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Aucusto Roa Bastos Vigilia do Almirante Tradugdo de Josely Vianna Baptista llustragées de Jeanete Musatti —a MIRABILIA Ficlo uso, Un fs finissimos fs 30b 0 sol, B ecarchadas, Sentia cOcegas por baixo, na pele. Acompanharam-me um trecho ‘Jo caminho dangando ao meu redor, Minha marcha era muito lenta devido A casula de cottiga. Lentamente, quase dobrado em dois pelo cansago ¢ pelo peso do que levava entre as pernas, comecei a caminhar rumo as torres longinquas de uma cidade. Depois ficaria sabendo que aportara no Algarve, no sul de Portugal. Desde entio ali estaria, por um tempo, sninha patria proviséria, O corsirio morte me salvara a vida, regalara~ me uma fortuna e dera um exemplo de silenciosa circunspecgio € total desprendimento. Seu principesco presente me proveria também, de casa ¢ comida por muito tempo. S6 que agora teria que ocultar- me, por minha vez, sob um nome falso, para entrar com auténtico fausto na corte de Portugal. Chamei-me, entio, para devolver a honra ao parente morto, Guillaume de Casenove. O fantasmma de meu tio ia perseguir-me por muito tempo. Isso aconteceu, lembro-me bem, em, 13 de agosto de 1475 (1+4+7+5 = 17), Nao sei porque menciono esta data. Nio tem nenhuma importincia.'O tempo j& nao conta para mim. Antes 0 sentia como a necessidade de um apuro insensato para chegar a alguns lugar, sem saber qual, Sentia o tempo como uma dor intensa nas entranhas. Fsse retorcimento das tripas que leva o sujeito correndo, com 0s cotovelos fincados no ventre,a despejar suas fezes em qualquer lugar. Depois isso se acalma. Aprende-se a ser um homem do ailtimo quarto de hora. Gom olhos de peregrinagéo sempre se chega tarde a um lugar desconhecido, que nao é 0 buscado nem o desejado. Mas sempre lhe testam os derradeiros treze minutos, Depois os sete milénios da Cabala ¢,por filtimo,a eternidade interminavel em que flutuam as Hscrituras com as paginas alvorogadas pelos aquildes das idades. Nio sinto o tempo agora. Desde aquele horror que presenciei na ZAmbia nio tenho mais sonhos. Minha cavalgada sobre © corsirio morto nio foi um sonho. Embora se parega muito com um, Nao acontece nada. Talvez nio esteja lembrando senio o que jé aconteceu. Talvez s6 esteja expiando essas lembrancas, segundo j4 disse no Livro das profecias, em minha cartuxa em Valladolid. Quando me lembro de um fato passado, enquanto escrevo 7 estas Memdrias, s6 existe 0 que escrevo: as letras de minha prdpria escritura ilegivel,a geringonga de minha lingua macatrénica, Escrevo palavras. E nelas nio hi nada do que sinto que existe de diferente entre o mundo e mim mesmo, e que nio consigo expressar. ‘As palavras © as frases que roubei dos livros, roubadas por sua vez de outros livros, esto ai, sobre os folios, esvaziadas de seu sentido original. Para que digam algo de meu, preciso vivificéJas como alento de meu proprio espirito; dizéJas em minha maneita de dizer, que diz pela mancira. E s6 assim quem me ler sabera o que quis dizer ¢ nio pude dizé-lo antes que me lesse, desde que ele também reescreva © texto enquanto o 18, ¢ o vivifique com 0 a lento de seu proprio espirito,a cada pagina, cadadinha,a cada letra, E sobretudo, isto € 0 esseneial, que veja e ouga o que nao esta dito nem escrito e que preenche o livro ¢ o ultrapassa. Um leitor nato sempre Ié dois livros 20 mesmo tempo: o escrito, que tem em suas miios, ¢ que é mentiroso, ¢ o que ele escreve interiormente com sua propria verdade, A palavra escrita, a letra, é sempre roubada porque ninguém pode chegar ao vazio que est antes da palavra éiltima~Gltima- primeira, depois da qual todas foram palavras roubadas e todas as subseqiientes serio palavras roubadas até a Ultima-tiltima-tiltima que for escrita no mundo. Irremediavelimente. O mesmo acontece com a palavra proferida publicamente on sussurrada em segredo por um agonizante. Por alguém que vai motter de sua propria morte. Ou por alguém a quem estio fazendo morrer no tormento, rodeado pot tumultuosa companhia, em meio a oragdes, ruido de ferros, de atigadores, do zumbir das chamas, de gritos de dor ¢ do cheiro da carne assada na grelha ¢ servida em bandeja de sacrificio a Deus Justo, Santo ¢ Mortal. A fala e a escritura sio sempre, inevitavelmente, tomadas de empréstimo da palavra oral, de um falante em transe de transformar seu pensamento emi sons articulados. Nao podemos comunicar-nos senio sobre esse solo arcaico, Tal é a natureza do roubo originario, que se perpetua infinitamente e faz de todo aquele que se quer“criador” tum mero repetidor inaugural. A ndo ser que este imponha a ordem de sen espirito 4 matéria informe das repetigSes, imprima 4 voz estranha sua propria entonagio ¢ a impregne com a substincia de seu sangue, resgatando 0 préprio no alheio. Eu perdi minha lingua 118 _, no estrangeiro. E 0 que expresso esta dito e escrito numa mistura de Iinguas estranhas, com as quais meu falar nfo se sente solidirio € pelas quais meu espirito nfo se sente responsivel. Neste instante sinto que o futuro nio existe mais ¢ que, portanto, © passado tampouco existiu. E este momento em que inscrevo uma virgula, ponho um acento ou penduro uma cedilha no trasciro do ¢, desaparece no mesmo instante, Reabsorve-se em si mesmo, $6 uma tenacidade inumana pode salvar tua fraqueza humana, ‘A quilha de ferro corta a entranha do mar enquanto 0 verme carcome © porio do navio. E 6 0 mar quem no fim ganhara a partida, Diante do cabo de Sio Vicente o cadiver de um corsario parente meu salvou-me a vida. Em Portugal, um piloto desconhecido morreu em meus bragos legando-me um segredo do qual nasceu o projeto desta viagem as [ndias. Sera que s6 abragado a um cadaver um ser vivo pode conhecer os segredos que salvario ou mudario sua vida, ou que o levario 4 morte, langando~o no inferno? E provavel. No sei de nada. Nio me interessa saber. Toda revelacio no passa de um roubo do futuro, ou, se preferixem, um empréstimo que tomamos do futuro as custas de nossa propria existéncia, Ninguém nasce sozinho. Ninguém morre sozinho. No instante extremo da morte ha sempre alguém ao lado de quena morre, que fica com sua vida ¢ a despoja de seus segredos, de sua heranga, de suas tribulagées. Eu estava ao lado do Piloto desconhecido, Ele morreu ¢ eu acreditei apossar-me de seu segredo; ou seja, de sua vida. Mas depois 0 proprio Piloto, agora invisivel, transformou-se em meu perseguidor furtivo. Chega sempre antes ao lugar aonde vou. Persegue-me por toda parte como meu duplo, dobrando-me, ultrapassando-me sempre, como se em vez de perseguir-me as escondidas esse Piloto morto fosse meu proprio ser que me segue como uma sombra. Ele me segue, ¢ me persegue, ¢ me precede. Nio se afasta de mim. Cerca~ me por todos os lados. Todos véem em mim esse Piloto morto. E estou certo de que quando chegar ao ugar em que escolhi ir, seguindo 0 caminho que ele mesmo me indicou, ser4 o Piloto morto quem estard me esperando nesse local s6 por ele conhecido. E estou certo de que, como ele, eu também morrerei indigente, doente e desconhecido. Sem ninguém a meu lado, a quem possa transmitir meu segredo ou 9

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