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CÂNONE AZ 2014-2016

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ANO-ZERO.COM

INTRODUÇÃO

Nos dois primeiros anos, o projeto Ano Zero passou por uma etapa de defi-
nição de identidade, e de depuração de seus princípios, valores e aspirações.
O que você lerá a seguir é o resultado desse longo processo. Mas não se
tratam de textos que apontam para o passado, para o que foi o AZ. Ao contrá-
rio, são textos que apresentam ideias e visões que apontam para os passos
futuros do projeto.
Os antigos alquimistas tinham um princípio de operação que resumiam
nas palavras solve et coagula (separa e une). No século XX, observamos a
humanidade evoluir graças a abordagem analítica da ciência e a separação da
abordagem do mundo em especialidades. Foi o período do solve. É chegada a
hora do coagula: da união e síntese de tudo o que aprendemos de útil e valioso
no século passado, para assim construirmos o amanhã neste momento.
Cânone, segundo o Priberam, significa, entre outras coisas, “conjunto de
autores ou de obras que são considerados exemplares em determinada altura
ou local”. Assim, escolhemos chamar de “Cânone AZ” o conjunto de publi-
cações que consideramos exemplares da visão que inspira o Ano Zero, que
servem de referência para as linhas mestras de nosso trabalho.
Esse primeiro ebook pode ser apenas o primeiro de uma série, na verdade
um tipo de “amostra”: pensamos em criar outros ebooks com a tradução de
todos os textos de autores como Tim Urban e Mark Manson, entre outros no-
mes constantemente presentes no site do Ano Zero e compor com todas essas
obras o “Cânone AZ completo”, disponibilizando-os a nossos leitores ao longo
de 2017. O que você acha da ideia? Se gostar ou tiver outras sugestões, entre
em contato conosco!
Obrigado por nos acompanhar ao longo desses anos e aguarde outras
novidades para 2017.
Boa leitura.

O editor.

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ÍNDICE
Como vencer a procrastinação, por Tim Urban: pg. 04

Você precisa parar de se preocupar com o que os outros pensam, por Tim Urban: pg. 24

Sete doenças que estão matando a humanidade, por Victor Lisboa: pg. 43

Sete sinais de saúde em uma sociedade enferma, por Victor Lisboa: pg. 52

Acorde: tem um desconhecido mandano na sua vida, por Victor Lisboa: pg. 62

A pergunta mais importante da sua vida, por Mark Manson: pg. 69

Sete perguntas para encontrar o propósito da sua vida, por Mark Manson: pg. 72

Cinco coisas que deveríamos aprender na escola, por Mark Manson: pg. 78

Dez razões pelas quais você sempre fracassa, por Mark Manson: pg. 83

A virtude estoica da moderação e domínio de si, por Felipe Novaes: pg. 90

Os bichos de Orwell e nosso status na fazenda humana, por Felipe Novaes: pg. 95

Os valentões da justiça social, por Aristotelis Orginos: pg. 100

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como vencer a
PROCRASTINAÇÃO
tim urban

PARTE 1:
POR QUE PROCRASTINADORES PROCRASTINAM?*
Pro-cras-ti-na-ção (substantivo do latim procrasti-
na-tio, -onis): ato de postergar ou adiar algo.
Ex.: Sua primeira dica é evitar a procrastinação.

Quem imaginaria que, depois de décadas de luta contra a procrastinação,


o dicioná-rio, entre todas as outras coisas, é quem me daria a solução: “evitar
a procrastinação”. Isso é tão elegante em sua simplicidade.
E já que estamos nessa, vamos também garantir que os obesos evitem
excessos, que os deprimidos evitem a apatia, e alguém por favor informe às
baleias encalhadas que elas deveriam evitar ficar fora do mar.
Não, evitar a procrastinação é um bom conselho só para os falsos procras-
tinadores. Para aqueles que dizem “eu me distraio totalmente no Facebook
algumas vezes durante o trabalho, como sou procrastinador!”. As mesmas
pessoas que diriam a um verdadeiro procrastinador algo como “ah, é só não
procrastinar que você vai ficar bem!”.
O que nem o dicionário nem os falsos procrastinadores entendem é que,
para um verdadeiro procrastinador, a procrastinação não é opcional: é algo
com o qual não se sabe como lidar.
Na faculdade, a liberdade desenfreada e repentina foi um desastre para
mim – eu não fiz nada, nunca, por qualquer motivo.
A única exceção é que eu tinha que entregar trabalhos de tempos em
tempos. Eu os fazia na noite anterior, até que percebi que poderia fazê-los
de madrugada, e assim foi até que me dei conta de que poderia começar a
fazê-los no início da manhã do dia em que deviam ser entregues. Esse com-
portamento atingiu níveis caricatos quando fui inca-paz de começar a escre-
ver meu trabalho de conclusão de 90 páginas até 72 horas antes do dia em
que devia ser entregue, uma experiência que terminou comigo no consultório
médico do campus aprendendo que a falta de açúcar no sangue era a razão
de minhas mãos ficarem dormentes e meus punhos permanecerem cerrados
contra a minha vonta-de (concluí o trabalho - e não, ele não ficou bom).
Mesmo escrever este texto levou muito mais tempo do que deveria, pois
passei um bocado de horas fazendo coisas como reparar numa imagem que
estava em meu desktop por ter utilizado em um texto anterior, abri-la, olhar
o gorila que havia nela durante algum tempo e ficar pensando sobre quão
facilmente me poderia vencer numa luta, depois me perguntando se ele po-
deria vencer um tigre numa luta, e depois googleando a respeito disso e lendo
sobre assunto por algum tempo (conclusão: o tigre venceria).

*Tradução de Why Procrastinators Procrastinate, autorizada pelo autor.

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Pois é, tenho problemas.


Para entender por que os procrastinadores como eu procrastinam tanto,
vamos começar entendendo o cérebro de um não-procrastinador:

Bastante normal, certo? Agora, vamos olhar para o cérebro de um pro-


crastinador:

Percebeu algo diferente?


Parece que, no cérebro do procrastinador, o seu Tomador de Decisões
Racionais es-tá convivendo com alguém. É um tipo animal de estimação,
chamado “Macaco da Gratifi-cação Instantânea”.
Isso seria legal, até mesmo “fofo”, se o Tomador de Decisões Racionais
soubesse al-guma coisa sobre como lidar com um macaco. Mas, infelizmen-
te, essa habilidade não fez parte de sua formação e ele fica completamente
indefeso quando o macaco torna impos-sível o cumprimento de suas tarefas.

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O fato é que o Macaco da Gratifi-


cação Instantânea é a última criatura
que deve ser encarregada das deci-
sões, pois ele só pensa no presen-
te, ignorando as lições do passa-do
e desprezando completamente o fu-
turo, e só se preocupa em maximizar
a tranquili-dade e o prazer deste ins-
tante. Ele não compreende o Toma-
dor de Decisões Racionais melhor do
que o Tomador de Decisões Racionais
o compreende. Porque temos de con-
tinuar a correr – ele se pergunta – se
podemos parar (o que nos faria nos
sentir me-lhor)? Porque temos que
treinar com esse instrumento musi-
cal se isso não é divertido? Porque
nós usamos um computador só para
trabalhar quando a internet está bem
ali, esperando para ser usada? Ele
pensa que os humanos são loucos.
No mundo do macaco, ele tem
tudo planejado – se você comer
quando estiver com fome, dormir
quando estiver cansado e não fizer
nada de difícil, você é um macaco
muito bem sucedido. O problema
para o procrastinador é que ele vive
num mundo de humanos, e isso faz
do Macaco da Gratificação Instantâ-
nea um navegador altamente des-
qualificado. Enquanto isso, o Toma-
dor de Decisões Racionais, treinado
para tomar decisões racionais e não
para lidar com disputa por controle,
não sabe como se engajar numa luta
de verdade – ele apenas se sente
cada vez mais mal sobre si mesmo a
medida em que falha e a medida em
que é repreendido pelo sofrido pro-
crastinador em cuja cabeça vive.
É uma bagunça. E com o maca-
co no comando, o procrastinador se
vê passando um bocado de tempo
num lugar chamado Playground das
Trevas. Muitos de vocês estão prova-
velmente lendo este artigo enquanto
passeiam no Playground das Trevas.

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O Playground das Trevas é um local que todo procrastinador conhece


bem. É o lugar em que acontecem atividades de lazer quando as atividades
de lazer não deveriam acontecer. A diversão que você tem no Playground das
Trevas não é realmente divertida pois é completamente imerecida e a atmos-
fera é repleta de culpa, ansie-dade, raiva de si mesmo e pavor.

Às vezes o Tomador de Decisões Racionais bate o pé e se recusa a perder


tempo fa-zendo atividades habituais de lazer, e uma vez que o Macaco da
Gratificação Instantânea certamente não vai deixar você trabalhar, você se
encontra num purgatório bizarro de atividades estranhas onde todo mundo
perde. Eu passei duas horas no Playground das Trevas exatamente antes
de fazer o desenho do Playground das Trevas, porque eu rece-ava ter que
desenhar o poste com placas, pois eu sabia que seria difícil e levaria uma
eternidade.

E o pobre Tomador de Decisões Racionais apenas suspira, tentando des-


cobrir como deixou o ser humano que supostamente devia estar no coman-
do acabar ali novamente.

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Nessa situação, como é que o procrastinador consegue eventualmente


conclu-ir alguma tarefa?
Ocorre que há uma coisa que faz o Macaco da Gratificação Instantânea se
cagar de medo:

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O Monstro do Pânico está ador-


mecido a maior parte do tempo, mas
ele repentinamente acorda quando
um prazo fatal está muito próximo ou
quando há risco de cons-trangimento
público, de um desastre na carreira
ou de outra consequência assustado-
ra. O Macaco da Gratificação Instan-
tânea, normalmente inabalável, tem
pavor do Mons-tro do Pânico. De que
outra forma você poderia explicar que
a mesma pessoa que não consegue
escrever uma frase introdutória num
artigo durante o período de duas se-
manas de repente é capaz de ficar
acordado a noite toda, lutando contra
a exaustão, e escrever oito páginas?
Porque outro motivo uma pessoa ex-
traordinariamente preguiçosa inicia-
ria uma rotina rigorosa de exercícios
físicos se não fosse por um ataque do
Monstro do Pânico, apavorado com
a possibilidade de tornar-se pouco
atraente?
E esses são os procrastinadores
sortudos, pois há aqueles que nem
sequer respondem ao Monstro do Pâ-
nico, e nos momentos mais desespe-
rados acabam correndo para cima a
árvore junto com o macaco, entrando
em um estado de desligamen-to au-
todestrutivo.
Que turma nós somos.
É claro, isso não é jeito de viver.
Mesmo para o procrastinador que não
consegue, eventualmente, fazer as
coisas e continuar a ser um membro
competente da sociedade, algo preci-
sa mudar. E aqui estão as principais
razões para isso:
1) É desagradável. Tempo precio-
so demais é desperdiçado agonizando
no Playground das Trevas, tempo que
poderia ter sido gasto usufruindo de
um lazer satisfatório e bem merecido
se as coisas tivessem sido feitas em
um cronograma mais lógico. E pânico
não é divertido para ninguém.

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2) O procrastinador, em última instância, não se valoriza. Ele acaba rea-


lizando me-nos e falha em alcançar seu potencial, o que o corrói ao longo do
tempo e o enche de arrependimento e auto-recriminação.
3) Os Preciso-Fazer podem acontecer, mas não os Quero-Fazer. Mesmo
se o pro-crastinador está no tipo de profissão em que o Monstro do Pânico
está regularmente pre-sente e ele consegue cumprir suas metas no trabalho,
as outras coisas da vida que são importantes para ele – entrar em forma,
cozinhar refeições mais elaboradas, aprender a tocar violão, leituras ou mes-
mo fazer uma ousada mudança em sua carreira – jamais acontecem pois o
Monstro do Pânico de regra não se mete nessas coisas. Realizações como
essa expandem nossa experiência, tornam nossa vida mais rica e nos trazem
um bocado de felicidade – e para a maioria dos procrastinadores elas são
guardadas na gaveta.
Então como um procrastinador pode melhorar e se tornar alguém mais
feliz?

PARTE 2: COMO VENCER A PROCRASTINAÇÃO?


Pro-cras-ti-na-ção (substantivo do latim procras-
tina-tio, -onis): O ato de arrui-nar sua própria vida
sem nenhuma razão aparente
Deixe-me começar esta segunda parte dizendo que já me cansei de fazer
ironias so-bre lutar contra a procrastinação incapacitante enquanto escrevia
textos sobre procrasti-nação e como superá-la. Passei as duas últimas se-
manas sendo esse cara, que atirou em seu próprio pé enquanto falava sobre
cuidados ao lidar com armas, e pretendo voltar a ficar livre de ironias sobre
procrastinação neste texto.
Algumas notas antes de começarmos:
1) Não sou profissional em nada disso, só um procrastinador durante a
vida toda que pensa sobre esse tema o tempo todo. Eu ainda estou totalmen-
te em guerra com meus próprios hábitos, mas eu fiz algum progresso nas
últimas semanas, e vou expres-sar meus pensamentos sobre o que deu certo
para mim.
2) Esta segunda parte foi publicada atrasado, não só porque levou dois
mil anos pa-ra escrevê-lo, mas também porque decidi que a noite de segun-
da era um momento emergencial para abrir o Google Earth, flutuar poucas
centenas sobre o ponto mais ao sul da Índia e percorrer todo o caminho pra
cima na Índia até o ponto mais ao norte, para “ter uma melhor percepção da
Índia”. Eu tenho problemas.
Certo, então na primeira parte nós mergulhamos na batalha diária que
ocorre dentro do procrastinador para examinar a psicologia subjacente en-
quanto ela acontece. Agora, como tentaremos saber se podemos fazer algo
em relação a isso, precisamos cavar ainda mais fundo. Vamos começar por
tentar destrinchar a psicologia do procrastinador e ver qual realmente é a
essência da coisa toda.
Nós sabemos sobre o Macaco da Gratificação Instantânea (a parte do seu
cérebro que faz você procrastinar) e seu domínio sobre o Tomador de Deci-
sões Racionais, mas o que está mesmo acontecendo ali?

*Tradução de How to Beat Procrastination, autorizada pelo autor.

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O procrastinador tem o mal hábito, fronteiriço ao vício, de deixar o ma-


caco vencer. Ele ainda pretende controlar o macaco, mas ele coloca nisso um
esforço malogrado, usando os mesmos métodos que comprovadamente não
funcionaram com ele ao longo de anos, e lá no fundo ele sabe que o macaco
vai vencer. Ele jura mudar, mas o padrão apenas permanece o mesmo. Por-
que uma pessoa que é eficiente em outros aspectos da sua vida coloca nisso
um esforço inútil e insuficiente repetidas vezes?
A resposta é que ele tem um auto-confiança incrivelmente baixa quando
se trata des-sa parte de sua vida, permitindo a si mesmo ser escravizado por
uma profecia auto-realizável e autodestrutiva. Vamos chamar essa profecia
auto-realizável de seu Enredo. O Enredo do procrastinador é mais ou menos
assim:
Para os afazeres da minha vida, acabarei esperando até o último minu-
to, entrando em pânico e então nem farei o melhor trabalho que puder nem
cruzarei os braços sem fazer coisa nenhuma. Para os afazeres da minha vida,
vamos ser honestos, ou começarei alguns e abandonarei no meio e, mais
provavelmente, muitos nem chegarei perto de co-meçar.
O problema do procrastinador é profundo, e para ele mudar é necessário
algo mais do que “ser mais disciplinado” ou “mudar seus maus hábitos” – a
raiz do problema está vinculada a seu Enredo, e seu Enredo é o que ele pre-
cisa mudar.
Antes de falarmos sobre como mudar o Enredo, vamos examinar, concre-
tamente, o que o procrastinador quer mesmo mudar. Com o que os hábitos
corretos se parecem, e onde exatamente o procrastinador se dá mal?
Há dois componentes em ser hábil em realizar as coisas de uma maneira
efetiva e saudável: planejar e fazer. Vamos começar com a mais fácil:

PLANEJAR
Procrastinadores adoram planejar, algo simples pois não envolve fazer, e
fazer é a kriptonita do procrastinador.
Mas quando um procrastinador planeja, ele gosta de fazer isso de uma
forma vaga, que não considera os detalhes ou a realidade muito de perto, e
seu planejamento deixa essas coisas perfeitamente configuradas para que na
verdade não realize nada. Uma sessão de planejamento do procrastinador
deixa-o no pesadelo de um realizador: uma grande lista de afazeres e com-
promissos intimidadores e obscuros.

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Uma grande lista de coisas vagas e intimidadoras faz o Macaco da Grati-


ficação Instantânea rir. Quando você faz uma lista como essa, o macaco diz
“ah, perfeito, isso é fácil!”. Mesmo que sua ingênua mente consciente preten-
da realizar os itens nessa lista de uma forma eficiente, o macaco sabe que,
em seu inconsciente, você não tem a intenção de fazer isso.
Planejamento efetivo, por outro lado, prepara você para o sucesso. Seu
propósito é Sua finalidade é fazer exatamente o oposto de tudo graças a essa
frase:

Planejamento efetivo pega uma grande lista e seleciona o item princi-


pal.

Uma grande lista é talvez uma fase inicial do planejamento, mas planeja-
mento precisa terminar com uma priorização rigorosa e um item que emerge
como o vencedor – o item que você colocará como o prioritário. E o item que
vence deve ser aquele que tem mais significado para você – o item mais im-
portante para a sua felicidade. Se há itens urgentes envolvidos, esses tem
de vir primeiro e precisam ser cumpridos tão rápido quanto possível a fim de
abrir caminho para os itens importantes (procrastinadores amam usar itens
urgentes mas sem importância como desculpa para adiar eternamente os
importantes).

Planejamento efetivo desobscurece um item obscuro.

Todos nós sabemos o que é um item obscuro. Um item obscuro é vago e


obscuro, e você não tem muita certeza por onde começar, como você o rea-
lizará ou em que lugar encontra respostas para suas dúvidas a respeito dele.
Digamos que seu sonho é fazer seu próprio aplicativo, e você sabe que se
você criar um aplicativo de sucesso você pode abandonar seu emprego e se
tornar um desenvolvedor em tempo integral. Você também pensa que a habi-
lidade de programar é a alfabetização do século 21, e de qualquer modo você
não tem dinheiro para ganhar terceirizando o desenvolvimento do aplicativo,
então você decide marcar “Aprender a programar” como o item vencedor da
sua lista – a prioridade número um. Excitante, certo?
Bem, não, porque “Aprender a programar” é um item intensamente obs-
curo – e cada vez que você decide que é tempo de começar, você coinciden-
temente também decide que sua inbox precisa ser limpa e que o chão de sua
cozinha precisa ser encerado, JÁ. Esse item jamais acabará se realizando.
Para desobscurecer esse item, você precisa ler, pesquisar e fazer pergun-
tas para descobrir exatamente como alguém aprende a programar, os meios
necessários e específicos para cada passo ao longo do caminho, e quanto
tempo cada um vai durar. Desobscurecer o item de uma lista faz com que ele
passe disso:

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E se torne isso:

Planejamento converte um item intimidador numa série de pequenas,


claras e administráveis tarefas.

TA obscuridade de um item se combina com sua natureza intimidadora e


forma uma poção esteróide para o Macaco da Gratificação Instantânea. E só
porque você desobscureceu um item isso não significa que ele já não é horri-
velmente grande e intimidador. A chave para eliminar a natureza intimidadora
de um item é assimilar este fato: uma conquista gloriosa e notável é só o que
uma longa série de tarefas nada gloriosas e nada notáveis se parece quando
vista a grande distância.
Ninguém “constrói uma casa”. As pessoas colocam um tijolo e depois ou-
tro e depois outro e depois outro e no final o resultado é uma casa. Procras-
tinadores são grandes visionários – eles amam fantasiar sobre a bela mansão
que eles um dia irão construir – mas o que eles precisam ser é ambiciosos
pedreiros, que metodicamente colocam um tijolo após outro, dia após dia,
sem desistir, até a casa estar construída.
Praticamente todo grande empreendimento pode ser reduzido a um fun-
damental conjunto de pequenos progressos – seus tijolos. Uma visita de 45
minutos à academia é o tijolo para se ficar em grande forma. Uma prática de
30 minutos é o tijolo para se tornar um grande guitarrista.

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O dia típico na semana de um pretenso escritor e na semana de um


verdadeiro escritor são quase idênticos. O verdadeiro escritor escreve um
punhado de páginas, colocando um tijolo, e o pretenso escritor não escreve
nada. 98% do resto do dias deles é idêntico. Mas um ano depois, o verda-
deiro escritor completou o primeiro esboço de um livro e o pretenso escritor
tem… coisa nenhuma.
Tudo tem a ver com tijolos.
E a boa notícia é que colocar
um tijolo não é intimidador. Mas
tijolos exigem agendamento.
Então o último passo no plane-
jamento é fazer um Cronograma
de Tijolos, colocando tijolos em
nichos no calendário. Esses ni-
chos não são negociáveis nem
canceláveis – afinal, trata-se de
sua maior prioridade e da coisa
mais importante para você, não
é? A data mais imporante é a
primeira. Você não pode come-
çar a aprender a programar “em
novembro”. Mas você pode co-
meçar a aprender a programar
em 21 de novembro, das 18h às
19h.
Agora que você planejou efetivamente, basta seguir o cronograma e você
se tornará um programador. A única coisa que falta é...

FAZER

Não é que os procrastinadores não gostam do conceito de fazer. Eles


olham para os tijolos no seu calendário e pensam, “Demais, isso vai ser di-
vertido!”. E isso ocorre porque quando eles imaginam o momento no futuro
em que sentarão e começarão a colocar um tijolo, eles supõem que as coisas
ocorrerão sem a presença do Macado da Gratificação Instantânea. A visão
que os procrastinadores têm do cenário futuro parece nunca incluir o macaco.
Mas quando chega o momento de começar a colocar o tijolo no nicho
programado, o procrastinador faz algo sensacional – ele deixa o macaco do-
minar a situação e arruinar tudo.
E já que demonstramos acima que toda realização se resume à habilida-
de de colocar um tijolo num nicho que está no seu cronograma, parece que
isolamos aqui o cerne do conflito. Vamos examinar o desafio específico de
colocar um só tijolo:

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Esse diagrama representa o desafio presente sempre que você se propõe


qualquer tarefa, seja preparar um PowerPoint para o trabalho, correr para
ficar em forma, trabalhar num roteiro ou qualquer coisa que você faça na sua
vida. A Entrada Crítica é onde você vai para oficialmente começar a trabalhar
na tarefa, a Floresta Negra é o processo de realmente fazer a tarefa, que uma
vez concluída lhe conduz como recompensa ao Playground Feliz – um lugar
em que você sente satisfação e onde o lazer é agradável e recompensador
pois você conseguiu concluir algo. Eventualmente você se vê super-engajado
naquilo que você está trabalhando e entra num estado de Fluxo, no qual você
está tão alegremente imerso na tarefa que você perde a noção do tempo.
Esses caminhos são mais ou menos assim:

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Parece bem simples, certo?


Bom, para o azar dos procrastinadores, eles tendem a não chegar no
Playground Feliz e no Fluxo.
Por exemplo, abaixo está um procrastinador que nunca chega a começar
a tarefa que ele deveria cumprir, pois ele nunca passa pela Entrada Crítica.
Ao invés disso, ele desperdiça horas chafurdando no Playground das Trevas,
odiando a si mesmo:

A seguir temos uma procrastinadora que começa a tarefa, mas ela não
consegue manter seu foco, então ela fica fazendo longos intervalos para na-
vegar na internet e preparar algo para comer. Ela não termina concluindo a
tarefa:

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A seguir temos um procrastinador que não conseguia começar a tarefa,


mesmo com um prazo fatal se aproximando, e ele passa horas no Playground
das Trevas, sabendo que o iminente prazo fatal está se aproximando e ele só
está fazendo sua vida ficar mais difícil ao sequer começar. Eventualmente, o
prazo fatal fica tão próximo que o Monstro do Pânico repentinamente entra
urrando na sala, apavorando-o e fazendo com que ele se atire na tarefa para
cumprir o prazo.

Após terminar, ele se sente decente pois realizou algo, mas ele não está
completamente satisfeito pois ele sabe que fez um trabalho de menor quali-
dade pois tinha muita pressa, e ele sente que desperdiçou a maior parte do
seu dia por razão nenhuma. Isso o faz chegar no Parque dos Sentimentos
Confusos.
Então se você é um procrastinador, vamos observar o que você precisa
para se manter no caminho certo, aquele que lhe deixará muito mais feliz.
A primeira coisa que você precisa fazer é passar pela Entrada Crítica. Isso
significa parar o que quer que você esteja fazendo quando chega a hora de
iniciar uma tarefa, deixando todas as distrações de lado e começando. Parece
simples, mas é a parte mais difícil. É aqui que o Macaco da Gratificação Ins-
tantânea coloca sua mais feroz resistência:

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O macaco odeia intensamente parar algo divertido e começar algo difícil,


e é neste momento que você precisa ser mais forte. Se você conseguir come-
çar e coagir o macaco a entrar na Floresta Negra, você já dobrou um pouco
de sua vontade.
Claro, ele não vai desistir assim tão fácil.
A Floresta Negra é onde você permanece enquanto está trabalhando. Não
é um lugar divertido de se estar, e o Macaco da Gratificação Instantânea não
quer ter qualquer relação com esse local. Para tornar as coisas mais difíceis,
a Floresta Negra está cercada pelo Playground das Trevas, um dos lugares
favoritos do macaco, e já que ele pode ver o quão perto fica, tenta com todas
as suas forças deixar a Floresta Negra.
Haverá também ocasiões em que você colide com uma árvore – talvez a
caminhada para entrar em forma coloca você diante de uma ladeira que pre-
cisa subir, talvez você precise usar uma fórmula do Excel que não conhece,
talvez a música que você está compondo simplesmente não está ficando do
jeito que você imaginava – e esse é o momento em que o macaco fará sua
tentativa de fuga mais corajosa.

Não faz sentido trocar a Floresta Negra pelo Playground das Trevas – am-
bos são sombrios. Ficar em ambos é desagradável, mas a grande diferença é
que a Floresta Negra leva à felicidade e o Playgroud das Trevas leva apenas à
mais miséria. Mas o Macaco da Gratificação Instantânea não é lógico, e para
ele o Playground das trevas parece muito mais divertido.
A boa notícia é que se você puder enfrentar um pouco da Floresta Negra,
algo curioso acontece. Fazer progresso em uma tarefa produz sentimentos
positivos de realização e eleva sua auto-estima. O macaco obtém sua força
da baixo auto-estima, e quando você sente um sopro de satisfação consigo
próprio, o macaco encontra uma Banana de Elevada Auto-estima no caminho.
Isso não elimina sua resistência inteiramente, mas isso o distrai por um boca-
do de tempo, e você perceberá que a necessidade de procrastinar diminuiu.

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Então, se você prossegue, algo mágico acontece. Quando você chegar a


dois terços ou três quartos de uma tarefa, especialmente se está indo bem,
você começa a se sentir muito satisfeito com as coisas e, repentinamente, o
fim fica visível. Esse é o Ponto Decisivo.

O Ponto Decisivo é importante porque não é apenas você que sente o


cheiro do Playground Feliz adiante – o macaco também pode senti-lo. Ele não
se importa se a gratificação vem graças a você ou a sua custa, ele apenas
ama coisas que são fáceis e divertidas. Uma vez que você atingiu o Ponto
Decisivo, o macaco se torna mais interessado em chegar no Playground Feliz
do que no Playground das Trevas. Quando isso ocorre, você perde todo seu
impulso de procrastinar e agora você e o macaco estão correndo em direção
ao ponto de chegada.

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Antes que perceba, você terminou e está no Playground Feliz. Agora, pela
primeira vez em muito tempo, você e o macaco são um time. Ambos querem
diversão, e ela é fantástica porque é merecida. Quando você e o macaco for-
mam um time, você quase sempre está feliz.

A outra coisa que pode acontecer quando você passar pelo Ponto Decisi-
vo, dependendo do tipo de tarefa e do quão bem o trabalho está indo, é que
você pode começar a se sentir fantástico em relação ao que está fazendo,
tão fantástico que continuar a trabalhar parece muito mais divertido do que
interromper para curtir atividades de lazer. Você se torna obsecado com a ta-
refa e basicamente perde interesse em tudo mais, incluindo em comida e no
passar do tempo – isso é chamado Fluxo. Fluxo não é apenas um sentimento
jubilante, é também onde geralmente você realiza grandes coisas.
O macaco é tão viciado em júbilo quanto você, e novamente ambos for-
mam um time.

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Esforçar-se até chegar no Ponto Decisivo é difícil, mas o que faz a pro-
crastinação tão mais difícil é que o Macaco da Gratificação Instantânea tem
uma terrível memória de curto prazo – mesmo se você foi bem sucedido de
um jeito incrível na segunda-feira, quando você começa a tarefa da terça o
macaco já esqueceu de tudo e novamente resistirá a entrar na Floresta Negra
ou nela permanecer.
E é por isso que persistência é um componente crítico do sucesso. Colocar
cada tijolo exige uma batalha interior – e no final, sua habilidade de vencer
cada batalha específica e colocar tijolo após tijolo, dia após dia, é fundamen-
tal na luta de um procrastinador para assumir o controle de seu mundo.
Então isso é o que precisa acontecer. Mas se a procrastinação pudesse ser
resolvida lendo um texto de um site, não seria um problema tão grande na
vida de tantas pessoas. Só há uma forma de realmente vencer a procrasti-
nação:

você precisa provar a si mesmo que pode fazer isso

Você precisa mostrar para si mesmo que pode fazer isso, e não apenas di-
zer para si mesmo. As coisas mudarão quando você mostrar a si mesmo que
elas podem mudar. Até lá, você não acreditará nisso, e nada mudará. Pense
em você como um artilheiro de futebol que há tempos não faz um gol. Para
jogadores de futebol, tem tudo a ver com confiança, e um artilheiro que há
tempos não faz gol pode dizer a si mesmo mil vezes “sou um grande artilhei-
ro, vou fazer o próximo gol”, mas não é antes de ele realmente fazer um gol
que sua confiança voltará e ele retomará sua habilidade de volta.
Então como começamos a golear?

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ANO-ZERO.COM

a) Tente internalizar o fato de que tudo o que você faz é uma escolha.

Comece pensando sobre os termos que usamos neste artigo, e se eles


são razoáveis para você, escreva-os. Parte da razão pela qual eu dei nomes a
muitos desses sentimentos e fenômenos (o Macaco da Gratificação Instantâ-
nea, o Tomador de Decisões Racionais, o Monstro do Pânico, o Playground das
Trevas, Obscurecência, Tijolos, a Entrada Crítica, a Floresta Negra, o Ponto
Decisivo, o Playground Feliz, Fluxo, seu Roteiro) é que nomes ajudam a cla-
rear a realidade das escolhas que você faz. Isso ajuda a expor más escolhas
e ressaltar o momento em que é mais crítico fazer boas escolhas.

b) Invente métodos para ajudar a derrotar o macaco.

Alguns métodos possíveis:


• Peça ajuda externa, explicando a um ou mais amigos ou familiares o
objetivo que você está tentando alcançar, e peça a eles que mantenham você
compromissado. Se for difícil por qualquer razão, envie um e-mail para mim
– sou um estranho (contact@waitbutwhy.com) – e simplesmente digitar seu
objetivo e mandar para uma pessoa real tornará a meta mais real (alguns
especialistas argumentam que dizer a pessoas de sua vida sobre uma meta
pode ser contraprodutivo, então isso depende da situação particular).
• Crie a oportunidade para um Monstro do Pânico, se já não existe algu-
ma – se você está tentando gravar um álbum, agende um show para alguns
meses adiante, reserve um local e envie um convite para um grupo de pes-
soas.
• Se você realmente quer começar um negócio, deixar seu emprego tor-
nará o Monstro do Pânico o novo morador do seu lar.
• Se você está tentando escrever de forma consistente em um blog,
coloque “publico um novo post todas as Quintas” no topo de sua página prin-
cipal.
• Deixe recados para você mesmo, lembrando que deve fazer boas esco-
lhas.
• Coloque um alarme para lembrar do início de uma tarefa, ou para re-
cordar o que está em jogo.
• Minimize as distrações de todas as formas possíveis. Se a TV é um
sério problema, venda sua TV. Se a internet é um sério problema, arrume
um segundo computador cujo Wifi está desabilitado, e coloque seu celular no
Modo Avião durante as sessões de trabalho.
• Crie um caminho sem volta para você, como fazer um depósito não
restituível para aulas ou mensalidade em um curso.
E se os métodos que você estabeleceu não estiverem funcionando, mu-
de-os. Coloque um lembrete mensal que diz “A coisas melhoraram? Se não
melhoraram, mude seus métodos”.

c) Foque no progresso lento e consistente.

Da mesma forma que grandiosas realizações ocorrem pequeno tijolo por


pequeno tijolo, um hábito profundamente arraigado como a procrastinação
não muda de uma hora para outra, mas sim com uma modesta melhora por
vez.

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Lembre-se, tudo isso tem a ver com mostrar a si mesmo o que você pode
realizar, então o segredo não é ser perfeito, mas simplesmente melhorar. O
autor que escreve uma página por dia escreveru um livro após um ano. O
procrastinador que melhora um pouco a cada semana é uma pessoa total-
mente transformada um ano depois.
Comece pensando sobre os termos que usamos neste artigo, e se eles
são raz Portanto não pense sobre ir de A até Z – apenas comece de A até B.
Mude o Roteiro de “eu procrastino em cada tarefa que faço” para “uma vez
por semana eu cumpro uma tarefa sem procrastinar”. Se você puder fazer
isso, você criará uma tendência. Eu ainda sou um miserável procrastinador,
mas definitivamente estou melhor do que estava um ano atrás, então me
sinto esperançoso sobre o futuro.
Porque eu penso nesse assunto tanto, e porque acabo de escrever um
artigo de 19.000 páginas sobre isso?
Porque derrotar a procrastinação é o mesmo que ganhar o controle de sua
própria vida. Muito daquilo que faz as pessoas felizes ou infelizes – seu nível
de realização e satisfação, sua autoestima, os arrependimentos que carregam
consigo, o quanto de tempo livre possuem para dedicar a seus relacionamen-
tos – está estreitamente vinculado a procrastinação. Então compensa demais
levar esse assunto a sério, e o tempo para começar a melhorar é agora.

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ANO-ZERO.COM

você precisa parar de se preocupar com


O QUE OS OUTROS PENSAM
tim urban*

PARTE 1: DESCUBRA O SEU MAMUTE

N o primeiro dia na segunda série, fui para a escola e notei que havia
uma nova e linda menina na classe – alguém que eu não havia visto no ano
anterior. Seu nome era Alessandra e uma hora depois ela já era tudo para
mim.
Quando você tem sete anos, não há realmente nenhum passo lógico que
você possa tomar quando ama alguém. Você nem mesmo sabe o que deseja
nessa situação. Existe apenas esse desejo amorfo que agora é parte da sua
vida, e nada mais.
Mas para mim isso se tornou subitamente relevante alguns meses depois,
quando durante o recreio uma das meninas da classe começou a perguntar
para os meninos: “com quem voceeeê quer casar?” Quando ela fez essa per-
gunta pra mim, nem pensei duas vezes. “Alessandra”.
Desastre.
Eu ainda era um novato nessa coisa de ser um humano e não tinha ainda
percebido que a única resposta socialmente aceitável era: “com ninguém”.
Assim que respondi, aquela menina detestável correu até os outros alu-
nos e disse a cada um deles “Tim disse que quer casar com a Alessandra!”. E
cada um para quem ela contava minha resposta tapava a boca para sufocar
uma gargalhada incontrolável. Fiquei arrasado. Minha vida tinha acabado.
A notícia rapidamente chegou aos ouvidos da Alessandra, que por dias
ficou o mais distante de mim possível. Se ela soubesse o que era um boletim
de ocorrência, ela teria feito um para se garantir.
Essa experiência horrível me ensinou uma lição fundamental – pode ser
fatalmente perigoso ser você mesmo, e você precisa continuamente exercitar
a extrema cautela social.
Claro que isso parece algo que apenas um menino traumatizado na se-
gunda série pensaria, mas o estranho (e que é o tema deste artigo) é que
essa lição não diz respeito apenas a mim e a minha infância desastrosa – é
uma definição da paranoia da espécie humana. Nós todos compartilhamos
uma insanidade coletiva que está presente em todas as culturas ao redor do
planeta:
uma obsessão irracional e contraprodutiva com os
que os outros pensam de nós.
*Tradução de Taming the Mammoth: Why You Should Stop Caring What Other People Think autorizada
pelo autor.

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A evolução fez tudo por uma razão, e para compreender a origem des-
sa insanidade precisamos por um minuto retroceder cinquenta mil anos na
Etiópia, época em que um antepassado seu vivendo como membro de uma
pequena tribo.
Naquele tempo, ser membro de uma tribo era crítico para a sobrevivên-
cia. Uma tribo significava comida e proteção numa época em que nenhuma
dessas duas coisas era fácil de conseguir. Então, para seu antepassado, quase
nada no mundo era tão importante quanto ser aceito por seus companheiros
de tribo, especialmente por aqueles em posição de autoridade. Adequar-se
àqueles que estavam ao seu lado e agradar àqueles que estavam acima dele
significava que ele podia permanecer na tribo, e um dos maiores pesadelos
que ele podia conceber seria o de as pessoas da tribo começarem a murmurar
sobre como ele era aborrecido ou pouco produtivo ou esquisito – porque caso
um número suficiente de pessoas antipatizassem com ele, seu status dentro
da tribo cairia, e se a coisa realmente ficasse feia, ele seria chutado para fora
da tribo e abandonado para morrer sozinho. Ele também sabia que se em al-
gum momento envergonhasse a si mesmo perseguindo uma garota da tribo
e sendo por ela rejeitado, ela contaria às outras garotas a respeito disso – e
ele não apenas acabaria com todas as suas chances com aquela garota, mas
possivelmente jamais teria uma parceira, pois qualquer outra mulher que
cruzasse seu caminho saberia de sua tentativa ridícula e fracassada. Ser so-
cialmente aceito era tudo.
Por causa disso, os seres humanos desenvolveram uma obsessão exces-
siva com o que os outros pensam deles – um anseio social por aprovação e
admiração, e um medo paralisante de ser desaprovado. Vamos então chamar
essa obsessão humana de Mamute da Sobrevivência Social. Ele se parece
mais ou menos assim:

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O Mamute da Sobrevivência Social do seu antepassado era essencial para


sua habilidade de sobreviver e evoluir. Era algo simples: mantenha o Mamute
bem alimentado com aprovação social, preste muita atenção em seu enorme
medo da não-aceitação e você estará bem.
E isso tudo era muito legal e importante no ano 50.000 A.C. E em 30.000
A.C. E em 10.000 A.C. Mas algo engraçado aconteceu aos humanos nos úl-
timos 10 mil anos – a civilização mudou dramaticamente. De repente, mu-
danças rápidas são algo que a civilização é capaz de fazer, e o motivo pelo
qual isso parece estranho é que nossa biologia evolucionária não pode mudar
assim tão rápido. Então, enquanto para a maior parte da História tanto a
estrutura social quanto nossa biologia evoluíram e ajustaram-se no mesmo
ritmo de uma lesma, recentemente a civilização desenvolveu a velocidade de
um cavalo, enquanto nossa biologia continuou rastejando como uma lesma.
Nossos corpos e mentes são feitos para viver em uma tribo do ano 50.000
A.C., o que deixa os humanos modernos com uma série de características in-
felizes, e uma das quais é sua obsessão com um estilo tribal de sobrevivência
social em um mundo em que a sobrevivência social não é mais um concei-
to real. Nós todos estamos aqui em 2015, acompanhados por um enorme,
faminto e facilmente surtável mamute peludo que ainda acha que o ano é
50.000 A.C.
Por qual outra razão você experimentaria quatro roupas e ainda assim não
teria certeza do que vestir antes de ir a uma festa?

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O pesadelo que o Mamute tem com a rejeição afetiva fez nossos ances-
trais serem cautelosos e experientes. Mas no mundo de hoje, isso só faz de
você um covarde:

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E nem vamos a falar do terror que o Mamute tem dos riscos artísticos:

O furacão de medo que o Mamute sente com a reprovação social é um


fator determinante na vida da maioria das pessoas. É o que faz você sentir-se
esquisito a respeito da ideia de ir ao cinema ou a um restaurante sozinho; é o
que faz os pais se preocuparem um pouco demais sobre em qual universidade
seus filhos estudarão; é o que faz você desistir da carreira que ama em favor
de uma carreira mais lucrativa e de que você apenas gosta; é o que faz você
se casar precocemente com alguém que você não está amando.

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E se por um lado é preciso muito


trabalho para manter seu altamen-
te inseguro Mamute da Sobrevivência
Social calmo e a salvo, por outro isso é
apenas metade de sua responsabilida-
de. O Mamute também precisa ser ali-
mentado regularmente e fartamente –
com elogios, aprovação e o sentimento
de estar do lado certo de qualquer di-
cotomia social ou moral.
Por que outro motivo você seria um
maníaco da elaboração da autoimagem
no Facebook?
E por que motivo você se gaba
quando sai com os seus amigos, em-
bora sempre se arrependa depois?
A sociedade evoluiu de modo a
tranquilizar a ansiedade desse Mamu-
te, inventando coisas como elogios e
títulos e o conceito de prestígio, a fim
de manter nossos mamutes satisfeitos
– e frequentemente a fim de incentivar
as pessoas a trabalharem em empre-
gos sem sentido e viver vidas insatis-
fatórias que elas não viveriam se não
considerassem que estão desse modo
se ajustando à sociedade.
Acima de tudo, mamutes querem ajustar-se – isso era o que os membros de
uma tribo sempre precisaram fazer, então é como os mamutes são programa-
dos. Mamutes observam a sociedade para descobrir o que se espera que eles
façam, e quando isso fica claro eles mergulham de cabeça. Simplesmente olhe
para fotos tiradas na formatura de duas turma da faculdade separadas por uma
década:

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Ou observe todas as subculturas sociais em que cada indivíduo tem pelo


menos um dos três graus educacionais de aceitação social:

Às vezes, a atenção do
Mamute não está na socie-
dade como um todo, mas em
ganhar a aprovação do Mestre
Fantocheiro de sua vida. Um
Mestre Fantocheiro é uma pes-
soa ou grupo de pessoas cuja
opinião importa tanto para
você que essencialmente eles
estão controlando sua vida.
Um Mestre Fantocheiro é em
geral um parente, ou talvez
seu companheiro, ou às vezes
o membro alfa do seu grupo
de amigos. Um Mestre Fanto-
cheiro pode ser aquela pessoa
que você procura quando não
se sente bem – talvez uma celebridade que você jamais encontrou – ou um
grupo de pessoas que você tem em alta consideração.
Nós ansiamos pela aprovação do Mestre Fantocheiro mais do que a de qual-
quer outra pessoa, e ficamos tão aterrorizados com a ideia de irritar o Mestre
Fantocheiro ou experimentar sua rejeição ou desprezo que fazemos qualquer
coisa para evitar essas situações. Quando atingimos um nível tóxico no re-
lacionamento com o Mestre Fantocheiro, a presença dessa pessoa domina
totalmente nosso processo de decisão e puxa as cordas de nossas opiniões e
controla nossa voz moral.
Com tantos pensamentos e energia dedicado às necessidades do Mamute,
você frequentemente negligencia outro ser que existe no seu cérebro, al-
guém que deveria estar no centro de tudo:

a sua Voz Autêntica.

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Sua Voz Autêntica está em algum lugar no seu cérebro e sabe tudo sobre
você. Em contraste com a simplicidade preto-e-branco do Mamute da Sobre-
vivência Social, sua Voz Autêntica tem nuances, às vezes é obscura, está em
constante evolução e é corajosa. Sua V.A. tem seu próprio código moral cheio
de nuances, criado pela experiência, pela reflexão, e tem também sua própria
concepção pessoal de compaixão e integridade. Ela sabe exatamente como
você se sente a respeito de coisas como dinheiro, família e casamento, e ela
sabe de que tipo de pessoas, assuntos ou interesses, e de que tipo de ativi-
dades você realmente gosta, e quais você não gosta. Sua V.A. está ciente de
que não sabe como sua vida será ou deveria ser vivida, mas ela possui uma
forte intuição sobre qual deve ser o próximo passo a ser dado.
E enquanto o mamute olha apenas para o mundo exterior durante seu
processo de tomada de decisão, sua Voz Autêntica usa o mundo exterior para
aprender e colher informações. Mas quando chega a hora de tomar uma deci-
são, ela tem todo o instrumental de que necessita bem ali mesmo, no centro
do seu cérebro.
Sua V.A. é também alguém que o Mamute tende a ignorar totalmente. A
opinião veemente de uma pessoa cheia de auto-confiança no mundo exte-
rior? O Mamute presta toda a atenção a ela. Mas uma súplica apaixonada de
sua V.A. é totalmente desconsiderada até que alguém lá fora a endosse.
E como nosso cérebro, programado há 50.000 anos, está condicionado a
dar ao Mamute um grande poder de influência sobre as coisas, sua Voz Au-
têntica começa a sentir que é irrelevante. O que a faz se encolher, desapare-
cer de cena e perder motivação.

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Eventualmente, uma pessoa influenciada pelo Mamute pode perder total-


mente o contato com sua Voz Autêntica.
No período tribal, as Vozes Autênticas frequentemente passavam sua vida
na silenciosa obscuridade, o que estava ok. A vida era simples e a conformi-
dade era o objetivo – e o Mamute tinha a conformidade sob controle.
Mas no enorme e complexo mundo atual, cheio de culturas, personalida-
des, oportunidades e opiniões diversificadas, perder contato com a sua Voz
Autêntica é perigoso. Quando você não sabe quem você é, o único mecanis-
mo para tomar decisões que você tem são as emoções e necessidades cruas
e arcaicas do seu Mamute. E quando chegar a hora de enfrentar suas ques-
tões mais pessoais, ao invés de mergulhar profundamente no nebuloso cen-
tro das suas convicções íntimas para encontrar claridade, você irá procurar
a resposta nas outras pessoas. E quem você é se tornará um tipo de mistura
das opiniões das pessoas ao seu redor.
Perder contato com a sua Voz Autêntica também torna você frágil, pois
quando sua identidade está fundamentada na opinião dos outros, ser critica-
do ou rejeitado pelos outros realmente machuca. O fim de um relacionamen-
to é doloroso para qualquer um, mas uma pessoa guiada por seu Mamute,
nessa experiência, machuca-se em um nível muito mais profundo do que
uma pessoa com uma forte Voz Autêntica. Uma forte Voz Autêntica cria uma
base estável, e após um término de relacionamento essa base ainda está
inabalada – mas como a aceitação dos outros é tudo o que a pessoa guiada
por seu Mamute tem, levar um chute na bunda de alguém que lhe conhece
bem é uma experiência muito mais devastadora.
Além disso, sabe aquelas pessoas que reagem ao serem criticadas bai-
xando o nível? Elas tendem a ser pessoas fortemente guiadas pelo seu Ma-
mute, e o criticismo as deixa tão loucas porque seu Mamute é incapaz de lidar
com críticas.

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Nesse ponto de nosso papo, a missão deve estar evidente: nós precisa-
mos descobrir um modo de superar a programação de nosso cérebro e domar
o Mamute. Essa é a única forma de ganharmos controle de nossas vidas.

PARTE 2: DOMANDO O SEU MAMUTE

Algumas pessoas nasceram com mamutes razoavelmente domesticáveis,


ou foram criadas por pais que lhe ajudaram a manter seu mamute sobre
controle. Outras morrem sem jamais terem domado seu mamute, desperdi-
çando toda a vida sujeitando-se ao seus caprichos. A maioria de nós está no
meio – nós temos o controle do mamute em determinadas áreas de nossas
vidas, enquanto em outras ele faz um enorme estrago. Ser comandado por
seu mamute não faz de você uma pessoa fraca ou má – só significa que você
ainda não descobriu como obter controle sobre ele. No final das contas, você
pode nem mesmo estar ciente de que tem um mamute ou do quanto em de-
corrência disso sua Voz Autêntica tem sido silenciada.
Seja qual for sua situação, há três passos para colocar seu mamute sob
o seu controle:

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PASSO 1: EXAMINE VOCÊ MESMO

O primeiro passo para melhorar as coisas é uma avaliação clara e honesta


sobre o que está acontecendo em sua cabeça, e isso pode ser dividido em
três partes:

1) CONHEÇA SUA VOZ AUTÊNTICA

Isso não parece muito difícil, mas


é. É preciso uma séria reflexão para
eliminar as teias formadas por pensa-
mentos e opiniões de outras pessoas
e descobrir quem o verdadeiro você
realmente é. Você gasta parte de seu
tempo com um monte de pessoas –
de quais delas você gosta mais? Como
você aproveita seu tempo de lazer, e
você realmente gosta de tudo o que
faz? Há algo em que regularmente
você gasta dinheiro e isso não lhe dei-
xa muito confortável? Como você re-
almente se sente no seu íntimo a res-
peito do seu trabalho, relacionamento
e status social? Qual é sua verdadeira
opinião política, e você realmente se importa com isso? Você finge se importar
com coisas sobre as quais você nem mesmo tem uma opinião formada? Você
secretamente tem uma opinião sobre um tema político ou moral que você ja-
mais expressou porque pessoas que você conhece iriam se sentir ofendidas?
Há frases clichês para esse processo – “busca da alma”, “descobrir a si
mesmo” – mas isso é exatamente o que é preciso ser feito. Talvez você possa
fazer essa reflexão agora mesmo na cadeira em que está sentado em outro
momento da sua vida cotidiana – ou talvez você precise ir para algum lugar
distante, sozinho, e dar uma pausa em sua vida cotidiana para efetivamente
fazer essa análise. De um jeito ou de outro, você precisa descobrir o que real-
mente importa para você, e começar a sentir-se orgulhoso da sua Voz Autên-
tica, seja ela o que for.

2) DESCUBRA ONDE O SEU MAMUTE ESTÁ SE ESCONDENDO.

Na maioria das vezes em que um mamute está controlando alguém, essa


pessoa não está realmente ciente disso. Mas você não conseguirá fazer ne-
nhum progresso se não for totalmente sincero sobre onde estão as áreas mais
problemáticas na sua vida.

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A maneira mais óbvia de


encontrar o mamute é desco-
brir onde está seu medo – em
que circunstâncias você está mais
suscetível de vergonha ou emba-
raço? Que aspectos da sua vida
despertam uma sensação ruim
e sufocante quando você pensa
a respeito? Em que situações a
possibilidade de falhar parece um
pesadelo? Que atividades você é
tímido demais para mostrar em
público apesar de saber que é mui-
to bom nelas? Se você desse um
conselho a si mesmo, quais aspectos da sua vida claramente precisariam de
uma mudança que você está evitando realizar exatamente agora?
O segundo lugar em que o mamute se esconde é nas sensações praze-
rosas que você tem quando se sente aceito ou em um pedestal acima das
outras pessoas. Você está muito preocupado em agradar os outros no seu
trabalho ou em seu relacionamento? Você está aterrorizado com a ideia de
desapontar seus pais e prefere deixá-los orgulhosos ao invés de focar naquilo
que gratificaria a você mesmo? Você fica entusiasmado demais com a ideia
de estar associado a coisas de prestígio ou se importa demais com seu sta-
tus? Você se gaba mais do que deveria?
Uma terceira área em que o mamute está presente é qualquer assunto
em que você não se sente confortável em tomar uma decisão sem a “permis-
são” ou a aprovação dos outros.
Você tem opiniões que apenas ecoam a voz de outra pessoa e que você
se sente confortável em possuir agora que você sabe que aquela pessoa tam-
bém as tem? Quando você apresenta seu namorado ou namorada para sua
família pela primeira vez, pode a reação de seus parentes a essa nova pessoa
modificar fundamentalmente os sentimentos que você tem por ele/ela? Há
um Mestre dos Fantoches em sua vida? Se existe, quem é e por quê?

3) DECIDA DE ONDE O MAMUTE PRECISA SER EXPULSO.

Não é muito realista chutar o mamute totalmente para fora de sua cabeça
– você é um ser humano e seres humanos têm mamutes em suas cabeças,
ponto final. O que todos nós precisamos é estabelecer certas áreas de nossas
vidas que precisam estar nas mãos da Voz Autêntica e livres da influência
do mamute. Há áreas óbvias que precisam fazer parte dos domínios da sua
Voz Autêntica, como a escolha de seu parceiro, a sua carreira profissional e o
modo como você cria seus filhos. Outras dependem de suas escolhas pesso-
ais – e então vem a questão: “Em quais partes da sua vida você precisa ser
totalmente verdadeiro consigo próprio?”

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PASSO 2: TENHA CORAGEM DE INTERNALIZAR QUE O MA-


MUTE TEM UM BAIXO Q.I.

Os verdadeiros mamutes peludos eram desimportantes o suficiente para


serem extintos, e o Mamute da Sobrevivência Social não é melhor que eles.
Apesar do fato de que nos assombram, nossos mamutes são criaturas primi-
tivas e idiotas que não têm qualquer compreensão do mundo moderno. Com-
preender isso profundamente – e internalizar isso – é a chave para domar o
seu mamute. Há duas razões principais para não levar o seu mamute muito
a sério:

1) OS MEDOS DO MAMUTE SÃO TOTALMENTE IRRACIONAIS.


Há cinco coisas sobre as quais o mamute está errado:

1º - Todo mundo está falando de mim e da minha vida e preciso refletir


bem sobre o que todo mundo vai dizer se eu fizer essa coisa arriscada e es-
tranha em que estou pensando.
Aqui está como o mamute pensa que as coisas são:

Aqui está como elas realmente são:

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2º - Se eu me esforçar bastante, posso agradar todo mundo.


Sim, talvez em uma tribo com 40 pessoas em uma cultura unificada. Mas
no mundo de hoje, não importa quem você seja, um monte de pessoas vai
gostar de você e um monte de outras pessoas não vai. Ser aprovado por um
tipo de pessoa significa ser desaprovado pelo tipo de pessoa oposto. Então
ficar obcecado com a ideia de ajustar-se a cada um dos grupos sociais é iló-
gico, especialmente se um desses grupos não tem realmente nada a ver com
quem você é. Você vai ter todo esse trabalho e, enquanto isso, as pessoas de
quem você realmente gosta estarão em outro lugar fazendo amizades umas
com as outras.

3º - Ser desaprovado ou desconsiderado ou difamado tem consequências


reais na minha vida.
Qualquer um que desaprove quem você é ou o que você está fazendo
não vai ficar na mesma sala que você 99,7% das vezes. É um clássico erro
do mamute construir uma projeção futura das consequências sociais que é
muito pior do que aquilo que vai realmente acabar acontecendo – e de regra
nada vai acontecer no final das contas.

4º - A opinião de pessoas que vivem julgando os outros importa.


As pessoas que vivem julgando os outros funcionam assim: elas são in-
tensamente controladas por seus mamutes e se tornam boas amigas deles e
acabam encontrando outras pessoas que também vivem julgando os outros
e que também são altamente controladas por seus mamutes. Uma das prin-
cipais atividades que elas fazem juntas é falar merda sobre qualquer pessoa
que não esteja presente – talvez elas sintam inveja, e o girar de olhos em de-
saprovação as ajude a prosseguir no roteiro e assim sentirem menos inveja,
ou talvez elas não tenham inveja e usem alguma pessoa como recurso para
se deleitarem no schadenfreude – mas seja qual for o sentimento subjacente,
o julgamento serve para alimentar seus mamutes famintos.
Quando pessoas falam merda, elas dividem o mundo em duas categorias
de modo que elas sempre estejam do lado certo. Elas fazem isso para se
manter em um pedestal no qual seus mamutes podem abocanhar tudo ao
redor.
Ser usado por uma pessoa que vive julgando os outros para que ela possa
sentir-se bem a respeito de si própria é uma ideia realmente irritante, mas
que na verdade não tem consequência alguma e claramente é muito mais
um problema daquela pessoa e de seu mamute do que um problema seu. Se
você se percebe tomando decisões parcialmente baseadas no desejo de não
ser objeto de críticas de pessoas que vivem julgando os outros, pense muito
sobre o que está realmente acontecendo e pare com isso.

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5º - Sou uma má pessoa se eu desapontar ou ofender aqueles que me


amam e que investiram tanto em mim.
Não. Você não é uma má pessoa por ser quem quer que sua Voz Autêntica
diz que você é. Essa é uma daquelas coisas simples: se eles amam você com
real desprendimento, eles com certeza ficarão ao seu lado e aceitarão qual-
quer coisa se perceberem que você está feliz. Se você está feliz e ainda assim
eles não ficam ao seu lado, isso é o que está acontecendo: a opinião deles
sobre quem você deveria ser e o que você deveria fazer são as opiniões do
seus mamutes internos, e sua principal motivação é preocupar-se com o que
as pessoas que eles conhecem vão pensar a respeito da situação. Eles estão
permitindo que seus mamutes sobrepujem o amor que sentem por você, e
eles devem ser totalmente ignorados.
Duas outras razões pelas quais a acovardada obsessão do mamute pela
aprovação social não tem nenhum sentido são as seguintes:

A) Você vive aqui:

Então quem se importa com merda alguma?

B) Você e qualquer pessoa que você conhece vão morrer. E meio


que em breve.

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Então…

Os fato de os medos do mamute serem irracionais é uma das razões de


seu QI ser tão baixo. Aqui está a outra razão:

2) OS ESFORÇOS DO MAMUTE SÃO CONTRAPRODUTIVOS.

A ironia da coisa toda é que o pesado mamute obsessivo nem é bom em


seu trabalho. Seus métodos de ganhar aprovação podem ter sido eficazes em
tempos mais simples, mas hoje eles são transparentes e desatualizados. O
mundo moderno é o mundo da Voz Autêntica, e se o mamute quiser prospe-
rar socialmente, ele deve fazer aquilo que mais lhe apavora – deixar que a
Voz Autêntica assuma o controle. Aqui está o porquê:

Vozes Autênticas são interessantes. Mamutes são chatos. A V.A.


é única e complexa, o que é algo inerentemente interessante. Mamutes são
todos iguais – eles copiam e se conformam, e suas motivações não são ins-
piradas em nada autêntico ou real, mas apenas em fazer aquilo que pensam
que se espera que façam. Isso é imensamente chato.

Vozes Autênticas lideram. Mamutes seguem. Liderança é algo natu-


ral para a maioria das Vozes Autênticas, pois elas tiram seus pensamentos e
opiniões de um lugar original, o que lhes dá um ponto de vista original. E se
elas forem espertas e inovadoras o bastante, elas podem mudar coisas no
mundo e inventar outras coisas que desestruturam o status quo. Se você dá a
uma Voz Autêntica um pincel e uma tela vazia, ela pode não pintar algo bom,
mas mudará a tela de uma ou de outra maneira.
Mamutes, por outro lado, são seguidores – por definição. É para isso que
eles foram feitos – misturar-se e seguir o líder. A última coisa que um ma-
mute vai fazer é mudar o status quo porque ele está tentando com todas as
suas forças pertencer ao status quo. Quando você dá a alguém um pincel e
uma tela, mas a tinta é da mesma cor que a tela, a pessoa pode pintar do
jeito que quiser que não vai conseguir mudar coisa nenhuma.

As pessoas gravitam em torno de Vozes Autênticas, e não de ma-


mutes. A única vez em que uma pessoa obcecada por seu mamute parece
atraente num primeiro encontro é quando esse encontro é com outra pessoa
obcecada por seu mamute. Pessoas com uma Voz Autêntica forte enxergam
através das pessoas controladas por seus mamutes e não se sentem atraídas
por elas.

Uma amiga minha estava saindo com um cara em tese ótimo, mas ter-
minou o envolvimento porque ela não conseguia se apaixonar por ele. Ela
tentou explicar o porquê, dizendo que ele não era esquisito ou especial o su-
ficiente – ele parecia “só mais um dos caras”. Em outras palavras, ele estava
sendo controlado demais por um mamute.
Isso também vale entre amigos e colegas, em que pessoas controladas
por sua Voz Autêntica são mais respeitadas e mais atraentes – não porque
necessariamente haja qualquer coisa interessante sobre eles, mas porque as
pessoas respeitam alguém com a força de caráter necessária para domar seu
mamute.

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PASSO 3: COMECE A SER VOCÊ MESMO.

Este artigo era só diversão e festa até “comece a ser você mesmo” en-
trar em cena. Até agora, este texto foi uma interessante reflexão sobre por
que humanos se importam tanto com o que outras pessoas pensam, porque
isso é ruim, de que modo isso é um problema na sua vida e por que não há
nenhuma razão para isso continuar a atormentar você. Mas realmente fazer
alguma coisa após você terminar de ler este artigo é uma coisa totalmente
diferente. Isso exige mais do que reflexões – isso exige coragem.

Mas coragem contra o que, exatamente? Como já dissemos, não há ne-


nhum risco verdadeiro em ser você mesmo – mais do que tudo, basta apenas
ter uma epifania do tipo O Rei está nu, que é tão simples quanto isto:

Praticamente nada do que você socialmente teme é realmente


digno de se temer.

Introjetar esse pensamento vai diminuir o medo que você sente, e sem
medo o mamute perde um pouco de seu poder.
Com um mamute enfraquecido, torna-
-se possível começar a dar apoio a quem
você realmente é e até mesmo fazer al-
gumas mudanças ousadas – quando você
perceber que essas mudanças acabaram
bem e com poucas consequências nega-
tivas e sem arrependimentos, isso vai re-
forçar a epifania e uma Voz Autêntica em-
poderada torna-se a regra. Seu mamute
agora perdeu sua habilidade de puxar
suas cordas, e está domado.

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ANO-ZERO.COM

O mamute ainda estará com você – ele sem-


pre estará com você -, mas você terá tempos mais
fáceis ao ignorá-lo e superá-lo quando ele falar ou
agir, porque a Voz Autêntica é quem manda agora.
Você pode começar a saborear a sensação de estar
sendo visto como estranho, inadequado ou confuso
para as pessoas, e a sociedade torna-se seu play-
ground e sua tela em branco, e não algo diante do
qual você rasteja esperando por aceitação.
Fazer essa mudança não é fácil pra ninguém,
mas vale a pena ficar obcecado por ela. Sua Voz
Autêntica tem uma só vida para viver – e é seu
trabalho assegurar que ela tenha a oportunidade
de vivê-la.

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7 doenças que estão


MATANDO A HUMANIDADE
victor lisboa

Nem toda superstição é religiosa, e uma das superstições mais perigo-


sas de nosso tempo nada tem de mística. Ela consiste na crença de que o
desenvolvimento da sociedade sempre é algo positivo, e que na busca pelo
progresso deixamos para trás apenas o que é obsoleto.
Sete das mentes mais criativas dos últimos tempos atacaram essa su-
perstição. É verdade, a tecnologia e a evolução dos costumes podem trans-
formar nossas vidas aqui na Terra em um paraíso. Mas é possível que nesse
processo deixemos para trás algumas das condições necessárias para uma
vida plena, feliz e amorosa – uma vida com sabedoria, em outras palavras.
Se desejamos rumar até o paraíso, precisamos saber distingui-lo do inferno.
Para sete pensadores, nossa sociedade está na enferma, e eles diagnos-
ticaram as sete doenças que a acometem.

1. A ESPETACULARIZAÇÃO DE NOSSAS VIDAS

Em 1967, o filósofo francês Guy Debord escreveu A Sociedade do Espe-


táculo, em que propõe que no mundo moderno somos induzidos a preferir a
imagem e a representação da realidade à própria realidade concreta.
Para Debord, as imagens, apenas sombras do que existe, contaminaram
nossa experiência cotidiana, levando-nos a renunciar à vivência da realidade
tal como ela é. Toda a vida em sociedade virou um acúmulo de espetáculos
individuais e coletivos, tudo é vivido apenas enquanto representação perante
os outros.
Compartilhar status, instagrams, tweets: os palcos e as plateias muda-
ram, a encenação ficou cotidiana. Na sociedade do espetáculo em que esta-
mos submersos, mesmo os relacionamentos são conduzidos pela mediação
de imagens. Passando a intermediar as relações com imagens e simulacros
de sentimentos moldados pelas redes sociais, voluntariamente renunciamos
à qualquer tentativa de reconhecer os aspectos difíceis e desafiadores dos
relacionamentos verdadeiros.
Debord entendia que o real envolvimento em relacionamentos humanos foi
trocado por uma identificação passiva com a posição de espectatores recípro-
cos. Nesse esquema, cada um assiste, curte e compartilha o outro em seu pal-
co particular, aguardando a sua vez de ser assistido, curtido e compartilhado.

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ANO-ZERO.COM

Há, assim, um gradual empobrecimento das relações humanas. Isoladas,


as pessoas tornam-se intimamente mais inseguras, e portanto mais fragili-
zadas. Essa fragilização torna os indivíduos mais influencíaveis e facilmente
manobráveis.

2. A MENTIRA ENQUANTO NARRATIVA

O filósofo e neurocientista norteamericano Sam Harris escreveu em 2013


o livro Lying (Mentindo), na verdade um ensaio em que ele demonstra que a
mentira é o pecado que pavimenta todos os demais pecados da modernidade.
Estimular socialmente a necessidade da mentira é uma decorrência lógica
de uma sociedade do espetáculo, em que mentir é muito mais do que ocultar
a verdade. A mentira chega ao ponto de desconstruir a verdade ao confun-
di-la com uma narrativa – algo que serve, portanto, ao próprio espetáculo.
Dizer tudo é relativo é um slogan ultrapassado. Agora, tudo é narrativa, e
passamos a acreditar que não há nenhum fato que não possa ser redefinido
como uma forma de narrativa do protagonista.
Após séculos identificando Deus como A Verdade e o diabo como O Pai da
Mentira, a sociedade atual encara o conceito de “verdade” com ironia e ceti-
cismo. Uma das características de nosso tempo é a ideia de que a verdade é
relativa, e de que tudo depende do ponto de vista do sujeito. O relativismo
moral é uma mentira cuidadosamente elaborada para que ela própria pareça
uma verdade.

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O problema é que a linha moral entre verdade e mentira é a única que


separa nossa caminhada coletiva do rio negro da barbárie e da superstição. E
nem precisamos apelar para as virtudes morais do leitor: já está provado que
a melhor solução de qualquer conflito humano é a colaboração e a confiança
mútua. Assim, a posição de vantagem perceptível a curto prazo torna-se uma
enorme derrota logo adiante.

3. O PROTAGONISMO

O produtor britânico Adam Curtis idealizou o documentário The Century


of the Self (O Século do Eu). Nessa obra imperdível (disponível aqui legenda-
do), ele demonstra como a publicidade utilizou as teorias psicológicas sobre o
funcionamento da mente humana para tentar manipular o desejo do público
e induzir todos ao consumo.
Não havia lugar para sutilezas. Um pouco comicamente, algo banal como
vender carro na TV utilizava estratagemas que tentavam invocar alguns dos
desejos sexuais mais primitivos do espectador. Era cômico, mas eficiente: a
venda de carros aumentava. A realidade humana é que talvez seja meio en-
graçada. Podia-se, portanto, dar um passo além.
Assim, a seguir houve uma evolução menos ingênua e grosseira dessa
publicidade, uma forma de explorar os medos e anseios do público para além
do comercial de automóveis fálicos. Afinal, porque tentar associar o produto
com os desejos íntimos do consumidor se era possível, pela indústria de en-
tretenimento, influenciar e talvez até determinar esses desejos íntimos?

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ANO-ZERO.COM

A partir de 1960, o movimento da contracultura ensinou às grandes mul-


tinacionais e agências de publicidade que dava lucro desenvolver e dissemi-
nar entre a pessoas a noção de individualismo como um estilo de vida.
Daquele momento em diante, os meios de comunicação de massa (cine-
ma, televisão, música popular) passaram a vender a seguinte ideia: somos
todos nós indivíduos únicos, especiais, e temos todos o direito de explorar a
riqueza luminosa de nossa individualidade.
Disso surgiu o protagonismo. Afinal, numa sociedade em que tudo é es-
petáculo, a decorrência lógica é que todos, estimulados em seu individualis-
mo, considerem-se protagonistas.

As redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter e Tumblr só querem


uma única coisa de nós: que as utilizemos cada vez mais, que as tornemos
uma parte indispensável de nossa vida. E o que fazem para isso é criar espa-
ços em que podemos construir nossa imagem pessoal perante os outros de
forma que pareçamos protagonistas de uma narrativa interessante.
O protagonismo estimulado pela nossa sociedade torna, subjetivamente,
todas as outras pessoas meros coadjuvantes de nossa história pessoal. Todos
os outros seres humanos ao nosso redor são considerados apenas na exata
medida em que colaboram ou não com o desenvolvimento dessa pequena
novela que repetimos a nós mesmos em nossa cabeça.
E um dos aspectos mais nocivos disso é a ideia de protagonismo social,
muito difundida no ativismo das redes sociais. Segundo essa proposta, ape-
nas aqueles que se enquadram em determinada categoria minoritária ou
oprimida poderiam lutar ativamente contra as condições de opressão. To-
dos os demais indivíduos deveriam, portanto, permanecer passivos diante da
luta, em estado de aprovação bovina. Assim, somente mulheres poderiam
protagonizar o combate ao machismo, somente afrodescendentes poderiam
protagonizar o combate ao racismo. Segmentando ainda mais a sociedade,
essa proposta impede que todos os seres humanos, unidos, lutem contra
tudo aquilo que for um problema fundamentalmente humano – como o são
os preconceitos.

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4. AS RELAÇÕES LÍQUIDAS

Muito já se falou da teoria do sociólogo polonês Zygmunt Bauman sobre

a sociedade líquida. Por “líquida” entende-se uma sociedade em que não há

papeis sociais rígidos nem certezas sólidas. Tudo, portanto, é fluído e não

somos obrigados a assumir um compromisso duradouro com qualquer papel

social ou pessoa.

Que emprego escolher, com quem nos casar, que estilo de vida adotar:

não há qualquer orientação sobre o que é certo e errado diante de duas es-

colhas, e tudo o que nos é dito é que temos total liberdade para decidir. O

problema é que cada escolha por um caminho implica na renúncia de outro,

e disso irremediavelmente surgem dúvidas e a sombra do arrependimento.

Essa liberdade, inserida no contexto da sociedade que impõe ao indivíduo

a obrigação de espetacularizar sua vida e expressar uma suposta individua-

lidade de protagonista bem sucedido, é sentida como um fardo. O resultado

são indivíduos acometidos de ansiedade constante, inseguros, fragilizados. E

pessoas fragilizadas são mais facilmente influenciáveis.

Transportando isso para os relacionamentos, Bauman salienta que a fa-


cilidade com que hoje podemos abandonar uma relação, transitando de um
envolvimento afetivo para o outro, sempre na busca de uma idealização inal-
cançável do sujeito amado e do próprio amor, traz também ansiedade e acar-
reta o empobrecimento das relações humanas.

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Como Bauman expõe, atualmente nós desfazemos nossos elos com os


outros com a facilidade de quem desfaz uma amizade no Facebook: basta um
clique. Em um planeta superpovoado, parece que sempre há a nossa disposi-
ção outras tantas pessoas com as quais estabelecer conexão – o problema é
que no final nunca estabelecemos conexões verdadeiras com ninguém.

5. A FALTA DE TEMPO

Em Mal-estar na atualidade, o psicanalista brasileiro Joel Birman alerta

que a racionalização das práticas sociais usurpou dos indivíduos o controle

do seu tempo. A forma como utilizamos nosso tempo pessoal está cada vez

mais sendo pré-determinada pelas demandas sociais, impondo que vivamos

em um frenesi initerrupto.

Hoje em dia, estamos sempre super atarefados. A sociedade nos seduz

com o sonho de sermos protagonistas de nosso espetáculo privado, mas o

caminho para esse sonho está ladrilhado com tarefas, microtarefas e toda

espécie de atividade que exige nossa constante atenção. Isso consome pra-

ticamente todo o nosso tempo desperto.

Como resultado, embora estejamos hoje em dia sempre atarefados, pa-


rece que jamais fazemos o suficiente. Disso vem a sensação estranha de que
estamos vitimizados pela procrastinação: nunca temos tempo de fazer tudo o
que precisamos para cumprir com a promessa de que seremos protagonistas
excepcionais.

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O problema é que um ponto central de qualquer projeto de vida é a possi-


bilidade de revisarmos nossas decisões e estratégias com atenção e tranquili-
dade, refletindo detidamente sobre aquilo que estamos fazendo. A pressa nos
impede de analisar quais coisas são realmente importantes para nós e quais
são as nossas prioridades.
Sem tempo o suficiente para investigar a motivação por trás de cada
tarefa cotidiana, desperdiçamos muito de nosso tempo em atividades que
podem ser valorizadas socialmente, mas que intimamente significam muito
pouco para nós. Mais que isso, sem podemos nos dar ao luxo de perder tem-
po, deixamos de ter direito ao ócio necessário à criatividade e à fruição dos
prazeres.

6. O HIPERCONSUMISMO

O filósofo francês Gilles Lipovetsky cunhou o termo hiperconsumo. Serí-


amos, neste momento da história, não meros consumidores, mas hipercon-
sumidores. Em uma estrutura na qual o crescimento econômico depende do
consumo crescente da população, estamos todos inseridos numa dinâmica
social baseada na compra contínua. Se pararmos de consumir febrilmente,
há um colapso da economia.

Não há nada de essencialmente errado com o consumo. O mercado de


consumo tem sim seus espaços legítimos de atuação. Porém, a partir de
1970, segundo Lipovestky, ingressamos na fase do hiperconsumo. Trata-se
de uma fase essencialmente subjetiva, pois os indivíduos desejam adquirir
objetos não pela sua utilidade ou necessidade, mas para aliviarem sua ansie-
dade de aceitação e integração na coletividade.

Os produtos são consumidos enquanto ato de expressão da individualida-


de e do estilo de vida do hiperconsumidor. Compramos produtos, mas esta-
mos em busca de sensações, vivências e a construção de uma imagem social
que nos traga prestígio.

Gastamos pequenas fortunas em smartphones para não utilizarmos se-


quer 20% de sua capacidade computacional. Olhamos para as avenidas en-
garrafadas de nossas cidades e vemos potentes utilitários transportando ape-
nas o motorista. A construção social da moda e da tendência garante que
roupas ainda em perfeito estado sejam enfiadas no fundo do guarda roupa,
obrigando-nos a comprar novas roupas que nos protejam da ridicularização
social.

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O conceito de obsolescência programada, a noção de desvalorização dos


bens de consumo adquiridos e o status social associado a novas versões dos
mesmos produtos assegura que tenhamos que trocar de carro, smartphone,
televisão e computador com uma frequência que é conveniente ao sistema de
produção atual, mas irracional do ponto de vista do consumidor e da capaci-
dade de exploração do meio ambiente.

7. A IRONIA

“Não se engane, a ironia nos tiraniza”, vaticinou o escritor americano Da-


vid Foster-Wallace em seu ensaio E Unibus Pluram. E seu alerta precisa ser
levado a sério.

Ironia consiste essencialmente em querer dizer coisa distinta daquela que


está sendo expressamente dita, causando o efeito de humor. Portanto, a iro-
nia flerta com a mentira e, ao lado do conceito de narrativa, é outra forma
eficaz de deteriorar socialmente o valor da verdade em nossa sociedade. Mas
a ironia é ainda mais nociva, pois não para seu trabalho corrosivo por aí – a
ironia mina a própria capacidade do indivíduo vivenciar e expressar social-
mente sentimentos verdadeiros e significativos.

Não apenas a sinceridade e a paixão estão hoje fora de moda, alerta Fos-
ter-Wallace, mas atualmente é sinal de distinção social e de inteligência estar
levemente entediado e ostentar uma leve, cínica, desconfiança sobre todas
as coisas: expressões faciais, gestos e comentários que informam, com ar de
superioridade, que “já vi de tudo nesse mundo”, que “sei que nada é o que
parece ser” e que “acho tudo isso que você leva tão a sério muito engraçado”.

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A ironia que começou como um espírito de vanguarda no passado, do qual


dotadas as pessoas mais inteligentes e sagazes, tornou-se agora uma cultura
de massa. Os meios de comunicação, segundo Foster-Wallace, utilizam ele-
mentos do pós moderno como a metalinguagem, o absurdo, o sarcasmo, a
iconoclastia e a rebelião e os modela para fins de consumo.

A partir de então, a ironia, que antes era um instrumento fortalecedor do


espírito contra os dogmas e as crenças sacralizadas mas opressoras, tornou-
-se uma força debilitante do próprio espírito humano. Pois a ironia é a forma
irreverente de o desprezo anunciar que está chegando.

Citando o poeta americano Lewis Hyde, Foster-Wallace expõe que “a iro-


nia tem uma utilidade apenas emergencial, e estendida no tempo, torna-se a
voz do prisioneiro que passou a gostar de sua cela”. Ela perde seu potencial
contestador e torna-se uma forma sarcástica de conformar-se e adaptar-se a
tudo aquilo que nos limita. Pois a ironia também atinge as aspirações a ges-
tos heróicos e elevados sentimentos.
A ironia, embora realmente prazerosa, tem uma função essencialmente
negativa, pois é crítica e desconstrutiva, “boa para limpar o terreno”. Porém,
a ironia, após seu trabalho de destruição e depuração, é incapaz de construir
algo verdadeiro, é inábil em propor a criação de algo que substitua, e para
melhor, aquilo que ajudou a destruir.

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7 sinais de saúde em uma


SOCIEDADE ENFERMA
victor lisboa

Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente,


disse o filósofo e educador indiano Jiddu Krishnamurti. E para pensadores
do calibre de Guy Debord, Sam Harris, Adam Curtis, Zygmunt Bauman, Joel
Birman, Gilles Lipovetsky e David Foster Wallace estamos, de fato, em uma
sociedade adoecida.

Mas se esses pensadores apresentam os sintomas de nossa enfermidade


coletiva, há alguma forma de iniciarmos o processo de cura?

A verdade é que muitas pessoas atribuem as causas dessa doença a essa


ou aquela característica estrutural de nossa sociedade: ora é a tecnologia, ora
é o capitalismo, ora é a publicidade. Mas a experiência histórica demonstra
que sempre que tentamos alterar as grandes estruturas sociais, além de mui-
ta violência e sofrimento, o que obtemos são novas e diferentes estruturas
sociais que produzem o mesmo nível de adoecimento de toda a sociedade.

Talvez essa abordagem seja o equivalente a culpar a garganta pela irrita-


ção que sentimos nela quando ficamos gripados, ou afirmar que a causa da
enxaqueca seja a existência da cabeça. A origem da enfermidade, na verda-
de, é sempre outra, e de natureza microscópica: assim como no caso da gri-
pe a origem esteja em um vírus, a causa da enfermidade social talvez resida
na forma como cada ser humano está vivendo sua vida individualmente.

Haveria, portanto, comportamentos virais na conduta humana que criam


o adoecimento da sociedade? E, nesse caso, podemos nos transformar, de
hospedeiros desse vírus, em anticorpos defensores dessa mesma sociedade,
sem a necessidade de alterar as suas estruturas? Nesse caso, a nossa saúde
comportamental teria o poder de induzir a saúde de toda a comunidade.

Sete grandes intelectos apresentaram sete características de um ser hu-


mano equilibrado e saudável. E talvez desenvolver em nós essas sete carac-
terísticas seja o início do processo de cura coletiva.

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1. TER AUTOCONSCIÊNCIA
(DAVID FOSTER WALLACE)
David Foster Wallace proferiu em 2005 um discurso para uma turma que
colava grau no Kenyon College. Esse discurso, que passou a ser conhecido
pelo título “Isso é Água”, tornou-se talvez a obra mais popular e divulgada de
Wallace nas redes sociais. E a essência de sua mensagem trata da importân-
cia de aprendermos a pensar.
“Pensar”, algo que consideramos uma atividade automática e natural,
para Wallace é um processo a ser aprendido e praticado com consciência e
treino, principalmente durante as atividades cotidianas. Pensar seria, na ver-
dade, uma prática na qual podemos ser bem sucedidos ou falhar vergonho-
samente, e desse resultado dependeria nossa realização pessoal.

A maior parte das pessoas deixa seu fluxo de pensamento conduzir-se


aleatoriamente, à medida em que associações e lembranças lhe ocorrem.
Numa sociedade que nos empurra para o automatismo e a pressa, em que
ficamos presos em engarrafamentos e longas filas de supermercado, pensar
dessa forma nos torna vítimas fáceis da manipulação e do controle externo.
A “bovinização” humana é consequência de nossa inaptidão para pensar de
um modo mais consciente e atento.
Mas pensar não se confunde com capacidade intelectual. Como Wallace
deixa claro em seu discurso, indivíduos de invejável formação acadêmica po-
dem ser completamente incompetentes nessa atividade, pois ela não implica
apenas no raciocínio abstrato e teórico: pensar implica em analisar continu-
amente os pressupostos pessoais e emocionais sobre os quais estruturamos
a nossa vida, a ponto de conseguirmos enxergar coisas tão óbvias que não
as percebemos – tal como os peixes não percebem a água em que estão
submersos.

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Quando Wallace ressalta a importância de aprendermos a pensar, ele está


falando da autoconsciência, daquela capacidade de pensarmos sobre nossos
pensamentos, de questionarmos os pressupostos de nossas escolhas e de
nossos sentimentos em relação ao mundo, adotando uma perspectiva situa-
da além do protagonismo, da visão segundo a qual nós somos o centro dos
eventos que nos ocorrem.

2. PRATICAR O AMOR COMO FORMA DE ARTE


(ERICH FROMM)
O filósofo e psicanalista Erich Fromm publicou em 1956 sua obra A Arte
de Amar. Segundo propõe nesse ensaio, o amor não seria um sentimento
que vivenciamos com passivo arrebatamento: o amor seria, antes de tudo,
uma prática a ser exercida com plena consciência. Mais ainda, é uma prática
que precisa ser aprendida até o ponto em que nos tornemos artistas em sua
expressão e desenvolvimento.
Fromm equiparava o amor, assim, a uma forma de arte, seja o amor
entre um casal, o amor entre familiares, o amor entre os amigos e o amor
pelo próximo. E como aprendemos uma habilidade artística? “O processo
de aprendizado de uma arte pode ser dividido em duas partes: em primeiro
lugar, o domínio da sua teoria; em segundo, o domínio da sua prática.” Mas
Fromm ainda inclui um terceiro elemento: ao lado da teoria e da prática, a
maestria em qualquer arte deve ser, para o artista, uma questão prioritária
em sua vida.

Vivemos em uma cultura que hipervaloriza o amor romântico de forma


idealizada e às vezes irreal, algo característico de indivíduos infantilizados.
Porém, Fromm entendia que a real satisfação no amor romântico não pode
ser atingida sem a capacidade de amarmos também a todas as outras pesso-
as ao nosso redor. Mais ainda, o verdadeiro amor exige humildade genuína,
fé na natureza humana e disciplina emocional. E “numa cultura em que essas
qualidades são raras, alcançar a capacidade de amar continua algo também
raro”.

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3. SER SENHOR DO PRÓPRIO DESTINO


(JEAN-PAUL SARTRE)
Em 1946, Jean-Paul Satre publicou O Existencialismo é um Humanismo.
Resultado de uma conferência que o filósofo deu no ano anterior em Paris, a
obra resume a essência de sua concepção sobre a condição humana.
Para Sartre, o que nos diferencia dos outros seres é a natureza da nossa
consciência, pois ao nascermos ela não está orientada para nada – os nossos
objetivos na vida, o que iremos ser e fazer não estão predeterminados; são,
ao contrário, coisas que apenas posteriormente tomarão forma, à medida em
que recebemos impressões do mundo externo. Este é o sentido de sua frase
“a existência precede a essência”: nós nascemos antes de nos definirmos en-
quanto seres humanos, pois a “natureza humana” e o “destino humano” não
estão preestabelecidos pela natureza – são, antes de tudo, coisas que preci-
samos construir a partir de nossas ações e escolhas ao longo de nossas vidas.
Daí a importância de um homem comandar o seu destino. “O homem
nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”, afirma Sartre. O ser hu-
mano totalmente submetido à sociedade doente acredita que destino é algo
que lhe acontece. Mas, na verdade, destino é algo que o ser humano cons-
trói, e construindo esse destino é que o indivíduo cria a si mesmo, definindo
sua própria natureza.

Com essa proposta, Sartre pretende afastar a ideia popular de que a sua
filosofia é pessimista. Na verdade, ela é otimista e impulsiona o homem à
ação. “O covarde se faz covarde”, enquanto “o herói se faz herói”, sendo que
“existe sempre, para o covarde, uma possibilidade de não ser mais covarde”.

Porém, Sartre reconhece que a noção de que somos livres para construir
nosso destino é tão desafiadora que muitos a consideram um fardo, um peso
do qual buscam se livrar de todas as formas possíveis. E com isso abrimos as
defesas imunológicas da sociedade ao ataque de agentes nocivos.

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Toda vez que alguém deposita sua fé em uma doutrina espiritual segun-
do a qual forças insondáveis determinam o destino humano; toda vez que
um indivíduo decide levar a vida “no piloto automático”, seguindo as regras
sociais sobre o que ser e fazer sem questioná-las; toda vez em que alguém
abdica de sua própria liberdade pessoal para tornar-se militante a serviço de
uma ideologia ou líder político: em todas essas situações estamos comoda-
mente abdicando de uma importante parcela de nossa autonomia, como uma
espécie de preço que pagamos para viver sem a pressão da responsabilidade
sobre nosso destino.
A maioria dos seres humanos ingressa na vida adulta e decide seguir
o passo-a-passo tradicional que socialmente foi convencionado como cer-
to e normal: universidade, trabalho, casamento, filhos, casa própria, apo-
sentadoria e morte. Isso não é certo nem errado, o problema é fazer isso
sem reflexão, somente por pressão social. Isso nos torna vítimas perfeitas
dos aspectos mais adoecidos de nossa sociedade, como o hiperconsumismo.
Num mundo enfermo, um indivíduo começa seu caminho em direção à cura
quando reconhece que o seu destino é sua responsabilidade, e que precisa
construir um projeto pessoal a respeito do que fará e de quem será na vida.

4. BUSCAR POR UM SENTIDO EXISTENCIAL


(VIKTOR FRANKL)
Viktor Frankl acrescentou um outro elemento nessa dinâmica do princí-
pio do prazer e do princípio da realidade, de modo que podemos encarar sua
proposta como um complemento, e não uma negação do que expôs Freud.
Para Frankl, a vontade de agir e viver com um sentido é mais forte nos seres
humanos que a vontade de obter prazer.
Isso explicaria, por exemplo, porque mártires aceitariam tormentos físicos
e até mesmo a própria morte por se recusarem a abdicar de suas convicções
políticas ou religiosas: antes de tudo, o ser humano busca não a satisfação de
seus desejos, mas a devoção a uma vida com plenitude de sentido. E se essa
plenitude de sentido tiver de ser confirmada ao preço dessa própria vida, em
casos extremos tal sacrifício é aceito.
Dessa forma, a crise humana atual seria uma crise de vazio existencial.
Inseridos em uma sociedade que não nos propõe um sentido e sequer va-
loriza a busca por um significado nas experiências humanas, substituímos
neuroticamente essa aspiração fundamental pelo consumo irrefreado e pela
espetacularização de nossas vidas.
É como estarmos em um palco no qual utilizamos recursos cênicos, ilu-
minação colorida e efeitos especiais para disfarçarmos a total falta de um
enredo.

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Para Viktor Frankl, a vida de cada ser humano é uma jornada espiritual
em busca da resposta à grande questão sobre o sentido dessa própria vida.
Mas tal resposta não está pronta, esperando que a descubramos: ela precisa
ser construída, e sua formulação não é feita por meio de explicações teóri-
cas, mas por meio de atos concretos. Assim, o caminho para uma sociedade
saudável dependeria de reconhecermos a importância de concebermos e im-
plementarmos coletivamente um sentido para a existência humana.

3. LIDAR COM O PRINCÍPIO DO PRAZER


(FREUD)
Embora esteja em voga atualmente criticar as teorias de Freud, a verdade
é que rejeitar integralmente suas ideias é tão tolo quanto abraçá-las como os
dogmas de uma nova religião. Freud trouxe importantes contribuições para
o atual entendimento da condição humana, embora tenha cometido, como
qualquer um, seus equívocos (alguns dos quais posteriormente corrigidos
pelos próprios teóricos da psicanálise).
E uma das principais de suas contribuições é a noção de que o ego huma-
no está em constante relação com dois princípios fundamentais: o Princípio
do Prazer e o Princípio da Realidade. O princípio do prazer consiste num me-
canismo psíquico simples que faz o ego buscar o prazer de todas as formas e
evitar o desconforto e a dor com todas as forças. Isso ocorre como um movi-
mento que ignora as dificuldades e exigências do mundo real.
O princípio da realidade, por outro lado, também está relacionado com
a busca de prazer pelo ego, mas em uma condição na qual as dificuldades e
exigências da realidade são reconhecidas e aceitas, de modo que buscamos
realizar o prazer e evitar a dor em uma constante relação com o mundo real
e suas possibilidades efetivas.

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De uma forma bem simplificada, imagine o princípio do prazer como uma


criança mimada ao extremo, que “quer porque quer aquilo que quer”, e que
não tem a mínima capacidade de aceitar ou sequer compreender as limita-
ções do mundo real. Já o princípio da realidade é um indivíduo adulto e ma-
duro o suficiente para entender que a realização de seus desejos demanda a
constante tratativa com as exigências da realidade. São duas faces do nosso
ego.

O ponto fundamental é que não há uma transição do princípio do prazer


para o princípio da realidade. Ou seja, segundo Freud, o princípio da realida-
de (o indivíduo adulto e maduro), não substitui o princípio do prazer (a crian-
ça mimada e egoísta). Internamente, ambos coexistem, e sempre teremos
um aspecto de nosso ego que busca o prazer de todas as formas, ignorando
completamente as limitações da realidade. A questão é saber reconhecer
essa característica de nossa mente e aprendermos a lidar de forma adequada
com essa tendência humana.

Na sociedade atual, porém, temos adultos e jovens oriundos de famílias


que não souberam impor os limites adequados, expondo gradualmente as
crianças às demandas da realidade. Ao contrário, cada vez mais os pais ado-
tam uma postura quase servil em relação a filhos mimados e despreparados
para encarar o mundo real.

Assim, homens e mulheres crescem com a ilusão de onipotência e com


a falsa impressão de que são especiais. Escravos da miragem de que seus
desejos e sonhos serão satisfeitos sem esforço, quando isso não ocorre surge
a tentação da desobediência da lei e da conduta antiética.

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Como o princípio do prazer não encontra a contraposição eficiente do


princípio da realidade, o resultado é uma sociedade composta por indivídu-
os egoístas, incapazes de lidarem com frustrações diárias e desprovidos da
determinação necessária para a concretização possível de seus sonhos. O
caminho para uma sociedade mais saudável passa pelo desenvolvimento de
uma relação mais madura com o princípio do prazer que está dentro de todos
nós, contrabalançando-o com o princípio da realidade, de forma que desen-
volvamos a capacidade de tolerar frustrações e de resistirmos à satisfação
imediata de nossos desejos mediante atos impulsivos e antiéticos.

6. SABER VIVER E AGIR NA PERMANENTE INCERTEZA

(BERTRAND RUSSELL)
Reconhecer que precisamos aprender a amar e a pensar corretamente,
bem como admitir que nosso destino e o sentido de nossas vidas não estão
predeterminados, mas precisam ser diligentemente construídos por meio de
nossos atos, exige um tipo muito particular de humildade: a capacidade de
vivermos permanentemente na incerteza, com poucas convicções.

O filósofo, matemático e historiador britânico Bertrand Russell, em sua


obra Unpopular Essays (Ensaios Impopulares), considerou a habilidade de
conviver saudavelmente com a incerteza uma das maiores virtudes do ser
humano. Essa aptidão seria o que impede um indivíduo de se tornar joguete
nas mãos de crenças religiosas, ideologias políticas ou líderes messiânicos
que nos prometem uma explicação totalizante para as maiores questões da
complexa vida contemporânea.

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ANO-ZERO.COM

“Ansiar pela certeza é algo inato na natureza humana, mas ainda assim
é um grande vício intelectual”, escreveu Russell. O fundamentalismo (não só
religioso, mas também político, em todas as suas facetas) tem por base uma
certeza dogmática e inabalável, que retoricamente ou emocionalmente seduz
os seus devotos.

Mas a incerteza não deve paralisar a ação, pois Bertrand Russell nos
previne do perigo de os mais inteligentes abrirem espaço na vida pública a
idiotas cheios de certezas equivocadas. “Agir com vigor, mesmo na falta de
absoluta certeza”, mas mantendo um elemento de saudável dúvida, ainda
que pequeno, em relação a cada assunto, é uma forma de evitar a um só
tempo o radicalismo, o fundamentalismo, a alienação e o preconceito.

7. TER O ESPÍRITO LIVRE E CRIATIVO DE UMA CRIANÇA


(NIETZSCHE)
Para Nietzsche, filósofo alemão que antecipou muitas das questões que
desafiam o ser humano na atualidade, conduzir o próprio destino com irres-
ponsabilidade é abdicar da própria autonomia e ceder a algo ou a alguém
uma parcela importante de nosso poder pessoal.
É que num mundo regido por relações de poder, deixar que convenções
sociais ou forças políticas/religiosas decidam o nosso destino implica em
abraçar uma espécie disfarçada e envergonhada de escravidão. Quando não
assumimos a integral responsabilidade pelas escolhas que precisamos fazer,
alguém as fará por nós, e sem dúvida o critério utilizado não será o nosso
benefício.
Nietzsche, que na vida pessoal experimentou os sofrimentos de longos
períodos de enfermidade, tinha um especial apreço pela metáfora do ser
humano integralmente saudável. Estamos espiritualmente adoecidos ao vi-
vermos em uma sociedade enferma, e o espírito livre desse estado de adoe-
cimento inicia seu processo de recuperação da saúde seguindo uma terapia
que Nietzche apresentou na sua obra Assim Falou Zaratustra em três etapas,
que chamou de As Três Transformações.
Na primeira, ainda enfermo, o ser humano é como um camelo, um escra-
vo que aceita todas as cargas impostas a si sem questionar. Na segunda fase,
a do leão, o indivíduo passa a destruir seu condicionamentos limitadores de
forma veemente, resgatando o controle de sua vida das mãos daquelas pes-
soas, doutrinas ou ideologias para as quais anteriormente havia entregado
o poder sobre si mesmo. Nesse momento, a pessoa diz “não” à sua prisão.
Por fim, na fase mais importante, o ser humano livre e autônomo começa a
reconstruir-se com a ludicidade e a criatividade de uma criança. Nessa etapa,
o indivíduo diz “sim” à sua vida.

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Nesse roteiro em três partes, podemos perceber com clareza o papel da


ironia. Ela exerce um trabalho destruidor e depurador de antigos condicio-
namentos sociais e crenças tradicionais. Assim, a ironia integra o “rugido do
leão” que nos liberta da sujeição a uma visão do mundo obsoleta e supers-
ticiosa. Mas, após essa etapa, a ironia pode deixar de ser parte do remédio
para converter-se em veneno. O espírito irônico é corroído pela desconfiança
e pela amargura, sendo incapaz de acreditar até mesmo em si mesmo e nas
mais nobres aspirações humanas. Por isso, Nietzsche exortava: “não jogue
fora o herói que há em sua alma, mantém sagrada a sua mais alta esperan-
ça!”
Essa é a razão de a metáfora da criança ser central na proposta terapêu-
tica de Nietzche. Se o ser humano precisa aprender a conduzir seus pensa-
mentos da melhor forma, como propõe Wallace, e se a natureza e o destino
de um indivíduo são coisas que ele precisa construir a partir de seus atos e
escolhas, como afirma Sartre, a atividade humana é, portanto, essencial-
mente criadora. E esse processo criação deve ser realizado com o mesmo
prazer lúdico que uma criança tem ao brincar, com a mesma esperança e
aspiração ao heroísmo que uma criança tem ao olhar seu futuro.

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ANO-ZERO.COM

acorde: tem um desconhecido


MANDANDO NA SUA VIDA
victor lisboa

O EXPERIMENTO BARGH

O modo como você anda, o quão persistente você é, qual seu nível de
egoísmo e até mesmo o que você comprará no supermercado: sinto muito,
mas quem decide essas coisas banais e outras tantas mais importantes não
é você.
Em 1996, o psicólogo John Bargh realizou um experimento simples mas
de implicações perturbadoras. Ele dividiu voluntários em dois grupos e pe-
diu que formassem frases com palavras dadas por sua equipe. Mas um dos
grupos tinha uma peculiaridade: sem perceberem, algumas dessas palavras
eram relacionadas à velhice (esquecido, careca, ruga, etc). Em seguida, Bar-
gh pedia que todos os voluntários caminhassem até outra sala, mais distante,
informando que lá haveria mais testes, e cronometrava secretamente o tem-
po que levavam no percurso.
Por incrível que pareça, os voluntários do grupo com palavras associadas
à velhice caminhavam mais lentamente que os do outro grupo, como se fos-
sem idosos. Posteriormente, todos os voluntários disseram não ter percebido
as palavras relacionadas à velhice e tampouco notado algo de pouco natural
no seu próprio jeito de caminhar.
O teste foi repetido várias vezes, com rigor científico, e o resultado foi
sempre o mesmo.
Até então, a ideia de que mensagens subliminares (no sentido de infor-
mações apenas percebidas pelo inconsciente de alguém) fossem capazes de
realmente orientar o comportamento humano era uma espécie de “lenda ur-
bana” da psicologia. Mas, a partir do experimento de Bargh, novas experiên-
cias foram desenvolvidas para apurar a extensão desse efeito de mensagens
associativas no comportamento humano mais básico.
Em 2006, uma equipe de psicólogos publicou os resultados de um experi-
mento chamado The Psychological Consequences of Money (“As Consequên-
cias Psicológicas do Dinheiro”). Essencialmente, se tratava de um experimen-
to semelhante ao de John Barg, mas com palavras e símbolos relacionados
ao dinheiro, que os participantes não percebiam, mas eram repassadas ao
seu inconsciente.

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Nesse caso, os pesquisadores constataram que os membros do grupo


que receberam anteriormente mensagens subliminares associadas a dinheiro
persistiam o dobro do tempo na tentativa de resolver um desafio lógico-ma-
temático de difícil solução. Por outro lado, esses mesmos participantes se
mostravam muito mais egoísta quando se tratava de ajudar os colegas, ainda
que a ajuda não os prejudicasse.
Ou seja, quando as pessoas estão rotineiramente submetidas a um con-
texto social em que o dinheiro é um assunto onipresente, elas se tornam
mais determinadas, mas ao mesmo tempo mais individualistas.
Também em 2006, outro experimento demonstrou que um grupo de pes-
soas orientado a pensar em atos vergonhosos de seu passado antes de parti-
cipar de um jogo de palavras tendia a escolher, no jogo, palavras associadas
com limpeza. Esse teste progrediu para outro em que parte dos voluntários
deveriam imaginar estarem praticando um homicídio – tal grupo, em uma
posterior simulação de compra no supermercado, adquiriu mais produtos de
limpeza (sabão, detergente, etc.) que os demais participantes.
A um resultado semelhante chegou o mundialmente aclamado neurolo-
gista António Damásio. Em 1996, ele desenvolveu uma série de testes que
comprovaram que o ser humano não toma decisões racionais mesmo que
o contexto exija racionalidade. Segundo a pesquisa de Damásio, tomamos
decisões inconscientemente motivados por emoções e, disfarçando esse fato
para nós mesmos, criamos justificativas aparentemente racionais para essas
escolhas. Quando questionados, os indivíduos sinceramente afirmavam que
sua escolha foi pautada por considerações racionais, mas Damásio desenvol-
veu uma espécie de jogo capaz de revelar quando, na verdade, as decisões
eram tomadas por emoções.
Dezenas de outros experimentos similares estão sendo documentados
nos últimos tempos, todos realizados e repetidos o número suficiente de ve-
zes para serem validados segundo criteriosos parâmetros científicos. E em
todos eles, os participantes afirmaram ao final não terem percebido as men-
sagens subliminares que influenciaram seu comportamento.
Todas essas pesquisas demonstram, de forma sólida e objetiva, que o
pilar central das teorias psicológicas tradicionais realmente existe. Não se
trata de uma pressuposição abstrata, sem fundamento: o inconsciente, aqui
entendido como uma parte de nossa psique que escapa ao controle da nossa
consciência, tem o poder de, frequentemente, dar a última palavra em rela-
ção ao nosso comportamento.
E a conclusão final desses experimentos bem resumida por Daniel Kahne-
man, psicólogo que ganhou o Nobel de economia por desenvolver uma teoria
que estuda a tomada de decisão humana inclusive sob o enfoque econômico:
gostamos de pensar que somos senhores de nossas atitudes e decisões, mas
é um estranho quem conduz nossas vidas.

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Após falar de algumas dessas pesquisas em seu aclamado livro Rápido e


Devagar, Kahneman arremata: “você acabou de ser apresentado a esse es-
tranho que existe em você mesmo, que talvez esteja no controle sobre gran-
de parte do que você faz, embora você raramente vislumbre isso”.
E esse estranho é manipulável, facilmente influenciável. Um político ha-
bilidoso, uma agência publicitária ou mesmo um líder religioso que souber
puxar as cordas certas será capaz de conduzir o seu destino como o de um
marionete, por mais que você não admita isso, por mais que você se julgue
especial e diferente de seus contemporâneos.
E tudo isso porque você está dormindo, neste exato momento.
Acorde.

GURDJIEFF E O SONHO ACORDADO

O armênio George Ivanovich Gurdieff faz parte daquele grupo de loucos


geniais do século XX, que misturavam insights reveladores com pirações às
vezes perigosas, grupo ao qual pertenciam figuras como Colin Wilson, William
Reich, Aleister Crowley, Jodoroswki e tantos outros doidos de variado grau de
periculosidade social. Sabendo separar o joio do trigo, a teoria maluca das
ideias proveitosas, podemos aprender um bocado com Gurdjieff.
Para ele, estamos sempre adormecidos, seja durante o sono noturno,
seja com os olhos abertos ao longo do dia, ocasião em que nos iludimos de
que estamos totalmente despertos.
Para entendermos o que ele quer dizer, precisamos compreender alguns
aspectos elementares dos sonhos. Quando dormimos à noite, ficamos apenas
parcialmente e não completamente isolados do mundo externo, sem perce-
ber o que ocorre lá fora. Afinal, fechamos nossos olhos para dormir, mas não
nossos ouvidos e os demais sentidos de nosso corpo.
Então, às vezes, percepções do mundo real vazam para dentro de nossos
sonhos, e nós incorporamos esses estímulos ao que sonhamos no momento.
Todos nós já passamos por esse tipo de experiência. Às vezes, sentimos sede
e sonhamos que estamos bebendo água. Dentro de nosso sonho um carro
buzina, um telefone toca ou alguém nos chama pelo nome, e logo em segui-
da despertamos para descobrir que no mundo real um carro estava mesmo
buzinando, nosso celular realmente tocava ou alguém de fato tentava nos
despertar.
Isso ainda acontece quando estamos supostamente acordados, pois em
certo sentido ainda continuamos a sonhar, e quem sonha de olhos abertos é
alguém chamado “Ego”.
E o ego sonha porque tende a organizar todas experiências do mundo em
torno de si, como se tudo o que ocorresse tivesse ele, direta ou indiretamen-
te, como protagonista, como personagem central para o qual todas as coisas,
todos os eventos, convergem.
Assim, a única diferença entre estar dormindo e estar acordado seria
apenas do grau de profundidade do ato de sonhar realizado pelo Ego. Isso
porque os sonhos são formados por fragmentos de estímulos do mundo lá
fora e por elementos que estão em nosso inconsciente. Há, por assim dizer,
uma mistura de realidade e de subjetividade.

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Durante o dia, a quantidade de percepções do mundo lá fora que vazam


para esse nosso “sonho” é muito maior, e o Ego se encarrega de ajustar to-
dos esses estímulos exteriores para formar uma narrativa coerente que con-
fundimos com a realidade, mas que não passa de algo imaginado – pois, no
centro da narrativa, nós somos os protagonistas e a verdade é que o mundo
existe, as pessoas vivem e as coisas acontecem independentemente de nos-
sa existência.
Vamos lembrar do exemplo da buzina e do celular. Quando estamos acor-
dados, percebemos a realidade ao nosso redor, e estamos conscientes quan-
do um carro buzina ou toca nosso celular. Podemos, assim, interagir com o
mundo lá fora.
Porém, para Gurdjieff, não percebemos os estímulos externos tais como
são, mas os selecionamos e os interpretamos conforme nossa perspectiva de
Ego que está em parte acordado e em parte sonhando.
Da mesma forma como, enquanto dormimos à noite, a matéria de nosso
sonhar é o conjunto de elementos pertencentes ao inconsciente somado a
algumas percepções da realidade, enquanto estamos acordados durante o
dia essas percepções, mais numerosas, são misturados pelo Ego condiciona-
mentos da infância, traumas, preconceitos, desejos frustrados, temores, ex-
pectativas e pressuposições sobre como gostaríamos que as coisas fossem.
Para explicar esse processo, há um conceito muito útil formulado pela
psicologia. Trata-se do fenômeno da projeção. Assim como um antigo pro-
jetor de cinema projeta na tela branca cenas de um filme, da mesma forma
nosso Ego projeta nos acontecimentos suposições e circunstâncias que não
são reais, mas que correspondem, de forma por vezes simbólica, ao que está
dentro de nós e que somos incapazes de reconhecer conscientemente.
Estamos parcialmente dormindo nesse exato momento justamente por-
que nosso estado de semidespertar é repleto dessas projeções.
Esse é o motivo pelo qual, muitas vezes, um pequeno incidente no trân-
sito acaba em violência desproporcional. Também é a razão pela qual uma
rivalidade entre torcidas de futebol pode ser a dar lugar a um homicídio, ou
um pequeno desentendimento entre familiares ou amigos pode resultar num
grande desentendimento, com todos magoados de forma incompreensível.
Matar por um time, agredir por causa de um pedaço de metal motorizado
ou magoar-se por um incidente minúsculo: fatos insignificantes que resul-
tam em grandes tragédias. É que, envolvendo os fugazes e pouco relevantes
eventos da vida real, há camadas e camadas de projeções resultantes de
nosso estado semidesperto.
Nesses casos e em muitos outros, quem discute, agride ou se magoa
não está realmente enxergando o outro ser humano na sua frente, mas uma
mistura da outra pessoa com uma projeção de algo que existe apenas na sua
cabeça. Porém, como sonhamos acordados, julgamos ter existência concreta
coisas que estão apenas em nossa mente. É assim que nosso Ego mantém
uma narrativa coerente, mas falseada, sobre sua importância no mundo.
Mas se a diferença entre nosso sonho noturno e nosso sonho diurno está
apenas no grau em que os estímulos internos vazam para nosso sono, há
algum modo de realmente despertar?

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ANO-ZERO.COM

E COMO DESPERTAR?

Para Gurdjieff haveria, ao lado do adormecer noturno e do “sonambulis-


mo” diurno, um terceiro estágio de consciência. Esse seria o estado de pleno
despertar.
É dessa forma que o bigodudo armênio definia o conceito oriental de “ilu-
minação” e seus equivalentes ocidentais, como a “beatitude”: não haveria
nada de místico nesses estados, o iluminado não seria alguém que atingiu
um nível de espiritualidade superior. Quem se ilumina simplesmente acordou
no sentido de não misturar e confundir as coisas do mundo real com elemen-
tos do seu mundo subjetivo – a vida lá fora não é mais uma tela branca na
qual seu ego projeta, sem perceber, conteúdos que estão aqui dentro. Ele
reconhece as coisas tal como são.
Essa, curiosamente, era a visão que outro maluco beleza, Wilhelm Reich,
tinha sobre a personalidade de Jesus Cristo. Para Reich, não se tratava do
“filho de Deus”, e tampouco de um alienígena ou ser de alguma forma espi-
ritualmente distinto dos outros humanos. Ele teria sido apenas um homem
que despertou mais do que seus contemporâneos, e seu assassinato não co-
meçou no momento da crucificação, mas quando seus discípulos passaram a
tratá-lo como uma espécie de divindade, deturpando suas palavras.
Nesse caso teríamos, na história de Cristo, um ensinamento importante
a tirar. Quando chegamos a esse terceiro estágio, a essa experiência de um
maior despertar, aqueles que ainda estão dormindo e sonhando projetam em
nós o conteúdo de seu sonho: não nos entendem e tampouco nossas pala-
vras, então nos tratam como se fôssemos seres espiritualmente superiores.
Isso é uma estratégia defensiva com a qual o Ego impede que possamos ir
mais além e superá-lo. Afinal, se aquele sujeito que fala coisas maravilhosas
não é como nós, mas sim uma criatura de natureza divina, estamos dispen-
sados do compromisso de chegar ao estágio em que ele se encontra.
Mas no momento em que despertamos, já não nos enganamos mais e
somos capazes, ao menos em parte, de reconhecer o mundo e as coisas tal
como de fato são. Percebemos a realidade dentro da modesta capacidade de
nossa consciência, mas essa capacidade está disponível em sua potenciali-
dade mais plena pois não está contaminada por conteúdos do inconsciente.
Estamos acordados e possuímos a noção mais precisa possível dos estímulos
externos, de modo a perceber a complexidade e ambiguidade de cada situa-
ção ou ser com que entramos em contato, e a dificuldade peculiar de adap-
tá-los nas categorias mentais que nossa mente formula.
Mas ainda não chegamos ao que importa: há algum modo de não sonhar-
mos mais?
Nesse ponto, a primeira atitude mentalmente saudável é abandonar qual-
quer tipo de obsessão pela ideia de “despertar”. Gurdieff era, em grande
parte, obcecado com a noção de que podíamos atingir uma consciência mais
plena, e exigia incondicional adesão de seus discípulos que deveriam fazer
exercícios diários de atenção para não se deixar “adormecer” no cotidiano.

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É por isso que se começarmos com uma compreensão de que qualquer
pequeno despertar diário, por menor que seja, já é uma vitória, estamos
CÂNONE no
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caminho certo. Seremos capazes de nos desculpar e compreender quando
nos apanharmos dormindo diante de uma situação, projetando no mundo
real o que é “sonho” de nossa mente, e seguiremos um trajeto suave, sem
atritos e obsessões, para um caminho de melhor qualidade de vida.
E qualidade de vida é uma palavra importante, pois deixa claro que, nes-
se tópico, o fundamental é ser prático e não filosófico. Não queremos chegar
a um estágio de superioridade metafísica – queremos é viver bem e reduzir
o sofrimento dos seres ao nosso redor. Isso porque ainda não respondemos
claramente como chegar a um maior despertar.
Ocorre que a segunda atitude mental saudável é não se deixar prender a
qualquer filosofia ou doutrina específica que nos sirva como forma de desper-
tar. Pois ao lado do risco da “obsessão”, também há o risco de “fanatização”
com uma das variadas doutrinas e técnicas que podem nos fornecer para
deixarmos de dormir acordados.
Porque há, sim, vários métodos capazes de servir como via para um maior
despertar. O grande truque é considerarmos todos esses métodos e doutrinas
como instrumentos, úteis dentro de determinados limites e contextos, e não
como verdades absolutas que trazem a panaceia para nossa situação.
E se adotarmos essa postura, praticamente quase todas as atividades de
desenvolvimento humano, da Yoga à prática de nosso esporte favorito, tor-
nam-se ferramentas para o despertar.
Dito isso, uma das práticas mais antigas e eficientes para começar a tri-
lhar o caminho de um maior despertar é a meditação. Por assim dizer, a ela
é uma “tecnologia de despertar” desenvolvida no Oriente. Há, na verdade,
vários tipos de meditação, e a experiência de cada uma delas é tão particular
que é como se fosse uma roupa que se ajusta à cada pessoa conforme suas
particularidades. Mas todas induzem, de uma forma ou de outra, nossa men-
te a ficar mais atenta aos seus processos internos e à relação com o mundo
externo.
E modernamente, arrisco dizer que o Ocidente desenvolveu moderna-
mente sua própria tecnologia de despertar, embora sobre ela ainda recaia
muita incompreensão e acusações injustas, em grande parte vindas de pes-
soas que jamais tomaram o cuidado de realmente estudá-la com a profundi-
dade e atenção que ela existe, e queconfundem o mapa com o terreno que
ele tenta representar. Trata-se da psicanálise, que se desenvolveu muito após
o passo inicial dado por Freud (e as principais críticas de leigos voltam-se
muito a esse fundador, ignorando o que foi revisto e reformulado ao longo
de um século) e que nos auxilia a compreender até onde a nossa percepção
do mundo circundante é afetada e mesmo falseada por elementos internos.
Existe, assim, um ponto de encontro entre a prática oriental da meditação
e o procedimento ocidental da psicanálise. Seja pelo treino da desindentifi-
cação entre a consciência e os pensamentos (meditação), seja pelo trabalho
de reconhecimento da representações emocionais/simbólicas (psicanálise),
ambas as experiências partem de pontos díspares (a meditação, do treino
da consciência; a psicanálise, do labor com o inconsciente) para atingir um
objetivo comum: a habilidade de distinguir o que há de real daquilo que há
de onírico.

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Um mundo com pessoas mais despertas é um mundo de pessoas mais


amorosas em suas relações e mais responsáveis em seus atos. Quem acor-
dou um pouco mais do sonambulismo diário é capaz de ter a abertura neces-
sária para construir uma sociedade realmente evoluída, em que o centro de
nossas decisões não é o ego, mas o bem estar coletivo.
Fazemos, por fim, amizade com o desconhecido que há em nós e que
comanda nossas vidas. Trazemos ele à luz, reconhecemos os seus objetivos
confusos, medos ocultos e desejos inconfessos. E ele se torna menos mani-
pulável, menos cego em seus passos. Na verdade, ocorre a fusão entre nós
e uma parte de nosso ser que ignoramos. Por fim, abrimos nossos olhos um
pouco mais, pois eles estão fechados neste exato momento, e sonhamos sem
perceber.
Portanto, despertemos.

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a pergunta mais importante


DA SUA VIDA
mark manson*

Todo mundo quer se sentir bem. Todo mundo quer viver uma vida des-
preocupada, feliz e suave, quer apaixonar-se e ter relacionamentos e encon-
tros sexuais maravilhosos, parecer perfeito e ganhar dinheiro e ser popular
e respeitado e admirado e um grande fodão ao ponto de as pessoas abrirem
caminho como se fossem o Mar Vermelho quando você caminha pela sala.
Todo mundo gostaria disso – é fácil gostar disso.
Se eu perguntar a você “o que você quer de sua vida?” e você responder
algo como “eu quero ser feliz e ter uma grande família e um trabalho que eu
goste”, isso é tão genérico que nem mesmo significa alguma coisa.
Uma questão mais interessante, uma questão que talvez você nunca te-
nha cogitado antes, é qual a dor que você quer na sua vida? Pelo que você
deseja sofrer? Porque essa questão parece ser muito mais determinante para
o que acontecerá na sua vida.
Todo mundo quer um trabalho sensacional e independência financeira –
mas nem todo mundo quer sofrer durante 60 horas de jornada de trabalho
por semana, em longos trajetos, diante de uma papelada aborrecida, en-
frentando a arbitrária hierarquia das empresas e os estritos limites de um
cubículo infinitamente infernal. As pessoas querem ser ricas sem o risco,
sem o sacrifício, sem o adiamento da gratificação que são necessários para
acumular riqueza.
Todo mundo quer ter ótimas relações sexuais e incríveis relacionamen-
tos – mas nem todo mundo quer enfrentar as conversas difíceis, os silêncios
constrangedores, os sentimentos magoados e o psicodrama necessários para
chegar até lá. E então as pessoas se acomodam. Eles se conformam e ima-
ginam “E se fosse assim?” por anos e anos até a questão “E se fosse assim?”
transforme-se em “Isso foi tudo?” E quando os advogados vão para casa e o
cheque da pensão alimentícia está nos correios eles perguntam “Para que foi
isso?” – e se foi apenas para baixar suas expectativas e padrões nos últimos
vinte anos, então para que foi isso?
Porque felicidade requer esforço. O positivo é efeito colateral de lidar com
o negativo. Você pode evitar as experiências negativas só até elas retorna-
rem rugindo de volta à vida.
Na essência de todo comportamento humano, nossas necessidades são
mais ou menos idênticas. É fácil lidar com experiências positivas. São as ex-
periências negativas que todos nós combatemos. Portanto, o que recebemos
da vida não é determinado pelas boas sensações que aspiramos, mas pelas
más sensações que buscamos e somos hábeis de tolerar para que nos levem
até as boas sensações.

*Tradução de The most important question of your life, autorizada pelo autor.

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As pessoas querem ter um físico deslumbrante. Mas você não consegue


isso a não ser que realmente aprecie a dor e o estresse físico que vem de
viver dentro de uma academia durante horas, a não ser que você adore cal-
cular e calibrar a comida que come, planejando sua vida a partir de pequenas
porções de alimento no seu prato.
As pessoas querem começar seu próprio negócio ou se tornar financei-
ramente independente. Mas você não consegue isso a não ser que encontre
um modo de apreciar o risco, a incerteza, as falhas reiteradas, e trabalhar
insanamente por horas em algo que você não tem ideia nenhuma se vai dar
certo ou não.
As pessoas querem um amor, um cônjuge. Mas você não consegue atrair
alguém fantástico sem apreciar a turbulência emocional que vem com rejei-
ções periódicas, construindo a tensão sexual que nunca é aliviada, e olhando
com olhar vazio para um telefone que nunca toca. É parte do jogo do amor.
Você não pode vencer se não jogar.
O que determina seu sucesso não é “O que você quer curtir?”. A questão
é “Que dor você quer suportar?”. A qualidade da sua vida não é determinada
pela qualidade das suas experiências positivas mas pela qualidade das suas
experiências negativas. E tornar-se hábil em lidar com experiências negati-
vas significa tornar-se hábil de lidar com a vida.
Há um bocado de conselhos idiotas por aí que dizem “Você só precisa
querer isso o suficiente para conseguir!”
Todo mundo quer alguma coisa, e todo mundo quer alguma coisa o su-
ficiente. Só que eles não estão cientes do que eles exatamente querem, ou
melhor, do que eles querem “o suficiente”.
Porque se você quer os benefícios de algo na sua vida, você tem que que-
rer também o custo. Se você quer um corpo atlético, você tem que querer o
suor, a dificuldade, o acordar bem cedo e as dores de fome. Se você quer um
iate, você tem que querer também as madrugadas de trabalho, os arriscados
movimentos nos negócios e a possibilidade de chatear uma pessoa ou mes-
mo dez mil pessoas.
Se você se descobre desejando algo mês após mês, ano após ano, e ape-
sar disso nunca ocorre de você chegar nem perto do que deseja, então talvez
o que você deseja seja uma fantasia, uma idealização, uma imagem e uma
falsa premissa.
Às vezes eu pergunto às pessoas “Como você escolhe sofrer?”. Essas
pessoas inclinam suas cabeças e olham para mim como se eu tivesse doze
narizes. Mas faço essa pergunta porque ela me diz mais sobre você do que
seus desejos e fantasias. Porque você precisa escolher algo. Você não pode
ter uma vida livre da dor. A vida não pode ser só rosas e unicórnios. E no fim
das contas essa é a questão que importa. Prazer é uma questão fácil. E para
elas todos nós temos respostas muito parecidas. Uma questão mais interes-
sante é a dor. Que dor você quer suportar?
Essa resposta levará mesmo você a algum lugar. É a questão que pode
mudar sua vida. É o que faz que eu seja eu e você seja você. É o que nos
define e nos separa – e, no final, é o que nos une.

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Na maior parte da minha adolescência e início da vida adulta, eu fantasiei


sobre ser um músico – um rock star, na verdade. Se eu escutava uma músi-
ca fodona, fechava meus olhos e me via em um palco tocando-a e gritando
para a multidão – as pessoas perdendo totalmente sua cabeça enquanto eu
dedilhava a guitarra. Essa fantasia deixava-me ocupado por horas e horas. A
fantasia continuou durante a universidade, e mesmo depois de ter largado a
escola de música parado de tocar com seriedade. Mas mesmo então nunca
foi uma questão sobre se eu em tocaria na frente de uma multidão ou não,
mas sim de quando. Eu estava desperdiçando meu tempo antes que pudesse
investir a necessária quantidade de tempo e esforço para chegar lá e fazer
isso acontecer. Primeiro, eu precisava terminar a universidade. Depois, eu
precisava ganhar dinheiro. Mais tarde, eu precisava encontrar tempo. E en-
tão… e então nada.
Apesar de fantasiar sobre isso durante mais da metade da minha vida, a
realidade nunca aconteceu. E levou um bom tempo e um bocado de experi-
ências negativas até eu descobrir porque: eu não queria realmente aquilo.
Eu estava apaixonado pelo resultado – a imagem de mim num palco, as
pessoas aplaudindo, eu arrasando, colocando todo meu coração naquilo que
eu tocava – mas eu não estava apaixonado pelo processo. E por causa disso,
eu falhei. Repetidamente. Droga, eu nem mesmo tentei forte o suficiente
para falhar. Eu mal tentei na verdade.
A labuta diária da prática, a logística de achar uma banda e ensaiar, a dor
de conseguir fazer shows e convencer as pessoas a comparecer e se importar
com isso. As cordas rompidas, o estouro do amplificador valvulado, carregar
20 quilos de equipamento para dentro e para fora do estúdio sem carro. É um
sonho na forma de montanha com dois mil metros de altura para escalar até
o topo. E o que levou um longo tempo para eu descobrir é que eu não gostava
muito de fazer escaladas. Eu só me imaginava no topo da montanha.
Nossa cultura vai me dizer que de alguma forma eu falhei, que sou um
desistente e um perdedor. A auto-ajuda diria que ou não fui corajoso o sufi-
ciente, determinado o suficiente ou não acreditava o suficiente em mim mes-
mo. A turma empreendedora diria que eu me amedrontei com meu sonho e
me conformei com minha condição social. Eu seria aconselhado a ser con-
fiante ou me juntar a um grupo de pensamento positivo ou algo do gênero.
Mas a verdade é muito menos interessante que isso: eu pensei que eu
queria algo, mas ocorre que eu não queria. Fim da história.
Eu queria uma recompensa sem esforço. Eu queria o resultado e não o
processo. Eu estava apaixonado não pela luta, mas pela vitória. E a vida não
funciona desse jeito.
Os valores pelos quais você deseja se esforçar definem quem você é. Pes-
soa que gostam de se esforçar em uma academia são aquelas que ficam em
boa forma fisica. Pessoas que gostam de longas horas semanais de trabalho
e da política inerente às escaladas corporativas são as que ascendem nas
empresas. Pessoas que curtem o estresse e a incerteza do estilo faminto de
um artista são aquelas que vivem a experiência e chegam lá.
Isso não é uma apologia à força de vontade ou à ambição. Isso não é
outro sermão no estilo no pain, no gain.
Isso é sobre o mais simples e mais básico componente da vida: nossas
batalhas determinam nosso sucesso. Então escolha com sabedoria as suas
batalhas, meu amigo.

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7 perguntas para encontrar


O PROPÓSITO DA SUA VIDA
mark manson*

U m dia, quando meu irmão tinha dezoito anos, ele valsou até nossa
sala de estar e orgulhosamente anunciou para mim e nossa mãe que um dia
ele seria um senador. Minha mãe provavelmente deu a ele um tratamento do
tipo “Que bom, querido”, enquanto eu com certeza estava distraído com uma
tigela de cereais ou algo do tipo.
Mas, por 15 anos, esse propósito moldou todas as decisões na vida de
meu irmão: o que ele estudou na faculdade, onde ele escolheu viver, com
quem ele se relacionou e mesmo o que ele fazia em suas férias e nos finais
de semana.
E agora, quase metade do tempo de uma vida depois, ele é consultor de
um grande partido político na sua cidade, além de ser o mais jovem juiz no
Estado. Nos próximos breves anos, ele espera candidatar-se a um cargo pú-
blico pela primeira vez.
Não me entenda mal. Meu irmão é um abobado. Essa história basicamen-
te nunca aconteceu.
A maioria de nós não tem nenhuma pista sobre o que quer fazer de suas
vidas. Mesmo depois de terminar a faculdade. Mesmo depois de conseguir
um emprego. Mesmo depois de começar a ganhar dinheiro. Entre 18 e 25
anos, mudei meu projeto sobre qual seria minha carreira mais vezes do que
troquei de cuecas. E mesmo após ter meu negócio, não foi até ter 28 que eu
claramente defini o que eu desejava para a minha vida.
É provável que você seja como eu e não tenha pista alguma sobre o que
você quer fazer. É uma luta que quase todos os adultos enfrentam. “O que
quero fazer na minha vida?” “O que me deixa apaixonado?” “O que sou pés-
simo em fazer?” Frequentemente recebo emails de pessoas com quarenta e
cinquenta anos que ainda não tem qualquer pista sobre o que querem fazer
de suas vidas.
Parte do problema é o conceito de “propósito de vida”: A ideia de que
cada um de nós nasceu com um grande propósito e que agora é a nossa
missão cósmica descobrir qual ele é. Esse é o mesmo tipo de lógica idiota
que costuma justificar coisas como cristais espirituais ou que seu número de
sorte é 34 (mas apenas nas terças e durante luas cheias).
Mas aqui está a verdade. Nós existimos neste planeta por algum período
indeterminado de tempo. Durante esse tempo nós fazemos coisas. Algumas
dessas coisas são importantes. Outras não tem importância. E aquelas que
são importantes dão à nossa vida significado e felicidade. As coisas sem im-
portância basicamente desperdiçam e consomem nosso tempo.
Então, quando as pessoas perguntam “O que eu deveria fazer da minha
vida?” ou “Qual o propósito da minha vida?”, o que estão realmente pergun-
tando é: “O que posso fazer com meu tempo que seja importante?”

*Tradução de 7 strange questions that help you find your life purpose, autorizada pelo autor.

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CÂNONE AZ 2014-2016

Essa é uma questão infinitamente melhor. Ela é muito mais manejável e


não tem aquela ridícula carga que a questão “propósito de vida” tem. Não
há razão para você ficar contemplando o significado cósmico da sua vida en-
quanto está sentado no sofá comendo doritos. Antes, você precisa tirar sua
bunda do sofá e descobrir o que é importante para você.
Uma das perguntas mais comuns nesses emails que recebo é a de pes-
soas querendo saber o que elas devem fazer de suas vidas, qual seria o seu
“propósito de vida”. Essa é uma questão impossível de ser respondida. Afinal,
por tudo que sei, quem me pergunta pode ser vocacionado a tricotar rou-
pinhas para gatos ou gravar filmes pornô de sado-masoquismo gay na sua
garagem. Eu não tenho nenhuma pista sobre isso. Quem sou eu para dizer o
que é certo ou o que é importante para alguém?
Mas, após alguma pesquisa, reuni uma série de questões que ajudarão
você a descobrir por si mesmo o que é importante para você e o que pode
dar mais significado à sua vida.
Essas questões de forma alguma são exaustivas ou definitivas. Na verda-
de, elas são um pouco ridículas. Mas eu as fiz dessa maneira pois encontrar
uma razão para a vida deve ser algo divertido e interessante, e não um fardo.

1. QUAL É SEU SABOR FAVORITO DE SANDUÍCHE


DE MERDA, E ELE VEM COM AZEITONAS OU NÃO?

Ah, sim. A questão mais importante. Qual o sabor de sanduíche de merda


que você gostaria de comer? Pois eis uma verdade fedorenta sobre a vida que
ninguém lhe diz na escola e na universidade:
Tudo é um saco, na maior parte do tempo.
Agora, isso provavelmente pareceu incrivelmente pessimista da minha
parte. E você pode estar pensando “ei cara, melhora esse seu humor aí”. Mas
na verdade eu acho que essa é uma ideia libertadora.
Tudo envolve sacrifício. Tudo tem algum tipo de custo. Nada é prazeiroso
ou satisfatório o tempo todo. E assim a questão é a seguinte: que esforço ou
sacrifício você deseja suportar? Em última análise, o que determina sua ca-
pacidade de dedicar-se a algo com que se importa é sua capacidade de lidar
com os aspectos árduos e também suportar os inevitáveis dias difíceis.
Se você quer ser um brilhante empreendedor no mundo da tecnologia
mas não consegue lidar com o fracasso, então você não vai ir muito longe.
Se você quer ser um artista profissional mas não está pronto para ver seu
trabalho rejeitado centenas de vezes, senão milhares de vezes, então você
acabou bem antes de começar. Se você quer ser um advogado bem-sucedido
mas não pode suportar 80 horas de trabalho semanal, tenho más notícias
para você.
Com que vivências desagradáveis você consegue lidar? Você é capaz de
ficar acordado a noite inteira programando? Você é capaz de adiar os planos
de formar uma família por dez anos? Você é capaz de suportar as pessoas
rindo de você na plateia por diversas vezes até você conseguir fazer a coisa
do jeito certo?
Que sanduíche de merda você quer comer? Porque todos nós recebemos
um eventualmente.
Pode também escolher um com azeitonas, sabe.

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2. QUAL É A VERDADE SOBRE VOCÊ, HOJE, QUE


FARIA SEU EU DE 8 ANOS DE IDADE CHORAR?

Quando eu era criança, costumava escrever histórias. Eu sentava no meu


quarto sozinho, escrevendo sobre aliens, super-heróis, grandes guerreiros,
meus amigos e minha família. Não porque eu quisesse que alguém lesse
aquilo, não porque eu quisesse impressionar meus pais ou professores. Mas
pelo puro prazer de escrever.
E então, por alguma razão, eu parei. E não me lembro o porquê.
Todos nós temos uma tendência de perder contato com aquilo que amá-
vamos quando criança. Algo na pressão social da adolescência e na pressão
profissional dos adultos espreme a paixão para fora de nós. Somos ensinados
que a única razão para fazer algo é se alguém nos recompensar por isso.
Não foi até eu atingir 25 anos que redescobri o quanto eu amava escrever.
E não foi até eu começar meu negócio que lembrei o quanto eu amava criar
websites – uma coisa que eu fazia na adolescência, só pelo prazer.
A coisa engraçada, porém, é que se meu eu de 8 anos perguntasse ao
meu eu de 20 anos “Por que você não escreve mais?” e ele respondesse
“Porque não sou bom nisso” ou “Porque ninguém vai ler o que eu escrever”
ou “Porque você não pode ganhar dinheiro fazendo isso”, não apenas o meu
eu de 20 anos estaria completamente errado, mas minha versão de 8 anos
provavelmente começaria a chorar.

3. O QUE FAZ COM QUE VOCÊ ESQUEÇA


DE COMER E IR AO BANHEIRO?

Nós todos já tivemos essa experiência de estarmos tão envolvidos em


alguma coisa que os minutos se tornam horas e horas se tornam “Meu Deus,
esqueci de jantar”.
Dizem que a mãe de Isaac Newton, no auge da carreira do filho, tinha
que procurá-lo regularmente e lembrá-lo de comer porque ele passaria dias
inteiros absorvido em seu trabalho que esqueceria de se alimentar.
Eu costumava a ser assim com vídeo-games. Isso não é provavelmente
uma coisa boa. Na verdade, por muitos anos isso foi um tipo de problema.
Eu sentava e jogava games ao invés de fazer coisas mais importantes como
estudar para uma prova, ou tomar banho regularmente, ou falar com outra
pessoa face a face.
Não foi até eu largar os games que consegui perceber que minha paixão
não era pelos games em si mesmos (embora eu os amasse). Minha paixão
era pelo aprimoramento, ser bom em alguma coisa e tentar ser melhor ainda.
Os games em si mesmos – os gráficos, as histórias – eram ótimos, mas eu
poderia viver sem eles. Era a competição (com outros, mas especialmente
comigo) que me fanatizava.
E quando apliquei essa obsessividade por aprimoramento e auto-compe-
tição em um empreendimento na internet e na minha atividade de escritor,
bem, a coisas decolaram pra valer.
Talvez para você seja uma outra coisa. Talvez seja organizar as coisas
eficientemente, ou perder-se em um mundo de fantasia, ou ensinar a alguém
alguma coisa, ou solucionar problemas técnicos. Seja o que for, não busque
apenas descobrir quais atividades deixam você desperto a noite inteira, mas
busque pelos princípios cognitivos atrás dessas atividades que enfeitiçam
você. Porque eles podem ser facilmente aplicáveis em qualquer situação.

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4. COMO VOCÊ PODE ENVERGONHAR A VOCÊ


MESMO DA MELHOR MANEIRA?

Antes que você seja capaz de ser bom em algo e fazer alguma coisa
importante, você precisa, em primeiro lugar, ser péssimo em algo e não ter
nenhuma pista sobre o que está fazendo. Isso é bem óbvio. E, para ser pés-
simo em algo e não ter nenhuma pista sobre o que está fazendo, você pre-
cisa envergonhar a si mesmo de alguma forma, de regra repetidamente. E
a maioria das pessoas tenta evitar envergonhar a si mesmo, principalmente
porque isso é uma merda.
Aí está. Devido à natureza transitiva da grandiosidade humana, se você
evita qualquer coisa capaz de potencialmente lhe envergonhar, então você
jamais acabará fazendo algo que sente ser importante.
Sim, parece que mais uma vez tudo tem a ver com vulnerabilidade.
Neste exato momento, há alguma coisa que você deseja fazer, alguma
coisa que você pensa em fazer, uma coisa que você fantasia em fazer, mas
ainda assim você não faz nada. Se você tem seus motivos, sem dúvida. E
você repete a si mesmo esses motivos ad infinitum.
Mas que motivos são esses? Porque eu posso dizer a você agora mesmo
que se esses motivos estão baseados naquilo que os outros vão pensar, então
você está ferrando com sua vida em grande estilo.
Se seus motivos são algo como “Eu não posso iniciar meu negócio porque
passar tempo com meus filhos é mais importante para mim” ou “Jogar Star-
craft todo dia provavelmente interferiria com minha música, e minha música
é mais importante para mim” então OK, seu motivo parece ser bom.
Mas se seus motivos são como “Meus pais odiariam isso” ou “Meus ami-
gos ririam de mim” ou “Se eu fracassar, vou parecer um idiota”, então é pro-
vável que você na verdade esteja evitando algo com que realmente importa,
porque importar-se com isso é o que mais apavora você, e não o que sua mãe
ou o José da porta ao lado diria.
Viver a vida evitando a vergonha é como viver a vida com sua cabeça
enfiada na areia.
As grandes coisas são, por sua própria natureza, únicas e pouco con-
vencionais. Portanto, para realizá-las precisamos ir contra a mentalidade de
rebanho. E fazer isso é apavorante.
Abrace a vergonha. Sentir-se idiota é parte do caminho para realizar algo
importante, algo significativo. Quanto mais a principal decisão de sua vida lhe
assustar, mais provável é que você precise tomá-la.

5. COMO VOCÊ VAI SALVAR O MUNDO?

Caso você não tenha visto as notícias mais recentes, o mundo tem alguns
problemas. E por “alguns problemas” o que quero dizer é “tudo está fodido e
nós todos vamos morrer”.
Eu já falei disso antes, e as pesquisas também sustentam isso: para vi-
vermos uma vida feliz e saudável, nós precisamos abraçar valores que sejam
maiores do que o nosso próprio prazer ou satisfação.

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ANO-ZERO.COM

Encontre um problema com o qual você se importa e comece a resolvê-lo.


Obviamente, você não resolverá os problemas do mundo sozinho. Mas você
pode contribuir e fazer a diferença. E esse sentimento de fazer a diferença é,
no fim das contas, o mais importante para sua própria felicidade e sensação
de propósito.
Mas agora eu sei o que você está pensando. “Mark, eu li todas essas coi-
sas horríveis também e elas também me deixaram furioso, mas isso não se
traduziu em ação, muito menos em uma nova carreira”. Fico feliz que tenha
perguntado…

6. COM UMA ARMA NA SUA CABEÇA, SE


VOCÊ TIVESSE QUE SAIR DE SUA CASA O
DIA INTEIRO, TODOS OS DIAS, ONDE VOCÊ
IRIA E O QUE VOCÊ FARIA?

Para muitos de nós, o inimigo é a boa e velha complacência. Nós mer-


gulhamos na rotina. Nós distraímos a nós próprios. O sofá é confortável. O
doritos é crocante. E nada novo acontece.
Isso é um problema.
O que a maioria das pessoas não entende é que a paixão é o resultado da
ação, e não sua causa.
Descobrir o que lhe deixa apaixonado pela vida e o que importa para você
é um esporte radical, um processo de tentativa-e-erro. Nenhum de nós sabe
exatamente o que vai sentir em relação a uma atividade até por fim realmen-
te fazermos essa atividade.
Então pergunte a si mesmo: se alguém colocasse uma arma na sua ca-
beça e forçasse você a deixar sua casa o dia inteiro – exceto para dormir -,
como você passaria o tempo? E não, você não pode simplesmente sentar
numa cafeteria e navegar no Facebook. Você provavelmente já faz isso. Va-
mos fingir que não há sites interessantes, nem vídeo-games, nem TV. Você
tem que ficar fora de casa o dia inteiro todos os dias até chegar a hora de ir
para a cama – onde você iria e o que você faria?
Inscrever-se em aula de dança? Juntar-se a um clube de leitura? Fazer
outra faculdade? Inventar um novo sistema de irrigação que pode salvar as
crianças que vivem nas áreas rurais da África? Aprender a voar de asa-delta?
O que você faria com todo esse tempo?
Se isso estimula sua imaginação, escreva algumas das respostas e de-
pois, sabe, vá lá fora e realmente as concretize. E ganhará pontos de bônus
se isso envolver alguma forma de envergonhar a si mesmo.

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7. SE VOCÊ SOUBESSE QUE IRÁ MORRER


A UM ANO A PARTIR DE AGORA, O QUE
VOCÊ FARIA E COMO VOCÊ DESEJARIA SER
LEMBRADO?

A maioria de nós não gosta de pensar sobre a morte. Isso nos apavora.
Mas pensar sobre sua própria morte tem surpreendentemente um monte de
vantagens práticas. Uma dessas vantagens é que isso força você a zerar sua
escala de prioridades na vida e a eliminar o que é só distração frívola.
Quando eu estava na faculdade, costumava caminhar e perguntar às pes-
soas: “Se você tivesse um ano para viver, o que você faria?” Como você pode
imaginar, eu não era popular nas festas. Um monte de gente dava respostas
vagas ou aborrecidas. Alguns drinks quase eram jogados em cima de mim.
Mas isso fazia as pessoas realmente pensarem sobre suas vidas de uma for-
ma diferente e a reavaliarem quais eram suas prioridades.
Qual será o seu legado? Que histórias as pessoas contarão sobre você
quando se for? O que seu obituário diria? Haveria algo a ser dito, enfim? Se
não houvesse, o que você gostaria que constasse nele? Como você pode tra-
balhar nessa direção hoje?
E novamente, se você fantasia sobre seu obituário dizendo um monte
de coisas maravilhosas que impressionam um monte de pessoas aleatórias,
você está falhando aqui.
Quando as pessoas sentem que estão sem senso de direção, sem pro-
pósito de vida, é porque não sabem o que é importante para elas, elas não
sabem quais são seus valores.
E quando você não sabe quais são seus valores, então está essencial-
mente adotando os valores dos outros e vivendo as prioridades dos outros ao
invés das suas prioridades. Isso é um bilhete sem volta para relações pouco
saudáveis e eventualmente para a miséria.
Descobrir o “propósito” da vida essencialmente se resume a encontrar
uma ou duas coisas que são maiores do que você e maiores do que aqueles
ao seu redor. E para descobri-las você precisa sair de sua poltrona e agir, e
arranjar tempo para pensar além de si mesmo, pensar maior do que você
mesmo e, paradoxalmente, imaginar um mundo sem a sua presença.

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5 coisas que deveríamos


APRENDER NA ESCOLA
mark manson*

Sejamos honestos: nosso sistema educacional é uma merda.


Por exemplo, tudo o que aprendi de importante em História, durante o
ensino médio, posso achar na Wikipedia e aprender em algumas semanas
apenas. E muito do conhecimento científico básico que você sempre quis ter
é explicado de um jeito incrível em vídeos no Youtube. E, para coroar tudo
isso, você tem o mercado de trabalho mais instável dos últimos cem anos,
uma tecnologia que se desenvolve tão rapidamente que metade do trabalho
será feito por robôs na próxima década, disciplinas escolares que alguns di-
zem ser agora totalmente inúteis e novas formas de produzir são inventadas
praticamente a cada seis meses.
E ainda assim estamos empurrando para as crianças o mesmo currículo
escolar que nossos avós tiveram.
É um clichê dizer neste momento que as coisas mais importantes que
você aprende na vida não são ensinadas na escola. Mas sei disso por minha
vida, porque as coisas mais importantes eu tive de aprender por mim mesmo
e enquanto adulto.
Mas por que essas coisas não podem ser ensinadas na escola? Pense
bem, se eu tive que gastar seis meses da minha vida aprendendo coisas
sobre Frei Caneca e Pintores Renascentistas, por que eu não posso gastar
seis meses aprendendo como poupar para a aposentadoria e o que é consen-
timento sexual? Por que ninguém me disse que, quando eu virasse adulto,
uma grande parte do mercado de trabalho seria afetada pela tecnologia ou
seria terceirizada para os asiáticos?
Pode me chamar de amargo. Ou talvez de mais um dessa nova geração
de descontentes. Mas, sério, onde estavam essas disciplinas na grade curri-
cular? Sabe, essas disciplinas sobre coisas que você realmente precisa saber?
Claro, quando eu dominar o mundo (o que vai rolar um dia desses aí, só
estou esperando umas ligações), a gente não vai ter esse tipo de problema.
Eu vou elaborar uma grade curricular que inclua o mais perfeito conhecimen-
to sobre a vida, para ser transmitido a toda a população. E vocês todos vão
me agradecer e prestar tributos em leite e mel e virgens sensuais e talvez
mesmo sacrifiquem uma cabra ou duas em meu nome (desculpa, veganos).
Mas, antes que eu me deixe levar pela fantasia, vamos ser diretos. Quais
são as disciplinas que deveríamos ter no ensino médio, mas não temos? Es-
sas são as cinco mais importantes para mim.

*Tradução de 5 things that should be taught in every school, autorizada pelo autor.

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1. FINANÇAS PESSOAIS

O currículo incluiria: cartões de crédito e taxas de juro e investimentos


e aposentadoria e que eu deveria investir uns duzentos a partir dos 18 anos
pois quando chegasse aos 50 seria tipo um biliomilhardário.
Sério gente, os juros compostos dominam a merda do planeta inteiro.
Então como é que eu não sabia nada disso até meus 24?
Por que é importante: porque 43% por cento das famílias brasileiras es-
tão endividadas e porque 7 entre cada 10 pessoas não tem o hábito de guar-
dar dinheiro.
Se administrar seu próprio dinheiro fosse uma escola, a maioria da popu-
lação estaria conduzindo o ônibus escolar ao invés de ir às aulas, e dirigindo
mal, e desistindo completamente de até fazer isso.
A ignorância na gestão financeira tornou-se atualmente um enorme pro-
blema. Pois se você tem uma sociedade cheia de pessoas comprando um
monte de porcarias pelas quais não podem pagar, aposentando-se sem pou-
pança e adoecendo sem conseguir pagar um bom plano de saúde – bem, isso
ferra a todos de uma forma extraordinária, como está ferrando neste exato
momento.

2. RELACIONAMENTOS

O currículo incluiria: como expressar sentimentos sem culpa ou julga-


mentos recíprocos; como identificar um comportamento manipulador e li-
vrar-se dele; como estabelecer limites e evitar comportamentos abusivos;
como ter conversas honestas sobre sexualidade e como ela está relacionada
(ou não) com o amor; como mergulhar em um relacionamento e como isso é
vivenciado diferentemente para mulheres e homens. Basicamente tudo aqui-
lo que a maioria aprende apenas depois de passar por uma boa sequência de
dolorosos fins de relacionamentos.
Por que é importante: porque quando você está na cama morrendo de
câncer em estado terminal, você não vai estar pensando em como Napoleão
subestimou a Rússia ou como a Restauração Meiji mudou completamente a
geopolítica na Ásia ou como as regras da química orgânica estão fazendo seu
corpo envelhecer.
Você estará pensando naqueles que amou em sua vida e naqueles que
perdeu.
Muitas coisas constroem uma vida feliz, mas poucas têm tanta influência
e impacto na felicidade quanto os nossos relacionamentos. Aprender a como
não tropeçar neles feito um bêbado desastrado e exercitar algum controle
consciente na forma como transmitimos nossas emoções e criamos intimida-
de é possivelmente a habilidade mais transformadora de uma vida humana.
Pois não estamos falando o suficiente sobre como se casar e manter uma
vida sexual excitante. Trata-se de falar sobre relacionamentos com R maiús-
culo: como ser um bom amigo, como não tratar a sua família como se fosse
merda de cachorro, como lidar com conflitos no trabalho, como assumir a
responsabilidade por suas emoções e problemas e neuroses sem arrastar o
resto do mundo fossa abaixo junto com você.
Como humanos, somos animais fundamentalmente sociais. Não existi-
mos no vácuo, não conseguimos. Nossos laços sociais são tecido com o qual
confeccionamos nossa vida. A questão é: esse tecido é uma ceda suave ou
um poliéster ordinário?

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3. LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO

O currículo incluiria esta pergunta:

“Se todos os que dirigem caminhões são caminhoneiros, e todos os


caminhoneiros são motoristas, então todos os motoristas dirigem
caminhões?”

A resposta, claro, é “Falso”.


Questões como essa sempre são chatas quando aparecem em testes pa-
dronizados. Mas nossa habilidade de resolvê-las tem uma grande repercus-
são em nossas crenças e em como conduzimos nossas vidas. Por exemplo,
seguindo a mesma progressão lógica equivocada que apresentamos acima,
temos as seguintes conclusões:

“Cíntia cria conflitos no ambiente de trabalho. Cíntia é uma mulher.


Portanto mulheres criam conflitos no trabalho”.

“A maioria dos criminosos é pobre. A maioria dos pobres ganha


bolsa família. Logo a maior parte do bolsa família é recebida por
criminosos.”

Essas afirmações são falsas, e ainda assim você vê gente afirmando coi-
sas do tipo como se fossem fatos ou apresentando-as em discussões como se
fossem argumentos válidos, de modo que se tornam o fundamento de vieses
de raciocínio e preconceitos de muita gente.
Dia desses eu li aquele que é possivelmente o artigo mais idiota que vi em
meses. Ele tentava fundamentar que a objetificação das mulheres é errada,
mas a objetificação sexual dos homens não. Por quê? Porque os homens não
são estuprados tão frequentemente quanto as mulheres. Isso é o queijo suíço
dos buracos lógicos e das falácias.
Por que é importante? A questão é que somos vítimas dessas falácias
lógicas o tempo todo. E, em geral, de modos sutis que passam desaperce-
bidos por nós. E frequentemente essas falácias dizem respeito a decisões
importantes e a crenças que têm consequências marcantes em nossas vidas.
Elas são manipuladas em campanhas eleitorais (X é bom em fazer dinheiro;
o governo precisa de dinheiro; portanto X será bom para o governo), temas
relativos a direitos civis, decisões morais e éticas (José mentiu para mim,
portanto tenho direito de mentir para José), conflitos pessoais e por aí vai.
Essas falácias lógicas infiltram nossas vidas fazendo com que tomemos
decisões estúpidas. E são decisões estúpidas sobre nossa saúde, nossos rela-
cionamentos, nossa carreira e basicamente sobre tudo o mais.
O problema é que na escola raramente aprendemos como pensar direito
ou resolver problemas adequadamente. Ao invés disso, aprendemos a como
copiar ou memorizar as coisas – e logo depois esquecemos tudo [9]. Isso
mal nos prepara para a complexidade da vida adulta, principalmente para
a vida adulta do século 21, que é incrivelmente complexa. Eu suspeito que
talvez o retrocesso intelectual que estamos atualmente vendo nos movimen-
tos religiosos fundamentalistas e em outras manifestações intelectualmente
miseráveis vêm dessa completa falta de preparo para o complicado mundo
pós-moderno.

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CÂNONE AZ 2014-2016

4. AUTOCONSCIÊNCIA

O currículo incluiria: sei o que você está pensando agora: “como você
espera ensinar a autoconsciência?” Mas sério, gente, isso pode ser ensinado
e praticado como qualquer outra coisa.
Autoconsciência é a habilidade de pensar sobre as coisas que você pen-
sa. É a capacidade de ter sentimentos sobre seus sentimentos. Ter opiniões
sobre as suas opiniões.
Por exemplo, eu posso pensar algo como “Odeio todas as pessoas chama-
das Antônio, pessoas chamada antônio são más”. Esse é um clássico exemplo
de intolerância, uma simples canalização de ódio orientada por um estereó-
tipo superficial. E se você não tem autoconsciência, você vai levar esse pre-
conceito a sério.
Mas se alguém é autoconsciente, essa pessoa irá capturar esse pensa-
mento e questioná-lo. “Por que odeio pessoas que se chamam Antônio? Tal-
vez porque meu ex-namorado tinha esse nome? Talvez porque meu pai se
chame Antônio? Estou talvez direcionando meu ódio pelos Antônios da minha
vida para todos os Antônios do mundo? Eu fico envergonhada de como sou
enraivecida. Eu devia procurar um psicólogo.”
Isso sou eu pensando sobre meus pensamentos. Sou eu tendo sentimen-
tos sobre meus sentimentos. Sou eu tendo opiniões sobre minhas opiniões.
Isso é autoconsciência. E a maior parte das pessoas passa a maior parte de
suas vidas com muito pouca autoconsciência.
Mas isso pode ser ensinado, como tudo o mais, por meio da prática. Ba-
sicamente tudo que exige que você pense sobre aquilo que está pensando
estimula o desenvolvimento da autoconsciência. Isso pode ser feito através
da meditação, da terapia, de um diário ou apenas tendo ao seu lado alguém
muito íntimo que aponte seus vieses e preconceitos com consistência.
Por que é importante: pesquisas demonstram que um elevado grau de
autoconsciência traz benefícios, bem, para quase todos os aspectos das nos-
sas vidas. Pessoas que desenvolvem habilidades metacognitivas planejam
melhor, são mais disciplinadas, mais focadas, mais atentas às suas emoções,
são melhores tomadoras de decisões e mais capazes de antecipar problemas
em potencial.
Em tudo o que fazemos na vida, só tem uma coisa que fica conosco do
início ao fim: nossa mente. Ela é o grande filtro. Tudo o que fazemos e tudo o
que acontece conosco é filtrado pela nossa mente e pelos nossos pensamen-
tos. Portanto, precisamos investir tempo e energia para compreendermos ao
máximo como funciona a nossa mente, pois isso afeta tudo o mais.
Talvez você seja precipitado em se irritar ou julgar as pessoas. Talvez
você seja despreocupado demais com as coisas. Talvez você sofra de ansie-
dade de tantas formas que isso esteja atrasando a sua vida. Talvez você seja
impulsivo e um especialista em se autorrecriminar.
Seja o que for, precisamos identificar nossas tendências e daí aprender
como monitorá-las, para a seguir controlá-las.

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ANO-ZERO.COM

5. CETICISMO

O Currículo incluiria: porque quase tudo em que acreditamos está prova-


velmente errado de uma ou outra forma; porque nossas memórias não são
confiáveis; como áreas tão aparentemente sólidas quanto matemática e físi-
ca estão cheias de incertezas; como somos péssimos juízes sobre o que nos
fez felizes/infelizes no passado e o que nos fará felizes/infelizes no futuro;
como os eventos mais importantes na história sempre são aqueles menos
previsíveis; como são as convicções e a rigidez nas crenças que nos condu-
zem à violência, e não ao oposto; como muito do que nos é transmitido como
suposto conhecimento científico hoje é baseado em pesquisas que repetida-
mente falharam ou foram incapazes de ser repetidas; e por aí vai.
Por que é importante: muitas das coisas boas da vida surgem da falta de
certeza ou do estado de desconhecimento. A incerteza é o que nos leva a ser
curiosos, a aprender, a testar novas ideias, a comunicar nossas intenções aos
outros. É o que nos mantém humildes. A incerteza nos ajuda a aceitar o que
quer que nos ocorra. Ela nos permite enxergar os outros sem julgamentos
injustos e precipitados. Muito do que é ruim na vida vem de certezas: com-
placência, arrogância, fanatismo e preconceitos. As pessoas não se reúnem e
criam cultos religiosos e depois tomam veneno num sacrifício coletivo porque
têm incertezas sobre a vida. Elas fazem isso porque têm certezas. As pessoas
não caem em depressão, falam obsessivamente de seus exes ou entram em
uma escola dando tiros porque têm incertezas a respeito de si mesmas – elas
estão certas em relação às suas crenças.
Elas estão convictas sobre uma crença que, como quase todas as outras
crenças, está provavelmente errada.
O ceticismo cultiva a habilidade de abrir-se a alternativas, de conter o
julgamento, de questionar e desafiar a si mesmo a tornar-se uma pessoa
melhor.
Você não tem certeza se a sua colega odeia você ou não. Você na verda-
de não sabe se seu chefe é mesmo um idiota ou só muito incompetente em
se comunicar. Talvez a esposa dele tenha câncer ou algo assim, e ele fique
chorando a noite toda sem dormir. Talvez você é que seja o idiota mas não
se dá conta disso.
Você não sabe na verdade se o casamento gay irá arruinar a família tradi-
cional, ou se mulheres e homens são mesmo tão diferentes assim. Você não
tem certeza se esse novo emprego fará você mesmo feliz, se o casamento
irá resolver os problemas de seu namoro (espero que não) ou se seu filho
merece ou não aquelas notas boas (ele pode estar colando).
A vida é feita de incertezas. Nossas certezas são apenas estratégias para
evitar a insegurança da vida, para evitar que nos adaptemos e sigamos o flu-
xo das mudanças. A educação e o aprendizado não terminam quando fecha-
mos os livros e os diplomas são entregues. O aprendizado só termina quando
a vida termina.

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10 razões pelas quais


VOCÊ SEMPRE FRACASSA
mark manson*

Pense em algo da sua vida que você queria muito fazer mas não conse-
guiu. Alguma coisa importante. Seja por você não ter chegado a tentar, por
ser tímido demais para fazer ou por ter tentado mas falhado espetacularmen-
te. Relembre em sua mente a maior derrota de sua vida, quem sabe você
esteja bem no meio dela agora.
É desnecessário dizer que todos nós fracassamos. Isso é óbvio. Claro,
alguns de nós são melhores nisso que outros, mas é também algo óbvio. E
ainda há aqueles que enfileiram momentos de frustração ao longo de toda
sua vida e fracassam de uma forma tão consistente que é algo que se aproxi-
ma da arte. Nos anos que passei ajudando os outros a superar seus desafios
pessoais, frequentemente me perguntava qual foi a principa causa dos fra-
cassos que testemunhei.
Algumas pessoas têm problemas com seus relacionamentos, alguns têm
problemas com dinheiro, outros problemas de ansiedade, etc. Mas o maior
problema que observei em muitas dessas pessoas não era algo específico
dos relacionamentos, dinheiro ou confiança. É fácil descobrir como convidar
alguém para sair, como começar um negócio ou como simplesmente fazer
algo mesmo que sinta medo. Lidar com seu medo do abandono, ou com seus
hábitos financeiros nocivos, ou com suas crenças autodepreciativas sobre o
que os outros pensam de você? Isso é estar bem mais envolvido.
É provável que uma profunda luta em uma área de sua vida acabe afe-
tando todos os outros aspectos de sua vida. Os motivos que causam uma
derrota não tem qualquer limite. Os comportamentos e pensamentos que
sabotam você em uma área de sua vida irão lhe perseguir em outras áreas.
Essa hesitação em convidar alguém a sair provavelmente influencia a sua
incapacidade de mudar-se para outra cidade ou procurar um novo emprego,
a sua timidez perante colegas mais dominadores e o relacionamento passi-
vo-agressivo que mantém com seus familiares.
Quando se confronta com as maiores oportunidades da vida, a maioria de
nós se caga. E então elaboramos uma série de estratégias para evitar a dor e
a preesão inerentes a tentar alcanças nossos sonhos. Abaixo seguem 10 das
estratégias mais comuns para relutarmos. Vamos começar com uma análise
mais superficial e depois vamos abrir caminho até as profundezas de nossa
mente. Leia e chore.

*Tradução de 10 reasons why you fail, autorizada pelo autor.

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1. VOCÊ TEM MEDO DE SE


DESTACAR NA MULTIDÃO.

Emerson escreveu o seguinte:

A verdade é que as pessoas não gostam quando os outros mudam ou


realizam algo que as fazem sentir desconfortáveis ou inseguras. Esforçar-se
para realizar todo o seu potencial ameaça a complacência com que somos
tratados pelos outros, lançando uma luz em seus próprios sonhos quebrados
e em seu potencial não realizado. Em muitos casos, algumas pessoas até
nos atacam, pois começam a se questionar, e isso é algo muito difícil para a
maioria.

Noite passada conversei com um empreendedor da internet. Ele começou


a vários empreendimentos on-line. Alguns falharam. Alguns fizeram dinheiro.
Tudo isso foi luta. Ele passou um tempo viajando ao redor do mundo e vol-
tou para casa para passar as férias, onde seu pai lhe disse prontamente que
precisava “ser realista” e obter um emprego “normal”.

É um simples fato da vida: se você quer fazer algo incrível, algo que faz
você se destacar acima do resto, então você tem que se sentir confortável
sendo diferente do resto. As pessoas vão pensar que você é estranho, louco,
egoísta, arrogante, irresponsável, detestável, estúpido, desrespeitoso, gor-
do, inseguro, feio, raso, etc. Aqueles mais próximos a você, muitas vezes,
serão os mais severos. Se você tem autodefesas fracas ou não tem confiança
em suas próprias ideias e sonhos, então não vai muito longe.

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2. VOCÊ NÃO É PERSISTENTE O SUFICIENTE.

Em 2009, o autor iniciante Karl Marlantes filamente publicou Matterhorn,


um romance baseado em suas experiências na guerra do Vietnã. O livro foi
um sucesso. O New York Times definiu-o como um dos mais profundos e de-
vastantes livros já escritos sobre qualquer guerra“. Mark Bowden, escritor de
Falcão Negro em Perigo: a História de uma Guerra Moderna, declarou que o
livro de Marlantes era o maior livro já escrito sobre o Vietnã.

Levou mais de 35 anos até que Marlantes conseguisse publicar seu livro
– mais do que a metade de sua vida. Ele reescreveu o manuscrito seis vezes.
Durante as duas primeiras décadas, os editores mal conseguiam o ler, quem
dirá o rejeitar.

A maioria de nós desiste rápido de algo pelo qual sente paixão. E qual-
quer um que teve sucesso tem uma história de esforço e perseverança para
contar. Como diz o velho clichê, nada de valor vem fácil.

3. VOCÊ NÃO TEM HUMILDADE.

Há muita gente que consegue uma pequena realização e decide que é um


expert. Humildade é algo que não conhecem.
No mundo do marketing digital e dos negócios na internet, comecei a
notar algo alguns anos atrás sobre os empreendimentos que conheci. As pes-
soas falavam demais, principalmente sobre o que fizeram, exageravam seus
sucessos e faziam tudo para chamar a atenção para si – e elas eram apenas
moderadamente bem sucedidas, na melhor das hipóteses; as vezes nem
eram bem sucedidas, ou seja, elas ainda trabalhavam em outro emprego e
moravam com seus pais. Ainda assim, estavam ansiosas para compartilhar
suas gotas de sabedoria para qualquer pessoa que as ouvisse.
Mas as pessoas que eram legítimas milionárias e haviam conquistado
suas fortunas desde o início, aquelas que realmente atingiram o cume da
montanha do mundo dos negócios, frequentemente admitiam que não ti-
nham as respostas e atenuavam o seu sucesso (ou em geral nem mesmo o
mencionavam). Ao invés disso, elas regularmente apontavam seus pontos
fracos e mencionavam que precisavam aprender mais.
Isso não pode ser coincidência.

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4. VOCÊ NÃO CONSEGUE CRIAR UMA


REDE DE CONTATOS E CONSTRUIR
RELACIONAMENTOS SÓLIDOS.

Sou um solitário nato. E eu também sou maníaco por controlar meus pro-
jetos. Seja insegurança, obsessão ou simples arrogância, eu tenho proble-
mas em deixar as pessoas influenciarem aquilo no qual estou trabalhando ou
aquilo que me apaixona. É algo contraprodutivo. Isso uma vez afundou mi-
nhas aspirações de me tornar um músico profissional (uma área basicamente
formada quase que inteiramente de redes de contato) e com certeza aban-
donei algumas das oportunidades que surgiram em meu empreendimento na
internet por causa da minha hesitação em entrar em contato e me conectar
com outras pessoas que poderiam me ajudar.
Costuma-se dizer que 66% das pessoas contratadas para um emprego
conhecem alguém dentro da empresa que as contratou. Mas mesmo no mun-
do não-profissional, o isolamento pode fazer você desmoronar rapidamente.
Ao invés de falhar, você simplesmente entra em depressão. Construir relacio-
namentos sociais e emocionais saudáveis depende da habilidade de conhecer
pessoas e conectar-se com elas de uma forma significativa. As pesquisas
mostram que viver sem contato social regular é tão prejudicial à saúde como
fumar cigarros.

5. VOCÊ PREFERE QUESTIONAR UM CONSELHO


AO INVÉS DE ACEITÁ-LO

Passagem garantida para ser um idiota: tentar ter razão ao invés de ten-
tar ter humildade. Não importa o que seja, se você investe mais em discutir
e debater seu ponto de vista com quem está tentando ajudar do que investe
em aprimorar-se, então você definitivamente vai fracassar. E do alto de seus
argumentos sabichões, você ainda assim é estúpido demais para perceber
isso.
Para ser bem sucedido em alguma coisa, uma cadeia constante de opini-
ões precisa ocorrer: tentar algo -> receber opiniões e resultados -> aprender
com as opiniões e resultados -> tentar algo diferente. Pessoas que são obce-
cadas em discutir sobre o porquê elas têm razão (apesar de não funcionar)
estão efetivamente quebrando a cadeia ao não aceitar opiniões sobre o que
está fazendo. Portanto, elas nunca vão mudar.
Não quer dizer que todo mundo deveria sempre ouvir conselhos de todo
mundo, mas pelo menos você deveria saber aceitar opiniões sobre seu tra-
balho, acredite você ou não que são relevantes, e não ficar tentando discutir
como se você sempre tivesse razão em tudo.
As pessoas que sofrem desse problema tendem a ser altamente inteli-
gentes e extremamente inseguras. Essa é uma combinação prejudicial, pois
quanto mais uma pessoa é inteligente, mais ela é capaz de racionalizar suas
bobagens e encontrar justificativas para elas, e mais ela usará esse mecanis-
mo de defesa para proteger seu ego frágil.

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6. VOCÊ SE DISTRAI DEMAIS

Facebook, Twitter, Reddit, Imgur, email, Facebook de novo, volta para


o Twitter, oh e essa história em quadrinhos divertida, publica no Facebook,
confere o email de novo, mensagem no Facebook, fotos engraçadas de ga-
tos, divulga as fotos no Twitter, procura no Buzzfeed por mais fotos de gatos,
volta e faz tudo isso de novo.
Peço desculpas se acabo de descrever a maior parte do seu tempo des-
perto, mas os prejuízos de sofrer de desordem da atenção saturada não se
limitam a interações medíocres nas redes sociais. No começo deste ano eu
experimentei desistir de esportes e política por um mês. Fique espantado ao
constatar como toda a informação que antes eu considerava vital e importan-
te logo tornou-se besteira sem significado – informações sensacionalizadas
com o propósito de me clicando e compartilhando, ao invés de informações
úteis e que influenciariam minha vida.

7. VOCÊ NÃO ASSUME A RESPONSABILIDADE


PELO QUE ACONTECE NA SUA VIDA

Sei que é tentador culpar algum fator externo por seus problemas, insistir
que era impossível, que não foi culpa sua, e que você não poderia ter feito
nada para mudar isso. Mas para resolver os problemas na sua vida, você
precisa ter poder sobre eles. Você não pode ter poder sobre aspectos de sua
vida ao menos que assuma responsabilidade sobre eles. Portanto, se você
não assume responsabilidade pelo que ocorre a você, você fracassa.
Há várias situações na vida que parecem completamente injustas e insu-
portáveis, como se Deus tivesse decidido chutar o pau da sua barraca, e não
há nada que você possa fazer a respeito.

8. VOCÊ NÃO ACREDITA QUE É POSSÍVEL

Não há nenhum poder sobrenatural aqui. As crenças inconscientes sobre


as possibilidades determinam o nível de seu esforço e expectativa de su-
cesso. Por exemplo, há uma pesquisa que diz que atletas que alimentavam
crenças positivas mas erradas sobre suas próprias habilidades acabavam su-
perando atletas que possuíam crenças negativas mas corretas sobre suas
próprias habilidades.
Além disso, as pessoas que superestimam o que são capazes de fazer
tem mais probabilidade, você sabe, de levantar-se do sofá e tentar. E quando
você tenta e aprende com suas falhas, você pode em algum momento chegar
ao sucesso.

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9. VOCÊ TEM MEDO DE SE IMPORTAR.

Muitas pessoas pegam o vírus da indiferença. A elas falta uma verdadeira


e autêntica paixão. Elas relutam em investir tudo de si mesmas em um proje-
to, empreendimento ou busca. Muitas desistem rapidamente. Outras perdem
o interesse. E para algumas falta entusiasmo para até mesmo começar.
A indiferença crônica é um mecanismo de defesa insidioso. Ela corrói a
motivação e a vontade necessárias para superá-la. Inconscientemente, mui-
tas pessoas não investem tudo de si mesmas em algo que potencialmente as
pode levar ao fracasso, pois o fracasso pode levar a um monte de ideias que
sua mente não está ainda preparada para encarar: questões sobre seu valor,
competência, merecimento etc.
Olha, eu não sou Freud, mas pela minha experiência, pessoas aleijadas
pela indiferença não a superam até que algum outro problema emocional
seja arrancado do inconsciente, confrontado e superado.

10. NO FUNDO, VOCÊ NÃO ACHA QUE


MERECE O QUE DESEJA.

Muitos (ou a maioria) dos itens acima na verdade são aspectos super-
ficiais de uma causa mais profunda: acreditar que você não merece aquilo
que quer. Muitos de nós, lá no fundo, têm crença e ideias arraigadas sobre si
mesmas que não são muito lisonjeiras. Talvez você tenha se machucado um
pouco enquanto crescia, talvez seus pais ou professores tenham dito em al-
gum momento que você não conseguiria realizar nada, talvez você tenha sido
punido por seus coleguinhas por ser mais inteligente que eles. Seja o que for,
algo aconteceu. E como resultado alguma coisa dentro de você faz com que
se sinta desconfortável com a ideia de conquistar grandes realizações.
O empreendedor e consultor de negócios Sebastian Marshall escreveu em
seu livro Ikigai:
“Noite passada eu estava conversando com um amigo e disse:
“se você fizer isso, estou certo que conseguirá seu primeiro cliente
dentro de noventa dias”. E minha orientação deveria ser a principal
coisa de sua vida nos próximos noventa dias, mas provavelmente
funcionaria.
Seu principal objetivo naquele momento era a total independên-
cia financeira, e eu formulei um plano que o levaria até seu objetivo.
Mas ele o seguiria? Perguntei.
Ele hesita e responde: “Não, não vou”.
– “Essa é a pergunta que vale um milhão de dólares: por que
não vai?”
– “Eu não sei. Eu nem mesmo gosto de pensar nisso, pra falar a
verdade, mas vou tentar. Eu não sei. Medo? Eu tenho que confron-
tar meu potencial e o fato de que não estou vivendo como gostaria
de viver? Isso está certo? Eu me sinto despreparado? Eu não acho
que mereça? Eu acho que tenho que estudar mais antes? Eu não
sei.”
Por que as pessoas não realizam seus planos? Bem, eu orientei
gratuitamente pessoas sobre como ganhar dinheiro, elaborei um
plano claramente exequível e bom, ofereci para ajudá-las a imple-
mentar. Mais ou menos oitenta por cento delas não aceitou.”

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Esse é mais um dilema da autoestima: você sempre encontra uma manei-


ra de se livrar daquilo que sente não ser seu de direito. Os pesos e alturas do
sucesso fazem alguns de nós sentirem-se reis, e outros sentirem-se fraudes.
Para muitos, conseguir o que desejam é algo que desperta aquela voz de ser-
pente que existe no fundo de suas mentes, e que cutuca suas inseguranças
e medos até arranjar um jeito de destruir tudo o que conseguiram. Pode ser
um relacionamento com alguém que você ama e que você sabota, pode ser
o trabalho dos seus sonhos que você não aceita, pode ser uma oportunidade
criativa que você troca por um objetivo mais “prático”; pode ser simplesmen-
te sair com pessoas que você admira, mas acabar sentindo-se um fantasma
ao lado delas.
Seja o que for, a piscina de lama das dúvidas sempre arranja um jeito
de arruinar a sua vida – de fazer você arruinar sua vida, e essa é a verdade
mais dura. É você. Não há ninguém mais nessa equação. E quanto mais você
negar isso, mais esse medo persistirá e será uma barreira invisível, um muro
de vidro inquebrável separando você da felicidade.

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a virtude estoica da moderação


E DOMÍNIO DE SI
felipe novaes

“A filosofia não visa a assegurar qualquer


coisa externa ao homem. Isso seria admitir
algo que está além de seu próprio objeto.
Pois assim como o material do carpinteiro
é a madeira, e o do estatuário é o bronze, a
matéria-prima da arte de viver é a própria
vida de cada pessoa.”
Epiteto

Vivemos num mundo regado pela euforia, agitação, falta de compromis-


so generalizada e desatenção. Não haveria nada de errado em se comportar
dessa maneira, se não fossem estimulados como os modos corretos de ser.
Não falo das pessoas com algum diagnóstico clínico como o de déficit de
atenção, mas das que assim agem por estarem mal acostumadas. E, nesse
último caso, o diagnóstico da normalidade é grave: estamos perdendo diver-
sas faculdades humanas fundamentais, tais como serenidade, auto-análise e
comedimento. Estamos ficando cada vez mais superficiais, afoitos por trivia-
lidades e reféns do desejo. Contudo, podemos encontrar refúgio e orientação
na vida de sábios que viveram há séculos.
Não é possível afirmar que aquelas capacidades salutares foram sempre
cultivadas, mas certamente nunca vivemos num cotidiano tão rico em estí-
mulos que fazem a atenção flutuar. A tecnologia tem muito a contribuir com
isso, apesar de não ser a única culpada, pois tudo depende do modo como
decidimos usá-la. E, inserido nesse panorama, vem também a concepção de
que seria benéfico saciarmos todos os nossos desejos, termos todos os pra-
zeres sensoriais possíveis. Afinal, por que não? O hedonismo virou um valor
defendido com unhas e dentes.
Por outro lado, o Oriente sempre teve uma cultura rica em estratégias que
promovem contemplação, serenidade, bom senso e domínio das emoções e
dos prazeres sensoriais. Vemos isso tanto na milenar tradição dos iogues in-
dianos, ascetas dedicados, até na tradição budista que hoje permeia diversos
países do médio ao extremo Oriente. O Budismo trazia uma doutrina menos
mortificadora que a dos ascetas, mas trazia também o forte componente de
domínio e treinamento da mente e das emoções.

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Não se deve confundir, porém, esse domínio com repressão de sentimen-


tos e tendências naturais, mesmo as destrutivas. Assim como no princípio
taoísta do Wu Wei (harmonia), no budismo os praticantes deveriam se esfor-
çar para observar as emoções quando surgem, estando cada vez mais cons-
cientes delas. Isso proporcionaria não um bloqueio, mas um entendimento
profundo, que, por consequência, forneceria condições para contemplá-las,
observá-las fora de nosso modus operandi default condicionado, automático
e pouco presente.
Contudo, o Ocidente é menosprezado nesse sentido, como se não tives-
sem existido, por aqui, pensadores igualmente prodigiosos no conhecimento
de si. Outra tradição, quase tão antiga quanto as citadas anteriormente, é a
do Estoicismo. Essa escola de filosofia surgiu por volta do século III a.C. e
teve um dos seus maiores representantes no século III d.C, na figura do Im-
perador filósofo Marco Aurélio. Em suma, com influências da escola cínica e
até de Sócrates, os estóicos afirmavam que deveríamos permanecer serenos
frente às perturbações da vida, tais como dor física e subjetiva. Seus adeptos
eram marcados pela constante auto-análise, a fim de estarem sempre em
condições de utilizar a razão, acima de tudo. Nesse sentido, um programa
semelhante ao do Budismo e Taoísmo era empregado no tratamento das
emoções.
Assim, falar de Marco Aurélio era falar do estoicismo. O Imperador filóso-
fo passou a vida escrevendo num diário a respeito de seus princípios e apren-
dizados, o que mais tarde foi transformado num livro, o Meditações.

“[Fui ensinado] a ser comedido nos meus


desejos, a tratar das minhas próprias
necessidades, a meter-me na minha vida, e
a nunca dar ouvidos à má-língua. Também
deveria ser rigoroso nas minhas leituras,
não me contentando com as meras ideias
gerais do seu significado; e não me deixar
convencer facilmente por pessoas de pala-
vra fácil.”

Epicuro
Esse é um trecho do diário. Marco Aurélio exorta-nos a sermos cautelo-
sos com nossos desejos. É preciso saber o que se deseja, pois a expectativa
de realizá-los gera sofrimento, uma vez que os desejos nunca cessam e,
portanto, podemos passar a vida sendo seus reféns. Portanto, é bom que
desejemos apenas aquilo que podemos ter. E reconhecer isso com humildade
exige sabedoria. Tal conselho serviria tanto para o desejo referente a bens
quanto a prazeres sensoriais. Devemos ser comedidos em relação a eles. O
objetivo, além de viver bem durante a única vida que o homem possui, seria
conquistar uma morte tranquila.

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“(…) aprendi a não me deixar absorver por


atividades triviais.”
Epicuro
Esse caminho pode ser entendido como um tanto radical. De fato, o es-
toicismo é considerado uma espécie de extremo da eudaemonia, princípio
filosófico segundo o qual a felicidade não é correspondente à quantidade de
prazer que temos, mas sim à nossa capacidade de observar um caminho que,
quando seguido, nos conduziria à chamada boa vida. Existem divergências
com relação ao conceito de boa vida, sendo a escola dos estóicos aquela que
estabeleceu a concepção mais contrária ao modo automático de funciona-
mento da mente, assim como o Budismo. Entretanto, o Budismo possui toda
uma gama de técnicas meditativas eficazes para modificar esses automatis-
mos. Os estóicos não desenvolveram nada desse tipo, ficando quase sempre
somente no campo dos discursos.
Mas, ainda que estes filósofos fossem exigentes demais, Marco Aurélio
pareceu ter tido uma boa vida, ou ao menos uma vida que alguém de sua
escola entendesse como boa. Desse modo, é como se o Estoicismo fosse
uma via árdua quando iniciada, mas, uma vez que estejamos familiarizados
com suas diretrizes, resultasse num fosse surgindo um importante senso de
liberdade. Passamos a entender a vida Passa-se a entender o viver como não
condicionada à incessante realização de desejos.
E a serenidade proposta como parte e resultado dessa escola filosófica é
parte de um entendimento maior, o de que a vida boa requer a aceitação da
inevitabilidade do sofrimento e, principalmente, da morte. Assim, podemos
falar, também, de um caminho do meio, na medida em que não prague-
jamosnem se revolta contra o sofrimento, mas o entendemos como parte
inerente a uma vida mortal; nem, por outro lado, é negada sua existência.
Todos esses processos nos liberam para uma vida temporalmente limitada,
fazendo-nos saborear, de fato, o que temos. Torna-se, simplesmente, um ato
de sabedoria nos abstermos um pouco das trivialidades em nome de tudo
que realmente importa, em nome daquilo que tem papel relevante em nossa
felicidade.
“[Aprendi que] meu caráter precisava de
treino e cuidados.”
Epicuro
Todos esses lemas podem nos levar a desistir dessa estrada, a conside-
rá-la impossível, devido a sua rigidez e seriedade. O filósofo romano não
adentrou por esse caminho sem luta e treino. E é exatamente disso que as
pessoas mais fogem. Engraçado como muitas têm uma disposição incrível
para trabalhar, ganhar dinheiro – mas, quando se trata de trabalhar a si
mesmas, mostram-se relapsas. É preferível simplesmente ceder aos impul-
sos, embarcar no turbilhão de pensamentos diários, agir sem sabedoria, dar
vazão às emoções.

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Não me refiro a situações mais drásticas, apesar de cotidianas, como um


acesso de raiva. Nas atividades mais sutis, a distância de nosso comporta-
mento para o de Marco Auréliogrita. A tecnologia, longe de ser sozinha o vilão,
propiciou o cenário perfeito para que nossas mentes desatentas pudessem
ficar a vontade com seu funcionamento ruminante nem sempre pertinente.
Estamos quase permanentemente ausentes de nós mesmos, descentrados,
e mesmo assim, inseridos num mundo que opera a base de multi-estímulos
anestesiantes, achamos que está tudo certo.
Basta observarmos a nós mesmos, por apenas um único dia, acessando
a internet. Ao abrirmos o navegador, vamos quase convulsivamente clicando
em todos os links que aparecem, talvez até sem perceber. No trabalho, é uma
constante ver colegas com mais de 10 abas abertas ao mesmo tempo. Muito
do que está aberto ali será abandonado sem nem ser lido, e muito do que foi
lido é trivial demais para que percamos nosso tempo. Talvez os vídeos bizar-
ros da internet, hoje, façam as vezes da advertência que o filósofo imperador
fez sobre as brigas de galo. Afinal, diariamente temos a oportunidade sedu-
tora de ocupar nosso tempo vendo desde gatinhos fofos fazendo fofices até
brigas horrendas e homicídios gravados por câmeras amadoras.
A análise de como vivenciamos os desejos é o que talvez salte mais aos
olhos, em especial, em relação aos sexuais. Esbanjamos desejos sensuais
por todos os poros. Isso talvez se deva à recente tentativa de maior liberdade
sexual. Certamente, trata-se de um ganho enorme para a sociedade, mas às
vezes coisas benéficas são entendidas de uma forma confusamente excessi-
va. Essa liberdade tão defendida não pode vir sozinha, sem um conjunto de
concepções e atitudes que tornem a atividade sexual o mais conscienciosa
possível. Caso contráriosignifica que vamos, meramente seguiremos impul-
sos e desejos irresistíveis todo o tempo. Não podemos esquecer que o desejo
sexual é um desejo como qualquer outro, e tem o poder de nos tirar do pru-
mo se não soubermos como lidar com ele.
Em suma, não existe diferença entre estar eufórico por causa de estí-
mulos alucinantes de várias abas abertas em seu navegador, e agitado por
uma conduta sexual pouco consciente (o que não tem a ver com assumir
uma postura casta ou celibatária, por favor). É evidente, por outro lado, que
a sexualidade possui um caráter muito mais orgânico do que o manejo de
um navegador no computador. Por isso, também é claro que o controle do
primeiro pode ser mais complicado que o do segundo. Essa é uma diferença
fundamental entre ambos, que, por sua vez, não deve anular o fato de que
são, no fundo, desejos. Além disso, imagino que um estóico falasse apenas
de moderação e consciência, não de votos de castidade ou de abstinência
digital.
““Seja como o penhasco contra o qual as
ondas batem. Permaneça firme e dome a
fúria da água ao redor.”
Epicuro

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Para além da internet, e antes mesmo de sua popularização, lembro de


um episódio ocorrido no Ensino Fundamental. Em determinada época, o pro-
fessor de Educação Física ficou doente. Então, os alunos ou tinham aula
com algum substituto ou ficavam na quadra jogando futebol. Nesse segundo
caso, algo impressionante acontecia. Todos, ao entrarem na quadra, saiam
correndo como uma manada de gnus, e um deles soltava a bola na quadra.
Os vinte e poucos meninos corriam desordenadamente, cada um por si, cada
um querendo roubar a bola do outro. Eu sempre me perguntava se não seria
mais fácil e divertido para todos se duas pessoas formassem times rapida-
mente e a partida pudesse se desenrolar decentemente, como mandam as
regras do esporte.
Essa história serve para ilustrar como levamos para a vida adulta uma
postura impulsiva que guarda certa imaturidade infantil. Afinal, crianças ain-
da não tiveram tempo suficiente para treinar seu autocontrole; mas se espe-
ra que um adulto tenha vivido suficientemente para desenvolvê-lo. E assim
como acreditávamos que jogar daquela forma alvoroçada era melhor que
parar, pensar e organizar a coisa, quando alguns crescem, continuam tendo
esse mesmo pensamento. “Por que eu devo ser tão organizado para estudar
para a prova? Eu posso muito bem ir estudando quando der, em cima da hora
a gente vê no que dá.”
A contemplação, a auto-observação e auto-análise devem ser cultivadas
a todo o tempo, mas não sob um matiz paranoico. Marco Aurélio parecia ser
um sujeito extremamente sensato e consciente de si mesmo (e também da
coletividade, já que era adorado pelo seu povo, como Imperador de Roma),
mas de forma alguma era obsessivo. Sua serenidade era lendária. Mas, pro-
vavelmente, também existiam momentos de deslizes provocados por emo-
ções fortes. Contudo, o importante era tirar uma lição disso e exercitar seu
caráter.
No fundo, toda a pratica de Marco Aurélio em sua vida cotidiana era parte
da definição que guardava a própria Filosofia, conforme vemos na citação ini-
cial de Epiteto. Isto é, trabalhar concepções, preconceitos e comportamentos
a fim de cultivarmos condições necessárias para não só criar um mundo cheio
de possibilidades, com tecnologia e liberdade, mas também de poder fazer as
melhores escolhas num contexto cheio de opções. Precisamos, mais do que
nunca, andar mais devagar e analiticamente, pois vivemos em tempos cada
vez mais rápidos, efêmeros e irreflexivos.

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‘os bichos’ de orwell e nosso status


NA FAZENDA HUMANA
felipe novaes

Passei muito do meu tempo como leitor me dedicando a livros de di-


vulgação científica e de filosofia. Cresci intelectualmente com eles, aprendi
a raciocinar e a argumentar, aprendi a pensar criticamente sobre o que faz
ideias e teorias serem válidas (mesmo que provisoriamente). Mas durante
esse tempo talvez tenha ignorado a preciosidade das histórias de ficção,
como narrativas fictícias que mostram de maneira clara e excitante o funcio-
namento do mundo real.
George Orwell parece ser um escritor modelo em apresentar histórias in-
teligentes, profundas, mas ao mesmo tempo com linguagem acessível. E foi
por esse plano de fundo que entendi A Revolução dos Bichos.
A obra ajuda não só a entender as críticas de Orwell ao stalinismo (li-
berais chiam nesse ponto, pois gostam de desprezar as diferenças entre os
projetos comunistas, pois é mais fácil criticar um pretenso único comunismo
do que ter que criticar cada uma de suas tonalidades ideológicas), mas tam-
bém fazem captar algo muito profundo que diz respeito à psicologia da nossa
espécie, algo que parece estar presente em todas as épocas, apesar da rou-
pagem distinta que pode assumir.

DENUNCIANDO O STALINISMO
O escritor inglês, um comunista trotkista convicto, participou de guerras e
se expôs publicamente a favor do regime comunista, mas sua escolha política
não embaçou sua capacidade crítica, tendo sido sua obra proibida em diver-
sos países por conta da sutileza e força de sua denúncia do mito e da distopia
stalinista que a URSS tinha se tornado.
O mais bizarro disso tudo é que na própria Inglaterra a obra de Orwell foi
boicotada, pois a partir da Segunda Guerra Mundial até o fim da Guerra Fria
(termo cunhado por Orwell!), o bloco socialista e capitalista passariam a viver
uma relação de amor e ódio que poderia ser abalada a qualquer momento.
A crítica histórica e ideológica clara explica parte do rebuliço que A Revo-
lução dos Bichos causou, mas não acho que dê conta de todo o caso. Além de
falar sobre um grupo de pessoas e um momento muito específico da História,
a obra também faz alusão – mesmo involuntariamente – a comportamentos
humanos antigos e arraigados. Isso porque a própria utopia comunista no
século XX esbarrava frontalmente nesse aspecto fundamental: o desejo de
status (que também é título de um livro muito interessante do filósofo Alain
de Botton).

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Para perceber a presença desse elemento, entretanto, é preciso pensar


na estrutura basal dessa história, bem como em alguns exemplos específicos
que acontecem durante suas páginas.
O livro conta a história dos animais de uma fazenda (porcos, vacas, ga-
linhas, gansos, cavalos, cães, ovelhas e até um corvo), que resolvem se re-
belar contra o dono e expulsá-lo do lugar. Os animais deveriam ser os novos
donos e gestores, e assim acontece.
O líder intelectual do grupo, que incita a todos para a tal revolução, era
um porco chamado Major. O suíno morre e outro assume seu lugar, dando
continuidade ao projeto da independência animal. Mas, como já vimos várias
vezes na história, quem assume a missão de espalhar uma mensagem não
pode evitar (ou faz de propósito mesmo) que a mensagem seja contaminada
pelas suas próprias perspectivas. A liderança é trocada mais uma vez e um
déspota napoleônico toma o poder. A manipulação era tamanha que novas
regras eram criadas a todo momento, mas os bichos eram convencidos de
que tais regras novas, na verdade, sempre existiram, eles é que não haviam
reparado.

O exemplo mais recente que se tem disso é o governo da Irmandade Mu-


çulmana no Egito poucos anos atrás. A Irmandade inflava a Constituição com
novos artigos quando era conveniente, e fingia que eles sempre estiveram lá.
Assim, o que antes era uma comunidade de trabalho coletivo funcionando
sob o lema da igualdade entre os bichos, começa aos poucos a apresentar
incoerências, algumas que vão emergindo naturalmente, e outras à força
mesmo.
A própria hierarquia já criada é algo que promete ir afastando a almejada
igualdade. Os porcos, a classe intelectual, passa pouco a pouco a trabalhar
menos e justificar seu ócio com trabalhos burocráticos e intelectuais que
ninguém vê e que os outros animais, por sua inferioridade intelectual, não
conseguiriam compreender – segundo os próprios porcos.

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A diferença entre as espécies animais e suas capacidades físicas começou


a representar um entrave aos preceitos igualitaristas da revolução. É claro
que um burro ou um cavalo teria mais condições de trabalhar duro do que
uma galinha ou um ganso. E essa é uma das excelentes metáforas que Ge-
orge Orwell usa para falar das diferenças entre os seres humanos. Podemos
alegar uma suposta igualdade pelo fato de sermos entes de uma única es-
pécie, mas individualmente há diferenças que viram limitações ou vantagens
em relação acerto tipo de tarefa. Há pessoas melhores em atividades intelec-
tuais do que em atividades físicas e vice-versa; há outros que se desempe-
nham bem em ambas.
O modo como o sistema tem de lidar com essas diferenças é aproveitá-las
em favor dos indivíduos, colocando-os em diferentes funções de acordo com
seus talentos. Outro caminho é suprimir essas diferenças ou simplesmente
fingir que elas não existem, deixando todos dividirem todas as tarefas igual-
mente e ponto final.
Isso não é uma defesa do liberalismo, até porque acredito que no comu-
nismo possa haver ambas as alternativas. O que estou dizendo é que obvia-
mente existem diferenças individuais e não podemos ignorar essa questão.
No caso da fazenda dos animais, as diferenças foram solapadas, mas a
autoeleita elite intelectual suína começou a acumular cada vez mais privilé-
gios para si mesma, do mesmo modo que nobres fizeram na Idade Média,
ou que grandes empresários acabam fazendo no mundo capitalista produzido
pelas revoluções burguesas – e como Stalin e seus súditos fizeram na URSS
também.
Ou seja, tanto Stalin quanto sua versão suína criaram as condições per-
feitas para que uma elite extremista e corrupta ascendesse ao poder – com
direito a uma milícia armada protegendo o regime, eliminando ameaças e
reescrevendo a história convenientemente.
Mas, como já foi dito, para além de mostrar essa roupagem própria do
século XX, o gênio inglês deu margem para que pensemos para a estrutura
humana subjacente a toda essa desigualdade que parece nos puxar como o
horizonte de eventos de um buraco negro.

AS RAÍZES DA DESIGUALDADE
Logo no início da trama, uma égua muito vaidosa é repreendida por ques-
tionar se poderia continuar usando suas fitinhas de cabelo após a revolução.
É dito que fitinhas no cabelo eram coisa de humanos, marcas da exploração
e deviam ser extintas, pois animais andam sem adereços, e em 4 patas.
Isso tem profundas raízes na nossa realidade, pois em geral a esquerda
tem em mente sempre essas distinções entre o que seriam marcas de um
mundo burguês e o que seriam os sinais legítimos de um mundo feito para
os populares.
O mundo capitalista fomenta mais a ideia de indivíduo do que de coletivi-
dades, pois o indivíduo é o que interessa ao sistema. O motor que estimula o
consumo é basicamente a noção de que somos seres separados dos outros, e
como tais, precisamos nos distinguir materialmente deles. Daí nasce a moda,
o “consumo, logo, existo”.

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Em outras palavras, o status é importante no capitalismo, e quanto mais


capacidade de consumo, maior o status. Por isso esse desejo precisa ser es-
timulado diariamente através de propagandas e conversas com nossos pró-
prios pares no trabalho, na faculdade, em casa.
Está tudo internalizado. Naturalizamos a virtude e o poder embutidos na
capacidade de consumir e ostentar riqueza.
Isso é o que está no fundamento do desejo da égua por fitinhas no cabe-
lo. Ela queria ser diferente, queria ostentar.
Mas será possível execrar de nossas almas esse desejo? Nem o socialis-
mo conseguiu isso, com toda a sua filosofia voltada à anulação desse tipo
de desejo capitalístico e individualista. E isso faz todo sentido, pois indícios
mostram que ao longo da história esse desejo sempre existiu, mas com rou-
pagens diferentes, adaptado às possibilidades de cada tempo.
Alain de Botton, em Desejo de Status, traça esse caminho do status ao
longo da história ocidental. Passamos pelo glamour dos cavaleiros medievais,
dos clérigos, pelos cavalheiros ingleses, com sua afetação e habilidades na
dança e nas gentilezas, e pela mudança drástica que a Revolução Francesa
causou no modo como se entendia o status e a posição do homem na socie-
dade, bem como suas ambições.
Na Idade Média, a relação entre status e posição social era diferente.
Certamente um nobre tinha mais status que um camponês, mas como não
existia chance de um servo ascender à nobreza, não existia o sentimento de
inveja no sentido de “droga, um dia quero ter o que esse cara tem”. Restava
às pessoas simplesmente se conformarem com essa hierarquia rígida e estar
dentro dela da melhor maneira possível.
Com o fim da sociedade de privilégios e ascensão dos burgueses, o desejo
de status encontrou terra fértil para se proliferar. A riqueza, assim pensavam
os liberais, estava disponível para cada um desde que trabalhasse. Portanto,
o miserável era miserável por preguiça, por falta de retidão moral para enri-
quecer; o rico, portanto, era mais virtuoso do que o pobre. Esse tipo de po-
sição emergiu juntamente com uma nova concepção cristã: os individualistas
protestantes passaram a entender que o sucesso financeiro estava atrelado
verdadeiramente à virtude. Um homem rico era um homem abençoado por
Deus.
Como herdeiros dessas remodelações da realidade, queremos status
como nunca, pois a riqueza é (ao menos teoricamente) disponível a todos.
Isso gera uma sede imensa pelo poder, bem como uma possibilidade bem
alta de frustração – pois a responsabilidade pelo fracasso num mundo capi-
talista é só do indivíduo; ele não tem uma casta ou estamentos sociais duros
para culpar (daí a importância de críticas à nossa realidade social, pois mos-
tra os mitos teóricos nos quais caímos diariamente).

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Essa faísca de desejo pelo consumo individualizante que aparece algumas


vezes em A Revolução dos Bichos parece estar ligada também ao chamado
consumo conspícuo, que talvez possa ser pensado também como uma nova
forma de pensar na obtenção de status.
Esse conceito se refere ao cerne do consumo, que não é a funcionalidade,
mas a ostentação. As pessoas ostentam o que consomem, o que possuem, e
isso não se restringe ao capitalismo, não se limita à nossa época.
Olhando para culturas de caçadores-coletores, notamos que existem ves-
timentas distintas para cada posição social. As mais elevadas geralmente os-
tentam adereços cada vez mais pecuniários (no sentido que Thortein Verben
dá a essa expressão), como se fossem pavões. É como se implicitamente a
seguinte mensagem estivesse sendo transmitida: “olha, eu sou tão poderoso
que posso andar por aí ostentando esse chapéu enorme ou essa cauda super
incômoda, e mesmo assim posso me proteger e oferecer ainda mais recursos
do que os que eu desperdiço”. É o que se passaria na cabeça de um pavão,
se ele pensasse como um humano.
Quem defendeu esse modelo pela primeira vez foi o polímata superdo-
tado Thorstein Veblen,e desde então uma série de pesquisas científicas pa-
recem confirmar empiricamente a tese do economista e sociólogo. Segundo
ele, o status estaria diretamente ligado a essa capacidade de ostentar coisas
funcionalmente inúteis. E quanto maior o status, quanto maior a ostentação,
mais ocioso seria tal sujeito ou camada social.
Essa é o cerne da sua obra seminal, A Teoria da Classe Ociosa. Assim, a
classe mais ostentadora seria sempre aquela que menos produz, mas a que
mais utiliza os recursos produzidos pelas classes mais baixas, na base do
processo produtivo. Mas todas buscariam a ostentação de um modo ou de
outro.
Isso é basicamente o que acontece com os porcos, na alegoria de Orwell.
Eles estão no topo da hierarquia na granja, sendo assim, se esquivam de
todas as maneiras do trabalho, enquanto usufruem livre e exageradamente
do que os outros animais produzem. Isso é basicamente o que acontece no
capitalismo e foi o que aconteceu nas tentativas de estabelecer o comunismo
– e é o que o autor mostra acontecendo em sua história.
A história contada pelo autor britânico tem um alto componente de crítica
à realidade de sua época – e que de certa forma está bem viva ainda hoje – e
também sobre elementos mais profundos que propositalmente ou não, aca-
bam sendo suscitados dependendo do olhar com que lemos seu livro.
A questão da ostentação, do consumo e do status nunca foi tão viva, e
se Orwell não nos dá uma solução para isso, cumpre bem seu maior objetivo
que é denunciar essa realidade que está presente tanto na supressão e coer-
ção estalinistas quanto na suposta liberdade do mundo capitalista.

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os valentões
DA JUSTIÇA SOCIAL
aristotelis orginos*

“No final, o Partido anunciaria que dois e dois são


cinco, e você teria que acreditar. Era inevitável
que eles fizessem tal declaração cedo ou tarde: a
lógica da sua posição exigia. Não apenas a vali-
dade da experiência, mas a própria existência da
realidade externa, foi tacitamente negada por sua
filosofia.” – George Orwell, “1984”.

Justiça social, como um conceito, já existe há milênios – pelo menos


enquanto houve desigualdade na sociedade e havia indivíduos esclarecidos
o suficiente para questioná-la. Quando estudamos a história, vemos, como
num famoso escrito do transcendentalista norte-americano Theodore Parker,
que “o arco [do universo moral]… se inclina em direção à justiça.” E isso pa-
rece relativamente evidente quando se olha para a história como se fosse
uma única linha de enredo. As coisas melhoram. E, se a história é lida como
um livro, os partidários da justiça social são normalmente considerados os
heróis, enquanto seus adversários são os vilões.
Talvez esse seja o meu coração progressista falando, o fato de que eu
cresci em uma cidade progressita, aprendi a história dos Estados Unidos com
um socialista com S maiúsculo e estudei numa das universidades mais pro-
gressistas do país – mas vejo essa ideia como uma coisa boa. A noção de que
os males da sociedade deveriam ser corrigidos, de modo que a determinado
grupo não é dada uma vantagem injusta sobre outro, não é, para mim, uma
ideia radical.
Mas os jovens da Geração Y estão crescidos agora – e eles estão com rai-
va. Quando crianças, foram informados de que poderiam ser qualquer coisa,
fazer qualquer coisa, e que eram especiais. Como adultos, eles criaram uma
novo tipo de identidade política, em que os grupos com os quais cada indi-
víduo se identifica são utilizados como parâmetros. Com essa concepção tão
fortemente focada nos grupos aos quais cada um pertence, houve uma cres-
cente segmentação das identidades políticas. Numa tentativa de ter a mente
aberta em relação a outros grupos para tratar de questões de justiça social
através de uma lente de interseccionalidade, linhas claras e distintas foram
traçadas entre as pessoas. As palavras de uma única pessoa, bem como suas
ações, são inseparáveis da sua própria identidade. Por exemplo: este não é
um artigo, mas um artigo escrito por uma pessoa branca, de classe média, do
sexo masculino (e por essa razão, será desacreditado por muitos, pois meu
privilégio me cega – trato disso mais tarde).

*Tradução de Social Justice Bullies: The Authoritarianism of Millennial Social Justice, autorizada pelo
autor. Todas as imagens que ilustram este texto são verdadeiras e foram retiradas de grupos de ativistas
brasileiros em redes sociais.

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E se por um lado isso é muito bom (o orgulho de si mesmo e de sua iden-


tidade), por outro a cultura sociopolítica resultante da Geração Y e de seus
precursores políticos um pouco mais velhos é corrosiva e destrutiva para o
progresso da justiça social. E aqui reside o problema: na tentativa de resolver
questões sociais prementes e importantes, os jovens dessa nova geração que
são defensores da justiça social sabotam violentamente as oportunidades
reais para o progresso, infectando uma concepção política progressista com,
Muitos entenderão esse ter-
mo que eu usei – jovens defen-
sores da justiça social – como
um sinônimo para os pejorativos
“Social Justice Warriors” (SJW –
Guerreiros da Justiça Social). É
um termo que perdeu sua força
por conta do uso excessivo, mas
ilustra uma questão-chave aqui:
que, com espada em punhos e
sedentos por sangue, os defen-
sores da justiça social têm se dei-
xado levar pela violência verbal,
emocional – e, às vezes, física.
Em uma exibição deslum-
brante e arquetípica da Teoria da
Ferradura, esse tipo particular
de jovens defensores da justiça
social tem deformado uma cau-
sa admirável para a igualdade
social, econômica e política, em
um movimento social autoritário
que tem dividido e desumaniza-
do indivíduos com base em uma
ideologia segregadora disfarçada
de teoria acadêmica. O moder-
no movimento de justiça social
disseminado no Twitter, Tumblr
e Facebook é muito mais uma
reminiscência da Guerra Fria do
que de um movimento histórico
em defesa dos Direitos Civis.
Quando George Orwell escreveu 1984 (e aqui alguns vão me desancar
por escolher um autor homem, branco, nascido numa potência historicamen-
te colonialista, apesar do fato de que ele lutou e escreveu contra esse colo-
nialismo), ele o fez para alertar contra os vários perigos do extremismo em
ambos os lados do espectro político. A maior obra de Orwell é sobre autorita-
rismo em ambos os polos do espectro político. Se o arco do universo moral se
inclina para a justiça, em seguida o arco do espectro político se inclina para
o autoritarismo em ambas as extremidades.
O próprio fato de que eu estou fazendo uma conexão com o livro mais
lembrado quando se discute degeneração política é um problema em si mes-
mo. Mas ele merece uma maior exploração.

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DOIS MAIS DOIS É IGUAL A CINCO


Este tipo particular de justiça social ataca a razão de um modo especial-
mente assustador: negando-a inteiramente e utilizando a intimidação para
desencorajar a dissidência. Não há nenhum meio-termo: somente preto ou
branco. É preciso mimetizar esse pensamento radical ou ser escarnecido pela
comunidade e expulso do grupo. Discordar do radicalismo da justiça social da
nova geração é tornar-se voluntariamente um pária. Aderir a essa narrativa
é o teste decisivo para a aceitação social na comunidade (e além dela) nos
dias de hoje.
Tomemos, por exemplo, um
exemplo tópico: o caso da revis-
ta Rolling Stone e a história do
estupro na Universidade da Vir-
gínia. A jornalista Sabrina Rubin
Erdely escreveu um artigo acu-
sando vários membros do corpo
discente da universidade de es-
tuprar uma garota chamada “Ja-
ckie”. O problema é “Jackie” era a
única fonte de Erdely. Posterior-
mente, num editorial da Rolling
Stone, foi colocada em dúvida a
confirmação dos fatos realizada
pela revista e pela jornalista, e
argumentou-se que “havia várias
maneiras de Elderly confirmar,
por conta própria, a veracidade
do que Jackie tinha dito a ela.”
Erdely acreditou em Jackie sem
questionar. Por quê?
Porque, em obediência aos defensores da justiça social, somos orienta-
dos a não questionar as vítimas de estupro. Questioná-las é “culpar a vítima”
e isso é capaz de voltar a traumatizá-la.
No artigo “Lutar contra a cultura do estupro significa nunca ter que pedir
desculpas“, o autor Charles Cooke analisa esse caso da Rolling Stone. Cooke
escreve que houve um questionamento inicial de Jackie e Erdely e observa
que essa linha de investigação foi recebida com extrema hostilidade. Cooke
diz:
“No Washington Post, Zerlina Maxwell argumentou que “devemos acre-
ditar, de regra, naquilo que alguém que acusa outros [de estupro] diz”, pois,
“os custos de equivocadamente desacreditar a vítima superam em muito os
custos de chamar alguém de um estuprador.”

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Essa visão foi apoiada pela advogada e jornalista Rachel Sklar, que afir-
mou, para registro da posteridade, que considera “as mulheres que falam
de suas próprias experiências de estupro” automaticamente “críveis”, e que
qualquer um que faz perguntas a elas caracteriza-se como um apologista
do estupro. No Twitter, por sua vez, a jornalista Amanda Marcotte concluiu
que qualquer pessoa que tenha dúvidas sobre um determinado relato de
estupro está envolvida numa tentativa covarde de demonstrar que histórias
de estupro nem sempre são verdadeiras, enquanto que Sally Kohn, da CNN,
indignou-se com Jonah Goldberg quando pediu mais provas. Talvez o melhor
exemplo da presunção de que “todos os céticos são heréticos” vieram da no-
tavelmente desagradável Anna Merlan, que recompensou Robby Soave por
seu trabalho investigativo atribuindo-lhe um rótulo: “idiota.”
Grande parte dessa retó-
rica vem da idéia de que há
uma cultura do estupro ge-
neralizada nas universidades
de todo o país que deve ser
erradicada; mais exatamen-
te, haveria manifestações
do patriarcado opressor das
mulheres que seriam social-
mente e institucionalmente
endossadas. As ideias apre-
sentadas no trecho acima
procuram resolver isso atra-
vés de algo que chamam de
justiça social. Mas em que
mundo essas afirmações são
progressistas e representati-
vas da justiça social?
No artigo “Não importa o que Jackie disse, devemos em geral acreditar
em alegações de estupro”, Zerlina Maxwell sugere que deveríamos geral-
mente dar o equivalente a um cheque em branco para alguém que apresenta
uma acusação de estupro. Isso não é justiça e certamente não é a justi-
ça social também. É uma perversão não-progressita da justiça. Sir William
Blackstone é famoso pelo que é conhecido como a Regra de Blackstone: “É
melhor dez pessoas culpadas escaparem do que um inocente sofrer.” Este
axioma é uma fundação dos modernos sistemas de justiça em todo o mun-
do. É uma regra que presume a inocência; condenar alguém com base numa
acusação em virtude da identidade ou da situação de oprimido do acusador
é uma perigosa estrada morro abaixo. Ela corrói o princípio mais essencial
do progressismo: o devido processo legal.

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O devido processo legal, ou a idéia de que um órgão deve respeitar to-


dos os direitos de um indivíduo, é concedido aos americanos pela 5ª e 14ª
Emenda. Sugerir que não há recurso para o acusado ​​- e de que exigir isso é
apologia ao estupro – é absurdo, reacionário e lança uma maior luz sobre a
natureza preto-ou-branco desses defensores da justiça social da Geração Y.
Discordar (ou até questionar) esse radicalismo é ter suas palavras distorcidas
para uma interpretação desfavorável: você não está defendendo o “devido
processo legal”, você está defendendo que os racistas não sejam punidos,
perpetuando a cultura do estupro e fortalecendo a apologia ao estupro. Por
que, afinal de contas, alguém exigiria o devido processo legal quando uma
mulher está acusando um homem de estupro? Do ponto de vista da justiça
social da Geração Y, essa é uma exigência que resulta em sexismo contra as
mulheres e que tem por base, eles acham, uma taxa estatisticamente insig-
nificante de falsas acusações de estupro.
Para o defensor da justiça social dos nossos tempos, as conclusões não
dependem dos fatos; ao invés, os fatos dependem das conclusões. Em um
exemplo geral de viés da confirmação, a verdade é maleável. A verdade
maleável é moldada em torno dos pontos de vista teóricos da justiça social.
A fim de preservar a santidade desses pontos de vista, os adeptos exilam
quem discorda. Não é nada novo – é uma tática tão antiga quanto a própria
religião. Em vez de textos sagrados, porém, a justiça social contemporânea
curva-se diante da trindade ideológica atualmente vigente: marxismo, fe-
minismo e pós-colonialismo.

NOVILÍNGUA

“Você não vê que todo o objetivo da Novilíngua é


limitar o alcance do pensamento? No final, torna-
remos literalmente impossíveis as manifestações
de pensamentos criminosos, pois não haverá
palavras para expressá-los. Qualquer conceito
que seja necessário será expresso por uma única
palavra, com seu significado rigidamente definido
e todos os demais significados subsidiários apaga-
dos e esquecidos.” – George Orwell, “1984”

A Novilíngua da justiça social da Geração Y é um mecanismo intricado e


poderosamente concebido que procura erradicar e socialmente criminalizar a
dissidência.
Falemos do racismo, por exemplo. O mantra do movimento é assim: é im-
possível ser racista contra os brancos, pois o racismo é a soma do preconceito
com a posição dominante. Já que os brancos detêm um poder social e eco-
nômico institucionalizado, aqueles que são racialmente oprimidos não podem
ser racistas contra os brancos na medida em que não têm poder.

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Por que não posso simples-


mente refutar isso com uma in-
cursão ao dicionário? Porque esse
gesto é objeto de gargalhadas da
turma da justiça social. A ideia de
uma pessoa branca indo ao dicio-
nário para encontrar uma defini-
ção de racismo é, literalmente,
uma figura de linguagem, pois o
defensor da justiça social moder-
na acha muito divertido que um
dicionário, criado por quem está
poder para servir aos que falam a
linguagem do poder, possa even-
tualmente dar uma definição pre-
cisa de uma palavra.
Entende aonde quero chegar
com isso? Hoje em dia você pode
livrar-se da culpa de reelaborar
academicamente todos os nu-
ances de uma palavra ao ponto
de alterá-la fundamentalmente a
seu favor.
O mesmo é dito sobre sexismo e homens – que não se pode ser sexista
contra os homens porque vivemos em uma sociedade patriarcal. E, no en-
tanto, quando é exposto que os homens enfrentam problemas sociais, polí-
ticos e econômicos legítimos, eles são informados de que o feminismo tem a
solução para eles também.
Orwell chama isso de “pensamento duplo”.
Ao invés de a discussão focar-se no fato de que advogar “a morte de
todos os brancos” como estratégia política e utilizar #CastreTodosOsHomens
como hashtag expressam sentimentos odiosos e preconceituosos, os defen-
sores da atual justiça social justificam e legitimam essas frases sugerindo
que não se tratam de atos racistas ou sexistas mas de legítimas manifesta-
ções contra os opressores. A discussão do quanto essas assertivas são ge-
nuinamente odiosas e anti-progressistas sequer vem à tona pois, à medida
em que o roteiro é seguido, isso seria desviar-se da discussão de legítimos
problemas dos oprimidos para focar-se nos não-problemas dos opressores.
O que estou falando até agora não tem a intenção de desacreditar o
feminismo ou qualquer posição justiça social que visa capacitar as pessoas
oprimidas ou remediar os males sociais. Como já deixei claro o suficiente no
início, essas são metas fundamentalmente boas e necessárias. O problema
aqui são as táticas usadas por alguns detentores de suposta superioridade
moral para imunizar-se de críticas enquanto promovem um autoritarismo
obtuso que captura a sociedade através de táticas sinistras e arrepiantes.

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Isso nos leva aos fundamentos supostamente estatísticos do movimento


de justiça social contemporâneo. Como Mark Twain celebremente disse: há
mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas.

Vamos voltar ao exemplo da Rolling Stone e do suposto estupro na Uni-


versidade de Virgínia. Há uma estatística frequentemente citada de que
“uma em cada cinco mulheres sofrerão um ataque sexual nas universidades
americanas”. Isso choca a consciência, como deveria, e é usado para alimen-
tar a histeria da cultura do estupro em universidades de todo o país. Infeliz-
mente para os defensores da justiça social (e felizmente para mulheres em
idade universitária em todos os lugares), essa estatística é criminosamente
enganosa. Como Glenn Kessler, do Washington Post, escreve, essa estatísti-
ca resulta de “uma só pesquisa, baseada nas experiências de estudantes em
duas universidades. Como os pesquisadores registraram, esses resultados
podem ser válidos para essas duas grandes universidades, mas não neces-
sariamente para as demais”. Mas por que defensores de vítimas de agressão
sexual excluem esse detalhe? O 1-em-5 é uma ótima maneira de disse-
minar o medo. Em um relatório divulgado pelo Bureau of Justice Statistics
intitulado “estupro e agressão sexual de mulheres em idade universitária,
1995-2013”, Lynn Langton e Sofi Sinozich relatam que “a taxa de estupro e
agressão sexual foi 1,2 vezes maior

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Para mulheres não-estudantes (7,6 por mil) do que para estudantes (6,1
por 1.000): “Usar estatísticas deliberadamente enganosas em uma cam-
panha maquiavélica, na qual a erradicação dos ataques sexuais em campi
universitários depende da má interpretação de dados e da eliminação do de-
vido processo legal, colabora mais para nos desviarmos de conversas sobre
ataques sexuais nas universidades do que um debate produtivo e legalmente
responsável nos desviaria.”
Tomemos também como exemplo a estatística sobre diferença salarial
citada em todos os lugares, desde aulas de sociologia até discursos presi-
denciais: de que as mulheres recebem 70% menos do que os homens. A
verdade é que essa é, de novo, uma estatística enganosa, que tenta aplicar a
nível nacional os dados agregados a nível individual. A revista Time informa
que “essa disparidade salarial é simplesmente a diferença entre as médias
dos ganhos de todos os homens e mulheres que trabalham em tempo inte-
gral. Ele não leva em conta diferenças de ocupações, posições, educação,
estabilidade no emprego ou horas trabalhadas por semana. Quando esses
fatores são considerados relevantes, a diferença salarial estreita a ponto de
desaparecer”. Isso é corroborado por uma quantidade aparentemente infini-
ta de fontes como o Wall Street Journal e Abigail Hall, que ironiza que “você
não gostaria de comparar os rendimentos de professores do ensino funda-
mental com os de acadêmicos com doutorado e reclamar de que há uma
diferença salarial entre físicos e professores secundaristas”. Note-se que há
cinco fontes só neste parágrafo.
Usar estatísticas enganosas para empurrar uma agenda não faz nenhum
bem a ninguém. Isso impede o progresso, na tentativa de apoiar uma causa
legítima com fundamentos de má qualidade. Fundamentos que, com o tem-
po, entrarão em colapso – e o progressismo com eles.
Aqui está o problema – muitos leitores ficarão indignados só pelo fato
de que estou apresentando essas estatísticas sob um ponto de vista nega-
tivo. Afinal, por que eu faria tal coisa senão para retratar o feminismo de
um modo feio ou para minimizar o problema do estupro nas universidades?
Como um homem heterossexual, presume-se que estou fazendo isso não
em nome da honestidade acadêmica de confirmar os fatos, mas por razões
sexistas, ou porque sou um apologista do estupro, ou porque acho que as
mulheres estão “pedindo por isso”.
Mas aqui está o detalhe – quem eu sou não tem (ou não deveria ter)
qualquer influência sobre os fatos. O problema com esse tipo de defesa da
justiça social moderna é que a identidade de uma pessoa (raça, classe, gê-
nero, etc.) torna-se o princípio e o fim de toda a sua capacidade de ter um
certo ponto de vista. Um defensor da justiça social moderna pode desqualifi-
car uma opinião simplesmente porque ela é dita ou escrita por alguém de um
grupo que é considerado opressor. É uma falácia lógica conhecida como ad
hominem, na qual alguém ataca uma pessoa que apresenta um argumento
ao invés de atacar o próprio argumento. Mas essa falácia lógica tornou-se a
principal arma da justiça social da Geração Y. É a morte da vida acadêmica,
do pensamento crítico e da honestidade intelectual. No entanto, essa é a
principal forma de se comportar nas universidades em todo o país.

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CONCLUSÃO
Esse longo artigo poderia ir muito mais longe. Eu poderia falar sobre
como a segmentação das pessoas em grupos baseados na identidade política
é uma ideologia regressiva e passional que agride a verdadeira diversidade.
Eu poderia falar sobre como a proposta de “diferentes mas iguais” acaba não
se tornando uma coisa boa, pois a esquerda a reformula e a chama de “es-
paços de segurança”.
O fato é que esse tipo particular de estratégia da justiça social é destru-
tivo para a academia, a honestidade intelectual, o verdadeiro pensamento
crítico e a mente aberta. Já o vemos ter um impacto profundo na forma como
as universidades agem e como eles abordam o currículo.

Os argumentos apresentados sob a bandeira desse tipo de justi-


ça social são muitas vezes insignificantes, geralmente mesquinhos e
sempre absolvidos de qualquer culpa pelo auto-posicionamento mo-
ral do orador. E sim, às vezes eles são sexistas e racistas também.
Enxergar tudo através de um ponto de vista teórico particular
(isto é, feminista, marxista, pós-colonialista, etc.) é um exercício in-
telectual limitativo que só funciona no vácuo. O mundo é mais do que
um ponto de vista. O exílio público daqueles que sustentam pontos
de vista alternativos não é de forma alguma favorável ao progresso
social. O oposto do ódio não é ódio na direção oposta. Não há des-
culpa – nenhuma – para ser uma má pessoa em relação a outra com
base na sua identidade.

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CÂNONE AZ 2014-2016

Permitam-me, finalmente, ser suficientemente, suficientemente


claro (aprendi que isso era necessário alguns meses atrás). A justiça
social e a defesa da justiça social são coisas boas. Utilizar a educação
de alguém para resolver problemas sociais é uma meta admirável.

A versão da justiça social de que tenho falado – a que usa a polí-


tica da identidade para segmentar grupos de pessoas, que gera ódio
entre grupos, que mente deliberadamente para impulsionar metas
políticas, que manipula a linguagem para criar imunidade à crítica e
que publicamente constrange qualquer um que remotamente mani-
feste alguma espécie de discordância da abrangente narrativa radical
– não é admirável. É deplorável. Ele apela para os mais vis dos ins-
tintos humanos: o medo e o ódio. Não é uma posição esclarecida ou
educada de se assumir. A história não verá com bons olhos esta per-
versão orwelliana e autoritária da justiça social que passou a dominar
as mídias sociais e uma geração inteira ao longo dos últimos anos.

Aqueles que precisam ouvir esta mensagem provavelmente ar-


gumentarão que (1) tenho privilégios demais para compreender, (2)
estou policiando os oprimidos (e eu não deveria dizer ao oprimido
como devem tratar seus opressores) e (3) sou na verdade um racista
e sexista disfarçado de progressista. Espero esses argumentos, em
parte porque estou acostumado a ver esse roteiro se repetir nos últi-
mos quatro anos de universidade.

Mas o fato que importa é o seguinte: aqueles que não estão dis-
postos a, sob a proteção moral do progressismo e da justiça social,
engajar-se em diálogos produtivos, abertos e mutuamente críticos
com pessoas que discordam não são progressistas, não são defenso-
res da justiça social; eles são os valentões da justiça social.

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