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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Solange de Oliveira

O direito à saúde na Constituição brasileira: complexidades de uma


relação público-privada
no SUS

Mestrado em Direito

São Paulo
2017
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP

Solange de Oliveira

O direito à saúde na Constituição brasileira: complexidades de uma


relação público-privada
no SUS

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE
em Direito – Área de Concentração: Efetividade do
Direito, subárea: em Direito Constitucional, sob a
orientação do Professor Doutor André Ramos
Tavares.

São Paulo
2017
BANCA EXAMINADORA

_______________________________________
Prof. Dr. André Ramos Tavares – PUC-SP

_______________________________________

_______________________________________
A foto da plenária da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) registra um
momento de participação política muito importante para a Reforma Sanitária
Brasileira em prol da saúde pública do Brasil. Fotografia do Acervo da Câmara
dos Deputados.
Direito à Saúde [...]. Esse direito não se
materializa, simplesmente pela sua
formalização no contexto constitucional. Há,
simultaneamente, necessidade do Estado
assumir explicitamente uma política de saúde
consequente e integrada às demais políticas
econômicas e sociais, assegurando os meios
que permitam efetivá-las. Entre outras
condições, isso será garantido mediante o
controle do processo de formulação, gestão e
avaliação das políticas sociais e econômicas
pela população.

(Item 4 do Relatório Final da VIII Conferência


Nacional de Saúde. Brasília/DF, de 17 a 21 de
março de 1986.)
Ao meu pai FRANCISCO e à minha mãe MARIA JOSÉ,
com toda a minha admiração.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a DEUS, que me acompanha e me abençoa


nesta minha caminhada. A Ele toda honra e toda glória. Aos meus queridos
pais e irmãos. Ao INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE

SÃO PAULO, por ter possibilitado o afastamento para realização do Mestrado.


Ao PROF. DR. ANDRÉ RAMOS TAVARES, meu Orientador, pelos seus
ensinamentos, praticidade, objetividade e, principalmente, pela sua
tranquilidade e paciência – traços tão essenciais na vida de um Mestre. Ao
PROF. DR. MARCELO GOMES SODRÉ e PROF. DR. THIAGO LOPES MATSUSHITA, por
terem participado da Banca de Qualificação e pelas valiosas críticas e
sugestões dadas naquele momento. Não poderia deixar de agradecer aos
amigos que fiz na PUC-SP e com os quais compartilhei muitos bons
momentos: ALEXANDRE CASTRO, ANNA CLÁUDIA SVOBODA, ELISABETE GARCIA,
ERICK BEYRUTH DE CARVALHO, ISABEL CRISTINA ARRIEL DE QUEIROZ, PAULA
PASCHOAL DI CESARE e PEDRO VALIM. Agradeço à PUC-SP pela oportunidade
de ter podido aprender com os PROFESSORES DOUTORES CLÁUDIO JOSÉ
LANGROIVA PEREIRA, GABRIEL BENEDITO ISSAAC CHALITA, LUIZ ALBERTO DAVID
ARAUJO, MARCIA CHRISTINA DE SOUZA ALVIM e MAURÍCIO GARCIA PALLARES
ZOCKUN. E um agradecimento muito especial à querida PROFESSORA DOUTORA
MARIA GARCIA. Agradeço ao Centro de Estudos e Pesquisas de Direito
Sanitário/CEPEDISA/USP, na pessoa de SILMARA DUARTE. E aos meus
queridos amigos ALDA ROBERTA TORRES, CARLA SOUTO, REGINA RECASSAGE,
RICARDO CORRÊA COELHO, SHIRLEY JUZIUK, SORAYA QUEIROZ e THOMAS EDSON
FILGUEIRAS, pela amizade demonstrada ao me incentivar para que eu fizesse o
Mestrado. Obrigada!
RESUMO

OLIVEIRA, Solange. O direito à saúde na Constituição brasileira:


complexidades de uma relação público-privada no SUS. 2017. 231p.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em
Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo.

Trata-se o presente estudo de uma análise do direito à saúde na Constituição


brasileira: complexidades de uma relação público-privada no SUS. Parte-se
inicialmente da evolução dos direitos fundamentais, necessário para a
compreensão de sua dinâmica, um olhar na historicidade mundial com a
exploração de vários documentos legais produzidos ao longo dos tempos.
Destaca-se a fase da constitucionalização que se caracterizará pelo
reconhecimento dos direitos fundamentais no direito positivo. Faz-se relevante
a análise histórica e evolutiva do direito à saúde à luz das Constituições
brasileiras e, em especial, da Constituição da República de 1988. Passa-se
pelo princípio da dignidade da pessoa humana, pois compreende-se a saúde
das pessoas como valor universal a ser buscado por todos. Este trabalho
destaca a supremacia da Constituição e com base no Texto Constitucional,
descreve-se e analisa-se o Sistema de Saúde Brasileiro em sua complexa
relação público-privada. Em termos concretos, como atmosfera dessa relação,
o subfinanciamento do SUS, a constante ampliação das renúncias fiscais no
setor da saúde, que contribuem para o fortalecimento do setor privado.
Também é avaliado o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
na regulamentação das operadoras dos planos de saúde, assim como o papel
do ressarcimento ao SUS.

Palavras-chave: direito à saúde; relação público-privada; Constituição.


ABSTRACT

OLIVEIRA, Solange. The right to health in the Brazilian Constitution:


complexities of a public-private relation in SUS. 2017. 231p. Dissertação
(Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo.

The present study is about an analysis of the right to health in Brazilian


Constitution: complexities of a public-private relation in SUS. It begins, initially,
from the evolution of the fundamental rights, necessary for the understanding of
its dynamics, a look at the world historicity with the exploration of several legal
documents produced throughout the times. It´s emphasized the
constitutionalization phase, which will be characterized by the recognition of
fundamental rights in positive law. It is relevant the historical and evolutionary
analysis of the right to health in light of the Brazilian Constitutions and,
especially, of the Constitution of the Republic of 1988. It passes through the
principle of the dignity of the human person, since people's health is understood
as a universal value to be sought by all. This paper highlights the supremacy of
the Constitution and based on the Constitutional Text, describes and analyzes
the Brazilian Health System in its complex public-private relation.
In concrete terms, as an atmosphere of this relation, the underfunding of the
SUS, the constant expansion of tax waivers in the health sector, which
contribute to the strengthening of the private sector. The role of the National
Supplementary Health Agency (ANS) in the regulation of health plan operators,
as well as the role of reimbursement to the SUS, is also evaluated.

Keywords: right to health; public-private relation; Constitution.


LISTA DE SIGLAS

ABI Aviso de Beneficiário Identificado


a.C. Antes de Cristo
ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade
AI Agravo de Instrumento
AIDS Acquired Immunodeficiency Syndrome
AgR Agravo Regimental
AIH Autorização de Internação Hospitalar
AMB Associação Médica Brasileira
ANS Agência Nacional de Saúde Suplementar
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
ASPS Ações e Serviços Públicos em Saúde
CADIN Cadastro Informativo de Créditos não Quitados no Setor
Público
CADOP Cadastro de Operadoras
CAP Caixa de Aposentadoria e Pensão
CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
CGU Controladoria-Geral da União
CID Catalogação Intermediária de Doenças
CNAS Conselho Nacional de Assistência Social
CNS Conselho Nacional de Saúde
CNS Confederação Nacional de Saúde
CNSP Conselho Nacional de Seguros Privados
COFINS Contribuição para Financiamento da Seguridade Social
CONSU Conselho de Saúde Suplementar
CONASS Conselho Nacional de Secretários de Saúde
CONDSS Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde
CPMF Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
CR Constituição da República
DATASUS Departamento de Informática do SUS
d.C. Depois de Cristo
DF Distrito Federal
DGSP Diretoria Geral de Saúde Pública
DNSP Departamento Nacional de Saúde Pública
DSS Determinantes Sociais da Saúde
EC Emenda Constitucional
FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador
FIOCRUZ Fundação Osvaldo Cruz
FGV Fundação Getúlio Vargas
FMI Fundo Monetário Internacional
FNS Fundo Nacional de Saúde
IAP Instituto de Aposentadoria e Pensão
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INPS Instituto Nacional de Previdência Social
IRPF Imposto de Renda de Pessoa Física
IRPJ Imposto de Renda de Pessoa Jurídica
IPCA Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPVA Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores
LOS Lei Orgânica da Saúde
LPS Lei dos Planos de Saúde
MP Ministério Público
MPF Ministério Público Federal
MS Ministério da Saúde
OMS Organização Mundial de Saúde
ONU Organização das Nações Unidas
OPAS Organização Pan-Americana da Saúde
PIB Produto Interno Bruto
RAS Rede de Atenção à Saúde
RE Recurso Extraordinário
REsp Recurso Especial
RFB Receita Federal do Brasil
RIPSA Rede Interagencial de Informações para a Saúde
SAC Serviço de Atendimento ao Cliente
SADT Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico
SIAFI Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo
Federal
SIB Sistema de Informação de Beneficiários
SIC Sistema de Informação ao Cidadão
SIDA Síndrome de Imunodeficiência Adquirida
SIDOR Sistema Integrado de Dados Orçamentários
SIOPS Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos
STJ Superior Tribunal de Justiça
STF Supremo Tribunal Federal
SUS Sistema Único de Saúde
TCE Tribunal de Contas do Estado
TJ Tribunal de Justiça
TRF Tribunal Regional Federal
TUNEP Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 16

CAPÍTULO 1 – SAÚDE E CONSTITUIÇÃO ............................................................. 20

1.1 A evolução dos direitos fundamentais – Considerações


preliminares ....................................................................................... 20
1.2 Características dos direitos fundamentais em uma sequência
cronológica......................................................................................... 21
1.3 Os direitos fundamentais nas Constituições brasileiras ..................... 38
1.4 Alguns aspectos da doutrina dos princípios ....................................... 41
1.5 Princípios constitucionais ................................................................... 45
1.6 Por uma revisão para uma teoria dos princípios na perspectiva
constitucional – suas características: segundo André Ramos
Tavares .............................................................................................. 47
1.7 A doutrina da efetividade .................................................................... 49
1.8 Uma revisão da teoria da aplicação das normas constitucionais ....... 51
1.9 O princípio da dignidade da pessoa humana ..................................... 54
1.9.1 A dignidade da pessoa humana sob o olhar dos
filósofos antigos .................................................................. 56
1.9.2 A dignidade da pessoa humana como princípio
valorativo e como característica do Estado democrático .... 58
1.9.3 A dignidade da pessoa humana como valor supremo ......... 59
CAPÍTULO 2 – O SISTEMA DE SAÚDE .................................................................. 64

2.1 A saúde na antiguidade: resgate histórico.......................................... 64


2.2 A saúde no Brasil: resgate histórico ................................................... 68
2.3 Saúde: conceituação .......................................................................... 70
2.3.1 O conceito de saúde presente na realidade concreta das
pessoas ............................................................................... 73
2.3.2 O conceito de saúde pública ............................................... 76
2.3.3 O conceito de saúde na Constituição brasileira de 1988 .... 77
2.4 O direito à saúde nas Constituições anteriores de 1988 .................... 79
2.5 Do direito à saúde na Constituição de 1988 ....................................... 81
2.6 O Sistema Único de Saúde: breve histórico ....................................... 85
2.7 O SUS como garantia do direito à saúde: objetivos, diretrizes e
princípios............................................................................................ 88
2.7.1 Objetivos ............................................................................. 88
2.7.2 Diretrizes ............................................................................. 90
2.8 O Sistema Único de Saúde e os princípios ordenadores da
universalidade e da integralidade .................................................... 100
2.8.1 Princípio da universalidade ............................................... 101
2.8.2 Princípio da integralidade .................................................. 107
2.9 As ações e os serviços de saúde ..................................................... 109

CAPÍTULO 3 – COMPLEXIDADES DE UMA RELAÇÃO PÚBLICO-PRIVADA


NO SUS ............................................................................................................. 119

3.1 Considerações preliminares sobre o financiamento da saúde


(essenciais para a delimitação do tema) .......................................... 119
3.2 Subsídios públicos (diretos e indiretos) para os planos e seguros
privados de saúde ............................................................................ 132
3.3 A Lei n.º 9.656/1998: marco regulatório da saúde suplementar ....... 144
3.4 O (não) ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS) .............. 158
3.5 Como se processará o ressarcimento ao SUS?............................... 161
3.6 Fundamento jurídico para o ressarcimento ao SUS ......................... 166
3.7 Gastos públicos com planos de saúde de servidores ...................... 173
3.7.1 A participação do orçamento público no financiamento
de planos privados para os servidores públicos da
União ................................................................................. 175
3.8 A renúncia fiscal ............................................................................... 183

CAPÍTULO 4 – PROPOSIÇÕES PARA UM DIREITO À SAÚDE DE ACORDO


COM A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 ............................................. 192

4.1 O direito à saúde com fundamento na teoria da efetividade ............ 192


4.2 Primeira proposição: mudanças no sentido de compreensão da
universalidade de acesso. As Redes de Atenção à Saúde (RAS) ... 194
4.3 Segunda proposição: políticas públicas que associem
determinantes sociais da saúde como necessários para o direito
à saúde ............................................................................................ 199
4.4 Terceira proposta: mudanças que reduzam a segmentação da
oferta de atendimento ...................................................................... 203

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 209

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 213

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Formas possíveis da assistência à saúde............................................. 135


Figura 2 – Três aspectos da regulação da Lei n.º 9.656/1998 ............................... 147
Figura 3 – Modelo de Determinação Social de “Dahlgreen e Whitehead” (1991)
adotado pela Comissão Nacional de Determinantes Sociais da
Saúde (CNDSS – Brasil) ....................................................................... 201

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Distribuição do gasto do Ministério da Saúde por fonte de recursos.


Período: 1995-2008 ............................................................................. 125
Tabela 2 – Gasto público das três esferas com ações e serviços públicos em
saúde, 2000-2010 (em bilhões R$ de 2010, deflacionados pela
média anual do IPCA) ......................................................................... 128
Tabela 3 – Gasto público das três esferas de governo com ações e serviços
públicos de saúde, como proporção do PIB e em per capita –
2000-2010 ........................................................................................... 129
Tabela 4 – Operadoras com registro ativo na ANS ............................................... 149
Tabela 5 – Número de beneficiários por modalidade de operadora ...................... 152
Tabela 6 – Planos privados de saúde, por segmentação assistencial, segundo
tipo de contratação (Brasil, março/2016) ............................................. 155
Tabela 7 – Notificações (número e porcentagem) da ANS às operadoras de
planos de saúde (Brasil, de 2001 até abril/2016) ................................ 162
Tabela 8 – Despesa da União com saúde suplementar e quantidade de
servidores ativos e aposentados, com respectivos dependentes,
no período de janeiro de 2015 e dezembro de 2015 ........................... 176
Tabela 9 – Indicadores estaduais (recursos próprios) ano: 2015 .......................... 179
Tabela 10 – Participação percentual, gasto tributário em saúde: anos 2003-
2013 .................................................................................................. 188
Tabela 11 – Distribuição percentual do gasto tributário em saúde (2003-2013) ..... 190

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Distribuição percentual das operadoras com registro ativo na ANS ..... 148
Gráfico 2 – Inscrição para a dívida ativa (2011-2014)............................................. 163
Gráfico 3 – Ressarcimento ao SUS (repasse ao FNS) ........................................... 164
16

INTRODUÇÃO

Entre o final de 1978 e o final de 1983, a dívida externa brasileira


elevou-se a 142%, deixando o Brasil em estado de vulnerabilidade em relação
aos credores internacionais. Em 1983, o País assinou um acordo com o Fundo
Monetário Internacional (FMI) que impunha muitas exigências ao Brasil, como a
liberalização da economia e o controle do déficit público, que impactaram
sobremaneira a primeira, provocando insatisfação social com o regime militar.
Nesse período, surge o Movimento das Diretas Já (1983-1984) que impediu o
General João Baptista de Oliveira Figueiredo1 de fazer o seu sucessor,
acelerando a transição para a democracia. O Senador Tancredo Neves em 1985,
por meio de eleição indireta, é eleito Presidente. Seu vice, José Sarney, em
virtude da morte de Tancredo, toma posse como Presidente do Brasil. Nesse
contexto, o Congresso eleito em 1986 se encarrega de fazer uma nova
constituição a fim de conduzir o País à plena democracia. Em meio a uma crise
econômica muito séria, que leva a planos econômicos emergenciais que visavam
tirar o País da hiperinflação e fomentar o crescimento econômico, transcorre-se o
processo de redemocratização.2

Diante de todos esses acontecimentos, a população mobilizou-se pela


reforma do sistema de saúde, em especial o Movimento da Reforma Sanitária,
que enfrentou resistências de toda sorte, lutando contra a ditadura militar com o
tema Democracia é Saúde. Esse movimento foi consolidado tendo como marco
de luta a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília de 17 a 23 de
março de 1986, em que se discutiram e se aprovaram as principais demandas do
Movimento da Reforma Sanitária, a saber: fortalecimento do setor público de

1
Foi o 30.º Presidente do Brasil, de 1979 a 1985, e o último Presidente do período do regime
militar.
2
SOUZA, Francisco Eduardo Pires de. Metamorfoses do endividamento externo. In: CASTRO,
Antonio Barros de Castro; SOUZA, Francisco Eduardo Pires de. A economia brasileira em
marcha forçada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 97-190.
17

saúde; a expansão da cobertura a todos os cidadãos; a integração da medicina


previdenciária à saúde pública, constituindo assim um sistema único.3

Passados 28 anos de existência da Constituição Cidadã, muito se


construiu no campo dos direitos sociais, em especial no campo da saúde pública,
que trouxe importantes inovações, principalmente se o olhar se voltar para o
passado, pois as pessoas antes da nova Carta só tinham acesso à saúde se
demonstrassem ter: (i) vínculo trabalhista (carteira registrada); (ii) capacidade de
pagamento (assistência médica particular); ou (iii) dependência de favores
(caridade). A nova Constituição mudou essa feição de merecimento à assistência
à saúde, rompendo definitivamente com esse caráter ao consagrar o direito à
saúde como universal e ao definir princípios e diretrizes para orientarem a política
desse setor. Talvez esse seja o aspecto mais virtuoso do campo da saúde da
nova Carta Constitucional ao transformá-la em direito da cidadania, dando origem
ao processo de criação de um sistema público, universal, integrado e
descentralizado. Tornando-se uma política do Estado brasileiro, muito além de
uma política de ministérios e secretarias de saúde. É a marca da organização da
saúde pública no Brasil enfrentada pela Constituição.

Essa mentalidade é consolidada pela CR/1988 com a criação do


Sistema Único de Saúde (SUS) em 19 de setembro de 1990, peça fundamental
para a implementação dessa política de saúde que deve ser universal, integral e
equânime. No entanto, a criação do SUS não conseguiu incorporar todos os
cidadãos à assistência pública universal. De acordo com pesquisa realizada pelo
Ministério da Saúde,4 em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), entre agosto de 2013 e fevereiro de 2014, revelou que 71,1%
dos brasileiros têm o Sistema Único de Saúde como referência, o que equivale a
aproximadamente 146.638.959 milhões de brasileiros que dependem diária e

3
Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde. Realizada em Brasília de 17 a 21 de
março de 1986. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/relatorios/
relatorio_8.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2016.
4
Ministério da Saúde e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em:
<http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/17961-71-dos-
brasileiros-tem-os-servicos-publicos-de-saude-como-referencia>. Acesso em: 2 ago. 2016.
18

exclusivamente das ações e serviços de saúde, ou seja, necessitam da


intervenção do Estado para o seu completo bem-estar físico, mental e social.

O SUS encontra-se com poucos recursos para garantir o direito à saúde


nos termos da Constituição. Além disso, tem enfrentado uma luta desleal com os
planos de saúde que se proliferam, não atendendo os seus beneficiários de forma
adequada, que acabam também recorrendo ao Sistema Público quando os planos
de saúde que contrataram não prestam determinados procedimentos conforme
estabelecido em seus contratos. Há, portanto, dívidas dessas operadoras que
deveriam ressarcir o SUS, mas não o fazem. Salienta-se que é perversa a
condição imposta a um sistema universal num país com a dimensão do Brasil. Por
isso, agrava-se a situação do SUS, quando as políticas sociais e econômicas não
submetem à vontade da Constituição as estratégias de transferências de recursos
públicos para transformá-lo em um Sistema Público para todos os brasileiros.

O presente estudo trata justamente das complexidades de uma relação


dicotômica (público-privada) no SUS que revela que essas duas concepções,
saúde como direito e saúde como responsabilidade do indivíduo, são, no caso
brasileiro, questões polêmicas que devem ser enfrentadas pelo Estado. Além
disso, têm proliferado operadoras de planos de saúde na disputa por mercados
consumidores.

Pela leitura da Lei n.º 9.656/1998, considerada marco regulatório da


saúde suplementar, delegou-se para o Poder Executivo também a
responsabilidade pela fiscalização das operadoras de planos de saúde. Dispôs
sobre a figura do ressarcimento dos planos de saúde ao SUS quando este presta
atendimento ao beneficiário que deveria ter sido atendido, conforme consta no
contrato entre o plano de saúde e o beneficiário (consumidor). Principalmente os
idosos e os portadores de patologias crônicas e deficiências que recorrem à rede
pública de saúde, pois são frequentes as exclusões de coberturas e restrições de
atendimento dessas operadoras de saúde aos seus consumidores, por isso a
urgente e necessária regulamentação. Por meio dessa prática de segregação, as
próprias operadoras forçam a saída desses usuários.
19

Nessa perspectiva, há confusão na prestação de serviço que atende


tanto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como pelos planos privados, que hoje é
conhecido como dupla porta, nos hospitais e que foi tema da audiência pública no
STF, realizada em 26 de maio de 2014. Essa prática causa enorme desconforto
para os profissionais que atuam seriamente no sistema público, tratando-se de
outra deformação da relação público-privada. Esse tratamento segmentado que
acontece nas unidades públicas começa pelo acesso (agendamento), que é
completamente diferenciado, e também nas acomodações. Outro problema, ao
utilizar o serviço público dessa forma, é a demora para ser atendido pelo SUS, em
virtude do excesso de demanda influenciada pelo setor privado. Com esse tipo de
permissividade, o próprio sistema institucionaliza a segmentação e contraria os
princípios básicos do SUS, que são igualdade da assistência à saúde, sem
preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.
20

CAPÍTULO 1
SAÚDE E CONSTITUIÇÃO

1.1 A evolução dos direitos fundamentais – Considerações preliminares

A República Federativa do Brasil, por meio de sua Carta Constitucional,5


traz no Título II, em seus artigos 5.º a 17, dispositivos que estabelecem os Direitos
e Garantias Fundamentais aos seus cidadãos. Assim, entende-se que os direitos
fundamentais permeiam o Texto Constitucional, em especial quando os relaciona
à dignidade da pessoa humana que a compreende como inerente ao ser humano.
Ao enfrentar neste trabalho uma questão que é tão cara a todas as pessoas,
como a saúde, torna-se essencial discutir, ainda que preliminarmente, a
necessidade do reconhecimento dos direitos fundamentais na Constituição
vigente que obriga, enquanto como seres históricos e sociais, ter clara convicção
de que os mesmos eles não nasceram nessa Constituição e igualmente não estão
lá por acaso, mas foram construídos ao longo do tempo.6 Nesse sentido, houve
um movimento em prol de sua construção que contou com a participação de cada
pessoa, grupo de pessoas e de países, no decorrer da história da humanidade.
Muito embora não se intente aqui explorar todo esse movimento histórico, pois o
objetivo é modesto, apresentando apenas alguns aspectos considerados
relevantes e que possibilitaram a evolução7 dos direitos fundamentais em dado
tempo e espaço como instrumento de transformação, de positivação e a
consequente constitucionalização no final do século XVIII.

5
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988.
6
O tema que envolve o direito à saúde na Constituição Brasileira: complexidades de uma
relação público-privada no SUS estão intimamente ligado à história, uma vez que trata de
direito das pessoas. Por isso, requer, ainda que breve, a realização de estudos à luz da
história. Não simplesmente como um retorno ao passado, mas na busca de um conceito de
direito fundamental que foi travado pela própria condição humana e incorporado pelos
movimentos econômicos, políticos, culturais e em seguida no plano jurídico.
7
Consoante Norberto Bobbio: “[...] o elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se
modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos
interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das
transformações técnicas etc. Isso significa que os direitos do homem constituem uma classe
variável, como a história dos últimos séculos demonstra suficientemente” (A era dos direitos.
Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 7.ª tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 13).
21

Ingo Wolfgang Sarlet sintetiza a evolução histórica dos direitos


fundamentais desde a sua gênese até a positivação dos direitos fundamentais
nas primeiras constituições escritas, citando Klaus Stern,8 que a destacou em três
fases: (i) Pré-história: desenvolve-se até o século XVI. Nesse período, podem
ser identificadas as raízes dos valores da dignidade da pessoa humana, da
liberdade e da igualdade explicitados na filosofia clássica, especialmente em
Aristóteles, no Cristianismo, pelas teses da unidade da humanidade e da
igualdade de todos os homens em dignidade (perante Deus); (ii) Intermediária:
período de elaboração da doutrina jusnaturalista e da afirmação dos direitos
naturais do homem, em especial a partir do século XVI, em que se destaca o
pensamento de São Tomás de Aquino, que, além da crença de igualdade de que
todos os homens eram iguais perante Deus, advogava que a personalidade
humana tem um valor próprio; (iii) Constitucionalização: iniciada em 1776 com
as sucessivas declarações de direitos dos novos Estados americanos. Entre os
séculos XVII e XVIII, a doutrina jusnaturalista, por meio das teorias
contratualistas, atinge o seu ponto culminante de desenvolvimento.9

1.2 Características dos direitos fundamentais em uma sequência


cronológica

Impende considerar neste momento da pesquisa a constatação de


Rogério Gesta Leal de que parece ser consenso entre os historiadores que as
origens dos direitos fundamentais da pessoa humana se encontram na
antiguidade: nos primórdios da civilização.10

Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, contudo, questionam essa origem


longínqua, sustentando que tais opiniões carecem de fundamento histórico.
Argumentam que, para poder falar em direitos fundamentais, faz-se necessária a

8
STERN, Staatsrecht III/I, p. 56 Apud SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais:
uma teoria geral dos direitos fundamentais. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
p. 37.
9
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 37 e 39.
10
LEAL, Rogério Gesta. Direitos humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1997. p. 20.
22

presença de três requisitos: (i) Estado: entendido como Estado Moderno, que
para o seu funcionamento requer um poder centralizado que efetivamente
controle território e, assim, estabeleça as suas decisões por meio da
Administração Pública, dos tribunais, da polícia, das forças armadas, das escolas
(como aparelhos de educação) e dos meios de comunicação; (ii) Indivíduo:
pessoa física compreendida como ser moral e autônomo e sujeito de direito; e,
por último, (iii) Texto normativo regulador da relação entre Estado e
indivíduos: trata-se da Constituição no sentido formal, que deve ter validade em
todo o território nacional e ser dotado de supremacia.11 André Ramos Tavares
concorda com essa tese, mas acrescenta que essas condições “reúnem-se,
integralmente, apenas no final do século XVIII”.12

De acordo com Alexandre de Moraes,13 existem vestígios de uma teoria


de direitos individuais do ser humano no antigo Egito e na Mesopotâmia que, por
volta do terceiro milênio a.C., já previu alguns instrumentos que possibilitassem
proteção individual em relação aos líderes da cidade.14 Para ele, o Código de
Hamurabi pode ser o primeiro texto normativo codificado da história universal a
consagrar uma série de direitos comuns, como a propriedade, a vida, a honra, a
dignidade e a família, bem como prever a supremacia das leis em face dos
governantes.

11
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2. ed. São
Paulo: RT, 2009. p. 22-23.
12
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p.
336.
13
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral (comentários aos artigos
1.º a 5.º da Constituição da República Federativa do Brasil – doutrina e jurisprudência). 3. ed.
São Paulo: Atlas, 2000. p. 24-25. (Coleção Temas Jurídicos, v. 3.)
14
São identificados como exemplos normativos o Código de Uruinimgina, também chamado de
Código de Urukagina (data aproximada de 2350 a.C.), o Código de Ur-Nammu (de 2100-2000
a.C. aproximadamente), o Código de Hammurabi (datado possivelmente de 1700 a.C.), a Lei
de Torah (elaborada por volta de 1.200 a.C.) e o Código de Manu (do século II a.C ao século II
d.C, aproximadamente, embora alguns historiadores entendam que o Código de Manu
antecedeu o Código de Hammurabi) (TAIAR, Rogério. Direito internacional dos direitos
humanos: uma discussão sobre o conceito de soberania face à efetivação da proteção
internacional dos direitos humanos. 2009. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São
Paulo: USP, p. 134).
23

O Código de Hamurabi (cerca de 1780 a.C.)15 baseava-se,


fundamentalmente, na lei de talião (“olho por olho, dente por dente”) e previa, por
exemplo: “castigos desumanos como o afogamento, o empalamento e o
arrancamento da língua e de outras partes do corpo”.16

Ainda nesse contexto, há que referir o pensamento de Ingo Wolfgang


Sarlet sobre o legado de algumas das ideias-chave da religião e da filosofia que
influenciaram diretamente o pensamento jusnaturalista:

De modo especial, os valores da dignidade da pessoa humana, da


liberdade e da igualdade dos homens encontram suas raízes na
filosofia clássica, especialmente na greco-romana, e no
pensamento cristão. Saliente-se, aqui, a circunstância de que a
democracia ateniense constituía um modelo político fundado na
figura do homem livre e dotado de individualidade. Do Antigo
Testamento17 herdamos a ideia de que o ser humano representa o
ponto culminante da criação divina, tendo sido feito à imagem e
semelhança de Deus. Da doutrina estoica greco-romana e do
cristianismo advieram, por sua vez, as teses da unidade da

15
Sexto rei sumério durante período controverso (1792-1750 ou 1730-1685 a.C.) e nascido em
Babel, “Khammu-rabi” (pronúncia em babilônio) foi fundador do 1.º Império Babilônico
(correspondente ao atual Iraque), unificando amplamente o mundo mesopotâmico, unindo os
semitas e os sumérios e levando a Babilônia ao máximo esplendor. O nome de Hamurabi
permanece indissociavelmente ligado ao código jurídico tido como o mais remoto já
descoberto: o Código de Hamurabi. O legislador babilônico consolidou a tradição jurídica,
harmonizou os costumes e estendeu o direito e a lei a todos os súditos. Seu código estabelecia
regras de vida e de propriedade, apresentando leis específicas, sobre situações concretas e
pontuais.
O texto de 281 preceitos (indo de 1 a 282, mas excluindo a cláusula 13 por superstições da
época) foi reencontrado sob as ruínas da acrópole de Susa por uma delegação francesa na
Pérsia e transportado para o Museu do Louvre, Paris. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-
cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/codigo-
de-hamurabi.html>. Acesso em: 6 jul. 2016.
16
TAIAR, Rogério. Direito internacional dos direitos humanos cit.
17
Também nos Livros dos Profetas Isaías e Amós, por volta do século VII a.C, que são exemplos
de profetas que lutavam pelas causas sociais. Em Isaías: “Cessai de fazer o mal, aprendei a
fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido. Fazei justiça ao órfão, defendei a viúva”.
Amós, como Isaías, tinha um sentimento de justiça: “Portanto, já que explorais o pobre e lhe
exigis tributo de trigo, edificareis casas de pedra, porém, não habitareis nelas, plantareis as
mais excelentes vinhas, porém, não bebereis do seu vinho. Porque eu conheço as vossas
inúmeras transgressões e os vossos grandes pecados: atacais o justo, aceitais subornos e
rejeitais os pobres à sua porta”.
24

humanidade e da igualdade de todos os homens em dignidade


(para os cristãos, perante Deus).18

Acrescenta-se que o Cristianismo19 inovou sob dois aspectos


fundamentais: dignidade da pessoa humana e fraternidade universal,
estabelecendo não só que todos os seres humanos são iguais entre si e
destinados à mesma felicidade eterna, mas também que são irmãos, por serem
todos filhos do mesmo Pai Celeste. A noção cristã da dignidade humana abrange,
também, as relações dos indivíduos entre si, como se vê em Gálatas, capítulo 3,
versículo 28.20 “Dessarte, não pode haver judeu, nem grego; nem escravo, nem
liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. No
tocante à contribuição da sociedade greco-romana,21segundo afirma José Soder,

18
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 38.
19
Jesus Cristo nasceu na Galileia, no ano I d.C, e pregou o amor e o monoteísmo (crença em um
só Deus). Em relação ao governo da cidade, o cristianismo separou a religião do governo,
quando disse: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Bíblia Sagrada.
Marcos, capítulo 12, versículo 17).
20
Bíblia Sagrada. Revista e atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2014. Gálatas,
capítulo 3, versículo 28.
21
Jorge Miranda destaca que as principais marcas dessa evolução até os séculos XV e XVI são:
“A prevalência do factor pessoal sobre o factor territorial, como elemento definidor da
comunidade política na Grécia e em Roma (apesar de não se reconhecer ao homem, só por
ser homem, necessariamente personalidade jurídica); a reflexão e a criação cultural da Grécia
clássica, quando questionam o poder estabelecido, afirmam a existência de leis que lhe são
superiores e reivindicam um direito de desobediência individual, de que fica sendo emblemática
a atitude de Antígona; a análise filosófica do conceito de justiça – distributiva e cumulativa –
feita por Aristóteles e a análise técnico-jurídica subsequente feita pelos juristas romanos; a
distinção de poder público e poder privado e, correlativamente, de Direito Público e Direito
Privado, em Roma, acompanhada, porém, da completa prevalência da família sobre a
personalidade individual; a formação, em Roma, do jus gentium como complexo de normas
reguladoras de relações jurídicas em que interviessem estrangeiros (peregrini) e a atribuição
progressiva aos habitantes do Império de direitos e até da cidadania romana; o
reconhecimento, com o cristianismo, da dignidade de cada homem ou mulher como filho de
Deus, do destino e da responsabilidade individual, da unidade do gênero e da autonomia do
espiritual perante o temporal; a doutrina da lei injusta e do direito de resistência formulada pela
Escolástica medieval; a conquista de algumas garantias básicas de liberdade e segurança
pessoal, na Inglaterra, a partir da Magna Carta de 1215; o aparecimento também de algumas
garantias básicas da propriedade e até de participação política das pessoas e dos grupos,
conexas com a intervenção das assembleias estamentais na criação de impostos (precursoras
do princípio, mais tarde proclamado, no taxation without representation); é com o cristianismo
que todos os seres humanos, só por o serem e sem acepção de condições, são considerados
pessoas dotadas de um eminente valor” (Manual de direito constitucional. Direitos
fundamentais. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. t. IV, p. 15-17).
25

esta se deve, na Grécia, ao alto nível de cultura e às teorias sobre o direito


natural, e em Roma às normas que regiam o Estado no tempo da República.22

Na Idade Média, destaca-se, inicialmente, a contribuição de Santo


Tomás de Aquino (1224-1274), orientado pela Teologia cristã, pela Bíblia e pela
Filosofia, nas ideias e nos escritos de Aristóteles. A sua preocupação era
universalista e isso o torna inovador, uma vez que enxergava no ser humano o
ponto de partida. Ensinava que os Estados fazem parte da comunidade universal
ao lado de uma lei divina de uma lei comum natural. A lei divina (que vem da
razão divina) é como um modelo de todo ordenamento racional das coisas; a lei
natural (conhecida pelos homens por meio da razão) caracteriza-se como os
primeiros princípios de ordem moral, os quais são percebidos imediatamente pela
razão humana e captados como seu bem específico. Ele detecta três princípios
básicos da lei natural: (i) princípio da conservação do ser humano – respeito à
vida; (ii) princípio da procriação da raça humana – procriação, educação da
prole, casamento uno e indissolúvel; e (iii) princípio do conhecimento da
verdade e da vida social – busca da verdade e igualdade dos deveres sociais.23

Para São Tomás de Aquino, a lei, antes de constituir-se como um


mandamento autoritário, é uma proposição que se ajusta entre o fim justo
(almejado por uma sociedade) e os atos convenientes e conducentes para isso,
ou seja, ato proporcional ao fim desejado que seja o bem comum. Em São Tomás
de Aquino encontra-se a definição de Pessoa24 como: “a substância individual de
natureza racional”. Diante da concepção cristã de igualdade entre todos os
homens perante Deus, a personalidade humana assume um valor próprio em que
a pessoa é capaz de ter domínio sobre os seus atos, não sendo comandada por
outras pessoas. O homem se autodetermina. A partir do século XVI, a doutrina
jusnaturalista começou a desenvolver-se plenamente, pautando-se na noção de

22
SODER, José. Direitos do homem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1960.
23
ELDERS, Leo J. A ética de Santo Tomás de Aquino. Tradução de Daniel Nunes Pêcego.
Aquinate – Instituto de Pesquisa e Ensino São Tomás de Aquino, Rio de Janeiro: Aquinate, n.
6, p. 61-80, 2008.
24
Suma Teológica, I, 29, artigo 1.
26

direitos naturais aos indivíduos, representativos da expressão da liberdade e da


dignidade da pessoa humana.

Ingo Wolfgang Sarlet reitera que o valor da dignidade humana assumiu


“particular relevo no pensamento tomista”25 e, a partir daí, incorpora-se à tradição
jusnaturalista. Nesse período renascentista, o humanista Pico Della Miràndola, 26
também com base no pensamento de São Tomás de Aquino, afirma que ao
homem é dada a oportunidade para realizar seu projeto existencial, tendo como
base sua dignidade que é inalienável, assim ele é capaz de manifestar toda a sua
capacidade criadora, transformadora e inovadora.27 Continua Ingo Wolfgang
Sarlet relatando que, no século XVI, Hugo Donellus ensinava que os direitos à
vida, à integridade corporal e à imagem são inseparáveis do direito à
personalidade. No século XVII, Johannes Althusius28 (em 1603 publicou Política),
também jusfilósofo alemão, professava a ideia de igualdade humana e da
soberania popular. Para Althusius, o que liga os homens é a instituição de leis,
que são comuns, e também um contrato pelo qual o governo é concedido sob
condições a representantes. No tocante aos bens do Estado, estes pertencem à
nação, e não àqueles que a dirigem. Há uma sujeição dos representantes aos
limites que lhes são estabelecidos para o seu mandato pela vontade dos
representados. Assim, a submissão dos homens à autoridade só poderia ocorrer

25
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 38.
26
Giovanni Pico nasceu em Miràndola, norte da Itália, em 24 de fevereiro de 1463, e faleceu em
Florença, também na Itália, em 17 de novembro de 1496. Teve uma vida curta, mas marcada
por grande entusiasmo intelectual e dedicação à filosofia. Oriundo de uma família nobre, muito
jovem foi para Bolonha para estudar direito canônico. Estudou por dois anos, mas desistiu
porque gostaria de se tornar filósofo. Dedica-se à filosofia, sua verdadeira vocação. Entre suas
obras, a mais conhecida é o Discurso sobre a dignidade do homem.
27
PICO DELLA MIRÀNDOLA, Giovanni. A dignidade do homem. Texto integral. Tradução,
comentários e notas. São Paulo: Escala. 2006.
28
Consoante Jordan Michel Muniz, os homens para Johannes Althusius “unem-se pela instituição
de leis comuns e por meio de um contrato no qual o governo é concedido sob condições a
representantes. A integração territorial do Estado é fruto de uma união federativa na qual a
consideração dos interesses das partes é princípio constitutivo. Os direitos associativos
preveem a secessão e a possibilidade de impeachment do governante. Há um
constitucionalismo incipiente, bem como um rudimentar esquema de checagem mútua entre os
poderes. Os bens do Estado são patrimônio da nação, e não de quem a dirige. É verdade que
a representação althusiana equivale geralmente a uma rígida e restrita procuração. O
representante deve sujeitar-se aos limites que lhe são prescritos no mandato pela vontade dos
representados” (Representação política em Althusius e Hobbes. 2012. Dissertação (Mestrado
em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, p. 32).
27

se por vontade de cada um ou por delegação deles. Além disso, “as liberdades
expressas em lei deveriam ser garantidas pelo direito de resistência”.29

Pode-se visualizar, nesse momento, a emergência de um


constitucionalismo ainda rudimentar,30 que culmina nos séculos XVII e XVIII, com
o desenvolvimento da doutrina jusnaturalista por intermédio das teorias
contratualistas. Registra-se nesse contexto o que assinala Ingo Wolfgang Sarlet:

No século XVII, por sua vez, a ideia de direitos naturais


inalienáveis do homem e a submissão da autoridade aos ditames
do direito natural encontrou eco a elaborada formulação nas obras
do já referido H. Grocio (1583-1645), do alemão Samuel Pufendof
(1632-1694) e dos ingleses John Milton (1608-1674) e Thomas
Hobbes (1588-1679). Ao passo que Milton reivindicou o
reconhecimento dos direitos de autodeterminação do homem, da
tolerância religiosa, da liberdade de manifestação oral e de
imprensa, bem como a supressão da censura, Hobbes atribuiu ao
homem a titularidade de determinados direitos naturais, que, no
entanto, alcançavam validade apenas no estado da natureza,
encontrando-se mais, à disposição do soberano. [...] foi
justamente na Inglaterra do século XVII que a concepção
contratualista da sociedade e a ideia de direitos naturais do
homem adquiriram particular relevância [...].31

André Ramos Tavares, ao analisar as grandes teorias acerca dos


direitos humanos, lembra que, enquanto a doutrina do direito natural objetivo foi
construída pelo jusnaturalismo clássico, o jusnaturalismo moderno trouxe o direito
natural subjetivo. E foi por meio da subjetivação dos direitos naturais (como
processo) que se construiu a teoria dos direitos do Homem, asseverando que:

29
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 39.
30
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos cit. Para esse autor, “[...] os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez nem de uma vez por todas”. Assim entendemos como
Bobbio, que a construção do direito foi gradual. De modo que o direito constitucional, se
analisado sob a ótica da evolução humana, foi construído a passos lentos, nascido de um
sistema totalmente rudimentar, em que as primeiras noções elementares de território,
população e governo eram orientadas por princípios que regulavam a vida de primitivos
agrupamentos humanos.
31
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 39.
28

As distintas concepções jusnaturalistas, se coincidiram em algo,


foi em afirmar a existência de alguns postulados de suposta
juridicidade que seriam anteriores e justificadores do Direito
positivo. Estas ideias compreendem o processo de positivação
dos direitos humanos como a consagração normativa de
exigências que são prévias à própria positivação, ou seja, o
reconhecimento, no plano das normas jurídicas, de faculdades
que correspondem ao Homem pelo simples fato de sê-lo, vale
dizer, em virtude de sua própria natureza.32

Percebe-se, portanto, que essa teoria inspirou a Declaração de


Independência dos Estados Unidos (1776) e a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789) que serão analisadas na “Fase da
Constitucionalização”, iniciada em 1776, com as sucessivas declarações de
direitos dos novos Estados americanos. Trata-se de uma fase caracterizada pelo
reconhecimento dos direitos fundamentais no direito positivo. O que requer voltar
um pouco no tempo/espaço, mais especificamente na Inglaterra, do século XIII,
local em que se produziu o principal documento, para aqueles que se dedicam ao
estudo do constitucionalismo.33 Trata-se da Magna Charta Libertatum, firmada em
15 de junho de 1215 e tornada definitiva em 1225 como um pacto concessivo 34 de
privilégios, conferidos pelo monarca inglês João Sem Terra aos nobres ingleses,
em troca da confirmação da supremacia monárquica, com o que se inaugura a
possibilidade de limitação do poder estatal. Desse modo, de tudo até agora visto,
os documentos legais elaborados na Idade Média constituem o início de um
desenvolvimento que levaria, no decorrer dos séculos, ao moderno direito
constitucional. Depois da Magna Charta Libertatum, muitos outros documentos
legais também foram produzidos e que influenciaram na evolução geral para as
liberdades fundamentais.

Registra-se o importante papel da Reforma Protestante como um


movimento que contribuiu para a condução dos direitos fundamentais. Essa
reforma religiosa foi responsável pela quebra da hegemonia da Igreja Católica
sobre o mundo ocidental, possibilitando a liberdade de opção religiosa em

32
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 340.
33
Idem, p. 336.
34
Idem, p. 335.
29

diversos países da Europa Ocidental, com o surgimento de novas religiões


cristãs. Como próxima etapa deste trabalho, cumpre citar muitos outros
documentos legais que foram produzidos e que contribuíram para os direitos
fundamentais:

Petition of Rights (1628) – foi elaborada na Inglaterra por Lord Edward


Coke. Esse documento foi peticionado pelos membros do Parlamento inglês ao
monarca, solicitando o reconhecimento de diversos direitos e liberdades para os
súditos.35 Segundo José Afonso da Silva,

A petição pede a observância de direitos e liberdades já


reconhecidos na Magna Carta, em especial no seu artigo 39:
nenhum homem livre será detido nem preso, nem despojado de
seus direitos nem de seus bens, nem declarado fora da lei, nem
exilado, nem prejudicada a sua posição de qualquer outra forma;
tampouco procederemos com força contra ele, nem mandaremos
que outrem o faça, a não ser por um julgamento legal de seus
pares e pela lei do país.36

Habeas Corpus Act (1679) – reforçou as reivindicações de liberdade da


Petition of Rights, configurando-se em sólida garantia das liberdades individuais.37

Declaração dos Direitos (Bill of Rights) – de 1689 – decorreu da


Revolução Gloriosa, que aconteceu na Inglaterra entre 1688 e 1689. Autodefine-
se como “um conjunto de direitos e liberdades incontestáveis, como, também, que
para o futuro não se firmem precedentes nem se deduza consequência alguma
em prejuízo do povo”.38 Para José Afonso da Silva, constitui-se o documento mais
importante, pois a partir dele surge a monarquia constitucional, submetida à
soberania popular.39 Teve um papel muito importante no fortalecimento das

35
Petição de Direitos (1628). Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/
Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%
C3%B5es-at%C3%A9-1919/peticao-de-direito-1628.html>. Acesso em: 5 dez. 2015.
36
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 38. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2015. p. 154-155.
37
Habeas Corpus Act (1676). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/
hc1679.htm>. Acesso em: 5 dez. 2015.
38
Declaração dos Direitos (1689) em seu item 14. Disponível em: <http://www.dhnet.
org.br/direitos/anthist/decbill.htm>. Acesso em: 5 dez. 2015.
39
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit., p. 155.
30

atribuições legislativas do parlamento perante a Coroa e proclamou a liberdade da


eleição dos membros do parlamento, consagrando algumas garantias individuais.

Act of Settlement (ato de sucessão no trono)40 – de 1701 – serviu para


reafirmar os princípios da legalidade, limitou o poder real, passando o monarca a
ser obrigado a ter o consentimento do Parlamento para declarar guerra e para
destituir juízes.

Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, de 12 de junho de


177641 – conforme Ingo Wolfgang Sarlet, coube à Declaração de Direitos do Bom
Povo da Virgínia a responsabilidade por marcar a transição dos direitos de
liberdades legais ingleses para os direitos fundamentais constitucionais das novas
nações independentes.42 Essa é a primeira Declaração de Direitos, pois, muito
antes de se declararem independentes, as colônias inglesas da América se
reuniram num Congresso Continental, em 1774, que recomendou a formação de
governos autônomos, desvinculados da Nação Colonizadora. Coube à Colônia
inglesa da Virgínia dar os primeiros passos para que esse movimento se
desvinculasse da Inglaterra. São abordados no primeiro item dessa Declaração o
gozo da vida, a liberdade, a aquisição e posse da propriedade, a felicidade e a
seguridade. Esse item vincula-se à igualdade jurídica, como garantia da liberdade
e da independência do indivíduo e o entendimento da dignidade da pessoa
humana.

Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de


1776 – também conhecida como Declaração da Filadélfia.43 Destacam-se nela a
limitação do poder estatal, a separação dos poderes, a instituição de diversos
direitos fundamentais, por exemplo, a liberdade religiosa, a inviolabilidade de

40
Idem, ibidem.
41
Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776). Disponível em: <http://www.
direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-
da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-bom-
povo-de-virginia-1776.html>. Acesso em: 3 jan. 2016.
42
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 43.
43
Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776). Disponível em: <http://www.
direitobrasil.adv.br/arquivospdf/constituicoes/CUSAT.pdf>. Acesso em: 6 dez. 2015.
31

domicílio, o devido processo legal, o julgamento pelo Tribunal do Júri, a ampla


defesa e a impossibilidade de aplicação de penas cruéis. Como a Declaração de
Independência dos Estados acentuou temas como os direitos individuais, essas
ideias tornaram-se largamente apoiadas pelos americanos e também se
difundiram internacionalmente, influenciando as posteriores revoluções liberais
que aconteceram na Europa, por exemplo, a Revolução Francesa de 1789, 44 que,
além de ter sido motivada pela Independência dos Estados Unidos, sofreu
influência dos ideais iluministas.

Constituição dos Estados Unidos da América, promulgada em 17 de


setembro de 178745 na Convenção de Filadélfia – conforme anotado por André
Ramos Tavares, a Constituição originária de 1787 não continha uma declaração
de direitos (Bill of Rights) embora nela alguns direitos fossem reconhecidos. Foi
graças às dez primeiras Emendas à Constituição, em 1791, acrescentadas pelo
Bill of Rigths do povo americano,46 que foram proclamados direitos como a
liberdade de religião, a livre manifestação do pensamento, a segurança, a
proteção contra acusações penais infundadas, penas arbitrárias e a propriedade
individual.47 Sobre a Teoria de Separação de Poderes48 convém registrar que foi
pontuada nos artigos 1.º, 2.º e 3.º, conforme se transcreve:

44
TAIAR, Rogério. Direito internacional dos direitos humanos cit., p. 166. “A par disso, as
categorias sociais da Europa moderna (nobreza, clero e burguesia) conviviam com profundas
desigualdades de fato face aos inúmeros direitos da nobreza [...] e do clero [...] enquanto que
os burgueses, os artesãos e os camponeses não possuíam as mesmas regalias [...]. A
Revolução Francesa de 1789 aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios
universais de liberdade, igualdade e fraternidade. Desse modo, por alterar o quadro político e
social da França, passou a ser considerada como acontecimento que deu início à Idade
Contemporânea. Além disso, criou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26
de agosto de 1789, apoiada na ideia de que, ao lado dos direitos dos seres humanos e do
cidadão, existe a obrigação do Estado de respeitar e de garantir os direitos humanos” (Idem, p.
167).
45
Constituição dos Estados Unidos da América (1787). Disponível em: <http://www.direitobrasil.
adv.br/arquivospdf/constituicoes/CUSAT.pdf>. Acesso em: 6 dez. 2015.
46
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 338.
47
Emendas acrescentadas à Constituição dos Estados Unidos, de acordo com o artigo 5.º da
Constituição Original. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.
php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7
%C3%B5es-at%C3%A9-1919/constituicao-dos-estados-unidos-da-america-1787.html>. Acesso
em: 3 jan. 2016.
48
Sobre a teoria de Separação de Poderes, que é um dos princípios fundamentais do
constitucionalismo moderno, tem como ideia evitar a concentração absoluta de poder nas mãos
32

Artigo 1.º, Seção I: Todos os poderes legislativos conferidos por


esta Constituição serão confiados a um Congresso dos Estados
Unidos, composto de um Senado e de uma Câmara de
Representantes. [...] Artigo 2.º, Seção I: O Poder Executivo será
investido em um Presidente dos Estados Unidos da América. Seu
mandato será de quatro anos, e, juntamente com o Vice-
Presidente, escolhido para igual período [...] Artigo 3.º, Seção I: O
Poder Judiciário dos Estados Unidos será investido em uma
Suprema Corte e nos tribunais inferiores que forem
oportunamente estabelecidos por determinações do Congresso.
Os juízes, tanto da Suprema Corte como dos tribunais inferiores,
conservarão seus cargos enquanto bem servirem, e perceberão
por seus serviços uma remuneração que não poderá ser
diminuída durante a permanência no cargo. [...]

Importante lembrar que a Teoria de Separação de Poderes, com o


objetivo de proteger a liberdade, influenciou as constituições de quase todo o
mundo.49 De modo que tal princípio teve adesão em larga escala pelas
Constituições dos séculos XVIII e XIX, que está em consonância com o artigo 16
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 26 de
agosto de 1789, in verbis: “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a
garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem
Constituição”.50

h. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – sobre


essa Declaração, registra-se que ela só ocorreu graças à Revolução Francesa de
1789.51 Os direitos proclamados na Declaração, afora o seu caráter individual

do soberano, traço comum no Estado absoluto, que precedeu as revoluções burguesas. A


teoria de Separação de Poderes de John Locke e de Montesquieu foi pensada para que se
evitasse essa concentração de poderes, ou seja, cada uma das funções do Estado seria de
responsabilidade de um órgão. Esse mecanismo foi aperfeiçoado com a criação de freios e
contrapesos, em que esses três poderes que reunissem órgãos encarregados primordialmente
de funções legislativas, administrativas e judiciárias pudessem se controlar. Esses mecanismos
de controle mútuo, interdependentes de forma equilibrada e se aplicado de forma correta,
permitirão que os três poderes tenham autonomia e dessa forma não existindo maior em
relação ao outro.
49
TAIAR, Rogério. Direito internacional dos direitos humanos cit., p. 94.
50
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Disponível em: <http://pfdc.
pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-
humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em: 6 dez. 2015.
51
A Revolução Francesa de 1789 aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os
princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade. Desse modo, por alterar o quadro
33

referente à vida, à igualdade e à liberdade, não se limitam aos cidadãos além da


França, mas são válidos para a humanidade inteira.52 Conforme acentuou Celso
Ribeiro Bastos:

Enquanto as Declarações anglo-saxônicas apresentavam-se


eminentemente vinculadas às circunstâncias históricas que as
precederam e, por essa razão, se afiguravam como limitadas ao
próprio âmbito sobre o qual vigia, a Declaração Francesa se
considera válida para toda a humanidade.53

Nesse sentir, afirma Paulo Bonavides que a Declaração francesa de


1789 tinha como endereçamento o gênero humano:

[...] As declarações antecedentes dos ingleses e americanos


podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de
abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social
privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a
uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o
caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração
francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano.54

Não restam dúvidas de que a Declaração dos Direitos do Homem e do


Cidadão teve notável influência na vida constitucional de muitos países e que
posteriormente serviu de inspiração às cartas constitucionais dos séculos XIX e

político e social da França, passou a ser considerada acontecimento que deu início à Idade
Contemporânea (TAIAR, Rogério. Direito internacional dos direitos humanos cit., p. 168).
52
Posição divergente encontra-se na obra de Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de teoria geral
do Estado. 2. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 75, na qual sustenta que é fora de dúvida
que essa Declaração, cuja influência na vida constitucional dos povos, não só do Ocidente,
como também do Oriente, ainda hoje é marcante, representou um considerável progresso na
história da afirmação dos valores fundamentais da pessoa humana. Entretanto, como um
produto do século XVIII, seu cunho é nitidamente individualista, subordinando a vida social ao
indivíduo e atribuindo ao Estado a finalidade de conservação dos direitos individuais. Nesse
ponto era muito mais avançada a Declaração de Direitos da Virgínia, segundo a qual a
sociedade não poderia privar os homens dos meios de adquirir e possuir propriedade e
perseguir e obter felicidade e segurança. A predominância do liberalismo assegurou,
entretanto, a prevalência da orientação passiva do Estado, como simples conservador dos
direitos dos que já os possuíam, sem nada fazer pelos que não tinham qualquer direito a
conservar.
53
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 18. ed. ampl. e atual. São Paulo: Celso
Bastos Editora, 2002. p. 301.
54
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. atual. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 2008. p. 562.
34

XX,55 por meio de um processo de positivação com um olhar à organização da


vida social e o reconhecimento do direito à dignidade da pessoa humana. Eis
alguns exemplos de constituições inspiradas pela Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789: (i) Constituição da França de 179156 – no
desejo de estabelecer uma Constituição, os representantes do povo reúnem-se
em assembleia e aprovam a primeira Constituição francesa, que no seu
preâmbulo expressa o desejo de abolir as instituições que feriam e viessem a ferir
a liberdade e a igualdade de direitos dos franceses. A vida curta da Constituição
de 1791 deveu-se à fuga do rei, o que ensejou a derrubada da monarquia e a
proclamação da primeira república. Portanto, a diferença fundamental está em
que a Constituição de 1791 é a de uma monarquia constitucional e a de 1793 a de
uma república proclamada em meio a um período mais radical da Revolução
Francesa; (ii) a Constituição mexicana57 de 1917 – foi a primeira a atribuir aos
direitos trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais, com as liberdades
individuais e os direitos políticos (artigos 5.º e 123) e que nos dizeres de Fábio
Konder Comparato “estabeleceu firmemente, o princípio da igualdade substancial
de posição jurídica entre trabalhadores e empresários [...]”;58 (iii) Constituição da
Primeira República alemã, conhecida como Constituição de Weimar,59 em
1919 – teve vida curta, apenas 14 anos, mas representou um marco para o
reconhecimento histórico dos direitos sociais60 como direitos fundamentais e
complementares aos direitos civis e políticos. No entanto, esses direitos na época

55
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit., p.159 e 160.
56
Constituição da França de 1791. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/
~luarnaut/const91.pdf>. Acesso em: 6 dez. 2015.
57
Constituição Mexicana de 1917. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/
educar/redeedh/anthist/mex1917.htm>. Acesso em: 6 dez. 2015.
58
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2001. p. 172.
59
Consoante Denise Auad, no modelo de Weimar, a efetivação de direitos sociais tornou-se uma
responsabilidade do Estado de natureza constitucional, possível de ser cobrada
institucionalmente. (Os direitos sociais na Constituição de Weimar como paradigma do modelo
de proteção social da atual Constituição Federal brasileira. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 103, p. 337-355, jan.-dez. 2008).
60
André Ramos Tavares ensina que a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil,
de 16 de julho de 1934, ao encampar direitos de cunho social, o fez – sob forte influência da
Constituição de Weimar. Assim, instaura-se uma nova etapa no constitucionalismo brasileiro.
Curso de Direito Constitucional cit., p. 89.
35

eram considerados pelos tribunais meros programas e objetivos políticos;61 (iv)


por fim, a Carta Del Lavoro da Itália – a Carta do Trabalho italiana, de 21 de abril
de 1927, trata das garantias do trabalho; das agências de emprego; da
previdência, da assistência; da educação e instrução.62 De fato, de lá para cá,
houve, uma evolução nas constituições e sistemas jurídicos das sociedades
ocidentais que, partindo de um sistema puramente liberal, tornam-se
paulatinamente liberal-democráticas, isto é, sem abdicar dos direitos individuais,
acrescentam-se ao seu ordenamento jurídico direitos coletivos. Apesar do período
de trevas que a humanidade enfrentou durante a Primeira e a Segunda Guerras
Mundiais, em especial na Segunda Guerra, que fez crescer sentimentos de
intolerância entre as pessoas. Com o seu término, a Organização das Nações
Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, em Conferência realizada em Paris,
promulga a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo objetivo era
combater todas as atrocidades geradas pela xenofobia, racismo, antissemitismo e
desrespeito pelos direitos das pessoas. Por meio dessa Declaração, reconhece-
se a democracia como o único regime político eficaz para assegurar os direitos
humanos e a dignidade humana, que são fundamentos da liberdade, justiça e paz
para o mundo. Esses ideais preconizados nessa Declaração representaram o
momento inicial da conversão dos direitos universais em direitos reais de cada
pessoa, grupo de pessoas e de cada país, em seu momento histórico. Assim, o
que se vê, de lá para cá é que muitos documentos normativos (nacionais e
internacionais) foram construídos.

i. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia63-64-65 – 2000 –


é dirigida a instituições, órgãos e organismos da União em obediência ao princípio
da subsidiariedade. Vinculam-se os Estados-Membros à referida Carta

61
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais cit., p. 29.
62
Carta del Lavoro de 1927. Disponível em: <http://www.historia.unimi.it/sezione/
fonti/codificazione/cartalavoro.pdf>. Acesso em: 4 jan. 2016.
63
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – 2000. Disponível em: <http://www.
direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-n%C3%A3o-Inseridos-nas-
Delibera%C3%A7%C3%B5es-da-ONU/carta-dos-direitos-fundamentais.html%3E>. Acesso em:
19 set. 2016.
64
Carta dos Direitos Fundamentais. Jornal Oficial das Comunidades Europeias, Portugal,
Caderno 364/8, 18 dez. 2000.
36

[...] quando atuam por conta da União, quando executam uma


decisão da União Europeia (UE), quando aplicam um regulamento
da UE em nível nacional ou quando implementam uma diretiva da
UE. Quando os Estados-Membros agem por sua própria iniciativa,
não há necessidade de os vincular à Carta, na medida em que,
neste caso, é a legislação nacional em matéria de direitos
fundamentais que prevalece.66

No campo da saúde (artigo 35.º), esse documento menciona que todas


as pessoas têm o direito de ter acesso à saúde, seja em ações preventivas ou
curativas, o que em termos de definição de políticas públicas a UE prima por um
elevado nível de proteção da saúde humana.

Nota-se, portanto, que os direitos fundamentais crescem formalmente,


mas o reconhecimento a ponto de se tornar concreto não é o que se vê. Por isso
não significa que, de fato, estejam tais direitos assegurados, como bem pontuou
Norberto Bobbio:

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é


sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou
históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais
seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados.67

A grande questão de fundo trazida aqui é como tais direitos, em especial


o direito à saúde, formalmente garantidos pelas constituições, têm sinalizado que
esse é um problema que não se resolve apenas no plano normativo com o
reconhecimento de direitos, mas por meio de políticas públicas eficientes que
sejam capazes de assegurar esses direitos.

65
A União Europeia (UE) foi oficializada em 7 de fevereiro de 1992, por meio do Tratado de
Maastricht. Esse bloco é formado pelos seguintes países: Alemanha, França, Reino Unido,
Irlanda, Holanda (Países Baixos), Bélgica, Dinamarca, Itália, Espanha, Portugal, Luxemburgo,
Grécia, Áustria, Finlândia e Suécia, e possui uma moeda única que é o Euro, um sistema
financeiro e bancário comum. Disponível em: <http://www.caerj.org.br/
index.php?option=com_content&view=article&id=91&Itemid=89 >. Acesso em: 26 set. 2016.
66
Disponível em: <http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-12-403_pt.htm>. Acesso em:
26 set. 2016.
67
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos cit., p. 17.
37

Em atenção aos direitos fundamentais que têm enfrentado durante o seu


percurso muitas transformações, alguns autores se referiram a esses movimentos
como gerações de direitos fundamentais, afirmando-se que há uma gradação de
direitos. Por sua vez, André Ramos Tavares anota que a ideia de gerações é
equívoca, pois se deduz que uma geração está substituindo a outra. Daí a
preferência pelo termo “dimensão”,68 o qual será utilizado neste trabalho em
substituição ao vocábulo “geração”. Os direitos fundamentais considerados de
primeira dimensão são representados pelos direitos civis e políticos. Dizem
respeito à liberdade, à propriedade. São aqueles que protegem os indivíduos em
face do poder do Estado. Foram os primeiros a constar da norma constitucional.
São oponíveis ao Estado. Os direitos fundamentais de segunda dimensão são
aqueles que se relacionam com os direitos da coletividade, de cunho social,
cultural e econômico, “quer em sua perspectiva individual, quer em sua
perspectiva coletiva”69 introduzidos também no constitucionalismo. Os de terceira
dimensão dizem respeito ao direito à paz, ao desenvolvimento econômico, à
comunicação, ao meio ambiente como patrimônio comum da humanidade.

Paulo Bonavides, por seu turno, cogita uma quarta geração (quarta
dimensão)70 que é composta dos direitos à democracia, à informação e ao direito
ao pluralismo.71 Nos seus dizeres: “[...] deles depende a concretização da
sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a
qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”. 72

Do quanto até aqui exposto, sobre as dimensões de direitos


fundamentais, acredita-se que o que se deve buscar de forma responsável por
todos, governantes e governados73 é a concretização efetiva dos direitos
fundamentais em todas as suas dimensões, para a conquista de um presente que

68
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p.350.
69
ARAUJO, David; SERRANO, Vidal. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo:
Verbatim, 2015. p. 158.
70
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 50.
71
ARAUJO, David; SERRANO, Vidal. Curso de direito constitucional cit., p. 159.
72
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p. 571.
73
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 57.
38

possibilitará um futuro melhor para todos, uma vez que a CR/1988 confirma a
titularidade de direitos fundamentais a toda e qualquer pessoa, seja ela brasileira
ou estrangeira residente no País (artigo 5.º). Por isso, são vistos tais direitos como
direito do ser humano reconhecido juridicamente.

1.3 Os direitos fundamentais nas Constituições brasileiras

A Constituição de 1824 foi influenciada pelas ideias liberais tão em


voga à época, e a monarquia se rendeu a promover, ao menos formalmente, a
concessão ao princípio da soberania popular. A liberal Declaração de Direitos e
Garantias Individuais foi largamente desenvolvida nos 35 incisos do artigo 179,
cuja base é composta pela liberdade, pela segurança individual e pela
propriedade.74

A Constituição Republicana de 1891, na seção II, Título IV, consagrou


a “Declaração de Direitos”. O artigo 72 garantiu a brasileiros e estrangeiros
residentes no País os direitos à liberdade, segurança jurídica, propriedade e
igualdade. Ainda assim, é possível destacar as seguintes inovações na
Constituição de 1891: (i) proibição de penas mais graves, como as galés, o
banimento judicial e a pena de morte (neste último caso, com exceção feita aos
casos previstos na legislação militar e em tempo de guerra); (ii) garantia de
liberdade, de reunião e associação; (iii) liberdade de imprensa; (iv) inviolabilidade
de domicílio e de correspondência; (v) liberdade de reunião e associação, porém
sem uso de armas; (vi) liberdade de exercício de qualquer profissão industrial,
moral e intelectual; (vii) estabelecimento do ensino leigo em estabelecimentos
públicos; (viii) liberdade de culto religioso; e a (ix) constitucionalização da garantia
do habeas corpus, antes previsto apenas em norma infraconstitucional. Destaca-
se que, de início, o habeas corpus era estabelecido de forma mais abrangente,
uma vez que seria cabível “sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em
iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder”.

74
MOREIRA, Lucas Pessoa; ZABALA, Tereza Cristina. Trabalho sobre as Constituições
brasileiras. Disciplina: Direitos fundamentais e sua efetividade: o papel dos agentes do Estado
e das políticas públicas. Ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Alberto David Araujo. Curso de Mestrado
na PUC-SP, 2.º semestre de 2015.
39

No entanto, após a reforma constitucional de 1926 houve restrição no seu âmbito


de aplicação às hipóteses de tutela da liberdade de locomoção.75

A Constituição de 1934, embora seu tempo de vigência tenha sido


muito curto, teve sua importância histórica. Consoante André Ramos Tavares,76 a
referida Carta inaugurou um capítulo “especial para a ordem econômica e social”
no Brasil, ao determinar que a sua organização ocorresse de acordo com “os
princípios da justiça e da vida nacional, de modo que possibilite a todos a
existência digna” (caput do artigo 115). Ampliou o direito de cidadania dos
brasileiros, possibilitando à grande fatia da população, que até então era
marginalizada do processo político do Brasil, participar então desse processo. A
Constituição de 1934, na realidade, trouxe uma perspectiva de mudanças na vida
de grande parte dos brasileiros, as quais se projetaram sobre os textos
constitucionais subsequentes e, inclusive, ainda são observadas na atual
Constituição de 1988, por exemplo, o alistamento e o voto obrigatório, os direitos
e garantias individuais.77

A Constituição Federal de 1937, embora de forma sutil, criou uma série


de restrições às garantias e direitos fundamentais, cerceando o agir dos cidadãos,
tudo supostamente em nome da nação e da decantada paz social aliada à ordem
e progresso.78

A Constituição de 1946, no tocante aos direitos e garantias


fundamentais, retomou o espírito da Constituição de 1934, voltando a prever o
mandado de segurança (artigo 141, § 24). Importante também foi a garantia da

75
LIMA, Ana Júlia Vaz de; SPONTON, Leila Rocha; VINCI, Luciana Vieira Dallaqua. Trabalho
sobre as Constituições brasileiras. Disciplina: Direitos fundamentais e sua efetividade: o papel
dos agentes do Estado e das políticas públicas. Ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Alberto David
Araujo. Curso de Mestrado na PUC-SP, 2.º semestre de 2015.
76
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional cit., p. 91.
77
MURARO, Igor; OLIVEIRA, Solange de. Trabalho sobre as Constituições brasileiras. Disciplina:
Direitos fundamentais e sua efetividade: o papel dos agentes do Estado e das políticas
públicas. Ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Alberto David Araujo. Curso de Mestrado na PUC-SP,
2.º semestre de 2015.
78
LEE, Yun Ki; PIERONI, Claudio Giovanni. Trabalho sobre as Constituições brasileiras.
Disciplina: Direitos fundamentais e sua efetividade: o papel dos agentes do Estado e das
políticas públicas. Ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Alberto David Araujo. Curso de Mestrado na
PUC-SP, 2.º semestre de 2015.
40

pluralidade de partidos políticos (artigo 141, § 13) no texto da Constituição, como


forma de tentar evitar uma nova dissolução de partidos políticos por parte do
Poder Executivo, como já havia ocorrido durante a Constituição de 1937. Foi
garantida a liberdade de expressão, porém sempre com a ressalva: “Não será
tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem
política e social, ou de preconceitos de raça ou classe” (artigo 141, § 5º).79

A Constituição de 1967, conforme assinala André Ramos Tavares: “no


caput do artigo 157 deixou claro a Constituição que a ordem econômica tinha por
finalidade realizar a justiça social”.80

Emenda Constitucional 1, de 1969, em relação aos direitos políticos e


direitos e garantias individuais, no seu artigo 150 consagraram-se princípios de
uma Constituição democrática, assegurando direitos como a possibilidade de
suspensão dos direitos garantidos no artigo 149 e dos direitos políticos, caso
houvesse atentado contra a ordem democrática e prática de corrupção, pelo
prazo de dois a dez anos.81

Por último, a Constituição da República de 1988 indica que, pela


primeira vez na história do constitucionalismo brasileiro,82 os direitos
fundamentais têm status jurídico de normatização constitucional. No entanto, isso
não significa que eles estejam efetivamente garantidos. É digno de nota que,
mesmo diante de tantas críticas e ajustes necessários, os “direitos fundamentais
estão vivendo o seu melhor momento”.83 Reconhece-se a força normativa da
Constituição, indispensável para a manutenção dos direitos fundamentais, que

79
CARDOSO, Diego Brito; PRADO E SILVA, Laís Sales do. Trabalho sobre as Constituições
brasileiras. Disciplina: Direitos fundamentais e sua efetividade: o papel dos agentes do Estado
e das políticas públicas. Ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Alberto David Araujo. Curso de Mestrado
na PUC-SP, 2.º semestre de 2015.
80
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional e econômico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2011. p. 116.
81
MARQUES, Letícia Yumi; DI CESARE, Paula Paschoal. Trabalho sobre as Constituições
brasileiras. Disciplina: Direitos fundamentais e sua efetividade: o papel dos agentes do Estado
e das políticas públicas. Ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Alberto David Araujo. Curso de Mestrado
na PUC-SP, 2.º semestre de 2015.
82
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 63.
83
Idem, p. 69.
41

vão além da liberdade e da igualdade, pois, inseridos no núcleo da Constituição,


eles são capazes de irradiar por todo o sistema normativo e, se respeitados,
consagram expressamente a dignidade da pessoa humana, tornando-a visível
como fundamento da República.

Diante de tudo o que foi exposto neste capítulo, conclui-se que o


desenvolvimento da história mostrou que a evolução dos direitos fundamentais foi
marcada por muitas lutas e sofrimentos, a fim de que eles fossem em alguns
momentos efetivados. Registra-se, ainda, que há sempre que se aprofundar no
campo dos direitos fundamentais e da dignidade humana, pois se encontram em
constante movimento, daí a contribuição da problematização do tema que não está
acabado.

1.4 Alguns aspectos da doutrina dos princípios

Trata-se, nesta pesquisa, do direito à saúde na Constituição brasileira:


complexidades de uma relação público-privada no SUS, com o intuito de
promover uma discussão a respeito de princípios que sejam capazes de agir na
“metódica jurídica”,84 a fim de tornar aquele direito alcançável e concreto na vida
da sociedade. Portanto, exige-se uma compreensão acerca do conceito de
princípio no direito e sua correlação aos princípios constitucionais, uma vez que,
como observou Ruy Samuel Espíndola:

Não se pode estabelecer dicotomia entre Teoria do Direito e


Direito Constitucional, mas, sim, detalhar-se essa ideia, a de
princípio, na esfera de especulação científica e dogmática própria
ao objeto de cada uma destas disciplinas do conhecimento
jurídico, as quais, sem dúvida, se beneficiam mutuamente dos
avanços especulativos produzidos pelos teoristas do Direito e
pelos constitucionalistas.85

84
A metódica jurídica tem como tarefa investigar as várias funções de realização do direito
constitucional (legislação, administração, jurisdição) e, para captar a transformação das normas
a concretizar numa decisão prática, a metódica pretende-se ligar à resolução de problemas
práticos.
85
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: RT, 1999. p. 44-
45.
42

O tema leva Paulo Bonavides, inspirado em vários autores, a apresentar


diversos conceitos86 de princípios, dos quais destacou alguns. Como exemplo,
Luís-Diez Picazo, que se utilizou da linguagem da matemática para conceituar
princípios como as verdades primeiras. Além de tecer considerações sobre o
período, por volta de 1916, em que os princípios tinham uma carga civilista, ele
invoca o pensamento do jurista espanhol Felipe de Clemente que assim formulou
o seu conceito: “Princípio de direito é o pensamento diretivo que domina e serve
de base à formação das disposições singulares de Direito de uma instituição
jurídica, de um Código ou de todo um Direito Positivo”.87

No entanto, com um olhar crítico, Paulo Bonavides observa que nesses


conceitos existe um defeito capital que foi trazido por esses juristas. Segundo ele,
faltou o traço da normatividade (carregado de um conceito de norma de direito, de
norma jurídica), que é o que caracteriza os princípios pela doutrina
contemporânea e que existe unanimidade em reconhecê-los dessa forma.
Ressalta ainda que o primeiro jurista a qualificar os princípios como norma jurídica
foi Vezio Crisafulli,88 em 1952:

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada


como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas,
que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente
o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das
quais determinam, e, portanto resumem, potencialmente, o
conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao
contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as
contém.89

Ainda sobre a normatividade dos princípios, Paulo Bonavides apresenta


a investigação doutrinária trazida por Ricardo Guastini sobre seis distintos

86
Sobre o conceito de princípios, ver as significativas anotações de BONAVIDES, Paulo. Curso
de direito constitucional cit., p. 255-258.
87
CLEMENTE, F. de. El método en la aplicación del Derecho Civil. Revista de Derecho Privado,
ano IV, n. 37, out. 16, p. 290 apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p.
256.
88
A partir de leituras realizadas para a elaboração deste trabalho, verifica-se que Crisafulli
pertence à classe dos juristas que mais contribuíram para a normatividade dos princípios.
Atesta esse entendimento BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p. 272.
89
CRISAFULLI Vezio. La Costituzione e le sue Disposizioni di Principio, Milano, 1952 apud
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p. 257.
43

conceitos de princípios, destacando que, em cada um deles, a normatividade dos


princípios está presente como traço comum.

Em primeiro lugar, princípio concerne a normas (ou a disposições


legislativas que exprimem normas) providas de um alto grau de generalidade.

Em segundo lugar, os juristas usam o vocábulo princípio para se


referirem a normas (ou a disposições que exprimem normas) providas de um alto
grau de indeterminação e que, por isso, requerem concretização por via
interpretativa, sem a qual não seriam suscetíveis de aplicação a casos concretos.

Em terceiro lugar, os juristas empregam a expressão “a princípio” para


fazerem alusão a normas (ou disposições normativas) de caráter programático.

Em quarto lugar, os juristas fazem uso do termo princípio para se


referirem a normas (ou a dispositivos que exprimem normas) cuja posição na
hierarquia das fontes de direito é muito elevada.

Em quinto lugar, os juristas usam o vocábulo princípio para designar


normas (ou disposições normativas) que desempenham uma função importante e
fundamental no sistema jurídico ou político unitariamente considerado, ou num ou
noutro subsistema do sistema jurídico conjunto (o direito civil, o direito do
trabalho, o direito das obrigações).

Por fim, em sexto lugar, os juristas se valem da expressão princípio


para definir normas (ou disposições que exprimem normas) dirigidas aos órgãos
de aplicação, cuja específica função é fazer a escolha dos dispositivos ou das
normas aplicáveis nos diversos casos.90

Como bem esclarece Ruy Samuel Espíndola, o caminho percorrido foi


longo para se alcançar o status de normatividade dos princípios jurídicos, seja no
campo teórico, seja no campo normativo. Travaram-se, portanto, debates entre o

90
GUASTINI, Riccardo. Dalle Fonti alle Norme, p. 112 apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito
constitucional cit., p.257-258
44

“jusnaturalismo e o positivismo jurídico e, agora, mais recentemente, com os


novos aportes advindos de uma corrente que passou a ser nominada de pós-
positivismo no Direito”.91 A fase jusnaturalista92 é a mais antiga ou conhecida
como primeira fase da teoria dos princípios, que se posiciona como norma de um
direito ideal que inspira um ideal de justiça, “cuja eficácia se cinge a uma
dimensão ético-valorativa do Direito”.93 É em síntese “um conjunto de verdades
objetivas derivadas da lei divina e humana”.94

A segunda fase da teoria dos princípios vem a ser a do positivismo


jurídico. Nesta, os princípios estão ingressando nos Códigos como fonte
normativa subsidiária, e não como algo anterior à lei, pois, como escreve Ruy
Samuel Espíndola, o valor dos princípios está no fato de “derivarem das leis e,
não de um ideal de justiça”.95 A terceira fase, por sua vez, a do pós-positivismo,
teve início no final do século passado e “correspondeu aos grandes momentos
constituintes das décadas do século XX”. 96 É nessa fase que a doutrina do direito
natural, assim como a do positivismo jurídico, sofrem críticas severas por parte de
diversos intelectuais, entre os quais se destaca Ronald Dworkin, que vê a
necessidade de tratar os princípios como direito, pois tanto uma regra
estabelecida positivamente quanto uma constelação de princípios podem impor
uma obrigação legal, abandonando, dessa maneira, a doutrina positivista.

Paulo Bonavides, referente ao tema, ressalta a contribuição de Robert


Alexy e também de alguns publicistas da Espanha e Itália da seguinte forma:

91
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Princípios jurídicos e Constituição: conceitos operacionais. São
Paulo: RT, 1998. p. 57.
92
Conforme escreveu BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p. 260: “A fase
jusnaturalista dominou a dogmática dos princípios por um longo período até o advento da
Escola Histórica do Direito. Cedeu lugar, em seguida, a um positivismo tão forte, tão
dominante, tão imperial, que ainda no século XX os cultores solitários e esparsos da doutrina
do Direito Natural nas universidades e no meio forense pareciam se envergonhar do arcaísmo
de professarem uma variante da velha metafísica jurídica”.
93
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Princípios jurídicos e Constituição: conceitos operacionais cit.,
p. 58.
94
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p. 261.
95
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Princípios jurídicos e Constituição: conceitos operacionais cit.,
p. 58.
96
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p. 265.
45

Receptivos aos progressos da Nova Hermenêutica e às


tendências axiológicas de compreensão do fenômeno
constitucional, cada vez mais atado à consideração dos valores e
à fundamentação do ordenamento jurídico, conjugando, assim, em
bases axiológicas, a Lei com o Direito, ao contrário do que
costumavam fazer os clássicos do positivismo,
preconceitualmente adversos à juridicidade dos princípios e, por
isso mesmo, abraçado, por inteiro, a uma perspectiva
lastimavelmente empobrecedora da teoria sobre a normatividade
do Direito.97

Realmente, diante de toda a caminhada sobre a normatividade dos


princípios, entende-se, como lembrou André Ramos Tavares, que os princípios
não só se consagram como “normas jurídicas”, como, ao serem recebidos pela
Constituição, adquirem maior relevância normativa.98

1.5 Princípios constitucionais

Cumpre registrar, preliminarmente, a consideração trazida por André


Ramos Tavares sobre a Constituição, pois poderá contribuir para uma melhor
construção sobre os princípios constitucionais. Assim ele descreveu:

A Constituição (positivada de um país) é considerada como um


conjunto normativo fundamental, adquirindo, por isso, cada um de
seus preceitos a característica da superioridade absoluta, ou seja,
da supremacia, em relação às demais normas de um
ordenamento jurídico estatal.99

Assim considerando, não há como deixar de reafirmar primeiramente a


característica de superioridade da Constituição, para só, em seguida, falar em
princípios constitucionais. Portanto, a Constituição, como a Lei primeira e
fundamental de um Estado, tem “força normativa” 100 para impor e dizer como quer

97
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p. 265.
98
TAVARES, André Ramos. Elementos para uma teoria geral dos princípios. In: LEITE, George
Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 25-26.
99
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 116.
100
Importante sublinhar o trabalho lido: A força normativa da Constituição (Die Normative kraft der
Verfassung) do alemão Konrad Hesse. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Fabris, 1991. p. 20-24. Ao tratar da força que constitui toda a sua essência e a capacidade de
46

que o direito aconteça, sendo certo que por meio dela a calcificação de todo o
ordenamento jurídico (leis, decretos e/ou quaisquer outros atos normativos)
ocorrerá e que sem o seu manto perde o sentido e o significado.

André Ramos Tavares asseverou que “é possível afiançar que os


principais princípios encontram-se realmente já plasmados na Constituição,
apesar de serem reiterados pelas normas infraconstitucionais. Nessas
101
circunstâncias, prevalece a força normativa constitucional”. Com respeito à
ponderação de André Ramos Tavares sobre princípios e regras na elaboração
dos Elementos para uma teoria geral dos princípios, o autor entende que as
regras e princípios são elementos que compõem a norma (como conjunto maior).
Antes, porém, remete em sua argumentação a Ronald Dworkin, 102 que, ao
estabelecer a distinção entre regras e princípios, indica que as primeiras são
aplicadas de modo tudo ou nada (an all ou nothing), ou seja, se os fatos
ocorrerem conforme ela descreveu, então a regra será válida, e para esses fatos
a regra deve ser aceita. Entretanto, se assim não acontecer, em nada a regra
contribuirá para a decisão e não será válida.103

No entanto, com os princípios, pela sua capacidade de abstração, isso


não se verifica como nas regras.104. Os princípios, diz, ainda, André Ramos
Tavares: “não se reportam a qualquer descrição de situação fática (hipotética) em
específico, adquirindo, assim, a nota da máxima abstratividade (objetividade)”.105

torná-la eficaz, residem justamente na natureza das coisas que a impulsiona para transformar-
se em força ativa. Por isso, quanto mais o conteúdo da Constituição for capaz de corresponder
ao presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa. Ela não
pode ser separada da realidade concreta de seu tempo.
101
Ainda segundo André Ramos Tavares, os princípios infraconstitucionais estão albergados nos
princípios constitucionais, ou seja, para ele “diz-se infraconstitucionais não só porque estes
princípios não são estatuídos na Constituição, mas também porque não se configuram senão
como próprios de determinados setores do Direito, aos quais se restringe sua aplicação”
(Elementos para uma teoria geral dos princípios cit., p. 32).
102
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. p. 23-72
103
Idem, p. 39.
104
TAVARES, André Ramos. Elementos para uma teoria geral dos princípios cit., p. 33.
105
Idem, p. 34.
47

Veja-se, a propósito, a referência de Celso Ribeiro Bastos, destacada


por André Ramos Tavares, proclamando que:

Os princípios são maior de idade nível de abstração que as meras


regras, e, nestas condições, não podem ser diretamente
aplicados. Mas no que eles perdem em termos de concreção
ganham no sentido de abrangência, na medida em que, em razão
daquela força irradiante, permeiam todo o Texto Constitucional,
emprestando-lhe significação única, traçando os rumos, os
vetores, em função dos quais as demais normas devem ser
entendidas.106

Toda a Constituição, conforme salientou Celso Ribeiro Bastos, abriga


princípios em “razão da força irradiante”. E isso é possível porque, segundo ele,
os princípios constitucionais “guardam os valores fundamentais da ordem
jurídica”. Diante dessa capacidade que os princípios têm de fazer valer para todo
o mundo jurídico (para uma maior área de abrangência), reflete-se o caráter de
sistema, pois sem essa característica a Constituição seria “um aglomerado de
normas”. Contudo, mesmo que determinadas normas constitucionais pareçam
estar em contradição, os princípios têm a capacidade de minimizar essa
contradição por meio da pulverização de seus valores para todo o mundo
jurídico.107

1.6 Por uma revisão para uma teoria dos princípios na perspectiva
constitucional – suas características: segundo André Ramos Tavares

Diante dos postulados da teoria dos princípios, não há que negar ao


princípio constitucional a sua natureza de norma. Entretanto, é preciso enfatizar o
que anteriormente foi dito sobre a diferenciação entre regras e princípios, ou seja,
a maior capacidade de abstração dos princípios. Para André Ramos Tavares,
ambos caracterizam-se como normas, e, de forma bastante explicativa, assim
apresenta as características dos princípios: (i) abstratividade, abertura ou

106
TAVARES, André Ramos. Elementos para uma teoria geral dos princípios cit., p. 34.
107
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional cit., p. 154.
48

inexauribilidade; (ii) sistematicidade, interdependência ou mútua influência; (iii)


limitabilidade ou relatividade; e (iv) aplicabilidade imediata e programaticidade.

De acordo com André Ramos Tavares, a (i) característica da


abstratividade, abertura ou inexauribilidade dos princípios constitucionais, em
especial, daqueles que se referem aos direitos fundamentais, “possui a condição
da abertura normativo-material”, que têm a possibilidade de expansão do
comando diante de situações concretas que se forem apresentando [...]”. A
abstratividade significa o alcance a um número incontável de situações concretas
(reais) e nelas agindo com o seu “comando mínimo”,pois consegue dialogar com
as demais “normas do sistema”.·.

A segunda característica dos princípios constitucionais, a (ii)


sistematicidade, interdependência ou mútua influência, significa que todos os
princípios dispostos na Constituição não convivem contrariamente nela, pois se
encontram vinculados entre si (princípio da não contradição). O exemplo de
coerência é com o seu sistema interno no sentido da boa convivência em que se
entrelaça. E em alguns casos admite-se curvar-se, mas sem jamais romper entre
si. Há “cedência recíproca dos princípios aparentemente relacionados às mesmas
hipóteses”.108

Por sua vez, de acordo com André Ramos Tavares, a (iii) característica
da relatividade expressa que todos os princípios incluem também os direitos
fundamentais, e “são relativos em sua normatividade”. Considera que não existe
um princípio que se sobrepõe a outro, tornando-o absoluto, ou melhor, que outro,
pois mesmos os princípios que tratam dos direitos fundamentais são reputados
relativos em sua normatividade. Assim sendo, convém registrar o que André
Ramos Tavares (ao analisar as características dos princípios) observou no
estágio atual da dogmática jurídica, acerca da relatividade dos princípios:

Não existe nenhum direito humano consagrado pelas


Constituições que se possa considerar absoluto, no sentido de
sempre valer como máxima a ser aplicada aos casos concretos,

108
TAVARES, André Ramos. Elementos para uma teoria geral dos princípios cit., p. 37-38.
49

independentemente da consideração de outras circunstâncias ou


valores constitucionais. Nesse sentido, é correto afirmar que os
direitos fundamentais não são absolutos. Existe uma ampla gama
de hipóteses que acabam por restringir o alcance absoluto dos
direitos fundamentais [...] pode ocorrer que um princípio seja
limitado por outro, ocorrendo o afastamento de um deles quando
da solução de um caso concreto.109

A última característica, desenvolvida por André Ramos Tavares, é a da


(iv) aplicabilidade imediata e programaticidade dos princípios
constitucionais. Registrou nesse ponto a contribuição de Vezio Crisafulli110 e de
Pontes de Miranda111 sobre os princípios. No entanto, afirma em tom elucidativo
que, além da normatividade dos princípios, as normas programáticas possuem
elementos característicos dos princípios gerais. Esse aspecto, vale salientar, dá a
certeza a todos de que a Constituição tem força normativa, portanto legitimada de
efetividade. É o que se fará no item seguinte que apresentará a doutrina da
efetividade.

1.7 A doutrina da efetividade

A proposta de pensar o direito à saúde na Constituição brasileira:


complexidades de uma relação público-privada no SUS nasceu do sentimento de
respeito à Constituição da República de 1988 e, em especial, da crença no artigo
196, que se apresenta como primeira concepção da saúde como direito ao dispor:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante


políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de

109
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 364-365.
110
Para Vezio Crisafulli, grande professor da Itália que contribui para consolidar a doutrina da
normatividade dos princípios, estes têm eficácia imediata e a eficácia mediata (programática)
apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional cit., p. 272.
111
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda nasceu em 23 de abril de 1892, em Maceió – AL, e
morreu em 22 de dezembro de 1970. A obra dele contribuiu de tal forma para o enriquecimento
da ciência jurídica neste país que sua produção colocou o Brasil no contexto universal do
pensamento jurídico como nação respeitável no campo do direito. A filosofia e a lógica o
fascinavam, colecionava corujas e conhecia bem os clássicos, o que demonstrava claramente
o seu refinamento intelectual. Disponível em: <http://www.trt19.jus.br/mpm/
secaopatrono/vida.htm>. Acesso em: 7 ago. 2016.
50

doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às


ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Mesmo diante de tantas adversidades encontradas pelo cidadão no seu


percurso em busca de uma sadia qualidade de vida, é possível a concretização
desse direito tão fundamental a cada pessoa, em especial à população mais
pobre do País, o que se torna cada vez mais necessário que o poder público
cumpra o seu papel institucional, que é criar políticas públicas mais eficientes.
Essa certeza é motivada pela crença na força normativa da Constituição.
Entende-se que não se trata apenas de um encantamento a respeito da Lei Maior,
mas da certeza da dimensão científica do direito constitucional, que tem conteúdo
e discursos próprios, e também da dimensão jurídica quanto à possibilidade de
efetividade da Constituição. E como isso pode acontecer? A norma constitucional
existe e é possível interpretá-la. Por que não?

Lenio Luiz Streck, ao tratar do processo hermenêutico, pondera sobre


este ao afirmá-lo como um devir. “Interpretar é dar sentido.” É dar significado para
o destinatário do texto. O que importa nesse ponto é a norma constitucional.
Somente assim, ela poderá, como regra expressa, distribuir o seu poder
normativo mediante as palavras que ele contém, sob cujo império protege e
garante não só os direitos fundamentais, mas os demais direitos sociais e os
“deveres positivos por eles impostos ao Estado”.112 O mesmo autor, em outra
obra, assevera que não é fácil concretizar uma Constituição, pois implica a
compreensão de uma das questões mais caras para os jusfilósofos que se
debruçam sobre os estudos de hermenêutica constitucional que trata da
racionalidade das decisões judiciais.113

Importante novamente retomar a lição de André Ramos Tavares que


reforça a supremacia da Constituição, que não pode ser ignorada em qualquer
processo hermenêutico. Assim orienta:

112
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999. p. 208-209 e 219.
113
Idem. Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito. Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito, São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p. 66-69.
51

A atividade do intérprete, por força desse dado, deverá ser sempre


comedida, porque suas intervenções despertam uma sensibilidade muito maior do
que nos demais ramos do Direito [...] vigorando como norma máxima não apenas
por apelos formais e sim, antes de tudo, pelo significado profundo que adquire no
mundo social. 114

Ademais, como mencionado, a Constituição tem conteúdo e discursos


próprios que não olham somente para o futuro, mas também para a realidade
atual, que depende de situações concretas para se estruturar. A ideia de
efetividade das normas constitucionais não é só em decorrência das omissões
normativas, mas pelo que se vê no plano da saúde, em especial neste trabalho,
se encontra em uma confusa relação público-privada que se estabeleceu e que se
relaciona em razão da omissão do próprio poder público. Ademais, este deixa de
agir por meio de políticas públicas eficazes e pertinentes capazes de tratar os
mais complexos problemas encontrados na luta para melhorar a saúde do povo
brasileiro com o fortalecimento do SUS, mas prefere agir contrariamente ao eleger
o mercado como se este fosse a solução para a saúde pública do País. Como
exemplo, pode-se citar a renúncia fiscal que ajuda a manter planos de saúde no
Brasil.

1.8 Uma revisão da teoria da aplicação das normas constitucionais

O presente trabalho, conforme referido anteriormente, trata do tema


relativo ao direito à saúde na Constituição Brasileira: complexidades de uma
relação público-privada no SUS, portanto não há como desconsiderar a questão
relativa à efetividade da norma que estabelece tal direito, nos termos da CR/1988,
diante do repisado artigo 196, que declarou a saúde como direito de todos e dever
do Estado. Assim sendo, questiona-se a eficácia dos atos jurídicos no campo da
saúde. Qual efetivamente tem sido a produção de efeitos, capazes de irradiarem
consequências necessárias que tornem esse direito concreto na vida das
pessoas?

114
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p.181.
52

Cabe inicialmente distinguir eficácia social de eficácia jurídica.


Compreende-se que a verificação do cumprimento da norma pela sociedade está
ligada à eficácia social, que é o efetivo respeito da norma pela sociedade. Quem
estuda esse fenômeno da norma aplicada dentro da sociedade é a sociologia
jurídica; o direito constitucional preocupa-se com a eficácia jurídica da norma. E o
que é eficácia jurídica? A Constituição é uma norma jurídica, emanada do Estado,
em razão do poder que este tem de impor a ordem, a lei e a justiça. Dessa norma
imposta pelo Estado, que é a Constituição, advém uma série de
regras/disposições, que por si sós já têm normatividade suficiente para serem
aplicadas à sociedade? Ou essa norma que está na Constituição traz apenas
diretriz? Ou vai depender de mais outra norma para que seja aplicada dentro da
sociedade? A norma que está na Constituição pode sofrer restrições por outras
normas? Ou é uma norma intocável? Analisa-se a Constituição como norma, ou
seja, se ela tem capacidade de surtir efeitos na sociedade ou não. Todavia, se a
sociedade respeita ou não uma norma, isso é eficácia social. E, ademais, se a
Constituição está apta ou não a produzir efeitos por si, trata-se de análise da
eficácia jurídica. Então, eficácia jurídica da norma é a capacidade da norma de
produzir efeitos no mundo jurídico, de atingir situações reais.

Diante do exposto, salienta-se que a efetividade ou a eficácia social da


norma expressa à materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais,
simboliza a sua aproximação, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade.115

Nesse passo, convém observar o entendimento de André Ramos


Tavares ao esclarecer que todas “as normas constitucionais possuem força
normativa”, ao que reconhece, sempre, “alguma sorte de eficácia”, pois o que
importa na utilização das normas constitucionais é a qualidade de ser aplicável e
a sua capacidade de produzir efeitos jurídicos.116

Interessa, especialmente neste trabalho, situar as normas pertinentes à


saúde, por exemplo: artigo 6.º: “São direitos sociais a educação, a saúde [...]”; e o

115
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e
possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 82-85.
116
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 191.
53

artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado [...]”. Na análise de


André Ramos Tavares, os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata,
como se vê:

Da mesma forma, os direitos fundamentais, cujo assento típico no


contemporâneo Estado Democrático é a Constituição. Assim
também a posição subjetiva na qual os direitos fundamentais
investem os cidadãos e, particularmente no caso brasileiro, a
regra inserida no § 1.º do artigo 5.º da Constituição, que confere a
nota de aplicabilidade imediata à normas definidoras de direitos
fundamentais. Trata-se, aqui, de ponto dogmático que não pode
ser olvidado pela teoria brasileira das normas constitucionais.117

Daniel Sarmento, no que toca ao artigo 196 da CR/1988, salienta que o


referido texto possui múltiplas significações: ao mesmo tempo em que se
apresenta como um direito subjetivo de aplicabilidade imediata, carrega um
caráter programático. Assevera que existia um discurso na doutrina e
jurisprudência de que os direitos sociais (consagrados na Constituição) não
passavam de normas programáticas, o que acabava impedindo que as pessoas
que se sentissem lesadas deixassem de se socorrer de intervenções judiciais.
Prosseguindo, diz o referido autor que prevalecia

[...] uma leitura mais ortodoxa do princípio da separação dos


poderes, que via como intromissões indevidas do Judiciário na
seara própria do Legislativo e do Executivo as decisões que
implicassem em controle sobre as políticas públicas voltadas à
efetivação de direitos sociais.118

O Supremo Tribunal Federal, no tocante ao artigo 196, argumenta que


“o direito à saúde é prerrogativa constitucional indisponível”, que deve ser
garantido mediante a implantação de políticas públicas, pois cabe ao Estado a

117
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 191.
118
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-jurídicos,
p. 17. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&pid=S0034-
7612201500020029300036&lng=en>. Acesso em: 16 jan. 2016.
54

obrigação de criar condições que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 119 A
propósito, a manifestação do STF pela Ministra Ellen Gracie:

É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo


Estado, quando inadimplente, de políticas públicas
constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em
questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo.
[...]
Ambas as Turmas deste Tribunal têm apreciado a questão dos
autos concernentes à suscitada ofensa ao art. 2.º da CF frente às
políticas públicas, especialmente em se tratando de direito a
saúde. Isso se demonstra pelos precedentes citados na decisão
atacada, tanto em julgados mais antigos quanto em decisões mais
recentes sobre o tema, no sentido de que, na hipótese, não há
falar em ingerência do Poder Judiciário em questão que envolve o
poder discricionário do Poder Executivo, porquanto se revela
possível ao Judiciário determinar a implementação pelo Estado,
quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente
previstas (AI 734.487-AgR, 2.ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, j.
03.08.2010, DJE 20.08.2010).

Com tal entendimento, mais uma vez é reiterada a posição de que cabe
ao Estado brasileiro desenvolver políticas públicas responsáveis pela garantia de
condições mínimas de bem-estar para a população a fim de que ocorra o
desenvolvimento econômico e social. Entretanto, de nada adiantará, para que se
promova o direito à saúde em todas as ações e serviços, se não for possível
concretizar o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana como
fundamento do Estado Democrático de Direito, conforme será tratado no próximo
item.

1.9 O princípio da dignidade da pessoa humana

Cabe assinalar que o presente trabalho, conquanto traçado sob a


perspectiva da ciência jurídica, não afasta a dimensão de outras áreas que
dialogam com o direito, aqui entendido como in concreto, dentro de um sistema
de possibilidades reais, num contexto histórico determinado, e não de formas

119
AI 734.487-AgR, 2.ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 03.08.2010, DJe 20.08.2010.
55

abstratas e sem conteúdo. E essas possibilidades são visualizadas na ordem


constitucional positiva que tutela efetivamente os direitos fundamentais. Convém
reforçar que o problema central deste trabalho diz respeito ao direito à saúde e às
complexidades de uma relação público-privada no SUS, e no entender deste
estudo está intimamente relacionado à dignidade da pessoa humana que não
deve em qualquer hipótese deixar de ser considerada. Por essa razão, o princípio
da dignidade da pessoa humana é de grande interesse para o tema deste
trabalho.

Portanto, compreende-se a saúde das pessoas como valor universal a


ser buscado por todos. Daí a sua íntima ligação para a proteção da dignidade da
pessoa humana,120 tão cara e necessária às pessoas. Dessarte, este trabalho não
poderia deixar de tratar desse ponto, uma vez que se considera que a dignidade
121
da pessoa humana não é só mais um valor, ou uma constatação metafísica,
mas um princípio jurídico protegido como norma jurídica que vem sendo
recepcionado nas mais diversas Constituições civilizadas122, pois, como forma de

120
AITH, Fernando. A emergência do direito sanitário como um novo campo do direito. In:
ROMERO, Luiz Carlos; DELDUQUE, Maria Célia (Org.). Estudos de direito sanitário: a
produção normativa e saúde. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas,
2011. p. 13-40.
121
Valor (lat. valor). Literalmente, em seu sentido original, “valor” significa coragem, bravura, o
caráter do homem, daí por extensão significar aquilo que dá a algo um caráter positivo. A
noção filosófica de valor está relacionada por um lado àquilo que é bom, útil, positivo; e, por
outro lado, à de prescrição, ou seja, à de algo que deve ser realizado. Cf. Dicionário básico de
filosofia.
122
Alguns exemplos: (1) Lei Fundamental alemã, de 24 de maio de 1949, que no artigo primeiro
estabelece: “A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo
o poder público”. Disponível em: <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso
em: 10 jan. 2016. (2) A Constituição de Portugal, promulgada em 25 de abril de 1976, com as
sucessivas reformas de 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005, preceitua: “Portugal como
uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e
empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
Disponível em: <http://www.parlamento.pt/Legislacao/Documents/constpt2005.pdf>. Acesso
em: 10 jan. 2016. (3) Constituição da Colômbia, promulgada em 20 de julho de 1991, preceitua:
“Artigo 1. Colômbia é um Estado social de direito, organizado na forma de República Unitária,
descentralizada, com autonomia de suas entidades territoriais, democrática, participativa e
pluralista, fundada em respeito a dignidade humana, no trabalho e na solidariedade das
pessoas que a integram e na prevalência do interesse geral. [...] Art. 1. Colombia es un Estado
social de derecho, organizado en forma de República unitaria, descentralizada, con autonomía
de sus entidades territoriales, democrática, participativa y pluralista, fundada en el respeto de la
dignidad humana, en elj trabajo y la solidaridad de las personas que la integran y en la
prevalencia del interés general”. Original em espanhol. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/21401-21402-1-PB.htm>. Acesso em:
10 jan. 2016. Tradução livre.
56

manifestação jurídica, torna-se uma última garantia da pessoa humana123 pelo


seu conteúdo, que tem a capacidade de atrair para si o conteúdo de todos os
direitos fundamentais.124 No caso brasileiro, a dignidade da pessoa humana faz
parte dos princípios fundamentais na Constituição da República (artigo 1.º, III,
CR/1988), que a referenciou como princípio (e valor) fundamental125 da
República.

1.9.1 A dignidade da pessoa humana sob o olhar dos filósofos antigos

Em uma perspectiva histórica, a ideia da noção de dignidade do homem


já estava presente desde a Antiguidade como valor que possui cada pessoa. Os
filósofos antigos manifestaram preocupação com a questão do homem e do seu
valor. Um exemplo está na Grécia antiga, com Sócrates, que dizia que o homem é
um ser diferenciado, pois é o único que possui uma psyché (uma alma), que o
torna capaz de pensar, de querer e o faz um ser consciente,126 que pode ter
conhecimento. Por essa razão, deveria ser o objeto principal da preocupação e
dos cuidados da pólis. Não se referiu à dignidade, como se reconhece hoje, mas
à areté (virtude/excelência), que é a qualidade humana que o torna um ser
singular em relação aos demais seres que com ele convivem no mundo.

Em São Tomás de Aquino, na Idade Média, encontra-se a definição de


pessoa127 como: “a substância individual de natureza racional”. Diante da
concepção cristã de igualdade entre todos os homens perante Deus, assumiu,
assim, a personalidade humana um valor próprio, ou seja, a pessoa é capaz de
ter domínio sobre os seus atos e não tê-los comandados por outras pessoas. O

123
Para Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade da pessoa humana, assim como acabou sendo
recepcionada por meio do pensamento cristão e humanista e para a manifestação jurídica,
significa uma última garantia da pessoa em relação à disponibilidade do poder estatal e social
(Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 38-39).
124
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit., p.107.
125
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. In: LEITE,
George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 216.
126
SÓCRATES. Os pensadores. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 30.
127
Suma Teológica, I, 29, artigo 1.
57

ser humano se autodetermina e dessa maneira a pessoa tem noção de sua


dignidade e passa a agir conforme ela mesma.

Em Immanuel Kant128 o sujeito torna-se elemento decisivo na


elaboração do conhecimento, ele age como seu construtor.129 É o sujeito racional
que possui vontade, considerado uma espécie de razão denominada de razão
prática, de modo que o homem, como ser racional, obedece as leis como um
dever. Trata-se de um imperativo: “age como se a máxima de tua acção se
devesse tornar por sua vontade em lei universal da natureza”. 130 Logo, para o
filósofo alemão, o ser humano, como ser racional, existe como um fim em si
mesmo, pois no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando
uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como
equivalente, porém, quando uma coisa está acima de todo o preço, não permite
equivalente, então tem ela dignidade.131 Por esse motivo, esse conceito de
dignidade trazido por Immanuel Kant132 nos leva a afirmar que a pessoa humana
não tem preço, é intangível. É, por si, um fim em si mesmo, de valor imensurável,
e não pode jamais ser usada como instrumento para a obtenção de algo ou de
qualquer coisa, simplesmente porque está acima de todo o resto. Assim, o
imperativo categórico de Immanuel Kant, de que o ser humano jamais seja usado
como meio, mas como um fim em si mesmo, requer que tenha como inspiração a
dignidade humana (valor básico) para o respeito pelo outro.

128
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 32. (Coleção Os
pensadores.)
129
Como bem salienta André Ramos Tavares, a dignidade da pessoa humana não surgiu com
Kant. E cita Ingo Wolfgang Sarlet: “já no pensamento estoico, a dignidade era tida como a
qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de
que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontrava
intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e
responsável por seus atos e seu destino), bem como a ideia de que todos os seres humanos,
no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade” (TAVARES, André Ramos. Curso de
direito constitucional cit., p. 439).
130
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura cit., p. 59.
131
Idem. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 2007. p. 77.
132
Ingo Wolfgang Sarlet sustenta que é “com Kant que, de certo modo, se completa o processo de
secularização da dignidade, que, de vez por todas, abandonou suas vestes sacrais” (Dignidade
da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 cit., p. 32).
58

1.9.2 A dignidade da pessoa humana como princípio valorativo e como


característica do Estado democrático

Jorge Miranda leciona que os direitos, liberdades e garantias e os


direitos econômicos, sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na
dignidade da pessoa, de todas as pessoas. Ele entende que os direitos
fundamentais não são apenas aqueles mencionados expressamente, mas podem
ser provenientes de outras fontes. Partindo da concepção estabelecida pela
Declaração Universal dos Direitos do Homem como ser dotado de razão e
consciência, ele sintetizou tal princípio como capaz de estabelecer interlocução
com as pessoas no sentido plural e individual, uma vez que cada pessoa vive em
relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela mesma, e não da
situação em si. Desse modo, condições adequadas da vida material são também
essenciais para que a pessoa tenha dignidade.133

Por sua importância, Willis Santiago Guerra Filho, ao tratar do tema, 134
afirma como:

Princípio da proporcionalidade em sentido estrito determina que


se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado
por uma disposição normativa e o meio empregado, que seja
juridicamente a melhor possível. Isso significa, acima de tudo, que
não se fira o “conteúdo essencial” (Wesensgehalt) de direito
fundamental, com o desrespeito intolerável da dignidade humana
– consagrada explicitamente como fundamento de nosso Estado
Democrático, logo após a cidadania [...].135

Compreende-se, então, que a dignidade da pessoa humana, além de


ser característica do Estado Democrático, está imbricada ao direito fundamental.
Tanto é assim que para todo direito (e garantia) fundamental se faz necessária a

133
MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.). Tratado Luso Brasileiro da
Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 170.
134
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Dignidade humana, princípio da proporcionalidade e teoria
dos direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.).
Tratado Luso Brasileiro da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p.
305-319.
135
Idem, p. 310.
59

vinculação à dignidade humana, “valor axial” de “um verdadeiro Estado (de


Direito) Democrático”.136

Quando se fala em direitos fundamentais, e em especial quando se faz


um recorte ao direito da saúde que precisa urgentemente ser concretizado, deve-
se acrescentar que a dignidade da pessoa humana acaba por ser o mediador
para que todos os direitos sejam alcançáveis, inclusive esse direito. Vale,
portanto, registrar o que Paulo de Barros Carvalho resumiu sobre a dignidade
humana na ordem jurídica brasileira:

Para mim, abaixo da justiça, um dos ideais maiores do direito é a


dignidade da pessoa humana, ao lado da segurança jurídica,
sobreprincípios que se irradiam por todo o ordenamento e têm sua
concretização viabilizada por meio de outros princípios.137

Por sua vez, a dimensão dada à dignidade humana presume-se como


fonte irradiadora que atrai outros princípios, daí falar que à luz desse princípio há
de se realizarem direitos. Por isso, nunca é demais lembrar, em virtude da
primazia da dignidade da pessoa humana, que a pessoa existe como fim em si
mesmo, não como meio para uso desta ou daquela vontade que seja contrária a
sua dignidade.

1.9.3 A dignidade da pessoa humana como valor supremo

Muitos doutrinadores consideram que o princípio da dignidade humana é


o princípio absoluto do direito, que faz com que todos os outros a ele devam
obediência irrestrita. Posição assumida por Fernando Ferreira dos Santos:

A dignidade da pessoa humana é um princípio absoluto,


porquanto, repetimos, ainda que se opte, em determinada

136
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Dignidade humana, princípio da proporcionalidade e teoria
dos direitos fundamentais cit., p. 319.
137
CARVALHO, Paulo de Barros. A dignidade da pessoa humana na ordem jurídica brasileira. In:
MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.). Tratado Luso Brasileiro da
Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 1144.
60

situação, pelo valor coletivo, por exemplo, esta opção não pode
nunca sacrificar, ferir o valor da pessoa.138

Sobre o propósito da dignidade humana como princípio absoluto, André


Ramos Tavares139 salienta que entre os direitos humanos sempre existiu certa
discussão na doutrina sobre qual princípio seria o absoluto, ou seja, qual o
princípio que diante de todos os demais deveria se curvar em caso de conflito
com outros princípios. Faz, portanto, referência a Robert Alexy que não acredita
na existência de princípios absolutos. Veja por que:

Princípios podem se referir a interesses coletivos ou a direitos


individuais. Se um princípio se refere a interesses coletivos e é
absoluto, as normas de direitos fundamentais não podem
estabelecer limites jurídicos a ele. Assim, até onde o princípio
absoluto alcançar, não pode haver direitos fundamentais. Se o
princípio absoluto garante direitos individuais, a ausência de
limites desse princípio levaria à seguinte situação contraditória:
em caso de colisão, os direitos de cada indivíduo, fundamentados
pelo princípio, teriam que ceder em favor dos direitos de todos os
indivíduos, também fundamentados pelo princípio absoluto. Diante
disso, ou os princípios absolutos são compatíveis com direitos
individuais que sejam fundamentados pelos princípios absolutos
não podem ser garantidos a mais de um sujeito de direito.140

Essa preocupação por parte de Robert Alexy de contrariar a


supervalorização do princípio da dignidade humana é lembrada por Ingo
Wolfgang Sarlet, que entende que pode haver uma ponderação 141 da dignidade

138
SANTOS, Fernando F. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p.94.
139
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 442-443.
140
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 111.
141
Ana Paula de Barcelos e Luís Roberto Barroso descrevem a ponderação como um processo
em três etapas: “1.ª etapa – cabe ao intérprete detectar no sistema as normas relevantes para
a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas; 2.ª etapa – cabe ao intérprete
examinar os fatos, as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos
normativos. Assim, o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas identificadas na
primeira etapa poderão apontar com maior clareza o papel de cada uma delas e a extensão de
sua influência; 3.ª etapa – é nesta etapa que a ponderação irá singularizar-se em oposição à
subsunção. Esta é a fase da decisão. [...] A metáfora da ponderação, associada ao próprio
símbolo da justiça, não é imune a críticas, se sujeita ao mau uso e não é remédio para todas as
situações” (A nova interpretação constitucional: ponderação, argumentação e papel dos
princípios. In: LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 117-119).
61

de uma pessoa em relação à dignidade de outra, mas não com qualquer outro
princípio, valor ou interesse.142

Tais posições doutrinárias não diminuem o sentido da dignidade da


pessoa humana como valor dos direitos e garantias fundamentais,143 pois o que
importa, antes de tudo, para este trabalho, é a proteção e a promoção da
dignidade humana, em resposta ao claro chamamento da explicitação
constitucional do direito à saúde144 – como um direito de cada pessoa e de todas
as pessoas – consagrado na Constituição de 1988. No caso brasileiro, observa-se
que a Constituição incorporou a dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos145 (entre a soberania, a cidadania, os valores sociais do trabalho e
da livre-iniciativa; e o pluralismo político) que dão base para a concretização do
Estado Democrático de Direito (artigo 1.º, III). Mas de que forma essa certeza
constitucional da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do
Estado Democrático de Direito brasileiro tem alcance significativo? Nos dizeres de
Flávia Piovesan, os artigos 1.º e 3.º “são princípios146 que consagram os

142
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988 cit., p. 130.
143
Para Jorge de Miranda, “a ligação jurídico-positiva entre direitos fundamentais e dignidade da
pessoa humana só começa com os grandes textos internacionais e as Constituições
subsequentes à Segunda Guerra Mundial, e não por acaso. Surge na Carta das Nações
Unidas (no preâmbulo); e na Declaração Universal, ao afirmar-se que o desconhecimento e o
desprezo dos direitos do homem tinham conduzido a atos de barbárie que revoltaram a
consciência da Humanidade e que o reconhecimento e o desprezo dos direitos do homem
tinham conduzido a atos de barbárie que revoltaram a consciência da Humanidade e que o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus
direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo
(preâmbulo). Surge em resposta aos regimes que tentaram sujeitar e degradar a pessoa
humana (preâmbulo da Constituição francesa de 1949) e quando se proclama que a dignidade
da pessoa humana é sagrada (artigo 1.º da Constituição alemã de 1949)” (Manual de direito
constitucional cit., p. 216).
144
Artigo 196 da Constituição da República de 1988.
145
Fábio Konder Comparato explica que, no campo da Teoria Geral do Direito, a noção de
fundamento diz respeito à validade das normas jurídicas e à fonte da irradiação dos efeitos
delas decorrentes. Em outras palavras: Por que a norma vale e deve ser cumprida?
Fundamento dos direitos humanos. Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, São
Paulo, p. 4, 1997. Disponível em: <www.iea.usp.br/artigos>. Acesso em: 10 jan. 2016.
146
Aprecio a definição dada por Celso Antônio Bandeira de Mello, de que princípio é o
“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se
irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema
normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos
princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há
62

fundamentos e os objetivos do Estado Democrático de Direito”. 147 Nessa


orientação, Flávia Piovesan afirma:

É no valor da dignidade humana que a ordem jurídica encontra


seu próprio sentido, seu ponto de partida e seu ponto de chegada
na tarefa da interpretação normativa. [...] O valor da dignidade da
pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de
todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de
valoração a orientar a interpretação e a compreensão do sistema
constitucional.148

Isso significa que a dignidade da pessoa humana como “valor” e


“princípio normativo” (artigo 1.º, III) não foi incluída pelo legislador constituinte no
rol dos direitos e garantias fundamentais. Entretanto, o que importa ter claro para
a finalidade deste trabalho é que a dignidade da pessoa humana na condição de
valor e princípio normativo149 “é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos
os direitos fundamentais do homem”, nos dizeres de José Afonso da Silva. 150

Com efeito, a Constituição Federal de 1988, ao atribuir à dignidade da


pessoa humana o sentido de princípio constitucional, e tendo por certo, como
assevera André Ramos Tavares, que “os princípios constitucionais desempenham
a função de cimentação sistemática do ordenamento – ou seja, reduzem o
ordenamento a uma unidade congruente de normas [...]”, então “[...] não há como
evitar a ligação entre princípios e normas constitucionais”.151

Assim, resta concluir que a dignidade da pessoa humana, como valor


fundamental e princípio normativo da CR/1988, deve ser invocada no âmbito de
proteção da pessoa humana, pois o que se busca quando se trata de direito à
saúde é justamente promover e efetivar garantias que possibilitem condições

por nome sistema jurídico positivo” (Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros,
2015. p. 986-987).
147
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. In: LEITE,
George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 191.
148
Idem, p. 192-193.
149
SARLET Ingo Wolfgang, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988 cit., p. 223.
150
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit., p.107.
151
TAVARES, André Ramos. Elementos para uma teoria geral dos princípios cit., p. 32 e 48.
63

dignas para que todos, e não apenas alguns, tenham acesso a esse direito que
muito precisa ser alcançado, conforme será visto nos capítulos seguintes deste
trabalho, especialmente quando serão abordados o histórico e o conceito de
saúde.
64

CAPÍTULO 2
O SISTEMA DE SAÚDE

Este capítulo aborda o conceito de saúde desenvolvido ao longo da


história, bem como procura estabelecer a diferença dele com o direito à saúde,
pois o que interessa é buscar entender como, para a efetivação do direito a ter
saúde (que está além da ausência de doenças), essa possibilidade é construída
no decorrer do tempo. Sendo assim, entende-se que esse brevíssimo olhar
histórico pelo mundo e pelo Brasil, com especial destaque à CR/1988, deu à
saúde tratamento diferenciado de todas as outras cartas constitucionais que o
País teve, o que possibilita afirmar que da carta cidadã152 nasce a
responsabilidade do Estado como garantidor desse direito, que é de cada um e de
todos na mesma proporção.

2.1 A saúde na antiguidade: resgate histórico

Nos dias atuais, a saúde está associada à cura de doenças, bem


diferente do pensamento que se tinha na antiguidade (especialmente os hebreus
dos períodos bíblicos), em que se acreditava na doença como castigo divino e
sinal de pecado. Portanto, como uma forma de se apresentarem puras diante dos
deuses, as pessoas praticavam a higiene pessoal e a limpeza apenas por razões
religiosas, de modo que os enfermos recebiam como sentença divina o
isolamento do resto da comunidade.

Afirma Sueli Gandolfi Dallari, com inteira propriedade, que, apesar da


ausência de positivação relacionada especificamente com a saúde, há uma
preocupação localizada nas legislações mais antigas com a necessária

152
Ulysses Silveira Guimarães nasceu em Rio Claro (SP), no dia 6 de outubro de 1916.
Desapareceu em 12 de outubro de 1992 em um acidente de helicóptero no litoral do Rio de
Janeiro. Seu corpo não foi encontrado, mas a morte foi oficialmente reconhecida. Foi
presidente da Câmara dos Deputados durante 1956/1957, 1985/1886 e 1987/1988. De 1987 a
1988 presidiu ainda a Assembleia Nacional Constituinte. A nova Constituição, na qual Ulysses
teve um papel fundamental, foi promulgada no dia 5 de outubro de 1988, tendo sido por ele
chamada de Constituição Cidadã. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/
Jango/biografias/ulisses_guimaraes>. Acesso em: 2 ago. 2016.
65

responsabilização dos profissionais da saúde. Os artigos 218 e 219 do Código de


Hamurabi e o artigo 695 do Código de Manu já tratavam da responsabilidade dos
médicos ou curandeiros.153

A ideia empírica de contágio das doenças começa a surgir com os povos


gregos, que acreditavam que os fatores externos (como o clima e o meio
ambiente) eram possíveis causadores das doenças. Como forma de se obter
harmonia perfeita do corpo humano, deveriam ser levadas em conta as estações
do ano, especialmente as características do vento e da água. É também na
Grécia que Hipócrates,154 médico grego considerado o pai da Medicina e o
iniciador da observação clínica, defendeu a influência dos fatores externos para o
tratamento de seus pacientes.

No texto “Da doença sagrada”, Hipócrates combate a ideia da origem


sagrada das doenças e as associa a uma causa natural.155 Fernando Aith lembra
que foi na Grécia, desde o século V a.C., que os avanços “mais espetaculares” na
medicina foram produzidos, com Hipócrates e seus seguidores.156 Em Roma, a
medicina já não teve um destaque como na Grécia, mas os romanos trouxeram
uma grande contribuição porque eram um povo guerreiro que sofreu grandes
invasões. A maioria dos médicos que atuavam em Roma na verdade era
constituída de escravos que eles tomaram da Grécia. No entanto, esse povo
colaborou muito com a medicina de guerra, como as amputações e os ferimentos
graves. Assim, as contribuições relacionadas ao tratamento de pacientes feridos e
de grandes traumas puderam ser aproveitadas ao longo do tempo pela medicina.

153
DALLARI, Sueli Gandolfi. Os Estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec, 1995.
p. 20.
154
Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.) nasceu na Ilha de Cós, na costa da Ásia Menor. Era filho de
Heráclides e Fenareta, descendentes de Asclépio, deus grego da Medicina, por parte de pai, e
de Hércules, por parte de mãe. Seu trabalho marca o fim da Medicina como manifestação
mágica e divina e inaugura a ciência baseada na observação clínica. É considerado o pai da
medicina e o juramento, trabalho que resume sua ética, é pronunciado até hoje pelos
formandos de Medicina.
155
CAIRUS, H.F.; RIBEIRO JR., W.A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 62. (Coleção História e saúde.) Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0102-311x2006000100029&script=sci_arttext&tlng=pt>.
Acesso em: 31 jan. 2016.
156
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário: a proteção do direito à saúde no Brasil. São Paulo:
Quartier Latin, 2007. p. 51.
66

Destaca-se, em Roma, a figura de Cláudio Galeno (médico), que


realizou uma série de estudos de fisiologia de animais. Fernando Aith destaca que
as duas principais cooperações de Roma são identificadas nos campos da
higiene coletiva e da medicina social. Com a primeira, pode-se destacar a
construção de um importante reservatório de água potável para a população e o
desenvolvimento de sistemas de evacuação de esgoto sanitário por meio de
construção de redes de esgotos, com a implantação de latrinas. Por sua vez, com
a medicina social, manifesta-se a preocupação com ações preventivas
relacionadas aos aspectos sanitários e ao tratamento médico dos pobres. De
acordo com o referido autor, a prática terapêutica era destinada apenas às
“camadas mais abastadas”.157

Na Idade Média, o ano de 1348 foi um período complexo para a


humanidade, pois quase um terço da população europeia foi dizimada pela peste
negra. Os poderes públicos, que estavam organizados na forma de monarquias
feudais, foram obrigados a adotar medidas urgentes de saúde pública, a fim de
proteger até a própria nobreza que também estava ameaçada. A partir desses
eventos, surgem os primeiros conselhos de saúde organizados nas cidades do
norte da Itália, a fim de tomar tais medidas. Em 1486, institui-se em Veneza um
Comitê permanente voltado para as questões de saúde pública que
ultrapassavam os surtos epidêmicos, uma vez que se preocupavam também com:

O controle dos hospitais e das profissões médicas, a fiscalização


dos cemitérios e das fontes de água potável, a remoção dos
mendigos e prostitutas, o controle sobre o comércio de alimentos
e do vinho, o controle sobre o fornecimento de água e sobre a
forma de evacuação dos lixos, enfim, uma gama de ações muito
semelhantes às atualmente encontradas nas políticas sanitárias
atuais, guardadas, evidentemente, as devidas proporções.158

No período do Renascimento, em meio a estudos empíricos, verifica-se


que é necessário conhecer qual a origem dos contágios. Começa-se a pensar na
ideia de que os organismos microscópicos podem causar doenças transmissíveis.

157
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 52.
158
Idem, p. 54-55.
67

No fim do século XVIII ao começo do século XIX,159 teve início na


Inglaterra a Revolução Industrial, com a passagem de uma economia
predominantemente agrária para uma economia industrial. Nesse cenário
crescente de industrialização, há um aumento na oferta de empregos nos centros
urbanos, bem como um rápido crescimento populacional desordenado motivado,
como se pode observar, pelo processo de industrialização. Surgem graves
problemas sociais como a falta de saneamento básico, moradias insalubres e
precárias, assistência médica e hospitalar inadequada. Em consequência,
verifica-se a existência de uma vida difícil de ser suportada, várias epidemias
(cólera, febre tifoide, tifo) atingem, como na maioria das vezes, os mais pobres.

Percebeu-se que essas epidemias provocavam perda econômica que


representava um desperdício para o Estado.160 Eurico de Aguiar escreve que o
advogado Edwin Chadwick161 produziu um relatório que demonstrou que existe
uma relação direta entre as deficiências de condições “de vida das populações
pobres e as doenças que as acometiam”. Sendo, portanto, evitáveis e que as
medidas preventivas não dependiam tão diretamente da saúde, mas, sim, de
outros determinantes de saúde162 que interferem se não trabalhados. Surge, a
partir daí, a responsabilidade do Estado para com a saúde das pessoas e as
primeiras noções de direito à saúde, o que motivou vários países a lutar por
condições sanitárias nas cidades. Na França, a saúde é tratada como direito à
assistência, no rol dos direitos contidos na sua primeira Constituição escrita
promulgada em 14 de setembro de 1791.163

159
John Snow descreveu a epidemia de cólera de Broad Street em Londres, demonstrando sua
transmissão pela água de um poço que fora contaminado durante a lavagem de uma criança
infectada.
160
AGUIAR, Eurico de. Arte e cura: passado, presente e futuro. Porto Alegre: Simers, 2009.
161
Advogado, considerado um dos pioneiros da saúde pública.
162
Os determinantes sociais da saúde são as condições em que as pessoas nascem, crescem,
vivem, trabalham e envelhecem, incluindo o sistema de saúde. Essas circunstâncias são
moduladas pela distribuição de renda, poder e recursos em nível global, nacional e local e são
influenciadas por decisões políticas. Os determinantes sociais da saúde são os principais
responsáveis pelas iniquidades em saúde – as diferenças injustas e evitáveis entre pessoas e
países. Disponível em: <http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_docman&
task=doc_view&gid=1371&Itemid=423 >. Acesso em: 3 abr. 2016.
163
DAVIES, Ana Carolina Izidório. Saúde pública e seus limites constitucionais. São Paulo:
Verbatim, 2012. p. 37.
68

2.2 A saúde no Brasil: resgate histórico

Quando o primeiro governador geral, Tomé de Souza, desembarcou no


Brasil, em 1549, ele veio acompanhado de uma comitiva de cerca de 1.000
pessoas, entre elas religiosos (os jesuítas) e um corpo sanitário composto de um
físico164 e cirurgião da expedição (Jorge Valadares), formado pela Universidade
de Coimbra, e por um boticário (Diogo de Castro).

Os portugueses constataram que as pessoas que aqui moravam


resolviam seus problemas de saúde com a ajuda dos pajés e curandeiros que
manipulavam plantas e as utilizavam como remédios para a cura de seus males.
Os portugueses, quando precisavam de medicamentos, recebiam de Portugal,
todavia, quando aqui chegavam, já estavam estragados em virtude da longa
viagem. Esse fato foi preponderante para que os jesuítas se empenhassem em
aprender a utilizar as plantas nativas em medicamentos.

Assim, os jesuítas, além da missão de criar colégios, conventos e


realizar missões com os índios, se dedicavam a aprender a transformar em
medicamentos o que as plantas ofereciam, utilizando os conhecimentos médicos
europeus com aqueles obtidos pelos povos indígenas. Nesse período, há a
instalação de várias boticas no Brasil e os jesuítas foram os primeiros boticários165
da Nova Terra.

Contudo, diante da inexistência de um programa de atenção à saúde no


Brasil Colônia e no Brasil Império, Marcus Vinícius Polignano166 descreve que

164
Denominação dada ao médico, já que a medicina, na época, era considerada medicina física.
165
Aos boticários cabia a manipulação das fórmulas prescritas pelos médicos, mas a verdade é
que eles próprios tomavam a iniciativa de indicá-los, fato comum até hoje. Os boticários não
dispunham de um aprendizado acadêmico, o processo de habilitação na função consistia tão
somente em acompanhar um serviço de uma botica já estabelecida durante certo período de
tempo, ao fim do qual prestavam exame perante fisicatura e, se aprovado, o candidato recebia
a carta de habilitação, e estava apto a instalar sua própria botica (POLIGNANO, Marcus
Vinícius. História das políticas de saúde no Brasil. Disponível em: <http://www.uff.br/
higienesocial/images/stories/arquivos/aulas/Texto_de_apoio_3_-_HS-
Historia_Saude_no_Brasil.pdf >. Acesso em: 23 fev. 2016).
166
POLIGNANO, Marcus Vinícius. História das políticas de saúde no Brasil cit.
69

houve uma proliferação de boticários pelo País, pois havia carência nesse período
de profissionais médicos. É importante registrar que as políticas de saúde no
Brasil ocorrem com a vinda do Príncipe Regente D. João VI e sua corte à Bahia
em 22 de janeiro de 1808. Nesse ano é criado por D. João VI o Colégio Médico-
Cirúrgico no Real Hospital Militar da Cidade de Salvador e no mês de novembro a
Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, anexa ao Hospital Militar, a fim de formar
cirurgiões e resolver a situação da saúde.

Nesse tempo, em termos de saúde pública, foram realizadas apenas


algumas ações de combate à lepra e à peste, bem como algum controle sanitário.
No entanto, somente entre os anos de 1870 e 1930 que o Estado passa a adotar
práticas mais efetivas para o controle de combate à lepra e à peste, com a
adoção do modelo “campanhista” que se caracterizou pelo uso de força policial.
Entretanto, mesmo com tal prática de abusos, obtiveram-se resultados
importantes no controle de doenças epidêmicas, como é o caso da febre amarela,
que foi erradicada na cidade do Rio de Janeiro. Destaca-se que as ações
curativas ficam sob a responsabilidade dos serviços privados e da caridade.167

Como anteriormente descrito, a história da Saúde Pública brasileira168


teve início em 1808, mas o Ministério da Saúde só veio a ser instituído no dia 25

167
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em:
<http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/da_falta_de_efetividade_a_
judicializacao_excessiva.pdf>. Acesso em: 15 maio 2016.
168
Pudemos verificar, após pesquisa realizada no Centro de Pesquisa e Documentação de
História (CPDOC) da FGV que o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), criado em
02.01.1920, pelo Decreto n.º 3.987, substituiu e ampliou as atribuições e o alcance da Diretoria
Geral de Saúde Pública (DGSP), que fora criada pela Lei n.º 429, de 10.12.1896, e
regulamentada pelo Decreto n.º 2.458, de 10.02.1897. O DNSP foi o principal órgão federal da
área de saúde, subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios interiores. A extensa
regulamentação estabelecida para o funcionamento do DNSP, dada pelo Decreto n.º 14.354,
de 15.08.1920, contava com 1.195 artigos, destacava o combate às então chamadas doenças
venéreas, à lepra e à tuberculose, definiam atividades regulatórias mais amplas para a saúde
pública e reforçava os poderes dos serviços sanitários, aspectos que teriam impacto potencial
sobre o exercício das profissões e atividades do setor de saúde, e também sobre atividades
comerciais e econômicas, tais como produção e comercialização do leite e de gêneros
alimentícios. [...] A crise econômica de 1929, a Revolução de 1930 e a instabilidade do governo
provisório de Getúlio Vargas tiveram impacto no funcionamento do DNSP. O próprio Ministério
da Educação e Saúde Pública, que foi criado em 1930, também experimentou a instabilidade
dos primeiros anos de Getúlio Vargas no poder, não garantindo ao seu principal departamento
na área de saúde a continuidade de sua atuação em âmbito nacional. Na reforma do Ministério
da Educação e Saúde em 1934, na curta gestão do ministro Washington Pires, o DNSP foi
70

de julho de 1953, com a Lei n.º 1.920, que desdobrou o então Ministério da
Educação e Saúde em dois: Saúde e Educação e Cultura. Surgem os Institutos
de Aposentadoria e Pensão (IAP), que prestavam serviços de saúde de caráter
curativo, mas beneficiavam apenas os trabalhadores que contribuíam para o
respectivo Instituto.169 Como se vê, a saúde pública não era universal.

Os antigos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP), que atendiam


aos trabalhadores do setor privado, foram unificados, em novembro de 1966, no
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS),170 daí surgindo o Serviço de
Assistência Médica e Domiciliar de Urgência e a Superintendência dos Serviços
de Reabilitação da Previdência Social. Nesse sistema, somente o trabalhador
urbano com carteira assinada era contribuinte e beneficiário da rede pública de
saúde, mas a grande maioria da população brasileira, que não integrava o
mercado formal, estava excluída do direito à saúde e, como no século XIX,
continuava dependente de ações de benemerência pública. Foi somente a partir
da CR/1988 que a saúde adquiriu o caráter universal, em que todos os brasileiros
passam a ser beneficiários de ações e serviços públicos de saúde para a sua
promoção, proteção e recuperação, independentemente de vínculo trabalhista.

2.3 Saúde: conceituação

O conceito que se propõe desenvolver neste trabalho se associa à


relação que se estabelece de saúde e doença aos ambientes em que são
construídos, que envolvem não só os fatores biológicos, mas também as
circunstâncias materiais em que cada pessoa vive a fim de alcançar o direito a ter

extinto e suas funções foram incorporadas à nova Diretoria de Saúde e Assistência Médico-
social (DNSAMS), Decreto n.º 24.438, de 21.06.1934. As marcas e os avanços do DNSP
seriam as bases de um novo ciclo de expansão da saúde pública com as reformas realizadas
em 1937 e 1941 na gestão de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde (1934-
1945). Conforme Gilberto Hochman. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/sites/default/
files/verbetes/primeira-republica/DEPARTAMENTO%20NACIONAL%20DE%20SA%C3%9ADE
%20P%C3%9ABLICA%20(DNSP).pdf>. Acesso em: 15 maio 2016.
169
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva cit., p.12.
170
Anos de incerteza (1930-1937), Instituto de Aposentadoria e Pensões. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos30-37/PoliticaSocial/IAP>. Acesso em:
15 maio 2016.
71

saúde e o papel do Estado brasileiro como garantidor desse direito a todas as


pessoas individual e coletivamente. Fernando Aith, em belíssimo artigo
descreveu:

As noções de saúde e de doença guardam em si uma relação


potencialmente conflituosa, impactando a relação existente entre o
indivíduo e a sociedade. Esse conflito é traduzido pela condição
física do indivíduo, pelas condições de seu corpo e pelas relações
deste corpo com o ambiente social em que circula. Assim, a
posição do indivíduo em relação à sociedade será em parte
regulada pela noção coletiva que essa mesma sociedade possui
sobre o que é doença e o que é saúde. Esta dinâmica social
produz situações de inclusão e de exclusão social do indivíduo, a
depender de qual é a sua condição física: sã ou doente. Um corpo
saudável, em conformidade com a representação coletiva de
saúde, será um corpo mais propenso à aceitação social do que
um corpo doente. O corpo transforma-se, pela sua condição de
saúde ou de doente, em um organismo vivo que condiciona a
interação dos indivíduos com a sociedade e impacta diretamente a
dignidade do indivíduo.171

O conceito de bem-estar foi adotado pela Organização Mundial da


Saúde172 (OMS) em 1946, no preâmbulo de sua Constituição: “a saúde é um
estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na
ausência de doença ou de enfermidade”.173 Tal conceito foi capaz de
compreender a saúde como o completo bem-estar que remete à ideia de sentir-se
bem; não apresentar qualquer sofrimento físico ou psíquico, ou qualquer outra
situação que desestabilize a sua vida pessoal ou social (inclusive com as outras
pessoas), o direito a uma vida plena que dependerá para a sua concretude de
outros determinantes inseridos no meio, como os biológicos, culturais,

171
AITH, Fernando. A emergência do direito sanitário como um novo campo do direito cit., p. 15.
172
O conceito consta no preâmbulo da Constituição da Assembleia Mundial da Saúde adotada
pela Conferência Sanitária Internacional realizada em Nova York, de 19 a 22 de junho de 1946,
pelos representantes de 61 Estados, inclusive o Brasil, que formaram a Organização Mundial
de Saúde (OMS) com vigência a partir de 7 de abril de 1948 (desde então o Dia Mundial da
Saúde). Convém relatar que essa Constituição não sofreu qualquer emenda.
173
Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) 1946. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-
Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 15
maio 2016.
72

econômicos, sociais, jurídicos, religiosos etc. É a viabilidade da sadia qualidade


de vida em que o ser humano integrado com o ambiente alcança esse bem. É a
condição que traduz em satisfação das necessidades biológica, física,
psicológica, mental e social. O conceito de saúde trazido pela OMS é de algo que
se completa, ou seja, que supera as dificuldades, a ponto de ser capaz de
dissociar-se de todos os conceitos de enfermidade e de doença. Parece haver
relação significativa entre saúde e felicidade.174 No entanto, a saúde sozinha teria
essa capacidade de se tornar responsável por esse estado de completo bem-
estar ou seria a saúde a busca constante desse estado?

Embora muito bem construído, a OMS não foi capaz de conceituar


“bem-estar”, o que acabou por configurá-lo utopicamente, uma vez que as
pessoas175 sempre criam novas necessidades para as suas vidas depois de
satisfeitas as primeiras, independentemente de que natureza tenha sido. Analisa-
se, outrossim, a incompletude ou a insatisfação por parte de cada pessoa ou de
uma coletividade, sob o aspecto positivo, na medida em que se buscam o
aperfeiçoamento, o desenvolvimento, essenciais na construção da condição
humana.176

174
No livro Ética a Nicômaco, Aristóteles traça o problema da ética. A motivação inicial desse livro
foi descobrir qual é o bem que o ser humano busca para a sua realização e qual o espaço que
a ética ocupa em nossas vidas? As hipóteses encontradas indicam a vida ideal como local das
virtudes com as outras pessoas e que essa vivência é a felicidade. Uma vez que as pessoas (o
Humano) estão lançadas para a felicidade, devem motivar-se por ela. Ensina que para “ser feliz
é, então, necessário [...] tanto uma excelência completa como uma existência completa”
(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São
Paulo: Atlas, 2009. p. 32).
175
O estado de insatisfação é essencial na evolução de indivíduos e da espécie.
176
Hannah Arendt explica que “a condição humana compreende mais que as condições sob as
quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados, porque tudo aquilo com
que eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo
no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas
as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens constantemente condicionam,
no entanto, os seus produtores humanos. Além das condições sob as quais a vida é dada ao
homem na Terra e, em parte, a partir delas, os homens constantemente criam suas próprias
condições, produzidas por eles mesmos, que a despeito de sua origem humana e de sua
variabilidade, possuem o mesmo poder condicionante das coisas naturais. [...]” (A condição
humana. Tradução de Roberto Raposo. 12. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 9).
73

Dessarte, no artigo 25, § 1.º, da Declaração Universal dos Direitos


Humanos177 de 1948 se reconhece a saúde como um direito humano, tornando-o
possível para o indivíduo e para a sua família, ao dispor que:

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar


a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação,
vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego,
doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Mesmo possuindo apenas força declaratória, esse importante


documento internacional (com características universais) reconhece a saúde
como um direito humano, tornando-o possível para o indivíduo e para a sua
família.

2.3.1 O conceito de saúde presente na realidade concreta das pessoas

O conceito defendido por Germano Schwartz sobre a saúde aponta para


um processo humano pautado na realidade cotidiana da pessoa:

Um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de


doenças, ao mesmo tempo em que visa a melhor qualidade de
vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de
cada indivíduo e pressuposto de efetivação à possibilidade de
esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao
seu particular estado de bem-estar.178

177
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), adotada e proclamada pela
Resolução 217 (III) da Assembleia Geral, em seu preâmbulo “proclama a presente Declaração
Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas
as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em
mente esta Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, por promover o
respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter
nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e
efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros quanto entre os povos dos
territórios sob sua jurisdição”. Trata de um documento incomparável na história da
humanidade, que consagrou o ser humano como sujeito de direitos.
178
SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 223.
74

A saúde analisada (como processo sistêmico que objetiva prevenção e


cura) pode ser combinada com a atividade que se consubstancia nas ações e
serviços aferidos pela realidade, que implicará a satisfação ou a insatisfação não
só das suas necessidades biológicas, mentais e sociais que as pessoas têm
como acesso a serviços básicos, mas também as condições de vida, de trabalho,
informação etc., como possibilidade de enxergar na saúde uma via de conexão
com o desenvolvimento. Esses propósitos, portanto, podem até mesmo ser
encarados como fatores de uma vida saudável. Vê-se, então, que o meio
ambiente tem muito a ver com o cotidiano das pessoas, daí a preocupação que se
deve ter com a realidade de cada indivíduo.

André Ramos Tavares, cuja leitura sobre o direito à saúde é


fundamental,179 refere-se a esse tema “como um direito de todos constituindo um
dever do Estado sua efetivação por meio de políticas sociais e econômicas” que
possam destinar “[...] o acesso universal igualitário às ações e serviços para a
promoção, proteção e recuperação da saúde”.180 De acordo com o referencial
teórico de Júlio César de Sá Rocha, citado por André Ramos Tavares:

A conceituação da saúde deve ser entendida como algo presente:


a concretização da sadia qualidade de vida. Uma vida com
dignidade. Algo a ser continuamente afirmado diante da profunda
miséria por que atravessa a maioria da nossa população.
Consequentemente a discussão e a compreensão da saúde
passam pela afirmação da cidadania plena e pela aplicabilidade
dos dispositivos garantidores dos direitos sociais da Constituição
Federal.181

O conceito apresentado supra corrobora o pensamento deste trabalho


que tem a saúde como um valor que mantém íntima relação com a dignidade da
pessoa humana. No entanto, para que uma vida com dignidade seja construída, é
necessário refletir sobre como possibilitar que o direito à saúde se torne mais
efetivo, em um país onde as pessoas que mais precisam de atenção à saúde
menos recebem. Sendo assim, é preciso compreender que a noção de saúde se

179
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 718.
180
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, art. 196.
181
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 718.
75

estabelece no ambiente social do indivíduo e se inter-relaciona nas suas mais


diversas atividades, sejam elas políticas, sociais, culturais, econômicas,
esportivas ou religiosas.

Entretanto, para que tais atividades aconteçam é essencial o exercício


democrático que não só possibilitará que as informações sejam disseminadas,
mas também que o debate social seja ampliado a fim de esclarecer melhor o
porquê de tais opções políticas empregadas com a utilização do nome da saúde.
Assevera Fernando Aith que as possibilidades de soluções do direito para as
questões pertinentes de saúde só serão “legítimas e adequadas se considerar a
necessidade de respeitar as diferentes representações de saúde”, dada a
complexidade que o conceito de saúde carrega em uma “sociedade plural e
diversificada”, especialmente como é o caso de nossa sociedade brasileira.182

Em face dos conceitos de saúde apontados, merece destaque um


elemento comum entre eles: o que aponta para as circunstâncias, visto que elas
impõem a necessidade do equilíbrio interno da pessoa e desta com o seu
ambiente – com os outros determinantes de saúde, com as outras pessoas e com
os outros direitos fundamentais.

Buscou-se, neste trabalho, apresentar a trajetória da humanidade ao


longo dos tempos, por exemplo, quando, em alguns momentos, os povos viam as
doenças como decorrentes de causas externas e a saúde como recompensa pelo
seu bom comportamento. Observou-se também, com a cultura grega, a busca por
uma explicação mais racional para os acontecimentos ligados à saúde, uma vez
que procuravam entender as relações entre o homem e a natureza. Atualmente,
com todas as transformações econômicas que ocorrem, que são muitas vezes
decorrentes de globalização e do capitalismo, somos levados a valorizar a
competitividade e o individualismo. Esses traços levam a uma reflexão sobre o
conceito de saúde e a enxergar que o ponto de partida deve ser a saúde como
acontecimento histórico imbricado em um contexto social, político, econômico,
religioso e cultural de cada época, que não deve ser desprezado para entender

182
AITH, Fernando. A emergência do direito sanitário como um novo campo do direito cit., p. 17.
76

que as causas de doenças não são naturais, mas sociais, e que a partir delas o
Estado deve promover as políticas públicas, por meio da adoção de um conceito
de saúde pública que tenha como preocupação cada pessoa e a coletividade.

2.3.2 O conceito de saúde pública

Veja-se, a propósito, a referência de Charles-Edward Winslow,


destacada por Fernando Aith, proclamando o conceito de saúde pública, que fora
elaborado em 1920, e utilizado até os dias de hoje:

A saúde pública é a ciência e a arte de prevenir as doenças, de


prolongar a vida e de promover a saúde e a integridade física
através de esforços coordenados da comunidade para a
preservação do meio ambiente, o controle das infecções que
podem atingir a população, a educação do indivíduo sobre os
princípios de higiene pessoal, a organização dos serviços médicos
e de saúde para o diagnóstico precoce o tratamento preventivo de
patologias, o desenvolvimento de dispositivos sociais que
assegurem a cada nível de vida adequado para a manutenção da
saúde.183

O SUS, trazido pela Constituição para garantir por meio de ações e


serviços a promoção e a recuperação da saúde, não está distante do conceito
anteriormente mencionado. Nos dizeres de Fernando Aith: “a saúde pública
emerge, assim, como um exercício de poder voltado à prevenção, promoção e
recuperação da saúde individual e coletiva, à proteção da segurança sanitária da
população e do próprio indivíduo”.184 Dessa maneira, tanto o conceito de saúde
quanto as questões que se apresentam de saúde pública devem ser construídos
pela sociedade em toda a sua pluralidade, não só necessária para a sua
compreensão, mas também de tratamentos.

183
WINSLOW, C.E.A. Apud AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 53-54.
184
AITH, Fernando. A emergência do direito sanitário como um novo campo do direito cit., p. 18.
77

2.3.3 O conceito de saúde na Constituição brasileira de 1988

Graças ao debate entre diversos setores da sociedade, a Constituição


da República (CR/1988) foi promulgada no dia 5 de outubro de 1988. E na seara
da saúde esse movimento também representa lutas de cidadania para que
concorresse com o teor do direito à saúde como fundamental e, por isso, um
direito universal. No seu artigo 196 a saúde alcançou significativa força normativo-
constitucional:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante


políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O texto constitucional não conceituou saúde, mas foi muito além de um


conceito propriamente dito, não simplesmente sob o ponto de vista de caráter
curativo, mas principalmente no aspecto preventivo e do bem-estar das pessoas,
ao declarar que “a saúde é direito de todos e dever do Estado [...]”, (o que não
ocorreu nas Constituições anteriores). Nesse sentido, impõe aos poderes que
eles sejam capazes de promover políticas sociais e econômicas visando à
redução do risco de doença e outros agravos, além de estabelecer o acesso
universal e igualitário às ações e prestações nessa esfera. A CR/1988 ampliou o
conceito de saúde ao afirmá-la como direito de todos e dever do Estado,
inaugurando um novo formato de conceito, ou seja, na ordem do direito-dever que
declara a saúde como direito social, conforme está prescrito no artigo 6.º, para
todo cidadão, e ao mesmo tempo declara ao Estado o dever de garantir ações e
serviços de saúde por meio de políticas sociais e econômicas. A tônica do Estado
provedor permeará toda a problemática deste trabalho que reside no direito à
saúde na Constituição e na relação público-privada. Uma coisa é certa: não é
possível compreender que para a aquisição desse direito o Estado não seja capaz
de prover tais meios. Como se vê, pelo artigo 196, o direito à saúde, como um
direito fundamental, recebeu do poder constituinte força normativa185 capaz de

185
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição cit., p. 24: “[...] a Constituição jurídica está
condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu
tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se levar em conta
78

produzir efeitos imediatos, independentemente de norma regulamentar posterior


que defina sua aplicação. De semelhante modo, a Lei n.º 8.080, de 19 de
setembro de 1990 – Lei do Sistema Único de Saúde (SUS), que será mais adiante
analisada –, afirma, em seu artigo 2.º, que a “saúde é um direito fundamental do
ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício”. Como já dito, a CR/1988 trouxe inúmeros dispositivos que tratam do
direito à saúde, o que só demonstra a grande preocupação por parte do poder
constituinte em dar efetividade a essa área.186

Assim, antes de tudo, conclui-se que o conceito de saúde apontado pela


CR/1988 (artigo 196) o reconhece como um direito humano e o eleva à categoria
de direito fundamental com base na perspectiva do Estado Democrático de
Direito, que se destina a assegurar a concretude dos direitos sociais: “Nós,
representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte
para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais [...].”187 Dessa maneira, constitui-se como cerne do
direito à saúde (o artigo 196), que o garantiu a todos, independentemente de
classe social, raça, sexo, credo, origem e outros possíveis elementos de
discriminações. Portanto, é dever do Estado assegurá-lo para todos, conforme
será mais bem desenvolvido nos itens subsequentes, em que se estabelecerão
comparações com as diversas constituições que o País teve e de que forma,
porém, no âmbito da evolução constitucional brasileira esse direito está sendo
construído em favor da cidadania.

essa realidade. A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada
realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social.
As possibilidades, bem como os limites da força normativa da Constituição, resultam da
correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen)”.
186
BORTOLOTTO, Franciane Woutheres; SCHWARTZ, Germano. A dimensão prestacional do
direito à saúde e o controle judicial de políticas públicas sanitárias. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, n. 45, n. 77, p. 259, jan.-mar. 2008.
187
Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
Coordenação de Edições Técnicas, 2015.
79

2.4 O direito à saúde nas Constituições anteriores de 1988

Para o estudo a que se propõe este trabalho, O direito à saúde na


Constituição brasileira: complexidades de uma relação público-privada no SUS,
requer-se um olhar na história constitucional brasileira. Por essa razão, faz-se
necessária atenção às constituições que antecederam a CR/1988, porém nesta
última certamente a saúde recebeu tratamento de um direito fundamental. Do
reconhecimento da saúde como um direito resultou a mobilização da sociedade e
do próprio Estado para a construção de um sistema de saúde público organizado
pela Constituição, visto que nas Constituições passadas foi relegada a dispersas
citações sobre a questão, de acordo com as considerações que serão
apresentadas mais adiante.

André Ramos Tavares nota que a Constituição outorgada em 1824188

[...] adotava a ideologia liberal inspirada pelas Revoluções do


século XVIII. Fruto de um movimento que quebrou a dependência
do Brasil em relação ao absolutismo monárquico português,
preocupava-se em garantir certos direitos individuais e dividir os
poderes do Estado.189

Viu-se neste estudo que essa Constituição em nada se preocupou com


a saúde pública. Em pouquíssimas palavras menciona: “A Constituição também
garante os socorros públicos” (artigo 179, XXXI). Era esse o tratamento
dispensado à proteção à saúde: como “socorros públicos”.

A Constituição da República (1891) foi promulgada em 24 de fevereiro, e


“foi a mais concisa entre todas as nossas Cartas Políticas”. 190 Não há qualquer

188
BRASIL. Constituição de 1824: 1.ª Constituição brasileira. Foi promulgada por D. Pedro I.
Embora outorgada pelo Imperador, foi a Constituição mais longeva de toda a história brasileira.
Vigeu 65 anos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em: 15 maio. 2016.
189
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 77.
190
Idem, p. 85.
80

menção sobre o direito à saúde. Não havia preocupação formal sobre a saúde da
população. Há, portanto, um retrocesso em relação à Constituição de 1824.

Convém registrar que, logo após a chegada de Getúlio Vargas ao poder,


é criada uma Secretaria de Estado com a denominação de Ministério dos
Negócios da Educação e Saúde Pública, por meio do Decreto n.º 19.402, em 14
de novembro de 1930.

A Carta de 1934, de curta duração, teve como característica a


manutenção da Federação e a República como forma de governo, e incorporou
uma concepção do Estado na ordem econômica e social. Com isso, vê-se
sinalização para a competência concorrente entre a União e os Estados: cuidar da
saúde e assistências públicas (artigo 10, II). Fazia referência sobre a higiene
social e mental, bem como sobre a assistência médica aos trabalhadores e às
gestantes (artigo 138, letra f e g).

A Constituição de 1937, outorgada com o golpe de Getúlio Vargas, sob


influências autoritárias, sofreu um atraso ainda maior nas liberdades públicas.
Mencionam os artigos 16, XXVII, e 18, “c” e “e”, competência à União para legislar
sobre saúde. Não dispunha nada a respeito desse direito fundamental de forma
mais concreta.

Nos demais textos constitucionais, por exemplo, de 1946 (artigos 5.º,


XV, “b”, e 157, XIV), nada acrescentaram. E na Constituição de 1967 não houve
tanta modificação e nela esse direito é tratado superficialmente (artigo 8.º, XIV e
XVII, “c”), e as normas que expressavam tais direitos dependem de leis para a
sua implementação. De fato, segundo Sueli Gandolfi Dallari, o panorama da
saúde no Brasil

[...] [e os] demais textos constitucionais se limitaram a atribuir


competência à União para planejar sistemas nacionais de saúde,
conferindo-lhe a exclusividade da legislação sobre normas gerais
de proteção e defesa da saúde e mantiveram a necessidade de
81

obediência ao princípio que garantia aos trabalhadores assistência


médica e sanitária.191

Não resta dúvida que o cenário da saúde no Brasil nas Constituições


que antecederam a CR/1988 foi limitado como instrumento normativo maior que
pudesse dizer o direito à saúde de forma efetiva.

Diante desse quadro não universal de saúde, a população, que não


dispunha de carteira assinada, não contava com um sistema de saúde, uma vez
que o acesso aos serviços públicos dessa natureza era restrito ao trabalhador em
sentido estrito, ou seja, possuidor de carteira de trabalho assinada e contribuinte
da previdência social e para aqueles que tivessem condições de pagar os planos
privados de saúde que surgiram a partir da década de 1970.

2.5 Do direito à saúde na Constituição de 1988

Como vem sendo reiterado neste trabalho o papel da saúde como um


direito fundamental dado pela CR/1988, evidenciado em virtude desse atributo,
Felipe Dutra Asensi qualificou-o como “norma constitucional de eficácia plena”,
uma vez que, como direito fundamental, recebeu do poder constituinte força
normativa capaz de dar incidência imediata e independente para sua aplicação,
desde a sua entrada em vigor no Texto Constitucional. Isso significa que produz
todos os efeitos essenciais que dizem respeito aos interesses/situações e
comportamentos que o legislador constituinte quis regular para garantia e
efetividade.192

Na análise de Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo, o


direito fundamental à saúde (na condição de um direito em sentido amplo),
envolve as noções de direito de defesa e de direito de prestações. Como direito
de defesa (ou direito negativo), visa proteger a saúde individual e coletiva contra

191
DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito constitucional à saúde. In: ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO,
Roseni (Org.). Direito sanitário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 87.
192
ASENSI, Felipe Dutra. O direito à saúde no Brasil. Direito sanitário. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012. p. 17.
82

ingerências do Estado ou de sujeitos individuais e coletivos (privados). No direito


de prestações (direito positivo), por sua vez, o direito à saúde impõe deveres de
proteção da saúde pessoal e coletiva, assim como “deveres de cunho
organizatório e procedimental [...]”.193 Destaca-se também que os direitos
fundamentais sociais de cunho prestacional (como é a saúde) possuem caráter
vinculativo e uma postura normativa diferenciada dos demais direitos
fundamentais, isso porque na posição de normas impositivas de políticas públicas
assumem a condição de norma programática e, ao mesmo tempo, têm eficácia e
aplicabilidade direta independentemente de mediação legislativa. 194

De acordo com Sueli Gandolfi Dallari:

Não basta apenas declarar que todos têm direito à saúde; é


indispensável que a Constituição organize os poderes do Estado e
a vida social de forma a assegurar a cada pessoa o seu direito. É
função de todo profissional ligado à área da saúde contribuir para
o debate sobre as formas possíveis de organização social e
estatal que possibilitem a garantia do direito à saúde.195

A Constituição assevera que o Estado é o principal destinatário dos


deveres fundamentais, no caso deste trabalho, o direito à saúde. São diversos
dispositivos constitucionais que tratam especificamente da saúde, como se vê: no
Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo II – Da Seguridade Social, Seção II – Da
Saúde, artigos 196-200, alcançando significativa força normativo-constitucional.
Nos artigos 6.º; 7.º, IV e XXII; 23, II; 24, XII; 30, I; e alínea “e” do inciso VII do
artigo 34, a saúde é caracterizada como um direito social.

Salienta-se que o artigo 197 da CR/1988 estabeleceu que as ações e os


serviços de saúde são de relevância pública, cabendo ao Poder Público dispor,
nos termos da Lei,196 sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo

193
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Notas sobre o direito fundamental
à proteção e promoção da saúde na ordem jurídico-constitucional. In: ASENSI, Felipe Dutra;
PINHEIRO, Roseni (Org.). Direito sanitário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 36.
194
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 294-295.
195
DALLARI, Sueli Gandolfi. O direito à saúde. Revista Saúde Pública, São Paulo, n. 22(1), p. 60,
1988.
196
Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, do Sistema Único de Saúde (SUS).
83

sua execução ser realizada diretamente ou por terceiros, e, também, por pessoa
física ou jurídica de direito privado. Por seu turno, o artigo 129, II, atribui ao
Ministério Público a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e
de serviços de relevância pública, como é o caso da saúde pública.

No entanto, a Carta Magna, não afasta a existência de deveres impostos


aos particulares, os quais são diretamente decorrentes da garantia da saúde,
como dá conta o artigo 2.º da Lei n.º 8.080/1990, o qual explicita obrigações
contidas no dever estatal, mencionando, porém, que “o dever do Estado não
exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”.

Como visto, o Texto Constitucional ampliou o conceito de saúde não


simplesmente sob o ponto de vista de caráter curativo, mas principalmente no
aspecto preventivo e do bem-estar das pessoas. Além de enfatizar que “a saúde é
direito de todos e dever do Estado [...]”, a CR/1988 impõe aos poderes que eles
sejam capazes de promover políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos, além de estabelecer o acesso universal e
igualitário às ações e prestações nessa esfera.

De semelhante modo, a Lei n.º 8.080/1990 – Lei do Sistema Único de


Saúde (SUS), que será analisada mais adiante – afirma, em seu artigo 2.º, que “a
saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as
condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

O direito à saúde, em virtude do seu atributo de direito fundamental,


recebeu a qualificação de norma constitucional de eficácia plena, ou seja, recebeu
do poder constituinte força normativa suficiente para a sua incidência imediata e
independente de providência normativa ulterior para a sua aplicação. De acordo
com Ingo Wolfgang Sarlet,197 o direito à saúde comunga, na ordem jurídico-
constitucional brasileira, da dupla fundamentalidade formal e material de que
se revestem os direitos e as garantias fundamentais em geral. A
fundamentalidade no caso da saúde em sentido material encontra-se ligada à

197
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais cit., p. 226.
84

relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional, por sua importância
como pressuposto de manutenção da própria vida, e vida com dignidade. Já a
fundamentalidade no sentido formal decorre do direito constitucional positivo, que,
nos termos do que dispõe o § 1.º do artigo 5.º da CR/1988, as normas definidoras
de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis, vinculando de
maneira imediata as entidades estatais e os particulares. E nessa condição de
direito fundamental a saúde efetiva-se como dever fundamental, a ser prestado
pelo Estado.198 Trata-se, portanto, de direito-dever. Assim, é certo que o objeto
dos deveres fundamentais decorrentes do direito à saúde guarda relação com as
diferentes formas pelas quais esse direito é efetivado.

Sem prejuízo de outras possíveis concretizações, podem-se desde logo


identificar uma dimensão efetiva no dever de proteção da saúde – que se revela,
por exemplo, pelas normas penais de proteção à vida, à integridade física, ao
meio ambiente, à saúde pública, bem como em diversas normas administrativas
no campo da vigilância sanitária, que regulam desde a produção e a
comercialização de insumos e produtos até o controle sanitário de fronteiras – e
uma dimensão prestacional lato sensu, no dever de promoção à saúde e ao
incentivo à adesão aos programas de saúde pública.

Pode-se, nesse contexto, observar que os deveres fundamentais, em


que o Estado é o principal destinatário (fato reiterado no Texto Constitucional),
não afasta a existência de deveres impostos aos particulares, os quais são
diretamente decorrentes da garantia da saúde, como dá conta o artigo 2.º da Lei
n.º 8.080/1990, ao explicitar obrigações contidas no dever estatal ao mencionar
que “o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da
sociedade”. Então, qual seria o limite para se garantir o direito à saúde sem que
haja um descompasso entre o protagonismo do Estado (como ente público) e o
papel das pessoas (ente privado)? E, se existe um descompasso da garantia do
direito à saúde, como encontrar respostas na Constituição que poderão ser
encaradas pelo setor da saúde, a fim de enfrentar essa grande problemática?

198
Conforme o texto positivado do artigo 196 da CR/1988: “A saúde é direito de todos e dever do
Estado [...]”.
85

2.6 O Sistema Único de Saúde: breve histórico

O movimento de Reforma Sanitária, que precedeu a Constituição da


República de 1988, foi constituído por intelectuais, estudantes, entidades de
profissionais de saúde e outras entidades da sociedade civil. Foi construído como
expressão da Reforma Sanitária, cujo lema foi “Democracia é saúde”, difundido
durante a VIII Conferência Nacional de Saúde,199 realizada em Brasília, de 17 a
23 de março de 1986. Tal movimento foi de notável importância para as bases da
seção “da saúde” na CR/1988. A implementação do SUS ocorreu de forma
gradual: primeiro veio o Sistema Único e Descentralizado de Saúde (SUDS);
depois a incorporação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência
Social (INAMPS) ao Ministério da Saúde (Decreto n.º 99.060, de 7 de março de
1990); e por fim a Lei Orgânica da Saúde (Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de
1990). Em apenas dois meses é lançada a Lei n.º 8.142, de 28 de dezembro de
1990, que imprimiu ao SUS uma de suas características principais que é o
controle social – a participação da comunidade na gestão do serviço. Esse tema
(participação da comunidade) será tratado no final deste capítulo.

199
A VIII Conferência Nacional de Saúde superou todas as expectativas e estimativas feitas
anteriormente, mais de quatro mil pessoas participaram da Conferência em jornadas de
discussões que duraram até 14 horas. Desse total, mil delegados foram escolhidos e/ou
indicados pelas instituições, organizações e entidades como seus representantes [...]. O
comparecimento do Presidente José Sarney e de várias personalidades políticas como Waldir
Pires (Ministro da Previdência), Carlos Santana (Saúde), Ulisses Guimarães (Presidente do
PMDB e mais tarde da Constituinte), dentre outras personalidades. Em seu discurso, Sarney
disse que [...] o Governo, que fez da opção social sua meta prioritária tem a obrigação de fazer
saúde dos cidadãos um bem tutelado pelo Estado e pela sociedade. [...] Aqui se definem os
rumos de uma nova organização do sistema de saúde no Brasil [...] Faço votos que esta
conferência [...] há de representar a pré-constituinte da saúde no Brasil. [...] O relatório final da
Conferência traduziu as principais conclusões predominantes na quase totalidade dos grupos
de trabalho. Tais conclusões foram aprovadas por expressiva votação na plenária final.
Materializaram-se sem maiores dificuldades o consenso em torno da conceituação de saúde,
seus determinantes, sua incorporação ao direito da cidadania, o consequente dever do Estado,
a criação do Sistema Único de Saúde, a interdependência entre política social e econômica
(com os entraves existentes no caso brasileiro), assim como a caracterização dos serviços de
saúde como bens públicos e essenciais, propondo-se várias alterações no relacionamento com
o setor privado (Conferência Nacional de Saúde, 1986, p. 15-20).
86

Para melhor compreensão do papel do Sistema Único de Saúde (SUS),


neste trabalho utilizam-se os termos que compõem a expressão SUS de acordo
com o Dicionário da Educação Profissional em Saúde da Fundação Osvaldo Cruz
(Fiocruz):

1. SISTEMA – entendido como o conjunto de ações e instituições,


que de forma ordenada e articulada contribuem para uma
finalidade comum, qual seja, a perspectiva de ruptura com os
esquemas assistenciais direcionados a segmentos populacionais
específicos, quer recortados segundo critérios socioeconômicos,
quer definidos a partir de fundamentos nosológicos. 2. ÚNICO –
referido à unificação de dois sistemas: o previdenciário e o do
Ministério da Saúde e secretarias estaduais e municipais de
saúde, consubstanciada na incorporação do Instituto Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) pelo
Ministério da Saúde e na universalização do acesso a todas ações
e cuidados da rede assistencial pública e privada contratada e ao
comando único em cada esfera de governo. 3. SAÚDE –
compreendida como resultante e condicionante de condições de
vida, trabalho e acesso a bens e serviços e, portanto, componente
essencial da cidadania e democracia e não apenas como
ausência de doença e objeto de intervenção da medicina
(SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2009, não paginado).

Como dito, o SUS foi previsto e definido pela CR/1988, pois trata-se de
uma instituição jurídica criada por ela, com a finalidade de organizar todas as
ações e serviços públicos de saúde no País,200 com o fim de assegurar a saúde a
todos os cidadãos, uma vez que, como alertado no artigo 2.º da referida lei, “a
saúde é um direito fundamental do ser humano devendo o Estado prover as
condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

Ao ressaltar tão importante papel, a CR/1988 aponta que cabe ao


Estado o dever de garantir esse direito, por meio de formulação e execução de
políticas públicas.201 Por isso, um sistema nacional capaz de desenvolver ações e

200
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p.340.
201
Por política pública utiliza-se o conceito: “um sistema de decisões públicas que visa a ações ou
omissões, preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de um ou
vários setores da vida social, por meio da definição de objetivos e estratégias de atuação e da
alocação dos recursos necessários para atingir os objetivos estabelecidos” (FERRAREZI,
Elisabete; SARAVIA, Enrique (Org.). Introdução à teoria da política pública. Brasília: Enap,
2006. p. 13. (Políticas públicas, v. 1.)
87

serviços integrados em rede regionalizada e hierarquizada, que visava um


atendimento universal e integral para toda a população brasileira, qualifica-se,
portanto, como a maior política de inclusão social já realizada no País.

De fato, entender a saúde como um sistema e que o Sistema Único de


Saúde estabelecido é regulamentado pela própria CR/1988, com a instituição dos
seus princípios norteadores e seus objetivos de atendimento, fornece ainda mais
credibilidade à ideia de que é um todo que abriga partes conexas que devem
atuar de forma coordenada. Para Fernando Aith, o SUS se organiza como:

Um conjunto individualizado (o Sistema), dotado de uma


organização interna que se equilibra com o Direito positivo (foi
criado pela Constituição e possui diversos órgãos colegiados de
deliberação, como as Comissões Intergestores) e representa uma
situação jurídica permanente (sua origem constitucional lhe dá a
permanência necessária para as instituições jurídicas). Formado
pela rede de ações e serviços públicos de saúde prestados no
país, como um sistema que é o SUS reúne em si todas as
instituições jurídicas que desenvolvem ações e serviços públicos
de saúde no Brasil.202

O importante papel do SUS está na garantia fundamental do direito à


saúde e da sua condição como instituição pública em total consonância com a
norma constitucional, que previu as ações e os serviços de saúde como de
relevância pública. Portanto, compete ao poder público dispor sobre sua
regulamentação, fiscalização e controle. Para Fernando Aith, as ações e serviços
de saúde são aqueles executados pelo Estado203. Assim, utiliza como referencial
teórico Celso Antônio Bandeira de Mello, que esclarece:

O Estado tanto pode desenvolver por si mesmo as atividades


administrativas que tem constitucionalmente a seu encargo como
pode prestá-las através de outros sujeitos. Nesta segunda
hipótese ou transfere a particulares o exercício de certas
atividades que lhe são próprias ou, então, cria outras pessoas,
como entidades adrede concebidas para desempenhar
cometimentos de sua alçada. Ao criá-las, a algumas conferirá

202
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 341.
203
Idem, p. 343.
88

personalidade jurídica de direito público privado e a outras


personalidades jurídicas de direito privado.204

Portanto, a realização dessas ações e desses serviços é feita


diretamente pelas instituições jurídicas205 que compõem o SUS: Ministério da
Saúde, Secretarias Estaduais de Saúde, Secretarias Municipais de Saúde,
Secretarias de Saúde do Distrito Federal, Autarquias hospitalares, Agências
Reguladoras, Fundações etc., que são aquelas atreladas às Administrações
diretas ou indiretas206 da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito
Federal.

2.7 O SUS como garantia do direito à saúde: objetivos, diretrizes e


princípios

Como visto, a CR/1988, ao criar o SUS, determinou quais seriam os


seus objetivos, princípios e diretrizes para que dessa forma todas as ações e
serviços estivessem orientados como um sistema integrado, organizado e
hierarquizado.

2.7.1 Objetivos

Os objetivos do SUS estão em perfeita harmonia com o Texto


Constitucional, especialmente em seu artigo 196 e no artigo 5.º da Lei n.º
8.080/1990, que, ao atribuir significado ao direito à saúde, impõe ao Estado o
dever de prover as condições indispensáveis para o seu pleno exercício que só

204
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros
Editores, 2015, p. 143.
205
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 344.
206
O Decreto-lei n.º 200, de 25.02.1967, em seu artigo 4.º, incisos I e II, dispõe: “A Administração
Federal compreende: I – a Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na
estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios; II – a Administração
Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade
jurídica própria: a) autarquias; b) empresas públicas; c) sociedades de economia mista; d)
fundações públicas [...]”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/Del0200.htm>. Acesso em: 28 abr. 2016.
89

poderão ser concretizadas mediante políticas sociais e econômicas que visem à


redução dos riscos de doença e de outros agravos. Eis, no entender deste
trabalho, a ênfase dada para que a vida humana seja promovida e protegida.
Entretanto, é no artigo 5.º da Lei n.º 8.080/1990 que os objetivos do SUS são
diretamente apresentados, oferecendo um rol significativo e apontando que o
Estado deve identificar e divulgar os fatores condicionantes e determinantes da
saúde. Como direito fundamental, o seu reconhecimento deve manifestar-se na
forma de responsabilidade dos governos para que essas ações sejam
implementadas concomitantemente no campo social e no campo da saúde, pois
nada se avançará se não houver a compreensão de que os determinantes sociais
da saúde são:

As condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem,


trabalham e envelhecem, incluindo o sistema de saúde. Essas
circunstâncias são moduladas pela distribuição de renda, poder e
recursos em nível global, nacional e local e são influenciadas por
decisões políticas. Os determinantes sociais da saúde são os
principais responsáveis pelas iniquidades em saúde – as
diferenças injustas e evitáveis entre pessoas e países.207

Assim, se de igual maneira não se observarem alimentação, educação,


moradia, saneamento, trabalho, renda, entre outros, como determinantes para a
saúde das pessoas, os objetivos do SUS que visam à redução de riscos de
doenças e outros agravos não serão alcançados. Portanto, é premente que na
adoção das políticas públicas pelo Estado para a garantia da saúde assim sejam
realizadas.

207
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)/Organização Mundial da Saúde (OMS).
Disponível em:
<http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=1371&Itemid=4
23>. Acesso em: 14 jan. 2016.
90

2.7.2 Diretrizes

A Constituição Cidadã208 deve ser lembrada como compromisso de que


cada brasileiro deve ser sujeito de direitos. A saúde como direito de todos e dever do
Estado é uma confirmação na CR/1988, assim como os princípios da Universalidade
e da Descentralização descritos na Lei n.º 8.080/1990 (Lei do SUS).

O cumprimento desse direito passa ou deveria passar pela


responsabilidade política e social assumida por cada ente federado por força
constitucional, implicando a formulação de políticas econômicas e sociais que
atendam à finalidade para a melhoria das condições de vida e de saúde de cada
pessoa ou de grupos de pessoas. Assim, houve por bem a Constituição do Brasil
dizer qual o tipo de organização e procedimento que seria prestado para a
proteção à saúde, além dos objetivos, mas também, por meio de diretrizes, ao
instituir o SUS em seu artigo 198:

As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede


regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único,
organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (I)
descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
(II) atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; (III)
participação da comunidade. [...]

A) Descentralização

O Texto Constitucional, com a institucionalização desse sistema 209 o


SUS –, torna-se responsável pela garantia do exercício do direito à saúde, a partir

208
Expressão utilizada pelo Deputado Federal Ulisses Guimarães à Constituição promulgada em 5
de outubro de 1988. Na sessão solene de promulgação da Constituição de 1988, ressalta: “[...]
É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o
avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter iniciativa de leis. Mais do que
isso, o povo é o superlegislador; habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo
parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da
República ao Prefeito, do Senador ao Vereador. A moral é o cerne da pátria” (Trecho extraído
de Discurso de Ulisses Guimarães em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-
da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/pdf/Ulysses%20Guimaraes%20-
%20DISCURSO%20%20REVISADO.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2016).
209
Adib Jatene, pouco antes do seu falecimento, em entrevista ao editor da Revista da CAASP,
Paulo Henrique Arantes, sustentou que o SUS não tem o volume de recursos que a medicina
91

de ações e serviços que devam estar integrados em rede regionalizada e


hierarquizada210 com áreas de competências estabelecidas para cada ente
federado (União, Estado, Distrito Federal e Municípios), o que significa que cada
um deles terá direção única, capacitando-se para o desenvolvimento de ações
que promovam, protejam e recuperem a saúde.211 Dessarte, o tripé
(descentralização, atendimento integral e participação na comunidade) sustenta
as ações e os serviços que serão desenvolvidos em saúde. Veja que somente
dependentes e articulados entre si o sistema poderá efetivamente funcionar.

Mônica de Almeida Magalhães Serrano, ao tratar dessas diretrizes,


assinala que todas as esferas da Federação (União, Estados, Municípios e
Distrito Federal) atuam de forma coordenada e explica que:

É exatamente por isso que o sistema é denominado de único. As


três esferas da federação têm obrigações recíprocas e
permanentes com relação à saúde, de tal forma que, se uma
delas não cumpre adequadamente suas obrigações, a outra deve
fazê-lo. O fato de existir uma diretriz de descentralização não
significa que, uma vez aperfeiçoada, os demais entes possam se
afastar de suas obrigações constitucionais. Antes, o texto Maior foi
enfático ao proclamar a existência de um sistema único, que
envolve responsabilidade permanente e solidária de todos os
entes da federação.212

Portanto, todos os entes federados encontram-se em pé de igualdade


em hierarquia, mas diante de suas competências cada qual tem limites para a sua
atuação, o que significa que cada um deve desenvolver políticas de saúde que
atendam ao pleito da população, dentro das suas responsabilidades. Pois, como
se sabe, a CR/1988, ao seguir um modelo de federalismo cooperativo, 213
estabeleceu que determinadas atividades e serviços públicos (como é o caso da

privada tem. Segundo ele, nisso está a discrepância entre um sistema concebido corretamente
e sua aplicação na prática.
210
Conforme artigo 198 da CR/1988.
211
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 356-357.
212
SERRANO, Mônica de Almeida Magalhães. O Sistema Único de Saúde e suas diretrizes
constitucionais. São Paulo: Verbatim, 2012. p. 118.
213
Federalismo Cooperativo remete-se a título exemplificativo, ao STF, Plenário, RE n.º 576.762,
Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 04.09.2008.
92

saúde) fossem desenvolvidos mediante atuação conjunta (comum) dos entes


federados, visando à criação de “políticas públicas nacionais para execução de
certas atividades ou serviços em conjunto [...]”, nos dizeres de Daniel Sarmento e
Cristina Telles.214

Contudo, tem prevalecido no Poder Judiciário brasileiro o entendimento


de que, para a satisfação do seu direito à saúde, a pessoa pode demandar
judicialmente apenas um ente federado (União, Estado ou o Município) ou dois
deles, ou os três conjuntamente. Como exemplo, apresenta-se a seguinte
ementa:

Administrativo. Controle judicial de políticas públicas.


Possibilidade em casos excepcionais. Direito à saúde.
Fornecimento de medicamentos. Manifesta necessidade.
Obrigação do poder público. Ausência de violação do princípio da
separação dos poderes. Não oponibilidade da reserva do possível
ao mínimo existencial. [...] 3. In casu, não há empecilho jurídico
para que a ação, que visa assegurar o fornecimento de
medicamentos, seja dirigida contra o município, tendo em vista a
consolidada jurisprudência desta Corte, no sentido de que o
“funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é de
responsabilidade solidária da União, Estados-membros e
Municípios, de modo que qualquer dessas entidades tem
legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de demanda
que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas
desprovidas de recursos financeiros” (REsp 771.537/RJ, Rel. Min.
Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 03.10.2005). Agravo
regimental improvido” (STJ, 2.ª Turma, AgRg no REsp n.º
1.136.549, Rel. Min. Humberto Martins, DJ 21.06.2010).

De acordo com a jurisprudência majoritária, as causas que envolvem


prestações materiais do direito à saúde independem de qual (is) ente(s) da
Federação tenha(m) indicado no polo passivo da lide, “pois a verificação pura e
simples de que o Poder Público, em sentido amplo, deve prestar a medida
requerida é considerada apta a ensejar a condenação de qualquer e de todos

214
SARMENTO, Daniel; TELLES, Cristina. Judicialização da saúde e responsabilidade federativa:
solidariedade ou subsidiariedade. In: In: ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni (Org.).
Direito sanitário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 121.
93

eles”.215 Nesse sentido, todos os entes federados são gestores do SUS, não
havendo hierarquia entre eles, mas competências que estão previamente
distribuídas dentro de seus limites. Dessa forma, cabe à União a direção nacional
do SUS; aos Estados, a direção no âmbito regional de cada Estado; e aos
Municípios, a gestão das ações e recursos em matéria de saúde.

B) Atendimento integral

No que diz respeito ao atendimento integral que também compõe a


tríade (descentralização/atendimento integral/participação da comunidade) é
igualmente fundamental para a concretização do direito à saúde, uma vez que se
apresenta como diretriz constitucional e como um dos princípios dos SUS. A
integralidade como definição legal e institucional é

Concebida como um conjunto articulado de ações e serviços de


saúde, preventivos e curativos, individuais e coletivos, em cada
caso, nos níveis de complexidade do sistema. Ao ser constituído
como ato em saúde nas vivências cotidianas dos sujeitos nos
serviços de saúde, tem germinado experiências que produzem
transformações na vida das pessoas, cujas práticas eficazes de
cuidado em saúde superam os modelos idealizados para sua
realização.216

De acordo com Roseni Pinheiro, a integralidade deve se tornar “eixo


prioritário de uma política de saúde”, possibilitando que todos os sujeitos
(participantes) que estejam envolvidos nos processos de saúde possam superar
as dificuldades (as barreiras) de acesso, a fim de: (i) concretizar o direito à saúde
da população, com base nos valores fundamentais na garantia da autonomia, na
prática da solidariedade e, principalmente, na liberdade de escolha do cuidado e
da saúde que se deseja obter; (ii) como fim na produção da cidadania do cuidado,
que tem a ver com o cuidado integral e que se dá pelo modo de atuar de forma

215
SARMENTO, Daniel; TELLES, Cristina. Judicialização da saúde e responsabilidade federativa:
solidariedade ou subsidiariedade cit., p. 119.
216
Conforme Dicionário da educação profissional em saúde. Elaborado por Roseni Pinheiro.
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da Fundação Osvaldo Cruz
(FIOCRUZ). Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/intsau.html>.
Acesso em: 10. abr. 2016.
94

democrática, sincera, integrada, calcada em uma relação de compromisso


ético/político, responsável e de confiança entre os sujeitos, reais e concretos,
construtor de sua história.217

Logo, a assistência integral (integralidade) impõe ao Poder Público


tornar o direito à saúde concreto em toda a sua dimensão, de modo a promover a
saúde com prioridade para as ações preventivas de riscos e agravos (vacinação,
vigilância epidemiológica, entre outras) ou de restauração e assistência da saúde
(internações, exames diagnósticos, medicamentos, próteses etc.), quando for o
caso, mas sem perder de vista a descentralização, a universalidade e a
integralidade da atenção como um tripé que sustenta “o processo de consolidação
das conquistas do direito à saúde como uma questão de cidadania”.218

Por esse motivo, Fernando Aith, ao tratar dessa segunda diretriz


(atendimento integral), esclarece que ela representa “um importante instrumento
de defesa do cidadão contra eventuais omissões do Estado, pois este é obrigado
a oferecer, prioritariamente, o acesso às atividades preventivas de proteção à
saúde”.219 Portanto, por meio da prevenção torna-se possível evitar a doença,
bem como, nos atendimentos em que o nível de complexidade não é o limite para
a atuação do Estado, que tem a obrigação de fornecer todos os recursos
disponíveis e que estão ao seu alcance para que o cidadão tenha a sua saúde
recuperada, que pode ser desde um atendimento básico até o tratamento mais
complexo, como são os casos de transplantes.220

C) Participação da comunidade

A Constituição em muito inovou e avançou ao estabelecer que a


participação social seja uma das diretrizes para que o direito à saúde possa se
efetivar. Para esse avanço deve-se pensar em algumas perguntas: O que é

217
PINHEIRO, Roseni. Saúde pelos sanitaristas: O Sistema Único de Saúde sob a ótica do
princípio universal da integralidade das ações. In: ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni
(Org.). Direito sanitário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 71-73.
218
Idem, p. 76.
219
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 357.
220
Idem, ibidem.
95

participação? Quais os processos devem ser considerados participatórios? As


demandas devem ser apresentadas individualmente ou coletivamente? 221 Qual o
impacto da participação da comunidade na vida do SUS? Até que ponto essa
participação tem refletido na relação público-privada no SUS? Esses
questionamentos permearão o desenvolvimento deste trabalho, pois entende-se
que devem ser levados em conta no planejamento, na tomada de decisão, na
fiscalização e no controle das ações e serviços desenvolvidos pelo(s) ente(s)
federado(s).

A participação da comunidade adquire materialidade, como diretriz


constitucional (artigo 198, III), e como princípio do SUS (artigo 7.º, VIII). No
entanto, antes de tratarmos de duas importantes instituições jurídicas, que são
instrumentos para essa materialidade e também instâncias colegiadas de
participação no SUS: as Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde
trazidos pela Lei n.º 8.142, de 28.12.1990. Apresentam-se algumas contribuições
para este trabalho sobre a participação social, tomando o tema da democracia222
e a sua importância no âmbito do SUS.

Sabe-se que a democracia nasceu, no mundo grego, com a experiência


da pólis ateniense, há mais de 2.500 anos. Em sua origem, a ideia de democracia
esteve também associada à ideia de participação. Todavia, se, de um lado, na
democracia ateniense mulheres, estrangeiros, escravos e crianças não podiam
participar, pois estavam excluídos das decisões políticas, por outro lado, no
modelo clássico, ela diz respeito à sua forma direta de participação. Na ágora,

221
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de gestão estratégica e participativa. Departamento
de apoio à gestão participativa. Participação Social em Saúde. 2006.
222
De acordo com o Dicionário básico de filosofia, democracia (do gr. demos: povo e kratos:
poder) 1. Regime político no qual a soberania é exercida pelo povo, pertence ao conjunto dos
cidadãos, que exercem o sufrágio universal. 2. Democracia direta é aquela em que o poder é
exercido pelo povo, sem intermediário; democracia parlamentar ou representativa é aquela na
qual o povo delega seus poderes a um parlamento eleito; democracia autoritária é aquela na
qual o povo delega a um único indivíduo, por determinado tempo, ou vitaliciamente, o conjunto
dos poderes. 3. Geralmente, as democracias ocidentais constituem regimes políticos que, pela
separação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, visam garantir e professar os
direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo os que se referem à liberdade política dos
cidadãos.
96

todos considerados cidadãos participavam ativamente (discutindo e decidindo) as


questões que tinham a ver com os assuntos públicos.

José Antônio Moroni aponta que o modelo de democracia participativa


deve ser entendido:

Como arranjo institucional que amplia a democracia política e o


espaço público. Por sua vez, a legitimidade da democracia
participativa fundamenta-se no reconhecimento do direito à
participação, da diversidade dos sujeitos políticos coletivos e da
importância da construção do espaço público de
223
conflito/negociação . [...] A construção de uma democracia
cotidiana. A democracia não pode ser algo abstrato na vida das
pessoas ou, de concreto, representar apenas as eleições. Deve
proporcionar ao cidadão e à cidadã a participação plena nas
questões que lhes dizem respeito, além de favorecer sua
soberania, autodeterminação e autonomia.224

Portanto, a democracia participativa tem um papel estratégico que se


constrói cotidianamente, que se compreende como processo em construção. Daí
o papel inovador das Conferências e Conselhos de Saúde no SUS, que fazem
dessas instâncias campos férteis para a construção desse processo histórico-
social.

O Conselho de Saúde e a Conferência de Saúde foram efetivados por


meio da Lei n.º 8.142, de 28.12.1990, e não resta dúvida de que é uma grande
conquista democrática. A Conferência de Saúde é um fórum de participação
popular que se reúne a cada quatro anos e deve contar com a participação dos
movimentos sociais organizados, das entidades ligadas à área da saúde, dos
gestores e dos prestadores de serviços de saúde225 e tem como finalidade “avaliar

223
MORONI, José Antônio. O direito a participação no Governo Lula. 32 International Conference
on Social Welfare. 2006.
224
Idem, ibidem.
225
Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/14cns/historias.html>. Acesso em: 14 abr. 2016.
As Conferências de Saúde devem ser realizadas tanto no nível federal como nos níveis
estaduais e municipais. Encontramos histórico das Conferências de Saúde. Registra-se a
primeira Conferência Nacional de Saúde (CNS) há 75 anos: 1.ª CNS (1941) com o tema:
Situação sanitária e assistência dos estados. 2.ª CNS (1950) – Legislação referente à higiene e
à segurança do trabalho. 3.ª CNS (1963) – Descentralização na área de Saúde. 4.ª CNS (1967)
– Recursos humanos para as atividades em saúde. 5.ª CNS (1975) – Implementação do
97

a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de


saúde”.226 De acordo com Fernando Aith,

As Conferências representam o momento maior do exercício da


Democracia Sanitária do Brasil, devendo as autoridades públicas
de saúde observar as deliberações das Conferências o mais
fielmente possível. Embora as deliberações tomadas nas
Conferências de Saúde não tenham força normativa nem vinculem
o gestor, elas corporificam a vontade da sociedade e possuem a
força que somente a legitimidade social pode oferecer.227

Os Conselhos de Saúde, por sua vez, têm caráter permanente e


deliberativo; trata-se de um órgão colegiado composto por representantes do
governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, com
prerrogativa para formular estratégias, controle da execução da política de saúde
(artigo 1.º, § 2.º), inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, sendo suas
decisões homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído de cada esfera
de governo. De acordo com o dispositivo legal (artigo 4.º da Lei n.º 8.142/1990),
os Conselhos de Saúde são obrigatórios a todos os entes federativos (União,
Estados, Municípios e Distrito Federal) e cada um deles, dentro de seu âmbito de
atuação, deve criar os Conselhos de Saúde para permitir que a população possa
participar da gestão da saúde, tendo conhecimento dos interesses da coletividade
e apresentando dessa forma os anseios desta, a fim de que sejam atendidos

Sistema Nacional de Saúde, II. Programa de Saúde Materno-Infantil; III. Sistema Nacional de
Vigilância Epidemiológica; IV. Programa de Controle das Grandes Endemias; e V. Programa de
Extensão das Ações de Saúde às Populações Rurais. 5.ª CNS (1977) I. Situação atual do
controle das grandes endemias; II. Operacionalização dos novos diplomas legais básicos
aprovados pelo governo federal em matéria de saúde; III. Interiorização dos serviços de saúde;
e IV. Política Nacional de Saúde. 7.ª CNS (1980) – Extensão das ações de saúde por meio dos
serviços básicos. 8.ª CNS (1986) – I. Saúde como Direito; II. Reformulação do Sistema
Nacional de Saúde; e III. Financiamento Setorial. 9.ª CNS (1990) – Municipalização é o
caminho. 10.ª CNS (1996) – I. Saúde, cidadania e políticas públicas; II. Gestão e organização
dos serviços de saúde; III. Controle social na saúde; IV. Financiamento da saúde; V. Recursos
humanos para a saúde; e VI. Atenção integral à saúde. 11.ª CNS (2000) – Efetivando o SUS:
acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social. 12.ª CNS (2003) –
Saúde: um direito de todos e um dever do Estado. A saúde que temos, o SUS que queremos.
13.ª CNS (2007) – Saúde e Qualidade de Vida: Política de Estado e Desenvolvimento. 14.ª
CNS (2011) – Todos usam o SUS! SUS na Seguridade Social – Política Pública, Patrimônio do
Povo Brasileiro. E no sítio <http://conselho.saude.gov.br/web_15cns/index.html>. Acesso em:
14 abr. 2016, encontramos informações sobre a 15.ª CNS (2015) – Saúde pública de qualidade
para cuidar bem das pessoas. Direito do povo brasileiro.
226
Lei n.º 8142, de 28.12.1990, artigo 1.º, § 1.º.
227
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 35.
98

pelas ações de governo. O mesmo dispositivo dispõe que os Estados e


Municípios228 somente receberão os recursos federais ou estaduais (quando for o
caso), quando contarem com Conselho de Saúde.

O direito à saúde não vive somente da norma textual; assim, por meio
dessas instâncias, deve-se procurar apresentar questões problemáticas que
ocorrem no dia a dia desses Conselhos de Saúde, mas, por outro lado, deve-se
buscar ampliar algumas possibilidades de efetividade, a partir da
representatividade de conselheiros e suas respectivas entidades, para que eles
possam de fato representar os cidadãos. Francini Lube Guizardi aponta que não
há como negar a grande conquista democrática com a criação dos Conselhos de
Saúde. Entretanto, lembra que esse importante instrumento da cidadania para
sua concretização tem encontrado muitas dificuldades que a cada dia
obstaculizam todas as expectativas neles depositadas. Mas por quê? Uma das
dificuldades apontadas por Guizardi é a seguinte:

Tem-se constatado que a participação, principalmente do


segmento de usuários, tende a ser cerceada na medida em que a
presença quantitativa assegurada com o requisito jurídico da
paridade entre usuários e demais membros do conselho, mesmo
quando cumprida, não significa uma correspondência direta com a
capacidade de intervenção.229

Outra questão pontuada por Guizardi foi apresentada pelo Cadastro


Nacional de Conselhos de Saúde, organizado pela Secretaria de Gestão
Participativa do Ministério da Saúde, que identificou como obstáculos:

[...] o não exercício do seu caráter deliberativo na maior parte dos


municípios e estados; as precárias condições operacionais e de

228
Em consulta feita pela pesquisadora ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 13.04.2016
sobre o número de Conselhos de Saúde, recebeu-se resposta em 21.04.2016, da seguinte
forma: Atualmente o Brasil está composto de 5.570 (CMS), 27 Estados/DF (CES) e 1 Nacional
(CNS), não sabemos se todos os 5.570 CMS existem. Nem todos os CMS estão cadastrados
no SIACS. Após consulta na tabela do Quadro Demonstrativo da Situação dos Conselhos
Estaduais e Municipais (SIACS), verifica-se que existem 5.631 municípios cadastrados, ou
seja, 61 municípios não são mencionados.
229
GUIZARDI, Francini Lube. Direito à saúde e a participação política no SUS: cenários,
dispositivos e obstáculos. In: ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni (Org.). Direito sanitário.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 585.
99

infraestrutura; a falta de regularidade de funcionamento; a


ausência de outras formas de participação; a falta de
transparência nas informações da gestão pública; a dificuldade e
desmobilização do seu desenvolvimento na formulação de
estratégias e políticas para a construção do novo modelo de
atenção à saúde; e a baixa representatividade e legitimidade de
conselheiros nas relações com seus representados.230

Marlon Alberto Weichert, ao analisar a participação da comunidade por


meio dos Conselhos e Conferências de Saúde, e em especial do Conselho de
Saúde, esclarece que:

Não é fácil, porém, a tarefa de ver reconhecida essa


relevantíssima função deliberativa do Conselho, seja pelos
membros do Poder Executivo (Governadores, Prefeitos e
Secretários de Saúde), seja pelos próprios Conselheiros. De fato,
o processo de democratização e inclusão da sociedade no seio
dos órgãos incumbidos de deliberar sobre as políticas públicas
não ocorre sem traumas. Na organização e funcionamento dos
Conselhos de Saúde não é diferente, seja no plano federal,
estadual ou municipal. Vencem-se consecutivas etapas, que
consistem primeiro em assegurar a previsão de existência do
Conselho, através das respectivas leis e regimentos; depois em
estruturá-lo, mediante a garantia de espaço físico e apoio material;
em terceiro, a realização de eleições legítimas; quarto, a
capacitação dos conselheiros, para que saibam o que podem e
devem fazer no exercício da função; quinto, que se garanta a
observância, pela direção do SUS (secretários de saúde ou
equivalentes), das deliberações do Conselho; e, sexto, a
implementação das medidas deliberadas.231

Como se constatou por meio desta pesquisa, são muitas as dificuldades


que deverão ser vencidas para a democratização da democracia,232 tão
necessária para que a implantação do SUS seja efetivamente alcançada por meio
dessas instâncias de participação, representação e interlocução que foram
proporcionadas com a promulgação da CR/1988, que representou, na concepção

230
BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de gestão estratégica e participativa. Departamento
de apoio à gestão participativa. Participação em Saúde. 2006, p. 17.
231
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição brasileira. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004. p. 173.
232
Expressão utilizada por Amélia Cohn.
100

deste trabalho, uma nova configuração de sociedade mais ativa e que tem na
cidadania uma possibilidade de a sociedade interagir com os governos.

No campo da saúde pública brasileira, registra-se novamente que o SUS


inovou ao assegurar a participação da comunidade nos Conselhos de Saúde para
que os interesses da população possam ser apresentados e postulados para a
materialização de seus direitos. Entretanto, não basta assegurar a participação
apenas formalmente. É necessário que os atores envolvidos e, em especial, os
que são oriundos das bases encontrem amparo, para que consigam entender as
demandas apresentadas e, assim, dominando as informações, possam
efetivamente participar das tomadas de decisões. Tem-se claro o entendimento
de que somente quando os serviços se tornarem concretos essa população
compreenderá de fato o direito à saúde.

Nesse sentido, acompanha-se Tatiana Gonçalves dos Santos ao discutir


sobre as inúmeras variações existentes nas definições, estratégias e justificativas
para a democracia deliberativa: “[...] faz-se necessário, portanto, ampliar a noção
de participação de modo a resgatar um conteúdo mais ativo, em que a
democracia possa realmente se aprofundar”.233 Isso significa em termos
prospectivos que os Conselhos de Saúde (como principal instância participativa
do SUS) possam redescobrir novas práticas de participação e, se for o caso, até
questionar se as existentes estão sendo suficientes para avançar na conquista do
direito à saúde referenciada pela CR/1988 e nas leis orgânicas da saúde.

2.8 O Sistema Único de Saúde e os princípios ordenadores da


universalidade e da integralidade

As ações e os serviços públicos de saúde, e mesmo os serviços


privados (contratados ou conveniados) que fazem parte do SUS, devem ser
desenvolvidos em harmonia com as diretrizes que estão estabelecidas no artigo

233
SANTOS, Tatiana Gonçalves. Notas para o debate sobre participação social. Disponível em:
<http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/03/notas-para-o-debate-sobre-a-participa%C
3%A7%C3%A3o-social.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2016.
101

198 da CR/1988, mas sempre em obediência aos princípios dispostos no artigo


7.º da Lei n.º 8.080/1990 (Lei Orgânica do SUS). No desenvolvimento do item 1.4,
que tratou de alguns aspectos da Doutrina dos princípios, utilizou-se a expressão
de Celso Seixas Ribeiro Bastos que os caracterizou como “força irradiante”.
Assim, podem-se compreender os princípios do SUS, dados pela CR/1988, como
aqueles que têm a função de cimentar e alicerçar o sistema. Fernando Aith
entende que:

[...] Se os princípios são os alicerces do Sistema, as diretrizes são


os seus contornos [...] Tais princípios e diretrizes vinculam todos
os atos realizados no âmbito do Sistema (sejam eles da
Administração Direta ou Indireta, sejam eles normativos ou
fiscalizatórios).234

Neste trabalho, destacam-se em especial os princípios da universalidade


e integralidade, por compreender que são os responsáveis pelo acesso de todos
ao sistema e por possibilitar que o conjunto (todos) tenha acesso a tudo.

2.8.1 Princípio da universalidade

Por meio dele reconhece-se que os serviços de saúde pública devem


ser prestados a todos e indistintamente de condição social ou qualquer outro pré-
requisito que possa exigir uma contraprestação. Entende-se que o SUS não foi
criado apenas para as pessoas em estado de vulnerabilidade social (como uma
política de assistência social) ou para aqueles que contribuem para a seguridade
social. Pela universalidade235 não há que falar em escolha de pessoas. Deve-se
olhar para toda a população, pois é esse o conteúdo constitucional. Significa que
o Estado deve garantir que o acesso às ações e serviços de saúde seja universal
e igualitário. Tendo o princípio da universalidade como garantidor, a saúde
humana passa a ter um valor universal, vinculada, portanto, à proteção da

234
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 354.
235
Segundo Japiassu e Marcondes: “universal é aquilo que se aplica a totalidade”, que “exprime a
ideia de extensão completa de um conjunto. Universalização é o ato, o efeito de universalizar,
referindo-se a generalidade ou a qualidade do que é universal” (JAPIASSU, Hilton;
MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. p. 265).
102

dignidade humana, como direito de cidadania, em que cabe ao Estado a


responsabilidade pela promoção, proteção da vida das pessoas e contra os riscos
a que elas estão expostas em caso de doença ou de agravo à sua saúde, em
suma, visando o acesso e o tratamento igualitário.

Como se vê, tanto pela CR/1988 como pelo artigo 2.º da Lei n.º
8.080/1990, “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado
prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. Portanto, o SUS
existe para garantir o direito à saúde – como um direito fundamental – e um direito
universal. Portanto, é dele a responsabilidade para a sua efetividade em todas as
esferas de poder público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Assim,
no caso da área da saúde, a sua plena realização depende da atuação do Estado
brasileiro, já que a promoção, a proteção e, por que não, a recuperação da saúde
sempre dependerão de ação a ser desenvolvida pelos órgãos estatais, seja na
elaboração de leis destinadas à proteção do direito à saúde (pelo Legislativo),
seja por parte do Executivo, executando políticas públicas, por exemplo, no
atendimento clínico ou hospitalar, como vigilância sanitária, regulamentando,
aplicando leis e no fornecimento de medicamentos. Ou até mesmo no caso
judicial, quando uma pessoa se sente lesada no seu direito à saúde.

Em contraposição a uma concepção não universal de saúde, a CR/1988


soube romper juridicamente ao estabelecer a universalidade como um dos
princípios do SUS, que eliminou a ideia de saúde restrita às pessoas que tinham
vínculo empregatício (carteira assinada), ou seja, a saúde em decorrência de um
direito trabalhista. E aos excluídos desse mercado formal de trabalho restava a
condição de indigentes que se valiam das instituições filantrópicas e aos serviços
que eram mantidos pelo Ministério da Saúde ou da Educação (Centros e
Hospitais Universitários) e pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde.

Ao mesmo tempo em que há reconhecimento no texto normativo


(CR/1988 e Lei n.º 8.080/1990), da universalidade da saúde como um direito de
qualquer pessoa, não tem conseguido na prática efetivar-se como direito de cada
um e de todos, pois são muitos os entraves. Segundo Maria Inês Souza Bravo, a
universalidade da saúde, além de ser um dos fundamentos centrais definidos pelo
103

Movimento da Reforma Sanitária, tem sido um dos princípios que tem provocado
maior resistência, uma vez que o projeto da saúde articulado ao mercado é
guiado por concepções individualistas e fragmentadoras da realidade, que se
contrapõe às concepções coletivas e universais do SUS. Além do que deve-se
observar a relação da universalidade com a equidade, pois em um sistema em
que há iniquidade,236 ou seja, no qual as desigualdades são extremas, não há
como desconsiderar as diversidades (regionais ou de condições de vida, de
moradia, de renda, de gênero ou de etnia). Não se podem ignorar as
necessidades e as capacidades dos sujeitos, as prioridades políticas na melhoria
da qualidade de vida da população mais pobre e em situação de risco e
vulnerabilidade, mas isso não significa reduzir a saúde a uma política para os
pobres.237 Sobre a segmentação do SUS, ela será tratada no último capítulo deste
trabalho como uma das propostas para que o direito à saúde seja alcançado.

Ainda a respeito dos entraves que impossibilitam a universalidade no


País, eles são, consoante Carlos Octávio Ocké-Reis:

A expressão da universalização excludente, cunhada para


qualificar a associação entre a expansão por baixo, pela inclusão
de milhões de pobres e indigentes, e a exclusão por cima,
mediante a qual segmentos de trabalhadores mais qualificados e
a classe média em geral, aparentemente, renunciam à assistência
médica do SUS, em busca de atendimento diferenciado dos
planos de saúde, não reconhece significativamente que houve
uma migração da clientela do seguro social para o mercado que,
por sua vez, reforçou e consolidou o próprio mercado. Nesses
termos, pode-se enunciar que houve uma privatização do seguro
social, engrossando o número de consumidores de planos

236
De acordo com Alberto Pellegrini, iniquidades – “são as desigualdades injustas e evitáveis. E
são estas que devem ser combatidas e evitáveis” (Alberto Pellegrini, em entrevista ao
programa Sala de Convidados, do Canal Saúde (Fiocruz), Diretor do Centro de Estudos,
Políticas e Informação em Determinantes Sociais da Saúde (Cepi-DSS) da Escola Nacional de
Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fiocruz, falou sobre a relação entre o meio ambiente e os
Determinantes Sociais da Saúde. Disponível em: <www.youtube.com/
watch?v=gmThUIr0tJc&ebc=ANyPxKr5dBQnRyN_KiL73rMHbpk75-4PhmTdu6ETlusdwJXQNQ
jjylG6fTJCYznLZPNQ4CdzkhDpbeBTu4YWHRCbq870EYM88Q>. Acesso em: 4 abr. 2016).
237
BRAVO, Maria Inês Souza. Política de saúde no Brasil. In: MOTA, Ana Elizabete et al. (Org.).
Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: OPAS; OMS; Ministério da
Saúde, 2006. p. 88-110; OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. A Constituição de um modelo de atenção
à saúde universal: uma promessa não cumprida pelo SUS? Texto para discussão n.º 1376,
São Paulo: IPEA, p. 9, fev. 2009.
104

privados, dando início à configuração, a partir do SUS, de um


sistema de saúde paralelo, que reproduz desigualdades sociais e
aprofunda iniquidades de acesso dentro do sistema de saúde.238

O problema que se enfrenta é no sentido de buscar a efetividade do


direito à saúde em meio a um cenário em que a relação público-privada é
bastante confusa e não há uma clareza por parte do Estado em considerar a
saúde uma questão de fato de interesse público.239 Sem contar que a saúde se
encontra diante dos parcos recursos financeiros ao SUS, bem como ante as
omissões e negligências da Administração Pública, que mesmo vinculada à
Norma Constitucional não tem conseguido ir além do texto, a fim de incorporar
simultaneamente no sistema de saúde as pessoas sem renda, de baixa renda e
as de classe média.240 Na concepção deste trabalho, talvez aí resida possível
efeito na universalidade de acesso aos serviços de saúde prestados pelo SUS,
em que, de um lado, as políticas em saúde, conforme a prescrição constitucional,
devem ser públicas e gratuitas, contudo, de outro lado, muitas vozes 241 surgem
desejando substituir o Estado pelo mercado, como se o segundo fosse o redentor
da saúde no Brasil. De certo modo, essa contradição reflete na identidade da
imagem da saúde do País. Basta ver a posição de número 125 do Brasil entre os
191 membros da OMS no ranking mundial da saúde elaborado por peritos
internacionais em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) a
respeito de temas específicos de saúde com indicadores gerais.242

238
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. A Constituição de um modelo de atenção à saúde universal: uma
promessa não cumprida pelo SUS? cit., p. 9.
239
Conforme tratamento dado pelo artigo 197 da CR/1988: “São de relevância pública as ações e
serviços de saúde [...]”.
240
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS: o desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2012. p. 61.
241
Para Carlos Octávio Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a
proposta do Ministro Ricardo Barros de criar planos de saúde populares cumpre um duplo
papel para o governo neste momento. Posição que também acompanho. Segundo ele: “Num
contexto de recessão, de desemprego, de redução da renda média, e, portanto, de maiores
dificuldades para a expansão do mercado de planos de saúde, do ponto de vista de um
governo liberal ou neoliberal, essa proposta é a tentativa de criar um novo filão de mercado.”
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/saude-os-planos-da-
segregacao>. Acesso em: 13 nov.2016.
242
Consulta feita pela pesquisadora em 14.05.2016 ao Serviço de Acesso ao Cidadão (SIC) do
Ministério das Relações Exteriores, sobre a posição que o Brasil ocupa no mundo em relação à
105

Outra importante questão a ser apresentada neste ponto diz respeito


aos diversos casos em que o Poder Judiciário (com o fenômeno da judicialização)
tem se pronunciado, condenando o Poder Público a fornecer medicamentos,
tratamentos etc., a fim de garantir a prestação de saúde àqueles que conseguem
judicializar o seu pedido para acesso ao sistema. O que impõe no presente
trabalho suscitar alguns questionamentos, que se entendem complexos e que não
serão enfrentados por este, mas que compreendem necessário como pano de
fundo do princípio da universalidade. Por exemplo, o Judiciário deve ser o
protagonista nas questões relativas à saúde, especialmente quando se sabe que
o acesso à justiça ainda não é para todos? O Judiciário tem essa capacidade
institucional? “Uma ênfase excessiva na judicialização não pode arrefecer a
mobilização cívica da sociedade civil e fragilizar o controle social sobre a saúde,
exercido, por exemplo, nos respectivos conselhos sociais?”243

Luís Roberto Barroso, sobre a judicialização da saúde, assim


manifestou:

Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais,


que condenam a Administração ao custeio de tratamentos
irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de
essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais ou
de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro
lado, não há um critério firme para a aferição de qual entidade
estatal – União, Estados e Municípios – deve ser responsabilizada
pela entrega de cada tipo de medicamento.244

Em quais circunstâncias tem ocorrido a judicialização? Fernando Aith


esclarece que, quando há falhas no planejamento estatal para a proteção do
direito à saúde, é certo que deve haver o direito de ação contra o Poder Público.
No entanto, pondera que em muitas vezes tais medidas causem um desequilíbrio
nas contas da saúde, ou seja, o ente federativo “é condenado e precisa alterar o

saúde. O referido órgão reencaminhou o pedido para a Assessoria de Relações Internacionais


do Ministério da Saúde, que respondeu em 06.06.2016. Protocolo n.º 09200000430201615.
243
SARMENTO, Daniel; TELLES, Cristina. Judicialização da saúde e responsabilidade federativa:
solidariedade ou subsidiariedade cit., p. 117-118.
244
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva cit., p. 2.
106

planejamento de saúde previsto”.245 Um ponto de equilíbrio deveria estar centrado


em um planejamento capaz de atender a integralidade de atendimento 246 que, no
sentir deste trabalho, deve caminhar com o princípio da universalidade.

Realmente, se o direito a ser buscado por meio da tutela jurisdicional é


facultado ao cidadão pleiteá-lo, uma vez que o direito à saúde é expressamente
garantido pela Constituição, tal direito não tem sido assegurado concretamente.
Por isso, havendo urgência e risco à vida, deve o interessado receber a devida
proteção judicial.

Entretanto, o Judiciário247 deve perceber que as demandas a ele


apresentadas fazem parte de um universo muito maior e complexo e que as suas
decisões sem o devido amparo técnico impactarão sobre todo o sistema público
de saúde. Seria obrigação do Estado disponibilizar medicamentos ou tratamentos
experimentais não registrados ou que não são aconselhados pelos protocolos
clínicos, não licitados e não previstos nas listas do SUS? Como enfrentar esse
problema? Defronta-se essa questão concordando com Ana Carolina Izidório
Davies, que considerou a judicialização da saúde como:

A concessão excessiva de casos específicos que deveriam ser


melhor analisados somado à inobservância da reserva do possível
adaptada à realidade brasileira, conforme demonstrado, gera um
efeito multiplicador que desequilibra todo o sistema público de

245
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 225-226.
246
Idem, p. 226.
247
A Ministra Carmem Lúcia rebateu críticas sobre a judicialização da saúde. Analisando a
questão dos remédios adquiridos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) através de ações
judiciais individuais, [...] declarou: “A dor tem pressa”. Alegou que é juíza, não ministra da
Fazenda. Não desconheço a responsabilidade dele. “Eu não sou ministra da Saúde. Eu sou
juíza, eu tenho a Constituição, que diz que é garantido o direito à saúde. Eu estudo que a
medicina pode oferecer uma alternativa para essa pessoa viver com dignidade”. Também
compreendo o que a Constituição diz sobre a saúde, no entanto, pode parecer paradoxal, mas
é diante da universalidade que a igualdade também se manifesta. Daí o que tem sido
enfatizado neste trabalho sobre a urgência de políticas públicas que atendam a todos e não
apenas alguns. O artigo de José Nassif está disponível em: <http://jornalggn.
com.br/noticia/como-a-ministra-carmen-lucia-impediu-medicamentos-mais-baratos>. Acesso
em: 13 nov. 2016.
107

saúde e que se transforma de viabilizador a limitador à realização


da integralidade da saúde.248

Dessa maneira, entende-se que seria razoável ao referido Poder


dialogar com os demais Poderes (Executivo e Legislativo) vocacionados
institucionalmente para tanto, em especial o Poder Executivo, que é o
responsável pelas prestações das demandas que não estão sendo atendidas.

Por certo, o primeiro grande princípio do SUS garante que a cobertura


universal contida no princípio da universalidade é o melhor modo de atingir o
direito fundamental de todo ser humano, que é o direito à saúde. Assim, não resta
dúvida que impõe ao Estado a realização de políticas públicas que alcancem
efetivamente a população com a adoção de prestações materiais que
transformem os serviços e as ações de saúde, tais como atendimento médico e
hospitalar, fornecimento de medicamentos, realização de exames variados e/ou
toda e qualquer prestação que seja fundamental para a concretização desse
direito humano tão necessário para que a pessoa tenha uma vida digna de ser
vivida. Trata-se de desafios ao acesso universal que o Estado brasileiro, com a
sociedade, deve enfrentar permanentemente.

2.8.2 Princípio da integralidade

A integralidade é um princípio do SUS: “integralidade de assistência,


entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e
curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema”.249

No caso brasileiro, existem muitas dificuldades de assegurar a todos o


acesso às ações e serviços de saúde. Por isso, muitas pessoas acabam
recorrendo aos planos e seguros privados de saúde. Isso faz gerar a dupla
cobertura de assistência à saúde com a adoção de sistemas paralelos (público e

248
DAVIES, Ana Carolina Izidório. Saúde pública e seus limites constitucionais cit., p. 83.
249
Nos termos da Lei n.º 8.080/1990, em seu artigo 7.º, inciso II.
108

privado), mesmo sabendo que a assistência à saúde é um direito social e uma


questão de interesse público, uma vez que todos têm direito à saúde.

Sob essa ótica, o Estado deve ser capaz de estruturar o SUS para que
possa fornecer a integralidade do atendimento.250 Para Roseni Pinheiro, a
integralidade como definição legal e institucional é concebida como “um conjunto
articulado de ações e serviços de saúde, preventivos e curativos, individuais e
coletivos, em cada caso, nos níveis de complexidade do sistema”.251 Esse
princípio, portanto, é concebido como um conjunto em que as ações de serviços
de saúde precisam estar articuladas, visando um atendimento que deva ser
prestado com um olhar destinado a cada caso (individual e coletivo),
independentemente do nível de sua complexidade.

Conforme Fernando Aith, o campo da assistência à saúde é um dos


maiores responsáveis pela garantia da integralidade do atendimento e se dá em
três níveis de atenção à saúde (cada qual voltado a objetivos específicos): o
primeiro: atenção básica; o segundo: atenção da média complexidade; e o
terceiro: atenção da alta complexidade.252

Como visto, a integralidade e a universalidade são alguns dos princípios


informadores dos serviços de saúde pública. Contudo, em um país como o Brasil,
que distribui muito mal a sua riqueza, quem sempre paga por essa desigualdade
são as pessoas mais pobres e que necessitam das ações governamentais que,
na maioria das vezes, são descompassadas e não conseguem corrigir as
desigualdades sociais. Esse, porém, é um desafio que o Estado brasileiro deve
assumir em uma ação compartilhada com a sociedade, a fim de corrigir essas
iniquidades, pois são evitáveis.

Em suma, a integralidade, como meio de concretizar a saúde e como fim


no cuidado com o ser humano, pode promover movimentos que busquem superar

250
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 223
251
PINHEIRO, Roseni. Saúde pelos sanitaristas: O Sistema Único de Saúde sob a ótica do
princípio universal da integralidade das ações cit., p. 73.
252
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 225.
109

as dificuldades enfrentadas no cotidiano dos serviços de saúde e nas relações


entre os gestores do SUS com a sociedade, como propulsora de uma atuação
democrática, considerando o usuário como sujeito que deve ser atendido e
respeitado em suas necessidades e demandas,253 o que só pode ser possível
com ações e serviços de saúde que mirem o ser humano.

2.9 As ações e os serviços de saúde

Quanto às ações e serviços públicos de saúde, André Ramos Tavares


observa que:

Subsumem-se ao princípio do atendimento integral (art. 198, II),


que é diverso do já mencionado acesso universal. Este se refere
ao direito que, no caso, é atribuído a qualquer pessoa. Já o
atendimento integral refere-se ao próprio serviço, que, no caso,
deve abranger todas as necessidades do ser humano
relacionadas à saúde. Portanto, não só todos têm direito à saúde,
como esta deve ser prestada de maneira completa, sem
exclusões de doenças ou patologias, por dificuldades técnicas ou
financeiras do Poder Público. Não é permitido a este esquivar-se
da prestação de saúde em todos os setores.254

Desse modo, cuidar da saúde é tarefa incumbida a todas as esferas de


poder político da Federação brasileira, o que está claramente enumerado entre as
competências comuns à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
(artigo 23, II, da CR/1988). Também há previsão legislativa concorrente sobre a
proteção e defesa da saúde, limitando-se a União, nesse caso, ao
estabelecimento de normas gerais, cabendo aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios suplementá-las (artigo 24, XII, c/c o artigo 30, II). No tocante às
atividades destinadas ao atendimento à saúde da população, “Compete aos
Municípios [...] prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do
Estado, esses serviços” (artigo 30, VII, da CR/1988). A Carta Magna não eximiu
qualquer esfera de poder político da obrigação de “cuidar da saúde”. Portanto,

253
PINHEIRO, Roseni. Saúde pelos sanitaristas: O Sistema Único de Saúde sob a ótica do
princípio universal da integralidade das ações cit., p. 73-74.
254
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 719.
110

como prevê o artigo 196, a saúde é “dever do Estado” (sendo responsáveis a


União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios), e todas essas áreas
devem proteger e promover a saúde de forma gratuita.

Para tanto, a Constituição organizou o sistema público de saúde ao


exigir que todas as ações e os serviços de saúde integrem uma rede que tenha
apenas uma direção em cada esfera de poder político. Estabelece que essa rede,
ao prestar um atendimento integral às necessidades de saúde, seja organizada
considerando os diferentes níveis de complexidade das ações e dos serviços de
saúde, hierarquicamente. De acordo com os requisitos do Estado Democrático de
Direito, também estabeleceu que todas “as ações e serviços públicos de saúde
são de relevância pública” (artigo 197 da CR/1988) e que se realizem com a
participação da comunidade (artigo 198 da CR/1988).

André Ramos Tavares leciona que a Constituição diferenciou entre


“ações e serviços de saúde” (artigos 197 e 198 da CR/1988) e a “assistência à
saúde” (artigo 199 da CR/1988), que é livre à iniciativa privada. Para ele não
haveria nem a necessidade de a Constituição ter “mencionado essa circunstância,
pois já é compreensível como monopólio estatal todas essas atividades” que
estão circunscritas nesses termos. Todavia, mesmo que o Ente Federado preste
determinada ação ou serviço de forma obrigatória, conforme preceitua no artigo
196 “(dever do Estado), nem por isso resta afastada a iniciativa privada, que é, no
tema, um princípio constitucional (arts. 1.º, IV, e 170, caput, da CF). De qualquer
forma, não resta dúvida de que também a iniciativa privada pode dedicar-se à
atividade destinada à saúde”.255

No entanto, acrescenta-se que a dedicação à atividade destinada à


saúde não isenta os planos e as seguradoras de saúde de ressarcirem o SUS
quando o cidadão que dispõe desse tipo de assistência privada se viu excluído
por ele em algum tipo de cobertura que deveria prestar e o SUS cobriu. Sobre o
ressarcimento ao SUS, conforme preceitua o artigo 32 da Lei n.º 9.656/1998, esse

255
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 719.
111

assunto será desenvolvido logo adiante, quando a penúltima parte deste trabalho
será propositiva.

Vale ressaltar também que o princípio do acesso universal e igualitário


mencionado no artigo 196 da CR/1988 garante o alcance deste direito a todo e
qualquer cidadão de forma idêntica e independentemente de contraprestação à
previdência social, como era antigamente.

Assim, a proteção da saúde pode ser exigida por meio de um comando


normativo capaz de organizar não só as atividades das pessoas e da sociedade,
mas também do Estado, uma vez que cabe a este o papel para adoção das
medidas necessárias a fim de se evitarem todos os riscos de doenças e de outros
meios gravosos à saúde da população, colaborando, dessarte, para a redução de
todos os riscos sociais e até efetivar o direito à saúde. Como exemplo, citam-se
os incisos do artigo 200 da CR/1988, que descrevem a competência do SUS,
entre outras atribuições:

I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de


interesse para a saúde e participar da produção de
medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e
outros insumos; II – executar as ações de vigilância sanitária e
epidemiológica, bem como de saúde do trabalhador; III – ordenar
a formação de recursos humanos na área de saúde; IV –
participar da formulação da política e da execução das ações de
saneamento básico; V – incrementar em sua área de atuação o
desenvolvimento científico e tecnológico; VI – fiscalizar e
inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor
nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;
VII – participar do controle e fiscalização da produção, transporte,
guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos
e radioativos; VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele
compreendido o do trabalho.

A CR/1988, ao criar e estabelecer quais as diretrizes e princípios para o


SUS, possibilita todos os elementos básicos para a organização de todas as
ações e serviços de saúde, sejam eles prestados pelo Poder Público ou pela
iniciativa privada, os quais possuem relevância pública (art. 197 da CR/1988).
112

Assim, a Constituição estabeleceu a competência do Poder Público para


regulamentá-los, fiscalizá-los e controlá-los. A garantia do direito à saúde das
pessoas pelos Estados-Membros e dos Municípios supõe, também, a
formalização dos sistemas sanitários estaduais e municipais. As diretrizes desses
sistemas, em obediência ao preceito nacional (artigo 198), obrigam-no a, no gozo
do poder político implícito à descentralização, realizar o atendimento integral da
saúde, priorizando as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais, e a contar com a “participação da comunidade em sua
organização”. Para a sua realização, exigem esforços de todos aqueles que
militam nessa área (profissionais da saúde, setores da saúde do Poder Executivo,
do Poder Judiciário e de grande parte da sociedade civil). De acordo com Felipe
Dutra Asensi, o princípio da integralidade significa:

A garantia do fornecimento de um conjunto articulado e contínuo


de ações e serviços preventivos, curativos e coletivos, exigidos
para todos os níveis de complexidade de assistência. Desse
modo, tal princípio engloba ações de promoção, proteção e
recuperação da saúde.256

Como se pode ver, as ações e os serviços de saúde reconhecem e


carecem do princípio da integralidade que estimula para que se promova a saúde
de cada pessoa, seja por meio da prevenção de riscos e agravos de doenças,
seja pela assistência a doentes. Um modelo de atendimento integral é aquele que
possibilita os meios, seja pela via dos estabelecimentos onde se presta a saúde,
seja pela via de pessoal devidamente capacitado para prestar atendimento com
os recursos disponíveis e de excelência, que deve fazer parte da “cidadania do
cuidado”.257

No Manual de Atuação do Ministério Público Federal em defesa do


direito à saúde, o princípio da integralidade se refere tanto às pessoas quanto ao
Sistema de Saúde, pois:

256
ASENSI, Felipe Dutra. O direito à saúde no Brasil cit., p. 11.
257
PINHEIRO, Roseni. Saúde pelos sanitaristas: O Sistema Único de Saúde sob a ótica do
princípio universal da integralidade das ações cit., p. 74.
113

Cada pessoa constitui um todo indivisível e membro de uma


comunidade: as ações de promoção, proteção e recuperação da
saúde, da mesma forma, constituem-se em um todo, não podendo
ser divididas; as unidades constitutivas do Sistema configuram
também um todo indivisível, capaz de prestar assistência
integral.258

O SUS, sob a ótica do princípio da integralidade das ações, é concebido


como um conjunto articulado de ações de serviços de saúde, para cada caso
(individual e coletivo), mediante a Lei n.º 8.080/1990, que inaugurou um processo
marcado por mudanças jurídicas, legais e institucionais na história da saúde no
Brasil, mas que não devem fazer parte apenas de textos normativos. Nesse
sentido, é preciso conhecer as experiências exitosas que contemplem a
integralidade em saúde, como prática possível de conquista do cuidado e da
saúde que se deseja obter e que ganha forma como uma construção coletiva, na
busca de perspectivas de efetividade do direito à saúde, posto que o público-alvo
é a população. Contudo, dentro de um Estado social, o princípio da igualdade
deve estar direcionado à redução das desigualdades sociais.

Na área da saúde, em especial, deve-se atender de forma prioritária a


população que se encontra em situação de vulnerabilidade social, uma vez que
está sujeita às carências básicas, como a mínima instrução necessária para
buscar assistência à saúde a si própria. Por outro lado, em seus aspectos
sociais, o direito à saúde privilegia a igualdade, necessária para preservar a
saúde de todos, assim ninguém tem o direito de impedir que o outro procure seu
bem-estar ou até mesmo induzi-lo a adoecer. Por essa razão, existem normas
jurídicas para as pessoas se vacinarem,259 notificação ao tratamento,260 e até em
caso de doenças que podem implicar isolamento,261 bem como em situações em

258
Manual de Atuação do Ministério Público Federal em Defesa do Direito à Saúde, p. 13, 2005.
Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/
saude/manual_atuacao.pdf>. Acesso em: 4 maio 2016.
259
Lei n.º 6.259, de 30.10.1975, regulamentada pelo Decreto n.º 78.231, de 12.08.1976.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6259.htm>. Acesso em: 13 nov.
2016.
260
Artigo 7.º da Lei n.º 6.259, de 30.10.1975, regulamentada pelo Decreto n.º 78.231, de
12.08.1976.
261
Artigo 7º, inciso I, da lei citada.
114

que são necessárias a fiscalização e a inspeção de alimentos, água e bebidas


para consumo humano.262 De modo que cabe ao Estado fornecer todos os
recursos possíveis para que a saúde das pessoas seja alcançada.

Analisando por outro prisma, a universalidade pensada para as ações e


serviços de saúde, embora garantida pelo Estado de forma irrestrita (pelo menos,
textualmente), requer parâmetros de atuação, pois tal princípio, sem dúvida,
constitui importante fator de caracterização do direito à saúde, indicando que o
atendimento deve ser amplo e irrestrito, o que, porém, não significa que não
devam existir critérios e que o direito deva ser implementado de forma absoluta
sem qualquer estratégia e política para a sua execução. Sabe-se, porém, como
em qualquer outro país, que não é possível o Brasil alcançar pela universalidade
todas as pessoas diante de inúmeras formas de ações e serviços de saúde, pois
toda viabilidade de direitos possui um custo que deve ser previamente
administrado em termos legais, bem como por meio de políticas públicas que
visem criar possibilidades para que se concretizem. Logo, a análise da
universalidade deve sempre ser seguida pela igualdade que ensina que deve
haver tratamento dos que são iguais em igualdade e dos desiguais desigualmente
na medida em que se desigualam. Não há, portanto, como não olhar para os
hipossuficientes e menos desfavorecidos em uma nação tão desigual. Dessa
maneira, em matéria de saúde pública, o conceito de hipossuficiência deve ser
examinado caso a caso, pois trata-se de um conceito com caráter relativo a
depender do custo do medicamento ou tratamento. Eis um exemplo:

AgRg no Recurso Extraordinário n.º 271.286-8/RS


Relator: Min Celso de Mello
Agravante: Município de Porto Alegre
Agravada: Diná Rosa Vieira
Paciente com HIV/AIDS – Pessoa destituída de recursos
financeiros – Direito à vida e à saúde – Fornecimento gratuito de
medicamentos – Dever constitucional do Poder Público (CF, arts.
5.º, caput, e 196) – Precedentes (STF) – Recurso de agravo
improvido.

262
Lei n.º 8.080, de 19.09.1990.
115

O direito à saúde representa consequência constitucional


indissociável do direito à vida.
O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria
Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de
maneira responsável, o Poder público, a quem incumbe formular –
e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem
a garantir aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus
HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e
médico-hospitalar. [...] Distribuição gratuita de medicamentos a
pessoas carentes. [...] e representa, na concreção do seu alcance,
um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das
pessoas, especialmente daquelas que nada possuem, a não ser a
consciência de sua própria humanidade e de sua essencial
dignidade. Precedentes do STF.

Assim, deve ser também no direito à saúde: os menos favorecidos, de


forma geral, devem ter mais acesso à saúde e, na sua concessão, todas as
autoridades devem ter isso como meta. Contudo, a lei e seus regulamentos
devem impor as devidas proporções, e, na sua ausência, o Judiciário deve
responder com critérios, sempre de acordo com os princípios e diretrizes gerais
do sistema constitucional de saúde. Às vezes, a escolha pode ser trágica para o
magistrado, seja optando entre legalidade financeira ou a concretização do direito
social; ou verificando os custos dessa concessão que ainda não foram
contemplados por políticas públicas. Talvez esse seja mais um ponto da
judicialização difícil de compreender. Outro problema, na concepção deste
trabalho, é que as pessoas mais pobres, com menos acesso à justiça, acabam
sendo preteridas em relação àquelas com melhores condições econômicas e de
rede de contato, o que resulta na iniquidade, como foi apontado no item anterior.

Como o direito à saúde, compreendido por nós como direito fundamental


intrínseco à vida, sofre limitações? Ao afirmar que todo direito (mesmo os bens
maiores da saúde e da vida) possui um custo e que os recursos aplicados não
são ilimitados, passa-se a ideia de que tal disponibilidade de recursos públicos
estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e
parlamentares, sintetizadas no orçamento público. Entretanto, o que se vê hoje no
116

Brasil com o número crescente de ações judiciais é a necessidade de que o


Estado deve se aprimorar para uma melhor prestação de saúde de forma mais
equânime e mais justa possível. Novamente, adota-se no presente trabalho o
entendimento de Fernando Aith sobre a necessidade das políticas públicas para
as ações e serviços de saúde:

A normatização das políticas públicas de saúde organiza a ação


da Administração para a promoção, proteção e recuperação da
saúde, direcionando o Estado, juridicamente, à adoção de ações
concretas em benefício do direito à saúde. Essas ações, que se
manifestam através do serviço público administrativo, representam
para o Estado uma obrigação de fazer juridicamente regulada,
oferecendo aos cidadãos um instrumento jurídico precioso para o
controle das atividades dos gestores públicos.263

E, para obter a qualidade de assistência à saúde nessas ações e


serviços, o cidadão deve ter acesso a esse sistema, ter sido atendido por
profissionais integrantes do SUS, que têm a perfeita capacidade e conhecimentos
de protocolos e regulamentos técnicos da saúde pública.

Daí a necessidade de o acesso ocorrer pela porta de entrada desse


serviço público que precisa a todo instante ser lembrado de que as etapas que
são desconsideradas colaboram para o não funcionamento dessa política pública
nacional de saúde que deve ser administrada pelo SUS. Mas por que isso não
acontece plenamente?

Para que a universalidade e a igualdade nos serviços de saúde possam


ser garantidas, faz-se necessário que o tratamento seja integral pelo SUS,
existindo apenas uma exceção prevista na Lei n.º 9.313/1996, no caso da AIDS,
de que o medicamento deve ser fornecido gratuitamente, independentemente de
ter sido realizado por médicos cadastrados nos serviços públicos de saúde. Entre
as principais atribuições do SUS, está a “formulação da política de medicamentos,
equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a
participação na sua produção” (artigo 6.º VI).

263
AITH, Fernando. Curso de direito sanitário cit., p. 373-374.
117

Nesse sentido, em termos de saúde pública, a integralidade


farmacêutica deve abranger somente os medicamentos regulados e aprovados
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para Lenir Santos:

O direito à integralidade da assistência terapêutica não pode ser


aleatório e ficar sob a mais total independência reivindicatória do
cidadão e da liberdade dos profissionais de saúde indicarem
procedimentos, exames, tecnologias não incorporadas nos
sistemas, devendo a conduta profissional pautar-se por
protocolos, regulamentos técnicos e outros parâmetros técnico-
científico-biológicos. E esses documentos, orientadores do
sistema, devem ser elaborados de forma a serem capazes de
conjugar tecnologia, recursos financeiros e as reais necessidades
terapêuticas, sem acrescentar o que possa ser considerado
supérfluo ou desnecessário ou retirar o essencial ou relevante.264

Percebe-se que a CR/1988 e a Lei n.º 8.080/1990 procuraram ainda


definir o que cabe a cada um dos entes federativos na matéria. À direção nacional
do SUS atribuiu a competência de “prestar cooperação técnica e financeira aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua
atuação institucional” (artigo 16, XIII), devendo “promover a descentralização para
as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde,
respectivamente, de abrangência estadual e municipal” (artigo 16, XV). O
constituinte estabeleceu um sistema universal de acesso aos serviços públicos de
saúde, o que reforça a responsabilidade solidária dos entes da federação,
garantindo, inclusive, a “igualdade de assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie” (artigo 7.º, IV, da Lei n.º 8.080/1990) e em seu
artigo 17 conferiu as competências de promover a descentralização para os
Municípios dos serviços e das ações de saúde, de lhes prestar apoio técnico e
financeiro, e de executar supletivamente ações e serviços de saúde. Por fim, à
direção municipal do SUS incumbiu de planejar, organizar, controlar, gerir e
executar os serviços públicos de saúde (artigo 18, I e III).

264
SANTOS, Lenir. Conceito e atribuições do Sistema Único de Saúde. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/14816-14817-1-PB.html>. Acesso em:
8 ago. 2016.
118

Como se observa, toda a legislação foi pensada e construída com a


essência do sistema público de saúde de acordo com os princípios da
universalidade e integralidade que devem ser exclusivos daqueles cidadãos que
quiserem dele se valer, devendo, portanto, cumprimento ao que é estabelecido
em seus regramentos. Dessa forma, enfatiza-se o que antes se mencionou, que a
universalidade só faz sentido à luz do princípio da igualdade, ou seja, que
justifique a inclusão de todos, sem qualquer distinção nas políticas públicas de
saúde do Estado que é capaz de reconhecer que todos são iguais no sentido de
merecerem igualdade de respeito e tratamento quando este elabora e programa
tais políticas. Por certo, não há como falar em universalidade sem antes
reconhecer que todos são iguais e que merecem uma justa medida centrada em
parâmetros éticos e de acordo com os recursos orçamentários da saúde pública
de um país em desenvolvimento, que fez opção por um sistema universal de
saúde.

Entretanto, é preciso levar em consideração que as imensas


desigualdades socioeconômicas e territoriais que marcam a realidade brasileira
repercutem nas condições de saúde e no modo de vida das pessoas. E que as
ofertas de serviços do SUS não são suficientes para atender as especificidades
dos municípios, onde moram as pessoas. Por isso, requer-se um esforço
financeiro adicional da União e dos Estados, de modo a permitir uma
diversificação de políticas e investimentos que relacionem as necessidades de
saúde às dinâmicas territoriais específicas. Dessarte, as políticas setoriais só
poderão ser viáveis se articuladas a políticas nacionais e estaduais de
desenvolvimento regional de médio e longo prazo, sendo coerente com o próprio
sistema que visa uma direção única.
119

CAPÍTULO 3
COMPLEXIDADES DE UMA RELAÇÃO
PÚBLICO-PRIVADA NO SUS

3.1 Considerações preliminares sobre o financiamento da saúde


(essenciais para a delimitação do tema)

Como tratado neste trabalho, o SUS previsto na CR/1988 nasceu do


Movimento da Reforma Sanitária que idealizou um projeto sustentado em
propostas visando importantes e significativas mudanças no tocante à vida das
pessoas e, por que não, relativamente ao planeta, para que o direito à saúde
pertencesse a todos. Como visto, trata-se de um projeto em construção, que
carece da sedimentação de uma sociedade solidária e democrática, que deseja
ter o direito à saúde como universal. A saúde como um direito fundamental trata-
se de um direito de cidadania e o SUS, fortalecido, torna-se um importante
instrumento para que uma das maiores políticas públicas brasileiras de inclusão
social265 possa efetivamente acontecer.

André Médici, ao tratar dos avanços do SUS, argumenta que esse


sistema mudou o conceito de direito à saúde e o seu acesso, pelo menos na letra
da lei, é universal e gratuito para todos os brasileiros. Afirma que as pessoas que
se encontravam na economia informal e os indigentes, que não tinham acesso
aos serviços de saúde da previdência social, puderam se beneficiar dos serviços
de maior complexidade. Proporcionou uma rápida melhoria nos indicadores
básicos de saúde da população brasileira, como aqueles associados aos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.266 No entanto, o SUS para a sua

265
MÉDICI, André. Disponível em: <http://cebes.org.br/2014/07/26-anos-de-sus-avancos-e-
desafios-andre-medici/>. Acesso em: 25 maio 2016.
266
Em setembro de 2000, refletindo e baseando-se na década das grandes conferências e
encontros das Nações Unidas, os líderes mundiais reuniram-se na sede das Nações Unidas,
em Nova York, para adotar a Declaração do Milênio da ONU. Com a Declaração, as Nações se
comprometeram a uma nova parceria global para reduzir a pobreza extrema, em uma série de
oito objetivos – com um prazo para o seu alcance em 2015 – que se tornaram conhecidos
como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). São eles: 1) redução da pobreza; 2)
atingir o ensino básico universal; 3) igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4)
120

implementação,267-268 tem enfrentado nos últimos anos graves problemas, que


serão apontados no desenvolvimento deste capítulo, cuja problemática central,
em razão do tema, são as complexidades de uma relação público-privada no SUS
e nela se inserem, por exemplo, os subsídios públicos (diretos e indiretos) ao
mercado de planos e seguros; o não ressarcimento ao Sistema Único de Saúde,
conforme previsto na Lei n.º 9.656/1998, e o repasse de recursos públicos para o
financiamento de planos de saúde para servidores públicos pelo governo federal.

Com base nisso, vê-se, pois, que há uma contradição entre a legislação
que prioriza a prática e ação do Estado na saúde e a realidade política e
econômica que faz com que o próprio Estado reduza a sua ação social,
inviabilizando, assim, esse Sistema que deve ser universal.269 Tudo isso porque
os princípios da universalidade, integralidade, equidade, que deveriam permear
de forma prática todas as ações e serviços propostos pelo SUS, não são
observados. Outra autora, Telma Maria Gonçalves Menicucci, analisa que o
problema enfrentado pelo SUS se refere ao subfinanciamento da saúde:

A maioria dos estudos sobre a implementação do SUS dá ênfase


à questão do financiamento como ponto de estrangulamento na
medida em que o subfinanciamento do sistema de saúde não
estaria garantindo a implantação dos princípios constitucionais,
que deveriam garantir tanto a universalização do acesso quanto à

reduzir a mortalidade na infância; 5) melhorar a saúde materna; 6) combater o HIV/AIDS, a


malária e outras doenças; 7) garantir a sustentabilidade ambiental; 8) estabelecer uma parceria
mundial para o desenvolvimento. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/odm.aspx>. Acesso
em: 24 maio 2016.
267
Disponível em: <http://cebes.org.br/2014/07/26-anos-de-sus-avancos-e-desafios-andre-
medici/>. Acesso em: 24 maio 2016.
268
Telma Maria Gonçalves Menicucci chama atenção sobre o aspecto processual do ciclo das
políticas e sobre os efeitos retroalimentadores da implementação sobre a própria formulação,
de tal forma que o processo de formação de uma política se dá a partir da interação entre
formulação, implementação e avaliação (Implementação de reforma sanitária: a formação de
uma política. Revista e Sociedade, v. 15, n. 2, p. 74, ago. 2006).
269
RONZANI, Telmo Mota; VAN STRALEN, Cornelis Johannes. Dificuldades de implantação do
Programa de Saúde da Família como estratégia de reforma do Sistema de Saúde brasileiro
Disponível em: <http://www.ufjf.br/nates/files/2009/12/Gerencia2.pdf>. Acesso em: 27 maio
2016.
121

ampliação da rede prestadora, esta última condição para a


primeira.270

Entende-se que não se pode deixar de tratar dos problemas apontados


sem deixar de mencionar o financiamento, como alertado por Telma Maria
Gonçalves Menicucci, pois, para que os princípios constitucionais que são tão
nítidos possam ser implantados, faz-se necessário um olhar no suporte financeiro,
ou seja, o financiamento da saúde, para que o SUS se posicione como um
sistema público.

Dessa forma, Luciana Mendes Santos Servo, Sérgio Francisco Piola,


Andrea Barreto de Paiva e José Aparecido Ribeiro analisam que:

A CF/88, ao criar a Seguridade Social, estabeleceu que ela


deveria ser financiada com recursos provenientes dos orçamentos
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios e de
contribuições sociais. Esses recursos, no âmbito do Governo
Federal, seriam divididos entre a Previdência, a Assistência Social
e a Saúde, e, no caso desta última, previu-se, conforme consta do
artigo 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT), uma vinculação de 30% dos recursos do Orçamento da
Seguridade Social (OSS), excluído o seguro-desemprego, até que
fosse aprovada a primeira Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Essa Lei deveria definir a cada ano qual o percentual a ser
destinado à saúde.271

Outra visão tem Solon Magalhães Vianna, que compreendeu que, ao


integrar financiamento da área da saúde à previdência e à assistência, o SUS
entrou em uma competição que lhe foi totalmente desfavorável. Assim, ele
explicou:

O custeio das prestações a cargo do INSS (pensões e


aposentadorias, principalmente) demanda um volume crescente
de recursos que, a médio e longo prazo, tende a absorver a

270
MENICUCCI, Telma Maria Gonçalves. Implementação de reforma sanitária: a formação de
uma política. Revista e Sociedade, v. 15, n. 2, p. 74, ago. 2006.
271
PAIVA, Andrea B.; PIOLA, Sérgio F.; RIBEIRO, José A.; SERVO, Luciana Mendes S.
Financiamento e gasto público de saúde: histórico e tendências. In: MELAMED, C.; PIOLA,
Sérgio F. (Org.). Políticas públicas e financiamento federal do Sistema Único de Saúde.
Brasília: IPEA, 2011. p. 86.
122

totalidade das contribuições sociais. Ao mesmo tempo, o governo


tem mantido em valores insatisfatórios as transferências do
Tesouro para as OSS previstas na Constituição (CF, art. 195,
caput, e art. 198, parágrafo único), como passou, ainda, a incluir
entre as responsabilidades da seguridade social o financiamento
de programas que, até 1982, eram atendidos pelo orçamento
fiscal.272

O percentual de 30%, segundo Solon Magalhães Vianna, não foi


cumprido.273 Até empréstimos para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) a
saúde teve que buscar a fim de superar a escassez de recursos. Diante dessa
crise, em substituição ao antigo Imposto Provisório sobre Movimentação
Financeira (IPMF),274 que não tinha qualquer vinculação com a saúde, pensou-se
numa nova forma de Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
(CPMF) que surge com o acréscimo do artigo 74 ao Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), pela Emenda Constitucional n.º 12, de 15 de
agosto de 1996, que teve como fundamento para a sua criação a necessidade de
financiamento da Seguridade Social, mais especificamente da área da saúde.275

A CPMF é criada pela Lei n.º 9.311, de 24 de outubro de 1996, e, ao


entrar em vigor, a cobrança sobre movimentações financeiras correspondia a um
percentual de 0,20%, e em junho de 1999 é prorrogada até 2002, com alíquota de
0,38% até 2007. De acordo com dados do IPEA,276 a CPMF passou a ser uma
das principais fontes de financiamento do Ministério da Saúde (MS), respondendo
por 1/3 do total dos seus recursos. A partir de 1999, o recurso que antes era

272
VIANNA, Solon Magalhães. A seguridade social, o Sistema Único de Saúde e a partilha dos
recursos. Revista Saúde e Sociedade, v. 1, p. 46-47, 1992. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/sausoc/article/view/6906>. Acesso em: 8 ago. 2016.
273
Idem, p. 47.
274
O Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e
Direitos de Natureza Financeiro (IPMF) foi instituído pela Lei Complementar n.º 77, de 13 de
julho de 1993, com previsão para vigorar até 31 de dezembro 1994. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp77.htm>. Acesso em: 8 ago. 2016.
275
SERVO, Luciana Mendes Santos et al. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e
tendências. In: MELAMED, C.; PIOLA, Sérgio F. (Org.). Políticas públicas e financiamento
federal do Sistema Único de Saúde. Brasília: IPEA, 2011. p. 87.
276
Fonte: Siafi/Sidor (Gasto Social Federal – Ipea: 1995-2007); Siga Brasil (2008).
123

somente para a área da saúde, com os aumentos da CPMF,277 passou a ser


destinado à previdência e, em 2001, ao Fundo de Combate à Pobreza. Como se
pode observar na Tabela 1,278 as participações provenientes das diferentes fontes
no financiamento das despesas do MS não apresentaram certa estabilidade;
percebe-se que houve variações acentuadas nessas participações ano a ano.
Embora a CR/1988 tenha esclarecido que o SUS seria financiado também com
recursos da União, observa-se em relação aos recursos ordinários que a
participação foi insignificante no período de 1995-1997 (especialmente 1996). No
entanto, houve altos e baixos nos anos subsequentes (1998-2008), e verifica-se
que o MS compensou em 2008 (20,1%), período de início da não vigência da
CPMF. Ressalta-se que, se somados os recursos ordinários mais a CPMF, é
difícil de alcançar os níveis de 2006 (39,5%) e 2007 (36,0%). Já nos anos de 1995
(48,8%) e 1996 (42,2%) a Cofins teve papel importante no financiamento do MS.
A CPMF nos anos de 1997-2007 foi uma das fontes de financiamento do MS com
maior destaque na composição para a saúde pública, especialmente a
responsabilidade pelo custeio de 37,0% das despesas no ano de 1998, e de
38,4% em 2002. Aponta-se, também, sobre os dados da referida Tabela, que nos
anos de 2006 e 2007 a CPMF (respectivamente 32,4% e 30,8%) e a CSLL
(respectivamente 40,3% e 38,7%) foram as principais fontes de custeio do MS,
chegando a representar mais de 60% do gasto do MS. Além disso, constata-se
que não houve equilíbrio nas demais fontes de financiamento do SUS, a partir da
criação da CPMF, fato constatado nas palavras de Adib Jatene:

277
Em outubro de 2014, poucos dias antes de sua morte, o Médico Adib Jatene (Ex-Ministro da
Saúde e autor da criação da CPMF) concedeu uma entrevista à Revista da CAASP/OABSP.
Assim se pronunciou sobre a referida contribuição: “[...] Aí eu pensei: o Plano Real foi feito em
julho de 1994, nós estávamos em fevereiro de 1995. O IPMF (Imposto Provisório sobre
Movimentação Financeira) havia sido extinto em dezembro, e não aconteceu nada, ele não
prejudicou em nada a implantação do Plano Real. Eu disse: vou pegar o IPMF, transformá-lo
em contribuição para poder vinculá-lo e não ter anualidade, e isso vai me ajudar um pouco.
Mas era necessário que não mexessem no meu orçamento, porque se entrasse de um lado e
saísse do outro não resolveria. Infelizmente, foi o que aconteceu. Foi uma dificuldade muito
grande para conseguir a CPMF. Depois que eu consegui, retiraram do meu orçamento o valor
correspondente à contribuição, o que inviabilizou o Ministério. [...]” (ARANTES, Paulo Henrique.
Entrevista com Adib Domingues Jatene. Revista da CAASP, São Paulo, ano 3, n. 13, p. 11, out.
2014).
278
SERVO, Luciana Mendes Santos et al. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e
tendências cit., p. 87.
124

Eu disse: vou pegar o IPMF, transformá-lo em contribuição para


poder vinculá-lo e não ter anualidade, e isso vai me ajudar um
pouco. Mas era necessário que não mexessem no meu
orçamento, porque se entrasse de um lado e saísse do outro não
resolveria. Infelizmente, foi o que aconteceu. Foi uma dificuldade
muito grande para conseguir a CPMF. Depois que eu consegui,
retiraram do meu orçamento o valor correspondente à
contribuição, o que inviabilizou o Ministério.279

Por que a CPMF não foi capaz de mudar essa situação? Carlos Octávio
Ocké-Reis explica que essa contribuição acabou por levar “à retração de fontes”
que tinham por tradição financiar o MS, ou seja, ela não foi capaz de possibilitar
que os recursos necessários para a saúde fossem elevados, conforme se
esperavam, uma vez que houve redução de outras fontes.280 Com base nos
dados levantados, percebe-se que de fato ocorreu muita instabilidade nas fontes
apresentadas e esse comportamento desestabilizou o orçamento da saúde,
gerando insegurança no desenvolvimento de suas ações.

279
Veja-se, a propósito, a entrevista completa com Adib Domingues Jatene realizada por
ARANTES, Paulo Henrique. Revista da CAASP, São Paulo, ano 3, n. 13, p. 11, out. 2014.
280
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS: o desafio de ser único cit., p. 43.
125

Tabela 1 – Distribuição do gasto do Ministério da Saúde por fonte de recursos. Período: 1995-2008
(%) vigência da CPMF (1997 A 2007)

FONTE 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Recursos Ordinários 3,2 0,2 1,0 10,8 15,1 5,3 12,5 10,3 13,1 7,4 4,8 7,1 5,2 20,1

Operações de crédito interna e externa 1,1 0,9 0,5 1,1 1,5 2,7 2,2 1,9 1,1 0,7 0,7 0,4 0,1 0,0

Recursos Diretamente Arrecadados 2,5 2,5 2,4 2,6 3,5 3,3 5,1 2,7 2,3 2,2 2,4 3,1 3,7 4,0

Título Responsabilidade Tesouro Nacional 2,7 3,4 2,8 0,2 0,3 0,2 0,3 0,4 0,5 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0

Contribuições Sociais 70,5 66,2 72,8 71,8 61,5 80,9 74,9 81,3 82,5 88,3 91,3 88,8 87,1 71,8

Contribuição Social Lucro – PJ (CSLL) 20,2 20,7 19,3 8,0 13,2 12,6 7,0 22,5 27,4 32,3 39,7 40,3 38,7 34,7

Contribuição Financiamento Segur. Social 48,8 42,2 25,6 25,9 26,3 37,1 38,5 18,6 21,1 25,2 19,2 13,5 15,4 34,9

Contrib. Prov. Movimentação Financeira (CPMF) 0,0 0,0 27,9 37,0 22,0 31,2 28,2 38,4 32,5 29,4 29,3 32,4 30,8 1,0

Contrib. Plano Segur. Social Servidor 1,5 3,3 0,0 0,9 0,0 0,0 1,2 1,9 0,8 0,9 1,2 1,0 0,9 0,2

Contrib. Patronal Plano Segur. Social Servidor 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,8 0,5 1,9 1,6 1,3 1,0

Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 4,5 2,4 0,0 0,9 0,3 0,0 3,0 3,0

Fundo Social de Emergência 11,7 17,9 19,6 13,3 14,5 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0

Demais Fontes 8,3 8,9 0,8 0,3 3,6 7,6 0,6 0,9 0,6 0,5 0,6 0,6 0,8 1,1

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100

Fonte: Siafi/Sidor (Gasto social federal – Ipea: 1995 a 2007); Siga Brasil (2008).
126

Luciana Mendes Santos Servo, Sérgio Francisco Piola, Andrea Barreto


de Paiva e José Aparecido Ribeiro analisam que os gastos do MS sob o ponto de
vista das fontes de financiamento demonstram que a CPMF, em 1997, “contribuiu
muito mais para estabilizar o patamar de recursos orçamentários desse órgão do
que efetivamente elevá-lo de forma mais significativa, fato que pode ser
observado no período de 1997 a 2003”.281

Em 2004, com a Emenda Constitucional n.º 29 (EC n.º 29) foi possível
dizer que os recursos da CPMF estavam de fato representando um novo aporte
de recursos para a saúde no nível federal. No entanto, não se pode deixar de
mencionar que a CPMF pelo seu caráter provisório sempre causou preocupação
aos gestores da saúde, sendo apresentadas no Legislativo diversas propostas
mais abrangentes e muitas delas com ponto em comum, por exemplo, “a busca
pela vinculação para a saúde dos recursos orçamentários dos entes
federados”.282

Como se vê, todas as tentativas que visavam dar suficiência e


estabilidade ao financiamento do SUS nunca alcançaram resultado satisfatório,
pois os gastos com a saúde sempre apareceram de forma indireta e muito
modesta. Portanto, foi incapaz de produzir efeitos que pudessem transformar as
ações e os serviços de saúde universalizantes, integrais e igualitários para a
população que, no entender deste trabalho, são responsáveis pela materialização
do direito à saúde.

No início dos anos 2000, o crescimento da receita do SUS foi atrelado,


pela EC n.º 29, à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Essa emenda
assegurava a participação da União, Estados e Municípios para o funcionamento
das ações e serviços públicos de saúde, a partir de recursos mínimos:

No caso da União, os recursos a serem aplicados em 2000 seriam


o montante empenhado no exercício de 1999 acrescido de, no

281
SERVO, Luciana Mendes Santos et al. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e
tendências cit., p. 89.
282
Idem, p. 91.
127

mínimo, 5%. A partir daí, o valor mínimo seria apurado no ano


anterior e corrigido pela variação nominal do PIB. Os estados e o
Distrito Federal deveriam aplicar, no mínimo, 12% da receita
vinculada;283 ao passo que os municípios deveriam aplicar 15%, e,
em 2000, o percentual mínimo a ser aplicado seria de 7% para
esses entes da federação.284

Essa Emenda firmou regras para a participação das três esferas de


governo no financiamento que, mesmo com o fim da CPMF, que ocorreu no ano
de 2007, não houve uma crise como a que aconteceu em 1993, período em que o
Ministério da Saúde foi buscar empréstimo no Fundo de Amparo ao Trabalhador
(FAT). Mesmo que de forma um tanto tímida, a vinculação desses recursos da EC
n.º 29 pode garantir “um mínimo de estabilidade no financiamento da saúde”, o
que foi possível também, a partir de 2004, “trazer aumento de recursos para o
SUS”. Entretanto, a aprovação da EC n.º 29 teve impactos diferenciados em cada
ente da Federação. Quando a referida emenda começou a viger em 2000, a
União ainda respondia por quase 60% do recurso público total aplicado em saúde.
No entanto, a sua participação foi caindo até chegar em 45% em 2010. No
tocante aos Estados e Municípios, sucedeu o contrário. Ou seja, a participação
dos Estados, que era de 18,6%, passou para 26,7%, e a participação dos
municípios saiu de 21,7% para 28,6%, conforme dados do Sistema de
Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), demonstrados na
Tabela 2.285 O que se verificou na prática foi um aumento real da participação de

283
A receita vinculada refere-se à base de cálculo para aplicação mínima dos recursos em saúde.
A base de cálculo dos Estados compreende as receitas de impostos estaduais (ICMS, IPVS,
ITCMD), as receitas de transferência da União (FPE, IPI, Lei Kandir), o Imposto de Renda
Retido na Fonte (IRRF), outras receitas correntes (receita da dívida tributária de impostos,
multas, juros de mora e correção monetária) e exclui as transferências constitucionais e legais
a municípios (ICMS, IPVA e IPI-exportação). A base de cálculo dos municípios abrange as
receitas de impostos municipais (ISS, IPTU, ITBI), as receitas de transferências da União
(FPM, ITR, Lei Kandir), o Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), as receitas de
transferências do Estado (ICMS, IPVA, IPI-exportação) e outras receitas correntes (receita da
dívida tributária de impostos, multas, juros de mora e correção monetária).
284
RIBEIRO, J.A.C.; PIOLA, S.F.; SERVO, L.M. apud SERVO, Luciana Mendes Santos et al.
Financiamento e gasto público de saúde: histórico e tendências cit., p. 91.
285
SERVO, Luciana Mendes Santos et al. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e
tendências cit., p. 92.
128

Estados e Municípios para a saúde, de 195% ou R$50,7 bilhões, passando de


R$26 bilhões em 2000 para R$76,7 bilhões em 2010.

Tabela 2 – Gasto público das três esferas com ações e serviços públicos em saúde, 2000-
2010 (em bilhões R$ de 2010, deflacionados pela média anual do IPCA)

ESFERA

No total No total No total


Ano Federal¹ Estadual² Municipal³ Total
(%) (%) (%)

2000 38,74 59,8 12,02 18,6 14,03 21,7 64,79

2001 40,04 56,1 14,73 20,7 16,55 23,2 71,33

2002 40,64 52,8 16,56 21,5 19,76 25,7 76,96

2003 38,93 51,1 17,51 23,0 19,71 25,9 76,15

2004 43,94 50,2 21,53 24,6 22,05 25,2 87,52

2005 46,70 49,7 21,67 23,1 25,50 27,2 93,87

2006 49,17 48,4 23,89 23,5 28,48 28,0 101,54

2007 51,58 47,5 26,27 24,2 30,77 28,3 108,63

2008 53,62 44,7 30,77 25,7 35,55 29,6 119,94

2009 61,21 45,9 33,88 25,4 38,35 28,7 133,44

2010 61,97 44,7 37,02 26,7 39,72 28,6 138,70

Fontes: SPO/MS – Esfera Federal – RIPSA e SIOPS – Esfera Estadual e Municipal.


Notas:
¹O gasto Federal ASPS está de acordo com a definição das LDOs, que considera os gastos totais do MS,
excetuando-se as despesas com Inativos e Pensionistas, Juros e Amortizações de Dívida, bem como as despesas
financiadas pelo Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Vale lembrar que a SPO, para o cálculo do Gasto
Federal ASPS, também considera os valores executados na UO 74202 – Recursos sob a supervisão da ANS (2004
a 2008).
²O Gasto Estadual ASPS foi extraído de Notas Técnicas produzidas pelo SIOPS com a análise dos balanços
estaduais. Foram utilizadas as informações sobre despesa própria da análise dos balanços estaduais efetuada
pela equipe Siops, em conformidade com as diretrizes da Resolução CNS n.º 322/03 e EC n.º 29/2000. Para o ano
de 2009, foram considerados os dados transmitidos ao Siops pelas 27 UFs que haviam transmitido ao SIOPS. Para
os quatro Estados faltantes, utilizaram-se os valores de 2009.
³O Gasto Municipal ASPS foi extraído da base do Siops, em 13 de junho de 2011. Os dados referem-se apenas
aos municípios que transmitiram em cada ano, que corresponde a uma média de 99% do total de municípios entre
2001 e 2009. Em 2000, 96% transmitiram os dados e em 2010 o percentual, até junho de 2011, era de 92%.

Tudo isso teve desdobramento no gasto per capita das esferas federal,
estadual e municipal com o SUS, que passou de R$378,7, no ano 2000, para
R$717,70 em 2010, com um crescimento real de 89,7%. No tocante ao PIB, o
129

gasto do SUS passou de 2,89%, do ano 2000, para 3,77%, em 2010, como se vê
no detalhamento, a seguir descrito na Tabela 3,286 do gasto público das três
esferas de governo com as ASPS.

Tabela 3 – Gasto público das três esferas de governo com ações e serviços públicos de
saúde, como proporção do PIB e em per capita – 2000-2010

ANO Gasto ASPS/PIB (%) Gasto ASPS ¹/pop

2000 2,89 378,27


2001 3,07 410,40
2002 3,17 436,54
2003 3,13 426,04
2004 3,36 483,25
2005 3,48 511,88
2006 3,55 547,20
2007 3,51 578,90
2008 3,59 632,56
2009 3,99 696,87
2010 3,77 717,70

Fontes: SPO, Siops e IBGE


Nota: ¹O gasto ASPS per capita foi calculado em termos reais de 2010, segundo IPCA médio anual.

Luciana Mendes Santos Servo e outros autores 287 entendem que, se a


União e os Estados tivessem cumprido a EC n.º 29 conforme os critérios
dispostos na Resolução n.º 322 do CNS, de 8 de maio de 2003, que é
responsável por normatizar288 o que se entende por Ações e Serviços Públicos de

286
SERVO, Luciana Mendes Santos et al. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e
tendências cit., p. 93.
287
Idem, p. 94.
288
Quinta Diretriz da Resolução n.º 322/2003: Para efeito da aplicação da Emenda Constitucional
n.º 29, consideram-se despesas com ações e serviços públicos de saúde aquelas com pessoal
ativo e outras despesas de custeio e de capital, financiadas pelas três esferas de governo,
conforme o disposto nos artigos 196 e 198, § 2.º, da Constituição Federal e na Lei n.º 8080/90,
relacionadas a programas finalísticos e de apoio, inclusive administrativos, que atendam,
simultaneamente, aos seguintes critérios:
I – sejam destinadas às ações e serviços de acesso universal, igualitário e gratuito;
II – estejam em conformidade com objetivos e metas explicitados nos Planos de Saúde de
130

Saúde (ASPS), o aporte de recursos poderia ter sido ainda maior. Essa Emenda
teve vigência provisória até 2004, quando se aguardava a edição de lei
complementar que pudesse regular a matéria de forma definitiva, o que só
ocorreu depois de uma década com a Lei Complementar n.º 141, aprovada em 13
de janeiro de 2012. No que tange aos recursos mínimos para a saúde, no artigo
5.º define-se que:

A União aplicará, anualmente, em ações e serviços públicos de


saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no
exercício financeiro anterior, apurado nos termos desta Lei
Complementar, acrescido de, no mínimo, o percentual
correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB)
ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual.

No caso do repasse da União, a distribuição desses recursos deve servir


para reduzir as desigualdades regionais que são muito injustas. Por sua vez, os
Municípios devem aplicar 15% da sua receita e ao Estado foi mantida a obrigação
de investir com 12%. Sobre esse ponto, verifica-se que são vários os meios que a
União e o Estado têm adotado para aplicar bem menos do que se previu naquele
tempo na Emenda.289

Na prática, não ocorreu qualquer mudança de critério de vinculação dos


recursos federais, bem como no tocante aos critérios de transferência desses
recursos para Estados e municípios com a edição da Lei Complementar n.º
141/2012 e do Decreto n.º 7.827/2012. De acordo com a pesquisa realizada para
elaboração deste trabalho, o avanço obtido diz respeito apenas à definição de
ações e serviços públicos de saúde (artigo 2.º da LC n.º 141/2012) que se espera
possa impedir que os recursos da saúde sejam destinados efetivamente à
atenção universal em saúde. Não se pode deixar de registrar que as questões
atinentes à gestão do SUS, os critérios de transferências de recursos para

cada ente federativo [...] Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/


ultimas_noticias/2005/resolucao322.htm>. Acesso em: 22 ago. 2016.
289
SERVO, Luciana Mendes Santos et al. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e
tendências cit., p. 94-95.
131

Estados e para os municípios ainda estão indefinidas,290 sendo necessário discutir


quais as novas fontes de recursos que podem de fato aumentar o financiamento
público para a saúde que possa resolver os grandes desafios do futuro
(crescimento populacional, envelhecimento da população, entre outros), bem
como que essas fontes de recursos para o financiamento da saúde sejam
estáveis, e não como em efeito “gangorra” como se tem visto (basta retomar a
análise da Tabela 1). Por isso, faz-se urgente a discussão da relação entre o
público e o privado no tratamento que tem sido dado ao SUS e como esse tipo de
comportamento tem influenciado negativamente e colocado em risco a maior
política pública que nasceu legitimamente da base, mas tem sofrido todo tipo de
ataque por parte dos governantes que, temporariamente, no poder aniquilam o
único remédio possível e alcançável para todos. José Gomes Temporão entende
que “uma Política Nacional de Saúde deve ser vista com olhar integrador e global,
deve dar conta desses dois subsetores: o público e o privado”.291 Por isso, a
proposta defendida por amplos setores da sociedade292 e por instituições de
Estado, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),293 de uma fonte
de financiamento para a saúde mais estável e que consiga por conseguinte
abranger o modelo descrito na Constituição para a saúde.

290
Diante da não consolidação da Lei Complementar n.º 141, a sociedade organizou-se no
Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública (Saúde + 10), que reivindica que a União
destine 10% das receitas correntes brutas para a saúde pública brasileira. Foram coletadas
mais de 1 milhão e 900 mil assinaturas para um projeto de lei de iniciativa popular que
encontra-se em fase de tramitação na Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei de Iniciativa
Popular visa assegurar o repasse efetivo e integral de 10% das receitas correntes brutas da
União para a saúde pública brasileira, alterando, dessa forma, a Lei Complementar n.º 141, de
13 de janeiro de 2012. A Coordenação desse movimento é composta pela Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), Associação Médica Brasileira (AMB), Conselho Nacional de
Secretários Estaduais de Saúde (Conass), Conselho nacional de Secretarias Municipais de
Saúde (Conasems), Fórum Sindical dos Trabalhadores (FST), Força Sindical, Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), Federação Nacional dos Farmacêuticos
(Fenafar), Pastoral da Saúde, Conselho Nacional de Saúde (CNS) e Conselho Municipal de
Saúde de Belo Horizonte (CMSBH).
291
Entrevista com José Gomes Temporão. É irreal imaginar que a medicina privada possa
substituir o SUS. Publicada em 23.05.2016 04h11. Disponível em: <http://www.
cartacapital.com.br/politica/temporao-e-irreal-imaginar-que-a-medicina-privada-possa-substituir-
o-sus>. Acesso em: 11 nov. 2016.
292
Como a Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres); Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco); Associação do Ministério Público de Defesa da Saúde (Ampasa); Centro
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes); entre outros. Disponível em: <http://
cebes.org.br/2015/01/pelo-sus-com-financiamento-mais-justo/>. Acesso em: 11 nov. 2016.
293
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Boletim de Políticas Sociais, Brasília: IPEA,
n. 15, mar. 2008.
132

3.2 Subsídios públicos (diretos e indiretos) para os planos e seguros


privados de saúde

No Brasil, como declinado nos capítulos anteriores, o movimento de


homens e mulheres com anseio de liberdade, justiça, igualdade que ensejavam
por uma sociedade mais humana culminou na Constituição da República de 1988.
E na letra da lei foi uma concepção vitoriosa. No que tange à saúde, estabeleceu
um sistema universal e integrado, com a proposição para que todos tivessem
acesso às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, pois
expressa a saúde como um direito de todos os brasileiros, cabendo ao Estado
cuidar da assistência pública, mediante políticas sociais e econômicas. Contudo,
previu-se no artigo 199, § 1.º, da CR/1988 que as instituições privadas poderão
participar de forma complementar294 do “sistema único de saúde, segundo
diretrizes deste [...]”, pois compreendeu-se que o sistema de saúde é livre à
exploração pela iniciativa privada tanto de forma complementar para a oferta
pública como de forma suplementar.

Conforme se considera neste trabalho, trata-se de um grande desafio do


Estado brasileiro a promoção de um sistema de saúde verdadeiramente universal
sob o ponto de vista da implantação de uma assistência à saúde e que seja
fundamentalmente universal. Mas por que isso ainda não é possível? De que
maneira o setor privado tem interferido para que o sistema de saúde não
aconteça como pensado a partir da CR/1988? Existem interfaces do sistema
privado com o setor público? Como, então, as relações público-privadas
promovem a desigualdade entre as pessoas?

Sabe-se que não é possível responder neste trabalho todas essas


questões, que se entendem amplas e complexas. Todavia, busca-se por meio
desses questionamentos desenvolver uma visão do sistema de saúde e saber
como todas essas complexidades de uma relação público-privada têm sido
capazes de desestabilizar um modelo de sistema nacional de saúde como o

294
O vocábulo complementar significa: dar complemento a ou receber complemento; completar (-
se), concluir (-se). Dicionário Eletrônico Houaiss, 2009.3.
133

nosso, com o aval do próprio Estado brasileiro. Inicialmente, constata-se, que,


diante da coexistência de dois sistemas paralelos (público e privado), em que uma
parte da população que pode dispor de seus recursos para pagar ao mesmo
tempo pode utilizar dos serviços do SUS. No entanto, convém questionar se essa
relação é salutar e se ela será capaz de interferir na sustentabilidade do setor da
saúde. Como essa contradição é capaz de interferir no financiamento do setor da
saúde?

Carlos Octávio Ocké-Reis afirma que essa contradição295 nasceu do


próprio Texto Constitucional ao definir que a saúde é “direito de todos” (artigo
196) e, de outro lado, é livre “à iniciativa privada” (artigo 199), posição
compartilhada neste trabalho. Explica-se um pouco mais a posição adotada. A
CR/1988 definiu expressamente um modelo redistributivo ao assumir o SUS como
política de governo e ao mesmo tempo possibilitou o nível de gasto público em
saúde, dando margem para que o mercado de planos de saúde fortalecesse,
gerando o fenômeno de “universalização excludente”,296 que contraria a proposta
do artigo 196 (saúde como direito de todos) ao designar uma expansão integrada
ao setor privado, mas com financiamento estatal. Ou seja, a universalização é
construída como excludente, ou seja, quando “expande por baixo” pela inclusão
de milhões de pobres e indigentes, e a “exclusão por cima”, pelo atendimento que
se torna diferenciado nos planos de saúde pelas classes médias. Contudo, o que
se constata com essa discussão é a ocorrência de uma migração do seguro social
para o mercado privado de planos de saúde.297 No entanto, o que se presencia
nos dias atuais é um crescente número de pessoas que pela crise vivida foram
obrigadas a devolver o seu plano de assistência médica e permanecer apenas no
SUS, daí a premência de que o Estado fortaleça o sistema público de saúde. A
saída dessas pessoas de planos privados de saúde será analisada mais adiante
pela Tabela 5.

295
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS: o desafio de ser único cit., p. 24.
296
Essa expressão foi utilizada por diversos autores, entre eles Paulo Faveret e Pedro Oliveira.
297
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS: o desafio de ser único cit., p. 24-25.
134

Por essa razão, entende-se que, para a compreensão dos


questionamentos suprarreferidos, se faz necessário o esclarecimento feito pelo
Ministério da Saúde sobre como funciona o sistema de assistência à saúde no
Brasil:

Os cuidados em saúde no Brasil podem ser providenciados pelo


Estado ou pela iniciativa privada. Os cuidados em saúde de
natureza pública são prestados no âmbito do Sistema Único de
Saúde, por órgãos e instituições públicas e estabelecimentos
privados de assistência à saúde, sendo que nesse caso devem
ser complementares, mediante a celebração de contrato ou
convênios, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem
fins lucrativos.
Os serviços exclusivamente privados de assistência à saúde são
disponibilizados por profissionais liberais, legalmente habilitados,
prestadores de serviços privados de saúde, ou por operadoras de
planos e seguros privados de assistência à saúde. De acordo com
a Constituição do Brasil a assistência à saúde é livre à iniciativa
privada.
As operadoras de planos privados de assistência à saúde
oferecem tais planos mediante contraprestação pecuniária, com
atendimento em serviços próprios ou de terceiros. E as
operadoras de seguros privados de assistência à saúde
comercializam seguros que garantem a cobertura de riscos de
assistência à saúde, mediante livre escolha pelo segurado ao
prestador do respectivo serviço e reembolso de despesas.298

Verifica-se, então, que o entendimento trazido sobre o direito à saúde


pelo Ministério da Saúde – que é o órgão do Poder Executivo Federal responsável
pela organização e elaboração de planos e políticas públicas voltadas para a
promoção, prevenção e assistência à saúde dos brasileiros – aponta que os
cuidados em saúde podem ser providenciados pelo Estado ou pela iniciativa
privada. Nesse caso (pela iniciativa privada), os cuidados devem ser
complementares, mediante a celebração de contrato ou convênios, tendo
preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. Como visto, na
CR/1988 encontram-se as formas em que a assistência à saúde é livre à iniciativa
privada, conforme se vê:

298
BRASIL. Ministério da Saúde. Consultoria Jurídica. A implementação do direito à saúde no
Brasil. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2010. p. 13-14.
135

Figura 1 – Formas possíveis da assistência à saúde

Há na Norma Constitucional permissão à participação da iniciativa


privada no sistema público de saúde “em caráter complementar à oferta pública
como de forma suplementar”,299 no mesmo território em que se fez uma opção
pela saúde como direito. Na visão deste trabalho, talvez consequentemente tenha
sido gerado um problema seriíssimo que traz como resultado uma relação muito
tensa, uma vez que são setores da economia que têm objetivos opostos. Lígia
Bahia entende que a inclusão desses preceitos na Constituição “expressa uma
tentativa, ainda que precária, de conciliação dos embates sobre caráter público-
privada dos estabelecimentos de saúde”.300 Contudo, pode-se verificar que a
complementaridade (conforme apontada na Figura 1), foi possibilitada pela
CR/1988, mas não dá poderes a esta para substituir o SUS, pois todos os
brasileiros podem utilizá-lo, seja para atendimento de emergências, transplantes,
doenças crônicas, medicamentos de alto custo, vacinas, vigilância sanitária, entre
outros serviços prestados.

A forma de assistência complementar que está destinada à iniciativa


privada no sistema público de saúde ocorre quando o prestador de serviços de
saúde atua por meio das diretrizes do SUS, mediante contrato de direito público
ou convênio, dando-se preferência às entidades filantrópicas ou sem fins

299
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição. In: ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni (Org.).
Direito sanitário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 224.
300
BAHIA, Lígia. O sistema de saúde brasileiro entre normas e fatos: universalização mitigada e
estratificação subsidiada. 2009, p. 755. Disponível em: <http://www.scielosp.org/pdf/
csc/v14n3/11.pdf>. Acesso em: 29 out. 2016.
136

lucrativos. Assim, a assistência complementar é parte da obrigação do SUS.


Sobre a iniciativa privada e o SUS, Marlon Alberto Weichert entende que:

Essa participação deve se dar de forma complementar à rede


pública, ou seja, somente pode haver contratação de serviços
privados quando forem insuficientes as estruturas do Poder
Público. A simples menção a uma participação complementar
permite concluir que a Constituição concedeu primazia à
execução do serviço público de saúde por uma rede própria dos
entes federativos. Atendimento público através de serviços
privados deve consistir exceção, tolerável apenas se e enquanto
não disponibilizado diretamente pelo Poder Público.301

O mesmo autor denuncia que, de forma oposta ao que preceitua a


Constituição, algumas administrações públicas têm preferido investir na
terceirização dos serviços que são típicos, deixando de fazer o que tem por
obrigação fazer. O que constitui dupla inconstitucionalidade: (i) deixa de investir
na sua rede; e (ii) se demite do que já vinha executando.302 Isso tudo, como se vê,
pela inexistência de normatização específica para o setor de saúde suplementar,
bem como pelas próprias dificuldades enfrentadas com o custeio do SUS, que
favorece certamente o crescimento de forma desordenada do setor privado. De
acordo com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), os fatores
que levaram a esse crescimento desordenado são: (i) a onda de reformas
econômicas, políticas e sociais no plano internacional e que geraram reflexos no
Brasil; (ii) a redução do papel do Estado nas políticas sociais e consequente
deterioração dos serviços públicos de saúde; (iii) o aumento da concorrência no
setor de assistência suplementar à saúde.303

Por outro lado, a assistência suplementar atua sem qualquer vínculo (ela
é extraordinária) direto com o SUS, por meio de consultórios, laboratórios, clínicas
e hospitais particulares, ou de planos e seguros privados de saúde. Portanto, a
atuação da iniciativa privada no âmbito da saúde se dá de forma suplementar à

301
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição brasileira cit., p. 199.
302
Idem, p. 200.
303
Para entender a gestão do SUS. Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS).
Brasília, 2007. p. 27. (Coleção Progestores.)
137

rede pública quando seu acesso é garantido apenas àqueles que tiverem
condições financeiras de contratar seus serviços, sendo as contraprestações
sanitárias delimitadas por meio de um contrato privado, bilateral e de adesão,
estabelecido entre o agente econômico e o particular interessado na contratação
de seus serviços.

Observam-se dois sistemas opostos no que tange à assistência à saúde.


De um lado, tem-se a saúde como um direito fundamental que é regido por
princípios e diretrizes de direito público por meio de um SUS consubstanciado
pela gratuidade de acesso, pelos princípios universal, igualitário e integral aos
serviços de saúde. Por outro lado, da saúde suplementar, tem-se um setor que é
determinado pelo produto que nele se opera: os planos privados de assistência à
saúde, explorados pela iniciativa privada, em que os limites para a sua eficácia se
encontram num contrato estabelecido entre agentes econômicos e particulares
mediante prestação pecuniária.

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, ao tratarem sobre a


execução dos serviços de saúde, entendem que “pode ser dada por pessoas
físicas ou privadas” (por terceiros). No entanto, esses mesmos autores
consideram que, como as ações e serviços de saúde, ao lado da administração
de justiça, da educação, da assistência e previdência social, são considerados de
relevância pública, “são serviços de maior relevância que o Estado executa,
sendo de sua vocação natural tal prestação”.304 Assim como os referidos autores,
Eros Grau compreende que a saúde é uma questão de interesse público, tanto
para as entidades públicas quanto para as entidades privadas.305

Mário Scheffer, nesse diapasão, questiona:

O serviço particular de uma empresa de plano de saúde, que


opera uma atividade econômica relacionada à saúde, possuiria os

304
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários a Constituição do
Brasil (promulgada em 5 de outubro de 1988). São Paulo: Saraiva,1998, v. 8, p. 115.
305
GRAU, Eros. O conceito de “relevância pública” na Constituição de 1988. In: DALLARI, Sueli
Gandolfi. O conceito constitucional de relevância pública. Brasília: Opas, 1992. p. 13-20. (Série
Direito e saúde, n. 1.)
138

mesmos deveres do Estado? Seus contratos deveriam estar


submetidos às normas constitucionais e infraconstitucionais
diretamente ligadas à saúde?306

Sem pretensões de uma resposta final, intenta-se desde o início deste


trabalho a posição do direito dito no artigo 196 da CR/1988, “como direito de
todos e dever do Estado”, que deve proporcionar às pessoas de igual forma
acesso às ações e serviços de saúde por meio de políticas sociais e econômicas
que promovam a construção da dignidade da pessoa humana. Portanto, eis o
papel do Estado: a elaboração de políticas públicas que cumpram sua função
para a “redução do risco de doença e de outros agravos”, 307 bem como diminuir
as desigualdades e proporcionar o bem-estar social, assegurando os meios que
permitam efetivá-los. Sérgio Francisco Piola e outros também compreendem que:

Direito à saúde decorre de dois pilares que foram consagrados


pelo próprio movimento sanitarista: (i) o dever para a saúde cabe
unicamente ao Estado, sendo este o momento de garantir o
resgate de uma dívida social com a cidadania; (ii) o princípio de
acesso universal e igualitário é a base do sistema unificado
proposto, como uma via institucional a fim de superar a dicotomia
entre as chamadas ações de saúde pública e o atendimento
clínico individual.308

No Brasil, o mercado de saúde suplementar se formou há mais de


cinquenta anos, quando a assistência à saúde tinha prática liberal e as
instituições em geral possuíam caráter de benemerência e filantrópico, realizado
especialmente pelas Santas Casas de Misericórdia. No tocante ao nascimento
dos arranjos privados de assistência à saúde, ele ocorre, conforme explicam
Aluísio Gomes da Silva Júnior e Maria Thereza Carolina de Souza Gouveia, com
a:

306
SCHEFFER, Mário. A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados.
Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Rio de Janeiro, Cebes,
v. 29, n. 71, p. 231-247, set.-dez. 2005. p. 232.
307
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 718.
308
PIOLA, Sérgio Francisco; BARROS, Elizabeth Diniz; NOGUEIRA, Roberto Passos; SERVO,
Luciana Mendes; SÁ, Edvaldo Batista de; PAIVA, Andrea. Barreto. Vinte anos da Constituição
de 1988: o que significaram para a saúde da população brasileira?, p. 110. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/politicas_sociais/06_capt03_7e.pdf>.
Acesso em: 14 ago. 2016.
139

Institucionalização da Previdência Social pela Lei Eloy Chaves em


1923. É a partir da criação das Caixas de Aposentadorias e
Pensões (IAPs), financiados pela contribuição patronal e dos
empregados, que surgem os primeiros esquemas de
intermediação de serviços médico-hospitalares, operados pela
cobertura de riscos assistenciais, ancorados na solidariedade e no
mutualismo. Destaca-se que, entre os Institutos, o dos
Industriários (Iapi), um dos últimos a serem criados, foi o primeiro
a optar pela prestação dos serviços de saúde mediante a compra
com empresas médicas e casas de saúde, no que foi seguido
pelos demais.309

Um pouco mais adiante, na década de 1960, o mercado dos planos de


saúde tomou mais corpo em decorrência das mudanças que vinham ocorrendo,
pois a previdência começou a repassar às empresas a responsabilidade pela
assistência à saúde de seus empregados. Conhecida como medicina de fábrica
ou medicina na empresa, assim surgem as empresas médicas que vendiam
serviços assistenciais e credenciavam prestadores como serviços médico-
hospitalares.310

Como se vê, os próprios departamentos médicos das empresas eram


responsáveis por prestar a assistência à saúde ao trabalhador, e mais tarde esses
mesmos serviços eram terceirizados. Daí surgiram os convênios entre
empregadores e empresas médicas, as chamadas medicinas de grupo. Percebe-
se que desde aquele tempo a saúde passou a ser vista como um bem de
mercado. Nos dizeres de Aluísio Gomes da Silva Júnior e Maria Thereza Carolina
de Souza Gouveia, “um bem de consumo médico, fortemente induzido pela
possibilidade de deduzir despesas com saúde no Imposto de Renda das pessoas
físicas e jurídicas”.311 Em um terreno fértil para o mercado de planos de saúde,
despontam as seguradoras para agirem nesse setor, mas que inicialmente não
atuavam diretamente na prestação do serviço, e limitavam-se a reembolsar as

309
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição cit., p. 225.
310
Idem, p. 226.
311
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição cit., p. 226.
140

despesas. Somente no ano de 1989, por meio da Circular Susep312 n.º 5, de 9 de


março de 1989, foram autorizadas a oferecer uma rede referenciada de
profissionais de saúde, entidades hospitalares e Serviços de Apoio Diagnóstico e
Terapêutico (SADT), sendo vedada a manutenção de serviços próprios de
atendimento médico-hospitalar.313

Segundo Lígia Bahia, no final da década de 1980 e início de 1990,


houve enorme crescimento na comercialização de planos individuais e familiares,
o que se deu pelo aumento do mercado de trabalho informal e do aumento do
poder de compra de um expressivo número de pessoas. Esses planos vendidos
ofereciam acesso a serviços bastante limitados na cobertura, como também
geralmente dispunham um único estabelecimento hospitalar. Como acentua Lígia
Bahia, há uma estratificação da cobertura e do acesso, conforme a sua condição
socioeconômica.314

Tomando essa questão, vale citar o que Aluísio Gomes da Silva Júnior e
Maria Thereza Carolina de Souza Gouveia escreveram sobre o tema:

A configuração dos planos de saúde espelhou, pela via de


mercado, o mesmo arranjo de compra de serviços de saúde pelo
financiamento público, reproduzindo, no âmbito da intermediação
privada (empresas médicas), os problemas na relação entre
prestadores e Instituto Nacional de Previdência e Assistência e
Assistência Social (INPS) – Instituto Nacional de Assistência
Médica da Previdência Social (Inamps), com nítidos reflexos para
a qualidade dos serviços. As velhas estratégias dos prestadores
para aumentar o faturamento, quer pela indução da demanda,
quer pelo uso de fraudes, começaram a se fazer presentes
também no sistema privado autônomo. As empresas médicas, por

312
A Susep é a autarquia federal, vinculada ao Ministério da Fazenda, responsável pelo controle e
fiscalização dos mercados de seguros, resseguros, previdência complementar aberta,
capitalização e corretagem. A Lei 10.185/2001 transferiu para a Agência Nacional de Saúde
(ANS) a competência para supervisionar o seguro-saúde no Brasil que, até então, era da
Susep. A íntegra da Circular Susep n.º 05, de 09.03.1989, publicada no DOU de 13.03.1989,
está disponível em: <http://www.susep.gov.br/textos/Circ005-89.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2016.
313
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição cit., p. 227.
314
BAHIA, Lígia. Planos privados de saúde: luzes e sombras no debate setorial dos anos 90.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v6n2/7006.pdf>. Acesso em: 10. jun. 2016.
141

sua vez, empenham-se em criar toda forma de barreira para


demandas que gerem gastos elevados.315

Isso sem contar a confusão que há na prestação de serviço que atende


tanto pelo SUS como pelos planos privados, o que hoje é conhecido como dupla
porta nos hospitais. Esse assunto foi tema da Audiência Pública no STF,316 em 26
de maio de 2014. Esse tipo dúbio de prestação de serviço revela um sistema de
saúde que categoriza o cidadão: os que possuem e os que não possuem planos
de saúde e que contraria frontalmente o princípio da universalidade, que olha para
todos que se encontrem no território nacional porque o bem saúde é um bem
coletivo. Somente uma proteção universal é capaz de efetivá-la individualmente a
esse direito garantido pela Constituição à coletividade. No entanto, não é o que
acontece nesse serviço dúbio, que é prestado de acordo com o tipo da clientela.
Aqueles que podem pagar têm acesso mais rápido, sem filas, em boas
acomodações etc., porém aos desprovidos de recursos o atendimento é de
segunda classe, a entrada é demorada, as salas de esperas são superlotadas,
não há qualquer respeito nas marcações de consultas e nas cirurgias agendadas
e assim por diante.

Nesse compasso, desdobra-se o problema em torno do direito à saúde


na Constituição da República de 1988 e a relação público-privada, por isso não há
como não deixar de realçar o que foi dito sobre o direito à saúde como um direito
fundamental, em que o Estado tem obrigação (como resgate de uma dívida social
com o cidadão) à prestação universal, integral e com equidade.

O que não ocorreu, como exemplo, na prestação pela dupla porta, onde
o contrário é instaurado: o hospital e todo o seu patrimônio (material e humano)

315
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição cit., p. 228.
316
Audiência Pública realizada no Supremo Tribunal Federal (STF), em 26.05.2014, teve como
finalidade discutir a possibilidade de melhoria nas acomodações em internação e contratação
de profissional da preferência por meio do pagamento da diferença pelo paciente, tema
constante do Recurso Extraordinário (RE) n.º 581488, com repercussão geral reconhecida, em
que se discute ação civil pública na qual o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do
Sul (Cremers) procura reverter decisão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4),
segundo o qual esse tipo de pagamento confere tratamento diferenciado a pacientes dentro de
um sistema que prevê acesso universal e igualitário.
142

são públicos, e passam a ser cobrados diretamente, ou seja, a venda de leitos e a


capacidade de hospitais públicos, filantrópicos e universitários, diferenciando o
atendimento para aqueles que têm planos privados. É o recurso público a serviço
e sustentando o setor privado. Assim, todo esse acervo público que poderia ser
utilizado e canalizado para o SUS toma um novo caminho, o que certamente
contribuirá para a iniquidade da oferta, no acesso e no uso dos serviços que
poderiam ter uma direção única. Promove-se o desenvolvimento do setor privado,
dificultando ainda mais o acesso às consultas com especialistas, cirurgias
eletivas, medicamentos e aos SADT às pessoas de menor renda, conforme
estudos de Isabela Soares Santos, Maria Angelica Borges dos Santos e Danielle
da Costa Leite Borges.317

Lenir Santos explica que os hospitais com duas portas têm uma
fundação de apoio, que num passe de mágica transforma tudo (até o seu
servidor) em privado no âmbito público, o que, para ela, é uma aberração
jurídica.318 Um exemplo dessa realidade é o Instituto do Coração (Incor), 319 onde
o ambulatório para atendimento do SUS fica no subsolo do edifício e está sempre
lotado. As pessoas esperam oito meses a um ano para ter acesso a determinados
atendimentos. Enquanto isso, não há filas para os pacientes de convênio que
também são atendidos nesse hospital, que é público.320

317
Sobre essas questões sugere-se a leitura do trabalho de: SANTOS, Isabela Soares; SANTOS,
Maria Angelica Borges dos; BORGES, Danielle da Costa Leite. A saúde no Brasil em 2030 –
prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: estrutura do financiamento e do gasto
setorial. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos
da Presidência da República, 2013. v. 4, p. 95-96. Disponível em: <http://books.scielo.org>.
Acesso em: 19 out. 2016.
318
SANTOS, Lenir. A dupla porta de atendimento no SUS. Disponível em: <http://cebes.
org.br/2014/04/a-dupla-porta-no-sus/>. Acesso em: 10 jun. 2016.
319
O Incor atende pacientes com tratamento financiado por três fontes: SUS, empresas de saúde
suplementar (convênios) e particulares. Cerca de 80% do atendimento global do Instituto é
prestado a pacientes com financiamento pelo SUS. Informação disponível em:
<http://www.incor.usp.br/sites/incor2013/index.php/atendimento>. Acesso em: 10 jun. 2016.
320
Notícia: Sem fila para plano de saúde, cirurgia no Incor demora até um ano para quem é do
SUS. Estadão (on-line). São Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/
noticias/geral,sem-fila-para-plano-de-saude-cirurgia-no-incor-demora-ate-um-ano-para-sus-
imp-,665467>. Acesso em: 10 jun. 2016.
143

Sabe-se que a discriminação nesse tipo de atendimento é uma


violação à CR/1988, em seu artigo 196; ao disposto no artigo 7.º, IV, que prevê
“a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de
qualquer espécie”; no artigo 43 da Lei n.º 8.080, de 19.09.1990, que preserva
“a gratuidade das ações e serviços de saúde [...]”; e no artigo 3.º, II, da Lei
Complementar n.º 141 de 2012, que dispõe sobre “atenção integral e universal
à saúde [...]”. Reforça-se que todos os serviços de saúde públicos devem ser
de acesso universal e igualitário, pois a prática da dupla porta, além de estar
em mão contrária à justiça social, deve ser perseguida pelo Estado brasileiro,
que vira as costas à dramática realidade de grande parcela da população
brasileira, a quem a demanda por serviços é limitada em relação às suas
necessidades.321

Sem contar que essa postura institucional, vestida aparentemente de


boa intenção, invalidará, por meio da prática cotidiana administrativa, a
desconstituição da República Federativa do Brasil, afirmada pela CR/1988.322

Abre-se aqui a problemática no sentido de verificar se o Estado


Democrático de Direito, e republicano, pode ter serviços de base universal que
envolvam pagamento e diferença. Entende-se que não, pois a democracia possui,
no Estado de Direito, um valor fundamental que está bem definido no preâmbulo
da Constituição da República de 1988, que se destina a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais.

De acordo com Fernando Aith:

A democracia moderna não se esgota nos meios tradicionais de


representatividade ou de participação, como as eleições, os
referendos e os plebiscitos. Nas sociedades complexas modernas
faz-se necessário ampliar a participação da sociedade, de forma a
aproximar o cidadão das questões relacionadas com a
elaboração, planejamento e execução das políticas públicas. A
elaboração dessas políticas deve estar em consonância com os
ditames da Constituição e dos demais instrumentos normativos do

321
SANTOS, Lenir. A dupla porta de atendimento no SUS cit.
322
Em seu artigo 1.º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”.
144

ordenamento jurídico, bem como deve sempre ter como finalidade


o interesse público e a promoção e proteção de direitos, em
especial aqueles reconhecidos expressamente como direitos
humanos fundamentais, entre eles os direitos sociais e,
especialmente, o direito à saúde.323

Como o direito à saúde foi reconhecido pela Constituição como um


direito fundamental e expressado por ela como um direito social (artigo 6.º),
destaca-se, na linha traçada por André Ramos Tavares, que o direito à saúde é
tema que se relaciona diretamente com a dignidade da pessoa humana e que
deve encontrar no Estado apoio necessário. Basta observar: “o direito à
igualdade, que pressupõe o Estado-garantidor, cujo dever é assegurar o mínimo
de condições básicas para o indivíduo viver e desenvolver-se”.324 Deve assim o
Estado intervir nos diversos tipos de dinâmicas que não são garantidoras para
que as ações e serviços do SUS protejam e recuperem o direito à saúde.

Destaca-se com um questionamento: será que a opção encontrada pelo


Estado, com a edição da Lei n.º 9.656, em 3 de junho de 1998, foi pela regulação
do mercado de saúde suplementar?

3.3 A Lei n.º 9.656/1998: marco regulatório da saúde suplementar

O direito à saúde de forma clara e objetiva é ponto pacífico trazido pela


norma constitucional como “direito de todos e dever do Estado” (artigo 196).
Igualmente, “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao
Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle [...]” (artigo 197), o que carrega para o conteúdo da saúde força
normativa. Logo, eis o fundamento constitucional que subsidiará possíveis
formulações legislativas para a construção de um marco regulatório 325 não só

323
AITH, Fernando. A emergência do direito sanitário como um novo campo do direito cit., p. 21.
324
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 718.
325
Empresta-se a este trabalho a definição de Glória Conforto sobre marco regulatório: “O marco
regulatório é o conjunto de regras, orientações, medidas de controle e valoração que
possibilitam o exercício do controle social em atividades de serviços públicos, gerido por um
ente regulador que deve poder operar todas as medidas e indicações necessárias ao
ordenamento do mercado e à gestão eficiente do serviço público concedido, mantendo,
145

para ações do setor público, mas também para as ações e serviços que serão
desenvolvidos pelo setor privado, que inclui neste caso específico a saúde
suplementar.

A Constituição da República foi promulgada em 1988, a Lei do SUS, em


1990 e em seguida a Lei n.º 8.142, de 1990. No entanto, somente após dez anos,
aprova-se a Lei n.º 9.656/1998,326 à qual coube disciplinar os planos e seguros
privados de assistência à saúde. E em 28 de janeiro de 2009, com a Lei n.º 9.961,
é criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que estabelece quais
são as suas competências e responsabilidades como agência reguladora.

Convém ressaltar que a Lei n.º 9.656, de 3 de junho de 1998, além de


disciplinar sobre os planos privados de assistência e seguros de saúde, dispôs
pelo ressarcimento da operadora aos cofres públicos quando o cidadão, detentor
de plano de saúde, utilizar serviços públicos, obrigando que a operadora, após o

entretanto, um grau significativo de flexibilidade que permita a adequação às diferentes


circunstâncias que se configuram. Uma das questões principais na estruturação do ente
regulador é a equidistância em relação aos atores sociais envolvidos e uma composição que
dificulte sua captura por qualquer área de interesse vinculada à prestação de serviço
específica”. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/
viewFile/7681/6247>. Acesso em: 12 jun. 2016.
326
“Art. 1.º Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que
operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica
que rege a sua atividade, adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas,
as seguintes definições: I – Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de
serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós-estabelecido, por prazo
indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela
faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente
escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a
assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas
da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e
ordem do consumidor; II –Operadora de Plano de Assistência à Saúde: pessoa jurídica
constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de
autogestão, que opere produto, serviço ou contrato de que trata o inciso I deste artigo; III –
Carteira: o conjunto de contratos de cobertura de custos assistenciais ou de serviços de
assistência à saúde em qualquer das modalidades de que tratam o inciso I e o § 1.º deste
artigo, com todos os direitos e obrigações nele contidos. 1.º Está subordinada às normas e à
fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS qualquer modalidade de
produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos
de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de
atividade exclusivamente financeira, tais como: a) custeio de despesas; b) oferecimento de
rede credenciada ou referenciada; c) reembolso de despesas; d) mecanismos de regulação; e)
qualquer restrição contratual, técnica ou operacional para a cobertura de procedimentos
solicitados por prestador escolhido pelo consumidor; f) vinculação de cobertura financeira à
aplicação de conceitos ou critérios médico-assistenciais.”
146

atendimento, ressarça o SUS.327 Ademais, tratou sobre o exercício da atividade à


autorização prévia pelo Estado e uniformizou os produtos oferecidos pelo setor.
Também corrigiu falhas de mercado, restringindo, de um lado, a seleção de risco
por parte das operadoras, normatizando a amplitude das coberturas, regulou o
reajuste de preços em decorrência da mudança por faixa etária, impediu
restrições ao número de consultas e de internações, definiu prazos de carência e
de cobertura parcial, nas hipóteses de lesão ou doença preexistente.

Aluísio Gomes da Silva Júnior e Maria Thereza Carolina de Souza


Gouveia esclarecem que, no caso da saúde suplementar, quem determina o setor
é o produto que nele se opera, ou seja, os planos privados de assistência à
saúde, que têm todas as suas características delineadas no artigo 1.º, § 1.º, da
Lei n.º 9.656/1998, sendo esse o escopo de regulação da ANS. O sujeito principal
da regulação é aquele que atua como agente de mercado regulado, que são as
operadoras de planos de assistência à saúde, e como sujeitos secundários (os
consumidores e os provedores de serviço) os demais atores envolvidos nas
relações jurídicas inerentes ao seu funcionamento. Verifica-se, também, que a
referida lei delineou a regulação sob três aspectos:328

327
Diz a Lei n.º 9.656 de 1998, em seu artigo 32: “Serão ressarcidos pelas operadoras dos
produtos de que tratam o inciso I e o § 1.º do art. 1.º desta Lei, de acordo com normas a serem
definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos,
prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou
privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS”.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9656compilado.htm>. Acesso em: 9
ago. 2016.
328
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição cit., p. 229.
147

Figura 2 – Três aspectos da regulação da Lei n.º 9.656/1998

No que tange a sua estrutura, a Lei n.º 9.656/1998 compreende todos os


planos e seguros que já operavam no mercado na época de sua promulgação,
bem como aqueles que passaram a operar no mercado de suplementação dos
serviços de saúde após a sua vigência, quais sejam: (i) medicinas de grupo; (ii)
cooperativas médicas; (iii) planos próprios das empresas; (iv) filantropia; (v)
odontologia de grupo; e (vi) administradoras e seguradoras em saúde. Todas
esses serviços serão analisados nas Tabelas 4 e 5, a fim de se entender a
estrutura atual do mercado de planos de saúde no País.
148

Gráfico 1 – Distribuição percentual das operadoras com registro ativo na ANS

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados obtidos Cadop/ANS/MS do site da ANS/MS (março/2016).

No Brasil, existem 1.320 operadoras com registro ativo na ANS, sendo 965
(73,1%) operadoras médico-hospitalares e 355 (26,9%) exclusivamente
odontológicas,329 conforme aponta o Gráfico 1. Desse total, na Tabela 4 analisa-se
como estão distribuídas as operadoras, conforme modalidade de classificação.
Destaca-se, porém, diante do crescimento dos planos de assistência à saúde
coletiva, a figura das Administradoras de Benefícios que são a modalidade mais
recente de operadora incluída pela ANS.330 Sobre o papel dessas administradoras
tratar-se-á mais adiante quando será enfocado, neste trabalho, o orçamento público
no financiamento de planos privados para os servidores públicos da União, quando
se aborda como o próprio sistema público desqualifica o SUS ao incentivar, por meio
de subsídios, que o servidor público faça adesão aos planos de saúde privado.

Neste momento, porém, esclarece-se apenas que as Administradoras de


Benefícios atuam como estipulantes ou prestadoras de serviço de empresas aos
órgãos públicos331 ou àquelas entidades representativas que desejam contratar

329
Disponível em: <http://www.ans.gov.br/resultado-da-busca?q=dados+consolidados+sa%C3%
BAde+suplementar+mar%C3%A7o+2016&f=1>. Acesso em: 9 maio 2016.
330
Por meio da Resolução Normativa n.º 195, de 14 de julho de 1999, voltada para administrar a
contratação dos planos de saúde.
331
Um exemplo é o Termo de Parceria n.º 01/2015 (Processo n.º 23000.0011746/2014-58)
firmado com o Ministério da Educação (MEC) e Aliança Administradora de Benefícios de
149

um plano de saúde coletivo. Elas não comercializam seus próprios planos, mas
captam no mercado carteiras de clientes, sendo, portanto, intermediárias com as
operadoras dos planos de saúde.

Tabela 4 – Operadoras com registro ativo na ANS

MODALIDADE Número Percentual (%)

AUTOGESTÃO 183 13.87

COOPERATIVA MÉDICA 307 23.25

FILANTROPIA 58 4.40

MEDICINA DE GRUPO 290 21.97

SEGURADORA ESPECIALIZADA EM SAÚDE 10 0.75

COOPERATIVA ODONTOLÓGICA 110 8.33

ODONTOLOGIA DE GRUPO 245 18.56

ADMINISTRADORAS DE BENEFÍCIOS 117 8.87

TOTAL 1320 100

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados obtidos do site da ANS (março/2016).

A modalidade classificada como autogestão são as entidades privadas


que operam planos de saúde para um grupo predefinido, em sistema fechado,
delimitando a população que será assistida, geralmente vinculada a instituições
públicas ou entidades privadas, bem como a sindicatos ou associações. É
necessária a intermediação de um setor interno, por exemplo, o departamento de
recursos humanos, ou até mesmo a figura de uma pessoa jurídica própria, criada
com esse objetivo e sem fins lucrativos. Aponta-se como diferencial das
autogestões a não comercialização de planos de saúde.332 Na Tabela 4 observa-
se que as cooperativas médicas correspondem à modalidade de maior número
(307). Nelas, os médicos são ao mesmo tempo sócios e prestadores de serviços
e recebem o pagamento de acordo com a tabela da Associação Médica Brasileira
(AMB). Organizam-se como sociedades de pessoas sem fins lucrativos,

Saúde, para disponibilização de planos de assistência médica aos servidores ativos,


aposentados, seus dependentes e aos pensionistas do MEC e entidades vinculadas (Institutos
Federais e Universidades Federais).
332
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição cit., p. 231-232.
150

constituídas na forma da Lei n.º 5.764, de 1971,333 que operam planos de saúde.
As cooperativas,334 além dos serviços prestados pelos cooperados em nível
ambulatorial, mantêm convênios com provedores de serviços médico-
hospitalares. Por sua vez, a Filantropia é classificada como sem fins lucrativos
que opera planos de saúde que tenham obtido certificado de entidade filantrópica
no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e declaração pelos órgãos
competentes de utilidade pública federal, estadual ou municipal, por exemplo, as
Santas Casas de Misericórdia. As medicinas de grupo administram vários tipos
de planos de saúde para empresas, indivíduos ou famílias, cuja abrangência, em
geral, é regional. No tocante à sua estrutura de atendimento, compõe-se de
serviços próprios e credenciados que antes eram conhecidos como convênios
médico-hospitalares.335 As administradoras e seguradoras em saúde são as
empresas que comercializam o seguro como plano privado de assistência à
saúde, devendo realizar tal atividade com exclusividade. Esclarece-se que a
regulação dessa modalidade de seguro é anterior ao mercado de saúde
suplementar. Registra-se, oportunamente, que o seguro-saúde era regido pelo
Decreto-lei n.º 73, de 21 de novembro de 1966, e fiscalizado pela Susep, sob a
regulamentação do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP). Com a
edição das Leis n.ºs 9.656/1998 e 9.961/2000, o seguro-saúde passou a se
enquadrar como plano privado de assistência à saúde e, por sua vez, as
seguradoras como operadoras de plano de assistência à saúde, de acordo com o
artigo 2.º da Lei n.º 10.185, de 12 de fevereiro de 2001, que determina a
especialização dessas sociedades e disciplina sua subordinação às normas e à
fiscalização da ANS.336 A livre escolha dos serviços de assistência à saúde,

333
A Lei n.º 5.764, de 16 de dezembro de 1971, define a Política Nacional de Cooperativismo,
institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5764.htm>. Acesso em: 23 ago. 2016.
334
De acordo com Célia Almeida: “A Unimed é a mais forte delas, representa a quase totalidade
desse segmento do mercado, e apresentou importante crescimento no final da década de 80
com difusão em todo o território nacional e representações regionais” (O mercado privado de
serviços de saúde no Brasil: panorama atual e tendências da assistência médica suplementar.
Texto para discussão. Brasília: IPEA, n. 599, p. 7, 1998).
335
ALMEIDA, Célia. O mercado privado de serviços de saúde no Brasil: panorama atual e
tendências da assistência médica suplementar cit., p. 9.
336
Convém registrar o art. 2.º. Para efeito da Lei n.º 9.656, de 1998, e da Lei n.º 9.961, de 2000,
enquadra-se o seguro saúde como plano privado de assistência à saúde e a sociedade
seguradora especializada em saúde como operadora de plano de assistência à saúde.
151

garantindo o reembolso posterior das despesas, e a ausência de rede própria são


as principais características das seguradoras em saúde, as quais se organizam
de forma obrigatória como Sociedade Anônima (S.A.).337 Embora as seguradoras
representem a modalidade organizacional mais recente no mercado de saúde
suplementar, sua importância está muito além da mera participação numérica,
conforme verificou Lígia Bahia.338 Os Planos Próprios das Empresas são
aqueles em que as empresas ou administram programas de assistência médica
para seus funcionários (autogestão) ou contratam terceiros para administrá-los
(cogestão ou planos de administração).339 Por último, a odontologia de grupo
tem as mesmas características das medicinas de grupo, pois se dedicam a operar
somente planos odontológicos.

O que se observa na Tabela 5 é que o mercado de planos de saúde se


caracteriza pela atuação dessas modalidades de operadoras que se organizam
para vender “planos de pré-pagamento”,340 pois são responsáveis pela
intermediação e o acesso aos serviços privados de saúde, entre as
pessoas/famílias que buscam se proteger do custo de adoecer. O que permite a
essas pessoas/famílias o desembolso direto, uma vez que pode ser dividido o
gasto potencial entre um conjunto de beneficiários e de segurados. Diante dessas
condições, a assistência à saúde transforma-se em bem de mercado, que faz com
que os seus associados paguem antecipadamente essas operadoras visando à
utilização potencial, pois nesse mercado o consumidor não é soberano, 341 tendo
em vista que não dispõe de conhecimento suficiente tampouco de meios que
possam identificar e buscar a melhor resolução de seus problemas de saúde.
Nesse sentido, há, portanto, seleção de riscos, exclusão de consumidores

337
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição cit., p. 233-234.
338
BAHIA, Lígia. O mercado de planos e seguros de saúde no Brasil: tendências pós-
regulamentação. In: NEGRI, Barjas; DI GIOVANNI, Geraldo. Brasil: radiografia da saúde.
Campinas: Unicamp, 2001.
339
ALMEIDA, Célia. O mercado privado de serviços de saúde no Brasil: panorama atual e
tendências da assistência médica suplementar cit. Apresenta como exemplo de Planos
Próprios das Empresas. O surgimento da previdência complementar nos anos 1970 incentivou
o desenvolvimento desses planos, sendo que a Fundação de Seguridade Social da Petrobras
(Petros) serviu de modelo para outras empresas (p. 8).
340
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS: o desafio de ser único cit., p. 65.
341
Idem, p. 65-67.
152

(especialmente as pessoas com doenças crônicas e os idosos), pois, como em


todo empreendimento comercial, a preocupação é com o lucro.

Para essa discussão, não se pode esquecer o ponto central deste


trabalho que é o direito à saúde na Constituição brasileira: complexidades de uma
relação público-privada no SUS. Da dualidade que caracteriza seu sistema,
verificado pela existência dos serviços públicos, representados pelo SUS, e pelo
serviço de natureza privada, pelas operadoras de planos de assistência à saúde.
Essa relação, um tanto confusa, tem causado uma série de impasses para a
gestão pública, pois acabou por levar em conta a não suficiência do Estado
brasileiro como prestador direto do SUS capaz de atender as demandas cada vez
mais crescentes da população.

Tabela 5 – Número de beneficiários por modalidade de operadora

MODALIDADE DE OPERADORA
ANO
COOPERATIVA MEDICINA DE
AUTOGESTÃO MÉDICA FILANTROPIA GRUPO SEGURADORAS TOTAL

2009 5.517.156 15.115.177 1.363.019 15.642.050 4.923.996 42.561.398

2010 5.634.866 16.452.898 1.400.281 16.127.532 5.321.773 44.937.350

2011 5.377.139 17.245.110 1.411.048 16.224.737 5.894.683 46.152.717

2012 5.516.547 17.805.357 1.393.299 16.489.763 6.535.412 47.740.378

2013 5.363.759 18.574.775 1.379.248 16.992.897 7.063.010 49.373.689

2014 5.532.061 19.301.976 1.093.599 17.049.610 7.519.090 50.496.336

2015 5.441.121 18.930.400 1.091.517 17.233.377 7.033.990 49.730.405

TOTAL 38.382.649 123.425.693 9.132.011 115.759.966 44.291.954 330.992.273


GERAL 11.60% 37.28% 2.75% 34.98% 13.39% 100%

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados obtidos do site da ANS (março/2016).

Na Tabela 5 e mais adiante na Tabela 6, vê-se que os dados apontam


para uma realidade altamente concentrada nos tipos de contratação coletiva (seja
na forma de cooperativa médica ou medicina de grupo) com crescimento durante
os anos 2009-2014. No tocante ao número de beneficiários por ano,
independentemente da modalidade de operadora, pode-se verificar a tendência
de aumento do número de beneficiários nos anos de: (i) 2009-2010, o
153

crescimento foi de 2.375.952; (ii) 2010-2011, caiu para 1.215.367 beneficiários;


(iii) 2011-2012, subiu para 1.587.661; (iv) 2009-2013, o crescimento foi de
1.633.311; e tendência de queda nos anos de (v) de 2013-2014, muito embora
tenha havido crescimento, porém foi menor o número de beneficiários
(1.122.647); mas de queda acentuada no ano de (vi) 2014-2015, com um
decréscimo de 765.931 beneficiários. Essa tendência ocorre nos meses de
dezembro/2015, em que o número de beneficiários era de 49.730.405, ao mês de
setembro/2016,342 que cai para 48.301.667. Essa subtração em apenas nove
meses é de 1.428.738, o que representa uma legião de pessoas que tinham dupla
cobertura e agora só contam com o SUS. O sistema de saúde tem condições de
atendê-las? Ou a melhor solução seria incentivar as pessoas para que adquiram
planos de saúde a preços populares? Diante desses números que são reais, que
reflexão este trabalho pode propor relativamente à expansão da saúde
suplementar em dado momento, bem como em relação à sua retração. Esse
panorama leva a “um desafio permanente à universalização da atenção à saúde,
na medida em que seus efeitos ultrapassam as fronteiras das relações de
consumo e incidem sobre a organização e a utilização de serviço”, 343 conforme
asseveraram Lígia Bahia e Mário Scheffer.

O direito à saúde é um dos direitos sociais mais importantes, uma vez


que está no centro desses direitos, por envolver o maior bem jurídico a ser
tutelado que é a vida humana. Assim, foi visto, por força do artigo 197, 344 que a
assistência à saúde poderá ser prestada tanto pelo poder público como por
pessoas jurídicas de direito privado, para o que tem havido incentivo do próprio
governo a fim de que a sociedade brasileira faça adesão ao sistema privado de
saúde,345 especialmente a preços populares. Em vez de defender a ideia de que o

342
Fonte: Sistema de Informações de Beneficiários/ANS/MS – 09/2016. Disponível em:
<http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais>. Acesso em: 6 nov. 2016.
343
BAHIA, Lígia; SCHEFER, Mário. Planos e seguros privados de saúde. In: GIOVANELLA, L.
(Org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012. p. 453.
344
Artigo 197: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo
sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou
jurídica de direito privado”.
345
O Ministro da Saúde, Ricardo Barros, defendeu (em 06.07.2016) a criação de uma espécie de
plano de saúde mais popular, com custos menores, numa tentativa de aliviar os gastos do
154

Ministério da Saúde e os governos estaduais e municipais devam melhorar a


eficiência do SUS, seja na busca da oferta de serviços e possibilidades de acesso
e/ou lutando institucionalmente por meio da alocação de maiores recursos 346 e
contra o subfinanciamento do SUS. Sem falar que para a radicalização do direito
à saúde (esse é o ponto de defesa deste trabalho) deve-se promover cada ação e
serviço de saúde, a busca por qualidade, pois trata-se de questão de relevância
pública para todas as pessoas (ricos e pobres).

Aumenta-se cada vez mais a confusão quando representantes do


Estado brasileiro não compreendem o sentido e o valor de um sistema de saúde
nacional para a população, pois se esquecem que esse sistema é maior do que
qualquer projeto de partido ou de governo, uma vez que foi construído pelos
brasileiros ao longo do tempo e materializado, hoje, em um mandamento
constitucional.

Retoma-se a leitura da Tabela 5 com a ajuda de dados complementares


referentes ao mês de setembro/2016,347 em que se observa que é bem
expressivo o número de 48.301.667 pessoas com planos privados de assistência
à saúde, mesmo tendo sofrido decréscimo do número de beneficiários em relação
ao ano anterior. Isso significa que aproximadamente 23,37% de brasileiros348
utilizam o sistema privado em um país cujo sistema de saúde é universal apesar
de a Constituição assim estabelecer. No quadro atual, muitas pessoas que têm
planos de saúde vinculados aos empregos perderam esses empregos;
consequentemente, acabam perdendo os seus planos de saúde, razão pela qual

governo com o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). “O que estamos propondo
como reflexão é que possamos ter planos com acesso mais fácil à população e,
evidentemente, com cobertura proporcional a esse acesso. [Precisamos] ter outras faixas de
planos de saúde para que a gente possa permitir que mais pessoas possam contribuir para o
financiamento da s1aúde no Brasil”. Disponível em: <http://agenciabrasil.
ebc.com.br/geral/noticia/2016-07/ministro-defende-plano-de-saude-popular-para-aliviar-gastos-
com-o-sus>. Acesso em: 22 jul. 2016.
346
OCKÉ REIS, C. O. SUS: o desafio de ser único cit., p. 34.
347
Fonte: Sistema de Informações de Beneficiários/ANS/MS – 09/2016. Disponível em:
<http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais>. Acesso em: 6 nov. 2016.
348
O percentual de 25% foi mencionada com base no cálculo realizado pela pesquisadora, no site
do Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), de acordo com projeção da população do Brasil
que foi de 206.062.749 às 22h09:36, de 07.11.2016. Disponível em: <http://www.ibge.
gov.br/apps/populacao/projecao/>. Acesso em: 7 nov. 2016.
155

a pressão exercida sobre o SUS deve aumentar. Por isso entende-se que nesse
momento o Estado deve se fazer mais presente e não achar que os planos de
saúde privados a preços populares serão capazes de substituir o SUS.

Por outro lado, constata-se que esse número de pessoas (48.301.667),


além de ser coberto por planos privados de saúde, pode fazer uso dos serviços
do SUS, o que resulta em cobertura dupla para aqueles que podem pagar ou são
financiados pelos seus empregadores.349 Na prática, há uma desconstituição da
proposta do Movimento de Reforma Sanitária cuja preocupação era a inserção
das camadas mais vulneráveis da população ao sistema de saúde universal,
visando à redução das desigualdades sociais e a consequente criação de um
sistema sustentável.350

Tabela 6 – Planos privados de saúde, por segmentação assistencial, segundo tipo de


contratação (Brasil, março/2016)

TIPO DE CONCENTRAÇÃO ASSISTÊNCIA MÉDICA EXCLUSIVAMENTE


ODONTOLÓGICO

INDIVIDUAL OU FAMILIAR 21.473 (40,27%) 1.375 (27,79%)

COLETIVO EMPRESARIAL 20.640 (38,71%) 2.195 (44,36%)

COLETIVO POR ADESÃO 10.594 (19,87%) 1.359 (27,46%)

COLETIVO NÃO IDENTIFICADO 84 (0,16%) 19 (0,39%)

NÃO INFORMADO 528 (0,99%) -

TOTAL 53.319 4.948

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados obtidos do site da ANS.

Conforme consolidado no mercado, por meio da Resolução Normativa


n.º 195, de 14 de julho de 2009, foram definidas em três espécies as formas de
contratação, pois a Lei dos Planos de Saúde (Lei n.º 9.656/1998) reconhece a
diferença entre os contratos negociados exclusivamente por um indivíduo e para a
sua família e aqueles celebrados para grupos maiores d’e pessoas. Para o

349
OCKÉ REIS, C. O. SUS: o desafio de ser único cit., p.23.
350
Relatório Final da 8.ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) realizada em Brasília-DF, de 17 a
21 de março de 1986, p. 5-9.
156

primeiro caso denominam-se planos individuais ou familiares, e os seguintes


são chamados de planos coletivos empresariais e os por adesão. Os planos
que receberam uma maior atenção da lei, em razão da força do poder econômico
entre a operadora e o consumidor, são os planos individual ou familiar,
geralmente são os que têm o preço mais alto. Os planos coletivos, por ser coletiva
a contratação empresarial, oferecem cobertura a um grupo delimitado e vinculado
a determinada pessoa jurídica. A adesão é automática e ocorre no ato da
contratação do plano, conforme esclarecem Aluísio Gomes da Silva Júnior e
Maria Thereza Carolina de Souza Gouveia.351

No tocante aos contratos empresariais, eles serão patrocinados. No


entanto, os de adesão podem ser patrocinados ou não patrocinados, e, quando
ocorre o segundo caso, há preocupação por parte do órgão regulador, uma vez
que tem havido arranjos contratuais em que se faz uma falsa coletivização: planos
individuais e familiares como se fossem coletivos, com o fim de burlar a proibição
do rompimento unilateral e o controle de reajustes.352 Na Tabela 6, vê-se também
a predominância dos planos coletivos (58,74%) em relação aos individuais e
familiares (40,27%). Isso se explica, segundo Aluísio Gomes da Silva Júnior e
Maria Thereza Carolina de Souza Gouveia, pela própria história do surgimento e
crescimento do mercado de saúde suplementar, cujas raízes estão na “medicina
de fábrica”.353 Diante da crescente coletivização dos planos de assistência à
saúde, surgem no mercado de saúde suplementar as denominadas
Administradoras de Benefícios (Tabela 4) que são empresas especialmente
voltadas para administrar a contratação, como condição de estipulante entre
grupos de consumidores e operadoras de planos de assistência à saúde. Tais
empresas têm como finalidade captar no mercado carteiras e clientes e gerenciar
esses grupos coletivos.354

351
SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; GOUVEIA, Maria Thereza Carolina de Souza. Saúde
suplementar: regulação e jurisdição cit., p. 237-238.
352
Idem, p. 238.
353
Idem, ibidem.
354
Idem, p. 231-232.
157

Os mesmos autores informam que não fazem parte do mercado de


saúde suplementar as instituições de direito público das três unidades da
federação que mantêm programas de assistência à saúde voltada para atender
seus servidores civis e militares, uma vez que a composição do referido mercado
é representada conforme a classificação descrita na Tabela 4.355

Convém pontuar neste breve estudo sobre a Lei n.º 9.656/1998, que
regula os planos privados de assistência à saúde. observando que ela buscou
assegurar um equilíbrio entre as partes envolvidas (consumidores e operadoras),
mas que não é alcançável, tendo em vista a relação conflituosa entre as partes.
De acordo com Andrea Lazzarini Salazar, Karina Rodrigues e Vidal Serrano
Nunes Júnior, apesar de a proteção aos beneficiários de planos de saúde
apresentar avanços, a referida lei não resolveu os principais conflitos entre os
beneficiários e as operadoras, e de certa forma pareceu desobrigar o setor
privado de obedecer à Lei Orgânica da Saúde. Consoante os mesmos autores, “o
único aspecto da relação entre sistema público e privado tratado pela Lei n.º
9.656/1998 diz respeito ao ressarcimento do SUS previsto no artigo 32”, 356 que
será analisado neste capítulo.

Por último, verifica-se o Relatório Estatístico e Analítico do Atendimento


da Ouvidoria da ANS (ano-base 2015), que do universo das reclamações
recebidas por esse serviço demonstrou que: (i) 39% delas se referem à rede
prestadora: que inclui dificuldade de marcação de consulta/agendamento falta de
prestador, mau atendimento por parte do prestador e descredenciamento de rede;
(ii) 25% concernem à cobertura assistencial: questões referentes a tratamentos
e medicamentos que, por um lado, estão excluídos da cobertura dos planos e que
poderiam salvar muitas vidas de pessoas que pagam por esse plano; (iii) 14%
relativas a questões administrativas: referem-se à relação comercial entre
operadora e consumidor, corretores, carteirinhas, contratos; (iv) 13% referentes

355
1) Autogestão; 2) Cooperativa Médica; 3) Filantropia; 4) Medicina de Grupo; 5) Seguradora
Especializada em Saúde; 6) Cooperativa Odontológica; 7) Odontologia de Grupo; e 8)
Administradora de Benefícios.
356
SALAZAR, Andrea Lazzarini; RODRIGUES, Karina; SERRANO, Vidal. Assistência privada à
saúde: regulamentação, posição do Idec e reflexos no sistema público. Direito Sanitário e
Saúde Pública, v. 1, p. 360, 2005.
158

ao financeiro: reajuste, boletos, cobranças e reembolso; e (v) 9% concernentes


Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC).357 Isso tudo porque há, no sentir
deste trabalho, duas concepções de saúde: a primeira como direito (artigo 196) e
a segunda como responsabilidade do indivíduo (artigo 199). É uma polêmica no
caso brasileiro essa dualidade de concepção. As consequências desse
comportamento serão analisadas no desenvolver deste trabalho.

3.4 O (não) ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS)

A Lei n.º 9.656, de 3 de junho de 1998, cria pelo artigo 32 358 a figura do
ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado pelas normas
da Agência Nacional de Saúde Suplementar359 (ANS). De acordo com o referido
artigo, torna-se obrigatório o ressarcimento ao SUS, sempre que ele prestar

357
Relatório Estatístico e Analítico do Atendimento da Ouvidoria da ANS (Ano-base: 2015).
Disponível em: <http://www.ans.gov.br/images/stories/A_ANS/Ouvidoria/rea-2015.pdf>. Acesso
em: 24 ago. 2016.
358
Artigo 32: “Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1.º
do art. 1.º desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de
atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e
respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas,
integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS. § 1.º O ressarcimento a que se refere o caput
será efetuado pelas operadoras à entidade prestadora de serviços, quando esta possuir
personalidade jurídica própria, e ao SUS, mediante tabela de procedimentos a ser aprovada
pela ANS. § 2.º Para a efetivação do ressarcimento, a ANS disponibilizará às operadoras a
discriminação dos procedimentos realizados para cada consumidor. § 3.º A operadora efetuará
o ressarcimento até o décimo quinto dia após a apresentação da cobrança pela ANS,
creditando os valores correspondentes à entidade prestadora ou ao respectivo fundo de saúde,
conforme o caso. § 4.º O ressarcimento não efetuado no prazo previsto no § 3.º será cobrado
com os seguintes acréscimos: I – juros de mora contados do mês seguinte ao do vencimento, à
razão de um por cento ao mês ou fração; II – multa de mora de dez por cento. § 5.º Os valores
não recolhidos no prazo previsto no § 3º serão inscritos em dívida ativa da ANS, a qual
compete a cobrança judicial dos respectivos créditos. § 6.º O produto da arrecadação dos juros
e da multa de mora é revertido ao Fundo Nacional de Saúde. § 7.º A ANS fixará normas
aplicáveis ao processo de glosa ou impugnação dos procedimentos encaminhados, conforme
previsto no § 2.º deste artigo. § 8.º Os valores a serem ressarcidos não serão inferiores aos
praticados pelo SUS e nem superiores aos praticados pelas operadoras de produtos de que
tratam o inciso I e o § 1.º do art. 1.º desta Lei. [...]”.
359
A Lei n.º 9.961, de 28 de janeiro de 2000, que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS), autarquia especial cuja finalidade é promover a defesa do interesse público na
assistência suplementar à saúde, regulamentando as relações jurídicas entre as operadoras de
planos de saúde, os prestadores de serviços e os consumidores. O artigo 4.º, inciso VI, desta
lei define como uma das competências da ANS, dentre outras, estabelecer normas sobre o
ressarcimento ao SUS.
159

atendimento em instituições vinculadas a ele, aos beneficiários (consumidores) de


planos privados de assistência à saúde, para procedimentos que estejam
previstos nos seus respectivos contratos.

A identificação dos atendimentos a serem ressarcidos será feita com


base nos dados cadastrais dos beneficiários fornecidos exclusivamente pelas
operadoras de planos de saúde à ANS, que se torna obrigada a discriminar os
procedimentos realizados para cada consumidor. Esses dados são cruzados com
as Autorizações para Internação Hospitalar (AIH), que identificam o nome da
pessoa atendida em uma instituição vinculada ao SUS. Dessas informações
cruzadas nasce o Aviso dos Beneficiários Identificados (ABI), que contém as
seguintes informações:

 Código de beneficiário na operadora.

 CNPJ da operadora.

 Nome, código e valores dos procedimentos de acordo com a Tabela


Única Nacional de Equivalência de Procedimentos (Tunep).

 Data do atendimento.

 Nome da unidade prestadora do serviço e sua natureza jurídica.

 Número e mês de competência do atendimento SUS.

 Município onde foi realizado o atendimento.

A “saúde como direito de todos” deve ser promovida pelo Estado em


favor de sua universalização e o instituto do ressarcimento ao SUS é um
mecanismo que visa restituir ao ente público tudo aquilo que ele gastou para
atender o que seria encargo da operadora de plano privado de saúde se tivesse
prestado o serviço a seus consumidores para o qual ela foi contratada. No
entanto, ressalta-se que aqueles tratamentos prestados pelo SUS, mas que não
constam do contrato com as operadoras de planos de assistência à saúde, não
são objetos de ressarcimento.
160

O ressarcimento ao SUS não é um instituto tão simples, pois de um lado


tem o Estado, por meio da ANS, que o percebe como mais uma possibilidade de
auxílio ao sistema público. De outro lado, têm-se nas Operadoras fortes
resistências para que esses valores não saiam de seus cofres. Diante desses dois
polos, Lígia Bahia entende que se trata de um tema polêmico. Como visto, a
cobrança para o SUS do uso de seus serviços por clientes de planos de saúde é
um mecanismo próprio para que se obtenha maior equidade no financiamento de
saúde. Outrossim, o que se vê são empresas de planos de saúde e entidades que
representam hospitais privados considerarem que cobrança de serviços (que são
um direito de cidadania) é inconstitucional.360

De todas as formas examinadas, o ressarcimento é o mais polêmico.


Isso se considerar que a própria ANS alegava361 não ter estrutura para dar
encaminhamento a todas as informações para que o ressarcimento pudesse
ocorrer efetivamente. Pela Tabela Única Nacional de Equivalência de
Procedimentos (Tunep),362 que identifica os procedimentos e estabelece como
será cobrado o ressarcimento, proporciona a uniformização das unidades de
cobrança e define os valores de referência em todo o território nacional.

Assim, conforme dispõe o § 8.º do artigo 32 da Lei n.º 9.656/1998: “os


valores a serem ressarcidos não serão inferiores aos praticados pelo SUS e nem
superiores aos praticados pelas operadoras de produtos de que tratam o inciso I e
o § 1.º do art. 1.º desta lei”. Além do mais, o limite para o SUS está em não
receber menos do que se paga aos hospitais, tampouco às operadoras de planos
privados de saúde são obrigadas a ressarcir mais do que elas pagariam à sua
rede credenciada. Estabelece-se um meio-termo. Portanto, para que o
ressarcimento aconteça, é necessário, além da forma para o seu processamento,

360
BAHIA, Lígia. Padrões e mudanças no financiamento e regulação do sistema de saúde
brasileiro: impactos sobre as relações entre o público e privado. Saúde e Sociedade, v. 14, n.
2, p. 27, maio-ago. 2005.
361
De acordo com nota publicada na página da ANS, em 02.02.2011. Disponível em:
<http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/integracao-com-o-sus/317-ressarcimento-ao-
sus?highlight=WyJyZXNzYXJjaW1lbnRvIiwiYW8iLCJzdXMiLCJyZXNzYXJjaW1lbnRvIGFvIiwic
mVzc2FyY2ltZW50byBhbyBzdXMiLCJhbyBzdXMiXQ==>. Acesso em: 26 jun. 2016.
362
O Conselho de Saúde Suplementar (Consu), por meio da Resolução n.º 9, de 3 de dezembro
de 1998, instituiu a Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos (Tunep).
161

que no próximo item será mais bem desenhada, que a ANS adote medidas mais
eficazes, a fim de que o ressarcimento ocorra e o sistema público de saúde possa
dele se valer para melhor prestar os seus serviços.

3.5 Como se processará o ressarcimento ao SUS?

Primeira etapa: O beneficiário de planos privados de saúde é atendido


pelo SUS.

Segunda etapa: A ANS identifica o paciente atendido pelo SUS, por


meio das Autorizações de Internações Hospitalares (AIH). Nesse momento é
realizado o cruzamento com o banco de dados do SUS (Datasus) e o cadastro de
clientes das operadoras privadas, o chamado Sistema de Informação de
Beneficiários (SIB), que foi criado e disponibilizado pela ANS às operadoras de
planos de saúde, a fim de que elas enviem por meio eletrônico informações de
seus beneficiários à ANS. Esclarece-se que todas as operadoras têm o dever
legal de enviar a ANS seu cadastro de beneficiários, conforme o artigo 20 da Lei
n.º 9.656/1998:

As operadoras [...] são obrigadas a fornecer, periodicamente, à


ANS todas as informações e estatísticas relativas às suas
atividades, incluídas as de natureza cadastral, especialmente
aquelas que permitam a identificação dos consumidores [...].363

Terceira etapa: A operadora é notificada pela ANS, com o Aviso de


Beneficiário Identificado (ABI),364 sobre o atendimento realizado pelo SUS para
que seja feito o ressarcimento. Nessa fase, há duas possibilidades: a) quando a
Operadora aceita a notificação; b) quando a Operadora não aceita e entra com
recurso. Na fase de recurso, há análise da impugnação.365 Se o recurso for

363
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9656compilado.htm>. Acesso em: 24
ago. 2016.
364
O ABI tem as seguintes informações: a) código do beneficiário na operadora; b) CNPJ da
operadora; c) nome, código e valores dos procedimentos de acordo com a Tunep; d) data do
atendimento; e) nome da unidade prestadora do serviço e sua natureza jurídica; f) número e
mês de competência do atendimento SUS; g) município onde foi realizado o atendimento.
365
Na análise da impugnação: a operadora, por lei, pode recorrer até duas vezes.
162

deferido, o processo será encerrado, mas, se o recurso for indeferido, haverá


cobrança dos valores devidos. Na Tabela 7 entre as notificações (impugnações,
deferimento e indeferimento) realizadas pela ANS às operadoras, encontram-se
algumas delas que são mais bem explicitadas e quantificadas em números e em
percentual.

Tabela 7 – Notificações (número e porcentagem) da ANS às operadoras de planos de saúde


(Brasil, de 2001 até abril/2016)

NOTIFICAÇÕES ÀS OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE


(2001-ABRIL/2016)

TIPO DE N.º DE
VALOR EM R$ PERCENTUAL(%)
ATENDIMENTO ATENDIMENTO

NÃO IMPUGNADO 655.637 1.062.436.855,82 19,3

EM ANÁLISE 850.689 1.591.690.178,27 29,0

DEFERIDO 611.692 1.285.014.525,62 23,4

INDEFERIDO 938.273 1.554.212.405,48 28,3

TOTAL 3.056.291 5.493.353.965,19 100,0

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados obtidos do site da ANS. Boletim Informativo abr. 2016. Acesso à
Informação.

Verifica-se por meio da Tabela 7 que os atendimentos não impugnados


são da ordem de R$1.062.436.855,82; os atendimentos em análise correspondem
a R$1.591.690.178,27; os deferidos (cujo valor é de R$1.285.014.525,62) e os
atendimentos indeferidos (que somam R$1.554.212.405,48) seguiram os
procedimentos para as devidas cobranças,366 conforme etapas descritas para se
processarem o ressarcimento.

Quarta etapa: A ANS emite cobrança do valor devido e a operadora tem


30 dias úteis para pagar. Nessa fase, podem ocorrer três possibilidades: 1.ª – a

366
Conforme Boletim Informativo – utilização do sistema público por beneficiários de planos de
saúde e ressarcimento ao SUS. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/images/
stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/boletim_ressarcimento.pdf>. Acesso
em: 15 jun. 2016.
163

operadora paga à vista; 2.ª a – operadora parcela o pagamento; e 3.ª a –


operadora não paga e o valor não pago é encaminhado à Dívida Ativa da União e
dos administradores no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor
Público Federal (Cadin).

Gráfico 2 – Inscrição para a dívida ativa (2011-2014)

Fonte: ANS/2014.

De acordo com a legislação, caso a Operadora não efetue o pagamento


devido dos valores que levantados a título de ressarcimento ao SUS,
transcorridos 75 dias da notificação, conforme detalhado na 4.ª etapa, há
inscrição na dívida ativa. Verifica-se, pelo Gráfico 2, que desde 2006 o montante
encaminhado soma R$553,59 milhões, mas acrescentam-se a esta pesquisa
dados de 2015 e 2016.367 Conforme se apurou, houve uma queda nos
encaminhamentos de 2015 (R$49,11 milhões) em relação a 2014 (R$195,72
milhões). E até março de 2016 foram encaminhados para inscrição em dívida

367
Conforme Boletim Informativo – utilização do sistema público por beneficiários de planos de
saúde e ressarcimento ao SUS cit.
164

ativa 21,4 milhões de reais (segundo dados recentes publicados),368 o que


convém observar que o valor cobrado é inexpressivo.

Quinta etapa: Ocorrendo o pagamento (à vista ou parcelado), a ANS


recebe das operadoras os valores devidos e repassa integralmente para o Fundo
Nacional de Saúde (FNS). Assim, concentra-se a verba em apenas um ente do
SUS que permite um melhor aprimoramento dos gastos dos recursos enviados.

Gráfico 3 – Ressarcimento ao SUS (repasse ao FNS)

Fonte: José Carlos de Souza Abrahão (Diretor-Presidente da ANS). Brasília, 15.03.2016.369

Pelo Gráfico 3 verificam-se a partir do ano de 2011 um aumento do


repasse das quantias do ressarcimento ao SUS e consequente incremento nos
últimos quatro anos. Em 2014: R$ 393,21 milhões – aumento de 114% em

368
Conforme Boletim Informativo – utilização do sistema público por beneficiários de planos de
saúde e ressarcimento ao SUS cit., p. 26.
369
Audiência pública: Transparência e Funcionamento da Agência Nacional de Saúde
Suplementar. Conforme apresentação em powerpoint de José Carlos de Souza Abrahão
(Diretor-Presidente da ANS). Brasília, em 15.03.2016. Slide n.º 20.
Disponível em: <https:// www.google.com.br/?gfe_rd=cr&ei=BEJiVvHGJ-KB8QfF_oC4Cg
&gws_rd=ssl#q=audi%C3%AAncia+p%C3%BAblica+-+ans+jos%C3%A9+carlos+de+souza+
abrah%C3%A3o.+power+point>. Acesso em: 2 jul. 2016.
165

relação a 2013, que foi de R$ 183,86 milhões. Segundo informa a ANS, tudo em
razão de melhorias internas promovidas no órgão, a fim de possibilitar maior
efetividade ao comando legal.370 Complementa-se a esta pesquisa o valor
repassado ao FNS no ano de 2015 que correspondeu ao montante de R$399,85
milhões, o que representou um aumento de apenas 1,58% em relação ao ano de
2014, o que é irrisório diante das dívidas das operadoras, conforme se constata
na Tabela 7.

Deve-se destacar que nem todos os valores cobrados pela ANS são
efetivamente pagos pelas operadoras de planos de saúde,371 conforme ficou
demonstrado no Gráfico 3. A fim de desestimular interposição de contestações ao
procedimento de ressarcimento ao SUS, “tendo em vista notória conduta
protelatória adotada por algumas operadoras, que, mesmo sem argumentos
suficientes a resolver o mérito da questão, interpunham defesas sem qualquer
fundamento a fim de postergar a resolução do processo”.372 Foi consignado, a
partir da Resolução Normativa n.º 358, de 27 de novembro de 2014, que se
mantém inalterada a fluência de juros de mora mesmo diante da interposição de
impugnação ou de recursos tempestivos, considerando a data do vencimento
para pagamento do valor devido.373 De acordo com a ANS, houve diminuição
significativa por parte das operadoras de planos de saúde em relação ao número
de procedimentos impugnados. No entanto, ressalta-se que o instituto do
ressarcimento ao SUS é importante como instrumento de política pública que
garanta o financiamento da saúde pública, mas que por isso a ANS deve buscar
aprimoramento para que as operadoras cumpram com as suas obrigações em
relação aos seus consumidores.

370
Conforme Boletim Informativo – utilização do sistema público por beneficiários de planos de
saúde e ressarcimento ao SUS. Rio de Janeiro: Agência Nacional de Saúde Suplementar, n. 1,
p. 25, 2016.
371
Recomenda-se a leitura de Estudo do Idec que mostra que operadoras de planos de saúde
devem ao SUS mais de R$742 milhões. Disponível em: <http://www.idec.org.br/em-acao/em-
foco/estudo-do-idec-mostra-que-operadoras-de-planos-de-saude-devem-ao-sus-mais-de-r-742-
milhes>. Acesso em: 10 nov. 2016.
372
Conforme Boletim Informativo – utilização do sistema público por beneficiários de planos de
saúde e ressarcimento ao SUS cit., p. 20.
373
Nos termos do artigo 33, § 1.º, letras “a” e “b”, e § 2.º da Resolução Normativa n.º 358/2014.
Disponível em: <http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=
TextoLei&format=raw&id=MjgyNw==>. Acesso em: 2 jul. 2016.
166

3.6 Fundamento jurídico para o ressarcimento ao SUS

A Lei n.º 9.656/1998 trouxe a possibilidade de ressarcimento ao SUS


por atendimento de pacientes de planos de saúde. E em pesquisa realizada
verificou-se que o artigo 32 da referida lei sempre foi alvo de inúmeras críticas
que culminaram com diversas ações no Judiciário nacional, a fim de saber qual é
o fundamento dessa cobrança.

O Ministro Gilmar Mendes reconheceu repercussão geral no Recurso


Extraordinário (RE) n.º 597064 e foi acompanhado por unanimidade em votação
ocorrida no Supremo Tribunal Federal (STF). A partir daí, todos os processos que
envolviam o tema do ressarcimento ao SUS foram devolvidos ao tribunal de
origem.

O contexto da saúde brasileira não se resumiu no período em que a Lei


n.º 9.656/1998 foi escrita, diante de uma perversa realidade, em que se verificou
que quase sempre as empresas de planos de saúde ofereciam ampla cobertura,
omitiam o atendimento previsto nos contratos, mas que na prática isso não
acontecia. Por essa razão, as pessoas faziam uso do sistema público, mesmo
tendo um plano que lhes assegurava determinado procedimento. Nesse caos,
opta o legislador por uma previsão legal, a Lei n.º 9.656/1998, que criou o
ressarcimento ao SUS, reservando à ANS a competência para cobrar os valores
das operadoras de planos privados de saúde, bem como disciplinar de que forma
os respectivos valores seriam ressarcidos, como anteriormente tratado.

No entanto, como a Lei n.º 9.656/1998 nada dizia sobre a criação de


uma agência reguladora, optou o legislador pela adoção de uma agência que tem
por finalidade promover a defesa do interesse público na assistência suplementar
à saúde regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações
com prestadores e consumidores.374 Assim, foi instituída pela Lei n.º

374
Artigo 3.º da Lei n.º 9.961, de 28 de janeiro de 2000. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9961.htm>. Acesso em: 27 jun. 2016.
167

9.961/2000375 a ANS, regulamentada pelo Decreto n.º 3.327/00 e pela Resolução


ANS n.º 593/2000,que aprovou o seu Regimento Interno.

Portanto, não há dúvida em relação a uma das competências da ANS,


que é o seu poder de edição de normas em função do SUS, pois sabe-se da
importância que esse sistema tem para a grande maioria da população brasileira,
que é desprovida de ações e serviços de saúde que efetivamente atendam o
indivíduo e igualmente a coletividade. O SUS foi pensado como sistema a serviço
da população, posto que a tarefa do Estado como trazida pelo artigo 196 da
CR/1988 não pode ser comprometida em face do ressarcimento. Toda pessoa
tem o direito de ser atendida pelo sistema público de saúde, mas, em virtude da
omissão das operadoras que não cumprem o que estava pactuado em contrato,
passa-se para o SUS todo o custo do serviço de saúde pública aplicado com a
pessoa que contratou um plano de saúde e não recebeu qualquer tratamento.
Não há dúvida que esse serviço prestado será mais uma vez suportado por toda a
coletividade e, como forma de reequilibrar o sistema, as operadoras de planos
privados de assistência à saúde devem ressarcir o SUS.

Diante desse caos, o Judiciário enfrentou um turbilhão de ações que


fizeram com que toda essa questão do ressarcimento ao SUS pudesse aguardar
manifestações do STF.

A Confederação Nacional da Saúde (CNS)376 recorreu ao STF


classificando dispositivos da Lei n.º 9.656/1998 e demais atos, de

375
A competência da ANS está disposta no artigo 4.º da mesma lei, em uma longa lista de 42
incisos. Entre eles destacamos o inciso VI – “Estabelecer normas para ressarcimento ao
Sistema Único de Saúde – SUS” – por se constituir do cerne de nosso trabalho, que versa
sobre o direito à saúde: suas dificuldades e possibilidades.
376
A Confederação Nacional de Saúde (CNS) questiona diversos pontos da Lei n.º 9.656/1998,
dos quais se destacam: a) medida provisória editada um dia depois da promulgação da Lei,
que altera seus dispositivos e prescrevendo novas exigências; b) por contrariar princípios
constitucionais de liberdade de associação, de livre iniciativa e de livre concorrência,
inviabilizando, ou pelo menos, cerceando a atividade econômica das operadoras; c)
determinação da aplicação retroativa de normas para os contratos firmados antes da vigência
da Lei. [...] Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=
AC&docID=347335>. Acesso em: 29 jun. 2016.
168

inconstitucionais, mediante Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), sob o n.º


1931-7/DF, cujo relator foi o Ministro Maurício Corrêa.

Restringe-se neste apenas o exame do item referente ao ressarcimento


ao SUS. Na ocasião, o Relator Ministro Maurício Corrêa votou pela suspensão de
parte da Lei, que disciplina a exigência de que os contratos existentes antes de 3
de junho de 1998 sejam submetidos às novas regras, como a CNS havia
proposto. O Relatório assim se posicionou quanto ao art. 32 da Lei n.º
9.656/1998:

[...]
44. Outra questão tida como contrária e ofensiva ao princípio da
proporcionalidade seria o ressarcimento ao Poder Público, de que
trata o caput do artigo 32 da lei, dos serviços de atendimento que
a rede hospitalar de saúde pública prestar ao contratado do plano.
Frise-se que esses serviços só atingem os atendimentos previstos
em contrato e que forem prestados aos respectivos consumidores
e seus dependentes por instituições públicas ou privadas,
conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS, como está
explicitamente disciplinado no § 1.º do artigo 32, na versão atual,
verbis: “O ressarcimento a que se refere o caput será efetuado
pelas operadoras à entidade prestadora de serviços, quando esta
possuir personalidade jurídica própria, e ao Sistema Único de
Saúde – SUS, mediante tabela de procedimento a ser aprovado
pelo CONSU”.
45. Não vejo atentado ao devido processo legal em disposição
contratual que assegurou a cobertura desses serviços, que, não
atendidos pelas operadoras no momento de sua necessidade,
foram prestados pela rede do SUS e instituições conveniadas e,
por isso, devem ser ressarcidos à Administração Pública,
mediante condições preestabelecidas em resoluções internas da
Câmara de Saúde Complementar. Observo que não há nada nos
autos relativamente aos preços que serão fixados, se atendem ou
não as expectativas da requerente. Tudo gira em torno de
hipóteses.
46. Também nenhuma consistência tem a argumentação de que a
instituição dessa modalidade de ressarcimento estaria a exigir lei
complementar nos termos do artigo 195, § 4.º, da Constituição
Federal, que remete sua implementação ao artigo 154, I, da
mesma Carta. Como resulta claro e expresso na norma, não
impõe ela a criação de nenhum tributo, mas exige que o agente do
plano restitua à Administração Pública os gastos efetuados pelos
consumidores com que lhe cumpre executar.
169

47. Mais uma vez cuida-se de matéria que implica o exame


concreto da questão concernente aos preços para o
ressarcimento dos serviços, que, agora penso, com a nova
definição jurídica dos planos, deverão ser revistos, se porventura
existentes, porque não mais ligados ao campo do seguro. Além do
mais, a regulamentação do dispositivo foi remetida à resolução do
CONSU, que não é objeto desta ação.
48. Tratando-se de segmento da maior sensibilidade social, pois
envolve a saúde e a vida das pessoas, tenho que as normas
impugnadas nesta parte da ação, em face da anômala condição
em que os agentes da requerente operavam nesse mercado, não
violam o devido processo legal, pelo que, neste exame cautelar,
não vejo que esteja caracterizado o periculum in mora,
recomendando-se, ao contrário, em virtude de boa dose de
conveniência, que os textos atacados sejam mantidos até o
julgamento final da ação. São as razões pelas quais indefiro o
pedido quanto a esta parte.377

Os contratos celebrados antes da edição da Lei n.º 9.656/1998 não


podem ser atingidos pela regulamentação dos planos, assim a maioria dos
ministros do STF, por votação unânime, concedeu regulamentação dos planos.

O STF exarou a liminar na ADIn n.º 1931-8/DF, reconhecendo a


inconstitucionalidade somente dos artigos 35-E, incisos I a IV, §§ 1.º, incisos I a V,
e 2.º, e 10, § 2.º, da Lei n.º 9.656/1998, e do seu artigo 32, em uma leitura a
contrario sensu, pode-se presumir que são constitucionais.

Eis a bem-posta manifestação do Supremo Tribunal Federal pelo


Ministro Ricardo Lewandowski:

Embargos de declaração no agravo regimental no recurso


extraordinário. Ressarcimento ao Sistema Único de Saúde – SUS.
Despesas com atendimento a beneficiários de planos de saúde.
Entidades conveniadas ou contratadas pelo SUS, artigo 32, da Lei
n.º 9656/98. Repercussão geral reconhecida. Embargos providos
com efeitos infringentes. I – Verifica-se, no caso, que o recurso
extraordinário versa sobre matéria – ressarcimento ao SUS das
despesas com atendimento de pacientes beneficiários de planos
privados de saúde – cuja repercussão geral foi reconhecida pelo

377
Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.931-8, Min. Maurício Correa, DJ
28.05.2004, p. 326-327.
170

Supremo Tribunal Federal (RE 597.064-RG/RJ, Rel. Min. Gilmar


Mendes). II – Embargos de declaração providos para acórdão
embargado e a decisão agravada, e, assim, determinar, com base
no artigo 328, parágrafo único, do RISTF, a devolução destes
autos ao Tribunal de origem para que seja observado o disposto
no art. 543-B do CPC (RE 595050 AgR-ED/RJ, Emb. Decl. no Ag.
Reg. no Recurso Extraordinário, 1.ª Turma, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, j. 25.06.2014, DJ 15.08.2014).

O STF reconheceu a constitucionalidade do artigo 32 da Lei n.º


9.656/1998. Considera-se neste trabalho que esse artigo tem amparo no artigo
196 da CR/1988, o qual dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado,
o que significa, consoante André Ramos Tavares, “constituindo um dever do
Estado sua efetivação”.378

Como visto ao longo deste estudo, o princípio da universalidade do SUS


e o princípio da integralidade, que estão previstos no artigo 7.º da Lei n.º
8.080/1990379 como integrantes do direito à saúde, assim como o fomento e/ou o
controle da saúde por parte do Estado, como asseverou André Ramos Tavares
(constituindo um dever do Estado sua efetivação), em nenhuma hipótese poderão
ser utilizados como argumentos que prejudiquem o instituto do ressarcimento ao
SUS.

Entende-se que, se não o realizarem e deixarem de subsidiar as


atividades que devam ser das operadoras de planos de saúde, haverá mais
recursos que poderão ser investidos no sistema público, pois tem-se na
Constituição uma norma que elege o SUS como o sistema universal, por isso a
prática não deve ser diferente. De igual maneira sustenta-se, pelas decisões
proferidas pelo STF, que o instituto do ressarcimento ao SUS é constitucional,
pois capaz de determinar tanto pelo princípio democrático como pelos objetivos

378
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p.718.
379
Artigo 7.º: “As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou
conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com
as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes
princípios: I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de
assistência; II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo
das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso
em todos os níveis de complexidade do sistema; [...]”.
171

fundamentais de nossa República a saúde como um direito de todos e dever do


Estado, portanto impõe a este à tarefa de regulamentar e fiscalizar a destinação
de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com
fins lucrativos. Assim, não se pode diminuir em face do artigo 196 da CR/1988 a
figura do ressarcimento, uma vez, que pela força normativa da Constituição, toda
pessoa pode e deve ser atendida pelo SUS. O que está em jogo é a omissão das
operadoras de planos de saúde em cumprir o pactuado em contrato passando
para o Estado todos os custos que teria com os atendimentos, tirando por
conseguinte recursos do SUS e dificultando o atendimento à população de baixa
renda.

É certo que o problema do ressarcimento ao SUS não se constitui como


o salvador da pátria para as dificuldades enfrentadas perante o direito à saúde.
Entretanto, constitui-se como um dos instrumentos dispostos pela legislação
(artigo 32 da Lei n.º 9.656/1998) a favor da sociedade e do ideal de solidariedade
e de justiça social, que deve motivar a todos. Nessa linha, a seguir se transcreve
parte do AgRg no REsp n.º 866.393/RJ, que foi julgado pelo Superior Tribunal de
Justiça (STJ):

[...] 13. Mesmo assim, não causa arrepio o fato de procurar o


Poder Público recobrar investimento do setor privado, pelo
princípio que veda o enriquecimento sem causa, em combinação
com o princípio da solidariedade, pois todos são chamados à sua
parcela de contribuição para a manutenção da saúde das
pessoas.
14. Por outro lado, as operadoras de planos privados e seguros de
saúde não podem queixar-se de diminuição patrimonial, uma vez
que, não fosse o atendimento dado pelo SUS, estariam sujeitas a
prestá-lo por si mesmas, despendendo para tanto recursos seus.
15. O princípio da solidariedade fundamenta a regra contida no
art. 32 da Lei n.º 9.656/98 e, em última análise, se insere no
contexto da concretização do objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil, a saber, a construção de uma sociedade
mais justa, livre e solidária (CF/88, art. 3.º, inciso I). Conclui-se,
172

portanto, pela constitucionalidade, legalidade e legitimidade do


ressarcimento ao SUS instituído pela Lei n.º 9.656/98. [...]380

Repisa-se que o ressarcimento ao SUS se faz necessário pela simples


razão de que as operadoras de planos de saúde oferecem ao seu beneficiário
(consumidor) ampla cobertura, mas deixam de cumprir essa obrigação contratual,
fazendo com que aquelas pessoas busquem na rede pública os procedimentos
médico-hospitalares mais dispendiosos e que foram negados por tais operadoras.
Como dito anteriormente, o instituto do ressarcimento ao SUS sozinho não
salvará o sistema, mas pode se constituir como instrumento de cobrança da ANS
em relação às operadoras de planos de saúde que prometem, mas não cumprem.

Em entrevista ao Blog da Saúde sobre financiamento da saúde, Lígia


Bahia e Mário Scheffer são unânimes: “só o ressarcimento dos planos de saúde
não resolverá a crise financeira do SUS”. Por quê? Eles explicam:

[...] Mário Scheffer: Desde que o ressarcimento foi instituído, pela


Lei 9.656 de 1998, os planos dão calote no SUS. O que retorna
aos cofres públicos é quase nada. Como está, a regulamentação
e a cobrança do ressarcimento favorecem as empresas de planos
de saúde, que contam com a lerdeza da ANS e têm grande
margem de manobra e protelações. O SUS – para onde os planos
empurram os atendimentos de alto custo, doentes crônicos, de
maior complexidade e idosos – está subsidiando o setor privado.
[...] Lígia Bahia: Considerar o ressarcimento como fonte de
financiamento é um equívoco. Na realidade, é um paradoxo. As
fontes de financiamento são os impostos e eles têm que expressar
a capacidade de arrecadação de uma sociedade. O ressarcimento
é um vetor, um instrumento de justiça contábil. Nunca irá resolver
os problemas de financiamento do sistema de saúde.381

380
Disponível em: <http://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STJ/IT/AGRG-RESP_866393_RJ_
1264330547151.pdf?Signature=onr3zIlTF9b0LN%2FEKTTdNLIo4oo%3D&Expires=147087647
2&AWSAccessKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-content-type=application/pdf&x-
amz-meta-md5-hash=5ce726761dab3426e21f9d94c2af554e>. Acesso em: 10 ago. 2016.
381
Em matéria produzida por Conceição Lemes, jornalista e blogueira do Blog da Saúde, Mário
Scheffer, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), e Lígia Bahia,
integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação. Disponível em:
<https://www.abrasco.org.br/site/2016/01/blog-da-saude-entrevista-mario-scheffer-e-ligia-bahia-
sobre-financiamento/>. Acesso em: 4 jul. 2016.
173

Sabe-se, porém, que uma das possibilidades para que o SUS382 se torne
forte tem a ver com o seu financiamento, ou seja, de que forma ele será mantido
para que a saúde seja efetivamente como um bem público de todo os cidadãos.
Dessa maneira, reitera-se que o ressarcimento ao SUS é importante instrumento
de política pública e, se bem implementado pela ANS, poderá contribuir para
garantir como mais uma fonte de financiamento da saúde pública brasileira.

3.7 Gastos públicos com planos de saúde de servidores

No Capítulo 2 procurou-se entender que o SUS se refere a uma “Política


de Estado”,383 construída e materializada a partir de uma decisão do Congresso
Nacional, com a aprovação da Constituição da República, em 5 de outubro de
1988. Reinaldo Guimarães, ao tratar do SUS, assim se posiciona:

Eu ousaria dizer que o Sistema Único de Saúde foi o principal


projeto de política social no Brasil, senão o único a romper com o
padrão de cidadania regulada na conquista de direitos sociais. O
conceito de universalidade nele estabelecido, a sua inscrição
setorial na política de seguridade social (saúde + previdência
social + assistência social), bem como sua proposta original de
financiamento (1/3 do orçamento da seguridade), sustentam a
ousadia. Esse último comentário, eu o faço porque, sob o meu
ponto de vista, o presente mal-estar do nosso Sistema Único de
Saúde, além de projetar um possível desastre sanitário (caso
aumentem as dificuldades atuais), poderá ter um significado

382
Ao longo deste trabalho apresentou-se o Sistema Único de Saúde (SUS), conforme previsto na
Constituição (artigo 198) e na legislação vigente (artigo 7.º da Lei n.º 8.080/1990), como
estratégia consistente de reforma democrática do Estado, os princípios: da universalidade, da
integralidade e da equidade; a hierarquização do sistema e das ações e serviços de saúde; a
descentralização da gestão, ações e serviços; a participação da população na definição da
política de saúde; o controle social da implementação da política de saúde e a autonomia dos
gestores serão o fundamento desse sistema.
383
Conforme Dalila Andrade de Oliveira: “Considera-se que políticas de governo são aquelas
que o Executivo decide num processo elementar de formulação e implementação de
determinadas medidas e programas, visando responder às demandas da agenda política
interna, ainda que envolvam escolhas complexas. Já as políticas de Estado são aquelas que
envolvem mais de uma agência do Estado, passando em geral pelo Parlamento ou por
instâncias diversas de discussão, resultando em mudanças de outras normas ou disposições
preexistentes, com incidência em setores mais amplos da sociedade” (Das políticas de governo
à política de Estado: reflexão sobre a atual agenda educacional brasileira, p. 7. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/es/v32n115/v32n115a05.pdf>. Acesso em: 5. jul. 2017).
174

sociopolítico de imenso retrocesso no campo das conquistas


cidadãs no Brasil.384

Aceita-se essa ousada proposta que se sustenta na saúde como um


direito de todos e um dever do Estado (artigo 196 da CR/1988), e a coloca no
centro do interesse social. Todavia, o que aconteceu com essa visão de 1988?
Por que esse sistema, reconhecidamente merecedor de destaque, não tem sido
capaz de alterar significativamente a vida das pessoas que dele precisam? O que
o torna tão importante e ao mesmo tempo tão insignificante aos olhos do governo,
de seus gestores e da sociedade?

Para o enfrentamento desse gigantesco problema é primordial que se


enxerguem as dificuldades presentes, porém ao mesmo tempo há de se remeter
às situações possíveis, a fim de se conseguir romper com as práticas que causam
mal-estar385 no SUS. Esse projeto de país, pautado na justiça, na igualdade e nos
direitos sociais, para que se alcance êxito os interesses do SUS devem avançar
com o intuito de cessar as ações que têm obstaculizado os seus princípios
orientadores (universalidade + integralidade + equidade), bem como aquelas que
pulverizam os recursos que deveriam ser destinados a sua consolidação e
aquelas que anulam a lógica do sistema de saúde pública inscrita na Constituição.

Senão, vejamos a seguir quais as práticas que estão sendo


referendadas pelo Estado brasileiro para a desconstrução do SUS com o auxílio
da legislação

384
GUIMARÃES, R. O mal-estar na saúde pública. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 37, n. 96,
p. 163. jan.-mar. 2013.
385
No Dicionário Houaiss da língua portuguesa, o termo é definido por 1. Sensação desagradável
do organismo; indisposição que chega a configurar doença; incômodo; indisposição. 2. Estado
de inquietação, de aflição mal definida; ansiedade, insatisfação. 3. Situação embaraçosa;
constrangimento.
175

3.7.1 A participação do orçamento público no financiamento de planos privados


para os servidores públicos civis da União

Ao tratar do tema da saúde, a Constituição é muito clara ao afirmar que


“a saúde é um direito de todos e dever do Estado” (artigo 196). Ao mesmo tempo
esclarece que “é livre à iniciativa privada” (artigo 199), porém veda a “destinação
de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com
fins lucrativos” (§ 2.º do artigo 199). O que se evidencia na Constituição é,
portanto, a eleição do SUS como sistema universal, mas o que se vê na prática
são leis que têm corrompido sutilmente esse princípio ao elegerem o mercado
como solução para a saúde.

Vê-se gradativamente um Estado que se privatiza por dentro ao instituir,


como mencionado neste trabalho, práticas que são antis-SUS, tais como: (i) a
segmentação da oferta de atendimento dá margem para o fortalecimento e o
crescimento de planos de saúde; (ii) as deduções no IRPF e IRPJ dos
consumidores de serviços privados de saúde; (iii) o não ressarcimento ao SUS
pelas operadoras de planos privados de saúde; e (iv) a participação do orçamento
público no financiamento de planos privados de saúde para os servidores. No
tocante “à participação do orçamento público no financiamento de planos privados
de saúde para os servidores” é preciso considerar os dados apresentados na
Tabela 8.
176

Tabela 8 – Despesa da União com saúde suplementar e quantidade de servidores ativos e aposentados, com respectivos dependentes,
no período de janeiro de 2015 e dezembro de 2015

DESPESA DA UNIÃO COM SAÚDE SUPLEMENTAR

ATIVO APOSENTADO BENEFICIÁRIO DE PENSÃO DEPENDENTE TOTAL


MÊS
QUANTIDADE DESPESA QUANTIDADE DESPESA QUANTIDADE DESPESA QUANTIDADE DESPESA QUANTIDADE DESPESA

Janeiro 327.916 33.676.585,27 223.956 26.097.563,41 61.512 7.839.557,16 516.219 51.156.809,08 1.129.603 118.770.514,92

Fevereiro 327.431 33.637.315,96 223.769 26.093.528,38 61.525 7.839.482,16 513.589 50.913.468,02 1.126.314 118.483.794,52

Março 331.352 33.899.587,45 224.307 26.102.627,70 61.637 7.843.260,28 516.049 50.991.708,14 1.133.345 118.837.183,57

Abril 331.448 33.910.773,28 222.457 25.877.735,92 61.626 7.841.517,18 513.154 50.703.188,36 1.128.685 118.833.214,74

Maio 334.660 34.231.879,00 222.300 25.863.782,89 61.610 7.838.930,36 514.834 50.845.341,47 1.133.404 118.779.933,72

Junho 333.334 34.094.543,15 222.107 25.850.474,89 61.593 7.836.406,54 511.797 50.551.904,68 1.128.831 118.333.329,26

Julho 331.507 33.913.340,19 220.912 25.718.767,56 61.487 7.823.069,90 508.047 50.185.872,61 1.121.953 117.641.050,26

Agosto 325.888 33.324.432,71 217.955 25.384.973,40 60.980 7.755.448,68 499.051 49.292.553,20 1.103.874 115.757.407,99

Setembro 324.627 33.195.236,99 217.091 25.290.445,34 60.899 7.744.300,01 496.428 49.033.361,39 1.099.045 115.263.343,73

Outubro 331.504 33.908.442,93 219.153 25.530.772,06 61.151 7.774.454,07 503.172 49.695.801,51 1.114.980 116.909.470,57

Novembro 377.893 38.596.974,01 235.480 27.430.007,52 60.874 7.737.520,43 551.114 54.266.754,16 1.225.361 128.031.256,12

Dezembro 378.769 38.668.787,48 234.902 27.362.319,51 60.773 7.724.034,48 549.818 54.123.498,54 1.224.262 127.878.640,01

R$ 1.433.019.140,41

Fonte: Elaboração própria, a partir de extração de dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos – Siape
(Apuração Especial – Serpro), posição fevereiro de 2016.
177

Os dados apresentados na Tabela 8 referem-se apenas aos


servidores públicos civis da União386. Estão excluídos387 os funcionários das
estatais, estaduais, municipais, do Legislativo e do Judiciário.

Com base no total (de R$1.433.019.140,41) destinado pela União em


2015, orienta-se para as seguintes análises: (i) esse montante dividido pela
quantidade (per capita) chega-se ao valor de R$1.170,51, o que
comparativamente é bem superior ao gasto dos Estados por habitante no
mesmo ano, conforme se vê demonstrado na Tabela 9 com os indicadores
estaduais; (ii) a Tabela 9 divulga os 26 Estados e 1 Distrito Federal (DF) com o
volume monetário, entre eles o que mais despendeu recursos próprios (R$
996,47) em saúde correspondeu a 85,13% do valor repassado pelo governo
federal para pagamento de planos privados de servidores públicos. Verifica-se
que a população atendida do DF foi de 2.914.830 habitantes, o que
corresponde a 1.690.568 a mais de atendimentos, o que em termos
percentuais totalizam 58% o número de servidores/dependentes; (iii) por outro
lado, deve-se olhar para a população/habitante do Estado da Bahia que menos
recebeu (R$198,00), pois percentualmente corresponde a 17% do valor
recebido pelos servidores. Por outro lado, analisa-se o número de habitantes
desse Estado (15.203.934), o que corresponde a 13.979.672 a mais de
atendimentos e isso em números percentuais representa 91,95% sobre o
número de servidores/dependentes. Compara-se o gasto anual com subsídios
aos servidores no ano de 2015 (R$1.433.019.140,41) para o pagamento de
planos de saúde particulares com gastos diretos por Programa388 (em âmbito

386
A fundamentação legal para o repasse de verba pública aos planos privados para os
servidores públicos civis da União é: Artigo 230 da Lei n.º 8.112, de 11.12.1990; Decreto n.º
4.978, de 03.02.2004; Portaria Conjunta n.º 625, de 21.12.2012; e SRH/SOF/MP n.º 01, de
29.12.2009, o que em nosso entender contraria o artigo 199, § 2.º, da CR/1988.
387
De acordo com Lígia Bahia: “Os gastos orçamentários com saúde para quem trabalha no
Legislativo e Judiciário variam desde o ressarcimento integral de qualquer despesa, ou
pagamento integral ou parcial de planos privados à organização de redes credenciadas.
Portarias e instruções normativas nos âmbitos do Ministério Público e do Conselho Nacional
de Justiça regulamentam o valor da devolução do plano privado, que pode ser integral ou
80% de limites por faixa etária (mais de mil reais, acima de 59 anos)”. Disponível em:
<https://www.abrasco.org.br/site/2016/04/espelho-meu-artigo-de-ligia-bahia/>. Acesso em: 5
jul. 2016.
388
Gastos destinados pelo Governo Federal em âmbito nacional em 2014 – aplicações diretas:
Programa 2015 – Aperfeiçoamento do SUS. Disponível em: <http://transparencia.
178

nacional) em 2014, mas com aplicações diretas em 2015, como se vê em


recorte feito em três programas: (i) para manutenção e funcionamento das
farmácias populares (R$581.952,51); (ii) alimentação e nutrição para a saúde
(528.899,90); e (iii) atenção à saúde nos serviços ambulatoriais e hospitalares
do Ministério da Saúde (R$652.148.131,07). Do total do gasto com saúde
suplementar para os servidores ativos e aposentados no ano de 2015, que foi
na ordem de R$1.433.019.140,41, subtrai-se a soma (R$659.258.983,48)
desses três programas. Com uma diferença de R$773.760.159,93 que daria
para atuar nas subfunções finalidades da área da saúde:389 (i) saneamento
básico rural (R$120.948.983,20); e (ii) saneamento básico urbano
(R$510.066.375,20), com sobra de R$142.744.801,53 para atuação em outras
ações e serviços de saúde. Esses dados sugerem desigualdades sociais na
cobertura da saúde, ou seja, institucionaliza-se a segmentação do SUS por
meio da sua porta de entrada que são os seus órgãos e seus servidores, além
de indicar um enorme contrassenso por parte dos governos na aplicação do
dinheiro da saúde pública para o financiamento de planos privados aos seus
servidores. Portanto, o patrimônio da sociedade brasileira, que é o SUS, se
esvai pelo próprio poder público, o que no entender deste trabalho é o pior
desserviço que se presta a uma nação.

gov.br/PortalTransparenciaGDProgramaPesquisaAcao.asp?ano=2014&codigoPrograma=20
15&textoPesquisaPrograma=&Pagina=3>. Acesso em: 10 nov.2016.
389
Portal da Transparência. Transferência de recursos por função orçamentária. 2015. Total
destinado à Função Área (SAÚDE). Disponível em: <http://www.
portaldatransparencia.gov.br/PortalFuncoes_Detalhe.asp?Exercicio=2015&codFuncao=10&
Pagina=2>. Acesso em: 10 nov. 2016.
179

Tabela 9 – Indicadores estaduais (recursos próprios) ano: 2015

DESPESA COM RECURSOS


ESTADO POPULAÇÃO PRÓPRIOS EM SAÚDE POR
HABITANTE

ACRE 803.513 687,12

ALAGOAS 3.340.932 235,18

AMAPÁ 766.679 590,76

AMAZONAS 3.938.336 446,88

BAHIA 15.203.934 198,00

CEARÁ 8.904.459 230,56

DISTRITO FEDERAL 2.914.830 996,47

ESPÍRITO SANTO 3.929.911 455,62

GOIÁS 6.610.681 265,79

MARANHÃO 6.9004.241 201,96

MATO-GROSSO 3.265.486 357,13

MATO-GROSSO DO SUL 2.651.235 458,17

MINAS GERAIS 20.869.101 230,37

PARÁ 8.206.923 224,70

PARAÍBA 3.972.202 248,96

PARANÁ 11.163.018 276,80

PERNAMBUCO 9.345.173 285,86

PIAUÍ 3.204.028 259,28

RIO DE JANEIRO 16.550.024 258,63

RIO GRANDE DO NORTE 3.442.175 312,64

RIO GRANDE DO SUL 11.247.972 284,73

RONDÔNIA 1.768.204 405,14

RORAIMA 505.665 794,58

SANTA CATARINA 6.819.190 299,41

SÃO PAULO 44.396.484 316,04

SERGIPE 2.242.937 317,87

TOCANTINS 1.515.126 680,53

Fonte: Elaboração própria, a partir de extração de dados do Siops/Desid/SE (maio/2016).

Ao se utilizarem os números da Tabela 9 e compará-los com os


números da Tabela 8, causa mal-estar, e agora empresta-se um dos seus
sentidos que é o “constrangimento” e a explicação segue adiante. Nesse caso,
180

refere-se especificamente à participação do orçamento público,390 no


financiamento de planos privados para os servidores públicos, como se vê na
Tabela 8, conforme dados obtidos por meio do Serviço de Acesso à Informação
(SIC).391

De fato, se a análise for isolada do montante de repasse para os


planos de saúde suplementar no valor de R$1.433 bilhão/ano 2015 para
atendimento de 1.224.262 servidores/dependentes, pode até não representar
muita coisa.

Entretanto, o que se propõe é a reflexão sobre práticas obscuras e de


pouca clareza em nosso sistema público de saúde, cujo objetivo principal é
distorcer o SUS e enfraquecer a Constituição. Impõe sutil e silenciosamente
dentro da própria administração pública o golpe contra o único Plano de Estado
referendado pela Carta Magna, que é o SUS. Compele sutilmente os
servidores públicos para não aceitá-lo e reivindicar por meio dos planos
privados outro modelo de saúde. Assim, a melhor proposta de saúde é
rejeitada entre os seus e o processo difamatório da saúde pública acontece na
sua própria casa, e contra essa propaganda é difícil subsistir outra com
tamanha eficácia. Como exigir que outros possam valorizar o sistema, se na
própria casa a prática é contraditória?

Lígia Bahia discorre sobre outras ocorrências extravagantes, mas


amparadas pelas leis, que contribuem para a transformação do público em
privado, um exemplo que se aponta:

[...] Em diversas negociações coletivas de servidores públicos o


aumento nos valores do reembolso de planos privados de

390
De acordo com o Ministério do Planejamento, Orçamento Público, é um instrumento de
planejamento governamental em que constam as despesas da administração pública para
um ano, em equilíbrio com a arrecadação das receitas previstas. É o documento no qual o
governo reúne todas as receitas arrecadadas e programa o que de fato vai ser feito com
esses recursos. É onde alocam os recursos destinados a hospitais, manutenção das
estradas, construção de escolas, pagamento de professores. É no orçamento que estão
previstos todos os recursos arrecadados e para onde esses recursos serão destinados.
391
De acordo com consulta feita ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG),
em 08.03.2016 e respondido em 08.04.2016. Protocolo sob o n.º 23480003808201664.
181

saúde foi muito superior ao dos salários. O governo federal


prevê o pagamento em 2016 de R$ 145 (aumento de 22,6%)
para cada funcionário da administração direta e seus
dependentes. [...]392

Diante disso, o que se vê é a drenagem dos recursos que são


públicos, sendo levados pelo setor privado pela porta da frente e, como
demonstrado com o auxílio da legislação,393 de seus agentes, em meio à
permissão que o interesse público esteja abaixo e se submeta às regras que a
ele não devam ser aplicadas e que contraria todo um arcabouço normativo
denso e bem construído sob o ponto de vista dos direitos sociais, a fim de que
diante desse caos seja urgente a regulamentação entre o público e o privado.

O que se propõe é que o sistema privado seja efetivamente


complementar e autônomo, e não dependente dos recursos públicos, pois, se
o Estado continuar subsidiando com dinheiro público planos privados, o sentido
da saúde como patrimônio das pessoas será desestabilizado pelo próprio
Estado, que tem o dever de garantir a saúde por meio das “ações e serviços
para a sua promoção, proteção e recuperação” (artigo 2.º, § 2.º, da Lei n.º
8.080/1990), como forma para se criar um sistema sustentável de sociedade.

Por fim, ressalte-se o artigo 23, II, da CR/1988, que estabelece


competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios para “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia
das pessoas portadoras de deficiência”. Com esse modelo de organização e
competência, os entes federativos possuem atribuições voltadas, inclusive,
para atenção à saúde. Nesse contexto organizacional do sistema de saúde
brasileiro, a mesma Constituição no artigo 198, I, esclarece que o SUS será
formado pela soma dos subsistemas de saúde (federal + estadual + municipais
e do Distrito Federal), pois cada um deles possui o seu sistema de saúde com

392
BAHIA, Lígia. Espelho meu. Disponível em: <https://www.abrasco.org.br/site/2016/
04/espelho-meu-artigo-de-ligia-bahia/>. Acesso em: 5 jul. 2016.
393
Sobre o repasse de verba pública aos planos privados para os servidores públicos civis da
União: artigo 230 da Lei n.º 8112, de 11 de dezembro de 1990; Decreto n.º 4.978, de 3 de
fevereiro de 2004. Portaria Conjunta n.º 625, de 21 de dezembro de 2012; e SRH/SOF/MP
n.º 01, de 29 de dezembro de 2009. Em nosso entender, contraria o artigo 199, § 2.º, da
CR/1988.
182

direção única em cada esfera de governo, com funcionamento harmônico e


articulado entre cada um deles e de acordo com a Constituição. Portanto, não
há como justificar tamanha perversão criada pelos poderes constituídos e pelos
entes públicos para com a Constituição. É claro que o grande desafio que se
impõe ao SUS passa pelo seu financiamento que é insuficiente e não tem
como atender um sistema universal.

O Instituto de Direito Sanitário (Idisa)394 desenvolveu estudos


relativos a gasto total com saúde no Brasil envolvendo os setores públicos e
privados. No ano de 2014 foram despendidos R$448,1 bilhões com saúde no
País, o que equivale a 8,1% do PIB desse período, de acordo com dados do
IBGE.395

No entanto, desse total, 48,3% correspondem a gastos públicos com


ações e serviços de saúde, conforme os critérios estabelecidos pela LC n.º
141/2013, o que se aplica a R$216,2 bilhões de despesas públicas com saúde
e isso corresponde a 3,9% do PIB, distribuído em 1,7% referente à União, 1,0%
aos Estados e 1,2% aos municípios. Constata-se, porém, que a parcela
destinada às despesas privadas é superior aos gastos públicos, o que
representa 51,7% do total,396 muito pouco para que o Brasil tenha,
efetivamente, um sistema de cobertura universal e atendimento integral. No
entanto, esse caos no financiamento da saúde pública não é desculpa para que
o próprio setor público incentive práticas que desconstitucionalizem o SUS,
pulverizem os seus recursos e o enfraqueçam.

Registra-se que é ingenuidade supor que a ação isolada do


orçamento público no financiamento de planos privados para os servidores

394
Disponível em: <http://www.idisa.org.br/img/File/Domingueira%20da%20Sa%C3%BAde%
20-%20008%202015%20-%2024%2005%202015.pdf>. Acesso em: 13 jul. 2016.
395
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/pib/defaultcnt.shtm>.
Acesso em: 13 jul. 2016.
396
LEVI, Maria Luiza; MENDES, Áquilas. Gasto total com saúde no Brasil: a importância e o
esforço de medi-lo. Domingueira da Saúde, Campinas: Idisa, 24 maio 2015. Disponível em:
<http://www.idisa.org.br/img/File/Domingueira%20da%20Sa%C3%BAde%20-
%20008%202015%20-%2024%2005%202015.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2016.
183

públicos será a redentora do SUS, mas que é absolutamente necessário mudar


essa postura administrativa, e com o aval da legislação, que tem sido
desqualificadora e pulverizadora dos recursos públicos dentro do próprio setor
público, o que é pior. Também é imprescindível que, simultaneamente, sejam
assegurados mais recursos para o sistema público, com o fim de garantir
universalidade + integralidade e equidade na atenção à saúde de todos e de
cada um.

397
3.8 A renúncia fiscal

Em todo o trabalho tem sido enfatizado que o Estado brasileiro, a


partir da CR/1988, definiu que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”.
Formalmente, na letra da lei, todo cidadão possui esse direito por meio do
SUS, independentemente da sua capacidade de pagamento e de saúde, mas
de suas necessidades. Ou seja, a partir do primado da cidadania em
detrimento do poder econômico.

Nos últimos 28 anos, o Estado brasileiro deveria ter construído, por


meio de políticas públicas responsáveis, condições (ao menos mínimas) de
bem-estar para a população e assim cumprir sua função de diminuir as
desigualdades sociais. Dessa forma, em consonância com os esforços
necessários para fortalecer o SUS, este foi instituído como política de Estado,
não de governo. No entanto, o que se viu foi exatamente o contrário: um
sistema dual (saúde como direito – artigo 196 e livre à iniciativa – artigo 199),
como dito anteriormente, que tem provocado outra grande polêmica, a de que
os planos de saúde têm contado com pesados incentivos governamentais398 e
o setor público da saúde a cada dia tem diminuído em importância para o
próprio governo, para os gestores e para a sociedade. Desse modo, não tem

397
Representa recursos que o Estado deixa de recolher por meio do IRPF e IRPJ, com gastos
com saúde (médica e odontológica) pelas famílias ou pelos empregadores com os seus
empregados.
398
SANTOS, Nelson Rodrigues. A regulamentação da Emenda Constitucional n.º 29:
dificuldades e perspectivas. ROMERO, Luiz Carlos; DELDUQUE, Maria Célia (Org.).
Estudos de direito sanitário: a produção normativa e saúde. Brasília: Senado Federal,
Subsecretaria de Edições Técnicas, 2011. p. 74.
184

sido fácil para os defensores do SUS conviver com essa contradição,399 e muito
menos para a população que está doente e carece de um sistema de saúde.
Carlos Octávio Ocké-Reis, assim manifestou-se:

A renúncia merece mais atenção das autoridades


governamentais, caso se queira, a um só tempo, consolidar o
SUS e reduzir o gasto das famílias e dos empregadores com
bens e serviços privados. No contexto do subfinanciamento
público, a contradição central da renúncia fiscal associada aos
gastos com planos de saúde reside em diminuir os gastos dos
estratos superiores de renda, ao mesmo tempo em que
patrocina atividade econômica altamente lucrativa, em
detrimento de recursos financeiros que poderiam ser alocados
para ampliar programas de caráter preventivo e melhorar a
qualidade dos serviços especializados, fundamentais para
consolidação do SUS.400

Assim, sobre a renúncia fiscal401 do Imposto de Renda da Pessoa


Física (IRPF) e Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) praticada para
empresas e beneficiários de planos de saúde não é aplicada qualquer
compensação orçamentária, não há teto ou qualquer tipo de controle sobre ela,
diferente das desonerações tributárias, sobre as quais o governo pode exercer
controle. Havendo obrigações para com a Receita Federal Brasileira (RFB),
bem como despesas médicas realizadas com saúde, as pessoas podem
deduzir da renda tributável, sem haver qualquer limite para esse abatimento. O
que é totalmente distinto da área da educação, em que há um teto a ser
aplicado. De igual maneira, a renúncia fiscal se aplica ao empregador, quando

399
FAVERET FILHO, Paulo; OLIVEIRA, Pedro Jorge de. A universalização excludente:
reflexões sobre as tendências do sistema de saúde. Dados: revista de ciências sociais, v.
33, n. 2, p. 257-283, 1990.
400
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. Renúncia de arrecadação fiscal em saúde no Brasil: eliminar
ou focalizar. Disponível em: http://cebes.org.br/2014/12/carlos-ocke-escreve-sobre-gasto-
tributario-em-saude/>. Acesso em: 10 jul. 2016.
401
A Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu artigo 14, § 1.º, enumera as várias situações em
que se verifica a “renúncia de receita”; são elas: a anistia, a remissão, o subsídio, o crédito
presumido, a concessão de isenção em caráter não geral, a alteração de alíquota ou a
modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou
contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.
185

ele fornece assistência de saúde para os seus empregados e, “uma vez


considerada despesa operacional, pode ser abatida do lucro tributável”.402

De acordo com Carlos Octávio Ocké-Reis, o mercado de plano de


saúde é proveniente da decomposição dos recursos das famílias
(trabalhadores), empregadores e o Estado (via renúncia fiscal). Este último
participa indiretamente do faturamento desse mercado. Entretanto, segundo
ele, “não está claro para os analistas de políticas de saúde qual é a
funcionalidade desta renúncia, embora, na literatura especializada, esse gasto
possa, em tese, atender aos seguintes objetivos governamentais”:403 (i)
promover benefício fiscal; (ii) reestruturar padrão de competição do mercado
(questão regulatória); (iii) patrocinar o consumo de planos privados de saúde;
(iv) reduzir filas de espera do setor público; (v) diminuir carga tributária dos
contribuintes que enfrentam gastos catastróficos em saúde, tendo a Renúncia
Fiscal como Política Pública, a saber, como meios de buscar os objetivos
supraelencados.

O direito à saúde passará sempre pelos princípios orientadores do


SUS (universalidade + integralidade + equidade), pois consideram-se como
objetivos para uma cobertura universal da saúde. No entanto, eles não podem
ser garantidos se como estratégia de funcionamento o sistema público fizer o
que se enxerga hoje na prática, ou seja, a alocação de recursos públicos para
o setor privado, nas suas mais diversas formas, seja por meio de subsídios
(diretos e indiretos) como isenção tributária a hospitais privados terciários
credenciados por operadoras de planos privados de assistência à saúde; das
deduções no IRPF e IRPJ dos consumidores de serviços privados de saúde;
seja pelo não ressarcimento ao SUS pelas operadoras de planos privados de
saúde; e pela participação do orçamento público no financiamento de planos
privados de saúde para os servidores.

402
OCKÉ-REIS Carlos Octávio; SANTOS, Fausto Pereira. Mensuração dos gastos tributários
em saúde. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/
PDFs/TDs/td_1637.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2016.
403
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. Renúncia de arrecadação fiscal em saúde no Brasil: eliminar,
reduzir ou focalizar? Brasil em desenvolvimento. Estado, Planejamento e Políticas Públicas.
Brasília: Ipea, 2014. 2 v., cap. 12, p. 268-270.
186

No tocante à renúncia fiscal, os números que serão utilizados na


Tabela 10, para reflexão, se referem à recente publicação,404 desenvolvida por
Carlos Octávio Ocké-Reis (IPEA) e Felipe Nogueira Gama (RFB), em que se
estimou o Gasto Tributário em Saúde, calculado com base em dados efetivos
dos anos de 2003 a 2013, com a utilização do volume de recursos que o
Estado brasileiro deixou de recolher, a partir das pessoas físicas (declaração
de IRPF) e dos empregadores, ou seja (declaração de IRPJ), por parte da
indústria farmacêutica (remédios) e dos hospitais filantrópicos. Diante da
realidade, a mensuração da renúncia de arrecadação fiscal é necessária para a
aplicação do orçamento público mais transparente, uma vez que se estima
aquilo que o Estado deixa efetivamente de arrecadar, e não apenas sua
projeção orçamentária.405

Foi apurado nesta pesquisa406 que 49.730.405 pessoas possuem


planos privados de assistência à saúde, o significa que aproximadamente 25%
de brasileiros utilizam o sistema privado de saúde. A grande maioria da
população brasileira não dispõe de planos de saúde privados, ficando sob a
cobertura do SUS, que, como se verifica ao longo deste trabalho, fica
enormemente prejudicado na sua capacidade de financiamento, conforme
tratado neste capítulo, além, é claro, de o Estado brasileiro subsidiar a
população que dispõe dos referidos planos via renúncia fiscal.

Como visto, o SUS, desde a sua instalação, tem enfrentado


problemas para o seu financiamento, o que comprometeu a garantia
constitucional ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação. Na literatura pesquisada é unânime ao
afirmar que os recursos públicos sempre foram insuficientes. Daí falar em
sistema universal, que garanta o acesso e reduza as diferenças regionais,

404
GAMA, Filipe Nogueira da; ÓCKE-REIS, Carlos Octávio. Radiografia do gasto tributário em
saúde. Nota Técnica, Brasília: Ipea, n. 19, maio 2016.
405
Idem, p. 12.
406
O percentual de 25% foi mencionado com base no cálculo realizado pela pesquisadora, no
site do Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE) de acordo com projeção da população do
Brasil que foi de 206.062.749, às 17h0036, de 22.06.2016. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/>. Acesso em: 22 jun. 2016.
187

passa por aumento do volume de recursos, bem como atenção à saúde


primária e secundária.407

Áquilas Mendes e José Alexandre Buso Weiller propõem que, para se


enfrentar a insuficiência de recursos no sistema público:

[...] deveríamos nos preocupar com a persistência dos


incentivos fiscais ao setor privado de saúde, o que se traduz no
subsídio implícito nas deduções do Imposto de Renda das
despesas com planos privados de saúde e/ou com despesas
particulares com médicos, hospitais e exames. [...]408

Portanto, pode-se inferir que uma sociedade que apresenta


desigualdades de bem-estar e de renda é estimulada ao consumo de mercado
de planos de saúde, e esse mesmo mercado torna-se dependente desse
subsídio para se reproduzir economicamente. Vê-se que por meio desses
subsídios há uma alocação para a população que tem maior poder aquisitivo,
criando um problema de justiça distributiva. Ou seja, o sistema esquece a
equidade e vira-se para iniquidade. Basta analisar os números apresentados
na Tabela 10 para identificar visivelmente essa iniquidade. As pessoas físicas,
ao preencherem o seu imposto de renda, podem deduzir os gastos com planos
de saúde, médicos, dentistas, entre outros, e, no caso das pessoas jurídicas,
que fornecem assistência à saúde a seus funcionários, considerando esse
gasto como despesa operacional, podem abater do lucro tributável. Como se
vê, não há teto para o abatimento de gastos com saúde. Muito diferente do que
acontece com a área da educação, cujo limite foi de R$3.561,50409 no exercício
de 2016, ano-calendário de 2015.

407
Entende-se como saúde primária a atenção básica ou atenção primária, conhecida como a
porta de entrada dos usuários nos sistemas de saúde. É o atendimento inicial. Tem como
objetivo orientar sobre a prevenção de doenças e direcionar os mais graves para níveis de
atendimento superiores em complexidade. Saúde secundária é formada pelos serviços em
nível ambulatorial e hospitalar. Fica entre a atenção primária e a terciária (que é de alta
complexidade).
408
MENDES, Aquilas; WEILLER, José Alexandre Buso. Renúncia fiscal (gasto tributário) em
saúde: repercussões sobre o financiamento do SUS. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39,
n. 105, p. 503, abr.-jun. 2015.
409
Perguntas e respostas (Imposto sobre a Renda): no exercício de 2016, ano-calendário de
2015. Disponível em: <http://idg.receita.fazenda.gov.br/interface/cidadao/irpf/2016/
perguntao/irpf2016perguntao.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2016.
188

Dessarte, as pessoas que têm renda são incentivadas a esse tipo de


consumo, o que comprova que esse tipo de incentivo é perverso para a saúde
pública:

Desse modo, os brasileiros que têm renda para gastar no


mercado da saúde são incentivados a este consumo, com
consequências negativas para a saúde pública, pois essa
dedução diminui o montante de recursos arrecadados e,
consequentemente, reduz a parcela que iria para o SUS. Ao
fim e ao cabo, a grande maioria da população que não tem
recursos para gastar com saúde privada e que paga impostos
financia indiretamente os gastos privados com saúde de uma
parcela minoritária da sociedade.410

411
Tabela 10 – Participação percentual, gasto tributário em saúde: anos 2003-2013

GASTO TRIBUTÁRIO (R$ BILHÕES)

GASTO TRIBUTÁRIO GASTO TRIBUTÁRIO


ANO %
TOTAL EM SAÚDE

2003 38.857 8.641 22.2


2004 49.800 10.515 21.1
2005 56.429 11.426 20.2
2006 81.240 14.894 18.3
2007 102.673 15.148 14.8
2008 114.755 17.050 14.9
2009 116.098 17.229 14.8
2010 135.861 18.376 13.5
2011 152.406 20.042 13.2
2012 182.410 23.039 12.6
2013 225.630 25.363 11.2

Fonte: Receita Federal do Brasil (RFB) Centro de Estudos Aduaneiros e Tributários (Ceat)
Elaboração: Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (DIEST)/Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada/IPEA (maio/2016).

410
Tese do Cebes para a 15.ª Conferência Nacional de Saúde. Realizada em Brasília/DF.
Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2015/08ago05_Cebes_
divulga_tese_15CNS.html>. Acesso em: 23 jul. 2016.
411
O Ipea lançou nesta terça-feira, dia 31 de maio de 2016, em Brasília, a Nota
Técnica Radiografia do Gasto Tributário em Saúde 2003-2013. É o mais recente estudo no
País sobre o gasto tributário em saúde (2003-2013). Disponível em: <http://www.
ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=27856>. Acesso em: 10
ago. 2016.
189

Observa-se na Tabela 10, no ano de 2003, que o maior gasto


tributário em saúde responde por 22,2%. Carlos Octávio Ocké-Reis diz que
essa redução é explicada pela ampliação das desonerações fiscais e
previdenciárias que foram promovidas pelo federal, a partir de 2006, e que vão
ganhar impulso, no ano de 2010, motivadas por três fatores: (i) o alargamento
do Simples Nacional; (ii) a desoneração da cesta básica; e a (iii) criação de
diversos regimes especiais de tributação.412

Na Tabela 11, demonstra-se que as pessoas físicas (famílias e


trabalhadores) foram, segundo Carlos Octávio Ocké-Reis, as mais beneficiadas
nessa distribuição do gasto tributário em saúde. Basta verificar os gastos no
ano de 2013 (37,8%) e os hospitais filantrópicos, no ano de 2003, também
foram privilegiados (30,2%). Observa-se uma queda, no ano seguinte, mas há
crescimento nos anos 2010-2013. Quanto às pessoas jurídicas, houve recuo
(2006), mas crescimento em 2010 e seguintes.

Nesse quadro, pôde-se verificar que o montante da renúncia


fiscal (parte de tributos que o Estado deixa de arrecadar) está associado aos
gastos em saúde de pessoas físicas e de empregadores (com seus
empregados). Para Carlos Octávio Ocké-Reis isso acontece porque o Estado
dá tratamento ambíguo às políticas na área da saúde. De um lado, está à
implantação de um modelo que se baseia nas experiências do Estado de Bem-
Estar Social europeu e, de outro, segue-se o modelo liberal estadunidense,
cujas fontes se baseiam nos tax expenditures (gastos tributários) e nos
employment-benefits (benefícios).413

412
GAMA, Filipe Nogueira da; ÓCKE-REIS, Carlos Octávio. Radiografia do gasto tributário em
saúde cit., p. 21.
413
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS: o desafio de ser único cit., p. 146.
190

Tabela 11 – Distribuição percentual do gasto tributário em saúde (2003-2013)

MEDICAMENTOS
HOSPITAIS
IRPF IRPJ
E PRODUTOS FILANTRÓPICOS
QUÍMICOS
ANO % % % % TOTAL %

R$ bilhões R$ bilhões R$ bilhões


R$ bilhões

2003 3.745 43.3 1.162 13.4 1.122 13.0 2.613 30.2 8.641 100.0
2004 4.558 43.4 1.309 12.4 1.477 14.0 3.171 30.2 10.515 100.0
2005 4.975 43.5 1.503 13.2 1.732 15.2 3.215 28.1 11.426 100.0
2006 5.776 38.8 1.721 11.6 3.958 26.6 3.439 23.1 14.894 100.0
2007 6.507 43.0 2.102 13.9 2.876 19.0 3.664 24.2 15.148 100.0
2008 7.521 44.1 2.181 12.8 3.092 18.1 4.255 25.0 17.050 100.0
2009 6.794 39.4 2.277 13.2 3.456 20.1 4.703 27.3 17.229 100.0
2010 6.813 37.4 2.657 14.5 3.614 19.7 5.293 28.8 18.376 100.0
2011 7.716 38.5 2.937 14.7 3.576 17.8 5.813 29.0 20.042 100.0
2012 8.762 38.0 3.345 14.5 4.188 18.2 6.744 29.3 23.039 100.0
2013 9.596 37.8 4.048 16.0 4.338 17.1 7.381 29.1 25.363 100.0

Fonte: Receita Federal do Brasil (RFB) Centro de Estudos Aduaneiros e Tributários (CEAT). Elaboração: Diretoria de Estudos e Políticas do Estado das Instituições e da Democracia
(DIEST)/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
191

Afinal, qual seria a proposta mais adequada para a renúncia fiscal?


Haveria impacto para o setor público se a renúncia fiscal deixasse de existir? Diante
desta pesquisa para se compreender o direito à saúde na Constituição brasileira:
complexidades de uma relação público-privada no SUS, pode-se ver como possível
caminho para a renúncia fiscal, se houvesse: (i) mecanismos mais efetivos de
controle por parte da Agência Nacional de Saúde (ANS), com esses planos privados
de assistência à saúde; (ii) alocação dos recursos públicos para o setor público, para
que este possa prover meios para a atenção básica ou primária da saúde. Ademais,
prover meios para que a atenção secundária seja incentivada e mais bem utilizada,
ambas como recursos possíveis para atendimento a todas as pessoas.

Evidentemente, a mudança de posição do recurso será bem mais utilizada


pela população se estiver no sistema público que, dessa forma, poderá: (i) ampliar o
acesso ao atendimento a todas as pessoas; (ii) funcionar melhor possibilitando
atendimento com mais qualidade; (iii) tornar-se polo de atração para clientela da
medicina privada; (iv) radicalizar o direito social à saúde; e (v) liberar os gastos das
famílias para o consumo de bens de consumo, por exemplo: moradia, alimentos ou
outros bens necessários a uma melhor qualidade de vida.

Por conseguinte, haverá um aumento do bem-estar da população,


transformando, assim, a promessa constitucional para um sistema de saúde
universal em uma realidade mais próxima de alcançar a (o) cidadã (o) brasileira(o).
192

CAPÍTULO 4
PROPOSIÇÕES PARA UM DIREITO À SAÚDE DE ACORDO COM A
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

4.1 O direito à saúde com fundamento na teoria da efetividade

No desenvolvimento do tema O direito à saúde na Constituição brasileira:


complexidades de uma relação público-privada no SUS, sempre se procurou
demonstrar que a saúde é assumida na Constituição como direito, circunscrita no
artigo 196, mas o que se ressalta nesse direito são os deveres do Estado. Portanto,
de forma muito racional entende-se que o Estado brasileiro deve prover meios para
que esse direito se torne alcançável por todas as pessoas, pela razão de estar
contido no documento maior deste país. Contudo, de que forma esse direito
universal tem encontrado entraves para a sua concretização? Nesta parte do
trabalho, procura-se apresentar, a partir do problema, algumas propostas que se
apresentam diante das demandas na saúde. Antes, porém, retomaremos o
referencial teórico de Konrad Hesse e André Ramos Tavares sobre a superioridade
absoluta ou supremacia da Constituição, pois a base para as questões da saúde
pública no Brasil começam, passam e encontram respostas na CR/1988.

Konrad Hesse conta que Humboldt,414 ao tratar em sua monografia sobre a


Constituição alemã, em 1813, ponderou que toda Constituição, ainda que em forma
de construto teórico, deve sempre encontrar razões para a sua existência e
desenvolvimento no tempo e nas circunstâncias. Logo, não se tornará abstrata e
teórica, mas carregada de significado, imprescindível “germe de sua força vital”, o
que, em outras palavras, se converte em força ativa,

[...] se fizerem presentes, na consciência geral – particularmente, na


consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –,
não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade
de Constituição (Wille zur Verfassung).

414
Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand Von Humboldt escreveu a monografia Denkschrift über
dic Deutsche Verfassung (1813) sobre a Constituição alemã. Agradeço ao amigo Guido Zaniolo
pela leitura do texto em alemão. Dessa forma, pude compreender melhor a força impulsionadora
da Constituição.
193

Tal vontade origina-se de três vertentes:

(i) compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa


inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e
disforme; (ii) na compreensão de que essa ordem constituída é mais
do que uma ordem legitimada pelos fatos; e (iii) na consciência de
que ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa
ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana.415

Daí Konrad Hesse propõe que, para o desenvolvimento da Força


Normativa da Constituição, há que depender não só de seu conteúdo, mas
especialmente de sua práxis, em que cabe a cada um dos partícipes da vida
constitucional (todos) dar conformação à vida do Estado, assumir com
responsabilidade o seu papel. Assim, a Constituição (positivada de um país) é
considerada um conjunto normativo fundamental, adquirindo, por isso, cada um de
seus preceitos a característica da superioridade absoluta da Carta Magna em
relação às demais normas de um ordenamento jurídico estatal.416 Registre-se o que
em André Ramos Tavares muito bem observou que “todas as normas
constitucionais possuem força normativa, o que implica reconhecer-lhes,
necessariamente, alguma sorte de eficácia, sempre”.417 Há, pois, nesta tese um
fundamento de radicalidade à Constituição, que a torna apta para atingir o seu
desígnio inicial, como definidora de direitos, o que significa, no sentir deste trabalho,
o desempenho concreto para que ela seja atuante às situações que se apresentam
na realidade social.

Reconhece-se que a força normativa da Constituição é indispensável para


a manutenção dos direitos fundamentais. Dessarte, pode-se afirmar que, para o
tema proposto, a Constituição o reservou como direito, isto é, facultou a cada
pessoa torná-lo como bem jurídico exigível. De acordo com Konrad Hesse, “direitos
fundamentais não podem existir sem deveres”.418 Por meio dessa premissa,
entende-se que compete ao Estado brasileiro, conforme disposto no artigo 23, II, da

415
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição cit., p. 17-20.
416
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 116.
417
Idem, p. 191.
418
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição cit., p. 21.
194

CR/1988, “cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e da garantia das


pessoas portadoras de deficiência”.419

Tal competência é disposta de forma comum a todos os entes federativos,


a fim de que o modelo organizacional do sistema de saúde brasileiro, o SUS,
proposto constitucionalmente, seja efetivado. Apresentam-se, portanto, algumas
modestas proposições que se entendem possíveis de se avançar e que podem ter
início a partir de um olhar constitucional, tais como:

4.2 Primeira proposição: mudanças no sentido de compreensão da


universalidade de acesso. As Redes de Atenção à Saúde (RAS)

Em partes que precederam este capítulo tratou-se sobre um dos princípios


orientadores do SUS – a universalidade de acesso. Procurou-se impingir um olhar
para a universalidade, como possibilidade de atingir todas as pessoas, que por meio
dele se reconhece que as ações e os serviços de saúde pública devem ser
prestados indistintamente de condição social ou de qualquer outro pré-requisito que
possa exigir uma contraprestação. Compreende-se que a noção de todos, que se
carrega na universalidade, é inerente ao cidadão, que por sua vez faz parte da
cidadania420 e que na constituição do País em Estado Democrático de Direito é um
dos seus fundamentos (artigo 1.º, II, da CR/1988). Nesse sentido, o acesso a esse
direito social deve ser construído com a promoção de várias formas possíveis. Sabe-
se, porém, que as necessidades de saúde das pessoas são as mais diversas e os

419
Quando se utiliza o termo “portadores”, implica-se algo que se “porta”, de que é possível se
desvencilhar tão logo se queira ou se chegue a um destino. Hoje, a forma mais adequada passou
a ser “pessoas com deficiência”, que busca valorizar a pessoa.
420
Thomas Humprey Marshall (1950) atribui a conquista da cidadania à universalização progressiva
de três tipos de direito: (i) os direitos civis (todos são cidadãos livres) foram os primeiros a serem
conquistados; surgiram no século XVIII e visavam garantir os direitos relativos à vida, à segurança
e às liberdades individuais, sobretudo o direito à propriedade, aos contratos e à justiça; (ii) os
direitos políticos (todos devem eleger quem os representa no governo e parlamento), século
XIX, garantindo aos cidadãos de um determinado Estado a participação livre na atividade política,
seja como membros de organismos do poder político, seja como simples eleitores de
representantes nesses organismos; e (iii) os direitos sociais, que corresponderiam à terceira
onda de expansão dos direitos, tendo se configurado no século XX. Os direitos sociais respondem
às necessidades humanas básicas, assegurando o direito a um bem-estar econômico mínimo,
relacionam-se principalmente com o direito a salário, saúde, educação, habitação e alimentação.
Para uma leitura sobre cidadania, ver SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. A
política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Campos, 1979.
195

recursos para provê-las, nisso todos concordam, são escassos. Sendo assim, é
preciso estabelecer prioridades a fim de que aquilo que se busca universalizar não
seja algo abstrato, mas possível e alcançável. O que se propõe neste trabalho,
portanto, não é algo inédito, mas trazido pelo Texto Constitucional e acompanhado
pela Lei do SUS.

A primeira proposta (redes de atenção à saúde) tem a sua definição no


artigo 198: “as ações e serviços públicos integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único [...]”. Segundo André Médici, em nível
mundial, tem-se visto eficiência para aumentar resolutividade dos serviços de saúde
pela criação de redes integradas de saúde,421 denominada neste trabalho de Rede
de Atenção à Saúde.422 Inicialmente, apresenta-se o conceito dado à Rede de
Atenção à Saúde (RAS) pelo MS: [...] “são arranjos organizativos de ações e
serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio
de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade
do cuidado”.423

Outro conceito trazido é de Eugênio Vilaça Mendes considerado mais


completo e que emprestará ideias a este trabalho:

As redes de atenção à saúde são organizações poliárquicas de


conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão
única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e
interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e
integral a determinada população, coordenada pela atenção primária
à saúde prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo,
com a qualidade certa e de forma humanizada – e com
responsabilidades sanitárias e econômicas por esta população.424

Esse tipo de ação e serviço exige como compromisso inicial a atenção


básica da população que será atendida, no entanto, sem perder de vista as

421
MÉDICI, André. Propostas para melhorar a cobertura, a eficiência e a qualidade no setor saúde.
Disponível em: <http://www.schwartzman.org.br/simon/agenda1.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2016.
422
Portaria n.º 4.279, de 30.12.2010, que estabeleceu diretrizes para a sua organização.
423
Portaria n.º 4.279, de 30.12.2010. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/
gm/2010/prt4279_30_12_2010.html>. Acesso em: 16 jul. 2016.
424
MENDES, Eugênio Vilaça. As redes de atenção à saúde. Belo Horizonte: Escola de Saúde
Pública de Minas Gerais, 2009.
196

diferenças existentes encontradas no País, que muito têm a ver com uma das
diretrizes do SUS denominada regionalização. A caracterização da população é
peça fundamental para o sucesso desse empreendimento humano, que exige definir
qual será a região, quais os seus limites geográficos, bem como quais as ações e
serviços que poderão ser ali ofertados e que serão essenciais para o tipo de pacto
que se formará entre o Estado e o Município, dando suporte principalmente para as
políticas públicas em que os recursos são escassos e os problemas são
complexos.425

O olhar deve estar voltado para a população, pois ela deve estar no centro
das ações da Rede de Atenção à Saúde (RAS), de modo que o SUS terá como
definir quais as populações que estão nos territórios singulares e organizados
socialmente em famílias, para depois cadastrá-las e registrá-las em subpopulações
por riscos sociossanitários, que serão conhecidas nos consistentes sistemas de
informações da RAS-SUS, por meio da implantação universal do cartão SUS, que
conterá todas as informações demográficas, epidemiológicas, sociais e de utilização
de serviços que são (foram) realizados.

Entretanto, esse conhecimento não é tão simples, daí a importância da


informatização que auxiliará nas seguintes fases: (i) o processo de territorialização;
(ii) o cadastramento das famílias; (iii) a classificação dessas famílias por riscos
sociossanitários; (iv) a vinculação dessas famílias a Atenção Primária à Saúde 426 e à

425
MENDES, Eugênio Vilaça. As redes de atenção à saúde cit., p. 78-79.
426
A Conferência de Alma-Ata, promovida pela OMS, aprovou, por unanimidade, como meta de seus
países-membros a “saúde para todos no ano 2000”, tendo como definição de atenção primária
“uma atenção à saúde essencial, baseada em métodos e tecnologias práticas, cientificamente
comprovadas e socialmente aceitáveis, cujo acesso seja garantido a todas as pessoas e famílias
da comunidade mediante sua plena participação, a um custo que a comunidade e o país possam
suportar, em todas as etapas de seu desenvolvimento, com espírito de autorresponsabilidade e
autodeterminação. A atenção primária é parte integrante tanto do sistema nacional de saúde, do
qual constitui-se como função central e núcleo principal, como do desenvolvimento social e
econômico global da comunidade. Representa o primeiro nível de contato dos indivíduos, da
família e da comunidade com o sistema de saúde, levando a atenção à saúde o mais próximo
possível de onde residem e trabalham as pessoas, constituindo o primeiro elemento de um
processo permanente de assistência sanitária” (OMS, 1979).
197

Equipe do Programa Saúde da Família; (v) a identificação das subpopulações com


fatores de risco.427

Tem-se por certo que de um bom alicerce se constrói um bom edifício. Por
isso, as RAS servem, se bem estruturadas, como canal para uma política pública
sólida e de qualidade para atenção à saúde secundária428 (média complexidade) e
terciária429 (alta complexidade), ou seja, aqueles atendimentos especializados, que
são na atualidade uma das fragilidades do sistema público. Ressalte-se que
possuirão a mesma dinâmica sob o ponto de vista da territorialização, das RAS, mas
com uma diferenciação que, segundo Eugênio Vilaça Mendes:

[...] reside por suas respectivas densidades tecnológicas, sendo os


pontos de atenção terciária mais densos tecnologicamente que os
pontos de atenção secundária e, por essa razão, tendem a ser mais
concentrados espacialmente.430

Como são organizações poliárquicas de conjunto de serviços de saúde, a


preocupação é com o todo, uma vez que todos são igualmente importantes, a fim de
se atingirem os objetivos da RAS, que são a promoção, a integração sistêmica, de
ações e serviços de saúde com provisão de atenção contínua, integral, de
qualidade, responsável e humanizada, bem como incrementar o desempenho do
Sistema, em termos de acesso, equidade, eficácia clínica e sanitária; e eficiência
econômica, conforme descrito no Anexo da Portaria n.º 4.279, de 30.12.2010.431
Talvez aí esteja o segredo para as boas práticas: a pessoa humana no centro e as
ações e os serviços realizados com responsabilidade a seu favor.

427
MENDES, Eugênio Vilaça. As redes de atenção à saúde cit., p. 80-85.
428
Atenção Secundária à Saúde (ASS): é formada pelos serviços especializados em nível
ambulatorial e hospitalar, com densidade tecnológica intermediária entre a atenção primária e a
terciária, historicamente interpretada como procedimentos de média complexidade. Esse nível
compreende serviços médicos especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico e atendimento
de urgência e emergência.
429
Atenção Terciária à Saúde (ATS): são aqueles de maior densidade tecnológica (alta
complexidade).
430
MENDES, Eugênio Vilaça. As redes de atenção à saúde cit., p.100.
431
Portaria n.º 4.279, de 30.12.2010. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/
2010/prt4279_30_12_2010.html>. Acesso em: 16 jul. 2016.
198

Nesse sentido, como proposta, é urgente, portanto, estabelecer prioridades


associadas às práticas de ações e serviços que busquem universalizar, aliada
sempre a uma estratégia que vise ampliar o conjunto dessas prioridades na medida
em que mais recursos se tornem disponíveis. Assim sugere-se:

A) Que o Ministério da Saúde garanta o direito do cidadão ao atendimento


à saúde e dê condições para que esse direito esteja ao alcance de todos, mas, “em
especial, alcançar aqueles que necessitam de um amparo maior do Estado”.432

B) O acompanhamento sistemático por parte dos órgãos competentes e da


participação da comunidade, de cada real empregado para a organização e a
implantação da RAS, no âmbito do SUS, nos Estados, de acordo com o seu perfil
local.

C) Cumprir as diretrizes para a estruturação da RAS, cuja estratégia é a


superação de fragmentação e de gestão nas Regiões de Saúde, com o
desenvolvimento de sistema de informação, por meio do cartão SUS, para assegurar
ao seu usuário um conjunto de ações e serviços que dialoguem de forma
compartilhada com todos os níveis de atenção à saúde.

D) O cartão SUS, a partir dos dados do usuário (fichas clínicas), conteria


todas as informações demográficas, epidemiológicas, sociais e administrativas. A
partir dessa integração de dados, produzem-se estatísticas que podem avaliar os
progressos da população que fazem parte daquela circunscrição na rede.

E) Agendamento eletrônico para consultas e cirurgias eletivas, quando for


o caso, eliminando dessa maneira filas para atendimento.

F) Controle efetivo dos custos e gastos, a fim de elaborar uma base de


dados capaz de avaliar se efetivamente há necessidade de investimentos ou de
possível resolução.

432
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 702.
199

4.3 Segunda proposição: políticas públicas que associem determinantes


sociais da saúde como necessários para o direito à saúde

O Brasil como nação distribui muito mal a sua riqueza e quem paga por
essa desigualdade sempre são as pessoas mais pobres e são estas que acabam
por necessitar das ações governamentais que na maioria das vezes são
descompassadas e tímidas e não conseguem corrigir essas desigualdades. De
acordo com Alberto Pellegrini Filho, “iniquidade em saúde – são as desigualdades
injustas e evitáveis. E são evitáveis através das ações sobre os determinantes
sociais de saúde”.433

Há uma grande parcela da população em situação de vulnerabilidade


social, como todos sabem. Basta andar nas ruas, não só dos grandes centros, e
verificar a falta de planejamento, de saneamento básico, a questão dos lixos, as
péssimas condições de habitabilidade ou a falta delas, bem como um número cada
vez mais crescente de moradores de rua. Sem contar a questão da educação que
ainda precisa ser corrigida para o acesso universal e à qualidade na permanência.
Presencia-se, também, a situação deplorável nos postos de saúde, que é só mais
um detalhe desse mosaico social em que grande parte da população não enxerga
no SUS as barreiras de acesso que precisam ser vencidas. O que fazer diante desse
caos? O que os determinantes sociais da saúde têm a ver com toda essa
problemática que se utiliza como parte introdutória deste ponto? A questão para se
resolver a saúde pública é só da saúde?

Como se vê, há medidas específicas que necessitam ser corrigidas, a fim


de se garantirem direitos básicos de atenção na busca do processo de construção
da cidadania, especialmente no campo das políticas públicas de saúde que estão no
centro do interesse social e que têm sido tão negligenciadas pelo Estado brasileiro.
Utiliza-se neste trabalho o conceito de políticas públicas como:

Um sistema de decisões públicas que visa a ações ou omissões,


preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a

433
PELLEGRINI FILHO, Alberto. Determinantes Sociais da Saúde cit. (entrevista).
200

realidade de um ou vários setores da vida social, por meio da


definição de objetivos e estratégias de atuação e da alocação dos
recursos necessários para atingir os objetivos estabelecidos.434

Ao longo deste trabalho tem sido enfatizado que a Constituição considera


a saúde como um direito de todos e como um dever do Estado. Entretanto, para que
esse direito seja alcançável é premente que as políticas públicas não apenas
reconheçam essa necessidade, mas que congreguem esforços intersetoriais para
que não só as ações inadequadas sejam corrigidas, mas principalmente que a
omissão administrativa seja combatida com o agir em prol da cidadania.

Assim, o reconhecimento e a responsabilidade dos governos para que


essas ações sejam implementadas devem ocorrer concomitantemente no campo
social e no da saúde. Nenhum avanço será alcançado se os Determinantes Sociais
da Saúde (DSS) não forem assim observados. Mas, afinal, o que são Determinantes
Sociais da Saúde?

A Organização Pan-americana da Saúde (Opas), ao apresentar um


conceito, reforça a necessidade da conjugação de esforços para olhar as pessoas
como seres integrados:

Os determinantes sociais da saúde são as condições em que as


pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem,
incluindo o sistema de saúde. Estas circunstâncias são formatadas
pela distribuição da riqueza, poder e recursos em nível global,
nacional e local e são influenciadas por decisões políticas. Os
determinantes sociais de saúde são os principais responsáveis pelas
iniquidades na saúde.435

Sem qualquer sombra de dúvida, são as condições sociais que afetam


diretamente a saúde, por exemplo: a falta de alimentação adequada (a desnutrição),
o analfabetismo, a água, o meio ambiente desequilibrado, a falta de moradia, renda

434
FERRAREZI, Elisabete; SARAVIA, Enrique (Org.). Introdução à teoria da política pública cit., p.
13.
435
Organização Pan-americana da Saúde (Opas)/Organização Mundial da Saúde (OMS). Disponível
em: <http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=1371&Itemid=
423>. Acesso em: 14 jan. 2016.
201

e emprego, porém elas podem ser modificadas se houver ação efetiva para que
esse quadro seja alterado.

O conceito dado pela Opas torna claro o entendimento da saúde como


“resultado de uma produção social”436 e revela como aspectos sociais e decisões
políticas impactam as condições de vida e saúde das populações, bem como a
ocorrência de doenças, segundo o modelo de Dahlgreen437 e Whitehead,438 que foi
desenvolvido por eles, conforme se vê na Figura 3.

Figura 3 – Modelo de Determinação Social de “Dahlgreen e Whitehead” (1991) adotado


pela Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS – Brasil)

Fonte: CONDSS

436
Paulo Buss, em entrevista (22.08.2011) ao programa Sala de Convidados, do Canal Saúde
(Fiocruz), na época Diretor do Centro de Relações Internacionais da Fundação Osvaldo Cruz
(Fiocruz). Ele fala sobre os Determinantes Sociais de Saúde (DSS). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=FzOZqa88UCU>. Acesso em: 19 jul. 2016.
437
Göran Dahlgren, professor visitante da Universidade de Liverpool e colaborador do Centro de
Pesquisas de Políticas sobre os Determinantes Sociais de Saúde. Disponível em:
<http://www.euro.who.int/__data/assets/pdf_file/0018/103824/E89384.pdf>. Acesso em: 25 ago.
2016.
438
Margaret McRae Whitehead é Professora da cadeira de Saúde Pública da Escola de Ciências da
População, Comunidade e Comportamentais da Universidade de Liverpool. Trabalha com
desigualdades sociais na saúde e nos cuidados de saúde, em particular a questão do que pode
ser feito para reduzi-los. Disponível em: <http://phrc.lshtm.ac.uk/collaborator_whitehead.html>.
Acesso em: 25 ago. 2016.
202

O modelo de Dahlgreen e Whitehead utilizado na Figura 3 apresenta as


pessoas na sua base, dispostas com as suas características, sejam elas de: (i)
idade: grupo de jovens ou idosos; (ii) sexo; e (iii) fatores genéticos ou herança
genética. Esses traços possuem influência sobre as suas condições de saúde,
porém não são suficientes para determinar a sua saúde. Depois da primeira camada
encontram-se os estilos de vida de cada pessoa, por exemplo: dieta, exercícios etc.
Às vezes, esses comportamentos são vistos como de responsabilidade individual,
mas também são integrantes dos DSS, uma vez que estão inter-relacionados com
as possibilidades de acesso a alimentos saudáveis e a espaços de lazer. Na terceira
camada, veem-se as redes sociais e comunitárias, por exemplo: se você tem
amigos, redes de apoio em casa, no trabalho e que certamente ajudam as pessoas
a terem uma vida também saudável. Na quarta camada encontram-se todos os
fatores relacionados às condições de vida e de trabalho, alimentação, educação,
habitação, acesso a serviços sociais e saúde. E, por fim, na última camada
verificam-se as condições socioeconômicas, culturais e ambientais gerais.439

Isso significa que a saúde, vista sob essa ótica, de fato é produto da ação
humana e por isso pode ser transformada pela ação humana, mas não de uma ação
individual, mas de uma ação do Estado por meio de políticas públicas que atuem
sobre as condições materiais e até psicossociais nos locais onde as pessoas vivem
e trabalham com o fim de assegurar que elas tenham acesso a água tratada, esgoto,
condições de habitabilidade (dentro e fora), alimentação saudável, emprego
decente, serviços de saúde e de educação de qualidades.440 Assim, a implantação
de políticas públicas com intuito de alcançar o direito à saúde é um desafio a ser
enfrentado pelo Estado brasileiro, posto que constitui um dever deste que:

[...] consiste na formulação e execução de políticas econômicas e


sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros
agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso

439
BUSS, Paulo Marchiori; PELLEGRINI FILHO, Alberto. A saúde e seus determinantes sociais.
Phisis: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 17(1), p. 77-93, 2007, p.83.
440
Idem, p. 86.
203

universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção,


proteção e recuperação.441

Portanto, deve-se atuar sobre esses determinantes para que melhorem as


condições de vida das pessoas, para que elas possam viver melhor e
consequentemente haja menos desigualdades. Dessarte, a ação não pode ser
focada apenas no setor da saúde, mas deve buscar ações intersetoriais, pois
também são de responsabilidades de setores distintos que na maioria das vezes
atuam de forma desarticulada, como referido no primeiro parágrafo desta segunda
proposta. Enfatiza-se que se requer esforço conjunto do governo, por meio de ações
governamentais que busquem combater as diferenças injustas. Para isso, deve-se
buscar a participação da comunidade442 como uma nova forma de redistribuir poder.
Na primeira proposta apresentada neste trabalho, têm-se as Redes de Atenção à
Saúde (RAS), que é um exemplo de políticas públicas a serem desenhadas pelo
País para evitar desigualdades. Por meio das RAS, há um chamado para considerar
a população em todas as suas circunstâncias, o que significa superar os
determinantes sociais de saúde nos locais onde as pessoas nascem, crescem,
vivem, trabalham e envelhecem, incluindo o sistema de saúde.

4.4 Terceira proposta: mudanças que reduzam a segmentação da oferta de


atendimento

Ocupa este trabalho com o direito à saúde na Constituição Brasileira:


complexidades de uma relação público-privada no SUS, evidentemente, dentro de
um sistema universal no Brasil, conforme descrito na Constituição. Assevera André
Ramos Tavares sobre a diferenciação entre “ações e serviços públicos de saúde”
(artigos 197 e 198) e a “assistência à saúde” (artigo 199), que é “livre à iniciativa
privada [...]”, sendo, porém, “vedada a destinação de recursos públicos para auxílios
ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos” (artigo 199, § 2.º). De
acordo com o referido autor, “a Constituição nem precisaria ter mencionado essa

441
Artigo 2.º, § 1.º, da Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990.
442
A participação da comunidade faz parte dos princípios e dos objetivos do SUS, conforme
preceitua o seu artigo 7.º, VIII, da Lei n.º 8.080/1990.
204

circunstância, já que se compreendem como monopólio estatal apenas as atividades


expressamente consignadas nesses termos”.443

Todavia, existem implicações a partir dessa dualidade de estrutura de


gestão da saúde que para o seu funcionamento se apresenta simultaneamente, ou
seja: a primeira pública e gratuita ao cidadão e a segunda privada, que atua de
forma complementar e conforme as diretrizes do SUS, portanto legitimada pelo
Poder Público.

Entende-se haver contradição entre a proposta de universalidade do SUS


(artigo 196 da CR/1988) e a atuação da rede privada, pois a moldura dada pela
Constituição formalmente define que a política de saúde deve ser acessível de forma
gratuita e universal a toda a população, o que expressa contrariamente a concepção
de uma abordagem de saúde de caráter mercadológico. O Movimento da Reforma
Sanitária levantou como bandeira o acesso à saúde como direito de todos, que
culminou com as teses desenvolvidas444 aprovadas na VIII Conferência Nacional de
Saúde, de 1986, e que resultou na CR/1988, optando por um modelo inspirado nos
sistemas nacionais de saúde de acesso universal, com base nas premissas
igualitaristas do Estado de bem-estar social europeu.445

Sobre esse ponto é interessante transcrever algumas linhas de Amélia


Cohn a respeito do rótulo (welfare states)446 conhecido nos dias de hoje como
Estados de Bem-Estar Social. Convém esclarecer que após a Segunda Guerra
Mundial, especialmente os modelos anglo-saxões, social democratas, foi produzido
um Acordo entre empresários e trabalhadores que resultou em um pacto de
solidariedade social, que consistia em que “o excedente de recursos advindos de
menores taxas de lucro de empregadores e de menores salários dos empregados
assalariados seria destinado ao financiamento das políticas de aposentadoria,
pensões, saúde, educação etc.”. Trata-se de um modelo conhecido como “universal

443
TAVARES, André Ramos Curso de direito constitucional cit., p. 720.
444
Oitava Conferência Nacional de Saúde (de 17 a 21 de março de 1986). Relatório Final, p. 9-29.
445
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. A constituição de um modelo de atenção à saúde universal: uma
promessa não cumprida pelo SUS? cit., p. 7.
446
Alguns exemplos de países que funcionam dessa maneira: Suécia, Dinamarca e Inglaterra.
205

redistributivista”, em que o Estado se configura como o principal provedor dos


serviços sociais, cujas características são: (i) financiamento que advém diretamente
do orçamento do Estado; (ii) imposto progressivo: quem ganha mais paga
relativamente mais do que quem ganha menos; (iii) independentemente das
condições socioeconômicas dos distintos indivíduos, todos têm acesso ao mesmo
padrão de serviços de saúde, segundo suas necessidades; (iv) independe se são
ricos ou pobres; (v) o Estado produz exclusivamente todos os serviços de saúde e
de assistência médica, mas, quando há presença de sistema privado de saúde,
estes são absolutamente residuais, submetendo-se às regras do mercado e sem
qualquer subsídio dos recursos estatais.447

Outrossim, há o modelo do caso brasileiro, em que é redistributivo


conforme definido pela Constituição, mas, por outro lado, segundo Carlos Octávio
Ocké-Reis, pelo seu “nível de gasto público em saúde, deixa margem para o
fortalecimento do mercado de planos de saúde”.448 Há, então, a presença de um
sistema dual, híbrido ou mix (público e privado) de proteção social, ou seja, em que
compreende a universalização de maneira reduzida, pois entende que uma
cobertura pelo sistema público não comporta toda a população, e, se assim o fosse,
sobrecarregaria o Estado. Em suma, diante de todo o conteúdo em que se considera
a saúde como um bem público, um direito social, o Estado brasileiro não tem sido
suficientemente capaz de efetivar que o Sistema Público de Saúde (SUS) se
consolide como um plano de saúde que atenda a todos indistintamente. Nessa linha,
o principal desafio é a superação da segmentação para a oferta de atendimento,
construída pelo próprio Estado em que se afirma o acesso à saúde como direito de
todos e ao mesmo tempo incentiva a adesão de planos privados de saúde que
resulta em cobertura dupla, ou seja, quem pode pagar ou se são financiados por
seus empregadores.449 Como visto neste trabalho, no caso dos servidores

447
COHN, Amélia. O estudo das políticas de saúde: implicações e fatos. In: CAMPOS, Gastão
Wagner de Sousa et al. (Org.). Tratado de saúde coletiva. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Hucitec,
2012. p. 236-237.
448
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. A constituição de um modelo de atenção à saúde universal: uma
promessa não cumprida pelo SUS? cit., p. 9.
449
Idem, p. 8.
206

públicos,450 que recebem os seus salários dos cofres públicos, eles são estimulados
pelo próprio Estado a adquirir planos privados de saúde, pois o próprio governo,
além de financiar com recursos do orçamento público, promove a expansão das
empresas privadas de planos de saúde, o que se entende como tamanha injustiça
com os mais pobres.

Convém anotar o que Lígia Bahia destaca sobre essa fragmentação:

Os recursos públicos, paradoxalmente, turbinam a iniquidade e


valores extremamente individualistas. Portanto, no que concerne ao
repasse de recursos públicos para os planos e seguros privados de
saúde, o repertório de regulação estatal restringe-se a preservar a
dimensão de seletividade de demandas, definidas por parâmetros de
status sócio-ocupacional. A permanente exclusão da dimensão da
universalização e necessidades de saúde, seja nas reflexões, seja
na alocação destes recursos públicos, cristaliza a segmentação
regulada pelo Estado.451

Diante desse quadro, o que se vê são práticas que segmentam o acesso,


pois, para Carlos Octávio Ocké-Reis, o paralelismo do subsistema privado em
relação ao SUS produz efeitos perversos sobre a regulação do sistema de saúde,
assim como o financiamento público sofre com a elevação dos custos, a renúncia
fiscal e o boicote por parte das operadoras em relação ao ressarcimento. Sem
contar a própria organização dos profissionais de saúde, que têm dupla militância
(falta uma carreira de Estado para o SUS). Há igualmente a pressão exercida pelo
complexo médico-industrial na regulação da incorporação tecnológica e também
sobre a equidade de acesso, ou seja, dupla porta de entrada, dada a capacidade de
pagamento da clientela da medicina privada. No caso daqueles pacientes de alto

450
Celso Antônio Bandeira de Mello, ao tratar dos Servidores Públicos, assim esclareceu: “Os
servidores públicos são uma espécie dentro do gênero ‘agentes públicos’ [...] quem quer que
desempenhe funções estatais, enquanto as exercita é um agente público. Por isso, a noção
abarca tanto o chefe do Poder Executivo (em quaisquer das esferas) como os senadores,
deputados e vereadores, os ocupantes de cargos ou empregos públicos da Administração direta
dos três Poderes, os servidores das autarquias, das fundações governamentais, das empresas
públicas e sociedades de economia mista nas distintas órbitas de governo, os concessionários e
permissionários de serviço público, os delegados de função ou ofício público, os requisitados, os
contratados sob locação de serviços e os gestores de negócios públicos” (Curso de direito
administrativo cit., p. 251).
451
BAHIA, Lígia. As contradições entre o SUS universal e as transferências de recursos públicos
para os planos e seguros privados de saúde. Rio de Janeiro: Revista Debate, 2008. p. 1381.
207

risco que têm doenças crônicas, quando retirados dos planos de saúde, são
atendidos pelo SUS, sem qualquer preocupação por parte das operadoras com esse
beneficiário e muito menos com a figura do ressarcimento que deve ser regular e
sistemático o seu pagamento.452 Daí a configuração de um sistema público dual, que
acaba por privilegiar os que mais podem, promovendo desigualdades sociais, uma
vez que estimula as pessoas ao consumo de planos de saúde. Consequentemente,
tais práticas têm privado o SUS de obter mais recursos financeiros, que poderiam
ser utilizados para a ampliação da sua cobertura, da qualidade e também dos efeitos
inequitativos que segmentam o acesso dos mais pobres.

Tudo o que fora visto até aqui tem como preocupação a saúde conforme
retratada na Constituição: direito de todos e dever do Estado. Consoante classificou
Amélia Cohn: (i) ao Estado cabe a responsabilidade por providenciar as condições e
os recursos que garantam a todo cidadão brasileiro o acesso à satisfação de suas
necessidades de saúde; (ii) o direito à saúde é de todos os indivíduos legitimados
pela sociedade como cidadãos (portadores de direitos e deveres iguais). Como se
aponta, a saúde é um direito da cidadania, e não uma mercadoria, o que implica que
seja concebida e desenvolvida pelo Estado mediante políticas específicas que têm
como alvo toda a população, independentemente de sua condição social, pois, se o
próprio Estado brasileiro, por meio das suas ações e serviços, segmentar a
população em dois grupos, para pobres e para ricos, continuará reforçando as
desigualdades sociais existentes no País. O que se conta é como implantar políticas
públicas de saúde que, ao priorizarem os segmentos socialmente mais vulneráveis
num primeiro momento, o façam sob a lógica da universalização, da integralidade e
da equidade.453 É nesse sentido que propõe a CR/1988.

Depreende-se que para a construção de um Sistema Único de Saúde


(SUS) universal, integral e equânime há que depender para a sua consolidação não
apenas do que consta nos termos da CR/1988 e da Lei do SUS, mas principalmente
da força participativa que a comunidade pode adquirir ao exercer o controle social,
sobretudo quando articulada para colaborar nas tomadas de decisões com esse

452
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio et al. O mercado de planos de saúde no Brasil: uma criação do
Estado? Revista Econômica Contemporânea, v. 10, n. 1, p. 157-186, 2006.
453
COHN, Amélia. O estudo das políticas de saúde: implicações e fatos cit., p. 241.
208

Estado que é o provedor do direito à saúde e que, portanto, pode atuar de forma
segura e transparente, possibilitando a confiança da população nas ações
propostas.

Sabe-se que esse movimento não se dará como num passe de mágica,
mas que para a sua efetividade deve-se contar não apenas com a boa vontade da
classe política, mas também com a participação da sociedade. Convém ressaltar
que a sociedade não substituirá o Estado, que é a instância competente, uma vez
que possui os instrumentos capazes de redistribuir as riquezas socialmente
produzidas, e uma delas é a promoção, recuperação e atenção à saúde como um
direito de todos e dever do Estado.
209

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No compasso das argumentações apresentadas, é de se refletir acerca do


disposto na Constituição Federal de 1988, ou seja, no artigo 196: “saúde como
direito de todos e dever do Estado”; e no artigo 199: “A assistência à saúde é livre à
iniciativa privada”. Com isso, constata-se a existência de dois sistemas: público e
privado em posições paralelas.

Portanto, esta pesquisa teve como foco discutir como essa relação (tão
complexa) acontece, e para chegar a esse objetivo necessitou-se apresentar desde
a evolução dos direitos fundamentais, as constituições existentes e qual(is) a(s)
sua(s) vinculação(ões) com a saúde, contextualizar a saúde pública no Brasil, e o
seu consequente meio de financiamento. Sentiu-se a necessidade também de
verificar o marco regulatório da saúde suplementar, a Lei n.º 9.656, de 03.06.1998
(Lei dos Planos de Saúde), que, além de disciplinar os planos de saúde, dispôs pelo
ressarcimento desses planos ao SUS, pois, no entender deste trabalho, a cobrança
por parte da ANS em relação a essas operadoras acontece de maneira muito tímida.

Na elaboração dos dados quantitativos para a demonstração das


operadoras de planos de saúde no Brasil, extraíram-se dados da ANS de 2006 até
2015. Os dados de 2000 até 2015 do ressarcimento ao SUS (repasse ao FNS)
também foram tirados da ANS. Os dados de 2015 da despesa da União com saúde
suplementar para os servidores ativos e inativos foram extraídos do Siape. Com a
finalidade de sintetizar objetivamente alguns itens que se destacam da exposição,
sem, no entanto, exauri-los, tecem-se, a seguir, as considerações finais.

Os dados trabalhados na pesquisa para demonstrar o gasto da União com


servidores públicos mostraram que o financiamento estatal brasileiro pulveriza o
recurso da saúde que deveria ir para o SUS e financiar a saúde pública. Ou seja,
considera-se importante a ação do Estado brasileiro de ter a coragem de deixar de
destinar recursos do orçamento público para financiar planos de saúde privados
para servidores públicos e utilizar esses recursos para o SUS, a fim de fortalecê-lo, e
não enfraquecê-lo, como essa ação indica.
210

Considera-se que o Estado, ao proporcionar a renúncia fiscal às pessoas


físicas e jurídicas, contribui ainda mais para o déficit no financiamento do SUS e
também para expansão da rede privada.

Como o SUS é uma política pública universal, o Estado brasileiro necessita


colocá-lo como prioridade e não enfraquecê-lo com medidas anti-SUS, como vem
fazendo. Para tanto, convém que recupere a participação de recursos federais e
defina os limites ao incentivo – via renúncia fiscal – à atenção privada, a fim de
fortalecer o sistema público.

Ao pesquisar sobre a renúncia fiscal e a necessidade de imposição de


limites, enxergou-se como extremamente complexa a problemática desse tema para
o financiamento do SUS, por isso sentiu-se a utilidade de maiores estudos nesse
campo, que não foi possível explorar nesse momento. Logo, considera que essa
demanda poderia ser assumida por setores da Academia como mais uma
possibilidade de construção do conhecimento a serviço da sociedade.

Como o sistema de saúde brasileiro, o SUS é de uma política pública


universal, de longo prazo, por esse motivo o Estado brasileiro precisa encontrar, ou
melhor, construir a sua identidade nacional e colocá-lo como prioridade, a começar
pela política orçamentária e que não desvincule os recursos ao financiamento da
saúde pública, uma vez que o orçamento do SUS é muito pequeno para fazer o que
ele promete. Isso requer um financiamento digno e adequado com fontes fixas, sem
o risco de serem desvinculadas.

O problema, no Brasil, de uma política por melhores condições de ações e


serviços de saúde em todos os níveis de atenção requer urgência. O Estado deve,
por meio de suas instituições de saúde, transformar com responsabilidade a
realidade que se apresenta na atualidade, visando orientar as suas decisões para o
bem comum da sociedade por meio de uma direção única, conforme norteado pela
Constituição.

Reafirma-se que o caminho para as suas decisões passa por uma nova
postura que deve ser adotada nas instâncias de representação da sociedade. No
211

caso específico da saúde, o funcionamento dos Conselhos de Saúde, por exemplo,


apontam que o problema de participação política dentro do SUS não deve acontecer
apenas de maneira formal. Contudo, o momento impõe para a necessidade de
ampliação dessa participação, a fim de resgatar o conteúdo do projeto democrático
em que se entende a participação como construção coletiva da política de saúde,
transformando, por exemplo, até a forma de apresentar as questões aos
representantes dos segmentos dos usuários, que muitas vezes sentem inúmeras
dificuldades na participação, seja pela falta de acesso a informações, seja pelo uso
de linguagem técnica. Assim, além de isolá-los, acaba por dificultar a sua
representatividade,454 enfraquecendo esse poderoso instrumento da cidadania que
deve servir como modelo de democracia participativa. Assim, vale novamente uma
observação: as diferenças desses órgãos devem ser compreendidas como reflexo
de uma sociedade plural, portanto portadora de vozes distintas e que carregam
demandas e questões coletivas que devem ser respeitadas.

Reconhece-se que no SUS existem barreiras de acesso que precisam ser


vencidas com a garantia de que o princípio da universalidade seja promovido pelo
Estado, como consequência natural da proteção da dignidade humana. No entanto,
mesmo diante de tantas adversidades, o SUS tem conseguido prestar assistência a
milhões de pessoas, desde a atenção básica, com o Programa Saúde da Família
(PSF), Sistema Nacional de Transplantes, serviços de emergência (SAMU),
vacinação, até tratamentos de alta e média complexidade. Logo, por meio desses
exemplos de saúde pública prestada pelo SUS, pode-se defender da afirmação feita
por muitos de que “existe um problema de modelo de gestão do SUS”. Pode-se
asseverar que se trata, sim, de um problema de gestão que não tem privilegiado a
saúde, que deve ser prioridade da gestão.

Tem sido debatida como proposta do governo atual455 a desvinculação do


orçamento do Ministério da Saúde do orçamento geral da União, mas o que se
apurou diante da pesquisa realizada é que a vinculação para a saúde só foi

454
GUIZARDI, Francini Lube. Direito à saúde e a participação política no SUS: cenários, dispositivos
e obstáculos cit., p. 587.
455
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016: que tem como objetivo a desvinculação de
recursos para a saúde e a educação.
212

contemplada pela EC n.º 29/2000 e a sua regulamentação com a edição da Lei


Complementar n.º 141/2012, contudo ainda tímida e nem de longe foi alcançada
para ser capaz de oferecer cobertura universal e integral. É imprescindível que
sejam assegurados recursos para o sistema público, pois o SUS, além de resolver
hoje problemas de garantia para melhorar o acesso, maior cobertura e melhor
qualidade, precisa se preparar para responder aos desafios do futuro, especialmente
a mudança do perfil demográfico. A população brasileira como um todo cresce e
envelhece.

O SUS é patrimônio de toda a sociedade brasileira, não é um projeto de


governo ou de algum partido (passado ou atual), mas um projeto que vem sendo
construído ao longo de décadas, representando o direito à saúde, pelo Estado, em
todos os seus níveis, a todas as pessoas, levando a cada uma delas ao pleno
desenvolvimento.
213

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