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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

JOANA RAMALHO ORTIGÃO CORRÊA

VAMOS FAZER UM FANDANGO

Arranjos familiares e sentidos de pertencimento


em um dinâmico mundo social

RIO DE JANEIRO
2013
C824f Corrêa, Joana Ramalho Ortigão.
Vamos fazer um fandango – Arranjos familiares e sentidos de
pertencimento em um dinâmico mundo social / Joana Ramalho Ortigão
Corrêa – 2013.
201f.:Il.

Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Universidade


Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Rio de
Janeiro, 2013.

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

1. Fandango 2. Cultura Popular 3. Antropologia dos estudos de


folclore 4. Família e Parentesco.
I. Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro (Orient.) II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia. III. Titulo.
Joana Ramalho Ortigão Corrêa

VAMOS FAZER UM FANDANGO


Arranjos familiares e sentidos de pertencimento em um dinâmico mundo social

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia
(com concentração em Antropologia)

Aprovada em:

__________________________________________________
Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (orientadora – PPGSA/IFCS/UFRJ)

__________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Teixeira Gonçalves (PPGSA/IFCS/UFRJ)

__________________________________________________
Profa. Dra. Renata de Sá Gonçalves (PPGA/UFF)

__________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos Sant’Ana Diegues (PROCAM/USP)

RIO DE JANEIRO
2013
RESUMO

CORRÊA, Joana Ramalho Ortigão. “Vamos fazer um fandango / Arranjos familiares e sentidos
de pertencimento em um dinâmico mundo social”. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado
em Sociologia e Antropologia, com concentração em Antropologia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A dissertação investiga a amplitude semântica da noção de “fazer fandango” a partir do


convívio com fandangueiros do litoral sul de São Paulo e norte do Paraná. Expressão popular
que reúne dança, música e poesia, a pesquisa procura elucidar como o mundo social do
fandango se constitui e se modifica a partir da interação com outras esferas sociais. Desde os
estudos dos folcloristas, a partir da primeira metade do século XX, até os tempos atuais, o
fandango transita pelos circuitos da cultura assumindo novos sentidos e práticas. Por meio de
uma experiência etnográfica em sítios e vilas no município de Cananeia, em São Paulo, de
relatos históricos e de percursos por contextos diversificados de circulação do fandango,
investigam-se os rearranjos de membros de uma família de fandangueiros – a Família Pereira
– e seus novos posicionamentos como grupos, mestres e artistas. Nos trânsitos do fandango
com os Pereira e com alguns de seus camaradas, procurou-se apreender significados e formas
desse fazer vivo e dinâmico.

Palavras-chave: Estudos de Folclore. Cultura Popular. Fandango. Família e Parentesco.


ABSTRACT

CORRÊA, Joana Ramalho Ortigão. “Let’s play fandango / Familial arrangenmnts and sense of
inclusiveness in a dynamic social world”. Rio de Janeiro, 2013. MS dissertation (Master in
Sociology and Anthropology, with focus on Anthropology ) – Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.  

The dissertation investigates the semantic range of the notion of "to play fandango" from
living with fandangueiros from the southern coast of São Paulo and northern Paraná. Popular
expression that combines dance, music and poetry, the research seeks to elucidate how the
social world of the fandango is constituted and is altered through the interaction with other
social networks. Since the studies of folklorists from the first half of the twentieth century
until today, the fandango moves through culture circuits assuming new meanings and
practices. Through an ethnographic experience in ranches and villages in the municipality of
Cananeia, in São Paulo, from historical accounts and from different contexts circulation of the
fandango, we investigated the familial arrangements of a family of fandangueiros – the
Pereira family - and their new positions as groups, masters and artists. Within the movement
of the fandango with the Pereiras, and including some of their colleagues, we sought to
understand the meanings and forms that make this “to play fandango” so dynamic.

Key words : Folklore Studies. Popular Culture. Fandango. Family and Kinship.
Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, aos fandangueiros e às fandangueiras, por me oferecerem trabalho,


aprendizado e divertimento e por permitirem minhas pequenas invasões em suas vidas.

À Profª. Maria Laura Cavalcanti, pelas tantas leituras, comentários e indicações, pela
generosidade com que semeia conhecimentos e pelo estímulo e carinho em todas as horas,
uma incrível orientadora.

À Profª. Renata Gonçalves e ao Prof. Marco Antonio Gonçalves por gentilmente participarem
da banca de qualificação e avaliação, oferecendo instigantes contribuições à pesquisa.

Ao Prof. Antonio Carlos Diegues, pela importância de seus estudos sobre cultura caiçara e
pela honra de sua participação na banca final de avaliação.

E também aos professores que contribuíram para minha formação nas disciplinas cursadas ao
longo do mestrado, especialmente, Luisa Elvira Belaunde, Luiz Fernando Duarte e Gilberto
Velho (em memória).

Ao PPGSA, pela possibilidade de aprendizado de um novo ofício e pelo apoio que viabilizou
minha participação em encontros e congressos.

À Secretaria do PPGSA pelas informações e resoluções ao longo do mestrado.

Às equipes das bibliotecas do IFCS/UFRJ, da Maison de France e da PUC-MG/Serro, e às


salas de leitura do Banco do Nordeste Serro e da Prefeitura Municipal do Serro por terem me
acolhido em muitos dias de escrita e pesquisa. E especialmente à equipe da Biblioteca
Amadeu Amaral, do CNFCP/IPHAN, cujo acervo foi essencial para a escrita do primeiro
capítulo da dissertação.

Aos colegas e amigos de turma Juliana Athayde, Maíra Acioli, Luiza Dias Flores, Pedro
Cazes, Jeferson Scabio, Gibran Teixeira Braga, Viviane Carvalho Cid, Ana Paula Morel,
Maíra Mascarenhas, Marcella Carvalho, Paula Jathay, Carolina Lopez, Caroline Brito, Nina
Vincent Lannes, Paloma Malaguti, Cecília Barbosa, Gabriel Kubrusly, Juliana Marques,
Juliana Rocha, pelo ambiente de convivência fértil, parceira e afetiva, e especialmente à
Lorena França, pela cumplicidade.

Ao Alexandre Pimentel, companheiro de um longo e frutífero ciclo de vida, pelas ideias e


projetos compartilhados nas incursões no mundo do fandango.

Ao Edmundo Pereira, ao Dauro Marcos do Prado e à Daniella Gramani, pelas experiências e


trabalhos em parceria e pela amizade tecida muito além da convivência no fandango.

Aos demais amigos e parceiros de trabalho do Museu Vivo do Fandango, Eduardo Schotten,
Felipe Varanda, Marcelo Makiolke e, especialmente, Oswaldo Rios e Rogério Gulin, com os
quais muito aprendi.

A todos da família Pereira, pela animação e poesia com que fazem seus fandangos.
Ao José Pereira, pelos ensinamentos, pela paciência e pela beleza da música que faz com sua
rabeca.

À Maria Camilo e seus filhos, a toda família Camilo, pelos diálogos e pelo acolhimento em
suas casas durante o trabalho de campo.

Ao Leonildo Pereira, por sua disposição e alegria contagiantes, pois como ele sempre diz:
“tristeza não paga dívida”.

Ao Arnaldo Pereira, ao Randolfo Pereira e seu filho Maurício Pereira, ao João Alves e
Fandangueiros do Ariri, ao Isidoro, Baduca e demais integrantes do grupo Família Neves,
pelas muitas conversas e encontros nos percursos do fandango pelos sítios e vilas de
Cananeia.

Ao Ponto de Cultura Caiçaras e todos que colaboram com essa iniciativa sempre presente e
atuante nos trânsitos do fandango em Cananeia.

Ao Mandicuéra, em especial a Aorélio Domingues e Poro de Jesus, pela genialidade e senso


de humor com que alargam o mundo do fandango.

À Associação dos Jovens da Jureia, exemplo de garra na defesa dos direitos das comunidades
caiçaras.

À Lucia Domingos de Souza e Luan de Souza, pela afinidade e parceria que acalentaram esta
pesquisa.

A todos que compartilham da admiração e do interesse pelo mundo do fandango, Fernando


Oliveira, Cleber Rocha Chiquinho, Rejane Nóbrega, Patrícia Martins, Lia Marchi, Lu Brito,
Prof. Inami Custódio Pinto, José Fermino Marques, Vado Pimenta, Ivan Neves, Natália
Latansio de Oliveira, Luixx Mayerhofer, Rodolfo Vidal, Amir Oliveira e Marina Vianna
Ferreira.

Aos amigos e parceiros da Associação Cultural Caburé, além de Alexandre, Edmundo e


Daniella, também Gustavo Pacheco, Adriana Schneider, Maria Mazzillo, Maria Clara Abreu,
Luiz Filipe de Lima e, especialmente, Daniel Bitter, camarada de muitas viagens e fandangos.

Ao Museu Casa do Pontal, em especial a Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque, pela
intensa convivência em quase uma década de amizade e aprendizado nos circuitos da cultura e
pelos arranjos de tempo que viabilizaram o percurso do mestrado.

Aos companheiros de Fórum de Culturas Populares, Indígenas e Patrimônio Imaterial/ RJ,


especialmente Andréa Falcão, Claudia Márcia Ferreira, Guy Van de Beuque (em memória),
Cleise Campos e Affonso Furtado, pelas afinidades e estimulantes debates.

Aos amigos e colegas pesquisadores de folclore e cultura popular, além dos vários já
mencionados, Luzimar Pereira, Raquel Dias Teixeira, Cecília de Mendonça, Oswaldo
Giovannini Jr, Ana Teles, Rita Gama, Moana Van de Beuque, Nina Pinheiro Bittar, Clarisse
Kubrusly, Valéria de Aquino, Barbara Fontes, Luciana Aguiar, Ricardo Barbieri, Céline
Spinelli, Rebeca de Luna Guidi, Edilberto Fonseca, Daniel Fernandes e Juliana Manhães,
pelos diálogos e contribuições oferecidas no decorrer da pesquisa.
Aos novos e bons amigos de Milho Verde, que suavizaram os tempos de escrita da
dissertação.

Às minhas queridas amigas e comadres Laura Geszti, Sol Oliveira, Vera Schroeder, Julia
Andrade, Ana Gabriela Dickstein e Tereza Paiva, e também ao Felipe Leite e ao Sergio
Allisson, pelas horas de diversão e cumplicidade essenciais à renovação das ideias.

Aos meus avós Villas-Boas Corrêa, Regina de Sá Corrêa (em memória), Nedda Ortigão e José
de Barros Ramalho Ortigão (em memória), à minha mãe Isabel Ortigão, ao meu pai Marcelo
de Sá Corrêa, ao meu irmão André Ortigão Corrêa, à Márcia Leite e ao Octacílio Lopes, pelo
amor, carinho e apoio.

Agradeço especialmente à minha mãe por incentivar meu retorno à vida acadêmica, e também
pelo apoio crucial nas etapas finais da dissertação.

Ao Leonardo Siqueira, Leo, pelo amor e companheirismo, pelas renovações e partilhas em um


cotidiano de trânsitos e alegrias.

À minha filha Clara, amor demais e sempre, por ter estado ao meu lado em grande parte das
pesquisas e trabalhos aqui citados, por seu gosto pelo fandango e por me ensinar diariamente
como é bom brincar.
Sumário

Introdução
14
Adentrando o contexto social do fandango
14
O Museu Vivo e meu posicionamento no fandango
25
Os Pereira e a noção de família como operadora do mundo social do fandango
28
Campo, interlocutores e fontes de pesquisa
34
Apresentação dos capítulos
39

1. Um olhar antropológico sobre os estudos de fandango 41


1.1 Os estudos de folclore e o campo das culturas populares 41
1.2 O fandango e os precursores do folclorismo no Brasil 44
1.3. O fandango “do Paraná” 49
1.4 O fandango no mapa do folclore paulista e a caracterização do homem rural 62
1.5 As noções de caipira e de caiçara no pensamento social 67

2. Família e camaradagem em sítios e vilas de Cananeia 73


2.1 Sobre a vida nos sítios 73
2.2 Ariri: confluências entre a urbanidade e a vida nos sítios 85
2.3. O Fandango no Ariri 91
2.4 Fandangos em contextos turísticos e comunitários na Ilha do Cardoso 97
2.5 Mutirão e fandango: uma colheita de arroz no Varadouro 103
2.6 A camaradagem e os camaradas 111
2.7 Porque as mulheres não tocam fandango? Metáforas do masculino e do feminino 114

3. A família Pereira em novos arranjos: grupos, mestres e artistas 120


3.1 A entrada dos Pereira no circuito cultural curitibano 120
3.2 A gravação do CD Viola Fandangueira: uma pequena situação social 124
3.3 Um breve drama social e a fragmentação dos Pereira 128
3.4 Mestres e artistas: anseios e perspectivas nos circuitos da cultura 130
3.5 Etnografia de uma performance: “caipiras” e “caiçaras” em um palco da capital 136
3.6 O fandango como performance 146
4. Marcas e Modas: música, dança e poesia no fandango 148
4.1 Tipos e linguagens 148
4.2 Moda 152
4.3 Indumentária 165
4.4 Posições 167

5. Considerações finais 180

Referências bibliográficas 185

Adendo: Do museu ao registro: o processo de patrimonialização do fandango caiçara 191

Anexo: Genealogia das famílias 200


Lista de figuras

Capa: Apresentação da Família Pereira e do Viola Quebrada no CCBB. São Paulo, 2012.
Foto: Joana Corrêa.
Figura 1: Mapa do Brasil com destaque para a região de domínio da Mata Atlântica e áreas
remanescentes da Mata Atlântica. (p. 17).
Figura 2: Mapa do litoral sul de São Paulo e litoral norte do Paraná com os municípios de
Cananeia e Guaraqueçaba, seus sítios e vilas. (p. 31).
Figura 3: José Pereira, em primeiro plano, seguido por seu filho Laerte e seu irmão Arnaldo,
em gravação na Casa de Cultura do Ariri. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 36).
Figura 4: Leonildo Pereira tocando rabeca em sua oficina no Abacateiro. Guaraqueçaba, 2005.
Foto: Felipe Varanda / acervo Museu Vivo do Fandango. (p. 37).
Figura 5: Grupo com fandangueiros da Ilha dos Valadares Liderado por Manequinho da Viola
e Romão Costa. Sem data. Acervo pessoal de Romão Costa. (p. 55).
Figura 6: Frente e verso da capa do disco Fandango do Paraná, Coleção Documento Sonoro
do Folclore Brasileiro n.15, 1976. (p. 59).
Figura 7: Batera, embarcação comum na região. Ariri, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
(p. 75).
Figura 8: José Pereira no portinho de acesso ao Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 76).
Figura 9: Trilha de acesso ao Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 76).
Figura 10: Chegada no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 77).
Figura 11: Escola desativada no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 77).
Figura 12: Casa de José Pereira em seu sítio no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 78).
Figura 13: Casa de Arnaldo Pereira no Ariri. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 78).
Figura 14: Cozinha anexa à casa de José Pereira, no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 79).
Figura 15: Fogo de chão, na cozinha da casa de José Pereira, no Varadouro. Cananeia, 2012.
Foto: Joana Corrêa. (p. 79).
Figura 16: Instrumentos na parede da casa de José Pereira no Ariri. Cananeia, 2012. Foto:
Joana Corrêa. (p. 80).
Figura 17: Paisagem da travessia do centro de Cananeia ao Ariri. 2012. Foto: Joana Corrêa.
(p. 86).
Figura 18: Paisagem da travessia do centro de Cananeia ao Ariri, com guarás à beira do
mangue. 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 86).
Figura 19: Ariri visto da balsa da DERSA. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 86).
Figura 20: Casario colorido do Ariri à margem do canal. Cananeia, 2012. (p. 86).
Figura 21: Casa da Cultura e do Fandango Caiçara. Ariri, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
(p. 92).
Figura 22: João Alves e Lucia na Casa da Cultura e do Fandango Caiçara. Ao fundo, Arnaldo,
José e Larte Pereira em gravação para um projeto do Ponto de Cultura Caiçaras. Ariri,
Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 92).
Figura 23: João Alves e José Pereira em fandango no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011.
Foto: Joana Corrêa. (p. 95).
Figura 24: Músicos no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011. Foto: Joana Corrêa. (p. 96).
Figura 25: Casais dançando no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011. Foto: Joana Corrêa. (p.
96).
Figura 26: Vista de área central do Marujá, onde turistas se reúnem nos fins de tarde de verão.
Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 98).
Figura 27: Praia do Marujá. Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 98).
Figura 28: Família Neves e José Pereira em fandango no Maruja. Ilha do Cardoso, Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 99).
Figura 29: Jovens dançando em fandango no Marujá. Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto:
Joana Corrêa. (p. 99).
Figura 30: Cartaz da festa de São Sebastião, na Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso, Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 101).
Figura 31: Músicos no fandango realizado na festa da Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso,
Cananeia, 2012. Foto: Luixx Mayerhofer. (p. 102).
Figura 32: Participantes no fandango realizado na festa da Enseada da Baleia. Ilha do
Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Luixx Mayerhofer. (p. 102).
Figura 33: Mutirão de colheita de arroz no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
(p. 104).
Figura 34: Roque Mateus no mutirão de colheita de arroz no Varadouro. Cananeia, 2012.
Foto: Joana Corrêa. (p. 104).
Figura 35: Fandango após o café da manhã, no dia seguinte ao mutirão e à noite de fandango.
Varadouro, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 109).
Figura 36: Mulheres ouvindo música mecânica no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 109).
Figura 37: Domingueira com a Família Neves no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 109).
Figura 38: Instrumentos de Arnaldo Pereira. Ariri, Cananeia, 2012. Foto: Leco de Souza. (p.
116).
Figura 39: Capa do CD Viola Fandangueira, gravado pelos grupos Viola Quebrada e Família
Pereira, 2002. (p. 126).
Figura 40: Integrantes da Família Pereira que participaram da gravação do CD Viola
Fandangueira. Da esquerda para a direita, de pé, Anísio, Heraldo, Jersi, Agnardo, Arnaldo e
Vicente França, abaixados, José, Leonildo e Nilo. 2001. Foto: Bela Pagliosa. (p. 126).
Figura 41: Ensaio dos integrantes do Viola Quebrada com a Família Pereira em quarto de
hotel. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 140).
Figura 42: Passagem de som dos integrantes do Viola Quebrada com a Família Pereira no
CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 141).
Figura 43: Viola Quebrada e Família Pereira no espetáculo “Caipiras e Caiçaras” no CCBB.
São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 143).
Figura 44: Público do espetáculo no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 143).
Figura 45: José Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 144).
Figura 46: Arnaldo Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 144).
Figura 47: Laerte Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 144).
Figura 48: Leonildo Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 144).
Figura 49: Leonildo e Laerte Pereira fazendo uma demonstração de batidos. São Paulo, 2012.
Foto: Joana Corrêa. (p. 145).
Figura 50: Viola Quebrada, os Pereira e Mario de Aratanha, diretor artístico do projeto
Ser(tão) Brasil, no camarim do CCBB, conversando sobre o repertório da segunda
apresentação. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 145).
Figura 51: Esquema coreográfico da dança do fandango. (p. 160).
Figura 52: Tamancos confeccionados por Leonildo Pereira. Guaraqueçaba, 2002. Foto:
Alexandre Pimentel. (p. 162).
Foto 53: Tocadores da Família Pereira no I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara.
Guaraqueçaba, 2006. Foto: Leco de Souza. (p. 166).
Foto 54: Dançadores da Família Pereira no I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara.
Guaraqueçaba, 2006. Foto: Leco de Souza. (p. 166).
14
 

Introdução
 
A partir do entendimento que as culturas populares protagonizam importantes
processos sociais – tais como movimentos identitários afirmativos, processos de
patrimonialização e uma vasta produção que dinamiza o mercado cultural – esta pesquisa
investiga as diversas formas de construção social e noções de pertencimento de uma
expressão singular, o fandango, que se reveste de múltiplos significados em seus modos de
fazer.

Nesta introdução apresento os primeiros passos de minha inserção no mundo do


fandango, iniciados antes de meu retorno à universidade para desenvolvimento deste trabalho
acadêmico. Abordo também a trajetória de transformação da experiência social por mim
vivenciada na proposta desta pesquisa, destacando o recorte etnográfico, os interlocutores
privilegiados e as demais fontes utilizadas. Por fim, apresento a organização desta dissertação,
sintetizando o conteúdo de cada um dos capítulos.

Adentrando o contexto social do fandango

Quem conhece fandango e já visitou a região certamente já ouviu falar na família


Pereira, pois em seu seio há muitos fandangueiros ativos que se destacaram e ganharam maior
notoriedade nas últimas décadas. Eles confeccionam e vendem instrumentos, participam de
fandangos e integram grupos em pelo menos três municípios – Paranaguá e Guaraqueçaba, no
Paraná, e Cananeia, em São Paulo.
Obtive pela primeira vez informações sobre esta família em 2001, quando estava
envolvida na produção de uma série de espetáculos musicais, intitulada Rabequeiros,
contratada pelo Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro para se realizar no segundo
semestre de 2002. O projeto foi um dos primeiros da recém-criada Associação Cultural
Caburé, uma organização sem fins lucrativos da qual faço parte, voltada para a pesquisa e a
produção cultural, reunindo sete amigos cariocas atuantes em uma rede urbana de artistas,
produtores e pesquisadores especialmente interessados em conhecer, dialogar e difundir
manifestações culturais populares brasileiras1.

                                                                                                               
1
Os integrantes da Caburé eram, na época, em sua maioria universitários ou pós-graduandos de classe média
urbana no Rio de Janeiro. Participavam ou já haviam participado de outros núcleos de pesquisa e recriação
artística do universo popular brasileiro, como os grupos musicais Cordão do Boitatá e Gesta, e ainda do grupo
teatral Boi Cascudo. A Caburé, mais tarde, recebeu a adesão de novos integrantes, com perfis semelhantes.

 
15
 

A série Rabequeiros, composta por cinco espetáculos, envolveu um apanhado de


diferentes usos da rabeca na música de tradição popular brasileira, abarcando gêneros como as
folias de reis do norte mineiro, o cavalo marinho pernambucano, entre outros, além do
fandango sulista2. Planejamos, de forma independente, uma viagem3 à região para
conhecermos músicos e grupos que pudessem representar o fandango em um espetáculo que
também previa um diálogo no palco com músicos ligados à folia e à catira da região norte de
Minas Gerais.
Na época, tínhamos apenas algumas referências sobre o fandango. Tivemos acesso
prévio a alguns fonogramas registrados em LP nas décadas de 1970 e 1980 pela série Música
Popular do Brasil, da gravadora Marcus Pereira Discos, além de algumas gravações
registradas e publicadas entre 1998 e 2000 pelo projeto de mapeamento sonoro Música do
Brasil, coordenado pelo antropólogo Hermano Vianna. Nas pesquisas e contatos prévios,
acionamos uma rede de músicos e pesquisadores de cultura popular paulistas e paranaenses
que já haviam se dedicado a viagens e projetos na região. Foi então que soubemos que o
grupo curitibano de música caipira Viola Quebrada estava gravando um CD com repertório
integralmente dedicado ao fandango, que seria lançado em 2002, com o título de Viola
Fandangueira. O grupo dividia o álbum duplo com outro formado por membros da família
Pereira e que, segundo nos informaram na época, faziam um fandango “bem tradicional”.
Procuramos reunir, então, mais algumas informações sobre a família Pereira. Por seus
integrantes estarem vinculados ao meio rural, desde o primeiro momento, pareceu-nos ser a
melhor opção para o projeto. Mesmo sendo a Caburé composta por pessoas associadas ao
ambiente de pesquisas acadêmicas, em especial no campo da antropologia, acreditávamos que
representariam de maneira mais adequada o fandango e seu sistema cultural. Havíamos
também reunido algumas informações sobre o Grupo Folclórico Mestre Romão, de
Paranaguá, uma espécie de continuação de um grupo formado na década de 1960 por
incentivo do folclorista Inami Custódio Pinto4. Nesse grupo, apesar de os músicos serem de
idade mais avançada, os dançadores eram crianças e jovens caracterizados com roupas
floridas e padronizadas. As questões que, naquele momento, perpassaram a definição de um
dos grupos remetem a um dos temas que trataremos no primeiro capítulo, qual seja, a decisiva
                                                                                                               
2
A série musical foi idealizada pelo geógrafo e produtor musical Alexandre Pimentel, também integrante da
Associação Cultural Caburé. Minha função no projeto era a de produtora. Os demais membros da Caburé foram
colaboradores do projeto tanto em debates conceituais e de programação, quanto no desempenho de algumas
funções específicas nos dias de espetáculo.
3
A viagem à região foi feita em companhia de Alexandre Pimentel.
4
Cabe destacar, contudo, que houve cerca de duas décadas de intervalo entre a primeira formação, sob comando
do violeiro Manequinho da Viola, e a segunda formação do grupo comandado por Romão Costa, conhecido
como Mestre Romão.

 
16
 

participação das categorias operadas pelo folclorismo na constituição do que hoje


compreendemos como cultura popular. Ao tendermos a escolha para o grupo da família
Pereira, estávamos ali imbuídos de categorias como “autenticidade” e “espontaneidade”
empregadas recorrentemente por folcloristas e por tantas pessoas que se interessam e
participam do campo das culturas populares. Contudo, tentávamos reversamente evitar
práticas inauguradas pelos folcloristas repudiando os excessos que nos pareciam ter sido
cometidos na proposta de organização de grupos folclóricos, que apenas representariam uma
realidade não mais presente5.
De toda sorte, a viagem foi fundamental para adentrarmos o contexto social do
fandango e travarmos contato com aqueles que participariam da série. Essa primeira incursão
se deu entre dezembro de 2001 e janeiro de 2002, nos municípios de Iguape e Cananeia, em
São Paulo, Guaraqueçaba, Paranaguá e Morretes, no Paraná. Por meio dos contatos
previamente acionados, identificamos que nesses municípios seria possível encontrar
conhecedores e praticantes do fandango. Nossa atividade envolveu visitas às casas de nomes
que levávamos como referência, buscando ampliar essa rede de encontros durante a viagem.
Visitamos também espaços institucionais, como museus, secretarias de cultura e centros
culturais, dialogando com pessoas apontadas como informantes privilegiados.
Foi nessa ocasião que, de fato, experimentei o dinamismo e a complexidade desse
campo. Constituição de grupos relativamente fixos, associações e espaços de
institucionalidade se imbricavam e contrastavam com memórias da vida rural e histórias de
famílias. Encontramos parcela significativa das pessoas relacionadas à prática do fandango
em suas casas nas periferias dos municípios percorridos6. Em sua maioria adultos e idosos que
haviam morado grande parte de suas vidas nos chamados sítios, palavra usada por eles tanto
para designar pequenas propriedades rurais litorâneas e interioranas, como ainda um
aglomerado dessas.
Os motivos apontados para suas mudanças para as áreas urbanas, em geral, indicavam
o acesso a melhores condições de trabalho e a serviços básicos como saúde e educação. Estas
                                                                                                               
5
Recentemente, quando apresentei alguns trechos audiovisuais sobre fandango na 35o Reunião Anual da
Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), uma professora que integrava o Grupo de
Trabalho reagiu com certa indignação às imagens de grupos paramentados, denotando desconfiança sobre tal
opção como se comprometesse a autenticidade do fandango. Conforme abordarei no primeiro capítulo, o anseio
por encontrar um certo purismo idealizado entre aquilo que se pensa como cultura popular permeia também
ambientes acadêmicos. Para aqueles que têm algum interesse pelo tema, mas não muita afinidade, o próprio
termo folclore é muitas vezes evitado, como se estivesse imbuído de uma operação de desvirtuamento de formas
originais.
6
Em Iguape, na Barra do Ribeira e no Rocio. Em Cananeia, no Acaraú e no Carijo. Em Paranaguá,
principalmente na Ilha dos Valadares. Em Guaraqueçaba, no Rocio e no Cerquinho. Em Morretes, na Vila Raia
Velha e na Vila Ferroviária.

 
17
 

questões sempre vinham acompanhadas pela menção a dificuldades enfrentadas frente às


restrições ambientais que se colocaram para os sitiantes com a criação de grandes unidades de
conservação a partir da década de 1960.
A região do litoral sul de São Paulo e norte do Paraná abriga hoje a maior extensão
territorial de mata atlântica preservada no Brasil. São reservas, parques e áreas de proteção
ambiental que se interligam e se sobrepõem sendo controladas de órgãos estatais de gestão e
fiscalização. O processo de conservação dessas áreas naturais foi mobilizado como via de
barragem às pressões da especulação imobiliária na costa brasileira a partir dos anos de 1950.
Fruto da expansão urbano-industrial, o modelo de ocupação se desenvolveu ancorado no
aproveitamento econômico de recursos naturais e no crescimento da prática do veranismo.

Domínio de Mata Atlântica


 
Áreas remanescentes de Mata
  Atlântica

Figura 1: Mapa do Brasil com destaque para a região de domínio da Mata Atlântica
e áreas remanescentes da Mata Atlântica

Fonte: Conselho Nacional Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 20047

Segundo Diegues (2000), o modelo conservacionista e preservacionista8 adotado pelo


Brasil e por países do Terceiro Mundo acompanhou a perspectiva formulada pelos EUA e por
países do Primeiro Mundo a partir do final do século XIX. Esse modelo defende a
demarcação de espaços naturais protegidos pelo Estado, onde a presença humana constante é
refutada por ser considerada nociva à conservação ambiental. Apenas a visitação controlada é
tolerada e até mesmo incentivada, de forma a possibilitar que cidadãos urbanos desfrutem de
                                                                                                               
7
Acesso em 08/03/2013 http://www.rbma.org.br/anuario/mata_02_dma.asp
8
Em O mito moderno da natureza intocada, Diegues (2000) trata das diferentes correntes e movimentos de
proteção à natureza gestadas nos Estados Unidos, apresentando seus impactos e desdobramentos no Brasil, em
especial no que diz respeito às intervenções sofridas pelas populações tradicionais residentes nas unidades de
conservação ambiental.

 
18
 

momentos de fuga eventual da experiência de vida citadina. No processo de demarcação de


áreas de proteção ambiental “quase nunca governos avaliam os impactos de criação de
parques sobre o modo de vida dos moradores locais que, muitas vezes, tinham sido
responsáveis pela preservação de áreas naturais” (Diegues, 2000, p. 19).
Na região que pesquisada, os moradores que resistiram à venda ou à expulsão de suas
terras durante processos anteriores de especulação, enfrentaram o gradual tolhimento de suas
práticas por meio da intervenção de políticas conservacionistas.

Nós trabalhávamos em plantação de arroz de mandioca de feijão, fazia aquela lavoura


do tempo, rama, milho, arroz, aquela época que era o tempo de plantar. Roça uma
coisa e outra, fazer aquela lavoura nossa. Dali que nós arrumava as coisas pra se
manter, que pra vender não adiantava não tinha preço. Nós tinha de sobra que dava
pra comer bastante. Então meu serviço era esse desde pequeno, meu pai me levava
pro mato. Nós fazia aquele canoão, de canela, aquelas madeira grossa. Eu tinha um
machado, que eu já ia com ele, ele mandava eu cortar, e eu ia cortando, cortando.
Passava o dia todo com ele no mato, levava uma penca de banana madura, farofa, um
café. Lá nós ficava até de tarde. Vinha embora e a gente vinha comer alguma coisa
em casa. Desde pequeno, idade de 12 anos eu já fazia isso. Já roçava, cavava ia pro
mato com eles assim. Plantação de tudo que nós fazia. Criava algum animal, galinha
sempre nós tínhamos, algum porquinho. Nós vivíamos é dessas coisas no sítio, que
não tinha emprego. (João Dias, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo
do Fandango, Cananeia, 2005)

A gente vivia só de roça. Roça de arroz, milho, rama, criação de galinha... O


mantimento, quando não tinha de fora – o mantimento que eu trato é a mistura, pro
feijão e arroz - a gente matava galinha, porco também tinha... Era farto, aquele tempo.
(José Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango,
Cananeia, 2005)

A demarcação de unidades de conservação coibiu atividades de subsistência e pequena


renda, como caça e extração de recursos naturais. Restringiu também o cultivo de roçados que
serviam à alimentação familiar, cujos excedentes eram usados como capital de troca nas
vendas e mercados para aquisição de produtos como óleo, sal, açúcar, tecidos, dentre outros.

Negócio de puxirão era no sítio, lá fazia. Os meus tios faziam puxirão pra plantar.
Convidava aquele povo. “Amanhã, sábado, vocês vão roçar pra mim lá e na outra
semana fazemos pra outro. E fazemos assim”. Então fazia. Aquele que não ia, não
participava do fandango. (Seme Balduíno, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)

Fazia aquele mutirão pra roçar, pra derrubar, limpar pedra, puxar canoa. Meu pai
fazia canoa de madeira, canoas grandes. Ficava longe pra trazer de lá pro porto, pro
mar: distância de seis, sete quilômetros de mato fechado. Então eles faziam as canoas
grandes e não dava pra puxar sozinho, tinha que fazer mutirão. Trinta, quarenta
pessoas, ou vinte pessoas, pra puxar pra baixo. (...) Daí puxava a canoa, vinha
embora. Botava as comidas, tudo. Ficava por ali. Aí, à noite começava o fandango.
(Nemésio Costa, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango,
Paranaguá, 2005)

 
19
 

Os mutirões9 de trabalho, fundamentais para dinâmica econômica e social, foram


também inibidos em decorrência das restrições aos roçados. Também serviços básicos, como
educação e saúde, foram progressivamente desativados ou jamais oferecidos. Novas
construções para abrigar a expansão familiar, bem como a abertura e manutenção de trilhas
passaram a ser controladas. A retirada de moradores das áreas onde foram criadas unidades de
conservação não se deu, portanto, sob forma de desocupação forçada e intensiva, mas por
pressões exercidas tanto pela fiscalização ambiental, muitas vezes truculenta, como pela
desassistência estatal aos moradores dessas localidades.

Com certeza a gente tinha de tudo, não passava mal, não. A nossa alimentação... A
gente tinha conforto. Uns já tinham porco, plantação, criação e afinal se dedicava a
caçar no mato. Nós ia, fazia o mundéu, ia com cachorro caçador, matava a caça. A
gente se alimentava. Não tinha essa tragédia que está acontecendo hoje. Se vai lá,
mata, pega uma caça e vai preso. Meu Deus, a situação está uma pobreza. Ele não
pode se dedicar ali no mato, a viver no mato mais, tem que sair (...) agora tudo bem,
matar e judiar demais, não. Mas eu acho que o pacto é pra alimentação, mas tinha que
ter uma preferência para o pessoal sobreviver no sítio, para o povo viver no sítio, para
o povo plantar, para se manter e para manter o comércio, da parte do governo. Porque
sem o pessoal plantar não dá. (Eugênio dos Santos, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)

Eu vim por causa das minhas crianças e por conta de socorro. Era muito difícil pegar
uma criança lá e trazer de canoa pra Guaraqueçaba, se tornava muito difícil de mais,
muita dificuldade. Hoje não parece ser muito, mas melhora o pronto socorro. Tem
telefone pra Guaraqueçaba, então a saúde vem me atender. (Leonildo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005)

Ao longo da viagem, travamos contato também com grupos organizados que faziam
oposição ao modelo ambiental restritivo. Em Barra do Ribeira, distrito costeiro de Iguape,
conhecemos integrantes do grupo de fandango Jovens da Jureia, articulados à União dos
Moradores da Jureia. Esta organização social havia sido formada por ex-moradores e
descendentes de ex-moradores de sítios localizados na área onde, em 1986, foi demarcada a
Estação Ecológica da Jureia, uma das maiores unidades de conservação de mata atlântica do
país.

A gente morava todo mundo na Jureia, o pessoal lá vivia da pesca e da agricultura,


um pouco de extrativismo, e aí em 86 criaram a Estação Ecológica da Jureia. E aí
                                                                                                               
9
Os mutirões seguem a ideia maussiana de reciprocidade: uma família que convoca outras famílias da mesma
localidade ou do entorno para um mutirão fica obrigada não apenas a receber bem os convivas, como participar
de novos mutirões organizados por outras famílias que em sua casa estiveram. O dia ou meio dia de trabalho é
seguido por um fandango, feito muitas vezes no ambiente doméstico, pois os mutirões estão duplamente
associados à esfera do trabalho e do divertimento. Atualmente, com o esvaziamento dos sítios e a redução das
lavouras, os mutirões são menos freqüentes, embora continuem a ser praticados em algumas áreas rurais.

 
20
 

vieram vários ambientalistas, pessoal do governo, dizendo pra essas comunidades que
ali ia se criar um santuário ecológico, e que iam tirar todos os veranistas,
latifundiários, e que as comunidades iam ficar na boa, que o progresso ia pra lá... Aí
tudo bem, o pessoal acompanhou isso, ficavam, vinha muitos pesquisadores,
entrevistando o pessoal, e tudo mais... E aí de repente, quando fizeram a lei, em 86,
proibiram todas as atividades dos moradores, que era a pesca, a agricultura, manejo de
palmito, caixeta, a questão de andar pelas trilhas. Na verdade, todas as atividades dos
moradores foram proibidas. E as comunidades começaram a ver como que era um
santuário ecológico e que a gente ia ficar aqui e de repente não podia mais pescar,
nem caçar, nem tirar palmito, nem fazer mais nada. E aí as pessoas foram obrigadas a
começar a sair da Jureia, ir pro município de Peruíbe, ou de Iguape, ou de Miracatu, e
começou a esvaziar a comunidade. Entrou uma repressão muito grande da polícia
florestal e guarda-parque. Tinha até comando especial do exército, fazendo
treinamento na Jureia. E começou uma perseguição muito grande desses guarda-
parques, e a comunidade começou então a ser multada, ser proibida de fazer as
atividades. Aí teve que se organizar. O pessoal ia da Jureia pra cidade, chegava na
cidade não tinha uma profissão, voltava pra Jureia, já não tinha mais agricultura,
então ficou uma loucura. E a gente conhecia todas essas comunidades, tinha mutirão,
tinhas as festas religiosas, tinha várias coisas. E aí surgiu em início de 90 a União dos
Moradores da Jureia, se organizaram em uma associação e começamos a participar,
então, da discussão da Jureia. A primeira reunião que foi marcada foi com o deputado
que criou a lei de Estação Ecológica, o Rubens Lara. E a gente começou a entender o
que era Estação Ecológica, que era uma lei restritiva e que essa lei não permitia fazer
nada na Jureia, nem construção, nem reforma, nem limpeza de trilha, e a questão da
pesca... Nada daquilo que a comunidade fazia, não podia fazer mais... E começamos,
então, nessas reuniões, reivindicar os direitos perante as entidades ambientalistas e o
governo. E eu participava de toda essa discussão e levava isso pra dentro da Jureia,
pras comunidades, e voltava pra Iguape, pra São Paulo, pra outras cidades, das
reuniões que tinham das associações de moradores junto com o governo, pra ver o
que estava acontecendo e levar sugestões e propostas. E aí eu vi a importância desses
jovens, que estavam saindo pra cidade, perdendo os conhecimentos da sua cultura,
que voltassem pra Jureia. Isso era o nosso objetivo, da União dos Moradores da
Jureia. Então a gente criou, em 93, a Associação dos Jovens da Jureia. A maioria dos
jovens já tinha ido pra cidade, a maior parte tinha vindo pra Barra do Ribeira, então
houve a necessidade de criar uma associação, por causa da questão jurídica, pra
buscar projetos de geração de renda. (Dauro Marcos do Prado, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Iguape, 2005)

De acordo com Diegues (2000, p.130), o ecologismo vinculado a causas sociais no


Brasil começa a emergir na década de 1980, em um contexto de intensificação do
desmatamento da Amazônia brasileira. Esses movimentos defendem uma convivência
harmônica de populações tradicionais com os ambientes naturais com os quais interagem, por
meio de práticas de manejo e aproveitamento de uso sustentável como elos que contribuem
para a conservação da natureza. Nesses contextos, a noção de “população tradicional” passa a
ser um forte operador de resistência, que aciona a legitimidade de direitos territoriais em áreas
de conflito com o interesse público ou privado. Ela implica definir um sistema de práticas e
conhecimentos que especifiquem diferentes simbologias e relações de uso de determinados
conjuntos naturais. Assim, principalmente na região costeira de São Paulo, a categoria
“caiçara”, antes também empregada como termo pejorativo para se referir à população local
de baixa renda vinculada à pesca, passa a ser destacada como emblema identitário (LEAL,

 
21
 

2000), sobrepondo-se na arena política de confrontos e negociações a outras noções de


pertencimento comumente acionadas pelos moradores locais, como caipiras, caboclos ou
bugres.
Quando conheci, nessa primeira viagem, Romão Costa, ou Mestre Romão, um famoso
fandangueiro de Paranaguá, ele ainda guardava muitas restrições à noção de caiçara.

De primeiro, aqui em Paranaguá, tinha caboclo. Porque veja só: a primeira família do
africano com índio fez mameluco. Depois do mameluco, aí veio o branco com índio,
deu caboclo. Me sinto como caboclo. Porque caiçara, eu tive vendo num dicionário,
de São Paulo pra lá, é uma cerca, feita de vara, com coluna de madeira, indígena.
Então aquela cerca chama-se caiçara. Aí dentro tem uma cabana de um índio que
toma conta, chama-se vagabundo, borel, preguiçoso... E o caboclo é gente
trabalhador! Se não fosse o caboclo, não existia os grandes fazendeiro. O caboclo é
que pega na enxada pra trabalhar pro grande fazendeiro. Está escrito na coisa, quê que
eu vou fazer? Vou tirar? (Romão Costa, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)

Já Aorélio Domingues, fandangueiro mais jovem também de Paranaguá, compreendia


que a dificuldade dos ex-sitiantes em se assumirem como caiçaras, ou mesmo como caboclos,
era fruto de preconceitos sofridos na cidade.

Eu participei de três ensaios com o grupo do Mestre Romão. E fui lá aprender, achei
interessante que o pessoal tava se interessando pela tradição. Só que eu saí do grupo
na época porque eu não gostei, tinha o Seu Romão que ensinava, mas tinha um outro
rapaz que vinha de Curitiba, era coreógrafo na época, não me lembro, acho que do
Teatro Guaíra, não me lembro realmente quem era. Ele ajeitava a postura dos
meninos. E fazia os meninos dançarem “Ah, dança assim, dança assado”. Ele era
muito áspero, e às vezes ele falava umas coisas que eu já tinha consciência de que não
era bem assim, né? Ele falava coisas do tipo: “Ah, levanta esse ombro! Pega a
menina com o braço mais em cima, você parece que é um caboclo, parece que é lá do
mato, lá do meio do sítio!” E tinha gente da Cotia, gente do Valadares. O Valadares
sempre sofreu muito preconceito do povo da cidade. Por isso que as coisas ficam
reservadas lá, porque quem é do sítio mora no Valadares. Quem se assume como
caiçara, mora no Valadares. A cidade já vinha daquele processo de industrialização,
“não, nós somos da cidade, nós não falamos com sotaque”, e fala, até hoje, o pessoal
fala cantado, não tem muita diferença. Aqui no Valadares o pessoal fala mais cantado,
e eu sou de lá, nunca neguei isso. E na época, quando esse coreógrafo falava isso, isso
me ofendia muito. Eu não gostei, participei de três ensaios, e saí. (...) Historicamente,
o caiçara era visto aqui em Paranaguá, como o povo do sítio, o povo litoral, o povo
preguiçoso. Só que as pessoas não viam que, quando eles vinham no mercado, e viam
as pessoas tudo na beira da praia, às dez horas da manhã, sem trabalhar, sem fazer
nada, só sentado, conversando, as pessoas não viam que os pescadores estavam ali
vendendo peixe. Desde as três horas da manhã, já estavam no mar, mar grosso,
puxando rede, coisa e tal. Eles estavam ali só já vendendo seu produto. Quando as
pessoas vinham pra cá, elas tinham essa mentalidade, que é um povo vadio, um povo
preguiçoso. É uma outra cultura, mas se deve respeitar. E também o povo começou a
assumir, porque o povo não queria ser visto como preguiçoso, automaticamente, não
queria ser visto como caiçara, e começa a se negar. Paranaguá sofreu muito, até com o
desaparecimento de várias manifestações populares, por não querer assumir a
identidade. As pessoas tinham vergonha de se mostrarem paranaguaras. Vergonha de
se mostrar, principalmente, do sítio, né? Jamais falaria que é do sítio, caiçara nem
pensar. E isso ainda persiste até hoje. Você vê que, um exemplo disso é o Mestre

 
22
 

Romão. O Mestre Romão não se assume como caiçara, de jeito nenhum. (Aorélio
Domingues, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango,
Paranaguá, 2005)

Aorélio, contudo, acreditava que esses termos vinham passando por um processo de
ressiginificação.

Já os jovens não, os jovens se assumem como caiçaras. É como o bagrinho, né?


Bagrinho foi um apelido que o paranaguara recebeu por ser do litoral. O bagrinho é
um peixinho, um peixe que dá em qualquer valeta, em qualquer lugar tem bagre. Ele é
um peixe muito à toa. E come qualquer porcaria. Então, ser chamado de bagrinho, na
época, era muito pejorativo. Foram na verdade os curitibanos que taxaram os
paranaguaras como bagrinhos. Mas só que o litorâneo é muito tirador de sarro, leva
tudo na brincadeira. E, num determinado momento, teve um movimento parananguara
que começou a divulgar que ser bagrinho era ser liso e de espora, que a espora do
bagre é doída, e quem é liso é esperto, e o bagrinho é um peixe esperto. Então teve
uma nova mentalidade. Lançaram em Curitiba o Centro Paranaguense, que existe até
hoje, que as grandes personalidades do Paranaguá vão até Curitiba receber o Bagrinho
de Ouro, que é um troféu que é um privilégio muito grande pra qualquer paranaguara.
O cara tem que trabalhar muito, e receber um Bagrinho é um orgulho muito grande.
Eu, particularmente, gostaria muito...[risos] (Aorélio Domingues, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)

Ou seja, se antes ser chamado de caiçara demarcava um estigma, por meio da


reelaboração de suas distinções e peculiaridades, passa a corresponder a um sentido de
carisma grupal (ELIAS e SCOTSON, 2000). Torna-se, portanto, uma âncora identitária
(VELHO, 2000) fundamental na constituição do prestígio para grupos sociais marginalizados
durante o processo de reorganização espacial da região.

Eu sou nascido num sítio, eu sou o caiçara, o caipira legítimo. Eu não nego, pra mim
isso é muito bom, ser o caipira legítimo. (João da Toca, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Cananeia, 2005)

É como um amigo meu me falou um dia: “Rubens, você pode viajar, você pode ir
pra onde for, pode morar... só que você vai ser sempre o que você é, tem espírito
humilde, tem espírito de caiçara, o teu modo de falar sempre vai ser aquele”, porque
tem pessoas que tem vergonha de ser o que é, isso não pode, ninguém ter vergonha
de ser o que é. Isso de mudar a fala, porque o cara da cidade fala bonito, ou se mora
aqui, você vai lá e já volta falando... isso aí é ridículo, acho que você tem que ser
aquilo que você é, não adianta... isso é bonito. (Rubens Muniz, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005)

Pra gente viver mais juntos, os irmãos, os tios, pra estarem todos mais juntos pra não
perder essa cultura que a gente tinha... E hoje, a gente lutando, querendo voltar lá
pro sítio, tendo uma Associação, pra gente brigar, fica mais forte, pra gente estar
lutando, todo mundo junto, né? (Glória do Prado em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Iguape, 2005)

Em função desse movimento de resistência, conhecemos também muitas vilas e sítios,


mesmo dentro de unidades de conservação, onde os moradores conseguiram manter suas

 
23
 

residências sem ceder às pressões de evasão. Exemplo emblemático é o da comunidade do


Marujá, assim como de outras vilas caiçaras que permanecem dentro da área do Parque
Estadual da Ilha do Cardoso, em Cananeia, criado em 1962, como unidade de proteção
integral. Ao longo de décadas, os veranistas foram impedidos de manter suas casas e aqueles
reconhecidos como moradores tradicionais se tornaram operadores de um sistema de
receptivo turístico comunitário, organizado e apoiado pelas sucessivas gestões do parque.
Voltando nosso olhar ao fandango, surpreendemo-nos com a quantidade de grupos
constituídos em especial nos municípios de Cananeia e Paranaguá, com alguns fatores
distintivos entre os dois cenários de maior pujança. Em Cananeia os grupos eram compostos
somente por músicos que se apresentavam para que o público dançasse o bailado ou mesmo
somente para a apreciação musical do fandango. Muitas das pessoas que conhecemos nos
relataram que o tamanqueado e as marcas batidas do fandango não eram mais praticados há
pelo menos uma geração nas áreas urbanas de Cananeia e nem mesmo em distritos ou vilas
rurais. Já em Paranaguá, havia o predomínio dos grupos que se apresentavam com músicos e
dançarinos, sendo impressionante o envolvimento de crianças e jovens dançadores que se
dividam entre o Grupo Folclórico Mestre Romão, os Caiçaras do Paraná e o Mandicuéra.
O interesse dessas novas gerações pelo fandango havia sido incentivado por meio de
oficinas e por oportunidades distintivas, como se apresentar em público e fazer pequenas
viagens a encontros e festivais. Passamos a melhor compreender esse processo de ensino-
aprendizagem estimulado e formalizado quando percebemos o lugar de institucionalidade do
fandango que se destacava em Paranaguá. Havia na Fundação Municipal de Cultura um cargo
de direção, subordinado à presidência, destinado à gestão dos grupos de fandango no
município. O Grupo Folclórico Mestre Romão estava formalmente vinculado à Fundação por
meio de uma associação, sendo apoiado com transporte, indumentária e necessidades de
apresentação. Os cerca de dez músicos, incluindo Mestre Romão que orientava as marcas
coreográficas dos dançarinos, recebiam ainda um auxílio mensal. O grupo, por sua vez,
oferecia uma contrapartida à Prefeitura em apresentações regulares realizadas em espaços
públicos de circulação turística, eventos e datas comemorativas.
Chamou-nos também a atenção o fato de ouvirmos de tantos fandangueiros que “o
fandango estaria morto”, em contraste com uma cena profícua, com grupos em atividade,
bailes e publicações recentes que encontramos. O sentido de morte nos pareceu, contudo,
remeter a um tempo de mudanças. Muitos daqueles que viveram nos sítios e participaram de
fandangos realizados em momentos festivos ou associados ao ambiente de trabalho em
sistema de mutirão não reconheciam nessas novas formas de organização algo que

 
24
 

expressasse a vitalidade que haviam experimentado no passado. Embora esse passado fosse
impreciso historicamente, era sempre acionado nos relatos sobre o fandango trazendo seus
sentidos ordenadores. Contar do tempo dos sítios era a principal maneira de nos explicarem o
fandango.

No dia do pixirão, sábado, vinha aquele pessoal de um lado, outro do outro, se


juntava 30, 40, 50 no pé de morro. Mandava arrastar tudo, derrubar, pra depois fazer
o pixirão pra plantar, fazer aquele pixirãozão, plantava. Aquela roça tinha um dia pra
montar, porque era muito grande as roça que faziam. E depois de plantar, o pixirão
pra limpar, pra carpir. E de noite usava os fandango. Era só fandango, duas violas
para um lado, um pandeiro como dizem, uma dupla, um rebequista tocando rebeca.
Tocando e cantando sabe? Tocava uma moda batida e um valseado, mais uma
batida, tocava uma valsa, um batida, tocava uma meia canja e assim ia indo. Cada
música tem um nome. Agora deixaram morrer isso aí, já morreu... Agora querem
fazer reviver de novo, agora não adianta, já morreu tudo o pessoal que fazia isso aí.
Violeiro tá se acabando, só tem eu fazendo viola, mas eu mais faço de que toco.
Mais faço, não tenho tempo de ficar tocando viola. (Martinho dos Santos, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Morretes, 2005)

O carnaval era com o fandango. Naquele tempo quando era novo, nem baile quase
não havia, no reduto inteiro era só fandango (...) Dia de Carnaval, era sábado,
domingo, segunda, terça até meia-noite. Quando chegava ali, o enterramento do
Carnaval. Os de hoje não têm mais respeito disso. O pessoal tão num jeito que é só
Deus quem sabe. Por isso nós estamos vendo muita coisa que nem era pra ver.
Estamos vendo por causa do capricho do pessoal. (...) É por causa da quaresma, que
hoje o pessoal nem respeita mais. (Rufino de França, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Morretes, 2005)

Daí no outro dia, domingo, fazia a domingueira, quando era onze e meia o dono da
casa dizia “olha, terminou o horário da brincadeira”, e meia-noite ninguém mais
dançava. Meia-noite, antes de terminar o fandango, desafinava a viola, botava ela de
boca pra baixo, na parede, fazia uma oração de pai-nosso e ave-maria, e todo mundo
ia embora. Eles só iam pegar na viola sábado de Aleluia, depois que o padre batia o
sino. (Romão Costa, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, Paranaguá, 2005)

A grande maioria dos fandangueiros que conheci preferia falar do fandango voltando a
narrativas sobre “aquele tempo”, que remetia à vida nos sítios e aos mutirões. Contudo, havia
um cenário evidente de formação de grupos que, logo soubemos, não era algo tão recente. O
primeiro grupo de fandango que se tem notícia na região remete à década de 1960, com
fandangueiros oriundos de vários sítios e vilas que haviam migrado para a Ilha dos Valadares.
Manequinho da Viola, já falecido, e Romão Costa estiveram à frente do grupo que se formou
por incentivo do folclorista Inami Custódio Pinto. Na década de 1970, fandangueiros de
Morretes, como Martinho dos Santos e Rufino França, participaram de um grupo semelhante,
reunindo fandangueiros de várias localidades. Segundo eles, Helmosa Salomão Ritcher, uma
influente professora local que tinha muito apreço pelo folclore, foi quem arregimentou os
músicos e dançadores, assumindo a liderança do grupo. Na década de 1990, Romão Costa

 
25
 

montou um novo grupo em Paranaguá e, em Cananeia, nasceu o Violas de Ouro, constituído


por parentes e amigos que residem nos bairros rurais vizinhos de São Paulo Bagre e
Agrossolar. Instigou-me, portanto, desde o princípio o contraste entre memórias muito vivas
que explicavam o fandango a partir do modo de vida nos sítios e assertivas sobre a morte do
fandango que pareciam desconsiderar a potência dos novos trânsitos.

O Museu Vivo e meu posicionamento no fandango

Após a realização do projeto Rabequeiros – que de fato contou com a participação dos
Pereira no espetáculo dedicado ao fandango – voltei algumas vezes à região com o desejo de
estreitar relações e pensar em outras ações culturais que colaborassem para uma maior
articulação entre os grupos e iniciativas que conhecemos. Acreditava que seria importante
aproximar e acionar elos entre grupos e iniciativas em curso nos municípios.
No momento inicial de constituição da Associação Cultural Caburé, nossos encontros
eram frequentes. Reuníamo-nos para troca de experiências e colaboração mútua em projetos
culturais que estabeleciam subgrupos de interesse. Acompanhávamos também as discussões
em torno das políticas públicas para as culturas populares. Na época, estava em curso a
implementação do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, promulgado pelo governo
federal em 2000. A regulamentação do programa trazia para o campo das culturas populares
debates renovados sobre práticas de registro e salvaguarda de expressões culturais de cunho
tradicional.
Nesse cenário, começamos a desenhar o projeto Museu Vivo do Fandango, que
marcou minha aproximação e atuação mais sistemática no contexto do fandango. Partindo da
escuta dos interlocutores – atores sociais diversificados envolvidos com o fandango e
representantes de organismos públicos municipais e estaduais –, propusemos uma atuação em
múltiplas frentes que favorecesse uma maior articulação entre agentes e ações relacionadas ao
fandango.
No Paraná, circulavam muitas publicações ratificando um sentimento de exclusividade
do fandango como ícone da representação da cultura popular nativa do estado. Já em São
Paulo, o fandango era mais fortemente associado ao modo de vida caiçara. O contato entre
fandangueiros paulistas e paranaenses se mostrava na época bastante restrito. Esse

 
26
 

afastamento parecia estar relacionado, dentre outros fatores, a uma dificuldade real de
circulação entre o litoral dos dois estados10.
O aspecto central do Museu Vivo do Fandango era, portanto, o estímulo à interação
entre praticantes e práticas do fandango de municípios litorâneos de São Paulo e do Paraná. A
ideia de museu vivo11 foi pensada como uma rede de troca de experiências, registro e fomento
da prática do fandango, formalizada em um circuito integrado por casas de fandangueiros e
construtores de instrumentos musicais, centros culturais, espaços de comercialização de
artesanato caiçara, além de locais de disponibilização de acervos bibliográficos e
audiovisuais.
Entre 2005 e 2006, obtivemos apoio financeiro do Programa Petrobrás Cultural para
viabilizar um conjunto de ações que dariam corpo à proposta do Museu Vivo. Envolvi-me,
juntamente com uma equipe, na organização de entrevistas com cerca de trezentos
fandangueiros, publicação de um livro e de um CD duplo, edição de um documentário e
organização do I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara, no município de Guaraqueçaba,
que reuniu cerca de duzentos e cinquenta fandangueiros de toda a região. Também
organizamos oficinas de projetos para representantes de grupos de fandango e entidades
culturais, oferecemos oficinas para educadores das redes de ensino, apoiamos a obtenção de
auxílios financeiros e a organização de centros culturais geridos por entidades locais,
incentivamos a divulgação do fandango nas redes de receptivo turístico e abrimos canais de
diálogo com outros pesquisadores de fandango e cultura caiçara para a organização de sete
estantes temáticas de acervo para consulta, que foram cedidas a prefeituras e entidades não
governamentais.
Nos dois anos em que estive envolvida na gestão do projeto, enriqueci-me de
experiências com temas e situações diversificadas. Contudo, aos poucos, deparei-me também
com alguns questionamentos éticos sobre o papel de produtora cultural em um contexto
popular de gritantes abismos sociais. Com o passar dos anos, optei por me deslocar a uma

                                                                                                               
10
Na década de 1950, para facilitar a rota fluvial entre os Estados de São Paulo e Paraná, foi aberto o Canal do
Varadouro, transformando Superagui em uma ilha artificial. A obra, concluída em 1955, visava interligar por via
fluvial a Baía de Paranaguá à baía de Trapandé, situada entre a Ilha do Cardoso e o Centro de Cananeia.
Contudo, na década de 1980, foram interrompidos os serviços da Companhia de Navegação Sul Paulista, que
fazia a rota de navegação fluvial entre Iguape e Paranaguá, através do Canal do Varadouro. A principal rodovia
de ligação entre São Paulo e Paraná, a Regis Bittencourt (BR 116), passa ao largo destes municípios e a travessia
pelo litoral tornou-se custosa, já que precisa ser feita em embarcação particular.
11
A conceituação deste formato museal foi pensada ainda em diálogo com as propostas de alargamento e revisão
do papel social dos museus, que em 1970 começaram a ser debatidas pelo movimento que ficou conhecido como
Nova Museologia.

 
27
 

nova posição de apoio a projetos locais e a algumas iniciativas gestadas no âmbito do Museu
Vivo que haviam sido mais bem acolhidas pela rede de trabalho então constituída.
Em 2008, participei da organização das mesas de debate do II Encontro de Fandango e
Cultura Caiçara, sob coordenação da Associação de Fandangueiros de Guaraqueçaba. Minha
atuação envolveu também a elaboração, juntamente com a antropóloga Patrícia Martins, de
um dossiê preliminar para encaminhamento ao IPHAN do pedido de registro do fandango
como bem cultural do Patrimônio Imaterial, com assinaturas de apoio recolhidas entre os
presentes. Em 2010, a Caburé12 assumiu a gestão do processo de instrução para registro do
fandango no livro de formas de expressão do patrimônio imaterial brasileiro, titulação que foi
oficialmente concedida pelo IPHAN em novembro de 2012.
Meu lugar no fandango se constituiu, portanto, a partir de uma perspectiva de atuação
profissional e política no campo cultural. Esse posicionamento, no entanto, aos poucos se
deslocou para um comprometimento de ordem pessoal, imbuído de um sentido de
pertencimento a uma certa rede de relações que se organiza tendo o fandango como elo.
Minha nova inserção em campo com a perspectiva de desenvolvimento de um trabalho
antropológico, embora envolta na estranheza de algo cuja rotina e objetivos fossem por vezes
difíceis de esclarecer, foi em muito facilitada pela confiança construída nas experiências
precedentes.
Viajar a campo e me disponibilizar a diversas situações que me foram ofertadas, ou
em que pude me intrometer, também não foi custoso, pois guardo apreço e entusiasmo por
esse tipo de experiência que também desloca e desconforta. Contudo, o principal desafio que
enfrentei ao longo da pesquisa foi o de desnaturalizar algo já me parecia tão familiar e aguçar
minha percepção para a construção de sentidos e relações que estão imbricados na
complexidade social organizada a partir do fandango.
Da Matta (1978) e Velho (1987) elucidam que os estudos do familiar e do exótico
apresentam problemas e dificuldades distintas, mas que podem ser similarmente complexos.
Dar mais atenção às palavras e às expressões empregadas, fazer perguntas que não contenham
respostas embutidas, voltar ao material de que já dispunha desconstruindo perspectivas
próprias e alheias; estas foram algumas das questões com que me deparei e que não foram
nada simples de resolver. E, de repente, percebi a outra face do processo: o fandango se
                                                                                                               
12
Em virtude de uma conjuntura que envolvia desde vasta exigência documental à limitação de recursos frente
às demandas do edital, a Caburé acabou sendo a única entidade capaz de acudir à licitação, já em segunda
chamada, sob risco de cancelamento do processo de contratação, o que retardaria a análise do pedido de registro
de fandango pelo Conselho do Patrimônio do IPHAN. O contrato para finalização do inventário foi assinado dois
anos após o encaminhamento do pedido, tendo sido montada uma equipe com representantes dos municípios
para elaboração colaborativa da documentação exigida.

 
28
 

tornou estranho e de difícil compreensão para mim. Contudo, esses momentos de certa
confusão se mostraram produtivos para pensar novos arranjos durante os encontros de
orientação e a fase de escrita desta dissertação.

Os Pereira e a noção de família como operadora do mundo social do fandango

Em minhas experiências anteriores, tive a oportunidade de construir uma perspectiva


abrangente sobre a variabilidade do que pode ser compreendido como fandango e dos atores
sociais que participam e interagem nesse processo de construção simbólica e social. Pensar
sobre os circuitos contemporâneos do fandango foi o que me motivou a ingressar no
mestrado. Contudo, nesse momento, não mais me interessava um olhar sobre a diversidade, já
que tal abordagem havia sido contemplada nas publicações do Museu Vivo do Fandango.
Assim, optei por centrar esta pesquisa na compreensão dos sentidos ordenadores desse mundo
social (BECKER, 2008) tensionado por categorias que perpassam diferentes momentos de sua
construção. Também voltei meu interesse aos atores sociais que formam uma extensa teia de
relações de parentesco e afinidade e de mediações com outras esferas sociais.
Para compreender de forma mais acurada algumas representações e práticas, senti
necessidade vivenciar uma experiência etnográfica mais densa e cotidiana, diferente dos
percursos frenéticos que estava habituada a fazer. Conceder caráter etnográfico a esta
pesquisa me exigiu um novo recorte nesse panorama vasto e dinâmico, levando-me à proposta
de olhar esse mundo e suas categorias desde um grupo social que me conduzisse por
diferentes trânsitos. Com essa perspectiva, priorizei uma maior aproximação da família
Pereira para compreensão do fandango, tanto pelo reconhecimento de sua importância entre
aqueles que participam do fandango, como pelo fato de já ter acompanhado muitas situações
experimentadas por eles. Além da notoriedade e da convivência, outros dois aspectos
justificaram tal escolha: a importância da família no contexto do fandango e os intensos
trânsitos protagonizados recentemente pelos Pereira, sob a influência de novas categorias que
operam na reordenação desse mundo.
Minhas vivências anteriores me levaram ao entendimento de que família é um
operador classificatório crítico para a compreensão do mundo social do fandango. Quase
todos os fandangueiros que conheci e entrevistei abordam o ambiente familiar como o lócus
privilegiado de aprendizado “do fandango” e convívio “no fandango”.

 
29
 

Eles gostavam de fandango, se criaram nisso. Não tinha outro divertimento aqui, era
só. O padre dizia uma missinha ali pra eles, um terço, uma coisa que eles falavam...
e fandango. Era o divertimento que tinha aqui. (Dorçulina Eiglmeier, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba,
2005)

“Nasci no fandango” ou “me criei no fandango” são expressões recorrentes. O


aprendizado informal, fruto da observação do toque dos instrumentos e da dança, seja no
ambiente doméstico ou em momentos festivos, quase sempre remete ao ambiente familiar ou
ao encontro de famílias.

O fandango é uma dança muito velha, que vem de longa data, do avô pro avô, filhos
pros filhos, e naquele tempo era o que a gente conhecia mais, a gente só conhecia
fandango mesmo. Fazia aquele mutirão fim de semana, se juntava e fazia fandango,
a noite toda, amanhecia, fazia a domingueira. Carnaval era três dias e três noites de
fandango direto, só lavava a roupa na tábua, batia, enxugava e tava no fandango de
volta, o dia todo. Então a nossa missão era aquilo ali, era só viola, rabeca e o
fandango. (Pedro Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, Paranaguá, 2005)

Assim, quando pensamos no processo de transmissão ao longo de gerações do


conhecimento compartilhado sobre fandango, temos a noção de família como articuladora
fundamental.

Meu pai era Franklin Pereira. Com ele foi que eu aprendi. Já era de geração de eles
fazerem essas coisas. (Julio Pereira, em depoimento a José Eduardo Gramani, 1997,
Apud: Gramani, 2002, p.41)

E naquele tempo que era valorizado é porque tinha que aprender pra tocar no
mutirão daqui pra lá, tinha que aprender, tinha que dançar, tinha que dançar. Porque
ficar só num não podia, então todo mundo tinha que aprender. A rapaziada ia
crescendo e aprendendo a dançar o fandango, a tocar, a cantar. (Anísio Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)

A família Pereira – como é conhecida hoje e, portanto como a conhecemos – se


organiza fundamentalmente com três gerações de velhos e adultos, que em suas memórias,
alcançam ainda duas outras em linha de ancestralidade. Atualmente, os membros dos Pereira
reconhecidos como fandangueiros ativos estão dispersos entre três municípios litorâneos –
Guaraqueçaba e Paranaguá, no Paraná, e Cananeia, em São Paulo. Contudo, sua origem
remete à vila de Araçaúba, bairro rural de Cananeia, próximo ao distrito do Ariri, quase na
divisa com o Paraná.

Eles saíram tudo de Araçaúba. A nossa família Pereira eram tudo de Araçaúba. Daí
um pouco veio pro Ariri, um pouco veio aqui pro Varadouro ali em cima que tinha
muita gente ali. Aí um pouco ficou no Varadouro, um pouco foi lá pro Paraná, um

 
30
 

pouco ficou ali no Ariri, se espalhemos tudo. Um pouco pra Cananeia que tem
aquela Joaquina lá que é irmã do meu pai. Tudo se espalhemos por tudo. Agora eu
tenho parente por tudo. (Arnaldo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)

Adauto José Pereira ocupa o lugar mais alto de ancestralidade na memória de


constituição da família. De seu primeiro casamento, com Joaquina Alves, nasceu João Bento
Franklin Pereira de Assunção – ou simplesmente Franklin Pereira, como se perpetuou seu
nome entre os familiares. Tanto Adauto Pereira como Franklin Pereira são lembrados pelos
filhos deste – os que pude conhecer: Julio, Julino e Joaquina – como bons músicos e
construtores de instrumentos, ambos tocadores de viola e somente o avô tocador de rabeca.

Adauto é que é a raiz dos Pereira. Ele fazia tudo o que a gente queria: rabeca,
cavaquinho, viola. Vocês nunca foram no Ariri, não? Aquele posto que tem lá, de
escola, foi ele que ajudou a construir. Ele e um tal de Morais fizeram um aterro lá.
Isso tem mais de cem anos. Depois que ele já não podia trabalhar em roça ele só
fazia viola, essas coisas. Era marceneiro. O meu avô, naquele tempo, pra um neto
entrar onde meu avô tava trabalhando... Era um salãozinho do tamanho desse aqui,
onde ele fazia as violas, as coisas dele. E às vezes a gente ia lá e ficava assim,
olhando. “Ah, você quer aprender? Pode olhar. Não precisa entrar aí. Pra aprender
basta olhar.” A gente que tinha boa idéia, não precisava ensinar como era, como não
era. A gente pegava a olhar, né? Depois ia sentar nas peças e dava certo. (...) Meu
pai [Franklin] tocava e fazia instrumento também. Foi ele quem levou as fôrmas da
viola, como essa que eu tenho ali, pra casa. Quando eu tinha dezessete anos eu
peguei a fazer. A primeira não saiu bem boa não, mas já deu pra enganar. (Julio
Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango,
Paranaguá, 2005)

Adauto constituiu o primeiro tronco de sua família em Araçaúba. Já viúvo de sua


primeira esposa, em meados da década de 1930, mudou-se para o Ariri onde se casou com sua
segunda esposa, Leocádia Xavier. Franklin permaneceu em Araçaúba até a década de 1940,
onde se casou com sua primeira esposa, Isabel Cordeiro da Costa. Com ela, tiveram dez
filhos: além dos três já citados, Paulino, Augusta, Ulisses, Vicente, Andrino, Teresa e Justino.
Nos anos de 1940, com parte de sua prole ainda criança, Franklin mudou-se com a família
para Rio dos Patos, localidade no município de Guaraqueçaba, cruzando a divisa de São Paulo
com o Paraná.

 
31
 

Figura 2: Mapa do litoral sul de São Paulo e litoral norte do Paraná com os municípios de Cananeia e
Guaraqueçaba, seus sítios e vilas.
Fonte: PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006.

Alguns dos filhos e netos que conheci me relataram que o motivo da mudança foi a
busca de maiores extensões de terra para o cultivo de arroz. Nesse período havia demanda de
produção por parte de comerciantes, descentes de japoneses, que arrematavam os excedentes
dos sítios da região. Julino Pereira, que na época estava com aproximadamente 15 anos,
também me revelou que seu pai tivera, em Araçaúba, algumas desavenças com a família
Domingues. Essa situação foi confirmada por Leonildo Pereira, neto de Franklin.

Eles saíram por causa da inimizade com uma geração lá dos Domingues, então não
se encaixavam, andavam cutucando ele lá, pra lá e pra cá. De modo que tinha uma
pessoa que morava no Varadouro que conversou com ele. Um outro homem já tinha
tirado o caminho do Varadouro pro Rio Branco. E do Rio Branco não custava passar
para o Rio dos Patos. Então eles pegaram, meus pais e meus tios, vieram e passaram
pelo caminho. Brevemente eles fizeram um rancho aqui, foram lá buscar a família de
lá e vieram toda a família. Chegaram e entraram na mata virgem, sem cortar nada e
começaram a trabalhar. A primeira roçada deles pegou 14 alqueires de arroz, aí todo
mundo teve como trabalhar. Trabalhar e vender também, que vendiam até aqui no
cano d’água, combinado o trabalho tudo com a união da família Dias, que
trabalhavam aqui também, que estavam lá pertinho de onde eles estavam. Saiu com
união, todos eles, trabalhavam um pra um, outro pra outro, assim foi o dia que
começou o Rio dos Patos. (Leonildo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa
do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005)

Em Rio dos Patos, nasceram e cresceram os netos de Franklin Pereira, os


fandangueiros que conhecemos como família Pereira.
 
32
 

Meu pai fazia viola, meu avô também fazia, e depois comprava de fora, tinha o
Paulo Rodrigues. Lá no sítio também fazia, depois meus primos foram aprendendo,
meu irmão aprendeu também, aí já foi aumentando, foram fabricando as violas, as
rabecas, os mais velhos mandavam nos instrumentos, e hoje em dia eles são os
grandes fabricantes de instrumentos, foram duas famílias de lá que aprenderam, não
jogaram fora o nosso fandango, respeita o fandango. Então eles aguentaram aquilo
ali e estão aguentando até hoje, foi a família de Julino e de Vicente e a família de
Ulisses Pereira, que é meu pai, falecido. (Pedro Pereira, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)

Quando nos referimos à família Pereira, não estamos tratando de uma família
elementar ou mesmo de uma família amplificada em sentido estrito, mas de um nome de
família que é operado em um sistema de parentesco complexo, articulando laços de
consangüinidade e de afinidade (ABREU FILHO, 1982). A partir de suas pesquisas com
famílias de Araxá, Minas Gerais, Abreu Filho (1982) identifica o reconhecimento da
consangüinidade como bilateral, ou seja, tanto a ascendência materna quanto a paterna
estabelecem laços a partir da noção de transmissão do sangue familiar. O nome de família –
que não deve ser confundido com a efemeridade de um sobrenome formado pela junção de
dois ou mais nomes de família – indica história e tradição na articulação de diferentes
gerações, perpassando a noção de raça como indicativa de procedência e precedência. Uma
pessoa pode puxar determinadas características relacionadas à família do pai ou da mãe, tanto
no que diz respeito às suas feições e características físicas, quando à sua personalidade e
atributos morais. Contudo, a patrilinearidade atua preponderantemente na transmissão do
nome de família ao longo de gerações. O nome de família herdado da mãe nem sempre é
repassado aos filhos e dificilmente será transmitido aos netos, portanto, a longevidade de um
nome de família está atrelada à linhagem masculina.
Essas questões nos ajudam a compreender como se organizam os Pereira em torno de
seu nome de família paterno, o que não significa que o aprendizado do fandango e convívio
no fandango tenham sido restritos a uma única linhagem familiar. Pelo contrário, a geração
que hoje é mais atuante, reconhece outros laços familiares importantes em suas formações
como fandangueiros.

Primeiro tinha meu avô Franklin, segundo tinha o meu avô Silvino, pai da minha
mãe, depois tinham os mais novos, que já são os filhos deles, que são os meus pais
hoje, já tinha o Andrino, já tinha Julino, esse que mora ali, tocador de viola. Mais
esperto pra gostar de fandango era o Andrino, esse que morreu. Aquele foi meu
professor, ele me ativava pra ver se eu ganhava dele, então eu ia pra cima dele com
pau, aí eu passei a ganhar dele, então eu gostei. Tinha Paulo Bento, era do lado da
minha mãe, Costa. Tinha Francisco Bento, irmão de Paulo Bento, o tocador melhor
de rabeca que eu ouvi, que por aqui não tinha igual a ele, tinha mais o Vitorino,

 
33
 

irmão da minha mãe, também era um violeiro, mestre de romaria. (Leonildo Pereira,
em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba,
2005)

A família Pereira, assim como outras famílias da região conhecidas por seus nomes
herdados pela patrilinearidade, constitui um ethos singular, cujos atributos físicos e morais
são destacados não só pela própria família, como também por aqueles que os reconhecem
como tal. Já na época de Rio dos Patos, os Pereira ficaram conhecidos na região como
habilidosos e produtivos artesãos – de cestarias e entalhes de madeira, especialmente de
instrumentos – e também como uma família festiva, muito afeita com o fandango.

Com os Pereira convivi muito tempo, nós era vizinho. Nós ia pra lá, eles vinham pra
cá. Nós jogava bola lá eles jogavam bola aqui, dançava lá, porque nós jogávamos
depois não dava pra voltar, pois já era o fandango de noite. No outro dia que nós
vinha. Sempre nós tava tendo assim contato com outro. (João Dias, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Cananeia, 2005)

A linhagem fandangueira dos Pereira, a partir dos filhos de Franklin, tem no pai e no
avô paterno, Adauto Pereira, suas principais referências de aprendizagem. Já a quarta geração
identifica Julino Pereira como grande responsável pelos ensinamentos da confecção e do
toque dos instrumentos a estes que são seus filhos ou sobrinhos. Julino é referência
consensual, figurando sempre como transmissor do fandango nas memórias dessa geração ao
lado de um ou outro tio, materno ou paterno, que varia conforme a afinidade relembrada.

Aprendi com meu pai, que tocava viola, depois meus irmãos foram aprender, eu fui
o último a aprender a tocar viola. E um tio, que me orgulho por ele, que posso dizer
que foi um grande professor e ensinou a nós, foi tio Julino. Ele foi um mestre, que se
não fosse ele acho que a gente não tinha rabeca nem viola, pois foi com ele que eu vi
a rabeca. Meu tio que fez a gente conhecer a rabeca no Rio dos Patos. Já tinha
rabeca no Rio dos Patos, mas conheci com ele. (Pedro Pereira, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)

Os Pereira ganharam notoriedade no mundo do fandango como uma família de bons


fandangueiros, que dominam um repertório amplo de modas, sabem dançar e que se dedicam
com entusiasmo à movimentação do fandango. Por outro lado, viveram muitas mudanças nas
últimas décadas, estruturadas a partir de sua dinâmica atividade junto ao mundo do fandango.
Dos anos quarenta até fins da década de 1990, a maior parte dos Pereira que hoje está
em atividade nasceu e viveu em Rio dos Patos, sítio localizado no município paranaense de
Guaraqueçaba, em área próxima à divisa com o Estado de São Paulo. Eles atribuem suas
notórias qualidades de fandangueiros à convivência familiar e aos muitos fandangos lá
realizados. Contudo, em virtude de dificuldades enfrentadas, como as já explicitadas

 
34
 

anteriormente, em fins da década de 1990, já não havia mais nenhum morador permanente na
localidade. Os fandangueiros mais conhecidos da família migraram para bairros de periferia
ou ainda pequenas vilas com mais facilidade de acesso em Cananeia, Paranaguá e
Guaraqueçaba, tendo se envolvido nas cenas locais de atividade do fandango. Alguns de seus
componentes protagonizaram mudanças em suas formas de inserção nesse mundo a partir de
categorias operadoras mais recentes como “grupo”, “artista” e “mestre”, fundamentais para a
compreensão dos trânsitos contemporâneos do fandango. O processo de formalização de um
grupo chamado Família Pereira, que se fortalece a partir do convite para a gravação do CD
Viola Fandangueira, lançado em 2002, ocorre justamente em um momento em que a família
já havia se dispersado territorialmente. Conforme pretendo desenvolver ao longo da presente
pesquisa, compreendo, portanto, que o grupo Família Pereira acaba se mostrando como um
rearranjo possível que articula a convivência da família em uma nova sociabilidade inscrita no
fandango.
A geração de primos e irmãos que protagoniza as mudanças na forma como a família
irá se projetar e alargar o mundo do fandango tinha na época da gravação entre 40 e 60 anos
de idade. Apesar de os Pereira terem ascendência paulista, essa geração havia nascido em Rio
dos Patos, constituindo-se principalmente por paranaenses natos. Pela via do Paraná, os
Pereira ingressaram em um circuito13 cultural amplificado, entendido aqui como uma rede que
se conecta por práticas simbólicas e sociais permeadas por políticas públicas e participação
em um mercado de trabalho relacionado à patrimonialização e ao entretenimento. Contudo,
devido a uma intensa dinâmica de aproximações e rupturas, novos arranjos vão se formando e
a circulação dos Pereira se estende a São Paulo e outros estados.

Campo, interlocutores e fontes de pesquisa

Durante o processo de pesquisa de campo, optei por dialogar e acompanhar as


atividades de dois dos Pereira, os irmãos José e Leonildo. As escolhas se pautaram no fato de

                                                                                                               
13
Magnani (2002) propõe a noção de circuito como ferramenta analítica para a antropologia urbana, abrangendo
o entendimento de um uso espacial descontínuo, mas que pode ser compreendido pelo “exercício da
sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de códigos” (p.24). Nesta pesquisa, estou propondo o
uso de circuito de forma ainda mais abrangente, não restrita a espaços e equipamentos urbanos, mas relacionado
a uma rede de atores e instituições sociais que se interligam por meio de um segmento específico de atuação, o
chamado setor cultural, que por sua vez também mobiliza e se realiza em espaços sociais determinados. Desta
forma, embora as práticas do fandango tenham se estabelecido em diálogo profundo com as práticas de tal setor,
sempre que tratar dos trânsitos do fandango pelos circuitos da cultura, estarei me referindo a essas redes que
caracterizam propriamente o segmento da atividade cultural formalmente estabelecida.

 
35
 

atualmente serem os membros da família que mais se projetam no mundo do fandango e


participam com frequência de muitos projetos e atividades.
A convivência e as conversas com eles me permitiram trazer alguns apontamentos
etnográficos sobre como elaboram suas trajetórias nesse dinâmico mundo. Ambos anseiam
pelo reconhecimento como artistas e são tratados por seus interlocutores do fandango
(fandangueiros mais jovens, alunos, compradores de instrumentos, pessoas que desenvolvem
projetos culturais, etc.) como mestres, ou ainda como professores.
José Pereira (1951) atualmente reside no Ariri, distrito de Cananeia com cerca de 500
habitantes, cujo acesso dos moradores a partir do centro do município é feito prioritariamente
por via marítimo-fluvial. Apesar de declaradamente tímido, o que se traduz em um
comportamento contido, a perspectiva de se apresentar em público esteve presente desde cedo
em sua trajetória. Tendo aprendido a tocar rabeca ainda menino, seus pais pediam para que
demonstrasse suas habilidades a parentes e visitantes de Rio dos Patos, o que muitas vezes
fazia contrariado, tentando se esconder para ser apenas ouvido e não visto.

Meu pai tinha uma cadeira igual a essa aqui, só que tinha os dois lados, tinha esse
lado e esse aqui também. Ele achou no mato e cortou. Aí vinha o pessoal da Vila
Fátima jogar lá no nosso lugar – com os outros, eu não jogava nada, eu tinha de doze
a quinze. Naquele tempo as crianças eram meio acanhadas, não tinham voz, não
falavam com ninguém... mas eu sabia tocar já. Pegava a rabeca, entrava naquele
porãozinho e começava a tocar lá dentro, encolhido. O pessoal gostava, mas eu não
tinha coragem de falar com eles. Vergonha, né [risos]. Muito envergonhado. E não
era só eu, todas as crianças era assim. (José Pereira, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Cananeia, 2005)

O repertório musical de duplas caipiras, que desde muito jovem ouvia em rádios de
pilha, também teve influência em seu aprendizado musical. Na década de 1970, José se juntou
a seu irmão Felício para tocar música caipira em bailes das vilas da região.

Nesse baile de acordeom mesmo, eles cantavam pra danar os dois. O Felício e o Zé
Pereira, ele na viola e o Felício no acordeom, cantavam que dava pra ver mesmo e a
turma caía no baile não tinha outra, até de manhã. (João Dias em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Cananeia, 2005)

José se casou com Maria, da família dos Camilo, do Varadouro, sítio próximo à
localidade do Ariri, onde criaram seus filhos. Desde que se mudou para o Ariri, em 2007,
intensificou seu papel de liderança na articulação do fandango. Além de se apresentar com o
filho e os irmãos quando convidado, ou eventualmente por iniciativa própria, vende
instrumentos, confeccionados sob encomenda, a turistas que visitam a região e a músicos de
vários estados que o contatam por telefone. É comum que receba em casa pessoas ou equipes

 
36
 

que desejam gravar entrevistas com ele, para o que cobra pequenos cachês que variam de
acordo com a disponibilidade de recursos do interessado.

Figura 3: José Pereira, em primeiro plano, seguido por


seu filho Laerte e seu irmão Arnaldo, em gravação na
Casa da Cultura e do Fandango do Ariri. Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa

Sua fonte de renda regular é um emprego como auxiliar de serviços gerais da


localidade, cargo vinculado à Prefeitura de Cananeia, que consiste em manter limpas e
conservadas as áreas de circulação pública do Ariri. Quem o vê durante a semana transitando
sob um chapelão de palha, com carrinho de mão, pá e vassoura, entre outros instrumentos que
seu emprego demanda, não imagina sua outra habilidosa faceta de músico e construtor de
alguns dos melhores instrumentos de fandango de toda a região.
Leonildo Pereira (1942) é também exímio tocador e construtor de instrumentos.
Reside isolado com sua família (esposa, alguns de seus filhos e filhas com noras e genros e
alguns de seus netos) em uma localidade continental conhecida como Abacateiro, no
município de Guaraqueçaba, no Paraná, em área bem próxima à divisa com o município de
Cananeia, em São Paulo. O acesso ao local é feito somente por barcos e a vila mais próxima é
a Vila Fátima, na face voltada para o continente da Ilha do Superagui.
Leonildo costuma tocar com seus familiares Pereira no Paraná e em São Paulo.
Também participa com regularidade dos fandangos do bar Akdov, localizado na vila
Superagui, na face litorânea ilha de mesmo nome, local que recebe grandes fluxos de turistas
em feriados e períodos de férias. Diferentemente de seu irmão José, Leonildo não tem
emprego fixo. Além de atividades de subsistência em sua localidade, dedica-se a tocar
fandango e fabricar instrumentos e peças de artesanato em uma oficina montada em seu sítio.

 
37
 

Como não tem telefone residencial, contatá-lo é uma tarefa relativamente difícil. É preciso
deixar um recado em uma vila próxima e esperar que ele faça uma travessia de barco para
recebê-lo.

Figura 4: Leonildo Pereira tocando rabeca em sua


oficina no Abacateiro. Guaraqueçaba, 2005. Foto:
Felipe Varanda / acervo Museu Vivo do Fandango.

Durante o mestrado, centrei-me na vila Ariri, onde reside José Pereira. Em virtude do
desejo de me aproximar de forma mais cotidiana de um ambiente social, não alarguei a
pesquisa etnográfica a outros Pereira residentes em Guaraqueçaba e Paranaguá. Entre o final
de dezembro de 2011 e janeiro de 2012, convivi cotidianamente com José e sua família, cujo
núcleo é formado pela esposa Maria Camilo, seis filhos, uma nora e um neto na primeira
infância. Ao lado e em frente à sua casa moravam, respectivamente, seus irmãos Arnaldo e
Randolfo, ambos assistidos por José. Arnaldo não constituiu relação matrimonial estável e tão
pouco teve filhos. Já Randolfo contava também com o apoio do filho Maurício Pereira que foi
residir com o pai após a ruptura de seu casamento. Todos têm ou tiveram alguma relação com
o fandango, sabem tocar e confeccionar instrumentos.
Com José Pereira tive aulas de rabeca, fui a fandangos no próprio Ariri e nas vilas do
entorno realizados com diferentes propósitos (turísticos e comunitários) e visitei o roçado que
mantém em seu sítio no Varadouro. Lá conheci a família Camilo, de Maria, cujos membros
aos poucos se tornaram também interlocutores fundamentais para a pesquisa, especialmente
no que diz respeito às relações familiares e ao modo de vida nos sítios.

 
38
 

Também acompanhei os ensaios e a viagem a São Paulo para uma apresentação


musical de José e Leonildo Pereira, com Arnaldo e Laerte (filho de José), ao lado do grupo
Viola Quebrada, que integrava a programação de um projeto sobre música regional brasileira
realizado no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. Assisti ainda à filmagem de
entrevistas com José Pereira em sua casa e a gravações musicais com ele e outros
fandangueiros residentes no Ariri relacionadas a um projeto cultural sobre fandango de
Cananeia. O registro das músicas foi feito com equipamentos transportados ao Ariri e
montados em um estúdio na Casa da Cultura e do Fandango Caiçara. A casa é mantida pelo
grupo Fandangueiros do Ariri, liderado por João Alves, primo de José Pereira.
Além dessa temporada mais intensa de convivência, ainda voltei duas vezes à região,
em 2012, para o desenvolvimento da pesquisa. Em fevereiro, acompanhei o lançamento do
disco Fandangueiros de Araçaúba em Paranaguá, em um encontro efervescente. Reuniram-se
em um clube na Ilha dos Valadares, com cerca de trezentas pessoas presentes, fandangueiros
do Ariri e entorno que participaram do disco – os grupos Fandangueiros do Ariri, Família
Neves, além de Leonildo Pereira e um de seus filhos14 – e quatro grupos paranaguaras. Em
abril, retornei para um mutirão de colheita de arroz no Varadouro, na roça de Luiz Camilo,
cunhado de José Pereira. O mutirão foi seguido por um fandango com os integrantes da
família Neves15 que clareou o dia e continuou após o café da manhã em uma animada
domingueira.
Aos dados etnográficos reunidos ao longo da pesquisa, acrescentei outros selecionados
dentre os registros e situações vivenciadas em experiências anteriores. Revi e reli grande parte
das entrevistas gravadas e transcritas em 2005, durante o processo de pesquisa para o Museu
Vivo do Fandango. Desse vasto material provém grande parte dos depoimentos que utilizo ao
longo da dissertação. Voltei também aos arquivos da decupagem da reunião de discussão do
inventário do fandango, realizada em 2010, em Cananeia. E tive acesso às entrevistas com
José Pereira e seu filho Laerte feitas por Daniella Gramani, em 2008, durante o
desenvolvimento de pesquisa de campo no Ariri para a elaboração de sua dissertação de
mestrado em música na Universidade Federal do Paraná. Também retornei a livros, discos e
documentários produzidos pela Caburé e por outras iniciativas que trazem reflexões, músicas
e depoimentos de fandangueiros e participantes do mundo do fandango.

                                                                                                               
14
José Pereira, apesar de ter participado das gravações do disco acabou desistindo de ir ao lançamento em
Paranaguá em função das dificuldades de ser liberado de seu emprego fixo na Prefeitura.
15
José Pereira, que planejava fazer na mesma época um mutirão com fandango, acabou não participando das
atividades no sitio de Luiz Camilo.

 
39
 

Esse material me ajudou, por um lado, a refazer os caminhos de meu aprendizado no


fandango e, por outro, a refletir sobre as construções e usos de categorias que são tão
corriqueiramente utilizadas e essenciais para a compreensão dos trânsitos do fandango.
Ressalto, contudo, que muitas vezes não foi possível refazer com precisão todos os percursos
– por exemplo, de quem ou em que contexto ouvi essa ou aquela informação – o que não me
inibiu a trazer algumas organizações analíticas frutos de minhas incursões panorâmicas no
fandango.
Na medida em que apresento o fandango como um mundo social, permeado e
construído por múltiplos interlocutores, não pude me furtar a trazer também textos e
depoimentos de autores e precursores no interesse pelo fandango, posicionando-os como
atores sociais que construíram um lugar dentro desse mundo. Para a elaboração dessa
perspectiva histórica foram fundamentais as consultas ao acervo da Biblioteca Amadeu
Amaral, localizada no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, no Rio de Janeiro.

Apresentação dos capítulos

No primeiro capítulo, dediquei-me a revisitar especialmente os estudiosos de folclore


que tiveram papel crucial no desenho dos contornos do que se define como fandango,
imbuídos por noções compartilhadas pelo folclorismo de maneira mais ampla, como
‘autenticidade’, ‘idealização do passado rural’ e ‘resgate’. Percebi a necessidade de retomá-
los não apenas para reverenciar àqueles que deram forma ao que hoje compreendemos como
cultura popular, mas porque seus modos de pensar e agir continuam vivos e operantes.
Também discuto a elaboração em âmbito acadêmico, no contexto de constituição do campo
das ciências sociais no Brasil, de algumas categorias identitárias essenciais para pensar o
fandango, em especial “caipira” e “caiçara”.
No segundo capítulo, debruço-me sobre as categorias ordenadoras do mundo social do
fandango procurando compreendê-las a partir do material etnográfico e dos depoimentos
registrados na etapa de pesquisa do Museu Vivo do Fandango. Tomando a noção de família
como elemento essencial, é com ela que começo compreender um sistema que organiza
relações e conhecimentos de forma tradicional, ou seja, como algo que se transmite ao longo
de gerações ancorado por padrões e referências que conferem certa estabilidade. Partindo de
família, chegamos a outras duas categorias elementares: sítio, que referencia sentidos e elos
de pertencimento de famílias a localidades, e camaradagem/camarada que operam nas
relações e trânsitos entre homens e entre famílias.

 
40
 

No terceiro capítulo, discorro sobre a inserção da família Pereira nos circuitos da


cultura. Parto de uma visada histórica e, em seguida, utilizo também dados de campo. Procuro
compreender como eles dialogam e se organizam em novos arranjos sociais a partir de
categorias como grupo, mestre e artista que passam a participar do mundo do fandango e
influenciar de forma decisiva suas trajetórias pessoais. Partindo da antropologia da
performance de Turner (1982) e Schechner (2011), analiso as etapas de uma performance
específica apresentada em um espaço cultural urbano consagrado, de forma a refletir sobre
posicionamentos individuais e coletivos.
No quarto capítulo, a partir de um olhar mais panorâmico, mas mantendo a família
Pereira como tema focal desta pesquisa, apresento algumas reflexões sobre a polissemia da
noção de fazer fandango. Trago alguns contornos e regras que definem o fandango como uma
forma de expressão artística, analisando a lógica de circulação que permeia a poética, a
música e a dança do fandango. Abordo também as diferentes posições que podem ser
ocupadas no mundo do fandango. Por fim, procuro refletir sobre algumas adaptações na
organização desse sistema nos diferentes contextos de circulação do fandango.
Acrescentei como adendo à dissertação alguns apontamentos sobre minha experiência
de participação no processo formal de patrimonialização do fandango caiçara, desencadeado a
partir do Museu Vivo do Fandango. Procuro trazer breves reflexões sobre suas implicações,
em um contexto de tensões entre o desejo de consagrar um sentido estável de fandango e o
anseio por sua ativação em meio a práticas relacionadas aos circuitos da cultura.

 
41
 

Capítulo 1 – Um olhar antropológico sobre os estudos de fandango

1.1. Os estudos de folclore e o campo das culturas populares

O campo das culturas populares padece de uma indissolúvel tensão entre passado e
presente. Um sentimento atávico de que suas formas de sociabilidade viveram momentos de
exuberância e de perfeita harmonia processual, e de que hoje seriam apenas resquícios do
passado, perdura em diversas dimensões da construção do olhar sobre a vasta gama de
expressões culturais que se aglomeram nesse campo de contornos imprecisos.
A construção do interesse sobre o popular se deve em grande parte aos estudos de
folclore. No Brasil, especialmente no século XX, estes estudos florescem e ganham maior
abrangência com o chamado Movimento Folclórico Brasileiro (VILHENA, 1997). A
importância de coletar, registrar e divulgar a cultura popular será delineada no bojo do
folclorismo tendo como alicerce a noção de identidade nacional, abrindo também uma frente
de atuação mais direta do movimento na formulação de políticas culturais e em ações de
preservação e difusão (CAVALCANTI & VILHENA, 2012a).
Cavalcanti (2012b) destaca a importância de uma antropologia dos estudos de folclore.
Tão decisiva foi a atuação desses estudos para o que hoje compreendemos como cultura
popular, que, ao adentramos em campo para pesquisar manifestações, celebrações e práticas
populares vamos inevitavelmente ao encontro de alguns sentidos e práticas sociais que
evocam abordagens delineadas pelo folclorismo.

Ora, os temas e processos da vida social, classificados sob a rubrica de folclore ou


de cultura popular foram constituídos como objetos característicos no contexto da
configuração dos estudos de folclore no país. Estudá-los requer autoconsciência e
decisivas contextualizações e mediações, de tal modo que, quando hoje nos
deparamos, digamos, com os folguedos contemporâneos, o fato vivo em si reveste-
se de camadas de sentidos muito diversos: além da prática, da memória e da visão
dos próprios brincantes que o realizam, integram esse fato vivo os muitos textos que
já o estudaram, as políticas culturais e turísticas que o promovem, as pré-noções e
expectativas de nossas pesquisas. O valor da cultura popular produz-se, assim, na
confluência de forças sociais e níveis de cultura distintos. (CAVALCANTI, 2012b,
p.151)  

Em artigo sobre os folguedos do boi no Brasil, Cavalcanti (2012c) chama a atenção


para vitalidade dos estudos de Mario de Andrade na construção da ideia de dramaticidade
como aspecto essencial dessas manifestações. Embora não corresponda por completo ao fato
vivo, a perspectiva andradiana de “auto dramático” foi a tal ponto tomada como referência
42
 

para definição da brincadeira do boi, que, ainda hoje, pode ser percebida nos relatos de seus
próprios atores sociais como celebração de um passado ideal afetado pela modernidade. Com
efeito, percebemos esse aspecto nostálgico refletido nas narrativas daqueles que estão
envolvidos com diversas expressões populares. São falas que enaltecem momentos anteriores,
em geral imprecisos, e que se ressentem de conhecimentos e saberes não mais praticados,
mesmo diante da vitalidade e da pujança de muitas dessas manifestações. Na atualidade,
grupos e agremiações disputam prestígios em torno de questões como ancestralidade e
fidelidade à tradição. O risco do desaparecimento é sempre tema de argumentações e
demandas de apoio, como se os conteúdos dessas culturas vivessem sob o risco de um
contínuo processo de subtração.
Não é, contudo, apenas na visão nativa que o arcaísmo perdura. Revestido de outras
perspectivas, reflete-se também no mundo acadêmico. Embora por algumas décadas os
estudos de folclore tenham sido colocados em segundo plano na academia, participaram de
forma relevante da construção do campo das ciências sociais no Brasil. Segundo Cavalcanti
(2012b), “eles precedem, em muito, o processo de institucionalização das ciências sociais em
nossas universidades e mesmo aquele simultâneo de conformação convencional da
antropologia e sociologia como disciplinas distintas”. (CAVALCANTI, 2012b, p. 153).
Especialmente entre as décadas de 1930 e 1960, muitos intelectuais transitavam por terrenos
compartilhados entre o folclore e as ciências sociais, conformando campos contíguos de
diálogos e entraves. Imbuídos de preocupações quanto à celeridade dos efeitos da
modernidade, debruçaram-se sobre valores e práticas das sociedades tradicionais camponesas,
lançando olhares sobre o Brasil rural.
Em seu estudo sobre o movimento folclórico brasileiro, Vilhena (1997) analisa os
motivos do fracasso da almejada consolidação da disciplina folclórica como campo específico
no ambiente acadêmico. O distanciamento entre o folclore e as ciências sociais perpassam
questões como as divergências de projetos institucionais, métodos e modelos de ciência.
Contudo, a influência do folclorismo sobre o pensamento social brasileiro não foi anulada. E
se faz presente na construção de uma ideia de nacionalidade brasileira pelo viés da
diversidade.

Apesar do declínio acadêmico desses estudos, as visões por eles forjadas sobre os
fatos da cultura popular participam ainda hoje ativamente das visões formuladas
dentro das ciências sociais sobre esses fatos, produzindo muitas vezes o mesmo
notável efeito de “retorno do reprimido” identificado por Belmont . Esse efeito se
produz na interseção de dois processos simultâneos. De um lado, de modo análogo à
situação francesa, as ciências sociais têm, como argumentou Vilhena (1997a),
43
 

grande dificuldade em reconhecer os estudos de folclore mesmo como uma etapa


histórica no estudo da sociedade brasileira. Ou seja, dialogamos pouco com os
estudos de folclore considerados via de regra conceitualmente “menores” com
relação à produção das “modernas” ciências sociais e também porque esse diálogo
efetivamente requer uma série de cuidadosas contextualizações. De outro lado, os
processos culturais abarcados sob a rubrica de “folclore” são dotados de
extraordinário dinamismo e, por isso mesmo, de forte capacidade de permanência.
Isso faz com que os fatos folclóricos sejam re-integrados nas análises
contemporâneas carregados de ilusão, em especial a ilusão do arcaísmo. Eles são
ainda fortemente vistos como, de alguma forma, correspondendo a sobrevivências
de outrora, indicando difusamente níveis primitivos de nossa própria forma de ser,
as tão decantadas “raízes”. Ora, esse tipo de visão, sub-repticiamente integrado nos
estudos contemporâneos sobre o assunto, produz o eficaz efeito de sedução e
exotização característicos do arcaísmo: a idéia de que esses fatos chegaram, ou
deveriam ter chegado, até nós tal e qual foram no passado. (CAVALCANTI, 2012c,
p. 371-372)

Nas últimas décadas, temas relacionados às culturas populares e pesquisas sobre o


próprio folclorismo vêm ganhando cada vez mais espaço no âmbito acadêmico. O valor dado
ao passado, entretanto, ainda é um desafio a ser desnaturalizado, esmiuçado e elaborado no
desenvolvimento de investigações contemporâneas sobre esse campo. Compreender como
esse valor se constitui e ressoa em múltiplos planos é fundamental para pensar a dinâmica das
culturas populares na atualidade, as formas de sociabilidade que produz e suas estratégias de
inserção em outras esferas na vida social. Lançar um olhar antropológico sobre os estudos de
folclore envolve, portanto, identificar a participação decisiva de categorias internas a estes
estudos no campo das culturas populares e, também, sobre em que medida podemos
reconhecê-las presentes como falas que ecoam nas pesquisas de campo etnográficas.
No contexto do fandango, percebemos que a importância dos estudos de folclore
também se confirma no desenho de significados, questões e anseios que permeiam suas
relações. Entre 2001 e 2004, quando realizei minhas primeiras viagens à região do litoral sul
de São Paulo e norte do Paraná, como qualquer iniciante, procurei estar munida de arcabouço
mínimo que me permitisse uma familiarização com contexto a ser pesquisado. Na medida em
que, ao longo dos anos, me aproximei da bibliografia sobre o fandango e temas correlatos, fui
percebendo o quanto essa produção e seus autores, para além de interpretarem realidades,
tiveram papel fundamental na definição do que seja o fandango. Em conversas informais,
pouco a pouco notei que a transmissão da noção mesma do que era um fandango a um
interlocutor apresentava alguns aspectos distintivos que recriavam a fronteira entre Paraná e
São Paulo.
A partir da primeira metade do século XX, o fandango e os modos de vida das
comunidades começam a aparecer como temas de interesse de gerações de pesquisadores, em
especial, de folcloristas e, mais tarde, também de cientistas sociais. A problemática em
44
 

relação à constituição do campo das culturas populares no Brasil também perpassa a trajetória
desses estudos e participa do delineamento da noção mesma de fandango como um campo de
atividades sociais, ressoando na atualidade. Assim, embora esta pesquisa vise à abordagem
etnográfica da circulação do fandango promovida por uma família – a Família Pereira – é
fundamental revisitarmos os estudos sobre fandango, pois neles encontramos a gênese do
processo de construção de significados de algumas categorias essenciais na atualidade.
Neste primeiro capítulo, proponho um olhar sobre a produção intelectual almejando
compreender como ela atua na memória, na reconfiguração e na ressignificação de práticas no
campo das expressões culturais populares. Procuramos compreender diferentes perspectivas
de registro na intenção dos estudiosos, entendendo que essa bibliografia tem uma dimensão
atuante na própria realidade analisada. Os estudos de folclore nos permitem pensar por que
caminhos o fandango passou a ser tratado como objeto de estudo e bem patrimonial que
mobiliza esforços para a sua permanência. A interlocução direta de autores ou por meio de
atores imbuídos de tais leituras, interage com esse universo vivo e atual e tem, como veremos,
participação determinante na vida social.

1.2. O fandango e os precursores do folclorismo no Brasil

Os primeiros esforços dedicados à pesquisa do folclore nacional, que têm em Silvio


Romero (1851–1914) figura emblemática por seu pioneirismo, caminham no sentido de tentar
dar corpo e organizar uma estrutura classificatória para a compreensão de um universo
heterogêneo e complexo. A dificuldade de apreender e organizar sob uma ótica cientificista os
fatos folclóricos será tema recorrente na história do folclorismo. Na abertura de “Música
Popular Brasileira”, Oneyda Alvarenga, discípula de Mario de Andrade, afirma que o crítico
Andrade Muricy teria grande razão ao afirmar que o folclore musical brasileiro seria ainda um
“cipoal bravo” (ALVARENGA, 1960, p.11).
A noção de fandango emerge nesse cipoal com nós não menos difíceis de serem
desatados. A imprecisão será marca característica da classificação do termo no desenrolar da
bibliografia sob a perspectiva folclórica.
Romero, em sua “Vista sintética sobre o folclore brasileiro”, que introduz os Cantos
Populares do Brasil, após distinguir duas espécies de festas – as de “igreja popularizadas” e
as “puramente populares” – acrescenta um terceiro conjunto que resume como aquelas em
que “o povo” perderia verdadeiramente seu recato (ROMERO, 1897, p. 51 e 54). É na última
categoria que situa o fandango:
45
 

Chama-se xiba na província do Rio de Janeiro, samba no norte, cateretê na de


Minas, fandango nas do Sul uma função popular na predileção dos pardos e
mestiços em geral, que consiste em se reunirem damas e cavalheiros em uma sala ou
num alpendre para dançar e cantar. (ROMERO, 1897, p.56)

No vínculo entre música e dança, o fandango dos bailes festivos – mais


especificamente o “fandango sulista”16 identificado geograficamente dentre os estados de São
Paulo e do Rio Grande do Sul – começa a ser distinguido no âmbito dos estudos que buscam
mapear aspectos mais gerais do folclore nacional. É característico desse momento ainda
embrionário da institucionalização do folclore o uso de fontes secundárias (PEREIRA, 2006)
e o interesse pela origem dos termos que designam as manifestações folclóricas. Os contextos
sociais e os interlocutores investigados são muito raramente mencionados, pois predomina a
perspectiva nacionalista e a compreensão coletivista dessa produção – o povo, anônimo, em
seu conjunto, portador de conteúdos que permitem tracejar um ethos brasileiro.
Dentre os primeiros estudos onde o fandango configura como verbete, destacam-se
especialmente os desenvolvidos por Renato Almeida (1895–1981) – História da Música
Brasileira, publicado originalmente em 1926 – e Mario de Andrade (1893–1945) – Ensaio
sobre a Música Brasileira, de 1928. Curioso notar que, embora ambas as obras marquem
investidas no aspecto musical da cultura brasileira, o fandango aparece ligado ao conjunto
“danças”17, obedecendo a uma classificação mais ampla dos aspectos do folclore nacional.
Assim como em Romero, Andrade e Almeida também relacionam música e dança na
caracterização do fandango.
As obras de Almeida e Andrade são consideradas referências para o movimento
modernista brasileiro, no âmbito da formulação de uma proposta de compreensão da
musicalidade nacional. Ambos se posicionam criticamente quanto ao excesso no cultivo às
sonoridades européias como modelo musical erudito, envolto em ares de superioridade.
Martins (2009), contudo, propõe o cotejo entre as perspectivas dos autores e suas mútuas
influências, sugerindo diferentes posicionamentos.

Com a explicitação das posições dos autores no interior do movimento modernista,


fica-nos claro a existência de dois modos de se compreender a história da música
brasileira, bem como duas formas de nacionalizá-la. A primeira, sob a orientação de

                                                                                                               
16
É importante ressaltar que todos os autores imbuídos nos processos de mapeamento do folclore brasileiro
diferenciam duas categorias de fandango. Além desse fandango identificado entre os estados do sul-sudeste, é
sempre mencionado o fandango do norte-nordeste, relacionado às cheganças e marujadas. Ambos são destacados
como inteiramente diversos, estando apenas aproximados pela nomenclatura similar.
17
Há, em ambas as publicações, também outro tópico dedicado às “danças dramáticas”.
46
 

Mário de Andrade, entendia que ainda não havia música artística brasileira devido,
principalmente, à não valorização da música popular (...). A outra, defendida por
Renato Almeida, entendia e valorizava os esforços dos compositores do “passado”;
porém, diferentemente de Andrade, não considerava que a pesquisa da música
popular poderia converter a música artística em nacional; mas, sim, a compreensão,
por parte dos compositores, de que era preciso desfazer a dualidade existente na arte
produzida no Brasil, por meio da integração do indivíduo-natureza. (MARTINS,
2009, p.67)

A contribuição das perspectivas inclusivas e formadoras das culturas populares que


Almeida e Andrade propõem é ainda mais relevante quando lembramos o quanto essas
culturas foram historicamente marginalizadas na sociedade brasileira. Estudos
historiográficos sobre o fandango, tais como os empreendidos por Leandro (2008) e
principalmente por Pereira (1996)18, que investiga o processo morigeração da sociedade
paranaense entre os anos 1829 e 1889, registram-no como baile sensual, alvo de severas
proibições nos séculos XVIII e XIX19, aproximando-se da definição de Romero, mais festiva
e lasciva.

(...) na sociedade paranaense do século XIX, as classes economicamente dominantes


eram culturalmente distintas do restante da população. Essa cisão se manifestava
exemplarmente no ato de danças. As famílias morigeradas promoviam bailes e
funções por motivo de regozijo particular, os outros ‘ajuntavam-se’ nos batuques e
fandangos para dar posto à devassidão que lhes era inerente. (PEREIRA, 1996,
p.162)

Pereira (1996) afirma ainda que batuques e fandangos eram realizados com grande
frequência nas áreas urbanas e considerados sinônimos pela sociedade paranaense, fundidos
no que seria uma espécie “baile popular”. Muito sensuais e compostos por danças
diversificadas, os bailes são associados indistintamente a negros libertos, mulatos e brancos
pobres, que, para o autor, “formariam um grupo social bastante homogênio culturalmente”
(p.164). Segundo o autor, no século XIX, um projeto político local que visava reorganizar os
costumes da sociedade urbana paranaense implicou em um arrojado processo de proibição às
manifestações populares. Fandangos e batuques, assim como os jongos, esses sim mais
especificamente associados aos negros, teriam sido contundentemente banidos dos meios
urbanos, restringindo-se cada vez mais às áreas rurais onde o controle social ficava a critério
                                                                                                               
18
Em Semeando iras rumo ao progresso, o historiador Magnus Pereira, fundamenta sua pesquisa na legislação
dos municípios paranaenses durante o período imperial.
19
Dizia-se, por exemplo, que a mulher nada recusaria ao seu parceiro depois de dançar o fandango. O primeiro
Dicionário da Língua Portuguesa, de Moraes e Silva, incorpora em 1813 essa visão negativa, definindo a prática
como “certa dança alegre, e algo tanto desonesta” (Leandro, 2008, s/p.).
47
 

dos proprietários de terra.


Em que pese a perspectiva histórica proposta por Pereira (1996), perceberemos,
pouco a pouco, nos estudos de folclore, que os fandangos vão deixando de ser relacionados à
baderna e ao erotismo, dando lugar à noção de bailes populares de caráter familiar, envoltos
em uma atmosfera de respeito e cordialidade. Os trabalhos de Almeida (1926) e de Andrade
(1928), apesar de pouco descritivos sobre os contextos de realização dos fandangos, já não
mais enfatizam seu aspecto lascivo. Embora a obra de Almeida tenha sido publicada
originalmente dois anos antes do trabalho de Andrade, muitas das contribuições deste foram
incorporadas na segunda edição de Almeida, de 1942 (MARTINS, 2009), inclusive a
definição de fandango proposta por Andrade.
Em Andrade, a passagem dedicada ao fandango não chega a formar uma dúzia de
páginas. Reúne registros musicais em partitura entremeados por curtos parágrafos, mas é
pioneira no sentido de trazer notas do próprio autor que permitem reconhecer a realização de
uma pesquisa de campo, cuja única informação fornecida ao leitor é a de que foi realizada no
município de Cananeia, no litoral de São Paulo20. Não há referências sobre a ocasião de sua
visita, os interlocutores e as localidades pesquisadas. O foco de Andrade nesse trabalho é
precisamente a investigação musical, utilizando-se de termos técnicos para a análise das
partituras que compusessem ferramentas para o estímulo à criatividade dos músicos
brasileiros. Apenas podemos nos certificar de que a pesquisa foi realizada pessoalmente pelo
fato de ele afirmar ter feito uma de suas colaboradoras repetir várias vezes uma mesma
canção para que pudesse confirmar alguns aspectos técnicos (ANDRADE, 1962, p. 99).
Contudo, Andrade abre suas breves páginas com um parágrafo descritivo, que foi reproduzido
por muitos outros autores relevantes no cenário de produção de conhecimento sobre o
folclorismo – além de Almeida, por exemplo, Alvarenga (1960) e Cascudo (1984).

Fandango em geral é sinônimo de baile. Nele se dança de tudo e principalmente


danças regionais figuradas. Tem “fandangos batidos” mais rústicos em que o batepé
é obrigatório e os “fandangos bailados” mais chiques em que o batepé é proibido.
(...) O canto sempre em falso bordão é tirado no geral pelos instrumentistas. Quem
dança não canta. O fandango é sempre cantado. (ANDRADE, 1962, p.99)

No longo texto ensaístico que precede a exposição de partituras, o fandango é também


citado como uma “suíte”, ou seja, não como uma totalidade coerente, mas como uma série de
danças de origens diversas.

                                                                                                               
20
Não consegui obter dados sobre o período em que Mario de Andrade realizou suas pesquisas em Cananéia,
mas de certo sabemos que precederam a publicação do Ensaio sobre a Música Brasileira, em 1928.
48
 

O fandango do sul e meio do Brasil se na maioria das vezes é sinônimo de bailarico,


função, assustado (aliás, o próprio baile é uma suíte) muitas vezes é uma peça em
forma de suíte. A mim me repugnava apenas que suítes nossas fossem chamadas de
‘suite brasileira’. Porquê não ‘Fandango”, palavra perfeitamente nacionalizada?
(ANDRADE, 1962, p.68)

A defesa quase sempre eloquente de Mario de Andrade quanto manancial criativo que
identifica nas culturas populares dialoga diretamente com seu projeto modernista de
reconhecimento de uma sonoridade brasileira a partir da pesquisa da musicalidade popular.
Seu texto é um brado em prol da cultura nacional a partir da desconstrução do olhar voltado à
Europa e da perspectiva regionalista sobre o Brasil. Ele defende a necessidade de músicos
beberem diretamente na “fonte das manifestações populares” percorrendo o Brasil e não
apenas aquilo que a própria vizinhança lhe oferece (ANDRADE, 1962, p.70).
No parágrafo que encerra a passagem dedicada ao fandango, Andrade marca sua
posição quanto ao aculturamento, esclarecendo que a busca das origens portuguesas e
espanholas está longe de ser foco de suas preocupações.

Este documento notável bem como outros fandangos de Cananéia, são


incontestavelmente bens nacionais. Foram colhidos de gente caipira dos sítios do
arredor da cidade, gente sem nenhum contato a não ser mesmo com outros caipiras
brasileiros. É gente que não sabe mais que geração passada teve algum estranho na
ascendência. (ANDRADE, 1962, p.100)

Nesse trecho, vemos também emergir a perspectiva patrimonial que constituirá uma
das tônicas de atuação em defesa das culturas populares desenhadas no âmbito do Movimento
Folclórico Brasileiro. Como “bem nacional” fica implícito o dever do Estado na proteção a
algo que pertence à coletividade do povo brasileiro.
Renato Almeida não tem um olhar tão generoso quanto o de Mario de Andrade em
relação à fertilidade das manifestações populares. Enquanto Andrade identifica um ethos
brasileiro, que não pode mais ser correlacionado diretamente como o ameríndio e nem
simplesmente caracterizado por suas múltiplas origens, Almeida indica um caminho mais
longo a ser trilhado.

A nossa dança de salão não tem a graça, a variedade e o ímpeto comum das danças
européias. A sua coreografia em geral é simples, não raro monótona. Tudo ganha em
languidez.” (...) A dança brasileira tem porém o destino de acompanhar a tristeza de
sua música. Ela é quase toda, ou toda ela mestiçada. Guardou o ritmo africano e
aproveitou as melodias que aqui chegaram e aqui se transformaram, para depois
modificar todo esse material numa criação própria e vivaz. (ALMEIDA, 1942,
p.156-157)
49
 

A passagem dedicada ao fandango em História da Música Brasileira tem como


enfoque a compreensão das origens do termo e seu processo de difusão a partir das rotas
traçadas pelas sociedades ibéricas. Almeida incorpora a definição de Andrade em seu texto,
reconhecendo a originalidade melódica e reafirmando o caráter maleável e impreciso do
fandango como baile que reúne danças variadas. Assim, sua preocupação segue, não em
explicitar elementos constitutivos de uma totalidade, mas em detalhar algumas dessas danças,
dentre as quais configuram chimarrita, a cana-verde, o dão-dão, a quero-mana, nhô-chico e
tonta, além de uma listar uma extensa gama de outras danças não descritas.
No desenrolar dos estudos de folclore, perceberemos que tanto aspectos da definição
proposta por Andrade quanto da gênese traçada por Almeida serão recorrentemente
retomados nas definições do fandango.

1.3. O fandango “do Paraná”

Os estudos de folclore no Brasil se desenvolveram no contexto do Movimento


Folclórico Brasileiro que, segundo Vilhena (1997), decorreu entre 1947 e 1964. Um dos
aspectos primordiais da organização do Movimento foi o fato da notoriedade da Comissão
Nacional de Folclore, fundada em 1947, estar amparada em uma forma regionalizada de
atuação a partir da criação de comissões estaduais. Essa estrutura dialoga com a própria forma
de pensar os estudos de folclore e seus processos de coleta e mapeamento por regiões
geográficas. É bastante característico dos estudos de folclore a associação entre a
manifestação ou objeto popular e o estado ou região de ocorrência21. São comuns publicações
que apresentam extensos inventários regionais do folclore.
De fato, a disposição para a realização de cartografias aparece como um forte apelo
desse novo momento. Em comunicação apresentada no Simpósio de Folclore Brasileiro22,
Ayres da Mata Machado Filho ressalta que a Geografia e a História deveriam ser duas
ciências orientadoras de tais estudos. Ele sugere que a divisão política e administrativa do
Brasil em estados produziria sentimentos de regionalismo que moldam culturas. Embora

                                                                                                               
21
Em A Cultura Popular no Museu de Folclore Edison Carneiro, Gama (2012) destaca que a concepção
regionalista do Movimento Folclórico Brasileiro e seus reflexos sobre a primeira mostra expositiva de longa
duração do Museu de Folclore Edison Carneiro.
22
O Simpósio foi instalado em 25 de agosto de 1967, sob a presidência de Renato Almeida, realizado pelo
Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura/ UNESCO. Algumas comunicações foram transcritas na
Revista Brasileira de Folclore v.7 n. 19, setembro a dezembro de 1967 – edição comemorativa dos vinte anos de
existência da Comissão Nacional de Folclore .
50
 

reconhecendo que o folclore fosse alvo de processos cada vez mais intensos de mobilidade e
que houvesse permeabilidade entre as fronteiras, ele sugere uma ordem cartográfica
orientadora de um grande mapa do folclore brasileiro (MACHADO FILHO, 1967, p.258).
Na mesma ocasião, Manuel Diegues Júnior expõe suas “Sugestões para a
caracterização do folclore brasileiro” onde aponta que a “marca regional, tanto quanto no
homem, se imprime no folclore” (DIEGUES JÚNIOR, 1967, p.259). Para o autor, a “base
regional” seria um elemento fundamental sobre o qual se desenvolve o “fato folclórico”23,
mesmo havendo variantes em outros estados. A caracterização regional se daria a partir de um
sistema de relações que permitiria o reconhecimento de aspectos culturais compartilhados.
No âmbito do Movimento Folclórico, o regionalismo também aparece associado a
uma premente necessidade de pesquisas in loco. As manifestações precisavam ser
“vivenciadas” e “coletadas” pelo pesquisador. Em um momento onde os financiamentos são
escassos e as pesquisas são interrompidas por falta de recursos, as incursões em campo
realizadas por equipes dos próprios estados mostravam maior viabilidade para o intuito de
recobrir a dimensão territorial brasileira. A organização do Movimento em subcomissões
ancoradas no critério regional implicou também na definição de áreas de atuação
segmentadas.
No Paraná, o desenvolvimento de um campo de estudos para o folclore encontrava
como grande desafio reconhecer formas próprias que pudessem ser alocadas no escopo do
mapeamento do folclore brasileiro. A história de formação do Estado do Paraná remete à
presença muitos grupos de colonos, que mantiveram hábitos e práticas culturais de seus países
de origem. Ao longo do século XIX, os hábitos europeus são ainda mais fortemente
enaltecidos no chamado processo de morigeração da sociedade paranaense (PEREIRA, 1996).
Assim, no panteão dos festejos celebrados em território paranaense constavam danças e
músicas que não eram consideradas aculturadas na medida em que resguardavam a origem
dos povos imigrantes, tais como alemães, italianos, ucranianos, poloneses etc.
Segundo Vilhena (1997), a Comissão Paranaense de Folclore foi uma das primeiras a
se constituir e teve papel muito atuante nos primeiros anos, assumindo a realização do II
Congresso Nacional de Folclore, realizado na cidade de Curitiba, em 1953. O secretário-geral
da Comissão, José Loureiro Fernandes, era também professor de antropologia e etnografia na
Universidade do Paraná e foi ferrenho defensor do reconhecimento da disciplina folclórica
                                                                                                               
23
Segundo a Carta do Folclore Brasileiro (1951): "constitui o fato folclórico a maneira de pensar, sentir e agir de
um povo, preservada pela tradição popular e pela imitação, e que não seja diretamente influenciada pelos
círculos eruditos e instituições que se dedicam, ou à renovação e conservação do patrimônio científico humano,
ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica".
51
 

como parte do campo das ciências sociais (VILHENA, 1997, p.142). Seu posicionamento,
contrário às sugestões de revisão da Carta do Folclore Brasileiro24 no sentido de conferir
maior autonomia à disciplina, acabou abrindo pontos de atrito com o Movimento.

Já no discurso inaugural daquele evento [II Congresso Nacional de Folclore],


Loureiro colocara discretamente suas discordâncias em relação à redefinição do fato
folclórico (cf. Fernandes, 1953:14). Mas foi uma decisão drástica tomada às
vésperas do Congresso Internacional de 1954 que precipitara a crise. Além de
ocupar uma cátedra de antropologia na Universidade do Paraná, Loureiro era
também diretor do Instituto de Pesquisas de sua Faculdade de Filosofia. No início
daquele ano ele resolveu extinguir a seção de folclore do referido instituto, sob
alegação de que os estudos de folclore não comporiam uma disciplina distinta, mas
seriam apenas uma divisão dos estudos etnológicos. Essa medida provocou reação
imediata de Fernando Corrêa de Azevedo – até então diretor daquela seção, membro
da Comissão Paranaense de Folclore e diretor da Escola de Música e Belas-Artes da
Universidade do Paraná –, que propôs e conseguiu aprovar na Comissão em 1954,
por unanimidade (com abstenção do secretário-geral, o próprio Loureiro), uma
moção ao Instituto de Pesquisas em que expressava seu ‘estranhamento’ pela
extinção daquela seção. A conseqüência imediata dessa reunião foi a renúncia do
secretário-geral. (VILHENA, 1997, p.142)

A crise entre José Loureiro Fernandes e Fernando Corrêa de Azevedo é bastante


representativa da própria dificuldade de se encontrar um lugar para os estudos de folclore que,
até então, obtinham maior respaldo institucional no campo da arte do que propriamente no
âmbito das ciências sociais (VILHENA, 1997). O posicionamento de Azevedo se mostrava
bem mais favorável à aproximação dos estudos de folclore com o campo das artes,
estreitamento que se destaca dentre muitos dos membros que participam da trajetória da
Comissão Paranaense de Folclore.
Fernando Corrêa de Azevedo (1913 – 1975) foi um dos primeiros nomes do
folclorismo paranaense a se dedicar ao fandango. Natural do Rio de Janeiro, era filho de uma
tradicional família carioca, sendo irmão mais novo do musicólogo e folclorista Luiz Heitor
Corrêa de Azevedo (1905 – 1992), que também registrou o fandango no âmbito de um projeto
de mapeamento musical do Brasil empreendido na década de 1950. Azevedo residiu grande
parte de sua vida em Curitiba, entre 1937 e 1971, onde foi um importante articulador cultural e
realizador de eventos artísticos entre 1940 e 1960. Como seu irmão, interessava-se por música,
pelos estudos de folclore e por temas diversos da vida cultural. Além de diretor da Seção de
Folclore do Instituto de Pesquisa da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal
do Paraná, foi também fundador e diretor da Sociedade de Cultura Artística Brasílio Itiberê

                                                                                                               
24
Redigida no âmbito do I Congresso Nacional de Folclore, em 1951, no Rio de Janeiro.
52
 

(SCABI) e da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), dentre muitas outras
atividades (MEDEIROS, 2011).
O autor inicia suas pesquisas no Paraná em 1948, mesmo ano em que é criada a
Comissão de Folclore do Paraná, tendo realizado outras viagens ao litoral paranaense com fins
de “coleta” até 195525. Seu empreendimento, segundo o próprio autor, sem grandes pretensões
analíticas ou interpretativas, seria uma resposta ao alarmante chamado da Comissão Nacional
de Folclore que se dedicava então a arregimentar esforços em todo o país para a realização de
registros que salvassem “ao menos a lembrança de nossas mais caras tradições” (AZEVEDO,
1973, p.57).
No II Congresso Brasileiro de Folclore, em 1953, os congressistas foram convidados a
assistir um festival folclórico na cidade de Paranaguá, onde se apresentaram grupos de pau-de-
fita, balainhas, boi-de-mamão e fandango. Ao relatar tal experiência em texto publicado, em
1973, nos Cadernos de Artes e Tradições Populares do Museu de Arqueologia e Artes
Populares da Universidade Federal Paraná, Azevedo ressalta que, dos gêneros apresentados,
somente o fandango estaria realmente enraizado no litoral, sendo as demais manifestações
praticadas por colonos catarinenses que as teriam herdado de ascendentes açorianos.
O autor identifica um traço comum entre o folclore catarinense e paranaense que seria
“uma acentuada tendência para congregar, sob um nome genérico, as mais diversas danças e
autos populares” (AZEVEDO, 1973, p.64). Seguindo, portanto, os mesmo passos de Andrade
e Almeida, o fandango seria um derivado desta característica, reunindo um conjunto de danças
como caninha verde, chamarrita, anu, tonta, entre outras.
No Caderno de Folclore26 dedicado ao Fandango do Paraná, publicado em 1978,
Azevedo associa o uso da palavra “marca” à distinção entre as diferentes danças regionais
agregadas. No texto, publicado postumamente, ele afirma ter registrado perto de trinta marcas,
ressaltando ainda a existência de muitas outras com nomenclatura própria a cada região
(AZEVEDO, 1978). A experiência em campo me permite afirmar que o termo “marca” é
usualmente empregado no Paraná para nomear o conjunto dos diferentes ritmos, melodias e

                                                                                                               
25
Segundo o autor, suas pesquisas (ou “coletas”) foram realizadas nas seguintes colônias de pescadores da baía
de Paranaguá: Costerinha (foz do rio Guaraguaçu), Pontal do Sul (praia do Leste, no Município de Paranaguá) e
rio do Medeiros. Seus estudos foram publicados sob o título “Aspectos Folclóricos do Paraná”, em 1975, nos
Cadernos de Artes e Tradições Populares n.2 do Museu de Arqueologia e Artes Populares da Universidade
Federal do Paraná. A parte sobre fandango foi reeditada sob o título de “Fandango do Paraná” como conteúdo do
Caderno de Folclore n. 23 da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1978.
26
A série Cadernos de Folclore foi lançada em um momento em que o Movimento Folclórico já havia sido
desarticulado. Em 1976, a Campanha de Defesa do Folclore é incorporada à Fundação Nacional de Artes
(FUNARTE) do Ministério da Cultura. É criado então Instituto Nacional de Folclore que passa a dispor de
recursos viabilizando a edição de muitas publicações, inclusive pesquisas realizadas na época do Movimento.
53
 

coreografias que se distinguem em um fandango, o que me faz supor uma escuta mais atenta
de Azevedo aos interlocutores nativos, que pouco a pouco começarão a ganhar identidade nos
registros do folclore nacional.
O fandango é também citado por Azevedo (1978) como “festa típica dos caboclos e
pescadores”. Ele reconhece a ocorrência de fandango em toda a faixa litorânea paranaense e
também em localidades interiorizadas, ao pé da Serra do Mar, como Morretes e Porto de Cima.
O autor destaca que principal desenho coreográfico presente em grande parte das marcas de
fandango é o “oito”: “o cavalheiro, dançando, descreve um oito, tendo por centro dos dois
círculos as duas folgadeiras que se encontram à sua frente e atrás de si, na roda” (AZEVEDO,
1978, p.6).
Uma das grandes contribuições aos estudos sobre fandango, oferecidas por Azevedo é
a elaboração de um extenso inventário das marcas, incluindo esquemas gráficos das
coreografias e transcrições em partitura das músicas, identificando as diferenças conforme a
localidade onde foi feito cada registro. Tal levantamento é recorrentemente citado em
pesquisas acadêmicas e culturais posteriores sobre fandango. O autor, contudo, não explora a
diversidade e as variações que ele próprio observara. As marcas são expostas a título de
demonstração exemplar, sem grandes apontamentos sobre as possíveis distinções apuradas em
sua investigação em campo. Percebemos esse aspecto como uma tendência de muitos autores
das pesquisas folclóricas, que fixam suas experiências sem problematizarem contextos e
diferenças, ou mesmo as dificuldades encontradas na compreensão dos próprios interlocutores.
Esses inventários, contudo, acabaram muitas vezes por ganhar um caráter prescritivo da
autenticidade no decorrer de suas releituras, conferindo uma rigidez que em muito ultrapassa a
realidade vivenciada em campo.
Os estudos de Azevedo na região de Paranaguá, Morretes e Guaraqueçaba são
contemporâneos aos de Inami Custódio Pinto (1930-), folclorista que ganhará grande projeção
no Paraná. Natural de Curitiba, passou a infância em Paranaguá, onde conheceu o fandango.

Então eu tinha nove anos, e naquelas noites quentes de Paranaguá, papai, que
sempre foi admirador e grande folclorista amador, nos levava no miramar, em
Paranaguá, onde você avistava toda a extensão do Rio Itiberê e parte da Ilha dos
Valadares. Ele dizia escute Inami: plaplapla papa. Isto é o fandango, é uma dança
assim, assim e assim. (Custódio Pinto, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, Curitiba, 2005)

Durante a Segunda Guerra, o pai de Custódio Pinto foi transferido para Santa
Catarina. Em 1952, ele retorna ao Paraná e, de volta a Paranaguá, surpreende-se com a
54
 

desarticulação do fandango, que, segundo ele, teria sido alvo de proibições durante o período
de guerra.

A primeira coisa que eu fiz foi correr em Paranaguá pra ver o fandanguinho, porque
eu já fazia parte lá em Florianópolis de todos os grupos folclóricos, carnavalescos.
Cheguei lá, corri pra lá e cadê? Desapareceu. Daí fui indagando, indagando. Ainda
tinha um ex-funcionário da companhia [em que o pai trabalhou] lá e daí eu fui com
ele, ele me levou em tudo que foi canto. “Não fazemos mais nada, acabou, acabou”.
Daí me levaram pra Manequinho da Viola, “não, mas existe”. Primeiro conheci o
Moacir Barbeiro, mas já tocava [fandango] com violão, eu disse: “não, não é isso
que eu quero”. Mas ele tocava todas as marcas de fandango, o Moacir Barbeiro.
“Não mas quem toca é o Manequinho da Viola”. Daí ele me passou tudo, eu gravei
tudo. Ele sabia mais de quinhentas marcas o danado, e eu gravei mais de quarenta
rolinhos assim num gravadorzinho. Ele foi me explicando e tal, e aquilo. Imagina
quando a gente grava, eu era menino e, com a medida que ele ia explicando, eu ia
vendo tudo aquilo de anos atrás e recordando. Eu parecia integrado na coisa, fazia
parte da coisa. O Manequinho disse: “ah, o mestre aí, o vivão lá que conhece todas
as marcas”. (Custódio Pinto, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, Curitiba, 2005)

Custódio Pinto inicia suas pesquisas de forma mais sistemática a partir de 1952. Tão
relevantes quanto seus registros foi seu intensivo trabalho de articulação local. Além de
músico e estudioso de folclore, ele atuava também como produtor musical e fonográfico. Entre
as décadas de 1950 e 1960, aproximou-se progressivamente de vários moradores de Paranaguá
em busca de conhecedores do fandango, travando amizade em especial com Manequinho da
Viola e Romão Costa.

Eu cheguei em Paranaguá e me disseram: ‘(o fandango) tá morto e não existe mais’.


Então o meu esforço foi para desenterrar o Folclore. Eu procurava. Ainda existia,
mas eram só velhinhos que tocavam fandango. Os mais novos já tinham esquecido
ou não chegaram a conhecer o fandango. (...) Até que encontrei Manequinho da
Viola, que trabalhou nessa companhia de papai. Por coincidência ele era, e foi
considerado até a sua morte em 1966, o maior mestre violeiro do Fandango de todos
os tempos. O Manequinho me indicou Romão, da Ilha de Valadares, que era mestre
de dança, muito famoso também. Então, eu levei de 1952 a 66, convencendo ele a
tocar fandango, porque ele era pescador, trabalhava na estiva, inclusive sábado,
domingo e feriado. (...) Então, como a Ilha de Valadares estava mais perto de
Paranaguá, ela se tornou uma ilha de grileiros, o que me poupou muitas viagens,
muito sacrifício. Tinha gente que vinha das ilhas do Teixeira, Ilha do Mel, de
Guaraqueçaba, de todos os cantos, atrás de assistência na ‘capital do litoral’, que
seria Paranaguá. E não encontrando, prá não ter que voltar e morrer tão longe, eles
faziam as suas casinhas na Ilha de Valadares. Só em (19)64 eu consegui formar um
grupo em Valadares. Eu fiz a seleção de casais oriundos de Tabaruca, do Guaraçu,
da Ilha do Teixeira, do Morro dos Ingleses e comecei a ensaiar com o conjunto do
Manequinho da Viola. Não deu outra: foi um sucesso! Mas faltava dinheiro para
comprar roupas, construir a casinha do fandango. (CUSTÓDIO PINTO, 2004, p.
227)
55
 

A atuação de Custódio Pinto no sentido de propor uma nova forma de articulação e


continuidade dos fandangos com a organização de grupos, até onde se tem notícia, é pioneira
na região27. É curioso, entretanto, notar que apesar de afirmar que “somente os velhinhos
tocavam”, ele consegue reunir na formação do grupo muitos jovens e adultos que conheciam
as músicas e coreografias. Essa tendência em recorrentemente afirmar que “o fandango está
morto” ou “é morto” é algo que escutei também muitas vezes ao longo das viagens realizadas
à região. Esse tipo de fala não apenas traduz um sentimento de nostalgia por tempos passados,
como é também dotada de forte apelo mobilizador junto ao interlocutor, funcionando como um
dispositivo eficaz para atrair o interesse sobre o fandango.

Figura 5: Grupo com fandangueiros da Ilha dos Valadares liderado por Manequinho da Viola e
Romão Costa (no centro da imagem, betendo palmas). Sem data. Acervo pessoal de Romão Costa.

                                                                                                               
27
A proposta de formação de grupos a partir da reunião de praticantes e conhecedores de fandango foi
posteriormente seguida por Helmosa Salomão Ritcher, professora e entusiasta do folclore na cidade de Morretes.
Na década de 1970, ela reuniu moradores de bairros rurais do município para a formação de um grupo que passa
também a ser representante da cultura paranaense em eventos e festivais até mesmo fora do estado. Conforme
abordei na introdução, nas últimas décadas, a formação de grupos de fandango se tornou algo comum. Nos anos
de 1990, fandangueiros de São Paulo Bagre, em Cananeia, formaram o Violas de Ouro de São Paulo Bagre. No
final da década de 1990, é formado o Grupo Folclórico Mestre Romão, em Paranaguá, com jovens dançadores. E
seguem-se muitos grupos, cada um a seu modo, com ou sem a presença de dançadores. Em Morretes, formou-se
um grupo de jovens, batizado em homenagem à Profa Helmosa Salomão. Em Paranaguá, além do grupo de
Mestre Romão, o Caiçaras do Paraná, o grupo de Mestre Eugênio (falecido), a Associação de Cultura Popular
Mandicuéra, os Pés de Ouro e, mais recentemente, um grupo liderado pelo violeiro e marcador Brasílio dos
Santos. Em Guaraqueçaba, há a Família Pereira e dois grupos de jovens, que mesclam fandango com teatro, o
Pirão do Mesmo e os Fâmulos de Bonifrates. Em Cananeia, além do Violas de Ouro, há a Família Neves, os
Fandangueiros do Ariri, os Caiçaras do Acaraú, os Caiçaras de Cananeia, os Jovens Fandangueiros de Itacuruçá
e uma outra formação da Família Pereira, liderada por José Pereira. Em Iguape, há os Jovens da Juréia e
tocadores que se reúnem informalmente em algumas localidades do município.
56
 

Além de formar um grupo na Ilha dos Valadares, em Paranaguá, Custódio Pinto


também participa da organização de uma associação cultural em Curitiba, intitulada Gralha
Azul, que constitui um grupo parafolclórico de mesmo nome. Na década de 1970, o grupo
gravou um disco com composições de Custódio Pinto inspiradas no folclore paranaense,
seguindo os passos indicados por Mario de Andrade na busca de uma musicalidade brasileira
pautada em pesquisas sobre o popular. Em tópico dedicado ao Paraná no noticiário sobre as
repercussões nacionais do Dia do Folclore, publicado na Revista do Folclore Brasileiro28, há
notas sobre o XIII Festival Folclórico de Curitiba, promovido pelo Governo Estadual do
Paraná, através da Secretaria de Educação, onde teriam se apresentado grupos folclóricos de
tradição portuguesa, germânica, japonesa, polonesa, italiana e ucraniana, além do fandango,
que gradualmente começa a assumir um lugar especial como emblema do folclore paranaense.

Pela primeira vez foi apresentado, em Curitiba, o fandango paranaense, a cargo do


Grupo Folclórico da Associação Tradicionalista Gralha Azul, e o espetáculo resultou
de pesquisas, coletas e registros do Prof. Inami Custódio Pinto, da Faculdade de
Educação Musical do Paraná e diretor da TV Educativa do Colégio Estadual. O
Prof. Inami dedica-se, há mais de 20 anos, ao estudo e coleta do folclore paranaense,
sob suas mais variadas combinações e aspectos. Nota-se que a parte musical foi
apresentada com os instrumentos tradicionais: violas de 10 a 12 cordas, adufos e
rabecas legítimas ‘fabricados’ pelos artesãos caboclos, pescadores e fandangueiros
do litoral paranaense.
A Associação Tradicionalista ‘Gralha Azul” – o nome é uma homenagem ao Paraná,
terra dos pinheirais, onde o pássaro desse nome tem seu habitat preferido – foi
fundada a 7 de junho de 1969 e está participando pela terceira vez dos festivais
folclóricos do Paraná. (Revista do Folclore Brasileiro v.11 n. 30 – maio a agosto de
1971, p.240)

O trabalho de fomento ao fandango proposto por Custódio Pinto será desenvolvido a


partir de uma lógica ambígua. Ao mesmo tempo que promove e incentiva os grupos, formula
suas demandas por meio de apelo ao risco de desaparecimento do fandango. Entre a exaltação
do “purismo autêntico” e a “vitimização” do fandango pelos problemas sociais, Custódio
Pinto amplia as redes de diálogo e articulação do fandango com as autoridades e com a
imprensa, figurando como porta-voz das tradições paranaenses e, pouco a pouco, também
como interlocutor dos ilhéus de Valadares, em muitas reportagens alarmantes publicadas em
veículos de comunicação no Paraná e em São Paulo.
Em 1968, o jornal O Estado do Paraná publica matéria criticando a organização do
Festival Folclórico Internacional daquele ano, sediado em Curitiba, por não prever em sua
programação nenhum grupo representativo da tradição paranaense, pois apenas grupos
                                                                                                               
28
Revista do Folclore Brasileiro v.11 n. 30 – maio a agosto de 1971.
57
 

relacionados às etnias imigrantes compunham as apresentações. O articulista Vicente


Ulandovski questiona na ocasião: “e nós paranaenses temos um folclore regional? Podemos
nos dar ao luxo de apresentar algo somente nosso num festival como o que está por suceder?”.
O mesmo artigo traz uma alarmante nota que ressalta que “Fandangos podem acabar” em
virtude da avançada idade daqueles que sabem tocar e dançar.
Em 1973, o jornal curitibano Correio do Povo publica a matéria “Folclore – professor
fala em extinção”, onde Custódio Pinto declara: “o folclore paranaense, se as coisas
continuam como estão, não dura mais de uma geração”. Na reportagem, ele defende também
a autenticidade do fandango e sua execução feita em instrumentos artesanais como emblema
popular paranaense, algo diverso do regionalismo gaúcho, onde a recriação do cancioneiro
popular seria feita por músicos eruditos e instrumentos formalizados.

É uma pena que a gente presencie tudo isso se acabando. Acho que devia pertencer
ao patrimônio histórico nacional. Mas se houver, sem demora, uma medida para
deter esse fim, teremos salva uma página de nossa própria história. (Depoimento de
Inami Custódio Pinto ao Correio do Povo 23/08/1973)

O Estado de São Paulo, em 1975, noticia: “Fandango dá seus últimos passos no


Paraná”. Além do descaso das autoridades com a cultura num país “onde sequer o problema
do analfabetismo foi ainda solucionado”, figuram causas para a morte anunciada do fandango
relacionadas ao florescimento de religiões que coíbem as festas populares e ao custo dos
tamancos usados pelos praticantes. O padecimento de Custódio Pinto na busca de apoio para
as suas causas é também tema de um tópico da reportagem.

Assim como o fandango parece estar com os dias contados, esmagado pelos
problemas sociais que vão se avolumando (são poucas as famílias da ilha [dos
Valadares] não atingidas pela praga da mortalidade infantil), o único homem que até
bem pouco era capaz de mobilizar os fandangueiros parece, por sua vez, sofre do
mal que afeta a vida dos ilhéus – uma indisfarçada indiferença pelo seu trabalho. De
fato, Inami Custódio Pinto parece constituir o exemplo não muito raro do estudioso
que não encontra o menor apoio para as suas pesquisas. Com a mesma assiduidade
com que vem sento cotejado por políticos e ex-governadores que auxiliam o
fandango em épocas pré-eleitorais, Inami continua sempre sem apoio para realizar
um trabalho mais sério. Foi assim várias vezes. (Enio Squeff, O Estado de São
Paulo, 05/10/1975)

No mesmo ano, poucas semanas depois, o jornal alerta em chamada: “Contato com a
civilização destrói o folclore do litoral”. Dessa vez, a matéria enfoca as tradições populares,
como as bandeiras e o fandango, no município de Guaraqueçaba, vizinho litorâneo de
Paranaguá e berço de muitos fandangueiros residentes na Ilha dos Valadares. No tópico
58
 

“Fandango, no fim” a reportagem indica a proibição das bandeiras, seja pelas ressalvas
impostas por padres redentoristas como pela cobrança de taxas às romarias, como fator de
declínio da difusão dos fandangos.

As populações litorâneas, no continente, se ajudavam em forma de mutirões para


colheitas ou plantios. Após cinco dias de trabalho, o proprietário beneficiado
patrocinava o fandango. Os pescadores também escolhiam o final de semana para
dançar fandango e entre eles ainda existem muitos cuja fama de violeiros o tempo
ainda não apagou. Em Guaraqueçaba, ainda se fala do ‘seu’ Miguel, do Alípio,
Otávio e Aníbal. Dezenas de outros, nas ilhas, também fizeram nome e a viola onde
executavam as ‘modinhas’ hoje está esquecida em cima de móveis empoeirados. (O
Estado de São Paulo, 26/10/1975)

Na mesma data, o jornal publica também um artigo escrito por Custódio Pinto,
intitulado “Fandango do Paraná”, onde ele reafirma a legitimidade do fandango e mais uma
vez sentencia seu desaparecimento, “vítima do rádio de pilha, do yeyeyê, da cultura de massa,
do empobrecimento da região e, até mesmo, da proliferação de certas seitas religiosas que
proíbem o canto e a dança por pecaminosos” (Custódio Pinto, O Estado de São Paulo,
26/10/1975).
Um fator importante a ser ressaltado é que, ao lado da notoriedade conferida ao
fandango e do elenco de problemas sociais enfatizados, vemos gradativamente nestas
reportagens muitos fandangueiros ganharem nome, aparecendo como interlocutores das notas
jornalísticas.

Manequinho da Viola, Manoel da Paz, Doca, Marcílio, Norberto Rodrigues, seu


Ercílio, são personagens de fandango que dona Adelina Garcia dos Santos enquanto
torra e soca café para as raras visitas na Ilha dos Valadares. Ela é a mais velha das
folgadeiras entre os fandangueiros conhecidos no litoral. Mesmo com seus 77 anos é
a mais animada e a que mais se entusiasma quando fala no fandango. E seu rosto se
torna ainda mais enrugado ao lembrar: ‘Quando começamos a formar o grupo aqui
da Ilha [dos Valadares] havia 12 pares de folgadeiros. Hoje somos apenas
6.’(s/referência, 29/05/1980)

Embora na década de 1970 o folclorismo brasileiro já não estivesse tão articulado


como movimento (VILHENA, 1997), algumas comissões estaduais dão continuidade de
forma mais isolada a seus trabalhos. O estímulo à formação de grupos parece se mostrar uma
alternativa para reanimar as práticas locais. O Instituto Nacional de Folclore, criado em 1976,
a partir da incorporação da Campanha de Defesa do Folclore à FUNARTE, passa a contar
com a relativa disponibilidade de recursos estatais, o que permite viabilizar algumas séries de
publicações. Suportes mecânicos, como a fotografia e as gravações musicais, cada vez mais
acessíveis, ganham maior importância no registro das tradições.
59
 

Em 1976, o fandango foi representado no exemplar de n. 15, intitulado Fandango do


Paraná, da coleção Documento Sonoro do Folclore Brasileiro, uma série de discos compactos
dedicados ao mapeamento da música de tradição folclórica, empreendida pela Campanha de
Defesa do Folclore Brasileiro com o apoio da FUNARTE. As gravações haviam sido
realizadas em 1968, por Inami Custódio Pinto com o grupo de Manequinho da Viola, e o
disco conta com apresentação de Roselys Vellozo Roderjan, outra expressiva atuante da
Comissão Paranaense de Folclore. A marca regionalista é acentuada e o fandango aparece,
portanto, como um indicativo de pertencimento que legitima sua “versão” paranaense. Mesmo
figurando a ênfase no “fato folclórico” e na visão coletivista das canções ali registradas,
grupos e comunidades aparecem devidamente creditados na ficha técnica de realização do
disco.

Figura 6: Frente e verso da capa do disco Fandango do Paraná, Coleção Documento Sonoro do Folclore
Brasileiro n.15, 1976.

Custódio Pinto é também articulador da participação do fandango no mapeamento


musical do Brasil empreendido pela gravadora Marcus Pereira Discos entre as décadas de
1970 e 1980, que resultou em uma coleção de LPs de grande prestígio e repercussão. Os
registros musicais reuniam lado a lado manifestações populares e ícones na MPB em séries
regionais. Diretor da gravadora e curador da série, Marcus Pereira relata seu contato com
Custódio Pinto na reportagem “O samba é a desgraça nacional. Fazer música regional é nosso
caminho certo” que enaltece a importância do mapeamento da cultura popular brasileira.
60
 

Num almoço em Curitiba tivemos contato com um folclorista, Inami Custodio Pinto,
que nos propôs irmos a Valadares, uma ilha em frente à Paranaguá, onde existia um
grupo de fandango que ele, de certa forma, não deixa morrer. Atravessamos de
canoa e, como lá não tem automóvel, andamos dois quilômetros para chegarmos à
casa onde se dança fandango. (...) Inami recolheu mais de cem ‘marcas’ diferentes,
de estrutura açoriana com versos arcaicos misturados a outros, feitos na hora –
saudações, temas históricos, casos de imigrantes, pedaços de história da região,
como o dia que Zepellin sobrevoou a ilha. (Depoimento de Marcus Pereira
concedido a Margarida Autran, Correio do Povo, Porto Alegre, 06/03/1977)

Ao trabalho de Azevedo e Custódio Pinto no registro do fandango paranaense,


somam-se ainda as contribuições de Roselys Vellozo Roderjan (1927–?). Segundo Prosser
(2004), ela era curitibana e iniciou sua carreira no magistério em 1946, tendo se diplomado
mestre em História com uma pesquisa dedicada à “formação das comunidades campeiras do
Brasil Meridional”. Em 1965, ingressou na Comissão Paranaense de Folclore, na qual mais
tarde ocupou o cargo de presidente, entre 1976 e 1998. Interessada pela história da música e
pelas manifestações populares paranaenses, em 1969, publicou um capítulo dedicado ao
folclore em livro sobre a história do estado, que foi reeditado mais tarde, em 1981, em uma
série sobre folclore brasileiro organizada pelo Instituto Nacional do Folclore. Assim como
Custódio Pinto, Roderjan também se dedicou ao ensino do folclore nas diversas instituições
onde atuou.
Também nos textos de Roderjan vemos emergir em destaque uma terminologia
específica que, apesar de não estar explicitado pela autora, nota-se estar relacionada às
categorias nativas de descrição e representação do fandango.

O fandango era dançado nos sítios, por ocasião do pixirão quando os vizinhos
auxiliavam o dono da casa nos trabalhos de roçada ou plantação. O Fandango de
finta (arcaísmo que quer dizer coleta) é feito em qualquer ocasião, bastando que
todos colaborem na compra dos preparos. Seus dançarinos chamam-se folgadores ou
folgadeiras, porque dançam na folga do sábado para o domingo. O Fandango
paranaense é formado de uma série de danças denominadas marcas, variando a
coreografia conforme o nome delas (anu, andorinha, chamarrita, domdom, tonta,
cana-verde, sabiá, caranguejo, lajeana, vilão de lenço, xarazinho, xará grande,
marinheiro, etc.). O acompanhamento musical é feito com duas violas, uma rabeca e
um adufo (pandeiro), confeccionados pelos próprios caboclos. Os cantos são tirados
pelos dois violeiros, em vozes paralelas, e podem ser tradicionais ou improvisados.
Algumas danças são valsadas, executadas arrastando o pés, e outras, sapateadas
(batidas ou rufadas), entremeadas de valsados e palmas. O sapateado é feito pelos
homens, com tamancos especiais, e as mulheres dançam arrastando o pés, atentas à
coreografia. Os sapateados finais são chamados de arremate e seguem-se ao grito de
um dos violeiros – ‘Ô de casa!’(Roderjan, 1981, p.30)

Roderjan também enfatiza e defende as qualidades musicais e heranças intrínsecas ao


fandango. Segundo ela, a construção das escalas de algumas melodias remontaria a padrões da
Idade Média “apresentando a 4ª aumentada e a 7ª menor dos modos lídio e mixolídio
61
 

medievais”. A impressão de que os “caboclos desafinam” seria apenas derivada desses padrões
modais que perpassavam o tempo (RODERJAN, 1981, p.31).
A tese de Roderjan sobre a chegada do fandango no Paraná divergia em alguns
aspectos da sua vinculação direta à chegada de espanhóis e portugueses no litoral empreendida
por Custódio Pinto. Ela acreditava em um difusionismo que teria partido de açorianos da costa
paulista, reconhecendo alguma aproximação com o fandango paulista, que não é explorada nas
pesquisas de seus colegas folcloristas.

O Fandango do litoral paulista é o que mais se afiniza com o Fandango


paranaense. Autores paulistas fazem constantes referencias ao Fandango do
Paraná, citando que nossos caboclos iriam até as cidades e povoados do
vizinho estados, nas romarias, para baterem o Fandango. Alceu Maynard
Araújo escreve que, na afinação da viola, só os antigos gostavam de usar o
ponteado do Paraná e que deixaram de usar porque era muito difícil de
temperar. Essa e outras referências são evidências da interligação das danças
do Fandango do litoral de São Paulo e do Paraná. (RODERJAN, 1981, p.30)

Na perspectiva de Roderjan, o fandango do Paraná não se funde, entretanto, com o


fandango paulista, estão no máximo correlacionados, como se a divisa entre os estados fosse
algo concreto, que demarcasse claramente tradições distintas. De fato, embora os folcloristas
do Paraná tenham construído a trajetória de institucionalização desse campo em seu estado
amplamente articulados com o próprio Movimento Folclórico Brasileiro e com um cenário
intelectual e cultural mais amplo, percebemos que há um interesse em preservar uma fronteira
que delimita sua área de atuação específica. Talvez pelo contraste entre a capacidade de
realização da Comissão e um campo de atuação que reconheciam como limitado (já que não
compreendiam as culturas dos imigrantes como parte do folclore brasileiro), seus membros
tenham se voltado com tanta força para aquilo que podiam reconhecer nas esferas de seu
pertencimento. A maneira como divulgam o fandango, sempre sob a ameaça de um fim
próximo, também transparece um receio sobre as possibilidades e limites de seu próprio
campo de atuação. Ao defenderem o fandango, ao mesmo tempo enaltecem e socorrem o
folclorismo paranaense, especialmente a partir da desarticulação do Movimento Folclórico.
A interação entre fandangueiros e folcloristas no Paraná foi intensa e produziu novas
formas de organização dessa sociabilidade. Os folcloristas procuraram traduzir, por vezes de
maneira prescritiva, traços que apontavam uma suposta autenticidade do fandango paranaense.
Algumas das características do fandango são enfatizadas e construídas nesse processo de
interação, como por exemplo, um certo tipo de moralidade, que para os folcloristas seria fruto
do aspecto iminentemente familiar do fandango.
62
 

Assim como Vianna (1995), reconhece a importância da participação de intelectuais


na inserção do samba em outras esferas da vida social como fator que lhe confere notoriedade
de emblema nacional, vimos processo semelhante, ainda que significativamente mais tímido,
ser conduzido pelos folcloristas paranaenses no que tange a emersão do fandango como
emblema de uma identidade popular do Paraná. Quase todos os nomes expressivos do
folclorismo paranaense se envolveram ao longo de suas vidas em atividades pedagógicas e,
portanto, tiveram grande influência na formação de um olhar sobre o fandango. Contudo, a
interação dos folcloristas com o campo abriga tensões, pois, na medida em que tentam apoiar e
incentivar o fandango, acabam por intervir nas dinâmicas próprias de organização social que
abrigariam a manifestação considerada por eles como “espontânea”.

Você quer ver uma coisa, um pecado que eu cometi com todo o meu conhecimento:
eu falava, cansava dizer: “o fandango é isso, o fandango é aquilo”. Aí caí na asneira
de trazer o meu grupo pra cá. Então preparei televisão, tudo pra eles apresentarem, a
imprensa me ajudou barbaridade. Nem me passei pela idéia, primeiro o translado
acaba com a característica do fato folclórico, pois a principal característica é a
espontaneidade. (Custódio Pinto, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu
Vivo do Fandango, Curitiba, 2005)

Para os folcloristas do Paraná, o desenho ideal do fandango parece flutuar num lugar
incerto no tempo, fruto de construções ideológicas, situando-se após sua conformação
nacionalizante e antes dos efeitos avassaladores da modernidade.

1.4. O fandango no mapa do folclore paulista e a caracterização do homem rural

No âmbito do florescimento da disciplina folclórica no estado de São Paulo, além dos


estudos de Mario Andrade e de sua discípula Oneyda Alvarenda, o fandango figura ainda na
obra de dois nomes emblemáticos: Alceu Maynard Araújo (1913–1974) e Rossini Tavares de
Lima (1915-1987).
Natural de Piracicaba, Araújo percorreu uma extensa trajetória ligada à educação,
tendo se formado bacharel em Sociologia e se doutorado em Antropologia Social na Escola
Livre de Sociologia e Política. Dedica-se aos estudos de folclore ao longo de toda a vida e
desempenha um trabalho de fôlego que extrapola a perspectiva regionalista, publicando dentre
outros, três volumes dedicados ao Folclore Nacional. Edison Carneiro ressalta que, assim
63
 

como Câmara Cascudo, Araújo, mesmo tendo se ligado às Comissões de Folclore, preferia
desenvolver seus trabalhos com maior autonomia29.
Araújo é um dos pioneiros de estudos de campo mais detalhados sobre a dança do
fandango, realizados no município de Cananeia entre 1946 e 1947. Talvez por sua formação
em sociologia e antropologia, a narrativa de Araújo elucida contextos de pesquisa, descreve
interlocutores e tenta criar pontes entre a situação estudada e outras no litoral norte (Ubatuba)
e no interior (São Luiz de Paraitinga, Cunha, Itanhaém e Taubaté) de São Paulo. Seu texto
apresenta termos como “sociabilidade” e “histórias de vida” (ARAÚJO, 2004, p.164-167). O
fandango aparece também como “reunião social”. Contudo, seu viés mais científico não se
sobrepõe ao olhar romântico e idealista, capaz de enxergar de forma apaixonada o campo de
estudos ao qual se dedica.

Costuma-se dizer que o povo da roça é um povo triste e indolente e que seus cantos
são tristonhos. Entretanto, são inexatas tais afirmações eivadas de etnocentrismo. O
nosso rurícola não é triste nem tampouco indolente. A indolência que lhe atribuímos
é certamente devido à comparação que fazemos como nosso modus vivendi,
governado pela rigidez mecânica e inflexível dos ponteiros do relógio. Somos mais
tristes do que eles, pois vivemos a comprar a nossa alegria, as nossas diversões, nas
filas dos cinemas etc. O rurícola sabe aproveitar muito bem as horas de lazer. Depois
de um dia de trabalho, de um mutirão, que é um jogo coletivo, vemo-lo ‘rufar’ os
pés num fandango, a noite toda, sem dar mostras de enfado ou cansaço. As suas
modas são alegres e jocosas, buliçosas, inspiradas nas coisas cotidianas, às quais
emprestam um sabor satírico. Suas músicas se nos apresentam tristes porque é a
nossa própria alma que decanta a saudade de algo que foi nosso e hoje não mais
temos, isto é, aquela plenitude de vida em contato com a natureza que o caipira e o
caiçara ainda possuem.
Cananeia, com seu luar inigualável, com suas crianças brincando de roda nas ruas,
seus pescadores cantando em seus barcos sob o ritmo undiflavo, aquele conjunto de
harmonia, cor, luz e singeleza, quase chega a dificultar o pesquisador que se sente
envolvido numa atmosfera de poesia e romance. (ARAÚJO, 2004, p.146-147)

A etnografia do fandango de Araújo é vívida e abarca as contradições inerentes à


realidade social presenciada. Se nas áreas rurais, o fandango de Cananeia se apresentaria em
plena força, o autor não oculta os contrastes das experiências nas áreas urbanizadas do
município, onde fandango é empregado como termo pejorativo de “baile de pessoas de classe
social inferior” e os sapateados são “coisas de gente da roça” (ARAÚJO, 2004, p.147).
No mapeamento de Araújo, mais uma vez, o fandango aparece classificado como
dança brasileira. O autor dedica algumas páginas de seu livro a um inventário de cerca de vinte
danças que presenciou em bailes de fandango realizados em Cananeia. Descreve com detalhes

                                                                                                               
29
Carneiro, Edison. “Evolução dos Estudos de Folclore no Brasil”, publicado na Revista do Folclore Brasileiro
n.3 (maio a agosto de 1962).
64
 

a sequência das marcas, o tempo de duração, os passos e gestos femininos e masculinos e


alguns versos que registrou. Ressaltando que são breves apontamentos, ele confronta a
experiência de Cananeia com a de outros lugares, sendo, portanto, menos prescritivo e
generalista do que as notas de Azevedo (1975;1978).
O autor nos apresenta a nomenclatura, segundo ele utilizada pelos próprios
dançadores, que organiza as diferentes marcas de acordo com as formas de dançar. Seriam
elas: os rufados, os valsados e os rufados-bailados (ARAÚJO, 2004, p.145). Dentre as
primeiras, estariam marcas que mais exigem energia ao dançar uma vez que o tamanqueado
está presente de forma marcante, como chico, a tirana ou tiraninha, o sapo, sarrabalho ou serra-
baile, querumana, anu-velho e recortado. No segundo grupo, apresentam-se as marcas em que
o tamanco não é utilizado, como manjericão, faxineira, chamarrita ou chimarrita, graciana,
anu-chorado, dandão, cana-verde, ciranda, pericó, monada, marrafada, rodagem, caranguejo,
cobra e volta-senhora. Na terceira categoria, que agrupa marcas em que o tamanqueado se
reveza com giros e volteios, estariam pipoca, anu-corrido, pica-pau, sinsará, tonta ou tontinha,
ubatubana, dão celidão, feliz amor, mandado, passa-pachola, pagará e tatu.
Ao descrever a moda chico, segundo ele, de aspecto bastante voluptuoso, Araújo
(2004) afirma que um fandangueiro lhe relatou ser esta a preferida dos fandangueiros do
Paraná e sempre a mais pedida por seus vizinhos que anualmente participariam da romaria de
Bom Jesus de Iguape, em São Paulo. Apesar de não explorar muito essa relação entre São
Paulo e Paraná e de seu trabalho não ter abarcado pesquisas em território paranaense, Araújo
pontua comentários sobre o estreitamento das relações entre fandangueiros dos dois estados.
Embora Araújo e Azevedo tenham sido contemporâneos nas pesquisas de campo sobre
fandango e nas atividades junto ao Movimento Folclórico, não parece haver colaborações
mútuas entre suas pesquisas, o que acentua a percepção do viés regionalista da abordagem
folclorista. Com as pesquisas em território paulista feitas por Mario de Andrade, Araújo
coteja dados. Em sua passagem sobre o “Fandango de Cananeia” em Folclore Nacional II,
compara seus registros de dandãos com notas feitas por Andrade (1928) em Ensaio sobre a
música brasileira, identificando modas semelhantes (ARAÚJO, 2004, p.161).
As pesquisas de Rossini Tavares de Lima no litoral paulista são posteriores às de
Araújo e se desenvolvem sob o anseio de uma investida em campo mais completa e
estruturada. Em 1959, como membro da Comissão Paulista de Folclore, ele demanda à
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro recursos para um levantamento do folclore em
municípios do litoral norte do estado – São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba,
com enfoque prioritário nas seguintes danças e folguedos: Fandango, Chiba, Caiapó,
65
 

Congada, Boizinho, Folia do Divino e Folia de Reis. Seu intuito seria o de realizar, após essa
primeira etapa, novas investidas no litoral sul30, contudo, os recursos viabilizados somente
recobriram a primeira, no litoral norte.
A equipe de pesquisa organizada compreendeu múltiplas habilidades. O próprio
Rossini Tavares de Lima esteve à frente na função de coordenados e relator, acompanhado de
três pesquisadores de campo, um fotógrafo, um cinegrafista, um técnico de gravação e ainda
dois folkmusicistas, sendo o maestro Cesar Guerra Peixe supervisor e a pesquisadora Kilza
Setti31 auxiliar. As pesquisas no litoral norte paulista, realizadas entre dezembro de 1959 e
fevereiro de 1960, tiveram um caráter mais de inventário do que propriamente de análise, o
que se traduz no livro O Folclore do Litoral Norte de São Paulo, com produção textual
coletiva da equipe. A redação dá ênfase nas notas de campo e acrescenta relatos das
dificuldades enfrentadas. Todos os informantes das músicas e descrições são nomeados e
relacionados às localidades gravadas. Os contextos de gravações também são esmiuçados.
O fandango é mais uma vez registrado com destaque para sua permeabilidade de
danças diversas e para a variedade de termos associados.

A palavra Fandango é identificada a Bate-pé ou Batuque Simples, Chiba, Função,


Baile, Ciranda ou Cirandinha, e é usada como as outras citadas para designar um
conjunto de danças ou figurados que podem ser bailados ou sapateados. As danças,
algumas recordadas apenas no nome são: Chiba, Bate-pé, Ciranda ou Cirandinha,
Tira-chapéu, Cana-verde, Quebra-chiquinha, Mulata, Tonta, Xô-passarinho, Sapo,
Caranguejo, Sarrabalha ou Sarravalha, Tangará, Marrafada-minerada, Marrafada-
paratiana, Chimarrita, Chora Sabiá, Eu-venho-do-mar-eu-venho, Recortado,
Gabiroba, Dança da Graciana, Mulatinha-ai-ai, Buê-dêla-flôr-da-romana, Canoa. O
verbo ‘chibar’ é utilizado como sinônimo de dançar. Várias dessas danças
desapareceram pelo menos dos pontos pesquisados, em virtude de os moços
preferirem o ‘baile agarrado’, dizem os informantes e dai haverem desaparecido
várias dessas danças ou figurados. (TAVARES DE LIMA et al, 1981, p.16)

Apesar da impressão de “decadência” dessas danças, a equipe descreve de forma


pormenorizada as técnicas de utilização dos instrumentos, afinações e recursos utilizados
pelos músicos e desenhos esquemáticos de algumas das danças presenciadas. O caráter
inventariante do trabalho se limita, contudo, aos dados recolhidos em campo. Não são
cotejadas informações com outras pesquisas já desenvolvidas sobre a temática, inclusive
                                                                                                               
30
A Seção Documentário da Revista do Folclore Brasileiro v. 11n. 31 (setembro a dezembro de 1971) publica
dados de caderneta de campo de Cananéia das pesquisas da Comissão de Folclore e Artesanato do Conselho
Estadual de Cultura de São Paulo, dirigida por Rossini Tavares de Lima, realizadas no litoral sul de São Paulo.
A ênfase é dada nas técnicas do fazer, incluindo registros feitos com um construtor de instrumentos. A
publicação informa, entretanto, que a pesquisa, por falta de recursos, teria ficado apenas em fase inicial de
levantamento de contatos.
31
Kilza Setti publicou posteriormente, em 1984, uma extensa etnografia da música popular caiçara no litoral
norte de São Paulo, fruto de seu doutoramento em Antropologia Social na Universidade de São Paulo.
66
 

aquelas de Araújo. As notas introdutórias, entretanto, mencionam o fato de já haver sido


realizada na região produções de cunho audiovisual, o que teria, inclusive, causado
dificuldades de diálogo com a equipe de pesquisa.

(...) a equipe também teve que enfrentar a má vontade de muitos elementos


populares, que andaram prestando serviço às companhias cinematográficas,
principalmente em Ilhabela e que eram, por qualquer coisa que executavam,
regiamente pagos por elas. Assim, desde os primeiros contatos, os pesquisadores
perceberam que só poderiam realizar a observação necessária se estivessem
dispostos em condições de oferecer àqueles populares quantias elevadas, para que
exibissem suas danças, folguedos, cantorias e até instrumentos... Eles se julgam,
apesar de pagos, explorados pelos homens do cinema, e apesar de todos os
esclarecimentos que a equipe lhes prestou, quase nada se conseguiu, no sentido de
demovê-los de seus pontos de vista. (TAVARES DE LIMA et al, 1981, p.14)

É relevante notar que grande parte dos folcloristas alerta para a carência documental e
a necessidade de ampliar os mapeamentos sobre o folclore. Contudo, tal percepção não parece
ter gerado diálogos mais sistemáticos na vasta bibliografia produzida. Recorrentemente o
fluxo de informações citado se refere somente às definições de terminologia e raramente se
cotejam de dados de campo. Assim, as pesquisas se sucedem muitas vezes nos mesmos
lugares, sem que os inventários se mostrem realmente extensivos. Parece haver nos estudos de
folclore uma tensão produzida por certo sentimento de insuficiência das pesquisas somado a
uma ansiedade em reunir dados que estão sempre prestes a se perder. Percebo que isso se
perpetua na atualidade, em práticas que reforçam a urgência da documentação de certas
manifestações populares, sob a pena de perda irreparável de informações. De fato, esse
sentimento pode se justificar, especialmente, porque a lógica de trabalho ainda segue
processos muito semelhantes, com ênfase na coleta de material. Assim, pessoas ligadas às
práticas populares são recorrentemente entrevistadas em projetos de documentação muitas
vezes similares. Quando estive em campo, em 2012, José Pereira foi procurado algumas vezes
por pesquisadores e documentaristas. Comentando sobre essa demanda, ele me relatou que
costuma informar previamente os temas sobre os quais já está acostumado em discorrer. Por
outro lado, reconheço que há verdadeiramente um caráter inesgotável em qualquer processo
de documentação sobre folclore e cultura popular, já que o repertório humano, em suas
variações entre a memória e inventividade, não é passível de captação plena. Por mais
completos que possam ser, registros documentais não são capazes de apreender a
complexidade da experiência viva, feita por pessoas, suas ideias, conhecimentos e práticas.
Um aspecto relevante das pesquisas desenvolvidas por Araújo e Tavares de Lima se
refere a uma maior preocupação em caracterizar o homem e seu meio social. Os estudos do
67
 

folclore paranaense estavam mais preocupados com a manifestação em si, sua origem e sua
forma. Em O Folclore do Litoral Norte de São Paulo, Tavares de Lima e sua equipe assim
descrevem a população litorânea paulista.

(...) moderadamente mestiçada e possui como tipo característico o caiçara ou


mameluco do litoral, que difere do morador das praias a oeste de Santos ou do
mixuango fluminense pelo predomínio do branco ibérico sobre os outros elementos.
Difícil é estabelecer a contribuição de sua etnia. Entretanto, seja racial e mesmo
culturalmente falando, a maior parece ser a de portugueses. Os africanos que, em
1835, correspondiam a 37,6 por cento da população, e hoje não chegam a 8,
deixaram contudo, profundas marcas na cultura caiçara. (...) na atualidade, seu
habitante, um tanto isolado, possui um baixo nível de vida, exercendo, na maioria,
suas atividades como pescador e agricultor, em precárias condições. Planta
mandioca, banana, cana-de-açúcar, etc., as duas primeiras, pela importância que
possuem para a sua subsistência. A principal atividade do caiçara, porém, é mesmo a
pesca, no geral realizada com técnicas primitivas. Ultimamente, no entanto, chega a
exercer outras funções, em conseqüência do turismo que se alastra pela região. Na
zona rural e até mesmo pelas cidades e bairros mais desenvolvidos, é comum vê-lo,
franzino e magro, com camisa e calça, chapéu de palha à cabeça, pés descalços. Sua
casa é quase na generalidade feita de pau-a-pique e apresenta no interior alguns
pobres trastes domésticos. (TAVARES DE LIMA et al, 1981, p.21).

Nesse processo caracterização, percebemos uma dualidade que distingue o homem do


interior e do litoral. Nos estudos de folclore paranaense, essa tipificação aciona categorias
mais genéricas como “praieiros” e “caboclos” – a primeira relacionada ao meio e a segunda à
mestiçagem do branco com o índio. Já a terminologia que predomina nos estudos sobre
fandango em São Paulo dialoga com as categorias “caiçara” e “caipira”, cujas características
e especificidades são também temas de interesse do pensamento social. Como veremos ao
longo da pesquisa, essas categorias – e especialmente “caiçara” – participam intensamente do
contexto social do fandango. Tal relevância nos leva, portanto, a refletir como elas são
apreendidas e significadas no campo das ciências sociais.

1.5. As noções de caipira e de caiçara no pensamento social

Entre os anos de 1930 e 1960, no processo de formação das ciências sociais no Brasil,
as noções de “caiçara” e de “caipira” ganham lugar no ambiente acadêmico, em especial
dentre os estudos de comunidade. A proposta dos estudos de comunidade envolve a
delimitação metodológica de um grupo social, marcado por modos de organização
característicos, e a observação dos padrões de mudança em um período de tempo extensivo.
Em que pesem as diferenças de métodos e abordagens entre os estudos de comunidades e os
estudos de folclore, cabe lembrar que ambos floresceram no Brasil em um período de
68
 

fronteiras acadêmicas mais suaves e intenso trânsito intelectual. Assim é possível pensar
muitas aproximações, tanto com relação a alguns temas de interesse, quanto à relevância dada
ao trabalho de campo e à perspectiva de resguardo de certas formas de sociabilidade.
Sobre a cultura caipira, Antonio Candido (1918-), sociólogo e literato, foi responsável
pela escrita do clássico Parceiros do Rio Bonito, tese de doutoramento em Ciências Sociais
defendida, em 1954, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de
São Paulo. Embora seu trabalho de campo seja focado no município de Bofete, no interior do
estado, ele se dedica a traçar uma extensa trajetória de conformação e caracterização do
caipira.
Para Candido (2009), a formação da cultura caipira está associada ao processo de
fixação do paulista ao solo, especialmente após os ciclos dos bandeirantes, a partir do século
XVIII. Nesse processo, começam a se diferenciar duas categorias sociais relacionadas à terra e
à atividade rural: uma formada por proprietários de cana, gado e, mais tarde, de café e outra
por sitiantes, posseiros e agregados. Mesmo tendo origens familiares muitas vezes comuns, as
diferenças econômicas vão se demarcando a partir da capacidade de empregar, o que define a
diferença entre “fazenda” (primeira categoria) e “sítio” (segunda categoria). A segunda
categoria é a que conforma o universo caipira, enquanto “a primeira é participante e raramente
integrante”. (CANDIDO, 2009, p. 103-104)

O caipira típico foi o que formou essa vasta camada inferior de cultivadores
fechados em sua vida cultural, embora muitas vezes à mercê dos brutos
deslocamentos devido à posse irregular da terra, e dependendo do bel-prazer dos
latifundiários para prosseguir na sua faina. (CANDIDO, 2009, p. 106)

As características gerais da cultura caipira seriam “(1) isolamento; (2) posse de terras;
(3) trabalho doméstico; (4) auxílio vicinal; (5) disponibilidade de terras; (6) margem de lazer.”
(CANDIDO, 2009, p.108). O isolamento é relativizado com ênfase na caracterização da
estrutura de constituição do ambiente de moradia coletiva. O caipira vive em “bairros” onde as
unidades residenciais se distribuem de forma espaçada, causando por vezes a impressão
equivocada de ausência de um sistema de relações vicinais organizado. O “bairro” se define
como “agrupamento territorial, mais ou menos denso, cujos limites são traçados pela
participação dos moradores em trabalhos de ajuda mútua” (CANDIDO, 2009, p. 85).
Embora, no cotidiano, o ambiente familiar seja suficiente para a realização do trabalho
doméstico e da agricultura voltados para o mínimo vital, o auxílio vicinal aparece como
fundamental em tarefas de maior esforço. O mutirão é tratado como forma de solidariedade
69
 

mais importante para a caracterização da sociedade caipira, tanto no que diz respeito à
organização simbólica quanto à constituição sentido de pertencimento ao bairro. A base
territorial seria, portanto, fundada em dois elementos centrais: sentimento de localidade e a
necessidade de cooperação (CANDIDO, 2009, p.84).
Candido associa também a vasta extensão de terras disponíveis e o modo de vida
voltado para a subsistência como fatores que caracterizam a possibilidade do caipira dispor de
tempo para o desenvolvimento de atividades lúdico-religiosas que fortalecem a integração
vicinal.

Realmente, uma vez aceito que tal equilíbrio se definia em termos mínimos, vemos
que, além de criar condições favoráveis a uma larga proporção de subnutridos, presa
de verminoses e moléstias tropicais, ela proporcionava oportunidade para caça,
coleta, pesca, indústria doméstica – no setor da cultura material. O lazer era parte
integrante da cultura caipira; condição sem a qual não se caracterizava, não devendo,
portanto, ser julgado no terreno ético, isto é, ser condenado ou desculpado, segundo
é costume. (CANDIDO, 2009, p.113)

A caracterização da cultura caiçara, muitas vezes tomada como uma variante do


caipira, apresenta aspectos semelhantes. Gioconda Mussolini32 (1913–1969), contemporânea
de Antonio Candido na Universidade de São Paulo, é uma das pioneiras nos estudos sobre as
populações litorâneas. Segundo Chiacci (2007), Mossolini foi assistente de Emilio Willens,
com quem iniciou suas pesquisas sobre comunidades caiçaras do litoral paulistano. Assinou
como colaboradora da pesquisa de Willems, Buzios Island: a Caiçara Community in Southern
Brazil, publicada nos EUA, em 1952. Em Persistência e mudança de sociedades ‘folk’ no
Brasil, de 1955, Mussolini identifica algumas constâncias na caracterização destas sociedades.

Se quiséssemos fazer um balanço dos elementos sócio-culturais que, apesar das


diferenças regionais, permitem a conclusão da existência de grande uniformidade
básica de nossos meios rústicos, colocaríamos, neste rol, a título de exemplo, a
coivara, o mutirão, o “troca dia”, o adjutório, o “complexo cultural da farinha de
mandioca”, o “complexo cultural da pesca da tainha”; o compadrio, as novenas, as
folias (principalmente as organizadas ao redor do Divino Espírito Santo e que parece
fornecer o paradigma para as demais). (MUSSOLINI, 2009, p.295)

                                                                                                               
32
Segundo Ciacchi (2007), Gioconda Mussolini se formou cientista social entre 1935 e 1937, integrando a
segunda turma do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, fundada em 1934. Em 1944, se tornou professora de antropologia na mesma universidade. Desenvolveu
várias pesquisas no litoral norte paulista, inclusive sua tese de doutorado, intitulada Persistência e Cultura em
Ilhabela. Mussolini, ainda jovem, conviveu com Mario de Andrade, tendo participado da fundação da Sociedade
de Etnografia e Folclore (1936). Publicou artigos e ensaios sobre cultura popular como “Festa de Folia” e “Festa
de Devoção” (1946) e “Os Pasquins no Litoral Norte de São Paulo e suas peculiaridades na Ilha de São
Sebastião”, este premiado em primeiro lugar no III Concurso de Monografias Folclóricas do Departamento de
Cultura de São Paulo (1949).
70
 

Nos textos de Mussolini dedicados ao estudo da população rural do litoral,


reorganizados mais tarde em Ensaios de Antropologia Indígena e Caiçara33, a autora destaca
que o baixo aproveitamento das áreas litorâneas no Brasil para a produção econômica
favoreceria a preservação de costumes e práticas culturais. Apenas em locais com maior
desenvolvimento econômico – ela cita, por exemplo, o porto de Santos – a trama de relações
estabelecidas se modifica de modo mais intenso, desagregando os núcleos tradicionais com a
“consequente quebra da organização dos grupos locais e a perda dos elementos da sua cultura
‘folk’” (MUSSOLINI, 1980, p. 239).
O modelo caiçara de produção é caracterizado como familiar e artesanal, com
destaque para as atividades de lavoura de subsistência e também para o extenso
aproveitamento da natureza.

Do tipo de vida que se desenvolveu no litoral, com poucos contatos com o mundo de
fora, ou recebendo dele um mínimo de influências e de produtos, por não dispor de
meio aquisitivo, resultou um aproveitamento intensivo, quase exclusivo, ou mesmo
abusivo dos recursos do meio, criando-se, por assim dizer, uma intimidade muito
pronunciada entre o homem e seu habitat. Conhece o homem muito bem as
propriedades das plantas ao seu redor – para remédios, para construções, para
canoas, para jangadas – bem como os fenômenos naturais presos à terra e ao mar
que os norteia no sistema de vida anfíbia que leva, dividindo suas atividades entre a
pesca e agricultura de pequeno vulto, com poucos excedentes para a troca ou para a
venda: os ventos, os “movimentos”das águas, os hábitos dos peixes, seu periodismo,
a época e a lua adequadas para por abaixo uma árvore ou lançar à terra uma semente
ou uma muda ou colher o que plantou. (MUSSOLINI, 1980, p.226).

A atividade pesqueira seria, contudo, um fator de distinção importante em relação ao


modo de vida caipira. Segundo a autora, a lavoura envolveria apenas o ambiente familiar e
vicinal, enquanto a pesca demandaria uma maior interação por depender dos núcleos urbanos.
Ao elegermos Candido e Mussolini para compreender como começam a ser
elaboradas, no âmbito das ciências sociais, as especificidades das culturas caipira e caiçara,
estamos reconhecendo a relevância e o pioneirismo de seus estudos. Contudo, interessa-nos
mais especificamente a noção de caiçara, já que esta se tornou o principal emblema identitário
das populações litorâneas praticantes do fandango. Diegues é um autor de referência no
aprofundamento dos estudos sobre comunidades caiçaras. Suas pesquisas são identificadas
por Ciacchi (2007), em análise sobre a trajetória intelectual de Mussolini, como continuadoras

                                                                                                               
33
Nesses artigos de Gioconda Mussolini, publicados originalmente em 1944 a 1953, a própria autora não utiliza
a o termo caiçara. Este aparece apenas no título da obra organizada postumamente por Edgar Carone para a
Coleção Estudos Brasileiros (Ed. Paz e Terra), cujo conselho editorial era formado por Antonio Candido, Celso
Furtado, Fernando Gasparian e Fernando Henrique Cardoso.
71
 

e renovadoras da perspectiva dessa autora34. De fato, Diegues desenvolve uma produção de


grande fôlego sobre o tema, inclusive no que diz respeito à organização e à publicação de
pesquisas de autores diversos que se desdobram sobre as práticas sociais, econômicas e
culturais caiçaras35. Fundador do Núcleo de Apoio à Pesquisa de Populações Urbanas de
Áreas Úmidas Brasileiras, vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São
Paulo, desde 1988, manteve por muitos anos um Centro de Estudos Caiçaras no município de
Iguape, no litoral de São Paulo, tendo atuação expressiva em defesa do direito territorial de
caiçaras na condição de “população tradicional brasileira”.
Segundo Diegues (2004), as culturas caiçaras sempre se caracterizaram pelos trânsitos,
dado que a atividade pesqueira mantem níveis mais estreitos de relações com os centros
comerciais. Historicamente, o caiçara pescador seria um agente que circula entre o ambiente
dos sítios e o espaço urbano. Justamente por esse aspecto de mobilidade do caiçara, ele
ressalta que, mesmo as interações mais intensas com a economia e os modos de vida da
sociedade capitalista, não descaracterizariam o reconhecimento de padrões tradicionais
associados ao modo de vida caiçara. Contudo as pressões externas que pesam sob as
sociedades caiçaras são muitas, tais como o crescimento da pesca comercial em suas áreas de
atividade, a especulação imobiliária decorrente do veranismo associada à expropriação de
terras, o crescimento da atividade turística no litoral desde a década de 1950 e, a partir da
década de 1960, a intensificação da criação de áreas de proteção de proteção ambiental.
A partir da década de 1980, movimentos de apoio à permanência e valorização do
modo de vida caiçara crescem no litoral paulista. Parcerias com núcleos universitários e
organizações não governamentais criam um contrafluxo em apoio à formulação de modelos
de proteção ambiental que assegurem a convivência de comunidades caiçaras em unidades de
conservação.

                                                                                                               
34
Segundo Ciacchi (2007): “haja vista o significado inicial da busca do lugar de Gioconda nesses campos, aí
incluindo o que por ora pode ser definido como o "subcampo" dos estudos de socioantropologia marítima e da
pesca, não será inócuo localizar, em muitos trabalhos e trajetórias sucessivos à morte de Gioconda, um rastro
importante da perspectiva a que estava chegando a nossa autora. Penso, para um programa mínimo e inicial de
pesquisa, na dissertação de mestrado em sociologia defendida por Antonio Carlos Diegues na USP, em 1973,
com a orientação de Fernando Mourão, aluno, por sua vez, de Gioconda Mussolini. O trabalho, Pesca e
marginalização no litoral paulista, é certamente devedor dessa renovada perspectiva epistemológica inaugurada
por Gioconda. Perspectiva que encontrará talvez a sua realização mais completa na tese de doutorado em
sociologia (1980), ainda orientada por Mourão, do mesmo Diegues. Intitulada Pescadores, camponeses e
trabalhadores do mar, e publicada numa coleção muito difundida em âmbito acadêmico, ela marca a retomada
de uma tradição interrompida pela morte da professora paulistana e que daria frutos que ainda estão em plena
fase de desenvolvimento nos dias de hoje.” (p.215-216)
35
Destacamos, por exemplo, entre 2004 e 2006, a organização de cinco volumes da Enciclopédia Caiçara
(Editora Huicitec/ Nupaub-CEC/USP).
72
 

O que sucede é que, pela baixa densidade demográfica, pelo uso extensivo dos
recursos naturais, pelo conhecimento e práticas culturais no uso dos recursos
naturais, o modo de vida caiçara teve, e em muitos lugares onde ele é predominante
ainda tem, baixo impacto sobre a natureza, particularmente se comparado com o
causado pela sociedade urbano-industrial. Quando se toma o enfoque êmico, isto é, a
partir das categorias mentais dos próprios caiçaras, não havia, necessariamente,
atitude conscientemente conservacionista, como hoje é defendida pelo
ambientalismo preservacionista dominante. As práticas eram conservacionistas no
sentido de um uso cuidadoso dos recursos naturais renováveis porque as
comunidades caiçaras dependiam deles para sua sobrevivência. (DIEGUES, 2004,
p.43)

Este processo político de ressignificação e afirmação da noção de caiçara aciona


sentidos de pertencimento. Caiçara se torna um emblema identitário especialmente relevante
para as populações litorâneas do Sudeste. E se faz também presente nas narrativas daqueles
praticam fandango, implicando em condutas esperadas no desempenho de determinados
papéis sociais.
Ao adentrarmos agora na etnografia sobre os trânsitos da família Pereira,
perceberemos o quão relevantes são estas categorias como operadoras do mundo do fandango.
A família Pereira se organiza e se constitui em meio a zonas de interseção e continuidades.
Ao mesmo tempo em que seus membros se espalham territorialmente ganham fama como
representantes da tradição do fandango nos circuitos da cultura. Como esses trânsitos se dão
hoje? Como podemos compreender o fandango, para além de seu modelo arcaico ideal,
produzindo novas formas de sociabilidade em uma constante tensão entre passado e presente?
 
73
 

Capítulo 2 – Família e camaradagem em sítios e vilas de Cananeia

2.1. Sobre a vida nos sítios

Meu amor mora tão longe


Daqui lá é uma distância
Se tivesse um portador
Tinha mandado lembrança
(Versos gravados pela Família Pereira no CD Viola Fandangueira, 2002)

Embora hoje o fandango esteja inserido em contextos muito diversificados, circulando


por centros urbanos com grupos relativamente fixos, ouvi inúmeras vezes pessoas que
participam do mundo do fandango relacionarem e justificarem sua importância a partir dos
significados acionados pela vida dos sítios.

Não tinha hora de descanso, se seis ficavam pra lá, ficavam dançando. Porque tinha
quarenta pessoas, quarenta homens naquele tempo de trabalho, então não acabava o
fandango, ia até oito horas. Quando o patrão era bom, e que o povo gostava também,
quando amanhecia ele fechava todas as portas, para que não visse o claro do dia,
para o povo dançar mais. Então ele abria a porta oito, nove horas do dia, mas tava
ali, o fandango era bonito! Hoje não tem fandango bonito que nem naquele tempo!
O povo gostava, ninguém brigava, ninguém fazia nada. (Leonildo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba,
2005).

O fandango de mutirão é uma coisa que nós nascia naquilo. Quer dizer, a gente tinha
prazer de fazer o serviço. No tempo da quaresma, a gente respeitava naquela época
ninguém dançava. Chegava a quarta-feira de cinza, pendurava a viola lá e ninguém
ia mexer ali. Deus o livre se fosse mexer na viola lá. O pai descascava a gente, é.
Não podia mexer, os quarenta e cinco dias de luto a viola ali. Aí sábado de Aleluia, a
gente pegava a viola e ia afinar. Era tão gostoso. E sábado já tinha fandango já!
Desenterrava a quarta feira de cinza, que a gente tratava ali. Aí a gente fazia o
fandango, grande que dava, muito gostoso. A gente dançava até dez horas do outro
dia. É, fazia tempo né? E fechava a casa pra não ver a claridade do sol. Ficava ali
dançando até umas certa hora do dia. E era assim, o tal do fandango! (José Pereira,
em entrevista concedida à Daniella Gramani, Cananeia, 2008).

Outro aspecto que se destacava como relevante para mim, já desde a época em que
estive envolvida com as pesquisas do Museu Vivo no Fandango, é a forte associação entre a
vida nos sítios e o sentido de pertencimento familiar. Os Pereira sempre se apresentam como
sendo “de Araçaúba”, ou ainda “de Rio dos Patos”, relacionando seu nome de família ao sítio
onde nasceram. Assim como os Pereira, outras famílias também se referem deste modo: os
Camilo são “do Varadouro”, os Dias “do Rio Branco”, os Costa “do Rio do Saibro”.

No Rio dos Patos, quando eu comecei a trabalhar, com idade de oito anos, o nosso
serviço sempre era na lavoura. Era arroz, feijão, mandioca. Enfim, do sítio, era o
melhor que nós podia trabalhar. Então nossos pais sempre fazia aquele roçado.
74
 
 
Quando era tempo de colheita, nós arrecolhia o arroz, o milho, nos paióis, e
movimentava de fazer nossos fandanguinhos de tarde, junto com nossos pais. Eu,
Leonildo, Arnaldo, nós tava tudo junto aí. Então, papai fazia os cavaquinho pra nós,
as vez de casca de jaruvá, nós ia fazendo a violinha, ele cantando e nós ajudando ele.
Então nós achava muito importante. Ele achou que nós podia ajudar ele mais tarde,
depois que nós crescesse, e também aprendesse, que nem ele. Ele interessava nós a
aprender o que ele sabia. Então ele fazia cavaquinho, fazia rebequinha, fazia as
coisinha, nós ia fazendo, e fumo até aprender. E depois nós ia aos fandango, já, no
meio dos nosso parente, a família Pereira, que nós somo, tocava nos fandango lá e
fazia bonito por lá. Tudo aplaudia daquele jeito que nós gostava. Fazia, amanhecia,
cantando, brincando. Papai era muito trabalhador e era o mestre da nossa vida. E
então foi onde nós podemos se criar, no poder dele. Nós se achava muito feliz no
poder dele. E depois separemos, saímos cada um pra suas casas, mas sempre não
deixava de se juntar pra fazer nossos fandanguinhos. Eu sempre com a minha
rebequinha do lado, Leonildo também com a violinha dele. Aonde nós chegava era o
maior prazer que nós tinha, cantar naquele povo até amanhecer o dia. O pessoal
gostava da nossa vinda, gostava do nosso lugar. O Rio dos Patos foi rico de beleza
por causa da natureza dos nossos parente. Nossos parentes era tudo chegado à gente.
Aonde chegava, um dia de trabalho, tudo se ajuntava e fazia aqueles roçado, aquela
beleza. Aonde se juntava tudo, as mulheres, mãe, parente tudo, ficava muito
satisfeito. E com aquilo nós se criava muito feliz. (Randolfo Pereira, em depoimento
à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005).

O que se chama de sítios são pequenos núcleos urbanos, por vezes tratados como
bairros rurais36, com construções espaçadas que se organizam nas margens de rios, baías ou
praias, ou mesmo no seio da mata, com acesso por trilhas ligadas a estradas ou a pequenos
portos, chamados portinhos ou trapiches. Além dos sítios, na região em que o litoral de São
Paulo e do Paraná se encontram, conhecida como Lagamar37, são comuns as vilas pequenas,
como a Vila Fátima (PR) e médias como a Vila do Superagui (PR), na ilha de mesmo nome, a
Vila do Marujá, na Ilha do Cardoso (SP), e o Ariri, em área continental de Cananéia (SP).
Diferentemente dos sítios, nas vilas, as casas são mais concentradas especialmente, com
maior adensamento populacional.
Nessa região, abundante em rios, lagoas, praias extensas e baías, as referências
espaciais se organizam não tanto pelos elementos naturais, mas fundamentalmente pelas vilas
e sítios. Em muitos casos aqueles emprestam seus nomes às localidades – como Rio dos Patos
ou Rio Branco – ou são batizados com o nome da própria localidade, em um intercâmbio
onde a tônica referencial recai sobre os núcleos populacionais.

                                                                                                               
36
No âmbito dos estudos de comunidade, realizados na década de 1960, além do já citado trabalho de Candido
(2009) sobre os caipiras, que enfatiza a importância do auxílio vicinal e do sentimento de localidade na
construção da dinâmica de sociabilidade destes núcleos, também Queiroz (1973) produziu estudos relevantes
sobre os bairros rurais paulistas, destacando a necessidade da ajuda mútua e a realização de atividades lúdico-
religiosas como fatores da constituição de solidariedade grupal característica dessas localidades.
37
O Lagamar é um complexo estuarino-lagunar que se estende pelo litoral de São Paulo e do Paraná, envolvendo
os municípios de Iguape, Pariquera-Açu, Cananeia, Ilha Comprida, e também Guaraqueçaba e a região da bacia
de Paranaguá.
 
75
 
 
A circulação na área costeira de divisa entre São Paulo e Paraná é feita
preferencialmente por via fluvial, em embarcações particulares, em geral por canoas e remo
ou a motor ou ainda em pequenos barcos pesqueiros feitos em madeira e pintados com cores
vibrantes, que são chamados de “toctoc” em função do barulho do motor. Lanchas e
embarcações maiores com motores velozes são, em geral, mais comuns dentre os veranistas
ou os que vivem da atividade turística.

Figura 7: Batera, embarcação comum na região. Ariri,


Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.

As referências que orientam os moradores em suas travessias pelos canais, em geral,


são as vilas e os portinhos de onde partem as trilhas de acesso a sítios guardados em meio à
mata, como o Varadouro. Grande parte desses núcleos se encontra atualmente em declínio
populacional, já que muitos moradores migraram para bairros periféricos dos centros urbanos
do litoral paranaense e paulista.

Figura 8: José Pereira no portinho de acesso ao Figura 9: Trilha de acesso ao Varadouro. Cananeia,
Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. 2012. Foto: Joana Corrêa.
76
 
 
Em minhas incursões anteriores pela região, eu havia tomado contato com a densidade
da importância da vida nos sítios principalmente pelos depoimentos gravados e pelos muitos
relatos que ouvi. Já havia visitado algumas vezes o Varadouro, o Rio da Rita, o Sebuí, dentre
outros sítios da região, mas sempre de passagem, jamais havia pernoitado. Contudo, quando
iniciei minha pesquisa de campo no Ariri, percebi que precisava reunir mais elementos que
me ajudassem a melhor compreender o modo de vida sitiante. Assim, pedi a José Pereira e sua
esposa Maria Camilo que me levassem com eles para passar alguns dias no Varadouro. Maria
nasceu no Varadouro e José se mudou para lá depois do casamento, passando a maior parte de
sua vida adulta.
É muito comum que aqueles que migraram para áreas urbanas, mantenham suas casas
nos sítios ou somente áreas com roças para plantio de produtos de consumo familiar. José e
Maria, mesmo após a mudança para o Ariri, conservam a casa e cultivam roçados no
Varadouro. Eles me disseram que preferem consumir alimentos “de lavoura”, com os quais já
estão acostumados. Com os filhos, revezam-se para ao menos uma visita semanal aos roçados,
pois precisam carpir com frequência para que outras plantas e pragas não tomem conta de
suas plantações.
A irmã de Maria, Rosa Camilo, e seu marido Quirino Coelho, que se mudaram logo
após o casamento para o Ariri e lá criaram seus seis filhos, também continuam plantando até
hoje no Varadourozinho, onde Quirino nasceu e foi criado. Leonildo Pereira e alguns de seus
primos, como Agostinho, filho de Julino, que moram em vilas mais próximas da região
costeira, mantêm roçados em Rio dos Patos, pois a dificuldade de acesso – quase duas horas
de caminhada em trilha na mata – afasta o controle ambiental.
A experiência no Varadouro, com José e Maria, se mostrou muito enriquecedora para
entender melhor as relações familiares. Além de mim e do casal, viajaram conosco Rosa, irmã
de Maria, e sua filha Carla, com as quais travei longos diálogos. José, sabendo de meus
interesses de pesquisa, incentivou Maria a me levar às casas de seus parentes – Placidina, sua
mãe, que mora com a filha Teresa, e Luiz Camilo, seu irmão, casado com uma sobrinha de
José – para que eu pudesse conversar com moradores da localidade.
O percurso do Ariri ao Varadouro foi feito na embarcação de José, cerca de vinte
minutos entre canais que retalham extensas áreas de manguezais e cujos percursos parecem
indecifráveis para quem não tem muita intimidade com a região. Em seguida, do portinho do
Varadouro até chegarmos às primeiras residências, é necessário caminhar mais de uma hora
por uma exuberante mata atlântica.
77
 
 

Figura 10: Chegada no Varadouro. Cananeia, 2012. Figura 11: Escola desativada no Varadouro. Cananeia,
Foto: Joana Corrêa. 2012. Foto: Joana Corrêa.

Na época em que desenvolvi o trabalho de campo, em 2012, havia apenas cinco ou


seis casas, permanentemente habitadas no Varadouro. Contudo, conforme me relataram José
Pereira e muitos dos familiares de sua esposa, lá já residiram mais de trinta famílias,
espalhadas em uma vasta extensão territorial, que se integrava ainda ao Varadourozinho, onde
moravam outras tantas famílias. Até há alguns anos, havia escola de ensino fundamental, mas
com o progressivo esvaziamento populacional, foi desativada. Os estudantes foram
transferidos para o Ariri, motivando que mais famílias deixassem a localidade em busca de
mais fácil acesso de seus filhos à escola.
Os três filhos de Luiz Camilo – os irmãos Angélica, Mateus e Angela – eram na
época, em 2012, as únicas crianças e jovens que ainda residiam no Varadouro. Eles faziam
diariamente o percurso de caminhada e travessia de barco para frequentarem as aulas no Ariri.

As casas e organização espacial

Embora nas vilas costeiras a alvenaria seja bastante adotada nas construções, em sítios
como o Varadouro, predominam as casas construídas com tábuas de madeira cortadas na
mata. Normalmente, o assoalho é elevado do solo por tocos de cerca de meio metro, evitando
umidade e alagamento. Esse tipo de construção é também comumente encontrado nos bairros
de periferia. As casas de José e de seus irmãos Arnaldo e Randolfo no Ariri seguem
basicamente esse padrão.
78
 
 

Figura 12: Casa de José Pereira em seu sítio no Figura 13: Casa de Arnaldo Pereira no Ariri. Cananeia,
Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. 2012. Foto: Joana Corrêa.

Em quase toda a região é comum haver uma construção ao lado da casa, bem mais
simples, com as paredes erguidas diretamente no solo natural, de barro batido, onde se faz o
chamado fogo de chão. Tanto no sítio de José no Varadouro, como em sua casa no Ariri, a
comida é prioritariamente preparada nesse ambiente. Segundo ele, foi a partir do momento em
que as telhas de amianto se difundiram na região – e hoje quase todas as casas de sítio têm
esse tipo de telhado em substituição ao trançado de palha –, que a cozinha com fogo de chão
foi separada da casa principal, pois nela manteve-se a cobertura trançada. A telha de amianto
não permite a evasão da fumaça provocada pelo fogo e, por isso, a separação dos ambientes,
antes integrados.

Figura 14: Cozinha anexa à casa de José Pereira, no Figura 15: Fogo de chão, na cozinha da casa de José
Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. Pereira, no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa.

O fogo de chão serve também para defumar carnes de caça e pescados, que
permanecem armazenados em uma grelha ou em ganchos pendurados sobre o fogo, já que
geladeira é ainda é artigo raro para quem mora em sítios que não possuem sistema elétrico de
79
 
 
iluminação, como o Varadouro38. Muitas casas possuem uma cozinha interna à construção
principal, com fogão a gás e armários para louças e alimentos.
Nas casas de muitos dos fandangueiros que visitei, assim como na de José e nas de
seus irmãos, encontramos instrumentos de fandango e peças de artesanato repousando em
pregos presos à parede, misturando-se a alguns outros enfeites e motivos religiosos. Alguns
móveis de madeira, como bancos e mesas são confeccionados pelos donos da casa. Os
instrumentos podem ser de uso dos próprios fandangueiros e ainda, como no caso dos Pereira,
destinados à venda. É comum que haja alguns inacabados, frutos de encomendas. José usa a
varanda frontal de sua casa no Ariri como área de trabalho para a construção de instrumentos.
Arnaldo, que mora sozinho, trabalha na sala. Dentre os irmãos, apenas Leonildo tem um
espaço próprio de trabalho, uma espécie de oficina e refúgio, cujo acesso é feito a partir de
uma pequena trilha que parte de sua casa.

Figura 16: Instrumentos musicais na parede da casa de José Pereira no Ariri. Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa.  

Maria, esposa de José, não acolheu de imediato meu pedido para passar alguns dias
com eles no Varadouro. Com a ajuda de José, logo percebi a resistência era um misto de
preocupação e vergonha com relação às condições de sua casa de lá, mesmo sabendo que eu

                                                                                                               
38
A iluminação artificial é algo bem recente no Varadouro e, assim como em muitas outras vilas e sítios da
região, foi proporcionada por programas governamentais que facilitaram o acesso a placas de energia solar,
baterias ou pequenos geradores.
80
 
 
já a conhecia. Somente após muita insistência ela me disse que o problema era a inexistência
de banheiro. De fato, nem no Varadouro, tão pouco na casa de Leonildo, e mesmo nas de
Arnaldo e Randolfo, no Ariri, não há banheiro e nem encanamento que leve água para as
áreas internas da casa. A proximidade dessas construções a córregos e rios é essencial para a
realização das atividades domésticas. Os sítios no Varadouro de José Pereira e Luiz Camilo se
utilizam do mesmo rio para banhos, lavagem de utensílios de cozinha e roupas e coleta de
água para beber e cozinhar.
As casas no Varadouro, bem como em outros sítios que conheci, são cercadas por
pequenas áreas descampadas que inibem a circulação de animais selvagens e peçonhentos. No
entorno dessas áreas há quase sempre hortas e algumas plantas ornamentais. Por ali também
circulam animais de criação de pequeno porte, como galinhas, patos, gansos e, eventualmente,
porcos. A criação de gado e animais de grande porte não faz parte da economia local. Maria e
suas irmãs me confessaram sentir medo quando se deparam com bois ou cavalos soltos na
região. Alguns sítios possuem casas de farinha ou alguma outra construção suplementar para
armazenagem de estoque de alimentos de lavoura ou maquinarias. No entorno dos
descampados se vê mata, com pequenas saídas em trilhas que levam a outras casas, à beira de
algum rio próximo ou aos roçados de arroz, milho, trigo, feijão, mandioca etc.
Embora as casas não sejam cercadas, preserva-se a distância entre elas. José me disse
que os espaçamentos ajudam a evitar que as criações de um sítio circulem pelos roçados de
outro, mas mesmo assim revelou já ter tido prejuízo em algumas lavouras em virtude da
invasão de porcos e galinhas alheias. Pelo que pude compreender, esse foi um dos motivos
para alguns desagravos com outros moradores do Varadouro.
Muitas das vezes que visitei casas de sítio, fui recebida na cozinha externa, no entorno
do fogo de chão, local que é também referência para a dinâmica da vida familiar. Nos dias de
frio, o fogo serve para aquecer e, no verão, a fumaça ajuda a espantar os insetos, chamados de
“imundice” ou “nojeira”, que de fato são bastante populosos e vorazes nessa época do ano.
Ao longo dos dias em que acompanhei José e Maria em seu roçado, o trabalho foi entremeado
por muitas pausas à beira do fogo, para alguns cafés e as refeições principais. José me falou
várias vezes sobre como gostava desse cotidiano de trabalho, descanso e convivência com
seus filhos, algo que lhe faz falta no Ariri. Quando Maria me levou à casa de sua mãe,
Placidina, que reside no Varadouro com uma filha que não se casou, lá estavam outras
pessoas de sua família, reunidas à beira do fogo de chão numa conversa que rendeu a tarde
inteira.
81
 
 
Parentesco, afinidade e respeito

Quirino e Rosa, nessa tarde na casa de Placidina, afirmaram que a “família é o alicerce
que sustenta a pessoa em seu percurso de vida”. Em seguida complementaram dizendo que “o
esteio da família é a mulher, papel que o homem complementa, mas não substitui”. Nessa
metáfora, percebi o quanto família e casa se entrelaçam como basilares na vida sitiante. A
família representa o piso firme que a mulher protege e abriga, estruturando a unidade familiar.
Quem não tem alicerce, não erguerá sua própria casa.
Carla, filha de Rosa e Quirino, disse-me que por alguns familiares “sente afinidade e
por outros tem apenas respeito”. Afinidade ela tinha com os pais, avós, irmãos e alguns tios.
Já com os primos nem sempre a afinidade que sentia na infância se manteve na juventude.
Para ela, a afinidade parecia figurar como um misto de afeto e convivência, enquanto o
respeito apenas reconheceria a relação de parentesco. O círculo da afinidade seria, portanto,
mais restrito que o do respeito.
Por outro lado, nos relatos de fandangueiros mais velhos, o sentimento de respeito é
muito enfatizado na relação com os parentes próximos.

No meu tempo quando nós chegava a ir num fandango pra dançar era 17, 18 anos.
No meu tempo, quando se saía um pai da gente pra dançar naquela roda um filho
não podia dançar naquela roda. Era o respeito que ele tinha. Seu um padrinho tava
dançando, o afilhado não podia junto. Se um pai tava cantando, um filho não podia
ajudar, era assim. Então nós tocava com nossos tio, aqueles tio que eram bonzinho
pra nós, convidavam a gente pra tocar viola, a gente já sabia um pouquinho mas, não
podia. A gente não tinha ordem de cantar ali. Então nossos tio, aqueles tio que
gostavam bem da gente às vezes convidava, “vamos tocar uma viola nós dois”, aí
dizia, “ah, papai não deixa”, aí falava, “vamos, vamos”. Aí nós ia, nós já tocava bem
viola, cantava. (Arnaldo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu
Vivo do Fandango, Cananeia, 2005).

Compreendo que essas diferentes visões com relação ao afeto e ao respeito com os
pais, provavelmente, são perspectivas geracionais. Atualmente, como em muitos outros
contextos socais, a relação entre pais e filhos ganhou contornos bem mais flexíveis, embora
tenha também, em muitos casos, perdido bastante em convívio.

Era um tipo um respeito que tinha. Que a gente, como eu falei, às vezes tava três
quatro homem conversando, até mulher no meio, eles velho adulto. Deus o livre que
uma criança fosse ali, dizer: “papai não sei o que lá”. Não, não podia. Se não
apanhasse aquela hora, mas depois que saísse aquele povo dali, apanhava. “Pra que
você foi lá aquela hora?” Era umas cintada. Uma cinta, naquele tempo, era três dedo
de largo. Apanhava, apanhava sem erro. Era um tipo, uma coisa diferente de agora.
(José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, Cananeia, 2008).
82
 
 

Segundo José Pereira, casamentos entre primos, ou mesmo entre sobrinhos e tios eram
aceitos com relativa naturalidade há cerca de duas ou três décadas. Entre os Pereira, era algo
bastante comum na época em que moravam em Rio dos Patos. Leonildo Pereira confirma: “só
eu não casei com parente, o resto tudo da minha família casou com parente”. Atualmente,
contudo, o casamento entre parentes não é algo bem visto e, em geral, é associado à ruptura
precoce dos conjugues ou a problemas de degeneração física ou mental dos filhos.
Segundo me afirmaram as mulheres da família Camilo e também pelo que pude
perceber por minha convivência com os Pereira, irmãos e irmãs procuram alimentar vínculos
de afinidade muito estreitos. José Pereira, por exemplo, cuida de alguns de seus irmãos.
Arnaldo, que tem uma deficiência nos pés, chegou a morar em sua casa no Varadouro por
cerca de cinco anos. Nos últimos anos, José vinha amparando também um de seus irmãos
mais velhos, Randolfo Pereira. José o buscou em um sítio para que fosse morar próximo à sua
casa. Maria, esposa de José, também visita com frequência suas irmãs.
Já as relações entre cunhados e especialmente entre concunhados parecem ser bem
mais suscetíveis de conflitos e tensões. Rupturas familiares acontecem com frequência entre
homens ou entre mulheres ligadas por esse grau de parentesco indireto. Nesse caso, é comum
que deixem de frequentar as casas um do outro. Contudo, se o marido rompe com o cunhado
isso não impede que a mulher continue a visitar a casa da irmã.
A relação entre irmãs apareceu nos relatos das irmãs Camilo como o principal elo do
que se pode compreender como amizade entre as mulheres, especialmente após o casamento.
Segundo ela, depois do casamento, dentre a sua geração, a amizade com mulheres que não
pertencem ao seu círculo familiar raramente é cultivada, a não ser que as famílias mantenham
boas relações entre si. Após o casamento, a vida da mulher se volta para a casa, o marido e os
filhos.
Uma mulher, após se casar, raramente irá circular sozinha para além das casas de sua
própria família ou no ambiente religioso, quase sempre católico, que pode ser compreendido
como uma metáfora estendida da própria concepção da família. Diferentemente dos homens,
as mulheres só circulam para além da casa e da vizinhança familiar quando toda a família a
acompanha.
83
 
 
Economia e subsistência

Antigamente, serviço da gente era só do mato. Nosso serviço era fazer canoa, fazer
remo, vender; tirar palmito, vender; criar palmito, vender. O seu problema lá no
mato para sobreviver era isso. (Nilo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005).

Nos sítios por onde já passei, quando muito, há pequenas vendas com pouca oferta de
produtos. No Varadouro, devido à baixa populacional, hoje não há mais nenhuma. A compra
de alimentos complementares – sal, açúcar, óleo, macarrão enlatados, etc. – é normalmente
feita em áreas urbanas ou em pequenas embarcações que circulam vendendo alguns desses
produtos. Rosa e Quirino me falaram que havia no Ariri, há algumas décadas, uma grande
venda de “secos e molhados”. Muitos dos sitiantes da região trocavam o excedente agrícola
por crédito de mercadoria e o dono do estabelecimento era chamado de “patrão”. Ouvi de
Leonildo referências semelhantes sobre uma venda no centro de Guaraqueçaba, para onde sua
família se deslocava a partir de Rio dos Patos.
Os sitiantes também costumam praticar atividades de caça e extração de palmito na
mata, pesca em mar e rios de água doce ou salgada, e também cata de caranguejos e ostras.
Essas atividades, ainda muito comuns, podem ser para consumo próprio e para venda. Mesmo
com a repressão das guardas ambientais, as atividades de caça e coleta continuam sendo
realizadas de forma mais discreta, muitas vezes velada. Evita-se dizer aos visitantes que tipo
de carne defuma sobre a brasa.
Rosa e Quirino me disseram que, no Varadouro, não chegou a haver efetiva coibição
dos roçados. O que houve foram boatos de que as plantações seriam proibidas. Segundo me
relataram, naquela época, em meados da década de 1980, nenhuma autoridade esteve lá para
esclarecer os moradores quanto aos limites das áreas de preservação ambiental. Os moradores
começaram a ficar tensos com relatos que ouviam de pessoas de outras localidades e acharam
melhor esconder seus roçados em áreas de acesso mais difícil em meio à mata.
Já a pesca é controlada, com liberação sazonal de acordo com os ciclos de reprodução
de cada espécie. Contudo, muitos dos que hoje se dedicam à atividade pesqueira, inseriram-se
nesse ramo como alternativa de subsistência. Os Pereira, por exemplo, tanto quando moravam
em Araçaúba como em Rio dos Patos, não tinham nenhuma afinidade com a pesca em água
salgada, até mesmo por serem localidades interioranas, distantes em mais de duas horas dos
canais de maior circulação. Até hoje, os Pereira, de um modo geral, não têm o hábito de
frequentar praias. José e seus filhos confessam sentir medo do mar e, mesmo quando
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atravessam para a Ilha do Cardoso, que fica a 20 minutos de barco do Ariri, não têm o hábito
de entrar na água e nem mesmo de contemplar o mar.

Divisão do trabalho e gênero

Nos sítios, as atividades domésticas são quase sempre associadas à mulher. As


atividades de criação de animais, extração de palmito e roçado já são mais comumente
compartilhadas por homens e mulheres, acompanhados dos filhos. A cata de caranguejo e
ostra é tida como atividade familiar, também envolvendo homens e mulheres. Apenas a caça e
a pesca são identificadas como atribuição mais fortemente masculina. Contudo, em meus
percursos durante o trabalho de campo, perguntei a muitas mulheres se já caçaram ou
pescaram com seus pais e maridos e sempre encontrei respostas positivas. Dona Maria José
das Neves, criada na Praia da Lage, na Ilha do Cardoso, contou que era a preferida do pai.
Mesmo tendo quatro irmãos homens, sempre era ela que compartilhava com o pai os
trabalhos relacionados à pesca, como a colocação de rede e cerco, o que na maior parte das
vezes era feito de madrugada, obrigando-os a pernoitar na canoa. O pai a admirava por sua
capacidade de trabalho e prestatividade e ela me relatou com orgulho seus feitos.
As irmãs Maria, Rosa e Teresa Camilo também se orgulham ao contarem dos
trabalhos que desempenhavam na infância no Varadouro. Como eram cinco filhas mulheres
com apenas um irmão homem, Rosa me disse: “nós éramos todas homem e mulher”. Falando
da desenvoltura de sua mãe no desempenho de qualquer atividade, ela anda complementou:
“mamãe era igual homem, fazia de tudo para ajudar o pai”. Placidina também me relatou
histórias de mulheres do Varadouro que caçavam, inclusive, havia uma que fazia por gosto e
saía empunhando a espingarda. Embora a caça e a pesca sejam atividades associadas ao
homem, nenhuma mulher é vista como masculinizada por gostar de desempenhar qualquer
uma destas atividades. As mulheres, que por necessidade ou gosto se envolvem em funções
dessa natureza, são consideradas batalhadoras e corajosas.
85
 
 

2.2. Ariri: confluências entre a urbanidade e a vida nos sítios

Essa compra de palmito


Tá pior que um cativeiro
Quem tira não ganha nada
Quem compra ganha dinheiro
É melhor se acabar
Que o povo se desengana
Na lavoura vai cuidar

(Versos gravados por Arnaldo e José Pereira no CD Museu Vivo do Fandango, 2006)

A Vila do Ariri, um pequeno distrito de cerca de 500 habitantes, está localizada no


extremo litoral sul de São Paulo, no município de Cananeia, junto à divisa com o Paraná. A
via de acesso mais utilizada pelos moradores é a marítima/fluvial, cujo traslado é oferecido
aos nativos a custo baixo pela empresa de transporte público DERSA em uma barca de
grandes dimensões para o perfil de navegação da região. A travessia pode demorar de quatro a
cinco horas, tempo bastante superior ao empreendido por embarcações particulares, como
bateras e toctocs, que fazem o mesmo percurso em cerca de três horas, e lanchas rápidas, que
gastam no máximo uma hora.
O trajeto, com pausas em algumas vilas, passa pelo Mar de Cananeia, pela Baia de
Trapandé, percorre todo o canal que separa a Ilha do Cardoso das terras continentais, para
finalizar no canal do Ariri. Na paisagem da travessia, a superfície de água de cor escura é, a
todo o momento, rompida pela a subida de golfinhos, um dos grandes atrativos ecoturísticos
da região. Nas margens, vegetação de mangue, com árvores que deixam suas raízes aparentes
a depender da maré. Ao fundo, extensas áreas de morros cobertos por mata atlântica. Quase
não se vê casas, em geral escondidas pela vegetação.
Depois um trecho tão longo de áreas verdes, o Ariri se destaca na paisagem de
chegada. O que se avista são casas pintadas com cores vibrantes e coloridas. Algumas casas
de veraneio também chamam a atenção pelas propostas arquitetônicas mais arrojadas, em
geral com trapiches particulares e barcos possantes ancorados à margem.
86
 
 

Figura 17: Paisagem da travessia do centro de Figura 18: Paisagem da travessia do centro de
Cananeia ao Ariri. 2012. Foto: Joana Corrêa Cananeia ao Ariri, com guarás à beira do mangue.
2012. Foto: Joana Corrêa.
 

Figura 19: Ariri visto da balsa da DERSA. Cananeia, Figura 20: Casario colorido do Ariri à margem do
2012. Foto: Joana Corrêa canal. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa  

O Ariri fica em uma área onde os territórios de São Paulo e do Paraná se embaraçam.
Não se vê o mar aberto do canal que margeia a vila. A outra margem é de manguezais da Ilha
do Superagui, pertencente ao município de Guaraqueçaba, no Paraná. E entre a ponta da Ilha
do Superagui e o mar, há ainda a ponta de outra ilha, a do Cardoso, que pertence ao município
de Cananeia.
Pode-se também chegar ao Ariri por via terrestre, por uma estrada de terra mal
conservada que parte do Centro de Cananeia, com cerca de 70 km de extensão, conhecida
como Estrada do Ariri. Ao longo do percurso, estão alguns bairros rurais do município, como
Taquari, Itapitangui, Rio Vermelho, comunidade quilombola do Mandira e também Araçaúba,
sítio de onde partiram os Pereira, distante 12 km do Ariri.
A área central do Ariri é ocupada por duas ruas principais, uma que margeia o canal e
outra perpendicular, que se liga à estrada do Ariri. No pequeno aglomerado onde as duas ruas
87
 
 
principais se encontram, há um restaurante, dois bares, três vendas, um mercado e uma
padaria. Uma atividade comercial em princípio surpreendente para o porte do bairro, mas que
se justifica pelo fato de servir também algumas vilas e sítios do entorno, da Ilha do Cardoso e
das áreas continentais de São Paulo e do Paraná.
A população do Ariri é formada por indivíduos com trajetórias diversificadas, mas que
podemos agrupar em ao menos três perfis predominantes. O primeiro é constituído por uma
camada de baixa renda, integrado por pessoas que nasceram e moraram grande parte de suas
vidas nos sítios do entorno e cuja mudança para o Ariri representa a proximidade de uma
experiência urbana, com ofertas de emprego remunerado, acesso facilitado às opções de
comércio e a serviços de educação e saúde. José Pereira e sua família, Randolfo e Arnaldo
fazem parte desse grupo, assim como o casal Rosa Camilo e Quirino Coelho, João Alves e
muitos outros ex-moradores de sítios.
O segundo perfil pode ser pensando a partir dos comerciantes – donos de vendas,
mercados, restaurantes e pousadas – e de funcionários com formação técnica ou superior dos
serviços públicos, como professores e enfermeiros. Em geral, vêm de famílias de classe média
baixa, alguns nascidos no Ariri que passaram anos morando em outras cidades e retornaram
para uma experiência de vida mais tranqüila, ou ainda aqueles que deixaram centros urbanos
em busca do convívio com a natureza.
Há ainda um terceiro grupo que se caracteriza por uma população sazonal. São turistas
e veranistas que frequentam a região em pousadas, casas próprias ou alugadas. Normalmente,
são famílias e amigos de classes médias urbanas de municípios do interior paulistano, que têm
a prática pesqueira como atividade de lazer. Muitos chegam em carros próprios, trazendo para
a paisagem do Ariri automóveis de grandes proporções.
O município de Cananeia como um todo é bastante movimentado pela atividade
turística, oferecendo opções diversificadas com ênfase no patrimônio histórico e natural39.
Aqueles preferem usufruir regularmente de praias não costumam escolher o Ariri como local
de pouso, já que de lá é necessário atravessar o canal para chegar à Ilha do Cardoso, onde se
tem acesso ao mar aberto. Para os visitantes mais acostumados à vida urbana, a principal
vantagem que o Ariri oferece em relação às vilas da Ilha do Cardoso é a luz elétrica, o que
proporciona noites mais frescas em quartos com ventiladores ou ar condicionado. No Cardoso,

                                                                                                               
39
Cananeia é dos municípios mais antigos do Brasil. Sua data oficial de fundação é 1532, contudo há referencias
à chegada de expedições desde 1502 (Bueno, 1998). O centro histórico abriga muitos casarios do período
colonial tombados pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico
e Turístico, órgão estadual de proteção do patrimônio vinculado à Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.
O turismo é uma das principais atividades econômicas do município.
88
 
 
a iluminação por placas de captação de energia solar ou geradores não suporta muitas funções
e, em geral, é disponibilizada apenas nas primeiras horas da noite. Ou seja, parece que aqueles
que procuram o Ariri querem uma experiência de natureza sem a perda de alguns dos
confortos da vida moderna.
Os comerciantes ocupam especialmente a área de maior circulação do Ariri, à margem
do canal. Seus estabelecimentos formam o conjunto colorido que avistamos na chegada. Já as
casas de veranistas se concentram principalmente em um condomínio de circulação restrita em
área mais espaçada também à beira d’água. As casas de sitiantes se espalham em áreas
interioranas, sendo que parte delas conserva uma pequena área de terreno e casas com técnicas
de construção semelhantes a dos sítios. Tanto pelas falas quanto pelo modo como conduzem
seus cotidianos, percebemos que não há entre eles um desejo de ruptura, mas uma tentativa de
reelaboração da vida nos sítios.
Martins (2006) em seu estudo sobre o fandango em Paranaguá, na Ilha dos Valadares,
onde residem muitos ex-sitiantes, identifica uma tendência similar entre esses moradores, que
acaba por configurar a ilha como um espaço de continuidade do sítio na cidade. Muitos dos
integrantes da família Pereira que lá residem conservam a dinâmica de encontro familiar nas
horas vagas.
No bairro Canarinho, local onde mora a maioria dos componentes da família Pereira
que estão em Valadares, acontecem todo domingo partidas de futebol envolvendo o
time dos Pereiras, conhecido pelo sugestivo nome de “Os Parentes”. É no campo
que fica no meio do bairro que “Os Parentes” recebem os times convidados,
demarcando, com isso, seus laços de parentesco. (…) Parentesco generalizado, que
envolve consangüinidade e afinidade; na ilha dos Valadares, assim como nos sítios,
a linguagem do parentesco está em todo o lugar: nos campos de futebol, no culto da
igreja, nas redes de vizinhança e nos fandangos. (Martins, 2006, p.63).

Quando passei uma tarde no entorno do fogo de chão da casa de Placidina, no


Varadouro, ouvi um pouco sobre as diferentes visões geracionais da família Camilo quanto a
morar no Varadouro e no Ariri. Para Placidina, que nasceu e residiu por toda sua vida no sítio,
morar no Ariri representaria uma mudança radical em seu modo de vida. Mesmo com as
limitações da idade e o acesso difícil à assistência médica, ela não manifestava nenhum desejo
em sair do Varadouro. Rosa, filha de Placidina, que logo após o casamento com Quirino foi
residir no Ariri, tinha notoriamente uma perspectiva de mundo diferente da de suas irmãs,
Maria e Teresa, que passaram grande parte da vida adulta no Varadouro. Enquanto suas irmãs
são donas de casa, ela é também auxiliar de enfermagem no posto de saúde do Ariri. Todos os
seus filhos completaram o ensino médio e ingressaram, por meio de programas de acesso
gratuito a populações de baixa renda, em universidades particulares do Vale do Ribeira,
89
 
 
mudando-se para cidades de médio porte. Carla, uma de suas filhas que estava conosco nessa
tarde, relatou algumas de suas experiências na universidade, como a estima que guarda por seu
modo próprio de falar e os caminhos que encontrou para se posicionar positivamente em um
ambiente de ensino por vezes não muito receptivo à diferença. Contudo, ainda que
demonstrasse orgulho de suas origens familiares, a certa altura me disse algo que ouvi muitas
outras vezes de jovens que residem no Ariri: que lá não pretende morar, pois não oferece
futuro.
Dentre as quatro filhas de José Pereira, duas também demonstram uma percepção
semelhante em relação ao Ariri. Terminaram o ensino médio e partiram em busca de melhores
oportunidades de emprego em Cananeia. Já as outras duas apenas completaram o básico e
preferem permanecer junto a seus pais até que venham formar seu próprio núcleo familiar.
O que seria esse futuro almejado por parte jovens da localidade, quando tantas pessoas
saem de grandes centros urbanos procuram o Ariri, ou outras vilas de Cananeia, para residirem
em busca do que chamam de qualidade de vida? As duas noções, frutos de construções da
sociedade moderna e recorrentemente presentes no discurso midiático, certamente contribuem
com esse aspecto ambíguo do Ariri. Falta de perspectiva de futuro e busca de qualidade de
vida em certa medida se aproximam, mas simultaneamente se opõem. Aproximam-se por
distinguirem o Ariri daquilo que se compreende como projeto de vida urbano, mas se
confrontam nas expectativas sobre construções de modos de vida e pertencimento social. Essa
dualidade pode ser pensada a partir da noção de campo de possibilidades (VELHO, 2010). Os
jovens de classe media baixa que nascem ali, ao planejarem construir suas vidas para além de
seu território de origem, esperam uma maior oferta de possibilidades do que lá permanecendo.
Vislumbram que ali estarão restritos a empregos em atividades como as de seus pais, mal
remuneradas e pouco valorizadas, seja como caseiros, serventes ou prestadores de serviços
básicos de atendimento ao turismo. E projetam que, ao saírem de seu local de origem,
ampliarão suas capacidades de transitar por mundos diversos. De certa forma, o desejo por um
maior leque de escolhas de vida os aproxima daqueles que optaram por residir no Ariri como
projeto de uma nova vida e que o fizeram porque tiveram meios para fazer tal escolha, pois
seus campos de possibilidades eram mais abrangentes.
É relevante destacar que a presença dessas pessoas que fizeram o caminho inverso de
opção pelo Ariri acaba também por construir novas redes de interação. A circulação de pessoas
no Ariri pode ser considerada bastante intensa para as dimensões da vila, em especial nos
feriados e na alta temporada. Esse trânsito cria um ambiente de mediações que modificam e
amplificam várias esferas da vida social. Muitos daqueles que vêm de fora estão em busca de
90
 
 
uma experiência peculiar que contraste com ambiente urbano do qual querem se distanciar.
Nesse sentido, além do contato com a natureza ser valorizado como aspecto de atratividade,
em um segundo plano, a cultura local também aparece timidamente como fator de interesse. O
modo de vida do caiçara é projetado como símbolo de uma experiência original na construção
do lugar. Aqueles que se reconhecem como parte desse sistema de pertencimento acionado
pela categoria caiçara produzem, por exemplo, objetos para venda que estão presentes em
alguns estabelecimentos comerciais do Ariri, como forma alternativa de complementação de
renda. Esses objetos, dentre os quais se destacam as cestarias, as pequenas esculturas em
madeira e os instrumentos artesanais relacionados ao fandango, são como pequenos emblemas
da tradição caiçara. Como um dos personagens do fandango na região, José Pereira é
constantemente procurado por pessoas interessadas em saber sobre o modo de vida caiçara ou
suas práticas culturais, para o que já tem um roteiro mental de respostas estruturado.
O Ariri pode, portanto, ser pensado como um local de confluências, contrastes e
continuidades justamente porque os diferentes grupos sociais que ali transitam o experimentam
de formas distintas. A tensão rural/urbano é moldada a partir de um sistema de relações entre
grupos sociais com perspectivas que, embora possam parecer divergentes, estão entrelaçadas
em uma nova trama de produção de significados e sociabilidades. A urbanidade e alguns dos
aspectos da complexidade social podem ser vivenciados e percebidos nessa pequena localidade
onde a construção de projetos individuais convive com valores familiares tradicionais.
Tal percepção pode ser ainda acentuada e desmembrada mesmo quando nos detemos
sobre um único grupo, por exemplo, que descendem de famílias dos sítios, pois a noção de
descontinuidade geracional (VELHO, 2010) é também fator relevante dessa tensão. As novas
gerações formadas num contato intenso com valores sociais modernos se vêm diante da
possibilidade de trilhar um caminho autônomo e diferenciado frente às experiências de vida
seus pais. São escolhas permeadas por conflitos pessoais, já que quase sempre envolvem a
privação do convívio familiar e receios diante de um futuro não tão claramente vislumbrado.
91
 
 
2.3. O Fandango no Ariri

O fandango Deus deixou


Pro regalo da pobreza
Quem se mete no fandango
Não se lembra da riqueza
(Versos gravados pela Família Pereira no CD Viola Fandangueira, 2002)

Nas primeiras vezes que estive no Ariri, entre 2005 e 2006, o único Pereira que lá
residia era Arnaldo, irmão de José. José, contudo, assim como os demais moradores do
Varadouro, frequentava assiduamente o Ariri. Na época, Arnaldo e José nos apresentaram a
seus primos Alves: Henrique, João, Atanus Anacleto e Dilermano Theodorico, netos de
Franklin Pereira por parte de mãe. Todos haviam nascido e crescido em Araçaúba. Com os
Alves, os Pereira costumavam se reunir informalmente no Ariri em dias livres para tocar
fandango.
José Pereira se apresentou com os primos Alves no I Encontro de Fandango e Cultura
Caiçara em Guaraqueçaba, em 2006. Diante de tantos grupos que incorporavam a dança em
suas apresentações, voltaram animados com a perspectiva de formarem no Ariri um grupo com
dançadores para ensaiarem as modas batidas, que há muito não se dançava por lá. Na época do
II Encontro, em 2008, José Pereira e seu primo João Alves já dividiam a liderança de um
grupo que contava com a participação de seus irmãos, cunhadas, filhos, filhas, sobrinhos e
sobrinhas. Rosa e Carla, que participaram dessa primeira formação, contaram que foi com
Placidina, no Varadouro, que aprenderam e ensaiaram alguns dos primeiros passos dos
volteios femininos, usando tocos de madeira no lugar do posicionamento dos homens.
No período entre os dois Encontros de Fandango (2006 e 2008), havia chegado ao Ariri
uma nova moradora, Lucia Domingos, enfermeira do posto de saúde. Desde então, ela passou
a se dedicar também ao apoio das iniciativas relacionadas ao fandango local e acompanhou o
grupo de José Pereira e João Alves na viagem ao II Encontro. Ao lado de José e João, Lucia se
tornou uma das principais articuladoras de fandango no Ariri. Ela organiza pequenos eventos
culturais e os auxilia na elaboração de projetos para editais de fomento. Com os recursos
obtidos em um edital, conseguiram comprar um pequeno terreno na Estrada do Ariri com uma
casa de dois cômodos, batizada da Casa de Cultura e do Fandango Caiçara. Também lançaram,
em 2010, um CD que celebra as origens dos Pereira e dos Alves, intitulado Fandangueiros do
Araçaúba, do qual participaram os Alves e os Pereira residentes no Ariri, além de Leonildo
Pereira, do Paraná, e da Família Neves, da Ilha do Cardoso.
92
 
 

Figura 22: João Alves e Lucia Domingues na Casa


Figura 21: Casa da Cultura e do Fandango Caiçara. Ariri,
da Cultura e do Fandango Caiçara. Ao fundo,
Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Arnaldo, José e Larte Pereira em gravação para um
projeto do Ponto de Cultura Caiçaras. Ariri,
Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.  

Pouco tempo depois do II Encontro, as relações entre os primos José Pereira e João
Alves se estremeceram em virtude de divergências e disputas na chefia do grupo. O grupo se
partiu e os integrantes se rearranjaram conforme o parentesco. O novo grupo de José, com
parentes das famílias Pereira, Camilo e Coelho, durou mais um ou dois anos e se desmanchou.
Atualmente, além de se apresentar como rabequeiro do grupo Família Neves – pelo que
sempre exige um auxílio financeiro já prefixado, mesmo quando não há pagamento previsto
para o grupo –, José se junta com seus irmãos Arnaldo e Leonildo e com seu filho Laerte,
quando é convidado por algum projeto a apresentar o fandango dos Pereira. Para que Leonildo
esteja presente é, entretanto, necessário que o demandante viabilize os custos para buscar o
irmão na localidade do Abacateiro, em Guaraqueçaba, no Paraná.
João Alves mantém o grupo formado por parentes seus de idades variadas, que segue
com o nome Fandangueiros no Ariri, o mesmo título usado no livro Museu Vivo do
Fandango (CORRÊA, PIMENTEL e GRAMANI, 2006, p.135). Trata-se de um grupo que
conserva certa informalidade em termos de organização e performance, o que ficou
especialmente visível em contraste com grupos paranaguaras que participaram do encontro de
lançamento, em Paranaguá, do CD Fandangueiros de Araçaúba.
Presenciei uma reunião preparatória à viagem de lançamento do disco e havia, na
ocasião, um clima de tenso entre os integrantes do grupo. Espalhados em círculo na área
externa da casa de fandango, todos mal se olhavam e as falas eram duras, confrontando-se em
93
 
 
muitas divergências sobre quais seriam as prioridades naquele momento. Havia, contudo, um
contraste entre a indisponibilidade em colaborar com as tantas demandas e o desejo de que em
pouco tempo pudessem receber algum retorno financeiro com as apresentações do grupo.
João Alves e Lucia, encarados como lideranças, eram os alvos das cobranças.
A rivalidade entre José Pereira e João Alves demarca uma polaridade na organização
do fandango no Ariri. O curioso é que ambos desempenham também funções equivalentes
como funcionários da prefeitura de Cananeia, na qualidade de auxiliares de serviços gerais do
Ariri. Essa condição de similaridade no trabalho e, principalmente, no fandango os coloca em
uma constante relação de tensão.
Quando cheguei ao Ariri para dar início à pesquisa de mestrado, em 30 de dezembro
de 2011, fui recebida com um fandango mobilizado por Lucia40. Eu já havia me comunicado
previamente com ela, informando sobre minha chegada e sobre os motivos da estada do Ariri.
Era véspera de ano novo. O Ariri estava repleto de veranistas e pessoas que vinham visitar
seus parentes. Lucia havia feito a sugestão do fandango a vários fandangueiros e
especialmente a José Pereira e João Alves. Contudo, foi José que se adiantou e procurou
Juarez, dono de um dos bares à margem do canal, para acordar os detalhes da noite. A notícia
se espalhou no boca a boca, permeada por incertezas: “parece que vão fazer um fandango em
virtude da chegada de uma tal moça do fandango”.
Receber o distintivo de “moça do fandango” não foi uma particularidade minha.
Muitas vezes ouvi fandangueiros e moradores do Ariri se referirem do mesmo modo à Lucia.
Daniella Gramani, parceira no trabalho do Museu Vivo do Fandango, também foi tratada
assim, quando desenvolveu sua pesquisa de campo no Ariri. Essa denominação oferece, em
uma via, um reconhecimento de pessoas que tem certo grau de envolvimento com o fandango,
mas por outro, representa também uma expectativa de comprometimento e retorno frente às
expectativas de novos trânsitos.
O fandango foi marcado para a noite do dia de minha chegada ao Ariri. Em virtude do
cansaço da viagem, só consegui chegar ao bar do Juarez por volta das dez horas da noite. O
fandango já havia começado. O local, bastante amplo e com algumas mesas e cadeiras de
plástico, estava esvaziado. Os músicos haviam escolhido uma mesa escondida em um recuo
do balcão, único ponto do bar que não se avistava da porta de entrada. Na outra extremidade,
havia alguns poucos parentes de José sentados em cadeiras dispostas lado a lado, coladas à

                                                                                                               
40  Lucia foi uma grande parceira e interlocutora no processo de pesquisa.  
94
 
 
parede. Cumprimentei todos e me instalei em uma cadeira bem próxima à mesa dos músicos,
onde eu poderia acompanhar de perto o fandango.
João Alves ainda não havia chegado e José liderava o grupo de cerca de cinco ou seis
tocadores, nem todos familiares a mim. José fazia par com seu sobrinho Maurício nas violas e
nas vozes. Arnaldo Pereira tocava rabeca e os demais tocadores, instrumentos percussivos.
Essa configuração foi, contudo, momentânea. Eles trocaram diversas vezes de instrumentos,
mas José manteve-se, a maior parte tempo, na primeira voz. Eventualmente migrava para a
rabeca, instrumento em que se destaca com virtuosismo41. Ele me disse algumas vezes que
nasceu “com esperteza e curiosidade para o fandango”, gabando-se de suas capacidades de
tocar diferentes instrumentos e também de confeccioná-los.
Um pouco mais tarde, João Alves chegou e logo se juntou aos músicos. José e João
formaram então a dupla principal, cantando juntos alguns fandangos. Apesar da relação tensa
e conflituosa, vê-los tocando juntos transmitia uma surpreendente harmonia. Só mais tarde
compreendi o quão emblemático era o fato de José e João se mobilizarem e tocarem juntos
naquela noite. Percebi que estava em meio a uma disputa de prestígio e aliança, já que minha
presença no Ariri poderia representar algum tipo de articulação relacionada ao fandango que
os contemplasse, como em outras passagens feitas por pessoas que desempenham papéis
semelhantes ao meu no mundo do fandango.
Presenciei uma situação semelhante quando uma equipe do Ponto de Cultura
Caiçaras42 montou um estúdio na Casa da Cultura e do Fandango Caiçara para fazer registros
musicais dos grupos e fandangueiros do Ariri. Respondendo a um estímulo dos organizadores,
mais uma vez, José e João tocaram juntos, causando surpresa para alguns. Compreendo,
portanto, que para além de serem primos e parceiros de fandango de longa data, ao tocarem
juntos eles confirmam sua condição de igualdade na liderança do fandango. Afinal, a negativa

                                                                                                               
41
Por ter aprendido muito cedo a tocar, José não apóia o instrumento sobre peito como a maior parte dos
tocadores, mas sobre as coxas, em posição invertida, como se empunha, por exemplo, uma viola da gamba. Na
pesquisa de Gramani (2009), sobre o processo de ensino-aprendizagem da rabeca entre os Pereira do Ariri, José
afirmou que seu investimento maior na rabeca se deu apos a gravação do CD Viola Fandangueira (2002). Até
então ele tocava um pouco de cada instrumento, mas a partir do disco resolveu se diferenciar, dedicando mais
tempo à rabeca. Hoje ele é capaz de tocar e cantar simultaneamente, o que até a gravação do disco ainda tinha
bastante dificuldade em fazer. E também faz fraseados mais complexos que grande parte dos rabequeiros da
região.
42
Em Cananeia, há algumas organizações sociais que se dedicam a projetos de desenvolvimento comunitário
nas áreas de saúde, educação, meio ambiente e cultura. O Ponto de Cultura Caiçaras é um dos coletivos mais
atuantes no segmento cultural no município. Gerido por biólogos paulistanos que migraram para a área cultural,
nasceu como um projeto financiado pelo Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, e gerido pelo
Instituto de Pesquisas Cananeia, organismo que atua prioritariamente na área ambiental. Atualmente tem uma
atuação independente. Seus projetos aliam o uso de novas tecnologias, softwares livres e formação de jovens
para o desenvolvimento de ações voltadas ao registro e ao fomento da cultura caiçara.
95
 
 
da proposta por parte de qualquer um dos dois poderia sugerir uma condição inferior de
talento e prestígio.

Figura 23: João Alves e José Pereira em fandango no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011. Foto: Joana Corrêa.

Voltando ao bar do Juarez, apesar do fandango reunir alguns dos principais músicos
do Ariri, no salão havia apenas dois ou três casais dançando, cujos integrantes se revezavam e
se misturavam. O baile não avançou muito sobre a madrugada. Por volta de 1:30h os músicos
pararam de tocar e guardaram seus instrumentos. José estava chateado por haver poucos
presentes no local, ao passo que o entorno estava movimentado, com gente circulando pelos
demais bares. Ele enfatizou que sempre colaborava com os bailes do Ariri, em especial seu
filho Wilson que gosta de tocar outros gêneros musicais em seu teclado. O que ele esperava
em retribuição seria a adesão dos moradores ao fandango, mas, segundo José, “o povo do
Ariri não valoriza o fandango”, pois gostam mesmo é de ouvir o forró que toca na mídia.
Arnaldo, na época em que fizemos as gravações do Museu Vivo do Fandango,
demonstrou a mesma percepção sobre o Ariri.

Um bom fandango: se fossem umas pessoas bem reunidas, pessoas calmas, de


acordo, gostasse bem de fandango, aí se reunia e fazia um bom fandango. Mas é que
lugar igual Ariri não dá bom fandango. Porque ali já fizeram um mutirão que fui,
nós toquemos umas cinco música, não gostaram, já puseram o som pra tocar. Fui
outra vez num mutirão ali, quando foi 11 horas saiu uma briga, acabou lá com tudo.
Não dá. O povo não é unido ali, não tem acordo, no Ariri não gostam de fandango.
Já tenho falado pra muita gente e falo pra vocês, que o Ariri não gosta de fandango.
(Arnaldo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango,
Cananeia, 2005)
96
 
 

Figura 24: Músicos no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011. Figura 25: Casais dançando no bar do Juarez.
Foto: Joana Corrêa. Ariri, Cananeia, 2011. Foto: Joana Corrêa.

De fato, músicas de sucesso nacional ecoam dia e noite pelas ruas do Ariri, mas para
ouvir fandango, embora muitos moradores tenham alguns dos CDs já lançados, é preciso
“buscá-lo”. Lucia e, também Quirino, marido de Rosa, esclareceram que a adesão da
comunidade local aos fandangos realizados no Ariri depende muito do contexto de
organização. Segundo eles, é nas festas comunitárias – tanto as de cunho religioso43 como as
que celebram a identidade caiçara – que se percebe maior mobilização e interesse, já que o
envolvimento começa desde os preparativos.

2.4. Fandangos em contextos turísticos e comunitários na Ilha do Cardoso

Em janeiro de 2012, logo após a passagem do ano, Lucia me convidou para ficar
alguns dias na Vila do Marujá, pois José Pereira participaria de dois fandangos organizados
pela Família Neves. Em verdade, José não deu prévia certeza de sua presença. Estava à espera
da confirmação da ajuda de custo que solicita para se apresentar com o grupo dos Neves.
Segundo Isidoro, integrante da Família Neves, o grupo se reuniu por influência da
fama dos Pereira na região após o lançamento do CD Viola Fandangueira (2002) e ficaram
ainda mais incentivados durante as gravações do Museu Vivo do Fandango. Antonio Neves,

                                                                                                               
43
Embora não siga um ciclo festivo determinado, o fandango está associado ao calendário do catolicismo, já que
as famílias fandangueiras são predominantemente católicas, respeitando, por exemplo, o resguardo exigido
durante a quaresma. Muitos fandangueiros participam também de outras festividades relacionadas ao catolicismo
popular, como as bandeiras do Divino Espírito Santos e as festas de Reis, ou reiadas.
 
97
 
 
pai de Isidoro e tio de Salvador (Baduca), era na época a figura emblemática do grupo. Após
seu falecimento, o filho e o sobrinho assumiram a liderança. No período em campo, o grupo
estava com a seguinte formação: Baduca na viola, Isidoro na caixa, um jovem da família que
não me recordo nome e grau de parentesco no pandeiro, Vlad (que não é da família) no
cavaquinho, além de José Pereira na rabeca. Durante alguns anos, Laurinei, jovem também da
família Neves, tocou com o grupo, porém, segundo Isidoro, ele havia virado crente e não
podia mais tocar fandango. Assim, os Neves estreitaram a relação com José para garantir a
rabeca em suas apresentações.
Eu já havia passado muitas temporadas no Marujá, inclusive por ocasião de férias. A
vila é o mais adensado núcleo residencial e principal pólo turístico do Parque Estadual da Ilha
do Cardoso. Como as demais vilas do parque, é habitada principalmente por moradores
tradicionais, muitos dos quais vivem de atividades de turismo comunitário, reguladas pela
gestão estadual. De um modo geral, têm bastante orgulho de seu novo modo de ser caiçara
adaptado a uma realidade de vida que, ao menos para boa parte dos moradores, é mais
confortável do que o tempo dos sítios.

Agora todo mundo tem seu dinheirinho, trabalha com turismo. Turismo é uma coisa
que traz dinheiro pro lugar. Foi bem melhor. Antigamente, era um sacrifício viver
aqui. Vivia só de peixe, plantava roça, plantava a rama pra fazer farinha, plantava
feijão, plantava arroz, plantava milho, banana, cana. Tudo isso aí a gente plantava.
(José Roberto Rodrigues, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, Cananeia, 2005).

Com extensas praias e uma vegetação variada e exuberante, a Ilha recebe o turismo
por meio de um fluxo regulado, com grande variação sazonal. O controle do Parque garante
tranqüilidade às vilas e acompanha os princípios de preservação ambiental necessários.
Contudo, muitos moradores tradicionais reclamam por não conseguirem se manter com os
recursos oriundos das atividades de turismo. O posicionamento dos moradores na Ilha e os
fluxos de interesse do turismo geraram diferenças de padrão de renda. Em geral os moradores
do Marujá são os que conseguem um bom retorno econômico com a atividade turística, já que
estão no local mais procurado pelos visitantes em busca de descanso e lazer. Além disso, os
moradores não são proprietários das áreas onde estão erguidas suas casa, o que os coloca em
situação vulnerável frente a possíveis mudanças de gestão do Parque. Qualquer reforma em
edificação residencial ou comercial tem que ser previamente autorizada.
98
 
 

Figura 26: Vista de área central do Marujá, onde Figura 27: Praia do Marujá. Ilha do Cardoso,
turistas se reúnem nos fins de tarde de verão. Ilha do Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.

O primeiro fandango realizado pelos Neves, no dia 5 de janeiro, foi em um pequeno


restaurante de propriedade de integrantes da família, localizado há cerca de três quilômetros
da área mais movimentada da Vila do Marujá. Eu estava em Guaraqueçaba, no Paraná,
quando Lucia me comunicou que haveria um fandango naquela noite. A lancha que me
levaria de volta tivera um problema no motor e acabei que embarcando em uma batera com
motor toctoc. Demoramos cerca de cinco horas para fazer o percurso que na ida fora realizado
em uma hora. Quando cheguei ao Ariri, já passava das vinte e duas horas, mas Lucia e João
Alves gentilmente me aguardavam para a travessia de mais vinte minutos até a Ilha do
Cardoso. João não tocaria naquela noite, mas mesmo assim resolveu nos acompanhar. A
chegada à ilha foi marcada pelo som do fandango que já de longe podíamos ouvir.
No fandango, encontrei Fernando Oliveira, coordenador do Ponto de Cultura Caiçaras,
que passava uns dias na ilha. Ele ajudava os músicos nos ajustes e manuseio da aparelhagem
de som. Os presentes se misturavam entre poucos moradores e alguns turistas em férias na
ilha, em sua maioria, jovens que haviam se deslocado até o restaurante curiosos para saberem
de que se tratava o fandango. Os pares jovens dançavam mais livremente, por vezes com
passos semelhantes aos volteios e requebros do forró universitário.
Em um dado momento, Isidoro pediu aos músicos uma pausa e proferiu algumas
palavras explicativas sobre fandango. Em seguida reverenciou minha presença e falou um
pouco sobre a importância do Museu Vivo do Fandango. A iniciativa de Isidoro me causou
um misto de surpresa, orgulho e constrangimento, já que estavam também presentes Lucia e
Fernando que ocupam lugares similares ao meu no fomento do fandango. Quando o fandango
recomeçou, dois jovens presentes se aproximaram de mim e pediram algumas breves
informações, mas logo voltaram a dançar.
99
 
 

Figura 28: Família Neves e José Pereira em fandango Figura 29: Jovens dançando em fandango no Marujá.
no Maruja. Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Joana Corrêa.

Como eu estava com minha filha Clara e Lucia com seu filho Luan, precisamos nos
ausentar por alguns momentos para colocar as crianças para dormir em um quarto próximo.
Qual não foi nosso espanto ao voltarmos e encontrarmos o salão já esvaziado. No caminho,
havíamos cruzado com vários jovens que reconhecemos do fandango, cantando alegremente e
se dirigindo à área central do Marujá, rumo a um bar que oferece forró para diversão dos
turistas nas noites de verão. Os músicos já haviam se retirado e nós ficamos desoladas com a
curta duração do fandango naquela noite.
O segundo fandango aconteceu três dias depois, em um sábado, no mesmo bar popular
que promove forró ao vivo. Nessa noite, José Pereira atravessou para o Marujá acompanhado
de seu sobrinho Maurício Pereira e de uma de suas filhas. Contudo, eles quase não dançaram;
tímidos, diante do amplo salão vazio que contrastava com as mesas do entorno, lotadas de
visitantes de idades variadas. O fandango durou pouco mais de uma hora. Diante da baixa
adesão, o dono do estabelecimento pediu que a Família Neves parasse de tocar antes do tempo
previsto, para dar lugar às demais atrações da noite. Logo os presentes preencheram o salão.
Dessa vez, conversei longamente com José Pereira e Baduca. Eles se mostravam
indignados com a situação. Na opinião deles, o fandango deveria ser prioridade na região.
Baduca ressaltou que na Festa da Tainha, realizada anualmente no inverno, bem como em
outras festas com caráter comunitário, o fandango era mais bem recebido. Segundo ele, os
moradores da ilha, nas temporadas de turismo intenso, estariam atarefados. Ademais, o
interesse dos moradores precisava ser incentivado, pois em sua maioria não frequentavam os
100
 
 
mesmos eventos destinados ao público turístico. De alguma forma, sua percepção se mostrou
semelhante à de Lucia e Quirino quanto ao envolvimento dos moradores do Ariri com o
fandango.
De fato, nas duas ocasiões havia entre os presentes não mais do que uma breve
curiosidade sobre o fandango. Pareceu-me que dentre os turistas da alta temporada, que
procuram o Marujá para desfrutar do ambiente natural, o interesse pelo fandango tem um viés
meramente paisagístico. Algo contemplativo e fugaz que figura como uma breve experiência
de exotismo colecionada entre relatos de viagem.
As análises de Lucia, Quirino e Baduca sobre o processo de envolvimento dos
moradores locais com o fandango me deixaram ansiosa pelo acontecimento de uma festa
comunitária na região. Poucos dias depois, soube por Fernando, do Ponto de Cultura, que
aconteceria, no fim de semana de 20 a 22 de janeiro, a Festa de São Sebastião, padroeiro da
Enseada da Baleia, vila vizinha ao Marujá, na Ilha do Cardoso.
A Enseada da Baleia tem proporções significativamente menores que o Marujá. Suas
poucas residências são ocupadas por filhos, netos e bisnetos de Antonio Cardoso, conhecido
por Malaquias, que faleceu em 2010. A vila enfrenta há alguns anos um drástico processo de
redução de seu território, devido à erosão do solo às margens do canal do Ararapira.
Quando eu estive na Enseada alguns anos antes, havia conhecido Jorge e Terezinha
Cardoso, casal que vinha tomando à frente das atividades locais. Ambos eram bem articulados
e me disseram com orgulho que eram festeiros, o que, segundo eles, significava participar da
organização das festas religiosas da própria comunidade e de outras de sua paróquia. Segundo
relatos de Rosa Camilo, o calendário de festas de padroeiro das vilas e sítios da região do
Ariri e da Ilha do Cardoso fora organizado por um padre que exerceu forte liderança
comunitária por volta da década de 1960. Ele teria escolhido padroeiros para localidades que
ainda não os tinham definidos e incentivado um intercâmbio dos moradores da região por
meio das celebrações. Ainda segundo ela, somente há pouco menos de dez anos, o fandango
havia se tornado atração comum nessas festividades.
Tatiana, de aproximadamente 30 anos, filha de Jorge e Terezinha, havia assumido a
liderança da organização da festa da Enseada da Baleia naquele ano. Ela havia estabelecido
contatos com a equipe do Ponto de Cultura Caiçaras que se prontificara em dar apoio para a
organização das atrações musicais (ajuda de custo aos grupos e sonorização), documentação,
divulgação e organização de uma escuna para transporte de pessoas interessadas de Cananeia
à Enseada da Baleia. Segundo Tatiana e Fernando, a programação tem que ser diversificada,
101
 
 
para conciliar celebrações litúrgicas, atividades relacionadas à cultura caiçara e atrações
chamativas para os perfis de participantes da festa.

Figura 30: Cartaz da festa de São Sebastião, na


Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso, Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa.

Na ocasião, o público era formado por dois perfis facilmente distinguíveis: moradores
das vilas da região, muitos reunidos com suas famílias, e jovens adultos paulistanos que
migraram para Cananeia em busca de qualidade de vida, alguns dos quais ligados a iniciativas
como a do Ponto de Cultura Caiçaras. Estes haviam também convidado parentes e amigos que
compuseram o grupo participante da travessia de escuna no sábado de manhã, com retorno
previsto para domingo. Para este grupo, ao qual me agreguei, foram vendidos pacotes de
hospedagem e alimentação. Por vezes, havia algum desconforto nos horários das refeições, já
que o outro perfil de pessoas presentes na festa não tinha acesso àquela alimentação.
As duas atividades que contemplavam o viés caiçara da festa foram uma animada
corrida de canoas em um percurso entre as margens do Canal do Ararapira e o fandango com
a Família Neves. O fandango abriu o momento dançante na noite de sábado, quando o salão
foi tomado por pares de todas as idades e perfis que se esbarravam nos valsados.
Em seguida, foi convidado o grupo de forró de rabeca Pé de Mulambo, liderado por
Filpo Ribeiro, paulista criado em Cananeia que aprendeu a tocar rabeca no fandango. Ele
integra também o grupo Jovens Fandangueiros de Itacuruçá, de Cananeia. Assim que
começaram a tocar foram cercados por homens de Pontal do Leste, comunidade no extremo
sul da Ilha do Cardoso, cujos moradores são famosos por serem baderneiros. Eles exigiam que
os músicos parassem para dar lugar ao forró de teclado pelo qual ansiavam. Foi necessário
que os organizadores da Enseada da Baleia e do Ponto de Cultura intervissem para que o Pé
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de Mulambo continuasse sua apresentação, notoriamente mais apreciada pelo grupo da escuna
do que por moradores das vilas da região. Quando Carlos Henrique começou a tocar seu forró
de teclado, a situação de interesse se inverteu.

Figura 31: Músicos no fandango realizado na festa da Figura 32: Participantes no fandango realizado na festa
Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. da Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso, Cananeia,
Foto: Luixx Mayerhofer. 2012. Foto: Luixx Mayerhofer.

Em que pese o horário restrito de duração, percebemos que o fandango, na festa da


Enseada da Baleia, representou o principal momento de integração entre os dois perfis de
pessoas presentes. Embora tenha sido programado mais em função do compromisso com a
cultura caiçara do que propriamente pela preferência do público, o fandango acabou operando
de forma conciliadora. Seu lugar na festa estava assegurado como emblema identitário e era,
portanto, inquestionável. Assim, nessa ocasião, o fandango foi um elo entre pessoas que
pertencem a realidades sociais diferentes, mas compartilham valores situados na importância
de salvaguardar a cultura caiçara.
Na manhã seguinte, acordei ao som de fandango. Um grupo de quinze a vinte homens,
incluindo integrantes da Família Neves, parecia ter virado a noite e seguia tocando e cantando
várias modas. Como muitos ali já haviam bebido bastante, nenhuma mulher se aproximou. O
fandango durou bastante tempo, atravessando a manhã.
103
 
 
2.5. Mutirão e fandango: uma colheita de arroz no Varadouro

Aqui venho de tão longe


Rompendo marés e ventos
Somente para não faltar
No vosso divertimento
(Versos gravados pela Família Pereira, no CD Viola Fandangueira, 2002)

O mutirão do Varadouro, que participei em abril de 2012, representou um momento


especial de meu trabalho de campo. Conforme já mencionei, os mutirões relacionados às
atividades de lavoura são cada vez mais raros na região, ainda mais acompanhados de um
animado fandango. Foi a primeira vez que consegui participar de um, oferecendo-me,
portanto, uma experiência fundamental para que eu pudesse refletir sobre o fandango no
contexto da vida nos sítios.
Convocado pelo irmão de Maria, Luiz Camilo, o mutirão se destinava à colheita de sua
safra de arroz daquele ano. O Ponto de Cultura Caiçaras apoiou o mutirão, pois pretendiam
registrar as atividades como parte de um projeto de documentação da cultura caiçara
financiado pelo IPHAN. O apoio, contudo, foi somente para a complementação de alguns
custos e havia apenas dois representantes lá presentes. Tanto o convite aos participantes,
como a dinâmica de organização ficaram ao encargo aos donos da casa, Luiz Camilo e
Rosangela Pereira, assistidos também por Angélica, a filha mais velha.
Os participantes vindos de outras localidades – principalmente do Ariri – chegaram
pela manhã e foram recebidos com café acompanhado de biju de mandioca. Luiz esteve à
frente do trabalho de colheita, conduzindo os colaboradores até a área de plantação. Com
exceção da minha presença, de Lucia e dos filhos do dono da casa, apenas homens adultos
participaram da colheita, totalizando cerca de 20 pessoas.
O arroz havia sido semeado em meio à mata derrubada, sem o uso de queimada. A
circulação pela plantação era significativamente dificultada pela irregularidade do solo
encoberto por galhos e troncos caídos e pela falta de visibilidade, já que o mato alto e denso
se misturava ao arroz. Botas, calças, camisas de manga comprida e chapéus eram itens
essenciais para a proteção contra cortes, picadas de inseto e o calor abrasivo. Cleber Rocha,
um dos representantes do Ponto de Cultura Caiçaras e também professor na escola do Ariri,
portava uma filmadora e se revezava entre o trabalho de colheita e o registro da função. O
trabalho era árduo, apenas entremeado por pausas breves para beber água e pouca conversa. O
arroz colhido era depositado em sacas espalhadas pelo roçado.
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Luiz em momento algum interrompeu suas atividades para retornar a casa, apenas no
horário acordado para o almoço. Rosangela também não esteve na plantação, pois se manteve
atarefada e visivelmente tensa diante dos afazeres culinários, sendo apoiada por outras
mulheres adultas da localidade. Quem circulava entre a casa e a plantação era a filha mais
velha do casal, Angélica, levando e trazendo informações e ora ajudando na colheita, ora na
cozinha.

Figura 33: Mutirão de colheita de arroz no Varadouro. Cananeia, Figura 34: Roque Mateus no mutirão de
2012. Foto: Joana Corrêa. colheita de arroz no Varadouro. Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa.

Dentre os muitos relatos que ouvi sobre os mutirões, a centralidade do papel dos donos
da casa foi recorrentemente enfatizada. O homem é responsável por orientar os participantes e
fazer com que o trabalho coletivo seja rentável para o objetivo pretendido. Em algumas
localidades, é chamado de “patrão do mutirão”. A mulher é quem conduz as tarefas na
cozinha, devendo garantir que os participantes sejam bem servidos e fiquem satisfeitos. Os
filhos, especialmente quando ingressam na juventude, também se envolvem nos afazeres.
Leonildo me contou que, quando jovem, seu pai lhe confiava algumas tarefas importantes e,
mais tarde, passou a ele a função de patrão em alguns mutirões realizados em Rio dos Patos.
Segundo Leonildo, o mutirão poderia ser também de apenas meio período, chamado de
“sapo”, ou ainda limitado à presença de poucos parentes e vizinhos, conhecido como
“ajutório”.
105
 
 
No Varadouro, o acesso à cozinha e à área interna da casa foi restrito às mulheres que
ajudavam no preparo dos alimentos. Durante os horários de refeição, os participantes se
espalhavam entre bancos no entorno de uma mesa externa, próxima à área de circulação entre
a cozinha da casa e a do fogo de chão, mantido acesso durante todo o tempo. Parte dos
ingredientes usados no preparo dos alimentos servidos era de produção própria e outros
comprados no Ariri, com recursos do apoio concedido.
Ao cair da tarde, a colheita foi encerrada. Alguns participantes descansaram no
entorno da casa, outros se recolheram em colchonetes espalhados no salão da escola
desativada, onde os moradores do Varadouro pretendem montar um centro receptivo para
atividades de turismo comunitário. Dirigi-me com algumas mulheres a um trecho de rio mais
afastado em busca de mais privacidade para o banho. No início da noite, o jantar foi servido
em pratos fartos distribuídos pelas mulheres.
Três integrantes do grupo de fandango Família Neves – Isidoro, Baduca e Vlad –, que
residem na Vila do Marujá, chegaram apenas no fim da tarde ao Varadouro, não tendo
participado da colheita. Presenciei uma breve conversa entre Luiz Camilo e Baduca, em que
faziam menção mútua de honra pelo convite e pelo aceite. Luiz se mostrou grato pela
possibilidade, hoje rara, de oferecer um fandango aos colaboradores de seu mutirão. Baduca
enfatizou algumas vezes o prazer que sentiam em participar de festas comunitárias e o
princípio do grupo de cobrar cachês para tocar numa ocasião como aquela, a não ser que
estivesse prevista alguma atividade revertidas em renda, como venda de bebidas, o que não
era o caso.
A cena contrastava com os vários depoimentos sobre mutirão que já ouvi. As posturas
de ambos seriam impensáveis há algumas décadas. Haja visto que saber tocar fandango era
algo corriqueiro entre os sitiantes, não havia diferença de tratamento concedida aos
fandangueiros por ocasião de um mutirão.

O fandango era convidado. A gente ia de casa em casa convidado, sabe, o mutirão. E


não podia ir a pessoa sem convidar. Se você chegasse e não fosse convidado, não vai
entrar. Não, não, você não ia entrar. Se fosse um amigo da gente, “ó, conversa lá
com o compadre, com o fulano lá, vê se deixa você entrar, só que você não pode
dançar. Você pode ficar o tempo todo aí, tomar um café, come, bebe, mas dançar
não.” Você não trabalhou? Era difícil, viu. E toda a turma que trabalhou apoiava:
“Ele pode entrar, pode tomar café, pode comer, mas dançar, não” Se era dia de
trabalhar, porque que ele não ia trabalhar de dia e ia de noite? (...) Aí à noite
começava o fandango. Tinha vários violeiros, pra lá sempre teve violeiro, quando
tinha o fandango, assim, ó! Tinha muitos, todos quase tocavam. Cansava um, pegava
outro. “Compadre, toca aqui um pouco!” Aí o outro saía. Era divertido. A noite
106
 
 
inteira, sobrava gente pra tocar. (Nemésio Costa, depoimento registrado em 2005
pela equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango)

Segundo relatos, todos que queriam participar do baile deveriam colaborar com as
atividades do dia, preservados apenas os idosos e as crianças. Chegar apenas para a hora do
baile era uma conduta inadequada que deveria ser reprimida pelo dono da casa, sob o risco de
abalo moral de sua condição de patrão. Da mesma forma, a noção de fandango como uma
atividade passível de remuneração não circulava antes do processo de formação de grupos.

Era sempre sábado, a não ser que tivesse um dia santo sexta-feira. Aí fazia quinta. E
o pagamento, não tinha pagamento. Sabe qual era o pagamento? Era que você
trabalhava o dia inteiro na cavação, você suava, você quase arrebentava de trabalhar,
comia e bebia bem certo no dia, à noite você tinha que dançar. Você tinha que
dançar, trabalhar mais porque você tinha que pegar um tamanco de pau e bater até
oito horas do outro dia. Esse era o seu pagamento, era o divertimento o pagamento
daquele tempo. Coisa que não tem alcance, coisa que eu achei bonito, o pessoal ser
tão bem ali, ter uma amizade no fandango que não cobrava que você fosse trabalhar
pro outro numa roça. Ainda trazia você, dava de comer e ainda era pra você dançar a
noite inteira com o tamanco no pé, até o outro dia. Coisas que não dá pra crer. O
pagamento era o seu divertimento, você vai lá dançar, vai dançar com todo mundo, e
anoitecia e amanhecia, ia pra casa contente descansar. Esse é o contentamento do
povo, uma coisa de origem que eles traziam, não sei do que, de família, a criar amor
naquela dança. Nessa dança de hoje, porque hoje ainda estou com ela. (Leonildo
Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005).

A associação entre mutirão/fandango e trabalho/divertimento é recorrente na


percepção simbólica dessas atividades. Não são pares que se combinam em oposição, mas que
se complementam e conjugam. Mesmo nos depoimentos sobre os mutirões “daquele tempo”,
o fandango tem também um valor de trabalho e comprometimento social.
Quando eu pego na viola eu não posso sem cantar
Quando eu pego na viola eu não posso sem cantar
Faço minha obrigação
Obrigação ai
Cante bem ou cante mal
(Versos de fandango cantados por Nemésio Costa em entrevista concedida à equipe
do Museu Vivo do Fandango, 2005).

Tocar, dançar e cantar seriam, portanto, obrigações tanto quanto participar de um


mutirão. Ainda que o “pagamento seja o divertimento”, ele só se realiza com a continuidade
do esforço coletivo, pois todos devem se manter igualmente comprometidos para que o
fandango aconteça. Contudo, no diálogo entre Luiz Camilo e Baduca, presenciei as duas
esferas de trabalho e comprometimento – a do mutirão e do fandango – serem dissociadas e
equiparadas em seu valor de troca. Baduca e os demais integrantes do grupo foram até lá para
tocar de forma voluntária e com entusiasmo, sem, contudo se sentirem obrigados com a tarefa
107
 
 
de colheita de arroz, pois conduziram o baile por toda a noite. Essa mudança de relação só é
possível na medida em que, hoje, saber tocar fandango se tornou um conhecimento
especializado. Embora os bons fandangueiros sempre tenham sido reconhecidos, antes
estavam diluídos em um panorama social mais abrangente de compartilhamento.

Ninguém tirava tempo para ensinar, porque aquilo era uma coisa que era todo ano.
Cinco, seis, oito mutirão que era feito no ano. E não só no lugar que morava, como
em outro lugar. Ali no Varadouro, ali no Tibicanga, ali em muitas partes. (...) Os
mais velhos não contavam assim “eu aprendi com o velho tal.”. Assim eles não
falavam. A gente não se lembra deles falarem assim. Mas com certeza eles
aprenderam na casa dos pais, né? Porque o pai dele devia saber, né? Os tios, pra
aprender, sabiam, e tudo a mesma coisa. Porque isso aí vem de família, vem de um
pra outro, vem passando, vem passando. E pra nós agora, que nosso avô sabia,
nossos tio aprenderam, nós sobrinhos aprendemos, agora nossos filhos também já
tão aprendendo a música. Vai que é por isso que a gente não pode encontrar que data
que tem o fandango. Eu conheço o fandango desde idade de 15 anos, porque antes
eu não posso contar, só posso contar dali pra cá. (Anísio Pereira, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005).

No mutirão do Varadouro, o fandango demorou a começar em função de uma forte


chuva que se anunciou. Relâmpagos e trovoadas fizeram com que todos se abrigassem nas
áreas internas da casa. Apesar de algumas casas no Varadouro terem baterias e placas de
captação de energia solar, permanecemos apenas sob a luz de velas, pois Luiz Camilo e
Rosângela Pereira haviam perdido seus equipamentos em um incêndio no ano anterior, que
queimara toda a casa em que antes moravam44.
O fandango começou de forma discreta, com os músicos e alguns participantes do
mutirão apinhados em um pequeno cômodo da casa, alguns de pé, outros sentados, sem que
houvesse espaço para a dança. Quando as trovoadas cessaram e a chuva abrandou, todos se
transferiram para um galpão próximo à escola onde o baile seguiu por toda a noite, sem que
grande parte dos participantes tenha se recolhido para descanso. Como é de costume, a troca
de pares foi intensa e algumas vezes algumas mulheres chegavam a formar duplas para
dançar. Não houve batido de tamancos, apenas chamarritas e dandãos, modas dançadas em
pares que valseiam juntos pelo salão.
Logo que o dia clareou, os participantes voltaram a se reunir no entorno da casa.
Alguns visivelmente “virados” e ainda sob o efeito da bebida servida em doses controladas

                                                                                                               
44   Rosângela me contou que o incêndio lambeu a casa deles em uma tarde, mas que por sorte ninguém se feriu,
pois todos estavam no Ariri. O sofrimento pela perda material foi contudo amenizado pela solidariedade de sua
família. Segundo ela, a notícia se espalhou e, uma semana depois do incêndio, vários Pereira que moram em
vilas e sítios na região de divisa de São Paulo e Paraná, chegaram de surpresa ao Varadouro e lá permaneceram
por uma semana participando de todas as etapas da construção da nova casa – da derrubada e do corte da
madeira até a finalização.
108
 
 
durante a noite45. Outros, como eu, levantavam-se após algumas horas de sono. O café foi
reforçado com um prato de pés de galinha cozidos. Havia um estado de alegria compartilhado
pelos presentes. Todos pareciam mais íntimos e à vontade, divertindo-se com os enredos e
passagens cômicas da noite de fandango. O momento era de chacota com os erros e tropeços
cometidos, mas ninguém se mostrava ofendido ou constrangido, pelo contrário, os
comentários puxavam novos relatos e provocações amistosas.
Pouco mais de uma hora depois, o fandango recomeçou no próprio terreiro. Mateus,
filho de Luiz e Angela, ainda menino, arriscava-se em alguns acordes na viola. Há cerca de 20
metros dali algumas mulheres e jovens se reuniam diante de um aparelho de som que tocava
axé e forró. Os dois grupos, contudo, não se mostravam incomodados com a música alheia,
pelo contrário, as pessoas transitavam com certa naturalidade entre os ambientes, em uma
atmosfera de descanso e lazer dominical.

Figura 35: Fandango após o café da manhã, no dia Figura 36: Mulheres ouvindo música mecânica no
seguinte ao mutirão e à noite de fandango. Varadouro, Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.

A satisfação dos donos da casa com o resultado da colheita – cerca de quinze sacas de
arroz – era visível. Diante de uma vontade coletiva de permanecer, que se evidenciava sem
que fosse manifesta, Luiz e Rosangela resolveram oferecer um almoço que não estava
previsto na “agenda” do mutirão e o contentamento foi geral. Encerrado o almoço, voltamos

                                                                                                               
45   A bebida é citada por muitos fandangueiros como elemento importante para a animação dos bailes, sendo
mais comuns os destilados, como cachaça ou licores. Integrantes da família Pereira relatam que durante os
fandangos em Rio dos Patos, quando percebiam que a quantidade de bebida não seria suficiente para sustentar a
festa, não era raro que um dupla fosse designada a ir à venda de Vila Fátima para comprar mais litros de cachaça,
o que exigia quase duas horas de caminhada e uma pequena travessia de barco. Os excessos eram, contudo,
controlados, especialmente em fandangos associados aos mutirões, onde o patrão dosava as quantidades
oferecidas ao longo da noite. Nilo Pereira relata que era considerado ofensivo um filho oferecer bebida ao pai e,
mesmo estando encarregado de servir os participantes de um fandango, ele jamais entregaria um copo ao seu pai,
o que indica que a família se mantinha como operador moral mesmo nos momentos de divertimento.
109
 
 
ao galpão da noite anterior e o fandango recomeçou com intensa adesão dos visitantes e dos
moradores do Varadouro. O recomeço do fandango, no dia seguinte ao mutirão e à noite de
fandango, é normalmente chamado de domingueira.

A domingueira é quando termina de manhã, toma o café, que de manhã tem o café, e
“vamos dançar outra vez?”, “vamos”. Isso é uma domingueira. De dia era mais
bonito ainda, todo aquele povo dançando, tomando pinga pura. Pouco, não tanto,
porque era só pinga que tinha naquele tempo, não tinha certas bebidas. Só o branco
mesmo, só o branco, mas ali era pra tomar pouco. (Leonildo Pereira, em depoimento
à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Figura 37: Domingueira com a Família Neves no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.

Com efeito, mesmo após um intenso dia de trabalho e uma noite de música e dança, o
desejo de continuidade do fandango já era comum “no tempo dos antigos”. Esse desejo
retarda o momento da desagregação e da volta ao cotidiano. A despedida, contudo, é iminente
e inevitável e está presente em muitos versos e refrãos, indicando um fim próximo e adiado de
uma música46, e também do próprio fandango.

Vamos dar a despedida


Pra fazer a moda curta
Quem faz a moda comprida
Tá arriscado a pagar murta
...
Oi lai, meu bem,
Vamos dar a despedida
Oi lai, meu bem,
Que eu já tinha me esquecido

                                                                                                               
46   As modas de fandango são longas em relação ao padrão médio de duração de uma música no mercado
fonográfico. Em geral, são editadas quando registradas em disco. Um moda pode durar dez ou até quinze
minutos de forma ininterrupta, contudo é comum que versos como “vamos dar a despedida” ou de sentido
semelhante sejam muitas vezes repetidos ao longo da execução.
110
 
 
...
Vamos dar a despedida
Que o anu já vai embora
...
Hoje estou cantando aqui
Amanhã já vou m’embora
Como não irei chorando
Por este caminho afora
...
Meus senhores com licença
Despedida ‘imo dar
Nossa licença são poucas
Nessa, sim, vai acabar
...
Vamos dar a despedida
Despedida vamos dar
Vamos fazer bem curtinho
Pra n’outra continuar
...
Queromana vou e volto
Quero saber de quem amo
Que dos outros não importo
...
Eu vou m’embora, vou m’embora
Vou m’embora, vou morrer
Não tenho quem por mim chore
Lágrimas não quero ouvir
...
Vamos dar mais uma vez,
Já foi uma, já foi duas
Não há de chegar a três
Adeus morena
...

Vamos dar a despedida


Meu amigo e camarada
Mulata faceira do cabelo ondado
Que para dois cantador
Despedida não é nada
Mulata faceira do cabelo ondado
...
Vamos cantar mais um verso, minha moreninha
Pra n’outra nós despedir, minha moreninha
Minha moreninha com prazer vou te amar
Eu vou embora para nunca mais voltar
Com pesar vou te deixar

(Versos registrados pela Família Pereira no CD Viola Fandangueira, 2002)

No Varadouro, também havia chegado a hora da despedida. A tarde de domingo


avançava e os visitantes do Ariri e de Cananeia, bem como os fandangueiros do Marujá,
precisavam descer a trilha e fazer a travessia de barco de volta para casa. O fandango foi
encerrado com algumas falas de agradecimento dos músicos, dos que representavam o Ponto
de Cultura e, principalmente, de Luiz Camilo que, emocionado, traduzia sua gratidão em uma
111
 
 
poética peculiar que percebo também no modo de falar dos Pereira, um misto do romantismo
dos versos de fandango com certa moral de comunhão católica: “Quem tem amor no coração,
tem alegria para com todos dividir”.
O sentido de despedida como um tema constante nos modas de fandango parece
indicar uma tensão entre convívio e distanciamento. Percebo uma simbologia que se próxima
dos limites imprecisos que reconhecemos na dinâmica espacial dos sítios. O mutirão, seguido
de fandango, reanima as relações e aproxima as famílias, rompendo o cotidiano de
isolamento. De fato, parece representar, para a vida nos sítios, um momento fundamental da
sociabilidade entre famílias. Há, contudo uma temporalidade socialmente saudável para que a
proximidade se estabeleça. A despedida sobre a qual as modas nos falam parece sugerir que
dispersão deve acontecer antes que o desejo de continuidade tenha se esvaído, pois o querer
mais alimenta a espera por novos encontros.

2.6. A camaradagem e os camaradas

“A gente se ajuntava na camaradagem. Saía quatro ou cinco [famílias] pro


fandango, aquela grande gentarada. Ia aquela turma no caminho do fandango, aquela
ponta de gente.” (Alzira Maria Coelho, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)

Camaradagem e camarada são termos recorrentes no vocabulário fandangueiro. A


camaradagem é usada em geral em referência à interação entre famílias, sentimento de
amizade que amplia laços sociais e que perpassa as relações que se constituem e se
reconfirmam no fandango. No contexto dos mutirões, o fandango é dotado de um valor
diferenciado que articula o sentido da troca47. Pelo trabalho empregado se recebe
divertimento. Os mutirões e o fandango movimentam um sistema de relações entre famílias e
localidades cujo elo é a camaradagem. A partir desse sentimento, famílias transitam e se
divertem juntas. Um divertimento também dotado de compromissos, já que músicos e

                                                                                                               
47   A troca é uma das mais recorrentes formas de interação, que simboliza um fluxo de reciprocidade dos
conteúdos da vida. Trata-se de um processo imbuído por valores e sentimentos, ganhos e sacrifícios, onde
conquista-se algo novo e perde-se algo que antes de lhe pertencia. Segundo Simmel (1971), a troca, por sua
condição relacional, estabelece valores, sendo portanto produtiva e criativa. Cavalcanti (2006), chama a atenção
que o caráter agonístico e ambivalente do sentido da troca já proposto por Marcel Mauss, ressaltando que “trocar
é confrontar-se e incorporar-se a sistemas de hierarquia social. É, a um só tempo, associar-se e rivalizar-se.”
(p.32). Simmel (1983) também propõe o conflito como um importante fator de interação, que proporciona a
integração grupal, e, portanto, sociologicamente positivo.
 
112
 
 
dançadores são mutuamente dependentes, pois um fandango só se sustenta com o empenho de
ambas as funções.
Cabe, contudo lembrar, que o fandango desloca o convívio para um espaço
diferenciado, onde a sociabilidade não se estabelece primordialmente pelo diálogo verbal,
mas sim por meio das mediações sensíveis e corporais que música e dança proporcionam.
Estamos tratando de ambientes pouco numerosos em termos populacionais e, portanto, de
convivência intensa, onde as relações não são harmônicas como aparece no ideário folclorista
sobre o popular, pelo contrário, as rivalidades muitas vezes são acirradas. Os limites informais
de terras e sua distribuição entre famílias, a definição das áreas de roçado, a circulação e o
“sumiço” de animais em áreas vizinhas, os impasses amorosos, as decisões coletivas sobre o
espaço comum, tudo pode confluir para atritos intra e entre famílias. Assim, nesse lugar
diferenciado de convívio, demarcado temporal e espacialmente, a camaradagem é reanimada
no plano simbólico da atividade artística que reordena as tensões latentes da vida social.
Cantando e dançando os conflitos do cotidiano são arrefecidos, embora a competição se
mantenha presente como elemento positivo de sociabilidade, pois no fandango as tensões e
disputas se recolocam no lugar das habilidades e das performances, tema que voltaremos a
tratar no último capítulo.
Já a palavra camarada, além de ser usada para expressar a relação entre famílias – “nós
éramos todos camaradas” – é comumente empregada para expressar a relação de amizade
entre homens. Nos versos de fandango, camarada aparece, recorrentemente, sendo usado
como referência àquele com quem se estabelece uma dupla ou a todos músicos.

Vamos dar a despedida


Meu camarada irmão
Eu por vós dou minha vida
Por outro darei ou não
...
Cantemos, meu camarada
Cantemos nós dois juntinhos
...
Vamos dar a despedida
Meu amigo e camarada
(Versos registrados no CD Viola Fandangueira, 2002)

Eu aqui e meu camarada


Nós juntos nunca cantemos
...
Vou dar outra despedida
Para mim com meus camarada
...
E aqui c’o camarada, vem cá, vem cá
Nós junto sempre cantamos, vem cá vem cá
(Versos registrados no CD Museu Vivo do Fandango, 2006)
113
 
 

Os camaradas se freqüentam, bebem, conversam e principalmente tocam juntos. Algo


que não faz parte do círculo de relações das mulheres, pois é o homem quem prioritariamente
cultiva relações estabelecidas para além do seio familiar. Podemos pensar a música como o
principal elo das relações entre camaradas. É no encontro musical que se estabelecem os
momentos principais de divertimento. Mas, assim como mutirão e fandango imbricam
trabalho e divertimento, a música é entendida como uma função, já que os tocadores e
dançadores, mesmo cansados, devem se manter ativos para que a celebração atravesse a noite.
O ânimo coletivo se sustenta a partir da reciprocidade entre tocadores e dançadores. Em um
salão esvaziado, os músicos logo perderão a vontade de tocar. Da mesma forma, o empenho
dos tocadores é fundamental para sustentar o vigor da dança.

Se ele não tiver a lembrança, para nada ele não serve para tocar um divertimento.
Pois que as vezes juntam-se dois, três cantadores e um quer se desfazer no outro,
para ver qual é que é mais. Se pega os dois para cantar uma noite inteira precisa ter
lembrança para um não perder do outro. Mas sempre um tem que perder. Isso é
dureza. Ali que era bom da gente se pegar. Eu gostava era disso, porque ninguém me
derrotava. (Manoel dos Santos Cabral, em depoimento à equipe do Museu Vivo do
Fandango, 2005)

Ganhar e perder em um fandango não implica haver um momento em que estas


condições se definam consensualmente entre os participantes, mas se mostram como
condições não pronunciadas, que simplesmente se revelam na performance do dia, na
satisfação dos convivas, no ânimo dos dançadores. Para vencer é preciso melhor se
demonstrar, conquistando prestígio em um fandango.
A camaradagem, portanto, pode ser pensada também como uma relação de rivalidade
no fandango: envolve patrões de mutirão que disputam o melhor tratamento e receptividade
dada aos convivas, dançadores que disputam a batida do fandango48, tocadores e marcadores.
Embora a camaradagem se estabeleça também entre famílias, creio que podemos
compreendê-la como uma relação mediada por homens. São homens, que carregam consigo
seus nomes de família em uma arena de amizades e competições.

                                                                                                               
48
Os tamancos são preparados para ressoarem alto na batida no assoalho de madeira. O som dos tamancos deve
ser ouvido ao longe. Quebrar o assoalho durante o tamanqueado pode ser um feito que enaltece o batedor e
qualifica o bom resultado da noite de fandango.
114
 
 
2.7. Porque as mulheres não tocam fandango? - metáforas do masculino e do feminino

No fandango somente os homens assumem a função musical. Em todos esses anos,


nunca conheci uma mulher que tocasse fandango, a não ser um ou outro instrumento
percussivo. Conforme as experiências etnográficas nos apontam, estamos tratando de um
círculo de relações sociais que guardam ainda certos valores familiares tradicionais bastante
estáveis, mesmo que permeados pela perspectiva individualista moderna. As relações
matrimoniais, especialmente dentre a geração fandangueira que enfocamos, se constituem por
um elo de complementaridade social entre gêneros. Contudo, embora seja possível reconhecer
uma definição de papéis onde a esfera doméstica está sob a responsabilidade da mulher e o
contato social seja mediado por homens, há alguma abertura para que mulheres e homens
transitem especialmente entre tarefas associadas ao trabalho familiar.
Conforme levantamos, as mulheres participam de muitas atividades masculinas, mas
parecem não desenvolver interesse em saber tocar os instrumentos. Perguntei a muitas deles
porque não tocavam, mas minha pergunta foi em geral recebida com desdém e estranhamento.
Cheguei mesmo a supor haver algum tipo de proibição paterna ou materna ao acesso dos
instrumentos pelas filhas. Contudo, tal é o desinteresse demonstrado pelas mulheres que
sequer é possível falar em restrição. Já nos relatos de homens sobre o aprendizado do
fandango, eles quase sempre enaltecem o interesse precoce. Leonildo conta: “com idade de
oito anos, encostei no meu pai para aprender a tocar o fandango”. José Pereira, diz também
que aprendeu cedo “com idade de doze a quinze anos”. No caso deles, tinham apoio do pai
para aprender a tocar, mas há os que relatam impedimento paterno, o que não afastava o
interesse pelo aprendizado do fandango.

Até que eles não tirava um dia pra ensinar. Às vezes dava um momentozinho, mas
era difícil, a gente aprendia assim só no olhar. Então tinha nosso pai, que a viola
dele era difícil os filhos pegarem ele, mas quando ele saía de casa a gente pegava.
(Anísio Pereira depoimento registrado em 2005 pela equipe de pesquisa do Museu
Vivo do Fandango)

Não se trata de uma regra geral, mas muitos homens que tocam fandango contam que
desde meninos já demonstravam curiosidade em aprender, porém o pai, ao sair para a lida,
guardava o instrumento em algum local alto da casa para dificultar o acesso. Em situações
como essa, normalmente era mãe que, na ausência do pai, pegava a viola, a rabeca ou o
machete para o filho e permitia seu treino de forma velada.
115
 
 
Com oito anos aprendi a tocar viola. Meu pai ia trabalhar e a viola dele ficava lá em
cima, não queria que ninguém pegasse nela. Eu falava para minha mãe pegar a viola
do meu pai para eu aprender, porque senão não tem como aprender. Aí ela descia de
lá, eu me sentava assim e tocava. (Vicente Galdino França, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

O aprendizado se dava, portanto, por observação dos pais, avôs e tios49, associada à
prática, autorizada ou não pelo pai, do instrumento.
O fandango, esse que eu já falei, de mutirão, escutava meus tio que tocavam bem,
que era Francisco Bento, Eugênio Camilo, que era meu sogro. Eu não tocava muito,
mas encasquetava aquela música, depois eu ia pra casa - que tinha rabeca em casa,
do meu irmão - eu ia tocar aquela música. Tocar não, quer dizer, lidar pra aprender.
Teimar, teimosia mesmo. Eu era teimoso, e fui indo até aprender aquelas música que
meu tio tocava. E várias vezes ele vinha no nosso lugar. Não morava lá, mas várias
vezes ele vinha daqui, e eu escutava aquele toque, era muito bonito. Tocava bem
melhor que eu. Aí eu aprendi aquelas música. (José Pereira, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Apesar de não se interessarem por tocar, algumas mulheres gostam de cantar.


Mulheres de gerações mais velhas contam que era comum que versassem em um fandango,
especialmente na hora em que era tocada uma marca chamada graciosa.

Quando cantava na graciosa era assim: a mulher com o namorado, que a gente fosse
naquele fandango, e chegasse lá, outra moça fosse e pegasse o namorado da gente, aí
já cantava o verso pra aquela que tava dando em cima do namorado. Quando era
rapaz, que se eu tava dançando com ele, com meu namorado, ai cantava um verso
pra mim e eu cantava outro pra ele. (Narcinda Amorim Lopes, depoimento
registrado em 2005 pela equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango)

Durante a pesquisa realizada no âmbito do Museu Vivo do Fandango, gravamos versos


entoados por mulheres, sem acompanhamento instrumental.

Coloquei meu anel


No buraco da parede
Quem olhar há de me ver
Minha vida era dele

Abaixai serra verde


que quero ver a cidade
quero ver o meu amor
senão morro de saudade

(Versos de graciosa cantados por Bernardina Pereira, em depoimento à equipe de


pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

                                                                                                               
49 Gramani (2009), ressalta, por meio das falas de muitos fandangueiros, a importância dos tios maternos e
paternos no processo de aprendizagem, com quem muitas vezes se tinha uma relação menos formal do que com
o próprio pai.
116
 
 

Eu me lembro de um verso que tinha uma moça que namorava um rapaz, e depois
ela casou. Então ele cantou, tava tocando viola e cantou assim... Como é? Cantou
um verso pra ela, não sei como foi. Aí ela veio e cantou pra ele: “Vós me chamasse
de rosa, rosa do jardim florido, Sou rosa mas não sou vossa, sou rosa do meu
marido”. Aí ele disse: “eu não chamo tu de rosa, porque tu não mereceis, porque se
tu fosse rosa, estava no meu poder” (Dorçulina Eiglmeier, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Em geral, as mulheres se mostravam felizes por buscarem em suas memórias o


repertório guardado. Compreendo, portanto, que mulheres não são inteiramente alheias à
música e à poesia do fandango, mas sim à prática instrumental. A partir dessa suposição,
percebi que deveria buscar um pouco mais sobre a simbologia dos instrumentos no fandango.
Os instrumentos, em especial a viola e a rabeca são de confecção artesanal, exigindo
um tempo de algumas semanas ou meses para que fiquem prontos. Durante as pesquisas do
Museu Vivo do Fandango, aprendi que as formas dos instrumentos revelavam uma associação
com a feminilidade e algumas de suas partes são chamadas por nomes semelhantes ao de um
corpo humano A rabeca e a viola têm pestana, boca, braço, ombro e cintura. E a rabeca tem
ainda alma – suporte de madeira acomodado na parte interna do bojo para impedir que a força
das cordas sobre o cavaletinho faça o tampo ceder. Em minhas aulas de rabeca com José
Pereira, em janeiro de 2012, timidamente ele me revelou alguns nomes um tanto quanto
“impróprios” com os quais algumas partes são tratadas. A volta maior que vem logo apos a
cintura, tanto na rabeca, como na viola é chamada de “bunda” pelos Pereira e o pequeno
suporte de madeira que sustenta o cavalete, chamado de “cu”. A viola “fala” e a rabeca
“fraseia”.

Figura 38: Instrumentos de Arnaldo Pereira. Ariri, Cananeia, 2012. Foto: Leco de Souza.
117
 
 
Raramente os tocadores têm apego aos seus instrumentos, especialmente quando são
também sabem fazê-los. Os Pereira mesmo quando confeccionam algum instrumento especial
para si próprios instrumentos, podem facilmente vendê-lo por uma boa oferta. Mesmo aqueles
que não sabem fazer, se desfazem com facilidade diante dos estragos do tempo ou de uma
proposta vantajosa. Não é difícil comprar um novo instrumento, pois sempre houve muitos
construtores na região. Somente quando o instrumento perde sua função musical, com o
envelhecimento ou a morte do tocador, ele pode passar a ocupar um lugar de memória no seio
da família, sendo guardado com objeto de recordação. Placidina guarda a rabeca de seu
falecido marido, Eugênio Camilo. Quando visitei Julino Pereira pela primeira vez, em 2002,
Alzira também nos mostrou uma rabeca, já velha e sem cordas, que seu marido costumava
utilizar antes de parar de tocar.
Há, contudo, uma associação do instrumento com amor e intimidade. Muitas modas
citam os instrumentos e o próprio tocador de fandango parece dialogar com seu ao cantar.

A minha viola se chama


Pinho Branco da paixão
No tampo dele se escreve
Os suspiros que as moças dão.
(Versos citados por José Pereira no CD Museu Vivo do Fandango, 2006)

Falai viola, falai


Na palma da minha mão
Encostada no meu peito
Em frente meu coração
(Versos gravados por fandangueiros da Vila Nova no CD Museu Vivo do Fandango,
2006)

Pra te deixar não posso


Pra te deixar tenho pena
Ai, violinha requintada
Faz chorar quem tem amor
(Versos gravados pelo Pés de Ouro no CD Museu Vivo do Fandango, 2006)

Quando eu pego na viola


Primeiro pego no braço
Ai depois peço licença
Para ver que é que faço
(Versos gravados pelos fandangueiros de Ararapira no CD Museu Vivo do
Fandango, 2006)

Viola que está tinindo


Gemendo na minha mão
Por isso está tremendo
Fazendo essa gravação
(Versos gravados por Martinho dos Santos no CD Museu Vivo do Fandango, 2006)
118
 
 

A minha viola nova


Que comprei do fabriqueiro
Para divertir saudade
Empreguei o meu dinheiro
(Versos gravados por fandangueiros da Vila Fátima no CD Museu Vivo do
Fandango, 2006)

Durante um fandango, os tocadores além de se revezarem na execução musical,


trocam diversas vezes de instrumento. A dinâmica de um fandango é a da circularidade –
instrumentos circulam entre os músicos, músicos circulam de função.
Os versos também circulam pelas diferentes marcas ou modas. Como discutido no
primeiro capítulo, o fandango foi muitas vezes pensado como suíte que congrega vários
ritmos e as chamadas marcas são os diferentes ritmos executados. Uma mesma estrofe poética
pode ser adequada a diferentes marcas, mudando apenas o ritmo e a melodia.50 Ainda os pares
de dançadores também se permutam e circulam. A cada música, o salão enche e esvazia,
devendo os pares se recombinar ao início de uma nova música. Essa prática, associada aos
fandangos de mutirão, é cultivada até hoje em casas de fandango, bailes e encontros. Nos
mutirões, era uma regra garantida pela autoridade moral masculina, pois nem sempre as
mulheres jovens tinham vontade de cumpri-la.
Arrisco-me, portanto, a refletir que o desinteresse das mulheres pela prática
instrumental, além de estar associado a valores tradicionais e papéis de complementaridade
socialmente desempenhados, também possa estar relacionado a um processo de construção
metafórica entorno dos instrumentos principais do fandango. As mulheres são o eixo de
estabilidade da estrutura familiar que, de alguma forma, as distancia da lógica de relação de
permuta presente no sistema de circulação e representação dos instrumentos. O instrumento
musical remete à circularidade e à permutabilidade presente no fandango. É a substância do
elo musical de afeto e amizade entre homens. O instrumento não é um companheiro, pois o
homem já tem seus camaradas. Contudo, figura como um objeto de mediação da relação
masculino-masculino. É constantemente passado de mão em mão. Ao mesmo tempo, é
também um objeto com o qual homens se confidenciam e dialogam indicando haver nele uma
condição de feminilidade. O instrumento é fio condutor da expressão do amor romântico que
está presente na poética das modas. Por meio dos instrumentos, os homens expressam
também seus sentimentos de amor, sem, contudo criarem apego a esse ente feminino já que
não estabilizam seu afeto no objeto.

                                                                                                               
50
Abordarei mais detalhadamente os aspectos expressivos do fandango no capítulo 4.
119
 
 
Não há, entretanto repulsa ou evitação das mulheres em relação a esses objetos, pelo
contrário, muitas vezes, elas auxiliam no processo de fabricação ou têm papel mediador no
aprendizado dos jovens tocadores. Creio que se trata mais de um alheamento de interesse que
nos aproxima do caminho de construção metafórica da distinção de gêneros proposta por
Strathern (2008). As mulheres exercem papeis protagonistas e com relativo trânsito, contudo,
como esteios da estrutura doméstica, assumem condições diferentes de circulação e
estabelecimento de vínculos de afeto.
Não é minha intenção sugerir uma construção harmoniosa e estável. Não será
surpreendente em pouco tempo encontrar mulheres tocando esses instrumentos. José Pereira
recentemente disse a uma de suas filhas que se ela aprendesse a tocar rabeca faria um enorme
sucesso e muitas pessoas viram procurá-la, podendo inclusive obter uma fonte de renda a
partir da prática instrumental. Em Cananeia, há hoje um grupo de fandango – Fandangueiros
do Acaraú – liderado por uma mulher que toca cavaquinho. Essas metáforas estão em
constante renovação a partir do contato com outros diversificados processos culturais. As
mudanças não se fazem, entretanto, de forma tão veloz como por vezes imaginamos. Basta
constatar que ainda hoje num cenário de intensas mediações e permutas com outros modos de
vida, seja pelos meios de comunicação ou pelo intenso fluxo de migrantes e visitantes dos
lugares mais diversificados, ainda é excepcional encontrar entre as mulheres da região
interesse pela prática instrumental relacionada ao fandango.
  120

Capítulo 3 – A família Pereira em novos arranjos: grupos, mestres e artistas

3.1. A entrada dos Pereira no circuito cultural curitibano

Uma matéria feita pela sucursal da Rede Globo do Paraná, em fins da década de 1980,
é a lembrança mais remota de contato em Rio dos Patos com um foco de interesse pelo
fandango diferente daquele que se estabelecia na relação entre os moradores dos sítios. Trata-
se, contudo, de uma referência já obscurecida pela memória, que os Pereira não registraram
com precisão. Esse acontecimento lembrado durante o processo de gravação das entrevistas
do Museu Vivo do Fandango pelo músico Rogério Gulin, que integrava a equipe.
Rogério Gulin, violeiro do grupo curitibano Viola Quebrada, convive e participa da
trajetória dos Pereira desde a década de 1990. Seu primeiro contato com o fandango foi em
1984, quando o diretor teatral e bonequeiro Renato Perré, carioca que há alguns anos havia se
mudado para Curitiba, convidou-o para integrar uma peça de sua companhia Filhos da Lua,
tendo como enfoque o folclore paranaense.

Na realidade eu era um roqueiro que fazia trabalho pra teatro e tal. E o Renato Perré
sempre foi um ator e diretor voltado à cultura popular. Ele veio do Rio, estava há
uns quatro, cinco anos em Curitiba. “Vamos montar alguma coisa com cultura
popular do Paraná, e o quê que tem no Paraná?" É congada e fandango do litoral,
que é mais forte do que a congada, pois pega toda a região do litoral. Então foi feito
um projeto com o Teatro Guaíra, que patrocinou a montagem do espetáculo
chamado “Fandango”. (Rogério Gulin, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)

O processo de montagem, apoiado pelo Teatro Guaíra – instituição de referência na


área cultural de Curitiba –, envolveu seis meses de pesquisa em municípios da Baía de
Paranaguá, no litoral norte do Paraná. O elenco estabeleceu contato com o folclorista Inami
Custódio Pinto, que os apresentou a muitos fandangueiros.

Conhecemos o Inami. Ele era diretor de Fandango do Museu Paranaense. Foi quem
nos auxiliou em Paranaguá, na Ilha dos Valadares: Mestre Eugênio, Brasílio,
Romão. Em Morretes, D. Helmosa. Fomos em Guaraqueçaba, conhecemos Seu
Janguinho e algumas pessoas. Daí ouvimos falar de Rio dos Patos, um lugar meio
longe. Falavam do fandango autêntico que ainda faziam, como era antigamente,
espontâneo, era no Rio dos Patos. Mas a nossa pesquisa se focou em Valadares,
principalmente em cima do Brasílio, que foi a pessoa com quem eu aprendi a tocar
as marcas de fandango. O jeito que eu toco é o do Brasílio. (Rogério Gulin, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
  121

É interessante notar que, em sua fala, Gulin indica que as noções de autenticidade e
espontaneidade aplicadas ao fandango expressam uma expectativa de isolamento em relação
aos circuitos da cultura. Quanto mais resguardada a comunidade, mais perto o fandango
estaria de certo ideal de pureza. Essa perspectiva nos aponta para algumas heranças vivas dos
estudos de folclore.
Por outro lado, Gulin reconhece que a pesquisa realizada pelos músicos e atores da
peça serviu de estímulo ao interesse de novas gerações pelo fandango nos lugares por onde
passaram.
Quando a gente teve lá, em 1984, não tinha Grupo do Mestre Romão. A gente ia na
casa do Brasílio ver tocar viola, não exista grupo nenhum. Era legal, a gente ia todo
dia. Ficávamos dez dias viajando. Então chegava lá e “quem são os fandangueiros?”
e “vamos agitar um fandango e tal”. Comprava cinco litros de vinho, combinava na
casa de um, na casa do outro. E aquelas casas velhas! Teve um dia que caiu a janela
da casa, a porta despregou, rapaz pregando a parede, assoalho afundou... E era uma
coisa legal. E o clube do Romão tava efervescendo na época, o Sete. Ele tinha um
baile da rapaziada. Aquela coisa, os jovens não gostam de fandango... Então o baile
acabava e os fandangos que a gente fazia amanheciam. E quando era cinco, seis da
manhã ainda tava aquela piazada toda no fandango. Então o que faltava pra os
jovens realmente era uma coisa de ver gente de fora interessada naquilo que eles
achavam como cafona. (Rogério Gulin, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)

Pedro Pereira, primo de José e Leonildo, que há muitos anos mora em Paranaguá e
toca com o grupo de Mestre Romão, também tem uma percepção semelhante sobre o interesse
de pessoas “de fora” sobre o fandango.
Pra mim é um grande orgulho. Até na minha casa, os meus colegas das nossas
capitais que vem procurar nós para resgatar o fandango, essa dança folclórica que
estava esquecida. Que o pessoal de fora parece que está se interessando mais que o
pessoal do próprio lugar. A gente fica admirado, que admiram a gente. Eu me
orgulho que eu tenho ajudado esse fandango. (Pedro Pereira, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

O processo de pesquisa para a montagem teatral dirigida por Renato Perré,


possibilitou que Gulin, que já tocava gêneros variados na viola caipira, se familiarizasse com
o repertório e a viola de fandango.
Isso daí foi um negócio complexo, um espetáculo onde a gente aprendeu a bater
tamanco. Eu aprendi a tocar viola, já tocava rabeca, tirando dandão, tirando
andorinha, chamarrita, marinheiro, tonta, queromana, tinha todas as marcas do
fandango. Com o sapateado, os atores aprenderam a bater. O Inami ensinou a
coreografia e tudo. Então ali eu realmente entrei no fandango, e ali foi continuando.
Peguei amizade com o Brasílio, com o Robertinho, que era irmão do Valdemar, já
faleceu. A gente aprendeu muita coisa com ele na Ilha da Cotinga. Então foi um
negócio que foi muito forte. Foi uma fase assim que era pra passar, que era pra
acontecer. (Rogério Gulin, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, 2005)
  122

Em meados da década de 1990, Gulin, que então vinha se tornando referência em


Curitiba para aspectos relacionados à musicalidade do fandango51, foi convidado para integrar
uma equipe que realizaria uma pesquisa em Rio dos Patos. O projeto, patrocinado pela
Secretaria de Estado de Cultura do Paraná, envolveu a publicação de materiais informativos
sobre o fandango praticado na localidade. A iniciativa partiu da cientista social Sandra Mara
Leite de Andrade que, em 1994, concluíra sua monografia de graduação “Experiência pessoal:
fandango como expressão do lúdico e do trabalho” na Universidade Federal do Paraná,
elaborada a partir de uma breve etnografia em Rio dos Patos. Como desdobramento, foi
editado um conjunto de cartelas com imagens e textos sobre Rio dos Patos e a família Pereira,
e também realizado um documentário pela TV Educativa do Paraná com enfoque sobre os
métodos de pesquisa de um cientista social em campo52.
Foi quando eu conheci os Pereira, já conhecia o Pedro Pereira, já sabia da existência
dos Pereiras todos, mas no Rio dos Patos mesmo não tinha ido. E já na época que eu
fui, moravam quatro, cinco famílias espalhadas. Então tava o Leonildo, o Felício,
Seu Julino. Seu Anísio tava indo embora, mas ainda tinha casa. Eu dormia na casa
do Seu Anísio, na beira do rio, na casa que o Nilo morou. Então essa a imagem que
eu fiquei, que tinha gente, o campo de futebol, teve o jogo de bola. A gente foi na
festa da Nossa Senhora do Carmo, teve fandango à noite com festa, tudo... (Rogério
Gulin, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Informações sobre a família Pereira e o “caráter autêntico” do fandango em Rio dos


Patos já corriam no Paraná pelo menos desde a década anterior. A primeira vez que a família
apresentou o fandango para um público, de acordo com o que a memória dos Pereira alcança,
foi em 1989 em um evento cultural realizado na área urbana de Guaraqueçaba.
Provavelmente, esse evento os tornou mais conhecidos no município. Contudo, foi a
divulgação dos materiais da pesquisa coordenada por Sandra Mara Leite de Andrade sobre
Rio dos Patos, publicados entre 1999 e 2000, que projetaram os Pereira em um circuito mais
amplo. Os impressos foram distribuídos em Curitiba e o documentário veiculado na rede
televisiva paranaense. A partir de então, se intensificam os convites para apresentações em
eventos relacionados à cultura popular. Leonildo Pereira relembra desses primeiros contatos
estabelecidos por pessoas “de fora” em Rio dos Patos como algo que começa a “ativar a
família”. José também percebe esses contatos como momentos de rememoração do fandango,

                                                                                                               
51
Em 1990, Gulin também participou, a convite de Inami Custódio Pinto, da organização de um grupo de música
e dança no recém inaugurado Conservatório de Música Popular Brasileira de Curitiba. O projeto, segundo ele,
teve curta duração, não mais que um ou dois anos.
52
Sandra convidou três membros para compor sua equipe de pesquisa em Rio dos Patos: além de Rogério Gulin,
responsável pela transcrição de partituras, o fotógrafo Carlos Zanello de Aguiar, conhecido pelo apelido de
Macaxeira, e a historiadora Joceli Tomio Arantes.
  123

indicando que, mesmo antes do esvaziamento de Rio dos Patos, os fandangos já não vinham
sendo praticados com regularidade.

Lá no Rio dos Patos, que eu nem tava lá, apareceram me convidando. Daí eles já
formaram também tipo um conjunto assim. Depois já bem depois. Primeiro vieram,
faziam umas filmagens assim pra vê se recordavam o fandango. Mas não tinha
grupo, não tinha nada ainda. (José Pereira, em depoimento concedido à Daniella
Gramani, 2008)

De fato, muitos Pereira dizem que não chegaram a dançar muitos batidos em Rio dos
Patos. José Pereira se lembra de mais das modas com coreografias e tamanqueados em seu
tempo de criança até a juventude. Em função da entrada de outras religiões e das restrições
ambientais, os mutirões e os fandangos batidos se tornaram esporádicos.

Era o seguinte, o mutirão havia num bairro assim como o Varadouro, vamos dizer,
que tudo o povo era católico. Aí a gente fazia o mutirão e iam todos, com família e
tudo, só pra trabalhar e dançar. Mas depois já chegou tipo essa lei, então já
diferenciou a metade do povo, já da Assembléia, dessas outras lei que tem. Aí esse
pessoal, que iam ajudar a gente com toda a família, iam só de dia, mas de noite não
iam. Aí já fracassou a metade do fandango. Dizendo assim, a lei é uma coisa que
existe, mas a gente não pode fala dele. Mas foi também um pouco que tirou também
o fandango, porque foi proibido de fazer roçado, de fazer essas coisa. Então, foi
dois assuntos que acabou mais com o fandango, foi esse dois tipos de coisa. Tirou o
meio ambiente, o IBAMA. Já precisava de fazer não sei o que pra não multar a
gente; era preciso pagar não sei quanto pra fazer uma roçada. E a gente foi
desanimando de cortar, de cortar madeira, de cortar mato. E a lei por causa que não
podia dançar. Eles não podem dançar, né? Fracasso, que eles iam até ajudar a gente
de dia, mas de noite já não ia. (José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani,
2008)

Bernardina, prima de José Pereira, também se recorda de poucos fandangos com


batido em Rio dos Patos.

Tem moda que nunca dancemos. No meu tempo não. Eu aprendi só o anu, a tonta, a
querumana. Só esses que eu danço, mas esses outros que era as danças mesmo, mais
bonitas, eu não aprendi a dançar. Quando eu tava aprendendo a dançar essas marcas
de dança aí já parou tudo. E aí não quiseram mais. (Bernardina Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

No ano 2000, os Pereira se apresentaram pela primeira vez na capital paranaense no


evento Fandango sobe a serra, organizado por Maria de Lourdes Brito, outra ex-integrante da
montagem do espetáculo Fandango, dirigido por Renato Perré. Foi a partir desse convite que
nasceu a necessidade de conceber um grupo com um número restrito de familiares aptos a
viajar. A tarefa contou com a mediação de Nilo Pereira, que na época já residia na área urbana
  124

de Guaraqueçaba. Leonildo Pereira esteve à frente as definições da apresentação e na


interlocução do grupo com o público. A apresentação no projeto Fandango subindo a serra
envolveu músicos e dançadores, reunindo cerca de vinte familiares.
Em 2001, os Pereira recebem um novo convite, dessa vez feito por Rogério Gulin e
seu parceiro musical Oswaldo Rios. A proposta era gravar um álbum duplo53 sobre fandango,
um CD conduzido pelo grupo Viola Quebrada e outro pela Família Pereira, intitulado Viola
Fandangueira.

3.2 A gravação do CD Viola Fandangueira: uma pequena situação social

Em 2002, quando estive na Ilha do Cardoso para as festas de fim de ano, muitos
fandangueiros e grupos comentavam sobre o CD Viola Fandangueira. Presenciei um animado
e festivo baile de fandango conduzido unicamente pelo disco, rodado em aparelho de som, em
um bar na vila de Barra do Ararapira. Alguns anos mais tarde, já durante a realização do
projeto Museu Vivo do Fandango, em uma reunião na sede do IBAMA de Iguape com Eliel
Pereira, então diretor da APA Cananeia-Iguape-Peruíbe, ao falarmos sobre fandango, fomos
surpreendidos por seu imediato interesse. Eliel tirou da gaveta de sua mesa de trabalho um
exemplar do Viola Fandangueira, relatando-nos que, desde que o comprara, vinha tentando
descobrir se haveria conexão entre seu sobrenome Pereira de herança materna e o daqueles
Pereira, pois sua mãe lembrava-se de um tio Franklin que residira nos arredores do Ariri. Ao
obter a confirmação de que eram filhos e netos de Franklin, Eliel decidiu viajar conosco para
Cananeia e Guaraqueçaba para conhecer seus primos distantes, emocionando-se no encontro
com Arnaldo, José e Leonildo Pereira.
O CD Viola Fandangueira, de fato, ganhou uma projeção inesperada na região. Como
cada um dos Pereira havia recebido uma farta cota para distribuição e venda, o CD circulou
intensamente sendo vendido inclusive em pequenas pontos de comércio das vilas que
pontuam a travessia fluvial entre Paraná e São Paulo, por preços entre R$ 5,00 e R$ 15,00.

Já vi em Paranaguá, já vi em Cananeia, aqui na Ilha Comprida. Já vi no lado de lá no


sul, vi a turma tocando o CD. Estava com o meu primo lá na Ilha Comprida, nós
estava tomando uma cerveja, e eu escutei. Falei: “uai, esse CD é da família Pereira,
né?”, e ele “É, é mesmo”, “é, esse surdo quem está batendo aí sou eu, quem está
                                                                                                               
53
Segundo Oswaldo, em princípio, a intenção deles era apenas gravar os Pereira, contudo, para que o projeto
fosse viabilizado com uso da lei municipal de incentivo à cultura de Curitiba, era necessário que vincular a
proposta à cena cultural curitibana.
 
  125

tocando são meus tios, meu pai, sobrinho, tão tudo aí tocando”. Aí ele falava assim:
“pô, não acredito!”, “É verdade, esse CD é nosso”. (Agnardo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Pessoas que há muito não ouviam aquelas modas, e especialmente o batido, pareciam
ter suas memórias reavivadas, acionando seus sentidos de pertencimento ao mundo do
fandango. O repertório dos Pereira se tornou conhecido por outros grupos e começou a
circular intensamente na região. Gramani (2009), em sua dissertação sobre processos de
transmissão e aprendizado da rabeca, relata que durante a época em que José Pereira manteve
o grupo familiar no Ariri, ele incentiva os jovens a ouvirem o disco para aprenderem a tocar.

Às vezes o pessoal fala que o fandango é fácil, mas não é tão fácil assim. Sempre
tem alguma coisa que fica mais difícil. (...) Tem que cantar. Se você pegar na viola e
não cantar, fica muito feio, fica esquisito, né? Não tem assunto você pegar numa
viola e tocar, tocar e não cantar. Então, tem que pegar na viola e cantar (...) Bom, eu
acho que na verdade, o CD [Viola Fandangueira] ajudou bastante, porque às vezes
eu não sabia, né? O verso da música de fandango, eu não sabia, e eu procurava mais
pelo CD. Aqueles versos que eles cantam no CD eu também canto, então eu me
baseava mais naquilo. (Laerte Pereira, 2008. Apud: Gramani, 2009, p.103).

A iniciativa de gravação do disco teve como viés a preocupação em registrar a


memória do fandango e dos Pereira54, porém com um diferencial relevante em relação aos
projetos anteriores, qual seja, a ênfase na importância da qualidade sonora do material. Dessa
vez, os Pereira não foram registrados in loco, como sugerem os métodos de registro do
folclore, ou no ambiente nativo, como apontam os métodos clássicos de pesquisa de campo
antropológica, mas em estúdio como usualmente acontece nos processos formais de produção
fonográfica nos circuitos da cultura. Um grupo formado por cinco dos Pereira da quarta
geração (Anísio, Nilo, Leonildo, José e Arnaldo), três da quinta geração (Jersi e Agnardo,
filhos de Leonildo, e Heraldo, filho dos primos Anísio e Bernardina), além de um agregado (o
camarada Vicente França) viajou a Curitiba onde, em três dias de estúdio, deram conta do
repertório de sua parte do álbum. Diferentemente da formação amplificada que havia se
apresentado no projeto Fandango subindo a serra, somente homens estavam presentes, já que
para efeito de gravação musical não havia a necessidade da participação feminina, nem
mesmo para a realização dos tamanqueados.

                                                                                                               
54
A apresentação do disco foi escrita pelo folclorista Inami Custódio Pinto, ressaltando que “um trabalho como
o destes discos deixa documentado um pouco da riqueza e diversidade do fandango paranaense, da alma e da
inteligência de nosso povo”. Sandra Mara Leite de Andrade e Joceli Tomio Arantes assinam o texto final que
trata da memória do fandango em Rio dos Patos.
  126

O Rogério e o Oswaldo convidaram a gente pra ir pra Curitiba e de lá se


hospedamos num hotel. Um hotel de primeira, que era coisa demais pra nós. Aí de lá
a gente ia pra gravadora, todo dia das oito horas às cinco horas. Só parava pra
almoçar, ali mesmo de marmitex, ali mesmo na gravadora, e viola! Nós chegava oito
horas, pegava mais ou menos umas nove horas na viola e largava momento antes as
onze hora. Almoçava aquele marmitex, pegava de novo uma hora da tarde, tomava
aqueles cafezinhos ali mas o resto tudo viola! Quatro dias de viola, quatro dias
direto de viola. A mão da gente inchou tudo de tanto tocar viola, rabeca, essas
coisas. (José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, 2008)

Figura 39: Capa do CD Viola Figura 40: Integrantes da Família Pereira que participaram da
Fandangueira, gravado pelos grupos Viola gravação do CD Viola Fandangueira. Da esquerda para a direita,
Quebrada e Família Pereira, 2002. de pé, Anísio, Heraldo, Jersi, Agnardo, Arnaldo e Vicente França,
abaixados, José, Leonildo e Nilo. 2001. Foto: Bela Pagliosa

Em muitas situações que envolvem registros sonoros de cultura popular, a


preocupação em manter o contexto “original” de execução de uma manifestação pode
implicar na perda de qualidade quanto ao resultado final da música captada. Essa preocupação
em registrar a situação “real” por vezes não permite captar efetivamente a sonoridade que se
vivencia em um momento festivo ou que os próprios músicos avaliam como representativa
daquilo que executam55. A distância relativa entre cada instrumento e os aparelhos de
captação, bem como a circulação e os ruídos inerentes a um ambiente festivo, têm influência
sobre a recepção sonora. Embora tenham optado pelo estúdio como ambiente para alcançar
melhor apuro no registro musical do fandango dos Pereira, talvez pelas cobranças comuns
                                                                                                               
55   No processo de gravação do disco Museu Vivo do Fandango, feito em campo, como o equipamento de
captação gravava os instrumentos simultaneamente, foi feito um processo de escuta e reposicionamento até que
cada grupo se sentisse satisfeito com o resultado da gravação. Voltei também a esse tema no artigo Museu Vivo
do Fandango: aproximações entre cultura, patrimônio e território, apresentado da 35a Reunião Anual da
ANPOCS (2011) e também no artigo Fandango’s Living Museum: culture, heritage network and
territorialization elaborado à convite da UNESCO (2012) em face ao reconhecimento, em 2011, do Museu Vivo
do Fandango como boas práticas em salvaguarda do patrimônio imaterial. Ambos os artigos foram escritos em
parceria com o antropólogo Edmundo Pereira e o geógrafo Alexandre Pimentel, e o segundo também com
colaborações da musicista Daniella Gramani, todos integrantes da Associação Cultural Caburé.
 
  127

feitas quanto à noção de autenticidade em trabalhos relacionados a expressões populares,


Rogério Gulin e Oswaldo Rios incluíram a seguinte nota técnica no disco.

O CD2, da Família Pereira, foi inteiramente gravado ao vivo em estúdio sem que
tenha sido utilizado qualquer processo de compressão ou reverberação digital. A
ambiência é natural e o sapateado foi executado junto com os músicos e os cantores.
(texto do encarte do CD Viola Fandangueira, 2002)

Além de protegê-los de possíveis questionamentos, a nota também atesta as


habilidades musicais dos Pereira. Rogério Gulin se disse impressionado com a facilidade com
que os Pereira chegavam a um resultado satisfatório nas gravações das modas.

O profissionalismo, entre aspas, deles é impressionante. Você vem no estúdio pra


gravar uma música, para você montar uma música, dá seis, oito horas. Já com eles,
tudo na primeira passada estava bom. Tudo saía bom, de primeira, é impressionante.
Pra eles foi uma experiência. Por exemplo, o José Pereira, não que seja o mais
vivido, mas que tem uma visão um pouco mais nova, ele gravar tocando e ter que
pôr uma rabeca com ele tocando depois, foi legal. O Leonildo fez isso depois
também, com aquela estranheza. E a gente “como é que vai ser isso, você gravar
uma coisa sem metrônomo e tal?”, e tocar tudo de primeira assim. (Rogério Gulin,
em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Na capa do disco, o nome Família Pereira foi grafado com “F” maiúsculo, como
ficaram conhecidos como grupo musical. Leonildo Pereira, contudo, não destaca a
constituição do grupo como marco divisório do tempo. Para ele, há certo sentimento de
continuidade quando perguntamos sobre o que haveria de novo nesse processo. Segundo
Leonildo, “Nós já tinha grupo, tinha, pois nós era uma família que andava tudo unido, andava
junto. É o mesmo tipo de hoje”. Nesse sentido, parece que a ideia de formar um grupo para
Leonildo se aproxima de andar agrupado, relembrando o movimento de famílias e camaradas
no deslocamento para um mutirão ou um fandango. Já José Pereira parece compreender o
disco como um acordo entre os familiares a partir do qual o grupo se constitui.

Depois de uns anos, aí uns dois anos acho, aí foi que Nilo encontrou-se com
Leonildo lá e começaram a cantar. Nunca tinham cantado junto. Daí foram
cantando porque eu morava pra lá e era muito longe. Mas só que, mesmo assim, eu
morando longe, vieram me buscar porque sozinho não davam conta de fazer essas
coisas. Aí vieram me avisaram e eu fechei com eles. Fechemos com eles pra nós
fazer essa família Pereira, que nascemos com mesmo sobrenome. Aí fiquemos já
meio gostoso, meio famoso. Daí que gravemos o primeiro CD, deu certo. (José
Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, 2008)

A formação do grupo trouxe, entretanto, uma nova qualidade de conflitos no âmbito


da dinâmica da família. Com a repercussão e a chegada de convites para apresentações dos
  128

Pereira, passou a ser necessário definir participações e distinguir funções. Ao relatarem seus
papéis no grupo, embora protagonizem atividades distintas, Nilo e Leonildo revelam haver
entre eles disputas quanto à liderança, Nilo se coloca como “timoneiro”, responsável por
contatar os parentes, buscá-los nos sítios e vilas mais distantes e abrigá-los em sua casa no dia
anterior à viagem programada. Já Leonildo, por seu carisma e habilidade performática, além
de maior arcabouço sobre o fandango, assumiu um papel equivalente ao de um diretor
artístico do grupo. Segundo Leonildo, ele próprio é o “organizador” e Nilo seria o
“procurador”.

3.3. Um breve drama social e a fragmentação dos Pereira

Em 2002, os Pereira viajaram ao Rio de Janeiro para participar do projeto


Rabequeiros, da Associação Cultural Caburé. Foi a primeira vez que se apresentaram fora do
estado do Paraná.

Aquela foi uma viagem muito cansativa, rapaz, aquela me exigiu bastante! A gente
saiu oito horas de Guaraqueçaba, chegamos em Curitiba, só tomamos um lanche.
Fomos em uma van, saímos de Curitiba. Na divisa do Paraná, meu caro, eu estava
cansado sentado. O cara ainda disse que a gente só chegava à noite. Eu: “ah, meu
caro mais a gente ainda está no estado de São Paulo?” Quando chegamos no Rio de
Janeiro, era quatro e meia da manhã. Eu disse: “meu caro, mas o que é isso?”. Tava
entrosado, de tanto estar sentado. A gente descansou um dia e mais três dias no Rio
de Janeiro, se entrevistando com todo mundo e ensinando. O meu trabalho era muito
grande! (Leonildo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, 2005)

Devido às dificuldades de deslocamento de um grupo formado por membros


residentes em municípios distintos, além do desafio de uma viagem mais longa, solicitamos a
Rogério Gulin que acompanhasse o grupo a partir de Curitiba no deslocamento até o Rio de
Janeiro. Assim, Gulin partilhou com Nilo a função de arregimentar e providenciar as questões
necessárias para viabilizar a integridade e o traslado do grupo. Ao mesmo tempo, como amigo
muito próximo de Leonildo e também conhecedor do fandango, colaborou no ensaio e na
passagem de som em questões relacionadas à organização da apresentação.
A composição do grupo para a viagem foi alvo de tensões entre os membros da
família. Como o palco do teatro era pequeno e as condições do projeto só viabilizariam a
participação de alguns integrantes, foi acordado que apenas dois pares representariam a dança
do fandango no palco. Assim, Nilo convidou apenas duas mulheres, Bernardina Pereira, sua
irmã, e Iolanda Pereira, esposa de Urbano Pereira. Essa seleção gerou, contudo, apenas
desagravos velados com aquelas que, tendo participado de apresentações anteriores, não
  129

foram convidadas para a viagem. O foco maior de atrito foi na definição dos tocadores.
Viajaram para o Rio de Janeiro, além das duas mulheres, Leonildo, Nilo, Anísio, Pedro,
Urbano e Agnardo. Para a nossa surpresa, José Pereira, que já era apontado como um dos
melhores rabequeiros da família e estava previsto na composição do grupo, não chegou ao
Rio de Janeiro. Recordo-me que, na época, foi mencionada como motivo da ausência de José
a dificuldade de oferecer seu deslocamento até Guaraqueçaba. Contudo, algum tempo mais
tarde, soubemos que José havia deixado o grupo junto com seu irmão Arnaldo, que também
participara das gravações do CD Viola Fandangueira.
Somente dez anos depois voltei a conversar sobre o assunto com José Pereira, já
durante o período de trabalho de campo. Segundo ele, a questão central que motivou seu
afastamento do grupo Família Pereira foi o fato de Nilo ter insistido em preterir, na
apresentação do Rio de Janeiro, a participação de Arnaldo em favor do primo Pedro Pereira,
músico integrante do grupo de Mestre Romão, em Paranaguá. Não pude ouvir a versão de
Nilo sobre o fato, mas acredito que estava relacionada à intenção de economizar recursos, já
que buscá-los de barco em São Paulo – José, no Varadouro, e Arnaldo, no Ariri – envolveria o
dispêndio de mais combustível. José alega ter também achado injusto Nilo querer dar
preferência a Pedro, que sequer havia participado do CD Viola Fandangueira. De certa forma,
na visão de José, os participantes do CD seriam os formadores do grupo Família Pereira. Em
virtude de seu compromisso com o irmão Arnaldo, inclusive em questões que perpassam seu
sustento, José alega então ter preferido abrir mão de seu lugar no grupo.
A participação dos Pereira no projeto Rabequeiros pode ser pensada como
desencadeadora de um drama social (Turner, 1996), gerando um momento de crise. Questões
latentes, que perpassavam definições sobre a constituição do grupo e os papéis de liderança,
se tornaram evidentes. Assim, em decorrência do afloramento de certas tensões, novos
arranjos foram formados.
Um grupo não é tão extenso quanto um nome de família. Assim como núcleos
familiares se fecham entre seus parentes mais próximos – pais, irmãos, filhos – quando
dificuldades de subsistência se colocam na ordem da economia doméstica, também no grupo
familiar dos Pereira, diante de meios e recursos limitados, as afinidades e os compromissos
das relações parentais se mostraram operantes. Ao sair do grupo, José Pereira estremece sua
relação com Nilo, seu primo, mas não com seu irmão Leonildo, que também exercia um papel
determinante. Pelo contrário, ele se aproxima de seu irmão, propondo novas formações. Como
José e seu irmão Arnaldo moram em Cananeia e Leonildo em localidade paranaense muito
próxima à divisa com São Paulo, os três formaram um núcleo musical dos Pereira em
  130

território paulista, que em princípio foi batizado como Irmãos Pereira. Leonildo, contudo,
não abandonou a outra formação, passando a funcionar como elo entre os dois núcleos. Ou
seja, Leonildo acabou se colocando em uma condição divisória, separando e conectando os
Pereira paranaenses e os paulistas, que, inclusive, pode ser associada à própria situação
territorial da família.

3.4. Mestres e artistas: anseios e perspectivas nos circuitos da cultura

Os Pereira participaram ainda de outros projetos de registro e divulgação do fandango.


Alguns de seus conhecimentos e memórias sobre o fandango foram transcritos no livro
Tocadores56, um grande compêndio que nomeia e homenageia músicos populares das regiões
Sul e Centro Oeste do Brasil, publicado também em 2002. O livro reserva algumas páginas
para cada tocador, com fotografias e textos em primeira pessoa sobre suas trajetórias de vida,
aprendizado dos instrumentos e processos de confecção, e participações em circuitos culturais
diversificados. A proposta do Tocadores acompanha uma tendência que vinha se fortalecendo
no contexto de reflexão e construção política das culturas populares, no qual a categoria
mestre começa a ser enfatizada como viés de reconhecimento de saberes não formalmente
institucionalizados pelas tradições do conhecimento e da academia.
A noção de mestre ganhou contornos no âmbito de debates internacionais sobre a
revisão e alargamento da categoria patrimônio. A partir da década de 1970, países fora do
eixo eurocêntrico, em busca do reconhecimento de suas culturas e tradições como
patrimônios, de certa forma retomam e atualizam o entendimento do folclore como elemento
emblemático da diversidade cultural, que então se compreendia ameaçada não apenas pela
modernização, mas também pelos processos de globalização57. Acselrad (2009), em seu
estudo sobre as legislações brasileiras que reconhecem e amparam financeiramente mestres e
grupos populares, elucida que experiências pioneiras de países como Japão, Tailândia,
Filipinas e Romênia influenciaram a pauta de países latinoamericanos na recondução dos
rumos de seus encaminhamentos políticos sobre o tema do patrimônio.

A ameaça do “risco do desaparecimento” vem reforçar uma retórica da perda


fazendo com que a UNESCO, em 1993, estabeleça como prioridade a implantação
do Programa Tesouros Humanos Vivos, visando à valorização dos mestres e dos
seus mais diferentes ofícios, por todos os países membros, na perspectiva de
                                                                                                               
56
Organizado pela pesquisadora e produtora curitibana Lia Marchi, pelo músico brasiliense Roberto Corrêa e
por sua esposa, também produtora, Juliana Saenger.
57
Retomo esse tema no apêndice sobre o processo de patrimonialização do fandango.
  131

fomentar a cadeia da transmissão, ou seja, com base na premissa de que “preservar é


transmitir”. (Acselrad, 2009, pp.10-11)

No Brasil, a categoria mestre também começa a circular entre aqueles que participam
dos circuitos da cultura e, mais especificamente, dos circuitos relacionados à cultura popular.
A partir do final da década de 1990 se intensificam dos debates sobre patrimônio imaterial, no
Brasil e, na década seguinte, surgem as primeiras legislações estatuais, muitas delas com
enfoque voltado à transmissão de saberes por mestres reconhecidos em suas comunidades
culturais.

Os estados do nordeste concentram o maior número de instrumentos legais e ações


de titulação, voltados para o reconhecimento e apoio a pessoas consideradas como
importantes portadores de conhecimentos e técnicas que podem ser entendidos como
patrimônio cultural imaterial. (Cavalcanti & Fonseca, 2008:94-95 apud Acselrad,
2009, pp.11-10)

No plano de atuação federal, duas iniciativas merecem destaque: o Programa do


Patrimônio Imaterial58, promulgado em 2000 e sob a responsabilidade de gestão do IPHAN, e
a Ação Griô, difundida em 2005, como linha de atuação do Programa Cultura Viva e gerido
pela Secretaria de Programas e Projetos do Ministério da Cultura, na qual é oferecido auxílio
financeiro, sob a forma de bolsa periódica, a mestres e aprendizes para transmissão de saberes
em ambientes de ensino formais ou informais.
No mundo do fandango, acompanhei parte do processo de disseminação da categoria
mestre. Há uma década, apenas Romão Costa e Eugênio dos Santos, de Paranaguá, eram
conhecidos e correntemente chamados por Mestre Romão e Mestre Eugênio. O livro
Tocadores assim os registra e me recordo que durante a edição do livro do Museu Vivo do
Fandango travamos debates sobre usar ou não “mestre” acompanhando a grafia do nome de
alguns dos fandangueiros. Por fim, optamos por trabalhar de forma padrão apenas com os
nomes e sobrenomes mais usados. Atualmente, ser reconhecido e chamado por mestre se
tornou corriqueiro entre aqueles tidos como bons fandangueiros, sempre homens. José e
Leonildo, apesar de por vezes, questionarem o título, transparecem bastante orgulho pelo
reconhecimento, que relacionam ora com seus conhecimentos sobre fandango, ora com o
papel de professores que também desempenham.

Ainda hoje se encontra gente que gosta, até lá de Curitiba vem gente aqui, vai lá. A
gente tem se encontrado por aí. “Vamos dançar?”, “Vamos”, coisas que o povo não
conhece. “Vamos dançar, me ensine!”. Quando eu fui daqui pra Curitiba, quando

                                                                                                               
58
Mais uma vez, destaco que retomo o assunto no apêndice sobre o processo de patrimonialização do fandango.  
  132

fui fazer uma apresentação lá, o povo queria que só eu ensinasse. Na noite, quase me
mataram de tanto ensinar. Eu saí cansado, começou as nove pra terminar as três da
madrugada, ou quatro horas que terminamos, quatro e meia da manhã. Eu estava
mortinho de cansado, mas tinha que ensinar, que é um amor que a gente tem. (...) Eu
tenho que ensinar, isso que é o perigo pra mim. Se eu só cantasse ou tocasse a
rabeca, pra mim seria bom, mas é que eu vou ensinar. Se for bater fandango, eu
tenho que ensinar; se for pra cantar, eu tenho que ensinar; pra tocar rabeca, tem que
por para eu ensinar. É um trabalho muito grande! (Leonildo Pereira, em depoimento
à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Tem muito professor que vai ensinar rabeca, começa a música e toca a música
inteira. Aí você não aprende nada. Então tem que ensinar os pontos, que tipo é,
como é pra fazer, senão você nunca aprende. Se for tocar junto com outro aí, ele foi
embora, você ficou sem nada. Tocou junto com ele, mas ele saiu dali. Eu acho. E
assim não, você aprende os pontos. (...) Laurinei, Felício (que é de outra lei) e esse
boliviano de São Paulo lá, Ramiro. Foi meus alunos. Eles gravam hoje lá e me
fazem quase chorando de alegre de ensinar eles dois. Aprenderam mesmo comigo,
assim igual eu estou ensinando pra senhora. Ramiro vinha de São Paulo, vinha
pousar aqui pra aprender, lá na Varadouro. Ia pousar lá comigo pra mim ensinar ele.
Aí ele chegava lá, cumprimentava, passava e cantava um assim, sem falar muito
com ninguém, nós dois. (José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, 2008)

Hoje em dia, falam é professor mesmo de rabeca, mesmo assim tocando de cabeça
pra cima [se refere à posição de tocar a rabeca], mas me tratam de professor, né? E
aqueles que escutam ficam com muita atenção porque é coisa bonita (risos) É...Vou
contar a verdade, né? (José Pereira, 2008 a. Apud: Gramani, 2009, p.121).

A categoria mestre, por um lado, traz valoração e prestígio aos fandangueiros,


concedendo status aos conhecimentos sobre fandango que recebem, produzem e transmitem.
Esses aspectos são significativamente relevantes, na medida em que tais práticas populares
foram e ainda são alvo de desqualificação e rejeição social. Por outro lado, podem operar
também como um fator de individuação e ruptura em planos coletivos. Em certa medida, o
reconhecimento como mestre acirra disputas de liderança.
Em 2006, a Família Pereira foi contemplada pelo Prêmio Culturas Populares, pelo
qual os selecionados receberiam do Ministério da Cultura o valor de R$10.000,00. Como os
Pereira não têm uma representação jurídica, um familiar teve que ser designado para receber a
premiação. No entanto, este familiar foi acusado de não partilhar os recursos com os demais
integrantes, tendo alegado que destinaria o valor à troca do motor de seu barco, item essencial
para agregar o grupo quando convidado para uma apresentação.
Vejo na forma como se organiza o Estado brasileiro entraves no diálogo institucional
com os arranjos sociais coletivos – famílias e grupos – que predominam nos contextos
relacionados à cultura popular. O Estado só pode apoiar financeiramente pessoas físicas ou
juridicamente constituídas. Com isso, se o grupo não opta por uma representatividade formal
– uma associação sem fins lucrativos, que é o modelo mais comum, ou ainda uma empresa
  133

privada – precisa eleger um representante para acessar os programas estatais, o que pode, em
alguns casos, ser extremamente arbitrário.
Por outro lado, a constituição de associações é custosa e complexa frente ao
distanciamento que tais grupos têm com relação aos processos burocráticos envolvidos. A
formalização jurídica e a manutenção da entidade frente às demandas de declarações
periódicas junto às esferas governamentais exigem certo grau de conhecimento específico que
passa ao largo de seus contextos sociais. Quando, por meio da Associação Cultural Caburé,
colaborei com a elaboração de projetos para editais do Ministério da Cultura e gestão de
pontos de cultura em Iguape e Guaraqueçaba, deparamo-nos com o endividamento das
entidades que foram contempladas em virtude da não declaração de suas inatividades desde os
períodos em que foram criadas. Nas duas situações, os processos de contração ficaram
inabilitados até que toda a documentação demandada fosse reunida, o que no caso da
Associação dos Jovens da Jureia demorou cerca de dois anos.
Mesmo quando núcleos comunitários ou grupos conseguem enfrentar as barreiras da
formalização jurídica, esbarram na inadequação do modelo de gestão de recursos estatais aos
seus modos internos de organização. As relações de parentesco, por exemplo, são
condenáveis no que diz respeito ao estabelecimento de vínculos profissionais remunerados
com recursos públicos. É juridicamente imoral contratar parentes até terceiro grau por via do
setor público ou em projetos do Terceiro Setor financiados por programas governamentais.
Em certa medida, sou favorável a essa restrição, mas como evitar que essas relações se
recoloquem no plano de trabalho em ambientes onde quase todos mantêm vínculos
familiares?
Assim, compreendo que, em muitas situações, tornou-se mais fácil e mais vantajoso
acessar programas de incentivo e recursos por meio da categoria mestre do que por pelo viés
da representação coletiva.
O diálogo estatal com o campo das culturas populares e tradicionais opera, por meio
de conexões ambíguas. Em um viés amplificado de atuação, determina procedimentos
administrativos e moralidades universais, que não se distinguem pela compreensão de
contextos específicos. Contudo, nas pontas de contato mais direto, desenha mecanismos de
apoio por meio de critérios de valoração e direitos distintivos, enaltecendo a perspectiva
particularista da diversidade cultural.
Caberia então questionar o porquê da necessidade de diálogo com o Estado e com
outras instâncias de apoio? Porque não deixar que o fandango e as culturas populares se
mantenham e aflorem nas esferas de trânsito doméstico, familiar e comunitário? Entendo que,
  134

pelo menos até onde alcançamos, o mundo do fandango é profundamente perpassado, com
diferentes nuances, pelos circuitos da cultura. Ademais, as mudanças que se colocam na
passagem do tempo, tanto por conjunturas sociais mais amplas quanto por mediações internas
que alargam o mundo do fandango, carregam aspectos irreversíveis que alteram perspectivas
individuais e projetos de vida. Em grande parte, são também os próprios fandangueiros que
buscam prestígios e novos posicionamentos sociais, ansiando ingressarem por meio do
fandango em uma carreira artística que lhes proporcione reconhecimento e alternativas de
sustento. Contudo, tais anseios não necessariamente se contrapõem aos valores familiares e
tradicionais cultivados por meio do fandango.

Hoje é melhor, antes a gente se matava e não tinha valor de nada. O fandango pra
nós, hoje em dia, tem valor. Tem o pessoal que vieram e estão dando essa força pra
gente, não só pra mim, como pra todos nós. Então está melhor. Tanto jovem que está
aí se perdendo, se estragando... O fandango é uma dança que trás muito respeito pra
gente. Eu tenho doze anos de grupo. Quando casaram aquela moça de dezoito, vinte
anos, por causa do quê? Por causa do grupo. O Seu Romão junta esse pessoal da
escola e hoje nós estamos com tantas escolas. Temos um grupo de trinta sete
pessoas, que tem moça com dez, vinte anos... Acho muito bom de mais, porque no
fandango a gente tem muito respeito, muitas coisas antigas, muito conselho bom.
Então pra mim hoje está melhor o fandango, eu queria que nunca acabasse. Da
minha parte eu considero meus colegas e é isso aí. (Pedro Pereira, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Com os louros colhidos pela gravação do CD Viola Fandangueira e de outros que


mais tarde participaram59, além da dinamização das atividades culturais na região por meio de
projetos, os Pereira foram pouco a pouco revendo e atualizando suas intenções sobre a
maneira como querem se posicionar nos circuitos da cultura. A noção de “ser artista” se
tornou corriqueira em suas falas quando abordam suas trajetórias e carreiras. As atividades
ligadas ao fandango – apresentações em bailes, confecção de instrumentos artesanais como
violas e rabecas, gravação de entrevistas para reportagens televisivas, documentários e
pesquisas culturais, entre outras – ganharam lugar de relevância em seu cotidiano.
José se mostra sempre dividido entre a possibilidade de sair de seu emprego, para se
dedicar exclusivamente às atividades relacionadas ao fandango, ou de se manter empregado,
pensando especialmente na futura aposentadoria. O fandango, de fato, tem lhe oferecido uma
renda complementar muito significativa. Em janeiro de 2012, por meio das apresentações que
fez com a Família Neves e com o Viola Quebrada, da venda de rabecas e de entrevistas que
concedeu, calculo que tenha arrecadado um valor pelo menos quatro ou cinco vezes superior
ao seu salário mínimo mensal. Claro que se tratava de um mês atípico, de muita
                                                                                                               
59
Fandango de mutirão (2003), Museu Vivo do Fandango (2006) e Fandango em Araçaúba (2011).
  135

movimentação turística na região. Pois é justamente a sazonalidade inerente às atividades


culturais que o faz recuar do projeto artístico integral. Muitas vezes, José chega inclusive a
inverter a questão. Em diversas ocasiões, ele disse a mim, a Lucia, a Daniella, a Rogério e
Oswaldo, aos integrantes da Família Neves e a outros a interlocutores qualificados – que,
como ele, também operam mediações no mundo do fandango – que pretende abandonar suas
atividades de fandangueiro. No entanto, com colocações dessa natureza, ele parece apelar
justamente pelo contrário, buscando mobilizar auxílios que intensifiquem sua inserção em
atividades remuneradas relacionadas ao fandango.
Já Leonildo considera que sua profissão é “ser artista”, mas reconhece o quanto vem
sendo difícil conquistar o respeito de sua esposa e de alguns de seus filhos para essa condição.
Segundo ele, “pensam que o fandango é só divertimento”. Sua reação com a resistência de sua
família é de indignação, pois o fandango que contribui para o sustento de todos. Em contraste
com sua situação familiar, em muitos ambientes pelos quais Leonildo circula, entre pessoas
que apreciam o fandango, é tratado com reverência.

Essas viagens, sair por ai tudo, parecia um sonho. Já teve gente aqui querendo me
levar pro estrangeiro. Eu disse: “eu, não vou não!”. Só se eu tivesse mais saúde, ai
era melhor. A coisa que mais gosto é ser um artista. É uma vida muito boa, muito
essencial. Deus deu isso pra muita gente, pra correr esse mundo cantando, porque
quem canta seus males espanta. Eu acho muito bom isso. (Leonildo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Dotado de grande carisma e boa capacidade de comunicação, Leonildo é


frequentemente convocado a proferir palavras para o público que o assiste, o que faz com a
fluência de um bom orador. Sua autopercepção como artista passa por essa receptividade, pela
maneira como é recebido e tratado. Uma relação que se difere de como seu irmão encara a
profissão artística.
José está mais preocupado em aprimorar suas habilidades como músico e construtor
de instrumentos. Gramani (2009), destaca em sua pesquisa que a gravação do CD Viola
Fandangueira foi um estímulo para que ele se dedicasse mais à rabeca.

Quando eu gravei o CD que faz uns oito anos acho, eu resolvi deixar quase tudo
devagar e continuar só com a rabeca. Às vezes que eu falo pra senhora que eu
inventei muita coisa. (...) Desde 12, que eu aprendi a tocar um pouquinho com os
outro, mas que eu formei essas coisa, tá pra fazer 10 anos. De 12 anos pra 60 dá
quarenta e poucos anos que eu aprendi, mas que eu formei essas coisa faz de 10 anos
pra cá. Eu me dediquei mais na rabeca, eu avancei mais na rabeca. Quer dizer, eu
gostei mais de tocar e comecei a fazer coisa de aprender muito. Deixei de quase
todos os instrumentos pra mim ficar só mais na rabeca. Porque é assim, se a senhora
quiser aprender tudo, não aprende nenhum bem de uma vez. Tem que largar de tudo
  136

os instrumentos pra você aprender um daquele mesmo. (José Pereira, em


depoimento à Daniella Gramani, 2008)

Na época da gravação do CD Viola Fandangueira, José ainda não sabia tocar rabeca e
cantar ao mesmo tempo e, portanto, gravou voz e toque separadamente no estúdio.

Daí eu que sofria mais, porque eu com o Anísio, nós cantemos e o resto batia. Nilo,
Leonildo, Vicente, esses três. E eu cantava com o Anísio. E daí tinha que colocar a
rabeca dentro da música, mas não tinha jeito porque não tinha quem tocasse. Eu
naquele tempo não sabia toca cantando. Aí fizeram assim pra mim, de por aquele
fone no ouvido, e eu entra lá e escutar a música. E eles tocando aqui também,
soltando a gravação. Quando eles soltavam a gravação pra mim, eu acompanhava
tocando rabeca. E deu certo. Aí eu fiquei ali de prontidão, bem afinado, rabeca boa.
Quando a música roncou no meu ouvido, eu peguei a foice aqui. Ô, deu certinho!
Toquei uma e outra e deu tudo direitinho, pra você ver. Até foi uma admiração, eu
gravar assim porque é difícil pegar certinho, não ter nem um erro ali. Não é
brincadeira! Foi onde eu sofri mais um pouquinho. (José Pereira, em depoimento
gravado por Daniella Gramani, 2008)

José é, portanto, minucioso em seus afazeres e bem menos festivo que Leonildo.
Comunica-se pouco com aqueles que o assistem em um fandango. Diferentemente do
entusiasmo contagiante de seu irmão, José está quase sempre voltado para sua própria atuação
e atento à qualidade da performance dos demais músicos com os quais se apresenta.

3.5. Etnografia de uma performance: ‘caipiras’ e ‘caiçaras’ em um palco da capital

Em janeiro de 2012, acompanhei os irmãos José, Leonildo e Arnaldo, além de Laerte


(filho de José), em uma apresentação com o Viola Quebrada no espetáculo Caipiras e
Caiçaras, a convite dos organizadores da série Ser(tão) Brasileiro, no CCBB de São Paulo.
Foi também um momento importante do meu trabalho de campo, primeiramente por ter
acompanhado várias etapas de sua preparação e desfecho e, mais ainda, por ser uma
experiência peculiar e emblemática no cotidiano dos Pereira. Os convites para apresentações
em palcos de grandes centros urbanos são apenas eventuais e, portanto, marcantes em suas
trajetórias. Além disso, a relação com os integrantes do Viola Quebrada aproxima os Pereira
de forma qualificada e simétrica da prática artística. A amizade travada entre eles faz com que
busquem um diálogo franco e direto, distante do tratamento como exóticos ou ingênuos.
Uma apresentação em teatro nobre da capital é uma experiência de grande relevância
na carreira de um artista em construção. A apresentação é um momento onde o artista
demonstra suas habilidades adquiridas para elaborar e levar à cena uma performance que, ao
ser partilhada com o público, confirma sua própria condição de artista. Turner (1982)
  137

apresenta o artista como um personagem dotado de atributos liminares, um ente marginal, que
com seu potencial crítico e criativo ocupa um lugar questionamento da estrutura social. Em
sua obra, a condição liminar aparece também relacionada especificamente à performance
artística como lugar de criação, articulação de símbolos e transformação, guardando
similaridades com o ritual.

Turner (1982) e Schechner (2011) vislumbram uma prática etnográfica a partir da


noção de performance em seu caráter processual que, assim como um ritual, envolve a
preparação, o ato em si e seus desdobramentos. Schechner (2011) aprofunda-se na
possibilidade de tomar a performance como objeto da própria antropologia sugerindo uma
sequência total que pode servir como um roteiro de campo para uma etnografia da
performance. Essa sequência é estruturada em sete fases: treinamento, oficinas, ensaios,
aquecimentos ou preparações imediatamente antes da performance, performance
propriamente dita, esfriamento e balanço ou desdobramentos. Cada fase deve ser observada
de acordo com suas peculiaridades e variações da importância conferida em uma performance
específica. Proponho aqui retomar a apresentação dos Pereira no CCBB numa perspectiva
etnográfica, a partir das fases propostas por Schechner60.

Treinamento61

Ainda no Ariri, José combinou de fazer um ensaio com seus irmãos e seu filho no
domingo que precedeu a viagem a São Paulo. Nesse dia, pela manhã, José pediu a um de seus
filhos que buscasse Leonildo no Abacateiro. Em virtude da distância, Leonildo se hospedou
na casa de José para que, na manhã seguinte, saíssem cedo rumo à Cananeia, onde o Viola
Quebrada os buscaria de van.
Oswaldo Rios, que além de músico é produtor do grupo Viola Quebrada, já havia
acordado previamente algumas músicas do repertório caipira que tocariam juntos. Contudo, a
seleção do repertório de fandango dos Pereira, foi definida pelos irmãos, com apenas algumas
sugestões de seus parceiros curitibanos. Uma peculiaridade é que os três irmãos tocam todos
os instrumentos característicos do fandango – viola, rabeca, machete e adufo.
Vale destacar que fazer ensaios é algo que se tornou mais comum a partir da formação
de grupos. Contudo, em muitas situações, os tocadores se encontram diretamente no fandango
                                                                                                               
60
Essa tentativa de uso das etapas de Schechner como ferramenta analítica tem, contudo, alguns limites na
medida em que a construção teórica desse autor é voltada essencialmente para a produção cênica teatral. No caso
estudado, não houve uma fase de realização de oficinas na preparação da performance.
61
Como recurso metodológico, considerei os ensaios realizados somente entre os Pereira como a fase
treinamento e os realizados em São Paulo, com o grupo Viola Quebrada, como a fase de ensaio sugerida por
Schechner.
  138

e o repertório se define durante a execução musical. José não costuma, por exemplo, ensaiar
com o grupo Família Neves.
A passagem de repertório começou no meio da tarde, na casa de Arnaldo. Estavam
também presentes um sobrinho deles, Maurício Pereira, que tem se evidenciado no Ariri
como bom violeiro e cantador. José, apesar de tocar com Maurício em eventos de caráter
informal na região, não o convidou para integrar o grupo que viajaria para São Paulo, uma vez
que além de Leonildo (que já estava incluso no convite feito pelo grupo Viola Quebrada),
preferiu priorizar parentes mais diretos sobre os quais sente responsável. Conforme já
mencionamos, mais uma vez a escolha do grupo foi perpassada pela dinâmica de afinidade e
comprometimento familiar, para além do fator propriamente artístico. O critério de escolha,
contudo, não prejudicaria a apresentação, já que todos são bons músicos.
Ao longo do ensaio, Leonildo esqueceu por diversas vezes as letras das modas, o que
causou desconforto em José. Este, em dado momento, sugeriu que ele as anotasse para
“gravar na memória”. Num baile de fandango, a variação das modas, uma frase mal acabada
ou mesmo a substituição de um fim de frase por um “lairairai” são corriqueiras. Uma mesma
moda pode ser executada por mais de dez minutos, com repetições de estrofes e improvisos de
verso. Entretanto, José não queria manter esse formato descontraído na apresentação de palco.
Para ele, Leonildo tinha que “sustentar a letra”. Leonildo reconheceu, contudo, que sua
memória já não era mais a mesma e que vinha inclusive fazendo um caderno com anotações
das letras que conhecia. Contudo ele ressaltou que não achava necessário e nem gostava de ler
durante a execução, pois, quando começa a tocar viola e “sai cantando”, a memória aos
poucos vai retornando. Nesse sentido é interessante pensar que Turner (1982) ressalta a
performance como articuladora de memórias e símbolos. Para Leonildo, fazer fandango é
também algo que “ativa” seus conhecimentos.
O ensaio durou cerca de duas horas e o repertório foi quase todo ditado e definido por
José, mais uma vez, preocupado em selecionar modas que denominava como antigas. Essas,
segundo ele, foram aprendidas com seus familiares e, portanto, participam de um repertório
compartilhado, que ele denomina como “tradição dos Pereira”. Com a circulação de CDs de
fandango na região, tornou-se comum grupos de diferentes municípios aprenderem e tocarem
modas do repertório de outros grupos, antes de circulação mais restrita. José me disse algumas
vezes que não desaprova por completo grupos, como o Família Neves, que optam por esse
tipo de prática. Contudo, ele ressalva que prefere seguir apresentando as modas que ele
considera como da sua família.
  139

Antes do ensaio, perguntei a José Pereira se poderia usar um gravador para captar
algumas músicas. José ficou um pouco tenso, pois tem receio de que gravações, em princípio
casuais, sejam usadas para fins comerciais sem o seu consentimento. Contudo, acabou
concordando em me deixar registrar o ensaio. O uso do gravador se mostrou interessante, pois
fizemos algumas audições imediatamente após cada moda ensaiada. Com esse recurso, eles
identificavam falhas e conversavam sobre aspectos que precisavam ser melhorados. José
gostou tanto da experiência que me pediu para ajudá-lo a comprar um aparelho similar para
gravar seus toques na rabeca e as modas que canta.

Ensaio
Na manhã de segunda-feira, encontramos com o grupo Viola Quebrada no centro de
Cananeia, de onde partimos rumo a São Paulo. Ao longo da viagem assuntos relacionados ao
fandango perpassaram as conversas. Os Pereira mostraram aos seus camaradas curitibanos
novos instrumentos que haviam confeccionado, executando algumas modas breves. Também
discutiram sobre formato de certos instrumentos, mostrando divergências quanto às diferenças
entre um machete e uma bandola.
Na chegada ao hotel, foi acordado um horário de descanso antes do primeiro ensaio
que aconteceria à noite no quarto de Arnaldo e Leonildo. Foram cerca de duas horas de
ensaio, capitaneado por Rogério Gulin e, em segundo plano, por José Pereira. Ensaiaram
especialmente as músicas do repertório caipira clássico que fariam juntos, como Menino na
porteira e A moreninha, entre outras modas. A escolha de repertório e as nuances da
performance musical foram debatidas coletivamente. José sugeriu um solo de bandolim em
uma das músicas, demonstrando suas habilidades e sendo aplaudido pelos demais. Embora em
determinados momentos um ou outro músico se destacasse em uma passagem do ensaio,
pouco a pouco, criou-se uma atmosfera de compartilhamento e de comunhão entre todos os
presentes.
Os músicos estavam dispostos em forma circular. Uns observavam os outros
procurando apreender maneiras de afinar os instrumentos ou determinadas passagens mais
complexas da execução musical. A interação, sem a presença marcante de audiência – à
exceção da minha própria presença e de duas ou três pessoas envolvidas na organização do
projeto – fazia-se dentro da própria roda, acentuando a música como linguagem de
compartilhamento simbólico principal.
  140

Figura 41: Ensaio dos integrantes do Viola Quebrada com a Família Pereira em quarto de
hotel. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa.

Mesmo depois de encerrado o ensaio, continuamos a ouvir os sons das violas e


rabecas dos Pereira ecoando pelos corredores do hotel. O mesmo aconteceu na manhã do dia
seguinte, antes da saída para o teatro. Leonildo e José Pereira ensaiavam um duelo de rabecas
e pediram que eu escutasse antes de descermos para o café da manhã. Tocar duas rabecas
simultaneamente não é algo comum em um fandango. Somente as violas costumam ser
tocadas em dupla. Contudo, em 2005, durante as gravações do Museu Vivo do Fandango,
Gulin sugeriu que experimentassem um duelo de rabecas como uma brincadeira. O resultado
foi tão bem sucedido que optamos por registrá-lo na abertura de um dos discos da coletânea.
Desde então, tal formato passou a ser uma marca do encontro musical entre os dois irmãos.
Durante o ensaio, o duelo foi planejado como um ponto chave da apresentação, um momento
de maior intensidade no fluxo da performance musical.

Preparação imediatamente antes da performance


As apresentações aconteceriam em um só dia, uma terça-feira, em dois horários, às
13h e às 19h30. A chegada ao teatro foi agendada, contudo, para às 10h possibilitando tempo
para uma passagem de som com todos os músicos posicionados no palco.
Ao chegar ao teatro, José Pereira se mostrou decepcionado com a forma como seu
grupo foi apresentado no programa do projeto Ser(tão) Brasileiro. Eles apareciam como
“Fandangueiros do Paraná”, embora seus nomes também estivessem registrados. José disse
preferia que fossem chamados de “Irmãos Pereira” ou “Família Pereira”, com destaque para o
sobrenome da família. Compreendo que seu incômodo estava relacionado ao fato de saber que
  141

Pereira é um distintivo no contexto do fandango. Também lhe causou desconforto o equívoco


territorial, já que ele, Arnaldo e Laerte residem em São Paulo e, afinal, a correlação com o
Paraná remete ao outro núcleo de fandangueiros da família. Além disso, parece-me que a
reação de José Pereira transpareceu um desejo de projeção elaborado dentro de uma
perspectiva de carreira, onde a demarcação de um nome é elemento essencial para o
reconhecimento da identidade artística.
Acostumada a ver espetáculos que reúnem músicos de caráter profissional com grupos
de tradição popular, surpreendi-me com o formato escolhido para a apresentação. Todos os
quatro músicos do Viola Quebrada e os quatro Pereira permaneceriam simultaneamente em
semicírculo no palco durante toda a apresentação. Normalmente, tal formato só é possível
mediante muitos ensaios ou, como era o caso, quando há grande interação entre os músicos.
Assim, o formato circular da noite anterior foi de certa forma mantido, com a diferença de que
o público fecharia a roda indicada pelo semicírculo dos músicos no palco. Um fechamento
assimétrico, em posições diferenciadas, mas confrontando os dois elementos que constituem
uma performance: audiência e performers.

Figura 42: Passagem de som dos integrantes do Viola Quebrada com a


Família Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa.
  142

Da esquerda para a direita, os músicos se dispuseram no palco da seguinte forma:


Rubens Pires (sanfona/ Viola Quebrada), Margareth Makiolke (voz e violão / Viola
Quebrada), Oswaldo Rios (voz e violão / Viola Quebrada), Rogério Gulin (viola / Viola
Quebrada), José Pereira (rabeca e bandolim / Pereira), Arnaldo Pereira (pandeiro / Pereira),
Laerte Pereira (violão adaptado para fandango / Pereira) e Leonildo Pereira (rabeca e viola /
Pereira). Interessante notar que, no palco, o contato entre os dois grupos se estabeleceu
justamente pelos dois músicos que capitanearam o ensaio da noite anterior, permitindo que
diálogos fossem travados ao longo da execução musical.
Os Pereira estavam vestidos em trajes semelhantes, todos com um mesmo modelo de
camisa pólo vermelha e calça preta. Indagados sobre o motivo do figurino comum, eles
apenas responderam que achavam que ficava melhor para a apresentação. A adoção de
figurino tem sido cada vez mais comum nas configurações do fandango em grupos,
demarcando visualmente um momento novo de elaboração da performance. Em mutirões e
festas comunitárias, quando os músicos se encontram para tocar informalmente, a roupa
utilizada é apenas mais arrumada do que a do cotidiano.

Performance propriamente dita


Durante as duas apresentações, Oswaldo e Gulin assumiram o papel de mestres de
cerimônia, tentando construir uma atmosfera de informalidade e intimidade entre músicos e
platéia. Esse tipo de interação, rara no teatro, é bastante comum no universo musical. A
performance musical pode ser reelaborada e comentada pelos performers ao longo da
apresentação
No primeiro horário de apresentação, cada grupo tocou quatro músicas de seus
repertórios específicos e todos juntos tocaram outras quatro músicas. Nos intervalos entre
cada música, enquanto os Pereira afinavam os instrumentos – por serem de confecção
artesanal a afinação corre com facilidade, demandando ajustes constantes – os dois músicos
do Viola Quebrada falavam sobre o repertório, os compositores e sobre os próprio Pereira,
enaltecendo suas trajetórias e as especificidades do fandango. Também fizeram brincadeiras,
por exemplo, chamando os Pereira de “irmãos afina”.
O fluxo da performance foi determinado pelo jogo cênico entre os dois grupos,
amparado pela alternância de luzes, com foco sobre aqueles que se colocavam em execução.
A opção por todos permanecerem no palco durante a apresentação fazia com que, por vezes,
alguns músicos ficassem inativos durante uma determinada música. O formato, entretanto,
  143

mostrou-se favorável para a interação entre os músicos. A platéia se mantinha sob a


escuridão. Apenas nos momentos de aplausos recebiam alguma iluminação para que os
músicos pudessem ver o público presente.
O formato de palco italiano criou uma separação entre audiência e performers. O
músicos, em posição mais elevada que o público, ofereciam-se simultaneamente à apreciação
e ao julgamento. Estavam em evidência e para eles convergiam todas as atenções, acentuadas
com o jogo de luzes. Já formato semicircular dos músicos, concedeu uma condição de
igualdade entre eles, contribuindo para diminuir a tensão provocada pelos anseios individuais.
Em certa medida, havia uma atmosfera onde todos, de forma relativamente igualitária,
enfatizavam as relações de camaradagem.
A audiência anônima, diferente do público que acompanha as apresentações dos
Pereira nas localidades onde moram, operava como balizadora de seu ingresso num circuito
artístico mais amplo. A receptividade do público podia ser percebida por meio da reação
sonora, os aplausos e assovios nos intervalos de cada música. A intensidade da resposta do
público redesenhava a performance, impulsionando mais ou menos ânimo e dinamismo em
seu fluxo.

Figura 43: Viola Quebrada e Família Pereira no Figura 44: Público do espetáculo no CCBB. São Paulo,
espetáculo “Caipiras e Caiçaras” no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa.
2012. Foto: Joana Corrêa.

Durante a apresentação, notei que em muitos momentos os Pereira inclinavam a


cabeça para cima enquanto executavam seus instrumentos, desviando o olhar do público.
Contudo, tal posição não me pareceu ser fruto de qualquer constrangimento. Ao projetarem
seus olhares para o alto, pareciam estar imersos nas modas que tocavam e cantavam.
  144

Figura 45: José Pereira no Figura 46: Arnaldo Figura 47: Laerte Pereira Figura 48: Leonildo
CCBB. São Paulo, 2012. Pereira no CCBB. São no CCBB. São Paulo, Pereira no CCBB. São
Foto: Joana Corrêa. Paulo, 2012. Foto: Joana 2012. Foto: Joana Corrêa. Paulo, 2012. Foto: Joana
Corrêa. Corrêa.

No palco, José manteve-se introspectivo. Conforme já mencionei, é notório que,


quando se ocupa sua função de artista, sente-se responsável por todos de seu grupo. Durante a
primeira apresentação, ao perceber uma falha na rabeca de Leonildo, José sacou um canivete
e se prontificou a ajustá-la diante do público.
Leonildo foi convidado várias vezes pelos músicos do Viola Quebrada a se
pronunciar. Em geral suas falas enfatizavam o amor, a comunhão, a vida no tempo de Rio dos
Patos e o desejo de manter viva a tradição do fandango. Cativava rapidamente o público
quando enaltecia sua condição de transmissor da tradição herdada de sua família. Nesses
momentos, colocava-se mais um lugar de mestre do que de artista.
Leonildo e Laerte se levantaram em alguns momentos para a demonstração dos
tamanqueados nas modas batidas. Contudo, o efeito visual se sobrepôs ao sonoro, já que eles
haviam esquecido os tamancos e acabaram se apresentando com calçados comuns.

Figura 49: Leonildo e Laerte Pereira fazendo uma demonstração de batidos. São Paulo,
2012. Foto: Joana Corrêa.
  145

Esfriamento
Não pude identificar um procedimento específico de esfriamento tal qual Schechner
observa na performance teatral. Contudo, na saída do palco, percebi uma preocupação dentre
os músicos com relação ao bom resultado e à avaliação do público. Entre um espetáculo e
outro, algumas questões foram revistas, os erros foram comentados e ajustes sugeridos. Por
ser em horário noturno, a segunda apresentação poderia ter uma duração maior e, com isso, no
intervalo da tarde foi acordada a ampliação de repertório.

Figura 50: Viola Quebrada, os Pereira e Mario de


Aratanha, diretor artístico do projeto Ser(tão) Brasil,
no camarim do CCBB, conversando sobre o repertório
da segunda apresentação. São Paulo, 2012.
Foto: Joana Corrêa.

Um dos músicos do Viola Quebrada sugeriu que na última música, as luzes da platéia
fossem acesas e Leonildo me tirasse para dançar, criando um clima de baile e que deixasse o
público à vontade para participar. O combinado foi feito com ares de improviso, mas não teve
os efeitos de mobilização esperados. Contudo, o segundo espetáculo foi encerrado de modo
mais descontraído, com as luzes da platéia acesas e maior intimidade entre público e músicos,
reforçando a proposta do projeto de oferecer uma experiência de deslocamento à sonoridade
que recria a ambiência de um “Brasil rural”.

Desdobramento
O desdobramento de uma performance, como Schechner ressalta, é a fase mais difícil
de ser analisada. No meu caso, tive oportunidade de estabelecer apenas breves diálogos com o
público presente, na banca de venda de CDs e artesanato em madeira montada ao final da
apresentação. Com relação aos Pereira, de um modo geral, os comentários enfatizavam sua
espontaneidade, característica distinta dos comentários sobre o Viola Quebrada, que recaíam
sobre as qualidades artísticas.
  146

Os músicos do Viola Quebrada se mostraram preocupados com a maneira informal


como haviam conduzido as apresentações, com brincadeiras e comentários engraçados sobre
os Pereira. Pareciam receosos sobre como essa postura ecoaria no público em relação à
construção de uma imagem respeitosa sobre os Pereira.

3.6. O fandango como performance

Turner (1974) formula o processo da performance como um momento de


transformação a partir de conceitos de liminaridade e communitas que ganharam abrangência
em sua obra como ferramentas analíticas capazes de abarcar aspectos das sociedades
modernas. No decurso das mudanças sociais que levaram à fragmentação do trabalho, do
lazer e da religião, Turner vislumbra uma reconfiguração do ritual em lugares específicos. Se
antes as múltiplas dimensões da vida humana em sociedade estavam sobrepostas, nas
sociedades modernas cada uma ganha tempo e lugares determinados. Assim o fazer artístico
se descola da vida cotidiana, sendo associado aos momentos de lazer (Dawsey, 2005).
Percebendo paralelos entre a transformação ritual e a potência do fazer artístico,
Turner propõe a noção de liminóide para agrupar os fenômenos performáticos modernos. Tais
fenômenos, diferentemente dos liminares, não são compartilhados por todo conjunto da
sociedade, mas levados a cabo por indivíduos ou grupos artísticos que operam com símbolos
de compartilhamento restrito. São manifestações que têm lugar determinado na vida social.
Nesse sentido, podemos pensar que o fandango vem ganhando cada vez mais contornos dessa
performance moderna formulada por Turner, articulando a memória na produção de novas
experiências. Trata-se de um ato de transformação e produção de realidades a partir de valores
do passado. Sua força está relacionada a uma dimensão de significados acionados e
produzidos na culminância de um processo (Turner, 1987).
A noção de “ser artista” para os Pereira perpassa um sentido de transição. Enquanto
fandangueiros, num sistema de vida comunitária, participavam de um lugar determinado na
estrutura social. Já como artistas, precisam se remodelar na mesma medida em que
reelaboram suas performances. Passam a ocupar um lugar indeterminado e marginal, tanto nas
suas localidades de origem como para um público anônimo que os recepciona, validando ou
não sua nova condição de artistas. Nesse sentido, quando desempenham uma performance
musical no palco, os Pereira assumem às vestes de entes liminares. Despem-se de sua
condição de músicos inseridos em uma dinâmica comunitária, almejando um lugar naquilo
  147

que ainda não são. No palco tornam-se ambíguos e anseiam pela aprovação da audiência que
opera como um mecanismo balizador da estrutura social. A performance é para eles trânsito e
modelagem em uma nova condição.
No contato com o grupo Viola Quebrada, os Pereira vão procurando apreender aquilo
que se espera de um artista profissional. Em contraposição, seus parceiros tentam recriar
simbolicamente uma ambiência que faça com que se sintam mais à vontade nessa nova
condição. Incentivam que eles reportem para a cena do palco algo do que vivem no ambiente
dos sítios, criando, no momento, da performance um “não lugar” e um “não não lugar”
(Schechner, 2011). Entendo que o que público assistiu no espetáculo no CCBB não viu nem
apenas um conjunto de oito músicos sobre um palco e nem mesmo um ambiente tradicional
de encontro entre “caipiras e caiçaras”. O encontro na performance parece acentuar um
deslocamento a uma nova realidade, liminar, em um intercâmbio entre o mundo do fandango
e os circuitos da cultura.
148
 

Capítulo 4 – Marcas e Modas: música, dança e poesia no fandango

 
4.1. Tipos e linguagens

Até aqui me detive aos circuitos diferenciados do mundo social do fandango sem
me debruçar com mais detalhes no compartilhamento de ações e símbolos que definem
os atributos propriamente expressivos do fandango. A experiência etnográfica de
convívio com os fandangueiros aponta para a possibilidade de reconhecermos regras,
funções e simbologias que, ainda que informais e dinâmicas, organizam a dimensão
musical e coreográfica do fandango, bem como posições que podem ser ocupadas nesse
mundo.
Nas conversas com fandangueiros, raramente ouvi uma definição do fandango
que o acomodasse em uma classificação mais abrangente. Quase sempre o identificam
como algo particular que se explica pela ação. Trata-se, para eles, sempre de “fazer
fandango”. Em uma analogia à observação de Evans-Pritchard (2005) sobre a bruxaria
entre os Azande operar como um idioma explanatório, o fandango é em geral definido
em uma exegese do fazer, a partir de seus atributos específicos que se organizam no
fluxo da experiência vivida dos fandangueiros. Quando chamados a explicá-lo, lançam
mão de suas características, como a formação instrumental, as modas ou marcas que
compõem seu repertório, as formas de dançar, as regras de conduta que se deve seguir
em um baile, etc. Os Pereira em geral dizem “vamos fazer um fandango”, sintetizando e
reunindo nessa expressão uma multiplicidade de contextos e sentidos.
Influenciada pela noção de “baile festivo” recorrente entre os folcloristas, iniciei
a pesquisa acreditando que poderia pensar o fandango como uma festa popular. Com
efeito, a dimensão festiva perpassa alguns ambientes de circulação do fandango,
marcados por processos envolventes de preparação e mobilização e pela reverência a
datas e passagens do calendário católico, em especial o Carnaval, a Quaresma e alguns
dias santos a depender da localidade. Os fandangos realizados nos mutirões, em
celebrações religiosas e nos encontros entre grupos e fandangueiros são notadamente
aqueles que acionam uma maior adesão dos participantes. Contudo, diante da
maleabilidade de formatos e da irregularidade de ocorrência, logo percebi que não
poderia me limitar à noção de festa para pensar o mundo social do fandango.

 
149
 

Os Pereira não costumam usar a palavra “baile” para se referir ao fandango, pelo
contrário, demarcam uma distinção. Para eles, bailes são feitos com outros tipos de
música.

Era difícil nós ir em um baile, nós ia no fandango, nós gostava mais do


fandango, porque foi no que nós aprendemos mais. (Randolfo Pereira, em
depoimento à equipe do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Em uma de minhas aulas de rabeca, com o propósito de me explicar o que


seriam as diferentes modas ou marcas de fandango, José fez um paralelo bastante
rentável entre fandango e forró.

Então, dona, é que nem no forró. O forró não tem esses ritmos como xote,
xaxado, baião? Então, o fandango também tem as modas. A chamarrita, o
dandão, a tonta, o anu. Cada um é uma moda que tem um tipo de música, um
tipo de dança. Mas pode fazer várias chamarritas diferentes, vários dandãos,
entende? (José Pereira, anotações do caderno de campo, 2012)

A analogia proposta por José me levou a pensar no fandango como um “gênero”,


termo usualmente empregado para distinguir expressões musicais e coreográficas como
samba, jazz, choro, forró, etc. A noção de gênero, embora abrangente e controversa,
pode ajudar a compreender a singularidade do fandango. Nesses gêneros é possível
identificar subconjuntos rítmicos e melódicos, que por vezes envolvem também
coreografias diferenciadas conforme as especificidades. Contudo, em todos, há sempre
fronteiras indefinidas e permeadas por disputas. No fandango, há uma intensa
variabilidade de sistemas ou tipos, de acordo com as localidades e famílias.

Fui em vários fandangos em Varadouro. Era o mesmo sistema nosso, a


mesma coisa. Os Pereira, os Galdino, os Costa, era o mesmo sistema nosso
de tocar, e cantar, mesma afinação. Eu só vim ver diferente aqui no
Valadares. Aqui eu estranhei quando eu vi as violada, que era diferente da
gente. Inclusive não dava pra tocar junto com eles, junto. É bem difícil tocar
com eles. Eu toco com o Seu Jerônimo, mas eu tenho que saber muito, senão
me perco. Você perde na viola o tocar, o cantar. Agora você pega o meu
irmão, já é diferente. Com Arnoldo, compadre Pedro, Zeca – qualquer um
desses ali - você abriu a boca e [o outro] já sabe o que vai cantar. Então se
torna bem fácil fazer uma música. Bate a mão na viola a gente já sabe o que
vai cantar. Eles aqui [Paranaguá] já é diferente. Eles já tem um tom diferente,
já pega uma viola diferente. (Nemésio Costa, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

O andamento, a coreografia, a afinação dos instrumentos e a estrutura poética


são fatores que distinguem as diversas maneiras de “fazer fandango”. Esse é um tema

 
150
 

caro aos fandangueiros, sobre o qual falam recorrentemente, procurando semelhanças e


demarcando assimetrias.

O fandango antigamente era igual àqueles que eles tocaram ontem [referindo-
se a um fandango ocorrido na Ilha dos Valadares]. Mas aí tocavam mais
marca, mais moda. Mas a dança era o mesmo que em Guaraqueçaba. A dança
deles no Valadares é diferente da nossa. O nosso era do tipo de
Guaraqueçaba. (Urbano Pereira, em depoimento à equipe do Museu Vivo do
Fandango, 2005)

Alguns fandangueiros relatam que, ao participarem na juventude de fandangos


em sítios ou vilas mais distantes, deparavam-se com a impossibilidade de dançar nos
momentos em que eram executadas as modas batidas.

E outra coisa, nunca dá certo fandangueiro daqui, com fandangueiro de Rio


dos Patos, a pausa, o modo de tocar e de dançar, já tem diferença, de cantoria,
de tudo. Do Tibicanga é outro tipo também, quando tinha, porque hoje não
tem mais no Tibicanga. Nas Peças também era afamado. Tinha muito violeiro
bom. Na Ilha do Mel tinha uns violeiros afamados. E nessas outras partes
mais. A parte mais popular e mais caprichada era no Superagüi, eu acho que
o Superagüi bate recorde de fandango por aí, do que eu tenha visto. (José
Esquenine, fandangueiro de Superagui, em depoimento à equipe do Museu
Vivo do Fandango, 2005)

Trata-se de um aspecto interessante, pois justamente indica o quanto esses


ambientes pensamos como tradicionais, no que tange a noção de cultura popular, são
justamente os que envolvem maior variabilidade, frutificada em um processo constante
de reelaboração criativa. Não há neles uma forma canônica e única.
Quando participei das gravações do Museu Vivo do Fandango, em 2005,
recorrentemente alguns fandangueiros e músicos tentavam nos convencer de que seu
modo de tocar e dançar seria o “verdadeiro” fandango.

Eu acho que isso aí não é fandango. Porque no tempo que e tinha idade de
dançar fandango é muito diferente de agora. Agora tão dançando um
fandango mesma coisa que estão dançando no baile. O fandango é muito
diferente. Porque meu pai dançava fandango, eu via quando ele dançava, mas
é muito diferente desses fandangos que faz. Agora a turma do Nilo [Família
Pereira] dança fandango. Esses dançam fandango mesmo. Mas os de lá [de
Paranaguá] dançam muito cheios de coisarada, roupa muito... eu já vi eles
dançarem assim. (Jurema Cardoso Batista, integrante do grupo Família
Pereira, em depoimento à equipe do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Algumas vezes essa questão aparecia por acreditarem que estaríamos fazendo
um trabalho seletivo de grupos ou fandangueiros, mas se tornava menos relevante na

 
151
 

medida em que compreendiam que nosso real intuito era abarcar um conjunto sonoro
abrangente. Durante o trabalho de campo, não voltei a perceber esse tema da diferença
de tipos e sistemas ser recolocado sob a forma de disputa. Nas conversas que tive com
José, Leonildo, João Alves, Isidoro e Salvador Neves e também com Aorélio
Domingues, do grupo Mandicuéra, de Paranaguá, as variações e aproximações foram
tratadas com um sentido agregador de valor ao fandango. Ou seja, embora acentuem e
valorizem suas especificidades, os fandangueiros reconhecem padrões sonoros e
gestuais similares.
Blacking propõe a categoria “grupo sonoro” para reunir analiticamente “um
grupo de pessoas que compartilha uma linguagem musical comum, junto com idéias
comuns sobre a música e seus usos” (Blacking, 2007, p.208) e de “grupos de corpo”
para “pessoas que compartilham uma linguagem comum do corpo, com ideais em
comum, posturas, gestos e padrões de comunicação não verbal” (Blacking, 1984, p. 10).
Em ambos os casos, o autor sugere a formação de um mesmo “sistema modelar
primário”62. Assim, é possível pensar o fandango como algo que engloba um grupo
sonoro e de corpo expandido, onde som/música e movimento/dança devem ser
compreendidos como linguagens articuladas na forma de gestos, melodias e ritmos. No
fandango, na medida em que se amplia a convivência, tais linguagens tendem a se
aproximar e alargar o compartilhamento de padrões gestuais e sonoros. José Pereira,
assim como a maior parte fandangueiros, consegue transitar entre diferentes sistemas.
Sua capacidade de apreender tipos diversos daquele que conheceu com sua família o
permite, por exemplo, tocar com a Família Neves.
Embora dança e música tenham uma ligação profunda no fandango, esta guarda
certa autonomia em relação àquela. Identificamos algumas sociabilidades específicas
tecidas pelo viés musical, como o aprendizado familiar e o encontro entre camaradas. A
formação de grupos criou ainda novos ambientes de trânsito onde o aspecto musical do
fandango se destaca, como em algumas apresentações e na produção de registros
sonoros em CD. Diferentemente da perspectiva do folclorismo, que em geral enfatiza a
dança como viés de classificação do fandango no mapa cultural brasileiro, percebo que
o elemento musical ganhou autonomia, mais expressivamente no estado de São Paulo,
onde grupos fandangueiros são formados apenas por tocadores. Todavia, a dança

                                                                                                               
62
Travassos (2007) destaca que a definição de Blacking para Etnomusicologia propõe que música e dança
sejam pensadas de forma integrada.

 
152
 

continua sendo uma linguagem essencial que completa a força simbólica do fandango,
principalmente em contextos que acionam sua dimensão festiva e ritual.
A linguagem poética é um terceiro elemento presente nesse sistema, na medida
em que as músicas são cantadas. A maneira de compor a poesia e os temas que abordam
também sugerem compartilhamentos de padrões, memórias e visões de mundo. Para
uma reflexão sobre o fandango como um conjunto expressivo, portanto, é necessário
atentar para tríade “música–dança–poesia” ou “sonoridade-gestual-palavra” como
elementos cognitivos e sensoriais que agregam valores, conhecimentos e
posicionamentos nesse mundo social.

4.2. Moda

Moda é uma categoria classificatória elementar para o fandango dos Pereira.


Trata-se de uma palavra polissêmica: pode ser usada quando se referem a uma única
música (“vou tocar uma moda”, expressão que em muito se aproxima das ‘modas de
viola’ que estruturam a música caipira), para diferenciar os subconjuntos músico-
coreográficos do fandango como chamarrita, dandão, anu, sinsará, sinsará, tonta etc
(“anu é uma moda, tonta já é outra moda”)63 ou ainda em referência aos versos que se
repetem como um refrão (“dandão tem moda”). A abrangência semântica da noção de
moda guarda em si, portanto, a conjunção sentidos que indicam as linguagens basilares
do fandango: música, dança e poesia.
Com relação ao segundo sentido mencionado, os tipos de moda são organizados
em dois grandes conjuntos que se distinguem pela forma de dançar: os valsados,
dançados em pares unidos que transitam livremente pelo salão, e os batidos, com os
pares soltos, unidos em roda, e com os homens fazendo uso de tamancos. Os
fandangueiros concordam em afirmar que as modas batidas e valsadas devem ser
intercaladas, porém em várias localidades, onde hoje poucos sabem dançar os batidos,
os valsados predominam. Ou seja, embora haja uma regra básica consensual de
intercalação e que os músicos tenham preponderância na definição da escolha das
modas, quando há dança no fandango, a receptividade e o ânimo dos que dançam têm
influência determinante na sequência de modas. Em formatos de apresentação do
fandango para platéias que não dançam e apenas assistem, os Pereira também não
seguem necessariamente tal regra.

                                                                                                               
63
Em Paranaguá se usa a palavra “marca”para esse sentido.

 
153
 

Valsados: chamarrita e dandão64

Chamarrita e dandão são as modas mais populares tocadas no fandango, pois


mobilizam um maior numero de dançadores, já que são as mais fáceis de dançar. Em
Paranaguá são conhecidas como “limpa banco”, pois ninguém fica sentado.
No que tange à dança, a coreografia de ambas as modas é semelhante.
Cavalheiro e dama se posicionam frente a frente, com uma das mãos unidas. A dama
recosta sua outra mão em um dos ombros do cavalheiro e ele, por sua vez, apóia sua
outra mão nas costas da dama. De um modo geral, os corpos se mantêm afastados,
unidos apenas pelos braços, indicando certa evitação de contato. O cavalheiro conduz o
movimento, que consiste em dois passos no mesmo sentido, o primeiro mais longo e o
segundo curto, finalizado com um breve volteio que aponta um novo sentido. Os pares
podem se manter em uma pequena área ou movimentar-se pelo salão, o que é mais
comum.
Por mais formal que seja a dança, uma intimidade se estabelece no entrosamento
rítmico dos pares. A sensualidade do fandango é algo muito sutil. Contudo, na dança, o
respeito entre os elementos do par é notório e confere uma rara sensação de conforto
para as damas, que quase sempre se sentem à vontade para dançar com qualquer
cavalheiro, à exceção daqueles que já exageraram na bebida e ficaram “torrados”.

As meninas só que não podiam dançar com os muito torrados, com gente
muito tonto. Mas também não podia fazer desfeita pra mais ninguém,
qualquer velhinho, qualquer feio, qualquer preto ou branco. Ia tirar, tinha que
vir dançar com o fulano, senão o pai vinha de lá e não dançava mais. Senão o
pai vinha de lá dizia pra ela não dançar mais a noite. O resto da noite inteira
ela não dançava mais. Era a lei. Meio perigoso (risos) Não dançava nenhuma
música. De manhã arrumava aí ia embora e não dançava mesmo nunca mais
naquele fandango, no baile. (José Pereira, em depoimento à Daniella
Gramani, 2008)

O espaço reservado à dança, em geral posicionado na área central de um


ambiente onde um fandango é realizado, esvazia-se rapidamente logo após a pausa
instrumental que indica o fim de cada moda. Em seguida, quando uma nova moda se
inicia, o salão volta a ser preenchido de forma gradual por novos pares que se formam,
em uma dinâmica de constante recombinação, que me parece enfatizar o sentido da
despedida tão presente nos versos. A cada moda que se encerra é hora da despedida e o
                                                                                                               
64
A grafia das modas pode variar. Chamarrita aparece eventualmente como chimarrita, acompanhando a
pronúncia de muitos fandangueiros. Dandão pode aparecer também como dondom.

 
154
 

par deve se separar. Trata-se de uma regra que se manteve nos mais diferentes
fandangos dos quais já participei. Durante um fandango, a interação entre os
participantes é muito intensa. Os pares se agregam e se desfazem a cada nova moda,
sendo possível que todos os cavaleiros dancem com todas as damas. Assim, mais uma
vez, podemos pensar na despedida como algo que guarda também a possibilidade de
convivência ampla.

Assim era o fandango também de dançar o batido. Quem não dançasse a


rodada não ia dançar mais nada, só se sobrasse dama lá. Em compensação
aquele que saiu ali aquele já tinha o par dele. Se o camarada fosse lá pra e
fossem tirar aquela dama que tava apartado já, ia briga já na hora. Era briga
feita. Mas ninguém fazia já porque tudo sabia, respeitava. Às vezes aquele
que dançava dizia “pode dançar”. E era em outra parte, deixava dançar, dizia
“pode dançar” com a minha dama, quer dizer era assim. Tinha licença. E
também os homens casado com a sua mulher. Ninguém dançava com a
mulher de qualquer um sem pedir licença pro homem. “O senhor de licença
pra eu dançar aí.” “Ah, pode ir”. Era assim, chegar lá no fulano pedir licença
pra ela ir tirar a dama. Se ele tirasse sem pedir, tava feira outra briga. (José
Pereira, depoimento gravado por Daniella Gramani, 2008)

Os pares se formam predominantemente por iniciativa do cavalheiro, que


convida a dama para dançar com um simples olhar ou um gesto bem discreto com a
cabeça ou as mãos. É raro uma mulher tirar um homem para dançar, apesar de já ter
presenciado, e até mesmo protagonizado, algumas situações.
Os Pereira costumam manter um semblante de seriedade enquanto dançam, seja
em contextos festivos ou em apresentações, fixando o olhar no infinito. Entre as
mulheres, é comum que olhem para o chão, diferentemente das dançadoras de outros
grupos, como Mandicuéra e Grupo Folclórico Mestre Romão, que sorriem e dirigem
seus olhares ao público enquanto dançam.
Com relação aos aspectos poéticos e musicais, conhecedores da linguagem do
fandango identificam com facilidade um dandão ou uma chamarrita tão logo a moda se
inicie. Segundo Leonildo e Aorélio Domingues, no fandango dos Pereira e também em
Paranaguá, um dos aspectos fundamentais que as diferenciam é que “dandão tem moda
e a chamarrita é só verso-toada”.

O pessoal do Marujá [Família Neves], na chamarrita deles tem moda. É, eu já


vi, estava arreparando. Nós [Pereira], não. Nós não cantamos moda na
chamarrita, que nem eles aqui [em Paranaguá], também não cantam. Nós
[Pereira] separamos chamarrita e dandão. Nós é verso-toada na chamarrita,
igual deles aqui [em Paranaguá]. E o nosso também é moda no dandão e que
nem deles aqui, também é moda no dandão. Agora, eles lá no Marujá não,

 
155
 

eles tiram moda na chamarrita, na chamarrita mesmo (Leonildo Pereira,


caderno de campo, 2012)

De acordo com eles, a moda seria a letra fixa e conhecida e o verso é colocado
na hora, de memória. Segundo Aorélio Domingues, “a toada já seria a melodia”. A
forma com que poesia e música estão imbricados faz com que muitas vezes essa
explicação se complique. José e Arnaldo Pereira me disseram que “toada é o verso que
se inventa”. Para Nemésio Costa, que compartilha esse mesmo sistema dos Pereira, a
“chamarrita não tem moda, você que inventa. Os versos que a gente canta são a toada.
Você tem só a música, mas a letra é a gente que tira da cabeça. O dandão não, o dandão
tem a música e a letra.” (Nemésio Costa, Paranaguá, PR).
No sistema dos Pereira, em uma chamarrita, é a toada que puxa os versos
entoados pelo violeiro, numa relação entre invenção – na medida em que se definem
durante a execução musical – e memória – já que associados a um repertório poético
amplamente compartilhado.

O verso não é que a gente faça, entende? O verso que eu canto, a gente
inventa, conforme a natureza que faz talvez aquilo. (...) Então é mesma coisa
de eu, qualquer outro de nós, ele pega na viola e vai tocar, conforme ele vai
cantando, aquele verso vem vindo na memória dele. Não é que a pessoa seja
poeta, aquilo a pessoa já tem de natureza. São coisas que a gente sabe, já tem
na cabeça, assim, por exemplo, quando a gente está com a viola tocando, o
verso vem. (Arnaldo Mandira, Cananeia, SP)

Gonçalves, em uma análise do Cordel no Ceará, identificou esse aspecto na


poesia popular. Segundo o autor, “a memória não é para aquele que memoriza um texto
apenas como uma capacidade de guardar ou de reter algo, mas, sobretudo, no sentido
nativo, significa ‘poder criador, imaginação, talento poético’” (Gonçalves, 2011, p.224).
A memória não seria, portanto, repetição, mas uma capacidade de criação que se ampara
no compartilhamento de um repertório poético.
Arnaldo me esclareceu que nos dandãos há também versos feitos pelo cantador
entre a moda, que seria como um ‘refrão’, pois se repete, enquanto “a toada é sem
moda, só verso”. Analisando as modas gravadas pela família Pereira no CD Viola
Fandangueira, em quase todos os dandãos registrados há uma longa estrofe que se
repete.
Dondom (avião no estrangeiro)
Eu estava na minha roça, meu bem
Eu estava trabalhando, meu bem
Escutei uma zoada, meu bem

 
156
 

Que pro ar ia voando


É o avião no estrangeiro
Oi lai, meu bem
Que ia pro Rio de Janeiro

Dondom (uma noite ao luar)


Eu estava conversando
Lá no terreiro
Numa noite de luar
No mês de janeiro
A respeito d’um fandanguinho
Com o meu amor
No baile que ela não vai
Eu também não vou

Dondom (mulata faceira)


Já te namorei
Já fui teu namorado
Já moramos juntos
Eu já fui teu criado
Minha menina bonita
Não me trata de enganar
Mulata faceira do cabelo ondado

Dondom (pó-de-arroz)
Menina, te quero bem
Mas vou te deixar
O nosso amor não tem jeito
É melhor largar
Eu era para te falar
Mas não te falei
Era para dar pó de arroz
Mas não dei
Nunca vi quem tem amor
Que não tem saudade
Mas não chora
Por seu bem que vai embora
(Exemplos de modas de dandãos registrados pela Família Pereira, no CD
Viola Fandangueira, 2002)

Há também dandãos em que a repetição ocorre sempre nos últimos versos das
estrofes melódicas.

Dandão (Vem cá, morena)

[versos]
Eu aqui c’o camarada, vem cá, vem cá
Nós juntos sempre cantamos, vem cá, vem cá
[moda]
Vem cá, morena
To te chamando
Se queres ser meu amor, vem cá, vem cá

[versos]
Viva o cravo e viva a rosa, vem cá, vem cá
Que nos hoje se ajuntamo, vem cá, vem cá

 
157
 

[moda]
Vem cá, morena
To te chamando
Se queres ser meu amor, vem cá, vem cá

[versos]
Abaixai-vos o limoeiro, vem cá, vem cá
Que eu quero quatro limão, vem cá, vem cá
[moda]
idem

[versos]
Eu quero de dar uma rosa, vem cá, vem cá
Que tenho no coração, vem cá, vem cá
[moda]
idem

[versos]
Vamos dar a despedida, vem cá, vem cá
Cuitelinho do jardim, vem cá, vem cá
[moda]
idem

[versos]
Foi ele que me ensinou, vem cá, vem cá
Eu me despedir assim, vem cá, vem cá
[moda]
idem
(Registrado por Anoldo Dias da Costa e Nemésio Costa no CD Museu Vivo
do Fandango, 2006)

Quase todos os dandãos são identificados por um nome extraído de trecho da


própria moda que destaca a temática central abordada. Esse nome é usado pelos
tocadores no momento da execução musical e também pelos dançadores para solicitar
um dandão específico, ou ainda uma chamarrita, quando esta tem moda. As modas dos
dandãos tecem breves narrativas de situações cotidianas, eventos, questões amorosas ou
algum aspecto crítico da vida social.

Essa compra de palmito


Tá pior que um cativeiro
Quem tira não ganha nada
Quem compra ganha dinheiro
Essa compra de palmito
Não dá nada para ninguém
Quem tira não ganha nada
Quem compra dinheiro tem
Essa compra de palmito é melhor se acabar
Que o povo se desengana
Na lavoura vai cuidar
(Dandão registrado por Arnaldo e José Pereira no CD Museu Vivo do
Fandango, 2006)

 
158
 

Diferentemente da moda, os versos que são feitos ou puxados pelos cantadores –


nas chamarritas, nos entremeios de dandãos e também em vários batidos – raramente
convergem para o mesmo sentido, formando pequenas unidades poéticas, com métricas
equivalentes, que se combinam em uma mesma música.
Para os Pereira, a capacidade de cantar versos é um atributo bastante valorizado.
Segundo Arnaldo, “se você souber fazer verso, você canta a noite toda, sem cantar essas
modas”. José chamou minha atenção para a possibilidade de adaptar os versos às
diferentes modas65, seja nas chamarritas, nos dandãos ou mesmo nos batidos, seguindo
a toada. Por exemplo, os versos “cantemos meus camarada/ cantemos, nós dois
juntinhos” aparecem no dandão Mulata Faceira e em uma tiraninha no CD Viola
Fandangueira. Trata-se de um aspecto relevante, pois me fez pensar em um sistema de
combinação entre versos e modas que guarda similaridades com a regra de intensa
permuta entre cavalheiros e damas e também com a constante troca de instrumentos
entre tocadores.
No que tange aos atributos sonoros que diferenciam chamarritas e dandãos,
adentramos uma seara mais complexa. Embora os fandangueiros reconheçam o tipo de
moda nos primeiros momentos da execução musical e a ampla nomenclatura das modas
defina por si só um sistema próprio de classificação, não identifiquei termos que
expressem verbalmente tais distinções. Blacking destaca que há um elemento paradoxal
na análise musical, já que é necessária uma linguagem verbal para abordar algo
essencialmente não verbal, o que implica, para o autor, em pensar a ‘música, como
“uma verdade indecifrável e o discurso sobre ela pertence ao domínio da metafísica”.
(Blacking, 2007, p. 203)
Por outro lado, uma análise musicológica seguindo as convenções da notação
padrão da música ocidental me colocaria defronte dois novos problemas: minha própria
limitação no que diz respeito ao conhecimento da linguagem de transcrição e
codificação musical e, mais relevante, é o fato de essa linguagem não vigorar na
tradição do fandango, já que o aprendizado musical é de ouvido e por observação.
Gramani (2009), em sua dissertação sobre o processo cognitivo de aprendizado
da rabeca entre os Pereira, destaca suas dificuldades em descrever a sonoridade do
fandango já que “as ferramentas de análise da música erudita e da música popular se
mostram inadequadas para uma tentativa de análise da música tradicional devido a
                                                                                                               
65
Cabe destacar que aqui estou retomando o segundo sentido de moda apresentado, i.e. a moda como
música.

 
159
 

diferenças de natureza entre estas categorias musicais.” (p.45). Em que pesem tais
limitações, ela procura perceber, com ferramentas diversas, diferenças entre chamarritas
e dandãos tocados pelos Pereira a partir de seis modas registradas no CD Viola
Fandangueira, chegando, sumariamente, às seguintes considerações:

1) No dandão, há a presença da síncopa;


2) Nas chamarritas, há um número menor de notas por compasso do que nos
dandão;
3) Nos dandãos, os acordes de tônica e dominante são alternados a cada
compasso e nas chamarritas isso ocorre a cada dois compassos, sendo assim,
no dandão, o ritmo harmônico é mais rápido que o da chamarrita;
4) As chamarritas não possuem refrão e os dandão, sim.
(Gramani, 2009, p.54)

Batidos – anu, sinsará, tonta, queromana, feliz etc

Essas modas tudo eu sei. As modas valsadas que eles deixaram muito hoje,
agora moda batida não se esquece. Não esqueço, sempre fica na cabeça. O
camarada pede a gente já canta. (Leonildo Pereira, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Os de hoje não sabem nem das três partes do fandango. Eu me lembro que
tinha a tonta, queromana, sinsará, uma que chama… feliz, caloado,
andorinha, pega fogo, tiraninha, aquele outro... tinha estrala, anu, por tudo aí.
(Alzira Coelho, esposa de Julino Pereira, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

As modas batidas são as que envolvem coreografias mais complexas com


variações no movimento de acordo com o tipo. O círculo aparece como forma elementar
nas modas batidas feitas pelos Pereira. Os batidos sempre são iniciados com uma roda
formada por cavalheiros e damas intercalados, que giram todos no mesmo sentido, em
geral anti-horário.
A formação da roda pode se constituir de diferentes maneiras. Já presenciei
situações em que cavalheiros e damas se posicionam por iniciativa própria, outras em
que os cavalheiros convidam as damas para dançar e, ainda, em que o par formado no
valsado segue junto no batido seguinte.

Ah, mudou muito, que primeiro o fandango era um batido de tamanco e um


valsado. E a moça que saía no porto da gente na roda do batido, a gente tinha
que dançar com aquela moça ou mulher, qualquer coisa. Aquele que não
saísse no porto da gente a gente não dançava com ela. Não saísse na frente da
gente, a gente não dançava, a que saísse no porto da gente, na roda de
fandango, aquela ia, aquela que ia dança com ele... Queromana, anu, sinsará,
tudo. E lá tinha um lugar que aquele que num dançasse com as mulher, com a
mãe daquelas filha dela, também as fia dela num dançava nenhuma, não

 
160
 

podia dançá, tinha que dançá, tinha que dançá com a veia primeiro, pra
depois dança co’as moça. (Julino Pereira, Apud: Marchi, Corrêa & Saenger,
2002, p. 296-297)

A roda começa a girar quando há pares suficientes formados. É consensual que o


número mínimo ideal é de quatro pares para que todas as coreografias possam ser
plenamente realizadas, contudo, na apresentação do projeto Rabequeiros, os Pereira
dançaram os batidos com apenas dois pares, já que havia limitação de viajantes, e no
espetáculo Caipiras e Caiçaras, Leonildo e Laerte fizeram algumas demonstrações dos
batidos sem a presença de damas
A variedade de modas é um tema controverso. Em geral os fandangueiros citam
e comentam uma quantidade superior àquelas que de fato executam. Uma vez que há
muitos movimentos similares, a explicação verbal é de difícil codificação. Contudo, é
possível perceber alguns padrões. Langer (2003) destaca que a dança é um lugar de
intensa organização de movimentos, a partir da escolha e ordenação de gestos para a
produção de sentidos que não são facilmente acessíveis pela razão. É possível
identificar um gestual nos batidos a partir da lógica que combina circularidade e
permuta de pares, formando um conjunto bastante harmônico e ordenado.
Conforme já salientado por Azevedo (1975; 1978), o movimento de um “oito” é
bastante característico do fandango e também aparece em várias modas dançadas pelos
Pereira, como no sinsará, no anu e na tonta. Ao descrever o anu, Arnaldo me falou que
os cavalheiros devem ficar parados e as mulheres giram entorno de dois cavalheiros,
primeiro o que está à sua frente e, em seguida, o que está logo atrás, voltando ao final
para a mesma posição inicial.

Figura 49: Esquema coreográfico da dança do fandango


Fonte: AZEVEDO, 1978, p.08. Apud: GRAMANI, 2009, p.26

 
161
 

Um outro tipo de volteio que aparece nas coreografias é o da mulher no seu


próprio eixo. Na queromana, o homem parado gira a mulher em seu próprio eixo, com
uma de suas mãos dadas a ela sobre a cabeça dela.
No sinsará, há momentos em que a roda é quebrada e os pares se unem em
passos de valsado, com apenas uma das mãos unidas aproximadamente na altura da
cabeça.
Uma dimensão enriquecedora é pensar os pares, sempre presentes tanto nos
valsados como nos batidos, a partir do entendimento da díade66 como unidade mínima
dos processos associativos, que Simmel (1950) propõe ao formular sobre as
consequências sociológicas de certos números específicos. As díades como unidades
associativas para a formação da dança do fandango só fazem sentido pensando no
contexto coletivo, que depende dos pares para preencher o salão e formar a roda. Assim,
avanço com o autor nessa compreensão da díade em ação dentro contextos sociais
numerosos: “a tensão peculiar entre elementos dualísticos em uma grande estrutura
garante a função status quo de uma díade. (...) A fusão em unidade poderia facilmente
resultar na predominância de um indivíduo, e na expansão a uma pluralidade, em um
grupo oligárquico fechado.” (Simmel, 1950, p.140). Vislumbro, portanto, esse aspecto
ambíguo dos pares, que apontam simultaneamente para a permuta e a estabilidade,
garantindo harmonia e ordem a um conjunto que se constitui por múltiplas conexões.
Por outro lado, cabe lembrar que os papéis desempenhados pelo cavalheiro e
pela dama são distintos, em especial nas modas batidas. Gonçalves (2010), em seu
estudo sobre o casais de mestre sala e porta-bandeiras das escolas de samba, chama a
atenção para a complementaridade representada pelo homem e pela mulher na dança.
No fandango essas diferenças também convergem para composição de gestos onde os
movimentos dos cavalheiros se dividem entre o cortejo (nos volteios) e a força
(tamanqueados) e os da mulher acentuam a graciosidade e o recolhimento.

Porque as mulheres batendo tamanco e os homens também não fica ornado. Como
pode ficar dividido as mulher dos homem? Não tem como. Tem que ficar as mulher
parada e os homens batendo – antes falavam cavalheiro, os homens era cavalheiro e
as mulheres, dama. Então tinha que separar as damas dos cavaleiros, tinha que só a
mulher ficar parada e os homens batendo. Que nem pra arrodear... Pra arrodear a
mulher que se arrodeia, o homem só fica ali parado, porque se os homem sair

                                                                                                               
66
Simmel afirma que a relação entre dois elementos é a formação sociológica mais simples. Segundo o
autor “as relações a dois se caracterizam por não formar unidades superiores aos próprios indivíduos, ao
passo que quanto mais extensa uma comunidade mais facilmente se formará uma unidade objetiva acima
dos indivíduos.” (Simmel, 1950, p.127).

 
162
 

rodeando também, se atrapalha tudo. (Bernardina Pereira, em depoimento à equipe


de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Com relação ao tamanqueado, em geral é feito de forma intercalada aos


movimentos dos pares que envolvem desenhos coreográficos mais complexos.
Enquanto a roda gira, o movimento do corpo dos cavalheiros produz o som percussivo.
Os cavalheiros usam os dois pés para fazer as marcações, entremeando uma ou duas
batidas de cada lado. Em geral, tamanqueiam com o tronco levemente inclinado para a
frente, levantando as pernas para traz para fazerem o batido com o calcanhar. Fazem
também movimentos mais curtos em que os pés vão apenas para cima e para baixo,
produzindo um som ainda mais potente. O volume mais alto é obtido quando dão
pequenos saltos batendo simultaneamente os dois tamancos no solo.

Tamanco tem que ser de laranjeira. Porque ele dá som. A madeira, por exemplo,
quando é assim fraca, como esse pinus, bateu, a gente fala choco, que dizem. Ele
não dá aquele som. E a laranjeira, ela é uma madeira muito forte. Bate, ela dá o som.
Eu fiz de laranjeira, mandei furar aqui do lado e pus chumbo! (Seme Balduíno, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Os tamancos são feitos de madeira rígida para que possam ser impulsionados
com força contra o piso. Os Pereira usam uma tira de borracha para fixar a sola aos pés.

Figura 52: Tamancos confeccionados por Leonildo Pereira.


Guaraqueçaba, 2002. Foto: Alexandre Pimentel.

O piso ideal para dançar os batidos é a madeira. Nas construções populares


tradicionais na região, a elevação do piso de madeira do solo provoca um potente efeito

 
163
 

sonoro. Notoriamente no Paraná, é comum, em encontros de fandango, festas e


apresentações, a montagem de um tablado de madeira na área reservada à dança. O som,
portanto, produzido pelo tamanqueado tem preferencialmente efeito de madeira contra
madeira.
Todos os cavalheiros devem tamanquear no mesmo ritmo, que varia de acordo
com os tipos de modas. Anu é a marca onde os tamancos soam por mais tempo, sendo
complementados pelo som de palmas nas breves pausas do tamanqueado. Não à toa, é
uma das modas batidas com maior efeito sonoro, animando o fandango. Os Pereira
gostam muito de fazer o anu e costumam iniciar os batidos com essa moda.
Podemos pensar o batido dos tamancos como um elemento de forte mediação
entre música e dança, sendo executados com grande efeito rítmico nos entremeios dos
versos. A intensidade e a precisão rítmica são pautadas pela música e pelo domínio do
movimento. Nos batidos, entra a figura do mestre de roda (também conhecido como
marcador, em Paranaguá, puxador, ou somente mestre, como normalmente os Pereira a
se referem a essa função) que assume a liderança do tamanqueado para que os outros
cavalheiros persigam seus movimentos, criando um resultado sonoro mais preciso. É
necessário dominar simultaneamente as linguagens do som e da dança para ser um bom
mestre. Aqueles que são reconhecidamente aptos podem desempenhar a função, o que
permite que em um fandango vários dançadores possam momentaneamente assumir a
liderança67 da marcação ritmocoreográfica dos batidos.

Tudo era mestre. Ali na roda pode tá cinco mestres, mas só um é mestre, só um que
começa. A hora de bater, só um mestre que começa, e os outros mestres vai atrás, e
quem não sabe também vai no mesmo caminho. Só um bate primeiro (Agostinho
Gomes, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

A dimensão visual da dança é acentuada nas modas batidas de fandango. De


acordo com Cavalcanti (2002), em análise comparativa dos desfiles das escolas de
samba cariocas com o festival dos Bois-bumbás de Parintins, o fluxo das performances
rituais articula uma percepção visual que, “ao implicar uma certa relação entre tempo e
espaço, traz informações cognitivas importantes” (Cavalcanti, 2002, p.52). No caso do
fandango, essa visualidade não é restrita às apresentações de grupos, pois mesmo em
um contexto festivo, durante a execução dos batidos se estabelece uma divisão
                                                                                                               
67
Evans-Pritchard ressalta a função da liderança em um artigo sobre a dança da cerveja dos Azande: “a
dança, como quaisquer atividades coletivas, gera necessariamente liderança, que tem como função
organizar a atividade” (EVANS-PRITCHARD, 1928, p.13).

 
164
 

momentânea entre os participantes do fandango. Quem não entra na roda para dançar,
torna-se espectador, uma vez que esse fluxo tem grande apelo visual. Nos batidos,
portanto, o desafio pessoal da qualidade da performance se intensifica. Não podemos
perder de vista que dançar é uma técnica do corpo (MAUSS, 2003). A boa performance
é aquela em que a técnica já foi tão intensamente corporificada a ponto de simular uma
naturalidade aos olhos de quem assiste. O conhecimento técnico da dança precisa estar
acima de tudo no próprio corpo.
Muitos fandangueiros relatam que, nos fandangos de sítio, errar os passos da
dança era algo inaceitável. As crianças eram criadas entre fandangos para se arriscarem
nos batidos somente na juventude avançada e, portanto, o domínio técnico era sempre
esperado. O erro, contudo, só se mostra como um problema durante a execução dos
batidos. Em um valsado, o equívoco passa desapercebido, pois o fluxo da dança não
carece da precisão coletiva. Quem entra na roda do batido deve estar seguro para dançar
com fluidez, pois as falhas dos dançadores reduzem a força expressiva da performance,
impactando negativamente o sentido visual, e também o auditivo, quando o erro
também promove o descompasso do ritmo dos tamancos. No conjunto das danças, os
batidos emergem como o lugar de expressão por excelência de uma imagem de
coletividade moral e parecem ocupar lugar de proeminência simbólica na definição do
“ser fandangueiro”.
Com relação à poética, os batidos seguem o mesmo sistema de moda-verso-
toada: algumas apresentam moda e outras, apenas verso-toada. Na maior parte dos
casos, as modas batidas trazem em suas letras alguma referência ao tipo de moda.

[anu]
O anu é pássaro preto
Passarinho de verão, ai

[sinsará]
Encontrei com o sinsará
Na beira do mar chorando
Por causa de uma conchinha
Que a maré ia levando
Sinsará ficou chorando
Por causa de uma conchinha
Que a maré ia levando
Sinsará ficou chorando

(Registrados pela Família Pereira no CD Viola Fandangueira, 2002)

[graciosa]
Se quiser estudar verso
Na fonte da graciosa

 
165
 

Leve o seu lencinho branco


Cheio de botão de rosa

(Registrados por Vicente França no CD Museu Vivo do Fandango, 2006)

Algumas fazem referência também ao movimento da dança, por vezes


destacando o sentido de aproximação e despedida.

[tonta]
Menina passai a tonta
Com seu vestido de godê
Depois da tonta passada
Deixa o mundo correr.
(Cantado por Narcinda Amorim Lopes, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)

[queromana]
Queromana vou e volto
Quero saber de quem amo
Quero saber de quem amo
Que dos outros não me importo

[tonta]
Menina passai a tonta
Passai ligeiro que eu tenho pressa
Onde tem moça bonita
Moça feia não conversa
(Registrados pela Família Pereira no CD Viola Fandangueira, 2002)

4.3. Indumentária

No nosso tempo nós dançava assim fantasiado, como eles dançam, com aquelas
saias bem rodadas, blusa de uma cor, saia de outra cor e tudo assim uma parte
branca, outra parte azul, outra parte verde, mas saia só do carnaval. É que nós fazia
fantasia, mas tirando o carnaval nós dançava com roupa comum, saia de qualquer
jeito, blusa de qualquer jeito. Agora pintura não se usava. Toda vida não usei batom.
(Narcinda Amorim Lopes, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, 2005)

O processo de formação de grupos de fandango introduziu a adoção de uma


indumentária específica somente nos contextos de apresentação. Em geral os tocadores
adotam um figurino simples, optando apenas por modelos comuns de camisas
monocromáticas. Já os dançadores, especialmente as mulheres, optam por figurinos
mais elaborados, acentuando ainda mais a dimensão visual da dança. Minha
convivência com os grupos me permite identificar três tendências predominantes:

(i) Grupos integrados por jovens dançadores do Paraná, como o Grupo


Folclórico Mestre Romão e Grupo de Fandango Professora Helmosa, as damas

 
166
 

usam roupas de tecidos exuberantes que se assemelham aos das prendas


gaúchas, com saias rodadas, cores vibrantes e estampados com flores. Grandes
arranjos florais nos cabelos e forte maquiagem também aparecem como regra
geral.
(ii) Grupos compostos por com dançadoras adultas ou idosas que enfatizam o
aspecto tradicional do fandango, como Pés de Ouro e Família Pereira,
reinterpretam a exuberância das prendas, com cores homogêneas, porém
mantendo as saias longas rodadas e mangas bufantes.
(iii) Grupos que se identificam com a afirmação da identidade caiçara, como
Jovens da Jureia e Mandicuéra, preferem trajes mais simples remontando um
vestuário de fandango dos sítios, com floridos mais simples, por vezes variados,
além de saias e vestidos mais curtos, um pouco abaixo do joelhos.

O grupo Fandangueiros do Ariri se apresentou no lançamento do CD


Fandangueiros de Araçaúba, em Paranaguá, usando camisas estampadas com dizeres
sobre o grupo. Contudo, não consideravam essa indumentária adequada, pois chegaram
a discutir nas reuniões que antecederam o evento a possibilidade de cancelar e viagem e
investir os recursos na elaboração de um figurino mais bonito. O figurino traduz para os
grupos um aspecto de maior seriedade, que os distingue nas apresentações e bailes.

Foto 52: Tocadores da Família Pereira no Foto 53: Dançadores da Família Pereira no
I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara. I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara.
Guaraqueçaba, 2006. Foto: Leco de Souza. Guaraqueçaba, 2006. Foto: Leco de Souza.

Com relação à Família Pereira, acompanhei no passar dos anos as mudanças em


suas vestes de apresentação. No Rabequeiros, Bernardina e Iolanda vestiam roupas
elegantes, blusa branca e saia estampada, porém com modelos e estampas diferentes. Já
durante o I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara, o figurino havia ganhado um
padrão e as mulheres se mostravam satisfeitas e confiantes com o novo visual
chamativo pelo vermelho vibrante e pelas saias rodadas.

 
167
 

Percebo que indumentária dá mais destaque às damas na dança, atraindo o


interesse de jovens para o fandango e modificando as posturas de adultas e idosas, que
se mostram menos contidas quando envaidecidas em seus figurinos pomposos.

4.4. Posições

Há muitas maneiras de ser fandangueiro. Considerando que o fandango abrange


pessoas, grupos, coletividades em interação, é possível reconhecer papéis e funções
diferenciadas a serem desempenhados que exigem distintos graus de envolvimento e
conhecimento sobre o fandango e que podem ser mais ou menos prestigiosas. Embora a
realidade seja heterogênea e cada ponto de interação na realização do fandango possa
apresentar aspectos singulares, farei a seguir um esforço de organizar analiticamente a
diversidade de posições possíveis no fandango, apontando os papéis que seus atores
ocupam, e que ganham sentido por meio das relações que estabelecem entre si.

Dançador / dançadora

Conforme o violeiro ia tocando viola, o camarada ia dançando, aprendia pelo toque


da viola. Porque o dançador, conforme a viola toca, ele já sabe a música que tem que
dançar. É a mesma coisa do violeiro, conforme a moda que ele toca, sabe qual é a
que tem que tocar. (Frederico Mandira, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)

A maneira mais elementar de fazer parte do fandango é, certamente, por meio da


dança, função que pode ser desempenhada, de modos distintos, por homens e mulheres.
Há muitas denominações para esse lugar. Os Pereira, de modo geral, empregam o par
dama/cavalheiro, mas há também folgador/folgadeira (mais comum em Paranaguá), ou
ainda dançador/dançadeira.

Naquela época no mutirão que fazia o fandango, se você não batesse, você não
dançava, tinha que bater senão não dançava. (Anoldo Dias, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Assim era o fandango também de dançar o batido. Quem não dançasse a rodada não
ia dançar mais nada, só se sobrasse dama lá. Em compensação aquele que saiu ali
aquele já tinha o par dele. (José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, 2008)

Ainda hoje, assim como nos fandangos de mutirão, percebo que saber dançar
envolve não apenas ser capaz de participar dos valsados ou bailados, já que esse

 
168
 

movimento pode ser rapidamente apreendido. Ouvi muitas vezes que nesse ou naquele
lugar não há mais dançador, ainda que muitas pessoas dançassem as modas valsadas do
fandango. Isso nos leva a compreender que para ser considerado efetivamente um
dançador de fandango é preciso conhecer as coreografias dos batidos.

Mestre de roda / puxador / marcador

Os homens que dominam com segurança as coreografias e marcações rítmicas


do tamanco nos batidos podem assumir uma função que tem valor diferenciado, qual
seja, a de marcador ou mestre de roda. Conforme já acentuei, o mestre se destaca como
figura de referência para os demais dançadores, indicando tempo, movimento e ritmo no
decorrer das modas. Num fandango festivo, essa posição pode ser ocupada por homens
diferentes ao longo de uma noite, mas, em um grupo integrado por dançadores, pode ser
uma posição central e estabilizada na figura de um único mestre.

Que lá no Rio dos Patos tinha muito dançador. Mas tinha um melhor que o outro, ali
tinha tanta gente, mas quem batia fandango bem era meu primo Leonildo, Randolfo,
meu irmão que morreu, o Aires, Anísio... eles batiam melhor que os outro sempre.
Ali o mais animado que puxa a ponta sempre é Leonildo e Vicente [França] também
que bate com eles. (...) Mas ali o animador deles é sempre o Leonildo. Ele é o
mestre mesmo, ele é pra apresentá, é o divulgador do grupo. (Pedro Pereira, apud:
MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 288)

Na condução das formações da família Pereira, é Leonildo quem costuma se


destacar nessa função, contudo ele reconhece que alguns de seus familiares também têm
essa habilidade.
Zé Pereira sabe, é fera no tamanco. Perde pra mim, porque... eu sei lá, isso é certeza!
Mas ele bate bem. Igual esse rapaz de Paranaguá, Pedro Pereira, conhece? Pedro
Pereira acho que é mais disposto pra dançar batido. É um camaradão aquele cara,
gostei dele. Se ele trabalhasse comigo, era muito bom. (Leonildo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Tocadores e Cantadores

O violeiro é a peça chave do fandango. Se não tiver o rabequista cê vai, mas sem o
violeiro, não se dança o fandango. Se não tem violeiro você dança com o quê?
(Romão Costa. Apud: MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 277)

Um fandangueiro pode também ser músico ou tocador, posição igualmente


masculina. O instrumento base do fandango é a viola, em alguns lugares tratada
especificamente como viola fandangueira ou viola branca, preferencialmente de
confecção artesanal ou eventualmente feita por meio da adaptação de um instrumento de
 
169
 

origem industrial. Ser um músico de fandango é primordialmente saber tocar viola ou


ser violeiro. Segundo Julio Pereira, é a viola que “faz o fandango”.

A viola é um instrumento prá fazê o fandango. Tocar, fazê fandango e cantá. E é um


instrumento que às vezes a gente tava em casa, assim sozinho, como tô hoje, pegava
uma viola daquela e se distrair. É um ato de distrair, pegar numa viola daquela e
tocá. (Julio Pereira, Apud: MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 292)

Os demais instrumentos de corda e percussivos não são tão prestigiosos quanto a


viola, a não ser a rabeca, por ser de difícil execução já que não tem os pontos que
indicam a posição correta dos dedos.

Pra mim a rabeca significa um instrumento muito bonito e acompanha com a viola,
que a viola sem rabeca pra mim não tem graça. E a rabeca é um instrumento que
também não pode tocá sem a viola, né? E pra viola ficá bonita tem que ser com a
rabeca, que os dois junto fica bonito. Agora, uma viola sozinha fica bonito e não
fica, pra nós, que entendemo, não fica assim, pra nós o negócio é a rabeca e a viola
mesmo, uma pandeirinho para acompanhá, esse é o valor da rabeca para mim. O
importante é que pra rabeca ficá bonita tem que ser dois violeiro, pra rabeca não
pará. Pra acompanhá você cantá. Porque pra mim cantá, no caso você vai tocá uma
viola, eu vou tocá a minha rabeca, pra mim não dá, eu canto e eu paro a rabeca.
Então se vocês são dois violeiro, Cestão cantando lá, tocando e eu tou com a rabeca
acompanhando e fica mais lindo e vai direto a rabeca com a música, né? Então fica
mais bonito duas [viola] com uma rabeca. E os dois juntos, dois violeiro e um
rabequista é sempre melhor. (Pedro Pereira, Apud: MARCHI, CORRÊA &
SAENGER, 2002, p. 288)

Quem toca rabeca quase sempre domina também a viola e, portanto, é ainda
mais respeitado pela amplitude de suas capacidades musicais. A rabeca se destaca na
execução de algumas modas, pois um bom rabequista ou rabequeiro executa fraseados
de livre improvisação nos entremeios instrumentais dos versos e modas. Assim sua
função é diferente da viola, como afirmam muitos rabequeiros, inclusive José e
Leonildo Pereira, “a rabeca enfeita o fandango”.

A viola pego nela já sabe que tá cantando. A rabeca é outra coisa, num é tocada, é
lixado, então a gente esquece até da outra música, né? A viola ajuda a lembrá, pois
de certo, tudo é viola, o rei do fandango é a viola. É a viola toda vida, esse aqui
[referindo-se à rabeca] é para se enfeitá, isso aqui pôr enfeite é muito bonito,
instrumento de enfeite, mas o rei do fandango é a viola. (Leonildo Pereira, Apud:
MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 312)

Embora José Pereira tenha se destacado nos últimos anos como grande
rabequeiro – ele desenvolveu, inclusive a rara capacidade entre fandangueiros de cantar

 
170
 

enquanto toca –, na família Pereira há muitos tocadores que também sabem tocar
rabeca. Muitos dos Pereira afirmam ter aprendido a tocar rabeca com Julino Pereira.

[Rabeca] no fandango a música também dá para acompanhar bem. Agora meu


sobrinho que aprendeu comigo sabe mais do que eu, o Leonildo que aprendeu
comigo, aquele José Felício. Zé Pereira que mora no Saúba, lá no Varadouro, né? É,
aquele que eu canto com ele lá em Curitiba, toca rabeca, Zé Pereira. E o Leonildo
também toca com ele lá em Curitiba. Pedro também. (Julino Pereira, Apud:
MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 295)

Em um fandango, há, em geral, intensa permuta de músicos que, de acordo, com


suas habilidades, trocam também de posição na conduta instrumental. Alguns grupos
tendem a estabilizar os músicos em relação à sua especialidade na execução de um
instrumento. Os Pereira, contudo, mantêm a lógica de permuta de instrumentos, mesmo
durante suas apresentações como grupo, demonstrando suas diferentes habilidades.
Normalmente se apresentam com instrumentos de corda de confecção própria: uma ou
duas violas, machete e variações de instrumentos de corda de pequenas dimensões
(cavaquinho, bandolim, bandola) e rabeca. Também usam instrumentos percussivos
como adufo artesanal ou pandeiro, caixa e surdo. A formação é, contudo, muito variada,
dependendo da quantidade de integrantes da família que estão fazendo o fandango.
Cantar não é uma posição independente no fandango, pois em geral são os
próprios tocadores dos instrumentos de corda, principalmente os violeiros, que entoam
as modas e podem ser chamados de cantadores. A ligação entre a viola e o canto é de tal
importância que, em Paranaguá, Guaraqueçaba e Cananeia, há no instrumento uma
corda curta, chamada de cantadeira ou turina, cuja função é tão somente a de adequar o
tom da voz à viola.

Se marcar quantas, quantas modas eu sei, quantos versos eu sei, pra cantar de hoje
até amanhã. Por exemplo hoje seis horas até amanhã oito horas, sem cantar mais um
verso daqueles, não é pouca cabeça. Eu faço isso, ainda invento verso, eu ainda tiro
verso. (Leonildo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, 2005)

É comum que se reconheça a beleza ou potência da voz de um cantador,


contudo, também está em jogo no sistema de prestígio que vigora entre os
fandangueiros a capacidade fazer versos e lembrar modas durante um fandango.

O peito dele [Nilo Pereira] é arejado, o peito dele é nota dez, pra ele cantar comigo o
peito dele é bom. Eu com ele, pega um pra ganhar de nós dois, precisa ser bom. Não
sei se ele tá entrosado, com todo peito aí. O cara se defende bem mesmo, ele não

 
171
 

tem que perder de mim, ganhar de mim ele não ganha, mas tem que chegar perto de
mim. A gente se entrosa muito bem pra cantar. É legal o cara pra cantar. (Leonildo
Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)

Pra me dar bem, igual com Zé [José Pereira] não tem. Eu com Zé quando nós tava
assim descansadinho ali pra cantar, com uns conhaques, nós virava a viola do fundo
pra trás. Cantava benzinho, não cantava muito mal não. Por aí pra ganhar de nós é
preciso os caras cantarem bem. Cantemos em Cananeia, São Paulo, num bar dali.
Quando nós cheguemos no Ariri, na estrada já sabiam que nós tinha tirado em
primeiro lugar. (Arnaldo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu
Vivo do Fandango, 2005)

Os fandangueiros costumam identificar com quem formam uma boa dupla de


cantadores, pois o ideal é as modas sejam cantadas em duas vozes. Um dos violeiros faz
os versos e outro segue tentando acompanhá-lo em um tom um pouco mais agudo.

Porque no fandango que cê faz a noite inteira, você pode inventá o verso, não faz
mal que erre. Agora noutras parte assim que tão gravando você tem que cantar o
verso mesmo que daí o outro [parceiro que ajuda a cantar] já sabe. No fandango
mesmo pode inventá o verso, o outro vai acompanhando, acompanha mal e mal.
Num sabe a palavra direito, mas a voz ele põe sempre. Agora tem verso nosso
mesmo que já sabemos de cor, cada um sabe, abriu a boca, ele já sabe. (Nilo Pereira,
Apud: MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 308)

Construtor de instrumentos / fabriqueiro

Construir um instrumento também faz de alguém um fandangueiro. Mais uma


vez conhecemos somente homens construtores ou fabriqueiros, muito embora haja
mulheres que ajudem seus pais ou maridos em alguma função de acabamento. Os
instrumentos de corda usados no fandango – viola, rabeca, machete, cavaquinho,
bandolim ou bandola – e alguns percussivos – adufo ou adufe, e eventualmente caixa –
são preferencialmente artesanais, confeccionados por uma ampla rede de construtores,
muitos dos quais respeitados e admirados pelos tocadores. Instrumentos de
determinados construtores são almejados, por se atribuir a eles uma possibilidade de
tocar melhor, de fazer um som mais potente.

A viola fazia sempre era dessa de cocho, eu nunca fiz viola [de aro], só fiz uma.
Agora aqui nessa casa que tô, fiz uma que ta ali no vizinho, que é de aro, que eu
levei lá para Curitiba e trouxe de novo. Essa já tem fôrma. É mais é só essa
cavocada que nós fazemo. Aprendi com meus pai, com os avós, o meus avô algum
fazia, só que eles já faziam mais de aro, mas lá um tempo eles faziam desse de
cocho. Foi assim que nós aprendemos. Cocho num precisa de forma, num precisa de
nada. Vai atrás da tora de madeira. A gente também faz na cabeça a forma dela
mesmo, num tem simetria, trabalho assim, então nós fazia uma dessa que achava
mais fácil fazê, essa de cocho. [O som] acho que isso num inflói nele, às vezes tem

 
172
 

uma viola assim cavocada de cocho que ela fica melhor do que essa de aro que a
gente faz. (...) A viola boa que nós chamamos é quando ela fica com o som alto,
com uma voz grande, que se escuta bem. Uma viola que bufa, assim é um som
grosso, tem um tino nas cordas. Nós chama tino, mas tem um som grosso também,
que ela tem uma voz mais alta. E tem uma viola que eu fiz aí de aro, ela já num é,
ela já nem cobre o som daquela uma, aquela que encobre o som dessa uma que eu
fiz é de aro. No fim não inflói nada essas coisa de uma ficá melhor do que a outra,
não é tanta benfeitoria, num é tanto a grossura da madera, é uma certa coisa que a
gente faz, fica melhor do que a outra. Essa rabeca que nós faz, às vezes nós faz uma
rabeca bem feita, cuidamo para ficá com o som grande e nada, às vez umas pequena
fica com mais som, fica com mais som. (Anísio Pereira Apud: MARCHI, CORRÊA
& SAENGER, 2002, p. 299)

Como esses instrumentos não são dotados de um padrão formalmente


compartilhado, cada construtor aprimora sua técnica a seu modo, observando outros
construtores, inventando novas soluções ou ainda pesquisando sobre luteria. Um
construtor, em geral, sabe tocar os instrumentos que fabrica, entretanto, se estiver
desvinculado à prática ou não integrar algum grupo, sua posição de construtor pode se
sobressair a de tocador.

Comecei com doze ano. [Nessa época] aí não vendia [em Paranaguá] Vendia por
aqui mesmo por essas vilinha por aí, não tinha concorrência pra fora aquele tempo.
Ia nas vila por aí, algum se interessava comprava uma rabeca, uma viola... A canoa,
tudo a remo, e s cara vinham também igual, queriam comprá, a gente vendia aquela
[viola] porque ia fazê a outra. [vendia para as pessoas], pra fazê fandango, só
fandango. (...) A maior dificuldade é de entregá, dificuldade é grande. Corda pra
mim sai fácil, porque hoje eu sou empregado da prefeitura, né? Sempre todo mês eu
to em Cananeia e lá vende. Porque o instrumento você tem que vender encordoado,
senão não tem como contar que ta bom, que ta certo, tem que vender toda vida
tocando, né? Toda vida tem que vender encordoando porque senão, quem compra
vai exigir: “Será que dá certo, será que não dá?”Então já põe a corda, não tem erro,
dou uma chacoalhada para ele e pronto, tudo feito já... (Anísio Pereira, Apud:
MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 319)

Dentre os Pereira que se dedicam atualmente ao fandango, a maioria sabe


também confeccionar instrumentos, o que relatam como algo corriqueiro desde a época
de Rio dos Patos. Atualmente, muitos deles garantem parte de sua renda por meio do
trabalho com artesanato e confecção de instrumentos. Arnaldo, José, Leonildo, Anísio e
Nilo, além de Heraldo (filho de Anísio e Bernardina) estão dentre os que mais exercem
essa atividade atualmente.
O interesse pelos instrumentos, seja de músicos de fandango ou de pessoas que
apreciam cultura popular, cria uma rede de circulação abrangente. Se os pensarmos
ainda articulados em um sistema de objetos de e sobre fandango (por exemplo, CDs,

 
173
 

DVDs, livros e artesanato) temos um vasto campo de investigação que, contudo, não
cabe nos limites desta pesquisa.

Modista / compositor

Há ainda os modistas ou compositores. Apesar da grande parte das modas serem


de autoria desconhecida, há compositores que fazem variações melódicas e até mesmo
letras completas, muitas das quais abordando temas relacionados à vida contemporânea.
Em Cananeia, Armando Teixeira, já falecido, foi um modista de referência. O
conheci em 2005 durante as pesquisas do Museu Vivo do Fandango. Na época ele tinha
um caderno com anotações das dezenas de letras das modas que compunha.

Jogo da raspadinha
(Dandão de Armando Teixeira)

Eu estava imaginando problema da minha vida


Fui jogar na loteria só pra ver se a sorte vinha
Se ganhava algum dinheiro no jogo da raspadinha
Eu nunca ganhei prêmio no jogo da loteria
Não gosto da raspadinha pois é um jogo que avicia
Seje velho ou seje moço, está raspando todo dia
Conversando com um colega sobre a vida apertado
Eu perguntei se ele já tinha jogado
Ele então me respondeu que também tinha raspado
Foi aí que eu descobri que a raspadinha não é nada
Aí eu encontrei com uma mulher e tive pena da coitada
Pois ela estava raspando sentadinha na calçada
(Registrado pelo grupo Caiçara Cananeia no CD Museu Vivo do Fandango, 2006)

Paulinho Pereira (que não é membro da famosa família Pereira) também escreve
modas que costuma tocar com o grupo do qual faz parte, Violas de Ouro de São Paulo
Bagre, um dos mais antigos de Cananeia.

Pescador artesanal
(Chamarrita de Paulo de Jesus Pereira)

Pescador que sofre é o artesanal


Quando o guarda vem me escondo no mangal
É “os home”da lei e a fiscalização
O meu gerival é o meu ganha pão
Vou pescar bem cedo sem tomar café
E a minha mulher fica reclamando
Quando eu to dormindo me ponho a sonhar
No meu gerival tem camarão entrando
O remo é o motor de um cavalo só
Quando chuça é chuva, quando sol é sol
Veja quanto sofre um pescador
Que trabalha tanto, e não tem valor
Pesco de enchente, maré vazante
Pesco com a chuva, com a trovoada

 
174
 

Pra ganhar sustento pra minha família


Pesco todo dia, também de madrugada
(Gravado pelo grupo Violas de Ouro de São Paulo Bagre no CD Museu Vivo do
Fandango, 2005)

Valdemir Antônio Cordeiro, conhecido como Vadico e integrante do grupo


Jovens Fandangueiros de Itacuruçá, também é um dos compositores de Cananeia. No
CD Museu Vivo do Fandango, seu grupo registrou Pobre Pescador, de sua autoria, que
assim como a moda de Paulinho Pereira, trata das dificuldades de se viver da pesca.
Aorélio Domingues, do grupo Mandicuéra, de Paranaguá, tem despontado como
um grande modista de fandango, com modas que são verdadeiras crônicas da vida
caiçara contemporânea, como a moda do Bicho Grilo (sobre a participação de
universitários, especialmente cientistas sociais, nos fandangos em Curitiba), a moda do
Peixe Morto (sobre o uso de um recurso indenizatório referente à um desastre ambiental
que ficou famoso na região) e a moda da Força Verde (sobre a repressão à cultura
caiçara decorrente das restrições ambientais).
Os Pereira não costumam apresentar letras de sua autoria, embora por vezes,
Leonildo e José Pereira tenham me mostrado na viola ou na rabeca modas que dizem ter
inventado a partir de variações daquelas que aprenderam com a tradição dos Pereira.
Contudo, de forma geral, preferem enfatizar que seu repertório é uma herança de
família, aprendida com parentes.
Quem invento esses verso que a gente já sabe foram os nossos pais. Tem algum
verso que foi a gente que fez, o outro já faz o mesmo verso talvez, um pouquinho
diferente, mas é quase a mesma coisa. Os nossos verso quase tudo já veio de nossos
avô, de nossos pais. Os versos mais velhos já veio deles (Nilo Pereira, Apud:
MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 308)

Outras posições relacionadas às interações no mundo do fandango

Há ainda outros lugares que podem ser ocupados no mundo do fandango. Por si
só, do ponto de vista nativo, elas não qualificam alguém como fandangueiro, mas
apenas como alguém que participa do fandango. As relações entre fandangueiros e as
pessoas que se aproximam ou ingressam nesse mundo social são marcadas por tensões
de interesse. Percebo que é preciso não apenas apreciar o fandango, mas saber se
posicionar para amenizar as desconfianças.
Essas relações são também influenciadas por um certo bairrismo. Perdi a conta
de quantas vezes fui questionada sobre o porquê de uma carioca se interessar e trabalhar

 
175
 

com fandango. Ao mesmo tempo, para ingressar de fato nesse mundo, é preciso cultivar
e manter as relações e a atuação por um período de tempo longo.
A nomenclatura que apresento a seguir para os diferentes posicionamentos é
fruto de uma organização analítica e não de uma terminologia nativa.

Artista pesquisador

Assim como ocorre com muitas das expressões folclóricas ou populares, o artista
pesquisador é um músico ou dançarino que se interessa pelo repertório musical e
coreográfico do fandango e procura conhecê-lo para incorporá-lo em sua prática
artística, buscando nas fontes populares um modo de fazer autêntico e brasileiro, nos
moldes defendidos por Mario de Andrade em seu Ensaio sobre a Música Brasileira. No
fandango, Inami Custódio Pinto foi um dos pioneiros dessa prática, mas há muitos
outros exemplos, como Renato Perré (ator e teatrólogo que escreveu a peça Fandango,
conforme relatei no capítulo anterior), Rogério Gulin e Oswaldo Rios do grupo Viola
Quebrada, José Eduardo Gramani (musicista de Campinas e fundador do grupo Anima
que, interessado pelas rabecas, gravou o CD Mexericos da Rabeca68 e teve sua pesquisa
sobre padrões de construção publicadas em Rabeca, o som inesperado69), além de
grupos como Fato e Mundaréu, de Curitiba, que em alguns de seus espetáculos
incorporam repertórios relacionados ao fandango.
Esse interesse de artistas pesquisadores movimenta, por exemplo, a venda de
instrumentos artesanais para além dos circuitos locais. Músicos de várias regiões do
país, ou mesmo estrangeiros, compram com relativa frequência instrumentos feitos por
construtores da região para utilizá-los em trabalhos artísticos diversos.
Cabe, contudo, destacar que a atuação de artista/pesquisador se estende também
aos fandangueiros. Fandangueiros mais velhos, ainda que não se pensem como
pesquisadores, muitas vezes exerceram tal atividade para chegarem ao formato de seu
grupo, tal como o caso de Manequinho da Viola e Romão Costa. Já fandangueiros das
novas gerações tem a ideia de pesquisa como um valor na fundamentação de seus
trabalhos artísticos. Grupos como o Mandicuéra, de Paranaguá, e o Fâmulos de
Bonifrates, de Guaraqueçaba são compostos por jovens que se tornaram fandangueiros
por meio da prática sistemática de pesquisas com gerações anteriores, passando a

                                                                                                               
68
Gravado pelo Duo Bem Temperado (1997).
69
GRAMANI, Daniella. (Org.). Rabeca, o som do inesperado. Curitiba: [s.n.], 2003.

 
176
 

incorporar e recriar o que aprendem em apresentações teatralizadas ou mesmo na


retomada de práticas tradicionais.

Festeiros / produtores / gestores / articuladores culturais

Um outro papel importante na composição do mundo do fandango é aquele que


o alarga na interação com esferas mais amplas dos circuitos culturais, abarcando um
mercado ampliado, novas práticas sociais e políticas públicas de cultura. Foi desde esse
lugar que me posicionei inicialmente na relação com o fandango. As ações promovidas
envolvem documentação fotográfica, sonora e audiovisual, organização de
apresentações e bailes, cursos, oficinas, mostras, exposições, encontros e festivais,
publicação de livros, discos e filmes, difusão de conteúdos em ambientes virtuais,
assistência a grupos, obtenção de prêmios e menções de reconhecimentos a
fandangueiros, organização de espaços culturais dedicados à promoção da cultura
caiçara ou ainda recriação de ambientes “tradicionais”, como festas comunitárias e
mutirões de trabalho seguidos de fandango. Algumas das práticas desempenhadas por
folcloristas, especialmente na segunda metade do século XX, tais como registrar,
preservar e fomentar são em certa medida revividas e atualizadas nesse tipo de atuação.
Viabilizar algumas destas ações pode demandar ainda a elaboração de projetos,
inscrição em editais e busca de recursos e apoios materiais privados e governamentais.
Mais uma vez, essa posição pode também ser ocupada por fandangueiros ou atores
sociais locais pertencentes à esfera do que se compreende como cultura caiçara.
As festas relacionadas ao calendário religioso, principalmente àquelas dos
padroeiros de vilas e cidades, contam com o desempenho de comerciantes e moradores
para que a celebração se realize, assumindo o lugar de festeiros.
Fandangueiros à frente de grupos estão sempre se movimentando em busca de
oportunidades de apresentação em festividades, eventos e programas turísticos. Em
Paranaguá, Aorélio Domingues, músico, construtor de instrumentos e integrante do
grupo Mandicuéra, ocupou por um mandato o cargo de diretor cultural da Fundação
Municipal de Cultura de Paranaguá. Na ocasião esteve à frente de atividades de apoio e
fomento ao fandango, como a promoção de bailes no centro histórico com participantes
de grupos diversos da cidade. Vemos, também, cada vez mais fandangueiros
preocupados com o registro de seus trabalhos, ansiando gravar CDs e DVDs dos grupos
que participam. Ter um espaço próprio para ensaios e oficinas é também uma questão

 
177
 

recorrente, ainda que muitos não tenham clareza de como viabilizar e, principalmente,
manter as despesas de uma “casa de fandango”.

Pesquisador

Podemos destacar também a posição específica de pesquisador no sentido mais


restrito ao âmbito acadêmico, que desenvolve tanto trabalhos autorais relacionados à
formação escolar ou universitária, como também levantamentos, inventários e
diagnósticos que amparam programas governamentais70. São trabalhos que abarcam a
revisão bibliográfica e entrevistas com atores locais, procurando levantar, mapear e
organizar dados, ou ainda analisar e interpretar aspectos estéticos e sociais relacionados
ao fandango. Sob o incentivo de projetos focados na memória e na continuidade do
fandango71 ou, ainda, por iniciativa particular de educadores, crianças e jovens vem
sendo incentivados a desenvolverem pesquisas como parte das atividades escolares.
Com a popularização da importância do ensino de terceiro grau e a ampliação
das possibilidades de acesso à formação universitária torna-se cada vez mais comum,
jovens fandangueiros ou filhos de fandangueiros, elaborarem monografias acadêmicas
sobre temas da região. Em fevereiro de 2012, reencontrei José Muniz, que conheci e
convivi como jovem fandangueiro integrante do grupo Fâmulos de Bonifrates de
Guaraqueçaba, em um encontro de fandango em Paranaguá, por ocasião do lançamento
do disco Fandangueiros de Araçaúba, gravado por grupos de Cananeia 2011. Qual não
foi nossa surpresa ao descobrirmos que eu, no mestrado, e ele, em uma especialização
em História da Arte, tínhamos como foco de nossas pesquisas temas semelhante: as
redes contemporâneas de circulação do fandango.

                                                                                                               
70
No adendo sobre a patrimonialização do fandango, destaco também a importância da pesquisa em seu
processo de registro como bem cultural.
71
Por exemplo, o projeto Tocadores na Escola, da organização não governamental curitibana Olaria,
envolveu a produção e distribuição gratuita para escolas públicas do Paraná de kits com cerca de 30
cartazes para montagem de exposições; o Fandango na Escola, da Associação de Cultura Popular
Mandicuéra, organizou kits com DVD e cartilhas ensinando as marcas do fandango para distribuição
gratuita às escolas do litoral sul paranaense; o Museu Vivo do Fandango, do qual participei promoveu
oficinas com a participação de fandangueiros para professores da rede estadual e municipal, além da
organização de bibliotecas para consulta e distribuição do livro e CDs editados para todas as escolas
públicas e particulares de Paranaguá, Morretes, Guaraqueçaba, Iguape e Cananéia.

 
178
 

Coletividades

A essas diferentes posições ocupadas individualmente, que podem ou não ser


acumuladas, superpõe-se um complexo de coletividades que opera no plano da
organização e representação de coletividades.
Vimos como a noção de família, em especial de nome de família, é operadora de
conhecimento, aprendizagem e tradição para a formação de gerações e linhagens de
fandangueiros. Mais recentemente, emergiram os grupos, como forma de articulação de
coletiva de fandangueiros. Hoje, os grupos estão presentes de forma intensa na região, e
viabilizam a inserção do fandango em novos trânsitos econômicos e culturais que
expandem e complexificam o mundo do fandango.
Há um processo crescente de institucionalização jurídica de entidades que
representam fandangueiros ou grupos de fandango – como a Associação Jovens da
Jureia, a Associação de Cultura Popular Mandicuéra, a Associação de Fandangueiros do
Município de Guaraqueçaba e a Associação de Fandangueiros do Município de
Cananeia. A depender da capacidade de articulação de seus representantes, essas
Associações poderão permitir uma inserção político-cultural mais arrojada.
Família, grupo e associação são planos que não se substituem ou excluem, pelo
contrário, se interconectam e operam conjuntamente na produção de novos arranjos
sociais. O exemplo mais emblemático é o da Associação dos Jovens da Juréia, de
Iguape, organização não governamental onde quase todos os integrantes participam de
uma mesma família – a Família do Prado - e ainda mantém um grupo de fandango – o
grupo Jovens da Jureia. Articulados em três planos de representação coletiva, eles
defendem e mantêm costumes e práticas de convivência familiar, relacionadas ao modo
de vida nos sítios; organizam festividades religiosas, atuam politicamente como fortes
lideranças nos interesses e direitos das comunidades caiçaras da Jureia; amparam-se
economicamente em atividades de produção de artesanato em caixeta e instrumentos;
apresentam-se com o grupo pelo propósito principal de cultivar o fandango como forma
de expressão da cultura caiçara; e ainda desenvolvem projetos nas áreas culturais e
ambientais, sendo responsáveis pela gestão do Centro de Cultura Caiçara de Barra do
Ribeira.
Outras instituições sociais relevantes, tais como os braços gestores do Estado –
federal, estadual e municipal –, as universidades além de outras organizações não

 
179
 

governamentais permeiam e interagem com os planos de representação coletiva dos


quais fandangueiros participam mais intensamente.
Esses múltiplos papéis e planos de atuação e representação ora se coadunam,
ora divergem, ou revelam incongruências entre a maneira de pensar o fandango e de
agir no fandango. Por vezes, se criam falsas ou frágeis dicotomias que confrontam, por
exemplo, fandangueiros/grupos/associações locais x pesquisadores/universidades x
gestores/instituições x produtores/ organizações não governamentais. Seria, contudo,
incorrer em uma generalização equivocada tentar separar e caracterizar cada um dessas
esferas como autônomas. No processo social concreto, esses diferentes planos de vida
coletiva se mostram bastante imbricados.

 
180
 

5. Considerações finais

Vamos dar a despedida


Despedida vamos dar
Vamos acabar esta moda
Pra n’outra continuar

(Versos gravados pela Família Pereira


no CD Viola Fandangueira, 2002)

Ao longo desta pesquisa, deparei-me com a amplitude semântica da noção de


fazer fandango, que se revela em uma multiplicidade de situações sociais, como
mutirões, encontros, festas comunitárias, apresentações, gravações, etc. Nos distintos
contextos onde se faz fandango, essa noção se reveste de diferentes significados e
reposiciona os atores do mundo do fandango em novos arranjos sociais.
Nos trânsitos entre sítios e vilas, o fandango representa um momento de
intensa interação e divertimento para pessoas que compartilham simbologias, padrões
sonoros e corporais. Contudo, o compartilhamento só é acionado quando o fazer
fandango é organizado em meio a uma tessitura social que mobilize os sentidos de
pertencimento às noções de família e camaradagem. Mesmo ambientado em
localidades caiçaras, quando o fazer não se organiza com a adesão de atores sociais
participantes do mundo do fandango – com nas demonstrações para turistas na Vila
do Marujá ou no fandango de última hora no bar do Juarez no Ariri –, os sentidos
parecem não estar completos.
Em contextos como mutirões e festas comunitárias, onde fazer fandango
ganha potência como dimensão expressiva e sociabilidade, evidencia-se que a
interação entre tocadores e dançadores é fundamental para sua totalidade de
significados. Música e dança no fandango se interligam por muitos pontos de
continuidade, seja pelos mesmos padrões de circularidade que percebemos entre
damas-cavalheiros e moda-verso-toada, seja pela intensidade rítmica que se revela na
marcação dos tamancos nas modas batidas.
É possível também perceber a dimensão de totalidade do fandango mesmo em
trânsitos mais claramente permeados pelos circuitos da cultura. Apesar de não ter
tratado especificamente destas situações ao longo da pesquisa, os encontros entre
grupos de fandango também representam momentos de grande potência social e
simbólica para o mundo do fandango. Conforme mencionei brevemente na

 
181
 

introdução, em fevereiro de 2012, por ocasião do lançamento do CD Fandangueiros


de Araçaúba em Paranaguá, presenciei cerca de trezentas pessoas se reunirem em um
clube na Ilha dos Valadares para dançarem e assistirem apresentações dos cinco
grupos participantes: Grupo de Mestre Brasílio, Pés de Ouro, Mandicuéra, Família
Neves e Fandangueiros do Ariri. O encontro foi organizado por meio de uma parceria
entre integrantes do Mandicuéra, de Paranaguá, Lucia Domingues e João Alves do
grupo Fandangueiros do Ariri. O fandango rompeu a madrugada fazendo com os
presentes compartilhassem sentimentos muito próximos àqueles experimentados no
dia seguinte ao mutirão do Ariri.
Também participei da organização de dois Encontros de Fandango e Cultura
Caiçara, realizados em 2006 e 2008, em Guaraqueçaba, com a participação de 25 a 30
grupos e núcleos fandangueiros, reunidos em três dias de debates, apresentações e
noites de fandango. Ambos, apesar de contarem com patrocínios por meio de leis de
incentivo à cultura, só foram possíveis graças à mobilização de uma ampla rede de
apoios e parcerias entre grupos de fandango e organizações sociais voltadas para a
cultura caiçara.
Contextos como esses, idealizados com base em pressupostos internos ao
mundo do fandango (por exemplo, no que diz respeito a pensar espaços adequados
para que música e dança possam se realizar de forma integrada), criam ambientes de
grande interação, onde trocas e disputas vitalizam a prática e os sentidos de
pertencimento ao fandango. De modo geral, as pessoas que participam do mundo do
fandango reconhecem que os encontros relembram os tempos dos sítios e mutirões.
De fato, o sentido da camaradagem parece ser ressignificado nas redes de mobilização
que os viabilizam. Os encontros parecem também conformar uma materialidade
circunstancial ao mundo do fandango contemporâneo, pois acionam coletividades e
pessoas que ocupam posições diversas.
Recuperei brevemente essas ocasiões, pois nelas acentuei minha percepção
quanto à noção de grupo representar uma continuidade dos sentidos de família e
camaradagem. A formação de grupos de fandango não pode ser pensada meramente
como estratégia de inserção nos circuitos da cultura. Dentre os Pereira, ser um grupo
não representa algo estável, não há rigidez na quantidade e na função dos integrantes.
O grupo se organiza conforme o convite e a ocasião, recuperando laços familiares e
incorporando camaradas. Em certa medida, o grupo reelabora o ambiente do sítio,
estabelecendo um novo lugar de convívio, aprendizado e divertimento, onde também

 
182
 

se recolocam afinidades, compromissos e desagravos familiares. Trata-se de um


arranjo eficaz em um mundo que atravessa profundas mudanças. Embora boa parte
dos fandangueiros não sinta vontade de voltar a viver em sítios, a grande maioria
conserva muitos dos valores tradicionais apreendidos “naquele tempo” que organizam
os sentidos de suas vidas.
Nos circuitos mais amplos de cultura, o lugar dos Pereira também é
perpassado pela noção de tradição, mas com novas nuances. Os convites que os
Pereira recebem para tocar em geral estão relacionados à representação de sua origem,
ou seja, de populares, caipiras ou caiçaras, guardiões de uma cultura que contrasta
com a modernidade. Mesmo nos projetos propostos e realizados pela Caburé do qual
participaram – Rabequeiros, Museu Vivo do Fandango, dentre outros – hoje
reconheço o quanto essa tônica estava presente, ainda que como perspectiva de
diálogo inclusivo nas esferas desse circuito cultural mais amplo que tem olhares
resistentes quanto à percepção do viés artístico do fandango e de outras manifestações
culturais populares em geral. Ou seja, é mais como emblema cultural, e menos como
experiência artística e social, que o fandango participa dos circuitos culturais mais
abrangentes. Embora José e Leonildo Pereira queiram ser reconhecidos como artistas,
muitas vezes são vistos e agem como mestres. Eles participam desses circuitos não
propriamente como agentes criativos, mas principalmente como portadores e
transmissores do fandango.
O desejo de ser artista e ser mestre indica também um digno anseio por
prestígio social e retorno material em meio às novas possibilidades de fazer fandango.
O fandango é sem dúvida algo que lhes dá prazer e nada mais corriqueiro na
sociedade contemporânea do que querer viver daquilo que é prazeroso e que se sabe
fazer bem. Cabe lembrar que nem mesmo os Pereira jamais viveram em isolamento
social e sempre interagiram com as ofertas e demandas trazidas por suas relações com
outras esferas da sociedade. Muitos mutirões foram realizados sob o estímulo de
trocar no mercado os excedentes das lavouras. O mundo do fandango nunca esteve à
parte da sociedade de seu tempo. Justamente por sua capacidade de se atualizar que,
pelo menos até o presente, não podemos vê-lo como resquício de um passado, mas
como uma tradição que se renova e se expande.
Por outro lado, vimos também que da noção mesma de fandango, que se
organiza a partir dos estudos de folclore, carrega em si um sentido de arcaísmo. Essa
perspectiva se encontra viva nas falas daqueles que fazem fandango. A nostalgia e a

 
183
 

reverência ao passado são símbolos atuantes que envolvem os atores sociais e


orientam seus modos de fazer. Percebemos, portanto, que só é possível compreender o
fandango acessando memórias que atravessam gerações. As lembranças dos
fandangos dos sítios e dos mutirões não são apenas saudade, mas resguardam
categorias elementares, como família e camaradagem, que fundamentam o sistema de
relações do fandango mesmo na contemporaneidade.
Nesta pesquisa, guardados os limites de tempo e do recorte etnográfico,
procurei apresentar uma fotografia de algumas décadas de mudanças no mundo social
do fandango. Vimos que as conseqüências dessas mudanças não se sucedem
temporalmente, mas multiplicam, na atualidade, contextos simultâneos. Quando
apresentei os distintos circuitos do fandango, não sugeri uma demarcação de
fronteiras, uma vez que interagem e se conectam por meio de visões de mundo e
práticas em constante intercâmbio.
Finalmente, creio que a elaboração desta pesquisa me fez perceber mais
claramente a importância de relermos com reverência e visão crítica os estudiosos de
folclore que tratam do fandango. Reverência, na medida em que foram atores que
participaram ativamente do desenho do fandango como um mundo social que hoje
pode se pensar como tal. Eles identificaram ali especificidades culturais relevantes
que os levaram a propor e construir, junto com fandangueiros, soluções de
continuidade em contextos urbanos. Elaboraram categorias analíticas e ferramentas de
ação que até hoje são utilizadas no contínuo rearranjo do fandango como experiência
artística e elemento dinamizador da vida social.
Por outro lado, a visão crítica que proponho se refere à necessidade de
aprimorar e repensar perspectivas de atuação junto ao campo das culturas populares,
já que as mudanças sociais seguem sempre em curso. Os próprios fandangueiros são
também mediadores que pensam novas e múltiplas formas de inserção nos circuitos
pelos quais transitam. O fandango está vivo e, portanto, a ansiedade do registro de sua
memória deve se pautar também pela escuta e pela dinâmica da vida social.
Além disso, embora seja louvável reconhecer o esforço pioneiro dos
folcloristas em registrar o fandango e organizar seus os padrões estéticos, o conjunto
documental por eles produzido não deve ser tomado de forma canônica. O fandango
não está compilado e sumarizado nas publicações do folclore como se fossem
manuais de autenticidade, e tão pouco assim estará no inventário que fundamentou
seu registro como bem cultural do patrimônio brasileiro. Enquanto a experiência e os

 
184
 

significados do fazer fandango estiverem em prática, continuarão a ser reelaborados.


Por meio da etnografia, podemos encontrar novos caminhos que indicam a
complexidade de formas e sentidos que, sem dúvida, vão muito além do que é
possível pensar em algumas breves páginas.

Amanhece!

(bordão de Leonildo Pereira que simboliza o desejo


de que um fandango se estenda até o dia clarear.)
 

 
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VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor / Editora
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VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964).
Rio de Janeiro: Funarte: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Discografia

FANDANGO DE ARAÇAÚBA. Família Pereira, Família Neves e Fandangueiros do Ariri.


São Paulo: Independente, 2011. 1CD
FANDANGO DE MUTIRÃO. Família Pereira e Gripo Folclórico Mestre Romão. Brito,
Maria de Lourdes da Silva (org.) Curitiba: Independente, 2003. 1CD
FANDANDO DO PARANÁ. Documento Sonoro do Folclore Brasileiro n.15 Rio de Janeiro:
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e FUNARTE, 1976 1 LP
MUSEU VIVO DO FANDANGO. Rio de Janeiro: Associação Cultural Caburé, 2006. 2 CDs.
VIOLA FANDANGUEIRA. Família Pereira e Viola Quebrada. Curitiba: Independente, 2002.
2 CDs.

Matérias consultadas na hemeroteca da Biblioteca Amadeu Amaral/CNFCP/IPHAN:

“Paraná faz festival para mostrar folclore” Vicente Ulandovski. Curitiba: O Estado do Paraná,
1968.
“Legítimo Folclore paranaense é representado pelo fandango”Curitiba: Gazeta do Povo,
31/08/1975.
“Folclore – professor fala em extinção”. Curitba: Correio do Povo, 23/08/1973
“Fandango dá seus últimos passos no Paraná” Enio Squeff. São Paulo: O Estado de São
Paulo, 05/10/1975.
“Contato com a civilização destrói o folclore do litoral”. São Paulo: O Estado de São Paulo,
26/10/1975.
“Fandango do Paraná”. Inami Custódio Pinto. São Paulo: O Estado de São Paulo, 26/10/1975.
“O último fandango, antes que desapareça”reportagem s/referência, 29/05/1980.
“O samba é a desgraça nacional. Fazer música regional é nosso caminho certo” Margarida
Autran. Porto Alegre: Correio do Povo, 06/03/1977.

 
191
 

Adendo

Do museu ao registro: o processo de patrimonialização do fandango caiçara

O fandango é uma coisa que ele conta todas as histórias. Se a pessoa vai no
fandango e anota aquelas histórias que é contada no violeiro, ele vai ter muita
consciência na vida dele, porque nada conta mais história que o fandango. (José
Esquenine, em depoimento no encontro sobre o processo de registro do fandango
caiçara, 2010)

Em novembro de 2012, o fandango caiçara foi oficialmente declarado


patrimônio cultural brasileiro pelo IPHAN, culminância de um processo de discussões
e documentação trilhado ao longo de pelo menos uma década. O olhar sobre o
fandango como um bem patrimonial da cultura brasileira não é, contudo, recente.
Como vimos no primeiro capítulo da dissertação, a noção de patrimônio perpassa a
construção das categorias de pensamento do folclorismo brasileiro. Mario de
Andrade, em seu Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, já pensava os fandangos
por ele registrados em Cananeia como bens nacionais72. No terceiro capítulo, retomei
a abordagem patrimonial do fandango por meio de algumas reflexões sobre a
categoria mestre. Neste adendo, apresento alguns apontamentos sobre o processo
registro do fandango como bem cultural declarado oficialmente pelo Estado
brasileiro, reconhecimento que só foi possível em decorrência de mudanças de cenário
político nacional e internacional.
As acepções e os usos do termo patrimônio vêm sendo amplamente analisados
e debatidos no âmbito das pesquisas acadêmicas, na medida em que esse é um
significativo operador de simbologias e representações identitárias. Se até meados do
século XX, a apreensão oficial da história e a valoração de símbolos e objetos de
memória eram restritas às elites, por meio de processos sociais diversos, vemos hoje
uma perspectiva inclusiva e, por vezes, exaustiva, na expansão de um olhar
patrimonial sobre as culturas particulares. Segundo Gonçalves (2012):

A palavra “patrimônio” transformou-se numa espécie de “grito de guerra” e


qualquer espaço da cidade, qualquer atividade, qualquer lugar, qualquer objeto

                                                                                                               
72   Na década de 1930, Mario de Andrade foi chamado por Gustavo Capanema, então Ministro de
Educação e Saúde, a colaborar com o projeto do SPHAN, contudo, suas propostas sobre a inclusão do
folclore no projeto de reconhecimento de patrimônios nacionais não são levadas adiante no processo de
implementação do órgão.  

 
192
 
podem ser, de uma hora para outra, identificados e reivindicados como
“patrimônio” por um ou mais grupos sociais. Em geral, trata-se de reivindicações
identitárias, fundamentadas numa memória coletiva ou numa narrativa história,
mas, evidentemente, envolvendo interesses muitos concretos de ordem social e
econômica. (Gonçalves, 2012, p. 59-60)

Os debates internacionais travados pelo menos desde a década de 1970 sobre o


aspecto intangível da compreensão do patrimônio se desdobram no Brasil na
construção, a partir de fins da década de 1990, de um programa político específico73,
em âmbito federal, para abarcar e reconhecer os chamados “bens de natureza
imaterial”74. A maneira como se desenha um nicho específico para esses bens no
âmbito do Programa do Nacional Patrimônio Imaterial acaba por sugerir uma falsa
dicotomia entre as dimensões materiais e imateriais da noção de patrimônio, já que,
pelo contrário, objetos e edificações de referência assim se constituem por aspectos
intangíveis. Ao mesmo tempo, aquilo que se pensa como o conjunto de bens
imateriais – saberes, celebrações, formas de expressão e lugares – também se
concretiza na produção de objetos e espaços físicos.
A proposta do Programa em priorizar representações que antes não tinham
lugar no cenário oficial de reconhecimento de patrimônios culturais direcionou uma
atuação voltada, em primeira instância, para elementos relacionados às culturas
indígenas e populares rurais. Assim, a noção de patrimônio imaterial, que é
certamente controversa, acabou se ancorando na também complexa noção de cultura
popular, ora como complementar, ora como similar ou até mesmo como substituta,
                                                                                                               
73   Investiguei o protagonismo de países latino americanos em debates internacionais sobre o tema
promovidos pela UNESCO – Mesa-redonda de Santiago do Chile/ Conselho Internacional de Museus
(Santiago do Chile, 1972), 17a e 25a Convenção da Unesco para a Proteção do Patrimônio Mundial,
Cultural e Natural (Paris, 1972 e 1989) – além de alguns documentos de referência – Declaração de
Quebec (1984) que estabelece os princípios da Nova Museologia e Recomendação sobre a
Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989) – e também os desdobramentos no Brasil –
Congresso de Fortaleza (1997) realizado pelo IPHAN para a constituição de um grupo de trabalho que
formulou o Programa de Patrimônio Imaterial (Decreto de nº 3.551, de 04 de agosto de 2000) – em
minha monografia Políticas públicas de cultura e o campo das culturas populares no Brasil: uma
abordagem de experiências do governo Lula de 2003 a 2006, elaborada em 2009 para obtenção do
título de especialista em Gestão Cultural na Universidade Cândido Mendes, sob orientação da Profª Drª
Lia Calabre, chefe do departamento de Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa. Voltei
também a esses temas no artigo Museu Vivo do Fandango: aproximações entre cultura, patrimônio e
território, apresentado da 35a Reunião Anual da ANPOCS (2011) e ainda no artigo Fandango’s Living
Museum: culture, heritage network and territorialization elaborado à convite da UNESCO (2012) em
face ao reconhecimento, em 2011, do Museu Vivo do Fandango na lista de boas práticas em
salvaguarda. Ambos os artigos foram escritos em parceria com o antropólogo Edmundo Pereira e o
geógrafo Alexandre Pimentel, e o segundo também com colaborações da musicista Daniella Gramani,
todos integrantes da Associação Cultural Caburé.
74   Falcão (2011), ao analisar as políticas de patrimônio imaterial no Brasil, destaca a importância da
categoria “bem” no âmbito dessas políticas e seus sentidos permeados por valores econômicos e
morais.  

 
193
 

numa trajetória de desdobramento semântico que teria a noção de “folclore” como


embrião.
Em 2003, quando pensávamos o projeto Museu Vivo do Fandango, o
Programa de Patrimônio Imaterial já havia entrado em fase de implementação. As
perspectivas de retomada e revisão de práticas trouxeram um sentimento revigorante
para quem, como eu e os demais integrantes da Associação Cultural Caburé, atuava
em pesquisas e projetos no campo das culturas populares75. Embora os processos de
inventário em curso fossem alvo de críticas e reflexões76 e a ideia de registro
esbarrasse em questionamentos sobre direitos e deveres77, a possibilidade de
redesenhar um lugar de importância e valoração das culturas populares dentro da
sociedade, pautado em uma construção dialógica, parecia-nos um caminho relevante a
ser trilhado78. Durante o processo de elaboração do projeto que daria corpo ao Museu
Vivo, previmos a possibilidade de trabalhar com os formulários e métodos de pesquisa
elaborados no âmbito do programa. A ideia era preparar um inventário que,
futuramente, com o consentimento de fandangueiros e atores envolvidos com o
fandango, pudesse amparar um processo de registro.

                                                                                                               
75   Alguns de nós, participantes da Associação Cultural Caburé, atuávamos como pesquisadores ou
colaboradores vinculados a outras iniciativas culturais, como em alguns dos primeiros processos de
patrimonialização empreendidos pelo projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular, gerido pelo
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Também na época nos engajamos na organização de
um fórum no Rio de Janeiro de representantes da sociedade civil para debates políticos, que foi
batizado de Fórum de Culturas Populares, Indígenas e Patrimônio Imaterial / RJ, tendo aberto algumas
frentes de diálogo com o Ministério da Cultura na construção de ações de fomento ao campo das
culturas populares.  
76
As ações empreendidas pelo Programa de Patrimônio Imaterial se desdobram em três linhas que
guardam relativa autonomia: inventário, registro e salvaguarda. O inventário envolve a pesquisa e
documentação fotográfica e audiovisual do bem, o preenchimento de formulários bastante sistemáticos
e a elaboração de uma descrição densa que deve obrigatoriamente contar com a supervisão de um
antropólogo ou historiador. Na época, os pontos centrais das críticas se voltavam contra a dificuldade
de operar os formulários, os critérios ali estabelecidos e complexidade de fragmentar realidades em
campos de preenchimento. Também vinham sendo temas de reflexão as nomenclaturas e os campos de
abrangência desses bens, assim como os mecanismos para assegurar o envolvimento de seus
“portadores” nos processos de patrimonialização.
77   O registro implica em, a partir de uma análise positiva da documentação reunida sobre o bem,
conceder seu reconhecimento como patrimônio brasileiro com titularidade assegurada por períodos de
dez anos. Ao final dos períodos, devem ser feitas revisões dos inventários. Como os primeiros registros
concedidos pelo programa ainda estão por completar uma década, os procedimentos de revisão ainda
estão em debate. Esse processo de titulação trouxe, contudo, receios sobre a perspectiva de se transferir
para o Estado de direitos que seriam de grupos sociais específicos e não da sociedade brasileira como
um todo. A confusão entre as noções de tombamento e de registro também gera equívocos quanto à
possibilidade do Estado obrigar os grupos populares a fixarem suas práticas, sem possibilidade de
criação e renovação.  
78   As ações de salvaguarda nos pareciam então as mais relevantes dos processos de patrimonialização
já que atenderiam às demandas dos atores e grupos sociais envolvidos com esses bens, elaborando e
fomentando planos específicos pautados pelas realidades locais.  

 
194
 

Antes de darmos início às ações do projeto, agendamos reuniões no


Departamento de Patrimônio Imaterial e no Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular, organismos vinculados ao IPHAN envolvidos na gestão do Programa
Nacional de Patrimônio Imaterial. Na época fomos, contudo, desencorajados a usar os
formulários do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), em virtude dos
problemas enfrentados em sua aplicação. Os formulários são extensos e de difícil
preenchimento já que elaborados em um programa inadequado para o modelo de
tabelas empregado.
A proposta de dar início à patrimonialização formal do fandango foi,
portanto, adiada, mas o tema continuou em pauta, permeando a forma como o Museu
Vivo foi pensado e os diálogos travados com os diversos atores que dele participaram.
Não apenas por nossa via de inserção, mas também por meio de outros porta-vozes, a
ideia de reconhecer o fandango como um bem patrimonial brasileiro passou pouco a
pouco a ecoar na região, trazendo com ela muitas interrogações sobre seus benefícios
e revezes.
Com o lançamento das publicações sobre o Museu Vivo do Fandango – um
folheto com endereços de um circuito de visitação pautado pelo fandango, um livro e
um álbum duplo – e, principalmente, com a realização do I Encontro de Fandango e
Cultura Caiçara, conseguimos dar corpo a uma rede79 mais interativa de diálogo e
trabalho entre atores sociais – fandangueiros e parceiros do fandango – o que
certamente foi o desdobramento mais significativo do projeto. Ainda que nos
conteúdos das publicações tenhamos optado por manter uma organização a partir de
demarcações espaciais (estados e municípios) – afinal, tratava-se de um museu de
território80 - a abordagem conceitual do fandango como unidade central de
referenciamento acabou por ser efetivamente compartilhada e apreendida durante o
encontro. Nos fandangos que rompiam a noite, a proposta do Museu Vivo parecia

                                                                                                               
79   No artigo já citado, Fandango’s Living Museum: culture, heritage network and territorialization,
discutimos as condições do processo de formação de uma ‘rede patrimonial’ a partir do
desenvolvimento do Museu Vivo do Fandango (Pereira, Corrêa et al, 2012).  
80   Seguindo os desdobramentos do movimento da Nova Museologia, que propõe a expansão do
conceito de museu e a revisão de seu papel social: “os ecomuseus, museus comunitários, museus vivos
e museus a céu aberto propõem reconhecer e valorizar patrimônios – culturais, históricos, artísticos e
ambientais – dentro de seus próprios territórios, sugerindo um deslocamento não de objetos, mas do
próprio conceito de museu. Os objetos, ou mesmo os sujeitos dos museus, movimentam-se em seus
contextos locais, ‘fincando bandeiras’ de referenciamento territorial.” (Corrêa, Pereira e Pimentel,
2011, p.3)  

 
195
 

enfim ganhar razão, deixando claro que o sentido de patrimônio no mundo do


fandango se revela no próprio fazer.
Nas duas reuniões de avaliação do primeiro encontro e preparação do segundo
que se sucederam, agregando cerca de trinta representantes dessa rede de trabalho, o
pedido de registro do fandango foi aprofundado e planejado. Com a antropóloga
Patrícia Martins, integrante da Associação de Cultura Popular Mandicuéra, de
Paranaguá, assumi a função de elaboração do dossiê preliminar e preparação dos
documentos necessários para o encaminhamento do pedido ao IPHAN.
No II Encontro de Fandango e Cultura Caiçara convidamos uma representante
do IPHAN para participar de uma mesa de discussão sobre os significados e
implicações do processo de patrimonialização do fandango. Foi certamente um dos
momentos de maior repercussão do encontro, com a sala lotada e muitas questões que
demonstravam uma tentativa de aproximação do mundo do fandango com termos e
operações ainda estranhas. Falcão (2011), em seu estudo sobre o processo de
patrimonialização do Jongo, destaca que as políticas do patrimônio imaterial não
apenas consagram bens, mas, sobretudo transformam práticas e modos de pensar ao
aproximá-los de novos domínios categóricos regidos, por exemplo, pela noção de
propriedade.
Nessa mesma reunião foram travados os debates sobre o uso de caiçara
acompanhando a denominação de registro do fandango como bem patrimonial, tanto
para efeito de diferenciação de outras expressões culturais homônimas, quanto
especialmente para privilegiar um sentido de pertencimento social em lugar do
territorial81. Conforme abordei ao longo da dissertação, embora “caiçara” seja um
termo controverso, em âmbito político tornou-se uma categoria de representação com
forte capacidade agregadora.
Durante os dias de encontro, uma lista de adesão circulou colhendo cerca de
quatrocentas assinaturas em favor da abertura do processo de registro junto ao
IPHAN, procedimento que faz parte das demandas relacionadas pelo órgão. Na última
noite, o pedido foi entregue à representante do IPHAN por integrantes das

                                                                                                               
81   Outras formas de expressão da cultura popular, já registradas, seguiram acompanhadas da definição
de território, como Jongo do Sudeste, Samba de Roda do Recôncavo Baiano e Tambor de Criola do
Maranhão. Contudo há também exemplos de bens registrados com ênfase em seus “detentores” ou
“portadores”, como Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi ou Ofício das Baianas de
Acarajé. E ainda os que trazem as duas referências, como Ofício das Paneleiras de Goiabeiras.  

 
196
 

organizações não governamentais que encaminharam o processo formal e por três


fandangueiros – Bonifácio Modesto, Dorçulina Eglmeier e Leonildo Pereira.
É importante ressaltar que o pedido encaminhado ao IPHAN se referia
somente ao registro e não à abertura de um processo de inventário. Considerávamos
que a bibliografia, a discografia e os vídeos já produzidos, desde a perspectiva
folclórica até aquele momento, davam conta de uma vasta documentação sobre o
fandango. Nos diálogos conduzidos até então pensávamos nos desdobramentos
políticos que a titulação do fandango como patrimônio poderia trazer, especialmente,
no que diz respeito à formulação de um plano de salvaguarda e ao compromisso do
apoio estatal. O parecer favorável concedido pela área técnica do Departamento de
Patrimônio Imaterial do IPHAN, emitido alguns meses após o II Encontro, acatou a
demanda considerando desnecessário o preenchimento dos formulários do Inventário
Nacional de Referências Culturais (INRC). O parecer acrescentou apenas a
necessidade de produção de dois vídeos documentários com roteiro estipulado acerca
do bem e de um texto descritivo mais completo. Contudo, durante a elaboração do
edital de chamada para complementação do inventário, o Departamento de Patrimônio
Imaterial acabou por incluir a necessidade de preenchimento dos formulários do
INRC, tornando o processo mais complexo.
A área técnica do Departamento de Patrimônio Imaterial sugeriu registro do
fandango caiçara no livro de “formas de expressão”, abrindo também a possibilidade
de inscrição das técnicas de construção de instrumentos no livro de “saberes”.
Contudo, como demandaria mais trabalho e tempo para preenchimento dos
formulários, essa tarefa foi deixada para um segundo momento.
Os formulários do INRC seguem uma lógica de organização estruturada a
partir da identificação de territórios ocorrência, que podem ser contínuos ou
descontínuos. Antes do preenchimento, é necessário identificar um “sítio” de
ocorrência, que pode ser desdobrado em várias “localidades”. Em 2010, durante uma
reunião entre a coordenação do processo de instrução e representantes do IPHAN para
treinamento quanto ao uso dos formulários, foi definido que a área do litoral sul de
São Paulo e norte do Paraná atenderia à noção de “sítio do fandango caiçara” e os
municípios seriam tratados como “localidades” de ocorrência. Tal demarcação
facilitou ainda a dinâmica de divisão do trabalho de preenchimento dos formulários
por pesquisadores locais.

 
197
 

O processo de inventário envolveu também uma reunião com os “detentores”


do bem para discussão dos conteúdos em elaboração, realizada em agosto de 2010 na
sede do Ponto de Cultura Caiçaras, em Cananeia, com três dias de duração e cerca de
quarenta participantes do fandango de toda região. Leonildo e José Pereira foram
convidados a fazer a abertura da reunião. Revendo os registros desse encontro, posso
hoje refletir como os irmãos se apropriaram a seu modo do diálogo que ali se
colocava entre o mundo do fandango e a lógica do sistema de patrimonialização. José,
acompanhado de sua rabeca, preferiu tocar algo e entoou o hino nacional, em uma
simbologia curiosa de trazer a representação da nacionalidade para dentro do contexto
do fandango. Já Leonildo, investiu nas palavras, em um discurso enfático acionando o
ânimo dos presentes.

Muito bem, muito parabéns, o hino nacional brasileiro, o nosso coração,


nossa maneira vale tudo, e nossa terra também, vale muito? E eu que vi as
músicas minhas vir lá da raiz, lá da roça, não estou mordendo só minhas
carnes, eu estou mordendo as carnes de todos aqueles que são violeiros.
Aquele dia lá na roça, eles ficaram doido que fizeram lá na roça, to me
sentido mal, não só eu, eles também tão se sentindo mal, porque não toca
essa nossa música pra frente. Porque se aqui alguém aqui dá força pra nós,
será que nossa viola vai se quebrar c’os caco aqui no chão? Não pode,
vamos fazer essa viola voltar, vamos fazer essas crianças crescer e
aprenderem, que nós estava bem embaixo. (...)  Mais de coragem não, que
diz a bandeira brasileira, tamo de pé, vamo bater o vento, estamos com
coragem. Meu Deus será que ele nós ajude, pela nossa cultura caiçara,
aonde que nós tamo? Não só Cananéia, estou me mordendo por tudo,
participar do Fandango, do encontro em Guaraqueçaba, que não foi só lá,
pessoal não foi só, nem de cada foi lá, veio um monte de gente foi lá, todo
litoral de São Paulo, Rio. Não é pena cair uma festa que nem aquela? Os
caiçaras será que vão perder essa força? Vão perder essa coragem? Vão
perder essa rebeca e essa viola. Será que não vão ensinar as crianças? Será
que não tem quem ajude? Como é que nós vamos ficar. Tem que brotar,
tem que erguer pra cima esse troço ai, quem não quer ver um filho toca
uma viola, rebeca, canta pra todo mundo vê, não é bonito gente isso aí?
Aquele vinha lá da roça, cada um pegou um... lá da roça, com sacrifício,
tamo amarrado aquele ali, nós não podemos jogar fora, tamo garrado e
pego no peito, no coração. (Leonildo Pereira, fala de abertura em encontro
sobre o processo de registro do fandango caiçara, 2010)

A fala de Leonildo trouxe mais uma vez o sentido de patrimonialização do


fandango como algo que se coloca prioritariamente na ação. A memória só faz sentido
se ativada na prática.

De o fandango não cair, isso que você quer dizer né? Então o meu objetivo
é, além de estar um pouco fraco, mas eu quero armar mais, fazer o que eu
quero fazer e o que eu fazia. Eu tenho minha coragem pra fazer, estou
pronto pra isso, armar, fazer casa. Já ta se preparando uma casa, um salão

 
198
 
de aprendiz pra chamar os jovem pra ensinar e pra colher gente pra fazer o
mutirão e bater o fandango natural que nós fazia. Esse é o meu objetivo de
fazer. Eu tenho uma boa coragem pra isso que vai sair sinceramente. Não
só quero da minha parte, pra todo os fandangueiro também. Que isso não é
coisa de dizer, vamos falar aqui ‘vai cair’? Não, não podemos dizer isso.
Isso é uma coisa natural, coisa de raízes. Nós não podemos deixa cair isso
aí. Ativar as crianças, ativar os jovens isso ai, não pode cair mesmo
(Leonildo Pereira, em depoimento no encontro sobre o processo de registro
do fandango caiçara, 2010)

As noções de territorialidade e espacialidade também foram enfatizadas como


perspectivas importantes para a continuidade do fandango, aparecendo tanto na
demanda mais ampla pelo reconhecimento do direito territorial, quanto no recorrente
anseio de grupos e fandangueiros por terem uma “casa de fandango”. O curioso é que,
embora a tradição de realização de fandango esteja relacionada ao ambiente
doméstico, há hoje uma demanda grande por espaços específicos para encontros,
organização dos grupos e oferta de aulas e ensinamentos. Creio que tal anseio reflete
uma lógica de formalização que se estabelece a partir de seus trânsitos pelos circuitos
da cultura, onde as esferas do ensino e do lazer foram em grande parte amputadas do
ambiente doméstico.

No fandango tem que ter alguns tipo de comida... comida não, mas assim
uns doces, umas bebida pra bebe. Mas tem que fazer no formato como era
feito antigamente. (José Pereira, em depoimento no encontro sobre o
processo de registro do fandango caiçara, 2010)

Percebo a tensão entre fazer como os “antigos” e a busca de novos caminhos


sempre presentes nas abordagens sobre a perspectiva de patrimonialização do
fandango. Uma vez que o fandango não se restringe ao modo de vida nos sítios, os
próprios fandangueiros assumiram que há uma necessidade de apoio. No exercício de
demanda, a perspectiva de mestre se sobressai em relação à criatividade do fazer
artístico. O entendimento de que o Estado tem uma obrigação frente ao fandango,
pauta-se pelos aspectos que envolvem o fandango em um sentido de tradição
transmitida por gerações.
Outro aspecto enfatizado no processo de discussão sobre a patrimonialização
do fandango diz respeito aos direitos territoriais caiçaras.

A gente precisa pensar melhor na questão do território de comunidades


tradicionais no Brasil, entendeu? Estamos registrando a cultura caiçara,
todo o conhecimento e saberes, mas isso não é isolado do território
entendeu? Porque? Por que pro cara fazer a rabeca ele precisa do mato, pra

 
199
 
fazer o pilão ele precisa da floresta, e esse território está sendo tomado ou
por especulação imobiliária, fazendeiro essas coisas, ou pela unidade de
conservação de proteção integral, que não deixa essa comunidade trabalhar
mais, nem fazer sua roça, nem tirar sua canoa, nem tirar pilão. (...) A gente
precisava arrumar uma forma qualquer, eu num sei se criando reservas de
uso sustentável , criando reservas extrativistas ou unidades de conservação
de uso sustentável, uma coisa que garanta a permanência legal das
comunidades. O governo daria uma permissão de direito real de uso pra
cada família, então não estimularia a especulação imobiliária pois seria
unidade de conservação. Eu acho que seria uma coisa que daria pra fazer.
(Dauro Marcos do Prado, em depoimento no encontro sobre o processo de
registro do fandango caiçara, 2010)

O reconhecimento do fandango como bem patrimonial brasileiro deve,


portanto, ser compreendido principalmente por seu viés estratégico. Embora haja
muitas controvérsias nos processos de patrimonialização, penso que a apropriação de
seus usos pelos interlocutores do mundo do fandango pode contribuir para vitalidade
do fazer fandango e para contrabalançar o peso das políticas de conservação
ambiental. Afinal, assim como a mata atlântica da região representa um valioso
patrimônio para o Brasil e o mundo, os saberes e práticas culturais caiçaras também
constituem um patrimônio que carece de proteção, valorização e incentivo.
 

 
Família Pereira
Genealogia das Famílias*
Adauto Pereira Joaquina Alves

Franklin Pereira Isabel Costa

Família Alves
Família Camilo

Vicente Ulisses Julino e Augusta Ulisses


Eugenio Camilo e Placidina Julio Joaquina
Pereira Pereira Alzira Pereira Alves

Urbano e
Rosa e Leonildo Randolfo Arnaldo Felício Pedro Anísio Bernardina Nilo João Alves e
Luiz Maria José Iolanda
Quirino seus irmãos

Maurício
Carla Laerte Agnardo Jersi Rosangela
Heraldo

* O objetivo desta genealogia é ilustrar as relações familiares entre as pessoas citadas. As famílias não estão completas,
pois, para facilitar a visualização, muitos irmãos, irmãs, filhos, filhas, maridos e esposas foram omitidos.
Angélia, Angela e Mateus

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