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CRUZ, V. C.

Geografia e pensamento descolonial: notas sobre um diálogo necessário para a


renovação do pensamento crítico. Geografia e Giro descolonial: experiências, ideias e
horizontes de renovação do pensamento crítico. 1ed.Rio de Janeiro: Letra capital, 2017, v. 1,
p. 15-36.

Geografia e pensamento descolonial: notas sobre um diálogo necessário para a


renovação do pensamento crítico

Valter do Carmo Cruz

Normalmente, em nossas reflexões, tratamos a nossa experiência colonial e sua herança


como coisa do passado, colocando tal herança como algo superado com o fim do
colonialismo. No entanto, o fim do colonialismo na América Latina, como relação
econômica e política de dominação na segunda metade do século XIX, não significou o
fim da colonialidade como relação social, cultural e intelectual (QUIJANO, 2005). Longe
de ser algo irrelevante, a colonialidade é um resíduo irredutível de nossa formação social
e está arraigada em nossa sociedade, manifestando-se das mais variadas maneiras em
nossas instituições políticas e acadêmicas, nas relações de dominação/opressão, em
nossas práticas de sociabilidades autoritárias, em nossa memória, linguagem, imaginá r io
social, em nossas subjetividades e, consequentemente, na forma com produzimos
conhecimento.

Esse processo de constituição da colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza


tem na conquista ibérica do continente americano seu momento inaugural. A partir do
domínio ibérico, dois processos articuladamente conformam a nossa história posterior: a
modernidade e a organização colonial do mundo. Com o início do colonialismo na
América origina-se não apenas a organização colonial do mundo, mas, simultaneame nte,
a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória e do imaginá r io
(LANDER, 2005). Desse modo, inaugura-se, por um lado, o projeto civilizatório da
modernidade, que busca afirmar e celebrar a experiência histórica particular da Europa
como sendo algo universal e superior, através de elementos como o racionalismo, o
humanismo, a ciência, a ideia de progresso, o Estado etc. Mas, por outro lado, nesse
processo, negaram-se e subalternizaram-se outras matrizes de racionalidades, outras
formas de razão, outros projetos civilizatórios, outras cosmovisões, saberes, linguage ns,
memórias e imaginários.
Nessa perspectiva de compreensão de nossa história, é impossível pensar a modernidade
sem a colonialidade; não dá para pensar nos esplendores e nos triunfos da modernidade
ocidental sem pensar na colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza. Essa ideia
implica ver a modernidade de forma indissociável da colonialidade. A colonialidade é
parte constitutiva da modernidade e não derivativa desta; a colonialidade é seu lado
sombrio, oculto e silenciado. Assim, a modernidade/colonialidade são duas faces de uma
mesma moeda (MIGNOLO, 2003; DUSSEL, 2005). Na gênese do projeto civilizató r io
da modernidade está presente uma violência matricial do colonialismo e da colonialidade
do poder, do saber, do ser e da natureza que, segundo Quijano (2005), é uma forma de
dominação fundada na crença de que existe uma “natural” superioridade étnico-racial e
epistêmica do europeu sobre outros povos.

Santiago Castro-Gómez (2005b), analisando as formulações de Aníbal Quijano, afirma


que a colonialidade é uma forma de dominação que não visava apenas submeter
militarmente outros povos e destruí-los pela força, mas sim transformar sua alma com o
objetivo de modificar radicalmente suas tradicionais formas de conhecer o mundo e a si
mesmo e, assim, levando o colonizado a adotar o próprio universo cognitivo do
colonizador (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 58b).

Dessa forma, a colonialidade do poder, do ser e da natureza não é uma forma de


dominação que usa exclusivamente os meios coercitivos para o exercício do poder; não
se trata apenas de reprimir os dominados, mas também da instituição e naturalização do
imaginário cultural europeu como única forma de relacionamento com a natureza, com o
mundo social e com a própria subjetividade. Esse projeto de dominação moderno-colonia l
visou a mudança radical das estruturas cognitivas, afetivas e valorativas do colonizado
(CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 59-60). Isso implica vermos, segundo Aníbal Quijano, que
o processo de colonização significou a colonização do imaginário do colonizado
materializada numa repressão sobre os modos de conhecer e produzir conhecimentos; em
suma, uma colonização dos padrões de produzir conhecimentos e significação do mundo.
Esse processo se realizou a partir de três dispositivos:

Em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas – entre seus


descobrimentos culturais – aqueles que resultavam mais aptos para o
desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu. Em segundo
lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com
os casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de
produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de
objetivação da subjetividade. A repressão neste campo foi reconhecidamente mais
violenta, profunda e duradoura entre os índios da América ibérica, a que condenaram
a ser uma subcultura camponesa, iletrada, despojando-os de sua herança intelectual
objetivada. Algo equivalente ocorreu na África. Sem dúvida muito menor foi a
repressão no caso da Ásia, onde portanto uma parte importante da história e da
herança intelectual, escrita, pôde ser preservada. E foi isso, precisamente, o que deu
origem à categoria de Oriente.
Terceiro lugar, forçaram – também em medidas variáveis em cada caso – os
colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse
útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material,
tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da
religiosidade judaico-cristã. Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo
uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar
sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do
universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura. (QUIJANO,
2005, p. 237)

Nesse sentido, podemos afirmar, segundo Castro-Gómez (2005b), que a colonialidade do


poder, do saber, do ser e da natureza é, sobretudo, a intenção do colonizador de eliminar
“as muitas formas de conhecer” dos povos subjugados e colonizados e substituir por
outras novas formas de conhecer (e viver) que serviam diretamente aos propósitos dos
processos civilizatórios do regime colonial.

Trata-se de uma verdadeira violência epistêmica, ou seja, uma forma de exercício do


poder que produz a invisibilidade do outro, expropriando-o de sua possibilidade de
representação e de sua autorrepresentação; isto é, trata-se do apagamento, do anulame nto
e da supressão dos sistemas simbólicos, de subjetivação e representação que o outro tem
de si mesmo, bem como de suas formas concretas de representações e registro de suas
memórias e experiências. Esse processo implicou aquilo que Boaventura de Sousa Santos
denominou de “epistemicídio”, ou seja, a aniquilação da diversidade e da riqueza
epistêmica do mundo, resultado do caráter totalitário da racionalidade moderna expressa
no exclusivismo epistemológico pautado na ciência moderna, e que desqualificou e
exterminou uma infinidade de outras epistemes, ou seja, “outras formas de conhecer”.
Isso mostra de maneira muito clara o vínculo entre a ciência moderna e o exercício do
poder colonial.

Desse processo permaneceu uma profunda colonização epistêmica, inclusive no


pensamento crítico, que resultou em uma cosmovisão claramente arraigada no
eurocentrismo, expresso nas formulações teóricas, na forma como construímos nossos
conceitos, na maneira como estabelecemos nossas interpretações, comparações de
fenômenos históricos e sociais e, enfim, na maneira de produzirmos conhecimentos,
modos de significação e de produção de sentido ao mundo.
II

A colonialidade como herança cultural, cognitiva e epistêmica está materializada no


eurocentrismo que atravessa e orienta até os dias atuais uma grande parte da produção
intelectual das Ciências Sociais, incluída aí a produção dos(as) geógrafos (as). O
eurocentrismo como perspectiva hegemônica de conhecimento da versão eurocêntrica da
modernidade, segundo Aníbal Quijano (2005), está assentado em dois principais mitos
fundacionais: (1) Em primeiro lugar, a ideia-imagem da história da civilização humana
como uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa; (2) Em
segundo lugar, a forma de outorgar sentido às diferenças entre Europa e não Europa como
diferenças de natureza (racial) e não de história do poder (QUIJANO, 2005, p. 238).

Segundo Quijano (2005), ambos os mitos podem ser reconhecidos, inequivocamente, no


fundamento do evolucionismo e do dualismo. Esses são dois dos dispositivos epistêmicos
nucleares do eurocentrismo, que podem ser verificados no uso da operação de
comparação e confronto entre a experiência histórica europeia e de outras sociedades ,
comparação esta que é feita a partir de uma perspectiva eurocêntrica de conhecime nto,
que se utiliza de diferentes mecanismos, tais como:

1 – Uma articulação peculiar entre um dualismo (pré-capital-capital, não europeu-


europeu, primitivo-civilizado, tradicional-moderno etc.) e um evolucionismo linear,
unidirecional, de algum estado de natureza à sociedade moderna europeia; 2 – A
naturalização das diferenças culturais entre grupos humanos por meio de sua
codificação com a ideia de raça; 3 – A distorcida relocalização temporal de todas
essas diferenças, de modo que tudo aquilo que é não europeu é percebido como
passado. (QUIJANO, 2005, p. 238)

Todas estas operações intelectuais são claramente interdependentes e não teriam podido
ser cultivadas e desenvolvidas sem a colonialidade do poder. Ainda segundo Quijano
(2005, p. 239), o fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma
trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar-se como
os únicos modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo
tempo o mais avançado da espécie. Mas já que, ao mesmo tempo, atribuíam ao restante
da espécie o pertencimento a uma categoria, por natureza, inferior - e, por isso também
anterior, isto é, relativa ao passado no processo da espécie - os europeus imagina ra m
também serem não apenas os portadores exclusivos de tal modernidade, mas igualme nte
seus exclusivos criadores e protagonistas.
Essa narrativa eurocêntrica está pautada em uma “monocultura do tempo linear” (SOUSA
SANTOS, 2006), que compreende a história como tendo direção e sentido únicos,
organizando a totalidade do espaço e do tempo (todas as culturas, povos e territórios
presentes e passados) em uma grande narrativa universal.

Esta é uma construção eurocêntrica, que pensa e organiza a totalidade do tempo e do


espaço para toda a humanidade do ponto de vista de sua própria experiência,
colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de referência superior
e universal. Mas é ainda mais que isso. Este metarrelato da modernidade é um
dispositivo de conhecimento colonial e imperial em que se articula essa totalidade
de povos, tempo e espaço como parte da organização colonial/imperial do mundo.
Uma forma de organização e de ser da sociedade transforma-se mediante este
dispositivo colonizador do conhecimento na forma “normal” do ser humano e da
sociedade. As outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade,
as outras formas de conhecimento, são transformadas não só em diferentes, mas em
carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas. São colocadas num
momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade (FABIAN, 1983), o
que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade. (LANDER, 2005, p. 34)

Nessa perspectiva, o tempo é pensado somente em uma visão diacrônica, na qual a


história é compreendida a partir de estágios e etapas sucessivas (da tradição à
modernidade). Essa maneira de pensar o tempo-espaço tem como referências um
imaginário e uma ideologia do progresso que se expressam pelas ideias de
desenvolvimento, crescimento, modernização e globalização, entre outras, e que
compõem a cosmovisão da modernidade ocidental. Essa visão, segundo Lander (2005),
foi historicamente produzida, legitimada em grande parte pela produção das Ciências
Sociais (incluindo a Geografia) e teve como consequência duas implicações:

Em primeiro lugar está a suposição da existência de um metarrelato universal que


leva a todas as culturas e a todos os povos do primitivo e tradicional até o moderno.
A sociedade industrial liberal é a expressão mais avançada desse processo histórico,
e por essa razão define o modelo que define a sociedade moderna. A sociedade
liberal, como norma universal, assinala o único futuro possível de todas as outras
culturas e povos. Em segundo lugar, e precisamente pelo caráter universal da
experiência histórica europeia, as formas do conhecimento desenvolvidas para a
compreensão dessa sociedade se converteram nas únicas formas válidas, objetivas e
universais de conhecimento. As categorias, conceitos e perspectivas (economia,
Estado, sociedade civil, mercado, classes etc.) se convertem, assim, não apenas em
categorias universais para a análise de qualquer realidade, mas também em
proposições normativas que definem o dever ser para todos os povos do planeta.
Estes conhecimentos convertem-se, assim, nos padrões a partir dos quais se podem
analisar e detectar as carências, os atrasos, os freios e impactos perversos que se dão
como produto do primitivo ou o tradicional em todas as outras sociedades.
(LANDER, 2005, p. 34)

Essa cosmovisão cria uma forma muito particular de pensar a relação espaço-tempo.
Segundo Doreen Massey (2004), todas essas narrativas compartilham de uma imaginação
geográfica que rearranja as diferenças espaciais em termos de sequência temporal,
suprimindo, desse modo, a espacialidade e a possibilidade da multiplicidade e da
diferença. “A implicação disso é que lugares não são considerados genuiname nte
diferentes; na realidade, eles estão simplesmente à frente ou atrás numa mesma história :
suas ‘diferenças’ consistem apenas no lugar que eles ocupam na fila da história” (p. 15).

Isso significa que os lugares, as populações e as comunidades são tratados como se


estivessem numa fila histórica que vai do estágio dos mais “selvagens” até os mais
“civilizados”, dos mais “atrasados” aos mais “avançados”, dos mais “subdesenvolvidos ”
aos mais “desenvolvidos”. Nessa forma de conceber e classificar as experiências sociais,
os lugares e, consequentemente, as identidades, as populações denominadas
“tradicionais” são classificadas como “atrasadas” e “improdutivas”, em detrimento dos
tempos e espaços que são “modernos”, “avançados” e “produtivos”. Assim, essa visão
colonialista caracteriza as expressões culturais de tais populações como “tradicionais” ou
“não modernas”, como estando em processo de transição em direção à modernidade, e
lhes nega toda possibilidade de lógicas culturais ou de cosmovisões próprias. Ao colocá-
las como expressão do passado, nega-se sua contemporaneidade (LANDER, 2005).

Trata-se de uma representação/narrativa que celebra a cosmovisão da


modernidade/colonialidade, instituindo um imaginário em que se atribui, a priori, uma
positividade ao novo, ao moderno, e uma negatividade ao velho, ao passado, ao
tradicional. Essa perspectiva de compreensão da história e da realidade está pautada em
uma ideologia do progresso e em uma espécie de “fundamentalismo do novo”. O geógrafo
Carlos Walter Porto-Gonçalves (2005) usa essa expressão para chamar a atenção para a
obsessão do imaginário da modernidade pelo novo, pela velocidade, pela mudança, pelo
progresso, criando uma justificativa ideológica para todas as formas de violênc ia
cometidas em nome do “desenvolvimento” e da “modernização”. Nessa perspectiva,
aqueles que não conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorável da história estão
destinados a desaparecer. As outras formas de ser, as outras formas de organização da
sociedade, as outras formas de conhecimento são transformadas não só em diferentes,
mas em carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas e, como afirma Lander
(2005), são situadas, num momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade
- o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade.

Para superarmos essas narrativas coloniais, precisamos repensar a forma como


concebemos o tempo, o espaço e as diferenças, pois na estrutura dessas narrativas está
sempre implícita certa forma de conceber o tempo-espaço. Como já vimos, essa
cosmovisão/narrativa fundada no mito da modernidade acima descrito está estritame nte
vinculada com o colonialismo e a colonialidade, e tem uma forma muito particular de
conceber o tempo-espaço, que tem dois efeitos perversos: o primeiro é a supressão da
multiplicidade contemporânea do espaço, e o segundo é a redução da temporalidade a um
único tempo (MASSEY, 2005).

Segundo Massey (2005), essa cosmovisão tem algumas consequências na forma como
pensamos o espaço, o tempo e a política, pois se trata de uma imaginação (uma
conceituação implícita) a qual esconde a possibilidade de analisarmos a produção da
desigualdade do mundo que se realiza na atualidade. Além disso, essa imaginação
geográfica reduz a diferença entre países, regiões ou lugares a uma posição “na fila
histórica”; isso, por sua vez, produz um efeito decisivo: nega a igualdade de voz, sendo
uma maneira de depreciar e negar que somos verdadeiramente coetâneos – a existênc ia
de coetâneos de uma multiplicidade é uma propriedade essencial do espaço, afir ma
Doreen Massey.

Esta forma de conceber o tempo, o espaço e as diferenças está claramente ancorada na


grande “narrativa” universal da modernidade/colonial; é uma forma de imaginação
geográfica, uma leitura do mundo que opera através de uma transformação, uma
reorganização da Geografia, uma simultaneidade espacial de diferenças, em uma única
sucessão de etapas e períodos. Assim, cada vez que caracterizamos um país, uma região,
uma cultura como “atrasada”, como “primitiva”, negamos sua diferença atual. Além
disso, esse tipo de raciocínio naturaliza essas desigualdades em forma de diferença,
impedindo uma reflexão política sobre os processos e as relações que produzem as
desigualdades, as diferenças e as hierarquias. Esta cosmologia de “uma única narrativa ”
oblitera as multiplicidades, as heterogeneidades contemporâneas do espaço. Reduz as
coexistências simultâneas a um lugar na “fila da história” (MASSEY, 2005).

A crítica a essa forma de compreendermos o espaço-tempo implica novos compromissos


epistemológicos, políticos e éticos. Doreen Massey (2005) sugere uma nova forma de
imaginação geográfica, a construção de uma nova “cosmovisão” que reconstrua a relação
entre tempo e espaço, produzindo uma nova narrativa que não seja uma narrativa colonial
do mundo, mas uma narrativa descolonial. Desse modo, questiona se não devemos
imaginar os diferentes lugares, territórios e culturas como tendo suas próprias trajetórias,
suas próprias histórias específicas e o potencial para seus próprios, talvez diferentes,
futuros.

Para construirmos uma narrativa descolonial, é preciso pensar o espaço como esfera da
possibilidade da existência da multiplicidade; isso implica, segundo Massey (2005), em
colocar a questão da diferença no centro do debate político, permitindo pensarmos na
existência de múltiplas vozes, múltiplas temporalidades, múltiplas histórias na
contemporaneidade, descentrando-nos de uma perspectiva etnocêntrica que afirma
histórias locais como universais, mas que são particulares; entretanto, pelo exercício do
poder e do saber, subalternizam outras histórias, temporalidades, sujeitos e saberes.

Portanto, para Massey (2005), a verdadeira possibilidade de qualquer reconhecime nto


sério da multiplicidade e da diferença depende, ele próprio, de um reconhecimento da
espacialidade.

(...) um verdadeiro reconhecimento “político” da diferença deve entendê-la como


algo mais do que um lugar numa sequência; de que um reconhecimento mais
completo da diferença deveria reconhecer que os “outros” realmente existentes
podem não estar apenas nos seguindo, mas ter suas próprias histórias para nos contar.
Neste sentido, seria concedido ao outro, ao diferente, pelo menos um determinado
grau de autonomia. Seria concedida pelo menos a possibilidade de trajetórias
relativamente autônomas. Em outras as palavras, isso levaria em consideração a
possibilidade da coexistência de uma multiplicidade de histórias. (MASSEY, 2005
p. 15)

Desse modo, a autora conclui que para que haja histórias múltiplas, coexistentes, deve
existir espaço. Em outras palavras: “o pleno entendimento da espacialidade envolve o
reconhecimento de que há mais de uma estória se passando no mundo e que essas estórias
têm, pelo menos, uma relativa autonomia” (MASSEY, 2005, p. 15). Nesse sentido, o
espaço deve ser entendido como “uma simultaneidade de histórias inacabadas, o espaço
como um momento dentro de uma multiplicidade de trajetórias. Se o tempo é a dimensão
da mudança, o espaço é a dimensão da multiplicidade contemporânea” (MASSEY, 2005).

III

A expressão “giro descolonial” é uma forma sintética de nomear uma inflexão epistêmica,
ética e política nas Ciências Sociais latino-americanas e que coloca o nosso passado
colonial como ponto de partida para pensarmos a especificidade de nossas sociedades. Os
autores do chamado pensamento descolonial insistem na diferença entre o colonialis mo
como uma experiência de dominação política e econômica expressa na relação entre
metrópoles e colônias e a colonialidade como uma herança desse processo. Inúmeras
vezes nos lembram de que o fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade.
Os processos formais de independência não significaram uma ruptura com as práticas,
experiências e ideias coloniais. Essa colonialidade, na interpretação desses autores,
permanece ativa e atual, e, portanto, o esforço por descolonização da sociedade, do Estado
e do pensamento continua como um horizonte e um desafio cotidiano. Essa interpretação
nos obriga a ter outra leitura do passado e uma compreensão mais complexa dos processos
de mudança/ruptura e continuidade na história e na geografia das sociedades latino -
americanas. Esses autores afirmam que a colonialidade não foi uma etapa ou um estágio
anterior à inserção das nossas sociedades na modernidade, mas uma dimensão
constitutiva da nossa própria forma de viver a modernidade.

Essa nova perspectiva epistemológica, ética e política de compreender a nossa história e


geografia, que ganha destaque no momento atual, não nasceu agora, mas é resultado de
um longo processo, fruto de muitas formas de pensar e de agir contra o legado do
colonialismo nos últimos cinco séculos. A nossa história é a história do colonialismo e
sua herança, mas também é a história das resistências e lutas dos grupos subalternizados
contra essa realidade. Sempre houve lutas concretas e formulações de pensamento que
tinham como horizonte a superação do colonialismo e da colonialidade. Portanto, o
pensamento descolonial não se restringe ao debate contemporâneo do “giro decolonia l”,
visto que ele tem uma longa trajetória histórica.

Nessa direção, podemos identificar uma longa linhagem de pensamento crítico que
atravessou o século XIX e XX, com pensadores que buscaram compreender a
especificidade das nossas sociedades periféricas através de uma interpretação de nosso
passado colonial e da necessidade de superarmos essa herança. Podemos identificar, por
exemplo, uma leitura descolonial nas obras dos pensadores da Teoria da Dependência,
que se propuseram a rediscutir a relação entre centro e periferia e a desvendar os
mecanismos do tipo de capitalismo dependente a que os países da América Latina
estavam submetidos. Esse “espírito descolonial” orientou movimentos filosóficos e
teológicos como a Teologia da Libertação e a Filosofia da Liberação, que propunham
outros horizontes de espiritualidade e de liberdade, pensando a partir das vítimas e dos
grupos mais vulneráveis da história latino-americana. É possível também identificar um
esforço de descolonização no campo da formulação de uma teoria educacional que está
presente na obra de Paulo Freire, marcada pela busca de uma Pedagogia da Liberdade e
da Autonomia. O esforço de uma crítica radical ao eurocentrismo também está fortemente
presente na crítica ao modo de fazer pesquisa e ciência formulada pelo sociólogo
colombiano Orlando Fals Borda na sua proposta de pesquisa participante e pesquisa-ação.

As contribuições latino-americanas afetaram até campos do pensamento bastante


consolidados, como é o caso do marxismo, por exemplo, com as contribuições de
Mariátegui ou José Martí, que incluíram questões étnico-raciais numa interpretação
materialista-histórica da realidade latino-americana. Esses apenas são alguns exemplos,
mas se fizermos uma genealogia histórica mais detalhada veremos que a produção do
pensamento descolonial sempre esteve presente no pensamento crítico latino-americano.

Essa longa tradição ganhou um novo fôlego pelo esforço de um conjunto de intelectu a is
que no final dos anos 1990 começaram a construção de uma crítica ainda mais radical e
contundente à herança eurocêntrica que está presente de maneira extremamente atual nas
sociedades latino-americanas, seja na forma das relações de poder, na maneira de
produção do conhecimento ou na produção das sociabilidades e subjetividades cotidianas.

Esses pensadores, oriundos de distintos campos disciplinares e de tradições intelectua is


distintas, iniciam um processo de construção de uma rede de diálogo e colaboração que
se desdobra na construção de encontros internacionais e publicações coletivas em torno
da crítica à colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza. Diferentemente das
gerações anteriores, esse grupo denominado de “modernidade/colonialidade” não
restringe sua crítica às heranças econômico-políticas de nossa experiência colonial. Suas
estratégias se voltam para a dimensão cognitiva, questionando as matrizes epistêmicas de
produção do conhecimento que naturalizam um conjunto de teorias, categorias e
conceitos que nos impedem de compreender as especificidades de nossa sociedade. Além
da crítica epistemológica, esse conjunto de pensadores inicia uma crítica ontológica,
trazendo para a cena a necessidade de uma reflexão sobre nossa memória, nosso
imaginário, nossa subjetividade e nossas formas de existir cotidianas.

Esse grupo tem nas formulações iniciais de Aníbal Quijano (Peru), Enrique Dussel
(Argentina/México) e Walter Mignolo (Argentina/EUA) os aportes teóricos para uma
crítica à ideia de modernidade, uma leitura do sistema-mundo capitalista moderno-
colonial e uma interpretação da constituição das sociedades latino-americanas. Somaram-
se a esses percussores autores como Ramón Grosfoguel (Porto Rico/EUA), Santiago
Castro-Gómez (Colômbia), Nelson Maldonado-Torres (Porto Rico/EUA), Edgardo
Lander (Venezuela), Arturo Escobar (Colômbia), Catherine Walsh (EUA/Equador), entre
outros que vêm, individual ou coletivamente, contribuindo para a construção de um
pensamento descolonial.

Uma das críticas fundamentais do pensamento descolonial é que não existe um


conhecimento objetivo, neutro e universal; isso é um mito, uma retórica de poder. O
discurso epistemológico hegemônico da ciência e da filosofia modernas aponta para a
ideia de que o conhecimento científico é des-localizado, des-contextualizado e des-
incorporado e, portanto, trata-se de um conhecimento abstrato e universal, um
conhecimento transcendental que independe de tempo e espaço, um conhecimento que
paira sobre as contingências históricas como se estivesse flutuando e não tivesse nenhuma
ligação com os sujeitos-autores que o produzem. Assim, na produção filosófica e
científica moderna ocidental, o sujeito que fala, o sujeito que teoriza, em suma, o sujeito
que produz o conhecimento, as teorias e os conceitos, está sempre oculto, disfarçado,
escondido. Trata-se de um sujeito abstrato, um sujeito não localizado, não situado, um
sujeito sem corpo, sem cultura, sem classe, sem sexo e, portanto, cujo lócus de enunciação
é abstrato e não está contaminado de marcas terrenas. Logo, o lócus de enunciação tem a
pretensão de ser objetivo, neutro e universal.

Contudo, como nos mostram Lander (2005), Sousa Santos (2006), Grosfoguel (2010) e
Mignolo (2003), a produção do conhecimento não é abstrata, mas sim contextualizada,
localizada, incorporada; ela está situada em histórias locais e arraigada em culturas e
cosmovisões particulares; traz as marcas dos sujeitos-autores que a produzem, sujeitos
estes constituídos a partir de suas experiências e subjetividades configuradas socialme nte.
Desse modo, falamos sempre a partir de um determinado lugar, de algum lugar de
enunciação. Ou seja, existe uma profunda relação entre o que se fala, quem fala e de onde
se fala, ou, como argumenta Mignolo (2003), as localizações epistemológicas têm uma
estreita relação com o lócus geopolítico e biopolítico de enunciação a partir do qual o
pesquisador constrói o seu olhar e o seu discurso. E, até hoje, o perfil epistêmico
dominante na produção do conhecimento ocidental tem uma configuração muito
particular e específica: são homens brancos, heterossexuais, de classes privilegiadas e de
origem europeia falando em inglês, alemão, francês e italiano. Esse perfil está longe de
ser universal!
Mas, apesar de todo o conhecimento ser localizado, a geopolítica do conhecime nto
estabeleceu historicamente uma relação de centro e periferia em termos cognitivos,
atribuindo o caráter de universalidade a determinados conceitos e teorias. De maneira
direta e concreta, produzir conhecimento em certas línguas e a partir de certos lugares,
como, por exemplo, produzir em inglês, francês, alemão ou italiano - do centro da Europa
hegemônica - torna os pensadores oriundos desses lugares de enunciação pensadores
universais, mesmo que estes tenham construído suas reflexões arraigadas em experiênc ias
locais e específicas. Do outro lado, pensadores que formulam seus discursos, teorias,
conceitos em línguas não hegemônicas, como, por exemplo, espanhol, português e
mandarim, suaíli, yorubá, kicongo, kimbundu, falando de continentes e países periféricos,
como a Bolívia, a Colômbia, o Brasil, ou de alguns países africanos ou asiáticos, são
vistos sempre como pensadores locais, e que, portanto, não têm o caráter de
universalidade vinculado a sua fala, seu lócus de enunciação.

O que define essa geopolítica do conhecimento é o que Walter Mignolo (2003) denomina
de diferença colonial, ou seja, as marcas e heranças de um longo processo de experiênc ia
colonial que moldaram o sistema-mundo moderno-colonial, resultando numa relação
entre centro e periferia não só em termos econômicos e políticos, mas em termos cultura is
e cognitivos. Essa relação está expressa na construção dos modelos de universidade e dos
sistemas educacionais baseados, de uma forma geral, naqueles presentes nos países de
origem colonial. Essa geopolítica do conhecimento está concreta e metaforicame nte
representada em nossas bibliotecas, que permanecem como “bibliotecas coloniais”.

Lemos, interpretamos e teorizamos o nosso mundo, as nossas sociedades, nossas


experiências, nossos problemas, ancorados em categorias, conceitos, teorias, línguas do
norte global (autores que falam predominantemente em francês, inglês, alemão e italia no,
que nos falam a partir de Paris, Berlim, Londres, Roma, Nova York etc.). Olhamos o
mundo pelas lentes de autores que construíram suas reflexões, em muitos casos,
referenciadas em realidades completamente alheias à nossa. No entanto, ignoramos os
intelectuais que falam a partir dos lugares, experiências e línguas do sul. Não é raro
intelectuais brasileiros ignorarem solenemente a produção intelectual dos países vizinhos,
sem falar do que é produzido nos continentes africano e asiático. A questão não é a
limitação ou ignorância (uma condição de todos), e sim a naturalidade com que aceitamos
o fato de que o conhecimento legítimo, sofisticado e de vanguarda é atributo somente de
certos centros geopolíticos do norte global (são inegavelmente centros devido a todos os
recursos e poderes acumulados nesses lugares historicamente). Imaginar que Lima, no
Peru, ou La Paz, na Bolívia, ou ainda, a cidade do México, podem ser centros de produção
intelectual de vanguarda e que o conhecimento produzido nessas realidades tem
profundas afinidades com nossas sociedades parece um absurdo para um certo imaginá r io
acadêmico eurocêntrico dominante entre nós.

O que os autores do pensamento descolonial sugerem é a necessidade de deslocamento


dos lugares hegemônicos de enunciação (o norte global) para as periferias, para as
margens, para os lugares subalternos de enunciação (o sul global). Descolonizar o saber,
o pensamento e a ciência implica na construção de epistemologias outras que estejam
vinculadas às experiências, às dores e aos sofrimentos dos grupos, lugares que são vítimas
do processo colonial; implica na construção de “epistemologias do sul” (SOUSA
SANTOS, 2010) ou “epistemologias fronteiriças” (MIGNOLO, 2003) que possam ser
referências para a construção de outras bibliotecas, de “bibliotecas descoloniais”.

Isso não significa negar a importância cultural e intelectual europeia , mas sim, negar o
eurocentrismo. Essa postura não é uma postura relativista, uma visão essencialista ou
fundamentalista, mas sim um exercício de localização dos diferentes lugares de
enunciação em nossa atual geopolítica do conhecimento. É importante lembrar que essa
geopolítica do conhecimento se reproduz em outras escalas e sustenta um imaginá r io
moderno–colonial, a exemplo do que ocorre no Brasil, onde há claramente uma postura
de privilégio do Sudeste como região central de produção intelectual e artística deixando
marginalizadas as produções intelectuais e artísticas em regiões como o Nordeste e a
Amazônia.

IV

Incorporar as contribuições do pensamento descolonial ao pensamento crítico no campo


da Geografia brasileira e fazer uma geografia inspirada nas epistemologias do sul são
tarefas que ainda estão por fazer, apesar de esforços iniciais, dentre os quais o presente
livro, que pretende ser uma pequena contribuição para esta construção. Para que essa
incorporação seja fértil e capaz de ajudar na renovação do pensamento crítico, impõem-
se alguns desafios que se colocam como uma espécie de agenda para os(as) geógrafos(as)
que desejam construir um projeto de descolonização de nossa disciplina. A seguir ,
apresentaremos alguns desafios, sem a pretensão de esgotá-los e conscientes de que deve
haver muitos outros de que sequer temos clareza. Esperamos que ao esboçarmos essa
espécie de agenda possamos estimular outros(as) geógrafos(as) a se engajarem nesse
projeto coletivo de construção de uma geografia descolonial.

1) O primeiro desafio é construir um pensamento descolonial enraizado nas


especificidades e singularidades da formação socioespacial brasileira. Hoje, grande parte
das formulações teórico-conceituais do chamado pensamento descolonial está
referenciada na realidade de países andinos (Bolívia, Peru, Equador etc.), que têm muitas
afinidades e proximidades com a realidade brasileira, mas também importantes diferenças
de grau e de natureza. Tais realidades são muito distintas em termos de
geobiodiversidades e sociodiversidades, além de serem oriundas de distintos processos
de colonização. Esses diferentes projetos moderno-coloniais resultaram em formações
socioespaciais diversas, com construções de Estado-nação particulares, formações de
classes, processos de hierarquização racial e gênero que constituem padrões de poder,
formas de resistências e construção de diferentes sujeitos políticos e lutas descolonais
com muitas expressões e matizes. Diante desse quadro, é fundamental estabelecer um
diálogo entre a tradição do pensamento crítico brasileiro com essa importante matriz do
pensamento descolonial, bem como com outras linhagens do pensamento critico pós-
colonial e com os estudos subalternos vindos do Caribe, da Índia, da África etc. - sem
esquecer, contudo, o que temos de específico como realidade socioespacial. Temos que
estabelecer um amplo diálogo produzindo um verdadeiro “pensamento liminar”, uma
“epistemologia fronteiriça” (MIGNOLO, 2003) a partir dos diferentes lugares de
enunciação que constituem as “epistemologias do sul” (SOUSA SANTOS, 2010),
mantendo as nossas especificidades históricas e geográficas.

2) Um segundo grande desafio é a construção de um pensamento descolonial que


efetivamente realize um giro espacial/territorial. Hoje, há um diálogo marcado por
encontros e desencontros entre o pensamento descolonial e a produção da Geografia
Crítica. Nessa direção, muitos pesquisadores vêm incorporando os debates do
pensamento descolonial em suas pesquisas, buscando superar o legado eurocêntrico que
está pressente de maneira constitutiva em nosso campo disciplinar. Mas precisamos
ultrapassar a ideia de que esse debate tem a ver com certas temáticas, situações e sujeitos
específicos. O giro descolonial inaugura novas perspectivas epistemológicas, teóricas,
metodológicas com grandes implicações éticas e políticas no pensar e fazer geográfico
como um todo. Por outro lado, as categorias, os conceitos e as noções geográficas têm
sido incorporados pelos(as) autores(as) do pensamento descolonial de forma parcial e
precária, reduzindo a geograficidade a metáforas espaciais. Categorias e conceitos como
espaço, território, lugar, escala etc. são de grande potencial cognitivo e político para a
renovação do pensamento crítico e para a ampliação e enriquecimento dos estudos
descoloniais. Contudo, seu uso precisa ultrapassar o sentido metafórico e ganhar
consistência teórico-metodológica capaz de considerar a geograficidade como um
elemento essencial em termos ontológicos e epistemológicos para a compreensão de
nossas sociedades. É necessário realizarmos um verdadeiro giro espacial/territorial para
que se realize plenamente um giro descolonial. Para efetivar tal projeto, faz-se necessária
a incorporação do patrimônio intelectual acumulado pela geografia às reflexões do
pensamento descolonial. Do mesmo modo, precisamos extrair todas as consequências
epistêmicas, teóricas e metodológicas da incorporação do pensamento descolonial no
campo da Geografia. Essa é uma árdua tarefa coletiva que está por se fazer.

3) O terceiro desafio é ultrapassar o debate epistêmico e teórico abstrato e fecundar essas


ferramentas teóricas e epistemológicas que o pensamento descolonial vem produzindo
(como, por exemplo, os conceitos de “colonialidade do poder”, “colonialidade do saber”,
“colonialidade do ser”, “colonialidade da natureza”) com experiências, casos, situações
concretas que permitam superar os excessos de uma leitura teórica abstrata que essa
perspectiva tanto critica. Precisamos de estudos capazes de oferecer um diagnóstico de
nossa realidade, uma ontologia política descolonial do presente. Estudos que possam
ajudar a compreender quem somos nós e o que estamos fazendo de nós mesmos como
sociedade, construir genealogias de nossa experiência moderna-colonial concretamente.
As teorias, os conceitos e as interpretações do pensamento descolonial precisam dialogar
com a diversidade de experiências de lutas sociais concretas, bem como os conhecime ntos
e as epistemologias construídas nas lutas sociais concretas podem oferecer novos
horizontes de sentidos para a construção de um pensamento descolonial. Esse vínculo
entre teoria e prática é algo imprescindível para a construção de uma geografia
descolonial.

4) A grande maioria das teorias e dos conceitos construídos pelos pensadores descolonia is
operam com uma leitura macrossociológica e uma perspectiva histórica de longa duração,
tomando como centro de referência interpretativo a ideia de sistema-mundo moderno-
colonial (países metropolitanos x colônias, centro x periferia, norte x sul global). Essa
leitura macroescalar e estrutural é importante, contudo, essa escolha metodológica
dificulta a compreensão multiescalar em termos espaço-temporais de práticas e
experiências concretas, nas quais se pode identificar dispositivos da colonialidade do
poder, do saber, do ser e da natureza. É fundamental construirmos uma leitura
multiescalar que ao mesmo tempo seja capaz de compreender a colonialidade do poder,
do saber, do ser e da natureza dos pontos de vista macro e micropolítico, ou seja, tanto
em termos de elementos estruturais como através das práticas e experiências cotidianas.
É preciso construir uma leitura histórica e geográfica que envolva uma multiplicidade de
temporalidades e ritmos, capaz de abarcar a complexidade dos processos concretos.

5) O quinto desafio é pensar na tensão existente entre como construir um pensamento


descolonial diante de velhas formas de fazer pesquisa e produzir conhecime nto.
Descolonizar impõe o desafio da invenção, da criação de novas metodologias de
investigação, bem como o desafio de trabalhar com novas formas de linguagens. Não
bastam conceitos e teorias descoloniais, precisamos construir metodologias outras que
permitam o diálogo entre distintos saberes e diferentes matrizes de racionalidades.
Necessitamos de outras epistemes e práticas de produção do conhecimento capazes de
efetivar um processo de descolonização da ciência e do pensamento. Não é possível
produzir conhecimento descolonial com métodos coloniais. As linguagens acadêmicas e
as tradicionais formas de comunicar as pesquisas não são suficientes para traduzir as
diferentes experiências. Precisamos encontrar metodologias, linguagens e formas de
expressão que possam traduzir as experiências e os saberes de grupos subalternizados em
um registro descolonial.

6) O sexto desafio é a construção de uma estética descolonial. O pensamento descolonia l


tensiona o nosso legado epistêmico e o conjunto de teorias e conceitos com que operamos
cotidianamente para interpretar o mundo. Contudo, um giro descolonial não pode se
reduzir ao pensamento conceitual, à dimensão racional e cognitiva. O giro descolonia l
com implicações ontológicas necessita não só de uma nova epistemologia, de uma
política e uma nova ética, necessita também de novas referências estéticas/poéticas. É
preciso ver o potencial descolonizador que nos chega através da dimensão do sensível, da
arte, e não simplesmente pela via da racionalidade. Os potenciais imagético, metafórico,
narrativo e sonoro são essenciais para construirmos o exercício cotidiano de
descolonização do poder, do saber, do ser e da natureza. 7) A colonialidade do poder, do
saber, do ser e da natureza está presente em nosso habitus – um conjunto de aprendizados
que, na maioria das vezes, são incorporados de forma inconsciente em nossas formas de
perceber, representar e agir, através das experiências e práticas cotidianas que vivemos
em nossos diversos espaços de socialização, como a família, a igreja, a rua etc.
(BOURDIEU, 1989). Mas, sem dúvida, é na escola e na universidade que somos
sistematicamente submetidos a um processo de colonização dos nossos sentidos de vida.
Nessas instituições somos sistematicamente submetidos à produção de um habitus
colonial que produz uma subjetivação eurocêntrica (CASTRO-GÓMEZ, 2007). Não é
possível pensar um esforço de descolonização que não passe pela construção de novas
práticas de descolonização epistêmica, mas também de descolonização pedagógica, que
estejam expressas nos currículos, nas metodologias de ensino, nas avaliações. A
universidade e a escola precisam se descolonizar e nós professores precisamos pensar em
pedagogias outras, em pedagogias descolonais.

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