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RIO DE JANEIRO
2013
C824f Corrêa, Joana Ramalho Ortigão.
Vamos fazer um fandango – Arranjos familiares e sentidos de
pertencimento em um dinâmico mundo social / Joana Ramalho Ortigão
Corrêa – 2013.
201f.:Il.
Aprovada em:
__________________________________________________
Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (orientadora – PPGSA/IFCS/UFRJ)
__________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Teixeira Gonçalves (PPGSA/IFCS/UFRJ)
__________________________________________________
Profa. Dra. Renata de Sá Gonçalves (PPGA/UFF)
__________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos Sant’Ana Diegues (PROCAM/USP)
RIO DE JANEIRO
2013
RESUMO
CORRÊA, Joana Ramalho Ortigão. “Vamos fazer um fandango / Arranjos familiares e sentidos
de pertencimento em um dinâmico mundo social”. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado
em Sociologia e Antropologia, com concentração em Antropologia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
CORRÊA, Joana Ramalho Ortigão. “Let’s play fandango / Familial arrangenmnts and sense of
inclusiveness in a dynamic social world”. Rio de Janeiro, 2013. MS dissertation (Master in
Sociology and Anthropology, with focus on Anthropology ) – Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
The dissertation investigates the semantic range of the notion of "to play fandango" from
living with fandangueiros from the southern coast of São Paulo and northern Paraná. Popular
expression that combines dance, music and poetry, the research seeks to elucidate how the
social world of the fandango is constituted and is altered through the interaction with other
social networks. Since the studies of folklorists from the first half of the twentieth century
until today, the fandango moves through culture circuits assuming new meanings and
practices. Through an ethnographic experience in ranches and villages in the municipality of
Cananeia, in São Paulo, from historical accounts and from different contexts circulation of the
fandango, we investigated the familial arrangements of a family of fandangueiros – the
Pereira family - and their new positions as groups, masters and artists. Within the movement
of the fandango with the Pereiras, and including some of their colleagues, we sought to
understand the meanings and forms that make this “to play fandango” so dynamic.
Key words : Folklore Studies. Popular Culture. Fandango. Family and Kinship.
Agradecimentos
À Profª. Maria Laura Cavalcanti, pelas tantas leituras, comentários e indicações, pela
generosidade com que semeia conhecimentos e pelo estímulo e carinho em todas as horas,
uma incrível orientadora.
À Profª. Renata Gonçalves e ao Prof. Marco Antonio Gonçalves por gentilmente participarem
da banca de qualificação e avaliação, oferecendo instigantes contribuições à pesquisa.
Ao Prof. Antonio Carlos Diegues, pela importância de seus estudos sobre cultura caiçara e
pela honra de sua participação na banca final de avaliação.
E também aos professores que contribuíram para minha formação nas disciplinas cursadas ao
longo do mestrado, especialmente, Luisa Elvira Belaunde, Luiz Fernando Duarte e Gilberto
Velho (em memória).
Ao PPGSA, pela possibilidade de aprendizado de um novo ofício e pelo apoio que viabilizou
minha participação em encontros e congressos.
Aos colegas e amigos de turma Juliana Athayde, Maíra Acioli, Luiza Dias Flores, Pedro
Cazes, Jeferson Scabio, Gibran Teixeira Braga, Viviane Carvalho Cid, Ana Paula Morel,
Maíra Mascarenhas, Marcella Carvalho, Paula Jathay, Carolina Lopez, Caroline Brito, Nina
Vincent Lannes, Paloma Malaguti, Cecília Barbosa, Gabriel Kubrusly, Juliana Marques,
Juliana Rocha, pelo ambiente de convivência fértil, parceira e afetiva, e especialmente à
Lorena França, pela cumplicidade.
Aos demais amigos e parceiros de trabalho do Museu Vivo do Fandango, Eduardo Schotten,
Felipe Varanda, Marcelo Makiolke e, especialmente, Oswaldo Rios e Rogério Gulin, com os
quais muito aprendi.
A todos da família Pereira, pela animação e poesia com que fazem seus fandangos.
Ao José Pereira, pelos ensinamentos, pela paciência e pela beleza da música que faz com sua
rabeca.
À Maria Camilo e seus filhos, a toda família Camilo, pelos diálogos e pelo acolhimento em
suas casas durante o trabalho de campo.
Ao Leonildo Pereira, por sua disposição e alegria contagiantes, pois como ele sempre diz:
“tristeza não paga dívida”.
Ao Arnaldo Pereira, ao Randolfo Pereira e seu filho Maurício Pereira, ao João Alves e
Fandangueiros do Ariri, ao Isidoro, Baduca e demais integrantes do grupo Família Neves,
pelas muitas conversas e encontros nos percursos do fandango pelos sítios e vilas de
Cananeia.
Ao Ponto de Cultura Caiçaras e todos que colaboram com essa iniciativa sempre presente e
atuante nos trânsitos do fandango em Cananeia.
À Associação dos Jovens da Jureia, exemplo de garra na defesa dos direitos das comunidades
caiçaras.
À Lucia Domingos de Souza e Luan de Souza, pela afinidade e parceria que acalentaram esta
pesquisa.
Ao Museu Casa do Pontal, em especial a Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque, pela
intensa convivência em quase uma década de amizade e aprendizado nos circuitos da cultura e
pelos arranjos de tempo que viabilizaram o percurso do mestrado.
Aos amigos e colegas pesquisadores de folclore e cultura popular, além dos vários já
mencionados, Luzimar Pereira, Raquel Dias Teixeira, Cecília de Mendonça, Oswaldo
Giovannini Jr, Ana Teles, Rita Gama, Moana Van de Beuque, Nina Pinheiro Bittar, Clarisse
Kubrusly, Valéria de Aquino, Barbara Fontes, Luciana Aguiar, Ricardo Barbieri, Céline
Spinelli, Rebeca de Luna Guidi, Edilberto Fonseca, Daniel Fernandes e Juliana Manhães,
pelos diálogos e contribuições oferecidas no decorrer da pesquisa.
Aos novos e bons amigos de Milho Verde, que suavizaram os tempos de escrita da
dissertação.
Às minhas queridas amigas e comadres Laura Geszti, Sol Oliveira, Vera Schroeder, Julia
Andrade, Ana Gabriela Dickstein e Tereza Paiva, e também ao Felipe Leite e ao Sergio
Allisson, pelas horas de diversão e cumplicidade essenciais à renovação das ideias.
Aos meus avós Villas-Boas Corrêa, Regina de Sá Corrêa (em memória), Nedda Ortigão e José
de Barros Ramalho Ortigão (em memória), à minha mãe Isabel Ortigão, ao meu pai Marcelo
de Sá Corrêa, ao meu irmão André Ortigão Corrêa, à Márcia Leite e ao Octacílio Lopes, pelo
amor, carinho e apoio.
Agradeço especialmente à minha mãe por incentivar meu retorno à vida acadêmica, e também
pelo apoio crucial nas etapas finais da dissertação.
À minha filha Clara, amor demais e sempre, por ter estado ao meu lado em grande parte das
pesquisas e trabalhos aqui citados, por seu gosto pelo fandango e por me ensinar diariamente
como é bom brincar.
Sumário
Introdução
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Adentrando o contexto social do fandango
14
O Museu Vivo e meu posicionamento no fandango
25
Os Pereira e a noção de família como operadora do mundo social do fandango
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Campo, interlocutores e fontes de pesquisa
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Apresentação dos capítulos
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Capa: Apresentação da Família Pereira e do Viola Quebrada no CCBB. São Paulo, 2012.
Foto: Joana Corrêa.
Figura 1: Mapa do Brasil com destaque para a região de domínio da Mata Atlântica e áreas
remanescentes da Mata Atlântica. (p. 17).
Figura 2: Mapa do litoral sul de São Paulo e litoral norte do Paraná com os municípios de
Cananeia e Guaraqueçaba, seus sítios e vilas. (p. 31).
Figura 3: José Pereira, em primeiro plano, seguido por seu filho Laerte e seu irmão Arnaldo,
em gravação na Casa de Cultura do Ariri. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 36).
Figura 4: Leonildo Pereira tocando rabeca em sua oficina no Abacateiro. Guaraqueçaba, 2005.
Foto: Felipe Varanda / acervo Museu Vivo do Fandango. (p. 37).
Figura 5: Grupo com fandangueiros da Ilha dos Valadares Liderado por Manequinho da Viola
e Romão Costa. Sem data. Acervo pessoal de Romão Costa. (p. 55).
Figura 6: Frente e verso da capa do disco Fandango do Paraná, Coleção Documento Sonoro
do Folclore Brasileiro n.15, 1976. (p. 59).
Figura 7: Batera, embarcação comum na região. Ariri, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
(p. 75).
Figura 8: José Pereira no portinho de acesso ao Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 76).
Figura 9: Trilha de acesso ao Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 76).
Figura 10: Chegada no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 77).
Figura 11: Escola desativada no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 77).
Figura 12: Casa de José Pereira em seu sítio no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 78).
Figura 13: Casa de Arnaldo Pereira no Ariri. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 78).
Figura 14: Cozinha anexa à casa de José Pereira, no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 79).
Figura 15: Fogo de chão, na cozinha da casa de José Pereira, no Varadouro. Cananeia, 2012.
Foto: Joana Corrêa. (p. 79).
Figura 16: Instrumentos na parede da casa de José Pereira no Ariri. Cananeia, 2012. Foto:
Joana Corrêa. (p. 80).
Figura 17: Paisagem da travessia do centro de Cananeia ao Ariri. 2012. Foto: Joana Corrêa.
(p. 86).
Figura 18: Paisagem da travessia do centro de Cananeia ao Ariri, com guarás à beira do
mangue. 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 86).
Figura 19: Ariri visto da balsa da DERSA. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 86).
Figura 20: Casario colorido do Ariri à margem do canal. Cananeia, 2012. (p. 86).
Figura 21: Casa da Cultura e do Fandango Caiçara. Ariri, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
(p. 92).
Figura 22: João Alves e Lucia na Casa da Cultura e do Fandango Caiçara. Ao fundo, Arnaldo,
José e Larte Pereira em gravação para um projeto do Ponto de Cultura Caiçaras. Ariri,
Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 92).
Figura 23: João Alves e José Pereira em fandango no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011.
Foto: Joana Corrêa. (p. 95).
Figura 24: Músicos no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011. Foto: Joana Corrêa. (p. 96).
Figura 25: Casais dançando no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011. Foto: Joana Corrêa. (p.
96).
Figura 26: Vista de área central do Marujá, onde turistas se reúnem nos fins de tarde de verão.
Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 98).
Figura 27: Praia do Marujá. Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 98).
Figura 28: Família Neves e José Pereira em fandango no Maruja. Ilha do Cardoso, Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 99).
Figura 29: Jovens dançando em fandango no Marujá. Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto:
Joana Corrêa. (p. 99).
Figura 30: Cartaz da festa de São Sebastião, na Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso, Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 101).
Figura 31: Músicos no fandango realizado na festa da Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso,
Cananeia, 2012. Foto: Luixx Mayerhofer. (p. 102).
Figura 32: Participantes no fandango realizado na festa da Enseada da Baleia. Ilha do
Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Luixx Mayerhofer. (p. 102).
Figura 33: Mutirão de colheita de arroz no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
(p. 104).
Figura 34: Roque Mateus no mutirão de colheita de arroz no Varadouro. Cananeia, 2012.
Foto: Joana Corrêa. (p. 104).
Figura 35: Fandango após o café da manhã, no dia seguinte ao mutirão e à noite de fandango.
Varadouro, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 109).
Figura 36: Mulheres ouvindo música mecânica no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 109).
Figura 37: Domingueira com a Família Neves no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa. (p. 109).
Figura 38: Instrumentos de Arnaldo Pereira. Ariri, Cananeia, 2012. Foto: Leco de Souza. (p.
116).
Figura 39: Capa do CD Viola Fandangueira, gravado pelos grupos Viola Quebrada e Família
Pereira, 2002. (p. 126).
Figura 40: Integrantes da Família Pereira que participaram da gravação do CD Viola
Fandangueira. Da esquerda para a direita, de pé, Anísio, Heraldo, Jersi, Agnardo, Arnaldo e
Vicente França, abaixados, José, Leonildo e Nilo. 2001. Foto: Bela Pagliosa. (p. 126).
Figura 41: Ensaio dos integrantes do Viola Quebrada com a Família Pereira em quarto de
hotel. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 140).
Figura 42: Passagem de som dos integrantes do Viola Quebrada com a Família Pereira no
CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 141).
Figura 43: Viola Quebrada e Família Pereira no espetáculo “Caipiras e Caiçaras” no CCBB.
São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 143).
Figura 44: Público do espetáculo no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 143).
Figura 45: José Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 144).
Figura 46: Arnaldo Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 144).
Figura 47: Laerte Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 144).
Figura 48: Leonildo Pereira no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 144).
Figura 49: Leonildo e Laerte Pereira fazendo uma demonstração de batidos. São Paulo, 2012.
Foto: Joana Corrêa. (p. 145).
Figura 50: Viola Quebrada, os Pereira e Mario de Aratanha, diretor artístico do projeto
Ser(tão) Brasil, no camarim do CCBB, conversando sobre o repertório da segunda
apresentação. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa. (p. 145).
Figura 51: Esquema coreográfico da dança do fandango. (p. 160).
Figura 52: Tamancos confeccionados por Leonildo Pereira. Guaraqueçaba, 2002. Foto:
Alexandre Pimentel. (p. 162).
Foto 53: Tocadores da Família Pereira no I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara.
Guaraqueçaba, 2006. Foto: Leco de Souza. (p. 166).
Foto 54: Dançadores da Família Pereira no I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara.
Guaraqueçaba, 2006. Foto: Leco de Souza. (p. 166).
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Introdução
A partir do entendimento que as culturas populares protagonizam importantes
processos sociais – tais como movimentos identitários afirmativos, processos de
patrimonialização e uma vasta produção que dinamiza o mercado cultural – esta pesquisa
investiga as diversas formas de construção social e noções de pertencimento de uma
expressão singular, o fandango, que se reveste de múltiplos significados em seus modos de
fazer.
1
Os integrantes da Caburé eram, na época, em sua maioria universitários ou pós-graduandos de classe média
urbana no Rio de Janeiro. Participavam ou já haviam participado de outros núcleos de pesquisa e recriação
artística do universo popular brasileiro, como os grupos musicais Cordão do Boitatá e Gesta, e ainda do grupo
teatral Boi Cascudo. A Caburé, mais tarde, recebeu a adesão de novos integrantes, com perfis semelhantes.
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16
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Figura 1: Mapa do Brasil com destaque para a região de domínio da Mata Atlântica
e áreas remanescentes da Mata Atlântica
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Negócio de puxirão era no sítio, lá fazia. Os meus tios faziam puxirão pra plantar.
Convidava aquele povo. “Amanhã, sábado, vocês vão roçar pra mim lá e na outra
semana fazemos pra outro. E fazemos assim”. Então fazia. Aquele que não ia, não
participava do fandango. (Seme Balduíno, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)
Fazia aquele mutirão pra roçar, pra derrubar, limpar pedra, puxar canoa. Meu pai
fazia canoa de madeira, canoas grandes. Ficava longe pra trazer de lá pro porto, pro
mar: distância de seis, sete quilômetros de mato fechado. Então eles faziam as canoas
grandes e não dava pra puxar sozinho, tinha que fazer mutirão. Trinta, quarenta
pessoas, ou vinte pessoas, pra puxar pra baixo. (...) Daí puxava a canoa, vinha
embora. Botava as comidas, tudo. Ficava por ali. Aí, à noite começava o fandango.
(Nemésio Costa, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango,
Paranaguá, 2005)
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Com certeza a gente tinha de tudo, não passava mal, não. A nossa alimentação... A
gente tinha conforto. Uns já tinham porco, plantação, criação e afinal se dedicava a
caçar no mato. Nós ia, fazia o mundéu, ia com cachorro caçador, matava a caça. A
gente se alimentava. Não tinha essa tragédia que está acontecendo hoje. Se vai lá,
mata, pega uma caça e vai preso. Meu Deus, a situação está uma pobreza. Ele não
pode se dedicar ali no mato, a viver no mato mais, tem que sair (...) agora tudo bem,
matar e judiar demais, não. Mas eu acho que o pacto é pra alimentação, mas tinha que
ter uma preferência para o pessoal sobreviver no sítio, para o povo viver no sítio, para
o povo plantar, para se manter e para manter o comércio, da parte do governo. Porque
sem o pessoal plantar não dá. (Eugênio dos Santos, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)
Eu vim por causa das minhas crianças e por conta de socorro. Era muito difícil pegar
uma criança lá e trazer de canoa pra Guaraqueçaba, se tornava muito difícil de mais,
muita dificuldade. Hoje não parece ser muito, mas melhora o pronto socorro. Tem
telefone pra Guaraqueçaba, então a saúde vem me atender. (Leonildo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005)
Ao longo da viagem, travamos contato também com grupos organizados que faziam
oposição ao modelo ambiental restritivo. Em Barra do Ribeira, distrito costeiro de Iguape,
conhecemos integrantes do grupo de fandango Jovens da Jureia, articulados à União dos
Moradores da Jureia. Esta organização social havia sido formada por ex-moradores e
descendentes de ex-moradores de sítios localizados na área onde, em 1986, foi demarcada a
Estação Ecológica da Jureia, uma das maiores unidades de conservação de mata atlântica do
país.
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vieram vários ambientalistas, pessoal do governo, dizendo pra essas comunidades que
ali ia se criar um santuário ecológico, e que iam tirar todos os veranistas,
latifundiários, e que as comunidades iam ficar na boa, que o progresso ia pra lá... Aí
tudo bem, o pessoal acompanhou isso, ficavam, vinha muitos pesquisadores,
entrevistando o pessoal, e tudo mais... E aí de repente, quando fizeram a lei, em 86,
proibiram todas as atividades dos moradores, que era a pesca, a agricultura, manejo de
palmito, caixeta, a questão de andar pelas trilhas. Na verdade, todas as atividades dos
moradores foram proibidas. E as comunidades começaram a ver como que era um
santuário ecológico e que a gente ia ficar aqui e de repente não podia mais pescar,
nem caçar, nem tirar palmito, nem fazer mais nada. E aí as pessoas foram obrigadas a
começar a sair da Jureia, ir pro município de Peruíbe, ou de Iguape, ou de Miracatu, e
começou a esvaziar a comunidade. Entrou uma repressão muito grande da polícia
florestal e guarda-parque. Tinha até comando especial do exército, fazendo
treinamento na Jureia. E começou uma perseguição muito grande desses guarda-
parques, e a comunidade começou então a ser multada, ser proibida de fazer as
atividades. Aí teve que se organizar. O pessoal ia da Jureia pra cidade, chegava na
cidade não tinha uma profissão, voltava pra Jureia, já não tinha mais agricultura,
então ficou uma loucura. E a gente conhecia todas essas comunidades, tinha mutirão,
tinhas as festas religiosas, tinha várias coisas. E aí surgiu em início de 90 a União dos
Moradores da Jureia, se organizaram em uma associação e começamos a participar,
então, da discussão da Jureia. A primeira reunião que foi marcada foi com o deputado
que criou a lei de Estação Ecológica, o Rubens Lara. E a gente começou a entender o
que era Estação Ecológica, que era uma lei restritiva e que essa lei não permitia fazer
nada na Jureia, nem construção, nem reforma, nem limpeza de trilha, e a questão da
pesca... Nada daquilo que a comunidade fazia, não podia fazer mais... E começamos,
então, nessas reuniões, reivindicar os direitos perante as entidades ambientalistas e o
governo. E eu participava de toda essa discussão e levava isso pra dentro da Jureia,
pras comunidades, e voltava pra Iguape, pra São Paulo, pra outras cidades, das
reuniões que tinham das associações de moradores junto com o governo, pra ver o
que estava acontecendo e levar sugestões e propostas. E aí eu vi a importância desses
jovens, que estavam saindo pra cidade, perdendo os conhecimentos da sua cultura,
que voltassem pra Jureia. Isso era o nosso objetivo, da União dos Moradores da
Jureia. Então a gente criou, em 93, a Associação dos Jovens da Jureia. A maioria dos
jovens já tinha ido pra cidade, a maior parte tinha vindo pra Barra do Ribeira, então
houve a necessidade de criar uma associação, por causa da questão jurídica, pra
buscar projetos de geração de renda. (Dauro Marcos do Prado, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Iguape, 2005)
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De primeiro, aqui em Paranaguá, tinha caboclo. Porque veja só: a primeira família do
africano com índio fez mameluco. Depois do mameluco, aí veio o branco com índio,
deu caboclo. Me sinto como caboclo. Porque caiçara, eu tive vendo num dicionário,
de São Paulo pra lá, é uma cerca, feita de vara, com coluna de madeira, indígena.
Então aquela cerca chama-se caiçara. Aí dentro tem uma cabana de um índio que
toma conta, chama-se vagabundo, borel, preguiçoso... E o caboclo é gente
trabalhador! Se não fosse o caboclo, não existia os grandes fazendeiro. O caboclo é
que pega na enxada pra trabalhar pro grande fazendeiro. Está escrito na coisa, quê que
eu vou fazer? Vou tirar? (Romão Costa, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)
Eu participei de três ensaios com o grupo do Mestre Romão. E fui lá aprender, achei
interessante que o pessoal tava se interessando pela tradição. Só que eu saí do grupo
na época porque eu não gostei, tinha o Seu Romão que ensinava, mas tinha um outro
rapaz que vinha de Curitiba, era coreógrafo na época, não me lembro, acho que do
Teatro Guaíra, não me lembro realmente quem era. Ele ajeitava a postura dos
meninos. E fazia os meninos dançarem “Ah, dança assim, dança assado”. Ele era
muito áspero, e às vezes ele falava umas coisas que eu já tinha consciência de que não
era bem assim, né? Ele falava coisas do tipo: “Ah, levanta esse ombro! Pega a
menina com o braço mais em cima, você parece que é um caboclo, parece que é lá do
mato, lá do meio do sítio!” E tinha gente da Cotia, gente do Valadares. O Valadares
sempre sofreu muito preconceito do povo da cidade. Por isso que as coisas ficam
reservadas lá, porque quem é do sítio mora no Valadares. Quem se assume como
caiçara, mora no Valadares. A cidade já vinha daquele processo de industrialização,
“não, nós somos da cidade, nós não falamos com sotaque”, e fala, até hoje, o pessoal
fala cantado, não tem muita diferença. Aqui no Valadares o pessoal fala mais cantado,
e eu sou de lá, nunca neguei isso. E na época, quando esse coreógrafo falava isso, isso
me ofendia muito. Eu não gostei, participei de três ensaios, e saí. (...) Historicamente,
o caiçara era visto aqui em Paranaguá, como o povo do sítio, o povo litoral, o povo
preguiçoso. Só que as pessoas não viam que, quando eles vinham no mercado, e viam
as pessoas tudo na beira da praia, às dez horas da manhã, sem trabalhar, sem fazer
nada, só sentado, conversando, as pessoas não viam que os pescadores estavam ali
vendendo peixe. Desde as três horas da manhã, já estavam no mar, mar grosso,
puxando rede, coisa e tal. Eles estavam ali só já vendendo seu produto. Quando as
pessoas vinham pra cá, elas tinham essa mentalidade, que é um povo vadio, um povo
preguiçoso. É uma outra cultura, mas se deve respeitar. E também o povo começou a
assumir, porque o povo não queria ser visto como preguiçoso, automaticamente, não
queria ser visto como caiçara, e começa a se negar. Paranaguá sofreu muito, até com o
desaparecimento de várias manifestações populares, por não querer assumir a
identidade. As pessoas tinham vergonha de se mostrarem paranaguaras. Vergonha de
se mostrar, principalmente, do sítio, né? Jamais falaria que é do sítio, caiçara nem
pensar. E isso ainda persiste até hoje. Você vê que, um exemplo disso é o Mestre
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Romão. O Mestre Romão não se assume como caiçara, de jeito nenhum. (Aorélio
Domingues, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango,
Paranaguá, 2005)
Aorélio, contudo, acreditava que esses termos vinham passando por um processo de
ressiginificação.
Eu sou nascido num sítio, eu sou o caiçara, o caipira legítimo. Eu não nego, pra mim
isso é muito bom, ser o caipira legítimo. (João da Toca, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Cananeia, 2005)
É como um amigo meu me falou um dia: “Rubens, você pode viajar, você pode ir
pra onde for, pode morar... só que você vai ser sempre o que você é, tem espírito
humilde, tem espírito de caiçara, o teu modo de falar sempre vai ser aquele”, porque
tem pessoas que tem vergonha de ser o que é, isso não pode, ninguém ter vergonha
de ser o que é. Isso de mudar a fala, porque o cara da cidade fala bonito, ou se mora
aqui, você vai lá e já volta falando... isso aí é ridículo, acho que você tem que ser
aquilo que você é, não adianta... isso é bonito. (Rubens Muniz, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005)
Pra gente viver mais juntos, os irmãos, os tios, pra estarem todos mais juntos pra não
perder essa cultura que a gente tinha... E hoje, a gente lutando, querendo voltar lá
pro sítio, tendo uma Associação, pra gente brigar, fica mais forte, pra gente estar
lutando, todo mundo junto, né? (Glória do Prado em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Iguape, 2005)
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24
expressasse a vitalidade que haviam experimentado no passado. Embora esse passado fosse
impreciso historicamente, era sempre acionado nos relatos sobre o fandango trazendo seus
sentidos ordenadores. Contar do tempo dos sítios era a principal maneira de nos explicarem o
fandango.
O carnaval era com o fandango. Naquele tempo quando era novo, nem baile quase
não havia, no reduto inteiro era só fandango (...) Dia de Carnaval, era sábado,
domingo, segunda, terça até meia-noite. Quando chegava ali, o enterramento do
Carnaval. Os de hoje não têm mais respeito disso. O pessoal tão num jeito que é só
Deus quem sabe. Por isso nós estamos vendo muita coisa que nem era pra ver.
Estamos vendo por causa do capricho do pessoal. (...) É por causa da quaresma, que
hoje o pessoal nem respeita mais. (Rufino de França, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Morretes, 2005)
Daí no outro dia, domingo, fazia a domingueira, quando era onze e meia o dono da
casa dizia “olha, terminou o horário da brincadeira”, e meia-noite ninguém mais
dançava. Meia-noite, antes de terminar o fandango, desafinava a viola, botava ela de
boca pra baixo, na parede, fazia uma oração de pai-nosso e ave-maria, e todo mundo
ia embora. Eles só iam pegar na viola sábado de Aleluia, depois que o padre batia o
sino. (Romão Costa, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, Paranaguá, 2005)
A grande maioria dos fandangueiros que conheci preferia falar do fandango voltando a
narrativas sobre “aquele tempo”, que remetia à vida nos sítios e aos mutirões. Contudo, havia
um cenário evidente de formação de grupos que, logo soubemos, não era algo tão recente. O
primeiro grupo de fandango que se tem notícia na região remete à década de 1960, com
fandangueiros oriundos de vários sítios e vilas que haviam migrado para a Ilha dos Valadares.
Manequinho da Viola, já falecido, e Romão Costa estiveram à frente do grupo que se formou
por incentivo do folclorista Inami Custódio Pinto. Na década de 1970, fandangueiros de
Morretes, como Martinho dos Santos e Rufino França, participaram de um grupo semelhante,
reunindo fandangueiros de várias localidades. Segundo eles, Helmosa Salomão Ritcher, uma
influente professora local que tinha muito apreço pelo folclore, foi quem arregimentou os
músicos e dançadores, assumindo a liderança do grupo. Na década de 1990, Romão Costa
25
Após a realização do projeto Rabequeiros – que de fato contou com a participação dos
Pereira no espetáculo dedicado ao fandango – voltei algumas vezes à região com o desejo de
estreitar relações e pensar em outras ações culturais que colaborassem para uma maior
articulação entre os grupos e iniciativas que conhecemos. Acreditava que seria importante
aproximar e acionar elos entre grupos e iniciativas em curso nos municípios.
No momento inicial de constituição da Associação Cultural Caburé, nossos encontros
eram frequentes. Reuníamo-nos para troca de experiências e colaboração mútua em projetos
culturais que estabeleciam subgrupos de interesse. Acompanhávamos também as discussões
em torno das políticas públicas para as culturas populares. Na época, estava em curso a
implementação do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, promulgado pelo governo
federal em 2000. A regulamentação do programa trazia para o campo das culturas populares
debates renovados sobre práticas de registro e salvaguarda de expressões culturais de cunho
tradicional.
Nesse cenário, começamos a desenhar o projeto Museu Vivo do Fandango, que
marcou minha aproximação e atuação mais sistemática no contexto do fandango. Partindo da
escuta dos interlocutores – atores sociais diversificados envolvidos com o fandango e
representantes de organismos públicos municipais e estaduais –, propusemos uma atuação em
múltiplas frentes que favorecesse uma maior articulação entre agentes e ações relacionadas ao
fandango.
No Paraná, circulavam muitas publicações ratificando um sentimento de exclusividade
do fandango como ícone da representação da cultura popular nativa do estado. Já em São
Paulo, o fandango era mais fortemente associado ao modo de vida caiçara. O contato entre
fandangueiros paulistas e paranaenses se mostrava na época bastante restrito. Esse
26
afastamento parecia estar relacionado, dentre outros fatores, a uma dificuldade real de
circulação entre o litoral dos dois estados10.
O aspecto central do Museu Vivo do Fandango era, portanto, o estímulo à interação
entre praticantes e práticas do fandango de municípios litorâneos de São Paulo e do Paraná. A
ideia de museu vivo11 foi pensada como uma rede de troca de experiências, registro e fomento
da prática do fandango, formalizada em um circuito integrado por casas de fandangueiros e
construtores de instrumentos musicais, centros culturais, espaços de comercialização de
artesanato caiçara, além de locais de disponibilização de acervos bibliográficos e
audiovisuais.
Entre 2005 e 2006, obtivemos apoio financeiro do Programa Petrobrás Cultural para
viabilizar um conjunto de ações que dariam corpo à proposta do Museu Vivo. Envolvi-me,
juntamente com uma equipe, na organização de entrevistas com cerca de trezentos
fandangueiros, publicação de um livro e de um CD duplo, edição de um documentário e
organização do I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara, no município de Guaraqueçaba,
que reuniu cerca de duzentos e cinquenta fandangueiros de toda a região. Também
organizamos oficinas de projetos para representantes de grupos de fandango e entidades
culturais, oferecemos oficinas para educadores das redes de ensino, apoiamos a obtenção de
auxílios financeiros e a organização de centros culturais geridos por entidades locais,
incentivamos a divulgação do fandango nas redes de receptivo turístico e abrimos canais de
diálogo com outros pesquisadores de fandango e cultura caiçara para a organização de sete
estantes temáticas de acervo para consulta, que foram cedidas a prefeituras e entidades não
governamentais.
Nos dois anos em que estive envolvida na gestão do projeto, enriqueci-me de
experiências com temas e situações diversificadas. Contudo, aos poucos, deparei-me também
com alguns questionamentos éticos sobre o papel de produtora cultural em um contexto
popular de gritantes abismos sociais. Com o passar dos anos, optei por me deslocar a uma
10
Na década de 1950, para facilitar a rota fluvial entre os Estados de São Paulo e Paraná, foi aberto o Canal do
Varadouro, transformando Superagui em uma ilha artificial. A obra, concluída em 1955, visava interligar por via
fluvial a Baía de Paranaguá à baía de Trapandé, situada entre a Ilha do Cardoso e o Centro de Cananeia.
Contudo, na década de 1980, foram interrompidos os serviços da Companhia de Navegação Sul Paulista, que
fazia a rota de navegação fluvial entre Iguape e Paranaguá, através do Canal do Varadouro. A principal rodovia
de ligação entre São Paulo e Paraná, a Regis Bittencourt (BR 116), passa ao largo destes municípios e a travessia
pelo litoral tornou-se custosa, já que precisa ser feita em embarcação particular.
11
A conceituação deste formato museal foi pensada ainda em diálogo com as propostas de alargamento e revisão
do papel social dos museus, que em 1970 começaram a ser debatidas pelo movimento que ficou conhecido como
Nova Museologia.
27
nova posição de apoio a projetos locais e a algumas iniciativas gestadas no âmbito do Museu
Vivo que haviam sido mais bem acolhidas pela rede de trabalho então constituída.
Em 2008, participei da organização das mesas de debate do II Encontro de Fandango e
Cultura Caiçara, sob coordenação da Associação de Fandangueiros de Guaraqueçaba. Minha
atuação envolveu também a elaboração, juntamente com a antropóloga Patrícia Martins, de
um dossiê preliminar para encaminhamento ao IPHAN do pedido de registro do fandango
como bem cultural do Patrimônio Imaterial, com assinaturas de apoio recolhidas entre os
presentes. Em 2010, a Caburé12 assumiu a gestão do processo de instrução para registro do
fandango no livro de formas de expressão do patrimônio imaterial brasileiro, titulação que foi
oficialmente concedida pelo IPHAN em novembro de 2012.
Meu lugar no fandango se constituiu, portanto, a partir de uma perspectiva de atuação
profissional e política no campo cultural. Esse posicionamento, no entanto, aos poucos se
deslocou para um comprometimento de ordem pessoal, imbuído de um sentido de
pertencimento a uma certa rede de relações que se organiza tendo o fandango como elo.
Minha nova inserção em campo com a perspectiva de desenvolvimento de um trabalho
antropológico, embora envolta na estranheza de algo cuja rotina e objetivos fossem por vezes
difíceis de esclarecer, foi em muito facilitada pela confiança construída nas experiências
precedentes.
Viajar a campo e me disponibilizar a diversas situações que me foram ofertadas, ou
em que pude me intrometer, também não foi custoso, pois guardo apreço e entusiasmo por
esse tipo de experiência que também desloca e desconforta. Contudo, o principal desafio que
enfrentei ao longo da pesquisa foi o de desnaturalizar algo já me parecia tão familiar e aguçar
minha percepção para a construção de sentidos e relações que estão imbricados na
complexidade social organizada a partir do fandango.
Da Matta (1978) e Velho (1987) elucidam que os estudos do familiar e do exótico
apresentam problemas e dificuldades distintas, mas que podem ser similarmente complexos.
Dar mais atenção às palavras e às expressões empregadas, fazer perguntas que não contenham
respostas embutidas, voltar ao material de que já dispunha desconstruindo perspectivas
próprias e alheias; estas foram algumas das questões com que me deparei e que não foram
nada simples de resolver. E, de repente, percebi a outra face do processo: o fandango se
12
Em virtude de uma conjuntura que envolvia desde vasta exigência documental à limitação de recursos frente
às demandas do edital, a Caburé acabou sendo a única entidade capaz de acudir à licitação, já em segunda
chamada, sob risco de cancelamento do processo de contratação, o que retardaria a análise do pedido de registro
de fandango pelo Conselho do Patrimônio do IPHAN. O contrato para finalização do inventário foi assinado dois
anos após o encaminhamento do pedido, tendo sido montada uma equipe com representantes dos municípios
para elaboração colaborativa da documentação exigida.
28
tornou estranho e de difícil compreensão para mim. Contudo, esses momentos de certa
confusão se mostraram produtivos para pensar novos arranjos durante os encontros de
orientação e a fase de escrita desta dissertação.
29
Eles gostavam de fandango, se criaram nisso. Não tinha outro divertimento aqui, era
só. O padre dizia uma missinha ali pra eles, um terço, uma coisa que eles falavam...
e fandango. Era o divertimento que tinha aqui. (Dorçulina Eiglmeier, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba,
2005)
O fandango é uma dança muito velha, que vem de longa data, do avô pro avô, filhos
pros filhos, e naquele tempo era o que a gente conhecia mais, a gente só conhecia
fandango mesmo. Fazia aquele mutirão fim de semana, se juntava e fazia fandango,
a noite toda, amanhecia, fazia a domingueira. Carnaval era três dias e três noites de
fandango direto, só lavava a roupa na tábua, batia, enxugava e tava no fandango de
volta, o dia todo. Então a nossa missão era aquilo ali, era só viola, rabeca e o
fandango. (Pedro Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, Paranaguá, 2005)
Meu pai era Franklin Pereira. Com ele foi que eu aprendi. Já era de geração de eles
fazerem essas coisas. (Julio Pereira, em depoimento a José Eduardo Gramani, 1997,
Apud: Gramani, 2002, p.41)
E naquele tempo que era valorizado é porque tinha que aprender pra tocar no
mutirão daqui pra lá, tinha que aprender, tinha que dançar, tinha que dançar. Porque
ficar só num não podia, então todo mundo tinha que aprender. A rapaziada ia
crescendo e aprendendo a dançar o fandango, a tocar, a cantar. (Anísio Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)
Eles saíram tudo de Araçaúba. A nossa família Pereira eram tudo de Araçaúba. Daí
um pouco veio pro Ariri, um pouco veio aqui pro Varadouro ali em cima que tinha
muita gente ali. Aí um pouco ficou no Varadouro, um pouco foi lá pro Paraná, um
30
pouco ficou ali no Ariri, se espalhemos tudo. Um pouco pra Cananeia que tem
aquela Joaquina lá que é irmã do meu pai. Tudo se espalhemos por tudo. Agora eu
tenho parente por tudo. (Arnaldo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)
Adauto é que é a raiz dos Pereira. Ele fazia tudo o que a gente queria: rabeca,
cavaquinho, viola. Vocês nunca foram no Ariri, não? Aquele posto que tem lá, de
escola, foi ele que ajudou a construir. Ele e um tal de Morais fizeram um aterro lá.
Isso tem mais de cem anos. Depois que ele já não podia trabalhar em roça ele só
fazia viola, essas coisas. Era marceneiro. O meu avô, naquele tempo, pra um neto
entrar onde meu avô tava trabalhando... Era um salãozinho do tamanho desse aqui,
onde ele fazia as violas, as coisas dele. E às vezes a gente ia lá e ficava assim,
olhando. “Ah, você quer aprender? Pode olhar. Não precisa entrar aí. Pra aprender
basta olhar.” A gente que tinha boa idéia, não precisava ensinar como era, como não
era. A gente pegava a olhar, né? Depois ia sentar nas peças e dava certo. (...) Meu
pai [Franklin] tocava e fazia instrumento também. Foi ele quem levou as fôrmas da
viola, como essa que eu tenho ali, pra casa. Quando eu tinha dezessete anos eu
peguei a fazer. A primeira não saiu bem boa não, mas já deu pra enganar. (Julio
Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango,
Paranaguá, 2005)
31
Figura 2: Mapa do litoral sul de São Paulo e litoral norte do Paraná com os municípios de Cananeia e
Guaraqueçaba, seus sítios e vilas.
Fonte: PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006.
Alguns dos filhos e netos que conheci me relataram que o motivo da mudança foi a
busca de maiores extensões de terra para o cultivo de arroz. Nesse período havia demanda de
produção por parte de comerciantes, descentes de japoneses, que arrematavam os excedentes
dos sítios da região. Julino Pereira, que na época estava com aproximadamente 15 anos,
também me revelou que seu pai tivera, em Araçaúba, algumas desavenças com a família
Domingues. Essa situação foi confirmada por Leonildo Pereira, neto de Franklin.
Eles saíram por causa da inimizade com uma geração lá dos Domingues, então não
se encaixavam, andavam cutucando ele lá, pra lá e pra cá. De modo que tinha uma
pessoa que morava no Varadouro que conversou com ele. Um outro homem já tinha
tirado o caminho do Varadouro pro Rio Branco. E do Rio Branco não custava passar
para o Rio dos Patos. Então eles pegaram, meus pais e meus tios, vieram e passaram
pelo caminho. Brevemente eles fizeram um rancho aqui, foram lá buscar a família de
lá e vieram toda a família. Chegaram e entraram na mata virgem, sem cortar nada e
começaram a trabalhar. A primeira roçada deles pegou 14 alqueires de arroz, aí todo
mundo teve como trabalhar. Trabalhar e vender também, que vendiam até aqui no
cano d’água, combinado o trabalho tudo com a união da família Dias, que
trabalhavam aqui também, que estavam lá pertinho de onde eles estavam. Saiu com
união, todos eles, trabalhavam um pra um, outro pra outro, assim foi o dia que
começou o Rio dos Patos. (Leonildo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa
do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005)
Meu pai fazia viola, meu avô também fazia, e depois comprava de fora, tinha o
Paulo Rodrigues. Lá no sítio também fazia, depois meus primos foram aprendendo,
meu irmão aprendeu também, aí já foi aumentando, foram fabricando as violas, as
rabecas, os mais velhos mandavam nos instrumentos, e hoje em dia eles são os
grandes fabricantes de instrumentos, foram duas famílias de lá que aprenderam, não
jogaram fora o nosso fandango, respeita o fandango. Então eles aguentaram aquilo
ali e estão aguentando até hoje, foi a família de Julino e de Vicente e a família de
Ulisses Pereira, que é meu pai, falecido. (Pedro Pereira, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)
Quando nos referimos à família Pereira, não estamos tratando de uma família
elementar ou mesmo de uma família amplificada em sentido estrito, mas de um nome de
família que é operado em um sistema de parentesco complexo, articulando laços de
consangüinidade e de afinidade (ABREU FILHO, 1982). A partir de suas pesquisas com
famílias de Araxá, Minas Gerais, Abreu Filho (1982) identifica o reconhecimento da
consangüinidade como bilateral, ou seja, tanto a ascendência materna quanto a paterna
estabelecem laços a partir da noção de transmissão do sangue familiar. O nome de família –
que não deve ser confundido com a efemeridade de um sobrenome formado pela junção de
dois ou mais nomes de família – indica história e tradição na articulação de diferentes
gerações, perpassando a noção de raça como indicativa de procedência e precedência. Uma
pessoa pode puxar determinadas características relacionadas à família do pai ou da mãe, tanto
no que diz respeito às suas feições e características físicas, quando à sua personalidade e
atributos morais. Contudo, a patrilinearidade atua preponderantemente na transmissão do
nome de família ao longo de gerações. O nome de família herdado da mãe nem sempre é
repassado aos filhos e dificilmente será transmitido aos netos, portanto, a longevidade de um
nome de família está atrelada à linhagem masculina.
Essas questões nos ajudam a compreender como se organizam os Pereira em torno de
seu nome de família paterno, o que não significa que o aprendizado do fandango e convívio
no fandango tenham sido restritos a uma única linhagem familiar. Pelo contrário, a geração
que hoje é mais atuante, reconhece outros laços familiares importantes em suas formações
como fandangueiros.
Primeiro tinha meu avô Franklin, segundo tinha o meu avô Silvino, pai da minha
mãe, depois tinham os mais novos, que já são os filhos deles, que são os meus pais
hoje, já tinha o Andrino, já tinha Julino, esse que mora ali, tocador de viola. Mais
esperto pra gostar de fandango era o Andrino, esse que morreu. Aquele foi meu
professor, ele me ativava pra ver se eu ganhava dele, então eu ia pra cima dele com
pau, aí eu passei a ganhar dele, então eu gostei. Tinha Paulo Bento, era do lado da
minha mãe, Costa. Tinha Francisco Bento, irmão de Paulo Bento, o tocador melhor
de rabeca que eu ouvi, que por aqui não tinha igual a ele, tinha mais o Vitorino,
33
irmão da minha mãe, também era um violeiro, mestre de romaria. (Leonildo Pereira,
em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba,
2005)
A família Pereira, assim como outras famílias da região conhecidas por seus nomes
herdados pela patrilinearidade, constitui um ethos singular, cujos atributos físicos e morais
são destacados não só pela própria família, como também por aqueles que os reconhecem
como tal. Já na época de Rio dos Patos, os Pereira ficaram conhecidos na região como
habilidosos e produtivos artesãos – de cestarias e entalhes de madeira, especialmente de
instrumentos – e também como uma família festiva, muito afeita com o fandango.
Com os Pereira convivi muito tempo, nós era vizinho. Nós ia pra lá, eles vinham pra
cá. Nós jogava bola lá eles jogavam bola aqui, dançava lá, porque nós jogávamos
depois não dava pra voltar, pois já era o fandango de noite. No outro dia que nós
vinha. Sempre nós tava tendo assim contato com outro. (João Dias, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Cananeia, 2005)
A linhagem fandangueira dos Pereira, a partir dos filhos de Franklin, tem no pai e no
avô paterno, Adauto Pereira, suas principais referências de aprendizagem. Já a quarta geração
identifica Julino Pereira como grande responsável pelos ensinamentos da confecção e do
toque dos instrumentos a estes que são seus filhos ou sobrinhos. Julino é referência
consensual, figurando sempre como transmissor do fandango nas memórias dessa geração ao
lado de um ou outro tio, materno ou paterno, que varia conforme a afinidade relembrada.
Aprendi com meu pai, que tocava viola, depois meus irmãos foram aprender, eu fui
o último a aprender a tocar viola. E um tio, que me orgulho por ele, que posso dizer
que foi um grande professor e ensinou a nós, foi tio Julino. Ele foi um mestre, que se
não fosse ele acho que a gente não tinha rabeca nem viola, pois foi com ele que eu vi
a rabeca. Meu tio que fez a gente conhecer a rabeca no Rio dos Patos. Já tinha
rabeca no Rio dos Patos, mas conheci com ele. (Pedro Pereira, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Paranaguá, 2005)
34
anteriormente, em fins da década de 1990, já não havia mais nenhum morador permanente na
localidade. Os fandangueiros mais conhecidos da família migraram para bairros de periferia
ou ainda pequenas vilas com mais facilidade de acesso em Cananeia, Paranaguá e
Guaraqueçaba, tendo se envolvido nas cenas locais de atividade do fandango. Alguns de seus
componentes protagonizaram mudanças em suas formas de inserção nesse mundo a partir de
categorias operadoras mais recentes como “grupo”, “artista” e “mestre”, fundamentais para a
compreensão dos trânsitos contemporâneos do fandango. O processo de formalização de um
grupo chamado Família Pereira, que se fortalece a partir do convite para a gravação do CD
Viola Fandangueira, lançado em 2002, ocorre justamente em um momento em que a família
já havia se dispersado territorialmente. Conforme pretendo desenvolver ao longo da presente
pesquisa, compreendo, portanto, que o grupo Família Pereira acaba se mostrando como um
rearranjo possível que articula a convivência da família em uma nova sociabilidade inscrita no
fandango.
A geração de primos e irmãos que protagoniza as mudanças na forma como a família
irá se projetar e alargar o mundo do fandango tinha na época da gravação entre 40 e 60 anos
de idade. Apesar de os Pereira terem ascendência paulista, essa geração havia nascido em Rio
dos Patos, constituindo-se principalmente por paranaenses natos. Pela via do Paraná, os
Pereira ingressaram em um circuito13 cultural amplificado, entendido aqui como uma rede que
se conecta por práticas simbólicas e sociais permeadas por políticas públicas e participação
em um mercado de trabalho relacionado à patrimonialização e ao entretenimento. Contudo,
devido a uma intensa dinâmica de aproximações e rupturas, novos arranjos vão se formando e
a circulação dos Pereira se estende a São Paulo e outros estados.
13
Magnani (2002) propõe a noção de circuito como ferramenta analítica para a antropologia urbana, abrangendo
o entendimento de um uso espacial descontínuo, mas que pode ser compreendido pelo “exercício da
sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de códigos” (p.24). Nesta pesquisa, estou propondo o
uso de circuito de forma ainda mais abrangente, não restrita a espaços e equipamentos urbanos, mas relacionado
a uma rede de atores e instituições sociais que se interligam por meio de um segmento específico de atuação, o
chamado setor cultural, que por sua vez também mobiliza e se realiza em espaços sociais determinados. Desta
forma, embora as práticas do fandango tenham se estabelecido em diálogo profundo com as práticas de tal setor,
sempre que tratar dos trânsitos do fandango pelos circuitos da cultura, estarei me referindo a essas redes que
caracterizam propriamente o segmento da atividade cultural formalmente estabelecida.
35
Meu pai tinha uma cadeira igual a essa aqui, só que tinha os dois lados, tinha esse
lado e esse aqui também. Ele achou no mato e cortou. Aí vinha o pessoal da Vila
Fátima jogar lá no nosso lugar – com os outros, eu não jogava nada, eu tinha de doze
a quinze. Naquele tempo as crianças eram meio acanhadas, não tinham voz, não
falavam com ninguém... mas eu sabia tocar já. Pegava a rabeca, entrava naquele
porãozinho e começava a tocar lá dentro, encolhido. O pessoal gostava, mas eu não
tinha coragem de falar com eles. Vergonha, né [risos]. Muito envergonhado. E não
era só eu, todas as crianças era assim. (José Pereira, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Cananeia, 2005)
O repertório musical de duplas caipiras, que desde muito jovem ouvia em rádios de
pilha, também teve influência em seu aprendizado musical. Na década de 1970, José se juntou
a seu irmão Felício para tocar música caipira em bailes das vilas da região.
Nesse baile de acordeom mesmo, eles cantavam pra danar os dois. O Felício e o Zé
Pereira, ele na viola e o Felício no acordeom, cantavam que dava pra ver mesmo e a
turma caía no baile não tinha outra, até de manhã. (João Dias em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Cananeia, 2005)
José se casou com Maria, da família dos Camilo, do Varadouro, sítio próximo à
localidade do Ariri, onde criaram seus filhos. Desde que se mudou para o Ariri, em 2007,
intensificou seu papel de liderança na articulação do fandango. Além de se apresentar com o
filho e os irmãos quando convidado, ou eventualmente por iniciativa própria, vende
instrumentos, confeccionados sob encomenda, a turistas que visitam a região e a músicos de
vários estados que o contatam por telefone. É comum que receba em casa pessoas ou equipes
36
que desejam gravar entrevistas com ele, para o que cobra pequenos cachês que variam de
acordo com a disponibilidade de recursos do interessado.
37
Como não tem telefone residencial, contatá-lo é uma tarefa relativamente difícil. É preciso
deixar um recado em uma vila próxima e esperar que ele faça uma travessia de barco para
recebê-lo.
Durante o mestrado, centrei-me na vila Ariri, onde reside José Pereira. Em virtude do
desejo de me aproximar de forma mais cotidiana de um ambiente social, não alarguei a
pesquisa etnográfica a outros Pereira residentes em Guaraqueçaba e Paranaguá. Entre o final
de dezembro de 2011 e janeiro de 2012, convivi cotidianamente com José e sua família, cujo
núcleo é formado pela esposa Maria Camilo, seis filhos, uma nora e um neto na primeira
infância. Ao lado e em frente à sua casa moravam, respectivamente, seus irmãos Arnaldo e
Randolfo, ambos assistidos por José. Arnaldo não constituiu relação matrimonial estável e tão
pouco teve filhos. Já Randolfo contava também com o apoio do filho Maurício Pereira que foi
residir com o pai após a ruptura de seu casamento. Todos têm ou tiveram alguma relação com
o fandango, sabem tocar e confeccionar instrumentos.
Com José Pereira tive aulas de rabeca, fui a fandangos no próprio Ariri e nas vilas do
entorno realizados com diferentes propósitos (turísticos e comunitários) e visitei o roçado que
mantém em seu sítio no Varadouro. Lá conheci a família Camilo, de Maria, cujos membros
aos poucos se tornaram também interlocutores fundamentais para a pesquisa, especialmente
no que diz respeito às relações familiares e ao modo de vida nos sítios.
38
14
José Pereira, apesar de ter participado das gravações do disco acabou desistindo de ir ao lançamento em
Paranaguá em função das dificuldades de ser liberado de seu emprego fixo na Prefeitura.
15
José Pereira, que planejava fazer na mesma época um mutirão com fandango, acabou não participando das
atividades no sitio de Luiz Camilo.
39
40
41
O campo das culturas populares padece de uma indissolúvel tensão entre passado e
presente. Um sentimento atávico de que suas formas de sociabilidade viveram momentos de
exuberância e de perfeita harmonia processual, e de que hoje seriam apenas resquícios do
passado, perdura em diversas dimensões da construção do olhar sobre a vasta gama de
expressões culturais que se aglomeram nesse campo de contornos imprecisos.
A construção do interesse sobre o popular se deve em grande parte aos estudos de
folclore. No Brasil, especialmente no século XX, estes estudos florescem e ganham maior
abrangência com o chamado Movimento Folclórico Brasileiro (VILHENA, 1997). A
importância de coletar, registrar e divulgar a cultura popular será delineada no bojo do
folclorismo tendo como alicerce a noção de identidade nacional, abrindo também uma frente
de atuação mais direta do movimento na formulação de políticas culturais e em ações de
preservação e difusão (CAVALCANTI & VILHENA, 2012a).
Cavalcanti (2012b) destaca a importância de uma antropologia dos estudos de folclore.
Tão decisiva foi a atuação desses estudos para o que hoje compreendemos como cultura
popular, que, ao adentramos em campo para pesquisar manifestações, celebrações e práticas
populares vamos inevitavelmente ao encontro de alguns sentidos e práticas sociais que
evocam abordagens delineadas pelo folclorismo.
para definição da brincadeira do boi, que, ainda hoje, pode ser percebida nos relatos de seus
próprios atores sociais como celebração de um passado ideal afetado pela modernidade. Com
efeito, percebemos esse aspecto nostálgico refletido nas narrativas daqueles que estão
envolvidos com diversas expressões populares. São falas que enaltecem momentos anteriores,
em geral imprecisos, e que se ressentem de conhecimentos e saberes não mais praticados,
mesmo diante da vitalidade e da pujança de muitas dessas manifestações. Na atualidade,
grupos e agremiações disputam prestígios em torno de questões como ancestralidade e
fidelidade à tradição. O risco do desaparecimento é sempre tema de argumentações e
demandas de apoio, como se os conteúdos dessas culturas vivessem sob o risco de um
contínuo processo de subtração.
Não é, contudo, apenas na visão nativa que o arcaísmo perdura. Revestido de outras
perspectivas, reflete-se também no mundo acadêmico. Embora por algumas décadas os
estudos de folclore tenham sido colocados em segundo plano na academia, participaram de
forma relevante da construção do campo das ciências sociais no Brasil. Segundo Cavalcanti
(2012b), “eles precedem, em muito, o processo de institucionalização das ciências sociais em
nossas universidades e mesmo aquele simultâneo de conformação convencional da
antropologia e sociologia como disciplinas distintas”. (CAVALCANTI, 2012b, p. 153).
Especialmente entre as décadas de 1930 e 1960, muitos intelectuais transitavam por terrenos
compartilhados entre o folclore e as ciências sociais, conformando campos contíguos de
diálogos e entraves. Imbuídos de preocupações quanto à celeridade dos efeitos da
modernidade, debruçaram-se sobre valores e práticas das sociedades tradicionais camponesas,
lançando olhares sobre o Brasil rural.
Em seu estudo sobre o movimento folclórico brasileiro, Vilhena (1997) analisa os
motivos do fracasso da almejada consolidação da disciplina folclórica como campo específico
no ambiente acadêmico. O distanciamento entre o folclore e as ciências sociais perpassam
questões como as divergências de projetos institucionais, métodos e modelos de ciência.
Contudo, a influência do folclorismo sobre o pensamento social brasileiro não foi anulada. E
se faz presente na construção de uma ideia de nacionalidade brasileira pelo viés da
diversidade.
Apesar do declínio acadêmico desses estudos, as visões por eles forjadas sobre os
fatos da cultura popular participam ainda hoje ativamente das visões formuladas
dentro das ciências sociais sobre esses fatos, produzindo muitas vezes o mesmo
notável efeito de “retorno do reprimido” identificado por Belmont . Esse efeito se
produz na interseção de dois processos simultâneos. De um lado, de modo análogo à
situação francesa, as ciências sociais têm, como argumentou Vilhena (1997a),
43
relação à constituição do campo das culturas populares no Brasil também perpassa a trajetória
desses estudos e participa do delineamento da noção mesma de fandango como um campo de
atividades sociais, ressoando na atualidade. Assim, embora esta pesquisa vise à abordagem
etnográfica da circulação do fandango promovida por uma família – a Família Pereira – é
fundamental revisitarmos os estudos sobre fandango, pois neles encontramos a gênese do
processo de construção de significados de algumas categorias essenciais na atualidade.
Neste primeiro capítulo, proponho um olhar sobre a produção intelectual almejando
compreender como ela atua na memória, na reconfiguração e na ressignificação de práticas no
campo das expressões culturais populares. Procuramos compreender diferentes perspectivas
de registro na intenção dos estudiosos, entendendo que essa bibliografia tem uma dimensão
atuante na própria realidade analisada. Os estudos de folclore nos permitem pensar por que
caminhos o fandango passou a ser tratado como objeto de estudo e bem patrimonial que
mobiliza esforços para a sua permanência. A interlocução direta de autores ou por meio de
atores imbuídos de tais leituras, interage com esse universo vivo e atual e tem, como veremos,
participação determinante na vida social.
16
É importante ressaltar que todos os autores imbuídos nos processos de mapeamento do folclore brasileiro
diferenciam duas categorias de fandango. Além desse fandango identificado entre os estados do sul-sudeste, é
sempre mencionado o fandango do norte-nordeste, relacionado às cheganças e marujadas. Ambos são destacados
como inteiramente diversos, estando apenas aproximados pela nomenclatura similar.
17
Há, em ambas as publicações, também outro tópico dedicado às “danças dramáticas”.
46
Mário de Andrade, entendia que ainda não havia música artística brasileira devido,
principalmente, à não valorização da música popular (...). A outra, defendida por
Renato Almeida, entendia e valorizava os esforços dos compositores do “passado”;
porém, diferentemente de Andrade, não considerava que a pesquisa da música
popular poderia converter a música artística em nacional; mas, sim, a compreensão,
por parte dos compositores, de que era preciso desfazer a dualidade existente na arte
produzida no Brasil, por meio da integração do indivíduo-natureza. (MARTINS,
2009, p.67)
Pereira (1996) afirma ainda que batuques e fandangos eram realizados com grande
frequência nas áreas urbanas e considerados sinônimos pela sociedade paranaense, fundidos
no que seria uma espécie “baile popular”. Muito sensuais e compostos por danças
diversificadas, os bailes são associados indistintamente a negros libertos, mulatos e brancos
pobres, que, para o autor, “formariam um grupo social bastante homogênio culturalmente”
(p.164). Segundo o autor, no século XIX, um projeto político local que visava reorganizar os
costumes da sociedade urbana paranaense implicou em um arrojado processo de proibição às
manifestações populares. Fandangos e batuques, assim como os jongos, esses sim mais
especificamente associados aos negros, teriam sido contundentemente banidos dos meios
urbanos, restringindo-se cada vez mais às áreas rurais onde o controle social ficava a critério
18
Em Semeando iras rumo ao progresso, o historiador Magnus Pereira, fundamenta sua pesquisa na legislação
dos municípios paranaenses durante o período imperial.
19
Dizia-se, por exemplo, que a mulher nada recusaria ao seu parceiro depois de dançar o fandango. O primeiro
Dicionário da Língua Portuguesa, de Moraes e Silva, incorpora em 1813 essa visão negativa, definindo a prática
como “certa dança alegre, e algo tanto desonesta” (Leandro, 2008, s/p.).
47
20
Não consegui obter dados sobre o período em que Mario de Andrade realizou suas pesquisas em Cananéia,
mas de certo sabemos que precederam a publicação do Ensaio sobre a Música Brasileira, em 1928.
48
A defesa quase sempre eloquente de Mario de Andrade quanto manancial criativo que
identifica nas culturas populares dialoga diretamente com seu projeto modernista de
reconhecimento de uma sonoridade brasileira a partir da pesquisa da musicalidade popular.
Seu texto é um brado em prol da cultura nacional a partir da desconstrução do olhar voltado à
Europa e da perspectiva regionalista sobre o Brasil. Ele defende a necessidade de músicos
beberem diretamente na “fonte das manifestações populares” percorrendo o Brasil e não
apenas aquilo que a própria vizinhança lhe oferece (ANDRADE, 1962, p.70).
No parágrafo que encerra a passagem dedicada ao fandango, Andrade marca sua
posição quanto ao aculturamento, esclarecendo que a busca das origens portuguesas e
espanholas está longe de ser foco de suas preocupações.
Nesse trecho, vemos também emergir a perspectiva patrimonial que constituirá uma
das tônicas de atuação em defesa das culturas populares desenhadas no âmbito do Movimento
Folclórico Brasileiro. Como “bem nacional” fica implícito o dever do Estado na proteção a
algo que pertence à coletividade do povo brasileiro.
Renato Almeida não tem um olhar tão generoso quanto o de Mario de Andrade em
relação à fertilidade das manifestações populares. Enquanto Andrade identifica um ethos
brasileiro, que não pode mais ser correlacionado diretamente como o ameríndio e nem
simplesmente caracterizado por suas múltiplas origens, Almeida indica um caminho mais
longo a ser trilhado.
A nossa dança de salão não tem a graça, a variedade e o ímpeto comum das danças
européias. A sua coreografia em geral é simples, não raro monótona. Tudo ganha em
languidez.” (...) A dança brasileira tem porém o destino de acompanhar a tristeza de
sua música. Ela é quase toda, ou toda ela mestiçada. Guardou o ritmo africano e
aproveitou as melodias que aqui chegaram e aqui se transformaram, para depois
modificar todo esse material numa criação própria e vivaz. (ALMEIDA, 1942,
p.156-157)
49
21
Em A Cultura Popular no Museu de Folclore Edison Carneiro, Gama (2012) destaca que a concepção
regionalista do Movimento Folclórico Brasileiro e seus reflexos sobre a primeira mostra expositiva de longa
duração do Museu de Folclore Edison Carneiro.
22
O Simpósio foi instalado em 25 de agosto de 1967, sob a presidência de Renato Almeida, realizado pelo
Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura/ UNESCO. Algumas comunicações foram transcritas na
Revista Brasileira de Folclore v.7 n. 19, setembro a dezembro de 1967 – edição comemorativa dos vinte anos de
existência da Comissão Nacional de Folclore .
50
reconhecendo que o folclore fosse alvo de processos cada vez mais intensos de mobilidade e
que houvesse permeabilidade entre as fronteiras, ele sugere uma ordem cartográfica
orientadora de um grande mapa do folclore brasileiro (MACHADO FILHO, 1967, p.258).
Na mesma ocasião, Manuel Diegues Júnior expõe suas “Sugestões para a
caracterização do folclore brasileiro” onde aponta que a “marca regional, tanto quanto no
homem, se imprime no folclore” (DIEGUES JÚNIOR, 1967, p.259). Para o autor, a “base
regional” seria um elemento fundamental sobre o qual se desenvolve o “fato folclórico”23,
mesmo havendo variantes em outros estados. A caracterização regional se daria a partir de um
sistema de relações que permitiria o reconhecimento de aspectos culturais compartilhados.
No âmbito do Movimento Folclórico, o regionalismo também aparece associado a
uma premente necessidade de pesquisas in loco. As manifestações precisavam ser
“vivenciadas” e “coletadas” pelo pesquisador. Em um momento onde os financiamentos são
escassos e as pesquisas são interrompidas por falta de recursos, as incursões em campo
realizadas por equipes dos próprios estados mostravam maior viabilidade para o intuito de
recobrir a dimensão territorial brasileira. A organização do Movimento em subcomissões
ancoradas no critério regional implicou também na definição de áreas de atuação
segmentadas.
No Paraná, o desenvolvimento de um campo de estudos para o folclore encontrava
como grande desafio reconhecer formas próprias que pudessem ser alocadas no escopo do
mapeamento do folclore brasileiro. A história de formação do Estado do Paraná remete à
presença muitos grupos de colonos, que mantiveram hábitos e práticas culturais de seus países
de origem. Ao longo do século XIX, os hábitos europeus são ainda mais fortemente
enaltecidos no chamado processo de morigeração da sociedade paranaense (PEREIRA, 1996).
Assim, no panteão dos festejos celebrados em território paranaense constavam danças e
músicas que não eram consideradas aculturadas na medida em que resguardavam a origem
dos povos imigrantes, tais como alemães, italianos, ucranianos, poloneses etc.
Segundo Vilhena (1997), a Comissão Paranaense de Folclore foi uma das primeiras a
se constituir e teve papel muito atuante nos primeiros anos, assumindo a realização do II
Congresso Nacional de Folclore, realizado na cidade de Curitiba, em 1953. O secretário-geral
da Comissão, José Loureiro Fernandes, era também professor de antropologia e etnografia na
Universidade do Paraná e foi ferrenho defensor do reconhecimento da disciplina folclórica
23
Segundo a Carta do Folclore Brasileiro (1951): "constitui o fato folclórico a maneira de pensar, sentir e agir de
um povo, preservada pela tradição popular e pela imitação, e que não seja diretamente influenciada pelos
círculos eruditos e instituições que se dedicam, ou à renovação e conservação do patrimônio científico humano,
ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica".
51
como parte do campo das ciências sociais (VILHENA, 1997, p.142). Seu posicionamento,
contrário às sugestões de revisão da Carta do Folclore Brasileiro24 no sentido de conferir
maior autonomia à disciplina, acabou abrindo pontos de atrito com o Movimento.
24
Redigida no âmbito do I Congresso Nacional de Folclore, em 1951, no Rio de Janeiro.
52
(SCABI) e da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), dentre muitas outras
atividades (MEDEIROS, 2011).
O autor inicia suas pesquisas no Paraná em 1948, mesmo ano em que é criada a
Comissão de Folclore do Paraná, tendo realizado outras viagens ao litoral paranaense com fins
de “coleta” até 195525. Seu empreendimento, segundo o próprio autor, sem grandes pretensões
analíticas ou interpretativas, seria uma resposta ao alarmante chamado da Comissão Nacional
de Folclore que se dedicava então a arregimentar esforços em todo o país para a realização de
registros que salvassem “ao menos a lembrança de nossas mais caras tradições” (AZEVEDO,
1973, p.57).
No II Congresso Brasileiro de Folclore, em 1953, os congressistas foram convidados a
assistir um festival folclórico na cidade de Paranaguá, onde se apresentaram grupos de pau-de-
fita, balainhas, boi-de-mamão e fandango. Ao relatar tal experiência em texto publicado, em
1973, nos Cadernos de Artes e Tradições Populares do Museu de Arqueologia e Artes
Populares da Universidade Federal Paraná, Azevedo ressalta que, dos gêneros apresentados,
somente o fandango estaria realmente enraizado no litoral, sendo as demais manifestações
praticadas por colonos catarinenses que as teriam herdado de ascendentes açorianos.
O autor identifica um traço comum entre o folclore catarinense e paranaense que seria
“uma acentuada tendência para congregar, sob um nome genérico, as mais diversas danças e
autos populares” (AZEVEDO, 1973, p.64). Seguindo, portanto, os mesmo passos de Andrade
e Almeida, o fandango seria um derivado desta característica, reunindo um conjunto de danças
como caninha verde, chamarrita, anu, tonta, entre outras.
No Caderno de Folclore26 dedicado ao Fandango do Paraná, publicado em 1978,
Azevedo associa o uso da palavra “marca” à distinção entre as diferentes danças regionais
agregadas. No texto, publicado postumamente, ele afirma ter registrado perto de trinta marcas,
ressaltando ainda a existência de muitas outras com nomenclatura própria a cada região
(AZEVEDO, 1978). A experiência em campo me permite afirmar que o termo “marca” é
usualmente empregado no Paraná para nomear o conjunto dos diferentes ritmos, melodias e
25
Segundo o autor, suas pesquisas (ou “coletas”) foram realizadas nas seguintes colônias de pescadores da baía
de Paranaguá: Costerinha (foz do rio Guaraguaçu), Pontal do Sul (praia do Leste, no Município de Paranaguá) e
rio do Medeiros. Seus estudos foram publicados sob o título “Aspectos Folclóricos do Paraná”, em 1975, nos
Cadernos de Artes e Tradições Populares n.2 do Museu de Arqueologia e Artes Populares da Universidade
Federal do Paraná. A parte sobre fandango foi reeditada sob o título de “Fandango do Paraná” como conteúdo do
Caderno de Folclore n. 23 da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1978.
26
A série Cadernos de Folclore foi lançada em um momento em que o Movimento Folclórico já havia sido
desarticulado. Em 1976, a Campanha de Defesa do Folclore é incorporada à Fundação Nacional de Artes
(FUNARTE) do Ministério da Cultura. É criado então Instituto Nacional de Folclore que passa a dispor de
recursos viabilizando a edição de muitas publicações, inclusive pesquisas realizadas na época do Movimento.
53
coreografias que se distinguem em um fandango, o que me faz supor uma escuta mais atenta
de Azevedo aos interlocutores nativos, que pouco a pouco começarão a ganhar identidade nos
registros do folclore nacional.
O fandango é também citado por Azevedo (1978) como “festa típica dos caboclos e
pescadores”. Ele reconhece a ocorrência de fandango em toda a faixa litorânea paranaense e
também em localidades interiorizadas, ao pé da Serra do Mar, como Morretes e Porto de Cima.
O autor destaca que principal desenho coreográfico presente em grande parte das marcas de
fandango é o “oito”: “o cavalheiro, dançando, descreve um oito, tendo por centro dos dois
círculos as duas folgadeiras que se encontram à sua frente e atrás de si, na roda” (AZEVEDO,
1978, p.6).
Uma das grandes contribuições aos estudos sobre fandango, oferecidas por Azevedo é
a elaboração de um extenso inventário das marcas, incluindo esquemas gráficos das
coreografias e transcrições em partitura das músicas, identificando as diferenças conforme a
localidade onde foi feito cada registro. Tal levantamento é recorrentemente citado em
pesquisas acadêmicas e culturais posteriores sobre fandango. O autor, contudo, não explora a
diversidade e as variações que ele próprio observara. As marcas são expostas a título de
demonstração exemplar, sem grandes apontamentos sobre as possíveis distinções apuradas em
sua investigação em campo. Percebemos esse aspecto como uma tendência de muitos autores
das pesquisas folclóricas, que fixam suas experiências sem problematizarem contextos e
diferenças, ou mesmo as dificuldades encontradas na compreensão dos próprios interlocutores.
Esses inventários, contudo, acabaram muitas vezes por ganhar um caráter prescritivo da
autenticidade no decorrer de suas releituras, conferindo uma rigidez que em muito ultrapassa a
realidade vivenciada em campo.
Os estudos de Azevedo na região de Paranaguá, Morretes e Guaraqueçaba são
contemporâneos aos de Inami Custódio Pinto (1930-), folclorista que ganhará grande projeção
no Paraná. Natural de Curitiba, passou a infância em Paranaguá, onde conheceu o fandango.
Então eu tinha nove anos, e naquelas noites quentes de Paranaguá, papai, que
sempre foi admirador e grande folclorista amador, nos levava no miramar, em
Paranaguá, onde você avistava toda a extensão do Rio Itiberê e parte da Ilha dos
Valadares. Ele dizia escute Inami: plaplapla papa. Isto é o fandango, é uma dança
assim, assim e assim. (Custódio Pinto, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, Curitiba, 2005)
Durante a Segunda Guerra, o pai de Custódio Pinto foi transferido para Santa
Catarina. Em 1952, ele retorna ao Paraná e, de volta a Paranaguá, surpreende-se com a
54
desarticulação do fandango, que, segundo ele, teria sido alvo de proibições durante o período
de guerra.
A primeira coisa que eu fiz foi correr em Paranaguá pra ver o fandanguinho, porque
eu já fazia parte lá em Florianópolis de todos os grupos folclóricos, carnavalescos.
Cheguei lá, corri pra lá e cadê? Desapareceu. Daí fui indagando, indagando. Ainda
tinha um ex-funcionário da companhia [em que o pai trabalhou] lá e daí eu fui com
ele, ele me levou em tudo que foi canto. “Não fazemos mais nada, acabou, acabou”.
Daí me levaram pra Manequinho da Viola, “não, mas existe”. Primeiro conheci o
Moacir Barbeiro, mas já tocava [fandango] com violão, eu disse: “não, não é isso
que eu quero”. Mas ele tocava todas as marcas de fandango, o Moacir Barbeiro.
“Não mas quem toca é o Manequinho da Viola”. Daí ele me passou tudo, eu gravei
tudo. Ele sabia mais de quinhentas marcas o danado, e eu gravei mais de quarenta
rolinhos assim num gravadorzinho. Ele foi me explicando e tal, e aquilo. Imagina
quando a gente grava, eu era menino e, com a medida que ele ia explicando, eu ia
vendo tudo aquilo de anos atrás e recordando. Eu parecia integrado na coisa, fazia
parte da coisa. O Manequinho disse: “ah, o mestre aí, o vivão lá que conhece todas
as marcas”. (Custódio Pinto, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, Curitiba, 2005)
Custódio Pinto inicia suas pesquisas de forma mais sistemática a partir de 1952. Tão
relevantes quanto seus registros foi seu intensivo trabalho de articulação local. Além de
músico e estudioso de folclore, ele atuava também como produtor musical e fonográfico. Entre
as décadas de 1950 e 1960, aproximou-se progressivamente de vários moradores de Paranaguá
em busca de conhecedores do fandango, travando amizade em especial com Manequinho da
Viola e Romão Costa.
Figura 5: Grupo com fandangueiros da Ilha dos Valadares liderado por Manequinho da Viola e
Romão Costa (no centro da imagem, betendo palmas). Sem data. Acervo pessoal de Romão Costa.
27
A proposta de formação de grupos a partir da reunião de praticantes e conhecedores de fandango foi
posteriormente seguida por Helmosa Salomão Ritcher, professora e entusiasta do folclore na cidade de Morretes.
Na década de 1970, ela reuniu moradores de bairros rurais do município para a formação de um grupo que passa
também a ser representante da cultura paranaense em eventos e festivais até mesmo fora do estado. Conforme
abordei na introdução, nas últimas décadas, a formação de grupos de fandango se tornou algo comum. Nos anos
de 1990, fandangueiros de São Paulo Bagre, em Cananeia, formaram o Violas de Ouro de São Paulo Bagre. No
final da década de 1990, é formado o Grupo Folclórico Mestre Romão, em Paranaguá, com jovens dançadores. E
seguem-se muitos grupos, cada um a seu modo, com ou sem a presença de dançadores. Em Morretes, formou-se
um grupo de jovens, batizado em homenagem à Profa Helmosa Salomão. Em Paranaguá, além do grupo de
Mestre Romão, o Caiçaras do Paraná, o grupo de Mestre Eugênio (falecido), a Associação de Cultura Popular
Mandicuéra, os Pés de Ouro e, mais recentemente, um grupo liderado pelo violeiro e marcador Brasílio dos
Santos. Em Guaraqueçaba, há a Família Pereira e dois grupos de jovens, que mesclam fandango com teatro, o
Pirão do Mesmo e os Fâmulos de Bonifrates. Em Cananeia, além do Violas de Ouro, há a Família Neves, os
Fandangueiros do Ariri, os Caiçaras do Acaraú, os Caiçaras de Cananeia, os Jovens Fandangueiros de Itacuruçá
e uma outra formação da Família Pereira, liderada por José Pereira. Em Iguape, há os Jovens da Juréia e
tocadores que se reúnem informalmente em algumas localidades do município.
56
É uma pena que a gente presencie tudo isso se acabando. Acho que devia pertencer
ao patrimônio histórico nacional. Mas se houver, sem demora, uma medida para
deter esse fim, teremos salva uma página de nossa própria história. (Depoimento de
Inami Custódio Pinto ao Correio do Povo 23/08/1973)
Assim como o fandango parece estar com os dias contados, esmagado pelos
problemas sociais que vão se avolumando (são poucas as famílias da ilha [dos
Valadares] não atingidas pela praga da mortalidade infantil), o único homem que até
bem pouco era capaz de mobilizar os fandangueiros parece, por sua vez, sofre do
mal que afeta a vida dos ilhéus – uma indisfarçada indiferença pelo seu trabalho. De
fato, Inami Custódio Pinto parece constituir o exemplo não muito raro do estudioso
que não encontra o menor apoio para as suas pesquisas. Com a mesma assiduidade
com que vem sento cotejado por políticos e ex-governadores que auxiliam o
fandango em épocas pré-eleitorais, Inami continua sempre sem apoio para realizar
um trabalho mais sério. Foi assim várias vezes. (Enio Squeff, O Estado de São
Paulo, 05/10/1975)
No mesmo ano, poucas semanas depois, o jornal alerta em chamada: “Contato com a
civilização destrói o folclore do litoral”. Dessa vez, a matéria enfoca as tradições populares,
como as bandeiras e o fandango, no município de Guaraqueçaba, vizinho litorâneo de
Paranaguá e berço de muitos fandangueiros residentes na Ilha dos Valadares. No tópico
58
“Fandango, no fim” a reportagem indica a proibição das bandeiras, seja pelas ressalvas
impostas por padres redentoristas como pela cobrança de taxas às romarias, como fator de
declínio da difusão dos fandangos.
Na mesma data, o jornal publica também um artigo escrito por Custódio Pinto,
intitulado “Fandango do Paraná”, onde ele reafirma a legitimidade do fandango e mais uma
vez sentencia seu desaparecimento, “vítima do rádio de pilha, do yeyeyê, da cultura de massa,
do empobrecimento da região e, até mesmo, da proliferação de certas seitas religiosas que
proíbem o canto e a dança por pecaminosos” (Custódio Pinto, O Estado de São Paulo,
26/10/1975).
Um fator importante a ser ressaltado é que, ao lado da notoriedade conferida ao
fandango e do elenco de problemas sociais enfatizados, vemos gradativamente nestas
reportagens muitos fandangueiros ganharem nome, aparecendo como interlocutores das notas
jornalísticas.
Figura 6: Frente e verso da capa do disco Fandango do Paraná, Coleção Documento Sonoro do Folclore
Brasileiro n.15, 1976.
Num almoço em Curitiba tivemos contato com um folclorista, Inami Custodio Pinto,
que nos propôs irmos a Valadares, uma ilha em frente à Paranaguá, onde existia um
grupo de fandango que ele, de certa forma, não deixa morrer. Atravessamos de
canoa e, como lá não tem automóvel, andamos dois quilômetros para chegarmos à
casa onde se dança fandango. (...) Inami recolheu mais de cem ‘marcas’ diferentes,
de estrutura açoriana com versos arcaicos misturados a outros, feitos na hora –
saudações, temas históricos, casos de imigrantes, pedaços de história da região,
como o dia que Zepellin sobrevoou a ilha. (Depoimento de Marcus Pereira
concedido a Margarida Autran, Correio do Povo, Porto Alegre, 06/03/1977)
O fandango era dançado nos sítios, por ocasião do pixirão quando os vizinhos
auxiliavam o dono da casa nos trabalhos de roçada ou plantação. O Fandango de
finta (arcaísmo que quer dizer coleta) é feito em qualquer ocasião, bastando que
todos colaborem na compra dos preparos. Seus dançarinos chamam-se folgadores ou
folgadeiras, porque dançam na folga do sábado para o domingo. O Fandango
paranaense é formado de uma série de danças denominadas marcas, variando a
coreografia conforme o nome delas (anu, andorinha, chamarrita, domdom, tonta,
cana-verde, sabiá, caranguejo, lajeana, vilão de lenço, xarazinho, xará grande,
marinheiro, etc.). O acompanhamento musical é feito com duas violas, uma rabeca e
um adufo (pandeiro), confeccionados pelos próprios caboclos. Os cantos são tirados
pelos dois violeiros, em vozes paralelas, e podem ser tradicionais ou improvisados.
Algumas danças são valsadas, executadas arrastando o pés, e outras, sapateadas
(batidas ou rufadas), entremeadas de valsados e palmas. O sapateado é feito pelos
homens, com tamancos especiais, e as mulheres dançam arrastando o pés, atentas à
coreografia. Os sapateados finais são chamados de arremate e seguem-se ao grito de
um dos violeiros – ‘Ô de casa!’(Roderjan, 1981, p.30)
medievais”. A impressão de que os “caboclos desafinam” seria apenas derivada desses padrões
modais que perpassavam o tempo (RODERJAN, 1981, p.31).
A tese de Roderjan sobre a chegada do fandango no Paraná divergia em alguns
aspectos da sua vinculação direta à chegada de espanhóis e portugueses no litoral empreendida
por Custódio Pinto. Ela acreditava em um difusionismo que teria partido de açorianos da costa
paulista, reconhecendo alguma aproximação com o fandango paulista, que não é explorada nas
pesquisas de seus colegas folcloristas.
Você quer ver uma coisa, um pecado que eu cometi com todo o meu conhecimento:
eu falava, cansava dizer: “o fandango é isso, o fandango é aquilo”. Aí caí na asneira
de trazer o meu grupo pra cá. Então preparei televisão, tudo pra eles apresentarem, a
imprensa me ajudou barbaridade. Nem me passei pela idéia, primeiro o translado
acaba com a característica do fato folclórico, pois a principal característica é a
espontaneidade. (Custódio Pinto, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu
Vivo do Fandango, Curitiba, 2005)
Para os folcloristas do Paraná, o desenho ideal do fandango parece flutuar num lugar
incerto no tempo, fruto de construções ideológicas, situando-se após sua conformação
nacionalizante e antes dos efeitos avassaladores da modernidade.
como Câmara Cascudo, Araújo, mesmo tendo se ligado às Comissões de Folclore, preferia
desenvolver seus trabalhos com maior autonomia29.
Araújo é um dos pioneiros de estudos de campo mais detalhados sobre a dança do
fandango, realizados no município de Cananeia entre 1946 e 1947. Talvez por sua formação
em sociologia e antropologia, a narrativa de Araújo elucida contextos de pesquisa, descreve
interlocutores e tenta criar pontes entre a situação estudada e outras no litoral norte (Ubatuba)
e no interior (São Luiz de Paraitinga, Cunha, Itanhaém e Taubaté) de São Paulo. Seu texto
apresenta termos como “sociabilidade” e “histórias de vida” (ARAÚJO, 2004, p.164-167). O
fandango aparece também como “reunião social”. Contudo, seu viés mais científico não se
sobrepõe ao olhar romântico e idealista, capaz de enxergar de forma apaixonada o campo de
estudos ao qual se dedica.
Costuma-se dizer que o povo da roça é um povo triste e indolente e que seus cantos
são tristonhos. Entretanto, são inexatas tais afirmações eivadas de etnocentrismo. O
nosso rurícola não é triste nem tampouco indolente. A indolência que lhe atribuímos
é certamente devido à comparação que fazemos como nosso modus vivendi,
governado pela rigidez mecânica e inflexível dos ponteiros do relógio. Somos mais
tristes do que eles, pois vivemos a comprar a nossa alegria, as nossas diversões, nas
filas dos cinemas etc. O rurícola sabe aproveitar muito bem as horas de lazer. Depois
de um dia de trabalho, de um mutirão, que é um jogo coletivo, vemo-lo ‘rufar’ os
pés num fandango, a noite toda, sem dar mostras de enfado ou cansaço. As suas
modas são alegres e jocosas, buliçosas, inspiradas nas coisas cotidianas, às quais
emprestam um sabor satírico. Suas músicas se nos apresentam tristes porque é a
nossa própria alma que decanta a saudade de algo que foi nosso e hoje não mais
temos, isto é, aquela plenitude de vida em contato com a natureza que o caipira e o
caiçara ainda possuem.
Cananeia, com seu luar inigualável, com suas crianças brincando de roda nas ruas,
seus pescadores cantando em seus barcos sob o ritmo undiflavo, aquele conjunto de
harmonia, cor, luz e singeleza, quase chega a dificultar o pesquisador que se sente
envolvido numa atmosfera de poesia e romance. (ARAÚJO, 2004, p.146-147)
29
Carneiro, Edison. “Evolução dos Estudos de Folclore no Brasil”, publicado na Revista do Folclore Brasileiro
n.3 (maio a agosto de 1962).
64
Congada, Boizinho, Folia do Divino e Folia de Reis. Seu intuito seria o de realizar, após essa
primeira etapa, novas investidas no litoral sul30, contudo, os recursos viabilizados somente
recobriram a primeira, no litoral norte.
A equipe de pesquisa organizada compreendeu múltiplas habilidades. O próprio
Rossini Tavares de Lima esteve à frente na função de coordenados e relator, acompanhado de
três pesquisadores de campo, um fotógrafo, um cinegrafista, um técnico de gravação e ainda
dois folkmusicistas, sendo o maestro Cesar Guerra Peixe supervisor e a pesquisadora Kilza
Setti31 auxiliar. As pesquisas no litoral norte paulista, realizadas entre dezembro de 1959 e
fevereiro de 1960, tiveram um caráter mais de inventário do que propriamente de análise, o
que se traduz no livro O Folclore do Litoral Norte de São Paulo, com produção textual
coletiva da equipe. A redação dá ênfase nas notas de campo e acrescenta relatos das
dificuldades enfrentadas. Todos os informantes das músicas e descrições são nomeados e
relacionados às localidades gravadas. Os contextos de gravações também são esmiuçados.
O fandango é mais uma vez registrado com destaque para sua permeabilidade de
danças diversas e para a variedade de termos associados.
É relevante notar que grande parte dos folcloristas alerta para a carência documental e
a necessidade de ampliar os mapeamentos sobre o folclore. Contudo, tal percepção não parece
ter gerado diálogos mais sistemáticos na vasta bibliografia produzida. Recorrentemente o
fluxo de informações citado se refere somente às definições de terminologia e raramente se
cotejam de dados de campo. Assim, as pesquisas se sucedem muitas vezes nos mesmos
lugares, sem que os inventários se mostrem realmente extensivos. Parece haver nos estudos de
folclore uma tensão produzida por certo sentimento de insuficiência das pesquisas somado a
uma ansiedade em reunir dados que estão sempre prestes a se perder. Percebo que isso se
perpetua na atualidade, em práticas que reforçam a urgência da documentação de certas
manifestações populares, sob a pena de perda irreparável de informações. De fato, esse
sentimento pode se justificar, especialmente, porque a lógica de trabalho ainda segue
processos muito semelhantes, com ênfase na coleta de material. Assim, pessoas ligadas às
práticas populares são recorrentemente entrevistadas em projetos de documentação muitas
vezes similares. Quando estive em campo, em 2012, José Pereira foi procurado algumas vezes
por pesquisadores e documentaristas. Comentando sobre essa demanda, ele me relatou que
costuma informar previamente os temas sobre os quais já está acostumado em discorrer. Por
outro lado, reconheço que há verdadeiramente um caráter inesgotável em qualquer processo
de documentação sobre folclore e cultura popular, já que o repertório humano, em suas
variações entre a memória e inventividade, não é passível de captação plena. Por mais
completos que possam ser, registros documentais não são capazes de apreender a
complexidade da experiência viva, feita por pessoas, suas ideias, conhecimentos e práticas.
Um aspecto relevante das pesquisas desenvolvidas por Araújo e Tavares de Lima se
refere a uma maior preocupação em caracterizar o homem e seu meio social. Os estudos do
67
folclore paranaense estavam mais preocupados com a manifestação em si, sua origem e sua
forma. Em O Folclore do Litoral Norte de São Paulo, Tavares de Lima e sua equipe assim
descrevem a população litorânea paulista.
Entre os anos de 1930 e 1960, no processo de formação das ciências sociais no Brasil,
as noções de “caiçara” e de “caipira” ganham lugar no ambiente acadêmico, em especial
dentre os estudos de comunidade. A proposta dos estudos de comunidade envolve a
delimitação metodológica de um grupo social, marcado por modos de organização
característicos, e a observação dos padrões de mudança em um período de tempo extensivo.
Em que pesem as diferenças de métodos e abordagens entre os estudos de comunidades e os
estudos de folclore, cabe lembrar que ambos floresceram no Brasil em um período de
68
fronteiras acadêmicas mais suaves e intenso trânsito intelectual. Assim é possível pensar
muitas aproximações, tanto com relação a alguns temas de interesse, quanto à relevância dada
ao trabalho de campo e à perspectiva de resguardo de certas formas de sociabilidade.
Sobre a cultura caipira, Antonio Candido (1918-), sociólogo e literato, foi responsável
pela escrita do clássico Parceiros do Rio Bonito, tese de doutoramento em Ciências Sociais
defendida, em 1954, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de
São Paulo. Embora seu trabalho de campo seja focado no município de Bofete, no interior do
estado, ele se dedica a traçar uma extensa trajetória de conformação e caracterização do
caipira.
Para Candido (2009), a formação da cultura caipira está associada ao processo de
fixação do paulista ao solo, especialmente após os ciclos dos bandeirantes, a partir do século
XVIII. Nesse processo, começam a se diferenciar duas categorias sociais relacionadas à terra e
à atividade rural: uma formada por proprietários de cana, gado e, mais tarde, de café e outra
por sitiantes, posseiros e agregados. Mesmo tendo origens familiares muitas vezes comuns, as
diferenças econômicas vão se demarcando a partir da capacidade de empregar, o que define a
diferença entre “fazenda” (primeira categoria) e “sítio” (segunda categoria). A segunda
categoria é a que conforma o universo caipira, enquanto “a primeira é participante e raramente
integrante”. (CANDIDO, 2009, p. 103-104)
O caipira típico foi o que formou essa vasta camada inferior de cultivadores
fechados em sua vida cultural, embora muitas vezes à mercê dos brutos
deslocamentos devido à posse irregular da terra, e dependendo do bel-prazer dos
latifundiários para prosseguir na sua faina. (CANDIDO, 2009, p. 106)
As características gerais da cultura caipira seriam “(1) isolamento; (2) posse de terras;
(3) trabalho doméstico; (4) auxílio vicinal; (5) disponibilidade de terras; (6) margem de lazer.”
(CANDIDO, 2009, p.108). O isolamento é relativizado com ênfase na caracterização da
estrutura de constituição do ambiente de moradia coletiva. O caipira vive em “bairros” onde as
unidades residenciais se distribuem de forma espaçada, causando por vezes a impressão
equivocada de ausência de um sistema de relações vicinais organizado. O “bairro” se define
como “agrupamento territorial, mais ou menos denso, cujos limites são traçados pela
participação dos moradores em trabalhos de ajuda mútua” (CANDIDO, 2009, p. 85).
Embora, no cotidiano, o ambiente familiar seja suficiente para a realização do trabalho
doméstico e da agricultura voltados para o mínimo vital, o auxílio vicinal aparece como
fundamental em tarefas de maior esforço. O mutirão é tratado como forma de solidariedade
69
mais importante para a caracterização da sociedade caipira, tanto no que diz respeito à
organização simbólica quanto à constituição sentido de pertencimento ao bairro. A base
territorial seria, portanto, fundada em dois elementos centrais: sentimento de localidade e a
necessidade de cooperação (CANDIDO, 2009, p.84).
Candido associa também a vasta extensão de terras disponíveis e o modo de vida
voltado para a subsistência como fatores que caracterizam a possibilidade do caipira dispor de
tempo para o desenvolvimento de atividades lúdico-religiosas que fortalecem a integração
vicinal.
Realmente, uma vez aceito que tal equilíbrio se definia em termos mínimos, vemos
que, além de criar condições favoráveis a uma larga proporção de subnutridos, presa
de verminoses e moléstias tropicais, ela proporcionava oportunidade para caça,
coleta, pesca, indústria doméstica – no setor da cultura material. O lazer era parte
integrante da cultura caipira; condição sem a qual não se caracterizava, não devendo,
portanto, ser julgado no terreno ético, isto é, ser condenado ou desculpado, segundo
é costume. (CANDIDO, 2009, p.113)
32
Segundo Ciacchi (2007), Gioconda Mussolini se formou cientista social entre 1935 e 1937, integrando a
segunda turma do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, fundada em 1934. Em 1944, se tornou professora de antropologia na mesma universidade. Desenvolveu
várias pesquisas no litoral norte paulista, inclusive sua tese de doutorado, intitulada Persistência e Cultura em
Ilhabela. Mussolini, ainda jovem, conviveu com Mario de Andrade, tendo participado da fundação da Sociedade
de Etnografia e Folclore (1936). Publicou artigos e ensaios sobre cultura popular como “Festa de Folia” e “Festa
de Devoção” (1946) e “Os Pasquins no Litoral Norte de São Paulo e suas peculiaridades na Ilha de São
Sebastião”, este premiado em primeiro lugar no III Concurso de Monografias Folclóricas do Departamento de
Cultura de São Paulo (1949).
70
Do tipo de vida que se desenvolveu no litoral, com poucos contatos com o mundo de
fora, ou recebendo dele um mínimo de influências e de produtos, por não dispor de
meio aquisitivo, resultou um aproveitamento intensivo, quase exclusivo, ou mesmo
abusivo dos recursos do meio, criando-se, por assim dizer, uma intimidade muito
pronunciada entre o homem e seu habitat. Conhece o homem muito bem as
propriedades das plantas ao seu redor – para remédios, para construções, para
canoas, para jangadas – bem como os fenômenos naturais presos à terra e ao mar
que os norteia no sistema de vida anfíbia que leva, dividindo suas atividades entre a
pesca e agricultura de pequeno vulto, com poucos excedentes para a troca ou para a
venda: os ventos, os “movimentos”das águas, os hábitos dos peixes, seu periodismo,
a época e a lua adequadas para por abaixo uma árvore ou lançar à terra uma semente
ou uma muda ou colher o que plantou. (MUSSOLINI, 1980, p.226).
33
Nesses artigos de Gioconda Mussolini, publicados originalmente em 1944 a 1953, a própria autora não utiliza
a o termo caiçara. Este aparece apenas no título da obra organizada postumamente por Edgar Carone para a
Coleção Estudos Brasileiros (Ed. Paz e Terra), cujo conselho editorial era formado por Antonio Candido, Celso
Furtado, Fernando Gasparian e Fernando Henrique Cardoso.
71
34
Segundo Ciacchi (2007): “haja vista o significado inicial da busca do lugar de Gioconda nesses campos, aí
incluindo o que por ora pode ser definido como o "subcampo" dos estudos de socioantropologia marítima e da
pesca, não será inócuo localizar, em muitos trabalhos e trajetórias sucessivos à morte de Gioconda, um rastro
importante da perspectiva a que estava chegando a nossa autora. Penso, para um programa mínimo e inicial de
pesquisa, na dissertação de mestrado em sociologia defendida por Antonio Carlos Diegues na USP, em 1973,
com a orientação de Fernando Mourão, aluno, por sua vez, de Gioconda Mussolini. O trabalho, Pesca e
marginalização no litoral paulista, é certamente devedor dessa renovada perspectiva epistemológica inaugurada
por Gioconda. Perspectiva que encontrará talvez a sua realização mais completa na tese de doutorado em
sociologia (1980), ainda orientada por Mourão, do mesmo Diegues. Intitulada Pescadores, camponeses e
trabalhadores do mar, e publicada numa coleção muito difundida em âmbito acadêmico, ela marca a retomada
de uma tradição interrompida pela morte da professora paulistana e que daria frutos que ainda estão em plena
fase de desenvolvimento nos dias de hoje.” (p.215-216)
35
Destacamos, por exemplo, entre 2004 e 2006, a organização de cinco volumes da Enciclopédia Caiçara
(Editora Huicitec/ Nupaub-CEC/USP).
72
O que sucede é que, pela baixa densidade demográfica, pelo uso extensivo dos
recursos naturais, pelo conhecimento e práticas culturais no uso dos recursos
naturais, o modo de vida caiçara teve, e em muitos lugares onde ele é predominante
ainda tem, baixo impacto sobre a natureza, particularmente se comparado com o
causado pela sociedade urbano-industrial. Quando se toma o enfoque êmico, isto é, a
partir das categorias mentais dos próprios caiçaras, não havia, necessariamente,
atitude conscientemente conservacionista, como hoje é defendida pelo
ambientalismo preservacionista dominante. As práticas eram conservacionistas no
sentido de um uso cuidadoso dos recursos naturais renováveis porque as
comunidades caiçaras dependiam deles para sua sobrevivência. (DIEGUES, 2004,
p.43)
Não tinha hora de descanso, se seis ficavam pra lá, ficavam dançando. Porque tinha
quarenta pessoas, quarenta homens naquele tempo de trabalho, então não acabava o
fandango, ia até oito horas. Quando o patrão era bom, e que o povo gostava também,
quando amanhecia ele fechava todas as portas, para que não visse o claro do dia,
para o povo dançar mais. Então ele abria a porta oito, nove horas do dia, mas tava
ali, o fandango era bonito! Hoje não tem fandango bonito que nem naquele tempo!
O povo gostava, ninguém brigava, ninguém fazia nada. (Leonildo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba,
2005).
O fandango de mutirão é uma coisa que nós nascia naquilo. Quer dizer, a gente tinha
prazer de fazer o serviço. No tempo da quaresma, a gente respeitava naquela época
ninguém dançava. Chegava a quarta-feira de cinza, pendurava a viola lá e ninguém
ia mexer ali. Deus o livre se fosse mexer na viola lá. O pai descascava a gente, é.
Não podia mexer, os quarenta e cinco dias de luto a viola ali. Aí sábado de Aleluia, a
gente pegava a viola e ia afinar. Era tão gostoso. E sábado já tinha fandango já!
Desenterrava a quarta feira de cinza, que a gente tratava ali. Aí a gente fazia o
fandango, grande que dava, muito gostoso. A gente dançava até dez horas do outro
dia. É, fazia tempo né? E fechava a casa pra não ver a claridade do sol. Ficava ali
dançando até umas certa hora do dia. E era assim, o tal do fandango! (José Pereira,
em entrevista concedida à Daniella Gramani, Cananeia, 2008).
Outro aspecto que se destacava como relevante para mim, já desde a época em que
estive envolvida com as pesquisas do Museu Vivo no Fandango, é a forte associação entre a
vida nos sítios e o sentido de pertencimento familiar. Os Pereira sempre se apresentam como
sendo “de Araçaúba”, ou ainda “de Rio dos Patos”, relacionando seu nome de família ao sítio
onde nasceram. Assim como os Pereira, outras famílias também se referem deste modo: os
Camilo são “do Varadouro”, os Dias “do Rio Branco”, os Costa “do Rio do Saibro”.
No Rio dos Patos, quando eu comecei a trabalhar, com idade de oito anos, o nosso
serviço sempre era na lavoura. Era arroz, feijão, mandioca. Enfim, do sítio, era o
melhor que nós podia trabalhar. Então nossos pais sempre fazia aquele roçado.
74
Quando era tempo de colheita, nós arrecolhia o arroz, o milho, nos paióis, e
movimentava de fazer nossos fandanguinhos de tarde, junto com nossos pais. Eu,
Leonildo, Arnaldo, nós tava tudo junto aí. Então, papai fazia os cavaquinho pra nós,
as vez de casca de jaruvá, nós ia fazendo a violinha, ele cantando e nós ajudando ele.
Então nós achava muito importante. Ele achou que nós podia ajudar ele mais tarde,
depois que nós crescesse, e também aprendesse, que nem ele. Ele interessava nós a
aprender o que ele sabia. Então ele fazia cavaquinho, fazia rebequinha, fazia as
coisinha, nós ia fazendo, e fumo até aprender. E depois nós ia aos fandango, já, no
meio dos nosso parente, a família Pereira, que nós somo, tocava nos fandango lá e
fazia bonito por lá. Tudo aplaudia daquele jeito que nós gostava. Fazia, amanhecia,
cantando, brincando. Papai era muito trabalhador e era o mestre da nossa vida. E
então foi onde nós podemos se criar, no poder dele. Nós se achava muito feliz no
poder dele. E depois separemos, saímos cada um pra suas casas, mas sempre não
deixava de se juntar pra fazer nossos fandanguinhos. Eu sempre com a minha
rebequinha do lado, Leonildo também com a violinha dele. Aonde nós chegava era o
maior prazer que nós tinha, cantar naquele povo até amanhecer o dia. O pessoal
gostava da nossa vinda, gostava do nosso lugar. O Rio dos Patos foi rico de beleza
por causa da natureza dos nossos parente. Nossos parentes era tudo chegado à gente.
Aonde chegava, um dia de trabalho, tudo se ajuntava e fazia aqueles roçado, aquela
beleza. Aonde se juntava tudo, as mulheres, mãe, parente tudo, ficava muito
satisfeito. E com aquilo nós se criava muito feliz. (Randolfo Pereira, em depoimento
à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005).
O que se chama de sítios são pequenos núcleos urbanos, por vezes tratados como
bairros rurais36, com construções espaçadas que se organizam nas margens de rios, baías ou
praias, ou mesmo no seio da mata, com acesso por trilhas ligadas a estradas ou a pequenos
portos, chamados portinhos ou trapiches. Além dos sítios, na região em que o litoral de São
Paulo e do Paraná se encontram, conhecida como Lagamar37, são comuns as vilas pequenas,
como a Vila Fátima (PR) e médias como a Vila do Superagui (PR), na ilha de mesmo nome, a
Vila do Marujá, na Ilha do Cardoso (SP), e o Ariri, em área continental de Cananéia (SP).
Diferentemente dos sítios, nas vilas, as casas são mais concentradas especialmente, com
maior adensamento populacional.
Nessa região, abundante em rios, lagoas, praias extensas e baías, as referências
espaciais se organizam não tanto pelos elementos naturais, mas fundamentalmente pelas vilas
e sítios. Em muitos casos aqueles emprestam seus nomes às localidades – como Rio dos Patos
ou Rio Branco – ou são batizados com o nome da própria localidade, em um intercâmbio
onde a tônica referencial recai sobre os núcleos populacionais.
36
No âmbito dos estudos de comunidade, realizados na década de 1960, além do já citado trabalho de Candido
(2009) sobre os caipiras, que enfatiza a importância do auxílio vicinal e do sentimento de localidade na
construção da dinâmica de sociabilidade destes núcleos, também Queiroz (1973) produziu estudos relevantes
sobre os bairros rurais paulistas, destacando a necessidade da ajuda mútua e a realização de atividades lúdico-
religiosas como fatores da constituição de solidariedade grupal característica dessas localidades.
37
O Lagamar é um complexo estuarino-lagunar que se estende pelo litoral de São Paulo e do Paraná, envolvendo
os municípios de Iguape, Pariquera-Açu, Cananeia, Ilha Comprida, e também Guaraqueçaba e a região da bacia
de Paranaguá.
75
A circulação na área costeira de divisa entre São Paulo e Paraná é feita
preferencialmente por via fluvial, em embarcações particulares, em geral por canoas e remo
ou a motor ou ainda em pequenos barcos pesqueiros feitos em madeira e pintados com cores
vibrantes, que são chamados de “toctoc” em função do barulho do motor. Lanchas e
embarcações maiores com motores velozes são, em geral, mais comuns dentre os veranistas
ou os que vivem da atividade turística.
Figura 8: José Pereira no portinho de acesso ao Figura 9: Trilha de acesso ao Varadouro. Cananeia,
Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. 2012. Foto: Joana Corrêa.
76
Em minhas incursões anteriores pela região, eu havia tomado contato com a densidade
da importância da vida nos sítios principalmente pelos depoimentos gravados e pelos muitos
relatos que ouvi. Já havia visitado algumas vezes o Varadouro, o Rio da Rita, o Sebuí, dentre
outros sítios da região, mas sempre de passagem, jamais havia pernoitado. Contudo, quando
iniciei minha pesquisa de campo no Ariri, percebi que precisava reunir mais elementos que
me ajudassem a melhor compreender o modo de vida sitiante. Assim, pedi a José Pereira e sua
esposa Maria Camilo que me levassem com eles para passar alguns dias no Varadouro. Maria
nasceu no Varadouro e José se mudou para lá depois do casamento, passando a maior parte de
sua vida adulta.
É muito comum que aqueles que migraram para áreas urbanas, mantenham suas casas
nos sítios ou somente áreas com roças para plantio de produtos de consumo familiar. José e
Maria, mesmo após a mudança para o Ariri, conservam a casa e cultivam roçados no
Varadouro. Eles me disseram que preferem consumir alimentos “de lavoura”, com os quais já
estão acostumados. Com os filhos, revezam-se para ao menos uma visita semanal aos roçados,
pois precisam carpir com frequência para que outras plantas e pragas não tomem conta de
suas plantações.
A irmã de Maria, Rosa Camilo, e seu marido Quirino Coelho, que se mudaram logo
após o casamento para o Ariri e lá criaram seus seis filhos, também continuam plantando até
hoje no Varadourozinho, onde Quirino nasceu e foi criado. Leonildo Pereira e alguns de seus
primos, como Agostinho, filho de Julino, que moram em vilas mais próximas da região
costeira, mantêm roçados em Rio dos Patos, pois a dificuldade de acesso – quase duas horas
de caminhada em trilha na mata – afasta o controle ambiental.
A experiência no Varadouro, com José e Maria, se mostrou muito enriquecedora para
entender melhor as relações familiares. Além de mim e do casal, viajaram conosco Rosa, irmã
de Maria, e sua filha Carla, com as quais travei longos diálogos. José, sabendo de meus
interesses de pesquisa, incentivou Maria a me levar às casas de seus parentes – Placidina, sua
mãe, que mora com a filha Teresa, e Luiz Camilo, seu irmão, casado com uma sobrinha de
José – para que eu pudesse conversar com moradores da localidade.
O percurso do Ariri ao Varadouro foi feito na embarcação de José, cerca de vinte
minutos entre canais que retalham extensas áreas de manguezais e cujos percursos parecem
indecifráveis para quem não tem muita intimidade com a região. Em seguida, do portinho do
Varadouro até chegarmos às primeiras residências, é necessário caminhar mais de uma hora
por uma exuberante mata atlântica.
77
Figura 10: Chegada no Varadouro. Cananeia, 2012. Figura 11: Escola desativada no Varadouro. Cananeia,
Foto: Joana Corrêa. 2012. Foto: Joana Corrêa.
Embora nas vilas costeiras a alvenaria seja bastante adotada nas construções, em sítios
como o Varadouro, predominam as casas construídas com tábuas de madeira cortadas na
mata. Normalmente, o assoalho é elevado do solo por tocos de cerca de meio metro, evitando
umidade e alagamento. Esse tipo de construção é também comumente encontrado nos bairros
de periferia. As casas de José e de seus irmãos Arnaldo e Randolfo no Ariri seguem
basicamente esse padrão.
78
Figura 12: Casa de José Pereira em seu sítio no Figura 13: Casa de Arnaldo Pereira no Ariri. Cananeia,
Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. 2012. Foto: Joana Corrêa.
Em quase toda a região é comum haver uma construção ao lado da casa, bem mais
simples, com as paredes erguidas diretamente no solo natural, de barro batido, onde se faz o
chamado fogo de chão. Tanto no sítio de José no Varadouro, como em sua casa no Ariri, a
comida é prioritariamente preparada nesse ambiente. Segundo ele, foi a partir do momento em
que as telhas de amianto se difundiram na região – e hoje quase todas as casas de sítio têm
esse tipo de telhado em substituição ao trançado de palha –, que a cozinha com fogo de chão
foi separada da casa principal, pois nela manteve-se a cobertura trançada. A telha de amianto
não permite a evasão da fumaça provocada pelo fogo e, por isso, a separação dos ambientes,
antes integrados.
Figura 14: Cozinha anexa à casa de José Pereira, no Figura 15: Fogo de chão, na cozinha da casa de José
Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa. Pereira, no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana
Corrêa.
O fogo de chão serve também para defumar carnes de caça e pescados, que
permanecem armazenados em uma grelha ou em ganchos pendurados sobre o fogo, já que
geladeira é ainda é artigo raro para quem mora em sítios que não possuem sistema elétrico de
79
iluminação, como o Varadouro38. Muitas casas possuem uma cozinha interna à construção
principal, com fogão a gás e armários para louças e alimentos.
Nas casas de muitos dos fandangueiros que visitei, assim como na de José e nas de
seus irmãos, encontramos instrumentos de fandango e peças de artesanato repousando em
pregos presos à parede, misturando-se a alguns outros enfeites e motivos religiosos. Alguns
móveis de madeira, como bancos e mesas são confeccionados pelos donos da casa. Os
instrumentos podem ser de uso dos próprios fandangueiros e ainda, como no caso dos Pereira,
destinados à venda. É comum que haja alguns inacabados, frutos de encomendas. José usa a
varanda frontal de sua casa no Ariri como área de trabalho para a construção de instrumentos.
Arnaldo, que mora sozinho, trabalha na sala. Dentre os irmãos, apenas Leonildo tem um
espaço próprio de trabalho, uma espécie de oficina e refúgio, cujo acesso é feito a partir de
uma pequena trilha que parte de sua casa.
Figura 16: Instrumentos musicais na parede da casa de José Pereira no Ariri. Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa.
Maria, esposa de José, não acolheu de imediato meu pedido para passar alguns dias
com eles no Varadouro. Com a ajuda de José, logo percebi a resistência era um misto de
preocupação e vergonha com relação às condições de sua casa de lá, mesmo sabendo que eu
38
A iluminação artificial é algo bem recente no Varadouro e, assim como em muitas outras vilas e sítios da
região, foi proporcionada por programas governamentais que facilitaram o acesso a placas de energia solar,
baterias ou pequenos geradores.
80
já a conhecia. Somente após muita insistência ela me disse que o problema era a inexistência
de banheiro. De fato, nem no Varadouro, tão pouco na casa de Leonildo, e mesmo nas de
Arnaldo e Randolfo, no Ariri, não há banheiro e nem encanamento que leve água para as
áreas internas da casa. A proximidade dessas construções a córregos e rios é essencial para a
realização das atividades domésticas. Os sítios no Varadouro de José Pereira e Luiz Camilo se
utilizam do mesmo rio para banhos, lavagem de utensílios de cozinha e roupas e coleta de
água para beber e cozinhar.
As casas no Varadouro, bem como em outros sítios que conheci, são cercadas por
pequenas áreas descampadas que inibem a circulação de animais selvagens e peçonhentos. No
entorno dessas áreas há quase sempre hortas e algumas plantas ornamentais. Por ali também
circulam animais de criação de pequeno porte, como galinhas, patos, gansos e, eventualmente,
porcos. A criação de gado e animais de grande porte não faz parte da economia local. Maria e
suas irmãs me confessaram sentir medo quando se deparam com bois ou cavalos soltos na
região. Alguns sítios possuem casas de farinha ou alguma outra construção suplementar para
armazenagem de estoque de alimentos de lavoura ou maquinarias. No entorno dos
descampados se vê mata, com pequenas saídas em trilhas que levam a outras casas, à beira de
algum rio próximo ou aos roçados de arroz, milho, trigo, feijão, mandioca etc.
Embora as casas não sejam cercadas, preserva-se a distância entre elas. José me disse
que os espaçamentos ajudam a evitar que as criações de um sítio circulem pelos roçados de
outro, mas mesmo assim revelou já ter tido prejuízo em algumas lavouras em virtude da
invasão de porcos e galinhas alheias. Pelo que pude compreender, esse foi um dos motivos
para alguns desagravos com outros moradores do Varadouro.
Muitas das vezes que visitei casas de sítio, fui recebida na cozinha externa, no entorno
do fogo de chão, local que é também referência para a dinâmica da vida familiar. Nos dias de
frio, o fogo serve para aquecer e, no verão, a fumaça ajuda a espantar os insetos, chamados de
“imundice” ou “nojeira”, que de fato são bastante populosos e vorazes nessa época do ano.
Ao longo dos dias em que acompanhei José e Maria em seu roçado, o trabalho foi entremeado
por muitas pausas à beira do fogo, para alguns cafés e as refeições principais. José me falou
várias vezes sobre como gostava desse cotidiano de trabalho, descanso e convivência com
seus filhos, algo que lhe faz falta no Ariri. Quando Maria me levou à casa de sua mãe,
Placidina, que reside no Varadouro com uma filha que não se casou, lá estavam outras
pessoas de sua família, reunidas à beira do fogo de chão numa conversa que rendeu a tarde
inteira.
81
Parentesco, afinidade e respeito
Quirino e Rosa, nessa tarde na casa de Placidina, afirmaram que a “família é o alicerce
que sustenta a pessoa em seu percurso de vida”. Em seguida complementaram dizendo que “o
esteio da família é a mulher, papel que o homem complementa, mas não substitui”. Nessa
metáfora, percebi o quanto família e casa se entrelaçam como basilares na vida sitiante. A
família representa o piso firme que a mulher protege e abriga, estruturando a unidade familiar.
Quem não tem alicerce, não erguerá sua própria casa.
Carla, filha de Rosa e Quirino, disse-me que por alguns familiares “sente afinidade e
por outros tem apenas respeito”. Afinidade ela tinha com os pais, avós, irmãos e alguns tios.
Já com os primos nem sempre a afinidade que sentia na infância se manteve na juventude.
Para ela, a afinidade parecia figurar como um misto de afeto e convivência, enquanto o
respeito apenas reconheceria a relação de parentesco. O círculo da afinidade seria, portanto,
mais restrito que o do respeito.
Por outro lado, nos relatos de fandangueiros mais velhos, o sentimento de respeito é
muito enfatizado na relação com os parentes próximos.
No meu tempo quando nós chegava a ir num fandango pra dançar era 17, 18 anos.
No meu tempo, quando se saía um pai da gente pra dançar naquela roda um filho
não podia dançar naquela roda. Era o respeito que ele tinha. Seu um padrinho tava
dançando, o afilhado não podia junto. Se um pai tava cantando, um filho não podia
ajudar, era assim. Então nós tocava com nossos tio, aqueles tio que eram bonzinho
pra nós, convidavam a gente pra tocar viola, a gente já sabia um pouquinho mas, não
podia. A gente não tinha ordem de cantar ali. Então nossos tio, aqueles tio que
gostavam bem da gente às vezes convidava, “vamos tocar uma viola nós dois”, aí
dizia, “ah, papai não deixa”, aí falava, “vamos, vamos”. Aí nós ia, nós já tocava bem
viola, cantava. (Arnaldo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu
Vivo do Fandango, Cananeia, 2005).
Compreendo que essas diferentes visões com relação ao afeto e ao respeito com os
pais, provavelmente, são perspectivas geracionais. Atualmente, como em muitos outros
contextos socais, a relação entre pais e filhos ganhou contornos bem mais flexíveis, embora
tenha também, em muitos casos, perdido bastante em convívio.
Era um tipo um respeito que tinha. Que a gente, como eu falei, às vezes tava três
quatro homem conversando, até mulher no meio, eles velho adulto. Deus o livre que
uma criança fosse ali, dizer: “papai não sei o que lá”. Não, não podia. Se não
apanhasse aquela hora, mas depois que saísse aquele povo dali, apanhava. “Pra que
você foi lá aquela hora?” Era umas cintada. Uma cinta, naquele tempo, era três dedo
de largo. Apanhava, apanhava sem erro. Era um tipo, uma coisa diferente de agora.
(José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, Cananeia, 2008).
82
Segundo José Pereira, casamentos entre primos, ou mesmo entre sobrinhos e tios eram
aceitos com relativa naturalidade há cerca de duas ou três décadas. Entre os Pereira, era algo
bastante comum na época em que moravam em Rio dos Patos. Leonildo Pereira confirma: “só
eu não casei com parente, o resto tudo da minha família casou com parente”. Atualmente,
contudo, o casamento entre parentes não é algo bem visto e, em geral, é associado à ruptura
precoce dos conjugues ou a problemas de degeneração física ou mental dos filhos.
Segundo me afirmaram as mulheres da família Camilo e também pelo que pude
perceber por minha convivência com os Pereira, irmãos e irmãs procuram alimentar vínculos
de afinidade muito estreitos. José Pereira, por exemplo, cuida de alguns de seus irmãos.
Arnaldo, que tem uma deficiência nos pés, chegou a morar em sua casa no Varadouro por
cerca de cinco anos. Nos últimos anos, José vinha amparando também um de seus irmãos
mais velhos, Randolfo Pereira. José o buscou em um sítio para que fosse morar próximo à sua
casa. Maria, esposa de José, também visita com frequência suas irmãs.
Já as relações entre cunhados e especialmente entre concunhados parecem ser bem
mais suscetíveis de conflitos e tensões. Rupturas familiares acontecem com frequência entre
homens ou entre mulheres ligadas por esse grau de parentesco indireto. Nesse caso, é comum
que deixem de frequentar as casas um do outro. Contudo, se o marido rompe com o cunhado
isso não impede que a mulher continue a visitar a casa da irmã.
A relação entre irmãs apareceu nos relatos das irmãs Camilo como o principal elo do
que se pode compreender como amizade entre as mulheres, especialmente após o casamento.
Segundo ela, depois do casamento, dentre a sua geração, a amizade com mulheres que não
pertencem ao seu círculo familiar raramente é cultivada, a não ser que as famílias mantenham
boas relações entre si. Após o casamento, a vida da mulher se volta para a casa, o marido e os
filhos.
Uma mulher, após se casar, raramente irá circular sozinha para além das casas de sua
própria família ou no ambiente religioso, quase sempre católico, que pode ser compreendido
como uma metáfora estendida da própria concepção da família. Diferentemente dos homens,
as mulheres só circulam para além da casa e da vizinhança familiar quando toda a família a
acompanha.
83
Economia e subsistência
Antigamente, serviço da gente era só do mato. Nosso serviço era fazer canoa, fazer
remo, vender; tirar palmito, vender; criar palmito, vender. O seu problema lá no
mato para sobreviver era isso. (Nilo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, Guaraqueçaba, 2005).
Nos sítios por onde já passei, quando muito, há pequenas vendas com pouca oferta de
produtos. No Varadouro, devido à baixa populacional, hoje não há mais nenhuma. A compra
de alimentos complementares – sal, açúcar, óleo, macarrão enlatados, etc. – é normalmente
feita em áreas urbanas ou em pequenas embarcações que circulam vendendo alguns desses
produtos. Rosa e Quirino me falaram que havia no Ariri, há algumas décadas, uma grande
venda de “secos e molhados”. Muitos dos sitiantes da região trocavam o excedente agrícola
por crédito de mercadoria e o dono do estabelecimento era chamado de “patrão”. Ouvi de
Leonildo referências semelhantes sobre uma venda no centro de Guaraqueçaba, para onde sua
família se deslocava a partir de Rio dos Patos.
Os sitiantes também costumam praticar atividades de caça e extração de palmito na
mata, pesca em mar e rios de água doce ou salgada, e também cata de caranguejos e ostras.
Essas atividades, ainda muito comuns, podem ser para consumo próprio e para venda. Mesmo
com a repressão das guardas ambientais, as atividades de caça e coleta continuam sendo
realizadas de forma mais discreta, muitas vezes velada. Evita-se dizer aos visitantes que tipo
de carne defuma sobre a brasa.
Rosa e Quirino me disseram que, no Varadouro, não chegou a haver efetiva coibição
dos roçados. O que houve foram boatos de que as plantações seriam proibidas. Segundo me
relataram, naquela época, em meados da década de 1980, nenhuma autoridade esteve lá para
esclarecer os moradores quanto aos limites das áreas de preservação ambiental. Os moradores
começaram a ficar tensos com relatos que ouviam de pessoas de outras localidades e acharam
melhor esconder seus roçados em áreas de acesso mais difícil em meio à mata.
Já a pesca é controlada, com liberação sazonal de acordo com os ciclos de reprodução
de cada espécie. Contudo, muitos dos que hoje se dedicam à atividade pesqueira, inseriram-se
nesse ramo como alternativa de subsistência. Os Pereira, por exemplo, tanto quando moravam
em Araçaúba como em Rio dos Patos, não tinham nenhuma afinidade com a pesca em água
salgada, até mesmo por serem localidades interioranas, distantes em mais de duas horas dos
canais de maior circulação. Até hoje, os Pereira, de um modo geral, não têm o hábito de
frequentar praias. José e seus filhos confessam sentir medo do mar e, mesmo quando
84
atravessam para a Ilha do Cardoso, que fica a 20 minutos de barco do Ariri, não têm o hábito
de entrar na água e nem mesmo de contemplar o mar.
(Versos gravados por Arnaldo e José Pereira no CD Museu Vivo do Fandango, 2006)
Figura 17: Paisagem da travessia do centro de Figura 18: Paisagem da travessia do centro de
Cananeia ao Ariri. 2012. Foto: Joana Corrêa Cananeia ao Ariri, com guarás à beira do mangue.
2012. Foto: Joana Corrêa.
Figura 19: Ariri visto da balsa da DERSA. Cananeia, Figura 20: Casario colorido do Ariri à margem do
2012. Foto: Joana Corrêa canal. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa
O Ariri fica em uma área onde os territórios de São Paulo e do Paraná se embaraçam.
Não se vê o mar aberto do canal que margeia a vila. A outra margem é de manguezais da Ilha
do Superagui, pertencente ao município de Guaraqueçaba, no Paraná. E entre a ponta da Ilha
do Superagui e o mar, há ainda a ponta de outra ilha, a do Cardoso, que pertence ao município
de Cananeia.
Pode-se também chegar ao Ariri por via terrestre, por uma estrada de terra mal
conservada que parte do Centro de Cananeia, com cerca de 70 km de extensão, conhecida
como Estrada do Ariri. Ao longo do percurso, estão alguns bairros rurais do município, como
Taquari, Itapitangui, Rio Vermelho, comunidade quilombola do Mandira e também Araçaúba,
sítio de onde partiram os Pereira, distante 12 km do Ariri.
A área central do Ariri é ocupada por duas ruas principais, uma que margeia o canal e
outra perpendicular, que se liga à estrada do Ariri. No pequeno aglomerado onde as duas ruas
87
principais se encontram, há um restaurante, dois bares, três vendas, um mercado e uma
padaria. Uma atividade comercial em princípio surpreendente para o porte do bairro, mas que
se justifica pelo fato de servir também algumas vilas e sítios do entorno, da Ilha do Cardoso e
das áreas continentais de São Paulo e do Paraná.
A população do Ariri é formada por indivíduos com trajetórias diversificadas, mas que
podemos agrupar em ao menos três perfis predominantes. O primeiro é constituído por uma
camada de baixa renda, integrado por pessoas que nasceram e moraram grande parte de suas
vidas nos sítios do entorno e cuja mudança para o Ariri representa a proximidade de uma
experiência urbana, com ofertas de emprego remunerado, acesso facilitado às opções de
comércio e a serviços de educação e saúde. José Pereira e sua família, Randolfo e Arnaldo
fazem parte desse grupo, assim como o casal Rosa Camilo e Quirino Coelho, João Alves e
muitos outros ex-moradores de sítios.
O segundo perfil pode ser pensando a partir dos comerciantes – donos de vendas,
mercados, restaurantes e pousadas – e de funcionários com formação técnica ou superior dos
serviços públicos, como professores e enfermeiros. Em geral, vêm de famílias de classe média
baixa, alguns nascidos no Ariri que passaram anos morando em outras cidades e retornaram
para uma experiência de vida mais tranqüila, ou ainda aqueles que deixaram centros urbanos
em busca do convívio com a natureza.
Há ainda um terceiro grupo que se caracteriza por uma população sazonal. São turistas
e veranistas que frequentam a região em pousadas, casas próprias ou alugadas. Normalmente,
são famílias e amigos de classes médias urbanas de municípios do interior paulistano, que têm
a prática pesqueira como atividade de lazer. Muitos chegam em carros próprios, trazendo para
a paisagem do Ariri automóveis de grandes proporções.
O município de Cananeia como um todo é bastante movimentado pela atividade
turística, oferecendo opções diversificadas com ênfase no patrimônio histórico e natural39.
Aqueles preferem usufruir regularmente de praias não costumam escolher o Ariri como local
de pouso, já que de lá é necessário atravessar o canal para chegar à Ilha do Cardoso, onde se
tem acesso ao mar aberto. Para os visitantes mais acostumados à vida urbana, a principal
vantagem que o Ariri oferece em relação às vilas da Ilha do Cardoso é a luz elétrica, o que
proporciona noites mais frescas em quartos com ventiladores ou ar condicionado. No Cardoso,
39
Cananeia é dos municípios mais antigos do Brasil. Sua data oficial de fundação é 1532, contudo há referencias
à chegada de expedições desde 1502 (Bueno, 1998). O centro histórico abriga muitos casarios do período
colonial tombados pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico
e Turístico, órgão estadual de proteção do patrimônio vinculado à Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.
O turismo é uma das principais atividades econômicas do município.
88
a iluminação por placas de captação de energia solar ou geradores não suporta muitas funções
e, em geral, é disponibilizada apenas nas primeiras horas da noite. Ou seja, parece que aqueles
que procuram o Ariri querem uma experiência de natureza sem a perda de alguns dos
confortos da vida moderna.
Os comerciantes ocupam especialmente a área de maior circulação do Ariri, à margem
do canal. Seus estabelecimentos formam o conjunto colorido que avistamos na chegada. Já as
casas de veranistas se concentram principalmente em um condomínio de circulação restrita em
área mais espaçada também à beira d’água. As casas de sitiantes se espalham em áreas
interioranas, sendo que parte delas conserva uma pequena área de terreno e casas com técnicas
de construção semelhantes a dos sítios. Tanto pelas falas quanto pelo modo como conduzem
seus cotidianos, percebemos que não há entre eles um desejo de ruptura, mas uma tentativa de
reelaboração da vida nos sítios.
Martins (2006) em seu estudo sobre o fandango em Paranaguá, na Ilha dos Valadares,
onde residem muitos ex-sitiantes, identifica uma tendência similar entre esses moradores, que
acaba por configurar a ilha como um espaço de continuidade do sítio na cidade. Muitos dos
integrantes da família Pereira que lá residem conservam a dinâmica de encontro familiar nas
horas vagas.
No bairro Canarinho, local onde mora a maioria dos componentes da família Pereira
que estão em Valadares, acontecem todo domingo partidas de futebol envolvendo o
time dos Pereiras, conhecido pelo sugestivo nome de “Os Parentes”. É no campo
que fica no meio do bairro que “Os Parentes” recebem os times convidados,
demarcando, com isso, seus laços de parentesco. (…) Parentesco generalizado, que
envolve consangüinidade e afinidade; na ilha dos Valadares, assim como nos sítios,
a linguagem do parentesco está em todo o lugar: nos campos de futebol, no culto da
igreja, nas redes de vizinhança e nos fandangos. (Martins, 2006, p.63).
Nas primeiras vezes que estive no Ariri, entre 2005 e 2006, o único Pereira que lá
residia era Arnaldo, irmão de José. José, contudo, assim como os demais moradores do
Varadouro, frequentava assiduamente o Ariri. Na época, Arnaldo e José nos apresentaram a
seus primos Alves: Henrique, João, Atanus Anacleto e Dilermano Theodorico, netos de
Franklin Pereira por parte de mãe. Todos haviam nascido e crescido em Araçaúba. Com os
Alves, os Pereira costumavam se reunir informalmente no Ariri em dias livres para tocar
fandango.
José Pereira se apresentou com os primos Alves no I Encontro de Fandango e Cultura
Caiçara em Guaraqueçaba, em 2006. Diante de tantos grupos que incorporavam a dança em
suas apresentações, voltaram animados com a perspectiva de formarem no Ariri um grupo com
dançadores para ensaiarem as modas batidas, que há muito não se dançava por lá. Na época do
II Encontro, em 2008, José Pereira e seu primo João Alves já dividiam a liderança de um
grupo que contava com a participação de seus irmãos, cunhadas, filhos, filhas, sobrinhos e
sobrinhas. Rosa e Carla, que participaram dessa primeira formação, contaram que foi com
Placidina, no Varadouro, que aprenderam e ensaiaram alguns dos primeiros passos dos
volteios femininos, usando tocos de madeira no lugar do posicionamento dos homens.
No período entre os dois Encontros de Fandango (2006 e 2008), havia chegado ao Ariri
uma nova moradora, Lucia Domingos, enfermeira do posto de saúde. Desde então, ela passou
a se dedicar também ao apoio das iniciativas relacionadas ao fandango local e acompanhou o
grupo de José Pereira e João Alves na viagem ao II Encontro. Ao lado de José e João, Lucia se
tornou uma das principais articuladoras de fandango no Ariri. Ela organiza pequenos eventos
culturais e os auxilia na elaboração de projetos para editais de fomento. Com os recursos
obtidos em um edital, conseguiram comprar um pequeno terreno na Estrada do Ariri com uma
casa de dois cômodos, batizada da Casa de Cultura e do Fandango Caiçara. Também lançaram,
em 2010, um CD que celebra as origens dos Pereira e dos Alves, intitulado Fandangueiros do
Araçaúba, do qual participaram os Alves e os Pereira residentes no Ariri, além de Leonildo
Pereira, do Paraná, e da Família Neves, da Ilha do Cardoso.
92
Pouco tempo depois do II Encontro, as relações entre os primos José Pereira e João
Alves se estremeceram em virtude de divergências e disputas na chefia do grupo. O grupo se
partiu e os integrantes se rearranjaram conforme o parentesco. O novo grupo de José, com
parentes das famílias Pereira, Camilo e Coelho, durou mais um ou dois anos e se desmanchou.
Atualmente, além de se apresentar como rabequeiro do grupo Família Neves – pelo que
sempre exige um auxílio financeiro já prefixado, mesmo quando não há pagamento previsto
para o grupo –, José se junta com seus irmãos Arnaldo e Leonildo e com seu filho Laerte,
quando é convidado por algum projeto a apresentar o fandango dos Pereira. Para que Leonildo
esteja presente é, entretanto, necessário que o demandante viabilize os custos para buscar o
irmão na localidade do Abacateiro, em Guaraqueçaba, no Paraná.
João Alves mantém o grupo formado por parentes seus de idades variadas, que segue
com o nome Fandangueiros no Ariri, o mesmo título usado no livro Museu Vivo do
Fandango (CORRÊA, PIMENTEL e GRAMANI, 2006, p.135). Trata-se de um grupo que
conserva certa informalidade em termos de organização e performance, o que ficou
especialmente visível em contraste com grupos paranaguaras que participaram do encontro de
lançamento, em Paranaguá, do CD Fandangueiros de Araçaúba.
Presenciei uma reunião preparatória à viagem de lançamento do disco e havia, na
ocasião, um clima de tenso entre os integrantes do grupo. Espalhados em círculo na área
externa da casa de fandango, todos mal se olhavam e as falas eram duras, confrontando-se em
93
muitas divergências sobre quais seriam as prioridades naquele momento. Havia, contudo, um
contraste entre a indisponibilidade em colaborar com as tantas demandas e o desejo de que em
pouco tempo pudessem receber algum retorno financeiro com as apresentações do grupo.
João Alves e Lucia, encarados como lideranças, eram os alvos das cobranças.
A rivalidade entre José Pereira e João Alves demarca uma polaridade na organização
do fandango no Ariri. O curioso é que ambos desempenham também funções equivalentes
como funcionários da prefeitura de Cananeia, na qualidade de auxiliares de serviços gerais do
Ariri. Essa condição de similaridade no trabalho e, principalmente, no fandango os coloca em
uma constante relação de tensão.
Quando cheguei ao Ariri para dar início à pesquisa de mestrado, em 30 de dezembro
de 2011, fui recebida com um fandango mobilizado por Lucia40. Eu já havia me comunicado
previamente com ela, informando sobre minha chegada e sobre os motivos da estada do Ariri.
Era véspera de ano novo. O Ariri estava repleto de veranistas e pessoas que vinham visitar
seus parentes. Lucia havia feito a sugestão do fandango a vários fandangueiros e
especialmente a José Pereira e João Alves. Contudo, foi José que se adiantou e procurou
Juarez, dono de um dos bares à margem do canal, para acordar os detalhes da noite. A notícia
se espalhou no boca a boca, permeada por incertezas: “parece que vão fazer um fandango em
virtude da chegada de uma tal moça do fandango”.
Receber o distintivo de “moça do fandango” não foi uma particularidade minha.
Muitas vezes ouvi fandangueiros e moradores do Ariri se referirem do mesmo modo à Lucia.
Daniella Gramani, parceira no trabalho do Museu Vivo do Fandango, também foi tratada
assim, quando desenvolveu sua pesquisa de campo no Ariri. Essa denominação oferece, em
uma via, um reconhecimento de pessoas que tem certo grau de envolvimento com o fandango,
mas por outro, representa também uma expectativa de comprometimento e retorno frente às
expectativas de novos trânsitos.
O fandango foi marcado para a noite do dia de minha chegada ao Ariri. Em virtude do
cansaço da viagem, só consegui chegar ao bar do Juarez por volta das dez horas da noite. O
fandango já havia começado. O local, bastante amplo e com algumas mesas e cadeiras de
plástico, estava esvaziado. Os músicos haviam escolhido uma mesa escondida em um recuo
do balcão, único ponto do bar que não se avistava da porta de entrada. Na outra extremidade,
havia alguns poucos parentes de José sentados em cadeiras dispostas lado a lado, coladas à
40
Lucia foi uma grande parceira e interlocutora no processo de pesquisa.
94
parede. Cumprimentei todos e me instalei em uma cadeira bem próxima à mesa dos músicos,
onde eu poderia acompanhar de perto o fandango.
João Alves ainda não havia chegado e José liderava o grupo de cerca de cinco ou seis
tocadores, nem todos familiares a mim. José fazia par com seu sobrinho Maurício nas violas e
nas vozes. Arnaldo Pereira tocava rabeca e os demais tocadores, instrumentos percussivos.
Essa configuração foi, contudo, momentânea. Eles trocaram diversas vezes de instrumentos,
mas José manteve-se, a maior parte tempo, na primeira voz. Eventualmente migrava para a
rabeca, instrumento em que se destaca com virtuosismo41. Ele me disse algumas vezes que
nasceu “com esperteza e curiosidade para o fandango”, gabando-se de suas capacidades de
tocar diferentes instrumentos e também de confeccioná-los.
Um pouco mais tarde, João Alves chegou e logo se juntou aos músicos. José e João
formaram então a dupla principal, cantando juntos alguns fandangos. Apesar da relação tensa
e conflituosa, vê-los tocando juntos transmitia uma surpreendente harmonia. Só mais tarde
compreendi o quão emblemático era o fato de José e João se mobilizarem e tocarem juntos
naquela noite. Percebi que estava em meio a uma disputa de prestígio e aliança, já que minha
presença no Ariri poderia representar algum tipo de articulação relacionada ao fandango que
os contemplasse, como em outras passagens feitas por pessoas que desempenham papéis
semelhantes ao meu no mundo do fandango.
Presenciei uma situação semelhante quando uma equipe do Ponto de Cultura
Caiçaras42 montou um estúdio na Casa da Cultura e do Fandango Caiçara para fazer registros
musicais dos grupos e fandangueiros do Ariri. Respondendo a um estímulo dos organizadores,
mais uma vez, José e João tocaram juntos, causando surpresa para alguns. Compreendo,
portanto, que para além de serem primos e parceiros de fandango de longa data, ao tocarem
juntos eles confirmam sua condição de igualdade na liderança do fandango. Afinal, a negativa
41
Por ter aprendido muito cedo a tocar, José não apóia o instrumento sobre peito como a maior parte dos
tocadores, mas sobre as coxas, em posição invertida, como se empunha, por exemplo, uma viola da gamba. Na
pesquisa de Gramani (2009), sobre o processo de ensino-aprendizagem da rabeca entre os Pereira do Ariri, José
afirmou que seu investimento maior na rabeca se deu apos a gravação do CD Viola Fandangueira (2002). Até
então ele tocava um pouco de cada instrumento, mas a partir do disco resolveu se diferenciar, dedicando mais
tempo à rabeca. Hoje ele é capaz de tocar e cantar simultaneamente, o que até a gravação do disco ainda tinha
bastante dificuldade em fazer. E também faz fraseados mais complexos que grande parte dos rabequeiros da
região.
42
Em Cananeia, há algumas organizações sociais que se dedicam a projetos de desenvolvimento comunitário
nas áreas de saúde, educação, meio ambiente e cultura. O Ponto de Cultura Caiçaras é um dos coletivos mais
atuantes no segmento cultural no município. Gerido por biólogos paulistanos que migraram para a área cultural,
nasceu como um projeto financiado pelo Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, e gerido pelo
Instituto de Pesquisas Cananeia, organismo que atua prioritariamente na área ambiental. Atualmente tem uma
atuação independente. Seus projetos aliam o uso de novas tecnologias, softwares livres e formação de jovens
para o desenvolvimento de ações voltadas ao registro e ao fomento da cultura caiçara.
95
da proposta por parte de qualquer um dos dois poderia sugerir uma condição inferior de
talento e prestígio.
Figura 23: João Alves e José Pereira em fandango no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011. Foto: Joana Corrêa.
Voltando ao bar do Juarez, apesar do fandango reunir alguns dos principais músicos
do Ariri, no salão havia apenas dois ou três casais dançando, cujos integrantes se revezavam e
se misturavam. O baile não avançou muito sobre a madrugada. Por volta de 1:30h os músicos
pararam de tocar e guardaram seus instrumentos. José estava chateado por haver poucos
presentes no local, ao passo que o entorno estava movimentado, com gente circulando pelos
demais bares. Ele enfatizou que sempre colaborava com os bailes do Ariri, em especial seu
filho Wilson que gosta de tocar outros gêneros musicais em seu teclado. O que ele esperava
em retribuição seria a adesão dos moradores ao fandango, mas, segundo José, “o povo do
Ariri não valoriza o fandango”, pois gostam mesmo é de ouvir o forró que toca na mídia.
Arnaldo, na época em que fizemos as gravações do Museu Vivo do Fandango,
demonstrou a mesma percepção sobre o Ariri.
Figura 24: Músicos no bar do Juarez. Ariri, Cananeia, 2011. Figura 25: Casais dançando no bar do Juarez.
Foto: Joana Corrêa. Ariri, Cananeia, 2011. Foto: Joana Corrêa.
De fato, músicas de sucesso nacional ecoam dia e noite pelas ruas do Ariri, mas para
ouvir fandango, embora muitos moradores tenham alguns dos CDs já lançados, é preciso
“buscá-lo”. Lucia e, também Quirino, marido de Rosa, esclareceram que a adesão da
comunidade local aos fandangos realizados no Ariri depende muito do contexto de
organização. Segundo eles, é nas festas comunitárias – tanto as de cunho religioso43 como as
que celebram a identidade caiçara – que se percebe maior mobilização e interesse, já que o
envolvimento começa desde os preparativos.
Em janeiro de 2012, logo após a passagem do ano, Lucia me convidou para ficar
alguns dias na Vila do Marujá, pois José Pereira participaria de dois fandangos organizados
pela Família Neves. Em verdade, José não deu prévia certeza de sua presença. Estava à espera
da confirmação da ajuda de custo que solicita para se apresentar com o grupo dos Neves.
Segundo Isidoro, integrante da Família Neves, o grupo se reuniu por influência da
fama dos Pereira na região após o lançamento do CD Viola Fandangueira (2002) e ficaram
ainda mais incentivados durante as gravações do Museu Vivo do Fandango. Antonio Neves,
43
Embora não siga um ciclo festivo determinado, o fandango está associado ao calendário do catolicismo, já que
as famílias fandangueiras são predominantemente católicas, respeitando, por exemplo, o resguardo exigido
durante a quaresma. Muitos fandangueiros participam também de outras festividades relacionadas ao catolicismo
popular, como as bandeiras do Divino Espírito Santos e as festas de Reis, ou reiadas.
97
pai de Isidoro e tio de Salvador (Baduca), era na época a figura emblemática do grupo. Após
seu falecimento, o filho e o sobrinho assumiram a liderança. No período em campo, o grupo
estava com a seguinte formação: Baduca na viola, Isidoro na caixa, um jovem da família que
não me recordo nome e grau de parentesco no pandeiro, Vlad (que não é da família) no
cavaquinho, além de José Pereira na rabeca. Durante alguns anos, Laurinei, jovem também da
família Neves, tocou com o grupo, porém, segundo Isidoro, ele havia virado crente e não
podia mais tocar fandango. Assim, os Neves estreitaram a relação com José para garantir a
rabeca em suas apresentações.
Eu já havia passado muitas temporadas no Marujá, inclusive por ocasião de férias. A
vila é o mais adensado núcleo residencial e principal pólo turístico do Parque Estadual da Ilha
do Cardoso. Como as demais vilas do parque, é habitada principalmente por moradores
tradicionais, muitos dos quais vivem de atividades de turismo comunitário, reguladas pela
gestão estadual. De um modo geral, têm bastante orgulho de seu novo modo de ser caiçara
adaptado a uma realidade de vida que, ao menos para boa parte dos moradores, é mais
confortável do que o tempo dos sítios.
Agora todo mundo tem seu dinheirinho, trabalha com turismo. Turismo é uma coisa
que traz dinheiro pro lugar. Foi bem melhor. Antigamente, era um sacrifício viver
aqui. Vivia só de peixe, plantava roça, plantava a rama pra fazer farinha, plantava
feijão, plantava arroz, plantava milho, banana, cana. Tudo isso aí a gente plantava.
(José Roberto Rodrigues, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, Cananeia, 2005).
Com extensas praias e uma vegetação variada e exuberante, a Ilha recebe o turismo
por meio de um fluxo regulado, com grande variação sazonal. O controle do Parque garante
tranqüilidade às vilas e acompanha os princípios de preservação ambiental necessários.
Contudo, muitos moradores tradicionais reclamam por não conseguirem se manter com os
recursos oriundos das atividades de turismo. O posicionamento dos moradores na Ilha e os
fluxos de interesse do turismo geraram diferenças de padrão de renda. Em geral os moradores
do Marujá são os que conseguem um bom retorno econômico com a atividade turística, já que
estão no local mais procurado pelos visitantes em busca de descanso e lazer. Além disso, os
moradores não são proprietários das áreas onde estão erguidas suas casa, o que os coloca em
situação vulnerável frente a possíveis mudanças de gestão do Parque. Qualquer reforma em
edificação residencial ou comercial tem que ser previamente autorizada.
98
Figura 26: Vista de área central do Marujá, onde Figura 27: Praia do Marujá. Ilha do Cardoso,
turistas se reúnem nos fins de tarde de verão. Ilha do Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Figura 28: Família Neves e José Pereira em fandango Figura 29: Jovens dançando em fandango no Marujá.
no Maruja. Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Joana Corrêa.
Como eu estava com minha filha Clara e Lucia com seu filho Luan, precisamos nos
ausentar por alguns momentos para colocar as crianças para dormir em um quarto próximo.
Qual não foi nosso espanto ao voltarmos e encontrarmos o salão já esvaziado. No caminho,
havíamos cruzado com vários jovens que reconhecemos do fandango, cantando alegremente e
se dirigindo à área central do Marujá, rumo a um bar que oferece forró para diversão dos
turistas nas noites de verão. Os músicos já haviam se retirado e nós ficamos desoladas com a
curta duração do fandango naquela noite.
O segundo fandango aconteceu três dias depois, em um sábado, no mesmo bar popular
que promove forró ao vivo. Nessa noite, José Pereira atravessou para o Marujá acompanhado
de seu sobrinho Maurício Pereira e de uma de suas filhas. Contudo, eles quase não dançaram;
tímidos, diante do amplo salão vazio que contrastava com as mesas do entorno, lotadas de
visitantes de idades variadas. O fandango durou pouco mais de uma hora. Diante da baixa
adesão, o dono do estabelecimento pediu que a Família Neves parasse de tocar antes do tempo
previsto, para dar lugar às demais atrações da noite. Logo os presentes preencheram o salão.
Dessa vez, conversei longamente com José Pereira e Baduca. Eles se mostravam
indignados com a situação. Na opinião deles, o fandango deveria ser prioridade na região.
Baduca ressaltou que na Festa da Tainha, realizada anualmente no inverno, bem como em
outras festas com caráter comunitário, o fandango era mais bem recebido. Segundo ele, os
moradores da ilha, nas temporadas de turismo intenso, estariam atarefados. Ademais, o
interesse dos moradores precisava ser incentivado, pois em sua maioria não frequentavam os
100
mesmos eventos destinados ao público turístico. De alguma forma, sua percepção se mostrou
semelhante à de Lucia e Quirino quanto ao envolvimento dos moradores do Ariri com o
fandango.
De fato, nas duas ocasiões havia entre os presentes não mais do que uma breve
curiosidade sobre o fandango. Pareceu-me que dentre os turistas da alta temporada, que
procuram o Marujá para desfrutar do ambiente natural, o interesse pelo fandango tem um viés
meramente paisagístico. Algo contemplativo e fugaz que figura como uma breve experiência
de exotismo colecionada entre relatos de viagem.
As análises de Lucia, Quirino e Baduca sobre o processo de envolvimento dos
moradores locais com o fandango me deixaram ansiosa pelo acontecimento de uma festa
comunitária na região. Poucos dias depois, soube por Fernando, do Ponto de Cultura, que
aconteceria, no fim de semana de 20 a 22 de janeiro, a Festa de São Sebastião, padroeiro da
Enseada da Baleia, vila vizinha ao Marujá, na Ilha do Cardoso.
A Enseada da Baleia tem proporções significativamente menores que o Marujá. Suas
poucas residências são ocupadas por filhos, netos e bisnetos de Antonio Cardoso, conhecido
por Malaquias, que faleceu em 2010. A vila enfrenta há alguns anos um drástico processo de
redução de seu território, devido à erosão do solo às margens do canal do Ararapira.
Quando eu estive na Enseada alguns anos antes, havia conhecido Jorge e Terezinha
Cardoso, casal que vinha tomando à frente das atividades locais. Ambos eram bem articulados
e me disseram com orgulho que eram festeiros, o que, segundo eles, significava participar da
organização das festas religiosas da própria comunidade e de outras de sua paróquia. Segundo
relatos de Rosa Camilo, o calendário de festas de padroeiro das vilas e sítios da região do
Ariri e da Ilha do Cardoso fora organizado por um padre que exerceu forte liderança
comunitária por volta da década de 1960. Ele teria escolhido padroeiros para localidades que
ainda não os tinham definidos e incentivado um intercâmbio dos moradores da região por
meio das celebrações. Ainda segundo ela, somente há pouco menos de dez anos, o fandango
havia se tornado atração comum nessas festividades.
Tatiana, de aproximadamente 30 anos, filha de Jorge e Terezinha, havia assumido a
liderança da organização da festa da Enseada da Baleia naquele ano. Ela havia estabelecido
contatos com a equipe do Ponto de Cultura Caiçaras que se prontificara em dar apoio para a
organização das atrações musicais (ajuda de custo aos grupos e sonorização), documentação,
divulgação e organização de uma escuna para transporte de pessoas interessadas de Cananeia
à Enseada da Baleia. Segundo Tatiana e Fernando, a programação tem que ser diversificada,
101
para conciliar celebrações litúrgicas, atividades relacionadas à cultura caiçara e atrações
chamativas para os perfis de participantes da festa.
Na ocasião, o público era formado por dois perfis facilmente distinguíveis: moradores
das vilas da região, muitos reunidos com suas famílias, e jovens adultos paulistanos que
migraram para Cananeia em busca de qualidade de vida, alguns dos quais ligados a iniciativas
como a do Ponto de Cultura Caiçaras. Estes haviam também convidado parentes e amigos que
compuseram o grupo participante da travessia de escuna no sábado de manhã, com retorno
previsto para domingo. Para este grupo, ao qual me agreguei, foram vendidos pacotes de
hospedagem e alimentação. Por vezes, havia algum desconforto nos horários das refeições, já
que o outro perfil de pessoas presentes na festa não tinha acesso àquela alimentação.
As duas atividades que contemplavam o viés caiçara da festa foram uma animada
corrida de canoas em um percurso entre as margens do Canal do Ararapira e o fandango com
a Família Neves. O fandango abriu o momento dançante na noite de sábado, quando o salão
foi tomado por pares de todas as idades e perfis que se esbarravam nos valsados.
Em seguida, foi convidado o grupo de forró de rabeca Pé de Mulambo, liderado por
Filpo Ribeiro, paulista criado em Cananeia que aprendeu a tocar rabeca no fandango. Ele
integra também o grupo Jovens Fandangueiros de Itacuruçá, de Cananeia. Assim que
começaram a tocar foram cercados por homens de Pontal do Leste, comunidade no extremo
sul da Ilha do Cardoso, cujos moradores são famosos por serem baderneiros. Eles exigiam que
os músicos parassem para dar lugar ao forró de teclado pelo qual ansiavam. Foi necessário
que os organizadores da Enseada da Baleia e do Ponto de Cultura intervissem para que o Pé
102
de Mulambo continuasse sua apresentação, notoriamente mais apreciada pelo grupo da escuna
do que por moradores das vilas da região. Quando Carlos Henrique começou a tocar seu forró
de teclado, a situação de interesse se inverteu.
Figura 31: Músicos no fandango realizado na festa da Figura 32: Participantes no fandango realizado na festa
Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso, Cananeia, 2012. da Enseada da Baleia. Ilha do Cardoso, Cananeia,
Foto: Luixx Mayerhofer. 2012. Foto: Luixx Mayerhofer.
Figura 33: Mutirão de colheita de arroz no Varadouro. Cananeia, Figura 34: Roque Mateus no mutirão de
2012. Foto: Joana Corrêa. colheita de arroz no Varadouro. Cananeia,
2012. Foto: Joana Corrêa.
Dentre os muitos relatos que ouvi sobre os mutirões, a centralidade do papel dos donos
da casa foi recorrentemente enfatizada. O homem é responsável por orientar os participantes e
fazer com que o trabalho coletivo seja rentável para o objetivo pretendido. Em algumas
localidades, é chamado de “patrão do mutirão”. A mulher é quem conduz as tarefas na
cozinha, devendo garantir que os participantes sejam bem servidos e fiquem satisfeitos. Os
filhos, especialmente quando ingressam na juventude, também se envolvem nos afazeres.
Leonildo me contou que, quando jovem, seu pai lhe confiava algumas tarefas importantes e,
mais tarde, passou a ele a função de patrão em alguns mutirões realizados em Rio dos Patos.
Segundo Leonildo, o mutirão poderia ser também de apenas meio período, chamado de
“sapo”, ou ainda limitado à presença de poucos parentes e vizinhos, conhecido como
“ajutório”.
105
No Varadouro, o acesso à cozinha e à área interna da casa foi restrito às mulheres que
ajudavam no preparo dos alimentos. Durante os horários de refeição, os participantes se
espalhavam entre bancos no entorno de uma mesa externa, próxima à área de circulação entre
a cozinha da casa e a do fogo de chão, mantido acesso durante todo o tempo. Parte dos
ingredientes usados no preparo dos alimentos servidos era de produção própria e outros
comprados no Ariri, com recursos do apoio concedido.
Ao cair da tarde, a colheita foi encerrada. Alguns participantes descansaram no
entorno da casa, outros se recolheram em colchonetes espalhados no salão da escola
desativada, onde os moradores do Varadouro pretendem montar um centro receptivo para
atividades de turismo comunitário. Dirigi-me com algumas mulheres a um trecho de rio mais
afastado em busca de mais privacidade para o banho. No início da noite, o jantar foi servido
em pratos fartos distribuídos pelas mulheres.
Três integrantes do grupo de fandango Família Neves – Isidoro, Baduca e Vlad –, que
residem na Vila do Marujá, chegaram apenas no fim da tarde ao Varadouro, não tendo
participado da colheita. Presenciei uma breve conversa entre Luiz Camilo e Baduca, em que
faziam menção mútua de honra pelo convite e pelo aceite. Luiz se mostrou grato pela
possibilidade, hoje rara, de oferecer um fandango aos colaboradores de seu mutirão. Baduca
enfatizou algumas vezes o prazer que sentiam em participar de festas comunitárias e o
princípio do grupo de cobrar cachês para tocar numa ocasião como aquela, a não ser que
estivesse prevista alguma atividade revertidas em renda, como venda de bebidas, o que não
era o caso.
A cena contrastava com os vários depoimentos sobre mutirão que já ouvi. As posturas
de ambos seriam impensáveis há algumas décadas. Haja visto que saber tocar fandango era
algo corriqueiro entre os sitiantes, não havia diferença de tratamento concedida aos
fandangueiros por ocasião de um mutirão.
Segundo relatos, todos que queriam participar do baile deveriam colaborar com as
atividades do dia, preservados apenas os idosos e as crianças. Chegar apenas para a hora do
baile era uma conduta inadequada que deveria ser reprimida pelo dono da casa, sob o risco de
abalo moral de sua condição de patrão. Da mesma forma, a noção de fandango como uma
atividade passível de remuneração não circulava antes do processo de formação de grupos.
Era sempre sábado, a não ser que tivesse um dia santo sexta-feira. Aí fazia quinta. E
o pagamento, não tinha pagamento. Sabe qual era o pagamento? Era que você
trabalhava o dia inteiro na cavação, você suava, você quase arrebentava de trabalhar,
comia e bebia bem certo no dia, à noite você tinha que dançar. Você tinha que
dançar, trabalhar mais porque você tinha que pegar um tamanco de pau e bater até
oito horas do outro dia. Esse era o seu pagamento, era o divertimento o pagamento
daquele tempo. Coisa que não tem alcance, coisa que eu achei bonito, o pessoal ser
tão bem ali, ter uma amizade no fandango que não cobrava que você fosse trabalhar
pro outro numa roça. Ainda trazia você, dava de comer e ainda era pra você dançar a
noite inteira com o tamanco no pé, até o outro dia. Coisas que não dá pra crer. O
pagamento era o seu divertimento, você vai lá dançar, vai dançar com todo mundo, e
anoitecia e amanhecia, ia pra casa contente descansar. Esse é o contentamento do
povo, uma coisa de origem que eles traziam, não sei do que, de família, a criar amor
naquela dança. Nessa dança de hoje, porque hoje ainda estou com ela. (Leonildo
Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005).
Ninguém tirava tempo para ensinar, porque aquilo era uma coisa que era todo ano.
Cinco, seis, oito mutirão que era feito no ano. E não só no lugar que morava, como
em outro lugar. Ali no Varadouro, ali no Tibicanga, ali em muitas partes. (...) Os
mais velhos não contavam assim “eu aprendi com o velho tal.”. Assim eles não
falavam. A gente não se lembra deles falarem assim. Mas com certeza eles
aprenderam na casa dos pais, né? Porque o pai dele devia saber, né? Os tios, pra
aprender, sabiam, e tudo a mesma coisa. Porque isso aí vem de família, vem de um
pra outro, vem passando, vem passando. E pra nós agora, que nosso avô sabia,
nossos tio aprenderam, nós sobrinhos aprendemos, agora nossos filhos também já
tão aprendendo a música. Vai que é por isso que a gente não pode encontrar que data
que tem o fandango. Eu conheço o fandango desde idade de 15 anos, porque antes
eu não posso contar, só posso contar dali pra cá. (Anísio Pereira, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005).
44
Rosângela me contou que o incêndio lambeu a casa deles em uma tarde, mas que por sorte ninguém se feriu,
pois todos estavam no Ariri. O sofrimento pela perda material foi contudo amenizado pela solidariedade de sua
família. Segundo ela, a notícia se espalhou e, uma semana depois do incêndio, vários Pereira que moram em
vilas e sítios na região de divisa de São Paulo e Paraná, chegaram de surpresa ao Varadouro e lá permaneceram
por uma semana participando de todas as etapas da construção da nova casa – da derrubada e do corte da
madeira até a finalização.
108
durante a noite45. Outros, como eu, levantavam-se após algumas horas de sono. O café foi
reforçado com um prato de pés de galinha cozidos. Havia um estado de alegria compartilhado
pelos presentes. Todos pareciam mais íntimos e à vontade, divertindo-se com os enredos e
passagens cômicas da noite de fandango. O momento era de chacota com os erros e tropeços
cometidos, mas ninguém se mostrava ofendido ou constrangido, pelo contrário, os
comentários puxavam novos relatos e provocações amistosas.
Pouco mais de uma hora depois, o fandango recomeçou no próprio terreiro. Mateus,
filho de Luiz e Angela, ainda menino, arriscava-se em alguns acordes na viola. Há cerca de 20
metros dali algumas mulheres e jovens se reuniam diante de um aparelho de som que tocava
axé e forró. Os dois grupos, contudo, não se mostravam incomodados com a música alheia,
pelo contrário, as pessoas transitavam com certa naturalidade entre os ambientes, em uma
atmosfera de descanso e lazer dominical.
Figura 35: Fandango após o café da manhã, no dia Figura 36: Mulheres ouvindo música mecânica no
seguinte ao mutirão e à noite de fandango. Varadouro, Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
A satisfação dos donos da casa com o resultado da colheita – cerca de quinze sacas de
arroz – era visível. Diante de uma vontade coletiva de permanecer, que se evidenciava sem
que fosse manifesta, Luiz e Rosangela resolveram oferecer um almoço que não estava
previsto na “agenda” do mutirão e o contentamento foi geral. Encerrado o almoço, voltamos
45
A bebida é citada por muitos fandangueiros como elemento importante para a animação dos bailes, sendo
mais comuns os destilados, como cachaça ou licores. Integrantes da família Pereira relatam que durante os
fandangos em Rio dos Patos, quando percebiam que a quantidade de bebida não seria suficiente para sustentar a
festa, não era raro que um dupla fosse designada a ir à venda de Vila Fátima para comprar mais litros de cachaça,
o que exigia quase duas horas de caminhada e uma pequena travessia de barco. Os excessos eram, contudo,
controlados, especialmente em fandangos associados aos mutirões, onde o patrão dosava as quantidades
oferecidas ao longo da noite. Nilo Pereira relata que era considerado ofensivo um filho oferecer bebida ao pai e,
mesmo estando encarregado de servir os participantes de um fandango, ele jamais entregaria um copo ao seu pai,
o que indica que a família se mantinha como operador moral mesmo nos momentos de divertimento.
109
ao galpão da noite anterior e o fandango recomeçou com intensa adesão dos visitantes e dos
moradores do Varadouro. O recomeço do fandango, no dia seguinte ao mutirão e à noite de
fandango, é normalmente chamado de domingueira.
A domingueira é quando termina de manhã, toma o café, que de manhã tem o café, e
“vamos dançar outra vez?”, “vamos”. Isso é uma domingueira. De dia era mais
bonito ainda, todo aquele povo dançando, tomando pinga pura. Pouco, não tanto,
porque era só pinga que tinha naquele tempo, não tinha certas bebidas. Só o branco
mesmo, só o branco, mas ali era pra tomar pouco. (Leonildo Pereira, em depoimento
à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Figura 37: Domingueira com a Família Neves no Varadouro. Cananeia, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Com efeito, mesmo após um intenso dia de trabalho e uma noite de música e dança, o
desejo de continuidade do fandango já era comum “no tempo dos antigos”. Esse desejo
retarda o momento da desagregação e da volta ao cotidiano. A despedida, contudo, é iminente
e inevitável e está presente em muitos versos e refrãos, indicando um fim próximo e adiado de
uma música46, e também do próprio fandango.
46
As modas de fandango são longas em relação ao padrão médio de duração de uma música no mercado
fonográfico. Em geral, são editadas quando registradas em disco. Um moda pode durar dez ou até quinze
minutos de forma ininterrupta, contudo é comum que versos como “vamos dar a despedida” ou de sentido
semelhante sejam muitas vezes repetidos ao longo da execução.
110
...
Vamos dar a despedida
Que o anu já vai embora
...
Hoje estou cantando aqui
Amanhã já vou m’embora
Como não irei chorando
Por este caminho afora
...
Meus senhores com licença
Despedida ‘imo dar
Nossa licença são poucas
Nessa, sim, vai acabar
...
Vamos dar a despedida
Despedida vamos dar
Vamos fazer bem curtinho
Pra n’outra continuar
...
Queromana vou e volto
Quero saber de quem amo
Que dos outros não importo
...
Eu vou m’embora, vou m’embora
Vou m’embora, vou morrer
Não tenho quem por mim chore
Lágrimas não quero ouvir
...
Vamos dar mais uma vez,
Já foi uma, já foi duas
Não há de chegar a três
Adeus morena
...
47
A troca é uma das mais recorrentes formas de interação, que simboliza um fluxo de reciprocidade dos
conteúdos da vida. Trata-se de um processo imbuído por valores e sentimentos, ganhos e sacrifícios, onde
conquista-se algo novo e perde-se algo que antes de lhe pertencia. Segundo Simmel (1971), a troca, por sua
condição relacional, estabelece valores, sendo portanto produtiva e criativa. Cavalcanti (2006), chama a atenção
que o caráter agonístico e ambivalente do sentido da troca já proposto por Marcel Mauss, ressaltando que “trocar
é confrontar-se e incorporar-se a sistemas de hierarquia social. É, a um só tempo, associar-se e rivalizar-se.”
(p.32). Simmel (1983) também propõe o conflito como um importante fator de interação, que proporciona a
integração grupal, e, portanto, sociologicamente positivo.
112
dançadores são mutuamente dependentes, pois um fandango só se sustenta com o empenho de
ambas as funções.
Cabe, contudo lembrar, que o fandango desloca o convívio para um espaço
diferenciado, onde a sociabilidade não se estabelece primordialmente pelo diálogo verbal,
mas sim por meio das mediações sensíveis e corporais que música e dança proporcionam.
Estamos tratando de ambientes pouco numerosos em termos populacionais e, portanto, de
convivência intensa, onde as relações não são harmônicas como aparece no ideário folclorista
sobre o popular, pelo contrário, as rivalidades muitas vezes são acirradas. Os limites informais
de terras e sua distribuição entre famílias, a definição das áreas de roçado, a circulação e o
“sumiço” de animais em áreas vizinhas, os impasses amorosos, as decisões coletivas sobre o
espaço comum, tudo pode confluir para atritos intra e entre famílias. Assim, nesse lugar
diferenciado de convívio, demarcado temporal e espacialmente, a camaradagem é reanimada
no plano simbólico da atividade artística que reordena as tensões latentes da vida social.
Cantando e dançando os conflitos do cotidiano são arrefecidos, embora a competição se
mantenha presente como elemento positivo de sociabilidade, pois no fandango as tensões e
disputas se recolocam no lugar das habilidades e das performances, tema que voltaremos a
tratar no último capítulo.
Já a palavra camarada, além de ser usada para expressar a relação entre famílias – “nós
éramos todos camaradas” – é comumente empregada para expressar a relação de amizade
entre homens. Nos versos de fandango, camarada aparece, recorrentemente, sendo usado
como referência àquele com quem se estabelece uma dupla ou a todos músicos.
Se ele não tiver a lembrança, para nada ele não serve para tocar um divertimento.
Pois que as vezes juntam-se dois, três cantadores e um quer se desfazer no outro,
para ver qual é que é mais. Se pega os dois para cantar uma noite inteira precisa ter
lembrança para um não perder do outro. Mas sempre um tem que perder. Isso é
dureza. Ali que era bom da gente se pegar. Eu gostava era disso, porque ninguém me
derrotava. (Manoel dos Santos Cabral, em depoimento à equipe do Museu Vivo do
Fandango, 2005)
48
Os tamancos são preparados para ressoarem alto na batida no assoalho de madeira. O som dos tamancos deve
ser ouvido ao longe. Quebrar o assoalho durante o tamanqueado pode ser um feito que enaltece o batedor e
qualifica o bom resultado da noite de fandango.
114
2.7. Porque as mulheres não tocam fandango? - metáforas do masculino e do feminino
Até que eles não tirava um dia pra ensinar. Às vezes dava um momentozinho, mas
era difícil, a gente aprendia assim só no olhar. Então tinha nosso pai, que a viola
dele era difícil os filhos pegarem ele, mas quando ele saía de casa a gente pegava.
(Anísio Pereira depoimento registrado em 2005 pela equipe de pesquisa do Museu
Vivo do Fandango)
Não se trata de uma regra geral, mas muitos homens que tocam fandango contam que
desde meninos já demonstravam curiosidade em aprender, porém o pai, ao sair para a lida,
guardava o instrumento em algum local alto da casa para dificultar o acesso. Em situações
como essa, normalmente era mãe que, na ausência do pai, pegava a viola, a rabeca ou o
machete para o filho e permitia seu treino de forma velada.
115
Com oito anos aprendi a tocar viola. Meu pai ia trabalhar e a viola dele ficava lá em
cima, não queria que ninguém pegasse nela. Eu falava para minha mãe pegar a viola
do meu pai para eu aprender, porque senão não tem como aprender. Aí ela descia de
lá, eu me sentava assim e tocava. (Vicente Galdino França, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
O aprendizado se dava, portanto, por observação dos pais, avôs e tios49, associada à
prática, autorizada ou não pelo pai, do instrumento.
O fandango, esse que eu já falei, de mutirão, escutava meus tio que tocavam bem,
que era Francisco Bento, Eugênio Camilo, que era meu sogro. Eu não tocava muito,
mas encasquetava aquela música, depois eu ia pra casa - que tinha rabeca em casa,
do meu irmão - eu ia tocar aquela música. Tocar não, quer dizer, lidar pra aprender.
Teimar, teimosia mesmo. Eu era teimoso, e fui indo até aprender aquelas música que
meu tio tocava. E várias vezes ele vinha no nosso lugar. Não morava lá, mas várias
vezes ele vinha daqui, e eu escutava aquele toque, era muito bonito. Tocava bem
melhor que eu. Aí eu aprendi aquelas música. (José Pereira, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Quando cantava na graciosa era assim: a mulher com o namorado, que a gente fosse
naquele fandango, e chegasse lá, outra moça fosse e pegasse o namorado da gente, aí
já cantava o verso pra aquela que tava dando em cima do namorado. Quando era
rapaz, que se eu tava dançando com ele, com meu namorado, ai cantava um verso
pra mim e eu cantava outro pra ele. (Narcinda Amorim Lopes, depoimento
registrado em 2005 pela equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango)
49 Gramani (2009), ressalta, por meio das falas de muitos fandangueiros, a importância dos tios maternos e
paternos no processo de aprendizagem, com quem muitas vezes se tinha uma relação menos formal do que com
o próprio pai.
116
Eu me lembro de um verso que tinha uma moça que namorava um rapaz, e depois
ela casou. Então ele cantou, tava tocando viola e cantou assim... Como é? Cantou
um verso pra ela, não sei como foi. Aí ela veio e cantou pra ele: “Vós me chamasse
de rosa, rosa do jardim florido, Sou rosa mas não sou vossa, sou rosa do meu
marido”. Aí ele disse: “eu não chamo tu de rosa, porque tu não mereceis, porque se
tu fosse rosa, estava no meu poder” (Dorçulina Eiglmeier, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Figura 38: Instrumentos de Arnaldo Pereira. Ariri, Cananeia, 2012. Foto: Leco de Souza.
117
Raramente os tocadores têm apego aos seus instrumentos, especialmente quando são
também sabem fazê-los. Os Pereira mesmo quando confeccionam algum instrumento especial
para si próprios instrumentos, podem facilmente vendê-lo por uma boa oferta. Mesmo aqueles
que não sabem fazer, se desfazem com facilidade diante dos estragos do tempo ou de uma
proposta vantajosa. Não é difícil comprar um novo instrumento, pois sempre houve muitos
construtores na região. Somente quando o instrumento perde sua função musical, com o
envelhecimento ou a morte do tocador, ele pode passar a ocupar um lugar de memória no seio
da família, sendo guardado com objeto de recordação. Placidina guarda a rabeca de seu
falecido marido, Eugênio Camilo. Quando visitei Julino Pereira pela primeira vez, em 2002,
Alzira também nos mostrou uma rabeca, já velha e sem cordas, que seu marido costumava
utilizar antes de parar de tocar.
Há, contudo, uma associação do instrumento com amor e intimidade. Muitas modas
citam os instrumentos e o próprio tocador de fandango parece dialogar com seu ao cantar.
50
Abordarei mais detalhadamente os aspectos expressivos do fandango no capítulo 4.
119
Não há, entretanto repulsa ou evitação das mulheres em relação a esses objetos, pelo
contrário, muitas vezes, elas auxiliam no processo de fabricação ou têm papel mediador no
aprendizado dos jovens tocadores. Creio que se trata mais de um alheamento de interesse que
nos aproxima do caminho de construção metafórica da distinção de gêneros proposta por
Strathern (2008). As mulheres exercem papeis protagonistas e com relativo trânsito, contudo,
como esteios da estrutura doméstica, assumem condições diferentes de circulação e
estabelecimento de vínculos de afeto.
Não é minha intenção sugerir uma construção harmoniosa e estável. Não será
surpreendente em pouco tempo encontrar mulheres tocando esses instrumentos. José Pereira
recentemente disse a uma de suas filhas que se ela aprendesse a tocar rabeca faria um enorme
sucesso e muitas pessoas viram procurá-la, podendo inclusive obter uma fonte de renda a
partir da prática instrumental. Em Cananeia, há hoje um grupo de fandango – Fandangueiros
do Acaraú – liderado por uma mulher que toca cavaquinho. Essas metáforas estão em
constante renovação a partir do contato com outros diversificados processos culturais. As
mudanças não se fazem, entretanto, de forma tão veloz como por vezes imaginamos. Basta
constatar que ainda hoje num cenário de intensas mediações e permutas com outros modos de
vida, seja pelos meios de comunicação ou pelo intenso fluxo de migrantes e visitantes dos
lugares mais diversificados, ainda é excepcional encontrar entre as mulheres da região
interesse pela prática instrumental relacionada ao fandango.
120
Uma matéria feita pela sucursal da Rede Globo do Paraná, em fins da década de 1980,
é a lembrança mais remota de contato em Rio dos Patos com um foco de interesse pelo
fandango diferente daquele que se estabelecia na relação entre os moradores dos sítios. Trata-
se, contudo, de uma referência já obscurecida pela memória, que os Pereira não registraram
com precisão. Esse acontecimento lembrado durante o processo de gravação das entrevistas
do Museu Vivo do Fandango pelo músico Rogério Gulin, que integrava a equipe.
Rogério Gulin, violeiro do grupo curitibano Viola Quebrada, convive e participa da
trajetória dos Pereira desde a década de 1990. Seu primeiro contato com o fandango foi em
1984, quando o diretor teatral e bonequeiro Renato Perré, carioca que há alguns anos havia se
mudado para Curitiba, convidou-o para integrar uma peça de sua companhia Filhos da Lua,
tendo como enfoque o folclore paranaense.
Na realidade eu era um roqueiro que fazia trabalho pra teatro e tal. E o Renato Perré
sempre foi um ator e diretor voltado à cultura popular. Ele veio do Rio, estava há
uns quatro, cinco anos em Curitiba. “Vamos montar alguma coisa com cultura
popular do Paraná, e o quê que tem no Paraná?" É congada e fandango do litoral,
que é mais forte do que a congada, pois pega toda a região do litoral. Então foi feito
um projeto com o Teatro Guaíra, que patrocinou a montagem do espetáculo
chamado “Fandango”. (Rogério Gulin, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)
Conhecemos o Inami. Ele era diretor de Fandango do Museu Paranaense. Foi quem
nos auxiliou em Paranaguá, na Ilha dos Valadares: Mestre Eugênio, Brasílio,
Romão. Em Morretes, D. Helmosa. Fomos em Guaraqueçaba, conhecemos Seu
Janguinho e algumas pessoas. Daí ouvimos falar de Rio dos Patos, um lugar meio
longe. Falavam do fandango autêntico que ainda faziam, como era antigamente,
espontâneo, era no Rio dos Patos. Mas a nossa pesquisa se focou em Valadares,
principalmente em cima do Brasílio, que foi a pessoa com quem eu aprendi a tocar
as marcas de fandango. O jeito que eu toco é o do Brasílio. (Rogério Gulin, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
121
É interessante notar que, em sua fala, Gulin indica que as noções de autenticidade e
espontaneidade aplicadas ao fandango expressam uma expectativa de isolamento em relação
aos circuitos da cultura. Quanto mais resguardada a comunidade, mais perto o fandango
estaria de certo ideal de pureza. Essa perspectiva nos aponta para algumas heranças vivas dos
estudos de folclore.
Por outro lado, Gulin reconhece que a pesquisa realizada pelos músicos e atores da
peça serviu de estímulo ao interesse de novas gerações pelo fandango nos lugares por onde
passaram.
Quando a gente teve lá, em 1984, não tinha Grupo do Mestre Romão. A gente ia na
casa do Brasílio ver tocar viola, não exista grupo nenhum. Era legal, a gente ia todo
dia. Ficávamos dez dias viajando. Então chegava lá e “quem são os fandangueiros?”
e “vamos agitar um fandango e tal”. Comprava cinco litros de vinho, combinava na
casa de um, na casa do outro. E aquelas casas velhas! Teve um dia que caiu a janela
da casa, a porta despregou, rapaz pregando a parede, assoalho afundou... E era uma
coisa legal. E o clube do Romão tava efervescendo na época, o Sete. Ele tinha um
baile da rapaziada. Aquela coisa, os jovens não gostam de fandango... Então o baile
acabava e os fandangos que a gente fazia amanheciam. E quando era cinco, seis da
manhã ainda tava aquela piazada toda no fandango. Então o que faltava pra os
jovens realmente era uma coisa de ver gente de fora interessada naquilo que eles
achavam como cafona. (Rogério Gulin, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)
Pedro Pereira, primo de José e Leonildo, que há muitos anos mora em Paranaguá e
toca com o grupo de Mestre Romão, também tem uma percepção semelhante sobre o interesse
de pessoas “de fora” sobre o fandango.
Pra mim é um grande orgulho. Até na minha casa, os meus colegas das nossas
capitais que vem procurar nós para resgatar o fandango, essa dança folclórica que
estava esquecida. Que o pessoal de fora parece que está se interessando mais que o
pessoal do próprio lugar. A gente fica admirado, que admiram a gente. Eu me
orgulho que eu tenho ajudado esse fandango. (Pedro Pereira, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
51
Em 1990, Gulin também participou, a convite de Inami Custódio Pinto, da organização de um grupo de música
e dança no recém inaugurado Conservatório de Música Popular Brasileira de Curitiba. O projeto, segundo ele,
teve curta duração, não mais que um ou dois anos.
52
Sandra convidou três membros para compor sua equipe de pesquisa em Rio dos Patos: além de Rogério Gulin,
responsável pela transcrição de partituras, o fotógrafo Carlos Zanello de Aguiar, conhecido pelo apelido de
Macaxeira, e a historiadora Joceli Tomio Arantes.
123
indicando que, mesmo antes do esvaziamento de Rio dos Patos, os fandangos já não vinham
sendo praticados com regularidade.
Lá no Rio dos Patos, que eu nem tava lá, apareceram me convidando. Daí eles já
formaram também tipo um conjunto assim. Depois já bem depois. Primeiro vieram,
faziam umas filmagens assim pra vê se recordavam o fandango. Mas não tinha
grupo, não tinha nada ainda. (José Pereira, em depoimento concedido à Daniella
Gramani, 2008)
De fato, muitos Pereira dizem que não chegaram a dançar muitos batidos em Rio dos
Patos. José Pereira se lembra de mais das modas com coreografias e tamanqueados em seu
tempo de criança até a juventude. Em função da entrada de outras religiões e das restrições
ambientais, os mutirões e os fandangos batidos se tornaram esporádicos.
Era o seguinte, o mutirão havia num bairro assim como o Varadouro, vamos dizer,
que tudo o povo era católico. Aí a gente fazia o mutirão e iam todos, com família e
tudo, só pra trabalhar e dançar. Mas depois já chegou tipo essa lei, então já
diferenciou a metade do povo, já da Assembléia, dessas outras lei que tem. Aí esse
pessoal, que iam ajudar a gente com toda a família, iam só de dia, mas de noite não
iam. Aí já fracassou a metade do fandango. Dizendo assim, a lei é uma coisa que
existe, mas a gente não pode fala dele. Mas foi também um pouco que tirou também
o fandango, porque foi proibido de fazer roçado, de fazer essas coisa. Então, foi
dois assuntos que acabou mais com o fandango, foi esse dois tipos de coisa. Tirou o
meio ambiente, o IBAMA. Já precisava de fazer não sei o que pra não multar a
gente; era preciso pagar não sei quanto pra fazer uma roçada. E a gente foi
desanimando de cortar, de cortar madeira, de cortar mato. E a lei por causa que não
podia dançar. Eles não podem dançar, né? Fracasso, que eles iam até ajudar a gente
de dia, mas de noite já não ia. (José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani,
2008)
Tem moda que nunca dancemos. No meu tempo não. Eu aprendi só o anu, a tonta, a
querumana. Só esses que eu danço, mas esses outros que era as danças mesmo, mais
bonitas, eu não aprendi a dançar. Quando eu tava aprendendo a dançar essas marcas
de dança aí já parou tudo. E aí não quiseram mais. (Bernardina Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Em 2002, quando estive na Ilha do Cardoso para as festas de fim de ano, muitos
fandangueiros e grupos comentavam sobre o CD Viola Fandangueira. Presenciei um animado
e festivo baile de fandango conduzido unicamente pelo disco, rodado em aparelho de som, em
um bar na vila de Barra do Ararapira. Alguns anos mais tarde, já durante a realização do
projeto Museu Vivo do Fandango, em uma reunião na sede do IBAMA de Iguape com Eliel
Pereira, então diretor da APA Cananeia-Iguape-Peruíbe, ao falarmos sobre fandango, fomos
surpreendidos por seu imediato interesse. Eliel tirou da gaveta de sua mesa de trabalho um
exemplar do Viola Fandangueira, relatando-nos que, desde que o comprara, vinha tentando
descobrir se haveria conexão entre seu sobrenome Pereira de herança materna e o daqueles
Pereira, pois sua mãe lembrava-se de um tio Franklin que residira nos arredores do Ariri. Ao
obter a confirmação de que eram filhos e netos de Franklin, Eliel decidiu viajar conosco para
Cananeia e Guaraqueçaba para conhecer seus primos distantes, emocionando-se no encontro
com Arnaldo, José e Leonildo Pereira.
O CD Viola Fandangueira, de fato, ganhou uma projeção inesperada na região. Como
cada um dos Pereira havia recebido uma farta cota para distribuição e venda, o CD circulou
intensamente sendo vendido inclusive em pequenas pontos de comércio das vilas que
pontuam a travessia fluvial entre Paraná e São Paulo, por preços entre R$ 5,00 e R$ 15,00.
tocando são meus tios, meu pai, sobrinho, tão tudo aí tocando”. Aí ele falava assim:
“pô, não acredito!”, “É verdade, esse CD é nosso”. (Agnardo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Pessoas que há muito não ouviam aquelas modas, e especialmente o batido, pareciam
ter suas memórias reavivadas, acionando seus sentidos de pertencimento ao mundo do
fandango. O repertório dos Pereira se tornou conhecido por outros grupos e começou a
circular intensamente na região. Gramani (2009), em sua dissertação sobre processos de
transmissão e aprendizado da rabeca, relata que durante a época em que José Pereira manteve
o grupo familiar no Ariri, ele incentiva os jovens a ouvirem o disco para aprenderem a tocar.
Às vezes o pessoal fala que o fandango é fácil, mas não é tão fácil assim. Sempre
tem alguma coisa que fica mais difícil. (...) Tem que cantar. Se você pegar na viola e
não cantar, fica muito feio, fica esquisito, né? Não tem assunto você pegar numa
viola e tocar, tocar e não cantar. Então, tem que pegar na viola e cantar (...) Bom, eu
acho que na verdade, o CD [Viola Fandangueira] ajudou bastante, porque às vezes
eu não sabia, né? O verso da música de fandango, eu não sabia, e eu procurava mais
pelo CD. Aqueles versos que eles cantam no CD eu também canto, então eu me
baseava mais naquilo. (Laerte Pereira, 2008. Apud: Gramani, 2009, p.103).
54
A apresentação do disco foi escrita pelo folclorista Inami Custódio Pinto, ressaltando que “um trabalho como
o destes discos deixa documentado um pouco da riqueza e diversidade do fandango paranaense, da alma e da
inteligência de nosso povo”. Sandra Mara Leite de Andrade e Joceli Tomio Arantes assinam o texto final que
trata da memória do fandango em Rio dos Patos.
126
Figura 39: Capa do CD Viola Figura 40: Integrantes da Família Pereira que participaram da
Fandangueira, gravado pelos grupos Viola gravação do CD Viola Fandangueira. Da esquerda para a direita,
Quebrada e Família Pereira, 2002. de pé, Anísio, Heraldo, Jersi, Agnardo, Arnaldo e Vicente França,
abaixados, José, Leonildo e Nilo. 2001. Foto: Bela Pagliosa
O CD2, da Família Pereira, foi inteiramente gravado ao vivo em estúdio sem que
tenha sido utilizado qualquer processo de compressão ou reverberação digital. A
ambiência é natural e o sapateado foi executado junto com os músicos e os cantores.
(texto do encarte do CD Viola Fandangueira, 2002)
Na capa do disco, o nome Família Pereira foi grafado com “F” maiúsculo, como
ficaram conhecidos como grupo musical. Leonildo Pereira, contudo, não destaca a
constituição do grupo como marco divisório do tempo. Para ele, há certo sentimento de
continuidade quando perguntamos sobre o que haveria de novo nesse processo. Segundo
Leonildo, “Nós já tinha grupo, tinha, pois nós era uma família que andava tudo unido, andava
junto. É o mesmo tipo de hoje”. Nesse sentido, parece que a ideia de formar um grupo para
Leonildo se aproxima de andar agrupado, relembrando o movimento de famílias e camaradas
no deslocamento para um mutirão ou um fandango. Já José Pereira parece compreender o
disco como um acordo entre os familiares a partir do qual o grupo se constitui.
Depois de uns anos, aí uns dois anos acho, aí foi que Nilo encontrou-se com
Leonildo lá e começaram a cantar. Nunca tinham cantado junto. Daí foram
cantando porque eu morava pra lá e era muito longe. Mas só que, mesmo assim, eu
morando longe, vieram me buscar porque sozinho não davam conta de fazer essas
coisas. Aí vieram me avisaram e eu fechei com eles. Fechemos com eles pra nós
fazer essa família Pereira, que nascemos com mesmo sobrenome. Aí fiquemos já
meio gostoso, meio famoso. Daí que gravemos o primeiro CD, deu certo. (José
Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, 2008)
Pereira, passou a ser necessário definir participações e distinguir funções. Ao relatarem seus
papéis no grupo, embora protagonizem atividades distintas, Nilo e Leonildo revelam haver
entre eles disputas quanto à liderança, Nilo se coloca como “timoneiro”, responsável por
contatar os parentes, buscá-los nos sítios e vilas mais distantes e abrigá-los em sua casa no dia
anterior à viagem programada. Já Leonildo, por seu carisma e habilidade performática, além
de maior arcabouço sobre o fandango, assumiu um papel equivalente ao de um diretor
artístico do grupo. Segundo Leonildo, ele próprio é o “organizador” e Nilo seria o
“procurador”.
Aquela foi uma viagem muito cansativa, rapaz, aquela me exigiu bastante! A gente
saiu oito horas de Guaraqueçaba, chegamos em Curitiba, só tomamos um lanche.
Fomos em uma van, saímos de Curitiba. Na divisa do Paraná, meu caro, eu estava
cansado sentado. O cara ainda disse que a gente só chegava à noite. Eu: “ah, meu
caro mais a gente ainda está no estado de São Paulo?” Quando chegamos no Rio de
Janeiro, era quatro e meia da manhã. Eu disse: “meu caro, mas o que é isso?”. Tava
entrosado, de tanto estar sentado. A gente descansou um dia e mais três dias no Rio
de Janeiro, se entrevistando com todo mundo e ensinando. O meu trabalho era muito
grande! (Leonildo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, 2005)
foram convidadas para a viagem. O foco maior de atrito foi na definição dos tocadores.
Viajaram para o Rio de Janeiro, além das duas mulheres, Leonildo, Nilo, Anísio, Pedro,
Urbano e Agnardo. Para a nossa surpresa, José Pereira, que já era apontado como um dos
melhores rabequeiros da família e estava previsto na composição do grupo, não chegou ao
Rio de Janeiro. Recordo-me que, na época, foi mencionada como motivo da ausência de José
a dificuldade de oferecer seu deslocamento até Guaraqueçaba. Contudo, algum tempo mais
tarde, soubemos que José havia deixado o grupo junto com seu irmão Arnaldo, que também
participara das gravações do CD Viola Fandangueira.
Somente dez anos depois voltei a conversar sobre o assunto com José Pereira, já
durante o período de trabalho de campo. Segundo ele, a questão central que motivou seu
afastamento do grupo Família Pereira foi o fato de Nilo ter insistido em preterir, na
apresentação do Rio de Janeiro, a participação de Arnaldo em favor do primo Pedro Pereira,
músico integrante do grupo de Mestre Romão, em Paranaguá. Não pude ouvir a versão de
Nilo sobre o fato, mas acredito que estava relacionada à intenção de economizar recursos, já
que buscá-los de barco em São Paulo – José, no Varadouro, e Arnaldo, no Ariri – envolveria o
dispêndio de mais combustível. José alega ter também achado injusto Nilo querer dar
preferência a Pedro, que sequer havia participado do CD Viola Fandangueira. De certa forma,
na visão de José, os participantes do CD seriam os formadores do grupo Família Pereira. Em
virtude de seu compromisso com o irmão Arnaldo, inclusive em questões que perpassam seu
sustento, José alega então ter preferido abrir mão de seu lugar no grupo.
A participação dos Pereira no projeto Rabequeiros pode ser pensada como
desencadeadora de um drama social (Turner, 1996), gerando um momento de crise. Questões
latentes, que perpassavam definições sobre a constituição do grupo e os papéis de liderança,
se tornaram evidentes. Assim, em decorrência do afloramento de certas tensões, novos
arranjos foram formados.
Um grupo não é tão extenso quanto um nome de família. Assim como núcleos
familiares se fecham entre seus parentes mais próximos – pais, irmãos, filhos – quando
dificuldades de subsistência se colocam na ordem da economia doméstica, também no grupo
familiar dos Pereira, diante de meios e recursos limitados, as afinidades e os compromissos
das relações parentais se mostraram operantes. Ao sair do grupo, José Pereira estremece sua
relação com Nilo, seu primo, mas não com seu irmão Leonildo, que também exercia um papel
determinante. Pelo contrário, ele se aproxima de seu irmão, propondo novas formações. Como
José e seu irmão Arnaldo moram em Cananeia e Leonildo em localidade paranaense muito
próxima à divisa com São Paulo, os três formaram um núcleo musical dos Pereira em
130
território paulista, que em princípio foi batizado como Irmãos Pereira. Leonildo, contudo,
não abandonou a outra formação, passando a funcionar como elo entre os dois núcleos. Ou
seja, Leonildo acabou se colocando em uma condição divisória, separando e conectando os
Pereira paranaenses e os paulistas, que, inclusive, pode ser associada à própria situação
territorial da família.
No Brasil, a categoria mestre também começa a circular entre aqueles que participam
dos circuitos da cultura e, mais especificamente, dos circuitos relacionados à cultura popular.
A partir do final da década de 1990 se intensificam dos debates sobre patrimônio imaterial, no
Brasil e, na década seguinte, surgem as primeiras legislações estatuais, muitas delas com
enfoque voltado à transmissão de saberes por mestres reconhecidos em suas comunidades
culturais.
Ainda hoje se encontra gente que gosta, até lá de Curitiba vem gente aqui, vai lá. A
gente tem se encontrado por aí. “Vamos dançar?”, “Vamos”, coisas que o povo não
conhece. “Vamos dançar, me ensine!”. Quando eu fui daqui pra Curitiba, quando
58
Mais uma vez, destaco que retomo o assunto no apêndice sobre o processo de patrimonialização do fandango.
132
fui fazer uma apresentação lá, o povo queria que só eu ensinasse. Na noite, quase me
mataram de tanto ensinar. Eu saí cansado, começou as nove pra terminar as três da
madrugada, ou quatro horas que terminamos, quatro e meia da manhã. Eu estava
mortinho de cansado, mas tinha que ensinar, que é um amor que a gente tem. (...) Eu
tenho que ensinar, isso que é o perigo pra mim. Se eu só cantasse ou tocasse a
rabeca, pra mim seria bom, mas é que eu vou ensinar. Se for bater fandango, eu
tenho que ensinar; se for pra cantar, eu tenho que ensinar; pra tocar rabeca, tem que
por para eu ensinar. É um trabalho muito grande! (Leonildo Pereira, em depoimento
à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Tem muito professor que vai ensinar rabeca, começa a música e toca a música
inteira. Aí você não aprende nada. Então tem que ensinar os pontos, que tipo é,
como é pra fazer, senão você nunca aprende. Se for tocar junto com outro aí, ele foi
embora, você ficou sem nada. Tocou junto com ele, mas ele saiu dali. Eu acho. E
assim não, você aprende os pontos. (...) Laurinei, Felício (que é de outra lei) e esse
boliviano de São Paulo lá, Ramiro. Foi meus alunos. Eles gravam hoje lá e me
fazem quase chorando de alegre de ensinar eles dois. Aprenderam mesmo comigo,
assim igual eu estou ensinando pra senhora. Ramiro vinha de São Paulo, vinha
pousar aqui pra aprender, lá na Varadouro. Ia pousar lá comigo pra mim ensinar ele.
Aí ele chegava lá, cumprimentava, passava e cantava um assim, sem falar muito
com ninguém, nós dois. (José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, 2008)
Hoje em dia, falam é professor mesmo de rabeca, mesmo assim tocando de cabeça
pra cima [se refere à posição de tocar a rabeca], mas me tratam de professor, né? E
aqueles que escutam ficam com muita atenção porque é coisa bonita (risos) É...Vou
contar a verdade, né? (José Pereira, 2008 a. Apud: Gramani, 2009, p.121).
privada – precisa eleger um representante para acessar os programas estatais, o que pode, em
alguns casos, ser extremamente arbitrário.
Por outro lado, a constituição de associações é custosa e complexa frente ao
distanciamento que tais grupos têm com relação aos processos burocráticos envolvidos. A
formalização jurídica e a manutenção da entidade frente às demandas de declarações
periódicas junto às esferas governamentais exigem certo grau de conhecimento específico que
passa ao largo de seus contextos sociais. Quando, por meio da Associação Cultural Caburé,
colaborei com a elaboração de projetos para editais do Ministério da Cultura e gestão de
pontos de cultura em Iguape e Guaraqueçaba, deparamo-nos com o endividamento das
entidades que foram contempladas em virtude da não declaração de suas inatividades desde os
períodos em que foram criadas. Nas duas situações, os processos de contração ficaram
inabilitados até que toda a documentação demandada fosse reunida, o que no caso da
Associação dos Jovens da Jureia demorou cerca de dois anos.
Mesmo quando núcleos comunitários ou grupos conseguem enfrentar as barreiras da
formalização jurídica, esbarram na inadequação do modelo de gestão de recursos estatais aos
seus modos internos de organização. As relações de parentesco, por exemplo, são
condenáveis no que diz respeito ao estabelecimento de vínculos profissionais remunerados
com recursos públicos. É juridicamente imoral contratar parentes até terceiro grau por via do
setor público ou em projetos do Terceiro Setor financiados por programas governamentais.
Em certa medida, sou favorável a essa restrição, mas como evitar que essas relações se
recoloquem no plano de trabalho em ambientes onde quase todos mantêm vínculos
familiares?
Assim, compreendo que, em muitas situações, tornou-se mais fácil e mais vantajoso
acessar programas de incentivo e recursos por meio da categoria mestre do que por pelo viés
da representação coletiva.
O diálogo estatal com o campo das culturas populares e tradicionais opera, por meio
de conexões ambíguas. Em um viés amplificado de atuação, determina procedimentos
administrativos e moralidades universais, que não se distinguem pela compreensão de
contextos específicos. Contudo, nas pontas de contato mais direto, desenha mecanismos de
apoio por meio de critérios de valoração e direitos distintivos, enaltecendo a perspectiva
particularista da diversidade cultural.
Caberia então questionar o porquê da necessidade de diálogo com o Estado e com
outras instâncias de apoio? Porque não deixar que o fandango e as culturas populares se
mantenham e aflorem nas esferas de trânsito doméstico, familiar e comunitário? Entendo que,
134
pelo menos até onde alcançamos, o mundo do fandango é profundamente perpassado, com
diferentes nuances, pelos circuitos da cultura. Ademais, as mudanças que se colocam na
passagem do tempo, tanto por conjunturas sociais mais amplas quanto por mediações internas
que alargam o mundo do fandango, carregam aspectos irreversíveis que alteram perspectivas
individuais e projetos de vida. Em grande parte, são também os próprios fandangueiros que
buscam prestígios e novos posicionamentos sociais, ansiando ingressarem por meio do
fandango em uma carreira artística que lhes proporcione reconhecimento e alternativas de
sustento. Contudo, tais anseios não necessariamente se contrapõem aos valores familiares e
tradicionais cultivados por meio do fandango.
Hoje é melhor, antes a gente se matava e não tinha valor de nada. O fandango pra
nós, hoje em dia, tem valor. Tem o pessoal que vieram e estão dando essa força pra
gente, não só pra mim, como pra todos nós. Então está melhor. Tanto jovem que está
aí se perdendo, se estragando... O fandango é uma dança que trás muito respeito pra
gente. Eu tenho doze anos de grupo. Quando casaram aquela moça de dezoito, vinte
anos, por causa do quê? Por causa do grupo. O Seu Romão junta esse pessoal da
escola e hoje nós estamos com tantas escolas. Temos um grupo de trinta sete
pessoas, que tem moça com dez, vinte anos... Acho muito bom de mais, porque no
fandango a gente tem muito respeito, muitas coisas antigas, muito conselho bom.
Então pra mim hoje está melhor o fandango, eu queria que nunca acabasse. Da
minha parte eu considero meus colegas e é isso aí. (Pedro Pereira, em depoimento à
equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Essas viagens, sair por ai tudo, parecia um sonho. Já teve gente aqui querendo me
levar pro estrangeiro. Eu disse: “eu, não vou não!”. Só se eu tivesse mais saúde, ai
era melhor. A coisa que mais gosto é ser um artista. É uma vida muito boa, muito
essencial. Deus deu isso pra muita gente, pra correr esse mundo cantando, porque
quem canta seus males espanta. Eu acho muito bom isso. (Leonildo Pereira, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Quando eu gravei o CD que faz uns oito anos acho, eu resolvi deixar quase tudo
devagar e continuar só com a rabeca. Às vezes que eu falo pra senhora que eu
inventei muita coisa. (...) Desde 12, que eu aprendi a tocar um pouquinho com os
outro, mas que eu formei essas coisa, tá pra fazer 10 anos. De 12 anos pra 60 dá
quarenta e poucos anos que eu aprendi, mas que eu formei essas coisa faz de 10 anos
pra cá. Eu me dediquei mais na rabeca, eu avancei mais na rabeca. Quer dizer, eu
gostei mais de tocar e comecei a fazer coisa de aprender muito. Deixei de quase
todos os instrumentos pra mim ficar só mais na rabeca. Porque é assim, se a senhora
quiser aprender tudo, não aprende nenhum bem de uma vez. Tem que largar de tudo
136
Na época da gravação do CD Viola Fandangueira, José ainda não sabia tocar rabeca e
cantar ao mesmo tempo e, portanto, gravou voz e toque separadamente no estúdio.
Daí eu que sofria mais, porque eu com o Anísio, nós cantemos e o resto batia. Nilo,
Leonildo, Vicente, esses três. E eu cantava com o Anísio. E daí tinha que colocar a
rabeca dentro da música, mas não tinha jeito porque não tinha quem tocasse. Eu
naquele tempo não sabia toca cantando. Aí fizeram assim pra mim, de por aquele
fone no ouvido, e eu entra lá e escutar a música. E eles tocando aqui também,
soltando a gravação. Quando eles soltavam a gravação pra mim, eu acompanhava
tocando rabeca. E deu certo. Aí eu fiquei ali de prontidão, bem afinado, rabeca boa.
Quando a música roncou no meu ouvido, eu peguei a foice aqui. Ô, deu certinho!
Toquei uma e outra e deu tudo direitinho, pra você ver. Até foi uma admiração, eu
gravar assim porque é difícil pegar certinho, não ter nem um erro ali. Não é
brincadeira! Foi onde eu sofri mais um pouquinho. (José Pereira, em depoimento
gravado por Daniella Gramani, 2008)
José é, portanto, minucioso em seus afazeres e bem menos festivo que Leonildo.
Comunica-se pouco com aqueles que o assistem em um fandango. Diferentemente do
entusiasmo contagiante de seu irmão, José está quase sempre voltado para sua própria atuação
e atento à qualidade da performance dos demais músicos com os quais se apresenta.
apresenta o artista como um personagem dotado de atributos liminares, um ente marginal, que
com seu potencial crítico e criativo ocupa um lugar questionamento da estrutura social. Em
sua obra, a condição liminar aparece também relacionada especificamente à performance
artística como lugar de criação, articulação de símbolos e transformação, guardando
similaridades com o ritual.
Treinamento61
Ainda no Ariri, José combinou de fazer um ensaio com seus irmãos e seu filho no
domingo que precedeu a viagem a São Paulo. Nesse dia, pela manhã, José pediu a um de seus
filhos que buscasse Leonildo no Abacateiro. Em virtude da distância, Leonildo se hospedou
na casa de José para que, na manhã seguinte, saíssem cedo rumo à Cananeia, onde o Viola
Quebrada os buscaria de van.
Oswaldo Rios, que além de músico é produtor do grupo Viola Quebrada, já havia
acordado previamente algumas músicas do repertório caipira que tocariam juntos. Contudo, a
seleção do repertório de fandango dos Pereira, foi definida pelos irmãos, com apenas algumas
sugestões de seus parceiros curitibanos. Uma peculiaridade é que os três irmãos tocam todos
os instrumentos característicos do fandango – viola, rabeca, machete e adufo.
Vale destacar que fazer ensaios é algo que se tornou mais comum a partir da formação
de grupos. Contudo, em muitas situações, os tocadores se encontram diretamente no fandango
60
Essa tentativa de uso das etapas de Schechner como ferramenta analítica tem, contudo, alguns limites na
medida em que a construção teórica desse autor é voltada essencialmente para a produção cênica teatral. No caso
estudado, não houve uma fase de realização de oficinas na preparação da performance.
61
Como recurso metodológico, considerei os ensaios realizados somente entre os Pereira como a fase
treinamento e os realizados em São Paulo, com o grupo Viola Quebrada, como a fase de ensaio sugerida por
Schechner.
138
e o repertório se define durante a execução musical. José não costuma, por exemplo, ensaiar
com o grupo Família Neves.
A passagem de repertório começou no meio da tarde, na casa de Arnaldo. Estavam
também presentes um sobrinho deles, Maurício Pereira, que tem se evidenciado no Ariri
como bom violeiro e cantador. José, apesar de tocar com Maurício em eventos de caráter
informal na região, não o convidou para integrar o grupo que viajaria para São Paulo, uma vez
que além de Leonildo (que já estava incluso no convite feito pelo grupo Viola Quebrada),
preferiu priorizar parentes mais diretos sobre os quais sente responsável. Conforme já
mencionamos, mais uma vez a escolha do grupo foi perpassada pela dinâmica de afinidade e
comprometimento familiar, para além do fator propriamente artístico. O critério de escolha,
contudo, não prejudicaria a apresentação, já que todos são bons músicos.
Ao longo do ensaio, Leonildo esqueceu por diversas vezes as letras das modas, o que
causou desconforto em José. Este, em dado momento, sugeriu que ele as anotasse para
“gravar na memória”. Num baile de fandango, a variação das modas, uma frase mal acabada
ou mesmo a substituição de um fim de frase por um “lairairai” são corriqueiras. Uma mesma
moda pode ser executada por mais de dez minutos, com repetições de estrofes e improvisos de
verso. Entretanto, José não queria manter esse formato descontraído na apresentação de palco.
Para ele, Leonildo tinha que “sustentar a letra”. Leonildo reconheceu, contudo, que sua
memória já não era mais a mesma e que vinha inclusive fazendo um caderno com anotações
das letras que conhecia. Contudo ele ressaltou que não achava necessário e nem gostava de ler
durante a execução, pois, quando começa a tocar viola e “sai cantando”, a memória aos
poucos vai retornando. Nesse sentido é interessante pensar que Turner (1982) ressalta a
performance como articuladora de memórias e símbolos. Para Leonildo, fazer fandango é
também algo que “ativa” seus conhecimentos.
O ensaio durou cerca de duas horas e o repertório foi quase todo ditado e definido por
José, mais uma vez, preocupado em selecionar modas que denominava como antigas. Essas,
segundo ele, foram aprendidas com seus familiares e, portanto, participam de um repertório
compartilhado, que ele denomina como “tradição dos Pereira”. Com a circulação de CDs de
fandango na região, tornou-se comum grupos de diferentes municípios aprenderem e tocarem
modas do repertório de outros grupos, antes de circulação mais restrita. José me disse algumas
vezes que não desaprova por completo grupos, como o Família Neves, que optam por esse
tipo de prática. Contudo, ele ressalva que prefere seguir apresentando as modas que ele
considera como da sua família.
139
Antes do ensaio, perguntei a José Pereira se poderia usar um gravador para captar
algumas músicas. José ficou um pouco tenso, pois tem receio de que gravações, em princípio
casuais, sejam usadas para fins comerciais sem o seu consentimento. Contudo, acabou
concordando em me deixar registrar o ensaio. O uso do gravador se mostrou interessante, pois
fizemos algumas audições imediatamente após cada moda ensaiada. Com esse recurso, eles
identificavam falhas e conversavam sobre aspectos que precisavam ser melhorados. José
gostou tanto da experiência que me pediu para ajudá-lo a comprar um aparelho similar para
gravar seus toques na rabeca e as modas que canta.
Ensaio
Na manhã de segunda-feira, encontramos com o grupo Viola Quebrada no centro de
Cananeia, de onde partimos rumo a São Paulo. Ao longo da viagem assuntos relacionados ao
fandango perpassaram as conversas. Os Pereira mostraram aos seus camaradas curitibanos
novos instrumentos que haviam confeccionado, executando algumas modas breves. Também
discutiram sobre formato de certos instrumentos, mostrando divergências quanto às diferenças
entre um machete e uma bandola.
Na chegada ao hotel, foi acordado um horário de descanso antes do primeiro ensaio
que aconteceria à noite no quarto de Arnaldo e Leonildo. Foram cerca de duas horas de
ensaio, capitaneado por Rogério Gulin e, em segundo plano, por José Pereira. Ensaiaram
especialmente as músicas do repertório caipira clássico que fariam juntos, como Menino na
porteira e A moreninha, entre outras modas. A escolha de repertório e as nuances da
performance musical foram debatidas coletivamente. José sugeriu um solo de bandolim em
uma das músicas, demonstrando suas habilidades e sendo aplaudido pelos demais. Embora em
determinados momentos um ou outro músico se destacasse em uma passagem do ensaio,
pouco a pouco, criou-se uma atmosfera de compartilhamento e de comunhão entre todos os
presentes.
Os músicos estavam dispostos em forma circular. Uns observavam os outros
procurando apreender maneiras de afinar os instrumentos ou determinadas passagens mais
complexas da execução musical. A interação, sem a presença marcante de audiência – à
exceção da minha própria presença e de duas ou três pessoas envolvidas na organização do
projeto – fazia-se dentro da própria roda, acentuando a música como linguagem de
compartilhamento simbólico principal.
140
Figura 41: Ensaio dos integrantes do Viola Quebrada com a Família Pereira em quarto de
hotel. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa.
Figura 43: Viola Quebrada e Família Pereira no Figura 44: Público do espetáculo no CCBB. São Paulo,
espetáculo “Caipiras e Caiçaras” no CCBB. São Paulo, 2012. Foto: Joana Corrêa.
2012. Foto: Joana Corrêa.
Figura 45: José Pereira no Figura 46: Arnaldo Figura 47: Laerte Pereira Figura 48: Leonildo
CCBB. São Paulo, 2012. Pereira no CCBB. São no CCBB. São Paulo, Pereira no CCBB. São
Foto: Joana Corrêa. Paulo, 2012. Foto: Joana 2012. Foto: Joana Corrêa. Paulo, 2012. Foto: Joana
Corrêa. Corrêa.
Figura 49: Leonildo e Laerte Pereira fazendo uma demonstração de batidos. São Paulo,
2012. Foto: Joana Corrêa.
145
Esfriamento
Não pude identificar um procedimento específico de esfriamento tal qual Schechner
observa na performance teatral. Contudo, na saída do palco, percebi uma preocupação dentre
os músicos com relação ao bom resultado e à avaliação do público. Entre um espetáculo e
outro, algumas questões foram revistas, os erros foram comentados e ajustes sugeridos. Por
ser em horário noturno, a segunda apresentação poderia ter uma duração maior e, com isso, no
intervalo da tarde foi acordada a ampliação de repertório.
Um dos músicos do Viola Quebrada sugeriu que na última música, as luzes da platéia
fossem acesas e Leonildo me tirasse para dançar, criando um clima de baile e que deixasse o
público à vontade para participar. O combinado foi feito com ares de improviso, mas não teve
os efeitos de mobilização esperados. Contudo, o segundo espetáculo foi encerrado de modo
mais descontraído, com as luzes da platéia acesas e maior intimidade entre público e músicos,
reforçando a proposta do projeto de oferecer uma experiência de deslocamento à sonoridade
que recria a ambiência de um “Brasil rural”.
Desdobramento
O desdobramento de uma performance, como Schechner ressalta, é a fase mais difícil
de ser analisada. No meu caso, tive oportunidade de estabelecer apenas breves diálogos com o
público presente, na banca de venda de CDs e artesanato em madeira montada ao final da
apresentação. Com relação aos Pereira, de um modo geral, os comentários enfatizavam sua
espontaneidade, característica distinta dos comentários sobre o Viola Quebrada, que recaíam
sobre as qualidades artísticas.
146
que ainda não são. No palco tornam-se ambíguos e anseiam pela aprovação da audiência que
opera como um mecanismo balizador da estrutura social. A performance é para eles trânsito e
modelagem em uma nova condição.
No contato com o grupo Viola Quebrada, os Pereira vão procurando apreender aquilo
que se espera de um artista profissional. Em contraposição, seus parceiros tentam recriar
simbolicamente uma ambiência que faça com que se sintam mais à vontade nessa nova
condição. Incentivam que eles reportem para a cena do palco algo do que vivem no ambiente
dos sítios, criando, no momento, da performance um “não lugar” e um “não não lugar”
(Schechner, 2011). Entendo que o que público assistiu no espetáculo no CCBB não viu nem
apenas um conjunto de oito músicos sobre um palco e nem mesmo um ambiente tradicional
de encontro entre “caipiras e caiçaras”. O encontro na performance parece acentuar um
deslocamento a uma nova realidade, liminar, em um intercâmbio entre o mundo do fandango
e os circuitos da cultura.
148
4.1. Tipos e linguagens
Até aqui me detive aos circuitos diferenciados do mundo social do fandango sem
me debruçar com mais detalhes no compartilhamento de ações e símbolos que definem
os atributos propriamente expressivos do fandango. A experiência etnográfica de
convívio com os fandangueiros aponta para a possibilidade de reconhecermos regras,
funções e simbologias que, ainda que informais e dinâmicas, organizam a dimensão
musical e coreográfica do fandango, bem como posições que podem ser ocupadas nesse
mundo.
Nas conversas com fandangueiros, raramente ouvi uma definição do fandango
que o acomodasse em uma classificação mais abrangente. Quase sempre o identificam
como algo particular que se explica pela ação. Trata-se, para eles, sempre de “fazer
fandango”. Em uma analogia à observação de Evans-Pritchard (2005) sobre a bruxaria
entre os Azande operar como um idioma explanatório, o fandango é em geral definido
em uma exegese do fazer, a partir de seus atributos específicos que se organizam no
fluxo da experiência vivida dos fandangueiros. Quando chamados a explicá-lo, lançam
mão de suas características, como a formação instrumental, as modas ou marcas que
compõem seu repertório, as formas de dançar, as regras de conduta que se deve seguir
em um baile, etc. Os Pereira em geral dizem “vamos fazer um fandango”, sintetizando e
reunindo nessa expressão uma multiplicidade de contextos e sentidos.
Influenciada pela noção de “baile festivo” recorrente entre os folcloristas, iniciei
a pesquisa acreditando que poderia pensar o fandango como uma festa popular. Com
efeito, a dimensão festiva perpassa alguns ambientes de circulação do fandango,
marcados por processos envolventes de preparação e mobilização e pela reverência a
datas e passagens do calendário católico, em especial o Carnaval, a Quaresma e alguns
dias santos a depender da localidade. Os fandangos realizados nos mutirões, em
celebrações religiosas e nos encontros entre grupos e fandangueiros são notadamente
aqueles que acionam uma maior adesão dos participantes. Contudo, diante da
maleabilidade de formatos e da irregularidade de ocorrência, logo percebi que não
poderia me limitar à noção de festa para pensar o mundo social do fandango.
149
Os Pereira não costumam usar a palavra “baile” para se referir ao fandango, pelo
contrário, demarcam uma distinção. Para eles, bailes são feitos com outros tipos de
música.
Então, dona, é que nem no forró. O forró não tem esses ritmos como xote,
xaxado, baião? Então, o fandango também tem as modas. A chamarrita, o
dandão, a tonta, o anu. Cada um é uma moda que tem um tipo de música, um
tipo de dança. Mas pode fazer várias chamarritas diferentes, vários dandãos,
entende? (José Pereira, anotações do caderno de campo, 2012)
150
O fandango antigamente era igual àqueles que eles tocaram ontem [referindo-
se a um fandango ocorrido na Ilha dos Valadares]. Mas aí tocavam mais
marca, mais moda. Mas a dança era o mesmo que em Guaraqueçaba. A dança
deles no Valadares é diferente da nossa. O nosso era do tipo de
Guaraqueçaba. (Urbano Pereira, em depoimento à equipe do Museu Vivo do
Fandango, 2005)
Eu acho que isso aí não é fandango. Porque no tempo que e tinha idade de
dançar fandango é muito diferente de agora. Agora tão dançando um
fandango mesma coisa que estão dançando no baile. O fandango é muito
diferente. Porque meu pai dançava fandango, eu via quando ele dançava, mas
é muito diferente desses fandangos que faz. Agora a turma do Nilo [Família
Pereira] dança fandango. Esses dançam fandango mesmo. Mas os de lá [de
Paranaguá] dançam muito cheios de coisarada, roupa muito... eu já vi eles
dançarem assim. (Jurema Cardoso Batista, integrante do grupo Família
Pereira, em depoimento à equipe do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Algumas vezes essa questão aparecia por acreditarem que estaríamos fazendo
um trabalho seletivo de grupos ou fandangueiros, mas se tornava menos relevante na
151
medida em que compreendiam que nosso real intuito era abarcar um conjunto sonoro
abrangente. Durante o trabalho de campo, não voltei a perceber esse tema da diferença
de tipos e sistemas ser recolocado sob a forma de disputa. Nas conversas que tive com
José, Leonildo, João Alves, Isidoro e Salvador Neves e também com Aorélio
Domingues, do grupo Mandicuéra, de Paranaguá, as variações e aproximações foram
tratadas com um sentido agregador de valor ao fandango. Ou seja, embora acentuem e
valorizem suas especificidades, os fandangueiros reconhecem padrões sonoros e
gestuais similares.
Blacking propõe a categoria “grupo sonoro” para reunir analiticamente “um
grupo de pessoas que compartilha uma linguagem musical comum, junto com idéias
comuns sobre a música e seus usos” (Blacking, 2007, p.208) e de “grupos de corpo”
para “pessoas que compartilham uma linguagem comum do corpo, com ideais em
comum, posturas, gestos e padrões de comunicação não verbal” (Blacking, 1984, p. 10).
Em ambos os casos, o autor sugere a formação de um mesmo “sistema modelar
primário”62. Assim, é possível pensar o fandango como algo que engloba um grupo
sonoro e de corpo expandido, onde som/música e movimento/dança devem ser
compreendidos como linguagens articuladas na forma de gestos, melodias e ritmos. No
fandango, na medida em que se amplia a convivência, tais linguagens tendem a se
aproximar e alargar o compartilhamento de padrões gestuais e sonoros. José Pereira,
assim como a maior parte fandangueiros, consegue transitar entre diferentes sistemas.
Sua capacidade de apreender tipos diversos daquele que conheceu com sua família o
permite, por exemplo, tocar com a Família Neves.
Embora dança e música tenham uma ligação profunda no fandango, esta guarda
certa autonomia em relação àquela. Identificamos algumas sociabilidades específicas
tecidas pelo viés musical, como o aprendizado familiar e o encontro entre camaradas. A
formação de grupos criou ainda novos ambientes de trânsito onde o aspecto musical do
fandango se destaca, como em algumas apresentações e na produção de registros
sonoros em CD. Diferentemente da perspectiva do folclorismo, que em geral enfatiza a
dança como viés de classificação do fandango no mapa cultural brasileiro, percebo que
o elemento musical ganhou autonomia, mais expressivamente no estado de São Paulo,
onde grupos fandangueiros são formados apenas por tocadores. Todavia, a dança
62
Travassos (2007) destaca que a definição de Blacking para Etnomusicologia propõe que música e dança
sejam pensadas de forma integrada.
152
continua sendo uma linguagem essencial que completa a força simbólica do fandango,
principalmente em contextos que acionam sua dimensão festiva e ritual.
A linguagem poética é um terceiro elemento presente nesse sistema, na medida
em que as músicas são cantadas. A maneira de compor a poesia e os temas que abordam
também sugerem compartilhamentos de padrões, memórias e visões de mundo. Para
uma reflexão sobre o fandango como um conjunto expressivo, portanto, é necessário
atentar para tríade “música–dança–poesia” ou “sonoridade-gestual-palavra” como
elementos cognitivos e sensoriais que agregam valores, conhecimentos e
posicionamentos nesse mundo social.
4.2. Moda
63
Em Paranaguá se usa a palavra “marca”para esse sentido.
153
As meninas só que não podiam dançar com os muito torrados, com gente
muito tonto. Mas também não podia fazer desfeita pra mais ninguém,
qualquer velhinho, qualquer feio, qualquer preto ou branco. Ia tirar, tinha que
vir dançar com o fulano, senão o pai vinha de lá e não dançava mais. Senão o
pai vinha de lá dizia pra ela não dançar mais a noite. O resto da noite inteira
ela não dançava mais. Era a lei. Meio perigoso (risos) Não dançava nenhuma
música. De manhã arrumava aí ia embora e não dançava mesmo nunca mais
naquele fandango, no baile. (José Pereira, em depoimento à Daniella
Gramani, 2008)
154
par deve se separar. Trata-se de uma regra que se manteve nos mais diferentes
fandangos dos quais já participei. Durante um fandango, a interação entre os
participantes é muito intensa. Os pares se agregam e se desfazem a cada nova moda,
sendo possível que todos os cavaleiros dancem com todas as damas. Assim, mais uma
vez, podemos pensar na despedida como algo que guarda também a possibilidade de
convivência ampla.
155
De acordo com eles, a moda seria a letra fixa e conhecida e o verso é colocado
na hora, de memória. Segundo Aorélio Domingues, “a toada já seria a melodia”. A
forma com que poesia e música estão imbricados faz com que muitas vezes essa
explicação se complique. José e Arnaldo Pereira me disseram que “toada é o verso que
se inventa”. Para Nemésio Costa, que compartilha esse mesmo sistema dos Pereira, a
“chamarrita não tem moda, você que inventa. Os versos que a gente canta são a toada.
Você tem só a música, mas a letra é a gente que tira da cabeça. O dandão não, o dandão
tem a música e a letra.” (Nemésio Costa, Paranaguá, PR).
No sistema dos Pereira, em uma chamarrita, é a toada que puxa os versos
entoados pelo violeiro, numa relação entre invenção – na medida em que se definem
durante a execução musical – e memória – já que associados a um repertório poético
amplamente compartilhado.
O verso não é que a gente faça, entende? O verso que eu canto, a gente
inventa, conforme a natureza que faz talvez aquilo. (...) Então é mesma coisa
de eu, qualquer outro de nós, ele pega na viola e vai tocar, conforme ele vai
cantando, aquele verso vem vindo na memória dele. Não é que a pessoa seja
poeta, aquilo a pessoa já tem de natureza. São coisas que a gente sabe, já tem
na cabeça, assim, por exemplo, quando a gente está com a viola tocando, o
verso vem. (Arnaldo Mandira, Cananeia, SP)
156
Dondom (pó-de-arroz)
Menina, te quero bem
Mas vou te deixar
O nosso amor não tem jeito
É melhor largar
Eu era para te falar
Mas não te falei
Era para dar pó de arroz
Mas não dei
Nunca vi quem tem amor
Que não tem saudade
Mas não chora
Por seu bem que vai embora
(Exemplos de modas de dandãos registrados pela Família Pereira, no CD
Viola Fandangueira, 2002)
Há também dandãos em que a repetição ocorre sempre nos últimos versos das
estrofes melódicas.
[versos]
Eu aqui c’o camarada, vem cá, vem cá
Nós juntos sempre cantamos, vem cá, vem cá
[moda]
Vem cá, morena
To te chamando
Se queres ser meu amor, vem cá, vem cá
[versos]
Viva o cravo e viva a rosa, vem cá, vem cá
Que nos hoje se ajuntamo, vem cá, vem cá
157
[moda]
Vem cá, morena
To te chamando
Se queres ser meu amor, vem cá, vem cá
[versos]
Abaixai-vos o limoeiro, vem cá, vem cá
Que eu quero quatro limão, vem cá, vem cá
[moda]
idem
[versos]
Eu quero de dar uma rosa, vem cá, vem cá
Que tenho no coração, vem cá, vem cá
[moda]
idem
[versos]
Vamos dar a despedida, vem cá, vem cá
Cuitelinho do jardim, vem cá, vem cá
[moda]
idem
[versos]
Foi ele que me ensinou, vem cá, vem cá
Eu me despedir assim, vem cá, vem cá
[moda]
idem
(Registrado por Anoldo Dias da Costa e Nemésio Costa no CD Museu Vivo
do Fandango, 2006)
158
159
diferenças de natureza entre estas categorias musicais.” (p.45). Em que pesem tais
limitações, ela procura perceber, com ferramentas diversas, diferenças entre chamarritas
e dandãos tocados pelos Pereira a partir de seis modas registradas no CD Viola
Fandangueira, chegando, sumariamente, às seguintes considerações:
Essas modas tudo eu sei. As modas valsadas que eles deixaram muito hoje,
agora moda batida não se esquece. Não esqueço, sempre fica na cabeça. O
camarada pede a gente já canta. (Leonildo Pereira, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Os de hoje não sabem nem das três partes do fandango. Eu me lembro que
tinha a tonta, queromana, sinsará, uma que chama… feliz, caloado,
andorinha, pega fogo, tiraninha, aquele outro... tinha estrala, anu, por tudo aí.
(Alzira Coelho, esposa de Julino Pereira, em depoimento à equipe de
pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
160
podia dançá, tinha que dançá, tinha que dançá com a veia primeiro, pra
depois dança co’as moça. (Julino Pereira, Apud: Marchi, Corrêa & Saenger,
2002, p. 296-297)
161
Porque as mulheres batendo tamanco e os homens também não fica ornado. Como
pode ficar dividido as mulher dos homem? Não tem como. Tem que ficar as mulher
parada e os homens batendo – antes falavam cavalheiro, os homens era cavalheiro e
as mulheres, dama. Então tinha que separar as damas dos cavaleiros, tinha que só a
mulher ficar parada e os homens batendo. Que nem pra arrodear... Pra arrodear a
mulher que se arrodeia, o homem só fica ali parado, porque se os homem sair
66
Simmel afirma que a relação entre dois elementos é a formação sociológica mais simples. Segundo o
autor “as relações a dois se caracterizam por não formar unidades superiores aos próprios indivíduos, ao
passo que quanto mais extensa uma comunidade mais facilmente se formará uma unidade objetiva acima
dos indivíduos.” (Simmel, 1950, p.127).
162
Tamanco tem que ser de laranjeira. Porque ele dá som. A madeira, por exemplo,
quando é assim fraca, como esse pinus, bateu, a gente fala choco, que dizem. Ele
não dá aquele som. E a laranjeira, ela é uma madeira muito forte. Bate, ela dá o som.
Eu fiz de laranjeira, mandei furar aqui do lado e pus chumbo! (Seme Balduíno, em
depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Os tamancos são feitos de madeira rígida para que possam ser impulsionados
com força contra o piso. Os Pereira usam uma tira de borracha para fixar a sola aos pés.
163
Tudo era mestre. Ali na roda pode tá cinco mestres, mas só um é mestre, só um que
começa. A hora de bater, só um mestre que começa, e os outros mestres vai atrás, e
quem não sabe também vai no mesmo caminho. Só um bate primeiro (Agostinho
Gomes, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
164
momentânea entre os participantes do fandango. Quem não entra na roda para dançar,
torna-se espectador, uma vez que esse fluxo tem grande apelo visual. Nos batidos,
portanto, o desafio pessoal da qualidade da performance se intensifica. Não podemos
perder de vista que dançar é uma técnica do corpo (MAUSS, 2003). A boa performance
é aquela em que a técnica já foi tão intensamente corporificada a ponto de simular uma
naturalidade aos olhos de quem assiste. O conhecimento técnico da dança precisa estar
acima de tudo no próprio corpo.
Muitos fandangueiros relatam que, nos fandangos de sítio, errar os passos da
dança era algo inaceitável. As crianças eram criadas entre fandangos para se arriscarem
nos batidos somente na juventude avançada e, portanto, o domínio técnico era sempre
esperado. O erro, contudo, só se mostra como um problema durante a execução dos
batidos. Em um valsado, o equívoco passa desapercebido, pois o fluxo da dança não
carece da precisão coletiva. Quem entra na roda do batido deve estar seguro para dançar
com fluidez, pois as falhas dos dançadores reduzem a força expressiva da performance,
impactando negativamente o sentido visual, e também o auditivo, quando o erro
também promove o descompasso do ritmo dos tamancos. No conjunto das danças, os
batidos emergem como o lugar de expressão por excelência de uma imagem de
coletividade moral e parecem ocupar lugar de proeminência simbólica na definição do
“ser fandangueiro”.
Com relação à poética, os batidos seguem o mesmo sistema de moda-verso-
toada: algumas apresentam moda e outras, apenas verso-toada. Na maior parte dos
casos, as modas batidas trazem em suas letras alguma referência ao tipo de moda.
[anu]
O anu é pássaro preto
Passarinho de verão, ai
[sinsará]
Encontrei com o sinsará
Na beira do mar chorando
Por causa de uma conchinha
Que a maré ia levando
Sinsará ficou chorando
Por causa de uma conchinha
Que a maré ia levando
Sinsará ficou chorando
[graciosa]
Se quiser estudar verso
Na fonte da graciosa
165
[tonta]
Menina passai a tonta
Com seu vestido de godê
Depois da tonta passada
Deixa o mundo correr.
(Cantado por Narcinda Amorim Lopes, em depoimento à equipe de pesquisa do
Museu Vivo do Fandango, 2005)
[queromana]
Queromana vou e volto
Quero saber de quem amo
Quero saber de quem amo
Que dos outros não me importo
[tonta]
Menina passai a tonta
Passai ligeiro que eu tenho pressa
Onde tem moça bonita
Moça feia não conversa
(Registrados pela Família Pereira no CD Viola Fandangueira, 2002)
4.3. Indumentária
No nosso tempo nós dançava assim fantasiado, como eles dançam, com aquelas
saias bem rodadas, blusa de uma cor, saia de outra cor e tudo assim uma parte
branca, outra parte azul, outra parte verde, mas saia só do carnaval. É que nós fazia
fantasia, mas tirando o carnaval nós dançava com roupa comum, saia de qualquer
jeito, blusa de qualquer jeito. Agora pintura não se usava. Toda vida não usei batom.
(Narcinda Amorim Lopes, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, 2005)
166
Foto 52: Tocadores da Família Pereira no Foto 53: Dançadores da Família Pereira no
I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara. I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara.
Guaraqueçaba, 2006. Foto: Leco de Souza. Guaraqueçaba, 2006. Foto: Leco de Souza.
167
4.4. Posições
Dançador / dançadora
Naquela época no mutirão que fazia o fandango, se você não batesse, você não
dançava, tinha que bater senão não dançava. (Anoldo Dias, em depoimento à equipe
de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Assim era o fandango também de dançar o batido. Quem não dançasse a rodada não
ia dançar mais nada, só se sobrasse dama lá. Em compensação aquele que saiu ali
aquele já tinha o par dele. (José Pereira, em depoimento à Daniella Gramani, 2008)
Ainda hoje, assim como nos fandangos de mutirão, percebo que saber dançar
envolve não apenas ser capaz de participar dos valsados ou bailados, já que esse
168
movimento pode ser rapidamente apreendido. Ouvi muitas vezes que nesse ou naquele
lugar não há mais dançador, ainda que muitas pessoas dançassem as modas valsadas do
fandango. Isso nos leva a compreender que para ser considerado efetivamente um
dançador de fandango é preciso conhecer as coreografias dos batidos.
Que lá no Rio dos Patos tinha muito dançador. Mas tinha um melhor que o outro, ali
tinha tanta gente, mas quem batia fandango bem era meu primo Leonildo, Randolfo,
meu irmão que morreu, o Aires, Anísio... eles batiam melhor que os outro sempre.
Ali o mais animado que puxa a ponta sempre é Leonildo e Vicente [França] também
que bate com eles. (...) Mas ali o animador deles é sempre o Leonildo. Ele é o
mestre mesmo, ele é pra apresentá, é o divulgador do grupo. (Pedro Pereira, apud:
MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 288)
Tocadores e Cantadores
O violeiro é a peça chave do fandango. Se não tiver o rabequista cê vai, mas sem o
violeiro, não se dança o fandango. Se não tem violeiro você dança com o quê?
(Romão Costa. Apud: MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 277)
Pra mim a rabeca significa um instrumento muito bonito e acompanha com a viola,
que a viola sem rabeca pra mim não tem graça. E a rabeca é um instrumento que
também não pode tocá sem a viola, né? E pra viola ficá bonita tem que ser com a
rabeca, que os dois junto fica bonito. Agora, uma viola sozinha fica bonito e não
fica, pra nós, que entendemo, não fica assim, pra nós o negócio é a rabeca e a viola
mesmo, uma pandeirinho para acompanhá, esse é o valor da rabeca para mim. O
importante é que pra rabeca ficá bonita tem que ser dois violeiro, pra rabeca não
pará. Pra acompanhá você cantá. Porque pra mim cantá, no caso você vai tocá uma
viola, eu vou tocá a minha rabeca, pra mim não dá, eu canto e eu paro a rabeca.
Então se vocês são dois violeiro, Cestão cantando lá, tocando e eu tou com a rabeca
acompanhando e fica mais lindo e vai direto a rabeca com a música, né? Então fica
mais bonito duas [viola] com uma rabeca. E os dois juntos, dois violeiro e um
rabequista é sempre melhor. (Pedro Pereira, Apud: MARCHI, CORRÊA &
SAENGER, 2002, p. 288)
Quem toca rabeca quase sempre domina também a viola e, portanto, é ainda
mais respeitado pela amplitude de suas capacidades musicais. A rabeca se destaca na
execução de algumas modas, pois um bom rabequista ou rabequeiro executa fraseados
de livre improvisação nos entremeios instrumentais dos versos e modas. Assim sua
função é diferente da viola, como afirmam muitos rabequeiros, inclusive José e
Leonildo Pereira, “a rabeca enfeita o fandango”.
A viola pego nela já sabe que tá cantando. A rabeca é outra coisa, num é tocada, é
lixado, então a gente esquece até da outra música, né? A viola ajuda a lembrá, pois
de certo, tudo é viola, o rei do fandango é a viola. É a viola toda vida, esse aqui
[referindo-se à rabeca] é para se enfeitá, isso aqui pôr enfeite é muito bonito,
instrumento de enfeite, mas o rei do fandango é a viola. (Leonildo Pereira, Apud:
MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 312)
Embora José Pereira tenha se destacado nos últimos anos como grande
rabequeiro – ele desenvolveu, inclusive a rara capacidade entre fandangueiros de cantar
170
enquanto toca –, na família Pereira há muitos tocadores que também sabem tocar
rabeca. Muitos dos Pereira afirmam ter aprendido a tocar rabeca com Julino Pereira.
Se marcar quantas, quantas modas eu sei, quantos versos eu sei, pra cantar de hoje
até amanhã. Por exemplo hoje seis horas até amanhã oito horas, sem cantar mais um
verso daqueles, não é pouca cabeça. Eu faço isso, ainda invento verso, eu ainda tiro
verso. (Leonildo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do
Fandango, 2005)
O peito dele [Nilo Pereira] é arejado, o peito dele é nota dez, pra ele cantar comigo o
peito dele é bom. Eu com ele, pega um pra ganhar de nós dois, precisa ser bom. Não
sei se ele tá entrosado, com todo peito aí. O cara se defende bem mesmo, ele não
171
tem que perder de mim, ganhar de mim ele não ganha, mas tem que chegar perto de
mim. A gente se entrosa muito bem pra cantar. É legal o cara pra cantar. (Leonildo
Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu Vivo do Fandango, 2005)
Pra me dar bem, igual com Zé [José Pereira] não tem. Eu com Zé quando nós tava
assim descansadinho ali pra cantar, com uns conhaques, nós virava a viola do fundo
pra trás. Cantava benzinho, não cantava muito mal não. Por aí pra ganhar de nós é
preciso os caras cantarem bem. Cantemos em Cananeia, São Paulo, num bar dali.
Quando nós cheguemos no Ariri, na estrada já sabiam que nós tinha tirado em
primeiro lugar. (Arnaldo Pereira, em depoimento à equipe de pesquisa do Museu
Vivo do Fandango, 2005)
Porque no fandango que cê faz a noite inteira, você pode inventá o verso, não faz
mal que erre. Agora noutras parte assim que tão gravando você tem que cantar o
verso mesmo que daí o outro [parceiro que ajuda a cantar] já sabe. No fandango
mesmo pode inventá o verso, o outro vai acompanhando, acompanha mal e mal.
Num sabe a palavra direito, mas a voz ele põe sempre. Agora tem verso nosso
mesmo que já sabemos de cor, cada um sabe, abriu a boca, ele já sabe. (Nilo Pereira,
Apud: MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 308)
A viola fazia sempre era dessa de cocho, eu nunca fiz viola [de aro], só fiz uma.
Agora aqui nessa casa que tô, fiz uma que ta ali no vizinho, que é de aro, que eu
levei lá para Curitiba e trouxe de novo. Essa já tem fôrma. É mais é só essa
cavocada que nós fazemo. Aprendi com meus pai, com os avós, o meus avô algum
fazia, só que eles já faziam mais de aro, mas lá um tempo eles faziam desse de
cocho. Foi assim que nós aprendemos. Cocho num precisa de forma, num precisa de
nada. Vai atrás da tora de madeira. A gente também faz na cabeça a forma dela
mesmo, num tem simetria, trabalho assim, então nós fazia uma dessa que achava
mais fácil fazê, essa de cocho. [O som] acho que isso num inflói nele, às vezes tem
172
uma viola assim cavocada de cocho que ela fica melhor do que essa de aro que a
gente faz. (...) A viola boa que nós chamamos é quando ela fica com o som alto,
com uma voz grande, que se escuta bem. Uma viola que bufa, assim é um som
grosso, tem um tino nas cordas. Nós chama tino, mas tem um som grosso também,
que ela tem uma voz mais alta. E tem uma viola que eu fiz aí de aro, ela já num é,
ela já nem cobre o som daquela uma, aquela que encobre o som dessa uma que eu
fiz é de aro. No fim não inflói nada essas coisa de uma ficá melhor do que a outra,
não é tanta benfeitoria, num é tanto a grossura da madera, é uma certa coisa que a
gente faz, fica melhor do que a outra. Essa rabeca que nós faz, às vezes nós faz uma
rabeca bem feita, cuidamo para ficá com o som grande e nada, às vez umas pequena
fica com mais som, fica com mais som. (Anísio Pereira Apud: MARCHI, CORRÊA
& SAENGER, 2002, p. 299)
Comecei com doze ano. [Nessa época] aí não vendia [em Paranaguá] Vendia por
aqui mesmo por essas vilinha por aí, não tinha concorrência pra fora aquele tempo.
Ia nas vila por aí, algum se interessava comprava uma rabeca, uma viola... A canoa,
tudo a remo, e s cara vinham também igual, queriam comprá, a gente vendia aquela
[viola] porque ia fazê a outra. [vendia para as pessoas], pra fazê fandango, só
fandango. (...) A maior dificuldade é de entregá, dificuldade é grande. Corda pra
mim sai fácil, porque hoje eu sou empregado da prefeitura, né? Sempre todo mês eu
to em Cananeia e lá vende. Porque o instrumento você tem que vender encordoado,
senão não tem como contar que ta bom, que ta certo, tem que vender toda vida
tocando, né? Toda vida tem que vender encordoando porque senão, quem compra
vai exigir: “Será que dá certo, será que não dá?”Então já põe a corda, não tem erro,
dou uma chacoalhada para ele e pronto, tudo feito já... (Anísio Pereira, Apud:
MARCHI, CORRÊA & SAENGER, 2002, p. 319)
173
DVDs, livros e artesanato) temos um vasto campo de investigação que, contudo, não
cabe nos limites desta pesquisa.
Modista / compositor
Jogo da raspadinha
(Dandão de Armando Teixeira)
Paulinho Pereira (que não é membro da famosa família Pereira) também escreve
modas que costuma tocar com o grupo do qual faz parte, Violas de Ouro de São Paulo
Bagre, um dos mais antigos de Cananeia.
Pescador artesanal
(Chamarrita de Paulo de Jesus Pereira)
174
Há ainda outros lugares que podem ser ocupados no mundo do fandango. Por si
só, do ponto de vista nativo, elas não qualificam alguém como fandangueiro, mas
apenas como alguém que participa do fandango. As relações entre fandangueiros e as
pessoas que se aproximam ou ingressam nesse mundo social são marcadas por tensões
de interesse. Percebo que é preciso não apenas apreciar o fandango, mas saber se
posicionar para amenizar as desconfianças.
Essas relações são também influenciadas por um certo bairrismo. Perdi a conta
de quantas vezes fui questionada sobre o porquê de uma carioca se interessar e trabalhar
175
com fandango. Ao mesmo tempo, para ingressar de fato nesse mundo, é preciso cultivar
e manter as relações e a atuação por um período de tempo longo.
A nomenclatura que apresento a seguir para os diferentes posicionamentos é
fruto de uma organização analítica e não de uma terminologia nativa.
Artista pesquisador
Assim como ocorre com muitas das expressões folclóricas ou populares, o artista
pesquisador é um músico ou dançarino que se interessa pelo repertório musical e
coreográfico do fandango e procura conhecê-lo para incorporá-lo em sua prática
artística, buscando nas fontes populares um modo de fazer autêntico e brasileiro, nos
moldes defendidos por Mario de Andrade em seu Ensaio sobre a Música Brasileira. No
fandango, Inami Custódio Pinto foi um dos pioneiros dessa prática, mas há muitos
outros exemplos, como Renato Perré (ator e teatrólogo que escreveu a peça Fandango,
conforme relatei no capítulo anterior), Rogério Gulin e Oswaldo Rios do grupo Viola
Quebrada, José Eduardo Gramani (musicista de Campinas e fundador do grupo Anima
que, interessado pelas rabecas, gravou o CD Mexericos da Rabeca68 e teve sua pesquisa
sobre padrões de construção publicadas em Rabeca, o som inesperado69), além de
grupos como Fato e Mundaréu, de Curitiba, que em alguns de seus espetáculos
incorporam repertórios relacionados ao fandango.
Esse interesse de artistas pesquisadores movimenta, por exemplo, a venda de
instrumentos artesanais para além dos circuitos locais. Músicos de várias regiões do
país, ou mesmo estrangeiros, compram com relativa frequência instrumentos feitos por
construtores da região para utilizá-los em trabalhos artísticos diversos.
Cabe, contudo, destacar que a atuação de artista/pesquisador se estende também
aos fandangueiros. Fandangueiros mais velhos, ainda que não se pensem como
pesquisadores, muitas vezes exerceram tal atividade para chegarem ao formato de seu
grupo, tal como o caso de Manequinho da Viola e Romão Costa. Já fandangueiros das
novas gerações tem a ideia de pesquisa como um valor na fundamentação de seus
trabalhos artísticos. Grupos como o Mandicuéra, de Paranaguá, e o Fâmulos de
Bonifrates, de Guaraqueçaba são compostos por jovens que se tornaram fandangueiros
por meio da prática sistemática de pesquisas com gerações anteriores, passando a
68
Gravado pelo Duo Bem Temperado (1997).
69
GRAMANI, Daniella. (Org.). Rabeca, o som do inesperado. Curitiba: [s.n.], 2003.
176
177
recorrente, ainda que muitos não tenham clareza de como viabilizar e, principalmente,
manter as despesas de uma “casa de fandango”.
Pesquisador
70
No adendo sobre a patrimonialização do fandango, destaco também a importância da pesquisa em seu
processo de registro como bem cultural.
71
Por exemplo, o projeto Tocadores na Escola, da organização não governamental curitibana Olaria,
envolveu a produção e distribuição gratuita para escolas públicas do Paraná de kits com cerca de 30
cartazes para montagem de exposições; o Fandango na Escola, da Associação de Cultura Popular
Mandicuéra, organizou kits com DVD e cartilhas ensinando as marcas do fandango para distribuição
gratuita às escolas do litoral sul paranaense; o Museu Vivo do Fandango, do qual participei promoveu
oficinas com a participação de fandangueiros para professores da rede estadual e municipal, além da
organização de bibliotecas para consulta e distribuição do livro e CDs editados para todas as escolas
públicas e particulares de Paranaguá, Morretes, Guaraqueçaba, Iguape e Cananéia.
178
Coletividades
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180
5. Considerações finais
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183
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Amanhece!
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Referências Bibliográficas
186
187
188
189
190
VELHO, Gilberto & KUSCHNIR, Karina. (orgs.). Mediação, Cultura e Política. Rio de
Janeiro, Aeroplano, 2001
_______________. 2000. “Individualismo, anonimato e violência na metrópole”. In:
Horizontes Antropológicos – A cidade moderna, UFRGS, Porto Alegre, ano 6, n. 13 junho, p.
15-26.
______. 2010. “Metrópole, cosmopolitismo e mediação”. In: Horizontes Antropológicos –
Antropologia e estilo de vida. UFRGS, Porto Alegre, ano 16, n. 33 janeiro-junho, p. 15-23.
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor / Editora
UFRJ, 1995.
VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964).
Rio de Janeiro: Funarte: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
Discografia
“Paraná faz festival para mostrar folclore” Vicente Ulandovski. Curitiba: O Estado do Paraná,
1968.
“Legítimo Folclore paranaense é representado pelo fandango”Curitiba: Gazeta do Povo,
31/08/1975.
“Folclore – professor fala em extinção”. Curitba: Correio do Povo, 23/08/1973
“Fandango dá seus últimos passos no Paraná” Enio Squeff. São Paulo: O Estado de São
Paulo, 05/10/1975.
“Contato com a civilização destrói o folclore do litoral”. São Paulo: O Estado de São Paulo,
26/10/1975.
“Fandango do Paraná”. Inami Custódio Pinto. São Paulo: O Estado de São Paulo, 26/10/1975.
“O último fandango, antes que desapareça”reportagem s/referência, 29/05/1980.
“O samba é a desgraça nacional. Fazer música regional é nosso caminho certo” Margarida
Autran. Porto Alegre: Correio do Povo, 06/03/1977.
191
Adendo
O fandango é uma coisa que ele conta todas as histórias. Se a pessoa vai no
fandango e anota aquelas histórias que é contada no violeiro, ele vai ter muita
consciência na vida dele, porque nada conta mais história que o fandango. (José
Esquenine, em depoimento no encontro sobre o processo de registro do fandango
caiçara, 2010)
72
Na década de 1930, Mario de Andrade foi chamado por Gustavo Capanema, então Ministro de
Educação e Saúde, a colaborar com o projeto do SPHAN, contudo, suas propostas sobre a inclusão do
folclore no projeto de reconhecimento de patrimônios nacionais não são levadas adiante no processo de
implementação do órgão.
192
podem ser, de uma hora para outra, identificados e reivindicados como
“patrimônio” por um ou mais grupos sociais. Em geral, trata-se de reivindicações
identitárias, fundamentadas numa memória coletiva ou numa narrativa história,
mas, evidentemente, envolvendo interesses muitos concretos de ordem social e
econômica. (Gonçalves, 2012, p. 59-60)
193
75
Alguns de nós, participantes da Associação Cultural Caburé, atuávamos como pesquisadores ou
colaboradores vinculados a outras iniciativas culturais, como em alguns dos primeiros processos de
patrimonialização empreendidos pelo projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular, gerido pelo
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Também na época nos engajamos na organização de
um fórum no Rio de Janeiro de representantes da sociedade civil para debates políticos, que foi
batizado de Fórum de Culturas Populares, Indígenas e Patrimônio Imaterial / RJ, tendo aberto algumas
frentes de diálogo com o Ministério da Cultura na construção de ações de fomento ao campo das
culturas populares.
76
As ações empreendidas pelo Programa de Patrimônio Imaterial se desdobram em três linhas que
guardam relativa autonomia: inventário, registro e salvaguarda. O inventário envolve a pesquisa e
documentação fotográfica e audiovisual do bem, o preenchimento de formulários bastante sistemáticos
e a elaboração de uma descrição densa que deve obrigatoriamente contar com a supervisão de um
antropólogo ou historiador. Na época, os pontos centrais das críticas se voltavam contra a dificuldade
de operar os formulários, os critérios ali estabelecidos e complexidade de fragmentar realidades em
campos de preenchimento. Também vinham sendo temas de reflexão as nomenclaturas e os campos de
abrangência desses bens, assim como os mecanismos para assegurar o envolvimento de seus
“portadores” nos processos de patrimonialização.
77
O registro implica em, a partir de uma análise positiva da documentação reunida sobre o bem,
conceder seu reconhecimento como patrimônio brasileiro com titularidade assegurada por períodos de
dez anos. Ao final dos períodos, devem ser feitas revisões dos inventários. Como os primeiros registros
concedidos pelo programa ainda estão por completar uma década, os procedimentos de revisão ainda
estão em debate. Esse processo de titulação trouxe, contudo, receios sobre a perspectiva de se transferir
para o Estado de direitos que seriam de grupos sociais específicos e não da sociedade brasileira como
um todo. A confusão entre as noções de tombamento e de registro também gera equívocos quanto à
possibilidade do Estado obrigar os grupos populares a fixarem suas práticas, sem possibilidade de
criação e renovação.
78
As ações de salvaguarda nos pareciam então as mais relevantes dos processos de patrimonialização
já que atenderiam às demandas dos atores e grupos sociais envolvidos com esses bens, elaborando e
fomentando planos específicos pautados pelas realidades locais.
194
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No artigo já citado, Fandango’s Living Museum: culture, heritage network and territorialization,
discutimos as condições do processo de formação de uma ‘rede patrimonial’ a partir do
desenvolvimento do Museu Vivo do Fandango (Pereira, Corrêa et al, 2012).
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Seguindo os desdobramentos do movimento da Nova Museologia, que propõe a expansão do
conceito de museu e a revisão de seu papel social: “os ecomuseus, museus comunitários, museus vivos
e museus a céu aberto propõem reconhecer e valorizar patrimônios – culturais, históricos, artísticos e
ambientais – dentro de seus próprios territórios, sugerindo um deslocamento não de objetos, mas do
próprio conceito de museu. Os objetos, ou mesmo os sujeitos dos museus, movimentam-se em seus
contextos locais, ‘fincando bandeiras’ de referenciamento territorial.” (Corrêa, Pereira e Pimentel,
2011, p.3)
195
81
Outras formas de expressão da cultura popular, já registradas, seguiram acompanhadas da definição
de território, como Jongo do Sudeste, Samba de Roda do Recôncavo Baiano e Tambor de Criola do
Maranhão. Contudo há também exemplos de bens registrados com ênfase em seus “detentores” ou
“portadores”, como Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi ou Ofício das Baianas de
Acarajé. E ainda os que trazem as duas referências, como Ofício das Paneleiras de Goiabeiras.
196
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De o fandango não cair, isso que você quer dizer né? Então o meu objetivo
é, além de estar um pouco fraco, mas eu quero armar mais, fazer o que eu
quero fazer e o que eu fazia. Eu tenho minha coragem pra fazer, estou
pronto pra isso, armar, fazer casa. Já ta se preparando uma casa, um salão
198
de aprendiz pra chamar os jovem pra ensinar e pra colher gente pra fazer o
mutirão e bater o fandango natural que nós fazia. Esse é o meu objetivo de
fazer. Eu tenho uma boa coragem pra isso que vai sair sinceramente. Não
só quero da minha parte, pra todo os fandangueiro também. Que isso não é
coisa de dizer, vamos falar aqui ‘vai cair’? Não, não podemos dizer isso.
Isso é uma coisa natural, coisa de raízes. Nós não podemos deixa cair isso
aí. Ativar as crianças, ativar os jovens isso ai, não pode cair mesmo
(Leonildo Pereira, em depoimento no encontro sobre o processo de registro
do fandango caiçara, 2010)
No fandango tem que ter alguns tipo de comida... comida não, mas assim
uns doces, umas bebida pra bebe. Mas tem que fazer no formato como era
feito antigamente. (José Pereira, em depoimento no encontro sobre o
processo de registro do fandango caiçara, 2010)
199
fazer o pilão ele precisa da floresta, e esse território está sendo tomado ou
por especulação imobiliária, fazendeiro essas coisas, ou pela unidade de
conservação de proteção integral, que não deixa essa comunidade trabalhar
mais, nem fazer sua roça, nem tirar sua canoa, nem tirar pilão. (...) A gente
precisava arrumar uma forma qualquer, eu num sei se criando reservas de
uso sustentável , criando reservas extrativistas ou unidades de conservação
de uso sustentável, uma coisa que garanta a permanência legal das
comunidades. O governo daria uma permissão de direito real de uso pra
cada família, então não estimularia a especulação imobiliária pois seria
unidade de conservação. Eu acho que seria uma coisa que daria pra fazer.
(Dauro Marcos do Prado, em depoimento no encontro sobre o processo de
registro do fandango caiçara, 2010)
Família Pereira
Genealogia das Famílias*
Adauto Pereira Joaquina Alves
Família Alves
Família Camilo
Urbano e
Rosa e Leonildo Randolfo Arnaldo Felício Pedro Anísio Bernardina Nilo João Alves e
Luiz Maria José Iolanda
Quirino seus irmãos
Maurício
Carla Laerte Agnardo Jersi Rosangela
Heraldo
* O objetivo desta genealogia é ilustrar as relações familiares entre as pessoas citadas. As famílias não estão completas,
pois, para facilitar a visualização, muitos irmãos, irmãs, filhos, filhas, maridos e esposas foram omitidos.
Angélia, Angela e Mateus