dizer que “quando a história do movimento pela libertação animal for
escrita, a era que começou com Bentham será conhecida como a era dos pretextos” (SINGER,
2013, p. 301).
Dentre os pretextos utilizados, ressalta-se o Pretexto Divino e o da Natureza. O
primeiro foi utilizado por muitos, inclusive pelo filósofo britânico William Paley no livro
Principles of Moral and Political Philosophy que, ao se deparar com a contradição da prática
especista de comer outros animais com seus argumentos morais, não encontra outra
justificativa senão recorrer à “permissão dada pelas Escrituras” (PALEY apud SINGER,
2013, p. 302). Outro autor, lorde Chesterfield, recorreu à natureza, em vez de Deus, na
medida em que o inglês se convenceu da legalidade do hábito alimentar, em suas palavras,
“tão horrível”, “a partir da ordem geral da natureza, que instituiu o apresamento universal do
mais fraco como um de seus princípios” (MICHELET apud SINGER, 2013, p. 303). Destaca-
se que o estadunidense Benjamin Franklin21 utilizou-se do mesmo argumento exposto por

21
Em sua Autobiografia, conta que observara alguns amigos pescar quando percebeu que alguns dos peixes
haviam comido outros. Então, concluiu: “Se vocês comem uns aos outros, não vejo por que não posso comê-
los”. (SINGER, 2013, p. 303-304).
Interessante que William Paley, ao estabelecer os “Direitos gerais da humanidade” na obra supracitada, enfrenta
de forma brilhante tal argumento suscitado por Franklin: “Alega-se como justificativa para essa prática. [...] que
35

Paley, qual seja, a fragilidade dos animais, para voltar a comer carne após alguns anos de
dieta vegetariana.
Ainda na seara dos pretextos, parece que o historiador francês Jules Michelet e o
filósofo alemão Arthur Schopenhauer acreditavam na impossibilidade de viver sem matar
(SINGER, 2013, p. 304-305). Até mesmo o jurista Jeremy Bentham que, conforme já
demonstrado, afirmou de forma admirável a necessidade de estender os direitos aos animais
não humanos, hesitou nesse ponto:

Há uma boa razão para que nos seja facultado comer quem assim o desejarmos: é o
melhor para nós e para eles nunca é o pior. Eles não fazem nenhuma daquelas
demoradas antecipações quanto ao sofrimento futuro que fazemos. A morte que
sofrem em nossas mãos, em geral, é, e sempre pode ser, mais rápida, e, portanto,
menos dolorosa, do que aquela que os aguardaria no inevitável curso de natureza
(BENTHAM apud SINGER, 2013, p. 305-306).

Desnecessário dizer que Bentham baixou consideravelmente seu padrão normal de


argumentação ao tecer tais elucidações. Sobre isso: (i) afora a questão da moralidade de matar
sem dor, nem Schopenhauer nem Bentham consideram que, necessariamente, há sofrimento
envolvido na criação e no abate comercial de animais; (ii) outro ponto é que o abate em larga
escala de animais para a obtenção de alimento não é e nunca foi indolor; e (iii) por fim, os
animais são capazes, sim, de antecipar o que lhes está reservado, ao menos desde o momento
em que entram no matadouro e sentem o cheiro do sangue dos companheiros (SINGER,
2013).
O próprio Darwin, embora tenha demolido as bases intelectuais dessas atitudes,
continuou a reproduzir o padrão moral para com os animais das gerações anteriores, não se
libertando da mais propalada de todas as práticas especistas: a de comer outros animais. Além
disso, “recusou-se a assinar uma petição que apelava para que a RSPCA pressionasse a favor
de um controle legislativo de experimentos com animais” (SINGER, 2013, p. 307).
Sintetizando a breve digressão histórica transportada para essas páginas, alude-se à
análise brilhante do professor australiano Peter Singer:

Se os animais já não se encontram completamente fora da esfera moral, estão ainda


numa seção especial, próxima do limite exterior. Permite-se que os seus interesses
sejam considerados apenas quando não entram em conflito com os interesses

as várias espécies de animais, criadas para se tornarem presas umas das outras, oferecem uma espécie de
analogia para provar que a espécie humana está destinada a se alimentar delas [...] [mas] essa analogia é
extremamente frágil, uma vez que os animais não têm como se manter de outra maneira, e nós temos; pois toda a
espécie humana pode subsistir inteiramente de frutas, lentilhas, ervas e raízes, como muitas tribos hindus de fato
o fazem. [...]” (PALEY apud SINGER, 2013, p. 302).
36

humanos. Se existir conflito – mesmo que este seja entre uma vida inteira de
sofrimento de um animal não humano e a preferência gastronômica de um ser
humano -, opta-se por ignorar os interesses dos não humanos. A atitude moral do
passado está demasiado profundamente enraizada no nosso pensamento e nas nossas
práticas para ser perturbada por uma mera alteração do nosso conhecimento de nós e
dos outros animais (SINGER apud KURATOMI, 2011, p. 27).
37

2 REFLEXÕES SOBRE O ESTATUTO MORAL DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS

“Os animais não existem em função do homem [...], eles possuem uma existência e um
valor próprios. Uma moral que não incorpore essa verdade é vazia. Um sistema jurídico que a
exclua é cego” (REGAN apud LOURENÇO, 2008, p. 421).

2.1 DA RELEVÂNCIA DA ABORDAGEM ÉTICA PARA O DIREITO DOS ANIMAIS

Algumas considerações merecem ser registradas a respeito dos discursos que têm
como palco a questão jurídica dos animais. Em primeiro lugar, o tema relativo ao modo de
“nos relacionarmos com o mundo natural, em suas mais variadas dimensões, consiste em um
assunto fundamentalmente ético22, que envolve o exame dos limites e alcance da
considerabilidade moral de entidades não humanas e da própria natureza como um todo”
(LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 195-196)23. Sob este prisma, Daniel Lourenço e Fábio
de Oliveira esclarecem que a Ética não se identifica, a priori, com nenhum código moral
determinado, mas se ocupa de avaliar condutas e valores em um processo voltado à
normatividade (prescrição do dever ser) e não meramente descritivo (ser). Naturalmente,
dessa avaliação “pode surgir a necessidade de se denunciar alguns códigos morais como
incorretos, inadequados ou incoerentes, enquanto outros podem ser tido como corretos,
recomendáveis ou obrigatórios” (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 195-196).

22
“No âmbito acadêmico, o termo Ética passou a refletir a Filosofia Moral, ou seja, passou a identificar um ramo
do conhecimento relacionado à análise racional de segunda ordem sobre os problemas morais. Em outras
palavras, a Ética procura investigar quais são os argumentos ou os fundamentos que validam (ou não)
determinado tipo de comportamento (moral) individualmente ou coletivo” (LOURENÇO, Daniel Braga;
OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de, 2013. Heróis da natureza, inimigos dos animais. Juris Poiesis: Revista do
Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro, ano 16, n. 16, jan-dez. Editora CRV, 2013, p.
195-196).
23
Além disso, “a própria produção científica tem dedicado, já há muito tempo, grande atenção ao que se
convencionou denominar de Ética Ambiental ou Ética Ecológica e faz parte do projeto intelectual deste setor
indagar justamente sobre a ampliação da classe daqueles que contam moralmente” (LOURENÇO, Daniel Braga;
OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de, 2013. Heróis da natureza, inimigos dos animais. Juris Poiesis: Revista do
Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro, ano 16, n. 16, jan-dez. Editora CRV, 2013, p.
195-196).
38

Em verdade, a normatização da conduta humana é estudada fundamentalmente por três


áreas do conhecimento: a ética, o direito e a moral 24. Em síntese, é possível definir a primeira
como o estudo das justificativas e significados das normas construídas pelas seguintes, sendo
as normas jurídicas diferenciadas das normas morais por apresentarem caráter obrigatório-
coercitivo, enquanto que a última engloba um conjunto de normas válidas por adesão
individual consciente. Nas palavras de Eduardo Luiz Cobette, “a Ética informa ao Direito (e à
Moral), o conteúdo em seu nascimento, e posteriormente segue influenciando em sua
interpretação e aplicação” (RAMOS, 2008). O que se pretende demonstrar com isso é que,
dentre os diversos resultados que as teorias éticas podem conduzir diante de casos concretos,
ao denunciar normas morais e/ou jurídicas através da reflexão sobre o acerto de determinada
conduta, abre-se a possibilidade de alteração normativa. Outrossim, atenta-se ao fato de que
há uma tendência de as normas morais transformarem-se em jurídicas, posto que “as normas
de conduta, antes de assumirem o caráter formal da juridicidade, são de modo geral normas
morais”, como explica Luiz Fernando Coelho (NOGUEIRA, 2012, p. 77).
Dito isso, passa-se ao enfrentamento da questão do estatuto dos animais não humanos
sob uma abordagem ética, notadamente no que concerne à definição daquilo que recebe o
nome de comunidade moral, isto é, do parâmetro que separa aqueles que contam moralmente,
daqueles que não contam. Dessa forma, em última instância, procurou-se investigar se
existem limites para o modo como os seres humanos podem tratar legitimamente os animais
não humanos. E, se há limites, quais são eles? Afinal, se por um lado, nossas intuições
espontâneas sugerem que é moralmente condenável atormentar os animais e submetê-los à
crueldade, quais seriam as justificativas que nos impedem de tratá-los de qualquer maneira
que nos agrade?
De acordo com Sônia T. Felipe, a ética prática contemporânea está delineada por três
vertentes: a tradicional, antropocêntrico-hierárquica; a utilitarista, senciocêntrica; e a
biocêntrica (FELIPE, 2009). Com efeito, a vertente tradicional restringe o âmbito da
comunidade moral à órbita dos seres racionais e atribui ao homem centralidade absoluta.

24
Sobre isso, remonta-se à Kelsen: “Para contrapor as ideias jusnaturalistas e separar radicalmente o direito da
moral, o jurista austro-americano Hans Kelsen, no século XIX, desenvolveu a Teoria Pura do Direito, baseada
unicamente no positivismo jurídico. Para ele, ‘o direito possuía dimensões mais reduzidas que as ocupadas pela
moral’. A ciência jurídica e sua objetividade científica não admitiam qualquer consideração de valor. Foi
abstraído do direito o conceito de justiça. O objeto do direito era unicamente a norma jurídica desprovida de
valoração. Cabia à ética, e não ao direito, a discussão de valores e de justiça [...]. Não cabia [ao direito] indagar
sobre o que é ‘certo ou errado, sobre o que é virtuoso ou vicioso, sobre o que é bom ou mau, mas sim sobre o
lícito e o ilícito, sobre o constitucional ou inconstitucional, sobre o válido e o inválido’”. Entretanto, “novas
teorias jurídicas, como o neoconstitucionalismo e a Teoria Crítica do Direito, aproveitam a (re)ligação atual entre
a moral e as ciências jurídicas e apresentam duas novas funções ao direito: a moralização e a função social”.
(NOGUEIRA, 2012, p. 76-77).
39

Contra esse posicionamento majoritário, que encerra um privilégio axiológico, insurgem-se


diversas filosofias ambientalistas com o intento de ampliar a comunidade moral, de modo a
incluir os animais ou até mesmo o conjunto da natureza.

2.2 DA CONSTITUIÇÃO DA COMUNIDADE MORAL NA ÉTICA


ANTROPOCÊNTRICA

De posse do relato histórico delineado no capítulo anterior, convém recapitular a


filosofia moral de três pensadores em particular: Aristóteles, Tomás de Aquino e René
Descartes. Segundo Sônia T. Felipe (2009, p. 3), “nossa formatação moral é signatária da
concepção aristotélica, antropocêntrica e hierárquica, típica da racionalidade escravocrata”.
Em Aristóteles, a hierarquia dos seres vivos ficou estabelecida da seguinte forma: as plantas
servem para os animais e estes, tal como os escravos, por serem igualmente incapazes de
conceber um princípio racional e serem submetidos à lei (da natureza e do proprietário),
existem para servir aos interesses do homem. É bem verdade que em seu livro, Ética a
Nicômaco, o filósofo distingue três espécies de atividade animal ou alma, conforme se traduz
no português: “a vegetativo-nutritiva, comum a plantas, animais não-humanos e a humanos; a
perceptivo-desiderativa, comum a humanos e a animais sencientes; e a racional, típica da
natureza humana, possível de ser encontrada em forma muito rudimentar em alguns, embora
não em todos os animais” (FELIPE, 2009, p. 5-6). Assim, Aristóteles admitia que alguns
animais tem em comum com os humanos uma espécie de racionalidade não verbal, bem
como que em alguns humanos esta racionalidade sequer se forma. Todavia, ainda assim os
animais se encontram numa escala inferior, haja vista não serem capazes da racionalidade
matemática, de modo que seriam “destinados a servir à vida dos seres cujas percepções
podem configurar projeções da vida para além do zóon, para a bíos. Daí termos hoje dois
conceitos de vida: o zoológico e o biográfico” (FELIPE, 2009, p. 5-6).
Portanto, a linguagem racional é o fator que dá origem ao ser vivo biográfico, que não
são destituídos de sentido próprio, mas capazes de projetar sua vida ao longo do tempo e para
além do momento ou espaço, por serem dotados de vontade livre. Ademais, também teriam
capacidade de discernir seus fins próprios e de escolher o melhor modo de viver a vida,
possuindo aptidão para biografar sua expressão vital (FELIPE, 2009). A consequência disso
culmina no entendimento de que, pelo fato de os animais não raciocinarem nos padrões
40

mentais humanos, maltratar animais não faria sentido, “não porque os animais sofram ou
sejam conscientes da dor, mas por serem propriedade (patrimônio) do homem livre” (FELIPE,
2009, p. 6). Em outras palavras, os danos auferidos aos animais implicariam tão somente em
danos patrimoniais ao homem, na qualidade de seu proprietário. Nesse sentido, entende Daniel
Lourenço que Aristóteles possivelmente teria reconhecido deveres indiretos para com os
animais, teoria que será abordada oportunamente. Por todo o exposto, não entram na
comunidade moral aristotélica as plantas, os escravos e os animais.
Acompanhando “O filósofo”, Tomás de Aquino reafirma a exclusão dos animais da
considerabilidade moral, sob o similar argumento de que eles são destituídos de racionalidade.
Assim, não estando na “vizinhança” dos seres racionais, plantas e animais são englobados no
estatuto de coisas vivas, caracterizadas pela ausência de bem próprio que devesse ser
respeitado por qualquer agente moral (FELIPE, 2007). Na mesma esteira, René Descartes, ao
investigar a possibilidade da existência de consciência nos animais com base na linguagem –
especialmente na habilidade semântica – e na capacidade de conhecer – isto é, agir sabendo o
que faz –, exclui os animais da comunidade moral por serem destituídos da linguagem e
incapazes de empreender atos por uma motivação própria. Para Descartes, humanos agem,
enquanto “autômatas movem-se de acordo com a programação que recebem, e, caso não a
recebam, falham nos atos mais simples” (FELIPE, 2007, p. 70).
Em última análise, debruçando-se sob a herança aristotélico-tomista-cartesiana, a
filosofia moral tradicional, ora vertente antropocêntrica da ética contemporânea, assentou a
comunidade moral no legado da posse da razão como critério definidor da pertença a essa
comunidade.
Sob outra perspectiva, mas ainda dentro da seara da constituição de comunidade
moral, a diferenciação entre agentes morais e pacientes morais sustentaria uma posição mais
sofisticada da teoria de deveres indiretos. Assim, tomando como referência o entendimento
de Tom Regan, Daniel Lourenço explica que, na concepção tradicional, um agente moral é
“aquele indivíduo que possui uma variada gama de habilidades, incluindo a de balancear
princípios morais abstratos na formulação de juízos de valores que irão servir de guia para sua
conduta pessoal” (LOURENÇO, 2008, p. 298)25. Em outras palavras, os agentes morais se
colocam diante da possibilidade de atuar conscientemente, no sentido de saber e fazer o que é
certo ou errado. Paradigmaticamente, os seres humanos adultos são considerados agentes
morais. Outrossim, deve-se atentar para o fato de que os agentes morais também se colocam

25
Continua Lourenço: “A própria noção de imputabilidade corrobora a noção de que ausentes algumas dessas
capacidades, o indivíduo torna-se, eventualmente, não-responsável pelo seu agir”.
41

na posição passiva dos atos de outros agentes morais. Exatamente por isso se pode dizer que
haveria uma comunidade moral congregando-os (LOURENÇO, 2008, p. 298).
De forma diversa, os pacientes morais seriam “indivíduos desprovidos das habilidades
de formulação de princípios morais abstratos e, via de consequência, de juízos morais sobre
seus atos” (LOURENÇO, 2008, p. 298-299). Ao contrário dos agentes morais, eles seriam
incapazes de, conscientemente, saberem de antemão o que é certo ou errado, não possuindo
discernimento para pautar suas condutas em termos de valorações morais próprias. Ressalta-
se que tal característica não os exime de figurarem no polo passivo dos atos perpetrados pelos
agentes morais. Entretanto, a recíproca não é verdadeira. Os pacientes morais não podem
fazer nada – nem certo, nem errado – que afete ou envolva os primeiros.
A teoria dos deveres indiretos, também conhecida como teoria das obrigações
indiretas26, identifica a comunidade moral com a comunidade dos agentes morais. A
consequência disso é claramente perceptível em relação aos pacientes morais, que despertam
apenas obrigações indiretas dos agentes morais. Dito de outra forma, os pacientes morais não
possuem significação moral direta ou própria, de modo que não teríamos, como agentes
morais, deveres diretos para com eles. “De fato, as filosofias morais tradicionais, ao
vincularem o agir moral à posse, pelo paciente, de determinadas características, relativizam o
dever de moralidade” (LOURENÇO, 2008, p. 299). Outra crítica a respeito desta concepção é
destacada por Sônia T. Felipe, que sabiamente elucida que “o pertencimento à comunidade
moral é definido e construído a partir de critérios físicos e não de critérios morais” (FELIPE
apud LOURENÇO, 2008, p. 2009)27, o que exclui boa parte dos próprios seres humanos do
âmbito da moralidade.
Aliás, o argumento dos chamados “casos marginais” ou “não paradigmáticos”28
contesta justamente as situações específicas em que seres humanos não manifestam ou

26
“Tal teoria identifica a comunidade moral com a comunidade dos agentes morais (o agente moral é capaz de
agir seguindo princípios; ele é dotado de livre-arbítrio e pode, portanto deliberar). Em relação aos pacientes
morais, os membros da comunidade moral têm apenas obrigações indiretas” (COLTRO; FERREIRA, 2011, p.
77).
27
“Em relação aos pacientes morais, os membros da comunidade moral têm apenas obrigações indiretas, mas
uma teoria das obrigações indiretas (egoísmo ético, kantismo e contratualismo) é incapaz de explicar por que o
princípio, segundo o qual, não se deve causar danos aos indivíduos aplica-se diretamente aos agentes morais, e a
eles somente: os pacientes morais também podem ter a experiência de um bem-estar suscetível de ser afetado
negativamente. Eles podem assim sofrer um dano direto, contrariamente á afirmação central da teoria
tradicional” (COLTRO; FERREIRA, 2011, p. 77).
28
“Por seres humanos não paradigmáticos entende-se aqueles indivíduos que, por doença ou acidente, perdem
definitiva ou temporariamente, ou mesmo não possuem, da maneira também definitiva ou temporária, as
faculdades pelas quais os seres humanos adultos ‘normais’ são usualmente considerados como fazendo parte de
uma ‘comunidade moral humana’. São comumente citados como exemplos de seres humanos não
paradigmáticos os recém-nascidos e crianças em tenra idade, os idosos que sofrem de distúrbios relacionados à
42

deixaram de manifestar as qualidades exigíveis para serem abarcados pelo status de agentes
morais, isto é, a racionalidade, a aptidão linguística, a autonomia etc. Nem todos os seres
humanos possuem as peculiaridades supramencionadas, como é o caso de recém nascidos,
pessoas senis, pacientes em coma, deficientes mentais, entre tantos outros. Daí tal argumento
ser comumente utilizado por aqueles que propugnam pela consideração moral direta para com
os animais como forma de demonstrar a ilogicidade e a incoerência da exclusão destes da
“comunidade moral” (LOURENÇO, 2008, p. 300). Se é possível incluir na “comunidade
moral humana” seres destituídos das capacidades tradicionalmente exigidas para fundamentar
a pertença na categoria de agentes morais, qual é a razão para que seres não humanos, não
obstante possuírem aspectos relevantes similares àqueles, fiquem impossibilitados de
comungar dos mesmos benefícios e de integrar a mesma comunidade moral?
Notório exemplo de teoria indireta é o contratualismo. Tratando-se de uma
abordagem superficial, a ideia de contratualismo consiste em “um conjunto de regras que
indivíduos voluntariamente aceitam seguir. Aqueles que aceitam os termos do contrato estão
protegidos diretamente, pois possuem direitos criados, reconhecidos e protegidos pelo
contrato” (CARDOSO, 2011, p. 5). Entretanto, é legítimo aos contratantes estenderem a
proteção àqueles que, por serem destituídos da capacidade de entender a moralidade de seus
atos, não firmam pactos. Dito de outra forma, ausentes as capacidades de expressarem seus
interesses e, consequentemente, de negociarem sua posição livremente29, animais e seres
humanos não paradigmáticos não integrariam o rol dos potenciais contratantes. O
contratualismo hobbesiano oferece proteção aos animais apenas quando são objetos do
interesse dos contratantes. Da mesma forma, para Jan Naverson30, os indivíduos que são
incapazes de entrar em acordo e de construir proposições egoístas não podem ser sujeitos
morais, tampouco sujeitos de direito. Logo, pelo fato de os animais serem desprovidos de tal
racionalidade deliberativa, afastando-se do conceito de indivíduo egoístico racional, tal
perspectiva “coloca os animais fora do alcance da moralidade, sem que se possa afirmar que

senilidade, pessoas com sérios transtornos neurológicos e patologias cerebrais degenerativas, bem como os
portadores de graves deficiências mentais (congênitas ou não)” (LOURENÇO, 2008, p. 300).
29
Cumpre destacar que, na teoria das obrigações indiretas, tem-se a identificação da comunidade moral com a
comunidade dos agentes morais. Esses são capazes de agir seguindo princípios, além de serem todos de livre-
arbítrio, podendo, portanto, deliberar.
30
Jan Naverson adota a posição indireta, a que denomina de egoísmo racional (“rational egoism”). “Tal teoria
parte do pressuposto que ‘todo ser racional tenta maximizar suas utilidades, quaisquer se sejam, isto é, satisfazer
seus desejos, interesses, etc’”. Assim, em sociedade, os indivíduos egoístas racionais precisam entrar em acordo,
com vistas a maximizar tais utilidades e obter ganho efeito. Nesse sentido, as restrições advindas de tal pacto
consistiriam na própria moralidade (LOURENÇO, 2008, p. 303-304).
43

não sejam capazes de sofrer, etc. Pelo contrário, ela provê as bases para uma franca e,
obviamente, insensível rejeição de seu sofrimento” (LOURENÇO, 2008, p. 304).
Em verdade, os deveres indiretos para com os animais devem ser entendidos como
uma forma de promoção do benefício dos próprios contratantes. Por exemplo, o óbice para
que não maltratemos um gato, segundo Daniel Lourenço, “não é o de pensar que a sua
integridade corpórea importe em um primeiro plano, mas sim o de que, ao fazê-lo, estaríamos
lesando gratuitamente um bem pertencente a um agente moral humano” (LOURENÇO, 2008,
p. 304). Outra interpretação possível é delineada por Tom Regan, na medida em que as
crianças seriam “protegidas pelo contrato em decorrência de um interesse sentimental dos
contratantes” (LOURENÇO, 2008, p. 304-305). Ou seja, o empecilho a causar sofrimento à
criança seria a consideração às pessoas que se importam com ela. Teríamos, portanto, deveres
indiretos com relação os animais e seres humanos não paradigmáticos, porquanto só teríamos
deveres diretos para conosco e para com os outros contratantes.
Por fim, a filosofia kantiana, conforme os ensinamentos de Daniel Lourenço, também
faz jus a compor o elenco entre aquelas que servem de instrumento para a promoção dos
deveres indiretos. Para Kant, somente os seres racionais são fins em si mesmos (possuem
valor intrínseco, independente), fato que os colocam em uma categoria moral diferenciada de
tudo aquilo que existe, na qualidade de “pessoas”, novamente interpretada como sinônimo de
“agência moral”. Desnecessário dizer que os deveres diretos só existem entre tais agentes.
Pois bem, a interação entre os agentes morais deve obedecer ao “imperativo categórico”31,
proposição que tem como consequência imediata a “fórmula do fim em si mesmo”, a qual
entoa que o comportamento do agente moral deve se pautar no uso da humanidade sempre
como um fim, nunca como um meio32. Assim, como aos seres irracionais é atribuído
meramente valor relativo, falhando como fins em si mesmos, estes não integrariam a
comunidade moral kantiana e, com efeito, não existiriam deveres diretos para com eles. Kant
reproduz a ética antropocêntrica clássica ao enxergar os animais como meios para fins
humanos. Todavia, não obstante dispor da liberdade para usá-los da forma que quiser, o
homem deve atentar ao dever de não crueldade para com eles (dever indireto), na medida em
que, em última instância, poderia conduzir aos que a praticam a também assim agir com

31
Como leciona Daniel Lourenço (2008, p. 314), “a primeira proposição do ‘imperativo categórico’ é a chamada
‘fórmula da lei universal’, que assim se enuncia: ‘age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne lei universal’”.
32
“Age por forma a que uses a humanidade, quer na tua pessoa como na de qualquer outra, sempre ao mesmo
tempo como fim, nunca meramente como meio” (LOURENÇO, 2008, p. 314).
44

relação aos agentes morais, esses sim dignos de consideração moral (LOURENÇO, 2008, p.
316)33.
Portanto, a não violência contra os animais dentro da lógica ética aristotélico-
antropocêntrico-hierárquica é alicerçada no argumento de deveres morais indiretos. Nesse
sentido, na vertente antropocêntrica clássica, há um ser racional, o proprietário do animal,
interessado na preservação do seu patrimônio, constituído pela posse de seres destituídos de
racionalidade. Razão pela qual maltratar animais não racionais sequer faria sentido, posto que,
tratando-se de mera propriedade de um homem, tudo que o possa estragar, ferir ou destruir,
implicaria em dano ao patrimônio humano. Afinal, “a tradição antropocêntrica sustenta que os
animais existem apenas para servir aos interesses dos seres da espécie biológica Homo
sapiens” (FELIPE, 2009, p. 7). A mensagem é clara: animais não têm quaisquer direitos, nem
morais, nem legais.

2.3 DA TEORIA DOS DEVERES DIRETOS

Diante do exposto e de acordo com a diagramação teórica tal como proposta por
Regan (LOURENÇO, 2008), pode-se elaborar uma distinção didática no que diz respeito à
possibilidade de limitação da esfera dos interesses humanos quando em confronto com os
interesses não humanos. A concepção dos deveres indiretos (“indirect duties view”), já
abordada, defende que as restrições morais às condutas humanas para com os animais têm por
fundamento o próprio interesse humano, seja porque estes são tidos como propriedade, ou por
consideração às pessoas que desenvolvem um sentimento afetivo para com eles, ou, ainda,
porque o tratamento cruel aviltaria a própria moralidade humana. Dito de outra forma, haveria
tão somente deveres que envolvem animais, e não deveres para com eles. Outra corrente, a
concepção dos deveres diretos (“direct duties view”), reconhece sabiamente que as práticas
humanas possuem o condão de afetar diretamente os animais, que, sob esse prisma,
manifestam valor inerente, próprio, sendo portadores de interesses que devem ser

33
É bem verdade que atos violentos e abusos contra os animais há muito tempo têm sido reconhecidos como
indicadores de perigosos desvios de comportamento. Nesse sentido, “de acordo com ROBERTO K. RESSLER,
que desenvolveu estudos de assassinos em série para o FBI – Federal Bureau of Investigation, inúmeros estudos
já estabeleceram a comprovação empírica da existência de uma correlação entre a crueldade cometida contra
animais e atitudes de violência e de propensão criminal humana” (LOURENÇO, 2008, p. 297). Entretanto, é de
um egocentrismo desmedido concluir que apenas os seres humanos seriam lesionados diante de tal
comportamento cruel. Se os seres humanos são lesionados de forma indireta, os animais sofrem uma lesão direta.
45

resguardados. A concepção dos deveres diretos será analisada no presente capítulo e utilizada
para fundamentar a viabilidade dos denominados Direitos dos Animais (“Animal Rights”).
De início, é imperioso tecer breves críticas acerca da tradicional ética antropocêntrico-
hierárquica veiculada por meio da teoria dos deveres indiretos. Imprescindível esclarecer que
as teorias indiretas, em suas variadas formas, não se sustentam ao sofrer o embate com os
“casos marginais”. Insistindo nos argumentos de ordem marginais, não é razoável negar o
status moral dos animais por não possuírem as qualidades exigíveis para tanto, isto é, a
racionalidade, a aptidão linguística, a autonomia etc., se nem todos os seres humanos,
naturalmente dignos de consideração moral, as manifestam de forma plena. É bem verdade
que duas soluções seriam possíveis diante do tratamento absurdo dispensado a situações
categoricamente iguais. Afinal, o que fazer? Negar o status moral dos seres humanos que se
encontram nesta situação ou expandir a própria noção de sujeito moral? Respondendo a
questão, Daniel Lourenço adverte que, como a maioria das pessoas não julga plausível
sustentar a consequência de negação de status moral aos “casos marginais” humanos, não se
pode igualmente negar status moral aos animais (LOURENÇO, 2008, p. 321).
Portanto, utilizando-se do núcleo argumentativo alicerçado no reconhecimento dos
“casos marginais”, teorias morais foram delineadas com vistas a repensar as bases tradicionais
da ética, especialmente no que concerne à definição daquilo que recebe o nome de
comunidade moral, procurando-se definir um critério moral coerente que abarcasse todos os
seres em situação análoga. Com efeito, as filosofias ambientalistas que serão analisadas no
presente tópico contestam o critério axiológico das teorias éticas convencionais - que restringe
o âmbito da comunidade moral à órbita dos seres humanos -, propondo uma ampliação de tal
comunidade, de maneira a incluir os animais ou até mesmo o conjunto da natureza. Dito isso,
passa-se ao estudo dos deveres morais diretos pela ótica de Humphry Primatt, Henry Salt,
Jeremy Bentham e Peter Singer, que assentaram, dentre outros autores, as bases da ética
senciocêntrica ou utilitarista.

2.3.1 Ética Senciocêntrica

É bem verdade que a partir do século XVIII o movimento contra o tratamento cruel
dispensado aos animais assume contorno mais expressivo, iniciando sua fase de consolidação
46

por meio de publicações que o condenavam de maneira explícita. Entretanto, é com Primatt34
que a capacidade de sofrer é eleita como o parâmetro para a atribuição de consideração moral.
Sobre isso, o autor afirma que “a similitude entre as terminações nervosas e os órgãos de
sensação de homens e animais, assim como as manifestações externas de dor, provam que
ambos são vulneráveis ao sofrimento da mesma maneira” (LOURENÇO, 2008, p. 347). Por
óbvio, “dor é dor, seja ela infligida ao homem ou a um animal” (PRIMATT apud
LOURENÇO, 2008, p. 347). Exatamente por esta razão, Primatt condena a “ética da
aparência”, sustentando que assim como os brancos não poderiam tiranizar os negros em
razão da cor de sua pele, também a superioridade mental do homem não lhe conferiria o
direito de abusar das demais criaturas. Do contrário, afirma Peter Singer que não se poderia
falar sequer em igualdade moral entre os próprios seres humanos35, a julgar que o grau de
inteligência constituiria medida de seus direitos, legitimando, então, que seres humanos se
utilizem de outros como meros meios para suas finalidades particulares. Nada mais injusto.
Compreendendo tratar-se do fenômeno recentemente conhecido como especismo,
Primatt cria, com base no “princípio da analogia”, uma “regra de ouro” – que Sônia T. Felipe
denomina “princípio da coerência” – ao preconizar que apesar de não sermos cavalos, porcos
ou cães, deveríamos tratá-los do mesmo modo como gostaríamos de ser tratados caso
fôssemos um deles (FELIPE apud LOURENÇO, 2008, p. 348). Afinal, conforme bem
sintetiza Sônia T. Felipe, “desrespeitar os animais, alegando que são inferiores, mas fazer a
eles o que não admitimos que nos façam quando estamos em condições inferiores, é pura
irracionalidade. Essa se manifesta justamente naqueles que se autoproclamam dotados de
razão” (FELIPE apud LOURENÇO, 2008, p. 352-353). Dessa forma, o autor inaugura uma
tendência de julgamento ético imparcial dos animais, atraindo também outros pensadores.

34
A dissertação sobre a compaixão, escrita por Humprhy Primatt e editada pela primeira vez em 1776 sob o
título “A dissertation on the duty of mercy and the sin of cruelty against brute animals”, questionou, na seara da
tradição teleológica cristã, a destituição dos animais de qualquer estatuto moral, inclusive na condição de
pacientes morais. Assim, pela primeira vez na história da filosofia moral, uma obra é dedicada à questão da
inclusão dos animais sencientes no âmbito da comunidade moral (FELIPE, 2007, p. 71).
35
Singer relaciona o critério “capacidade intelectual” com a “etnia” (racismo) e o “sexo” (sexismo) dos animais
não humanos para a concessão de considerabilidade moral, até chegar ao conceito de especismo mediante a
análise do critério “espécie”. Interessante a referência feita à Thomas Jefferson, que outrora escrevera numa carta
ao autor de um livro, enfatizando as extraordinárias realizações intelectuais dos negros com claro intuito de
refutar a noção de que estes possuíam capacidades intelectuais limitadas as seguintes palavras:”Tenha certeza de
que ninguém deseja de modo mais sincero do que eu ver a completa refutação das dúvidas que eu mesmo nutri e
expressei acerca do grau de inteligência que lhes foi conferido pela Natureza e chegar à conclusão de que estão
no mesmo nível que nós [...] porém, o grau de seus talentos, seja qual for, não se constitui na medida de seus
direitos. O fato de Isaac Newton ter sido superior a outros indivíduos, em relação à inteligência, não o tornou
senhor de propriedades, nem de pessoas”. Deixando claro que a igualdade defendida não é uma ideia factual,
mas sim moral, Singer propõe o questionamento: “Se o fato de possuir um elevado grau de inteligência não
autoriza um ser humano a utilizar outro para os próprios fins, como seria possível autorizar seres humanos a
explorar não humanos com o mesmo propósito?” (SINGER, 2013, p. 10-11).
47

Cumpre ressaltar apenas que a imparcialidade é essencial a todo e qualquer princípio moral ou
legal, sendo absurdo abrir exceção para benefício pessoal ao mesmo tempo em que se espera
que os outros considerem tal privilégio um sinônimo de justiça (FELIPE apud LOURENÇO,
2008, p. 351). Neste ponto, dialoga-se com o entendimento de Daniel Lourenço e Fábio de
Oliveira, na medida em que o fato de a Ética ser considerada antropogênica – isto é, fruto da
criação de seres humanos – não implica, necessariamente, dizer que a mesma deva assumir
caráter antropocêntrico36.
Ao escrever Animal Rights (1892), Henry Salt sustenta a inclusão de todos os animais
capazes de sentir dor e de sofrer no âmbito da comunidade moral, endereçando críticas à ética
fundada na aparência, tal como uma inequívoca consagração dos argumentos de Primatt em
sua teoria ética. A consequência de se reconhecer a atribuição da consideração moral a todos
os seres sencientes se vislumbra na defesa de deveres diretos de agentes morais para com
estes, incluindo-se os deveres positivos (de beneficiência) e os negativos (de não-
maleficiência). Dito de outra forma, além dos deveres diretos e indiretos em relação aos
membros da espécie humana, os agentes morais também teriam os mesmos deveres em
relação a quaisquer pacientes morais sencientes (FELIPE, 2007, p. 71).
É inegável a influência do utilitarismo clássico de Jeremy Bentham e John Stuart Mill
na teoria direta de Peter Singer. Em suma, tal utilitarismo sustenta que a moralidade de nossas
ações é determinada pelas suas consequências, de modo que a escolha das ações devem se dar
com vistas a gerar os melhores resultados para a maior quantidade de seres por ela afetados.
Logo, levando em consideração que o prazer é intrinsecamente bom e a dor intrinsecamente
ruim, deve-se ponderar todas as alternativas possíveis na prática de determinado ato e optar
por aquele que produza mais prazer do que dor para todos os atingidos pelo seu resultado.
Filiando-se à vertente do “utilitarismo do ato” ou direto (“act utilitarianism”), Bentham
acreditava que, independente da situação, a ação moralmente correta seria aquela que
trouxesse a maximização do maior prazer para o maior número de pessoas possível
(“princípio da maior felicidade possível”), além de rejeitar a noção de direitos morais inatos
por defender a tese que todo e qualquer interesse humano poderia ser superado, caso as
consequências de agir desta forma pesassem mais que os resultados de protegê-los
(LOURENÇO, 2008). Em outras palavras, o utilitarismo de Bentham confere uma

36
Sobre isso, Daniel Lourenço e Fábio de Oliveira discorrem que “Antropogenia e antropocentrismo são
conceitos diversos, que não se confundem. O fato de uma ideia se originar entre humanos é logicamente
independente da abrangência desta ideia. Ou seja, apenas humanos têm uma ética é uma coisa; a ética se aplica
apenas aos seres humanos é outra completamente diferente. Em suma, há uma diferença crucial entre as
condições de formação de conceitos e, de outro, as condições de aplicação e de abrangência desses conceitos”
(LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 198).
48

importância desmedida e perigosa ao aspecto coletivo do balanço realizado, de modo que


“nem sempre a alternativa que trará mais prazer a um determinado grupo de pessoas deve ser
a escolhida se, no geral, outra a supera no total absoluto dos outros grupos afetados”
(LOURENÇO, 2008, p. 356).
Apesar de nunca ter questionado diretamente o status de propriedade dos animais, o
autor reconhecia que os animais também possuíam o interesse de não sofrer e de ter uma
existência continuada, sendo atingidos diretamente pelas ações do homem. Afinal, se o bem
supremo a ser perseguido é o prazer, em detrimento da dor, e se os animais não humanos
manifestam clara capacidade de reagir a estas sensações, não há razão para que sejam
excluídos da comunidade moral, sendo obstados de ingressarem no balanço de interesses.
Acontece que a não atribuição de valor intrínseco aos sujeitos morais gera problemas quanto à
possibilidade de verem seus interesses plenamente tutelados. No que concerne ao tratamento
dispensado aos animais, aqui compreendidos como pacientes morais, o fato de não serem
conscientes37 acarretaria uma alteração qualitativa entre eles e os seres humanos e, por isso,
apenas poderiam ser tratados como coisas quanto ao seu interesse de viver, restando protegido
o seu interesse de não sofrer. Sob essa lógica, seria moralmente aceitável matar animais para a
alimentação humana, desde que de modo a tornar o ato mais indolor possível. Aliás, a
possibilidade de matar os próprios agentes morais é questão igualmente problemática em sua
teoria, já que o ato de matar é facilmente justificável quando otimizado o balanço coletivo
(LOURENÇO, p. 357). Por fim, conclui-se que os sujeitos morais são tidos como meros
receptáculos de valores positivos ou negativos, despidos de valores próprios, o que conduz a
implicações morais, no mínimo, questionáveis.
Em sequência, passa-se a análise do utilitarismo do ato de Peter Singer que, tal como
em Bentham, possui forte traço consequencialista, na medida em que para se determinar a
moralidade de um determinado ato, faz-se imprescindível o estudo de suas consequências.
Notadamente sob influência de Primatt, a senciência é a qualidade que reside precisamente o
modelo ético esposado por Singer, fazendo da “condição sensível de animais dotados de
consciência” (LOURENÇO, 2008, p. 361) critério delimitador da comunidade moral. Nesse
sentido, a capacidade de sofrer seria erigida como um verdadeiro denominador comum entre
todos os seres sencientes, intitulando os indivíduos ao direito de igual consideração. Nas

37
Hoje tal informação encontra-se comprovadamente equivocada, haja vista a Declaração de Cambridge (The
Cambridge Declaration of Consciousness), datada de julho de 2012, firmada por cientistas renomados de
diversas áreas, como neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas e neuroanatomistas, proclamando
ser induvidoso que todos os mamíferos, aves, peixes, inclusive invertebrados, como o polvo, ostentam
consciência (FRANCIS CRICK MEMORIAL CONFERENCE, 2016).
49

palavras de Singer: “se um ser sofre, não pode haver qualquer justificativa moral para
deixarmos de levar em conta esse sofrimento. Não importa a natureza do ser, o princípio da
igualdade requer que seu sofrimento seja considerado em pé de igualdade com sofrimentos
semelhantes” (SINGER, 2013, p. 14). Ademais, tomando por base o fato de que os
“interesses” e “preferências” dos seres sencientes devam ser levados em consideração no
âmbito das escolhas morais, Singer se depara com uma conjugação de ideias que o conduz a
afirmar a igual consideração dos interesses de todos aqueles, inclusive os animais, que sofrem
diretamente as consequências de uma ação.
Por seu turno, cumpre esclarecer que o “princípio da igual consideração de interesses”
(“equality principle”), como desdobramento inteligente do “princípio da igualdade”, não
significa a dispensa de tratamento absolutamente idêntico a todos os seres sencientes. A
igualdade na consideração dos interesses não significa igualdade no tratamento. Logo,
havendo, de fato, diferenças importantes entre homens e outros animais, nada impede que tais
disparidades conduzam à concessão de garantias e direitos também distintos38. Entretanto, se
por um lado Singer sustenta que, no que se refere à inflição de dor e sofrimento (“causar dor”
ou “aliviar a dor”), há uma consideração na mesma medida entre a sensibilidade de todos os
seres sencientes39, a argumentação é diversa quando a abordagem se desloca para o eixo
“causar a morte” ou “salvar a vida”40. Em verdade, tal diferenciação toma por base o fato de
que, para Singer, via de regra, “os animais [assim como humanos “marginais” que não
demonstram a posse da autoconsciência] têm um interesse direto em não sofrer, mas não
possuiriam um interesse em continuar vivendo ou em não serem tratados como meros
recursos utilizáveis pelos seres humanos”41. Nestes termos, o autor constrói uma concepção

38
Nesse sentido, Daniel Braga e Fábio de Oliveira são brilhantemente irônicos ao fazerem referência à
interpretação distorcida e equivocada que Volnei Garrafa ao afirmar que a Ética Animal de Singer prega uma
igualdade absoluta entre homens e animais: “Cachorro como Presidente da República? Ser humano voando com
seus próprios braços? Elefante no STF? Ser humano respirando na água? Parece que estamos perdendo tempo
aqui, não? Existem piadas melhores” (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 185).
39
Nas palavras de Singer: “se os animais sentem dor, não há justificativa moral para considerar que a dor (ou o
prazer) que os animais sentem seja menos importante que a mesma quantidade de dor (ou prazer) sentida por
seres humanos” (SINGER apud LOURENÇO. 2008, p. 373).
40
“Se tivéssemos que escolher entre salvar a vida de um ser humano normal e a de um deficiente mental,
provavelmente optaríamos por salvar a vida do ser humano normal; mas, se tivéssemos que escolher entre acabar
com a dor de um ser humano normal e a de um deficiente mental – supondo que ambos tivessem sofrido
ferimento dolorosos, mas superficiais, e dispuséssemos de apenas uma dose de analgésico – não é tão claro a
quem deveríamos escolher. O mesmo acontece quando consideramos outras espécies” (SINGER apud
LOURENÇO, 2008, p. 377).
41
Aliás, isso se deve a uma atribuição particular de valor à vida, a qual possuiria “pesos e valores diferentes, de
acordo com as capacidades que um ser venha a possuir, tais como autoconsciência, pensamento abstrato,
planejamento do futuro, ações complexas de comunicação, entre outras aptidões” [LOURENÇO, Daniel Braga.
Direito dos animais, op. cit., p. 376]. Dando maior ênfase à autoconsciência, Singer defende que, com exceção
de algumas espécies, os animais não seriam autoconscientes e, em razão disto, não demonstrariam uma
50

própria a que denomina “utilitarismo preferencial”, segundo a qual a preferência por se


continuar vivendo deve pautar as ações morais humanas, de modo que as ações contrárias ao
interesse de viver dos indivíduos que o possuem devam ser presumidas como erradas.
Dito isso, é bem verdade que Singer formula uma teoria do valor da vida em termos
utilitaristas, mitigados por elementos que provém da ética da pessoa: deve-se distinguir os
seres conscientes de si mesmos daqueles que são simplesmente conscientes (COLTRO;
FERREIRA, 2011). No que concerne a estes últimos, uma concepção total do utilitarismo
prevalece e o argumento da substituição se torna aplicável. Ou seja, há o perigo de a teoria de
Singer ser interpretada no sentido de que animais, via de regra, não deixariam de ser “recursos
substituíveis” por sustentar que a ausência de autoconsciência destes lhes retiraria o interesse
específico em ter uma vida continuada. Assim, depara-se com a condução de uma forma de
bem-estarismo, na qual os animais não são vistos como possuidores de valoração intrínseca.
Por outro lado, no que concerne aos primeiros, aplica-se uma concepção utilitarista
superestimada pela existência prévia e expectativa de um futuro próprio. Na oportunidade,
cumpre destacar a dificuldade de se encaixar o princípio da igual consideração de interesses
dentro do utilitarismo preferencial. Inconsistências são facilmente percebidas na medida em
que a igualdade dos interesses dos indivíduos não depende do quão importante um dado
interesse seria para ele, mas, sim, de como o interesse de terceiros seria por ele afetado. Nessa
perspectiva, confrontando o interesse alimentar de seres humanos que consomem carne com o
interesse vital de incontáveis seres sencientes, e levando em consideração que, para Singer,
tais animais são destituídos do interesse em continuar vivendo, o autor teria dificuldades para
se opor ao abate indolor de animais que tiverem uma existência saudável e livre de
sofrimentos, não obstante sua posição contrária a criação intensiva de animais (LOURENÇO,
2008, p. 382-383).
Por fim, com cautela, merece registro a constatação de grande semelhança entre o
utilitarismo clássico de Bentham e o utilitarismo preferencial de Singer. Como visto
anteriormente, o fato de os animais não serem tidos como conscientes, no entendimento de
Bentham, produziria um distanciamento destes para com os seres humanos de tal sorte que
anularia seu interesse em permanecer vivos, restando protegido tão somente o interesse de não
sofrerem. Da mesma forma, troca-se a “ausência de consciência” pela “ausência de
autoconsciência” e a sentença apresenta equivalência à teoria de Singer. Também é notável
que a posição de Singer conduziria ao mesmo problema identificado no utilitarismo hedonista

“existência mental continuada, nem aspirações com relação ao futuro” (LOURENÇO, 2008, p. 377). O
pensamento se aplicaria aos humanos “marginais”, como deficientes mentais e pessoas senis.
51

de Bentham, haja vista que os indivíduos continuariam na condição de meros receptáculos42,


com a diferença que, desta vez, seriam preenchidos com preferências e interesses e não com
prazeres e sofrimentos. Em meio as críticas dirigidas à visão utilitarista proposta por Singer,
Daniel Lourenço entende por sua insuficiência, apresentando dois argumentos que merecem
especial atenção: (i) o utilitarismo de preferência não elimina por completo a ideologia
especista, especialmente no que se refere ao problema de se matar agentes ou pacientes
morais; e (ii) o “princípio da igual consideração de interesses” não traz garantias de promoção
de um tratamento igualitário aos animais, de forma a permanecerem com o status de coisa43.

2.3.2 Ética Biocêntrica

Diante do exposto, demonstrou-se que, no último quartel do século XX, as teses de


Primatt, Bentham e Salt foram revisitadas por Peter Singer. É fato notório que desde o final
do século XVIII a filosofia moral sofre constante pressão dos argumentos

[...] que invocam a moralidade humana a considerar não apenas os interesses


racionais dos seres da espécie Homo sapiens, mas também interesses naturais não-
racionais, abrangendo todos os seres capazes de sofrer dor ou dano em consequência
das ações de agentes morais (FELIPE, 2007, p. 72).44

Entretanto, partindo-se da constatação de que a maior parte dos seres vivos ameaçados
não sente dor nem sofre, outras teses em defesa dos pacientes morais humanos e não humanos
despontaram nas décadas de 80 e 90 do século XX ao julgar que o modelo ético tal como
proposto por Singer – e também por outros pensadores como Frankena e Warnock – não
correspondia à uma ética verdadeiramente ambiental.
Neste diapasão, a vertente utilitarista ou senciocêntrica da ética prática
contemporânea, que admite o ingresso na comunidade moral de todos os seres dotados de

42
“Pesadas, de forma equânime, todas as preferências envolvidas, se porventura descobríssemos que, ao matar
‘X’, aperfeiçoaríamos o balanço agregado de satisfação, estaríamos, então, autorizados a fazê-lo” [LOURENÇO,
Daniel Braga. Direito dos animais, op. cit., p. 382]. Em outras palavras, “se matar o agente em questão otimiza o
balanço coletivo, nada obstaria a que assim se agisse, não havendo que se cogitar de qualquer falha moral em tal
proceder. O ato de matar se torna facilmente justificável, ao contrário da intuição generalizada de que só poderia
ser feito em condições excepcionais” (LOURENÇO, 2008, p. 357).
43
“Não é suficiente que computemos de forma equânime os interesses dos cães e crianças, se, logo em seguida,
não os tratemos igualitariamente” (LOURENÇO, 2008, p. 386).
44
Acrescenta Sônia T. Felipe: “pelo menos não nos termos em que esses dois conceitos são compreendidos pelo
utilitarismo”.
52

sensibilidade e consciência é tida como limitada pela corrente biocêntrica, na medida em que
apenas expandiria o círculo da moralidade da racionalidade para a senciência. De modo
diverso, a ética biocêntrica45, também professando a teoria dos deveres diretos para com os
animais, defende, nas concepções de Kenneth E. Goodpaster, Tom Regan e Paul W. Taylor,
uma comunidade moral que não considere apenas os agentes morais – seres racionais capazes
de valorar o mal ou bem potencialmente causado por suas ações aos que serão afetados por
elas -, mas que leve em consideração igualmente os seres que podem ser afetados pelas ações
destes agentes ainda que não disponham de racionalidade (exigência moral tradicional), nem
de senciência (exigência moral utilitarista), bastando que sejam vulneráveis àquelas ações
(FELIPE, 2007). A perspectiva moral é delineada sob a ótica do paciente moral, enquanto
vulnerável às ações dos agentes morais, chegando-se ao conceito de bem próprio,
compreendido como um valor inerente à vida, como parâmetro para o ingresso na
comunidade de seres dignos de consideração moral (FELIPE, 2009).
Num primeiro momento, elaborando o artigo “On Being Morally Considerable”
(1978), Goodpaster se ocupa de responder ao questionamento acerca das entidades morais que
possuiriam algum grau de consideração moral46. Voltando-se ao contratualismo clássico, o
autor discorda que a posse da razão seria o critério mais acertado a fim de demonstrar a
vulnerabilidade ao dano de um ser vivo, porquanto que, na perspectiva do sujeito moral
paciente, o simples fato de estar vivo constituiria condição suficiente para a inclusão no
âmbito da comunidade moral. Assim, em resposta à indagação, Goodpaster assenta sua teoria
ética no conceito de bem próprio de cada espécie (“good of their own”) para a redefinição do
âmbito da comunidade moral e dos deveres morais humanos em relação a outras espécies de
vida, sustentando que “cada ser vivo possui um bem que lhe é próprio e a ética deve assegurar
aos agentes morais a clareza dessa noção, para que a vida humana seja orientada no sentido de
preservar esse bem dos outros seres vivos” (FELIPE, 2007, p. 74).
Em seguida, além de analisar a considerabilidade moral, faz-se necessário analisar
também a relevância moral dos seres vivos, atribuindo-lhes níveis de considerações morais de
acordo com os interesses que podem ser atingidos. Sônia T. Felipe esclarece que, “para além
de poder causar danos a interesses racionais ou a interesses psicológicos, um agente moral
pode causar danos a interesses não racionais e não sencientes” (FELIPE, 2007, p. 72-73),

45
“The common and crucial tenets of biocentrism are the following: (a) all living creatures have a good of their
own and, accordingly, have moral standing (that is, they warrant moral attention or consideration for their own
sake) and (b) their flourishing or attaining their good is intrinsically valuable” (ATTFIELD, 2013, p.97).
46
“To the question, which entities have moral considerability or standing? Goodpaster replies that it is those
with a good of their own and that this criterion extends to all living creatures, given the centrality of the concept
of beneficence in morality” (ATTFIELD, 2013, p.98).
53

havendo ainda outro tipo de interesse, presente em todo e qualquer ser vivo: os interesses
naturais, inerentes à vida. Afinal, “estar vivo já representa o estado de sujeição aos interesses
ligados à própria subsistência e sobrevivência” (FELIPE, 2007, p. 73). Acontece que, não
obstante o fato de a vida ser algo de valor considerável, não se submetendo a distinções de
espécie, para a preservação da mesma é imprescindível que seja estabelecida uma distinção
entre “coisas vivas” e “seres vivos”, posto que todas as espécies vivas se nutrem de algo vivo.
Do contrário, a vida seria impossível47.
Da diferenciação supramenciona, Goodpaster depreende que as coisas vivas não
possuem interesse em permanecer vivas, sendo constituídas por uma energia vital destituída
de qualquer outra finalidade que não seja estar vivo. Já os seres vivos que produzem coisas
vivas possuem uma força vital que os impulsiona a darem prosseguimento à vida, portando
uma espécie de interesse biológico continuado no tempo. Nesse sentido, “entre colher a maçã,
quando esta alcança o grau máximo de maturidade que precede sua decomposição, e cortar a
macieira, há uma distinção moral inegável” (FELIPE, 2007, p. 73). Da mesma forma, tal
pensamento pode ser transportado ao universo de animais e humanos que, por sua vez, têm
um tipo de vida na qual não apenas se apresentam os interesses naturais, como também os
psicológicos e racionais. Dito isso, Goodpaster esclarece que sua teoria ética alcançaria êxito
na medida em que garantisse que os agentes morais compreendessem o valor inerente de cada
ser vivo, para que a vida humana fosse orientada preservando o bem próprio dos outros seres
vivos – inclusive os destituídos dos atributos da razão e/ou senciência –, mesmo tendo que
mover-se para também prover-se, na forma específica humana de viver (FELIPE, 2007, p.
74).
Levando em consideração que (i) a expansão da comunidade moral por meio da
mudança de parâmetro da racionalidade para a senciência é limitada, deixando de fora o
enorme contingente de seres vivos destituídos de sensibilidade e consciência e (ii) “éticas de
gerenciamento da natureza não permitem redimensionar o valor dela para sujeitos agentes da
comunidade moral” (FELIPE, 2007, p. 74), Tom Regan esclarece que para uma ética
ambiental autêntica é preciso admitir que a classe dos seres que constituem a comunidade
moral é formada por seres dotados de razão, seres dotados de senciência e seres destituídos de
razão e de senciência. Mais ainda, ultrapassando o entendimento de Goodpaster, Regan

47
Goodpaster rejects this restriction [to restrict the bearers of interests and thus moral standing to sentient
creatures] while incorporating Feinberg’s understanding of interests into his biocentrism. But Goodpaster
carefully distinguishes his position from belief in the sentience of all life (for he rejects both this belief and the
view that sentience is necessary for moral standing) and equally from the view that all holders of moral standing,
sentient or nonsentient, have the same moral significance. On that basis, he suggests, life would be unlivable”
(ATTFIELD, 2013, p.98).
54

estende o apreço moral às “coisas vivas ou não”, isto é, ao ambiente natural que compõe as
paisagens e os ecossistemas48.
Regan constrói a sua ética em favor dos animais baseada no conceito de valor inerente
dos sujeitos morais, o qual deve ser diferenciado de valor intrínseco49 de suas experiências
“(isto é, seus prazeres e preferências), por aquele não ser redutível a valores deste tipo e por
ser incomensurável, diferentemente do valor intrínseco das experiências” (REGAN apud
CARDOSO, 2011, p. 3). Com efeito, aqueles agentes morais que desfrutam de uma vida mais
feliz e prazerosa não possuem mais valor inerente em comparação aos que vivem com menos
prazer ou felicidade. Em suas palavras, “todos os que possuem valor inerente o possuem
igualmente, sejam animais humanos ou não” (REGAN apud NOGUEIRA, 2012, p. 112). Dito
isso, o valor inerente corresponde ao valor que cada sujeito moral carrega em si e que possui
valor per se, não sendo redutível ao valor intrínseco de suas experiências nem podendo ser
possuído em maior ou menor grau. É igual para todos os seres que o possuem (“equal
inherent value”). Ainda, depurando-se do estigma das teorias utilitaristas, o autor afirma que
tal valor torna os sujeitos morais algo mais do que meros receptáculos do que tem valor
intrínseco50.
A respeito do valor inerente, Sônia T. Felipe leciona que Regan o utiliza como critério
para servir aos propósitos da expansão da comunidade moral humana, posto que a atribuição
de tal valor a um determinado ser vivo garantiria, simultaneamente, “a expansão dos limites
da comunidade moral humana para englobar seres de outras espécies, e a possibilidade de não
transformar tudo em uma e mesma coisa” (LOURENÇO, 2008, p. 425), ao oferecer um
critério para traçar a linha divisória entre pacientes morais – os quais podem ser prejudicados
em seu bem-estar e qualidade de vida por atos praticados por agentes morais – e pacientes
não morais – os que não podem sofrer prejuízos de atos de agentes morais, embora possam
48
Relevos, paisagens e elementos naturais não-vivos devem ser reconhecidos como dignos de consideração
moral, se estamos a falar de uma ética cujo centro não é o interesse humano em obter benefícios imediatos para
humanos” (FELIPE, 2007, p. 75]. Sobre isso, “Sônia Felipe afirma que o discurso dos direitos em Regan deve
ser utilizado ‘por uma questão de coerência, no mínimo, na defesa dos animais e, possivelmente, na defesa de
outras formas de vida (árvore, rios), sobre as quais o autor ainda não formula um princípio ético” (NOGUEIRA,
2012, p. 110).
49
O valor intrínseco “está ligado à concepção utilitarista, pela qual o indivíduo ‘cuja vida possui valor intrínseco
é capaz de diferenciar experiências de prazer e dor, de sentir bem estar ou mal-estar em decorrência das
mesmas’” (FELIPE apud LOURENÇO. 2008, p. 423). Entretanto, isto não é o bastante para se atribuir valor
inerente. “Nesse sentido, ‘estar vivo, ou poder ter experiências sensíveis, não são os dois únicos requisitos para o
estabelecimento do valor inerente de uma determinada vida, embora sejam pré-requisitos para a distinção entre
estar vivo e ter a vida [...]”. (FELIPE apud LOURENÇO. 2008, p. 423).
50
Nesse contexto, Regan utiliza a analogia do copo para se fazer entender, demonstrando a diferença entre
considerar um indivíduo como portador de valor inerente em si ou apenas como receptáculo de coisas com valor
intrínseco. “Na visão de receptáculo, tudo o que vai dentro do copo (prazeres, interesses, satisfações) é que
possui valor, mas o copo em si não tem valor algum. Já na visão do valor inerente dos indivíduos, não é o que
está contido no copo que lhe agrega valor, mas o copo tem valor em si” (CARDOSO, 2011)
55

estar vivos. Todavia, segundo Vânia Nogueira, o mais difícil é saber quais os tipos de seres
possuem valor inerente. Regan explica que os seres possuidores de valor inerente são aqueles
considerados sujeitos-de-uma-vida (NOGUEIRA, 2012)51. Nas palavras de Regan:

[...] os indivíduos são sujeito de uma vida quando eles são capazes de perceber e de
lembrar; quando eles possuem crenças, desejos e preferências; quando eles são
capazes de agir intencionalmente na busca de seus desejos e fins; quando eles têm
uma identidade psicológica que se mantém no tempo; e quando eles manifestam um
bem-estar individual derivando da experiência que é logicamente independente de
sua utilidade para os outros, como também dos interesses dos outros” (REGAN
apud RABENHORST, 2007, p. 225).

Pelo exposto, depreende-se que Regan defende a concepção segundo a qual nem todos
os seres vivos possuem valor inerente, de modo a torná-los inaptos a serem qualificados como
sujeitos-de-uma-vida. Nesse diapasão, pode-se afirmar que estariam excluídas do âmbito de
abrangência do referido conceito as células embrionárias, os tecidos vivos, as bactérias e os
vírus. Ademais, Regan também exclui expressamente grande variedade de animais, tais como
insetos, répteis, anfíbios e peixes. Dentre os mamíferos, em “The Case For Animal Rights” o
autor afirma que seria absolutamente plausível atribuir a qualidade de sujeitos-de-uma-vida a
todos com idade superior a um ano. “Posteriormente, em ‘Jaulas Vazias’, ao mesmo tempo
em que esclarece que mamíferos e pássaros podem se encaixar na sua teoria, adverte que
outros tipos de animais poderiam eventualmente reivindicar essa posição” (LOURENÇO,
2008, p. 438)52. Tratando-se de um conceito subjetivo, o que possibilitaria manipulação
quanto sua abrangência de acordo com os juízos morais particulares do autor, muitos
sustentam que “Regan estaria incidindo no mesmo especismo que tanto procura eliminar,
deixando de fora do escopo de sua teoria uma grande quantidade de criaturas” (LOURENÇO,
2008, p. 439).
Sem mais delongas, algumas dificuldades foram percebidas em sua teoria ética,
ensejando críticas merecedoras de breves considerações: (i) constata-se que o conceito
sujeito-de-uma-vida é tido por muitos como vago, impreciso e até mesmo misterioso, o que se
deve, em parte, pela introdução da “intuição” como elemento relevante para sua

51
“Regan propõe que todos os sujeitos-de-uma-vida, sejam eles humanos ou não, possuem valor inerente, e
como tais devem ser alvo de consideração moral independentemente das sensações de prazer ou dor”
(LOURENCO, 2008, p. 423). Ao mesmo tempo que assim afirma, Daniel Lourenço esclarece que Regan faz a
ressalva que “a satisfação do conceito de ‘sujeito-de-uma-vida’ não é condição necessária para que se possua
valor inerente e sim suficiente” (LOURENÇO, 2008, p. 427).
52
Discorrendo sobre o critério (posse de valor inerente) para a inclusão de indivíduos não humanos na
comunidade dos seres moralmente relevantes, Manuel Barradas observa que: “De facto, porquanto lhe é
requerido um elevadíssimo grau psicofísico, a vasta maioria dos organismos vivos não chega a ser alvo de
qualquer atenção moral, pelo menos directamente” (SILVA, 2009, p. 213).
56

caracterização (LOURENÇO, 2008); (ii) julgando insuficiente a declaração de Regan no


sentido de optar pela resolução caso a caso de eventuais conflitos de interesses entre direitos
animais e humanos, alguns afirmam que o autor deixaria de sinalizar caminhos para a
resolução dos mesmos (LOURENÇO, 2008); (iii) por fim, também não restou claro, na
opinião de muitos, os direitos específicos a que os animais fariam jus (além daquele
consistente no impedimento de serem tratados como meros meios) se sua exploração
institucionalizada fosse, de fato, abolida (LOURENÇO, 2008).
Por sua vez, Taylor é enfático quanto à necessidade de se levar em conta a perspectiva
dos pacientes morais, na condição de verdadeiros afetados por ações causadas pelos agentes
morais, com vistas a redefinir a ética no sentido de torná-la biocêntrica. A partir dessa ótica, o
autor reconhece seres vivos e ecossistemas naturais como o centro da preocupação moral de
sua teoria, pelo valor inerente que o bem que lhes é próprio tem para si53. Portanto, ainda que,
em parte, não manifestem consciência psicológica, plantas e animais têm um bem que lhes é
próprio, e pelo fato desse bem lhes poder ser tirado, são sujeitos morais pacientes (FELIPE,
2007) . Significa dizer que devem ser tratados com respeito para que suas vidas sejam
preservadas como um fim em si mesmas, para benefício deles, e não por servirem a qualquer
interesse humano. Aliás, a condição de paciência moral não é típica apenas de animais e
plantas, mas também seres humanos podem ser vistos nessa condição, a exemplo de bebês,
pessoas senis e deficientes mentais. Logo, a vulnerabilidade é tida como condição da
paciência moral comum a humanos e não humanos54.
Entretanto, se o critério adotado pela ética biocêntrica exige a universalidade, a
generalidade e a imparcialidade de juízo de valor, todas as vidas devem ser igualmente
consideradas no âmbito moral (FELIPE, 2007)55. A consequência disso é uma notável
dificuldade em estabelecer conciso critério para dirimir conflitos de interesse envolvendo
seres vivos de diferentes espécies ou mesmo de reinos distintos. Frente a tal questão
problemática, Taylor propõe que “seja aplicado o princípio da prioridade de interesses: auto-

53
“Taylor disowns both anthropocentric and holistic positions and advocates instead a life-centered ethic of
respect for nature in wich agents recognize that each living thing has a good of its own, the realization of wich is
intrinsically valuable (or worthy of being preserved or promoted) and is to be pursued for its own sake”
(ATTFIELD, 2013, p.98).
54
Assim, “Taylor propõe que ordenemos nossas decisões e ações, relativamente a animais e plantas ainda não
manejados pelos interesses humanos, com base em quatro regras ou princípios morais que têm caráter obrigante
para todos os agentes morais, a saber: a regra da não maleficência, a da não interferência (definidoras de deveres
negativos); a da fidelidade e a da justiça restitutiva (definidoras de deveres positivos)” (FELIPE, 2009, p. 16).
55
Respect for nature is comparable with and supplements a Kantian respect for persons. In Taylor’s version of
biocentrism, however, not only is human superiority denied, but each living thing is also held to be equally
worthy of respect, irrespective of differences of interests, and to have the same moral significance” (ATTFIELD,
2013, p.98).
57

defesa, proporcionalidade, mal menor, justiça distributiva e justiça restitutiva” (FELIPE,


2007, p. 77). Fora esses casos, todas as entidades vivas merecem igual consideração moral,
demandando a aplicação de um princípio moral objetivo para lidar com o conflito56. Não
obstante discordar das teorias utilitaristas, que sustentam o princípio ético da minimização da
dor e promoção do bem estar, para Attfield (2013) tudo indica que os princípios práticos
propostos por Taylor não oferecem solução satisfatória, haja vista que sua teoria sustenta
suposto “igualitarismo radical”57.

2.3.3 Notas sobre o Ecocentrismo

Questão interessante que merece destaque é a confusão conceitual que comumente é


visualizada no que tange as posições morais que marcam o discurso ecológico, que reside em
identificar a vertente filosófica denominada de Econcentrismo com as teorias de cunho
biocêntrico, dentre as quais se destaca o Direito dos Animais. Pois bem, no ecocentrismo, de
tipo holista, a ética do meio ambiente é articulada em geral, na qual os animais contam
moralmente apenas como membros da comunidade biótica (COLTRO; FERREIRA, 2011).
Dito de outra forma, o “valor moral é medido pelo agir humano voltado a proporcionar a
homeostase ecossistêmica (equilíbrio dinâmico dos fluxos vitais)” (LOURENÇO;
OLIVEIRA, 2013, p. 193), de modo que o valor de cada espécie, e até mesmo de cada
indivíduo, passa a ser compreendido em função do seu papel para o bom funcionamento do
sistema ao qual pertencem. A título de exemplo, para Aldo Leopold, pai da denominada ética
da terra, o que importa é a estabilidade, a integridade e a beleza da comunidade biótica
(LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013)58.

56
“Each party to the conflict is acknowledged as making a legitimate demand for consideration, and settling the
conflict becomes an ethical issue to be dealt with by appeal to objective moral principles” (TAYLOR apud
FELIPE, 2007, p. 80).
57
“In that work [Respect for Nature: A Theory of Environmental Ethics (1986)] he presents defensible practical
principles that recognize tha human needs have to be satisfied. But these principles are difficuld to reconcile with
– or to derive from – his interspecies egalitarianism. A consistent and operational biocentric ethical system
probably has to recognize, as Goodpaster does, differences of moral significance among the beares of moral
standing, something that is unattainable in Taylor’s radical egualitarianism” (ATTFIEL, 2013, p.98-99).
58
Outro exemplo, ”J. Baird Callicott sustenta uma concepção holística da realidade e do valor: o mundo natural
(ou comunidade biótica) é um sistema unificado de partes organicamente ligadas e não uma coleção de seres
isolados que perseguem individualmente seu bem. Deve-se avaliar de forma diferencial cada ser vivo (ou classe
de seres vivos?) em função de sua contribuição à beleza, à estabilidade e à integridade dessa comunidade
biótica” (COLTRO; FERREIRA, 2011, p. 79).
58

Por oportuno, reporta-se à crítica delineada por Eric Katz acerca do valor instrumental
dos seres vivos em função dos sistemas ecológicos, pois, tendo em vista que tal modelo
enfatiza o valor reflexo dos indivíduos em relação ao todo, consequentemente, inaugura-se a
uma questão moral sobre serem eles eventualmente descartáveis, restando configurado o
problema da substituição. Explica-se: partindo da premissa de que uma entidade é
considerada valiosa apenas por seu papel dentro do sistema, pode-se induzir ao raciocínio que,
conquanto que o sistema não seja prejudicado em sua integralidade, estabilidade e beleza,
esta pode ser substituída ou destruída sem perda de valor (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013).
Tão quanto o sistema seja mantido, o valor inerente de indivíduos particulares é irrelevante59.
A esse propósito, considere-se o exemplo paradigmático da “caça terapêutica”. À custa da
vida e também, dependendo da pontaria do atirador, do sofrimento de alguns animais
“excedentes”, esta medida de gestão ambiental intenta evitar que o excesso populacional de
certas espécies degrade irreparavelmente os ecossistemas que integram e também assegurar o
bem estar dos indivíduos que pertencem a essa espécie, repondo suas populações dentro dos
limites da sustentabilidade60.
Sem alongar, dentro do Ecocentrismo, vislumbra-se a Deep Ecology – termo cunhado
por Arne Naess em 1972 -, corrente que oferece oposição à Ecologia Rasa, esta entendida
como antropocêntrica. “É lugar comum, entre os ecocêntricos, a assertativa de que todo ser,
animais, plantas, inclusive entes inanimados (montanhas), possuem valor intrínseco, isto é,
valor em si, por si mesmo” (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 189). Entretanto, recorrendo
às indagações de Daniel Lourenço e Fábio de Oliveira, “qual a consequência de reconhecer
valor inerente a um ser, seja humano, animal ou não humano, planta ou um rio?”
(LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 189)61. Mais ainda, tendo em vista que Naess emprega a
palavra direito para seres não humanos individualmente considerados (para além dos
ecossistemas), “qual a procedência de afirmar que um pinheiro tem direito à vida quando se
admite poder cortá-lo para fazer objetos de decoração?” (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p.

59
Esta linha argumentativa levou a que Tom Regan caracterizasse as posições ambientalistas ecocêntricas de
fascistas, justamente por violarem “o valor moral inerente dos indivíduos, que podem, em razão da sua atuação
para o todo, tornarem-se descartáveis (eliminados ou substituídos)” (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 194). A
questão é abordada com brilhantismo por Manuel Barradas: “Nesta interpretação de prioridades, os organismos
individuais surgem apenas como merecedores secundários de apreço moral que devemos ter relativamente ao
sistema total que os cria e mantém. Deste modo, aqueles que defendem o holismo ambiental não hesitam em
aprovar práticas lesivas para os indivíduos não-humanos sempre que tal se prove vantajoso para a integridade e
estabilidade de ecossistemas em risco ou para salvar uma qualquer espécie animal ou vegetal em extinção”
(SILVA, 2009, p. 320).
60
“A questão da legitimidade moral da caça terapêutica encontra-se no epicentro de uma acesa troca de
acusações que envolve Regan e John Baird Callicott” (SILVA, 2009, p. 321).
61
Convém esclarecer que o termo utilizado aqui não se apresenta em consonância com o sentido emprestado por
Tom Regan que diferencia valor intrínseco de valor inerente.
59

190). Será que “há sentido em dizer que um cão possui direito à sua integridade física (ao seu
corpo) quando se aceita instrumentalizá-lo (cobaia) nas salas da ciência em prol de interesses
humanos?” (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013, p. 190). Em verdade, a Deep Ecology não
convence ao pretender romper com a tradição antropocêntrica.
Nas palavras de Fábio de Oliveira:

É mais palatável para o gosto geral dizer que os Andes têm direito à manutenção do
seu ecossistema, da sua biodiversidade, do que dizer que os animais têm direito à
liberdade e por isto não podem ser trancafiados em gaiolas ou jaulas. É mais fácil ser
contra a mercantilização da natureza, a privatização da água, do que ser contra a
comercialização de animais (uma das atividades mais rentáveis do mundo), do que
defender que animais não são propriedades. É menos problemático sustentar que o
Rio São Francisco não deve ser contaminado do que sustentar que os animais não
devem sofrer experimentações, vivissecção, ainda que tais experimentos tragam
proveito para demandas humanas. Com menor resistência se depara a assertiva de
que não se deve derrubar mais árvores de pau-brasil do que a assertiva de que não se
deve continuar a matar animais para alimentação, salvo estado de necessidade. Mais
provável convencer de que é preciso proteger os ursos pandas em função da ameaça
de extinção do que convencer a não matar frangos ou porcos, multiplicados e criados
aos milhares para comida. (OLIVEIRA apud MACHADO; POKER. 2013).

Portanto, a Ética dos Animais, entendida por alguns autores como vertente do
biocentrismo62, não enxerga com credulidade à atribuição de interesses a entes que não sejam
indivíduos, a exemplo de ecossistemas, a biosfera, a comunidade biótica ou a terra (no sentido
leopoldiano), que não são tidos como entidades subjetivas, intencionais. Por essa via, a
posição animalista defende a tese de que os animais (ao menos os sencientes) contam
moralmente como titulares de interesses específicos que estão relacionados ao seu próprio
bem-estar experimental e à sua vida. Diferentemente dos ecossistemas ou ambientes naturais,
os animais, individualmente considerados, possuem uma subjetividade própria de ser e de
estar no mundo (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2013).

62
“Characteristically, biocentrists locate moral standing in individual creatures rather than in systems, as holists
do; biocentrists respect systems not in themselves but only insofar as they protect or make possible the lives (or
the flourishing lives) within them; they view such systems in much the same way that most people regard
lifeboats” (ATTFIELD, 2013, p.97).
60

3 OS ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

O direito é, ao mesmo tempo, determinante e impotente. Quem o fez pode a


qualquer momento desfazê-lo [...] O direito, por si só, não poderia criar uma
civilização, assim como o juiz não pode tornar-se à sua revelia, o padre taumaturgo
da modernidade, encarregado de definir, por nós, a diferença entre o Bem e o Mal
(GUILLEBAUD, 2003, p. 23-24).

3.1 DIREITOS DO HOMEM E DIREITOS DOS ANIMAIS

Por todo o exposto no capítulo anterior, resta incontroversa a relevância da abordagem


ética para a legitimidade dos Direitos dos Animais. A degradação do meio ambiente e a
condenação do tratamento cruel e injusto conferido aos animais impulsionaram ao
pensamento contemporâneo a necessidade de repensar as bases tradicionais da ética,
notadamente no que concerne à definição daquilo que recebe o nome de comunidade moral. É
lugar comum a crença de que é moralmente condenável causar danos injustificados aos
animais, de modo que uma teoria das obrigações indiretas não é capaz de justificar com
primazia tal pensamento. Os pacientes morais também podem ter a experiência de um bem
estar suscetível de ser alterado negativamente, podendo sofrer um dano direto, contrariamente
à afirmação central da teoria tradicional. Em consequência dessa análise, a maneira como os
seres humanos tratam os pacientes morais que são os animais é, na maior parte do tempo,
radicalmente imoral (COLTRO; FERREIRA, 2011). Em verdade, ainda que as teorias
modernas divirjam acerca da justificativa exata que reveste os limites moralmente delineados
do tratamento conferido aos animais, todas elas se direcionam ao reconhecimento de um valor
próprio, intrínseco, a ser atribuído, ao menos, àqueles seres sencientes.
Com efeito, o pensamento propagado pela ética antropocêntrica – que restringe
deveras o âmbito da comunidade moral, atribuindo ao homem uma centralidade absoluta - não
se mantém soberano. O mínimo que se pode dizer é que as concepções tradicionais do
tratamento ético animal foram radicalmente questionadas. De fato, muitas correntes se
insurgem propondo a ampliação da comunidade moral, de maneira a incluir os animais ou até
mesmo o conjunto da natureza. Também na esfera jurídica, tal contestação se faz presente de
forma cada vez mais intensa, relacionando a inclusão dos animais no âmbito da moralidade
61

humana com a própria fundamentação dos direitos humanos. Em última instância, a análise da
titularidade de “direitos morais” conduz ao reconhecimento da própria condição de sujeito de
direito, corroborada por importantes teorias jurídicas. É o que se passa a demonstrar.
Segundo Daniel Lourenço e Fábio de Oliveira, na dimensão da espécie humana é feita
a seguinte associação: valor intrínseco – dignidade – direitos (LOURENÇO; OLIVEIRA,
2013). Os direitos humanos são “direitos legais” na medida em que são consignados em
preceitos reconhecidos por uma ordem jurídica nacional ou internacional, correspondendo,
assim, a determinadas previsões legais. Contudo, os direitos humanos são também “direitos
morais”63, “direito naturais” ou “direitos extralegais”, pelo fato de atribuírem aos indivíduos
ampla diversidade de pretensões que independem da existência de determinações jurídicas
específicas. À primeira vista a expressão “direitos morais” pode parecer contraditória, mas ela
pretende destacar um aspecto fundamental, qual seja, “o de que os direitos humanos não são
simples instrumentos jurídicos, mas representam, antes de tudo, uma tentativa de se atribuir
força jurídica à convicção de que o homem é portador de direitos que fazem referência à sua
qualidade moral” (RABENHORST, 2007, p. 211), pela importância intrínseca que carrega.
Em verdade, sob uma perspectiva jusnaturalista, com fulcro nos ensinamentos do
professor italiano Francesco D’Agostino, os direitos do homem não são em princípio
positivos64, a não ser que sejam reconhecidos e positivados em documentos jurídicos, tal
como a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, publicada em 26 de agosto de 1789,
na aurora da Revolução Francesa. Nesse sentido, o fato de não serem meros frutos da vontade
de governos ou Estados não anula sua importância jurídica, pois estes são pressupostos de
qualquer direito positivo. Eles não nascem do Estado, pois este é que deve surgir e se
estruturar para reconhecê-los e protegê-los, como é expresso no artigo 2º do documento
supramencionado: “O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos
naturais, a segurança e a resistência à opressão”. Ademais, a Declaração traz a noção de
sujeito de direito, que estudos recentes apontam como uma das principais consequências do
jusnaturalismo moderno, desenvolvido nos séculos XVII e XVIII. Em suma, o jusnaturalismo

63
Sobre o caráter moral dos direitos humanos, tem-se que “consiste no fato de estes serem preposições
justificatórias que tem por função questionar leis, instituições, medidas ou ações, independentemente de sua
fixação por uma autoridade ou por uma convenção. Aliás, é justamente por eles não se identificarem
necessariamente com direito que surgem de normas de direito positivo que eles são capazes de conferir
legitimidade a uma determinada ordem jurídica estatal” (WEYNE, 2009, p. 8).
64
Bruno Amaro Lacerda defende que “o jusnaturalismo, como teoria jurídica, transformou-se na teoria dos
direitos humanos. Estes constituem hoje uma nomenclatura nova para os antigos ‘direitos do homem’ ou
‘direitos naturais’, declarados em documentos solenes a partir do século XVIII. A ideia jusnaturalista, assim, não
se modificou substancialmente, apenas recebeu uma nova roupagem” (LACERDA, 2011, p. 105).
62

moderno compreende o homem como um ser cuja dignidade65 vem do fato de possuir direitos
por sua própria natureza. Nas lições de Yves Charles Zarka (apud LACERDA, 2011, p. 107),
se tal “definição do homem como ser de direito não é atemporal, ela foi inventada pela
filosofia moral e política moderna, da qual ela constitui uma das principais inovações”.
Em meio a uma abordagem de perspectiva histórico-cultural do Direito, convém citar
Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer que, reportando-se aos ensinamentos de Noberto
Bobbio quando, ao refletir sobre a trajetória histórica dos direitos humanos, especificamente
no que tange à passagem dos direitos de liberdade para os direitos políticos e sociais, lembram
que:

[...] ocorreu um deslocamento do foco centrado no indivíduo (uti singulus), na


condição de primeiro sujeito ao qual foram atribuídos direitos naturais (ou morais),
para sujeitos diferentes do indivíduo como, por exemplo, as minorias étnicas e
religiosas, e também, mais recentemente, a humanidade considerada em seu
conjunto, o que se dá em razão da necessidade de considerar os direitos das gerações
humanas futuras. O jurista italiano ressalta, ainda, que o reconhecimento de direitos
pode ser concebido para além de indivíduos humanos considerados singularmente
ou comunitariamente, ou seja, para sujeitos diferentes do ser humano, como os
animais. Tais ‘direitos da natureza’, impulsionados pelos movimentos ecológicos,
postulam as mesmas palavras (‘respeito’ e ‘não-exploração’) utilizadas
tradicionalmente na definição e justificação dos direitos humanos (SARLET;
FENSTERSEIFER, 2009, p. 20-21).

Nesse diapasão, e evidentemente passível de discussão, Tom Regan, apoiando-se em


John Stuart Mill e em Joel Feinberg, sustenta que os “direitos morais”, ainda que não
positivados, produzem consequências em relação ao seu titular, posto que a um possuidor de
dado direito é garantido, de forma direta e autônoma, tratamento específico a ele
correspondente. Com isso, os agentes e pacientes morais têm direito a tratamento digno, haja
vista possuírem valor inerente. Tal direito implica na vedação que estes sejam tidos como
meros “receptáculos” de valores, como advogado pelos utilitaristas e também que sirvam de
instrumento, meio ou recurso à consecução de fins humanos diversos, sendo concebidos como
fins em si mesmos. Avançando, do direito a um tratamento digno advém o “princípio da
lesão” (“harm principle”) – conhecido em sua faceta negativa como o direito individual
básico de não ser lesionado –, o “princípio da liberdade” (“liberty principle”), entre outros.
Nesse contexto, o direito mais fundamental a ser legado a um indivíduo é o de ser tratado com

65
Tem-se por dignidade humana “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,
um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria
existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2009, p. 11).
63

respeito (“princípio do respeito” ou “respect principle”)66. Todos os demais direitos provêm


da aceitação desse princípio deontológico central. Outro ponto importante a ser enaltecido é
que os direitos morais estão imbuídos do sentido de igualdade, pois são os mesmos para todos
os que os têm, ainda que todos sejam diferentes uns dos outros em muitos aspectos67.
No capítulo anterior, demonstrou-se que Kenneth E. Goodpaster, Tom Regan e Paul
W. Taylor defendem que a perspectiva moral seja delineada sob a ótica do paciente moral,
enquanto vulnerável às ações dos agentes morais, chegando-se ao conceito de bem próprio,
compreendido como valor inerente, como parâmetro para o ingresso na comunidade moral.
Em seguida, construindo sua ética em favor dos animais com base no valor inerente, Regan
conclui que aos sujeitos morais humanos e não humanos são atribuídos “direitos morais”. E,
contrastando tal entendimento com a compreensão que os “direitos humanos” nada mais são
do que “direitos morais”, o autor propõe a extensão desses direitos aos animais, uma vez que
no campo moral, a positivação de direitos não é pré-requisito (DUTRA, 2005). Como bem
elucida Gabriela Dias de Oliveira, “no trabalho intelectual por ele [Regan] empreendido, não
está em jogo apenas a inclusão dos animais no âmbito da moralidade humana, através do
redimensionamento das relações entre animais e não humanos, mas a própria fundamentação
dos direitos humanos” (LOURENÇO, 2008, p. 430-431). De fato, compreender os direitos
humanos é fundamental para compreendermos os direitos dos animais. Explica-se:

[...] Ao chamar a atenção dos filósofos para o fato de que os direitos humanos
fundamentais independem de quaisquer performances ou desempenhos individuais,
Regan insiste em lembrar que aos humanos gravemente atingidos por lesões
neurológicas, que os impedem de realizar com autonomia as mais simples atividades
físicas e ou mentais, são atribuídos direitos humanos básicos, sem os quais estariam
à mercê da negligência, abandono, maus tratos e, pois, da dor, do sofrimento, e da
morte violenta. Nesse sentido, e distinguindo-se de utilitaristas e contratualistas,
Regan não considera que o sujeito de um direito moral deva ser um sujeito de
interesses para que possa entrar no âmbito da moralidade, como o requer a teoria de
Singer, por exemplo [...]. Antes de poder desenvolver as capacidades que o
habilitam a ser um sujeito de interesses, o ser humano já deverá estar sendo

66
Regan introduz em sua argumentação o ‘princípio do respeito’ (‘respect principle’) ao valor inerente dos
indivíduos que, por serem ‘sujeitos-de-uma-vida’ não podem ser tratados como meios para se alcançar a
finalidade de maximizar consequências agregadas desejáveis. Sua construção afasta-se, neste sentido, das
postulações kantianas, pois fornece critérios racionais de conexão entre agentes e pacientes morais, o que faz
nascer o dever dos agentes em relação aos pacientes e, simultaneamente, o direito dos últimos em relação aos
primeiros (Lourenço, 2008, p. 429).
“Invocar nossos direitos é diferente de pedir um favor. Tratamento respeitoso é algo que nos é devido. Quando
falamos a linguagem dos direitos, estamos exigindo algo, e o que estamos exigindo é justiça, não generosidade;
respeito, não favor. Fazemos tais exigências não apenas em nosso próprio nome; nós a fazemos também em
nome daqueles que não têm o poder ou o conhecimento para fazê-las por si mesmos. No universo moral, nada é
mais importante do que nosso direito de sermos tratados com respeito” (REGAN apud DUTRA, 2005, p. 944).
67
“Assim, segundo Regan, os direitos morais devem ser entendidos como barreiras protetivas, as quais têm o
propósito de coibir a desconsideração de interesses, criando um estado de unidade ética pautada pelas noções de
igualdade e respeito” (LOURENÇO, 2008, p. 429).
64

amparado pelos direitos humanos, sob pena de não alcançar os meios para tornar-se
efetivamente humano e feliz. Assim, não se exige dos indivíduos humanos quaisquer
dotes ou habilidades específicas para que sejam considerados pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem, do mesmo modo, não se pode exigir que os
animais apresentem determinadas performances para que sejam considerados dignos
de tratamento respeitoso” (FELIPE apud LOURENÇO, 2008, p. 431).

Acontece que, tratando-se de animais não humanos, a associação comumente


verificada é outra: valor intrínseco – ausência de dignidade – ausência de direitos. Conforme
explica Daniel Lourenço, a contradição é clara: “se os direitos humanos podem efetivamente
ser fundamentados sob o postulado de valor inerente dos indivíduos, não há como se justificar
a exclusão dos animais não humanos, a não ser por uma flagrante e especista violação do
princípio do respeito (quebra da coerência)” (LOURENÇO, 2008, p. 431-432). Em outras
palavras, o que se critica é que enquanto se atribuem direitos humanos básicos a seres
humanos não paradigmáticos, os animais não humanos não gozam sequer de tratamento
respeitoso, a despeito de ambos possuírem valor inerente. Fato que comprova a utilização de
diferente critério para se justificar a inclusão de uns e a exclusão de outros, muito embora se
tratem de indivíduos que são similares em aspectos fundamentais. Portanto, somente se forem
aceitos os critérios de inclusão animal, podem ser legitimados os direitos humanos sob a
mesma fundamentação, evitando-se o problema dos “casos marginais”.
James Rachels tem razão ao afirmar que o denominador comum é a capacidade de
sentir dor e, se um indivíduo possui determinada característica, então deve ser tratado de certa
forma (não podemos torturá-lo) mesmo que esse indivíduo não possua outras características
(como a autonomia ou autoconsciência). Nesse sentido, um ser senciente possui uma demanda
moral em não ser torturado. Parece razoável pensar que o fato de o indivíduo além de
senciente, ser autônomo ou autoconsciente apenas teria o condão de aumentar a esfera de
deveres morais para com ele68. Portanto, por razão de coerência, negar o direito ao tratamento
respeitoso a estes animais seria equivalente a negar o estatuto moral dos seres humanos que se
encontrariam na situação dos “casos marginais”. Mais ainda, defende-se que os animais são
titulares de direitos morais fundamentais, como o direito à vida, o direito à liberdade e o
direito à integridade física, de modo que a violação desses direitos deve ser combatida da
mesma forma que fazemos com as transgressões aos direitos humanos.

68
Nesse sentido, Rachels afirma que “por mais complexas que determinadas características sejam, tais como
autonomia, autoconsciência, entre outras, elas não constituem ‘super-qualidades’ éticas. Argumenta que a
capacidade de sentir dor talvez seja o denominador comum mais relevante entre todas essas características (...).
‘Se perguntado a quem seria apropriado endereçar consideração moral fundamental poderíamos responder que
seria apropriado direcionar consideração moral a qualquer indivíduo que possui qualquer das características que
constituem boas razões para que ele seja tratado desse ou daquele modo’” (LOURENÇO, 2008, p. 452).
65

Por fim, convém destacar que as garantias jurídicas de proteção aos direitos dos
animais, a serem aprofundadas no tópico seguinte, devem ser vistas sob a perspectiva de
constituírem verdadeiros instrumentos de alargamento moral dos seres humanos e não de
diminuição ou de restrição da dignidade destes (LOURENÇO, 2008, p. 495). Sob tal
perspectiva, válida a referência feita por Fernando Levai à ressalva de Alvino Moser:

Muitos ao ouvirem falar de ética dos animais ou de direitos dos animais mostram
espécie de estranheza, pois o discurso ético traz consigo uma ressonância histórica
de imposição e de coação que seria do domínio exclusivamente histórico. [...]
quando se reflete sobre o estatuto ético dos animais não se está negando o estatuto
ético do homem, ao contrário, é aquele a pedra de toque para este (MOSER apud
LOURENÇO, 2008, p. 414)69.

3.2 A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

O direito positivo brasileiro, inspirado na doutrina romana clássica, trata os animais,


em regra, sob a ótica privatista, o que se pode perceber facilmente pelo uso das expressões
“coisas”, “semoventes”, “produtos”, “propriedade”, “recursos” ou “bens”, muito embora seja
do conhecimento de todas as suas condições de seres vivos dotados de senciência e
movimento próprio. Quanto aos animais domésticos e domesticados, a lei civil os classifica
como “bens semoventes”, conforme disposto no art. 82 do Código Civil: “São móveis os bens
suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da
substância ou da destinação econômico-social”70. Já os animais silvestres são tidos como
propriedade da União, considerados “bens de uso comum do povo” e, por constituírem a
fauna silvestre, são tutelados por leis ambientais, como a Lei n° 5.197/67 (Lei de Proteção à
Fauna) que prevê em seu art. 1º que os animais de quaisquer espécies, que estejam em
“qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, (...) bem

69
Em consonância com o entendimento ora exarado, Daniel Lourenço (2008, p. 532) discorre que, na verdade,
“trata-se de uma questão de moralidade e não de mero benefício. O que se deseja é incrementar o status moral
dos animais e, não, de diminuir o dos seres humanos, em um movimento que, ao aumentar o respeito pela vida,
fortaleça também as bases para o respeito pela vida humana. Como diria acertadamente Singer [...]: ‘ a única
posição irremediavelmente especista é a que tenta fazer a fronteira do direito à vida correr exatamente paralela à
fronteira de nossa própria espécie’”.
70
Além do dispositivo citado, “o art. 936 do Código Civil, ao dispor sobre a responsabilidade civil do ‘dono, ou
detentor do animal’ também traz, insita, a ideia de que são objetos do direito de propriedade. Corroborando esse
posicionamento, o art. 1.445 do mesmo diploma legal estabelece que os animais ‘podem ser objeto de penhor’ (o
penhor, em regra, só incide sobre bens móveis)” (LOURENÇO, 2008, p. 483).
66

como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a
sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”, e a Lei n° 6.938/81, que trata da
Política Nacional do Meio Ambiente, encapando essa visão instrumental, em seu art. 3º, V, ao
incluir a fauna como “recurso ambiental”.
Dessa forma, como explica Daniel Lourenço (2008, p. 483), ao contrariar “uma
realidade biológica inexorável, a retificação jurídica dos animais determinou a inexistência de
uma fronteira nítida a divisar os seres vivos não humanos dos objetos inanimados”. Na
condição de coisas, os animais são tidos como meros objetos de direito, suscetíveis de
apropriação e ampla fruição do homem – isto é, de incidência do direito de propriedade. O
próprio conceito jurídico de propriedade possui conotação estritamente econômica, uma vez
que se encontra ligado à ideia de domínio e exploração71. Sobre isso, Immanuel Kant, em sua
obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, expõe que as coisas diferem das pessoas
na medida em que a natureza destas as designa como fins em si mesmos, sendo possuidoras
de dignidade e valor absoluto, enquanto que aquelas, por serem destinadas ao comércio ou à
satisfação das pessoas, teriam apenas preço ou valor relativo72.
Outrossim, cumpre ressaltar que a exegese clássica das normas de proteção aos
animais existentes não reconhece, em absoluto, valoração intrínseca aos animais, e o que
acaba justificando a proteção da fauna, para o legislador ambiental, não é o direito à vida ou
ao bem-estar que cada animal deveria ter assegurado em face de sua individualidade, mas a
garantia da manutenção da biodiversidade ou da proteção da própria humanidade, evitando
seu embrutecimento com os atos de abuso e crueldade impetrados contra os animais (visão

71
De acordo com Gary L. Francione, “o status de animais como objetos do direito de propriedade não é algo
novo. O próprio vocabulário pecúnia, com que hoje se denomina a unidade monetária, tem origem no latim
pecus, termo que significava gado. Em espanhol, a palavra para designar dinheiro é ganaderia, e a palavra para
gado é ganado. Em inglês, cattle (gado) vem da mesma raiz da palavra capital. A sinonímia continua em muitas
línguas, valendo concluir que é um indicador segura de que quase sempre tivemos em mente os animais como
unidade de troca, nada mais” (LOURENÇO, Daniel. P. 453).
“Uma rápida releitura do revogado Código Civil de 1916 (...) deixará claro que o mesmo reflete uma posição
predominantemente privatista do direito civil, preocupando-se em proteger o direito de propriedade em função
do interesse econômico que ela representa para o proprietário. O aspecto econômico-utilitário também se faz
perceber com nitidez nas leis ambientais das décadas de 50 a 80, a que Marcelo Abelha denomina de fase
sanitarista do Direito Ambiental, tendo em vista a colocação da proteção da saúde humana ao lado da proteção à
propriedade. Esse ranço utilitarista permeia até os dias de hoje a interpretação dos dispositivos ambientais”
(LOURENÇO, 2008, p. 326-327).
72
“No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Uma coisa que tem um preço pode ser substituída
por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que
não admite equivalente, é o que tem uma dignidade” (KANT, 1964, p.32). Complementam Giovana B. Poker e
Edinilson Donisete Machado (2013) que “o ser racional, a pessoa humana, teria assim, valor absoluto em si
mesmo, sendo possuidor de direitos subjetivos e fundamentais assegurados pelo Estado. Enquanto os animais,
como não possuem valor absoluto, têm assegurados apenas os direitos que lhe são conferidos pelo homem, ou
seja, possuem apenas o direito de estarem aptos e em bom estado para servir ao seu fim, qual seja, a satisfação
das pessoas”.
67

“indireta”)73. Sob igual perspectiva, Washington de Barros Monteiro também pontifica que o
direito é constituído hominum causa74, isto é, ele não existe senão entre homens, o que
justificaria a exclusão dos animais de seu raio de ação. É bem verdade que leis de proteção
aos animais existem. Todavia, nem por isso eles se tornam sujeitos de direitos:

Como dizem RUGGIERO-MAROI, os animais são tomados em consideração


apenas para fins sociais, pela necessidade de se elevar o sentimento humano,
evitando-se o espetáculo degradante de perversa brutalidade. Nem se pode dizer
igualmente que os animais tenham semidireitos ou sejam semipessoas, como quer
PAUL JANET (MONTEIRO apud LOURENÇO, 2008, p. 483).

De acordo com esse posicionamento, Daniel Lourenço conclui que seria inviável
considerar os animais como titulares de direitos subjetivos, seja na qualidade de “sujeitos de
direitos”, seja na qualidade de “pessoas”. A interpretação tradicional do art. 1º do Código
Civil confirma tal entendimento ao trazer como conceito formal de pessoa o de ente “capaz de
direitos e deveres na ordem civil”. Entretanto, não é difícil constatar que essa interpretação
padece dos mesmos vícios antropocêntricos que vêm sendo objetos de refutação, posto que “a
reprodução, mecânica e irrefletiva, da visão de animais como coisas carece de qualquer
compromisso com a realidade física e biológica dos seres sencientes, não devendo mais
prosperar” (LOURENÇO, 2008, p. 484). Em verdade, a teoria tridimensional do direito
desenvolvida originalmente por Miguel Reale esclarece que os juristas devem atentar que
fatos, valores e normas coexistem, “levando-se em consideração os três elementos para a
interpretação de uma norma ou regra de direito e sua aplicabilidade, e não apenas um dos
elementos, sob pena de serem injustos, ignorarem um fato ou não atenderem a uma norma
vigente e válida” (MARTINS apud LOURENÇO, 2008, p. 514). Logo, é também sob esse
prisma que se afirma que os animais têm direitos.
Nessa linha, ultrapassando-se o entendimento tradicional da doutrina civilista,
inspirada no direito romano clássico, sustenta-se que as normas protetivas dos animais
individualmente considerados e da fauna devem ser interpretadas como concessão de efetivos

73
Neste exato ponto, Daniel Lourenço (2008, p. 331) tece uma crítica à doutrina estritamente antropocêntrica
que leva a que muitos autores postulem, nos moldes dos “deveres indiretos”, “que a vedação constitucional e
infra-constitucional da crueldade contra os animais [...] destine-se à proteção ‘físico-psíquica’ dos próprios seres
humanos, entendidos no aspecto coletivo. A ‘ginástica intelectual’ é gigantesca para se chegar a tal conclusão.
Como verificado, é fato que a coletividade e o próprio ser humano sejam, de fato, ofendidos em sua dignidade e
em seu sentimento comum de simpatia para com os animais pela crueldade para com eles; entretanto, não tem o
mesmo cabimento defender que só por esse motivo o sujeito passivo de uma lesão dessa ordem seja o homem e
não o animal”.
74
Tal tendência jurídica reitera, “‘após dois mil anos, a sentença de Hermogeniano – ‘omne ius hominum causa
constitutum est’. Constituído por causa do homem, centraliza este todos os cuidados do ordenamento jurídico e
requer a atenção do pensamento contemporâneo” (PEREIRA apud LACERDA, 2012, p. 42).
68

direitos subjetivos aos animais. É bem verdade que já é possível constatar essa visão ao
proceder à análise cautelosa de alguns dispositivos legais. Por exemplo, o art. 1º, III, da Lei n°
9.433/97, que disciplina a Política Nacional de Recursos Hídricos, estabelece o dever de
dessedentação de animais em situações de escassez (“em situações de escassez, o uso
prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais”). Dito de
outra forma, “não possuiriam os animais o direito subjetivo ao acesso à água, ou teremos que
fazer a enorme ‘ginástica’ retórica para concluir que este acesso só lhes é garantido no
interesse de proteção do valor econômico da propriedade que, em última análise,
corporificam?” (LOURENÇO, 2008, p. 484). No mesmo sentido, os próprios dispositivos
legais de caráter protetivo – tal como o art. 32 da Lei n° 9.605/98, que trata da criminalização
de maus-tratos cometidos contra os animais75 – devem ser interpretados no sentido de
tutelarem autonomamente os interesses dos próprios animais e não outros interesses
meramente reflexos76.
Ao discorrer sobre a superação do paradigma jurídico antropocêntrico clássico e o
reconhecimento da dignidade do animal não humano e da vida em geral no âmbito jurídico-
constitucional brasileiro, Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer concedem especial atenção à
necessidade ética e jurídica de “se perguntar se a tutela do meio natural não pode se dar de
forma autônoma, com o reconhecimento de uma dignidade à vida não humana e aos animais”
(SARLET; FENSTERSEIFER, 2009, p. 20). Afinal, se a dignidade consiste em “um valor
próprio e distintivo que nós atribuímos à determinada manifestação existencial – no caso da
dignidade da pessoa humana, a nós mesmos – é possível o reconhecimento do valor
‘dignidade’ como inerente a outras formas de vida não humanas” (SARLET;

75
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1° Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência
dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos
alternativos. § 2° A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal”. Roberto Delmanto,
Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto (apud LOURENÇO, 2008, p. 332-333) asseveram
que: “O objetivo deste art. 32 é tutelar a própria integridade física dos animais. Este tipo penal, voltado
exclusivamente para a proteção dos animais, demonstra que o nosso legislador não adotou, de modo exclusivo, a
teoria do antropocentrismo (a qual coloca o homem como centro do universo e razão única da tutela penal do
meio ambiente). [...] Não se pode falar, portanto, que as leis ambientais preocupam-se tão somente com o ser
humano, sendo em alguns casos (como deste art. 32) evidente a preocupação com o próprio animal”.
76
Cumpre salientar que também a proteção constitucional de espécies ameaçadas de extinção é outro argumento
importante para sustentar a dignidade da vida de um modo geral como valor próprio (autônomo), “porquanto, na
maioria dos casos, a existência de determinada espécie no ambiente não traz nenhuma benefício existencial
direito (nem mesmo econômico) para o ser humano, igualmente contrariando a visão posta pela corrente
antropocêntrico-instrumental dos recursos naturais. Com efeito, a proteção das espécies ameaçadas não
representa a funcionalização (...) da vida animal em razão da sua utilidade para o homem, mas diz com uma
dimensão objetiva de proteção, reconhecendo, de certa forma, um valor – que, também por implicar em deveres
jurídicos de tutela e proteção, poderia muito bem ser denominado de ‘dignidade’- inerente àquela existência em
risco de extinção” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2009, p. 22).
69

FENSTERSEIFER, 2009, p. 20). Freitas do Amaral posiciona-se no sentido de que a


legislação contra a crueldade frente aos animais não objetiva, de fato, proteger a “delicadeza
dos sentimentos do ser humano face aos animais”, mas sim o animal em si mesmo
considerado, atribuindo-lhe um valor intrínseco (SARLET; FENSTERSEIFER, 2009, p. 20).
A Constituição Federal brasileira, no seu art. 225, §1º, VII77, prevê de forma expressa
a vedação, pelo Poder Público, de práticas que coloquem em risco a função ecológica da
fauna e a flora, bem como que “provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a
crueldade”, o que sinaliza o reconhecimento, por parte do constituinte, do valor inerente a
formas de vida não humanas, protegendo-as, inclusive, contra a ação humana. Em outras
palavras, o que se pretende demonstrar com isso é que não se está buscando proteger apenas o
ser humano:

É difícil conceber que o constituinte, ao proteger a vida de espécies naturais em face


da sua ameaça de extinção, estivesse a promover unicamente a proteção de algum
valor instrumental de espécies naturais; pelo contrário, deixou transparecer uma
tutela da vida em geral nitidamente não meramente instrumental em relação ao ser
humano, mas numa perspectiva concorrente e interdependente. Especialmente no
que diz com a vedação de práticas cruéis contra aos animais, o constituinte revela de
forma clara a sua preocupação com o bem-estar dos animais não humanos e a
refutação de uma visão meramente instrumental da vida animal. [...] Dessa forma,
está a ordem constitucional reconhecendo a vida animal como um fim em si mesmo,
de modo a superar o antropocentrismo kantiano (SARLET; FENSTERSEIFER,
2009, p. 21-22).

Portanto, é incontroverso que há uma tendência contemporânea no sentido de uma


proteção constitucional e legal aos animais, fato que revela, no mínimo, que a própria
comunidade humana vislumbra em determinadas condutas um conteúdo de indignidade.
Levando em consideração que nem todas as medidas de proteção da natureza não humana e,
em especial, dos animais não humanos, têm por objetivo assegurar aos seres humanos uma
vida com dignidade (por conta de um ambiente saudável e equilibrado), mas dizem respeito à
preservação, por si só, da vida dos animais e do patrimônio ambiental, resta evidente que se
está diante do reconhecimento de um valor absoluto em si, isto é, intrínseco (SARLET;
FENSTERSEIFER, 2009). A consequência disso é um desajuste lógico com o tratamento
jurídico que recebem, por serem tidos como meras “coisas’”. Afinal, a categorização dos
animais como coisas preclui a discussão acerca do reconhecimento dos interesses destes, além

77
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao
Poder Público: (...)VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco
sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
70

daqueles que são necessários à própria satisfação dos interesses humanos (LOURENÇO,
2008). Qualquer interesse que o animal detenha não tem o condão de confrontar a realidade
de serem apenas commodities, podendo ser vendidos e comprados quando isso for do
interesse dos seus proprietários, pois é isso que significa ser uma propriedade.
Em uma visão sintética, porém não menos eficiente, Gary L. Francione argumenta que
os direitos, via de regra, servem para proteger interesses. Assim, “dizer que um interesse é
protegido por um direito, significa dizer que este mesmo interesse estará a salvo de qualquer
superação baseada em pretensos benefícios individuais ou gerais que seriam obtidos por sua
quebra” (LOURENÇO, 2008, p. 472-473). Retomando a discussão acerca de direitos naturais
do início do capítulo, faz-se interessante aludir à compreensão de Francione de que, na
perspectiva de direitos humanos78, o direito de não ser tratado como coisa corresponde a um
direito prévio (“pré-legal right”), um direito básico ou fundamental, condição para o desfrute
de todos os demais, em cristalina consonância com a concepção de Henry Shue79. Com efeito,
o reconhecimento dessa prerrogativa humana de não ser tratada como coisas necessita de uma
linguagem dos direitos para que se torne efetiva. Notadamente, “todas as sociedades devem
reconhecer alguns interesses que não são transacionáveis, a despeito do custo social de tal
atitude” (FRANCIONE apud LOURENÇO, 2008, p. 473), e assim o fazem. Desse modo,
procurando-se ultrapassar a ideia de prerrogativa exclusiva dos seres humanos, Francione
passa a expor que o direito fundamental de não ser tratado como coisa e a valorização
intrínseca do sujeito seriam bons critérios de admissão na comunidade moral. A consequência
necessária de extensão aos animais do direito fundamental de não sofrimento – corolário do
direito de não ser tratado como coisa – é a de torná-los “sujeitos de direitos” (Lourenço, 2008,
p. 477), tese que será aprofundada no tópico seguinte.
Muito pertinente se faz a ressalva de Francione de que a escravidão humana é
estruturalmente idêntica à propriedade animal. Isso porque “por ser o escravo uma coisa, seu
senhor podia se colocar acima de todos os interesses dos servos, bastando que justificasse sua
atitude em termos estritamente econômicos” (LOURENÇO, 2008, p. 471)80. Sem prolongar o

78
“Nos dias de hoje, rejeitamos por completo a instituição da escravidão [...]. Para Francione, [...] todos os seres
humanos têm um direito fundamental de não serem tratados exclusivamente como meios de outros e a de que
eles possuem igual valor inerente que os impede de serem considerados como recursos ou objetos”.
(LOURENÇO, 2008, p. 472).
79
“SHUE enfatiza que os direitos fundamentais seriam pré-requisitos para o exercício dos direitos não básicos,
e que a posse de direitos não básicos, na ausência dos básicos, seria nada mais que a detenção de direitos em
sentido meramente formal ou legalista, incapaz de garantir ao seu titular possuidor o uso do conteúdo material do
direito” (LOURENÇO, 2008, p. 473).
80
“A lei supostamente regulava o uso da propriedade escrava e, em princípio, reconhecia que os escravos
possuíam alguns interesses que seus donos eram obrigados a respeitar, estabelecendo, consequentemente, certos
limites no uso e tratamento da propriedade” (FRANCIONE apud LOURENÇO, 2008, p. 472).
71

tema, o que se pretende demonstrar com isso é que apesar de terem existido leis que
limitavam o castigo a ser imposto aos escravos, estas eram ineficientes para garantir a
mudança de status moral para eles, posto que a condição de propriedade sempre os impediu
de verem reconhecidos os direitos que aparentemente teriam sob as referidas leis.
Na oportunidade, cumpre esclarecer que foge do escopo do presente trabalho uma
análise densa acerca das correntes existentes no âmbito do ativismo político em favor dos
animais81, não obstante tratar-se de um tema de importância inquestionável para a visibilidade
da questão animal dentro do panorama atual de consolidação teórica. Aliás, justamente por se
tratar de uma discussão complexa, evitou-se transportar para poucas linhas uma análise
simplista sobre o tema, sob pena de incorrer em imprecisões técnicas, limitando-se tão
somente a denunciar o tratamento jurídico e moral dispensados aos animais, dotados de uma
fragilidade insustentável, na medida em que “tão logo haja uma razão, um motivo apenas, por
mais irrelevante que seja, o sofrimento e a vida dos animais serão prontamente desprezados”
(LOURENÇO, 2008, p. 475). Em verdade, melhorar o tratamento dispensado aos animais é
algo extremamente positivo, porém não guarda correlação direta e necessária com a
modificação de seu status legal.
Por todo o exposto e prezando pela coerência argumentativa, opta-se pela defesa da
concepção dos Direitos dos Animais ou Abolicionismo Animal. Com efeito, repudia-se às
“teorias indiretas”, já que estas não reconhecem no animal um “agente moral”, muito menos
um “sujeito de direito”. Com o intuito de preservar substancialmente o status quo jurídico dos
animais não humanos, o suposto “tratamento humanitário” que muitos estatutos protetivos
alardeiam não questiona a instituição da utilização de animais, mas sim se uma dada prática,
parte integrante desta instituição, é necessária. Assim, conforme explica Daniel Lourenço, “do
‘princípio do tratamento humanitário’, incorporado como parte central da maior parte das
normas tutelares, resulta em priorizarmos os interesses mais triviais dos seres humanos em
detrimento dos mais fundamentais dos animais” (LOURENÇO, 2008, p. 333). Confrontam-
se, na realidade, os interesses do proprietário e o de uma propriedade, de modo que os
interesses da propriedade serão serem ultrapassados pelos do proprietário. Dessa forma,
insiste-se em afirmar que não se deseja que os animais sejam mantidos sob o rótulo de coisas,
81
Gary L. Francione, em sua obra Rain without thunder, classifica o ativismo político a favor dos animais em
três correntes: (i) o Bem-Estarismo Animal (welfare), que aceita o uso humano dos animais na medida em que
eles sejam tratados humanitariamente, isto é, que se evite seu sofrimento desnecessário. Ressalta-se que o foco
desta corrente é a regulamentação do tratamento animal; (ii) o Abolicionismo Animal ou posição dos Direitos
dos Animais, que rejeita qualquer forma de exploração ou utilização dos animais, pretendendo abolir totalmente
seu uso, posto não ser moralmente justificado; (iii) e o Neo Bem-Estarismo (new welfare), que defende a
regulamentação a curto-prazo enquanto não se atinge o fim último da libertação animal ou, pelo menos, uma
redução significativa da exploração animal no futuro. (NOGUEIRA, 2012., p. 161).
72

trancafiados em um universo de não existência. Do contrário, serão sempre compreendidos


como commodities de que nos utilizamos para as finalidades mais frívolas (LOURENÇO,
2008).

3.3 OS ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO

Como demonstrado, o art. 225, §1°, VII, da Constituição Federal assevera que
“incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou
submetam os animais à crueldade”. Laerte Fernando Levai, então, sustenta que o legislador
constitucional “erigiu o dever jurídico de proteção aos animais à categoria de imperativo
ético, permitindo uma nova interpretação jurídica acerca dos animais submetidos à crueldade”
(LEVAI, 2001, p. 17). Avançando acertadamente, o autor esclarece que o dispositivo
reconheceu que os animais devem ser inseridos na esfera de preocupações morais humanas, o
que abre margem para dizer que “eles podem figurar não apenas como bens patrimoniais,
ecológicos ou objetos materiais de crime (nos termos da concepção antropocêntrica), mas
também como vítimas da crueldade e, porque não dizer, legítimos sujeitos jurídicos” (LEVAI,
2001, p. 17).
Também nesse sentido se posiciona Edna Cardozo Dias, assentando seu núcleo
argumentativo no fato de que os animais são sujeitos de direitos subjetivos por força das leis
que os protegem, embora tais direitos tenham que ser pleiteados por representatividade – da
mesma forma como ocorre com os seres relativamente incapazes ou os incapazes, que,
entretanto, são reconhecidos como pessoas (DIAS, 2006). Discorrendo acerca dos direitos
atribuídos ao animal como indivíduo ou espécie, ao mesmo tempo em que aplica o princípio
da igualdade de interesses, a autora constata que, semelhante à pessoa humana, ele teria
“direito à defesa de seus direitos essenciais, tais como o direito à vida, ao livre
desenvolvimento de sua espécie, da integridade de seu organismo e de seu corpo, bem como o
direito ao não sofrimento” (DIAS, 2006, p. 120). O caminho trilhado pela autora para
fundamentar a concepção dos animais como sujeitos de direito é a atribuição de personalidade
aos animais, questão que será abordada mais adiante.
Na verdade, voltando-se ao entendimento de Tom Regan (apud LACERDA, 2012, p.
41), “questionar a condição jurídica do animal, indagando se ele é ou não pessoa, se pode ou
73

não ser concebido como sujeito de direito, é no fundo um questionamento da própria condição
humana e da sua dignidade e intangibilidade”. Portanto, procura-se enfrentar, por um prisma
filosófico-jurídico, um dos principais desafios teóricos da contemporaneidade: se os animais
possuem direitos, como pretendem os teóricos fundamentar esses direitos? Em caso negativo,
quais os argumentos podem ser aduzidos para negar aos animais a condição de sujeitos de
direito? Faz-se imprescindível deixar de lado as afinidades e preconceitos que o tema
naturalmente provoca, a fim de analisá-lo exclusivamente por um viés conceitual.
Sem mais delongas, pode-se dizer que a tutela específica do interesse do próprio
animal, como possuidor de valoração moral e jurídica intrínseca teria alguns caminhos básicos
a trilhar, que seriam os seguintes: 1) a personificação dos animais, de modo que os animais
integrariam a categoria jurídica de “pessoa”, equiparando-se aos seres humanos
absolutamente incapazes; 2) a utilização da “teoria dos entes despersonalizados”, em que os
animais fariam parte da categoria jurídica de “sujeitos de direito”, prescindindo da
qualificação de “pessoa”; 3) uma categoria intermediária situada entre “coisas” e “pessoas”,
como um tertium genus, sendo esta a solução encontrada por alguns países europeus, como no
caso da legislação civil germânica; 4) considerar os chamados “direitos sem sujeito”,
classificação defendida na doutrina por Brinz e Köppen e, no Brasil, por Carvalho de
Mendonça.
Cumpre ressalvar, prematuramente, que os animais certamente não se encaixam na
categoria de “direitos sem sujeito”, pois, como será demonstrado na explanação da “teoria dos
entes despersonalizados”, “mesmo os sujeitos de direito despersonalizados são titulares de
direitos e deveres. O atributo da personalização não é condição para possuir direitos ou ser
obrigado a qualquer prestação” (COELHO apud TOLEDO, 2013, p. 2010). Em suma, a
personalidade jurídica não pode ser considerada como a aptidão para titularizar direitos e
obrigações, posto que tornariam equivalentes as categorias de “pessoa” e “sujeito de direito”,
que, aliás, é uma confusão que deve ser superada, sob pena de “desestruturação lógica do
modelo de exame dos institutos jurídicos aqui analisados” (COELHO apud TOLEDO, 2003,
p. 141).
Da mesma forma, no que concerne a alternativa de inserção dos animais não humanos
em uma categoria intermediária situada entre as “coisas” e as “pessoas”, Daniel Lourenço
sustenta que essa solução também não se afigura como a mais apropriada, haja vista que a
“teoria dos entes despersonalizados”, por si só, possibilita que o animal seja deslocado da
categoria de “coisa” para a de “sujeito de direito”, inclusive no que tange à graduação de
direitos (LOURENÇO, 2008). Ademais, atenta-se ao fato de que a construção de um estatuto
74

jurídico para o animal como um meio termo entre as classificações de sujeito e objeto de
direito, parece recuar no sentido de promoção de um welfarismo alargado, muito criticado por
Lourenço (2008, p. 486), pois ele “se basearia meramente na atribuição de deveres ao homem
para com os animais, porém não na concessão de direitos fundamentais a estes últimos”.
François Ost82 e Eduardo R. Rabenhorst83 são defensores dessa categoria.
Feitas essas considerações, passa-se a análise da vertente da personificação jurídica
dos animais. De início, é preciso esclarecer que a noção de pessoa se destaca do substrato
humano. Como afirma José Cretella Júnior (apud LOURENÇO, 2008, p. 486), “pessoa é
noção eminentemente jurídica, que não se confunde com humano”. Sobre esse exato ponto, o
positivista Hans Kelsen, na Teoria Geral do Direito e do Estado, reabriu as discussões a
respeito do conceito de pessoa, concluindo não ser a pessoa física uma realidade natural, “mas
uma elaboração do pensamento jurídico” (KELSEN apud LOURENÇO, 2008, p. 398)84.
Também B. Gordjin, corroborando a conclusão acertada de Kelsen, afirma que “o conceito de
‘ser humano’ é fruto de uma construção biológica, enquanto que o de ‘pessoa’ é uma noção
filosófica, psicológica ou jurídica” (GORDJIN apud LOURENÇO, 2008, p. 398)85. Dessa
forma, a invenção do conceito de pessoa permitiu a expansão da qualidade de agentes para
além da pessoa natural:

O constitucionalista americano LAURENCE TRIBE, [...] deixa isso bastante claro


ao fazer alusão da ampliação do conceito jurídico de pessoa às pessoas jurídicas.
NIKLAS LUHMANN afirma que não mais devemos perquirir acerca de
propriedades ontológicas, tais como alma, mente, capacidade reflexiva, para que
uma entidade possa ser qualificada como uma agente social ou legal. Os agentes
individuais e coletivos são criados por atribuição social. Segundo leciona, uma
empresa não se torna agente coletivo pelo fato de possuir determinados atributos

82
“A justaposição destes dois tipos de abordagem jurídica, uma que objetiva o animal, outra que o protege em
consideração da sua qualidade de ser sensível, suscita a perplexidade da doutrina jurídica. Alguns dirão ‘que é, a
partir de agora, impossível continuar a afirmar que eles são apenas coisa’, outros anunciam ‘o animal sujeito de
direito, realidade do amanhã’, ou ainda ‘o animal sujeito de direito em formação’. Não retomaremos, aqui, a
refutação da tese personificadora; tomaremos antes, em consideração, o fato de que os desenvolvimentos atuais
do direito positivo já não permitem considerar o animal, nem como um objeto de direito nem como um sujeito de
direito. É preciso reinventar um estatuto jurídico que faça justiça à situação do animal, ‘esse ser vivo que se nos
assemelha’” (OST apud LOURENÇO, 2008, p. 485-486).
83
Daniel Lourenço esclarece que Eduardo R. Rabenhorst, “na excelente obra ‘Dignidade Humana e Moralidade
Democrática’, ao comentar os ensinamentos de L. W. Sumner, adota esse posicionamento, afirmando que: ‘não
precisamos ampliar a lista de sujeitos de direitos. Necessitamos, sim, de uma definição normativa capaz de
assegurar a determinadas entidades um estatuto especial dentro da órbita jurídica’”. (RABENHORST apud
LOURENÇO, 2008, p. 485).
84
“Definir a pessoa física (natural) como um ser humano é incorreto, porque o homem e pessoa não são apenas
dois conceitos diversos, mas também os resultados de dois tipos inteiramente diversos de consideração. Homem
é conceito da biologia e da fisiologia, em suma, das ciências naturais. Pessoa é um conceito da jurisprudência, da
análise de normas jurídicas” (KELSEN apud LOURENÇO, 2008, p. 398).
85
Ademais, Gordjin “adverte sobre os riscos de ampliação ou redução do conceito, tornando-se um ‘instrumento
tático’ e ideológico para se aumentar ou diminuir o grupo de indivíduos merecedores de consideração moral”
(LOURENÇO, 2008, p. 398-399).
75

especificou ou mesmo uma forma organizacional própria. É o mercado que constrói


a realidade de empresas como agentes coletivos. A personificação de não humanos
funciona como uma verdadeira estratégia de como lidar com as incertezas a respeito
da identidade do alter, que abre espaço para a assunção da sua autoreferencialidade
(LOURENÇO, 2008, p. 486).

Dito de outra forma, partindo-se do pressuposto que o conceito de “pessoa” pertence à


realidade jurídica e não fática ou biológica, cria-se a possibilidade de o seu preenchimento se
dar com conteúdo material diverso de acordo com as opções políticas e culturais de momentos
históricos distintos, que acaba por conduzir a compreensões também díspares para cada um
desses momentos. Para Bruno Latour (LATOUR apud LOURENÇO, 2008, p. 487), “o
resultado disso é que a lei, como realidade do sistema social, deve se abrir para a entrada de
novos atores jurídicos”86. A esse respeito é prudente lembrar que nem mesmo os próprios
seres humanos foram sempre classificados como “pessoas”, posto que, em vários momentos,
escravos, mulheres, crianças, deficientes físicos e mentais, bem como diversos agrupamentos
estiveram excluídos da comunidade moral e jurídica. Assim, os direitos dos animais entram
nesse cenário como estruturas de defesa.
O Código Civil atual indica com clareza que pessoa natural e ser humano são
conceitos jurídicos distintos. Assim é que, de acordo com o seu art. 1°, “toda pessoa é capaz
de direitos e deveres na ordem civil” e, pelo art. 2°, tem-se que “a personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida”. Explica Daniel Lourenço que dado que as leis
infraconstitucionais “devem ser interpretadas em conformidade com a Constituição, o Código
Civil, ao adotar a forma genérica ‘pessoa’, [...] aderiu expressamente a um conceito extensivo
de personalidade jurídica, abarcando todas as pessoas, sejam elas ‘humanas’ ou não”
(LOURENÇO, 2008, p. 494).
Sob esse prisma, no que se refere às normas relativas à aquisição de personalidade e
fruição de direitos personalíssimos, os animais não humanos poderiam ser encaixados nessa
previsão, na medida em que seriam entes “suscetíveis de apropriação de direitos”87. Logo, na
condição de “pessoas não humanas” – tal como as “pessoas jurídicas” – seriam equiparados
aos que “por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade” (art. 4°, III,
CC/02), recebendo, por analogia, a tutela estatal na qualidade de incapazes relativamente a

86
“Os direitos dos animais entram nesse cenário como estruturas de defesa. Paradoxalmente, incorporam os
animais na sociedade humana com o propósito de criar mecanismos efetivos de defesa contra as tendências
destrutivas da própria sociedade humana. A antiga fórmula de dominação social da natureza é substituída por um
novo modelo de contrato social” (BRAUN; CASTREE apud LOURENÇO, 2008, p. 487).
87
Daniel Lourenço (2008, p. 494) esclarece que “o prestigiado Esboço do Código Civil de TEIXEIRA DE
FREITAS (1816-1883) estabelece a abstração do conceito de pessoa ao estabelecer em seu art. 16 que ‘todos os
entes suscetíveis de aquisição de direitos são pessoas’”.
76

certos atos ou a maneira de os exercer, posto que “os incapazes já considerados pela norma
jurídica não têm sua personalidade descaracterizada por não poderem dispor de seus direitos,
já que deles decorrem obrigações de caráter pessoas e oponíveis erga omnes” (SANTOS apud
LOURENÇO, 2008, p. 494).
Danielle Tetü Rodrigues corrobora a tese da personificação de animais não humanos,
na medida em que distingue os conceitos de “indivíduo” e de “pessoa”, aproximando o último
ao de “sujeito de direito”. Nesse sentido:

[...] a palavra pessoa conceituada sob o prisma jurídico importa no ente suscetível de
direitos e obrigações, ou seja, sujeito de direitos e titular das relações jurídicas. Uma
vez que todo titular de fato de relações jurídicas é obrigatoriamente sujeito de
direito, é obviamente claro que a noção de sujeito de direito não equivale à ideia de
ser indivíduo e, portanto, os Animais como titulares de relações jurídicas podem ser
considerados sujeitos de direito e seriam normalmente incluídos na categoria de
pessoas, ainda que não sejam pessoas físicas ou jurídicas de acordo com o predicado
terminológico. [...] Visíveis ou não, os Animais têm direitos (RODRIGUES apud
LOURENÇO, 2008, p. 488).

Adotando uma posição nitidamente contratualista, J. M. Carvalho Santos (apud


LOURENÇO, 2008) ratifica a coincidência conceitual desses termos, partindo da premissa de
que o direito é um fenômeno social e que pressupõe sempre uma vontade (ao menos como
possibilidade), de modo que não se faz possível atribuir direitos a quem não faz parte daquela
sociedade e nem possui uma vontade. Assim, só o homem, em última análise, pode ser sujeito
de direito, tanto isoladamente (pessoa natural), quanto em coletividade (pessoa jurídica). Da
mesma forma, Clóvis Beviláqua (apud LOURENÇO, 2008) também incorre na confusão
conceitual entre os conceitos “pessoa” e “sujeito de direito” ao afirmar que “pessoa é o ser, a
que se atribuem direitos e obrigações. Equivale, assim, a sujeito de direitos”. Destarte, como
preceitua Carvalho Santos (apud LOURENÇO, 2008, p. 496): “o Direito atual não tolera mais
que os animais possam ser sujeitos de direito”88.
A segunda alternativa, ora objeto central da presente explanação, corresponde à teoria
dos entes despersonalizados para fundamentar a concessão de direitos subjetivos para os
animais. De acordo com Daniel Lourenço (2008, p. 496), ao longo do tempo foi edificada
uma indevida e atécnica identificação entre os conceitos de “sujeito de direito”, “pessoa” e
“ser humano”, por meio do qual a dogmática civilista afirmava que “o sujeito é sujeito porque

88
J. M. Carvalho Santos acrescenta que “[...] o Código serve-se dessa palavra [pessoa] como equivalente a
sujeito de direito. Sujeito de direito só pode ser aquele que é portador, que detém direitos e obrigações de
natureza civil. [...] O Direito atual não tolera mais que os animais possam ser sujeitos de direito”. (SANTOS
apud LOURENÇO, 2008, p. 496).
77

participa de relações jurídicas e é titular de direitos e deveres porque é sujeito”89. Sob essa
ótica, a conceituação de sujeito de direito constitui verdadeiro exemplo de uma
pseudodefinição. De fato, os conceitos merecem importante distinção. Como contraponto, as
lições de Fábio Ulhoa Coelho (2003, p. 138) são elucidativas, pois destacam que o conceito
de sujeito de direito identifica-se como sendo “o centro de imputação de direitos e obrigações
pelas normas jurídicas”, o que conduz a conclusão de que “nem todo sujeito de direito é
pessoa e nem todas as pessoas, para o direito são seres humanos”.
O mencionado autor utiliza dois critérios de classificação para os sujeitos de direito. O
primeiro consiste na divisão entre sujeitos personificados e despersonificados, visto que estes
podem ser ou não pessoas. O segundo critério diferencia os sujeitos humanos dos não
humanos. Entretanto, o último critério não tem, a rigor, relevância jurídica, apenas sendo útil
à compreensão do instituto e sua funcionalidade90. Sendo assim, a categoria “sujeito de
direito” corresponderia a um gênero que abarcaria sujeitos personalizados – pessoas naturais e
jurídicas – e sujeitos não-personificados. Sobre esses últimos, o doutrinador elucida que:

[...] mesmo os sujeitos de direitos despersonalizados são titulares de direitos e


deveres. O atributo da personalização não é condição para possuir direitos ou ser
obrigado a qualquer prestação. Recupere-se o conceito de sujeito de direito – centro
de imputação de direitos e obrigações referidos pelas normas jurídicas. Todos os
sujeitos nele se enquadram, de modo que também os despersonificados são aptos a
titularizar direitos e deveres (COELHO, 2003, p. 139).

Também assim se posiciona Gustavo Tepedino (apud LOURENÇO, 2008, p. 500), na


medida em que sustenta que não somente as pessoas jurídicas são sujeitos de direito, como
igualmente podem sê-lo os entes despersonalizados. Quanto a estes, basta pensar no
condomínio ou na massa falida, ambos dotados “de capacidade de direito e de capacidade
postulatória, no plano processual, segundo as conveniências de política legislativas”. Aliás, tal
constatação permitiu que, ao longo do tempo, fosse estendida, pela doutrina e jurisprudência
brasileiras, a proteção recém-consagrada aos direitos de personalidade às pessoas jurídicas.
Conforme alude Daniel Lourenço, a distinção entre “pessoa” e “sujeito de direito” parece
também ter sido abraçada por Cristiano Chaves de Farias, Rafael Garcia Rodrigues, José

89
Compreensão retirada do seguinte entendimento de Francisco Amaral: “Elemento subjetivo das relações
jurídicas são os sujeitos de direito. Sujeito de direito é que participa da relação jurídica, sendo titular de direitos e
deveres. A possibilidade de alguém participar de relações jurídicas decorre de uma qualidade inerente ao ser
humano, que o torna titular de direitos e deveres” (AMARAL apud LOURENÇO, 2008, p. 496-497).
90
Nesse sentido, Coelho afirma que “homens e mulheres, portanto, são sujeitos de direitos humanos
personificados; nascituros são sujeitos humanos despersonificados; fundações, sujeitos de direito não-humanos
personificados; massa falida, um não-humano despersonificado e assim por diante” (COELHO, 2003, p. 141).
78

Carlos Barbosa Moreira, Pontes de Miranda e Caio Mário da Silva Pereira (LOURENÇO,
2008, p. 500 e 506-507), dentre tantos outros.
Além dos exemplos supramencionados, convém registrar que outros sujeitos
despersonalizados não humanos foram reconhecidos pelo Direito. O art. 70 do Código de
Processo Civil/2015 prevê que “toda pessoa que se encontre no exercício dos seus direitos
tem capacidade para estar em juízo”. Cumpre ressaltar, no entanto, que o art. 75 faz referência
expressa à tais entes que têm sua capacidade processual reconhecida, não obstante serem
despersonalizados: a massa falida, a herança jacente ou vacante, o espólio, as sociedades sem
personalidade jurídica (sociedade em comum e em conta de participação) e o condomínio.
Daniel Lourenço assevera que “a jurisprudência também permite que os consórcios e diversos
fundos existentes no mercado de capitais possam ser representados em juízo por seus
administradores” (LOURENÇO, 2008, p. 508)91.
Na oportunidade, Claudio Henrique Ribeiro da Silva tece críticas pertinentes sobre o
tema, expondo que a equiparação dos conceitos de pessoa e sujeito de direitos tem colaborado
para eternizar questões e debates já totalmente superados. “Desta espécie são, a título de
exemplo, certas discussões acerca da personalidade dos nascituros, da legitimidade processual
de alguns entes despersonalizados ou mesmo o debate sobre o ‘direito dos animais’” (SILVA
apud LOURENÇO, 2008, p. 501)92. Em verdade, a situação do nascituro é bastante
emblemática para ilustrar a que ponto chegam às consequências da aludida confusão
conceitual sob enfoque. Sobre isso, o art. 2° do Código Civil/2002 é bastante claro ao prever
que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas, a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro”. É de fácil entendimento que o nascituro possui
direitos, embora ainda não seja pessoa. Voltando-se novamente para as elucidações de Ribeiro
da Silva (apud LOURENÇO, 2008, p. 502), depreende-se que não há, em todo o ordenamento
jurídico, “dispositivo mais claro no sentido de estender a qualidade de sujeito de direitos a um
ente despersonalizado”93. Com efeito, a aplicação da teoria dos entes despersonalizados
soluciona com maestria e lucidez a questão do nascituro94.

91
O autor acrescenta ainda que “nessa linha, Cláudio Henrique Ribeiro da Silva afirma que “[...] a doutrina
processual vem reconhecendo, muito mais do que a material, que certos entes despersonalizados são sujeitos de
direitos, e, nesta qualidade, aptos a figurar em um dos pólos da relação jurídica processual” (SILVA apud
LOURENÇO, 2008, p. 508).
92
“Vale observar que Claudio Henrique Ribeiro da Silva, ao que tudo indica, parece ter sido o primeiro
doutrinador a admitir abertamente a aplicabilidade da teoria dos entes despersonalizados aos animais”
(LOURENÇO, 2008, p. 502).
93
“Seria cômico, se não fosse trágico, o debate em que se perderam e ainda se perdem os autores, sobre a
existência ou não da personalidade no nascituro. O nó górdio desta questão, que parte sempre da premissa de que
só as pessoas são sujeitos de direito (equiparação), reside na impossibilidade de aceitar o inegável fato de que o
sistema atribui aos nascituros [...] no mesmo artigo do Código Civil em que lhes nega a personalidade. Como
79

Sem mais delongas, no que diz respeito aos animais, a teoria dos entes
despersonalizados pode ser aplicada para caracterizá-los como sujeitos de direitos
despersonificados não humanos. Dito de outro modo, ainda que se entenda que eles não sejam
pessoas, poderão dispor de um patrimônio jurídico que lhes garanta o mínimo existencial.
Procurou-se demonstrar que, sendo a subjetividade jurídica uma ficção, esta é passível de
mudanças, ao sabor dos tempos e das necessidades. Afinal, como comprovado, a evolução da
subjetividade está evidente na dogmática jurídica, a exemplo de diversos entes
despersonalizados reconhecidos como titulares de direitos. Dessa forma, não havendo
impedimentos jurídicos ou lógicos para que se proponha sua alteração, é mister a abertura e
ampliação desse referencial (LOURENÇO, 2008).
Por fim, partindo-se da superação das teorias que negam a existência dos direitos
subjetivos – tais como as de Duguit e Kelsen -, Rudolf Von Ihering construiu a ideia de
“sujeito-interesse”, por meio da qual se afirma que os direitos subjetivos servem para garantir
interesses fundamentais decorrentes da vida sensitiva, de modo que “todo o Direito positivado
é a expressão de um interesse reconhecido pelo legislador como merecedor e demandante de
proteção” (IHERING apud LOURENÇO, 2008, p. 511). Por seu turno, os interesses não são
prerrogativas exclusivas dos seres humanos, mas de todos os seres sencientes, isto é, dotados
de sensibilidade. Sobre tal abordagem dos “interesses”, modernamente, David S. Favre (apud
LOURENÇO, 2008, p. 513) esclarece que “a chave para o acesso à arena jurídica deve se
pautar pela capacidade que determinados seres possuem de titularizarem interesses”, que
devem ser validamente sustentáveis. Em consonância com tal entendimento, o jurista Rosco
Pound assevera que o sistema jurídico seria uma consequência natural da organização social,
emergindo de uma realidade permeada de conflitos interindividuais. É bem verdade que as
leis não criariam os ditos “interesses”, posto que estes estão a todo momento em estado
latente, esperando por reconhecimento95.
Por todo o exposto, já não é razoável ignorar que os animais possuam interesses
válidos e que, de uma forma ou de outra, aquilo que os estatutos protetivos fazem é tão
somente reconhecê-los, ainda que timidamente. Em meio a nosso mosaico jurídico, Fernando
Levai adverte que é possível encontrar “imperativos morais categóricos que permitem

conciliar tais dispositivos sem atribuir direitos a quem não tem personalidade? Não sabemos. [...] Diz,
literalmente não só que quem não nasceu não é pessoa, mas também reafirma que, ainda assim, (não sendo
pessoa) tem seus direitos reconhecido [...]” (SILVA apud LOURENÇO, 2008, p. 502).
94
“Assim, de acordo com o melhor entendimento, o nascituro é um sujeito de direito despersonificado humano”
(LOURENÇO, 2008, p. 505-506).
95
“Os interesses poderiam ser definidos como demandas ou as expectativas por meio das quais determinados
seres, individual ou gregariamente, procuram satisfazer as suas necessidades em vista do seu bem-estar”
(LOURENÇO, 2008, p. 514).
80

identificar uma preocupação ética em relação aos animais. É o que se depreende do artigo
225, §1°, VII, da CF, com a manifesta vontade do legislador em vedar as práticas que
submetam animais à crueldade” (LEVAI, 2001, p. 2). Aliás, está-se diante do reconhecimento
de justiça, que transcende a perspectiva da compaixão e humanidade no tratamento dos
animais não-humanos para reconhecer o valor intrínseco e a dignidade destes96. Portanto,
deve-se concluir com clareza que os animais são sujeitos de direitos subjetivos por força das
leis que os protegem97 e em decorrência dos princípios morais que devem nortear a conduta
humana.
Com efeito, tudo indica que se os animais deixaram de ser objetos e passaram a ser
sujeitos de direitos, seus direitos podem ser garantidos por meio da representatividade98, na
seara administrativa e em juízo, da mesma forma que ocorre com os juridicamente incapazes.
Conforme esclarece Tagore Trajano de Almeida Silva, no Brasil, “desde o Governo
Provisório de Getúlio Vargas existem medidas de proteção aos animais, tanto na esfera civil,
como penal, que concede a associações de proteção animal e ao Ministério Público o direito
de ir a juízo representar os direitos dos animais” (TRAJANO, 2009, p. 329). Em verdade, o
Decreto n° 24.645/3499, em seu art. 1°, § 3°, dispõe que “os animais serão assistidos em juízo
pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das
Sociedades Protetoras de Animais”. Apesar de o então presidente Fernando Collor de Mello
ter revogado via decreto dezenas de atos regulamentares promulgados pelos governos
anteriores – entre os quais o decreto em questão -, Antônio Herman Benjamin defende que na

96
“A ideia de dever moral de um tratamento não cruel dos animais deve buscar o seu fundamento não mais na
dignidade humana ou na compaixão humana, mas sim na própria dignidade inerente às existências dos animais
não humanos” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2009, p. 17).
97
Como já demonstrado, tal assertiva é sustentada expressamente por Edna Cardozo Dias. Ademais, também
Cass R. Sunstein interpreta que os estatutos protetivos, de fato, conferem “direitos efetivos e reais aos animais,
embora as pessoas não enxerguem, ou não queiram enxergar” (LOURENÇO, 2008, p. 459).
98
“Faz-se necessário estabelecer uma diferenciação entre substituto processual e representação processual, a fim
de não confundir os conceitos. Substituição Processual ou legitimidade extraordinária se caracteriza por
transformar o substituto em parte do processo. O substituído processual não é parte do processo, embora seus
interesses estejam sendo discutidos em juízo. O substituto age em nome próprio, defendendo interesse alheio tal
como aconteceu no caso Suíça. [...] Diferentemente, o representante processual não é parte, sendo o representado
a parte processual. O representante vai a juízo em nome alheio defendendo interesse alheio, a fim de suprir a
incapacidade processual da parte. Pode-se citar o exemplo em que o próprio animal foi a juízo defender seu
interesse representado por um curador especial ou guardião” (TRAJANO, 2009, p. 328-329).
99
Convém ressaltar que tal decreto é uma importante fonte normativa aplicável na seara dos Direitos dos
Animais, “que estabelece que todos os animais existentes no país são tutelados pelo Estado (artigo 1°),
considerando maus tratos (artigo 3º) a prática de ato de abuso ou crueldade contra eles (inciso I), golpear, ferir
ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia (inciso IV), acrescentar aos apetrechos nele
utilizados acessórios que os molestem ou lhes perturbem o funcionamento do organismo (inciso IX), realizar ou
promover lutas entre animais da mesma espécie ou espécie diferente, touradas e simulação de touradas, ainda
mesmo em lugar privado (inciso XXIX), além de arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculos e exibi-
los para tirar sorte ou realizar acrobacias (inciso XXX)” (TUGLIO, 2006, p. 233).
81

época em que foi editado o Decreto n° 24.645/34, este tinha força de lei, logo, somente uma
lei aprovada pelo Congresso Nacional poderia revogá-lo (TRAJANO, 2009, p. 330).
Convém frisar que se tratando de um animal individualmente considerado, em que
fique fácil a identificação do representado, pode-se dizer – com base no Decreto n° 24.645/34
- que o sistema brasileiro procura adotar uma postura que leve o animal a juízo em nome
próprio no âmbito civil mediante um representante legal, o guardião. Entretanto, tratando-se
de crimes ambientais com base na lei 9.605/98, o Ministério Público deverá ser indicado
como legitimado extraordinário para ações em juízo, com vistas a cumprir seu papel como
titular da ação penal pública. Logo, o Ministério Público atuará como substituto processual,
defendendo em nome próprio interesse indisponível a vida do animal. Em que pese a
existência do instituto da representatividade, Antônio Herman Benjamin sustenta que o
melhor exemplo de que os animais não humanos já são sujeitos de direito encontra-se, então,
neste decreto n° 24.645/34 (TRAJANO, 2009)100.

100
Nesse sentido, perfaz-se o entendimento que “se os animais fossem considerados juridicamente como sendo
‘coisas’, o Ministério Público não teria legitimidade para substituí-los em juízo. Além do que, seria contra-senso
existirem relações jurídicas entre coisas e pessoas” (TOLEDO, 2013, p. 212).
82

4 O GRANDE DESAFIO

É um quase lugar-comum afirmar que as pessoas precisam lutar com suas próprias
consciências (partindo do pressuposto de que suas consciências estejam alertas e
informadas). No entanto, a sociedade industrial esconde o sofrimento animal.
Poucas pessoas aceitariam manter uma galinha em uma caixa de sapato durante toda
sua vida; mas praticamente todos comem ‘ovos frescos vindos diretamente da
fazenda’ provenientes de galinhas mantidas em condições absolutamente similares
(THE ECONOMIST apud LOURENÇO, 2008, p. 482).

De acordo com Tagore Trajano de Almeida Silva (2009), críticos afirmam que a
principal falha da legislação brasileira e norte-americana repousa no fato de todas proporem
diferentes formas de tratamento para determinadas espécies de animais. Sobre esse exato
ponto, Sônia T. Felipe assevera que “o direito seleciona os animais com base em categorias
especiais, tais como a racionalidade (especismo elitista) ou através da relação de proximidade
com os humanos que despertam alguma forma de ternura ou compaixão (especismo eletivo ou
afetivo)” (FELIPE apud TRAJANO, 2009, p. 332), esquecendo-se das demais espécies. Não é
por outra razão que legislações como a lei de crimes ambientais e as leis estaduais americanas
negam direitos aos animais destinados ao abate e ao consumo.
Toma-se como exemplo os Estados Unidos, em que a primeira lei anticrueldade foi
criada há mais de trezentos anos pela Colônia da Baía de Massachussetts, seguida pela
primeira lei anticrueldade estatal em 1804, mas que trinta e nove (correspondendo a mais do
que oitenta por cento) das leis criminais de igual teor existentes só foram aprovadas nos
últimos quinze anos. Nesse contexto, Pamela D. Frasch e Hollie Lund asseveram que,
atualmente, as discussões sobre as leis anticrueldade dão mais ênfase ao objetivo de reduzir o
sofrimento animal, muito embora a proteção do “coração do homem do endurecimento”
continue a desempenhar um papel significativo no processo legislativo. Entretanto, na prática,
qualquer filosofia que almeje reduzir o sofrimento ou proteger a alma humana contra a
corrupção se torna vazia, desprovida de qualquer sentido:

Nós tendemos a aplicar os nossos ideais sublimes através da ação legislativa


somente quando conveniente, e apenas quando não interfere em nossa vantagem
econômica ou dogma de direito de propriedade. Em nenhum lugar vemos essa
dicotomia em relevo austero como quando comparamos o tratamento legal dos
animais de companhia e animais de criação. Por exemplo, se bater em um cão
corrompe a alma humana, por que bater em uma vaca não teria o efeito corruptivo
semelhante? E se isso acontecer, então por que não legislamos da mesma forma
contra esta atividade? Existe algo que faz esses animais intrinsecamente diferentes
dos animais de companhia? Será que um ‘porco’ animal de estimação têm menos
sentimentos do que os criados para consumo humano? Novamente, se não, então por
83

que é que eles recebem um tratamento diferente por força da lei? (FRASCH; LUND,
2008, p. 34).

Na mesma linha, mas agora utilizando um exemplo real, as autoras estadunidenses


supramencionadas trazem que, nos termos da legislação federal dos EUA, um veterinário
pode perder sua licença por simplesmente deixar de fornecer a um gato ou cão uma habitação
bem ventilada e um local limpo. Entretanto, pecuaristas “podem confinar uma porca prenha
em uma caixa tão pequena que ela é incapaz de se mover, deixá-la lá durante toda a sua
gravidez de quatro meses, e depois devolvê-la à caixa, logo que ela esteja grávida de novo”
(FRASCH; LUND, 2008, p. 34-35). Os pecuaristas não são repreendidos ao forçar uma vaca a
passar sua vida inteira confinada, sem qualquer oportunidade para pastagens, sentir o ar fresco
ou fazer exercício. Eles podem cortar a maior parte do bico de uma galinha, sem a aplicação
de anestesia, para evitar que bique outras galinhas quando confinadas em gaiolas
superlotadas. Explicam as autoras que isso tudo ocorre, pois “apesar desse nível de bem-estar
animal elevado e das leis anti-crueldade dos Estados Unidos, a grande maioria dessas leis
especificamente excluem os animais de exploração” (FRASCH; LUND, 2008, p. 35)101
institucionalizada e as práticas pecuaristas de sua proteção.
Na verdade, nota-se uma esquizofrenia no tratamento jurídico dispensado a animais
não humanos dentro da mesma espécie. Explica-se: os mesmos atos podem ser permitidos ou
proibidos dependendo do quanto eles façam parte das práticas de exploração animal que se
encontram institucionalizadas. Gary L. Francione, ao discorrer sobre a ineficácia do princípio
do tratamento humanitário, largamente explorado pelos partidários do “bem-estar animal”,
pontua que “as únicas vezes em que a inflição de dor e sofrimento levanta algumas objeções
frente aos estatutos protetivos é no momento em que diz respeito aos abusos cometidos fora
do âmbito da exploração institucionalizada dos animais” (LOURENÇO, 2008, p. 460). O
problema é exemplificado por Daniel Lourenço, com a lucidez que lhe é peculiar:

101
“Na verdade, existem apenas dois pontos na vida de um animal de fazendo quando recebem qualquer
proteção ao abrigo da legislação federal: quando eles vão para o abate, e quando eles estão sendo transportados a
longas distâncias. No entanto, mesmo essas leis só se aplicam a certos animais. Galinhas, que respondem por
noventa e cinco por cento de todos os animais criados para consumo humano, não recebem a proteção federal em
qualquer momento de sua vida. Elas podem ser transportadas para abate em temperaturas extremas, sem
alimentos, água ou abrigo, onde elas, então, são penduradas de cabeça para baixo em manilhas, para, então,
terem suas gargantas cortadas e serem despejadas, às vezes ainda conscientes, para um tanque de água fervente”
(FRASCH; LUND, 2008, p. 35).
Para contrastar com o tratamento conferido a essas espécies de animais, reporta-se ao decisum recente, de 2006,
em que “o magistrado novaiorquino ALEX ZIGMAN julgou a primeira ‘restraining order’ (medida judicial que
determina a impossibilidade de aproximação de uma pessoa em relação a outra) em favor de um cão que sofrera
abusos pelo seu guardião. Para tanto, o magistrado, utilizando-se da tutela inibitória, baseou-se numa lei
protetiva que estende aos animais a proteção judicial já existente em favor das vítimas de violência doméstica
(cf. People v. Fontanez)” (LOURENÇO, 2008, p. 525).
84

Se alguém mata um gato em seu microondas, ou põe fogo em seu cão, poderá,
eventualmente, ser tido como atuando ilicitamente por aplicação, face dos estatutos
protetivos vigentes. Contudo, se a mesma conduta integra o ‘método de pesquisa’ de
um experimento em uma instituição de ensino, é ela permitida pela lei pelo fato de o
pesquisador estar supostamente utilizando o animal para gerar um benefício
(LOURENÇO, 2008, p. 461).

Percebe-se, com facilidade, que a alteração do status dos animais não se circunscreve
ao aspecto jurídico. Pelo contrário, depende de vários fatores relacionados à modificação de
estruturas ideológicas, culturais, sociais e econômicas102 que tendem a privilegiar os interesses
humanos mais banais em detrimento de interesses mais fundamentais titularizados pelos
animais não humanos. Segundo Peter Singer a barreira final que o movimento de libertação
animal enfrenta é o hábito:

Hábitos não só de alimentação, mas também de pensamento e linguagem, devem ser


desafiados e modificados. Hábitos de pensamento nos levam a considerar descrições
de crueldade contra animais como algo emocional, ou então consideram o problema
tão banal em comparação com os problemas dos seres humanos, que nenhuma
pessoa sensata poderia gastar seu tempo e atenção com ele. Isso também é um
preconceito – como poderia alguém saber que um problema é banal enquanto não
empregar seu tempo para avaliar-lhe a extensão? (SINGER apud LEVAI, 2001, p.
20).

Conforme adverte Laerte Fernando Levai, de fato, tudo indica que a pedagogia da
crueldade está inserida na cartilha social dos povos. Há muito tempo que se vive em um
mundo onde a violência faz parte do cenário urbano ou rural: “zoológicos que expõem
animais em prisões insalubres, circos que subvertem a natureza dos bichos silvestres, cavalos
chicoteados para movimentar carroças, dentre outras práticas eticamente censuráveis”
(LEVAI, 2001, p. 9), como os rodeios, as vaquejadas, as rinhas de galo, a caça esportiva, o
uso de animais em experimentos científicos para fins diversos, o uso da pele e do couro de
animais na indústria da moda, o uso de animais nas aulas práticas do curso de Medicina, e o
processo de criação intensiva de animais com o posterior abate dos mesmos para a
alimentação humana. Enfim, a lista é extensa.
Sem pretender exaurir o tema, mas frente a veemente necessidade de dedicar algumas
linhas aos experimentos científicos que utilizam animais, alude-se a Peter Singer, que

102
”Os obstáculos econômicos a serem suplantados são, obviamente, gigantescos. [...] A dependência econômica
gera a cumplicidade das forças políticas. Mais uma vez, o paralelo com a escravidão humana é bastante
elucidativo. Cinco dos sete primeiros presidentes dos Estados Unidos eram proprietários de escravos. A mesma
proporção podia ser encontrada no Senado e na Suprema Corte. Nos dias de hoje, as bancadas ‘ruralistas’
possuem representação significativa no Congresso e tendem a perpetuar as práticas relacionadas à maximização
da lucratividade de seu negócio” (LOURENÇO, 2008, p. 530-531).
85

demonstrou no segundo capítulo (“Instrumentos de Pesquisa”) da sua obra clássica


Libertação Animal, que as vantagens e benefícios concretos trazidos pelas pesquisas com
animais são mínimas, quando não, insignificantes. Para corroborar tal afirmação, o autor se
utiliza de exemplos fortes, incapazes de não despertarem sentimentos de revolta e perturbação
por parte do leitor, que pode até mesmo vir a indagar se realmente se tratam de fatos reais ou
de mera ficção:

Outros inúmeros experimentos podem ser citados, como o levado a efeito pelo
Laboratório de Pesquisas e Desenvolvimento de Bioengenharia Médica do Exército
Americano, de Fort Detrick. Ali, ministraram-se doses diárias, durante seis meses,
do explosivo TNT a sessenta beagles. ‘Os sintomas observados incluíram
desidratação, emaciação, anemia, icterícia, baixa temperatura corporal,
descoloração da urina e das fezes, diarreia, perda de apetite e peso, e aumento do
fígado, dos rins e do baço’. Não é possível dizer que os cães morreram a partir da
décima quarta semana em estados lamentáveis de saúde e sofrimento. Pior, a
conclusão do relatório foi no sentido de que ‘como foram observadas lesões mesmo
com as doses mais baixas, o estudo não pôde estabelecer o nível em que o TNT não
apresenta efeitos observáveis’.
O professor Harlow, que trabalhou no Centro de Pesquisas de Primatas, em
Medison, Wisconsin, desenvolveu vários experimentos relativos a isolamento
parcial e total, bem como de privação materna em primatas. Os animais sofriam
completa separação de suas mães, tendo sido criados, desde o nascimento até um
ano de vida em câmaras de aço inoxidável, não lhes sendo permitido qualquer
contato com qualquer outro animal, humano ou não. Harlow chegou à ‘brilhante’
conclusão de que ‘o isolamento precoce suficientemente restritivo e duradouro
reduz esses animais a um nível sócio-emocional em que a reação primária é o
medo’. O psiquiatra inglês John Bowlby esteve visitando as instalações de Harlow e
indagou atônito: ‘Por que estão tentando provocar psicopatologias em macacos? Já
tem mais macacos sofrendo de psicopatologias no laboratório do que jamais se viu
na face da terra’. Não obstante, Harlow continuou ‘aprimorando’ seus métodos de
indução de profunda depressão por meio da privação materna. Foram criadas mães
de pano que eram verdadeiros monstros. Os bonecos eram programados para lançar
ar comprimido de alta pressão. Com isso, este escabroso quadro:
‘[...] praticamente arrancava a pele do animal. O que fazia o macaco bebê? Ele
simplesmente se agarrava mais ao boneco de pano, porque um bebê com medo se
agarra à mãe a todo o custo. Não constatamos qualquer psicopatologia. Contudo,
não desistimos. Construímos outra mãe monstro, que se sacudia tão violentamente
que até a cabeça e os dentes do bebê chocalhavam. Tudo o que o bebê fez foi
agarrar-se cada vez mais à mãe artificial. O terceiro monstro que construímos
continha uma estrutura de arame dentro do corpo que se inclinava para frente,
jogando o bebê para longe de sua superfície ventral’. (...)
Outros experimentos foram desenvolvidos por Harlow explorando técnicas extremas
de confinamento (‘poço do desespero’ e ‘túnel do terror’), tendo se vangloriado de
obter sucesso na indução de ‘morte psicológica em macacos rhesus’ com a técnica
das mães substitutas. Seus discípulos, como John P. Capitanio, realizaram
experimentos de privação, obtendo conclusões igualmente ‘úteis’ e não menos
reprováveis: comparando o comportamento de macacos ‘criados’ por cavalinhos de
plástico e outros ‘criados’ por cães, Capitanio sentenciou que os macacos criados
pelos cães se comportavam socialmente melhor que os criados por brinquedos de
plástico. Brilhante, não? (LOURENÇO, 2008, p. 463-465)103.

103
”Os estudos de privação de desamparo apreendido são apenas a ponta de um colossal iceberg. De fato,
pesquisadores também lançam mão, largamente, de variados tipos de animais em trabalhos sobre etologia,
modelos de esquizofrenia, comunicação, cognição, relação predador-presa, motivação, emoção e percepção. (...)
O psicólogo Chris Evans, em artigo publicado na New Scientist, prestou interessante depoimento em que deixa
86

Como assinala Singer, “a indiferença é facilitada pela utilização de jargão técnico, que
disfarça a verdadeira natureza do que acontece” (SINGER apud LOURENÇO, 2008, p. 466).
Para constatar essa realidade não é preciso ir longe, a um universo de experimentos que nos
remete a dúvidas sobre sua autenticidade, por talvez carregarem consigo um selo de
“raridade” – é o que se deseja acreditar. Outras áreas de experimentação animal são tão ou
mais cruéis que as relatadas. Sobre isso, Sônia T. Felipe destaca que os testes mais difundidos
na indústria experimental destinam-se a “aferir a toxicidade dos vários elementos químicos
que compõem alimentos, cosméticos, medicamentos e demais produtos com os quais o
organismo interage através da respiração, inoculação, injeção ou contato” (FELIPE apud
CARNEIRO, 2013, p. 35). Dentre os testes da indústria química mais conhecidos, a autora
aponta o Draize Eye Irritancy Test e o LD 50 (Lethal Dose). Em suma, os referidos testes
podem ser explicados da seguinte forma:

Teste de Irritação Ocular de Draize. [...] Para execução do teste, são colocados
100mg de solução concentrada de determinada substância nos olhos de um grupo de
seis a nove coelhos albinos que não receberam anestesia. O coelho albino é o mais
usado, pois é dócil, barato e tem olhos grandes, o que facilita a avaliação das lesões.
Os coelhos permanecem em caixa de contenção, imobilizados pelo pescoço (muitos
o quebram, tentando escapar). Não se usam analgésicos, os cientistas alegam que
seu emprego altera os resultados. As pálpebras dos animais frequentemente são
presas com grampos que mantem os olhos constantemente abertos. Embora 72 horas
geralmente sejam suficientes para obtenção de resultados, a prova pode durar até 18
dias quando então o olho do animal se transforma em uma massa irritada e dolorida.
Muitas vezes, usam-se os dois olhos de um mesmo coelho, para diminuir os custos.
As reações observadas incluem processos inflamatórios das pálpebras e íris, úlceras,
hemorragias ou mesmo cegueira. [...]
Teste de Dose Letal. [...] Esse teste foi introduzido nos laboratórios em 1927 para se
verificar a letalidade de pesticidas, produtos de limpeza, drogas e cosméticos. Usa-
se, via de regra, o trato intestinal de animais vivos, sem que recebam analgesia. O
teste destina-se a medir a dose letal de certo produto a partir da morte de 50% dos
animais testados, quando ingerida, inalada ou inoculada uma determinada
quantidade. Assim, o produto pode ser liberado ao mercado consumidor caso metade
dos animais sobreviva ao efeito da droga (FELIPE apud CARNEIRO, 2013, p. 35).

Por fim, cabe ressaltar, com a devida cautela, que a análise supra não pretende pôr à
prova todos os experimentos com animais realizados até o presente momento, reputando-os

transparecer a febre pelos indiscriminados experimentos com animais: ‘Quando, há quinze anos, matriculei-me
num curso de psicologia, um entrevistador bastante sagas, ele próprio psicólogo, questionou-me minuciosamente
sobre meus motivos e perguntou-me o que eu achava que era psicologia e qual era seu tema principal.
Pobremente tolo e simplório como era, respondi que era o estudo da mente e que se material bruto eram os seres
humanos. Com um brado alegre por poder dissuadir-me de forma tão efetiva, o entrevistador declarou que os
psicólogos não estavam interessados na mente, que o foco dourado de seus estudos eram os ratos, e não as
pessoas; aconselhou-me, então, enfaticamente, a dirigir-me ao departamento de filosofia, na porta ao lado’”
(LOURENÇO, 2008, p. 466-467).
87

inúteis. Aliás, trata-se de um aspecto que foge do escopo do presente trabalho, não podendo
ser aqui aprofundado. Apenas se procura demonstrar que, com o desenvolvimento de novas
tecnologias e, principalmente, diante de resultados pouco aproveitáveis, não é razoável e
vantajoso dar continuidade aos mesmos, nesses moldes inescrupulosos. A própria Associação
Média Americana – AMA deixou patente que “frequentemente os estudos em animais provam
pouco ou nada, e é muito difícil correlacioná-los a seres humanos” (SINGER apud
LOURENÇO, 2008, p. 468). Mais do que isso, tais estudos científicos lidam com um
paradoxo insolúvel: por um lado, justifica-se que testes sejam realizados em animais e não em
seres humanos, porque os primeiros seriam seres marcadamente ‘inferiores’, diferentes desses
últimos; por outro lado, a necessidade dos experimentos só se explica se tiverem
aplicabilidade para os seres humanos, o que indica, em definitivo, que a primeira conclusão
não é verdadeira. Afinal, “ou o animal não é como nós e, neste caso, não há razão para fazer o
experimento, ou o animal é como nós, e neste caso, não deveríamos realizar um experimento
que seria considerado ultrajante se realizado em um de nós” (RYDER apud LOURENÇO,
2008, p. 468).
Retomando-se à brilhante observação de Fernando Levai, o autor faz, ainda, alusão à
crítica tecida por João Epifânio Régis Lima quanto à ideologia alienante imposta pela
mecanização da vida, pela tradição cultural ou pelo hábito, ao abordar especificamente os
estabelecimentos que se utilizam de animais em exibição pública, ocasião em que a prática de
ordem cultural, de caráter essencialmente dominador, é apresentada ao seu público mais fiel,
as crianças, que “são levadas a esses lugares por seus pais (na maioria das vezes) ou por
parentes e amigos e a experiência, geralmente agradável, como que pede, por si mesma, para
ser repetida” (LEVAI, 2001, p. 10). Em outras palavras, como bem coloca Fernando Levai, “a
ideia ilusória do domínio humano sobre o restante da natureza vai sendo, desde cedo,
introduzida e sedimentada” (LEVAI, 2001, p. 11). É inquestionável que tal análise crítica
pode ser estendida, de modo a alcançar sem dificuldades as demais práticas de crueldades
institucionalizadas.
Em harmonia com o que Fernando Levai denomina de “pedagogia da crueldade”,
inúmeros são os diplomas legais permissivos de comportamentos cruéis: a Lei 5.197/67 (Lei
de Proteção à Fauna), que apesar da oportuna extensão de seu alcance protetivo aos animais
silvestres, perde força por prever exceções que regulamentam práticas relacionadas ao
exercício da caça amadora e científica, à utilização de espécies provenientes de criadouros, à
montagem de parques de caça, entre outras; a Lei 6.638/79 (Vivissecção), que embora
demonstre algum grau de preocupação em estabelecer limites morais à atividade didático-
88

científica no campo da experimentação animal, concedeu aval aos vivissectores para


continuarem a exercer sua cruel atividade, reduzindo-se à uma lei ineficaz; a Lei 7.173/83,
que versa sobre Jardins Zoológicos; a Lei estadual paulista n° 7.705/92 sobre o abate
humanitário, que legitima a barbárie nos matadouros; a Lei paulista 10.470/99, que excetua os
animais destinados ao abate religiosa (jugulação cruenta) da esfera de aplicação do abate
humanitário (LEVAI, 2001).

4.1 A JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

O Poder Judiciário brasileiro, embora não reconheça os animais como sujeitos de


direito, tem proferido decisões que reafirmam sua proteção. De fato, a vedação de práticas
cruéis contra a vida animal tem encontrado, ainda que de modo tímido e insuficiente,
crescente amparo no âmbito dos Tribunais Superiores, como se percebe da análise do Recurso
Extraordinário (RE) 153.531-8/SC, das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI)
211389/SC, 243625/SC, 4983/CE, 1856-6/RJ, 3776/RN e 2514/SC, bem como do Recurso
Especial (REsp) 1.115.616 - MG (2009/0005385-2). Por vezes, é possível vislumbrar
lampejos de uma tendência do reconhecimento de um valor intrínseco do próprio animal,
defendido em sua individualidade, frente a práticas que agridem seus sentimentos e
integridades física e psicológica. Cabe aqui fazer uma breve reflexão acerca dos julgados
supracitados, conferindo-se especial atenção às razões da proteção animal expressas nos
votos.
No histórico julgamento do RE n° 153.531-8104, o Supremo Tribunal Federal entendeu
que a festa catarinense conhecida como “farra do boi”105, não obstante ser uma manifestação
cultural tradicionalmente celebrada por comunidades litorâneas de origem açoriana no Estado
de Santa Catarina, trata-se de uma prática que agride a Constituição Federal por submeter os

104
Conforme enfatizam WOLFGANG e FENSTERSEIFER (2009, p. 24), na referida decisão, o STF analisou o
caso à luz do princípio da proporcionalidade e ponderou o direito à manifestação cultural das comunidades
catarinenses e a crueldade contra os animais inerente à “farra do boi”, vedando a referida prática e protegendo a
integridade física e o bem-estar dos animais. “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO –
RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A
obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a
difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição
Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma
constitucional denominado ‘farra do boi’" (BRASIL. STF. RE 153531/SC. Rel. Min. Francisco Rezek, 1998).
105
A tortura tem início dias antes da festividade, quando o boi é isolado e privado de qualquer alimento. Assim,
estando o animal há dias sem comer, são colocados comida e água próximos a ele, de forma que ele possa ver,
mas não alcançar. No dia da Farra, o boi é solto pelas ruas, ocasião em que as pessoas o aguardam portando os
mais variados instrumentos com o intuito de feri-lo, como pedaços de pau, pedras, chicotes, facas, cordas e
lanças (PACIEVITCH, 2016).
89

animais à crueldade. Nesse sentido, o Min. Rel. Francisco Rezek afirma em seu voto,
reportando-se à fala do ilustre advogado da tribuna:

Manifestações culturais são práticas existentes em outras partes do país, que também
envolvem bois submetidos à farra do público, mas de pano, de madeira, de ‘papier
maché’; não seres vivos, dotados de sensibilidade e preservados pela Constituição da
República contra esse gênero de comportamento (BRASIL. STF. RE 153.531-8/SC.
Rel. Min. Francisco Rezek, 1998).

Com acerto, compreendeu-se que a obrigação constitucional do Estado de assegurar a


todos os cidadãos o pleno exercício de direitos culturais, promovendo a apreciação e difusão
de manifestações culturais, não exime o Estado de observar o dispositivo constitucional (art.
225, §1°, VII) que coíbe o tratamento cruel de animais. Ademais, as tradições não são e não
devem ser perenes, sob pena de eternizarem práticas absurdas, mantendo-as afastadas do filtro
corretivo da razão. Caso contrário, os romanos continuariam a jogar os cristãos aos leões,
como era costume nas arenas da antiga Roma. Afinal, não é o transcurso do tempo que
transforma uma prática imoral em moral e aceitável (CARNEIRO, 2013).
Nesse sentido, como enfatiza Sônia T. Felipe (apud CARNEIRO, 2013, p. 33):

[...] costumes são ações comuns à maior parte das pessoas de um determinado grupo
ou comunidade. Costumes são, geralmente, ações tradicionais, isto é, passadas de
uma geração à outra. Mas, somente por serem tudo isso, não quer dizer que sejam
portadoras da verdade. Está-se confundindo o debate, pensar que se há um costume,
automaticamente esse deve ser respeitado e, assim, jamais abolido. É um engano
afirmar que precisamos conservar todos os nossos costumes, para que possamos
seguir sendo o que somos.

Lamentavelmente, apesar do reconhecimento da natureza inconstitucional da referida


prática pelo STF, recorda-se sucessivas deflagrações de processos legislativos com vistas a
normatizar a “farra do boi” no Estado de Santa Catarina. É o caso da Lei estadual n°
11.365/2000 e da Lei municipal n° 542/2007 de Governador Celso Ramos (SC), ambas
declaradas inconstitucionais no julgamento das ADIs 211389/SC106 e 243625/SC107,

106
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PREFACIAL DE INAPLICABILIDADE DA LEI
FEDERAL 9.868/99 NO ÂMBITO DAS UNIDADES FEDERADAS. REJEIÇÃO. LEI 11.365/00,
PROMULGADA PELA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO, QUE AUTORIZA E
REGULAMENTA A CONHECIDA “FARRA DO BOI”, SEM TRATAMENTO CRUEL PARA O ANIMAL E
SEM PERTURBAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. PRÁTICA, TODAVIA, QUE PELAS SUAS
CARACTERÍSTICAS, IMPÕE SACRIFÍCIO AO ANIMAL, ÍNSITO À BRINCADEIRA. OFENSA AO ART.
182, INC. III, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO, QUE REPRODUZ PRECEITO DA CONGÊ- NERE
FEDERAL. INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO PROCEDENTE (SANTA CATARINA. TJSC. ADI n.
211.389. Rel. Des. Sérgio Paladino, 2002).
107
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 542, DE 18.04.2007, QUE
DISPÕE SOBRE MEDIDAS DE ORDENAMENTO DA DENOMINADA BRINCADEIRA DO BOI NO
90

respectivamente. No r. acórdão exarado no apreço da Lei estadual, o Relator Desembargador


Sérgio Paladino expõe de forma cristalina as razões da patente inconstitucionalidade, ao
sustentar que:

Consiste a ‘Farra do Boi’, manifestação sócio-cultural, trazida, principalmente, à


Ilha pelos primeiros açorianos que aqui aportaram, de sabença geral, em soltar um
boi, em local previamente escolhido, que pode ser aberto ou cercado, perseguindo-o,
em grupo, até levá-lo à exaustão, não raro, utilizando-se de objetos contundentes
para instigar-lhe a carreira.
Essa prática, como aqui narrada, das mais amenas e suaves, que se conhece, já
constitui, por si só, uma violência contra o animal, provocando-lhe cansaço, a
angústia e a aflição, formas, também, de tortura.
Imaginar-se a "Farra do Boi", sem essas conseqüências mínimas é, como refere o
autor da ação direta, simples utopia.
Por isso, a lei acusada de portar o vício da inconstitucionalidade, em que pese à
louvável preocupação dos seus mentores de poupar de qualquer sacrifício o animal,
não guarda, nos seus efeitos concretos, a boa feição teórica, pois, conhecendo-se o
enredo da brincadeira, não há, em sã consciência, como cogitar dela sem a dor do
animal.
É o que se tira, sem medo do erro ou da injustiça, do contubérnio, a cada ano, com o
divertimento - menos para o animal - que tem mostrado, registre-se, não pouco,
cenas muito mais fortes, por vezes cruentas, sempre em seu desfavor, daquelas aqui
admitidas, provocando reações de protesto fora das divisas do Estado e das
fronteiras do país.
De boa inspiração teórica, porque procura, sem prejuízo do animal, preservar uma
tradição secular, a lei, contudo, como tem demonstrado a experiência, e não será
diferente daqui em diante, pelas próprias características da brincadeira, tem, de fato,
efeitos práticos que conflitam com o espírito do legislador e que ferem o primado da
Constituição, que veda atos de violência contra os animais (SANTA CATARINA.
TJSC. ADI n. 211.389. Rel. Des. Sérgio Paladino, 2002).

Por sua vez, a Lei municipal n° 542/07 regulamentou a “Farra do boi” em Governador
Celso Ramos, sob a denominação de “brincadeira do boi”, permitindo sua realização no
período entre a quarta-feira de cinzas e o domingo de Páscoa, mediante prévio cadastramento
do evento junto à Prefeitura Municipal. A lei também dispunha o tempo em que o animal
poderia permanecer na “brincadeira”, prevendo eventual punição dos organizadores em caso
de dano à integridade física do animal participante. Sensatamente, o Ministério Público
reforçou, na petição da ADI 243625 SC , que apesar da intenção do legislador municipal de
proteger os animais utilizados no evento, a realidade demonstra que é da essência daquela

TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE GOVERNADOR CELSO RAMOS. PRÁTICA, TODAVIA QUE PELAS


SUAS CARACTERÍSTICAS SUJEITA A VIDA ANIMAL A EXPERIÊNCIAS DE CRUELDADE NÃO
COMPATÍVEIS COM O ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, ART.
225, § 1º, INC. VII. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO, ART. 182, INC. II. PRESENÇA DOS REQUISITOS DO
FUMUS BONI IURIS PERICULUM IN MORA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA (SANTA CATARINA.
TJSC. ADI n. 243.625. Rel. Des. Nelson Schaefer Martins, 2007).
91

manifestação cultural a prática de violência contra o animal108. Em seu voto, o Rel. Des.
Nelson Schaefer Martins limitou-se a aplicar os arts. 225, VII da Constituição Federal e 182,
II da Constituição Estadual, bem como a reproduzir as decisões supramencionadas sobre a
temática (SANTA CATARINA. TJSC. ADI n. 243.625. Rel. Des. Nelson Schaefer Martins,
2007).
Outra situação também enfrentada pelo STF diz respeito à realização de competições
entre “galos combatentes”, diferenciando-se da “farra do boi” por ter maior viés esportivo do
que cultural. Em síntese, a briga de galo se caracteriza pela condição de dois galos
combatentes se golpearem com bicos, ponteiras e esporas, ferindo-se até a mutilação ou a
morte. A questão foi discutida na ADI 2514/SC109, em que a Lei Estadual n° 11.366/00, que
regulava a criação, exposição e competições entre aves da espécie Galus-Galus foi declarada
inconstitucional, posto que “ao autorizar a odiosa competição entre galos, ignorou o comando
constitucional” (NOTÍCIAS STF, 2005). A Corte Suprema apreciou outros casos similares,
como a 3776/RN e a ADI 1856/RJ, ratificando o mesmo entendimento.
No Acórdão produzido junto a ADI 3776/RN110, destaca-se a posição do Ministro-
Relator Cezar Peluso, ao asseverar que:

[...] ao contrário de proteger a fauna com a finalidade de assegurar a efetividade do


direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o legislador potiguar dispôs
sobre a prática de competição entre aves incompatível com a vedação constitucional
expressa de submissão de animais à crueldade (BRASIL. STF. ADI 2.514-7/SC.
Rel. Min. Eros Grau, 2005).

Já no julgamento da ADI 1856/RJ111, o Ministro Ayres Britto, valendo-se da


explicação civilista tradicional, entendeu que esse tipo de prática não pode deixar de ser

108
“Mesmo com respeito às limitações impostas pela lei impugnada, o fato de soltar o boi e persegui-lo em
grupo, incitando-o durante um longo espaço de tempo, inevitavelmente caracterizará a crueldade, o sofrimento
desnecessário” (ESPAÇO VITAL, 2007).
109
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO ESTADO DE SANTA
CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO
DE AVES DE RAÇA E A REALIZAÇÃO DE ‘BRIGAS DE GALO’. A sujeição da vida animal a experiências
de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte. Pedido de declaração de
inconstitucionalidade julgado procedente” (BRASIL. STF. ADI 2.514/ SC. Rel. Min. Eros Grau, 2005).
110
“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 7.380/98, do Estado do Rio Grande do Norte.
Atividades esportivas com aves das raças combatentes. "Rinhas" ou "Brigas de galo". Regulamentação.
Inadmissibilidade. Meio Ambiente. Animais. Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF.
Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de
práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as chamadas "rinhas" ou ‘brigas de galo’”
(BRASIL. STF. ADI 3.776/RN. Rel. Min. Cezar Peluso, 2007).
111
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - BRIGA DE GALOS (LEI FLUMINENSE Nº
2.895/98) - LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE, PERTINENTE A EXPOSIÇÕES E A COMPETIÇÕES ENTRE
AVES DAS RAÇAS COMBATENTES, FAVORECE ESSA PRÁTICA CRIMINOSA - DIPLOMA
LEGISLATIVO QUE ESTIMULA O COMETIMENTO DE ATOS DE CRUELDADE CONTRA GALOS DE
92

combatida com toda a energia, porque “os galos são seres vivos. Da tortura de um galo para a
tortura de um ser humano é um passo”. Tal entendimento foi reforçado pelo Ministro Cezar
Paluso, ao enfatizar que a questão não está apenas na violação do artigo 225 da Carta Magna,
mas “ela ofende também a dignidade da pessoa humana porque, na verdade, ela implica de
certo modo um estímulo às pulsões mais primitivas e irracionais do ser humano”. Ademais, o
Ministro-Relator Celso de Mello lembra a todos que “a crueldade está relacionada à ideia de
submeter o animal a um mal desnecessário” (NOTÍCIAS STF, 2011).
Nota-se que, em ambos os julgados, o STF manifestou-se a favor de uma proteção
integral dos animais envolvidos, decidindo pela inconstitucionalidade das leis estaduais em
apreço e a consequente descaracterização das chamadas “rinhas” ou “brigas de galo” como
ditas “práticas esportivas”. Todavia, o tribunal limitou-se a aplicar o mandamento
constitucional ensejador da proteção, não se pronunciando a respeito das razões pelas quais a
Constituição salvaguarda as espécies animais. Como bem pontua Bruno Amaro Lacerda, “no
máximo, fez eco à concepção tradicional que vê na proteção dos animais uma tutela da
dignidade da pessoa humana” (LACERDA, 2011, p. 44-45).
Outrossim, contrariando essa tendência, tem-se o julgamento do Recurso Especial n°
1.115.916/MG112, interposto pelo Município de Belo Horizonte contra decisão do TJ-MG que

BRIGA - CRIME AMBIENTAL (LEI Nº 9.605/98, ART. 32)- MEIO AMBIENTE - DIREITO À
PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225)- PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU
CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA
DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - PROTEÇÃO
CONSTITUCIONAL DA FAUNA (CF, ART. 225, § 1º, VII)- DESCARACTERIZAÇÃO DA BRIGA DE
GALO COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL - RECONHECIMENTO DA INCONSTITUIONALIDADE
DA LEI ESTADUAL IMPUGNADA - AÇÃO DIRETA PROCEDENTE. LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE
AUTORIZA A REALIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES E COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS
COMBATENTES - NORMA QUE INSTITUCIONALIZA A PRÁTICA DE CRUELDADE CONTRA A
FAUNA - INCONSTITUCIONALIDADE. - A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática
criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que
veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE
153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente
folclórico. Precedentes. - A proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais
silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o
texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de
crueldade. - Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República,
é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar
todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade
restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os
seres irracionais, como os galos de briga (“gallus-gallus”) [...]” (BRASIL. STF. ADI 1.856/RJ. Rel. Min. Celso
de Mello, 2011).
112
ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL CENTRO DE CONTROLE DE ZOONOSE SACRIFÍCIO DE CAES
E GATOS VADIOS APREENDIDOS PELOS AGENTES DE ADMINISTRAÇAO POSSIBILIDADE
QUANDO INDISPENSÁVEL À PROTEÇAO DA SAÚDE HUMANA VEDADA A UTILIZAÇAO DE
MEIOS CRUÉIS. 1. O pedido deve ser interpretado em consonância com a pretensão deduzida na exordial como
um todo, sendo certo que oacolhimento do pedido extraído da interpretação lógico-sistemática da peça inicial
não implica em julgamento extra petita. 2. A decisão nos embargos infringentes não impôs um gravame maior ao
recorrente, mas apenas esclareceu e exemplificou métodos pelos quais a obrigação poderia ser cumprida, motivo
93

havia determinado que o sacrifício de cães e gatos vadios por meio de gás asfixiante no centro
de controle de zoonose era medida cruel que não deveria ser realizada. Nesse contexto, o
Superior Tribunal de Justiça negou, por unanimidade, o provimento do recurso, valendo-se do
entendimento que os animais não são simples coisas e que o Poder Público não poderia
exterminá-los como lhe aprouvesse, devendo matá-los somente quando constituíssem
ameaças à saúde humana e, nesta situação, com uso do meio menos cruel à disposição, “sob
pena de violação do art. 225 da CF, do art. 3° da Declaração Universal dos Direitos dos
Animais, dos arts. 1° e 3°, I e VI do Decreto Federal n. 24.645 e do art. 32 da Lei n.
9.605/1998”.
Nas palavras do relator, Min. Humberto Martins:

Não há como se entender que seres, como cães e gatos, que possuem um sistema
nervoso desenvolvido e que por isso sentem dor, que demonstram ter afeto (...)
possam ser considerados como coisas, como objetos materiais desprovidos de sinais
vitais. [...] A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade do
equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que animais são dotados de
uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor. A rejeição a tais atos,
aflora, na verdade, dos sentimentos de justiça, de compaixão, de piedade, que
orientam o ser humano a repelir toda e qualquer forma de mal radical, evitável e sem
justificativa razoável (BRASIL. STJ. Resp 1.115.916/MG. Rel. Min. Humberto
Martins, 2009).

Os rodeios também são tidos como práticas costumeiras, mais frequentes em regiões
de pecuária extensiva do país. Um dos principais rodeios ocorre no município de Barretos
(São Paulo). Existem precedentes vedando tais práticas, utilizando-se como fundamento o fato
de os animais serem submetidos a intensos maus tratos113, como se verifica no julgamento do

pelo qual, não houve violação do princípio da vedação da reformatio in pejus. 3. A meta principal e prioritária
dos centros de controles de zoonose é erradicar as doenças que podem ser transmitidas de animais a seres
humanos, tais quais a raiva e a leishmaniose. Por esse motivo, medidas de controle da reprodução dos animais,
seja por meio da injeção de hormônios ou de esterilização, devem ser prioritárias, até porque, nos termos do 8º
Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde, são mais eficazes no domínio de zoonoses. 4. Em situações
extremas, nas quais a medida se torne imprescindível para o resguardo da saúde humana, o extermínio dos
animais deve ser permitido. No entanto, nesses casos, é defeso a utilização de métodos cruéis, sob pena de
violação do art. 225 da CF, do art. 3º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, dos arts. 1º e 3º, I e VI
do Decreto Federal n. 24.645 e do art. 32 da Lei n. 9.605/1998. 5. Não se pode aceitar que com base na
discricionariedade o administrador realize práticas ilícitas. É possível até haver liberdade na escolha dos métodos
a serem utilizados, caso existam meios que se equivalham dentre os menos cruéis, o que não há é a possibilidade
do exercício do dever discricionário que implique em violação à finalidade legal. 6. In casu, a utilização de gás
asfixiante no centro de controle de zoonose é medida de extrema crueldade, que implica emviolação do sistema
normativo de proteção dos animais, não podendo ser justificada como exercício do dever discricionário do
administrador público. Recurso especial improvido” (BRASIL. STJ. Resp 1.115.916/MG. Rel. Min. Humberto
Martins, 2009).
113
“[...] os animais utilizados em rodeios, na sua maioria, são mansos e precisam ser espicaçados e atormentados
para demonstrar uma selvageria que não possuem, mas que na verdade é expressão de desespero e dor. Para
falsear a realidade e demonstrar um espírito violento inexistente, os peões utilizam-se de vários artifícios que,
atrelados aos animais ou ao peão que os montam, ou não, causam dor e desconforto aos bichos, revelando cruel e
94

egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no bojo da Apelação n° 0013772-


21.2007.8.26.0152/SP114, de relatoria do Desembargador Renato Nalini:

A atividade do rodeio submete os animais a atos de abuso e maus tratos, impinge-


lhes intenso martírio físico e mental, constitui-se em verdadeira exploração
econômica da dor, e por isso, não fosse a legislação constitucional e
infraconstitucional a vedar a prática, e ela deveria ser proibida por um interesse
humanitário, pois, como bem observou o MINISTRO FRANCISCO REZEK no
julgamento do Recurso Extraordinário12 que proibiu a "Farra do Boi" em Santa
Catarina, "com a negligência no que se refere à sensibilidade de animais anda-se
meio caminho até a indiferença a quanto se faça a seres humanos. Essas duas
formas de desídia são irmãs e quase sempre se reúnem, escalonadamente." Ainda
que se invoque a existência de uma legislação federal e estadual permissiva, a única
conclusão aceitável é aquela que impede as sessões de tortura pública a que são
expostos tantos animais. (...) Além disso, existe norma mais recente, a Lei Estadual
n° 11.977/05, que instituiu o Código de Proteção aos Animais do Estado, e dispôs
expressamente em seu artigo 22 que “São vedadas provas de rodeio e espetáculos
similares que envolvam o uso de instrumentos que visem induzir o animal à
realização de atividade ou comportamento que não se produziria naturalmente
sem o emprego de artifícios” (SÃO PAULO. TJSP. AP 0013772-
21.2007.8.26.0152. Rel. Des. Renato Nalini, 2011).

intolerável insensibilidade humana. Dentre esses instrumentos estão: · ‘sedém’, ‘cilhas’, ‘cintas ou ‘barrigueira’,
que consiste numa tira de couro, revestida ou não de material macio e que é fortemente amarrada na virilha do
animal (região inguinal), comprimindo os ureteres, o prepúcio (em cuja cavidade se aloja o pênis) e o escroto,
podendo causar esmagamento dos cordões espermáticos, com congestão dos vasos, grande edema e até
gangrena,ruptura da uretra com retenção urinária, uremia e morte. ·Esporas pontiagudas ou rombudas, usadas
nas botas dos peões e que são fincadas no baixo ventre e no peito dos bovinos e no pescoço e cabeça dos
eqüinos, causando dor, lesões físicas e às vezes, cegueira. ·Peiteiras, que consistem em cordas de couro
amarradas fortemente em voltado peito do animal, comprimindo os pulmões e causando desconforto, dor
elesões. Nas montarias em bois, às peiteiras são amarrados sinos, que assustamos animais e alteram ainda mais
seu estado emocional. · Choques elétricos e estocadas com instrumentos pontiagudos e contundentes” (TUGLIO,
2006, p. 236-237).
114
AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL - RODEIO - Obrigação de não fazer - Sentença que julgou
improcedente o pedido sob o argumento de o mesmo ser genérico e amplo - Inadmissibilidade - O pedido deve
ser parcialmente provido como medida de prevenção e proteção ao bem estar dos animais, conforme os pareceres
do Ministério Público em I e 2 grau - Contundência dos laudos e estudos produzidos a comprovar que a atividade
do rodeio submete os animais a atos de abuso e maus tratos, impinge-lhes intenso martírio físico e mental,
constitui-se em verdadeira exploração econômica da dor - Incidência do art. 225, § I , VII, da Constituição
Federal, do art. 193, X, da Constituição Estadual, além do art. 32 da Lei nº 9.605/98, que vedam expressamente a
crueldade contra os animais - Inadmissível a invocação dos princípios da valorização do trabalho humano e da
livre iniciativa, pois a Constituição Federal, embora tenha fundado a ordem econômica brasileira nesses valores,
impôs aos agentes econômicos a observância de várias diretivas, dentre as quais a defesa do meio ambiente, e a
conseqüente proteção dos animais, não são menos importantes. Condenação do apelado MARCELO
CHADDAD MAGOGA (DOCTOR'S RANCH) na obrigação de não fazer para que se abstenha de realizar
provas de rodeio em festivais/eventos (bulldogging, team roping, calf roping e quaisquer outras de laço e
derrubada), e ainda para que se abstenha de realizá-las em treinos e aulas na Fazenda Nascimento, sob pena de
aplicação de multa diária - Apelo parcialmente provido. Em verdade, sequer haveria necessidade dos laudos
produzidos e constantes dos autos para a notória constatação de que tais seres vivos, para deleite da espécie que
se considera a única racional de toda a criação, são submetidos a tortura e a tratamento vil. Ainda que houvesse
fundada dúvida sobre o fato do sofrimento e dor causados aos animais utilizados em rodeios - dúvida inexistente
diante da prova colacionada -, incide na espécie o princípio da precaução, segundo o qual "as pessoas e o seu
ambiente devem ter em seu favor o beneficio da dúvida, quando haja incerteza sobre se uma dada ação os vai
prejudicar", ou seja, existindo dúvida sobre a periculosidade que determinada atividade representa para o meio
ambiente, deve-se decidir favoravelmente a ele - ambiente - e contra o potencial agressor. CONFERE-SE
PARCIAL PROVIMENTO AO APELO (SÃO PAULO. TJSP. AP 0013772-21.2007.8.26.0152. Rel. Des.
Renato Nalini, 2011).
95

Por fim, muito se discute a respeito da prática da vaquejada, que consiste em uma
competição onde uma dupla de vaqueiros, montados em cavalos distintos, busca derrubar o
boi, puxando-o pelo rabo, de forma a dominar o animal em uma área demarcada. Em
julgamento recente da ADI 4983115, ajuizada pelo Procurador Geral da República contra a Lei
15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e
cultural no Estado, o STF entendeu pela procedência da ação. Novamente, constata-se com
facilidade conflito entre os artigos 225, §1°, VII e 215 do Diploma Maior.
Em seu voto, o Min. Rel. Marco Aurélio afirmou que os laudos técnicos contidos no
processo demonstram danos irreversíveis à saúde dos animais envolvidos na prática,
afirmando que “inexiste a mínima possibilidade de o boi não sofrer violência física e mental
quando submetido a esse tratamento”. Apesar de justificar as razões de voto na consagração,
pela Carta Federal, à proteção da fauna e da flora, como modo de assegurar o direito
fundamental do homem ao meio ambiente sadio e equilibrado (“direito fundamental de
terceira geração”), percebe-se que maior ênfase foi atribuída ao “próprio sacrifício do
animal”, ou seja, à crueldade intrínseca exercida contra os animais que participam do
“espetáculo”:

A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento


dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências
científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência
do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da
Carta de 1988. O sentido da expressão ‘crueldade’ constante na parte final do inciso
VII do §1° do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a
tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada,
revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma
estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos
neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente
(BRASIL. STF. ADI 4.983/CE. Rel. Min. Marco Aurélio, 2013).

Como uma verdadeira aula e sintetizando as principais ideias trabalhadas no presente


trabalho, ao proferir voto-vista, o Min. Luis Roberto Barroso demonstra em suas razões, de
forma brilhante, que:

[...] o constituinte fez uma avançada opção ética no que diz respeito aos animais. Ao
vedar “práticas que submetam animais a crueldade” (CF, art. 225, § 1º, VII), a

115
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LIMINAR – JULGAMENTO DEFINITIVO. 1. Esta
ação direta de inconstitucionalidade tem como objeto a Lei nº 15.299, de 8 de janeiro de 2013, do Estado do
Ceará, que regulamenta a vaquejada” como prática desportiva e cultural. A racionalidade própria ao Direito
direciona a aguardar-se o julgamento definitivo. 2. Aciono o disposto no artigo 12 da Lei nº 9.868/99.
Providenciem as informações, a manifestação do Advogado-Geral da União e o parecer do Procurador-Geral da
República. 3. Publiquem. (BRASIL. STF. ADI 4.983/CE. Rel. Min. Marco Aurélio, 2013).
96

Constituição não apenas reconheceu os animais como seres sencientes, mas também
reconheceu o interesse que eles têm de não sofrer. A tutela desse interesse não se dá,
como uma interpretação restritiva poderia sugerir, tão-somente para a proteção do
meioambiente, da fauna ou para a preservação das espécies. A proteção dos animais
contra práticas cruéis constitui norma autônoma, com objeto e valor próprios
(BRASIL. STF. ADI 4.983/CE. Rel. Min. Marco Aurélio, voto-vista Luis Roberto
Barroso, 2013).

Não há dúvidas de que os Tribunais Superiores vêm se utilizando do “princípio da


ponderação de direitos”116 para resolver conflitos específicos entre os direitos do homem
protegidos constitucionalmente e os direitos dos animais contra a crueldade, ainda que para
isso recorram, indissociavelmente, à roupagem da “proteção ao meio ambiente”. Aliás, trata-
se de fato reconhecido e criticado pelo Min. Luis Roberto Barroso em voto já mencionado,
posto que, em verdade, a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal “deve
ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em
razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam
reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente” (BRASIL. STF. ADI 4.983/CE.
Rel. Min. Marco Aurélio, voto-vista Luis Roberto Barroso, 2013)117. Outro princípio
vislumbrado é o da “proporcionalidade” ou “razoabilidade”, sendo utilizado como forma de
evitar danos irreparáveis ou de difícil reparação aos animais, reconhecendo-se, em algum
grau, a categoria do mínimo existencial em favor dos animais não humanos118. A passos

116
“Apregoa-se que os direitos dos animais não humanos devem ser tomados em consideração perante os
interesses do homem. Como direitos que fazem parte da interpretação/ponderação, não é cabível determinar, a
priori, a prevalência do interesse humano. Pode ser que um direito do animal não humano tenha mais peso ou
importância do que um direito do humano, o que significa deve vencer. Não é, portanto, aceitável afirmar que
qualquer direito do homem prepondera (sempre) sobre todo o direito dos animais não-humanos”. (OLIVEIRA
apud CHALFUN, 2008. p. 134).
117
“Entretanto, a maior parte da doutrina e a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal têm
interpretado essa tutela constitucional dos animais contra a crueldade como dependente do direito ao meio
ambiente, em razão da sua inserção no art. 225. Penso, no entanto, que essa interpretação não é a melhor pelas
razões que se seguem
36. Primeiramente, essa cláusula de vedação de práticas que submetam animais a crueldade foi inserida na
Constituição brasileira a partir da discussão, ocorrida na assembleia constituinte, sobre práticas cruéis contra
animais, especialmente na “farra do boi”, e não como mais uma medida voltada para a garantia de um meio-
ambiente ecologicamente equilibrado. Em segundo lugar, caso o propósito do constituinte fosse ecológico, não
seria preciso incluir a vedação de práticas de crueldade contra animais na redação do art. 225, § 1º, VII, já que,
no mesmo dispositivo, há o dever de “proteger a fauna”. Por fim, também não foi por um propósito
preservacionista que o constituinte inseriu tal cláusula, pois também não teria sentido incluí-la já havendo, no
mesmo dispositivo, a cláusula que proíbe práticas que “provoquem a extinção das espécies”.
37 [...] Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao
propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal
importa por si só, independentemente do equilibro do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua
importância para a preservação de sua espécie” (BRASIL. STF. ADI 4.983/CE. Rel. Min. Marco Aurélio, voto-
vista Luis Roberto Barroso, 2013).
118
“[...] a categoria mínimo existencial abrange também os animais não humanos, visto que também eles
perseguem uma vida boa, têm necessidades básicas, dignidade. Ter uma existência condigna não é direito apenas
dos humanos, mas sim de toda criatura” (OLIVEIRA apud CHALFUN, 2008. p. 129).
97

comedidos diante dos desafios supramencionados, depara-se com manifesta tendência a favor
da reprimenda de tratamentos inadequados aos animais, mesmo dentro de contextos culturais.
Impossível não rememorar o Habeas Corpus n° 833085-3/2005 impetrado pelo
Ministério Público do Estado da Bahia em favor de “Suíça”, uma chimpanzé que se
encontrava aprisionada no Parque Zoobotânico Getúlio Vargas, em uma jaula de 77,54 m².
Em sua fundamentação, “demonstrou-se a necessidade de extensão dos direitos humanos aos
grandes primatas, bem como a evidente precariedade das condições nas quais era mantida a
chimpanzé” (LOURENÇO, 2008, p. 525-526). O magistrado Edmundo Cruz, apesar de
indeferir a concessão da liminar para que o animal fosse transferido para o Santuário dos
Grandes Primatas do GAP, deu curso ao processo intimando a autoridade coatora a prestar as
informações cabíveis. Infelizmente, antes do julgamento do mérito do mandamus, “Suíça”
veio a falecer, solitária, em sua minúscula jaula, acarretando na perda de seu objeto. Todavia,
devem ser salientadas as seguintes ponderações do magistrado:

Tenho a certeza que, com a aceitação do debate, consegui despertar a atenção de


juristas de todo o país, tornando o tema motivo de amplas discussões, mesmo porque
é sabido que o Direito Processual Penal não é estático, e sim sujeito a constantes
mutações, onde novas decisões têm que se adaptar aos tempos hodiernos. Acredito
que mesmo com a morte de “Suíça”, o assunto ainda irá perdurar em debates
contínuos, principalmente nas salas de aula dos cursos de Direito [...]. É certo que o
tema não se esgota neste “Writ”, continuará, induvidosamente, provocando
polêmica. Enfim. Pode, ou não pode, um primata ser equiparado a um ser humano?
Será possível um animal ser liberado de uma jaula através de uma ordem de Habeas
Corpus? (BAHIA. TJBA. HC 833.085-3, Juiz Edmundo Cruz, 2005, in: SANTANA;
SANTANA, 2006, p. 281-285).
98

CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto no trabalho, depreende-se que se está diante de um


verdadeiro Direito dos Animais, não se admitindo que o tema, alicerçado no dever
fundamental do art. 225, §1°, VII, da Carta Magna, continue a ser tratado como mera
liberalidade por muitos operadores do direito. Faz-se imprescindível deixar de lado as
afinidades e preconceitos que o assunto naturalmente provoca, a fim de encará-lo com
seriedade. Ainda mais penetrante do que os obstáculos jurídicos, talvez seja a falta de apoio
da opinião pública, mormente devido à falta de informação e consciência do tratamento cruel
dispensado aos animais, em especial no ambiente industrial ligado à pecuária e em
laboratórios de pesquisa científica. Felizmente, com a popularização da internet e seu
potencial divulgador infinito, deseja-se acreditar que há uma tendência de desconstrução da
visão romantizada que muitos nutrem sobre as demais formas de exploração
institucionalizadas.
Feitas essas considerações, convém resgatar a importância de se repensar as bases
tradicionais da ética, notadamente no que diz respeito à definição daquilo que recebe o nome
de comunidade moral. É com acerto que muitas correntes se insurgem com vistas à ampliação
da comunidade moral tradicional, de maneira a incluir os animais ou até mesmo o conjunto da
natureza. Por outro ângulo, é lugar comum a crença de que é moralmente condenável causar
danos injustificados aos animais, de modo que uma teoria das obrigações indiretas não é
capaz de justificar com primazia tal pensamento. Afinal, haja vista a possibilidade de os
pacientes morais também sofrerem um dano direto, por terem a capacidade de vivenciar a
experiência de um bem estar suscetível de ser alterado negativamente, urge-se a aplicação da
teoria das obrigações diretas para todos os efeitos. Assim, também na esfera jurídica a
afirmação de que o ser humano não pode tratar os animais de qualquer maneira que o agrade
encontra importantes desdobramentos.
Mais do que meros objetos de direito, suscetíveis de incidência do direito de
propriedade e que recebem alguma proteção do ordenamento jurídico pátrio, procurou-se
mostrar que a Constituição Federal, assim como alguns dispositivos infralegais, como é o
caso da Lei n° 9.433/97 e da Lei n° 9.605/98, devem ser interpretados como normas protetivas
dos animais individualmente considerados, de modo a possibilitarem a concessão de efetivos
direitos subjetivos a estes. Dito de outro modo, buscou-se reunir conhecimentos jurídicos
normativos capazes de fundamentar a tese de que os animais não humanos podem ser
99

concebidos como legítimos sujeitos de direitos subjetivos por força das leis que os protegem,
embora tais direitos tenham que ser pleiteados por representatividade.
Aliás, cumpre destacar que a referida tese pode ser defendida sem que isso implique
na desestruturação lógica dos institutos civilistas contemplados, mediante a utilização da
“teoria dos entes despersonalizados”, até porque resta superada a equiparação dos conceitos
de “pessoa”, “sujeito de direitos” e “ser humano”. Merecedores de importantes distinções, o
conceito de sujeito de direito desenvolvido no presente trabalho conduz a conclusão de que
nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito, são seres humanos.
Assim, a categoria de sujeito de direito corresponde a um gênero que abarca sujeitos
personalizados (pessoas naturais e jurídicas) e sujeitos despersonalizados, de modo a tornar
possível que a tornar possível que os animais não humanos se incluam na última categoria, tal
como atualmente ocorre com o condomínio ou a massa falida, dotados de capacidade jurídica
e de capacidade postulatória no plano processual.
Por fim, a análise jurisprudencial de julgados mais emblemáticos que chegaram aos
Tribunais Superiores indica um significativo avanço no campo da ética animal, caminhando-
se aos poucos para a interpretação da tutela constitucional dos animais contra a crueldade de
modo independente do direito ao meio ambiente, ainda que esteja inserto no art. 225.
Portanto, vislumbra-se uma tendência ao reconhecimento de uma vedação eminentemente
moral que o constituinte conferiu em benefício dos animais sencientes, valorizando-os em
suas capacidades de sofrerem danos diretos diante de comportamentos nocivos humanos.
Mais do que simples lampejos de tal entendimento, o voto-vista do Min. Luís Roberto
Barroso, no julgamento da ADI 4.983 CE, que discute sobre a prática das Vaquejadas, não
deixa dúvidas: a Constituição não apenas reconheceu os animais como seres sencientes, mas
também reconheceu o interesse que eles têm de não sofrer. A proteção dos animais contra
práticas cruéis constitui norma autônoma, com objeto e valor próprios.
É imperativo reconhecer que isso tudo já sinaliza valioso avanço no processo
civilizatório. Há de se chegar o dia em que a concepção moral dominante conduza à abolição
de todos os tipos de exploração animal. Afinal, é papel do direito impulsionar modificações
ainda que as pessoas tenham dificuldade de aceitar a nova regra, dentro dos limites da
razoabilidade. É possível o reconhecimento do valor dignidade como inerente a outras formas
de vida não humanas. E, quando isso acontecer, parafraseando Leonardo da Vinci, o homem
conhecerá o íntimo de um animal, de modo que todo crime contra um animal será considerado
tal como um crime contra a humanidade.
101

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