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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

“EU EXISTO”: afirmação indígena e nomeação do racismo.


Os Borari e os Arapium da Terra Maró, Amazônia.

Kércia Priscilla Figueiredo Peixoto

Belém
2017
Kércia Priscilla Figueiredo Peixoto

“EU EXISTO”: afirmação indígena e nomeação do racismo.


Os Borari e os Arapium da Terra Maró, Amazônia.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Pará, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutora em Sociologia sob
orientação da Profª Dra Maria José Aquino
Teisserenc.

Belém

2017
Kércia Priscilla Figueiredo Peixoto

“EU EXISTO”: afirmação indígena e nomeação do racismo.


Os Borari e os Arapium da Terra Maró, Amazônia.

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e


Antropologia da Universidade Federal do Pará, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutora em Sociologia.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Maria José da Silva Aquino Teisserenc – Universidade Federal do Pará
Orientadora

__________________________________________________________________
Prof.º Dr. Jonathan Warren – University of Washington
Avaliador externo

__________________________________________________________________
Prof.º Dr. James Fraser – Lancaster University
Avaliador externo

__________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Edna Maria Ramos de Castro – Universidade Federal do Pará
Avaliadora interna

__________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Violeta Refkalefsky Loureiro - Universidade Federal do Pará
Avaliadora interna

__________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Vanderlúcia da Silva Ponte - Universidade Federal do Pará
Avaliadora externa suplente

_____________________________________________
Prof.º Dr. Heribert Schmitz - Universidade Federal do Pará
Avaliador externo suplente

Aprovação: 23/03/2017.
À minha mãe Helena Silva, com amor.
AGRADECIMENTOS

É difícil, é muito difícil fazer uma tese.

A memória ganha uma potencialidade incrível, ao lembrar de conceitos complexos e de nomes


enrolados, e ao mesmo tempo te faz esquecer coisas simples como se você trancou a porta ou
se já tomou banho.

A vida social deixa de existir. Embora próxima fisicamente (na mesma cidade), você nunca se
sentiu tão distante dos teus amigos.

A família parece coisa do passado de tanto que você se ausentou nos últimos tempos (anos...).

Os sentimentos são contraditórios: ora eufóricos, ora profundamente depressivos.

Você acha que não vai conseguir acabar, mas colocou na cabeça que sua vida depende disso.
Isso vira crença absoluta.

Você se sente inteligente, mas vive se atormentando com pensamentos “ai como sou lenta” ou
“ai como sou burra”.

Seu corpo e a cadeira passam a ser “uma coisa só”. Vai dormir tão cansada que nem sabe como
parou ali.

Acha que nunca está bom. Lê e relê 500 vezes e sempre tem alguma coisinha para arrumar.

Mas um dia você acaba a tese e corajosamente a entrega porque confia no seu argumento.

E vai feliz para uma banca porque você sabe que completou seu trabalho e que ele é forte.

Fica ainda mais feliz quando todo seu esforço é reconhecido.

Por isso eu só tenho a agradecer!

Agradeço a Deus, a Nhanderú, ao espírito divino que me deu toda a luz e energia que precisei
através das pessoas que fizeram parte da minha vida nesses cinco anos.

Agradeço a cada uma das pessoas que me ajudaram com solidariedade, conversas, entrevistas,
informações e que foram infinitamente pacientes. Especialmente agradeço aos guerreiros Borari
e Arapium da Terra Indígena Maró, em nome de todos os guerreiros do Movimento Indígena
do baixo Tapajós e do Brasil.

Agradeço à minha orientadora Maria José Aquino Teisserenc, por toda a liberdade e paciência
que teve com uma aluna demasiada rebelde como eu.

Agradeço aos membros da banca professoras Vanderlucia Ponte, Edna Castro, Violeta
Loureiro, e professores James Fraser e Jonathan Warren, pelas preciosas considerações e por
terem valorizado a coragem desse trabalho.

Ao prof. Warren tenho profunda gratidão por ter me presenteado com seu livro “Racial
Revolutions”, que mudou o meu fazer acadêmico e que me influenciou com seu jeito simples
de dizer e escrever coisas importantes. Sou grata por muitas coisas, mas especialmente por ter
me recebido na Universidade de Washington no ano de 2015.

Agradeço à minha mãe Helena Silva, “doutora em maternidade”, e ao meu padrasto Nicolau
Gomes que amam o neto Gabriel e que assumiram nossos cachorros e suas proles com todo
carinho e cuidado.

Agradeço aos meus irmãos: Keila, Karla e Charles que dividiram comigo o momento mais
difícil de nossas vidas que foi a perda do nosso amado pai Carlos Silva, que eternamente nos
fará falta. Obrigada manas e mano por dividirem tristezas e as mais lindas e doces alegrias com
a família, que agora está mais linda com a chegada da nossa pequena Maysa.

Agradeço aos tios e tias, primos e primas. À minha querida avó Enerina que foi morar em outro
plano, mas que continua cuidando da gente.

Agradeço aos meus mestres Cristina Maneschy, Louis Forline, Kátia Mendonça, entre outros.
Que me incentivaram e me formaram.

Agradeço à queridíssima Raquel e ao Caleb, que paciente e carinhosamente dialogou, leu, fez
críticas necessárias e me ajudou a construir esse trabalho.

Agradeço a minha querida mestra Eneida Assis, que me entusiasmou com o conhecimento e
amor que tinha pelos povos indígenas. Ela partiu do plano terreno, mas tenho certeza que onde
estiver está alegre com essa conquista.

Agradeço ao Paulo e à Rosângela que foram sempre dispostos a me ajudar em tudo que precisei
na Secretaria do PPGSA.
Agradeço ao meu companheiro nessa viagem da vida Rodrigo, que me deu o mais profundo
amor e força que precisei. Que me encorajou e me animou afirmando enfaticamente “sua tese
é boa”. Que deixou flores para enfeitar minha mesa de trabalho e litros de café com chocolates,
que me ajudaram a me manter acordada. Ao Rodrigo sou profundamente grata por segurar
minha mão nessa caminhada, por ter me ouvido tanto, por ter lido, relido e comentado meus
textos, e especialmente por ter me dado o mais lindo presente que ganhei na vida: o Gabriel. Eu
sou completamente apaixonada pelo seu desejo de fazer deste um mundo melhor e pela
capacidade intelectual que ele investe nesse projeto, que me prende e me motiva. Outras coisas
eu deixo para falar ao pé do ouvido.

Cada dia eu agradeço pela beleza de ser mãe do Gabriel, uma criança que enche meus dias de
alegria e de amor. Que com uma paciência enorme me acompanhou em aulas, congressos e que
se alegrou nas viagens de campo. Ele cresceu junto com a tese. Muitas vezes ele espertamente
teve que falar “mamãe EU EXISTO! ”. Desculpa pelas ausências pequenino.

Agradeço à D. Rosa, que mesmo com uma história de vida sofrida mantém em si a alegria. Sou
grata por ter me ajudado a cuidar da casa e do Gabriel e por todas as orações que dedica a mim.

Agradeço aos meus amigos antigos e novos que encheram minha vida com a riqueza de suas
vidas e que agora dividem comigo essa alegria.

A todos que estiveram presentes e que me energizaram na minha defesa: graças a vocês também
mantive toda a calma e clareza que precisava.

Peço desculpas se deixei de agradecer a alguém aqui.


“La revolución que será para los pobres no sólo es la conquista del pan,
sino también la conquista de la belleza, del arte, del pensamiento y de
todas las complacencias del espíritu”
José Carlos Mariátegui
RESUMO

A tese busca entender o porquê de os indígenas auto-afirmados do baixo Tapajós sofrerem a


constante negação de suas identidades por parte da sociedade e por setores do Estado. Investiga
na história indígena do Brasil e da Amazônia elementos que revelam o racismo como fator
determinante do não reconhecimento. Através da análise da luta do movimento indígena por
identidade e território, constata que o racismo contra o indígena é explicito socialmente.
Contudo, raramente o racismo é reconhecido como violência contra os indígenas. Racismo é
uma palavra que carrega um pesado estigma social. É comum a adoção de eufemismos, como
preconceito e discriminação, para se referir ao racismo que os indígenas sofrem. Os Borari e os
Arapium da Terra Indígena Maró nomearam publicamente como racista uma sentença judicial
que lhes negava a identidade. Ao nomear o racismo, os indígenas o combatem. Ao nomear-se
com os nomes de suas etnias os indígenas passam a existir como sujeitos históricos, autores de
sua própria biografia.

Palavras-chave: afirmação indígena; racismo; reconhecimento; Borari e Arapium; TI Maró.


RESUMEN

La tesis busca entender el porqué de los indígenas autoreconocidos del Bajo Tapajos (Pará)
sufren la constante negación de sus identidades por parte de la sociedad y por sectores del
Estado. Investiga en la historia indígena del Brasil y de la Amazonia elementos que revelan el
racismo como factor determinante del no reconocimiento. Atraves del analisis de la lucha del
movimiento indígena por identidad y territorio, constata que el racismo contra el indígena es
socialmente explícito. Pero no siempre esa forma de violencia contra los indígenas es
reconocida como tal. Racismo es una palabra que carga un pesado estigma social. Es común el
uso de eufemismos, como preconcepto y discriminacion, para referirse al racismo que los
indígenas sufren. Los Borari y los Arapium del territorio indígena Maró reconocieron
públicamente como racista una sentencia judicial que les negaba la identidad. Al reconocer el
racismo los indígenas lo combaten. Al reconocerse con los nombres de sus etnias los indígenas
pasan a existir como sujetos históricos, autores de su propia biografía.

Palabras clave: afirmación indígena; racismo; reconocimiento; Borari e Arapium; TI Maró.


ABSTRACT

This thesis intends to understand the reason why the self-recognized Indians of the low Tapajós
region (state of Pará) suffer a refusal of their identities from part of society and from sectors of
the State. The thesis researches in the indigenous history of Brazil and Amazonia elements to
reveal racism as a determinant cause for the Indians having their recognition denied. Through
the analysis of the struggle of the indigenous movement for identity and territory, I realize that,
despite being socially explicit, racism is not recognized as such. Racism is a word that bears a
heavy social stigma. So, it is common to adopt euphemisms, such as prejudice and
discrimination, in order to refer to the racism the indigenous suffer. The Borari and Arapium of
the Indian Land Maró publicly declared that a judicial decision which denied their identity had
racism as a determining factor. Naming themselves with the names of their ethnicities, the
Indians stand to exist against racism, as historical subjects, authors of their own biography.

Keywords: Indigenous affirmation; racism; recognition, Borari e Arapium; TI Maró.


LISTA DE FIGURAS

MAPAS
Mapa 1 BR 163 rota do agronegócio 147
Mapa 2 Áreas protegidas do baixo Tapajós 162
Mapa 3 Conjunto de glebas Mamurú-Arapiuns 208
Mapa 4 Proposta das comunidades para o ordenamento fundiário 225
Mapa 5 Regularização Fundiária das glebas Mamurú-Arapiuns 226
Mapa 6 Mapa de Uso da aldeia de Novo Lugar 244

FIGURAS
Figura 1 Patrícia Juruna 06
Figura 2 Dinael Arapium 08
Figura 3 PEC 215: quando os ruralistas decidem demarcar terras indígenas 09
Figura 4 Interior da Igreja de São Benedito 21
Figura 5 Dona Edite, famosa parteira na região 25
Figura 6 Aldeia de Novo Lugar, na Terra Indígena Maró. 26
Figura 7 Reunião na Aldeia de Novo Lugar 27
Figura 8 Ariana Karipuna 44
Figura 9 Iza Tapuia 54
Figura 10 Juliana Fidelis 55
Figura 11 Imagens de alguns dos cartazes da campanha 57
Figura 12 Márcio Saw Munduruku 58
Figura 13 Gráfico Desigualdade racial na Política 65
Figura 14 Mario Juruna 66
Figura 15 “Primeira missa no Brasil”, de Victor Meirelles (1860) 71
Figura 16 Monumento simbolizando a primeira missa no Brasil 72
Figura 17 “O Cabano Paraense” (1940) 91
Figura 18 “O vendedor de amendoins” (1990) 91
Figura 19 “Os retirantes”, Portinari (1944) 103
Figura 20 Vítimas da seca no Ceará 1877/78 104
Figura 21 Seringueiro com a bola de borracha 105
Figura 22 “Irmãos Witoto” 107
Figura 23 Crianças e adultos morriam ao lado da linha férrea 109
Figura 24 “Vida Nova na Amazônia” 110
Figura 25 “Mais borracha para a Vitória” 110
Figura 26 Chegada dos médicos cubanos no Brasil 126
Figura 27 Postagem racista em rede social 126
Figura 28 Ailton Krenak 133
Figura 29 Charge Latuff sobre a visita da relatora da ONU 134
Figura 30 Tuíra Kayapó 135
Figura 31 O porto da Cargill ao fundo 146
Figura 32 Márcia Wayana Kambeba 197
Figura 33 Dona Neide. Vice cacique de São José III 202
Figura 34 Interior do barco 203
Figura 35 Vendedor 203
Figura 36 Porto de escoação de madeira no rio Aruã 204
Figura 37 Balsa carregada de madeira 204
Figura 38 Barco “Creio em Deus” aportado na aldeia de Cachoeira do Maró 205
Figura 39 Barco pequeno segue para a aldeia de Novo Lugar 206
Figura 40 Autora viajando para Novo Lugar 206
Figura 41 Chegando na aldeia de Novo Lugar 207
Figura 42 Edil Soares Costa 211
Figura 43 Cacique Dadá e os indígenas fizeram placas demarcando a TI 217
Maró
Figura 44 Rosa e a sua filha Kamirran 222
Figura 45 Dona Joana 227
Figura 46 Irã Borari, carregado pelo pai, o cacique Dadá 229
Figura 47 Boraris carregando baldes de água do rio para o consumo diário 231
Figura 48 Borari com um tatu para o jantar da família 236
Figura 49 Boraris desenhando o Mapa de Uso 243
Figura 50 Poró Borari 247
Figura 51 Parte da Certidão de Nascimento de Kauê Borari Kumaruara 252
Figura 52 Marcelo Borari, Luana Kamaruara, Iara Kumaruara e Kauê Borari 253
Kumaruara na barriga
LISTA DE SIGLAS

ABRAPSO Associação Brasileira de Psicologia Social


ALAP Área de Limitação Administrativa Provisória
APIB Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
CEBs Comunidades Eclesiais de Base
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CITA Conselho Indígena Tapajós Arapiuns
CNPT Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sóciobiodiversidade
Associada a Povos e Comunidades Tradicionais
COIAB Coordenação da Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
COIIAB Conselho Intercomunitário Indígena Arapium Borari
CPI Comissão Parlamentar de Inquérito
CPT Comissão Pastoral da Terra
DAIN Diretório Acadêmico Indígena
DOU Diário Oficial da União
ENEI Encontro Nacional de Estudantes Indígenas
FASE Fase Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FLONA Floresta Nacional
FUNAI Fundação Nacional do Índio
GDA Grupo de Defesa da Amazônia
GCI Grupo de Consciência Indígena
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMBIO Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INPA Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
ITERPA Instituto de Terras do Pará
MEBs Movimentos de Educação de Base
MPF Ministério Público Federal
MST Movimento dos Sem Terra
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONG Organização Não Governamental
ONU Organizações das Nações Unidas
PAE Projeto de Assentamento Extrativista
PEC Projeto de Emenda Constitucional
PL Projeto de Lei
PUC Pontifícia Universidade Católica
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNGAT Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras
Indígenas
PSA Projeto Saúde e Alegria
PT Partido dos Trabalhadores
RESEX Reserva Extrativista
SECTAM Secretaria Executiva de Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente
SEMA Secretaria Municipal do Meio Ambiente
SNUC Sistema Nacional de Unidades Conservação
SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SESAI Secretaria Especial de Saúde Indígena
STTR Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
TEM Teatro Experimental do Negro
TI Terra Indígena
UFOPA Universidade Federal do Oeste do Pará
UFPA Universidade Federal do Pará
UFRR Universidade Federal de Roraima
UFT Universidade Federal do Tocantins
UNAMA Universidade da Amazônia
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNIFAP Universidade Federal do Amapá
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

I - CAMINHOS DA PESQUISA 5

Revelando o racismo 8

Primeiros passos 19

Meu lugar na tese 23

Compreensão, interpretação e reflexão 25

Instrumentos metodológicos 28

Uma história outra 30

II - EXISTE RACISMO CONTRA O INDÍGENA? 36

Racismo entre preconceito e discriminação 38

A descoberta de Ariana Karipuna 43

Índios e Negros: etnia x raça? 45

“Ela é índia, índia, índia”: o peso do fenótipo 50

O racismo na universidade 54

Racismo é crime 62

Desprezo pelo popular. O “outro” abaixo da “linha do humano” 64

III - “MORTE QUE MATA A GENTE DENTRO” 69

Brasil 500 anos 69

Desencontro 73

De índio a tapuio 75

De tapuio a caboclo 77
IV - CABANOS E SERINGUEIROS - DESTERRITORIALIAÇÃO E 82
DESINDIANIZAÇÃO

Cabanos 84

A Lei de Terras: conformando um Brasil desigual 93

Seringueiros 99

Desindianização oficial 111

Genocídio indígena no século XX 115

V - PROGRESSO: palavra de ordem de uma ideologia 117

Progredir branqueando a sociedade 119

A mestiçagem como herança 121

A crença no mito da democracia racial 123

Modelo de harmonia racial para o mundo? A queda do mito 124

Redemocratização: luta e consciência 128

O índio de herói à inexistência 129

A Constituinte 131

Desenvolvimento para quem? 135

Gente desprezada 140

VI - HISTÓRIA DA LUTA COLETIVA 143

Desenvolvimento e conflito 145

Disputa por terras 147

“Viver é lutar” – Educação e conscientização para a ação 149

O sonho de uma terra coletiva: a Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns 153

VII - SOBREPOSIÇÕES: IDENTIDADES E TERRITÓRIOS 165

Sentidos da identidade 173


Identidade indígena estigmatizada 178

Identidade e legislação 179

VIII - O MOVIMENTO INDÍGENA NO BAIXO TAPAJÓS 183

Uma etnografia da polêmica 186

Etnogêneses 189

A antropologia e o “outro” 190

“De volta ao umbigo” 195

“Posttradicional Indian” 198

Etnogêneses: sentimento e razão, uma dialética em contextos diversos 199

IX - TERRA INDÍGENA MARÓ: Afirmação Indígena e território 203

Os Borari e os Arapium 212

O desprezo do Estado induz o conflito 214

Autodemarcação da Terra Indígena Maró 215

Território 220

Conflitos e “soluções” 221

Revolta coletiva 231

Reconhecimento 236

X - NOMEAR É COMBATER 239

Desobediência epistêmica 240

“Fora Justiça Racista! ” 246

O “terceiro parto” 250

CONCLUSÕES 254

BIBLIOGRAFIA 259
1

INTRODUÇÃO

O branqueamento é fazer do nativo ele querer ser branco e rejeitar o nativo como o feio, o
preguiçoso, o preto, o falso, o traidor. Mas, pouco a pouco eu estou falando sobre esse
branqueamento que é a morte étnica cultural. Morte que mata a gente dentro. As pessoas
continuam vivas sendo escravas. - Irmã Emanuela, uma das precursoras do movimento indígena
do baixo Tapajós.

As palavras da Irmã Emanuela ajudam a responder o que esse trabalho propõe: entender
o porquê dos indígenas auto afirmados sofrerem a constante negação de suas identidades.
Introduzo essa tese com uma pergunta subjetiva, que poderia servir de conclusão: “O que
aprendi com esse trabalho? ” Aprendi que contra o racismo é preciso ser vigilante porque ele é
também internalizado, agindo na esfera do inconsciente, e quando menos esperamos ele pode
despontar. É preciso identificar o racismo para confrontá-lo. Faço esse preâmbulo para falar
sobre as palavras da Irmã Emanuela, mas antes vou falar sobre o meu pensamento de quem era
ela.
Quando visitei a Terra Indígena (TI) Maró pela primeira vez, em julho de 2011, os
Borari me contaram que foi a Irmã Emanuela, junto com membros do Grupo de Consciência
Indígena (GCI)1, quem os visitou e os informou sobre como a Constituição Federal Brasileira
ampara o direito dos povos indígenas. Isso foi em janeiro de 2002, quando os moradores de três
comunidades no rio Maró ficaram sabendo sobre a possibilidade de autorreconhecimento
étnico, e sobre o movimento de afirmação indígena que crescia na região. A partir daquele
momento, os Arapium, de São José III e de Cachoeira do Maró, se uniram aos Borari, de Novo
lugar, e afirmaram suas identidades indígenas. O cacique Dadá explica: “O pessoal se
reconheceu, mas para nós não existe isso [de se reconhecer]: a gente nascemos e sempre fomos
indígena”. Sempre foram indígenas, mas que nesse exato momento de sua história receberam
da Irmã Emanuela a informação de que poderiam revelar suas identidades e assim acessar
direitos.
Ao saber da importância da Irmã Emanuela na história dos então 240 indígenas da TI
Maró, senti vontade de conhecê-la e entrevistá-la. Ela já não morava em Santarém, mas sim na
aldeia Solimões no rio Tapajós. Uma aldeia que se localiza fora do meu caminho de pesquisa
para o Maró. Ainda assim fiz planos de visitá-la, que não se concretizaram. Também ouvir
dizer, sem ter nenhuma confirmação, que ela não gostava muito de dar entrevistas, então me
limitei a escrever sobre a importância dela através das palavras dos Borari e dos Arapium.

1
Grupo criado em 1997 por professores, estudantes, religiosos e simpatizantes da causa indígena em Santarém.
Com o objetivo de resgatar, valorizar e divulgar a cultura e a identidade indígenas (VAZ, 2013).
2

Escrevi artigos nos quais, ao contar a história da TI Maró, ela aparecia como um personagem
importante. Ao escrever os artigos, a identificava como Irmã Emanuela do GCI, me dando conta
de que ainda não sabia seu sobrenome. Também nunca havia parado para pensar em como ela
era fisicamente. Até que no final da escrita da tese assisti o documentário “Terra dos
Encantados”2, que fala sobre a luta dos povos indígenas da região do baixo Tapajós, Pará, onde
está inserida a TI Maró.
Qual não foi a minha surpresa ao ver sua imagem no documentário e constatar que ela
é indígena! Irmã Emanuela Kumaruara, portadora de conhecimento e de palavras cheias de
consciência e sabedoria. Não deveria causar surpresa. Então fiquei decepcionada comigo
mesma porque, mesmo tendo ideais antirracistas, por alguma razão inconsciente, a imaginei
branca. Explico: o fato de em algum momento tê-la imaginado branca deve ter ficado em um
canto despercebido da mente, tendo se revelado diante da surpresa ao ver sua imagem na tela.
Quem sabe eu tenha feito alguma associação mental e imaginado que fosse mais uma
missionária estrangeira na Amazônia. Mas, por que a imaginei branca? Logo eu que me sentia
esclarecida e tinha certeza que já não associava só ao branco determinadas características? Me
assustei ao perceber que involuntariamente, mesmo inserida com minha pesquisa no contexto
indígena e estudando o racismo, havia associado ao branco o conhecimento, a pessoa que leva
a informação, entendedora de direitos.
Uma vez mais percebi que, embora raça tenha sido desconstruída do ponto de vista
biológico, ela persiste enquanto “raça social” (GUIMARÃES, 2002). Longe de qualquer
abordagem pseudocientífica biológica sobre raça há muito desconstruída, raça é um conceito
nativo, que só faz sentindo em um contexto específico, prático, concreto, com um sentido
histórico para um determinado grupo humano (idem, 2003), nesse caso os indígenas brasileiros.
O racismo como estrutura de poder não se limita, explicitamente, a inferiorizar características
físicas, associando a ela comportamentos desprezíveis, mas também é internalizado desde que
nascemos, e por isso é mais forte do que imaginamos. Se aprendemos o racismo desde a
infância, ao acreditar que as melhores características físicas, morais, intelectuais e culturais são
dos brancos, podemos também desaprendê-lo, ou melhor, enfrentá-lo.
Entendi que para isso primeiro é preciso identificá-lo. Somente reconhecendo o racismo
é possível combatê-lo. De forma que essa tese pretende revelar como o racismo contra o
indígena foi inculcado na sociedade, de que forma ele se manifesta, quais as suas consequências
e como os indígenas respondem em um contexto de autorreconhecimento e afirmação de

2
Dirigido por Clodoaldo Corrêa. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=sZUz2I8j36s. Publicado em
23 de dezembro de 2016.
3

identidade. Introduzo essa tese, com a ajuda das palavras da Irmã Emanuela Kumaruara, que
esclarecem o que está por trás do racismo: o ideal de branqueamento, a “morte étnica cultural”.
Essa “morte”, que a ideologia do branqueamento induz, é um sistema de opressão e dominação.
A tese revela que os indígenas começam a reconhecer e a nomear as violências que
sofrem como racismo, abandonando eufemismos no contexto social brasileiro, como
preconceito e discriminação. Nomear é ação. Para os indígenas a nomeação é uma forma de
combater o racismo. Os indígenas entendem o racismo como um mecanismo de poder e por
isso ampliam seu conceito para incluir o não reconhecimento de suas identidades.
Entendendo que o racismo atuou no extermínio físico e cultural dos povos indígenas e
que hoje ele se expressa na negação da identidade indígena àqueles que se auto afirmam, a
intenção desse trabalho é compreender o papel do racismo direcionado aos indígenas e de que
forma eles o reconhecem e o combatem. Para isso apresento a estrutura da tese, em capítulos:
I – Caminhos da pesquisa - No primeiro capítulo escrevo sobre como o meu percurso pessoal
e acadêmico contribuíram para a escolha e definição do objeto de pesquisa. Apresento a
metodologia utilizada e o campo de pesquisa. Elenco conceitos que embasam a tese.
II – “Racismo contra indígena. Isso existe? ” - O segundo capítulo esclarece o racismo contra
o indígena. Aponta como na sociedade brasileira o indígena não é visto como vítima do racismo.
Demonstra como o racismo foi relacionado à população afrodescendente, e o indígena foi
estudado no plano de suas etnias.
III – “Morte que mata a gente dentro” - Através de um panorama histórico, o terceiro capítulo
apresenta o extermínio físico e cultural dos povos indígenas. Fala dos quinhentos anos do Brasil,
do desencontro no contato, da colonização, associando passado e presente.
IV – Cabanos e Seringueiros: desterritorialização e desindianização - Da guerra cabana que
foi racial à luta solitária dos seringueiros, o capítulo apresenta a gente que povoou o baixo
Tapajós. Explica como a Lei de Terras de 1850 contribuiu para o desamparo dessa população
inferiorizada. Finalmente expõe como o Estado, através do Serviço de Proteção aos Índios, foi
agente determinante da desindianização e responsável pelo genocídio indígena do século XX.
V – Progresso: palavra de ordem de uma ideologia – O capítulo mostra como a ideia de
progresso no Brasil se vinculou ao racismo na construção da nacionalidade. Progresso aponta
para um futuro que nunca chega. Em nome dele a população brasileira foi planejada e
branqueada. A mestiçagem foi um dispositivo para alcançar esse objetivo. O índio foi
romantizado e anulado. Direitos indígenas foram conquistados com a Constituição Federal.
Porém, o racismo foi naturalizado e se reproduz desprezando gente em nome de um retórico
desenvolvimento.
4

VI- História da luta coletiva - A atual configuração de territórios protegidos no baixo Tapajós
resulta de lutas em momentos importantes da história local. A população foi formada
politicamente dentro dos princípios da Teologia da Libertação. Organizadas em Comunidades
Eclesiais de Base os moradores se mobilizaram para a conquista da terra. Tomaram o Sindicato
dos Trabalhadores Rurais e no final dos anos 1990 conquistaram uma terra coletiva: Reserva
Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns.
VII – Sobreposições: identidade e território – A partir da criação da Resex os moradores
começaram a adotar a identidade extrativista. Um ano depois da criação da reserva, algumas
comunidades passaram a se reconhecer indígenas. A partir de então houve uma sobreposição
de identidades e de territórios que gerou conflitos e polêmicas.
VIII – O Movimento Indígena do baixo Tapajós – Expõe a história e trajetória do Movimento
Indígena na região do baixo Tapajós. Analisa o fenômeno da etnogênese através de um percurso
na Antropologia e do seu papel em relação ao “outro”.
IX – Terra Indígena Maró – A luta e afirmação dos Borari e dos Arapium para a demarcação
da Terra Indígena Maró se insere na luta pela terra e por afirmação de identidade no baixo
Tapajós. O racismo está presente nas instituições que desprezam os indígenas, seja através do
completo descaso, deixando de atender necessidades básicas, seja por uma presença que impõe
normas e decisões que negam aos indígenas identidade e direitos.
X- Nomear é combater – Como sujeitos políticos os indígenas identificam e nomeiam o
racismo abandonando eufemismos. Assim o combatem. Nomeiam a eles mesmos com os nomes
de suas etnias e passam a ser autores de suas próprias vidas.
5

I - CAMINHOS DA PESQUISA

Somos o que somos. Temos orgulho de ser o que somos e não precisa juiz vir dizer o que somos
e o que não somos. Essa é a nossa história. Essa é a nossa vida. Estamos no nosso território, na
TI Maró. E por isso vamos seguir na luta. Somos Terra Indígena Maró e daqui não vamos sair!
- Poró Borari, 2015.

No oeste do estado do Pará, comunidades espalhadas na floresta amazônica se


afirmaram indígenas e compuseram o movimento indígena da região do baixo rio Tapajós, do
qual fazem parte os Borari e os Arapium da Terra Indígena Maró. Isso causou surpresa e
contrariedade em quem acreditava não ser possível ainda haver índios nas áreas próximas da
cidade de Santarém, nas beiras dos rios Tapajós, Arapiuns e Maró. “Como assim agora ter
índios aqui?”, era a pergunta que faziam desde as pessoas mais simples, passando pelos
acadêmicos, até os políticos.
Essa passou a ser pergunta comum quando cerca de sete mil indígenas do baixo Tapajós,
antes chamados de ribeirinhos, caboclos, pescadores, trabalhadores rurais, curandeiros,
parteiras, extrativistas, passaram a assumir suas identidades indígenas no final da década de
1990 (PEIXOTO; FIGUEIREDO; ARENZ, 2012). Conscientes do quanto a colonização
violentou seus povos, tentou exterminar suas culturas, os destituiu de suas verdadeiras
identidades e roubou suas terras, eles redescobrem o sentido de suas existências e lutam pela
sua permanência. Contudo, a imagem do índio solidificada no passado faz com que muita gente,
na região, duvide e questione aqueles que assumem a indianidade, sobretudo quando se trata de
disputas por direitos.
Esse mesmo pensamento ficou evidente quando, em dezembro de 2014, um juiz da
Justiça Federal de Santarém sentenciou3 como não indígenas os Borari e os Arapium da Terra
Indígena (TI) Maró. Com justificativas infundadas, o juiz negou o direito ao
autorreconhecimento e decretou os Borari e os Arapium como inexistentes. Os indígenas, que,
desde 2001, vivem intenso conflito com madeireiros, foram sentenciados pelo juiz como
ribeirinhos. O juiz acusou o cacique Dadá Borari, da TI Maró, de ser um “falso índio”,
estendendo a negação da identidade a todos os indígenas auto afirmados da região. Deste modo,
o juiz criou um fato jurídico, político e semântico, que teve consequências no movimento
indígena. Fazendo uso do poder e de argumentos ideológicos impregnados de senso comum, o
juiz tomou para si o direito de dizer quem é índio ou não. Mas, qual o senso comum que sustenta
essa sentença? Qual a ideologia do juiz?

3
A sentença foi publicada no dia 03 de dezembro de 2014.
6

As 106 (cento e seis) páginas usadas para justificar a sentença evidenciam uma
combinação de senso comum e ideologia, na qual a ideia de progresso e desenvolvimentismo
estatal ferem os direitos dos indígenas resistentes. O conflito que ocorre em relação à TI Maró
reproduz a histórica relação de desrespeito do Estado brasileiro frente aos povos originários. A
afirmação do juiz gerou indignação e revolta nos indígenas, que se adornaram com cocares e
pinturas corporais e cantando gritos de guerra – SURARA! SURARA! – saíram em passeata
pelas ruas de Santarém4. Protestaram até o prédio da Justiça Federal, onde discursaram e
queimaram a sentença. Estavam munidos de coragem, de arcos e flechas e carregavam faixas e
cartazes com os dizeres “Eu existo”. Conforme afirmou Enoque Arapium durante a
manifestação: “Nós estamos aqui para lutar pelos nossos direitos. Para que as pessoas
reconheçam nosso direito. Não neguem a nossa existência. Nós existimos sim” (BARBOSA,
20145) .
As ideias expressas na sentença e que permeiam pensamentos e atitudes fazem parte de
um assimilacionismo que é fruto da ideologia nacional. Naturalizado na mente e passado de
geração em geração, o assimilacionismo leva a crer em absurdos como a ideia de que o índio
na cidade deixa de ser índio, ou que para ser índio a pessoa tem que ter cem por cento sangue
indígena, senão ela é denominada de qualquer outra coisa – ribeirinho, caboclo, ou
simplesmente brasileiro – menos índio.
Figura 1: Patrícia Juruna

Foto: autora (out 2016)

4
No dia 09 de dezembro de 2014.
5
Depoimento extraído do vídeo “Chama Surara”, produzido por Bob Barbosa, publicado em 28 de dezembro de
2014. Link https://www.youtube.com/watch?v=2x1pYKi3p6Q
7

Aos indígenas conferem rótulos que não condizem com a realidade, conforme explica
Patrícia Juruna, durante manifestação contra a sentença na cidade de Santarém:
Preservamos a nossa cultura, os nossos costumes e também participamos do mundo não
indígena, mas nem por isso a gente deixa de ser indígena, pelo fato de estar convivendo na
sociedade não indígena. Então, muita gente tem preconceito, que não pode ver um indígena com
celular, não pode ver um indígena acessando a internet. 6

Os estereótipos, que rotulam o indígena até hoje, são sustentados pela mídia e pelo
sistema educacional e geraram um comportamento social de apartamento e completo descaso
em relação às questões indígenas por parte da sociedade brasileira, que considera os indígenas
como o “outro” distante e absolutamente diferente. Permeando pensamentos e comportamentos
está o senso comum que congela o indígena ora no passado ora dentro da mata. Ou ambos.
Essas ideias estão na base da negação da identidade indígena para aqueles que se auto afirmam.
Dinael Arapium manifestou preocupação em entender o porquê de terem suas identidades
constantemente negadas:
Imagina só o questionamento que poderia ser feito, as dúvidas que poderiam ser tiradas, se
Santarém mandasse seus estudantes de Antropologia ou de Ciências Sociais viver dentro de uma
comunidade que se reconhece como indígena. Pelo menos tiraria essa visão que nós somos
falsos índios. Mas, infelizmente a gente não consegue trazer essas pessoas pra que faça uma
pesquisa ou comece a conviver pra descobrir o porquê que nós somos considerados falsos
índios. (Destaque da autora).
Figura 2: Dinael Arapium

Foto: autora (jan 2013)

6
Depoimento extraído do vídeo “Chama Surara”, produzido por Bob Barbosa, publicado em 28 de dezembro de
2014. Link https://www.youtube.com/watch?v=2x1pYKi3p6Q
8

O depoimento acima revela o foco da minha pesquisa: entender o porquê da negação da


identidade dos indígenas auto afirmados do baixo Tapajós, por parte da sociedade e por setores
do Estado. Revelar o papel do racismo é fundamental para compreender a reação ao processo
de autoafirmação indígena e de conquista do território. A luta por reconhecimento indígena no
baixo Tapajós é atual. É uma luta por reconhecimento que nasce a partir de uma experiência
moral de denegação jurídica e social (HONNETH, 2009). A pesquisa sobre a TI Maró evidencia
o quanto os indígenas são desrespeitados, sendo constantemente ameaçados e sofrendo
racismos vários. Essa relação demonstra consciência e afirmação dos indígenas em
contraposição à negação e rejeição por aqueles que os vêem como símbolos do atraso.

Revelando o racismo

A pesquisa sobre o processo de autoafirmação dos Borari e dos Arapium e a conquista


da Terra Indígena Maró revelou o racismo como um fio condutor ao longo da história. Esse fio,
que liga violência, intrusão nos territórios, desrespeito e exclusão, é um traço da colonialidade.
Fio que percorre a história desde os tempos coloniais até os dias de hoje. O racismo sofrido
pelos indígenas da TI Maró os torna muito semelhantes aos indígenas de tantas outras etnias no
Brasil. Diversos grupos de ontem e de hoje, com seus caciques (as), pajés e líderes, lutaram e
lutam para garantir direitos existenciais e de reprodução física e cultural, direitos esses
constantemente ameaçados, fazendo dessa uma luta descolonial.
Gilberto Vieira, secretário nacional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) 7,
associou o Estado brasileiro ao mito grego de Procusto8, que fez uma cama com suas justas
medidas, na qual quem fosse capturado deveria caber, nem que para isso fosse esticado até a
medida exata da cama, ou fossem cortados os excessos caso fosse maior:
Há séculos a “cama de Procusto” do Estado Brasileiro vem buscando “ajustar” os povos
indígenas a suas justas medidas: escravidão, exploração das riquezas, violência, invasões
multidimensionadas do corpo, da mente e dos territórios. E os ajustes são sempre na perspectiva
procustiana de que a justa medida é sempre “do outro”, do branco português, do militar ou do
civil golpista, do capital transnacional, que da prata de Potosí ao petróleo amazônico tem por
justa medida a exploração exaustiva dos recursos ambientais para enriquecimento de alguns.

Fazendeiros, madeireiros e seus pistoleiros continuam a agir violentamente contra


aldeias assassinando principalmente as lideranças indígenas. Impõem o medo a “ferro e fogo”
mesmo em terras indígenas já reconhecidas e demarcadas. Os crimes quase sempre seguem

7
Instituição da Igreja Católica que apoia a organização política dos indígenas.
8
Divulgado em 31/08/2015. http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8302
9

impunes. Os indígenas estão na zona do não ser de Fanon, explicada por Grosfoguel: “Na zona
do ser temos formas de administrar os conflitos de paz perpétua com momentos excepcionais
de guerra, enquanto na zona do não ser temos a guerra perpétua com momentos excepcionais
de paz”9 (GROSFOGUEL 2011, p.100, tradução da autora). Por parte de setores do Estado há
uma criminalização dos indígenas, efetivada pela polícia, mas sustentada por grande parte dos
parlamentares que compõem a bancada ruralista, a qual não cansa de propor projetos de lei que
atacam diretamente os direitos indígenas.
Assim, apesar de a Constituição Federal ter representado um marco no reconhecimento
dos direitos indígenas, a história desses povos segue como um continuum de negligência e
desrespeito por parte do Estado, atitude que acaba servindo de modelo para outros setores da
sociedade. Conquistas históricas, como os direitos garantidos pela Constituição Federal de
1988, tornam-se frágeis diante de Projetos de Emendas Constitucionais, como a PEC 215, e de
projetos de lei que visam anular os indígenas. A charge de Latuff (2013) expressa a intenção
da bancada ruralista de enterrar de uma vez os povos indígenas:
Figura 3: PEC 215: quando os ruralistas
decidem demarcar terras indígenas

FONTE: https://latuffcartoons.wordpress.com/tag/pec-215/. Outubro de 2013

A Proposta de Emenda Constitucional – PEC 215 apavora os indígenas. Ela pretende


passar para o Congresso Nacional a competência de aprovar a demarcação e a revisão das
demarcações de Terras Indígenas. Para piorar a situação, a PEC não está sozinha. Enquanto ela
é a maior ameaça, combatida em protestos e manifestações dos indígenas e aliados, Projetos de

9
“En la zona del ser tenemos formas de administrar los conflictos de paz perpetua con momentos excepcionales
de guerra, mientras que en la zona del no-ser tenemos la guerra perpetua con momentos excepcionales de paz”
10

Lei (PL) vão, na surdina, sendo encaminhados para destruir os direitos dos indígenas, e
consequentemente, eles próprios. A violência não cansa de os perseguir. A líder Guarani
Kaiowá, Valdelice Veron, denuncia a ameaça que as lideranças indígenas receberam de um
deputado federal na Câmara dos Deputados, quando participavam de audiência da Comissão
dos Direitos Humanos, em 5 de outubro de 2015:
Eu quero aqui (...) registrar uma ameaça que nós líderes indígenas Guarani Kaiowá e Terena
sentimos aqui dentro da audiência da parte do Sr. Eduardo Bolsonaro, quando ele disse ‘eu não
tenho medo, eu sou da polícia’ (...). Olhem bem pra nossa cara, pra cara dos guerreiros Guarani
Kaiowá (...) que se um de nós tombar foi na frente de vocês essa ameaça. Estão tentando
intimidar nós aqui na casa. Quando o Sr. Eduardo Bolsonaro falou ‘olho no olho’, não existe
olho no olho. Meu pai o cacique Marcos Veron foi torturado, espancado e morto por um
latifundiário sem coração. Nós mulheres indígenas da TI Taquara fomos todas violentadas,
abusadas. Não existe olho no olho. Existe uma desigualdade (...). Quando ele diz ‘eu sou da
polícia’, a gente não aceita isso aqui. (...) A gente é ameaçado na nossa aldeia, mas a gente é
ameaçado aqui nessa casa. (...) Não existe morte dos dois lados. Existe morte de líderes
indígenas. Existe morte de mulheres e crianças indígenas Guarani Kaiowá e Terena, mas não
existe morte de latifundiários. Ele não pode sair ameaçando a gente aqui. Isso é atitude de
pistoleiro.

Tudo isso que Valdelice Veron denuncia é racismo, é colonialidade do poder. A fala do
deputado Bolsonaro, durante uma solenidade10, revela: “índio não fala nossa língua, não tem
dinheiro, é um pobre coitado, tem que ser integrado à sociedade, não criado em zoológicos
milionários”11. Hoje os povos indígenas protestam, pressionam e fazem atos públicos,
fortalecidos por uma rede tecida nacional e internacionalmente, que os une e os articula com
algumas instituições12.
Desde a década de 1970, se reverte a percepção de que os povos indígenas estariam à
beira da extinção13. De lá pra cá eles têm tido um crescimento expressivo, confirmado a cada
novo Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse fato surpreendente
significa uma inflexão na história. O número de indígenas cresce especialmente em razão do

10
Em homenagem recebida no Mato Grosso do Sul.
11
Publicada em 22/04/2015. Disponível em http://www.midiamax.com.br/politica/256370-indio-pobre-coitado-
vive-zoologicos-milionarios-bolsonaro.html
12
Walter Mignolo, na introdução de Maximilian Forte no livro “Indigenous Cosmopolitans: Transnational and
Transcultural Indigeneity in the Twenty-First Century (2002)”, afirma que “… hoje ‘vozes silenciadas e
marginalizadas estão elas mesmas se colocando dentro do diálogo de projetos cosmopolitas, em vez de esperarem
para serem incluídas” (tradução da autora) [“... today ‘silenced and marginalized voices are bringing themselves
into the conversation of cosmopolitan projects, rather than waiting to be included”] (FORTE, 2002, p. 8). Essa
citação é interessante porque reconhece o poder descolonizador dos indígenas, que assumem processos de
autoafirmação mundo afora. Enquanto os indígenas ressurgidos na história assumem seu protagonismo, o fazem
estabelecendo alianças que reúnem vários outros atores. Esse é o caso dos Borari e Arapium da TI Maró, que
conquistaram e lutam para assegurar seu território no oeste do Pará.
13
De acordo com Darcy Ribeiro, em 1957, a população indígena havia sido reduzida a menos de 100 mil
indivíduos (RIBEIRO, 2009).
11

fenômeno de ressurgimento de povos na história, que pareciam ter perdido suas raízes. Isso dá
significado ao movimento indígena no baixo Tapajós. No entanto, persistem na sociedade
crenças e atitudes sustentadas pelo senso comum, e segue a violência mediante exclusões
cotidianas, negação de direitos, assassinatos e criminalização das lideranças.
O movimento indígena denuncia o racismo institucional que permeia a sociedade
através das instituições. Mas não é só um tipo de racismo que está em jogo. É mais complexo. CIT*

O racismo está interiorizado nas pessoas e expresso nas atitudes. Ele está nas nossas mentes,
comportamentos e nas instituições. De acordo com Karl Monsma:
O racismo não é somente uma ideologia; é um aspecto do habitus. O habitus racial consiste em
categorias raciais de percepção dos outros e de si mesmo; um conjunto de relações entre essas
e outras categorias, classificando as capacidades, tendências comportamentais e qualidades
morais; disposições corporais e emoções - de atração ou repulsão, confiança ou suspeita,
segurança ou medo, etc. - a respeito das pessoas assim categorizadas; e esquemas de ação a
respeito delas. (2013, p. 7).

O não reconhecimento é uma forma de racismo. Os indígenas afirmados demonstram


isso. Os Borari e os Arapium exigem o direito de existir. Isso contraria gente que com
autoritarismo afirma saber quem é o indígena, lhes negando o reconhecimento e muitas vezes
os ridicularizando. Na base desse pensamento de negação está o racismo. Estado e sociedade
negam reconhecimento aos indígenas. Isso faz o racismo institucional e esse é o caso do oeste
do Pará, onde um órgão do judiciário lavrou sentença negando aos indígenas o direito de existir
de acordo com suas escolhas e consciência. Fiori (1983, p. 5) revela a “A consciência humana...
O processo em que a vida como biologia passa a ser vida como biografia”, e é nesse processo
que os indígenas conscientes e afirmados escrevem a sua própria história.
Segundo Mignolo (2008), racistas são as normas e hierarquias que regulam a etnicidade.
Sustentando as normas e hierarquias existe um pensamento excludente. Clóvis Moura (1994)
afirma que o racismo tem “um conteúdo de dominação não apenas étnico, mas também
ideológico e político”, ou seja, nega-se a identidade para negar direitos e ao negar direitos
apartar e excluir o indígena de uma sociedade ideológica e politicamente formada para anulá-
lo.
Peter Wade (1997) considera que as características físicas entendidas como raciais
foram também elas construções sociais estabelecidas pela diferença com os europeus, desde a
expansão imperialista europeia no século XV. De modo que o mundo racializado e o racismo
seriam resultados do colonialismo. Essa análise coincide de alguma forma com a de Aníbal
Quijano (1992), que demonstra como a estrutura colonial do poder, iniciada pelo colonialismo
e prosseguida pelo imperialismo, produziu as discriminações sociais que foram codificadas
12

como raciais, étnicas, antropológicas ou nacionais, segundo os momentos, os agentes e as


populações implicadas.
De acordo com Quijano (1992), com o advento da conquista das Américas, os europeus
conceberam a ideia de raça para justificar o esbulho e todo tipo de exploração. Inicialmente o
questionamento dos conquistadores era se os habitantes das novas terras tinham alma ou não,
se eram ou não humanos. No início da colonização da América, durante o século XVI,
discussões sobre o “outro” e o “direito das gentes” ganharam corpo no debate de Valladolid, no
qual participaram Francisco de Vitória, Las Casas e Sepúlveda. No contexto das atrocidades
cometidas pelos conquistadores espanhóis, a Igreja Católica criou uma noção de humanidade
para legitimar a conversão e a colonização dos indígenas e a própria conquista que os espanhóis
empreendiam. Las Casas e Vitória, a partir de suas referências locais e cristãs que tinham como
universais, ou seja, etnocêntricas e racistas, incluíram os índios na humanidade. É claro que em
uma humanidade ontologicamente inferior, pela qual se lhes delimitavam os direitos. Nas
reflexões sobre o “outro” é obrigatório considerar o pensamento de Emmanuel Levinas (1993),
para quem o Outro quer ser ele mesmo e não quer ser incluído em lógicas alheias.
Não demorou para que os europeus chegassem a conclusão de que os nativos eram
humanos. Ao passo que dotavam o índio de humanidade, estabeleciam distância e condições
para esses homens que consideravam tão diferentes. Mais do que percebê-los diferentes, os
classificaram inferiores, no que viria a ser entendido como a zona do não humano do
pensamento pós-colonial de Fanon. A inferioridade não se resumiu à esfera biológica, mas
também aos aspectos culturais, psicológicos e materiais. Quijano (1992) explica como essa
inferioridade estabelecida na colonização perdura até hoje como racismo:
Essas ideias moldaram profundamente e de forma duradoura todo um complexo cultural, uma
matriz de ideias, de imagens, de valores, de atitudes, de práticas sociais, que continua a estar
envolvido nas relações entre as pessoas, inclusive quando as relações políticas coloniais já
tenham sido extintas. Esse complexo é o que conhecemos como “racismo”.14 (QUIJANO, 1992,
p.2, tradução da autora)

Produtos da dominação por parte dos europeus, essas construções foram consideradas
categorias “científicas” e “objetivas” de significado a-histórico, como fenômenos naturais e não
da história do poder. Contudo, a definição de colonialidade do poder foi e é um marco no qual
operam outras relações sociais, de classes ou de estamentos:

14
Estas ideas han configurado profunda y duraderamente todo un complejo cultural, una matriz de ideas, de
imágenes, de valores, de actitudes, de prácticas sociales, que no cesa de estar implicado en las relaciones entre las
gentes, inclusive cuando las relaciones políticas coloniales ya han sido canceladas. Ese complejo es lo que
conocemos como "racismo". (QUIJANO, 1992, p.2)
13

De fato, caso se observem as linhas principais da exploração e da dominação social em escala


global, as linhas matrizes do poder mundial atual, sua distribuição de recursos e de trabalho
entre a população do mundo, é impossível não ver que a vasta maioria dos explorados, dos
dominados, dos discriminados, são exatamente os membros das “raças”, das “etnias”, ou das
“nações” em que foram categorizadas as populações colonizadas, no processo de formação
desse poder mundial, desde a conquista da América e assim por diante15. (QUIJANO, 1992, p.
12, tradução da autora)

O pensamento descolonial entende que o racismo é o pilar mais forte das sociedades
fundadas pelo colonialismo. Para muita gente, penoso é reconhecer essa condição. Frantz Fanon
em “Pele negra máscaras brancas” (2008 [1952]) mostra que racismo e colonialismo são modos
socialmente construídos de ver o mundo e viver nele. A noção de racismo associada ao
expansionismo europeu atende a análise do racismo em determinadas partes do mundo e
desconsidera outras possibilidades de racismo exercidas em outros contextos temporais e
geográficos.
A definição de racismo oferecida por Fanon resolve esse problema, pois ele conceitua o
racismo como o estabelecimento de uma hierarquia de superioridade e inferioridade sobre a
linha do humano, que vem sendo reproduzida ao longo do tempo. Os que estão em posição
superior, nesse mundo hierarquizado, são considerados seres humanos por excelência, com
direitos plenos em todas as esferas da vida, sejam eles civis, trabalhistas, de cidadania, inclusive
os direitos humanos. Quem é situado em posição de inferioridade tem a sua própria humanidade
questionada, ou melhor, negada (FANON, 2008 [1952]). Fanon analisa a construção do negro
como negro, dizendo que, não fosse o colonialismo, não haveria motivos para que as pessoas
de várias origens geográficas pensassem em si mesmas em termos raciais.
Transporto esse pensamento para o caso dos povos nativos. Nativos também eram os
negros, mas índios foram chamados os nativos das Américas. A construção do índio como índio
é também uma construção do colonialismo que igualou e destinou a todos os povos locais um
lugar comum. Lugar que o naturaliza para desumanizá-lo e quando os humaniza os inferioriza.
Lugar que funde sua imagem no ser primitivo e o associa ao atraso, desmerecedor de uma
sociedade que busca o progresso, portanto. Lugar comum que fabrica razões para negá-lo.
A negação da existência racismo é uma dessas razões universais construídas para negá-
lo. Fala Godon (2008 [1952]) que durante muito tempo o racismo foi visto como doença

15
En efecto, si se observan las líneas principales de la explotación y de la dominación social a escala global, las
líneas matrices del poder mundial actual, su distribución de recursos y de trabajo entre la población del mundo,
es impossible no ver que la vasta mayoria de los explotados, de los dominados, de los discriminados, son
exatamente los membros de las “razas”, de las “etnias”, o de las “naciones” en que fueron categorizadas las
poblaciones colonizadas, en el processo de formación de esse poder mundial, desde la conquista de América en
adelante. (QUIJANO, 1992, p. 12).
14

exclusiva das sociedades anglófonas (Americana, Sul-africana, Inglesa e Australiana). O


mundo latino, falante do francês, espanhol ou português, negava a existência do racismo. Para
Fanon ignorar o racismo é apoiá-lo, já que a indiferença só serviria para a manutenção do
privilégio dos brancos. Godon no prefácio de “Pele negra máscaras brancas”, escreve sobre a
rejeição ao pensamento de Fanon:
Embora fosse um fato perturbador para o típico leitor francês, a má-fé prevalecia através de uma
rejeição não empírica de sua suposta falta de validade: eles simplesmente diziam que o racismo
não existia (apelo à evidência) recusando examinar a evidência. (GODON, 2008, p. 14).

Esse é um comportamento que se reproduz inclusive no mundo acadêmico. É notável


como “boa parte das elites intelectuais brasileiras durante muito tempo ignorou não apenas a
questão do racismo, como também o que foi produzido intelectualmente fora do eixo Europa e
Estados Unidos”, afirma Gabriel Rocha (2015, p. 112). O eurocentrismo ainda se reflete na
academia. Muitos programas de ensino desprezam os saberes locais e a produção científica
brasileira, latino-americana e de outros lugares marginalizados do mundo. Essa
desconsideração não deixa de ser uma extensão do colonialismo.
É o que Fanon chamou de colonialismo epistemológico. É o que o grupo
modernidad/colonialidad16 revelou como colonialidade do saber. Um saber que por muito
tempo negou o racismo e que continua isolando a percepção do racismo quando este é
direcionado aos indígenas. Acontece que é comum adotar uma definição de racismo que
corresponde a certo tipo de relação racial que ocorre em lugar específico do mundo. No Brasil,
existe a confusão de que o racismo se estabelece na dicotomia negro e branco, conforme ocorre
nos Estados Unidos. Wade lembra que, na América Latina, a academia e o entendimento
popular de raça têm usado de comparação implícita ou explícita com os Estados Unidos, mesmo
que adotando duas formas de entender a questão racial:
Um ponto de vista é de que raça não é importante: que existe pouco racismo ou pouca percepção
de identidade racial para a maioria das pessoas. Povos indígenas podem ter suas identidades
étnicas particulares, baseadas nas culturas locais, e as pessoas em geral podem reconhecer
diferenças fenotípicas que são ligadas à cor da pele e outras características tipicamente “raciais”,
mas nenhum desses elementos cria uma sociedade na qual as identidades raciais são a base para
significativas divisões e exclusões sociais (...). A visão oposta é que, embora na América Latina
o racismo seja diferente daquele dos EUA, ele ainda age ao criar significativa desvantagem para
indígenas e negros enquanto categorias coletivas17. (WADE, 2008, p. 182, tradução da autora)

16
Entre os membros do grupo modernid/colonialidad estavam os sociólogos Aníbal Quijano, Edgardo Lander,
Ramón Grosfoguel y Agustín Lao-Montes; os semiólogos Walter Mignolo y Zulma Palermo, a pedagoga Catherine
Walsh, os antropólogos Arturo Escobar y Fernando Coronil, o crítico literário Javier Sanjinén e os filósofos
Enrique Dussel, Santiago Castro-Gomés, María Lugones e Nelson Maldonado- Torres.
17
“One view is that race is not important: that is little racism and little sense of racial identity for most people.
Indigenous people may have their particular ethnic identities, based on local cultures, and people in general may
recognize phenotypical differences that are linked to skin color and other typically “racial” features, but none of
15

Se por um lado, a academia latino americana consolidava o entendimento de que


racismo não existia através da ilusão da “democracia racial” brasileira - mito originado com a
obra Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, publicado em 1933 -, e da América Latina
como terra da “raça cósmica”, do mexicano José de Vasconcelos (1925), por outro lado criou-
se todo um conjunto acadêmico estrangeiro especializado em estudar a questão racial no Brasil.
Os pesquisadores, denominados brasilianistas, influenciaram acadêmicos brasileiros e
desconstruíram a ideia de inexistência do racismo. Ainda assim prevalece em parte da sociedade
e da academia a dúvida sobre a existência e o conceito de racismo no Brasil. A direta relação
que se faz com a cor e a ancestralidade é mais uma face da colonialidade que tende a reproduzir
aqui o que se concebe na Europa ou nos Estados Unidos.
A realidade brasileira é outra, contudo. Nossas relações sociais são marcadas por
parâmetros diversos daqueles formados pela sociedade americana. Não tivemos um apartheid
racial institucionalizado e a regra da “uma gota de sangue” não é válida por aqui para determinar
quem é inferiorizado. O racismo brasileiro é sorrateiro e naturalizado, mas nem por isso é
menos nocivo. Ele tem gradações. Contudo, cor e traços das populações que foram um dia
cruelmente biologizadas exercem um papel determinante no contexto brasileiro.
A definição de racismo como hierarquização do mundo por Fanon permite superar
certos reducionismos que rondam o conceito. Ramón Grosfoguel, baseado no conceito de
Fanon, afirma: “o racismo é uma hierarquia de superioridade/inferioridade sobre a linha do
humano18” (2011, p. 98, traduzido pela autora) e esclarece:
Dependendo das diferentes histórias coloniais em diversas regiões do mundo, a hierarquia de
superioridade/inferioridade sobre a linha do humano pode ser construída com categorias raciais
distintas. O racismo pode se marcar pela cor, etnicidade, língua, cultura ou religião. Ainda que
o racismo de cor tenha sido predominante em muitas partes do mundo, não é a única e exclusiva
forma de racismo19. (Ibidem, traduzido pela autora)

Para alcançar a linha do humano no Brasil não basta a negros, índios e seus descendentes
ascender economicamente e socialmente. O racismo também se instala nas intersubjetividades,

this creates a society in which racial identities are the basis for significant social divisions and exclusions (…).
The opposing view is that, while Latin American racism is different from that in the US, it still operates to create
significant disadvantage for indigenous and black people as collective categories”. (WADE, 2008, p. 182)
18
“El racismo es una jerarquía de superioridad/inferioridad sobre la línea de lo humano” (GROSFOGUEL 2011,
p. 98)
19
“Dependiendo de las diferentes historias coloniales en diversas regiones del mundo, la jerarquía de
superioridad/inferioridad sobre la línea de lo humano puede ser construida con categorías raciales diversas. El
racismo puede marcarse por color, etnicidad, lengua, cultura o religión. Aunque el racismo de color ha sido
predominante en muchas partes del mundo, no es la forma única y exclusiva de racismo”. (ibidem)
16

na interiorização da inferioridade. Além disso, a ascensão social é contaminada pela ideologia


do branqueamento, como bem demonstra Neusa Santos Sousa em “Tornar-se Negro” (1983).
Assim, o racismo continua a se reproduzir e a vitimar. Outra questão é: como ascender
socialmente se as oportunidades são limitadas em função dos privilégios históricos dos
brancos? Uma resposta foi a implantação das políticas afirmativas de combate ao racismo, que
causam polêmica. Ascender através de políticas afirmativas têm transformado a realidade
brasileira, não só porque possibilita a inclusão social de uma parcela significativa da população,
mas porque elas surgem e se firmam como resultado de um engajamento político de resgate e
afirmação racial: a chamada discriminação positiva. As políticas afirmativas podem ser capazes
de transformar a realidade brasileira na medida em que ajudarem a enfrentar a colonialidade do
ser, ou seja, a estabelecer confiança e valor a si próprio, libertando o subjugado de padrões
estabelecidos, tirando-o assim de uma condição explícita ou subjetiva de inferioridade.
Racismo é tudo que hierarquiza em termos de superioridade ou inferioridade na
concepção do humano, por isso ele se revela de diversas maneiras. Não há uma fórmula geral
para reconhecê-lo nos diversos lugares do mundo. Cada sociedade estabelece suas normas de
inferiorizar outros humanos. Como explica Grosfoguel (2011, p.98) “as elites ocidentalizadas
do terceiro mundo (africanas, asiáticas ou latino-americanas) reproduzem práticas racistas
contra grupos étnico/raciais inferiorizados onde dependendo da história local/colonial a
inferiorização pode ser definida ou marcada através de linhas religiosas, étnicas, culturais ou
de cor” (traduzido pela autora)20. Vale insistir na crítica da crença de que o racismo se reproduz
da mesma maneira ou baseado nas mesmas conotações de um modelo excessivamente
difundido, no caso os modelos americano ou sul-africano. Essa crença cria a falsa ideia de que
em outras partes do mundo o racismo não existe.
Por isso, falar sobre racismo no Brasil ainda hoje é difícil. Outra crença persistente
ligada a essa ideia é a da democracia racial. Com a implementação de políticas afirmativas, hoje
a sociedade brasileira já reconhece que o racismo existe, mesmo se isentando de
responsabilidade, pois “racista é sempre o outro”. O racismo institucional, que “pinta de
branco” todas as esferas públicas, ainda não foi devidamente confrontado. Falar em racismo
ainda é tabu, conforme relatam diversos estudiosos do tema. (FERNANDES, 2008 [1964];
GUIMARÃES, 1999, 2002; HASENBALG, 1996; BAILEY, 2009).

20
“Las élites occidentalizadas del tercer mundo (africanas, asiáticas o latinoamericanas) reproducen prácticas
racistas contra grupos etno/raciales inferiorizados donde dependiendo de la historia local/colonial la inferiorización
puede ser definida o marcada a través de líneas religiosa, étnicas, culturales o de color” (GROSFOGUEL, 2011,
p.98)
17

O racismo está na base das violências que acometem os Borari e os Arapium. A tese
explica que é pelo direito de ser indígenas que eles se insurgem ao reconhecer e confrontar os
mecanismos de reprodução do racismo. Contudo, ainda prevalece na sociedade a ideia de que
“se você fala em raça, você é racista”. Por isso, uma sensação de insegurança me acompanhou
durante o tratamento do tema. A escolha das palavras deveria ser calculada para evitar qualquer
entendimento errôneo, que poderia reduzir significados a essencialismos. Embora eu explique
o sentido de cada categoria que uso ao longo do trabalho, optei por construir um glossário para
afastar qualquer possibilidade de mal-entendidos. O glossário que segue servirá como
instrumento de orientação para a tese.

Raça Falsa construção com o sentido de inferiorizar outros humanos


para dominá-los. Nesse trabalho raça é referida exclusivamente
no sentido social para chamar atenção para a realidade do
racismo e afastar toda e qualquer referência biológica e somática
da noção. O foco desse trabalho é o conjunto social dos povos
nativos racializados no período da colonização.

Etnia Será referida somente quando for necessário distinguir a


especificidade dos grupos de povos nativos diferenciados por
fronteiras e características linguísticas e culturais. Os indígenas
citados no trabalho são também referidos nas suas etnias.

Racismo Tratamento deletério dirigido a um grupo concebido com a falsa


ideia de raça em termos biológicos. Serve para hierarquizar a
sociedade e dominar os grupos historicamente desprezados pela
“elite branca”.

Racialização A racialização ocorre em dois momentos.


O primeiro quando os colonizadores, para justificar a
exploração sobre outros humanos, criam a ideia de raça para
inferiorizar e dominar índios e negros.
O segundo momento ocorre quando esses grupos se afirmam
racial e politicamente para combater o racismo que persiste na
sociedade. Trata-se de reconhecer e nomear o racismo para
enfrentá-lo.
O sentimento de orgulho de ser indígena ou negro é
característico desse momento de racialização política e
determina a luta por igualdade na sociedade.

Índio Nome dado aos nativos pelos colonizadores, que chamaram a


América de Índias Ocidentais. O termo índio generaliza os
povos nativos e é muitas vezes rejeitado pelos indígenas.

Indígenas São aqueles que têm ancestralidade e/ou se afirmam


politicamente. Usado quando referido ao conjunto de diferentes
etnias de povos nativos.
18

Indianidade É o conjunto de elementos que caracterizam os povos nativos:


línguas, crenças, modos de vida.

Negros/negritude São os afrodescendentes. São também aqueles que se afirmam


politicamente como negros. Negritude é o conjunto de
características que valorizam e afirmam politicamente a
população negra.

Branco/branquitude Identidade racial não concebida como raça. Condição de


neutralidade que agrega a si as melhores características morais,
físicas e culturais. Branquitude é a ideologia que comanda o
desejo de ser e estar no mundo como “brancos”.

Mestiçagem Dispositivo de poder com o sentido de desracializar, ou seja,


afastar do discurso racial negros e indígenas e manter o
privilégio dos “brancos”.

Autoafirmação Reconhecer o pertencimento a um grupo racializado


positivamente com o sentido político de lutar por direitos e
igualdade.

A formação do povo brasileiro foi estimulada por políticas oficiais voltadas a anular o
negro e assimilar o índio na comunhão nacional. O incentivo à miscigenação tinha o claro
propósito de branquear a sociedade anulando as formas de organização societárias, que não
fossem as do colonizador europeu. Através da morte física ou cultural de afrodescendentes e
indígenas, a sociedade foi homogeneizada atendendo ao desejo de uma “integração nacional”.
A academia teve papel relevante na construção da nacionalidade brasileira, pois a ideia de
democracia racial persiste, como uma marca profunda, mesmo anos depois de ter sido
desconstruída e denunciada como um “mito” por Florestan Fernandes (2008 [1964]).
Martiniano J. Silva, em “Racismo à brasileira: raízes históricas” (2009), revela o
racismo no Brasil:
Além de excluir o negro e convertê-lo em “anomalia social” ou “escória da sociedade”, impediu
aos índios a posse e o domínio da terra que era deles, para ficarmos só nesse, em que pese sutil
e disfarçado intuito de recusar a existência de um povo, primeiro tomando suas terras, em
seguida dizimando-o pelo lento, mas fulminante, processo de desculturação e caboclização,
quando é transformado em camada subalterna da sociedade, já destribalizado e sem sua robustez
original, muito bem contrastada com nosso caboclo desdentado, desnutrido e maltrapilho.
(ibidem, p. 53)

A mestiçagem foi então naturalizada e serviu como um dispositivo de poder, que de


acordo com Emanuel Tadei “dirige e comanda as ações e saberes numa determinada direção,
com a intenção de atingir seu objetivo final: criar uma consistência entre todos esses elementos
19

díspares, gerando subjetividades dóceis, mal delimitadas e manipuláveis” (2002, p. 3). Esse
conjunto de saberes e estratégias serviu para garantir o poder aos brancos, ao diluir índios e
negros na mestiçagem no desenhar da nossa identidade nacional. Tal dispositivo atravessou o
tempo e hoje se reflete na dificuldade de lidar com a questão racial brasileira.
Antes de continuar, preciso esclarecer quem é esse branco, detentor de poder e
privilégios, em uma sociedade não marcada pelo dualismo branco x negro, no sentido
essencialista dos termos. O branco é uma identidade racial que não é entendida como raça. É
uma condição de neutralidade onde tudo que é normal, bonito, civilizado, inteligente, capaz é
branco. É a condição humana por excelência, em uma neutralidade que concebe a humanidade
como branca, inferiorizando o negro e o indígena como “outros”.
Muitos no Brasil almejam a branquitude, tanto em termos essencialistas, que envolvem
questões fenotípicas - cor de pele, cabelos, traços -, mas principalmente como forma de estar
no mundo, de entender o mundo, de desejar o mundo. Então, branco não é questão apenas de
cor, mas de ideologia, que Lia Schucman (2012), na sua tese, explica como branquitude. Essa
ligação, entre compreensão do mundo e desejo de ser, garante aos brancos poder e privilégios.
Faço esse breve preâmbulo sobre como se constituiu a miscigenada sociedade brasileira para
situar minha própria ligação ao tema de minha pesquisa.

Primeiros passos

Racismo nunca foi questão discutida na minha família nem entre meus amigos. Nunca
foi um problema. Nos círculos que eu frequentava as pessoas eram misturadas, mas também
havia negros. Destaquei a preposição “mas” intencionalmente para confirmar a distinção racial
que damos ao negro. Frases como “ele é negro, mas um bom rapaz”, “ela é negra, mas de
confiança”, eram as formas sutis de distinguir o negro e colocá-lo em uma posição de
“normalidade”. Por outro lado, ouvia alguém comentar “prenderam o assaltante, mas ele nem
parece ladrão. É até um rapaz bonito, branco”, mas ninguém problematizava isso como racismo.
Outras formas pesadas de racismo eram difundidas em apelidos ou caracterizações, que
inferiorizavam as características fenotípicas ou comportamentais atribuídas aos negros e aos
índios. Nos círculos sociais não havia a presença indígena, afinal a sociedade brasileira tratava
o índio como se não fosse um ser social. O comum era ouvir “fulano não sai de casa, ele parece
índio”, sobre as pessoas que não interagiam socialmente. Qualquer resquício cultural associado
ao branco, fazia com que sua indianidade fosse arrancada. A destribalização e o morar na cidade
20

também implicavam a perda da indianidade. O índio foi estigmatizado e atrelado a


essencialismos culturais.
Eu acreditava que nunca havia presenciado algum confronto racial, alguma forma
explícita do que depois fui entender como racismo. Passei a infância no bairro do Laguinho,
conhecido como o bairro negro de Macapá, formado por descendentes diretos de escravos 21.
Toda vez que eu caia, me machucava ou adoecia, antes de ir ao médico minha mãe me levava
no Seu Sacaca22, que morava na frente da nossa casa. Bastava atravessar a rua e ele quase
sempre resolvia com suas “puxações”23, xaropes e ervas. Seu Sacaca era um senhor negro,
grande curador e entendedor das ervas medicinais da Amazônia. No nosso bairro tinha o
batuque do marabaixo24 e a cada ano nos preparávamos para o carnaval, quando o Seu Sacaca
se caracterizava de Rei Momo. Imersa nesse contexto, como haveria eu de sentir alguma
diferença entre nós tão misturados brasileiros?
Aos domingos íamos à missa na igreja católica de São Benedito, um santo negro,
padroeiro do bairro. Na lateral do altar tinha uma imagem dele. No centro, uma enorme pintura
cobria a parede com Jesus, esplendoroso, representando sua ascensão aos céus cercado de anjos.
Ele tinha a pele clara, cabelos longos e loiros, barba loira, olhos claros e traços finos. Contudo,
eu sempre me sentia incomodada ao olhar para o mural. Não por causa da figura de Jesus, que
via como o símbolo maior do amor e da bondade, mas pela dos anjos em volta. Tinha medo de
olhar para um deles. Alguém havia me contado que um daqueles anjos era o “anjo mau”, “o
que traiu Jesus”, o próprio “coisa ruim”: o anjo negro. O único anjo negro pintado naquele
mural. Suas asas eram prostradas, a cabeça baixa. Depois de muitos anos retornei à igreja de
São Benedito para ver se a pintura continuava lá, eis a imagem:

21
O bairro foi criado quando negros foram remanejados a força de uma área na frente da cidade em 1940. Eles
foram destinados um uma área de alagamento, cheia de lagos, em um claro movimento de segregação racial. Na
década de 1980 já era um bairro central e urbanizado, mas no fim da nossa rua existia um lago. Hoje não há mais
lago no bairro do “Laguinho”.
22
Sacaca é também nome de uma planta medicinal amazônica. A palavra também significa um pajé com alto poder
de cura que une remédios naturais e espiritualidade. O Seu Sacaca já faleceu e hoje em Macapá existe o museu
“Sacaca” em sua homenagem.
23
Movimentos de tração para colocar o osso de volta no lugar, mas não só. Puxação também é uma massagem
associada a um ritual de reza. Em Macapá contávamos muito com esse tipo de cura realizado pelas benzedeiras.
24
Música e dança dos escravos. As letras das músicas do Marabaixo são críticas, como esse trecho que segue: “A
avenida Getúlio Vargas tá ficando que é um primor, as casas que foram feitas foram só pra morar doutor”.
21

Figura 4: Interior da Igreja de São Benedito em Macapá - AP

Foto: autora (abr. 2015)

Na esfera do simbólico, o racismo agia. Assim, como age na mente de tantos brasileiros.
Atuando no plano simbólico, as pessoas não percebem nitidamente o racismo, mas o
reproduzem em relação ao outro e também a si, pois de alguma forma se sentem desconfortáveis
com a “desagradável imagem de si mesmo” (ARRUTI, 1997). Fruto da fusão racial em um
projeto de embranquecimento da raça, os brasileiros, em geral, reconhecem suas origens
africanas e indígenas como algo distante: “matrizes raciais” que formaram a sociedade, com as
quais eles não se identificam diretamente. De modo geral, a história quando lembrada ou
evidenciada tem a ver com alguma origem europeia. Embora nossos traços físicos sejam
evidentemente misturados, é muito difícil ter nítido conhecimento de algum bisavô que tenha
sido negro escravizado ou mesmo indígena. Sobre algum avô, bisavô português, espanhol,
italiano, japonês ou até mesmo árabe é mais fácil encontrar algum brasileiro para contar, se
orgulhar e até ter fotos para mostrar.
Ao me deparar com essa percepção de pesquisadores estrangeiros (WARREN, 2002),
bateu em mim um sentimento de estranheza e me dei conta que falar sobre meus antepassados
era missão impossível. Lembrei-me do quanto era difícil fazer trabalhos da escola nos quais
tivesse que construir minha árvore genealógica. Árvores genealógicas parecem ter sido feitas
para brancos, pois alguns pontos de interrogação preenchiam folhas não muito distantes do meu
nascimento. Era comum dirigir perguntas à minha mãe que por sua vez me mandava perguntar
para a minha avó materna, quem com destreza cortava o assunto e estabelecia como norma o
“não gostar de falar do passado”. Recordar é de certa maneira reviver. Como o passado pode
22

trazer dores à tona, para minha avó era melhor não falar dele. Mas, como entender o presente
desconhecendo o passado?
Da minha avó paterna pouco sei, não a conheci. Lembro de uma única foto que se perdeu
no tempo. Ela era negra. Meu avô paterno morreu quando eu ainda era bem pequena. Lembro
dele branco, mas tampouco tenho fotografias. Quero dizer que as fotos que se perdem no tempo
têm a ver também com a condição social, e não apenas racial. Raça e classe estão
intrinsecamente conectadas no Brasil. Do meu avô, me chamava atenção o sobrenome
“Tracaioli”, que não parecia brasileiro. Eu, de pele não branca, mas também não preta, com
evidentes traços negros e indígenas, sou a combinação25.
Entender de que forma se deu essa combinação não interessava tanto, afinal sou
brasileira. Filha de uma sociedade formada para negar, distanciar, anular, apagar histórias de
povos excluídos, massacrados, exterminados. Onde se estabeleceu um senso comum como a
continuidade do corte das raízes negras e indígenas e de valorização da origem branca. E que
por isso é um país em que ainda vigora a supremacia branca.
Vale lembrar que o branco no Brasil é mais uma vontade de ser elite do que uma
realidade fenotípica e genotípica. A branquitude é ideologia. Certa vez ouvi de uma professora
que o Brasil é um país de história curta porque apagamos a história. Por que a apagamos? Imersa
nesse contexto descobri que é importante falar da formação da sociedade brasileira para
entender como vem se perpetuando o senso comum que percebe os indígenas como seres muito
distantes.
Na minha infância convivi com um avô materno doce e afetuoso. Apesar da sua pele
morena, traços físicos e cabelos parecerem nitidamente indígenas, eu nunca havia ligado sua
vida aos índios e não sei a sua história. Sou do Amapá, estado amazônico de criação recente26,
cujas florestas são as mais preservadas do Brasil e onde vários grupos indígenas resistiram.
Quando pequena, no caminho diário para a escola, passava em frente a uma casa de acolhimento
aos índios na cidade da Fundação Nacional do Índio (Funai). Mal tinha coragem de olhar para
lá, pois na minha cabeça os índios eram selvagens, brabos e nus.

25
Pepetela (2013) registrou esse conflito pessoal em romance “Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi
a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em
mim o inconciliável e este é o meu motor. Num universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez.
Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os
homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os
homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se em dois grupos: os
maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta” (2013,
p.14). O Brasil é a sociedade do “talvez”, ideologicamente direcionada para optar pelo branco.
26
Em 1943 o Governo Federal criou o Território Federal do Amapá, mas só durante a Assembleia Nacional
Constituinte de 1988 ele foi transformado em Estado. O que se efetivou em 1º de janeiro de 1991.
23

Contudo, me vestia de índia com pinturas e roupas, que imitavam a dos índios
americanos, para dançar alegremente uma música que mandava a gente “brincar de índio”.
Quem cantava era a Xuxa, uma apresentadora de TV infantil famosa, branca, loira e de olhos
azuis: a “rainha dos baixinhos”. Ela e suas dançarinas, igualmente parecidas, eram as
referências de beleza para as meninas da minha época. O convite que ela fazia na música para
“brincar de índio” significava representar algo completamente diferente de nós: selvagens
guerreiros que caçavam com arcos e flechas, viviam somente na floresta e falavam o português
sempre no infinitivo, incapazes de conjugar verbos. Quanta contradição! Refletindo sobre o
porquê de agir assim quando criança, cheguei à conclusão de que também sou parte de uma
sociedade impregnada de senso comum. Enfim, a tese não é para falar de mim. Situar-me nela
é consequência.

Meu lugar na tese


Durante minha pesquisa, li etnografias profundas e bem escritas. Algumas foram feitas
por autores americanos que viveram e pesquisaram por certo tempo em países estrangeiros,
especialmente na América Latina. É evidente que quem é de fora observa todos os
comportamentos locais com o estranhamento necessário para relatar o “diferente” e com isso
capta sutilezas, às vezes não tão sutis, que quem está muito envolvido com o ambiente pode
deixar passar despercebido. No entanto, analisar nossa própria sociedade faz com que a gente
volte o olhar para nós mesmos, com nossas ligações, relações e sentimentos, que foram se
formando desde o nascimento. Acredito que aprender o olhar do outro sobre nós e amarrá-lo ao
nosso olhar sobre nós mesmos pode refinar os resultados da pesquisa.
Muitos indígenas afirmam escolher estudar antropologia para falarem de si mesmos, de
seus próprios povos. Anseiam contar suas estórias e sua própria versão da história. Assim, os
indígenas aprendem e apreendem o olhar de uma academia não indígena e mesclam com seus
próprios olhares os conhecimentos que se têm deles. Essa combinação de olhares, da gente e
do outro, nos faz estranhar e desnaturalizar nossas próprias práticas e nos possibilita ser críticos
da nossa cultura. Isso nos leva a questionar o nosso ponto de vista e a indiferença com que
muitas vezes assistimos a condição e o sofrimento dos outros27. Ruth Behar, no seu livro The
Vulnerable Observer. Antropology that Breaks your Heart, diz que nada é mais estranho do que
esse negócio de humanos observarem outros humanos a fim de escrever sobre eles (1996, p.5).

27
É sobre essa indiferença e incapacidade de sofrimento em relação ao outro, que nos fala Susan Sontag (2003)
em seu livro “Davanti al dolore degli altri”.
24

Behar nos mostra que geralmente não somos muito vulneráveis à condição do Outro e
isso contradiz o princípio de responsabilidade para com o Outro. Seria essa uma atitude ética?
O estranhamento poderia incluir reflexivamente nossa própria condição e nossa própria prática.
Não seria pretensioso e hierárquico somente descrever o Outro? Ao nos tornarmos vulneráreis
à condição do Outro, diminuímos a distância que nos separa, propiciando um encontro com sua
humanidade, afirma Behar. Em vez de apenas descrever e até devassar o Outro, a
vulnerabilidade nos permite dialogar. O que nos leva a um diálogo interior, com a gente mesmo.
Behar valoriza o nosso envolvimento emocional a fim de que possamos nos perguntar “para
que serve nosso olhar, nossa pesquisa? ”. A autora afirma que só recentemente a emoção pôs
os pés na academia e me dei conta de que as etnografias que mais me informaram, e também
das quais eu mais gostei, trouxeram consigo uma dose de emoção dos seus autores.
Essa é uma questão metodológica. Trago Behar para explicar minha maneira de
escrever, que expressa também um pouco do meu ser. A antropóloga me faz lembrar a relação
dialógica da filosofia de Buber (2001 [1974]), que fala da relação Eu-Tu em três esferas: com
o Outro; com a natureza não humana; e consigo mesmo. Essa relação dialógica de respeito
permite uma real interação. Busquei diálogos para construir esse trabalho e escrevo para
dialogar com os leitores.
Não considero isso uma pretensão, para mim é uma forma de ação. Diante da exigência
de imparcialidade e de neutralidade, com que tenho me confrontado tantas vezes no mundo
acadêmico, me vi incapaz de lidar com o humano como se “coisa” fosse, como “objeto” apenas.
Como algo que nas ciências não humanas pode ser retalhado, esmiuçado, visto através de lentes
e de equipamentos tecnológicos, para depois ser guardado em vidrinho. Espero que meu esforço
de compreensão de uma realidade social, mas sobretudo humana, não seja guardado em uma
gaveta depois de me conceder o diploma.
Concordo com Behar, quando diz que não é nada fácil se colocar de maneira interessante
dentro do seu próprio texto sobre os outros. Ela propõe estabelecer conexões da própria
experiência pessoal com o tema de estudo, o que não requer uma autobiografia, um
detalhamento de si mesmo, mas sim uma aguda percepção de quais aspectos de mim funcionam
como filtros através dos quais percebo o mundo e meu tema de estudo.
A vulnerabilidade não significa que algo pessoal deva ir junto com o texto, mas que a
exposição de mim mesma, que sou também expectadora, deve levar a um entendimento que
não ocorreria se o texto fosse construído de outra maneira. Senti que de alguma forma era
necessário expressar a minha relação com o meu tema de estudo. Considerei isso importante
para o desenvolvimento do meu argumento. Assim me coloco nesse trabalho.
25

Compreensão, interpretação e reflexão


Dadá, um jovem cacique adornado de cocar de penas azuis, colar com dente de animal
selvagem, braços e pernas desenhados com traçados indígenas pintados com tinta de jenipapo,
estava com sua mãe, Dona Edith, quando nos conhecemos. Eles participavam de um Encontro28
de Indígenas para a formação de um Comitê Regional da Funai29. Dona Edith, de longos cabelos
pretos, pele morena, olhos pequenos, com seus poucos mais de um metro e meio de altura, tinha
um sorriso que esbanjava simpatia. Ao me apresentar logo ganhei dela um abraço. O cacique
Dadá, mais reservado, estava sério e parecia atento a tudo em volta. Ele vivia sob constantes
ameaças de morte por causa da sua luta pela Terra Indígena Maró.

Figura 5: Dona Edith, famosa parteira na região, produz remédios naturais que vende para as
comunidades vizinhas.

Foto: autora (jul. 2014)

Dona Edith e o cacique Dadá falaram do quanto eram pressionados para abrir mão de
um pedaço da terra deles, mas que resistiam e resistiriam sempre. Na ocasião participava de um
projeto sobre os impactos da BR 163, coordenado pelo pesquisador do Museu Paraense Emílio
Goeldi (MPEG) e também meu marido Rodrigo Peixoto. Logo, nos fizeram o convite para
conhecer a TI Maró de perto, explicando onde se localizava. A princípio a TI Maró nos pareceu

28
Evento realizado em Alter do Chão, no município de Santarém.
29
No encontro, os indígenas reclamavam da fraca e omissa presença da FUNAI na Região do Tapajós.
26

distante e difícil de alcançar, já que seria necessário navegar por três rios e, considerando o
tamanho dos rios amazônicos, estava certa de que tal empreitada me exigiria um tempo
razoável. Contudo, de tão caloroso o convite, e de tão forte a fração de história que nos contaram
sobre a vida e a luta do povo do Maró, nosso passo seguinte não foi outro senão o de nos
organizar para encontrá-los na aldeia.
Dois meses depois viajamos com o grupo de pesquisa30 para a aldeia de Novo Lugar.
Lá chegando, imediatamente senti que o calor do convite havia cedido lugar ao olhar
desconfiado do cacique Dadá, que friamente nos recebeu dirigindo a pergunta: “Vocês são do
bem? ”. A mudança de atitude e a desconfiança na nossa recepção careciam de ser interpretadas.
No plano filosófico, as aulas de epistemologia das ciências humanas ajudaram, pois ensina
Heidegger31 que a realidade precisa ser interpretada de acordo com as “possibilidades
projetadas na compreensão”. Essas possibilidades partiriam daquilo que eu conhecia e entendia,
do meu modo de ver e conceber o mundo, mas também da realidade que se apresentava com
nitidez, mas também com frestas que me pediam observar com atenção.
Figura 6: Aldeia de Novo Lugar, na Terra Indígena Maró.

Foto: autora (jul. 2011). No canto direito está o barracão da marcenaria. A casa no centro (atrás das palmeiras) é da Dona Edite. E a casa no
canto esquerdo era do cacique Dadá antes de se mudar com a família para uma casa que construiu perto de um igarapé, cuja nascente está
ameaçada pelo desmatamento ilegal das madeireiras.

30
Na ocasião estava com um grupo que participava de projeto de pesquisa coordenada pelo pesquisador Rodrigo
Peixoto e membros da ONG de Santarém “Projeto Saúde e Alegria”.
31
No livro “Ser e Tempo” (1998).
27

As sutilezas dos olhares e gestos, combinada com a pergunta tão direta do cacique,
demonstravam uma conduta cultural que excedia o fato aparente de o cacique Dadá, líder de
uma comunidade que só recentemente havia afirmado a identidade indígena, estar nos
recebendo com essa reserva. A mim caberia desvendar esses sinais em um complexo contexto
de afirmação indígena, que combinava lutas por reconhecimento e território, em área de
conflito, no oeste do Pará, uma fronteira de expansão do capital.
Ao longo do dia conversamos sobre os conflitos, ameaças e torturas sofridas pelos
indígenas em função da luta pela terra. Fiquei sabendo um pouco da história do lugar e do povo
que ali vivia. Me falavam das dificuldades pequenas e grandes que superavam a cada dia. Senti
que finalmente havia encontrado um assunto motivador para me dedicar a uma tese de
doutorado. Naquela noite os moradores da aldeia foram chamados para nos conhecer. Fizemos
a proposta de construir junto com eles uma cartilha com suas histórias e seus próprios mapas.
Adultos, crianças, idosos e jovens que moravam perto se reuniram em círculo, sentados em
bancos de madeira, sob uma luz fraca produzida por um gerador de energia a óleo 32 e se
apresentaram. Os indígenas demonstravam coletividade e que precisavam sentir confiança em
quem pisava na terra deles. Entendi que para isso seria necessário tempo e construção.
Figura 7: Reunião na Aldeia de Novo Lugar

Foto: autora (jul. 2011)

32
O gerador era ligado somente em ocasiões especiais e por pouco tempo para economizar óleo diesel.
28

Como em diversos lugares do planeta, comunidades se auto afirmam indígenas


especialmente motivadas pela possibilidade de garantir o reconhecimento de direitos
originários, e dentre esses o direito à terra é primordial. Na relação das pessoas com o lugar,
terra não se reduz ao espaço físico, mas abarca um conjunto de significados: é lugar de
construção. Construção de vidas, de histórias, de identidades.
A luta pela terra envolve sentimentos de pertencimento a uma forma de viver naquele
chão. Procuro entender esse conjunto de fatores que transita entre identidade e território a partir
do significado, como propõe a antropologia interpretativa de Geertz (1997), buscando sentido
naquilo que as pessoas fazem, seja de forma prática ou no plano moral, semântico e expressivo,
e ainda jurídico. Me importava não me limitar àquilo que parecia ser evidente. Caberia treinar
um olhar mais aguçado, mas não livre de preconceito no sentido que Gadamer (1997) dá ao
termo, pois quando não temos a compreensão do preconceito temos a surdez.
Para o filósofo interessa o nosso julgamento prévio sobre as coisas, as pessoas e as
épocas articuladas à realidade que se apresenta, já que “toda compreensão do que é significativo
pressupõe que articulemos conjuntamente um uso desses preconceitos” (idem, p. 46). Ocorre
que ao nos depararmos com uma nova realidade, primeiro vem a estranheza, depois a partir do
horizonte, que é tudo aquilo que faz parte do ser, da história, ocorre um projeto hermenêutico,
que acontece de forma inconsciente. Assim a compreensão da realidade que apresentará essa
tese nada mais é do que a combinação do meu eu, do meu entendimento, do meu horizonte,
com o horizonte das pessoas com quem me relacionei durante a pesquisa, suas histórias e seus
anseios.

Instrumentos metodológicos
Considera Cardoso de Oliveira que “quando se complementa a perspectiva analítica,
inerente à metodologia estruturalista, com a perspectiva hermenêutica, articulando assim a
interpretação à interpretação compreensiva, enquanto abordagens complementares, pode-se
dizer que a investigação se completa” (2006, p.28). A partir dessa postura, me aprofundo nos
meios práticos. Um levantamento bibliográfico extenso foi realizado juntamente com a análise
de documentos. Entrevistas semi-estruturadas foram realizadas, a maioria delas gravadas, com
o critério de compreender o contexto local. Um resgate da história foi feito com as principais
lideranças quando do início da luta pela terra indígena. Outras entrevistas foram realizadas com
lideranças contemporâneas para entender as estratégias de luta. Como indígenas e não indígenas
se relacionavam com o tema da pesquisa?
29

Quando temos um tema de pesquisa bem definido, no meu caso o racismo,


especialmente o racismo contra o indígena, torna-se inevitável observar a realidade em nossa
volta com o olhar curioso. O aprendizado não se limitou às entrevistas, mas se expandiu através
de inúmeras conversas informais que tive durante minhas pesquisas de campo e também fora
dele. Embora, falar em racismo seja ainda evitado no cotidiano das pessoas, o tema suscita
muito interesse. Quando alguém conversava comigo sobre minha tese era normal que a
conversa se estendesse. O assunto rendia opiniões prontas, mas também muitos
questionamentos. Quase sempre a pessoa com quem eu conversava tinha algum caso para
contar. Assim fui aprendendo muito também fora do campo físico pré-determinado para a
pesquisa. A sociedade da qual faço parte e onde estou imersa se transformou em um grande
campo de pesquisa.
Nesse campo, o prazo de levantamento de dados não se restringia aos dias da viagem, e
a análise não se limitava ao material colhido. Quando ia à Santarém ou à TI Maró, os indígenas
me informavam que sofriam muita discriminação, especialmente se sentiam ofendidos porque
tinha gente que os acusava de serem falsos índios. Por que isso acontecia? Quais as razões para
considerá-los falsos? Precisava descobrir o que motivava certas pessoas a acusarem os
indígenas. Respostas que vieram de um jeito simples porque elas residem no senso comum
impregnado na sociedade.
Vou dar um exemplo para melhor ilustrar a situação. Uma vez estava conversando com
uma indígena pela internet, quando uma amiga chegou na minha casa. Eu demorei um pouco
para abrir a porta e expliquei que estava acabando uma conversa com uma indígena. Minha
amiga se surpreendeu e disse: “conversando com índio pela internet? Mas, eles têm internet?”.
Ao responder “é claro! ”, ela completou: “esses índios agora estão todos modernos... Mas, é
índio mesmo? ”. Como ignorar as informações contidas nessa breve conversa, mesmo que tenha
acontecido no ambiente mais familiar para mim. Ainda não sabia como enquadrar minhas
observações cotidianas em uma metodologia produzida no campo das Ciências Sociais.
Não me detive a isso e segui com minha pesquisa sem me enquadrar em uma
metodologia específica, mas combinando elementos e determinando minha própria liberdade
de pesquisadora. Passei a não ter hora ou lugar para observar. Meu objeto de pesquisa passou a
fazer parte de mim. Mas continuava com o problema de como resolver isso cientificamente,
conforme os critérios acadêmicos exigiam. Segui minhas observações de forma livre, até
30

conhecer a importante tese sobre racismo de Lia Vainer Schucman (2012)33, que, além dos
argumentos esclarecedores, resolvia meu problema sobre a questão metodológica.
Ela utilizou o método da psicologia social chamado “campo – tema” de Peter Spink,
onde o campo não se refere mais a um lugar específico, mas à processualidade do tema
privilegiando o dia-a-dia. “Assim o campo começa quando o pesquisador se vincula à temática
a ser pesquisada, o que vem depois é a trajetória que se segue a esta opção inicial”, explica
Schucman (2012, p. 46). Quando estava quase concluindo meu trabalho descobri um método
de pesquisa. Mas não era o único, porque eu tinha também Santarém e a TI Maró como lugares
específicos de desenvolvimento da pesquisa. Assim combinei a liberdade de observações
cotidianas com o material colhido no meu “campo – lugar”.
O lugar não se restringe ao plano físico. Hoje ele alcança o mundo virtual. A maneira
como se manifestavam os indígenas auto-afirmados do baixo Tapajós e também os não
indígenas – quando se referiam aos indígenas – nas redes sociais, ultrapassa o lugar como
espaço físico e me dava rico conteúdo para análise. Percebi então que o mundo virtual faz com
que o “campo – lugar” se mova constantemente e passe a fazer parte do cotidiano. Assim, ouso
descrever meu método como “campo – tema – lugar – virtual”, sem qualquer outra pretensão
que não aquela de esclarecer com sinceridade de que forma coletei as informações para a
construção desse trabalho.

Uma história outra


Entrei no doutorado com um projeto de tese que pretendia compreender de que forma
ocorria o processo de luta e conquista da Terra Indígena Maró – PA. Para começar a entender
isso, mergulhei na história local através do que me contavam as pessoas que participaram desde
o início do processo de conquista da terra, que ocorreu bem antes da auto-afirmação indígena.
Tinha a clara intenção de fugir da leitura exclusiva do que conhecemos como história oficial,
que muitas vezes é revelada como verdade acabada e com fronteiras muito nítidas. Mas descobri
que ainda que tivesse a intenção de recorrer à história oficial isso seria inútil, pois essa história
não registra o que não é interesse das elites que historicamente comandam o Estado. As pessoas
daquele lugar não faziam parte da história. Como eles mesmos afirmam: “estávamos
esquecidos”. Seria necessário ouvidos atentos para registrar a história local.
A história local a qual me refiro é permeada de “gentes” e seus modos de ser e viver,
que em algum momento se reuniram em povoados na beira de rios ou floresta adentro, e que

33
O título da tese de Lia Schucman é “Entre o "encardido", o "branco" e o "branquíssimo": raça, hierarquia e
poder na construção da branquitude paulistana”, defendida na USP em 2012.
31

ressignificaram suas trajetórias valorizando raízes e consolidando lutas políticas para a


conquista de direitos. Essas pessoas se organizam e escrevem a própria história em um
movimento que liga o ser ao chão, conforme a definição de “território usado” de Milton Santos
(2002).
A história oficial tende a anular a presença dessas populações reduzindo suas vidas a
uma inexistência. Não são raros os casos de vastas extensões de terras - vendidas, doadas ou
griladas na Amazônia - com “gente dentro”. No caso dos indígenas, eles informam sobre seu
momento atual, contando a sua própria versão da história e buscando maneiras de a legitimarem
como História. Com essa intenção, citam com veemência passagens de relatos históricos de
viajantes que constatavam a presença dos indígenas naquela terra desde os tempos coloniais.
Através da releitura do passado, os indígenas afirmam a presença perene no território e se
relacionam com o Estado exigindo a garantia de direitos.
Na luta por identidade e território, termos e significados foram adotados e incorporados
à história local em momentos específicos. Em torno da palavra e seu significado, pessoas
reunidas por um objetivo comum desenvolveram argumentos práticos e discursivos que
alicerçaram a ação. Para compreender, desde a autoafirmação indígena até a denúncia e
nomeação do racismo, me propus a um exercício de polifonia, dando voz aos personagens dessa
História. A tese articulará perspectivas. Considero o esforço de Cardoso de Oliveira (1978) de
interdisciplinarizar a questão indígena e identitária. Me empenharei em uma abordagem
transdisciplinar. A transdiciplinaridade unifica o conhecimento, articulando elementos que
passam entre, além e através das disciplinas, a fim de compreender a complexidade do mundo.
Além disso, a transdisciplinaridade permite a abertura ao outro e ao seu conhecimento.
Busquei uma abordagem reflexiva capaz de compreender categorias como identidade,
reconhecimento, etnicidade, racismo, resistência, emergência indígena, dentro de um estudo
ancorado na questão de como o racismo atua na negação de identidade dos indígenas
autonomeados. A luta pelo reconhecimento não se desvincula do contexto político, social,
econômico e semântico onde os indígenas se percebem como sujeitos políticos de sua história,
de seus territórios e de seus destinos.
A análise do contexto local foi apoiada pela percepção da Sociologia da Experiência de
François Dubet (1994) - que cita Simmel, Weber (idem, p. 19) e Touraine (idem p. 73) na crítica
que faz da modernidade. Dubet contesta o papel social relativamente amorfo do indivíduo na
unidade da sociedade construído pela sociologia clássica. Defende a autenticidade e a
identidade do sujeito, a afirmação de si e o desejo de ser “autor da sua vida”. Ocorre que a partir
do momento em que as pessoas - das três comunidades que formam a TI Maró - se
32

autonomearam indígenas passaram a ser elas sujeitos ativos na construção das suas vidas. Os
indígenas agem construindo sentido de suas próprias existências através de contínuas ações e
nomeações que afirmam identidades. A denúncia do racismo é uma delas.
Para Dubet (idem) o conhecimento da sociedade é construído na ação, onde está o
problema crucial da análise sociológica. Pois não existe mais um “conflito central”, mas sim
explosões sociais localizadas, ocorrendo a alienação quando as relações de dominação
impossibilitam aos atores terem domínio sobre sua experiência social. Ao saírem da condição
de inexistência, os indígenas superam a condição de alienação para agirem como um grupo que
coletivamente domina e direciona a experiência social de acordo com suas escolhas de
construção do mundo.
Esse desejo é manifestado inclusive na arena da construção do conhecimento, conforme
manifestação de Nanblá Xokleng, no IV Encontro Nacional de Estudantes Indígenas34, que
dizia que para fazer os trabalhos científicos eles eram sempre obrigados a apoiar seus textos em
teorias ocidentais, buscando muitas vezes autores franceses. Nanblá Xokleng, doutor em
linguística, questiona:
É claro que a gente tem que ter uma base, mas eu tenho que dizer “eu sou autor da minha
história”. Então, eu tenho segundo o relato de um ancião, segundo o relato do pajé. Então eu
não tenho só que me preocupar com autores porque eu estou construindo, nós estamos
construindo. Esse é espaço que nós temos que ter na academia. Porque na verdade esses grandes
autores... ah o Levis Strauss falou isso e nós temos que falar isso... E nosso conhecimento
tradicional? E o nosso pajé? Onde que vai estar? (...)

O que essa fala manifesta não é uma completa exclusão do conhecimento ocidental, mas
o desejo de ser autor da própria vida contemplando também os seus próprios conhecimentos,
ou seja, uma profunda descolonização do pensamento. É possível encontrar trabalhos que
expressam essa descolonização de pensamento no grupo transdisciplinar35 de intelectuais latino
americanos modernidad/colonialidad. O grupo desenvolveu o conceito de Colonialidade, que
vincula a modernidade à experiência colonial, através de estruturas de poder e de subordinação
refletidas pelos mecanismos do “sistema-mundo europeo/euro-norteamericano
capitalista/patriarcal moderno/colonial’ (GROSFOGUEL, 2005, p.13). É através de uma
abordagem transdisciplinar, com o uso do conceito de colonialidade, que a tese percebe os auto-
afirmados indígenas do baixo Tapajós, entre eles os Borari e os Arapium, como agentes de um

34
Encontro realizado em Santarém (PA) entre os dias 15 a 19 de outubro de 2016.
35
A transdiciplinaridade unifica o conhecimento, articulando elementos que passam entre, além e através das
disciplinas, a fim de compreender a complexidade do mundo. Além disso, a transdisciplinaridade permite a
abertura ao outro e ao seu conhecimento.
33

projeto descolonial. Devo esclarecer as diferenças entre os conceitos de colonialismo e


colonialidade.
Colonialismo se refere ao período histórico político de exploração e submissão de
territórios transformados em colônias, especialmente nas Américas, África e Ásia, mediante
poderio bélico militar, que teve seu fim com os movimentos de descolonização e independência.
Essa relação de opressão da colônia pela metrópole, chamada colonialismo, deixou um rastro.
A colonialidade hoje se configura no racismo que se reproduz desde a colonização em sensos
comuns e em atitudes veladas ou reveladas, na reprodução da desigualdade através de um
racismo institucional, bem como na relação assimétrica de poder, na exploração capitalista
global dos bens naturais e na apropriação de territórios nos países periféricos.
O trabalho se apoia no pensamento descolonial associado ao conhecimento ocidental. É
uma combinação de elementos onde as metodologias e teorias se encontram na análise da
construção de uma nova epistemologia, que passa a ser construída pelos “autores das próprias
vidas”. O convite que Nanblá Xokleng faz para os indígenas conquistarem o próprio espaço
dentro da universidade, sendo “autores da própria vida”, é também um convite a uma nova
academia, disposta a descolonizar o conhecimento até agora controlado e manipulado pelas
gestões imperiais. De acordo com Walter Mignolo:
A ideia naturalizada de que o conhecimento tem sua casa no território que vai da antiga Grécia
e antiga Roma à Europa Ocidental moderna, e que esse território tem casas habitadas pelas
figuras canônicas do saber do ocidente e das línguas ocidentais, chegou ao seu fim. 36(2011, p.
21, tradução da autora)

A descolonização do saber lança um olhar crítico sobre a produção acadêmica. Uma


produção que avaliza uma leitura de mundo que não se desvincula de uma ação no mundo, e
que, portanto, não encerra qualquer neutralidade. Segue uma reflexão de Boaventura de Sousa
Santos sobre o pensamento crítico, apresentada na conferência “Descolonização
Epistemológica”, na Universidad Autonoma de la Ciudad de México, em 11 de outubro de
2013:
Pensamento crítico é um pensamento que se alimenta de antecipação, ou seja, da ideia de que
os povos, os oprimidos, os excluídos, todos que sofrem e tem sofrido de uma maneira sistemática
as violências e as injustiças do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado, merecem um
futuro melhor, têm direito a um futuro melhor. Sua dignidade está em jogo para que se crie esse
futuro melhor.

36
La idea naturalizada de que el conocimiento tiene su casa en el território que va de la antigua Grecia y la
antigua Roma a la Europa occidental moderna, y que en esse território hay casas habitadas por las figuras
canonicas del saber del occidente y las lenguas occidentales, llegó a su fin. (MIGNOLO 2011, p. 21)
34

Quero fazer uma digressão sobre o pensamento crítico. Mais de cinquenta anos antes,
em 1958, Guerreiro Ramos criou um método de análise de concepções e de fatos sociais
chamado “redução sociológica”, que significa uma apropriação crítica das teorias e experiências
estrangeiras. O autor critica o sociólogo acadêmico que se concentra apenas nos livros, dando
demasiada importância às ideias abstratas e às teorias importadas, sem se dar conta de que o
conhecimento sociológico está sujeito ao contexto. Para Guerreiro Ramos, na sociologia do ato,
ou habitus, o sociólogo deve ultrapassar a limitada alfabetização sociológica e assumir
compromissos em atitude “crítico-assimilativa” em relação às teorias e experiências
estrangeiras, para formar um saber criativo direcionado a melhorar a realidade. Portanto, a
postura do sociólogo deveria ser “pragmática-crítica”, em compromisso consciente com o
contexto que analisa, a fim de produzir uma “sociologia autêntica”, mantendo-se fiel a si mesmo
(AZEVÊDO, 2006). O método de Guerreiro Ramos prevê o comprometimento de incorporar
ao trabalho teórico a perspectiva existencial do teorizador.
Os indígenas do baixo Tapajós passam a fazer parte da construção do mundo que
desejam e isso é uma experiência social. Isso faz com que a experiência social tenha um caráter
subjetivo, pois representa o mundo vivido individual e coletivamente. A experiência social gera
a experiência cognitiva. A cognição atua na construção crítica do real. Essa construção crítica
permite aos indivíduos, através de um trabalho reflexivo, julgar suas experiências e as
redefinirem em uma nova realidade. Marginalizados como estavam os moradores das
comunidades do Maró, que escondiam sua indianidade porque estigmatizada pela sociedade
dominante, eles analisam suas próprias vidas e as transformam através da ação de afirmação da
identidade. A afirmação indígena, nascida de uma ação de reflexão, delineia uma nova
experiência social. A experiência passa então a ser objeto sociológico, conforme analisa Dubet
(1994).
Dubet afirma que a sociologia da experiência social é uma combinação de lógicas de
ação que vinculam o ator a cada uma das dimensões de um sistema, determinando que “o ator
deve articular estas lógicas de ação diferentes e a dinâmica que resulta desta atividade constitui
a subjetividade do ator e sua reflexividade” (ibidem, p.105). Diversas lógicas de ação - recorrer
a história, revelar crenças, usar adereços, mas sobretudo adotar um discurso - foram articuladas
para afirmar a identidade indígena, o que passou a constituir a subjetividade do grupo e também
a reflexividade, pois a partir da ação eles passaram a existir politicamente.
Uma existência política baseada na resistência em um contexto onde a forçada formação
da nacionalidade brasileira deixou heranças de atuações violentas e burocráticas excludentes,
dissonantes com as reivindicações sociais. A formação do Estado brasileiro forçou a
35

assimilação do índio à sociedade nacional. Através de uma ideologia do Estado, sustentada


posteriormente por estudos antropológicos, muitos moradores da Amazônia passaram a ser
identificados como caboclos/ribeirinhos. Nos últimos quinze anos, muitas dessas pessoas
passaram a assumir identidades indígenas. O que acontece na Amazônia é reflexo do
movimento de afirmação identitária que ocorre em vários lugares do mundo.
O ponto aqui é distinguir aquelas formas de globalização do local que se convertem em forças
políticas efetivas em defesa do lugar e das identidades baseadas no lugar, assim como aquelas
formas de localização do global que os locais podem utilizar para seu benefício (ESCOBAR,
2005).

Denunciando a brutalidade da colonização, os indígenas são conscientes das violências


materiais e simbólicas cometidas contra seus povos. Seus discursos revelam o quanto os
opressores tentaram arrancar suas identidades indígenas e usurparam seus territórios. Como
indígenas, eles redescobrem o sentido de suas existências e lutam pela sua permanência na
identidade e no território. A partir da experiência social dos indígenas, faço uma abordagem
mais ampla de como o Estado construiu o nacionalismo, excluindo, exterminando ou mesclando
as raças malquistas, inclusive na Amazônia. A partir da Constituição Federal de 1988, o Estado
é pressionado a atender demandas sociais de grupos minoritários criando novos mecanismos de
legitimação de direitos. Proponho fazer uma análise crítica de como, nesse contexto, os
conceitos de raça, etnicidade e povo estão vinculados, e de como os grupos negociam e
conquistam direitos. Pretendo demonstrar o papel do racismo como instrumento de violação de
direitos, inclusive o de existir historicamente.
36

II - EXISTE RACISMO CONTRA O INDÍGENA?

A pergunta do título do capítulo soa ingênua, já que a resposta parece óbvia. Mas no
Brasil não é. Vou ilustrar isso com uma história. Por um tempo frequentei aulas de conversação
em inglês. Minha turma era composta por cerca de dez alunos. Um dia o professor, que
demostrava ser crítico e preocupado com questões sociais, pediu que cada aluno preparasse uma
apresentação sobre algum problema social e logo perguntou quais seriam nossas escolhas. Cada
aluno anunciou um problema: fome, desmatamento, poluição, trânsito, violência de gênero. Um
colega escolheu racismo. Já imersa na construção da minha tese, não pensei outra coisa senão
anunciar como escolha “o racismo contra o indígena”. O professor, que na hora anotava tudo,
parou com expressão de dúvida, me olhou e questionou: “mas isso existe? Existe racismo contra
o indígena? ”.
Depois dessa pergunta, entendi que estava tratando o assunto como algo evidente, sem
questionar se o racismo contra o indígena era, de fato, reconhecido socialmente. Passei a ficar
mais atenta e percebi que falar sobre racismo fazia com que as pessoas evitassem o tema ou,
instantaneamente, o associassem o à relação entre o branco e o negro, e nunca ao indígena.
Como afirmou um estudante de Ciências da Computação, de 18 anos, que entrevistei na
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), “racismo é de raça, então o indígena sofre mais
preconceito tanto pelo modo de vestir, de se comportar, ele sofre mais pela cultura em si do que
pelo fato dele ser índio. O que faz ele querer se aculturar pra não sofrer tanto preconceito”.
Essa ideia de que o indígena não sofreria racismo foi reproduzida muitas vezes
involuntariamente pelos meus entrevistados. As violências sofridas pelos indígenas são
chamadas popularmente de preconceito ou discriminação, raramente racismo. O indígena é
ainda associado à questão cultural e isso é resultado da construção da nacionalidade brasileira,
como será posteriormente esclarecido. Embora a palavra raça não seja explicitamente referida,
ela é empiricamente presente no caso dos indígenas. Constata Guimarães (1995):
Quando a “raça” está empiricamente presente ainda que seu nome não seja pronunciado, a
diferenciação entre tipos de racismos pode ser estabelecida através da análise de sua formação
histórica particular, isto é, através da análise de modo específico como a classe social, a
etnicidade, a nacionalidade e o gênero tornaram-se metáforas para a “raça” ou vice-versa. (1995,
p. 32)

Concordo com Guimarães e comecei a analisar como a questão racial foi metaforizada
em discursos em relação aos indígenas. No contexto brasileiro, o racismo contra o indígena é
explícito, mas raramente é identificado como tal. No entanto, ao longo da minha pesquisa,
percebi que os indígenas começavam a nomear racismo para denunciar diversos tipos de
37

ofensas, preconceitos e discriminações que sofriam. Acho válido aqui um esclarecimento:


embora sejam sinônimas, as palavras atuam de forma diferente no imaginário coletivo. Racismo
é um vocábulo muito pesado, carrega um estigma que se refugia em eufemismos no contexto
social brasileiro, onde se estabeleceu a crença de que ele não existe, e quando passou a ser
reconhecido foi relacionado ao negro.
Durante o IV Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas, realizado em outubro de
2016 em Santarém, o indígena e professor de artes Budga Deroby Nhambiquara (Werá
Nhambiquara) participava da Mesa “Racismo institucional contra povos indígenas no universo
acadêmico e a realidade encoberta: a importância do movimento estudantil indígena na
academia”, quando falou enfaticamente:
Nós sofremos o preconceito por estar aqui. Você quando sofreu o preconceito foi simplesmente
por você existir. Porque nós resistimos. Por mais que fomos jogados pro lado, pro mato, nós
estamos aqui. E o mais importante é você bater no peito e dizer eu mereço isso aqui. E se você
olhar pra trás ‘eu mereço porque meu povo resistiu, porque eu estou aqui, porque eu existo’.
Você tem que conviver com isso.

Usando a palavra preconceito, Budga Deroby Nhambiquara escancarou o racismo


sofrido pelos indígenas no ambiente da universidade e demonstrou altivez para o enfrentamento
do problema. Como dito no primeiro capítulo, o racismo implica uma relação de inferiorização
de determinados grupos socialmente construídos como raciais. Ele tem diversas faces podendo
se manifestar de variadas maneiras, que vão desde imperceptíveis às mais escancaradas ações.
Constato que o racismo pode ocorrer através de: (1) discriminação externalizada em atitudes
explícitas; (2) do preconceito, concebido no íntimo das pessoas, que naturaliza percepções e
sutilezas; e (3) na segregação de grupos em determinados ambientes. Assim, o leque de
vocábulos usados para desviar da nomeação do racismo são desdobramentos dos próprios
sentimentos que levam à ação. No caso dos indígenas, é comum entender e nomear as “partes”
- discriminação, preconceito -, mas ainda é raro reconhecer o “todo” como racismo.
A ideia de que os índios são identificados por aspectos culturais e não raciais está
presente no cotidiano popular, pois foi sustentada através de um sistema educacional que até
hoje realça diferenças diacríticas e de certa forma as romantiza. O indígena foi então afastado
da questão racial, inclusive por estudiosos brasileiros. Já a imagem do negro foi sempre
transmitida associada à escravização. Filmes e telenovelas trataram de consolidar essas
representações, onde o negro, quando não interpretava o papel de escravo em novelas de época
representava serviçais, sob as ordens do branco rico. O índio raramente aparece, e quando o
38

colocam tem sua imagem vinculada ao passado, sendo completamente inexistente uma imagem
contemporânea dos indígenas nas mídias atuais. A fala do estudante não indígena da Ufopa,
que citei no começo do capítulo, retrata bem essa realidade:
O racismo destinado aos negros é muito mais pertinente porque como os negros foram um povo
mais escravizado. Têm-se uma visão de que os negros não servem para ocupar posições de
prestígio social, servem só pra serviços básicos. O índio sofreu, mas não tanto o quanto a
população negra sofreu e até hoje sofre.

Essa é uma fala infiel à realidade que afasta o indígena do sofrimento e da exclusão
social. Quando se trata de racismo, o indígena continua a ser afastado das análises de
disparidades raciais. Na maioria das vezes, ele nem mesmo é citado nas pesquisas que resultam
em percentuais indicativos de disparidades sócio econômicas que refletem a dinâmica da
sociedade brasileira. Por isso acho oportuno falar um pouco mais da divisão estabelecida, que
associa o negro à raça e o indígena à etnia. Antes vou esclarecer como o racismo tantas vezes
é reconhecido como preconceito e discriminação.

Racismo entre preconceito e discriminação


Em fevereiro de 2016, voltei mais uma vez a Santarém para novas entrevistas,
observações e para confirmar minha percepção de que os indígenas do baixo Tapajós
começavam a denunciar como racismo as violências que sofriam. Naquela época, circulavam
pelas redes sociais denúncias de casos de racismo que estavam acontecendo na Ufopa. Fatos
que geravam a indignação coletiva dos indígenas com muitas manifestações de repúdio e
compartilhamentos. Antes de encontrar duas vítimas do racismo na Ufopa, entrevistei um jovem
indígena auto afirmado que chamarei de Guerreiro. Ele me contou histórias de como se
reconheceu indígena, qual era a imagem que tinha sobre os indígenas antes de se auto afirmar,
e o orgulho que agora sentia, entre outras coisas.
A entrevista já tinha se tornado uma conversa amena quando toquei no assunto racismo,
perguntando se ele já havia sofrido algum episódio do gênero. Perto de nós estavam dois outros
jovens indígenas, que chamarei Waru e Kaxi. Ao falar a palavra racismo, Waru interrompeu
dizendo: “racismo só acontece entre negros e brancos”. Guerreiro, que até então falava com
desenvoltura e clareza, parou, refletiu e confirmou: “é entre negros e brancos, entre brancos e
negros”. Geralmente no Brasil é comum evitar falar sobre racismo. Quando se toca nesse
assunto, as pessoas quase sempre emitem opiniões prontas, com muitas certezas e poucas
dúvidas. Na nossa conversa prevaleceram os questionamentos, por isso Kaxi se integrou a
conversa e perguntou: “mas, vocês acham que não existe entre negros e negros? ”. Uma
39

confusão de ideias se formou e a conversa de repente ficou acalorada entre perguntas, respostas,
silêncios, reflexões, quando Waru repetiu firmemente:
Waru: É entre essas cores: negro e branco.
Kaxi: Mas, tu achas que não existe entre...
Waru: Indígena é mais discriminação mesmo.
Kércia: Você diz que o racismo não ocorre em relação ao indígena?
Waru: É sobre o negro e o branco...
Guerreiro: No caso é como eu tô te explicando, nós somos minoria.
Waru: Não é nem pelo fato de ser uma minoria...
Guerreiro: Nós somos minoria sim!
Waru: É porque nós não somos negros nem brancos!
Guerreiro: Não...

Nesse momento, Kaxi interrompeu e disse “Nós somos amarelos”. Ninguém deu
atenção ao fato dele ter qualificado os indígenas como “amarelos”. Essa foi mais uma
demonstração de que cor se refere a como a pessoa entende o pigmento de sua pele ou como
esse é entendido por outra pessoa. Geralmente, cor é auto descrita através do gesto comum de
olhar para a própria pele dissociando-a de traços e ancestralidade. Cor não estabelece uma rígida
classificação. No Brasil, cor parece não merecer tanta atenção e parece entrar em cena somente
quando se fala sobre racismo. Além disso, na arena social apenas duas cores parecem relevantes
para o entendimento do racismo: o negro e o branco. Assim, o indígena é afastado e acaba, por
sua vez, se afastando desse debate. Mas vamos voltar a conversa que seguiu com Guerreiro
justificando o que ele havia falado sobre indígena ser minoria:

Guerreiro: Minoria que eu digo no sentido de se auto afirmar porque se todo indígena fosse se auto
afirmar...
Kércia: E o indígena? Por que você acha que ele sofre discriminação e não racismo?
Waru: Pelo fato dele ser indígena mesmo. Não é questão de cor. É questão cultural mesmo.
Kércia: E você acha que o racismo é ligado a cor?
Guerreiro: É ligado a cor mesmo.

O diálogo demonstra que Waru associa discriminação à questão cultural e que esta é
relacionada ao indígena. A ideia de que o racismo é ligado à cor é ainda comum no Brasil. Logo
depois da incisiva afirmação de que racismo é ligado à cor, o silêncio tomou conta e deu lugar
à reflexão. Eu os agradeci e eles disseram que as perguntas foram “legais” para pensar sobre
isso. Os indígenas participantes dessa conversa são aguerridos, críticos, defendem com “unhas
40

e dentes” suas identidades, se orgulham de serem indígenas e lutam bravamente por seus
direitos. Têm consciência do processo histórico que sofreram e da violência que sofrem por
instituições e pessoas. Reconhecem e enfrentam o racismo cotidianamente, nomeando-o de
outras formas. Existe ainda pouca intimidade com a palavra racismo, mas aos poucos eles vão
se apropriando da palavra e denunciam o fato, especialmente dentro da universidade.
Os indígenas afirmados do baixo Tapajós têm certeza de quem são. Mas falar em raça
se referindo aos indígenas é algo inusitado, o que faz embaçar a percepção do racismo que
sofrem. Racismo contra os indígenas, apesar de a atitude ocorrer sistematicamente, é uma
nomeação rara, visto não serem eles compreendidos na categoria raça, socialmente construída.
O uso recente da palavra racismo pelos indígenas inaugura algo novo nas políticas discursivas.
A denúncia do racismo na sociedade brasileira vem sendo feita pelo movimento negro desde a
década de 1930. Isso fez com que, ao longo do tempo, essa constatação ganhasse “validade
técnica” e políticas públicas específicas de combate. Falar em racismo contra o indígena quebra
um paradigma.
Repetidamente ouvi no ambiente acadêmico que para trabalhar com povos indígenas eu
deveria considerá-los enquanto etnia e não como raça. Era preciso considerar suas diversidades
culturais. Acho que foi com essa percepção que me perguntaram, durante a minha entrevista
para entrar no curso de doutorado, o porquê da minha escolha ter sido sociologia e não
antropologia, já que iria trabalhar com indígenas. Considero louvável valorizar as diferenças,
costumes, línguas, modos de vida, religiosidade, enfim as culturas que caracterizam as etnias
dos indígenas. Porém considero tão importante quanto essa tradição acadêmica denunciar com
eles, os indígenas do baixo Tapajós, as violências racistas que eles sofrem. Eles passaram a
nomear a violência como racismo, eu interpreto a nomeação.
Entre os indígenas, especialmente aqueles ligados ao Movimento Indígena, o termo
racismo começa a ser empregado com mais frequência, mas ainda carrega uma característica
etimológica cujo significado parece ser movediço. Isso ficou claro enquanto entrevistava
Marcelo Borari, indígena auto afirmado de 33 anos do baixo Tapajós, graduado em artes e
professor, que, muito seguro de si, compartilhou histórias e percepções que me ajudaram a
compreender melhor a realidade e a costurar empiria e teoria. Ele respondia as minhas perguntas
com destreza e sabedoria até eu questioná-lo sobre racismo.
Quando perguntei para ele o que é o racismo, a fluência com que ele vinha respondendo
às perguntas deu lugar a uma breve pausa, seguida pela resposta inicialmente reflexiva:
“Racismo... Hum... racismo... A gente sente até pena dessas pessoas porque são muito fechadas.
Vivem num mundinho ali trancado e não conseguem enxergar essa questão da diversidade.
41

Olha eu não gosto do racista, mas é muito difícil eu lhe dizer o que é que é o racista. O quê que
é o racismo...”
A dificuldade de conceituar o racismo, que Marcelo Borari demonstrou, expressa a
pouca intimidade que geralmente as pessoas têm em identificar e utilizar o termo, especialmente
quando se trata de um tratamento deletério destinado ao indígena. Para facilitar, eu pedi que me
desse um exemplo de uma atitude racista. Depois de um breve momento pensativo ele pergunta:
“Fora essas coisas que a gente vê todo dia na televisão? ”. Respondi que poderia ser qualquer
uma, então ele me disse:

O branco foi rotulado como o bonito. Lembro de uma vez que eu fui pleitear uma vaga de
emprego e um branco entregou um curriculum e um negro também tinha entregado um
curriculum lá. E a menina de lá falou ‘olha esse daqui vai conseguir a vaga’: o branco. O negro
não ia conseguir, mas ela não falou que era porque ele era negro. Ela justificou dizendo que ele
tinha espinha no rosto. Eu disse ‘pra vê né? Como é que a sociedade funciona’. Será que era por
causa de espinha? Mas, isso também não seria nem um critério...

A lembrança de Marcelo Borari exemplificando o racismo se pautou na diferença entre


o privilégio do branco e a exclusão do negro. Ele não contou se ele mesmo havia ou não
conseguido a vaga de emprego. Até esse ponto o seu pensamento não tinha conectado o
comportamento racista com a exclusão ou violência sofrida pelo indígena. Como só
esporadicamente os indígenas falam de racismo, mas costumeiramente usam palavras como
preconceito e discriminação, entre outros eufemismos, decidi empregar a palavra para
esclarecer a questão. Perguntei se existia diferença do racismo direcionado ao negro e aquele
direcionado ao indígena. Ele me respondeu:
Não tem diferença. A diferença é que do negro tem uma repercussão maior. A gente não vê um
indígena denunciando. Hoje a gente vê porque tá mais inserido nesse contexto. Na universidade,
por exemplo, tem gente que ainda não reconhece o indígena daqui como indígena. Eu vejo que
do negro ainda é bem maior por conta da própria mídia. Mas, não difere muito não.

Pautada na resposta de Marcelo Borari, reforcei a pergunta mudando o sentido: “Você


acha que o racismo em relação ao indígena é igual, ele sofre tanto racismo quanto o negro? ”.
Nesse momento parece que ele teve um esclarecimento e disse:
Ah sim! Na cidade de Santarém, por eu tá inserido nesse contexto do indígena, eu vejo que o
indígena sofre bastante mais preconceito do que o negro. Eu acho que é porque já se fomenta
demais na mídia, que tu já nem sabe se tu fala se a pessoa é preta, se ela é negra, porque
dependendo da forma como isso é proferido, pode soar como preconceito. Mas, como eu tô mais
inserido no contexto indígena eu vejo, eu presencio isso mais, com mais frequência, essa
discriminação com o ser indígena. Como eu tô à frente dos jogos [indígenas] me chamaram pra
uma entrevista. Aí o repórter fulano de tal chegou comigo ‘você tá à frente dos jogos aqui, mas
agora fale o seu nome’. Eu disse ‘Marcelo Borari’. Ele “Borari? Mas, Borari mesmo?” Quer
dizer, só nessa parada que ele deu na hora de fazer essa abordagem, eu já vi o preconceito de
cara. Uma discriminação ali. Porque vai ver que quando ele me olhou pensou ‘pô! Mas, Borari?’
42

Aquela ideia. Pra ele a minha imagem não tava de acordo com a mentalidade que ele tinha do
que é um indígena. Eu acho que é por causa daquela sentença do juiz, do Airton Portela, porque
ele foi um dos repórteres que também falou um monte de bobagem. Eu tiro até uma brincadeira
tentando simular o pensamento dele, eu acho que naquela hora ele pensou “Mas, Borari... Mas,
tu não é daquele povo que não existe? Mas, tu existe?”

Rimos com seu tom jocoso. Embora ele tenha descrito o racismo que ele mesmo
vivencia e presencia em relação aos demais indígenas em Santarém, ele evitou a palavra
racismo. Na sua fala fluíram as palavras preconceito e discriminação, o que é natural em um
contexto onde a questão racial por muito tempo foi desconectada e o reconhecimento das
atitudes de negação do Outro como racismo ainda é muito tímido. Percebendo a clara
dificuldade em falar a palavra racismo, pergunto se ele considera que as pessoas percebem que
estão cometendo atos racistas. E em sua resposta fica clara a percepção da naturalização dessas
atitudes na sociedade. Ele fala:
Ás vezes é um ato involuntário. Isso já faz parte da cultura. A pessoa já carrega isso consigo.
Eu acho que as leis estão mais pra frear, pra começar a expelir aquilo que tu já tens dentro de ti.
Porque as leis não acabam com o racismo, elas acabam com o ato de tu manifestar isso
publicamente. Mas, o racismo... Quem me acha feio, nunca vai me achar bonito (...). Isso é uma
coisa muito do ser humano.

Essa conversa revelou para mim o quanto o racismo é afastado da questão indígena e
passei a adotar no meu cotidiano a pergunta: “Quando o indígena vai para a cidade e as pessoas
o ignoram, o maltratam, ou verbalizam expressões grosseiras contra ele, o que ele sofre? ”.
Dirigi a pergunta para cerca de 20 pessoas adultas de variadas faixas etárias, entre amigos,
vizinhos, colegas, familiares e também para indígenas. A resposta mais comum foi preconceito,
depois discriminação, algumas vezes a resposta era insegura, respondida com uma pergunta:
“preconceito, discriminação? ”, raras vezes injúria racial.
Um amigo advogado me causou surpresa ao responder “racismo”. Alonguei a conversa
e ele me explicou juridicamente o porquê de ser racismo, enfatizando o peso de ser um crime
inafiançável e imprescritível. Eu falei do uso popular e do quanto as pessoas raramente
reconheciam a violência contra o indígena como racismo. E foi pelo entusiasmo da nossa
conversa que ele teve a ideia de me apresentar Ariana dos Santos, indígena Karipuna, conhecida
como Ariana Karipuna, de 34 anos, que é professora e formada em Licenciatura Intercultural
Indígena, Ciências Humanas, e que foi candidata a vereadora no município do Oiapoque, no
estado do Amapá.
43

A descoberta de Ariana Karipuna


Ariana Karipuna vive em dois lugares: na cidade sede do município de Oiapoque e na
aldeia Manga, que dista 24 quilômetros da cidade. Na sua aldeia moram aproximadamente
1.200 indígenas, que perderam sua língua originária Karipuna, do tronco linguístico Tupi, e
hoje falam o Kreoul (também chamado Patuá), uma derivação do crioulo, influenciada pelo
francês da Guiana Francesa. Seu bisavô materno era francês e sua bisavó indígena, os avós
maternos indígenas. Do lado paterno, seus avós eram, segundo ela, “índios que não tinham
mistura”. Na nossa conversa, Ariana Karipuna relembrou da adolescência quando precisou
estudar na cidade. Na escola, ela sempre se apresentava como índia Karipuna, e logo
começavam a chamá-la de “índia brava, índia cobra, índia onça”, ela lembra: “me chamavam
de burra porque eles achavam que eu não sabia nada, só que eu dava show neles com as minhas
apresentações”. Ela diz que algumas vezes se sentia excluída, pois muitos colegas não queriam
fazer trabalhos em grupo com ela. No entanto, outros colegas a chamavam para participar de
trabalhos conjuntos e ela se esforçava para conseguir boas notas, pois fazia questão de mostrar
que “índio é inteligente”.
Ela disse que os indígenas sofrem muito preconceito e por isso junto com outras
lideranças organizaram várias palestras para que os indígenas passassem a sentir orgulho, no
lugar de se envergonharem por serem indígenas. Nas palestras e formações, eles falavam muito
sobre preconceito, mas, através do nosso amigo advogado, ela descobriu que muitos casos que
conhecia se tratavam de racismo. Ela me contou que não imaginava que eles sofriam racismo:
“aqui a gente achava que era só preconceito o que a gente sofria, a gente nunca tratou como
racismo”. Completou seu relato dizendo que achava que racismo era uma ofensa muito forte
que só acontecia com o negro e por isso na sua aldeia e também na família “a gente discute
muito como preconceito”. O relato de Ariana me confirmava o quanto o racismo estava
dissociado do indígena não só na visão dos não indígenas, mas também dos próprios indígenas.
Perguntei se ela tinha tido a informação sobre o racismo na Universidade Federal do
Amapá (Unifap) onde estudou, e ela respondeu que “sempre na universidade a gente nunca
tratou como racismo, a gente sempre tratou como preconceito. Até mesmo as professoras
universitárias, que não são indígenas, tratavam como preconceito”. Para Ariana, falar em
racismo foi uma descoberta que a empoderou, pois, descobrindo o que é juridicamente o crime
de racismo, ela começou a nos contar casos de racismo que os indígenas sofriam, que
enfrentavam no cotidiano e de como respondiam a quem os maltratava, mas que não sabia que
poderia denunciar para as autoridades como racismo. Ao ter essa informação, ela falou com um
misto de alívio, certa alegria e nova segurança: “como preconceito eu acho que eu não tenho
44

como processar uma pessoa, mas eu acho que como racismo sim. Assim a gente pode fazer uma
pessoa mudar a ótica dela sobre o indígena e a gente pode fazer ela respeitar”. Os casos de
preconceito e/ou discriminação racial estão enquadrados no crime de racismo. No entanto,
Ariana Karipuna não percebia tais violências como racismo, não considerando a possibilidade
de denunciar. Ela completou: “eu acho que, em vez de preconceito, se a gente falar racismo, as
pessoas vão pensar ‘poxa, racismo é mais pesado’, então elas vão começar a pensar sobre essa
questão”, afirmou Ariana Karipuna.
Figura 8: Ariana Karipuna

Foto: Ariana Karipuna (self)

Eu mostrava algumas fotos de minha pesquisa para um amigo, de 30 anos, quando ele
olhou a imagem acima de Ariana Karipuna e imediatamente perguntou se ela era também uma
índia. Ao dizer que sim, que era uma Karipuna da aldeia Manga, ele respondeu “Ah! Não é não.
Toda produzida com óculos, batom e ainda por cima usando aparelho de dente, me desculpa,
mas não é índia não! ”. A reação dele expressava plenamente o senso comum que define uma
outra imagem ao indígena, como se a ele não fosse permitido qualquer influência cultural, pois
isso faria com ele perdesse a indianidade. A associação entre indígenas e traços culturais
diacríticos é resultado de uma política educacional que ainda hoje transmite essa imagem do
45

indígena às crianças. A mídia também cumpre o papel de reforçar essa imagem através de
transmissões que reforçam estereótipos37.

Índios e Negros: etnia x raça?

Nesse tópico esclareço a divisão comum que se estabeleceu entre raça e etnia no Brasil.
Geralmente, raça é associada aos afrodescendentes e essencializada em termos de cor e traços.
Já etnia é referida aos indígenas elencando uma série de padrões socialmente produzidos e
culturalmente estabelecidos. É importante entender de que forma ocorreu essa fratura para
compreender sua repercussão no meio social e assim buscar um maior esclarecimento para
tratar o racismo.
No ano 2000, participei de um seminário sobre os impactos da Hidrelétrica de Tucuruí,
a qual afetou muita gente, inclusive os povos Parakanã, Assurini e Gavião. O evento reunia
burocratas, lideranças comunitárias, indígenas, acadêmicos e pesquisadores. Uma das coisas
que mais me marcaram não fazia parte da programação do evento. Em um intervalo das
atividades, um respeitado professor-pesquisador relatou, para um grupo de acadêmicos, que
havia sido abordado por um índio “vestido de índio” (todo pintado e usando cocar), que o
ofereceu alguns artesanatos. O professor, tentando escapar da compra, disse como desculpa,
que não tinha dinheiro no momento. Em seguida ele contou, com tom de espanto e sarcasmo,
que o índio na mesma hora o apresentou uma máquina de cartão de crédito. Todos se
surpreenderam e riram se questionando se ele era mesmo um índio ou afirmando que o índio
parecia muito esperto. Se o fato de ter uma máquina de cartão fazia as pessoas duvidarem da
sua identidade ou o associarem à esperteza, o que faria dele um índio então?
Ser índio difere em muitos lugares do mundo de acordo com a imagem imputada a ele
e sustentada pelo senso comum. Conforme relatado, no Brasil o índio foi deliberadamente
associado ao ser selvagem que vive na mata, guerreiro, importante por ter sido uma das “raças”
formadoras do povo, mas para sempre fincado no passado. Por mais ridículo que pareça, ainda
hoje muita gente fica perplexa ao ver índio usando celular ou mesmo calça jeans. O acusam de
estar perdendo sua cultura por um errôneo entendimento do que significa cultura. Conforme
Clarice Cohn (2001, p.36), “muito se comenta, e se lamenta, que os índios estão perdendo sua

37
O Jornalista Leonardo Sakamoto faz uma crítica contundente no texto “Como cobrir o Dia do Índio para a
TV”, disponível em http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2012/04/19/como-cobrir-o-dia-do-indio-para-
a-tv/
46

cultura. Um índio calçado e vestido com calças jeans, falando português, utilizando gravadores
e vídeos ou morando em uma favela em São Paulo aparece aos olhos do público como menos
índio. Eles deveriam seguir suas tradições, se diz. ” Não cabe aqui aprofundar sobre o conceito
e dinamismo da cultura, mas, dentre os seres humanos, o índio é o único ao qual parece não ser
permitido alguma transformação. O que fortalece a imagem desse índio preso ao passado,
impedido de usufruir tecnologias que acompanharam o desenvolvimento da humanidade?
Novamente o senso comum.
Conhecido como um modo geral de pensar da maioria das pessoas, o senso comum faz
com que certas crenças ou afirmações sejam consideradas “normais”, sem que haja reflexão ou
busca para alcançar um entendimento mais coerente. Esse modo de pensar difundido e
compartilhado pela maioria das pessoas é imposto pela ideologia de uma minoria detentora do
poder, na maioria dos casos. No caso da construção do nacionalismo brasileiro, é o ideal da
elite que se impõe através de instrumentos de controle como a mídia e a educação. Esse ideal
da elite, apoiado pela antropologia de uma época, serviu para consolidar o entendimento sobre
povos indígenas, categorizados por distintos elementos culturais postos em realce. E serviu para
reduzi-los a uma análise exclusivamente étnica, vinculando-os tão somente à questão da
etnicidade.
Já os homens negros escravizados vieram de tribos africanas com variadas línguas,
mitologias, crenças, tradições e rituais. Ao serem vendidos no Brasil, os escravagistas os
misturaram para que se tornasse mais difícil qualquer forma de organização e revolta coletiva.
Perdida a liberdade, em uma terra longínqua, o banzo era sentimento comum e refletia a intensa
dor emocional. A escravização foi um golpe profundo nas culturas dos negros africanos, que,
contudo, resistiram, lutaram, sobreviveram e se reconfiguraram, recuperando elementos
culturais e agregando novos.
O homem negro foi identificado à escravidão, e, como essa era uma prática demasiada
perversa, mais fácil para os brancos era culpar e associar ao negro toda forma de difamação
moral e física. Assim, os africanos escravizados foram associados a tudo que é negativo,
mutilados em suas diversidades, apagados em suas expressões culturais e identificados somente
pela sua cor e traços, ou seja, pela sua condição genotípica e fenotípica: o que se resumiu em
“raça”. Associada à aparência, a “raça” negra assim foi compactada e estudada por uma gama
de acadêmicos e especialistas.
Já os povos nativos sofreram um duradouro extermínio e para os sobreviventes e
resistentes foi imposto o processo de “assimilação”, a fim de que se tornassem “cidadãos”
brasileiros, conforme será detalhado no quinto capítulo. Pretendo agora demonstrar como se
47

separou a questão negra e indígena em diferentes campos de estudos. Diversamente do negro,


ao qual foi associado tudo de mais negativo, o índio foi mitificado e associado ao heroísmo e à
pureza. O índio foi considerado glorioso, digno de ser reconhecido com orgulho como nosso
ancestral, mas também misterioso, desconhecido, elemento exótico, portanto. O indígena, se
por um lado foi combatido, escravizado e quase dizimado durante a colonização, por outro lado,
dentro da ideia de construção da nação, merecia ser estudado, para que se registrassem as
diferenças e características culturais dos poucos grupos que sobraram, antes que se perdessem
por completo. Esses elementos culturais estudados detalhadamente foram associados à etnia e
aos antropólogos cabia desvendá-los, registrá-los e de alguma forma eternizá-los.
José Maurício Arruti, no artigo “A emergência dos remanescentes: notas para o diálogo
entre indígenas e quilombolas” (1997), analisa como o pensamento social brasileiro fundou
uma cosmologia nacional baseada na divisão dos grupos humanos interpretados em “universos
semânticos distintos”. Ele relata como, a partir da produção intelectual pós década de 30, o
negro foi associado aos estudos de raça, e o índio aos de etnia:
Poderíamos afirmar que a cada um desses dois recortes da população submetida aos aparelhos
e à ideologia do Estado Nacional brasileiro coube uma tradição acadêmica, cada uma com o seu
próprio panteão de autores, seu repertório teórico, suas categorias de análise, seus diagnósticos
sobre a realidade brasileira. Da mesma forma, o Estado produziu expedientes de controle
cultural e social diferentes para cada um desses recortes, gerando formas distintas de lidar com
a alteridade representada por indivíduos não-brancos, incivilizados, inferiores em termos
mentais e culturais que, no entanto, precisavam ser assimilados ou absorvidos pela nação
brasileira. (ARRUTI 1997, p. 9)

Deste modo, apesar de índios e negros representarem conjuntamente a parte não branca
e, portanto, indesejada da sociedade, eles foram analisados distintamente. Arruti demonstra
como cada uma dessas tradições acadêmicas, apesar de caminharem autonomamente nos seus
campos de estudo, resultaram em “eixos de mutações estruturalmente semelhantes entre si”: os
especialistas em etnia reduziriam a análise em índio/caboclo/civilizado, onde caboclo seria
apenas o termo fugaz para um momento de transição, tornando-se uma categoria sociológica
fraca; já os especialistas em raça adotariam a redução de negro/mulato/branco, na qual o mulato
ganhou uma positividade sendo exaustivamente referenciado. Distintos por abordagens, mas
não pela condição subalterna, caboclos e mulatos seriam condensados nos posteriores estudos
sobre o povo.
Com o fim do período ditatorial e a abertura democrática, a década de 1980 foi marcada
por grande mobilização popular. Os movimentos sociais se formaram, cresceram e se
fortaleceram, e com eles as lutas por identidades e direitos. Aquele caminho pré-determinado,
que condensava caboclos e mulatos na categoria povo, cujo destino era ser branqueado e
48

civilizado, foi redirecionado por grupos considerados minorias. Minorias conscientes que
exigiam reparações históricas. Isso deu uma nova configuração à questão racial. O grande
momento para o reconhecimento de identidades e direitos foi a Constituinte. Quero dizer que,
apesar dos estudos sociológicos ou antropológicos recortarem com bordas tão precisas os
estudos de raça e etnia, na prática raça e etnia estão imbricadas na sociedade. Essa imbricação
é percebida plenamente quando se trata do racismo que atinge seja índios ou negros. Que tanto
raça quanto etnia sejam construções sociais, esmiuçadas por inúmeros estudiosos de vários
campos, não há dúvida. Resta compreender o porquê de raça ter sido ligada à aparência, e de
etnia à essência.
Raça no Brasil passou a ser sinônimo de negro. Por mais que seja evidente a adoração
pelo branco e suas características fenotípicas, percebo que o uso da palavra raça é quase sempre
associada ao negro e era comum o racismo se manifestar através de frases com teor pejorativo
como “só mesmo sendo dessa raça”, para justificar algo ruim ou mal feito. Já falar de índio
passou a ser falar de etnia e elencar seus conteúdos e valores culturais. Teria sido essa uma
forma voluntária de afastar o índio do discurso racial e isolá-lo ora no passado ora dentro da
mata?
Pesquisando os índios do Sudeste brasileiro, Jonathan Warren (2001) percebeu o quanto
a questão indígena não se limitava apenas aos critérios culturais, mas abrangia também as
características fenotípicas, que pesavam no reconhecimento do índio, daquele considerado
como “índio mesmo”: quanto mais traços, pele ou fisionomia se associassem às feições
europeias ou negras, mais os índios eram vistos como “charlatões”. Warren toma como
referência a análise de Peter Wade (1997) sobre raça e etnia na América Latina, que entende a
divisão dos dois conceitos como um erro, pois reduz raça a fenótipo e etnia à cultura, como se
ambos os termos não fossem construções sociais.
Wade (2008) lembra que a categoria “índio” nasceu simultaneamente com o discurso da
raça e reforça o quanto índio foi uma categoria racial carregada de fortes elementos da história,
enquanto que a identificação racial do negro poderia graduar-se em vários graus entre o preto e
o branco, independente das características fenotípicas, dependendo se a pessoa estivesse bem
ou mal vestida:
Uma fotografia de uma pessoa despertará diferentes classificações dependendo de como a
pessoa está vestida e quem está fazendo a classificação. A categorização racial é móvel e
contextual, influenciada pela aparência, roupa, comportamento, e, especialmente pela classe
49

social: a negritude é fortemente associada à classe baixa38. (WADE 2008, p. 182, traduzido pela
autora).

A mesma análise vale para o indígena, pois sua imagem é fortemente associada à
pobreza. A maneira como se veste, se ele foge do estereótipo da pobreza, faz com que os não
indígenas neguem prontamente sua identidade. A reação que despertou a foto de Ariana
Karipuna é um exemplo sobre o quanto o critério da indianidade é ainda associado a como a
pessoa se veste. É muito comum que o indígena tenha sua identidade negada caso não use
roupas ou acessórios indígenas. Mas mesmo que os indígenas auto afirmados recorram a
elementos diacríticos como pinturas e acessórios, eles continuam a ter sua identidade
constantemente negada.
Um exemplo disso foi a matéria completamente desrespeitosa que o blog de Nelson
Vinencci39 publicou, cujo título se reportava aos indígenas do baixo Tapajós como “Caboclos
vestidos de índio”. Explicitamente racista, a matéria informava que, durante uma manifestação
na 5ª Unidade Regional de Ensino (URE), “caboclos disfarçados de índios” exigiam a
“recontratação do chefão deles”, e que o governo do Estado atendeu a reivindicação
recontratando o “indião todo poderoso”. O pesado e ridicularizador tratamento dado aos
indígenas na matéria demonstra, além de racismo, o quanto os indígenas auto afirmados
enfrentam acusações quando se caracterizam com elementos popularmente associados à
indianidade para demarcar discursivamente o pertencimento.
Por outro lado, o relato de um pesquisador não indígena, que mora em Santarém, revela
o quanto a questão da assimilação é bem aceita socialmente. Embora a pessoa traga evidentes
características de indianidade ela pode perfeitamente escolher não assumir sua identidade
indígena. Ao contrário, alguém que retome sua indianidade através do autorreconhecimento
indígena é completamente rejeitado:
Se uma pessoa tem descendência. Você olha pra ela, ela tem traços físicos, corporais
que remetem a uma ancestralidade indígena. Você fala “esse aí tem um pé na aldeia”.
Você percebe que ele tem uma ancestralidade obvia, marcada no próprio corpo: a pele,
o tipo de cabelo. Se pelo fenótipo ele tem essa descendência indígena e mesmo pela
própria questão cultural, ele veio de uma terra indígena e renega a terra indígena pra
viver na cidade: ele é aceito. Ele fala “eu não sou mais índio”. Ele pode até ser chamado
de índio por outras pessoas. Mas ele diz que ele que não é mais índio: “eu não sou índio

38
A photograph of a person will elicit different terms depending on how the person is dressed and who is doing
the classifying. Racial categorization is shifting and contextual, influenced by appearance, dress, behavior, and,
especially, class status: blackness is strongly associated with lower class position.
39
Publicada em 28 de maio de 2014 e disponível em:
http://blogdonelsonvinencci.blogspot.com.br/2014/05/caboclos-vestidos-de-indio-tomaram-de.html
50

porque eu não vivo mais numa aldeia”. A tendência da sociedade envolvente é aceitar
que essa pessoa não seja índio, passa a ser como todos os outros. Uma cidade
cosmopolita aceita pessoas de todos os lugares do mundo, isso é tranquilo. Agora o
oposto causa problemas: “como assim você é índio? ”.

No IV Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), realizado em outubro de


2016 em Santarém, a líder indígena Célia Xacriabá, durante sua palestra, contou o que havia
acontecido durante um evento que havia participado em uma universidade particular:
Eu fiquei bem surpreendida porque uma antropóloga falou assim “ah interessante vocês estarem
nesse espaço da universidade, muito bacana. Mas eu quero fazer uma pergunta um pouco
pessoal. Eu espero que você não fique chateada. Mas, por exemplo, se você não tivesse pintada
e andando aí nesse contexto eu jamais identificaria que você era indígena”. E aí eu pensei, eu
não vou responder, eu vou ignorar essa pessoa, aí eu falei [pensei]: “me dê sabedoria”. E quando
eu respondi pra ela eu falei assim “eu esperava ouvir isso de um advogado, mas de um
antropólogo não”.

Essa fala é forte e retrata o quanto os indígenas são associados a elementos carregados
de estereótipos, inclusive por quem por profissão escolheu estudar o humano. A resposta de
Célia Xacriabá foi precisa ao colocar a antropóloga em posição de não poder determinar quem
é indígena ou não, ainda mais baseada nos critérios usados para fazer o questionamento, como
contexto (universidade) - a índia estaria fora de lugar - e pinturas (cultura) – a índia precisaria
parecer índia para ser assim considerada. Célia Xacriabá deixou claro em sua resposta que o
papel do antropólogo não era o de avaliar quem é indígena ou não. Ela a comparou a um tipo
de advogado limitado, que não estuda o humano, e que se sente no direito de julgar quem é ou
não. E assim erroneamente embasar suas determinações de acordo com o senso comum, como
volta e meia ocorre no meio jurídico. O questionamento aparentemente respeitoso e delicado
da antropóloga não escondeu seu próprio preconceito, baseado em estereótipos socialmente
arraigados de quem é o indígena.

“Ela é índia, índia, índia”: o peso do fenótipo


Nas minhas pesquisas na região do baixo Tapajós percebo o quanto os indígenas, mesmo
com suas evidentes características fenotípicas, realizam um vigoroso discurso político, no qual
se incluem os adereços e pinturas corporais que simbolizam e evidenciam elementos culturais.
Trata-se de, não obstante o inegável fenótipo, construir socialmente laços históricos de
pertencimento. Conforme afirmo em artigo junto com os professores Rodrigo Peixoto e Karl
Arenz (2012):
51

A indianidade assumida pelas comunidades mestiças do baixo Tapajós é auto referenciada em


valores que têm a ver com continuidades históricas, inclusive territoriais, e não com heranças
biológicas. Contudo, salta aos olhos o caráter indígena da população, o inegável fenótipo dos
habitantes das beiras dos rios Tapajós, Arapiúns e Maró. Não que isso seja um atributo
necessário para a afirmação da indianidade, definida no plano das construções sociais e dos
laços históricos e culturais.

“Como vou negar essa minha cara? ”, um estudante da Ufopa questiona. A questão
fenotípica do indígena é também afirmada no relato da história do nascimento do movimento
indígena na região do baixo Tapajós. A antropóloga Iza Tapuia relata que tinha apenas voltado
de seus estudos no Equador e outra liderança, o frei Florêncio Vaz tinha apenas concluído seu
mestrado no Rio de Janeiro, no final da década de 1990, quando juntos conversaram sobre o
quanto a questão indígena era invisível na região, apesar da herança cultural indígena ser
fortemente sentida localmente. Eles tiveram a ideia de criar um movimento de conscientização
à luz do movimento negro, que formou grupos de consciência negra. Assim surgiu o Grupo de
Consciência Indígena (GCI) para buscar e fortalecer a raiz indígena local. Iza Tapuia relata o
quanto eles eram reconhecidos como indígenas em outros lugares:

O Florêncio voltava do Rio e lá ele foi identificado (como indígena). As pessoas não
perguntavam se ele era indígena. As pessoas perguntavam de que povo ele era porque sabiam
que ele era da Amazônia. No Sul ninguém tem nenhuma dúvida de que nós somos ou deixamos
de ser indígenas. E eu vinha do Equador já também nesse processo de construção de identidade.
A gente começa a construir esse movimento indígena e cria o GCI.

Florêncio por sua vez contou o quanto a sua ida para estudar no Rio de Janeiro foi
reveladora da sua própria identidade indígena:

Quando eu chego no Rio de Janeiro as pessoas literalmente me chamam de índio mesmo. Olho
amendoado, cabelo teso. Eu deixava o meu cabelo crescer de propósito quando as pessoas
começaram a me chamar de índio (risos). Como as pessoas demonstravam interesse pelo exótico
- “o que vocês nos contam de lá? O que vocês fazem lá? Como é que vocês vivem?” - aí que eu
começo ainda mais a me interessar por essa minha raiz que quando a gente tá aqui a gente não
se interessa muito, muito pelo contrário, a gente quer fugir dela e se aproximar de uma outra
maneira. (...) O indígena estava na origem das coisas, mas era aquilo que ninguém queria ser.

Interessante notar o quanto falar de Brasil é complexo, pois as diferenças regionais são
tão grandes que quase poderíamos as analisar como realidades distintas, porém conectadas.
Falar de Amazônia, então, mais complexo ainda, já que tem todo um imaginário que associa
floresta, animais e índios com a falta de desenvolvimento. Enquanto no Sul e Sudeste muitas
pessoas do Norte são reconhecidas como índios pelas suas características físicas, com o
crescimento do auto reconhecimento indígena, as pessoas são vítimas da negação de suas
52

identidades na própria região. As regiões do Brasil apresentam grande variedade demográfica


e social e permitem algumas largas generalizações, inclusive em termos de diferenciação no
imaginário nacional, de acordo com as categorias “negro” e “índio”.
Conforme Peter Wade (2008), existem na América Latina sub-regiões associadas à
negritude e à indianidade. Especificamente no Brasil, o Nordeste é relacionado à negritude e a
região amazônica à indianidade. Essas regiões, assim como as categorias associadas, são
geralmente baixas na hierarquia de valores nacionais, embora desfrutem de um status simbólico
com estereótipos valorativos associados. “Pessoas identificadas como negras ou indígenas
sofrem discriminação racial em algum grau. Modernidade, desenvolvimento e alta classe social
geralmente são associadas à branquitude ou pelo menos à mestiçagem”40 (2008, p. 183).
Embora a região amazônica seja relacionada aos indígenas, ocorre que um indígena
auto-afirmado é mais facilmente associado à indianidade, pelas suas características fenotípicas,
em outras regiões do Brasil. Na própria região aconteceu um caso onde indígenas auto
afirmados tiveram suas identidades negadas por indígenas em condição semelhante. Foi o que
aconteceu com o povo Tapuia em Santarém. Foi o que aconteceu quando os filhos de Iza Tapuia
foram estudar na Universidade Federal do Tocantins (UFT), em 2009.
Eles tiveram acesso à UFT através da política de cotas para indígenas. No entanto,
sofreram um processo de denúncia originado na própria região da qual partiram. A denúncia
foi a de que o povo “Tapuia” não existiria mais naquela região, e que, portanto, seus filhos não
seriam indígenas. Iza Tapuia relembra toda a perseguição que seu povo sofreu para provar a
própria indianidade, não tendo sido a eles concedido socialmente o direito de se auto-afirmar:

Em nome dos Tapuia e em nome do movimento indígena local, eu tô lá na Espanha fazendo um


curso de especialização em direito indígena e recebo um email que falava assim: “olha Iza,
mataram o teu povo”. Aí eu devolvi pra ele: “Ah meu filho, se eles enterraram com sete palmos
ou se eles enterram com mais ainda a gente vai buscar onde estiver. ... A gente desenterra.

O fato demonstra que o complexo emaranhado de disputas no contexto do movimento


indígena local levou, alguns anos depois, a essa denúncia que contestava a indianidade dos
filhos da Iza Tapuia. A denúncia teria partido de pessoas semelhantes, mas situadas em um polo
oposto de poder, e fez com que a UFT abrisse um processo para apurar o caso. Esse caso de
fratura entre semelhantes, que os faz confrontarem-se uns com os outros e confundir a imagem
do opressor, me fez lembrar uma passagem da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, quando

40
People identified as black or indigenous do suffer racial discrimination to some degree. Modernity,
development and high status are often associated with whiteness or at least mixedness (WADE 2008, p.183).
53

ele fala, aludindo a Frantz Fanon, da “ordem” que serve aos opressores e que faz com que os
oprimidos se confrontem entre si:

Na “imersão” em que se encontram, não podem os oprimidos divisar, claramente, a “ordem”


que serve aos opressores que, de certa forma, “vivem” neles. “Ordem” que, frustrando-os no seu
atuar, muitas vezes os leva a exercer um tipo de violência horizontal com que agridem os
próprios companheiros (...) É possível que, ao agirem assim, mais uma vez explicitem sua
dualidade. Ao agredirem seus companheiros oprimidos estarão agredindo neles, indiretamente,
o opressor também “hospedado” neles e nos outros. Agridem, como opressores, o opressor nos
oprimidos. (1983, p. 53).

Iza Tapuia conta que durante o período de tramitação do processo na UFT, seus filhos
sofreram grande perseguição e foram tratados como se tivessem usurpado vagas na
universidade que, segundo os acusadores, não deveriam lhes pertencer. Apesar de todo o
sofrimento gerado pela acusação que feria a própria identidade do seu grupo, os Tapuia
contaram com o apoio de várias lideranças do movimento indígena do baixo Tapajós, que
fizeram abaixo-assinado e reuniram a documentação exigida pela UFT. Ela conta o quanto seu
fenótipo causou surpresa ao chegar na universidade para conversar em defesa dos filhos e do
seu povo:

Quando o pessoal me viu, o pessoal ‘enlouqueceu’ (ela conta rindo). A diretora tava doente, o
pessoal falou assim: “olha, a mãe da Maira e do Uirá tá aqui”. E a menina no telefone falou para
a diretora assim: “ela é índia, índia, índia”.

A presença da Iza Tapuia na UFT causou certo alvoroço porque ao vê-la, com seus
traços, cabelos e cor tão reconhecidamente indígenas, facilmente alguém se questionaria como
era possível negá-la essa identidade. Com a documentação em mãos, ela foi conversar na
universidade para solucionar o problema dos filhos burocraticamente, mas a surpreendeu o
“peso” da sua presença física e a curiosidade que ela causou. Vencido esse primeiro processo,
outros se seguiram por outras instâncias. Um a um, os obstáculos foram vencidos por ela e pelos
filhos, mas certamente não foi vencido o preconceito evidente calcado no senso comum, do
qual eles são vítimas cotidianamente.
54

Figura 9: Iza Tapuia

Foto: autora (fev 2016)

Se por um lado as características físicas contam no reconhecimento da identidade


indígena, por outro o senso comum nega a identidade ao saber que a pessoa mora na cidade, é
bem educada e acessa as tecnologias. O racismo direcionado aos indígenas tem a ver com a
imagem desse índio do passado e não tanto com suas características físicas. Assim, as
características fenotípicas associadas à raça pesam sim no reconhecimento do indígena no
Brasil, embora exista a falsa ideia de que ele seja reconhecido apenas através de elementos
culturais muito distintos daqueles considerados modernos.

O racismo na universidade
Quando cheguei em Santarém, no dia 15 de fevereiro de 2016, pela sétima vez fazendo
pesquisas de campo, havia um clima de indignação e logo me falaram que mais uma vez os
indígenas haviam sofrido racismo dentro da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
Um deles aconteceu com Evaldeson Pereira, indígena de 30 anos, de São Pedro do Arapiuns,
estudante do curso de Economia, que um pouco introspectivo, com um tom de voz baixo, me
contou: “tem uma frase muito importante, que eu nunca vou esquecer, que o professor falou.
Ele falou assim: ‘gente, índio não é legal não, índio é ser feio. Índio é ser feio”. Senti em
Evaldeson uma certa tristeza quando relatou o ocorrido, me dizendo que na hora seu coração
disparou, e completou: “Porque todo mundo sabe que eu sou indígena lá na sala, mas o professor
não sabia porque foi o primeiro dia de aula dele, mesmo assim ele tá sabendo que em quase
todas as turmas tem um indígena”.
55

Ele contou que, na hora do intervalo, chamou o professor e o questionou sobre o porquê
de ele ter dito isso e que sua fala havia deixado ele muito nervoso. Em seguida, o professor -
que, por incrível que pareça, estava dando aulas da disciplina “Formação Social, Política e
Econômica do Brasil” - o pediu desculpas na frente de toda a turma. Contudo, Evaldeson não
se contentou com as desculpas e, apoiado pelo movimento indígena, denunciou o professor por
racismo, sem contar com a colaboração dos colegas de sala. A fim de sensibilizar alunos e
funcionários da Ufopa e chamar a atenção para o ocorrido, no dia 19 de fevereiro de 2016, o
movimento indígena fez uma mobilização em frente ao prédio da universidade, exigindo
respeito e denunciando esse e outros casos de racismo que ‘vez por outra’ ocorrem lá dentro. É
a partir dos indígenas inseridos na universidade que vai se ampliando a identificação e a
nomeação do racismo, com todas as suas letras.

Figura 10: Juliana Fidelis

Foto: Malenna Farias (fev 2016)

A manifestação contra o racismo institucional contra os indígenas motivou a


organização da 6ª edição da Semana dos Povos Indígenas da Ufopa a enfocar o racismo como
tema central do encontro. Intitulado “Diversidade Indígena: todos contra o racismo”, o evento
discutiu, entre os dias 12 e 15 de abril de 2016, a intensificação dos casos de racismo contra o
indígena nas universidades brasileiras. A Semana contou com a participação de indígenas de
17 etnias das regiões da Calha Norte, do alto, médio e baixo Tapajós, que falaram sobre suas
culturas a fim de informar e combater o racismo.
56

A conversa que tive com os indígenas autoafirmados Guerreiro, Warú e Kaxi, referidos
no começo do capítulo, aconteceu dois meses antes desse evento. Caso tenham participado, é
provável que agora eles tenham um melhor esclarecimento sobre o racismo e comecem a
identificar os casos de preconceito e discriminação também como racismo. A Semana dos
Povos Indígenas foi aberta com um ritual que formou uma grande roda envolvendo os 900
participantes da “Audiência Pública: Racismo Institucional nas Universidades”, evento que deu
início a uma densa programação.
De acordo com a matéria publicada pelo site de comunicação da Ufopa41, na audiência
estavam presentes representantes do Ministério Público Federal (MPF), da Funai, da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e da própria Ufopa42 , cuja ouvidora, Janete
Sousa, disse que a denúncia de racismo institucional ainda é tímida e “não representa a realidade
conhecida”. O coordenador do Diretório Acadêmico Indígena (DAIN), Abimael Munduruku,
disse que para enfrentar o racismo deve-se reconhecer que o problema existe. Já o pró-reitor de
Gestão Estudantil, Valdomiro Sousa, pediu que a vigilância contra atitudes sutis, racistas e
opressoras, fosse feita diariamente, e completou dizendo que “o racismo é apenas uma face do
preconceito e da opressão contra grupos minoritários”. Entretanto, no caso sofrido pelos
indígenas, não seria o racismo que engloba as faces do preconceito e da opressão?
Com a Semana dos Povos Indígenas, o problema do racismo ganhou evidência na Ufopa
e, no período de 23 a 25 de maio de 2016, foi realizado na universidade o seminário e minicurso
“Alteridade, Raça-Etnia e Racismo”. Esse outro evento, que contou com a parceria da
Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso) e do Conselho Regional de Psicologia,
focou a contribuição da psicologia na compreensão das relações étnico-raciais, abordando
estigma, estereótipo e preconceito como construções sócio-culturais. Outro departamento da
Ufopa, que também se sensibilizou com a causa, foi o de Comunicação, que lançou uma
campanha contra o racismo. Nos cartazes produzidos, estavam estampadas frases racistas de
impacto, que os estudantes negros ou indígenas haviam ouvido nas dependências da
universidade. A campanha pedia atenção para as práticas cotidianas e naturalizadas de
discriminação, e também se posicionava contra a negação do racismo. A Ufopa incentivou as
pessoas a compartilharem as imagens dos cartazes nas redes sociais com a hastag
#OfimDoRacismoComeçaPorVocê.

41
http://www.ufopa.edu.br/noticias/2016/abril/audiencia-publica-marca-o-inicio-da-semana-dos-povos-
indigena. Publicado em 13/04/2016.
42
Representada pela Ouvidoria, a Reitoria de Gestão Estudantil, do Diretório Acadêmico Indígena (DAIN) e a
Coordenadoria de Cidadania e Igualdade Étnico-Racial.
57

Figura 10: Imagens de alguns dos cartazes da campanha contra o racismo

FONTE: #ofimdoracismocomeçaporvocê

Toda essa preocupação de combate ao racismo na Ufopa é resultado de uma série de


eventos e comportamentos que agrediram especialmente estudantes indígenas. É no universo
acadêmico que ocorre o reconhecimento do racismo, em atitudes preconceituosas e
discriminatórias, baseadas em estereótipos e estigmas.
É preciso desconstruir a imagem estabelecida do indígena pelo senso comum. Agora
vou apresentar o estudante de Direito da Ufopa, Márcio Saw Munduruku, da aldeia Primavera,
25 anos, que conheceu a cidade pela primeira vez quando, com o apoio dos pais, decidiu
continuar seus estudos no município paraense de Itaituba, há cinco anos, quando tinha 20 anos.
Márcio conta que quando tinha 8 anos aprendeu a ler e escrever ensinado pelo tio indígena, que
era também seu professor, mas que até os dez anos não falava o português. Na cidade, logo
58

sentiu a necessidade de aprender informática e contou com a ajuda da mãe, que recebia uma
bolsa do governo, o que o permitiu pagar o curso.

Figura 12: Márcio Saw Munduruku

Foto: autora (fev 2016)

Márcio Munduruku relata: “eu achava que os alunos da cidade eram muito inteligentes,
eram mais inteligentes, mas quando eu cheguei lá pela primeira vez, eu acho que eles tinham
mais vergonha que eu, de se expressar, de se apresentar”. Até mesmo ele, que nasceu e cresceu
na sua aldeia, dotado de tantos conhecimentos tradicionais da sua cultura, compartilhava a
crença do senso comum de que os não indígenas seriam mais inteligentes. Logo o percebi
arguto, através da clareza com que expressava suas ideias, mas ele quis me contar o quanto se
destacou na escola embora fosse indígena: “na sala de aula, todo mundo me reconhecia como
indígena. Eu era muito inteligente em matemática, quer dizer, em todas as disciplinas, porque
eu gostava de estudar, eu fui muito bom e os alunos sempre me consideravam como o melhor
aluno, sempre fui elogiado pelos professores também”.
A imagem do indígena estabelecida pelo senso comum é muitas vezes compartilhada
por eles mesmos. É uma ideologia pervasiva que penetra mentalidades. Paulo Freire, referindo-
se à análise da “consciência colonizada” de Albert Memmi, fala da auto-desvalia como
característica do oprimido: “Resulta da introjeção que fazem eles da visão que deles têm os
opressores”. De tanto ouvirem que os não indígenas são donos do “conhecimento universal” e
59

por isso mais inteligentes, acabam se convencendo de que isso é uma verdade. Só passam a ter
uma visão diferente na medida em que se inserem num contexto concreto e podem reavaliar
isso. “É preciso que comecem a ver exemplos da vulnerabilidade do opressor para que, em si,
vá operando-se convicção oposta à anterior. Enquanto isso não se verifica, continuarão
abatidos, medrosos, esmagados. ” Esse processo é precisamente a decolonialidade do ser, uma
libertação que em certa medida o movimento indígena opera. Uma libertação vivida por Márcio
Munduruku ao se inserir em um contexto concreto, no caso a escola, e confrontar a percepção
que antes tinha.
Essa mesma disposição em demonstrar inteligência para os não indígenas, eu percebi na
Ariana Karipuna, de quem eu falei no item anterior, quando ela me contou sua experiência de
estudar em uma escola não indígena. “Os colegas da sala mandavam bilhetinho pra mim
dizendo: ‘ih, índia cobra vai lá explicar, índia onça vai lá explicar teu trabalho. Ih, olha a índia!
A índia vai explicar o trabalho dela’. Entendeu? Só que eu relevava. Eu dizia com muito orgulho
eu sou índia e vou mostrar pra vocês como a índia é inteligente”, relata Ariana Karipuna. Os
indígenas têm sempre de enfrentar o senso comum estabelecido de que eles são intelectualmente
menos capazes e por isso, não obstante as dificuldades que enfrentam para garantir a educação
formal, costumam se empenhar muito mais para vencer as barreiras estabelecidas pelo
pensamento geral.
Foi lembrando do Márcio Munduruku que tive a ideia de questionar meus colegas na
ocasião do curso de inglês, que contei no começo do capítulo, sobre o que eles achariam se
tivéssemos um colega indígena na sala. Com expressões de espanto dos colegas, um deles disse
que seria “inacreditável”. Em uma de nossas conversas, Márcio Munduruku me falou do seu
interesse em aprender inglês. Contou-me que havia conhecido uma antropóloga linguista
interessada em aprender o Munduruku e que ele fez a proposta de ensiná-la sua língua em troca
de que ela o ensinasse o inglês. Falou-me com certo pesar que o plano não tinha dado certo,
pois ela teve que voltar para a sua cidade, mas que assim que puder pagar, ele vai começar a
frequentar um curso de inglês.
Márcio Munduruku diz que continua aprendendo o português, embora eu tenha
percebido o seu português muito fluente. Ele lembra de como se sentiu quando foi estudar em
uma comunidade não indígena: “eu não me sentia à vontade porque a maioria falava só
português. Eu não falava, eu não entendia”. O que ele diz confirma que a língua é uma das
maiores barreiras que os estudantes indígenas que saem de suas aldeias para estudar na
universidade enfrentam. Muitos deles estudaram o ensino fundamental e médio nas suas aldeias
60

com um método de ensino diferenciado usando suas línguas maternas, e sentem dificuldades
quando ingressam na universidade, na cidade, especialmente por causa do português.
Maike Vieira, que se identificou como índio negro da etnia Kumaruara, foi Coordenador
de Cidadania e Promoção Étnico Racial na Diretoria de Ações Afirmativas da Ufopa. Ele me
contou sobre as dificuldades que os indígenas enfrentam no processo de adaptação à
universidade:
O processo de adaptação no ambiente urbano marcado pelo individualismo, pelo preconceito,
pelo racismo, esse choque cultural é muito difícil pros indígenas. Muitos que são bilíngues,
como os Mundurukus e os Wai Wai, desistem logo no primeiro contato porque têm dificuldade
de conseguir um contrato para alugar uma casa, têm dificuldade pra se movimentar na cidade,
têm dificuldade pra abrir uma conta bancária, que é fundamental pra que eles tenham acesso à
bolsa pra permanência na universidade. Outro processo que é duro é o processo de permanência
na universidade porque ele se depara com o modelo acadêmico cartesiano, baseado na
meritocracia, na nota. E na hora de formar equipes, muitos ficam de fora. Eles têm dificuldade
com a língua, sobretudo os indígenas bilíngues. Os indígenas do baixo Tapajós também têm
essa dificuldade, mas como eles foram alfabetizados no português, essa dificuldade é menor.
Por conta disso, a gente já recebeu muitos casos [denúncias] de racismo, de preconceito em sala
de aula, de discriminação, de o indígena não conseguir fazer trabalho em nenhuma equipe, de
professores se negarem a orientar trabalhos de pesquisa.

Essa dificuldade com o português foi relatada por Márcio Munduruku, que afirmou: “os
alunos que vêm da aldeia pra cidade têm mais dificuldades de se expressar, de falar e até
entender eles não entendem”. Lembrei de mim mesma quando fiz doutorado sanduíche, durante
o ano de 2015, nos Estados Unidos. Embora tivesse frequentado cursinhos de inglês ao longo
da vida, de ser capaz de ler, e de crescer cercada de músicas, filmes e de toda a língua inglesa
difundida pela influência da cultura americana, me senti completamente perdida no início. Era
difícil entender completamente até mesmo discursos claros e pausados. Parecia que o inglês,
que havia aprendido até então, tinha ganhado uma velocidade incompatível aos meus ouvidos.
Expressar-me, então, era pior ainda, e se fosse em público, a minha costumeira facilidade de
falar dava lugar a uma desarticulação apoiada na insegurança, o que me deixava visivelmente
envergonhada. Pensando nas minhas próprias dificuldades, pude compreender um pouco a dos
indígenas acostumados às suas línguas maternas, que precisam se adaptar não só ao português,
mas também à dinâmica da cidade e ao método de ensino das universidades. E, para além de
todas essas adaptações, eles passam a confrontar diariamente o senso comum estabelecido na
sociedade, enraizado no pensamento e refletido no comportamento das pessoas.
Especialmente, as dificuldades dos indígenas para falar o português reforçam o racismo
na universidade. A língua “barra os estudantes indígenas a ponto de até chegar a desistir
61

também”, afirma Márcio Munduruku, que completou dizendo da sua própria dificuldade
quando se trata de uma linguagem mais técnica:
Eu nunca sentia um preconceito, tipo o que tá acontecendo agora na universidade e isso a gente
não aceita (...). Aqui na Ufopa, eu tenho mais dificuldade porque o método de ensino é mais
técnico. Por exemplo, em algumas disciplinas eu acabo não entendendo a explicação dos
professores. A linguagem é muito técnica e eu acabo não entendendo, mas também os alunos
não indígenas não entendem. Aí, como eu sou indígena, pior pra mim. A gente sofre preconceito
por parte dos professores, como dos alunos também. Aí a gente tá lutando pra ver se a gente
consegue diminuir ou até acabar mesmo (...). Na sala de aula a gente fica mais isolado, mas
alguns alunos são bacanas, não todo mundo.

Também Márcio Munduruku nomeou de preconceito o que os indígenas sofrem na


universidade. E, se por um lado, os indígenas têm que se esforçar para superar suas dificuldades
em relação à língua portuguesa e com isso demonstrar suas capacidades intelectuais, por outro,
se eles falam bem o português, completam seus estudos ou demonstram conhecimento em
relação a algum assunto específico, que não seja relacionado à natureza, eles são vistos como
não indígenas pela sociedade, conforme explica Ariana Karipuna:
Tem pessoas que falam que eu não sou índia, mas eu sempre digo pra eles que sou índia sim. Lá
na minha aldeia, ela já é uma aldeia bem avançada, tanto na estrutura quanto no conhecimento
das pessoas, aí eles acham que a gente não é mais índio, mas isso não existe. A gente não perde
nada. A gente não deixa de ser índio. Pelo fato de eu me comunicar com o português bem falado,
então eles acham que não sou índia.

O desencontro, entre o “ser” indígena e o não reconhecimento pela sociedade, gera um


constante atrito. É nesse espaço que se consolida um conflito, no qual os indígenas se chocam
ao confrontar pensamentos e comportamentos pré-estabelecidos. O senso comum constrói uma
definição de quem é o indígena e quando ele não se enquadra nessa imagem, as pessoas se
sentem livres para atacar sua identidade e ferí-lo na sua essência, os chamando de falsos ou/e
acusando-os de aproveitadores. Essas formas de violência, baseadas no não reconhecimento,
que agridem no plano moral, estão ainda longe de serem combatidas e de alguma forma punidas.
O não reconhecimento às vezes não é tão explícito. Para as violências explícitas, o racismo
pode ser reconhecido e denunciado.
A denúncia pode contribuir para construir uma sociedade sem racismo. Confrontar
devidamente o racismo contra o indígena, no plano social e legal, é um caminho concreto para
começar a equilibrar as relações sociais. No entanto, até mais importante que punir o racista é
transformar razão e sentimento e, consequentemente, comportamento. Para isso, o melhor
caminho é a educação. Nesse sentido, o movimento antirracista conduzido pelos indígenas e
aliados a partir da Ufopa faz desse ambiente um lugar de pensamento e ação decolonial. Maike
62

Vieira fala o quanto a Diretoria de Ações Afirmativas da Universidade Federal do Oeste do


Pará é importante nesse sentido:
A Diretoria de Ações Afirmativas acaba servindo de anteparo para essas questões todas. Eu vejo
hoje que a diretoria de ações afirmativas contribue muito pra amenizar essa situação. Diante de
várias denúncias e várias intervenções nossas junto ao conselho de ética, ouvidoria da
universidade, (...) hoje a universidade (como um todo) já sabe que tem os indígenas, já não dá
mais pra alegar o desconhecimento da existência dos indígenas, esse encontro nacional de
estudantes indígenas também dá uma grande visibilidade pros indígenas e a gente tá trabalhando
pra amenizar essa situação da dificuldade da permanência do indígena na universidade.

Racismo é crime
A frase que titula o tópico é bastante difundida e já faz parte de um conhecimento geral.
As pessoas têm certeza de que “racismo é crime”, mas elas sabem o que é o racismo? A minha
intenção não é decifrar atitudes racistas, mas demonstrar como a palavra racismo, associada a
outros vocábulos definidores como preconceito e discriminação, atua no contexto social. É
estudando a legislação que partirei para uma primeira análise. Cabe ressaltar que esse não é um
trabalho jurídico, portanto não é intenção questionar a lei que pune o racismo, pormenorizar de
que forma ela é aplicada ou mesmo a sua real efetivação. O escopo é demonstrar como a palavra
“racismo” é estigmatizante e, portanto, leva pessoas e instituições a negar o “rótulo”. A palavra
tem o poder de criar a realidade. Sua omissão invisibiliza essa mesma realidade. Assim, o
enfrentamento do racismo, combinando os campos jurídico, moral e semântico – resultando
crime e vexação –, pode, como reflexo, gerar a própria negação discursiva da sua existência,
não apenas pela população em geral, mas também por instituições jurídicas. Não farei um
profundo apanhado histórico de como se construiu a lei atual, mas me empenharei em esclarecer
como sua definição, ao mesmo tempo em que incrimina atitudes, estimula silêncios sociais e
institucionais.
Não é possível falar da lei vigente contra o racismo sem mencionar a precursora “Lei
Afonso Arinos”. Aprovada em 3 de julho de 1951 e batizada com o nome do seu idealizador, o
deputado federal Afonso Arinos, a Lei 1.390 transformou o racismo em contravenção penal43.
O deputado propôs o projeto de lei motivado pelo racismo sofrido pelo seu motorista negro,
que foi impedido de acompanhar sua esposa branca e seus filhos em uma confeitaria do Rio de
Janeiro. No entanto, o projeto de lei só ganhou adesão total e sua aprovação no Congresso
depois do escândalo e indignação gerada pelo racismo sofrido por Katherine Dunham, em 1950.

43
É uma infração penal considerada “crime menor”, punida com prisão simples ou/e pagamento de multa.
63

A famosa bailarina americana foi impedida de se hospedar em um hotel de São Paulo, que não
aceitava negros. Sem dúvida, o fato de a vítima ter sido uma estrangeira e famosa pesou no
sentimento de reprovação ao racismo e ajudou na aprovação da lei. Por vezes, o sentimento de
inferioridade do brasileiro faz com que dedique ao estrangeiro graus de prestígio e adulação
desmesurados. O que se trata de mais uma colonialidade. Não que o caso desmereça indignação,
muito pelo contrário. Mas é possível imaginar quantos negros brasileiros haviam sido
impedidos de frequentar estabelecimentos até o caso de Katherine Dunham? Ou mesmo sofrer
o impedimento, sem que isso causasse comoção, mesmo depois da Lei Afonso Arinos?
De fato, essa lei foi muito criticada, pois não deu ao racismo a gravidade que merecia,
tratando os casos quase que como ‘meros descuidos’. Deixando de observar o racismo de
maneira sistêmica, a lei focava apenas nos atos de recusa, oposição ou negação de acesso de
pessoas negras a determinados lugares. A importância da referida lei se restringiu a dar
visibilidade ao racismo em um momento de grande crença na democracia racial do país, mas
ela foi ineficiente, pois em toda a sua existência não houve sequer um registro de prisão com
base na lei. Por isso, a Lei Afonso Arinos foi revogada e deu lugar à Lei 7.716 de 1989, que
elevou a crime com punição de até cinco anos de prisão, o que era apenas considerado
contravenção penal.
Conhecida como “Lei Caó”, a nova lei transformou a prática do racismo em crime
inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão. O ativista negro e deputado Carlos
Alberto Caó propôs a lei com a seguinte justificação:
O negro deixou, sem dúvida, de ser escravo, mas não conquistou a cidadania. Ainda não tem
acesso aos diferentes planos da vida econômica e política. É mais do que evidente que as
discriminações raciais marcam a sociedade, o Estado e as relações econômicas em nosso País.
Passados cem anos da Lei Áurea, esta é a situação real.

O racismo sofrido pela população negra motivou a criação da lei, mas as regras jurídicas
são válidas para o preconceito e discriminação contra qualquer raça. Ainda hoje, quando há
denúncias de crimes de racismo, os casos geralmente envolvem vítimas da “raça negra”. Para
os indígenas, em algumas situações, o racismo ainda prevalece na explícita segregação de
ambiente, sem que isso gere denúncia formal criminal ou punição. O antropólogo Rodrigo
Ribeiro relata o racismo que acontece com os Tikmũ’ũn, como se autodenomina o povo da TI
Maxakali, situado no nordeste de Minas Gerais, quando precisa comprar coisas:
Via de regra os indígenas são proibidos de entrar nos estabelecimentos, tendo de dizer a um
funcionário qual o item deseja comprar e este o apanha para o Tikmũ’ũn. Os proprietários
alegam que se deixassem os indígenas entrar na loja eles praticariam furtos ou “fariam bagunça”
em seu interior. Certa vez em conversa com Guigui Maxakali, o cacique de Aldeia Nova, ele
me disse que os Tikmũ’ũn tinham mãos, que não eram como os cachorros os quais apanhavam
64

as coisas com a boca e precisam de alguém para levar as coisas até eles. Obviamente nenhum
Tikmũ’ũn ignora o tom vexatório desta situação. (RIBEIRO, 2016, p 15 e 16)

A segregação em estabelecimentos comerciais que motivou a criação da primeira lei


contra o racismo no Brasil, em 1951, ainda é explicita em casos que envolvem povos indígenas,
como os dos Maxakali. Assim, por mais que tenha havido avanços na lei contra o racismo, ela
ainda não é entendida socialmente como uma lei para punir práticas de racismo contra os
indígenas. Um outro exemplo dessa segregação racial contra indígena, aconteceu no
Restaurante Universitário da Universidade Federal de Roraima (UFRR), em 9/1/ 2016. Observe
que o caso foi descrito como preconceito e não como racismo. Mas, tendo ocorrido em um
ambiente mais informado o caso foi denunciado como crime de racismo. Segue a nota:
Um caso de preconceito ocorrido no Restaurante Universitário da Universidade Federal de
Roraima (UFRR) surpreendeu a comunidade acadêmica e a sociedade em geral. Um grupo de
quatro alunos indígenas sofreu preconceitos por parte de outros alunos que zombaram dos
costumes e características físicas deles. O caso gerou a abertura de um inquérito na própria
instituição de ensino e nas polícias Federal e Civil. 44

Desprezo pelo popular. O “outro” abaixo da “linha do humano”

O racismo é “estrutural e institucionalizado” e “permeia todas as áreas da vida” da


sociedade brasileira, conforme releva estudo da ONU de 2014 sobre a discriminação racial no
país. Mais do que lupas para enxergar casos isolados, se faz necessário um olhar macro que
permita refletir amplamente sobre a realidade social. O que é a profunda desigualdade social
senão um espelho de uma sociedade que não vê a si mesma como racialmente dividida? O
popular é desprezado e os serviços públicos destinados ao povo estão precarizados. Educação,
saúde, segurança estão sendo arruinados por uma classe política centrada nos próprios
interesses. Políticos estes, quase todos homens brancos45, que em sua maioria representam os
interesses de uma elite retrógrada e conservadora e que chamou a atenção internacionalmente,
quando da votação que deu sequência ao pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff,
em abril de 2016.

44
http://www.folhabv.com.br/noticia/Indigenas-sofrem-preconceito-na-UFRR/12925
45
0,3% dos 1.675 candidatos eleitos nas eleições de 2014 se declararam negros. 76% de brancos venceram.
Nenhum negro venceu para cargos de maior prestígio como senadores ou governadores. O senado brasileiro é
composto por 81 senadores, dos quais 64 são homens brancos, seis são homens negros, e 10 são mulheres brancas.
Apenas 1 é negra (http://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160509_perfil_senado_impeachment_if_rm).
65

Figura 13: Gráfico Desigualdade racial na Política46

O site da Câmara dos Deputados divulgou um levantamento dos políticos eleitos em


2014. Do universo de 513 deputados: 410 se declararam brancos (79,9%); 81 se disseram pardos
(15,79%); e apenas 22 deputados são pretos (4,9%). Nenhum índio ocupa cadeira na Câmara
dos Deputados. O que não é novidade, pois ao longo da história da República do Brasil, só
houve um parlamentar indígena. Mário Juruna foi o primeiro e único deputado federal indígena
no país. Cacique xavante, ele ficou conhecido no final da década de 1970, quando na luta pela
devolução das terras indígenas do seu povo, registrava todas as promessas de altos funcionários
do governo em seu gravador e concluía “homem branco mente muito”. Foi eleito em 1982 e
exerceu entre 1983 a 1987. Durante todo o período do seu mandato, mídia e políticos, tentavam
o ridicularizar. A TV Globo criou como personagem cômico um índio que mal sabia falar o
português.
Destemido, Mario Juruna não se curvou à pressão que sofria, e criou a Comissão
Permanente do Índio no Congresso Nacional, que fez a problemática indígena ser reconhecida
oficialmente. Enfrentava generais em plena ditadura militar, e denunciou as várias formas de
corrupção que permeava todos os setores do Governo Federal. Foi o único deputado que
devolveu publicamente uma tentativa de suborno. Entregou os 30 milhões de cruzeiros que o
empresário Calim Eid, o ofereceu para votar em Paulo Maluf, candidato dos militares à

46
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/brancos-serao-quase-80-da-camara-dos-deputados-3603.html
66

Presidência da República. Causou ódio e furor nos adversários e foi difamado pela mídia. Darcy
Ribeiro o defendeu:
Este índio novo, tão melhor armado para a sua própria defesa, provoca grandes antipatias. O seu
símbolo maior, Mário Juruna, chega a desencadear ódios como se fosse um ser detestável. É
profundamente lamentável que até a imprensa mais respeitável do país, a exemplo do Jornal do
Brasil, tenha mantido, durante anos, uma campanha sistemática de desinformação contra o
deputado Mário Juruna, através dos procedimentos mais antiéticos, indignos da sua tradição
jornalística. (apud Menezes, 2015, p. )

A grande imprensa não deu trégua ao construir uma imagem nociva mesmo sustentando
uma aparente neutralidade. Retratava Juruna como um ser quase incapaz, que mal sabia falar o
português. Sem o menor cuidado e revisão, os jornais reproduziam seu discurso de maneira
esdrúxula tornando o texto incompreensível, prejudicando gravemente sua carreira política,
afetando sua grande popularidade e destruindo sua carreira política. Um tratamento
completamente diverso era destinado às falas do embaixador dos Estados Unidos, que falava o
português com o mesmo grau de dificuldade de Mario Juruna, mas que tinha suas falas
perfeitamente corrigidas a fim de se tornarem textos plenamente compreensíveis. “As
consequências desta campanha da imprensa estenderam-se para muito além da carreira política
do líder xavante, posto que a imagem negativa de Juruna terminou por afetar desfavoravelmente
outros xavante e – se a eleição para um cargo federal for usada como medida – todos os povos
indígenas do Brasil” afirmou Grahan (2011, p. 273). Embora, essa campanha destrutiva ao
deputado índio afetasse diretamente a imagem dos indígenas, ela não foi denunciada como uma
atitude racista da imprensa brasileira.
Figura 14: Mario Juruna

Fonte: http://jesusdacosta.blogspot.com.br/2013/07/
67

Logo em seu primeiro discurso, Juruna mostrou que seu mandato não seria dedicado
apenas aos índios. Ele enxergava a condição social e igualava o pobre trabalhador ao índio, os
distinguindo completamente dos políticos, que eram filhos de empresários ricos ou de outros
políticos. O líder xavante Mario Juruna não foi reeleito. Morreu pobre aos 59 anos de idade. O
seu mandato incomodou tanto porque a denúncia era sua arma e ele agia em nome do povo,
dando valor ao popular. Mas o que o popular tem a ver com o racismo?
Um texto que circula nos sites do movimento negro diz que, para se constatar o racismo
no Brasil, basta fazer o ‘teste do pescoço’, que seria girar a cabeça para ver em determinados
ambientes - como restaurantes, escolas e hospitais particulares, universidades, shoppings, entre
outros lugares – quantos negros existem, no caso de existirem. Por outro lado, o teste serviria
também para contar quantos são os negros servindo como garçons, pessoal de limpeza,
empregados domésticos, ou mesmo sendo linchados, presos e assassinados pelas polícias.
Frequentando feiras e espaços populares de Belém ou simplesmente em ônibus urbanos é
possível ver, para além da condição econômica, cor e características físicas de uma população
não branca: traços, peles, cabelos de uma população de afro e/ou de indígena descendência.
As escolas municipais e estaduais estão degradadas. Hospitais públicos cada vez mais
abandonados. Praças se deteriorando. A quem interessa o que é público? Por sua vez, espaços
públicos destinados ao turismo ainda seguem um padrão de qualidade, onde as pessoas podem
circular à vontade sem temer pela segurança. Quem são os frequentadores desses lugares?
Certamente não são, em sua maioria, os mesmos frequentadores dos demais espaços populares.
Entre os frequentadores desses espaços sofisticados estão alguns políticos representantes do
povo. O chamado ‘povão’ tem cor e traços e, no Pará, esses são afrodescendentes e indígenas.
Eles e seus espaços não parecem ser prioridade para as políticas governamentais. Isso aprofunda
a fratura da desigualdade social e cria por um lado a manutenção de privilégios e por outro um
deprimente estado de carência dos bens mais básicos nos lugares populares. Se é assim, como
essa estrutura político-social não seria racista?
Apesar de o racismo ser o pilar das desigualdades e injustiças sociais que marcam a
sociedade brasileira, ela não se reconhece racista. Embora seja evidente a distância que separa
os pretos e pardos dos “brancos’, “racista é sempre o outro”, conforme revelou pesquisa do
Datafolha realizada em 2008. Os resultados da pesquisa não se mostraram muito diferentes
daquela realizada em 1995 pelo mesmo instituto: o brasileiro é plenamente capaz de identificar
o preconceito no outro, mas raramente em si mesmo. Dentre os entrevistados, 91% afirmam
que os brancos têm preconceito de cor em relação ao negro. Porém apenas 3% (excluindo os
autodeclarados pretos) admitiram ter preconceito. A proporção das respostas no caso contrário
68

foi equivalente: 63% afirmaram que os negros têm preconceito em relação a brancos, mas
apenas 7% (excluindo os brancos) disseram ter preconceito. Os dados revelam que no Brasil o
racismo existe, mas está sempre no outro.
Racismo no Brasil é crime inafiançável e imprescritível, e também por isso está sempre
no outro. Melhor ainda é acreditar que ele não existe. Ou achar que, se existe, são apenas casos
isolados, sempre envolvendo terceiros. Foi o que revelou a pesquisa. Não se trata apenas da não
inclusão da população negra e indígena em cargos e no mercado de trabalho melhor
remunerado. Trata-se do desprezo pelo que é popular.
O popular está situado abaixo da “linha do humano” ou na “zona do não-ser”, onde o
“outro” não é reconhecido na sua humanidade e se torna sub-humano, onde autores pós-
coloniais e descoloniais, entre os quais Frantz Fanon, Ramón Grosfoguel e Boaventura de Sousa
Santos, reconhecem estar situados os que são tratados de forma racista, sem direitos, sem
civilidade, sujeitos a violências, violações e apropriações.
69

III - “MORTE QUE MATA A GENTE DENTRO”

O capítulo traz um panorama histórico de como os nativos foram nomeados índios,


batizados e depois exterminados física e culturalmente. O primeiro tópico “Brasil 500 anos”
faz uma ligação entre passado e presente, revelando como, quinhentos anos depois da chegada
dos portugueses em terras brasileiras, o modelo de reprodução da violência permanece. Uma
violência física, mas também simbólica que despreza o “outro” e o inferioriza. As
comemorações dos 500 anos do “descobrimento”, falso e eurocêntrico marco inaugural,
marcam a união do movimento de auto-afirmação indígena do baixo Tapajós ao movimento
indígena nacional. Indígenas resistentes que se afirmam e se transformam em sujeitos de sua
história. No tópico “Desencontro” o foco é na história da colonização na região amazônica,
relatando a violência das missões jesuíticas e como a grande população indígena, quando não
exterminada fisicamente, foi sacrificada ao ser convertida. O tópico “De índio a tapuio” mostra
como as missões jesuíticas serviram de apoio aos colonizadores para matar etnias,
transformando o nativo em índio genérico, o tapuio. Com a implantação do Diretório Indígena,
por Marquês de Pombal, tentou-se mais uma vez anular a indianidade no nativo, inclusive com
a proibição de línguas que não fossem o português. Nesse período a mestiçagem foi incentivada
com intenção de formar uma população mais afinada com Portugal, ou seja, mais branca, que
aculturada servisse para proteger as terras amazônicas de possíveis “invasores”. Nesse
momento em que se tentou matar a cultura dos nativos, muitos tapuios foram transformados em
caboclos. Todas essas etapas da história da colonização e de transformação induzida do povo
nativo mostram que o projeto político de branqueamento da sociedade brasileira, que se
desenhou científica e politicamente na virada do século XIX para o século XX, começou bem
antes de ser oficializado como tal.

Brasil 500 anos


Até poucos anos atrás, a pergunta “Quem descobriu o Brasil? ” era costumeiramente
dirigida às crianças a fim de testar conhecimento. Aqueles que respondiam “Pedro Álvares
Cabral” recebiam elogios. Ainda hoje há quem repita a mesma pergunta, especialmente a cada
22 de abril, data em que é celebrado o “descobrimento” do Brasil. Nesse dia, no ano de 1.500,
a frota comandada por Cabral chegou pela primeira vez nas terras brasileiras, inicialmente
chamada de Terra de Vera Cruz. Embora há quem defenda que outros navegantes47 tenham

47
O português Duarte Pacheco Pereira teria passado entre os Estados do Pará e do Maranhão em 1498 e o espanhol
Vicente Yañez Pinzón teria passado pelo norte do Brasil em janeiro de 1500.
70

passado por aqui antes, o nome de Cabral ficou famoso e eternizado em ruas, avenidas e praças
espalhadas de Norte a Sul do Brasil.

A eurocêntrica ideia do “descobrimento do Brasil” desconsidera a numerosa população


nativa que os portugueses encontraram nessas terras. A estimativa é que havia milhões de
nativos que falavam cerca de 1.300 línguas. Toda essa diversidade cultural e linguística talvez
tenha sido diferença demais para ser entendida e considerada relevante para os conquistadores
ávidos por riquezas, materializadas em metais preciosos. No primeiro documento redigido no
Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, D. Manoel, dentre descrições dos
homens que aqui encontraram, com ênfase à sua inocência e elogios às suas feições 48, dois
interesses se destacam: o de encontrar ouro e prata e o de salvar aquelas almas através do
cristianismo. Em um trecho, a carta informa sobre a interpretação cheia de cobiça dos
navegadores em relação aos gestos e olhares dos nativos:

Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à
terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou
para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como
se lá também houvesse prata!

A princípio não acharam nem ouro, nem prata, mas logo notaram que a terra era coberta
de uma árvore com alto valor no mercado: o Pau Brasil. A intensa exploração do Pau Brasil deu
o novo nome a essa terra, e os homens que extraíam a árvore, os brasileiros, deram nome ao
povo que se formou. Ao nativo da terra, independente do povo a que pertencia, chamaram-no
índio. Como índios, eles foram violentados, inferiorizados, compactados e anulados pelo
colonizador em suas diferenças. A “descoberta” dessas terras pelos portugueses marca o início
de uma história violenta do Brasil que apaga histórias correspondentes às organizações sociais,
culturais, territoriais e espirituais dos povos que pertenciam a essas terras. Era como se tudo
que se referisse à Pindorama49 – o Brasil antes da invasão portuguesa - não merecesse ser
contado ou registrado, a fim de não legitimar ocupantes e seus ancestrais como legítimos donos
desse vasto território. Atualmente, a palavra descobrimento vem sendo lentamente substituída
pela palavra conquista, em uma nova tentativa errônea de se aproximar da real história de
invasão dessas terras.

48
“A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus,
sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar
a cara. Acerca disso são de grande inocência” (1968, p. 2).
49
Palavra de origem Tupi que significa terra das palmeiras e era como os povos ando-peruanos chamavam a terra
que hoje é o Brasil (CASTANHA, 2007).
71

Quinhentos anos depois do primeiro contato entre indígenas e portugueses, o governo


brasileiro organizou faustosa programação, no ano 2000, para celebrar o aniversário de meio
século do Brasil. Para a ocasião da festa do “Brasil 500 anos”, planejou-se reproduzir de forma
fantasiosa o momento do encontro entre ‘novo’ e ‘velho’ mundo. O ‘novo’ seria a fração
europeia representada por Portugal que chegou trazendo a ‘civilização’ para um mundo cujos
habitantes os invasores a princípio consideraram ‘selvagens’ demais para serem humanos.
Passado todo esse tempo, a atitude de dominação e desrespeito em relação aos povos originários
em pouca coisa mudou. O governo federal, sob o comando do então presidente Fernando
Henrique Cardoso, investiu em parafernálias grandiosas ao mesmo tempo em que negligenciava
as demandas dos povos indígenas.
Figura 15: “Primeira missa no Brasil”, de Victor Meirelles (1860)

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5d/Meirelles-primeiramissa2.jpg

O governo brasileiro gastou quatro milhões de reais para construir réplica da nau usada
por Cabral para reproduzir o momento da chegada dos portugueses nas terras de cá. A caravela,
construída agora com tecnologia moderna, tentou por quatro vezes navegar sem sucesso, devido
a falhas técnicas. Depois das desastrosas tentativas de navegação, ela foi destinada a compor
um museu. Não bastasse a soberba de construir uma caravela, outro projeto grandioso se
materializava em sessenta toneladas de metal e pedras usados para reproduzir um altar, cujo
72

centro fora simbolizado com uma cruz de dezessete metros de altura. O ostensivo conjunto50,
que custou nada menos que meio milhão de reais, simbolizava a primeira missa celebrada no
Brasil. Reproduzindo uma atitude colonizadora, o Governo Federal impôs essa construção no
meio da Terra Indígena de Coroa Vermelha, sem consultar as mais de trezentas famílias
indígenas que ali viviam em uma aldeia em condições precárias. Na época, Paulo Maldos51,
assessor político do Conselho Indígena Missionário (CIMI), denunciou a simbologia do
conjunto como intenção do governo de recolonizar os territórios indígenas:

A arrogância feita de metal e pedra agride e anula tudo ao redor, como os efeitos de uma bomba
ou de um gás paralisante. Com relação à comunidade indígena Pataxó de Coroa Vermelha,
obrigada a aceitá-lo sem conhecer, o conjunto invasor significa a afirmação do poder do Estado,
da sociedade européia, ocidental e pretensamente cristã. Com relação aos demais povos
indígenas do Brasil, para onde o monumento necessariamente espalha seu significado, ele
projeta a mesma sombra: a do controle opressor do Estado nacional, espalha a exigência da
obediência, espalha o constrangimento e o medo frente ao poder.

A imagem mostra a opressão visual do conjunto arquitetônico de gosto duvidoso. Vejo


o monumento como uma grande lápide, no qual a dimensão da cruz faz lembrar o genocídio
indígena.
Figura 16: Monumento simbolizando a primeira missa no Brasil

Foto: Luiz Maffei Prieto Fernandes

Segundo Maldos, o medo que a obra poderia espalhar é enfrentado corajosamente pelos
indígenas que, sem ter o que comemorar, aproveitaram a ocasião do “Brasil 500 anos” para
reivindicar e protestar. Na ação do Governo percebe-se explicitamente a colonialidade do poder
(QUIJANO, 1997), que em uma condição pós-colonial reproduz a história em ações
colonizadoras internas, mediante a imposição de atitudes e pensamentos de dominação do

50
O projeto idealizado pelo escultor Mário Cravo, a convite do Governo Federal, custou meio milhão de reais.
51
Ver em “A cruz do colonizador”: http://www2.uol.com.br/aregiao/art/indcruz.htm
73

Outro. Para enfrentar esse poder imposto pelo Estado, vários grupos de todo o Brasil se
encontraram na aldeia pataxó de Coroa Vermelha, no sul da Bahia, para denunciar invasões,
genocídios e atrocidades enfrentados pelos povos indígenas desde a chegada dos portugueses.
Os indígenas, junto com estudantes e representantes de outras minorias, formaram o
movimento “Outros 500” e decidiram caminhar em passeata pacífica até a cidade de Porto
Seguro. Todavia, a rodovia foi bloqueada pelo batalhão de choque da polícia militar, que ao
avistá-los lançou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha com total desprezo e
violâcia. Trinta pessoas foram feridas, dentre elas nenhum militar. Só naquele evento houve
mais de cento e cinquenta manifestantes presos. A violência militar reproduzia o racismo com
que os indígenas foram desde sempre tratados, tanto pelos colonizadores quanto pelo Estado
Brasileiro. Mais uma vez a legítima violência do Estado mostrou seu poder em atitude que
reproduz, meio século depois, toda a brutalidade da colonização.
Na ocasião do “Brasil 500 anos”, três mil indígenas de cento e cinquenta povos de todo
o Brasil se reuniram na “Conferência do Povos Indígenas”, em Coroa Vermelha. Eles se
encontraram para denunciar a violência histórica e exigir um futuro com mais respeito e
dignidade. Foi a primeira vez que os povos do baixo Tapajós, auto-afirmados indígenas e
ressurgidos na história, participaram de uma conferência indígena. Por essa razão, o encontro
significou um marco para o movimento indígena do baixo Tapajós: um momento de orgulho,
afirmação e pertencimento em um coletivo que os fortalecia. Os indígenas do baixo Tapajós
denunciaram os abusos sofridos agora no presente e retomaram a história no relato do frei
Gaspar de Carvajal, participante da expedição de Francisco de Orellana, que descreve os
Tapajós como um grande povoado de complexa cultura material, onde hoje se situa a cidade de
Santarém (PORRO, 2008).

Desencontro
Antes da chegada de Cabral, na Amazônia viviam pelo menos oito milhões de pessoas.
Foi o que apontou pesquisa realizada por uma equipe liderada por Charles Clement (2015) do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). De acordo com dados do IBGE, esse
número de habitantes só foi atingido pelo Brasil “branco” no final do século XIX, isso somadas
todas as regiões do país. A pesquisa revelou que, há quatro mil anos, mais de oitenta espécies
de plantas selvagens foram domesticadas52. Os arqueólogos encontraram indícios dessa larga
ocupação da Amazônia através de restos de amplas estradas, diques e paliçadas defensivas;

52
Entre elas o cacau, batata, abacaxi, mandioca, tabaco, açaí e cupuaçu (CLEMENT et al, 2015).
74

resquícios de manejo dos rios para captura de peixe em larga escala 53; e produção de uma
cerâmica complexa54, que sugere sistemas de hierarquia e de mão de obra semiespecializada.
A despeito dessa longa história que abrange desde a construção de artefatos à uma
complexa tecnologia de cultivo, os europeus que aqui chegaram consideraram todos os grupos
e culturas indígenas como uma coisa só. Os compactaram, os homogeneizaram e os
consideraram parte indissociável da natureza. De forma que, para portugueses, de um lado
estava a “civilização” por eles representada, e de outro uma massa de índios tidos como
“primitivos”. Os invasores se apropriaram deste chão, chamando todas as formações
geográficas com nomes de santos (CUNHA, 2006), adestraram pessoas e batizaram-nas com
os mesmos nomes. Com a mesma facilidade com que abriram clareiras, destruindo mata e
explorando tudo o que dela lhes servia, esvaziaram quase toda essa terra de suas gentes. Esse
genocídio que começou no período colonial, de certa forma prevalece até os dias de hoje.
Os acidentes geográficos -montes, baías, ilhas, campos- foram desenhados, traçados em
mapas, enquanto as populações indígenas foram invisibilizadas e exterminadas. O índio
destituído de sua humanidade foi considerado como mais um elemento da rica e variada
natureza local. A ideia do índio como parte da natureza, plantada durante a invasão e
colonização, persiste até os dias atuais. Recentemente, o IBGE lançou o Atlas Nacional Digital
do Brasil 2016, com caderno temático sobre os indígenas e mapas interativos. O G1 do grupo
Globo, um dos canais digitais mais acessados do país, divulgou a notícia no caderno
“Natureza”55, junto com matérias sobre jacarés, ursos, peixes e leões. Assim como os invasores
do século XVI exterminavam nativos com a mesma brutalidade com que extraiam árvores, os
meios de comunicação hegemônicos do século XXI exterminam os povos indígenas da
sociedade, ao divulgar suas notícias na mesma seção que comunica sobre animais ou sobre o
desmatamento. Nas redes sociais, ativistas, estudantes e pessoas aficionadas à causa indígena
compartilharam a informação, sem se dar conta de que a notícia vinculada à natureza é parte de
um senso comum que ainda percebe o indígena como um ser selvagem e natural, e não social.
Fato é que o “encontro” entre o antigo e o novo mundo foi dilacerador para as
populações nativas. Mais adequado seria nominá-lo desencontro. Desencontro de visões de
mundo, de formas de viver, vestir, comer, crer, morrer56. De milhões, quando do contato, a

53
Na região do Xingu.
54
Na ilha do Marajó e na região Oeste do Pará.
55
Publicada no dia 02/07/2016 - http://g1.globo.com/natureza/noticia/2016/07/305-etnias-e-274-linguas-estudo-
revela-riqueza-cultural-entre-indios-no-brasil.html
56
“Para
os
que
chegavam,
o
mundo
em
que
entravam
era
a
arena
dos seus ganhos,
em ouro
e
glórias.

Para
os
índios
que
ali
estavam, nus na praia o mundo era um luxo de se viver. Esse foi o encontro fatal que ali
se
dera.
Ao
 longo
das
praias
brasileiras
de
1500,
se
defrontaram,
pasmos
de
se
verem
 uns
aos
outros

75

população indígena foi reduzida a menos de 100 mil em 1957 (RIBEIRO, 2009 [1970]). Como
se sabe, a primeira grande causa da depopulação indígena foram as epidemias trazidas pelos
europeus, que primeiro dizimaram os indígenas concentrados e aldeados por missionários e
órgãos oficiais (CUNHA, 2006). Além disso, a sede por escravos, para prover de mercadorias
o capitalismo mercantil, fez com que o colonizador fomentasse guerras entre os grupos
indígenas. As guerras combinadas com toda a crueldade da colonização trouxeram fome,
deslocamentos, desestruturação social dos grupos indígenas e luta para sobreviver alhures.
Esses eventos marcaram o início do genocídio indígena, que na região amazônica se estendeu
de maneira brutal até o período ditatorial.
Com dimensão continental e densa mata, a Amazônia só ganhou atenção da Coroa
Portuguesa entre os séculos XVII e XVIII, tendo sido os jesuítas os responsáveis pela sua
ocupação (ibidem). Nesse período, a cobiça era destinada à exploração das drogas do sertão 57
associada à exploração do trabalho indígena. Com o intuito de devassar e explorar os produtos
da floresta, Darcy Ribeiro afirma:
Os índios foram aliciados desde a primeira hora, através de toda a sorte de compulsões, desde a
“sujigação” e o descimento para as missões e núcleos coloniais até técnicas mais manhosas,
como a de acostumá-los ao uso de artigos mercantis cujo fornecimento posterior era
condicionado à sua participação nas atividades produtivas como mão de obra para todo serviço”
(2009 [1996], p. 36).

Os maiores conhecedores das especiarias amazônicas eram os nativos, logo


transformados em mão de obra escrava para a colheita. A Coroa tinha como objetivo garantir o
território e protegê-lo dos “invasores”, especialmente dos franceses e dos holandeses, que
continuamente o ameaçavam. No século seguinte, os colonizadores portugueses continuaram a
ocupação das terras amazônicas, pois garantir o território fazia parte das metas do Império58.

De índio a tapuio

No imaginário e na realidade, a Amazônia sempre foi vista como fonte de recursos


inesgotáveis. Uma lenda indígena conta sobre a existência do “eldorado”: lugar de tesouros

tal
qual
eram,
a
selvageria
e
a
civilização.
Suas
concepções,
 não
 só
 diferentes
mas
 opostas,



do
mundo,
 da
 vida,
 da
morte,
 do
 amor,
 se
 chocaram
 cruamente.
 Os
 navegantes,
 barbudos,

hirsutos,
 fedentos,
 escalavrados
de
feridas
de
escorbuto,
olhavam
o
que
parecia
ser
a
inocência
 e
 a

beleza
 encarnadas.
 Os
 índios,
 esplêndidos
 de
 vigor
 e
 de
 beleza,
 viam,

ainda
mais
pasmos,
aqueles
seres
que
saíam
do
mar”.
Escreveu poeticamente Darci Ribeiro na contra capa
do seu livro o Povo Brasileiro – A formação e o sentido do Brasil (1995).
57
Especiarias como ervas aromáticas, plantas medicinais, cacau, canela, baunilha, cravo, castanha.
58
O período Imperial foi de 1822 a 1889.
76

inimagináveis, que atiçava a cobiça dos primeiros colonizadores. Cobiça materializada em


desprezo, violência e extermínios dos homens que ali viviam. Tesouros que na realidade não se
apresentaram em forma de ouro e pedras preciosas (apesar de a região ter proporcionado
também esse tipo de riqueza), mas na exploração de alguns produtos que consolidaram ciclos
econômicos. A cada ciclo criaram-se laços entre a região e o mercado externo e, assim como
os produtos, a maior parte dos lucros foi exportada. Os povos da região, quando não foram
exterminados, foram explorados por novas modalidades de uma “escravização” disfarçada em
relações de trabalho desumanas, que se reproduziram ao longo do tempo.
Grandes lucros foram gerados, mas a população local foi sacrificada a cada novo ciclo
econômico. Ao fim de cada ciclo, seja por esgotamento do produto ou por baixa valorização no
mercado, a população que se tornava dependente da extração de um produto específico ficava
desamparada e a região economicamente estagnada. A condição do baixo Tapajós como
fronteira econômica, a ser apropriada para a exploração de recursos naturais, se iniciou quando
o capitão Pedro Teixeira chegou pela primeira vez na região no século XVII. Acompanhado de
jesuítas, o capitão incorporou esse pedaço da colônia aos interesses lucrativos de Portugal,
dando início ao primeiro ciclo econômico: a extração das drogas do sertão59.
Expandindo o domínio da coroa para o Oeste em 1626, o capitão Pedro Teixeira chegou
à baía de Alter Chão. Ele comandava uma tropa de resgate, que capturava índios escravizados
por tribos divergentes. Na intenção de “resgatá-los”, de um lado estava o desejo de catequizá-
los pelos jesuítas da Companhia de Jesus, e de outro utilizá-los como mão de obra escrava para
a colheita das drogas do sertão pelos colonizadores. “Tudo devia estar a cargo desse braço
nativo, imprescindível, pois, para que se efetuasse, dinamizasse e frutificasse a empresa do
domínio” (REIS 1979, p.14). Esse braço nativo foi utilizado para a extração de madeira e de
outros produtos de valor econômico, sendo desfrutado também pelos jesuítas, que fundaram a
missão dos Tupaiu de Nossa Senhora da Conceição em 1661, lugar onde nasceu a cidade de
Santarém.
Através das missões jesuíticas, a Igreja Católica foi também responsável pela
desestruturação da vida social e cultural dos grupos indígenas que conseguiu alcançar. Embora
alguns historiadores afirmem que as missões60 buscavam introduzir o cristianismo e o modo de
vida europeizado respeitando os valores culturais indígenas, os jesuítas efetuaram na prática o
total desprezo pelo “outro”, o inferiorizando e condenando suas práticas e modos de vida, pois
estava na gênese das missões arrancar traços culturais, crenças e comportamentos dos nativos.

59
Coletavam cacau, cravo, salsa e guaraná.
60
As missões eram também chamadas “reduções”.
77

As culturas dos nativos eram demasiadas distintas para serem compatíveis com os valores
eurocêntricos cristãos. Ou seja, a missão era a de desindianizar a partir do discurso da salvação
das almas, e assim formar uma sociedade cristã aos moldes da civilização europeia. O
historiador Ferreira Reis demonstra a sistemática redução da gentilidade indígena na região,
dado que em 1719 “havia 35 mil índios batizados na missão” (REIS 1979, p. 24/33).
De tão incapaz de compreender e respeitar a cultura dos nativos, a missão foi “o centro
por excelência de destribalização e de homogeneização deculturativa (...). O produto final é o
índio privado de sua identidade étnica, o tapuio” (MOREIRA NETO, 1988, p.23). De acordo
com o antropólogo Carlos Moreira Neto61 (1988), o tapuio era então o nativo que arrancado do
seu grupo de origem, violentado em sua identidade, se transformava no índio destribalizado e
etnicamente deculturado. O tapuio é o índio impossibilitado de entender a sua origem étnica,
de resgatar seu caminho de ancestralidade, de praticar a espiritualidade e a tradição do grupo
do qual se originou, não por opção, mas por desconhecer sua própria raiz. O índio, sempre
rejeitado pela sociedade branca colonizadora, foi remodelado com o auxílio dos missionários e
transformado em tapuio, e continuou sendo desprezado.
A sociedade dominante não enxergava o índio como uma pessoa, mas sim como uma
categoria genérica. O índio tapuio teve grande dificuldade de reconstruir modo de vida, crenças,
comportamentos por desconhecer sua própria origem e também por ter sido submetido a aderir
cultura e crença impostas pelos jesuítas. Para Moreira Neto (1988) nada caracterizava mais o
estado colonial do nativo do que o anonimato e a impessoalidade. Essa condição de quase
inexistência atravessa a condição dos nativos com seus respectivos grupos étnicos bem
identificados, passa pelo índio violentado em sua identidade, o tapuio, e alcança a condição do
caboclo, como é chamada atualmente grande parte dos habitantes da Amazônia rural.

De tapuio a caboclo
O século XVIII foi marcado pela assinatura do Tratado de Madri62 em 1750, que
acarretou consequências dramáticas para a vida do índio. O tratado colocava fim a uma disputa

61
Carlos Moreira Neto buscou compreender profundamente a categoria pouco conhecida Tapuio, revelada no livro
de sua autoria “Índios da Amazônia. De maioria à minoria. 1750 – 1850” (1988). Moreira Neto faz um estudo
detalhado dos mecanismos oficiais e extraoficiais que “civilizaram” o índio, deculturando-o e matando-o da
história.
62
Acordo firmado pelos reis João V de Portugal e Fernando VI da Espanha, na capital espanhola, em 13 de janeiro
de 1950.
78

histórica por territórios entre Portugal e Espanha nas colônias sul-americanas, concedendo à
Portugal mais ganhos territoriais na parte Norte, ou seja, na região Amazônica63. Assim, uma
nova estratégia foi formada para dinamizar economicamente a região. Dentre as ações da Coroa,
a partir das políticas implantadas por Marquês de Pombal64, estava a criação da Companhia
Geral de Comércio do Maranhão e Grão-Pará, que serviu à importação de escravos africanos
em grande escala a fim de desenvolver a agricultura e o comércio. Até sua criação em 1755,
cerca de 3.000 africanos escravizados entraram na região, número que saltou para 12.000 no
período de 1755 a 1777. Fato que deu uma nova face à população local. Além disso, o
posicionamento contrário à instalação da Companhia Geral de Comércio por parte dos jesuítas,
aliada aos seus interesses particulares, fez com que Portugal se sentisse ameaçado em sua
soberania e tomasse a decisão de expulsá-los dos seus domínios.
Para garantir a posse e o usufruto da região, a Coroa portuguesa instalou o Diretório dos
Índios em 1757, com o claro objetivo de “civilizar”. O Diretório transformava os aldeamentos
indígenas, organizados pelos jesuítas, em vilas e aldeias administradas por um diretor.
Assegurava a liberdade ao índio, mas impunha normas que golpeavam ainda mais suas
identidades culturais. Uma delas foi a implantação de escolas com o uso exclusivo da língua
portuguesa, ficando proibido falar em qualquer outro idioma. A punição era a de morte para
quem ousasse usar a “língua brasileira” (conhecida como nheengatu ou a língua geral). A nudez
e as habitações coletivas foram proibidas. Além disso, os índios foram obrigados a adotar
sobrenomes portugueses.

Tais políticas haveriam de considerar os índios enquanto colonos à semelhança dos vassalos
europeus. Em sintonia com o Diretório, outras medidas almejavam este intento: a lei de
incentivos de casamentos entre índios e europeus, o Alvará de liberdade dos índios, o Alvará
que retirava o poder temporal dos missionários sobre os aldeamentos e destinava aos índios a
gerência das povoações que habitavam, e, finalmente a elevação dos aldeamentos em vilas.
(ROCHA, 2009: 7 – 8).

Tais políticas causaram enorme confusão marcada por uma nova fase de submissão,
pois o Diretório significava ligar as populações indígenas aldeadas diretamente ao sistema
colonial, sem a intermediação dos jesuítas. E acarretaram “extraordinariamente o processo de

63
Maria Regina Celestino de Almeida informa que a colonização da Amazônia não foi homogênea, pois enquanto
no Oeste a maioria da população era indígena, a região leste (Belém e arredores) tinha uma presença muito maior
de brancos e negros, sendo mais povoada e mais produtiva (CELESTINO DE ALMEIDA, 1990).
64
Marquês de Pombal foi o primeiro ministro de Portugal entre os anos 1750 – 1777. Ele implantou uma série de
políticas controversas no país e em suas colônias. Tais políticas, chamadas Reformas Pombalinas, geraram
impactos nas esferas econômicas, administrativas e educacionais. A intenção era transformar Portugal em uma
metrópole capitalista, a exemplo da Inglaterra.
79

desorganização e de dominação dessas comunidades, iniciado pela ação missionária”


(MOREIRA NETO, 1988, p. 21). Se antes os brancos eram proibidos de frequentar os
aldeamentos missionários, o Diretório passou a estimular a mestiçagem. A intenção era
incorporar o índio na sociedade dos brancos, através da sua transformação em trabalhador, pois
assim Portugal acreditava garantir o povoamento e a defesa do território colonial.
O Diretório foi extinto em 1798, quando todos os índios sob seu domínio foram
emancipados e deixados à própria sorte. Alguns indígenas refizeram sua vida em novos lugares,
onde estabeleceram lugares sagrados, áreas de cultivo, espaços de reprodução da vida física,
social e espiritual. Perseguidos, esconderam a indianidade para se tornarem brasileiros.
Afastados do perigo que a colonização representava, eles cresceram e se multiplicaram. Muitos
índios transformados em tapuio, com o incentivo à mestiçagem do Diretório, foram depois
classificados racialmente como “caboclos”. No início do século XX, o caboclo foi reconhecido
como uma das raças que constituíam o povo brasileiro. Época em que vigoravam as teorias
biológicas raciais e se projetava um país branco, cujos esforços governamentais eram
direcionados para branquear a população. Nessa classificação racial biologizada, o caboclo é
resultado do cruzamento do índio com o branco português.
Mas a classificação “caboclo”, que a princípio foi alicerçada em termos biológicos, vai
ser legitimada a partir de critérios culturais estabelecidos pelos estudos antropológicos de
Charles Wagley e sucessivamente por Eduardo Galvão na Amazônia. Jonathan Warren em
Racial Revolutions (2001) observa que Wagley combateu o determinismo biológico, ao dizer
que embora misturada aquela população poderia ser indígena, não fosse pela influência cultural
dos colonizadores, o que deslegitimava a sua condição indígena. O pensamento de Wagley e
dos antropólogos da época era o de que se os grupos tivessem sido “contaminados” pela cultura
ocidental, eles perderiam a condição indígena. O fato de não viverem mais como seus
antepassados haviam vivido meio século atrás fazia deles menos índios.
A concepção de cultura estática fez com que a população rural amazônica não fosse
considerada indígena, embora fosse descendente de índios. Essa ultrapassada justificativa
antropológica serviu para consolidar a identidade cabocla e amarrar a imagem do índio ao
passado. Mas esses povos transformados em caboclos jamais se reconheceram como tais, pois
caboclo é nome que carrega consigo um pesado sentido de inferioridade. Caboclo é termo
pejorativo que significa aqueles que são do mato (LIMA, 1999; ARENZ, 2011). A antropóloga
Deborah Lima fez um estudo detalhado sobre o termo caboclo e afirmou que “na Amazônia,
caboclo foi inicialmente usado como sinônimo de tapuio, termo genérico de desprezo que os
povos indígenas usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos” (LIMA, 1999, p.
80

9). A antropóloga retoma Veríssimo (1970 [1878], p. 14 apud LIMA, 1999) para informar que
em tupi a palavra tapuio significa “o hostil, o inimigo, o escravo”. Ela diz que, após a
colonização, o termo tapuio foi usado para “designar o ameríndio assentado e trazia as mesmas
conotações de desprezo que tinha entre os índios” (ibidem, p.10).
O termo caboclo - “aquele que vem do mato” - carrega um sentido negativo (LIMA,
1999, p.6). A denominação é um desprezo, uma depreciação que classifica o negativamente.
Tem sua raiz na condição do índio perseguido, negado. É nome que surge durante o período
colonial da Amazônia, quando se forma o segmento camponês que compunha uma sociedade
profundamente hierarquizada, na qual caboclo ocupava a posição inferior (LIMA, 1999).
A indígena Márcia Kambeba me explicou como grande parte do seu povo perdeu sua
identidade indígena, passando a ser classificado como caboclo:
Restava ao Kambeba três opções: ou ele lutava e era morto, porque a flecha dele não ia resistir
à bala; ou ele se deixava escravizar e ele não queria ser escravizado (...); ou ele fugia pra mata
porque ele era da várzea ou adentrava a terra firme e negava sua identidade. (...). caa = mato;
boc = surgiu, apareceu. Aí você junta kaaboc: aquele que surgiu do mato. Quem que surgiu do
mato senão os indígenas, que são conhecedores dessa natureza, desse meio?

Assim como os Kambeba, vários povos na Amazônia passaram por essa mesma situação
de perseguição e negação, inclusive os Borari e os Arapium. Hoje, conscientes da história, eles
não querem mais se ver amarrados a nomes e definições dados por terceiros, com as quais eles
não se identificam, pois tais palavras são incapazes de expressar o próprio ser. “No caso de uma
palavra com sentido de exclusão como caboclo (em muitos aspectos o pária da sociedade
colonial amazônica), o nome atribui uma identidade que prende o grupo e os sujeitos a uma
imobilidade social. A permanência do nome restringe as possibilidades de emancipação” afirma
Deborah Lima (1999, p.27). Não se reconhecendo caboclos, os indígenas afirmados se
mobilizam na busca por reconhecimento e direitos.
Na introdução de “Índios e Caboclos, a história recontada” (2012), as organizadoras
Maria Rosário de Carvalho e Ana Magda Carvalho fazem uma alusão ao termo tapuia ao
falarem do termo caboclo: “A esse termo pode ter sucedido algo similar ao que ocorreu ao
termo tapuia, categoria englobante de todos os grupos indígenas ‘não Brasis’, portanto não
falantes do tupi” (2012, p. 15). Elas colocam no texto o depoimento de dois Pataxó, na década
de setenta do séc. XX, os quais afirmam que para eles falar de índio era coisa nova, pois eles
sempre se souberam tapuios, depois caboclos e só recentemente Pataxó, e assim ficaram:
“Pataxó toda vida”. Essa nomenclatura identitária imposta mas também reapropriada ao longo
do tempo, a exemplo desses Pataxó, é um processo que revela o quanto a identidade indígena
originária foi deliberadamente anulada por forças oficias que previam apagar de qualquer forma
81

o índio. Não conseguiram no caso dos Pataxó e de tantos outros grupos indígenas que ressurgem
na história.
Depois da extinção do Diretório, seguiram-se anos de agravamento da situação dos
índios na Amazônia, muitos deles emancipados e não mais identificados como índios. As
epidemias de doenças como o sarampo, a escravização e a profunda penúria social formaram o
cenário da maior revolta social na Amazônia e uma das maiores do Brasil: a Cabanagem.
82

IV - CABANOS E SERINGUEIROS - DESTERRITORIALIAÇÃO E


DESINDIANIZAÇÃO

Demonstrar como a questão racial é determinante para a atual conformação da sociedade


amazônica é o objetivo do capítulo. Ao jogar luz sobre o quanto a Cabanagem teve
características de um confronto racial, eu revelo quem é o Cabano tão altivo politicamente e ao
mesmo tempo tão penalizado por suas condições socioeconômicas. Enfatizo a sua descendência
indígena e o quanto essa identidade foi arrancada e transformada em mestiça, para criar sujeitos
submissos em suas condições inferiorizadas. Não obstante essa política de exclusão, cabanos
negros e índios se insurgiram politicamente e confrontaram o poder estabelecido pelos brancos.
A ênfase racial está colocada em muitos documentos e relatos da época e mesmo assim foi
apagada da história oficial para ser entendida apenas como um confronto pautado por
desigualdade social.
Os indígenas auto afirmados do baixo Tapajós reconhecem a luta do “povo contra os
poderosos” e rememoram essa insurgência. Relembram a resistência dos cabanos em
Cuipiranga, as suas estratégias de guerra apesar dos parcos recursos e falam da brutalidade de
um momento em que suas praias foram banhadas de sangue dos cabanos que morreram
defendendo o povo. Os indígenas fazem rituais ligando a resistência de hoje à dos Cabanos e a
de outros momentos em que o povo foi massacrado como no episódio de Eldorado de Carajás,
quando 19 militantes do Movimento Sem Terra (MST) foram assassinados.
A Lei de Terras de 1850 marca um momento em que dois episódios transformaram a
realidade da população amazônica. Primeiro a Cabanagem e logo depois os ciclos da borracha.
Explico a Lei de Terras nesse capítulo para demonstrar como a ideia do branqueamento é
anterior aos esforços oficiais de atração de imigrantes que se consolidou e se fortaleceu a partir
da formação da República do Brasil. A Lei de Terras estabelece a posse somente por compra
ou herança, assim os imigrantes poderiam ter acesso limitado a terras e permaneceriam como
mão de obra assalariada para os barões do café. Os imigrantes brancos substituíram a mão de
obra negra escravizada ao se consolidar leis que resultaram na abolição da escravatura.
Os afrodescendentes não foram considerados merecedores de salários e tampouco foi
dado a eles a chance de adquirir o próprio pedaço de chão para garantir sua sobrevivência.
Foram então destinados a estar na margem da sociedade “sem eira nem beira”, formando a
classe empobrecida economicamente e socialmente desprezada. A reprodução da escravidão
foi permitida por meios legais, já que para garantir sobrevivência os afrodescendentes tiveram
83

que se submeter a trabalhos periféricos com ganhos que mal supriam sua necessidade alimentar.
Sem possibilidade de produzir em uma terra própria, a chance de mobilidade social era nula.
Os indígenas já estavam sofrendo um longo extermínio físico e cultural. A imagem do
indígena estava consolidada a estereótipos que o amarravam a características pré-cabralianas.
Muitos indígenas já haviam sido obrigados a renunciar a suas identidades étnicas e formavam
junto com os afrodescendentes uma população subalterna, engessada em termos de falta de
oportunidades e condições para uma ascensão social. Ao mesmo tempo, outros povos indígenas
ainda não submetidos a essa violência física cultural, especialmente na Amazônia, foram
confrontados durante a invasão de suas terras pelos seringalistas e suas “tropas” de seringueiros
escravizados ávidos por borracha, no primeiro ciclo econômico, que de fato transformaria
cidades e população na Amazônia.
Revelo a condição dos seringueiros que vieram do Nordeste como pessoas rejeitadas
por um padrão “branco” que as elites almejavam para suas capitais nordestinas. Ao mesmo
tempo em que as elites amazônicas modernizavam suas cidades à feição das cidades europeias,
reproduzindo padrões e gostos culturais, em total desprezo pelo que era local. Essa era uma face
evidente da colonialidade que as elites reproduziam, criando um verdadeiro apartamento do
povo pobre e marginalizado.
As populações indígenas tiveram suas terras invadidas e sofreram aterrorizantes
massacres durante o período da borracha, conforme o relato65 de Antônio Pereira, auto afirmado
Cara Preta, do município de Aveiro (PA), que ouviu histórias de um grande massacre e que
reconta talvez usando conotações metafóricas:
Naquele tempo o ouro era a seringa, que dava aquele respaldo danado, eles matavam muito, e
aonde chegavam aquelas crianças, que jogavam as crianças pra cima, aparavam na espada, isso
me revolta, revolta muito a respeito disso, então é por isso que a gente fica revoltado, quando
até mesmo agora tem esses preconceitos, que colocam, que eles falam contra os indígenas (...).
(Depoimento extraído de BELTRÃO, 2015, p. 19).

O racismo, traduzido na violência a que os povos indígenas amazônicos foram


submetidos, fez com que as populações fossem se reconfigurando e que a identidade indígena
fosse se transformando. Uma nota de rodapé no livro “Gente de Costumbre y Gente de Razón”
de Miguel Bartolomé é muito esclarecedora, ao constatar que:
Não é legítimo diferenciar indígenas e não indígenas com base em uma lista de traços culturais,
porque o que realmente importa é a definição identitária. No entanto, deve-se notar que em

65
Relato extraído dos “Povos Indígenas nos rios Tapajós e Arapiuns” organizado por Jane F. Beltrão (2015, p. 19)
84

termos de padrões culturais e vida cotidiana muitas comunidades “mestiças” seriam constituídas
por índios etnicamente descaracterizados66. (2006 [1997], p. 24, traduzido pela autora).

Contudo, é importante enfatizar que, embora a ancestralidade indígena seja importante


e ela possa ser apontada como uma característica inclusive dos nordestinos que povoaram a
Amazônia, para ser indígena é fundamental que exista uma atitude consciente de auto-
afirmação. Quem é chamado ribeirinho, caboclo, trabalhador rural ou mesmo extrativista só é
indígena mediante a autonomeação. O reconhecimento por um grupo corrobora e ainda é fator
relevante. Portanto, a auto-afirmação ou autonomeação é passo decisivo para a indianidade. É
o que considera Bartolomé (2006 [1997]) “ser o no ser indígena representa un acto de
afirmación o de negación linguística y cultural, que excluye la pertinência a un fenótipo racial
particular”.

Cabanos

A revolução social dos cabanos que explodiu em Belém do Pará, em 1835, deixou mais de 30
mil mortos e uma população local que só voltou a crescer significativamente em 1860. Este
movimento matou mestiços, índios e africanos pobres ou escravos, mas também dizimou boa
parte da elite da Amazônia. O principal alvo dos cabanos era os brancos, especialmente os
portugueses mais abastados. (RICCI, 2006: 6)

Esse trecho inicial de artigo67 de Magda Ricci (2006) revela o forte caráter racial da
Cabanagem. Cabanos eram os populares que moravam em habitações precárias, cobertas de
palha, semelhantes a cabanas, e que se insurgiram contra os poderosos da época. Daí o nome
Cabanagem. O movimento teve início em janeiro de 1835 e durou até 1840. Grande parte da
população da Província do Grão-Pará68 foi dizimada durante os confrontos. Vale informar que
a Província do Grão-Pará compreendia a área atual da Amazônia Brasileira, com exceção do
Estado do Acre, que na época ainda pertencia à Bolívia69. Estima-se que houve entre 30 e 40
mil mortos. Foi a única insurreição do país onde o povo tomou o poder.

66
‘no resulta legítimo diferenciar indígenas e non indígenas sobre la base de un listado de rasgos culturales, ya
que lo que realmente importa es la definición identitaria. Sin embargo cabe apuntar que em términos de patrones
culturales y vida cotidiana muchas comunidades “mestizas” estarían constituídas por índios etnicamente
descaracterizados’. (BARTOLOMÉ 2006 [1997], p. 24).
67
O artigo “Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre
1835 e 1840” (RICCI, 2006).
68
A Província do Grão-Pará surgiu da união das capitânias hereditárias do Grão-Pará e Rio Negro. Existiu desde
o fim do período colonial (1821) até o período Imperial (1889). Em 1833 a estimativa da população era 119.877
habitantes; 32.751 eram índios e 29.977, negros escravos. A maioria mestiça ("cruzamento" de índios, negros e
brancos) chegava a 42 mil. A minoria totalizava 15 mil brancos, dos quais mais da metade eram portugueses. Em
1850, a parte equivalente a capitânia do Rio Negro foi transformada em província do Amazonas.
69
A área do estado do Acre pertencia a Bolívia até o começo do séc. XX.
85

Apesar desses dados relevantes, a Cabanagem foi quase apagada na história do país.
Pouco se estuda sobre os meandros que motivaram a tomada do poder e pouca importância foi
dada a esse momento histórico. Mesmo em Belém, onde os cabanos tomaram o poder e
passaram a governar a província do Grão-Pará, poucos habitantes sabem o que foi a
Cabanagem. Raros documentos existem do período. As histórias, que dão vida a esse momento
e que inflamam o caráter social da revolta, foram em grande parte transmitidas oralmente. A
Cabanagem foi silenciada da história oficial.
Ricci (idem) critica os estudos que não dão a adequada importância ao que ela considera
como uma revolução cabana. Esses estudos geralmente reduzem a Cabanagem a mais uma
revolta social de caráter regional, como tantas outras70 do período regencial do Império do
Brasil. A autora revela que a Cabanagem exportou líderes e seu alcance foi bem mais amplo
que Belém e arredores, pois através do tráfico de pessoas e ideias, chegou até as fronteiras do
Brasil central, alcançando os litorais norte e nordeste, influenciando inclusive a América
Caribenha. Minha intenção aqui não é esmiuçar a Cabanagem, nem discutir teoricamente
enquanto uma revolução. Vou mostrar o quanto a cabanagem tem características de uma
insurgência racial que uniu índios e negros, e uma já mestiçada, portanto considerada
“genérica”, população contra o poder dos brancos abastados. Esse momento revelou uma clara
divisão racial da luta do povo que resultou no devastador “extermínio dos tapuios, índios e
mestiços que dela participaram”71, além da decadência das vilas e lugares tradicionais.
Existem várias análises72 do movimento da Cabanagem. Há inclusive quem associe os
ideais cabanos com os de “liberdade, igualdade e fraternidade” da Revolução Francesa (1789 -
1799), indicando uma possível influência que os cabanos possam ter recebido de franceses
exilados nas Guianas Francesas73. Não é objeto desse estudo pesquisar o campo dos
pensamentos que motivaram a luta do povo pelo poder durante a Cabanagem. Mas imagino que
as ideias de uma outra revolução possam ter viajado Caribe abaixo até chegar na Amazônia
brasileira. Seriam necessários levantamentos e aprofundamentos, mas acredito na possibilidade
de que notícias sobre a Revolução Haitiana (1791 -1804) tenham por aqui chegado. Ali os
negros se insurgiram e conquistaram o fim da escravidão e a independência do Haiti. Aqui

70
Balaiada no Maranhão (1838 – 1841) – revolta dos escravos, negros fugidos (quilombolas), pobres, artesãos
contra a situação miserável e a exploração dos comerciantes e produtores rurais; Revolta dos Malês na Bahia
(1835) – revolta de escravos de origem islâmica contra a escravidão e o catolicismo que lhes eram imposto; além
dessas teve a Sabinada na Bahia (1837 – 1838) e a Guerra dos Farrapos (1835 – 1845). Por todo o Brasil eclodiram
outras rebeliões de menor porte.
71
Moreira Neto (1988).
72
Magda Ricci faz um excelente apanhado de estudiosos da Cabanagem em seu artigo (2006).
73
Décio de Freitas mistura fantasia com realidade em “A miserável revolução das classes infames” (2005).
86

também os negros foram cabanos para lutar pela liberdade como escreveu o historiador Jorge
Huxley em 1936:
Emergindo dos mocambos e das senzalas ou afluindo dos quilombos ignotos, no seio das selvas
e nas praias desabitadas, os escravos acostaram-se à causa cabana, com o objetivo da reconquista
da liberdade.

Fischer (2004) fala sobre o bloqueio criado para evitar que outras colônias soubessem
do que acontecia no Haiti, pois havia demasiado temor de que o modelo de insurreição se
espalhasse e de que as pessoas se libertassem de seus algozes e tomassem o poder. A revolução
haitiana ensina que sem confrontar o racismo, alicerce do modelo escravista, não há como
alcançar ideais pregados pela revolução francesa (FISCHER, 2004). Tal qual a Cabanagem, a
Revolução Haitiana foi excluída em importância nos cânones da História e das demais
disciplinas científicas e por isso torna-se difícil entender como seu ideal se alastrou. Tal
exclusão atende aos interesses de associar revoltas populares, especialmente aquelas marcadas
pelo caráter racial, à barbárie e ao primitivismo. Esse silêncio que ronda importantes lutas
populares do passado faz parte da manutenção de um status quo político, social, cultural e
também científico de um sistema que se molda para justificar e perpetuar privilégios para
brancos abastados.
Vale fazer um brevíssimo resumo histórico para mostrar como se forma o cenário dessa
insurgência popular chamada Cabanagem. Após a colonização no século XVII, vários
momentos configuraram a realidade da população local. Primeiro a formação das missões
(aldeamentos), que destribalizaram indígenas e os transformaram em índios tapuios, seguida
pela expulsão dos jesuítas na metade do séc. XVIII. As missões deram lugar aos diretórios
indígenas, que atuaram durante trinta e um anos anulando qualquer traço de indianidade,
emancipando indígenas e tapuios. O resultado dessas políticas que desestruturaram os aspectos
físicos, econômicos, sociais e culturais dos povos locais foi uma grande penúria, com escassez
de alimentos e propagação de doenças.
Cabem “parênteses” para contar o episódio do brigue Palhaço que antecedeu a
Cabanagem. Várias juntas no Grão-Pará não aderiram à independência do Brasil, de 7 de
setembro de 1822. Isso indignou os liberais radicais, que lutavam para a província do Grão-
Pará deixar de ser colônia portuguesa. Eles então se refugiaram nas vilas de Macapá, Santarém,
Cametá, Vigia e Monte Alegre, onde difundiram suas ideias e ganharam o apoio das massas.
Esses lugares foram transformados em núcleos de conspiração contra aqueles que se opunham
à independência. Como manifestação a favor da independência, em outubro de 1823, um grupo
de soldados insurgentes do 2º Regimento de Artilharia de Belém atacaram estabelecimentos
87

comerciais portugueses. Eles foram detidos junto com quem mais estivesse pelas ruas. Cinco
deles foram fuzilados e os demais presos no porão de um brigue ancorado no porto. No porão
superlotado, com sede e calor, todos gritavam por água quando receberam tiros e uma nuvem
de cal. No dia seguinte foram contados 252 corpos e quatro sobreviventes, dos quais só restou
vivo João Tapuia. Ninguém se responsabilizou ou foi punido pelo ato, que ficou conhecido
como massacre do brigue Palhaço.
O povo da província do Grão-Pará chegou ao século XIX em situação de extrema
pobreza material e de certa forma existencial. Nesse momento, grande parte da polução já
violentada em suas identidades culturais, anulada em suas distinções politicamente racializadas,
obrigada a negar suas raízes, já começava a formar uma grande massa difusa e genérica que
recebeu o nome de mestiça. Ainda assim os mestiços, ao se juntarem aos índios e aos negros
africanos, reconheciam seus vínculos e sua condição social na luta por justiça.
A mestiçagem foi formada como um dispositivo de poder a partir de discursos, leis,
instituições e ações que serviram para incentivar a mistura entre índios do continente, negros
africanos e brancos portugueses. Tal dispositivo reflete uma combinação de saberes e de
estratégias que perpetuam o poder dos brancos. Nessa época, ainda no Império, esse conjunto
indica o início da construção de uma identidade nacional, que foi reforçada e epistemologizada
a partir da constituição da República do Brasil no final do século, em 1889.
Para Emanuel Mariano Tadei, a mestiçagem é um dispositivo “que dirige e comanda as
ações e saberes numa determinada direção, com a intenção de atingir seu objetivo final: criar
uma consistência entre todos esses elementos díspares, gerando subjetividades dóceis, mal
delimitadas e manipuláveis” (2002, p. 3). Tal dispositivo atravessou o tempo e hoje se reflete
na dificuldade de lidar com a questão racial brasileira. O mestiço de ontem é o pardo de hoje.
Mas para os cabanos teria sido importante essa definição de parte deles como mestiços? Ou
melhor, eles se sabiam mestiços? Era clara essa ideia para eles do que seria o mestiço? Seriam
necessários estudos históricos aprofundados para tentar responder essas perguntas, mas tudo
indica que não. Eles formavam um conjunto de força que unia quem foi chamado de mestiço,
índio ou negro. Esse conjunto se reconhecia na luta por justiça apontando um inimigo comum:
o branco.
Tinham plena consciência que suas condições materiais melhorariam se eliminassem os
brancos detentores do poder. De acordo com a historiadora Eliana Ferreira, os cabanos “em
algumas fazendas, castigaram os senhores com as mesmas torturas que haviam sofrido antes. O
porte de arma foi legalizado, o que dava aos cabanos a sensação de realmente pertencerem à
88

cidade. Isso tudo representava uma grande mudança no cotidiano” (FERREIRA, 2009). Os
cabanos se apropriaram de casas de famílias portuguesas ou ligadas ao antigo regime.
Por outro lado, os oficiais do Império reconheciam o que chamo de guerra racial.
Considero que a Cabanagem foi uma guerra travada não apenas na esfera da desigualdade
social, mas também, e sobretudo, pautada na diferença racial. Ricci (2002) procura decifrar um
“pacto secreto”, com nuances religiosas, que os cabanos tinham e que compunha as estratégias
para a sua revolução social. A autora não dá ênfase à disputa racial, mas essa questão é explícita
em trechos de documentos, que seu artigo traz. Um exemplo é um extrato de ofício do Marechal
Andréa para o Rio de Janeiro. Traçando um plano para a pacificação da Província do Grão-
Pará, Andréa enfatiza que não convinha ter como soldados os “filhos dela”, ou seja, os filhos
da terra. Para demonstrar essa guerra racial, vale a pena reproduzir o trecho deste ofício, tal
qual fez Magda Ricci (2002):
Todos os homens de cor nascidos aqui estão ligados em “pacto secreto”, a “darem cabo de tudo
o que for branco”. Não é uma história, é fato verdadeiro, e a experiência tem mostrado. É pois
indispensável por as armas nas mãos de outros; e é indispensável proteger, por todos os modos
a multiplicação dos brancos. Se o governo concordar com esta medida, enviarei sempre aonde,
quantas recrutas possa dessa Província, a troco de igual número de outras. 74

Com a guerra, os cabanos conquistaram o poder, mas não tinham um plano de governo
concreto e viável para garantir sua manutenção. Não cabe aqui detalhar a Cabanagem, mas
traçarei um breve panorama dos fatos que sacudiram a província do Grão-Pará durante os anos
em que os Cabanos detiveram o poder e das rupturas no próprio movimento. Em 7 de Janeiro
de 1835, comandados por Antônio Vinagre, os cabanos assassinaram o então presidente da
província e o comandante de armas, tomando de assalto o quartel e o Palácio do Governo em
Belém. Eles se apropriaram das armas e nomearam o liberal Félix Antônio Clemente Malcher
como presidente. A Cabanagem foi também apoiada por uma elite local antagônica aos
privilégios dos portugueses e que via em Malcher seu representante. Nessa primeira tomada de
poder, uma moeda antiga passou a vigorar com validade apenas no Grão-Pará. Os cabanos se
deram conta de que suas demandas não seriam atendidas, pois logo Malcher – tenente coronel,
latifundiário e dono de engenhos de açúcar - mostrou que serviria aos interesses das classes
dominantes.
Com pouco mais de um mês de governo, em 19 de fevereiro de 1835, Malcher foi
deposto. Ele mandou prender o expressivo líder cabano Eduardo Angelim e dois blocos

74
Ofício do Marechal Andréa, de 18 de dezembro de 1837. Arquivo Público do Pará, Correspondência
do Governo com a Corte, Ofício número 32, p. 29 v. apud Ricci (2002).
89

armados cabanos entraram em conflito. Malcher foi assassinado e dizem75 que seu corpo foi
arrastado pelas ruas de Belém. Francisco Vinagre comandou as tropas vencedoras e se tornou
o primeiro governador cabano que participou ativamente da tomada de Belém. Contudo,
Francisco Vinagre causou indignação ao aceitar fazer um acordo de entrega pacífica do posto
de governador à Jorge Rodrigues, em julho de 1835, em troca de anistia dos revolucionários e
de outras promessas de contentamento. Os cabanos estavam descontentes com sucessivas
traições e ainda viviam a dor do massacre do brigue Palhaço.
Liderados por Antonio Vinagre e Eduardo Angelim, os cabanos refugiados voltaram a
Belém em 14 de agosto e após nove dias de batalha sangrenta retomaram o poder. Morre em
batalha Antonio Vinagre. Eduardo Angelim então assume o governo atemorizando a elite
durante 10 meses. Contudo, o governo rebelde não se consolidou. O Império reagiu e nomeou
um novo presidente, mandando quatro navios de artilharia e declarando guerra total aos cabanos
em março de 1836. Naquele momento a cidade estava consumida por doenças, fome e miséria.
Todavia, em correspondência do presidente Manuel Jorge Rodrigues, que foi enviado pelo
Governo regencial para combater o movimento cabano, sua preocupação não é a terrível
condição social em que Belém se encontrava, mas ele demonstra todo seu ódio racial “A cidade
se encontra de um jeito deplorável e medonho porque não se encontravam senão pretos e tapuios
nas ruas, e os poucos estrangeiros que andam arranjando seus negócios para se retirarem [...]”
(apud FERREIRA, 2009, p. 2).
Os cabanos então fugiram pela mata e pelos igarapés em pequenas canoas. Se
refugiaram e resistiram no interior da Amazônia até 1840. Um último e maior bastião de
resistência foi a vila de Cuipiranga na confluência dos rios Tapajós e Arapiuns, com fundos
para a margem direita do rio Amazonas e distante três horas de barco da cidade de Santarém,
município ao qual hoje pertence. Fato curioso é que, em 1836 e 1837, enquanto Santarém,
principal vila da região, tinha uma população de cerca de duas mil pessoas, Cuipiranga atraiu
cerca de três mil e quinhentos moradores. Os cabanos usaram engenhosas estratégias de
resistência, um exemplo foi a simulação de canhões com toras de madeira, que afastaram por
certo tempo as naus dos legalistas.
O que restou da guerra da Cabanagem? Pouco muito pouco. Num ponto escondido no mapa da
Amazônia a Cabanagem não passa de um episódio tão distante quanto incompreendido na
confusa memória das 48 famílias de Cuipiranga. No entanto, foi neste lugar, que os guerreiros
mestiços e negros, auxiliados pelos índios mundurucus e maués, tiveram seu momento de glória
na bem organizada resistência que instalaram contra as forças militares do Império brasileiro.
Foi aqui também que se deu uma das batalhas decisivas, quando a multidão saiu em correria
pelas matas, muitos sendo abatidos e enterrados em vala comum ou jogados no rio. Começava

75
Os historiadores não garantem a veracidade dessa história que se popularizou sobre a morte de Malcher.
90

o fim de uma das guerras mais significativas e desconhecidas do Brasil pós independência.
(DUTRA, 2009)

Em edição especial do jornal Gazeta Santarém, Manuel Dutra afirma o quanto a


Cabanagem estava apagada na memória do lugar, que foi marcado por forte resistência durante
dois anos, e do quanto a partir dali os cabanos dominaram o vale do Tapajós e se espalharam
rio Amazonas acima, até os confins da Amazônia. A resistência em Cuipiranga - palavra que
se origina de Ecuipiranga que em língua indígena significa terra vermelha - acabou quando as
vidas dos cabanos foram ceifadas em um confronto desigual com as tropas do Império “que
teria deixado as areias da praia encharcadas de sangue” de acordo com Dutra (2009). Apesar de
ter marcado profundamente a história da vila, hoje as lembranças da Cabanagem vêm em
retalhos, costuradas a outros momentos que fizeram parte da história do local e muitas vezes
sem serem alinhavadas de forma coerente. Essas memórias foram passadas oralmente pelos
avós e bisavós que sobreviveram àquele tempo de guerra.
Até mesmo em Belém pouco se sabe sobre esse momento. Ruas, monumentos, praças e
sambódromo da capital ganharam nomes em homenagem à Cabanagem, em momentos nos
quais políticos queriam se assemelhar aos líderes cabanos, mas grande parte da população da
cidade76 afirma não saber o que aconteceu na Cabanagem. Mas, por que essa insurgência
popular que aconteceu em um passado não tão distante foi destinada ao esquecimento? Deve
ser porque a história fabrica narrativas, conforme explica a socióloga Karina Bidaseca: “La que
opera en la colonización es la narrativa de la historia, que tiene el objetivo de elevar uma voz y
silenciar otras para que prevalezca un discurso que responda a la versión oficial estatal, es decir,
de la elite funcional al poder colonial” (2010, p. 20). Essa raiz da história, que para justificar o
poder de uns sobre outros faz emergir certas vozes e versões e anular outras, é questionada
pelos estudos críticos pós-coloniais. É alinhada a essa crítica que percebo que o cabano é aquele
que teve sua voz silenciada. No entanto, suas dores, lutas, anseios e cabanas nas quais viviam
resistiram no tempo. Nas margens da sociedade, índios e negros, de cabanos a caboclos, de
mestiços a pardos, seguiram na mesma condição social.
O artista paraense Armando Queiróz revela essa continuação da situação social na obra
“Tempos Cabanos” (2009). Trata-se de uma instalação na qual ele reuniu, como uma ponte
através do tempo, duas obras importantes: a pintura “O Cabano Paraense” de Alfredo Norfini

76
Um grupo de estudantes da Universidade da Amazônia (UNAMA) fez matéria especial sobre a Cabanagem e
perguntou para várias pessoas em Belém o que foi a Cabanagem. A maioria dos entrevistados não sabia. Alguns
falavam que haviam estudado alguma coisa sobre a Cabanagem, mas que não lembravam do que se tratava.
91

(1860) e a fotografia “O vendedor de amendoins” de Luiz Braga (1990). Essa ligação social é
revelada nas duas imagens:
Figura 17: “O Cabano Paraense” (1860) Figura 18: “O vendedor de amendoins” (1990)

Fonte: https://artecriticapara.files.wordpress.com/2009/12/o-cabano-paraense-alfredo-norfini-1940.jpg

O silêncio característico àqueles concebidos “mudos” em uma história produzida por


uma sociedade feita “surda”, pois pautada na exploração, vem sendo quebrado à medida que o
movimento indígena do baixo Tapajós recorre à Cabanagem para afirmar que a luta do passado
resiste na luta do presente. “A guerra não acabou”, afirmam os indígenas afirmados. No
discurso político e em rituais, a Cabanagem é celebrada. A cada ano desde 2010, é realizado
um encontro na vila de Cuipiranga para “trazer à tona como que os cabanos do século XIX
inspiraram ou inspiram ainda as lutas atuais dos amazônidas principalmente contra as
arbitrariedades governamentais e neoliberalistas” afirma um estudante de História da Ufopa e
organizador de um dos encontros.
Toalha vermelha sobre a terra, cupuaçu, arroz e cuias sobre ela. Pés no chão. O tarubá é servido
a todos e na roda o xibé também circula. Cânticos evocam Tupã. Água, terra e povo: o cacique
invoca os valores fundamentais. Frei Florêncio lembra a Cabanagem, aludida na toalha
vermelha. Lembra também os 15 anos de Eldorado de Carajás. “lutas dos insurgentes contra os
poderosos de ontem e de hoje”. Eles discutem as ameaças postas pelas hidrelétricas projetadas
no rio Tapajós. “É preciso acordar, é preciso a gente se unir”. (PEIXOTO; ARENZ;
FIGUEIREDO, 2012, p. 307).
92

Essas alusões a uma série de atos violentos contra o povo que se insurgiu ao longo da
história, a qual reportamos em artigo (2012), faz parte de um movimento que liga o passado ao
presente. "O movimento indígena faz da Cabanagem uma história do presente” (ibidem). A
espoliação humana e econômica na fronteira continua como sempre, agora com o uso pelos
madeireiros de mão de obra de comunidades, convencidas por favores e ameaças a terem lotes
individuais menores e seguirem vendendo madeira, como querem os empresários. Relembrar a
Cabanagem e o massacre de dezenove trabalhadores do Movimento Sem Terra (MST) pela
polícia militar em Eldorado dos Carajás – Pará, em 1996, é reconstruir uma história que induz
à ação política daqueles que tiveram histórias e vidas violentadas e negadas. A voz e a fala
significam também instrumentos de luta, conforme constata Karina Bidaseca “A reivindicação
discursiva trará consigo a agência, suscitando a quebra da frágil linha que transita entre corpos
antropológicos e corpos políticos77” (2010, p. 19, traduzido pela autora). Os indígenas, com
seus corpos antropológicos transformados em corpos políticos, relembram a Cabanagem para
denunciar uma guerra que não acabou:
Uma guerra, que no dizer de alguns estudiosos, não terminou. E não terminou porque,
obviamente, as suas motivações continuam presentes nos assentamentos de trabalhadores sem
terra, nos movimentos dos atingidos por barragens hidrelétricas, nas lutas indígenas, nos
empates dos seringueiros, nos movimentos sociais urbanos. (DUTRA, 2009, p.3).

Essa ligação com o presente, confirmada por Dutra, sustenta a tese de Magda Ricci de
que a Cabanagem foi uma revolução social. Ela afirma que “hoje a Cabanagem na Amazônia é
símbolo de ação popular de massa” e diz que no pós-cabanagem “Os presos cabanos e muitos
outros suspeitos de ‘cabanagem’ foram recrutados forçosamente e engrossaram os chamados
‘corpos de trabalhadores’” (idem p.29). A esses cabanos transformados em recrutas foi dada a
responsabilidade da reconstrução produtiva do campo. Ricci completa que “O certo é que à
mortandade cabana se seguiu a dos corpos de trabalhadores” (ibidem) e que isso abriu caminho
para o período áureo da borracha na Amazônia, a partir de 1879. Mas, quem eram os cabanos,
os corpos de trabalhadores, as massas, o povo, senão aqueles que foram um dia racializados?
Por isso o social não se desvincula do racial. A Cabanagem ocorreu e continua pautada em
termos sócio raciais.
Antes de dar sequência a história do povo da região com o ciclo da borracha, voltarei
para o cenário nacional para mostrar como a condição social está profundamente vinculada à
questão racial. Paralelamente à Cabanagem, inúmeras revoltas e conflitos se difundiam pelo

77
La reivindicación discursiva acarreará consigo la agencia, suscitando el quiebre de la débil línea delgada que
transita entre cuerpos antropológicos e cuerpos políticos. (BIDASECA 2010, p. 19)
93

Brasil tornando o sistema escravagista insustentável. Em 1850, cedendo a pressões da


Inglaterra, é sancionada a lei Eusébio de Queirós que punha fim ao tráfico negreiro. Começava
aí uma tardia, lenta e gradual abolição da escravatura no Brasil, que veio a ser concluída nas
vésperas da formação da República, em 1888. Nesse interim, em 1850, foi sancionada a Lei
601 ou Lei de Terras, que foi o pilar de um país reprodutor da desigualdade e fez de suas terras
terreno fértil para a manutenção da injustiça social. A Lei de Terras condenou o país a um
destino de profunda desigualdade social e racial ao privar a propriedade da terra aos seus
ocupantes. É sobre essa lei que irei falar para demonstrar como se forma e se conforma a base
da injustiça agrária pautada na condição sócio racial no Brasil.

A Lei de Terras: conformando um Brasil desigual

A terra no Brasil é motivo de disputa desde que os navegadores portugueses, avistando


essas terras do Sul, gritaram pela primeira vez “terra à vista! ”. O cruel extermínio dos povos
nativos se deu pelo total desprezo de sua condição humana e em nome da conquista dessas
terras. A escravização de indígenas e africanos se fez para que este chão pudesse ser dominado
e explorado economicamente. A racialização e o racismo se conformaram como instrumentos
de usurpação, abusos e opressões em relação direta com o usufruto e a posse da terra. Portanto,
a relação entre racismo e terra determina o contexto social brasileiro desde que os colonizadores
pela primeira vez aqui pisaram. Hoje essa disputa ainda é o principal motivo de mortes no
campo. É uma guerra onde se registram perdas só de um lado. Indígenas, quilombolas,
campesinos, pequenos agricultores, posseiros e extrativistas são assassinados a cada ano por
pistoleiros e seus mandantes. É por lutar pela demarcação da Terra Indígena Maró que os Borari
e Arapiuns são perseguidos e sofrem ameaças.
Com 54 assassinatos até o mês de novembro de 2016, a Comissão Pastoral da Terra
(CPT) denuncia esse ano como o mais violento desde 2003, quando foram mortas 71 pessoas
em processos de disputa de terra. Ameaças, violências, impunidades e determinações judiciais
retratam a realidade da desigualdade da distribuição de terras no Brasil. Ainda em 1850, a Lei
601 ou Lei de Terras coroou a injustiça da posse da terra ao condicionar a propriedade apenas
mediante compra, rechaçando de uma vez seus ocupantes tradicionais e os escravos libertos.
A Lei de Terras foi a primeira elaborada para regular a propriedade de terras no Brasil
e serviu para reafirmar a grande propriedade rural. Até o ano de 1822 a Coroa Portuguesa tinha
total poder sobre as terras brasileiras e repassava o uso direto para nobres e abastados. O escopo
dessa lei era organizar a estrutura fundiária do país, cujas terras foram fracionadas em
94

latifúndios pelo sistema de sesmarias estabelecido por doações feitas pela monarquia78. A lei
regulamentava a terra como propriedade privada para aqueles que já a ocupavam e nela
produziam, beneficiando assim os grandes fazendeiros. As terras ainda não ocupadas passariam
a ser propriedade do Estado e a posse somente se daria através da venda, com pagamento à
vista, nos leilões organizados. Essa forma de apropriação da terra inviabilizava a posse para os
destituídos de recursos financeiros e para aqueles que nem mesmo informação tinham. A injusta
distribuição das terras na Amazônia é também recorrente dessa lei que “institucionaliza o
regime da grande propriedade privada à custa dos territórios ocupados tradicionalmente por
índios e caboclos” (MOREIRA NETO 1988, p. 21).
Carvalho & Carvalho constatam que “a Lei de Terras colaborará decisivamente com a
política de confisco das terras indígenas, ao ordenar a incorporação dos próprios nacionais nas
terras de aldeias de índios” (2011, p. 15). Cunha (1992 apud CARVALHO e CARVALHO,
2011) observa que após um século incentivando a presença de estranhos nas aldeias, o governo
usará o argumento da existência de uma população não indígena, pois aparentemente
assimilada, para despojar os índios de suas terras. Conforme o caso, restava aos índios apenas
lotes individuais de terra. Porém, para melhor entender o impacto da Lei de Terras na
conformação da questão fundiária atual é preciso relacioná-la à Lei Eusébio de Queirós,
sancionada dias antes, que proibiu a entrada de africanos escravizados no Brasil pelo tráfico
negreiro, em 04 de setembro de 185079. Vale informar que escravização de indígenas já estava
proibida desde 1570, mas que na prática foi de fato suspendida em 175780.
Desde a década de 1820, o Brasil descumpria sistematicamente todos os tratados
internacionais que estabeleciam o fim do tráfico de escravos. Após a Revolução Industrial, a
Grã-Bretanha ganhou forças e precisava ampliar o mercado consumidor ao mesmo tempo em
que vários líderes religiosos denunciavam e exigiam o fim da escravidão. Com tamanha pressão
a Inglaterra aboliu a escravidão e decretou o fim do tráfico, através do que ficou conhecido
como Bill Aberdeen - Slave Trade Suppression Act. Tal lei autorizava a marinha real britânica
a prender qualquer navio suspeito de transportar escravos no Atlântico. A Lei Eusébio de
Queirós simplesmente respondeu à pressão inglesa, que inevitavelmente acabaria com o tráfico

78
A primeira divisão das terras brasileiras ocorreu em 1534 com a criação de 15 capitanias hereditárias. O rei de
Portugal D. João III dividiu o território brasileiro em grandes faixas e repassou a alguns nobres a tarefa colonizar,
proteger e administrar aquelas terras. Por outro lado, eles tinham total liberdade para explorar seus recursos
naturais.
79
A partir dessa lei se intensificou o tráfico interno de escravos indo das províncias do norte (Pernambuco e Bahia),
de economia decadente, em direção ao Sul do Império do Brasil, com franca ascensão na produção cafeeira. A
estimativa é que entre os anos de 1850 e 1880 foram negociados 200 mil negros (Barboza, 2011).
80
A partir de um decreto de Marquês de Pombal.
95

negreiro, pois, entre 1845 e 1851, foram abordadas e destruídas 368 embarcações brasileiras
que transportavam escravos81.
Vale ressaltar que a motivação inglesa não foi benevolência e/ou compaixão. Desde
1807 o governo britânico havia suspendido o tráfico de escravos e o Brasil, grande produtor de
açúcar, continuava a renovar sua mão de obra escrava. Como a Grã-Bretanha tinha colônias
produtoras de açúcar nas Antilhas, era crucial combater a concorrência com o Brasil através do
impedimento do abastecimento de novos braços escravos para a produção açucareira. Assim, o
problema inglês não era entender se o trabalho livre era mais produtivo, mas sim o de garantir
mercado para a sua produção (LEITE, 1998). O cenário internacional impôs ao Brasil a adoção
de uma lei para acabar com o tráfico de africanos escravizados.
As condições dos escravos no Brasil eram de tal forma degradantes por alimentação
escassa, violências e árduo esforço no campo - de 16 horas diárias - que seu tempo de vida não
ultrapassava doze anos de trabalho na lavoura. A taxa de natalidade nunca superava a de
mortalidade. De acordo com estimativas mais conservadoras, foram trazidos 3,5 milhões de
africanos ao Brasil (COMPARATO, s/d). Com a pressão inglesa pelo trabalho assalariado, a
mão de obra negra foi em grande medida descartada.
Desumanizado, o negro era visto como extensão do instrumento de trabalho e nunca
como gente, como trabalhador. Era preciso então incentivar a vinda de colonos europeus,
especialmente para trabalhar na produção cafeeira, pois em meados do século XIX o café já
despontava como grande produto de exportação. Mas por que europeus? Os europeus eram
brancos e desde sempre a classe dominante difundia a ideia racista de que eles eram
culturalmente superiores aos brasileiros. A semente da então futura política de branqueamento
foi lançada, mas antes de deixá-la germinar era preciso garantir a propriedade do solo. Para isso
em 18 de setembro de 1850 foi estabelecida a Lei de Terras.
Os grandes fazendeiros82 já se preocupavam com a garantia da propriedade de seus
latifúndios, visto que uma nova onda de homens livres entraria no país e que a abolição da
escravatura, seguindo o movimento internacional, não tardaria a acontecer. A Lei de Terras foi
a primeira medida com a finalidade de organizar a propriedade privada no Brasil e serviria a
impedir o acesso à terra aos ex-escravos, aos trabalhadores nativos e aos imigrantes que
entrariam no país. A lei foi formulada para assegurar os grandes latifúndios, pois estabelecia
que as terras só poderiam ser adquiridas mediante compra, venda ou doação do Estado.

81
Alfredo Carlos Teixeira Leite "O tráfico negreiro e a diplomacia britânica" EDUCS, 1998.
82
A quem foram dados títulos de barões do café por D. Pedro II.
96

Abastados, só os grandes fazendeiros conseguiriam expandir suas propriedades para plantações


de café, especialmente sobre terras cultivadas por pequenos agricultores, que nesse processo
perderam ou foram expulsos de suas terras83, se tornando vulneráveis ao procurar novos lugares
para se estabelecer ou acatar ordens e se fixar na terra, que agora pertencia a um novo dono.
Culturalmente, fazia parte da classe dominante enviar seus filhos para estudar na
Europa, com a finalidade de ostentar títulos nas paredes e não tanto de exercer suas profissões.
Os filhos dos barões do café voltavam para o Brasil com ideias abolicionistas que sacudiam a
Europa, ao mesmo tempo que formulavam justificativas racistas de opressão e exploração dos
trabalhadores. Pensavam em como compor uma sociedade brasileira agradável aos seus olhos.
Após a abolição da escravatura, estabelecida pela Lei Áurea em 1888, os cafeicultores
escravagistas do Vale do Paraíba (SP) exigiram uma indenização da coroa portuguesa negada
por D. Pedro II. Esse foi o estopim para a queda da monarquia no Brasil. O poder dos
cafeicultores de São Paulo e do Rio de Janeiro ganhou força e eles garantiram o apoio aos
militares que, em 1889, deram um golpe na monarquia e implantaram a Primeira República
Brasileira.
Conhecida como República Velha, a Primeira República durou até 1930 e durante todo
o período foi presidida por representantes das oligarquias paulistanas e mineiras que
estabeleceram a política do café com leite. O café representava os grupos hegemônicos
paulistanos, o leite os mineiros. Eles se revezavam no poder e englobavam toda a estrutura
estatal, de prefeituras a presidências com seus secretários e ministros. Nesse período, assim
como a política, a população foi incentivada a se miscigenar e, metaforizando, a se transformar
em “café com leite”, com o claro objetivo de se tornar mais leite que café, ou seja, mais branca
que negra. No plano nacional, a ideia de progresso permeava as ações políticas e foi decisiva
na composição da sociedade brasileira.
Isolada geograficamente do eixo do poder no Brasil, a Amazônia não tinha a necessidade
de imigrantes para trabalhar em plantações de café. Na região, a preocupação era dinamizar a
agricultura e extrair da natureza o máximo de recursos. De acordo com Nunes (2012), a Lei de
Terras teve especificidades em cada região, e no Pará serviria para incentivar a vinda de
imigrantes europeus e americanos84, especialmente para a formação de colônias agrícolas.
Discurso e projetos para incentivar a vinda de imigrantes informavam sobre as características

83
Essa expansão desenfreada dos latifúndios sobre as pequenas lavouras ocorreu sobretudo no Vale do Paraíba,
no Estado de São Paulo.
84
Embora fosse grande a expectativa de receber americanos especialmente os do Sul, arrasado pela Guerra da
Secessão, no Pará só chegaram entre 160 e 200 imigrantes. Eles foram assentados próximo de Santarém onde
construíram a colônia Bom Gosto entra 1866 e 1867 (NUNES, 2012).
97

naturais da região e a presença de árvores de grande porte indicaria não apenas que o solo era
fértil85, mas que essa madeira deveria ser explorada para abastecer os centros urbanos. A
intenção das autoridades provinciais era a de que os colonos europeus dominassem essas áreas,
principalmente através da extração madeireira (ibidem).
A atenção prestada para o incentivo e recepção de colonos europeus e americanos pelas
autoridades foi em virtude de acreditarem que eles seriam mais competentes, inteligentes e
capazes que a população nativa. Essa crença racista desprezava o homem local e valorizava o
branco europeu e americano, conforme explícito nas palavras do presidente do Pará em 1867,
Pedro Leão Veloso, que afirmava os imigrantes europeus como “trabalhadores ativos,
inteligentes e moralizados”, que “não só por si [trariam] riquezas como também [seriam] por
seu benéfico exemplo, causa para melhor aproveitamento dos braços que já temos” (apud
Nunes, 2012). Aos imigrantes caberia o ensinamento “da melhor arte de cultivo, das sementes
mais aproveitadas e das modernas técnicas de plantação” (ibidem) desprezando totalmente os
saberes indígenas.
Conforme constata Nunes, “a relação com os colonos paraenses e os índios devia ser de
imposição dessas novas técnicas de produção agrícolas, de forma a superar as práticas de cultivo
herdadas das populações indígenas” (NUNES, 2012, p. 102). O que as autoridades provinciais
não esperavam era que a maioria dos imigrantes não tinha qualquer domínio sobre agricultura86.
O desejo de desenvolvimento e progresso para a Amazônia ficou adormecida e a região é
profundamente golpeada com essas ideias tempos depois. Golpes que a recortaram em enormes
latifúndios, sobretudo a partir do período ditatorial no Brasil (1964 – 1985), quando o caos
fundiário começa a mostrar a sua face na Amazônia.
Faço esse salto na história para traçar um panorama capaz de situar a Amazônia na
história do Brasil, que estabelece suas bases mediante ações racistas excludentes criando o
cenário de profunda desigualdade social. Esse conjunto que costura a história a uma
interpretação sociológica, alicerça o entendimento da atual luta e reivindicação por identidade
e território na região do baixo Tapajós. Para isso é preciso entender o quanto foi agressiva a
apropriação da terra na Amazônia e o quanto o Estado foi violento nesse processo. No primeiro
ano do período ditatorial (1964) é criado o Estatuto da Terra, que previa garantir o acesso à
terra para quem nela vive e trabalha, numa intenção clara de propor uma reforma agrária com

85
Estudos posteriores derrubaram essa crença ao informar que a fertilidade do solo ocorre pelos resíduos da própria
floresta. Uma vez retirada a mata, o solo se empobrece.
86
Para a colônia de Benevides (PA) apenas 46 dos 182 imigrantes foram registrados como agricultores pela
Agência de Colonização. Era provável que antes de vir ao Brasil eles se declarassem agricultores para poder
atender às exigências do Governo Brasileiro (NUNES, 2012).
98

objetivo de deter a explosão de movimentos campesinos que se espalhavam pelo país. O outro
objetivo do Estatuto era o de desenvolver a agricultura do país. Evidentemente, apenas esse
último ganhou atenção e incentivos através de políticas que sempre beneficiaram o agronegócio
em detrimento da agricultura familiar. O Estatuto da Terra, ainda em vigor nos dias atuais,
nunca foi levado em consideração no que se refere a garantir uma reforma agrária.
A estrutura fundiária brasileira vem sendo mantida com poder e violência e registra os
mais altos índices de concentração do mundo. Os latifundiários, geralmente fazendeiros
representados por grandes coronéis, ainda estão presentes hoje. No mundo fictício eles figuram
telenovelas brasileiras com tomadas de imagens acompanhada da afirmação de terem terras a
perder de vista. Como uma reprodução do esquema rei e súditos, senhores e servos, a
concentração de terras faz com que se reproduza um sistema de exploração humana que reedita
de uma certa forma o sistema escravagista na medida em que os salários dos trabalhadores são
tão baixos que não permitem uma vida digna. Quem não se submete ao trabalho assalariado,
com base em um salário mínimo insuficiente, e luta pelo seu próprio pedaço de chão para viver
e produzir, fica a margem da sociedade e é literalmente marginalizado.
Criminalizados são os que lutam pela reforma agrária no Brasil, são também os que
exigem a titulação da terra que sempre viveram. Esse é o caso dos Borari e Arapium da Terra
Indígena Maró. Eles estavam na terra muito antes que o governo ditatorial organizasse o projeto
de ocupação da Amazônia com o lema “vazio demográfico” e oferecesse uma “terra sem
homens para homens sem terra”, incentivando a vinda de fazendeiros do Sul do Brasil. Eles
estavam lá bem antes da viagem do navio “Rosa da Fonseca”, que durante a política de governo
chamada “Operação Amazônia”87 (1966 -1967), transportou em viagem luxuosa entre Manaus
e Belém quase trezentos investidores nacionais e estrangeiros, a quem eram oferecidas as terras
cobertas de florestas e ricas em minérios e, de acordo com o governo, vazia de gentes. A
socióloga Violeta Loureiro (1992) descreve esse momento:
O encontro é rico de simbologias. De uma forma simplista, dir-se-ia tratar-se do primeiro esforço
concreto do Estado autoritário no sentido de apresentar aos grandes investidores as riquezas da
região. E também garantir-lhes recursos, subsídios e facilidades de várias ordens, no que
concerne às matérias-primas e infra-estruturas, à apropriação privada da terra (ainda que com
sua gente dentro, como a história em breve começaria a registrar). (LOUREIRO, 1992, p. 77).

E quem era essa “gente dentro” que a história começaria a registrar e que para o governo
nem mesmo existia? Preciso falar do ciclo da borracha para falar dessa gente de dentro que

87
“O movimento denominado “Operação Amazônia” (1966/67) consistiu num conjunto de instrumentos de atração
de capitais, facilitando sua entrada com base em Incentivos Fiscais e oferecendo outras vantagens, como o fácil
acesso à terra e aos outros bens da natureza da Amazônia” LOUREIRO, 1992, p. 76.
99

povoava a Amazônia, mas que nem mesmo era vista como “gente”. Os cabanos que
sobreviveram ao fim da Cabanagem foram recrutados forçosamente para a reestruturação do
campo e isso abriu caminho para o período da borracha. O ciclo da borracha que tem seu início
em 1879 marcou profundamente o baixo Tapajós e reconfigurou a população que se espalhou
pelas beiras dos rios e igarapés da região. É preciso falar da borracha para demonstrar como na
virada do século XIX para o século XX se reproduziu na região o mais cruel regime de
exploração do trabalho, que arrancava a humanidade das pessoas as submetendo uma nova
forma de escravidão. Mas quem foram os escravos da borracha? O que eles têm a ver com os
cabanos de outrora? Qual a relação com os índios que lutam por reconhecimento e território? É
o que vamos entender no tópico seguinte.

Seringueiros
No livro “Os índios e a civilização”, Darcy Ribeiro (2009 [1970]) afirma que a economia
da borracha foi uma das “mais destrutivas e exigentes em vidas humanas, em sofrimento e em
miséria que jamais se conheceu”. Metaforizando: era como se as seringueiras chorassem, por
suas feridas, as lágrimas dos milhares de homens cujas vidas foram ceifadas em nome da alta
cotação da borracha, cujo período áureo foi entre os anos de 1879 e 1912. Época de grande
riqueza e transformação para as cidades de Belém e Manaus, que usufruíram de modernização
europeizada. A região que circunda Santarém foi uma das principais fornecedoras de borracha.
Nos meus caminhos de viagem para a TI Maró, pude ver seringueiras com troncos cheios de
cicatrizes deixadas por homens de uma época não tão distante assim. Conto essa história para
falar também da intrusão nos territórios indígenas e de como a população local se reconfigurou
naquele momento.
O ciclo da borracha foi um dos momentos mais expressivos da exploração humana e da
relação desigual entre o capital e o trabalho na Amazônia. A descoberta do processo de
vulcanização - que dá rigidez à borracha permitindo a fabricação de pneus de carro - pela
empresa americana Goodyear impulsionou, decisivamente, a demanda pela borracha
amazônica. Graças ao ciclo da borracha, as cidades de Belém e Manaus ganharam luxuosos
teatros, praças, bosques, monumentos, palácios e palacetes e planificação urbana aos moldes
europeus. Esse momento ficou marcado como a “Belle Époque”. A Europa era referência de
modernidade e civilização. Belém ganhou o apelido de Paris N’América e Manaus ficou
conhecida como a Paris Tropical. Ambas foram as primeiras capitais a implantar sistemas de
iluminação elétrica e de água e esgoto. As elites procuravam imitar não só a arquitetura
europeia, mas também os costumes.
100

Parece absurdo imaginar que, no forte calor tropical, os homens se vestiam com paletó,
casaca, gravata e chapéu de feltro, e as mulheres com grandes vestidos e chapéus cobertos de
plumas. Essa elite branca ostentava luxo, enquanto o resto da população não branca era
impedida de frequentar as áreas centrais das cidades, que contavam com forte sistema de
vigilância. A intenção dos governantes era manter a “assepsia” urbana, impedindo o povo
malquisto no centro, e garantir a segurança dos seringalistas: a classe privilegiada com as
riquezas da borracha.
A elite assistia óperas nos faustosos teatros sustentada pela mais cruel forma de
exploração do trabalho humano que a Amazônia conheceu. De um lado, o luxo de uma minoria
branca, do outro, a miséria da maioria não branca, conforme constata o jornalista Dutra (2012)
em seu blog:
No momento em que Belém, capital do Pará, era uma das cidades mais ricas do Brasil e a sua
elite branca exibia o luxo e a riqueza provenientes do ciclo da extração e exportação da borracha,
justamente nesse momento a cidade registrou mais mortes do que nascimentos em virtude de
doenças provocadas pela miséria da maioria não branca de sua população.

Os números e as causas de morte88 Dutra encontrou em um livro, publicado pelo


governo do Estado em 1900, elaborado para a ocasião de celebração dos 400 anos do
descobrimento. O relatório sanitário informa que os dados não são completos, pois naquela
época, como ainda acontece nos dias atuais, os números de óbitos, nascimentos e mortes
violentas89 muitas vezes não eram registrados. Dutra informa que o número de assassinatos era
elevado como ainda o é hoje, e associa os dados de outrora com os dados do presente,
concluindo que eles “revelam a principal causa daquilo que se chama comumente de ‘atraso’
da Amazônia: a brutal desigualdade, mostrando a existência de um reduzido grupo de pessoas
às quais nada falta, ilhadas próximo à maioria à qual quase tudo falta”. Hoje o centro da cidade
é cercado por bairros periféricos, onde a população não branca se concentra. Há muros
invisíveis que separam essa gente das baixadas, vítimas de violência e constantes alagamentos,
das que podem desfrutar de quase tudo.
Mas, vamos retornar ao tempo da borracha. Nas terras amazônicas brotavam os cauchais
(Castilloa elástica) e os seringais (Hevea brasiliensis). Ambas produziam o látex, a matéria
prima da borracha que ficou conhecido como o “ouro branco”. Na passagem do século XIX
para o século XX, o látex era muito apreciado nos mercados internacionais e ocorreu um

88
Doenças como a malária, o tifo, a febre amarela, béri-béri, tuberculose, varíola, sarampo, coqueluche, difteria e
as disenterias, eram a principal causa de mortes.
89
Nesse tempo de fartura para alguns, entre os anos de 1895 e 1899, foram assassinadas 226 pessoas em Belém,
um número alto para uma cidade de 100 mil habitantes.
101

verdadeiro boom da borracha. A exploração dos cauchais, realizada por bandos de caucheiros,
consistia no abatimento das árvores a fim de extrair todo o látex90. Esse tipo de exploração se
tornou insustentável, pois era preciso ir cada vez longe em busca de novos cauchais.
Sempre indo mais no interior da floresta, os caucheiros se deslocavam espalhando terror
e violência. Invadiam tribos e sequestravam mulheres e crianças, como forma de coagir os
homens a cooperarem na descoberta e usufruto de novos cauchais. Com a invasão das tribos,
eles garantiam “o abrigo, a alimentação e a satisfação dos seus apetites” (RIBEIRO, 2009
[1970] p. 37), em uma clara alusão à violência sexual cometida contra as mulheres indígenas.
Não demorou para que os cauchais ficassem escassos, o que deu início ao ciclo de exploração
do látex da seringueira, cujo processo de extração ocorre através do sangramento do tronco,
conhecimento que fazia parte da cultura indígena. Nesse caso, as áreas florestais garantiam
produção permanente e os seringueiros não precisavam se deslocar tanto, como faziam os
caucheiros. Mauro de Almeida (2004) fala que essa diferença na exploração do látex, entre
cauchais e seringais, foi acompanhada de “contrastes étnicos”:
Nos cauchais empregava-se mão-de-obra indígena, que era explorada de modo tão brutal e
temporário quanto as próprias árvores de caucho, sendo exemplo disso as atrocidades de
Putumayo e outras menos célebres de Madre de Dios/Mamoré. Já nos seringais do Acre, a mão
de obra era constituída de imigrantes nordestinos; a população local foi vítima de atrozes
“corredeiras”, em que os índios eram aniquilados não em função da submissão à disciplina do
trabalho forçado, mas para dar lugar aos imigrantes brasileiros. (ALMEIDA 2004, p. 37-38).

Fica claro que a população indígena, em qualquer das situações de exploração do látex,
era violentada. Não interessava se ela poderia gerar ou não retorno financeiro, para quem se
apropriava dos seringais, mesmo que com trabalho forçado. Muitos povos indígenas foram
aniquilados para “dar lugar” aos imigrantes brasileiros. Mas falar em “dar lugar” em uma região
tão vasta quanto a Amazônia e, naquela época ainda menos povoada, parece até brincadeira. O
que estava em jogo era o total desprezo, baseado em ódio formado pela crença na ideia de raça,
que existia contra os povos indígenas. Portanto, não apenas era uma questão material de
apropriação do território, era também uma questão racial, até porque naquela época as terras de
exploração dos seringais eram terras livres.
Ceder “lugar” aos imigrantes que, como logo veremos, foram também eles desprezados
em seus lugares de origem, significava colocar no lugar do índio uma população já miscigenada
e de certa forma integrada à nacionalidade brasileira. Portanto, que já se encontrava em algum
grau de tolerância diante de um Estado brasileiro influenciado por uma elite com ideais de

90
Cada caucho dava cerca de 30 quilos de látex por árvore.
102

branqueamento, a quem interessava exterminar os indígenas. De forma, que o racismo não é


apenas uma questão de submissão do outro para exploração do trabalho e geração de capital,
como sustentam algumas teorias, mas de total desprezo pela vida, que passa a não ter nenhum
valor.
Sustentada também pelo desprezo ao indígena, a exploração do látex induziu a uma
rápida transformação na economia e nos costumes locais. A fim de atender o mercado
internacional, todos os esforços foram direcionados para a produção da borracha. Nesse
momento, centenas de nordestinos sertanejos, fugindo da grande seca que assolou o Nordeste
entre 1877 e 187991, foram atraídos pela possibilidade de uma vida melhor na floresta.
Nos tempos coloniais, para o sertão haviam se deslocado grupos indígenas que
ocuparam a região do semiárido brasileiro. Barreto (2009) afirma que uma das primeiras
grandes secas de que se tem notícia ocorreu entre 1580 e 1583, quando “cerca de 5 mil indígenas
desceram o sertão em busca de comida”. Quase dois séculos depois o povo que fugia da seca
trazia também características de uma população indígena, mas também negra, provavelmente
liberta ou fugida da escravidão. Esses nordestinos sertanejos92 que fugiam da seca foram
chamados de retirantes. Cândido Portinari pintou “Os retirantes” (1944), que sintetiza toda a
penúria de uma família que foge da seca. A obra se tornou uma das imagens mais emblemáticas
sobre o tema:

91
Estima-se que morreram cerca de 500 mil pessoas por causa da Grande Seca de 1877 -79 no semiárido brasileiro.
92
A ocupação do semiárido nordestino foi intensificada desde que uma Carta Régia proibia a criação de gado em
uma faixa de dez léguas desde o litoral em direção aos sertões. Foi no século XVIII que os chamados sertanejos
ocuparam a região conhecida como Polígono das Secas (Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio
Grande do Norte, Sergipe e também Norte de Minas Gerais).
103

Figura 19: “Os retirantes”, Portinari (1944)

FONTE: http://www.doispensamentos.com.br/site/wp-content/uploads/2011/03/retirantes.jpg

Em 1860, os dirigentes da Província do Ceará decretaram a extinção dos índios. Nesse


mesmo período, com o fim da entrada de escravos no Brasil pela lei Eusébio de Queirós (1950),
o tráfico interprovincial de escravos, enviados para as plantações de café do Sudeste, foi tão
intenso que fez com que o Ceará fosse o primeiro a declarar a abolição da escravatura em 1884
(quatro anos antes da lei Áurea). Morto o índio e expulso o negro, o Ceará conquistara a imagem
de terra civilizada e moderna. Seguindo o ideal de uma sociedade branca, restava ao português
desbravador perpetuar seus descendentes na terra que seus dirigentes difundiram como Ceará –
Terra da Luz.
Vale notar que entre os retirantes em situação miserável estavam, sobretudo, os
descendentes de indígenas e negros, como mostra uma das raras imagens da época:
104

Figura 20: Vítimas da seca no Ceará 1877/78.

Fonte: Acervo Biblioteca Nacional

A chegada dos retirantes sedentos e famigerados à capital do Ceará, durante a grande


seca de 1877, teve como desdobramento o incentivo à migração para as Províncias do Norte.
Os migrantes eram destinados especialmente ao Maranhão e ao Pará, onde rios levavam ao
interior da floresta amazônica. Essa condição, segundo Barboza (2011), “contribuiu para o
cruzamento de rotas, destinos e identidades entre escravos fugidos, libertos mestiços e
migrantes pobres”. O autor percebe no migrante um papel ativo, mesmo com limitações, onde
existia a possibilidade de escolha dos seus caminhos, visto que as Províncias do Norte - a
Amazônia - proporcionavam zonas de contato e redes de solidariedade, pois existiam quilombos
e comunidades de fugitivos desde os tempos coloniais. Lá os “migrantes fujões questionavam
as instituições da escravidão e do racismo, recompondo projetos de vida, rotas de migração e
compartilhando experiências de opressão e projetos de liberdade”, afirma Barboza (idem, p.
369).
O relato de Barboza (2011), sobre a fuga de escravos 93 para o Norte, condensa a
complexa teia de relações entre pessoas, lugares e realidades:
No cotidiano de caos, escravos e migrantes começam a entrelaçar suas trajetórias. Na rota de
fuga de escravos havia também a prioridade de partir para as Províncias do Norte. Ao misturar-
se com os emigrantes e embarcar para o Pará ou Amazonas, “as possibilidades de manter a

93
Edson Barboza (2011) mostra em artigo uma série de anúncios que ofereciam recompensas para quem
encontrasse no Pará os escravos fugidos do Ceará. Alguns dos anúncios tinham teor de ódio racial, pois além de
caracterizar mutilações ou falta de dentes sofridas como castigo, falava de características físicas de uma forma
horrenda e repugnante, conforme esse trecho, de um anúncio de 1878, revela: “cabeça chata, testa de macaco,
olhos de porco, focinho de quati, tem uns cabelos raros no queixo e bigode de piaçava, cabelo carapinha, é cheio
para cima e tem as perna finas e tortas, nas espadoas mostra sinais de vergalhos; deve ter hoje 38 annos”. (Ibidem,
p. 411-412).
105

invisibilidade de sua condição era bem maior”. Além dos seringais, havia a chance de se
integrarem em obras de remodelamento e reformas em curso, graças ao “progresso” econômico
promovido pela exportação da borracha, e na composição de forças de segurança, como as
guardas municipais ou provinciais. Havia ainda colônias agrícolas, projetadas para o
povoamento e disciplinamento da população local para o trabalho, sem falar na oportunidade de
contato com comunidades de quilombolas e fugitivos encravadas no meio das matas. (ibidem,
p. 398).

A região do baixo Tapajós recebeu um grande número de migrantes nordestinos que


tentaram se estabelecer como seringueiros. Mas o sonho de uma vida melhor muitas vezes não
vingou. Era árduo o trabalho de extração do látex. Começava na madrugada quando, ferindo o
tronco, a seringueira produzia o leite, que com o nascer do dia afinava e às 10 da manhã cessava.
A extração do látex exigia ao seringueiro percorrer longas distâncias para encontrar as árvores
dispersas na floresta e esse era um trabalho solitário. Retornando da floresta era preciso se
dedicar a fazer as bolas de borracha. A imagem mostra o olhar de um seringueiro com a bola
de borracha que entregava aos seringalistas, cujo valor nunca era o suficiente para quitar sua
dívida com o patrão.
Figura 21: Seringueiro com a bola de borracha

Acervo Digitalizado do Memorial dos Autonomistas do Acre 94.

O seringueiro necessitava de bens básicos de sobrevivência, fornecidos pelo seu patrão,


o seringalista dono do barracão, que superfaturava os preços e desvalorizava o trabalho. Assim,
a dívida se tornava impagável. No barracão tinha de tudo um pouco e era o lugar onde os

94
www.altinomachado.com.br (30/12/2005)
106

seringueiros trocavam bolas de borracha por víveres. Não existia moeda e os patrões forneciam
a preços superfaturados o básico para a sobrevivência em troca da borracha. A própria viagem
já se tornava uma dívida, que junto com outras necessidades e a desvalorização do seu trabalho,
jamais conseguiria ser paga. Esse era o sistema de aviamento, no qual o patrão adiantava
equipamentos e mantimentos para o seringueiro e este deveria pagar com sua produção, a qual
nunca era suficiente para quitar a dívida, perpetuando-a. O seringueiro vivia um regime de
escravidão por dívida.
Nessa economia, explora-se um seringal até o seu esgotamento para então partir em
busca de outro. Não havia vinculação com a terra, mas sim uma peregrinação pelos rios por
onde se alcançaria o próximo seringal. Assim, indo mais longe, a exploração da borracha
alcançava as populações indígenas mais remotas. De acordo com Darcy Ribeiro:
Para o índio, o seringal e toda a indústria extrativa tem representado a morte, pela negação de
tudo o que ele necessita para viver: ocupa-lhe as terras; dissocia sua família, dispersando os
homens e tomando as mulheres; destrói a unidade tribal, sujeitando-a ao domínio de um
estranho, incapaz de compreender suas motivações e de proporcionar-lhe outras. Enfim,
submete o índio a um regime de exploração ao qual nenhum povo poderia sobreviver. Assim,
diante do avanço desta “civilização” representada pelos extratores de drogas da mata, só resta
ao índio resistir e quando isso se torna impraticável, fugir para mais longe, mata adentro, para
as zonas altas onde não cresce a seringueira. (ibidem, p.42)

Esse trecho de Darcy Ribeiro mostra o quanto a economia da borracha foi destrutiva
para os povos indígenas, que estavam no caminho de exploração das seringueiras. Para resistir,
muitos grupos se deslocaram para áreas onde não havia a árvore. Nos seringais mais próximos
dos portos de exportação, também viviam grupos indígenas remanescentes que desde os tempos
coloniais mantiveram contato com os neobrasileiros. Para eles, os indígenas forneciam mão de
obra ocasional e produtos florestais. Não obstante a relação contínua, os indígenas preservavam
seu modo de vida baseado no cultivo, caça, pesca e extrativismo e muitos conseguiam preservar,
mesmo de forma escondida, sua identidade étnica. O oeste do Pará95 era tão farto de seringueiras
que o Tapajós “era por excelência o rio da borracha” (REIS, 1979, p.168).
Quase nada existe de informação da situação indígena no período da borracha na
Amazônia brasileira. É uma história que não foi apagada porque nunca foi devidamente
registrada. É como se toda a violência sofrida pelos povos indígenas na época não merecesse
atenção. Um dos raros registros que encontrei foi uma reportagem96, da organização Survival

95
Na região do baixo Tapajós a exploração da borracha foi tamanha que o magnata americano Henry Ford
conseguiu a concessão de uma área de dois milhões de hectares de floresta, para construir uma grande indústria
acompanhada de uma company town, para a extração e produção da borracha: a Fordlândia. A indústria funcionou
entre 1927 e 1945.
96
Publicada em 1º de agosto de 2011. Disponível em http://www.survivalinternational.org/ultimas-noticias/7983
107

International, que conta que dois índios, irmãos Witoto da Colômbia, foram presenteados ao
Cônsul Britânico Roger Casement. Ele teria sido enviado à Amazônia pelo governo britânico
para verificar as atrocidades cometidas durante o período da borracha. No entanto, ele acabou
também cometendo um ato brutal ao aceitar o presente e levar os dois irmãos para a Inglaterra,
em 1910, a fim de divulgar os horrores que havia descoberto. Em 12 anos, Casement estimou
que cerca 30 mil indígenas “foram escravizados, torturados e assassinados” para suprir a
demanda de borracha para os Estados Unidos e Europa.
Mesmo após 100 anos que os irmãos Witoto foram levados, seus parentes ainda querem
saber o que houve com eles para que “os espíritos de nossos antepassados possam descansar
em paz” (Survival International, 2011), diz uma indígena. Eis a foto dos irmãos Omarino e
Ricudo, dois escravos Witoto, que foi publicada no jornal Daily News em 1911, quando
chegaram à Londres:
Figura 22: “Irmãos Witoto”

FONTE: © Cambridge University MAA

Por causa da borracha, pouco se produziu na Amazônia e grande parte dos gêneros
alimentícios passou a ser importado. No auge do ciclo da borracha, em 1910, ela representava
cerca de 40% das exportações nacionais. Nesse mesmo ano deu-se início ao declínio da
produção brasileira, com a introdução no mercado internacional de uma borracha de melhor
qualidade e mais barata, produzida nos seringais cultivados na Malásia. Tais seringais
resultaram do contrabando de 70.000 sementes de seringueira Hevea brasiliensis, da região de
Santarém no Pará, feito pelo botânico inglês Henry Alexander Wickham, em 1876. Na Malásia
as árvores foram plantadas lado a lado e em dez anos já produziam o látex. Não tardou para que
os seringais amazônicos fossem abandonados.
108

Essa situação foi revertida momentaneamente, entre 1942 e 1945, durante a II Guerra
Mundial, quando os nipônicos dominaram o Pacífico Sul e invadiram a Malásia. Os japoneses
impediram a comercialização da borracha asiática para os Estados Unidos, o que deu novas
esperanças para a produção de borracha na Amazônia. Nesse período, os Estados Unidos,
precisando abastecer sua indústria bélica, assinaram com o governo brasileiro os Acordos de
Washington. Os Estados Unidos financiariam a extração da borracha, enquanto o governo
brasileiro garantiria a mão de obra. Tais acordos significaram uma operação em larga escala de
extração do látex, que previa o aumento da produção anual de 18.000 para 45.000 toneladas.
Mas para alcançar essa meta seria necessário aumentar significativamente a mão de obra.
Na região amazônica havia cerca de 35.000 trabalhadores disponíveis, que por lá
ficaram depois do abandono dos seringais ao fim do primeiro ciclo da borracha. Para atingir a
produção estimada, seria necessária a força braçal de 100.000 homens. O então presidente do
Brasil, Getúlio Vargas, incentivou o alistamento compulsório para trabalhar na Amazônia. Tal
operação foi chamada de “batalha da borracha”, pois do Nordeste foram levados 54.000 homens
que se alistaram para fugir de mais uma prolongada e devastadora seca. Abro aqui “parênteses”
para falar mais uma vez da seca e das pessoas penalizadas por ela, que formaram levas de
migrantes à Amazônia. Depois da grande seca de 1877-79 e dos transtornos que ela causou,
como a chegada em massa de retirantes famigerados do Ceará à capital Fortaleza, o governo se
preparou de maneira desumana para novos episódios do gênero.
No ano de 1915, o governo cearense criou o primeiro “curral humano” 97, que era um
campo de concentração, onde os retirantes miseráveis ficavam confinados em área cercada por
arame farpado. Esse campo foi desativado logo após aquela gente, malquista pelas elites, ter
sido enviada para a Amazônia no mesmo ano. Em 1932, uma nova seca fez o governo recriar
esse campo de concentração e montar outros seis nas margens das ferrovias, que traziam trens
abarrotados de sertanejos fugindo da penúria da seca. Aqueles que não morriam no caminho
eram destinados aos campos, que chegaram a ter 73.918 aprisionados logo após sua abertura
(MUSEU DO CEARÁ, 2006). Os que morriam eram enterrados em vala comum. Uma imagem
da época choca e nos remete aos campos de concentração nazistas formados alguns anos depois.
A propósito dos significados do primeiro ciclo da borracha, que desde 1860 provocou a
migração de nordestinos à Amazônia – “Fala-se de 300 mil a 500 mil migrantes nordestinos
para a Amazônia durante o período de 1860 a 1912”–, Carlos Walter Porto Gonçalves escreve,
no livro Amazônia, Amazônias, um tópico intitulado “A borracha: o barracão, o outro lado da

97
O primeiro campo de concentração foi construído na região alagadiça de Otávio Bonfim (CE).
109

Revolução Industrial” (GONÇALVES, 2010, p. 86). O título do tópico alude implicitamente


ao conceito duplo modernidade/colonialidade, que nos leva à compreensão que “no puede haber
modernidad sin colonialidad” (Mignolo, 2014). O Sistema de Aviamento, que reduzia o
seringueiro à condição de escravo da dívida acumulada com o barracão do seringalista,
estabelecia a ligação entre o moderno e o colonial no Sistema Mundo (WALLERSTEIN, 1974).
Relação também hierárquica entre o seringueiro, prisioneiro da sua condição inferior, e o
seringalista que o explorava para fornecer a matéria prima industrial. A modernidade tem na
colonialidade sua face sombria, que despreza a vida humana, hierarquiza social e racialmente,
escraviza e mata. Como entende Walter Mignolo (2008), a modernidade produz feridas
coloniais racistas.
Figura 23: Crianças e adultos morriam ao lado da linha férrea que levava ao campo de
concentração de Senador Pompeu.

FONTE: MUSEU DO CEARÁ, 2006.

Quem eram essas pessoas tão desprezadas e desumanizadas que não combinavam com
os gostos da elite? Não teriam elas origens indígenas e africanas? Não teriam sido elas vítimas
de racismo? Vigiadas noite e dia por soldados, não podiam sair. A cabeça era raspada para
evitar piolhos. As vestes, sacas de farinha com um buraco para enfiar a cabeça. Eram
identificadas por números. Tinham água e comida escassa e controlada. Tudo para que essas
pessoas não chegassem à capital cearense, onde as elites desfrutavam da cidade que batizaram
de “loira desposada de sol”. Para as elites “aquela gente fedida, piolhenta, faminta e desesperada
110

tinha que ser mantida à distância”, como afirmou a jornalista Ballossier (2014) em reportagem
especial98 do jornal Folha de São Paulo.
Os Acordos de Washington davam uma nova chance de mandar toda essa gente
desprezada pelas elites para longe, nesse caso para os confins da Amazônia. Assim, o Governo
brasileiro incentivou o alistamento militar, principalmente na região castigada pela seca. Dos
54 mil nordestinos que se alistaram, cerca de 30 mil homens eram retirantes do Ceará. Eles
foram transformados em “soldados da borracha”. Houve inclusive recrutamento forçado de
jovens, que se não quisessem ir para a Amazônia seriam mandados para os fronts de guerra na
Europa. Os americanos investiram muito dinheiro para estruturar o envio dos novos
seringueiros para a Amazônia, como fornecimento de caminhões e de navios, que saiam dos
portos do Nordeste lotados de gente esperançosa. O governo prometia as maravilhas de uma
“vida nova” para os flagelados pela seca, conforme os cartazes produzidos pelo artista suíço
Chabloz, com a finalidade de atrair mais interessados:
Figura 24: “Vida Nova na Amazônia” Figura 25 “mais borracha para a Vitória”

FONTE: http://www.rondoniaovivo.com/noticia/soldados-da-borracha-a-propaganda-do-dip-e-o-pintor-suico-que-ajudou-a-
persuadir-nordestinos-a-virem-para-a-amazonia/90534

Os cartazes representam a ilusão de fartura, pois por mais que o acordo previsse a não
repetição da situação de escravidão do primeiro ciclo da borracha, depois de três meses de uma
dura viagem com condições insalubres, os soldados que sobreviviam eram entregues aos
seringalistas, já habituados a destinar os seringueiros a condições inumanas. Assim, os soldados

98
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/11/1554774-viagem-pela-memoria-de-campos-
de-concentracao-no-ceara.shtml
111

penaram com dívidas e muitos foram levados para a morte99 por doenças, ataques de animais e
solidão. Mauro Almeida conclui que “o trabalho escravo foi, assim, recriado na Amazônia
brasileira pelo próprio Estado, com apoio norte-americano” (ALMEIDA 2004, p.39).
A produção da borracha não atingiu o acordado e a batalha foi um fracasso. A guerra
acabou e enquanto era comemorado o seu fim, os muitos soldados confinados no meio da mata
só ficaram sabendo disso anos depois. O que representou a quebra da economia local e a miséria
de núcleos exclusivamente dependentes desse mercado se revelou como a salvação das
populações indígenas remanescentes na Amazônia (Ibidem).
Assim, os índios sobreviventes voltaram aos antigos territórios dos quais haviam sido
escorraçados e recomeçaram sua vida de nativos. Também o resto da população local retomava
as atividades agrícolas e voltava a garantir a sua subsistência. Nesse ínterim, “famílias se
formavam e cresciam, muitas delas frutos justamente da mistura entre migrantes (ou seus
descendentes) e índias. Os antigos seringueiros especializados eram agora camponeses da
floresta” (ALMEIDA 2009, p.21). Com o fim do ciclo da borracha, muitos dos novos habitantes
da Amazônia por ali ficaram e construíram suas vidas e famílias espalhados pelas margens dos
rios da região. Esse é também o cenário da região do baixo Tapajós, onde o movimento indígena
de reelaboração étnica assenta suas bases e identidades são afirmadas.

Desindianização oficial
A desindianização no Brasil foi sempre oficial. Em 1910, no Estado Republicano, foi
criado o primeiro órgão para prestar “assistência” aos índios do território nacional: o Serviço
de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais – SPILTN. Esse serviço de
proteção pode ser entendido como um eufemismo para a completa destruição da identidade
indígena que órgão pretendia concretizar, ao transformar o índio em trabalhador nacional.
Transformar em trabalhador para “civilizá-lo” era condição para que “assimilado” o indígena
se tornasse brasileiro. A política indigenista nacional nasce com a concepção racista de negar
ao índio sua indianidade. Ou melhor, de rejeitar o índio com tudo que se associasse à
indianidade. Esse era critério prioritário para que o Brasil alcançasse a desejada “civilização”.

99
Estima-se que cerca de trinta mil “soldados da borracha” morreram abandonados nos seringais. Muitos dos que
sobreviveram lutam ainda por aposentadoria. O caso do Sr. Antônio Falcão Ribeiro é emblemático: veio para a
Amazônia menino, acompanhando o pai, um soldado da borracha. Ele conta uma das muitas histórias de
sofrimento: aos oito anos de idade viu seu pai morrer e teve que enterrá-lo sozinho. Para quitar a dívida do pai
ainda ficou trabalhando como escravo naquele seringal por um ano. (Viagem pela Amazônia – Apogeu e queda da
borracha na Amazônia, em https://www.youtube.com/watch?v=1txwh-CHU18.
112

Para o Estado, ser índio era uma condição de transitoriedade, por isso se empenhou para
transformar os índios em “trabalhadores”.
O momento, começo do século XX, coincidia com a impregnação de ideias racistas que
colocavam o ideal branco europeu como centro do universo, todas as outras culturas
consideradas inferiores, bestializadas, devendo ser superadas. Para conquistar esse ideal
almejado, o processo civilizador do Estado brasileiro deveria intervir sobre o espaço geográfico
e dominar os grupos sociais considerados selvagens, que o ocupavam. Nada melhor do que
contar com agentes especializados para isso que registrariam as especificidades culturais dos
povos para melhor submetê-los e dominá-los. Esse foi o germe do nascimento da antropologia,
reproduzido aqui de acordo com o padrão europeu, quando a crença de diferenças biológicas
estabelecia uma hierarquia que colocava somente os brancos em condição plenamente humana.
A questão da antropologia brasileira será debatida no tópico sobre afirmação indígena. Retomo
agora as estratégias que o Estado usou para matar a indianidade dos sobreviventes dos tantos
genocídios indígenas ocorridos desde a colonização.
Por trás do discurso de proteção aos índios estava a intenção do Governo Republicano
de atender seus interesses de dominação territorial, aliando isso à afirmação de uma identidade
nacional. Dominar o território significava povoá-lo com gente “à imagem e semelhança” dos
governantes que viam a si mesmos como representantes da civilização. As regiões de fronteiras
- o Oeste e posteriormente a Amazônia –, isoladas dos grandes centros urbanos e com
populações indesejadas pelo Estado, precisavam de urgente intervenção. Era crucial para o
Estado interligá-las ao resto do Brasil, garantido o domínio do território e a transformação
daquela gente. O meio viável para isso era a construção de linhas telegráficas, então símbolos
da modernidade e do progresso, capazes de portar “civilização” aos seus remotos habitantes.
O engenheiro militar Cândido Mariano da Silva Rondon foi contratado para o
desbravamento e mapeamento das terras, o lançamento das linhas telegráficas e o
estabelecimento da relação com os povos indígenas que habitavam os vastos territórios. Nesse
trabalho, Cândido Rondon se destacou e acabou se tornando o idealizador e dirigente do
SPILTN100, que foi transformado em Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1918. O
sertanista tinha sucesso nas relações estabelecidas com os indígenas e creditava sua habilidade
aos ensinamentos de Auguste Comte. Tinha concepções racistas, que compartilhava com os

100
O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi planejado pelos integrantes do Ministério da Agricultura, Industria
e Comércio (MAIC), que desde sua instituição previram a criação de uma agência de civilização dos índios. Esses
integrantes frequentavam também o Museu Nacional e o Apostolado Positivista do Brasil. A intenção era oferecer
aos índios uma assistência leiga para acabar com a catequização católica e concretizar o princípio republicano da
separação entre Igreja e Estado.
113

integrantes do Apostolado Positivista do Brasil, que viam os indígenas como “fetichistas,


vivendo em estágios inferiores de civilização, [que] deveriam seguir a marcha da humanidade,
evoluindo para contribuir para o ‘progresso da nação’” (FREIRE 2010, p. 17).
Com esse pensamento de ajudar os índios no caminho da civilização, o tenente-coronel
Cândido Rondon estabeleceu um serviço para “protegê-los”, adotando o lema “morrer se
preciso for; matar nunca”. A bem-intencionada política do Estado se impôs de maneira
absolutamente racista ao oprimir e desrespeitar os indígenas em seus conhecimentos e em suas
diferenças, anulando a condição indígena. Foi uma política oficial etnocêntrica que desprezava
as dinâmicas socioculturais dos povos indígenas e os sujeitava ao lugar da barbárie, do
primitivismo, os destinando enfim à inexistência. O serviço de proteção encaminhou um projeto
que resultou na expropriação de terras indígenas e no consequente aniquilamento de povos e
culturas.
O historiador Fernando Silva Rodrigues, analisando imagens fotográficas e legendas
produzidas pela Comissão de Inspeção de Fronteiras, chefiada por Cândido Rondon, constatou
que: “onde fosse necessário, o ‘homem civilizado’ continuava pronto para levar a civilização
aos ‘bárbaros e selvagens’, através de uma catequização contemporânea cujo principal
instrumento era o sistema educacional” (RODRIGUES 2008, p. 61).
A aparente boa intenção de preservar “corpos vivos”101 disfarçava a decisão do Estado
de “arrancar deles a alma”. Era como se a política oficial ao encontrar o índio pregasse “te
preservo a vida, mas dela tiro o sentido. Anulo teu passado, teu presente e teu futuro. Renasces
agora em uma nova condição. Te tornas brasileiro. E, agora estás perdido de ti mesmo. Por onde
andas, procuras sem conseguir te encontrar, mesmo que te olhes no mais límpido espelho”.
Ocorria assim a destruição da indianidade.
Com o projeto de “civilizar” e com o objetivo de favorecer as frentes de expansão da
sociedade nacional, o SPI tinha como funções primordiais a “atração e a pacificação dos povos
indígenas”. Na realidade, incluso no projeto estava a prepotente imposição de uma cultura
dominante através de um serviço oferecido pelo Estado.
De acordo com Guran (2010), o órgão promoveu um dos momentos “mais intensos e
controvertidos nas relações interculturais contemporâneas em nosso país” (idem, p.7), pois
instituía a política indigenista controversa de pacificar, integrar e civilizar. Como dito, o serviço
estabelecido para proteger índios nada mais era que uma política oficial de desindianização,

101
A instrução de que os “índios nômades deveriam ser atraídos por meios brandos" foi dada pelo Decreto 8.072
(1910), que instituiu o Regulamento do SPI. Em 1928, a Lei nº 5.484 confirmou a instrução e dotou o Estado da
tutela dos índios, proibindo qualquer expedição armada contra eles.
114

dentro de um projeto intervencionista e civilizatório. O caminho que o Estado determinava era


o de progressivamente anular a indianidade para que “integrados e civilizados” os índios
deixassem de ser índios para se tornarem cidadãos brasileiros. Essa é a essência do projeto
assimilacionista que permanece de certa maneira até hoje como política oficial.
Para lidar com essa transição, o Estado precisava de uma definição legal do que
significava ser índio, a qual veio a ser instituída pelo Código Civil de 1916 e pelo Decreto nº
5.484 de 1928. Definido quem era o índio, já concebido de maneira genérica, ele passava a ser
tutelado pelo Estado brasileiro. Isso significava a construção de um aparelho administrativo
único, com funcionários públicos incumbidos de mediar a relação índios – Estado – sociedade
nacional. Para isso diversos postos indígenas foram estabelecidos e os indigenistas do SPI se
tornaram responsáveis por funções que iam desde a atração até a nacionalização do índio. Junto
com os postos vieram povoações e centros agrícolas, que resultaram em escassez e fome,
alastramento de doenças e consequente depopulação.
Das práticas católicas restou a herança de atração dos índios, ao modo dos jesuítas, pois
o Decreto nº 10.652 de 1942 estabelecia “postos, visando atrair o índio e fixá-lo pela cultura
sistemática da terra e o estabelecimento de indústrias rudimentares mais necessárias”. Caberia
às Inspetorias Regionais atrair e pacificar, por intermédio dos postos, o índio que vivesse em
estado selvagem (FREIRE, 2010). As atividades impostas aos índios eram padronizadas e
desconsideravam completamente as especificidades culturais e produtivas de cada povo. De
acordo com Oliveira (1988), as ações do SPI configuravam “paradoxos indigenistas” cheios de
contradições, porque ao mesmo tempo em que era um órgão formado para respeitar os índios
com suas terras e tradições, transferia os índios, liberava seus territórios para a colonização e
desconsiderava todo o sistema social, espiritual e produtivo dos povos indígenas. O SPI exercia
a imposição de uma pedagogia tecnicista autoritária.
No início dos anos 1950, o SPI contava com 18 turmas de atração dos índios. Destas,
10 turmas trabalhavam no estado do Pará e eram coordenadas por sertanistas. Na Amazônia
outro sertanista importante foi Francisco Meirelles que, nessa época, para estabelecer o contato,
ora invadia as aldeias, ora utilizava técnicas como o “namoro”, montando tapiris com brindes
e esperando uma resposta dos índios durante meses. Meirelles considerava a vida indígena rude
e afirmava que os índios queriam deixar de ser índios porque tinham uma sobrevivência difícil.
Como a vida dos trabalhadores brasileiros era também difícil, ele considerava a luta pelo
desenvolvimento social uma só. De acordo com Freire (2010, p.17), “justapunha-se, assim, um
positivismo economicista ao positivismo evolucionista rondoniano”. Na prática, Francisco
Meirelles estabeleceu uma série de articulações políticas a fim de garantir terras “produtivas”
115

para os índios, contudo, sem conhecer realmente a dinâmica de movimentação dos grupos. O
resultado dessa política integracionista foram incursões, financiadas pelos seringalistas, para
atrair e pacificar os índios, deslocando-os para fora da área de interesse econômico (idem).
Nesse período, de acordo com Darcy Ribeiro (2009 [1970]), os índios da Amazônia se
encontravam em situação de vida semelhante aos índios dos tempos dos descimentos para o
trabalho escravo e para as missões religiosas do período colonial.
Ali, índios e civilizados se defrontam e se chocam hoje em condições muito próximas daquelas
em que se deram os primeiros encontros da Europa com a América indígena. De um lado, são
índios armados de arco e flechas que, do recesso de suas matas, olham o brasileiro que hoje
avança sobre suas terras (...). De outro lado, são brasileiros engajados nas frentes de expansão
da sociedade nacional, que avançam por uma terra que consideram sua e veem no índio uma
ameaça e um obstáculo” (idem, p. 19).

Genocídio indígena no século XX

O Golpe de Estado no Brasil ocorreu em 1964 dando início a uma ditadura que durou
21 anos. Em 1967, o SPI passou a integrar o recém-criado Ministério do Interior, cuja política
era alinhada à Doutrina de Segurança Nacional. O Ministério tinha a função de ocupar o
território facilitando o desenvolvimento regional. Para isso foram criadas as agências de
desenvolvimento para as regiões. Na Amazônia foi criada a Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Com o objetivo de desenvolver economicamente a
região foram atraídos grandes projetos com incentivos fiscais. Construiu-se hidrelétricas e
abriram grandes estradas para integrar um território considerado “vazio de gente”. Para Elena
Guimarães102:

Estas terras, consideradas inaproveitadas e despovoadas, seriam “vias de penetração”, que


deveriam ser “tamponadas”. O que isso significa? Os índios são riscados do mapa. E o projeto
da abertura de estradas e a construção de hidrelétricas foram responsáveis por verdadeiros
genocídios, como o caso dos Waimiri-Atroari103, a partir dos anos 1970.

As atrocidades cometidas pelo governo contra os povos indígenas foram registradas pelo
procurador Jáder Figueiredo Correia. Ele produziu o Relatório Figueiredo, entre 1967 e 1968,
que denunciava em as mais cruéis e desumanas formas de violências cometidas pelo Estado

102
Entrevista concedida ao Instituo Humanitas Unisinos. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/547493-relatorio-figueiredo-crimes-continuam-50-anos-depois-entrevista-
especial-com-elena-guimaraes
103
“O massacre dos Waimiri-Atroari, ocorrido a partir de 1968, por ocasião da contrução da rodovia Manaus-Boas
Vista, a BR-174. O processo de invasão do território, para a construção da rodovia que corta o território Kinã
(Waimiri-Atroari), foi imposto pelos militares, provocando a morte de 2.000 índios no período da ditadura militar,
sobretudo a partir de 1968/1969” (GUIMARÃES 2015, p. 54)
116

através dos Postos Indígenas. As informações do relatório escandalizam o mundo e o relatório


ficou desaparecido104 por 44 anos, sendo redescoberto em 2014. Relatos sobre a tortura do índio
no tronco, cujos tornozelos eram triturados, de mulheres forçadas a trabalhar no campo um dia
depois do parto, entre outras torturas, estão registrados nas sete mil páginas do relatório:

É espantoso que existe na estrutura administrativa do País repartição que haja descido a tão
baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos, cuja bestialidade tenha atingido
tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de
indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a
título de ministrar justiça. (BRASIL 1967, p. 2)
(...)
Nesse regime de baraço e cutelo viveu o SPI muitos anos. A fertilidade de sua cruenta história
registra até crucificação, os castigos físicos eram considerados naturais nos Postos Indígenas.
Os espancamentos, independentes de idade ou sexo, participavam da rotina e só chamavam
a atenção quando aplicados de modo exagerado, ocasionavam invalidez ou morte.
Havia alguns que requintavam a perversidade, obrigando pessoa a castigar seus entes queridos.
Via-se, então filho espancar mãe, irmão bater em irmã e assim por diante. (ibidem, p. 3)

A repercussão internacional da violência do Estado brasileiro contra os povos indígenas


fez com que o governo extinguisse o SPI em 1967 dando lugar à Fundação Nacional do Índio
(Funai). O Estado se preocupou mais em proteger sua “imagem” internacional do que em punir
os agentes de postos do SPI. Granadas jogadas de aviões nas aldeias, caçadas humanas com
metralhadoras, doações de açúcar misturados com veneno, introduções propositais de varíola,
tudo revelado no relatório. A vida do indígena para os agentes dos postos do SPI não valia nada.
O Relatório Figueiredo devassou todo o ódio racial ao constatar que o nativo era tratado em
“Tudo – repetimos sempre – como se o índio fosse um irracional, classificado muito abaixo dos
animais de trabalho, aos quais se presta, no interesse da produção, certa assistência e farta
alimentação” (BRASIL 1967, p. 4). Em pleno século XX, os indígenas sofriam genocídios até
piores do que aqueles do período colonial.

104
A partir de 1968, com a instituição Ato Constitucional nº 5 iniciou-se o período mais duro da ditadura, foi
quando o Relatório Figueiredo desapareceu.
117

V - PROGRESSO: palavra de ordem de uma ideologia

“O nosso lema - que não é de hoje - é ORDEM E PROGRESSO. A expressão da nossa bandeira
não poderia ser mais atual, como se hoje tivesse sido redigida”. Michel Temer, Presidente do
Brasil. Discurso de posse em 12 de maio de 2016.

Falando para uma plateia “branca”, cercado por homens também “brancos”, que
disputavam um pedacinho da imagem transmitida pela televisão brasileira, o presidente interino
Michel Temer toma posse depois do impeachment sofrido pela ex-presidente Dilma Rousseff.
Um ato orquestrado pelo legislativo e judiciário levou seu vice-presidente a assumir o cargo
oficial de presidente do Brasil. No discurso de posse, Temer diz que pretende reproduzir uma
frase - que teria visto em um posto de gasolina - em dez/vinte milhões de outdoors pelo país. A
frase era “não fale em crise, trabalhe! ”. O presidente seguiu seu discurso enunciando o lema
do seu governo: “Ordem e Progresso”. O público aplaudiu eloquentemente. Após os aplausos,
ele segue dizendo que seu governo está fundado em um processo de alta religiosidade e pede
as bênçãos divinas. A equipe de governo apresentada não tinha nenhuma mulher, negro ou
índio. Estamos no ano de 2016.
Estampado em nossa bandeira nacional, “ORDEM E PROGRESSO” é lema que todo
brasileiro conhece desde a mais tenra idade. Raras são as bandeiras de países que trazem nelas
uma mensagem tão evidente. Associado à nossa nacionalidade está o lema positivista inspirado
em Auguste Comte, que pregava “Amor como princípio, Ordem como base; e Progresso como
meta”105. Lema que motivou a desindianização oficial a qual mutilou os indígenas em suas
culturas e contribuiu para o extermínio físico e cultural de vários povos. Tivesse sido o amor
não negligenciado, quem sabe os brasileiros o tivessem interpretado como o respeito à
alteridade e assim as relações sociais poderiam ter sido um pouco mais equilibradas. Mas
“progresso” foi palavra de ordem e nos acompanha desde a formação da nossa nacionalidade
até os dias de hoje, como aspiração do Estado e da sociedade. O que seria esse progresso tão
almejado?
A busca pelo “progresso” no Brasil sempre apontou para o futuro e tem servido para
justificar atitudes e decisões autoritárias, sejam elas de caráter material, como obras e projetos
de investimento, ou mesmo de caráter simbólico, ao conformar a sociedade brasileira de acordo
com os ideais dos governantes, representantes das elites econômicas. Como o desenvolvimento,
que o “progresso” prega, está sempre em um futuro que não chega, pois nunca se torna presente,
o Brasil ao logo de sua história caminha sempre em uma direção que parece ser inalcançável.

105
L'amour pour principe et l'ordre pour base; le progrès pour but.
118

Ainda no início do século XIX, o Brasil era descrito de uma forma que combinava
elogios à natureza exuberante e à estranheza de seu povo “exótico”, que mais parecia compor
essa esquisita natureza do que serem humanos reconhecidos em sua alteridade. Um breve aceno
de elogio dava abertura à total repugnância que fazia da América um lugar estranho e decaído
que com sua gente era de todo inferior. Lilia Schwarcz afirma: “O fato é que, seja nas versões
mais positivas, seja nas evidentemente negativas, esse Novo Mundo sempre foi “um outro”,
marcado por suas gentes, com costumes tão estranhos. Isso tudo num período em que “raça”
nem ao menos existia como conceito definido” (2013, p. 21).
Já no final do século XIX, a modernização do país era anseio urgente e em nome dela
se derrubou a monarquia e junto com ela o sistema escravagista. O projeto de construção do
Brasil estava em consonância com a criação dos estados modernos que buscavam a formação
de uma comunidade nacional, forjando um novo sentimento de pertencimento identitário, que
se sobrepusesse às ligações afetivo-comunitárias anteriores.
Era urgente para a classe dominante conformar um estado brasileiro que imitasse os
países Europeus ou mesmo os Estados Unidos, referenciais de civilização, modernização e
progresso. Para os abastados donos de engenho, para os fazendeiros de café e para os grandes
comerciantes, era fácil imaginar um Brasil opulento, em termos monetários, já que se aliavam
para determinar os rumos da construção da nova nação. Mais difícil para eles era entender o
que fazer com a população que ficou de herança do sistema escravagista e também com o que
restava da população nativa.
A ideia de que progresso do país dependia não apenas do seu desenvolvimento econômico ou
da implantação de instituições modernas, mas também do aprimoramento racial de seu povo,
dominou a cena política e influenciou decisões públicas das últimas décadas do século XIX,
contribuindo efetivamente para o aprofundamento das desigualdades no país, sobretudo, ao
restringirem as possibilidades de integração da população de ascendência africana. (JACCOUD,
2008, p. 49).

Trazer a civilização para o país se fazia imprescindível e isso apresentava uma tensão
entre a imagem ideal da população e a realidade do povo pobre e simples, com o qual a elite
“olhando do alto” em nada se identificava e assim optava por o depreciar, o anular. Márcia
Naxara (1998) questiona quem deveria então ser chamado de povo, se todos ou somente alguns
brasileiros, e a essa indagação a autora responde com clareza: “depende de quem se fala, a
respeito de quem se fala e a quem se dirige a fala” (ibidem, p. 48). O que torna evidente um
conflito entre o que era a população e o que se desejava que ela fosse, a imagem quase
inalcançável que dela se almejava. Assim, criou-se uma imagem degradante do que é o
brasileiro. Uma figura negativa representava esse povo, tipificada na literatura, no início do
119

século XX, por Monteiro Lobato106, que criou o personagem Jeca Tatu: um mestiço indolente,
doente, ignorante, despreparado, incapaz de exercer cidadania, completamente desamparado
pelo poder público. Márcia Naxara fala da influência estrangeira que fez com que as elites locais
rejeitassem essa condição do brasileiro e fizessem “tabula rasa de sua existência”:
Um Brasil que foi, na maior parte das vezes, descrito por viajantes estrangeiros
impregnados do etnocentrismo europeu e procurando o exótico nos mundos tropicais
das antigas colônias. Em contato com a elites locais viram os grupos subalternos de fora,
imersos nas sombras da pobreza e da miséria, esmagados pelo peso do trabalho escravo,
feios, incapazes de constituir o povo de uma nação. (NAXARA, 1998, p. 38 – 39)

Fundou-se a ideia de que somente um país branco alcançaria os ideais do liberalismo e


do progresso. Para as elites que aspiravam à modernidade, grande era o desejo de formar uma
nação que respondesse a essa aspiração, mas o que fazer com o negro, o índio, o mestiço, que
formavam essa população indesejada e desfigurava o ideal de nação das elites brancas? Era
urgente encontrar uma solução para assim lidar com uma população racialmente heterogênea.
Função dada aos intelectuais da época que, oferecendo suporte à classe dominante, não obstante
as influencias das teorias europeias107, encontraram uma solução tanto criativa quanto absurda:
o gradual “branqueamento da raça”.

Progredir branqueando a sociedade


No início da construção de uma identidade nacional, consolidada a partir da formação
do Estado Republicano, vigorou o racismo científico. Os intelectuais brasileiros bebiam as
ideias europeias que justificavam diferenças entre os homens. Desde Conde de Buffon,
considerado fundador da antropologia, que teria usado na metade do século XVIII pela primeira
vez a palavra “raça”108 se referindo a humanos, passando pelas teorias racistas109 de Gobineau,
o homem branco foi entendido como o ser superior: o único capaz de estar acima da linha do
humano. Os não brancos foram completamente bestializados, inferiorizados e desprezados em
sua condição humana.

106
A obra de Monteiro Lobato reflete o racismo que permeava todos os campos da vida nacional. Ele representou
através da literatura todo o desprezo por aqueles considerados inferiores para a construção da nacionalidade: os
índios e os negros. Sua obra contribuiu também para imprimir na população um caráter de desprezo por si mesma.
Poucos anos depois da criação do personagem, Monteiro Lobata imprimiu nele um caráter menos racial que
higienista: Jeca Tatu passou a ser fruto doenças epidêmicas.
107
Positivismo, evolucionismo e darwinismo social.
108
Ver Laraia 2005.
109
Lilian Schwarcz elenca várias teorias de viajantes no período em “O Espetáculo das Raças” (2004).
120

Assim, o homem branco foi considerado nos planos biológicos e morais como superior.
Já o negro era associado à natureza bárbara e, pela condição de ter sido escravizado, era tido
como ser irracional destinado à servidão. Não obstante contrariar todas as evidências genéticas,
os intelectuais brasileiros chegaram à esdrúxula conclusão que, através da mistura, o
“elemento” negro se diluiria e permitiria formar através do branqueamento a desejada sociedade
brasileira.
Dante Moreira Leite, em seu livro “O Caráter Nacional Brasileiro – História de uma
Ideologia” (1969), faz um apanhado dos teóricos brasileiros que influenciaram na construção
da nacionalidade brasileira. Para Sílvio Romero (1851 – 1914) o branqueamento salvaria a
população da degeneração. Já Euclides da Cunha (1866 – 1909) acreditava que o mestiço do
Norte, resultado da mistura do branco com o índio, já havia se constituído enquanto raça,
estando assim apto ao desenvolvimento mental. Esse entusiasmo com a mestiçagem está na raiz
da ilusão de que no Brasil a questão da raça não seria um problema, como era em outros países.
No entanto, o escancarado preconceito contra índios e negros no Brasil se deu através
de Nina Rodrigues (1862 – 1906), que acreditava piamente no evolucionismo do século XIX e
relacionava a inferioridade do país tanto à presença dos negros quanto à dos mestiços. Moreira
Leite afirma que foi Oliveira Vianna (1883 – 1951) quem escreveu as palavras mais cruéis e
injustas em relação aos negros110, e que apesar das críticas recebidas, seus livros tiveram várias
edições, “como se representassem algo mais que a imaginação doentia de um homem que deve
ter sido profundamente infeliz” (1969, p.231).
No entanto, Moreira Leite mostra que a obra de Oliveira Vianna revela para o sociólogo
e para o psicólogo “a crueldade do domínio de um grupo, por outro: o grupo dominado acaba
por se ver com os olhos do grupo dominante, a desprezar e odiar, em si mesmo, os sinais que
os outros consideram sua inferioridade” (ibidem). É nesse movimento de desprezo por si mesmo
que foi germinada a semente do preconceito e do racismo. Cor escura da pele, traços, cabelos
se tornaram um estigma, com o qual era difícil lidar, mais fácil seria anular. A origem indígena
associada ao estado selvagem, ao atraso e à ignorância era melhor ser esquecida. Assim, o
racismo foi penetrando nas pessoas como algo íntimo, que de tão pessoal foi transmitido nas
gerações sorrateiramente, não como algo escancarado, mas talvez mais nocivo por ter sido
velado, confundido, não reconhecido.

110
Para Oliveira Vianna o negro é “simiesco, troglodita, decadente moral, inferior” (MOREIRA LEITE, p.231).
O mestiço também era considerado inferior e ele propunha um governo capaz de “impor novamente a mortalidade
da senzala” (Ibidem).
121

A mestiçagem como herança


A mestiçagem, incentivada com o objetivo do branqueamento, deixou heranças que
ainda hoje persistem na sociedade brasileira. Lembro-me do relato de uma amiga: a família (de
pele clara) havia passado dias na praia e a ela falou para seu filho, de cinco anos, que ele estava
ficando “preto” de tanto tomar sol. Imediatamente o menino começou a chorar desesperado. Ao
me contar isso, ela nem se deu conta de quão racista tinha sido o episódio. Eu me perguntei:
como uma criança teria horror de se tornar negra? Dei-me conta do quanto o racismo é
internalizado e naturalizado, fazendo com que as pessoas nem percebam seus próprios
sentimentos, consequentemente suas ações e a reprodução delas. Essa e tantas outras histórias
corriqueiras brotaram na minha lembrança e me fizeram perceber o quanto a semente do
racismo, regada pela ideologia do Estado, criou raízes profundas. Raízes que sufocaram o
florescer de uma sociedade mais justa, mais equilibrada, na qual o racismo fosse reconhecido e
combatido.
Acontece que progresso e racismo caminharam de mãos dadas na formação do
Brasil/Nação e dos brasileiros/povo. O negro, finalmente liberto do seu senhor, era condenado
à prisão da inexistência, pela negação da sua “raça” pela sociedade e também por si mesmo. Os
diversos tons de “morenices” substituíram o reconhecimento do negro, que passou a ser aquele
que combinava características fenotípicas ao tom muito escuro de pele. Negro por muito tempo
passou a ser determinação dada pelo outro, pois árduo era se reconhecer como tal. Constata
Kabengele Munanga:
Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num país que desenvolveu o desejo de
branqueamento, não é fácil apresentar uma definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras
que introjetaram o ideal de branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão
da identidade do negro é um processo doloroso. Os conceitos de negro e de branco têm um
fundamento etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico (2004, p.
52).

Esse sentimento de afastamento da negritude e adoção de múltiplas identidades foi


revelado na pesquisa PNAD de 1976 (IBGE- PNAD, 1976), que levantou 136 diversidades de
tons de pele na população. Sobre o resultado dessa pesquisa, Clóvis Moura (1988) o percebe
como uma fuga dos brasileiros em relação às suas identidades com a intenção de se
aproximarem o máximo possível do modelo considerado superior. Seria essa uma fuga
consciente? Ou melhor, isso de fato seria uma fuga ou o resultado de uma política racial
promovida pelo Estado e abraçada pela população? Acredito que a pesquisa revelou uma
configuração racial onde a mistura é percebida como característica marcante das auto-
122

identificações e que esses diversos tons entre o negro e o branco expressam sim a realidade
brasileira, embora com isso eu não queira dizer que não exista o racismo.
À diferença do “racismo científico”, a tese do branqueamento sustentava-se em um otimismo
face à mestiçagem e aos “povos mestiços”, reconhecendo, dessa forma, a expressiva presença
do grupo identificado como mulato, sua relativa mobilidade na sociedade da época e sua
possibilidade de continuar em uma trajetória em direção ao ideal branco. (JACCOUD, 2008, p.
49)

Uma das estratégias do projeto de branqueamento da sociedade foi o incentivo à


imigração europeia: entre 1884 e 1959 chegaram ao Brasil 4.734.494 imigrantes. O projeto de
branqueamento deu lugar à ideologia da democracia racial, sustentada em toda a era Vargas
(1930-1945) até o período da redemocratização no Brasil (década de 1980). Enquanto vigorava
o mito da democracia racial, a miscigenação e a valorização do mulato eram parte de um
movimento da sociedade que almejava se branquear. Porém, de acordo com Tadei (2002), a
mestiçagem é um dispositivo com as seguintes características:

Incita à mistura étnica; coloca a sexualidade num plano estratégico, ou seja, como o veículo
capaz de promover a confraternização das etnias; dilui a identidade nacional, ao apostar num
amálgama capaz de unir os vários elementos que compõem nossa nacionalidade, porém,
manobra essa identidade em construção para determinadas direções, conforme a conjuntura de
cada período de nossa História; coloca-nos numa busca insistente pela nossa identidade
nacional, impedindo um envolvimento maior com a própria nacionalidade por parte dos
brasileiros; ele é, ainda, produtor de subjetividades dóceis e maldelimitadas, uma vez que
promove a mistura étnica apagando as origens, apagando o passado e suas contradições,
voltando-se para o futuro e deshistorizando as raízes históricas individuais e nacionais. (TADEI,
2002, p. 8-9)

Essa “deshistorização” das raízes individuais e nacionais e a tentativa de apagar o


passado, revelador das origens, que promove a mestiçagem, é combatida pelos coletivos
indígenas. Os indígenas se comunicam internacionalmente e denunciam essa estratégia política
de anulação do Outro, conforme esclarece Rigoberta Menchú:
Quando os Espanhóis chegaram há quinhentos, eles estruparam nossos ancestrais, nossas avós,
nossas mães para procriar uma raça de mestiços. O resultado é a violência e a crueldade que nós
estamos ainda vivendo hoje. Os Espanhóis usaram um método vil para criar uma raça misturada,
uma raça de crianças que duvidam das suas próprias identidades, com a cabeça de um lado do
oceano e os pés no outro. Isso é o que aconteceu com a nossa cultura111. (2003, p. 132).

111
When the Spaniards arrived five hundred years ago, they raped our ancestors, our grandmothers, our mothers
to breed a race of mestizos. The result is the violence and cruelty that we are still living with today. The Spaniards
used a vile method to create a mixed race, a race of children who doubted their own identity, with their heads on
one side of the ocean and their feet on the other. That is what happened to our culture. (MENCHÚ 2003, p. 132).
123

A metáfora usada por Menchú -“cabeça de um lado do oceano e pés do outro”- é forte
e elucidativa. A ideologia, o desejo de ser o branco europeu, com saberes, culturas e estética,
reside na cabeça das pessoas. É expressão da colonialidade do ser que se submete a querer ser
um outro inalcançável. Os pés significam a base, o estar em um lugar não confortável porque
cultura, saberes e estética locais foram rejeitados. A metáfora expressa que houve a imposição
de uma cultura sobre a outra. Não houve diálogo, troca e respeito. Houve sim a imposição da
ideologia da superioridade do europeu sobre o nativo americano, que persiste através dos
tempos como uma colonialidade. Um mito que prossegue despedaçando o mestiço em um ser
dividido, a cabeça na Europa e os pés na América Latina. Menchú enfatiza que o passado não
pode ser reduzido a mitos. Para ela, o passado “deve ser uma fonte de força para o presente e o
futuro”112 (ibidem).

A crença no mito da democracia racial


A desigualdade explicada pelos aspectos biológicos é substituída pela análise cultural
e social, a partir da década de 1940, quando o discurso de raça perde força no cenário político
e dá lugar à crescente valorização da mestiçagem e da convivência harmoniosa entre raças,
fazendo parecer que pelo menos nesse aspecto o Brasil seria superior aos demais países racistas.
Esse era o momento em que o Nazismo, pregando a pureza da raça, havia chocado o mundo e
nos Estados Unidos ainda vigorava a virulência das leis de Jim Crow, que instituíam a rígida
separação entre negros e brancos, especialmente nas escolas e nos espaços públicos. Era o
cenário ideal para que finalmente o Brasil, que sempre buscou respaldo no campo internacional,
se afirmasse de maneira positiva através do seu modelo de democracia racial.
Essa crença se fortaleceu através da obra de Gilberto Freyre, especialmente no livro
“Casa Grande & Senzala” publicado em 1933, onde ele reinventou e suavizou a história
escravista, desconsiderando toda a crueldade que a perfaz. Influenciado pela tese culturalista de
Franz Boas, segundo a qual é o ambiente social que explica as diferenças entre grupos raciais,
descartando a ideia de características inatas das raças, Gilberto Freyre destorce a teoria de Boas
a seu modo e cria uma imagem de convivência pacífica entre senhores e escravos, enfatizando
uma tolerância, sobretudo um otimismo em relação à mestiçagem. No entanto, em sua obra está
implícita a sustentação da ideia do branqueamento (HOFBAUER, 2006). “A novidade estava
na interpretação que descobria no cruzamento de raças um fato a singularizar a nação, nesse
processo que fazia com que a miscigenação parecesse, por si só, sinônimo de tolerância”
(SCHWARCZ, 2013, p. 28).

112
The past must be a source of strength for the presente and the future (MENCHÚ 2003, p. 132).
124

Dante Moreira Leite interpreta com maestria o conteúdo da obra de Gilberto Freyre,
demonstrando como ela é escrita a partir do ponto de vista da classe dominante brasileira, ou
seja, o quanto ela é ‘profundamente reveladora’ dos seus preconceitos mais conservadores e
arraigados, afirmando que:

A obra de Gilberto Freyre revela uma profunda ternura pelo negro. Mas, pelo negro escravo,
aquele que conhecia “a sua posição” – como o moleque da casa-grande, como o saco de
pancadas do menino rico, como cozinheira, como ama de leite ou mucama da senhora. Nesses
casos, o branco realmente não tinha preconceito contra o negro, podia até estimá-lo. (...) E nada
revela melhor esse preconceito contra o negro – ou seria melhor dizer, essa atitude escravocrata
– do que as ideias de Gilberto Freyre a respeito da evolução econômica e social do Brasil. Para
ele o negro vivia melhor sob a escravidão do que no regime de liberdade de trabalho; a
alimentação do escravo seria melhor até do que a do senhor branco. No entanto, embora diga a
certa altura que a vida do escravo ‘não era apenas de alegria’, não dá elementos da vida concreta
do escravo – a não ser nos aspectos em que esta se ligava à vida dos senhores. (MOREIRA
LEITE, 1969, p. 281)

Modelo de harmonia racial para o mundo? A queda do mito.


É na dimensão cultural que o mito da democracia se enraíza na sociedade com a ilusão
de valorização do “povo brasileiro” tão integrado racialmente. A fusão dos grupos raciais
através da miscigenação teria permitido a construção de uma nação integrada e essa propaganda
escondia as faces cruéis de um racismo que na prática persistia. Racismo que foi revelado
internacionalmente quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), buscando uma receita de harmonia das relações raciais, que o Brasil
divulgava ter, patrocinou uma extensiva pesquisa em 1950 a fim de compartilhar com o mundo
o “modelo exemplar”.
Os cientistas sociais logo chegaram à conclusão de que as três “raças” foram misturadas
para formar uma sociedade onde as tensões e conflitos fossem suavizados. A pesquisa também
ressaltou o quanto o racismo atingia os afrodescendentes que sofriam com situação de
desvantagem social, e cujas características físicas eram consideradas feias. As revelações dessa
pesquisa pareciam inéditas, sobretudo na academia, pois inúmeros pesquisadores a apontam
como o ponto de partida de uma percepção de um país racista, embora, a essa altura, já houvesse
no Brasil um movimento de valorização do negro e de combate ao racismo. Os resultados
acadêmicos dessa pesquisa da UNESCO não resultaram em reconhecimento e mudança de
atitude por parte da população. Foi uma pesquisa descolada de uma ação prática mais
envolvente.
125

Isso era o que temia o sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos, que organizou
junto com o grupo do Teatro Experimental do Negro (TEN)113, cujo idealizador foi Abdias
Nascimento, o 1º Congresso do Negro Brasileiro114, em agosto de 1950, onde ele apresentou
um documento que propunha à UNESCO o patrocínio de um “Congresso Internacional de
Relações de Raça”. O objetivo seria discutir a adoção de medidas de combate ao racismo, com
base na experiência do TEN - com ênfase no sociodrama e psicodrama para melhorar a
autoestima e valorizar a estética do negro-, definindo uma agenda política orientada de
intervenção social, em vez de limitar o investimento apenas em investigações acadêmicas.
Guerreiro Ramos, privilegiando o ativismo negro, propunha à UNESCO uma sociologia de
cunho pragmático de âmbito internacional com o incentivo de atitudes e valores novos em
relação às populações discriminadas, através das seguintes iniciativas:
a) a utilização do teatro como instrumento de integração social; b) os concursos de beleza
racial como processo de desrecalcamento em massa; c) as tentativas de aplicação em massa
de sociatria e de grupoterapia; d) a utilização de museus e filmes como instrumentos de
transformação de atitudes”. (GUERREIRO RAMOS apud MAIO 2015).

Contudo, ao mesmo tempo em que propunha uma aplicação mais prática da pesquisa,
Guerreiro Ramos115 considerava que o problema de classe se sobrepunha ao problema de cor,
e lembrava um ditado popular comum na Bahia, que diz que o branco pobre é negro e o negro
rico é branco (idem), ou seja, quanto mais rico social e culturalmente, menos preconceito o
negro sofria. Diferente de muitos ativistas negros brasileiros, que seguiam piamente os passos
do movimento negro americano, ele demonstrava o quanto a situação do negro no Brasil
divergia da americana, e enfatizava a discriminação por classe. Pesquisadores116 demonstraram
o quanto a raça está interligada à classe e o quanto é falsa a ideia de que progredir
economicamente e/ou educacionalmente significaria uma inclusão social, um
“branqueamento”.

Um exemplo disso foi a chegada dos médicos cubanos negros que vieram ao Brasil,
dentro do programa “Mais médicos” do Governo Federal, atender a população mais desassistida

113
O TEN foi criado em outubro de 1944, no final do período do Estado Novo, sob a liderança do jornalista e
teatrólogo Abdias Nascimento. “O TEN propunha-se a combater o racismo, que em nenhum outro aspecto da vida
brasileira revela tão ostensivamente sua impostura como no teatro, na televisão e no sistema educativo, verdadeiros
bastiões da discriminação racial à moda brasileira” (NASCIMENTO, 2004, p. 221).
114
Estiveram presentes os cientistas sociais Roger Bastide, Darcy Ribeiro, Charles Wagley, Luiz de Aguiar Costa
Pinto. Protagonizaram o evento os intelectuais negros Édison Carneiro, Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento.
Também estavam presentes os ativistas negros e os parlamentares Afonso Arinos de Melo Franco e Hamilton
Nogueira. Os coordenadores do evento solicitaram apoio de órgãos governamentais e agências internacionais
(ONU, UNESCO) (Maio, 2015).
115
Guerreiro Ramos compartilhava as ideias de Donald Pierson (1945) sobre as relações sociais no Brasil.
116
Howard Winant (1992); France Twine (2000).
126

no interior do país, em 2013. Eles foram recebidos no aeroporto de Fortaleza (CE), cidade um
dia chamada pela elite de “loira desposada de sol” (ver cap. IV), por um grupo de médicos
brasileiros, que gritavam a plenos pulmões: “escravos, escravos”, “incompetentes”, “voltem pra
senzala”. A “casa grande” se sentiu incomodada.
Figura 26: Chegada dos médicos cubanos no Brasil

FONTE: http://www.geledes.org.br/wpcontent/uploads/2013/09/m%C3%A9dicoscubanos.jpg

A repercussão da notícia do racismo no recebimento de médicos cubanos não impediu


as pessoas de darem publicamente suas opiniões, que relacionavam explicitamente “raça” e
“classe” como a aparência que deveria ter um médico. Uma jornalista branca publicou sua
opinião no Facebook:
Figura 27: Postagem racista em rede social

FONTE: http://s2.glbimg.com/fL1V9Cq1ZSDiAYuH_2UadJzX47Q=/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2013/08/27/borrada.jpg
127

Guerreiro Ramos, ao separar sua análise de classe e raça, era contrário à organização
política do Movimento Negro. Ele queria uma mudança estrutural da sociedade, o que não era
possível alcançar se a análise não fosse ampliada e politizada como sustentavam militantes e
intelectuais negros, como Abdias Nascimento, que considerava:
Era urgente uma ação simultânea, dentro e fora do teatro, com vistas à mudança da mentalidade
e do comportamento dos artistas, autores, diretores e empresários, mas também entre lideranças
e responsáveis pela formação de consciências e opinião pública. Sobretudo, necessitava-se da
articulação de ações em favor da coletividade afro-brasileira discriminada no mercado de
trabalho, habitação, acesso à educação e saúde, remuneração, enfim, em todos os aspectos da
vida na sociedade. (...) O TEN organizou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro para atuar a
nível político, reivindicando medidas específicas para melhorar a qualidade de vida de nossa
gente. (NASCIMENTO 2004, p. 221)

A situação racial brasileira merecia e ainda merece uma análise mais aguçada, a fim de
se encontrar o tom certo para o problema da cor. Considero que o problema não se restringe à
cor. O indígena foi completamente negligenciado nos estudos raciais. Desde a metade do século
XX, quando se consolidaram os estudos que revelavam o quanto o racismo era presente nas
relações, a questão do racismo contra o índio foi completamente apagada. Talvez porque nessa
época se acreditasse que as populações indígenas logo seriam exterminadas. Um vídeo
revelador sobre o racismo choca até hoje as pessoas. É a aplicação de um teste realizado pela
primeira vez nos anos de 1940, pelo psicólogo americano Kenneth Clark, onde crianças negras
e brancas deveriam apontar características físicas e morais de duas bonecas: uma negra e uma
branca. O teste foi reproduzido várias vezes e demonstra o quando características positivas são
associadas à boneca branca e negativas à negra.
Em um país latino americano, crianças mestiças com traços evidentemente indígenas
participaram da mesma experiência117. Em um momento perguntavam qual das bonecas se mais
pareciam com elas, se a branca ou a negra. As crianças de pele morena, cabelos lisos e pretos e
olhos pretos respondiam, com certa dúvida, a branca. Não havia uma boneca disponível que
retratasse verdadeiramente a imagem das crianças. A pesquisa era maniqueísta, como o foram
os diversos estudos raciais que desprezavam completamente a condição indígena da população
latino-americana.
A situação de classe é também fruto da histórica discriminação racial. No Brasil, traços,
cabelos e cor da pele ainda distinguem o tratamento e o acesso às oportunidades de pessoas
com as mesmas origens ou condições sociais. Schucman (2012) revela como mesmo na situação

117
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Sq4z2Vq2K1w
128

de miséria a cor branca concede privilégios. A pesquisadora relatou que um morador de rua
branco disse que ainda podia ter acesso a banheiros ou mesmo entrar em um mercado para
comprar algo, o que aos moradores de rua negros não era permitido. Se, por um lado, a
reprodução do modelo de combate ao racismo americano não serve na sua totalidade ao Brasil,
por outro a consciência e engajamento político são essenciais para a transformação das relações
raciais.
Se o ponto fraco de Guerreiro Ramos foi menosprezar o ativismo político em detrimento
de classe e cultura, seu mérito foi acreditar que “o estudo sociológico e a ação prática deviam
ser concomitantes, de tal forma que a formulação das pesquisas exigia uma clara definição de
seus alvos políticos”, afirmou o professor Marcos Maio (2015, p.86), que completou:
“Guerreiro Ramos acreditava que ‘o problema do negro’ não seria resolvido caso medidas
tópicas não viessem acompanhadas por transformações estruturais” (idem, p 87). De acordo
com Marcos Maio, a sugestão de Guerreiro Ramos foi publicada, em setembro de 1950, na
Declaração Final do Congresso do Negro, ao lado de outra sugestão de estudo de levantamento
das bem sucedidas soluções dos problemas de raça no Brasil, para que fossem recomendadas
aos demais países, o que reiterava o mito da democracia racial. Mesmo não tendo sido acatada
como projeto pela UNESCO, o Congresso do Negro e as considerações de Guerreiro Ramos
influenciaram seus pesquisadores que modificaram o plano original do projeto, ampliando as
possibilidades da pesquisa que chegou aos resultados já apontados por ele e pelo grupo do TEN.
A geral visão desracializada que vigorava nos anos de 1950 é criticada por Antônio
Sérgio Guimarães: “a palavra de ordem que ainda encontramos era a seguinte: a cor é apenas
um acidente. Somos todos brasileiros e por um acidente temos diferentes cores; cor não é uma
coisa importante; ‘raça’, então, nem se fala, esta não existe, quem fala em raça é racista” (2003,
p.101). Essa ideia, superada parcialmente nos meios acadêmicos, ainda vigora caladamente na
sociedade.

Redemocratização: luta e consciência


Foi somente na década de 1980, durante o período de redemocratização do Brasil, que
o Movimento Negro denunciou a discriminação como prática social sistemática, associando a
desigualdade racial a mecanismos discriminatórios. O Movimento Negro ganhou força nos
últimos 20 anos e ampliou seu alcance a muitos jovens, que continuaram não nascendo negros
pelos matizes da pele – conforme a identificação que brasileiro faz –, mas que se tornaram
negros pelo reconhecimento do racismo sofrido e pela história comum. O Movimento Negro
129

dota as pessoas de consciência política e isso faz com que elas, que antes não se sabiam negras,
passem a se reconhecer racialmente e a lutar por seus direitos.
Tal movimento de conscientização também vem acontecendo com os indígenas através
do Movimento Indígena, que também nasceu e se fortaleceu no período de redemocratização
do Brasil. Bem, abordei até agora como se fundou a chamada “hegemonia branca” no Brasil,
considerando em grande parte o negro, seu papel na sociedade e as bases da negação da raça,
mas onde está o índio nessa história? Essa lacuna é preenchida por uma dúbia abordagem em
relação aos povos indígenas durante o período da promoção do branqueamento e também do
mito da democracia racial: ao mesmo tempo em que consideravam que os índios estavam
acabando, os estudos sobre as suas culturas se intensificaram.

O índio de herói à inexistência


Historicamente, o índio foi sempre combatido, mas não obstante isso ele foi escolhido
como representante simbólico da nacionalidade brasileira. Na construção da nacionalidade era
preciso encontrar uma figura que representasse a nova nação: o branco de origem portuguesa
não servia por lembrar a recente dominação, tampouco servia o negro associado à escravidão,
restava o índio, que foi então romantizado como herói nacional. O movimento literário do
Romantismo, em pleno vigor na Europa no séc. XIX, influenciou a imaginação de um índio
como expressão do patriotismo, que passou a ser representado nas artes plásticas, na literatura
e nos discursos oficiais.
Todas essas expressões artísticas levavam a uma releitura da história do Brasil, na qual
o índio era personagem épico (SILVA, 1995). Essa mitificação do índio é conhecida como
indianismo e a literatura teve papel relevante na formulação do que veio a ser o índio que
constituiu o povo brasileiro. Exaltando-se a bravura indígena, a resistência e finalmente a morte
heroica, como expressavam os poemas de Gonçalves Dias (1823-1864), o Romantismo deixava
de lado a violência sempre imposta aos indígenas desde os primeiros colonizadores. No poema
I-Juca Pirama (1851), Gonçalves Dias exprimia a bravura indígena:
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fardo inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
130

Já em José de Alencar (1829-1877) o índio é representado em um viés conservador,


subordinado e assimilado, cujo horizonte era a civilização branca e suas instituições (BOSI,
1992). Por exemplo, no romance “O Guarani”, José de Alencar representa no enredo a relação
de culto do índio Peri à donzela branca Cecília, cujo pai reconhece o índio pela combinação da
bravura selvagem e da conduta nobre:
É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenha visto nesta terra, o caráter desse índio.
Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de
abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavaleiro português no corpo de um selvagem!
(ALENCAR, 2006, p. 45 apud OLIVEIRA s/d)

É a fantasia desse índio, nulo de sua identidade ou congelado no passado, que povoará
o imaginário da sociedade brasileira. É nesse imaginário que reside o senso comum em relação
ao indígena, formado e sustentado por um projeto ideológico de nação. Se por um lado o projeto
de branqueamento almejava anular o negro da sociedade, por outro lado existia a certeza de que
logo não haveria mais indígenas no Brasil. Assim, o índio não causava tanta preocupação
porque, pelo extermínio que sofrera e pela integração na sociedade, logo deixaria de existir.
Como esclarecido no segundo capítulo, as várias pesquisas que seguiram sobre grupos
indígenas os analisavam como etnias, abandonando a abordagem racial.
A sambista Clara Nunes eternizou sua voz cantando, nos anos de 1970, o “Canto das
três raças” composto por Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro. Na música o “ôôôôô” que
ritmiza o lamentar de dor, ainda ecoa nos ouvidos dos brasileiros:
Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil. Um lamento triste sempre ecoou desde
que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou um canto de revolta pelos
ares no Quilombo dos Palmares onde se refugiou. Fora a luta dos inconfidentes pela quebra das
correntes, nada adiantou. E de guerra em paz de paz em guerra, todo povo dessa terra quando
pode cantar, canta de dor. E ecoa noite e dia, é ensurdecedor, ai, mas que agonia o canto do
trabalhador. Esse canto que devia ser um canto de alegria soa apenas como um soluçar de dor.

Fazendo alusão às três raças formadoras do povo brasileiro, a música vincula as raças
ao trabalhador e seu sofrimento, produto da história do país. Porém, esse trabalhador, ou seja,
a classe explorada, hoje é reconhecida sobretudo como negra ou parda, categoria que o
movimento negro abraça. Mas onde está novamente o índio na história atual? Teria ele ficado
para sempre cativo ao passado? Jonathan Warren (2001; 2013) demonstra como o índio é
excluído do debate de igualdade racial e dos benefícios das políticas direcionadas, porque não
é considerado presentemente enquanto raça.
A transformação dos mestiços em negros e a desracialização dos índios ajudaram a engendrar
um movimento antirracista que amplamente vê a si mesmo como Negro – ou latente Negro –
movimento. Em outras palavras, os cientistas sociais tiveram um importante papel na definição
131

de Índios, de tal forma que ativistas e entidades antirracistas não consideram as comunidades
indígenas e seus problemas como importantes para o antirracismo. O resultado não é o
antagonismo, mas a negligência. A questão indígena, se considerada como um todo, é tratada
como se fosse completamente irrelevante para as questões de raça. (WARREN, 2013, p. 227,
traduzido pela autora).

A consideração de Jonathan Warren sobre o índio negligenciado, enquanto raça no


presente, é de grande importância e suscitou em mim inquietação. Uma das grandes conquistas
do movimento negro, e posteriormente também do movimento indígena, para a promoção da
igualdade racial foi a garantia de cotas para ingressos nas universidades federais. Porém,
enquanto os negros podiam se auto-declarar para acessar a universidade, os indígenas auto
afirmados passavam por verdadeiros suplícios para comprovar sua indianidade, conforme
relatei no capítulo II o caso dos filhos da Iza Tapuia. O processo era bem mais burocrático e o
documento principal exigido era a carteira de identificação indígena concedida pela Funai.

A Constituinte

Embora com todos os estereótipos e jargões acusatórios pesando sobre eles, os indígenas
se organizam coletivamente e lutam pelo reconhecimento de seus direitos desde a década de
1970. Foi durante os anos violentos da ditadura no Brasil - de 1964 a 1985-, que os indígenas,
apoiados por um conjunto de organizações, começaram a se organizar na luta por direitos. Essa
luta culminou na aprovação dos artigos 231 e 232, da Constituição Federal de 1988, que
reconhecem os direitos indígenas, especialmente os direitos à diferença e à terra. Parecia
assegurado às populações indígenas as formas de manifestar a sua cultura, a sua tradição e uma
perspectiva de futuro sem as ameaças permanentes que sofriam.
Para a formulação da que ficou conhecida como a “Constituição Cidadã”, houve a
organização de uma Assembleia Nacional Constituinte, marcada por um discurso histórico do
porta-voz do então emergente Movimento Indígena. Foi Ailton Krenak que, em 04 de setembro
de 1987, defendendo a Emenda Popular da União das Nações Indígenas (UNI), subiu na tribuna,
elegantemente vestido de terno branco, discursou eloquentemente enquanto tingia seu rosto
todo de preto, com tinta de jenipapo. O preto representava o luto, mas também a denúncia e a
decisão de reverter a conjuntura política anti-indígena naquela legislatura do Congresso
Nacional. De maneira educada, forte e sensível, ele resumiu a realidade dos povos indígenas:
Eu espero não agredir com a minha manifestação o protocolo dessa casa, mas eu acredito que
os senhores não poderão ficar omissos. Os senhores não terão como ficar alheios a mais essa
agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um
132

povo indígena. (...) E, hoje nós somos o alvo de uma agressão que pretende atingir na essência
a nossa fé, a nossa confiança de que ainda existe dignidade, de que ainda é possível construir
uma sociedade que sabe respeitar os mais fracos(...) um povo que habita casas cobertas de palha,
que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como o povo que é o
inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação e que coloca em risco qualquer
desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare os 8 milhões de
quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso.

Com a aprovação dos artigos 231 e 232, a Constituição Federal foi uma grande vitória
para os povos indígenas. Finalmente, eles tiveram seus direitos formalmente reconhecidos.
Contudo, governo após governo, os indígenas viram, de 1988 para cá, seus direitos
gradativamente serem desrespeitados e tolhidos. A Constituição estabeleceu que fossem
demarcadas todas as terras indígenas118, no prazo de cinco anos da sua promulgação, quando se
alcançou a demarcação de apenas 50% delas. Ano após ano, os processos de demarcação ou
estagnaram ou se tornaram absurdamente morosos.
Os indígenas demandarem direito à saúde e à educação de qualidade com respeito às
suas diversidades e conhecimentos tradicionais. O Governo Federal destinou minguadas verbas
para o atendimento desses direitos, e pouco a pouco foram se instalando modelos de execução
cada vez mais distantes da necessidade daqueles que deveriam ser beneficiados. Esses modelos
têm dificultado que os recursos cheguem aos indígenas. O governo comandado pela presidente
Dilma Rousseff vinculou a sua imagem ao respeito aos povos indígenas, mas foi o que menos
demarcou terras indígenas desde a promulgação da Constituição Federal.

118
De acordo com Eneida Assis (2006), na Constituição Federal de 1988 a noção de terra indígena como
ocupação tradicional não se relaciona ao tempo de ocupação, mas a terra na qual os indígenas vivem e se
reproduzem física e socioculturalmente.
133

Figura 28: Ailton Krenak

FONTE: https://i.ytimg.com/vi/kWMHiwdbM_Q/hqdefault.jpg

Depois de quase 30 anos do seu discurso na Constituinte, Ailton Krenak afirma que
“para os indígenas o pior momento é agora”. Ele critica o modelo de desenvolvimento e a
extração abusiva dos recursos naturais. Apesar de um histórico de luta e resistência heroico, os
povos indígenas estão vendo suas conquistas escorrerem pelas mãos. O CIMI denuncia que
existe um progressivo aumento da violência contra os indígenas, pois em 2007 foram
assassinados 92 líderes indígenas, já em 2014 esse número subiu para 138. A impunidade
reforça a violência.
A relatora especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria
Tauli-Corpuz, que esteve em missão no Brasil em março de 2016, observou que “os riscos
enfrentados pelos povos indígenas estão mais presentes do que nunca desde a adoção da
Constituição de 1988”, ela lembra que no passado recente “O Brasil tinha uma liderança
mundial no que se refere à demarcação dos territórios indígenas”. A relatora nem bem acabou
sua visita às aldeias indígenas no Mato Grosso do Sul e a violência voltou a tomar conta, como
se os ‘fortes’ quisessem expressar deboche, amedrontar e provar que de nada adianta a luta
indígena e de seus aliados. Victoria Tauli-Corpuz se expressou com grande preocupação:
Eu considero extremamente alarmante que uma série desses ataques, que envolveram tiroteios
e feriram populações indígenas nas comunidades de Kurusu Ambá, Dourados e Taquara, no
Mato Grosso do Sul, tenham ocorrido após minhas visitas a essas áreas. Eu condeno esses
ataques e exorto o Governo a pôr um fim a essas violações de direitos humanos, bem como
investigar e submeter os mandantes e autores desses atos à justiça.
134

Figura 29: Charge Latuff sobre a visita da relatora da ONU

FONTE: https://i.ytimg.com/vi/kWMHiwdbM_Q/hqdefault.jpg

Contudo, quando se trata de mexer com os interesses de poderosos latifundiários e


ruralistas, até mesmo a ONU encontra barreiras e dificuldades. Depois da coletiva à imprensa,
na qual a relatora denunciou o grave risco que os direitos indígenas correm de serem desfeitos
por conta dos interesses privados, a bancada ruralista ficou contrariada e protocolou
requerimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai/Incra requisitando
informações e documentos referentes à missão dessa Relatoria Especial da ONU no Brasil. Foi
com tom de denúncia que o deputado federal ruralista Valdir Colatto (PMDB/RS) protocolou
o requerimento atacando o que chamou de “passado onguista” da relatora, desprezando os
critérios da sua função e demonstrando desconhecer as prerrogativas de trabalho e
funcionamento das relatorias da ONU, pois afirmou que a missão deveria ter sido acompanhada
de perto pelo governo brasileiro.
No Brasil vem se consolidando um retrocesso em relação aos direitos indígenas e se
perpetuando diversos tipos de violência contra esses povos. Não resta dúvida de que o modelo
de desenvolvimento é uma grande ameaça aos povos indígenas, mas eles resistem e defendem
com coragem seus modos de vida e territórios. É em nome desse modelo de desenvolvimento
que se praticam violências, que vão de expulsões a assassinatos, contra os indígenas. Quem
segue a doutrina do ‘desenvolvimento’ vê os indígenas como os principais empecilhos para a
construção de um Brasil moderno e rico. Me interessa revelar o que está por trás do discurso do
135

‘desenvolvimento’, ou como se tem dito ultimamente, do discurso do “crescimento


econômico”.

Desenvolvimento para quem?


“Kararaô! ”. Quando o grito de guerra do povo Kaiapó foi pronunciado por um
burocrata de Brasília, nominando o projeto de uma usina hidrelétrica, a indignação tomou conta
dos participantes do 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu em Altamira (PA), 1989. Foi
então que a Kaiapó Tuíra se levantou da plateia e, como expressão de sua dor e indignação,
apontou seu facão contra o rosto do tecnocrata José Antônio Muniz Lopes, na época presidente
da Eletronorte119. No encontro ele representava o Estado brasileiro, principal incentivador de
um modelo de desenvolvimento que desconsidera sua gente. A fotografia que registrou a cena
chamou a atenção do mundo. A revolta ocorreu tanto por causa do nome escolhido para o
empreendimento como pelo significado de um projeto de hidrelétrica que ameaçava a vida de
inúmeros povos que dependem do rio Xingu para sua existência física e cultural.

Figura 30: Tuíra Kayapó, aos 19 anos, encosta o facão no rosto de diretor da Eletronorte.

FONTE: http://infograficos.estadao.com.br/especiais/favela-amazonia/capitulo-8.php

119
Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A.
136

O evento foi organizado para denunciar o desrespeito e a negligência do Estado perante


os povos locais. Os indígenas exigiam respeito e reconhecimento e queriam permanecer nas
suas terras. Enfim, protestavam contra as decisões tomadas para a Amazônia de cima para
baixo, sem consultá-los. Não queriam e continuam não querendo a hidrelétrica. O encontro foi
um marco no socioambientalismo no Brasil, pois exigiu uma revisão dos projetos de
desenvolvimento para a região. Apesar da repercussão da imagem e do evento, o projeto seguiu
em frente, com modificações técnicas e mudança de nome, que de Kararaô passou a se chamar
Belo Monte. Não obstante às resistências, a construção da usina hidrelétrica atropelou gente e
natureza. Narro essa história para ilustrar o conflito que tem lugar na Amazônia, que se reproduz
em tantos diferentes casos, inclusive no oeste do Pará, e que evidencia a relação desigual entre
Estado e povo local.
Essa relação desigual foi refletida na sentença que negava a existência dos Borari e dos
Arapiuns. Como escreveu o jornalista Felipe Milanez120 (2016):
No final de 2014, o juiz federal Airton Portella lavrou sentença na qual declarava inexistente a
Terra Indígena (TI) Maró e, consequentemente, as comunidades indígenas que ali vivem, no rio
Arapiuns. Como diria Frantz Fanon, a sentença era um ato racista perfeito numa sociedade
racista, com a perfeita harmonia entre as relações econômicas (os interesses dos madeireiros) e
a ideologia (a supremacia branca e do progresso).

Detalhes importantes sobre os argumentos da sentença serão analisados no último


capítulo deste trabalho. O que pretendo agora é ressaltar como o pensamento que sustenta a
sentença percebe os indígenas como entraves para o desenvolvimento, para o progresso da
região. Para o qual o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro formulou texto que situa o
conflito em torno da TI Maró no panorama atual da Amazônia. O texto foi anexado à Apelação
impetrada pelo Ministério Público Federal, cujo resultado foi a queda da sentença e a extinção
do processo. Um trecho do texto de Viveiros de Castro, extraído da matéria de Milanez,
explicita:
Enfim, o real conflito, o geral conflito, o drama histórico maior que lateja no fundo (que digo?
na superfície) desta causa “menor” em torno da TI Maró é aquele que assola a Amazônia hoje,
e que confronta os povos e gentes da terra, a gente do rio e da floresta, do peixe e da mandioca,
que luta para manter seu modo de vida tradicional, – sem prejuízo de serem atendidos pelos
serviços públicos a que têm direito como cidadãos brasileiros, os quais sempre lhes foram, não
obstante, negados –, a uma legião de sereias políticas, empresariais e midiáticas que lhes acenam
com a miragem da “possibilidade do desenvolvimento socioeconômico” (tomamos o eufemismo
usado na sentença [p.25]) como constituindo a única forma pela qual estas comunidades

120
Matéria publicada na revista Carta Capital em 18/02/2016. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/indigenas-e-mpf-suspendem-o-ceu-no-para
137

ribeirinhas-caboclas-indígenas poderão se libertar do que as ditas sereias lhes apontam como


sendo a miséria, ignorância, pobreza e sordidez em que estariam mergulhadas.

Na sequência do texto, Viveiros de Castro chama atenção para o que a história recente
ensina: essas “sereias” que encantam com seus discursos de desenvolvimento matam. Seu poder
assassino está na “dissolução progressiva dessas comunidades tradicionais, sua extinção, o
acaparamento121 de seus territórios por grandes empresas agroexportadoras e por grileiros e
especuladores profissionais”. Essa dinâmica expulsa os ocupantes dos territórios usurpados na
floresta para as baixadas, os alagados, as periferias urbanas mais desestruturadas e desprezadas
das cidades amazônicas. De maneira que quem na floresta habitava a “zona do não-ser”122 -
onde estão as populações desumanizadas, situadas abaixo da linha do humano fanoniana -
passará a habitá-la na cidade.
A retórica do “desenvolvimento sustentável” tem servido para mascarar o avanço do
capital sobre a natureza. Desenvolvimento é um termo antagônico à sustentabilidade, do que
resulta um conceito contraditório. Enquanto um termo do conceito significa explorar para
capitalizar, o outro é ligado à preservação. O desenvolvimento é mais forte que a
sustentabilidade, o que vem gerando devastação e pobreza (BOFF, 2012). A ideia é: “já que
preservo, exploro”. Assim, segundo Leonardo Boff, as áreas de proteção ambiental são como
ilhas e servem como discurso de permissão para se explorar tudo ao redor de maneira
devastadora, desconsiderando gente e natureza.
Henri Acserald (2012)123 contesta o status de desenvolvimento sustentável como
conceito porque, segundo ele, a noção não reúne atributos científicos. Para Acserald, o discurso
sobre sustentabilidade nasceu no seio da tecnoburocracia dos organismos multilaterais de
desenvolvimento124 em virtude da pressão do movimento ambientalista, dada a percepção de
ameaça ao desenvolvimento capitalista, em função do comprometimento das suas bases

121
A Oxfam define “acaparamiento de tierras” da seguinte maneira: é um termo que se refere à compra de grandes
extensões de terra para monocultivos para a exportação ou para a produção de biocombustívies, e que está
provocando fome e violando direitos humanos em muitos países em desenvolvimento. Disponível em
www.oxfamintermon.org/es/campanas/proyectos/acaparamiento-de-tierras.
122
Segundo Ramón Grosfoguel (2011), o ponto importante para Fanon é que os sujeitos localizados no lado
superior da linha do humano vivem no que ele chama de “zona do ser”, enquanto aqueles sujeitos que vivem no
lado inferior dessa linha vivem na “zona do não-ser”. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2010) , na “zona do
não-ser”, os sujeitos são racializados como inferiores e vivem uma situação de opressão racial.
123
Entrevista Henri Acselrad - Que desenvolvimento queremos? Entrevista concedida durante o Seminário sobre
a Rio +20: Que desenvolvimento queremos? Porto Alegre, 24 de maio de 2012. Publicado em 24 de abr de 2012.
https://www.youtube.com/watch?v=V5j25qHhoqo
124
Desenhada desde a conferência de Estocolmo, realizada em 1972, a noção de desenvolvimento sustentável
ganhou repercussão e força política através do documento “Nosso Futuro Comum”, de 1988, conhecido como
“Relatório Brundtland”.
138

materiais de reprodução. Segundo Acserald, a noção é uma ideologia recheada de


ambiguidades e o que ela busca de fato sustentar é o próprio projeto desenvolvimentista em
crise, posto que, além de não resolver o problema da desigualdade social, havia criado o
problema da deterioração ambiental. De modo que a desenvolvimento sustentável é uma
tentativa de revalidar a noção maior de desenvolvimento, naturalizada pelo senso comum como
algo virtuoso. Em outros termos, a retórica do desenvolvimento sustentável é uma versão da
retórica da modernidade, que traz com ela a necessidade de revelação da sua outra face, qual
seja, a lógica da colonialidade.
Na região amazônica, o Estado se faz presente através da formalização de unidades de
conservação, respondendo a pressões mais internacionais que locais. No caso das reservas
extrativistas, respondeu mais imediatamente ao movimento dos seringueiros no Acre, mas sem
abrir mão do controle sobre os territórios criados com as elas, agindo como dono através dos
seus órgãos de gerenciamento. A partir de critérios tecnicistas, de quem nunca viveu no
território, os modos de uso são determinados muitas vezes com padrões distantes da realidade
local. No Conselho Deliberativo, que conta com representantes das comunidades, mas é
presidido pelo ICMBio, entre entendimentos e desentendimentos, o plano de uso da Resex
Tapajós - Arapiuns foi aprovado com a demora de 16 anos, em 20 de novembro de 2014.
A legislação para as áreas protegidas não confere segurança e autonomia para as
comunidades, exigindo critérios tecnicistas demasiado distantes da realidade local. As
populações exigem participação e passam a ser ouvidas, mas muitas vezes não são atendidas.
E mais uma vez o conflito é presente e as populações continuam lutando pelo usufruto do
território do modo que melhor lhes convém. Por sua vez, o Estado se faz presente, mas também
ausente, destinando minguados recursos a grupos específicos, ora para indígenas ora para
extrativistas. O Estado não atende demandas básicas, como a instalação de escolas e a
ampliação das séries escolares, porque na realidade despreza essas populações, e sua presença
tacanha acaba por favorecer conflitos internos.
Segundo Carlos Walter Porto Gonçalves,
A modernidade busca permanentemente o (des)envolvimento, isto é, procura quebrar o
envolvimento, a coesão interna de povos e regiões, submetendo-os à sua lógica de produzir -
produzir com uma distribuição desigual da riqueza. Dissocia o lugar de produção do lugar de
consumo, ao dissociar, também quem produz a riqueza de quem dela se apropria. Com essa
lógica de transformação permanente, desigual no tempo e no espaço, os diferentes povos e suas
regiões estão sempre sendo atualizados no seu “atraso”, precisando novamente ser
(des)envolvidos. (GONÇALVES, 2010, p. 67)
139

A quebra da coesão interna e a produção de conflitos internos é parte do desrespeito


sofrido pelos povos do baixo Tapajós, e se relaciona ao racismo que inferioriza e despreza
pessoas desde a colonização. O conflito ocorre também pelo significado atribuído a natureza:
fonte e meio de vida para os que nela vivem e objeto exclusivamente de exploração e lucro para
os que a cobiçam. A luta dos povos locais é pela garantia da terra e envolve sentimentos de
pertencimento a uma forma de viver nela. As populações locais desejam a garantia da terra,
mas também melhores condições de vida sobre ela. Anseiam por melhorias nas áreas da saúde,
educação, água, energia, transporte e alimentação. A forma de viver, em estrita relação com a
natureza, é comum, sejam elas indígenas ou não. É no modo de vida que as pessoas têm mais
similaridades e na relação com a natureza demonstram grande afetividade. São as ameaças a
essa forma de vida que determinam os inimigos comuns: os que chegam com o escopo de tomar
terras e expulsar gente a qualquer custo.
Com o discurso de ocupação econômica da fronteira, ilegalidades e violências são
toleradas, na atmosfera uma vez assim caracterizada pelo então ministro Delfim Neto como
uma pérola do discurso oficial: “vamos fazer da Amazônia um faroeste, depois chamamos o
xerife”. O descaso e a impunidade são parte de uma espécie de planejamento que permite
conformar o espaço segundo a lei do mais forte. Para Paul Ricouer (1955, p.237), “com o Estado
aparece uma certa violência que tem caracteres de legitimidade”. Nesse caso não é a violência
física imputada pelo Estado que vigora, mas é a sua omissão que permite aos mais fortes, através
de ameaças, torturas e assassinatos violentar os mais fracos. A omissão do Estado, ou sua
escassa presença através de recursos minguados, é uma forma de violência simbólica, uma
violência moral.
Quando comparece mediante mecanismos legais e administrativos, o Estado normatiza
um planejamento capaz de integrar a Amazônia ao mercado nacional e internacional, inclusive
possibilitando a transferência de vastas extensões de terras a grandes grupos empresariais
(LOUREIRO 2004). E quando ignora a heterogeneidade de territórios (ALMEIDA 1995) e seus
tradicionais ocupantes, o Estado visa à supressão destas alternativas de uso e a homogeneização
da região, oficialmente vocacionada para a produção de grãos, minérios, energia, carne e
madeira. O absoluto descaso pela população que ali vive está associada à intenção de
homogeneizar a região conforme padrão estabelecido pelas elites.
É velho o olhar autoritário que vê a região vazia humana e culturalmente, importando
apenas o volume de dólares a ser gerado por exportações. Conforme esclarece Edna Castro:
A Amazônia brasileira foi concebida, pelas elites nacionais, como uma fronteira de recursos, na
qual o capital poderia refazer seu ciclo de acumulação com base nos novos estoques disponíveis.
140

Vazio demográfico e recursos inesgotáveis são mitos presentes no imaginário das elites
políticas, militares e de segmentos médios da sociedade brasileira em pleno século XXI. (2005,
p.10)

Essa perspectiva encerra o objetivo de conquista, de anulação do outro e da apropriação


de território para a finalidade de exploração econômica de recursos naturais, os indígenas e
extrativistas organizados aparecendo como empecilho à marcha do progresso, obstáculo a ser
removido, portanto (VAINER, 1993). Organizações ambientalistas internacionais, aliadas a
parceiros nacionais, correm para socorrer a floresta e buscam fazer das populações locais seus
aliados e transformá-los também eles em ambientalistas. Mas como se socorre a população
local? Quem é essa gente tão desprezada pelo Estado? Ou melhor, quem é essa gente tão
desprezada pelas elites que dominam o Estado e que se torna obstáculo a ser removido?

Gente desprezada
Gente desprezada é, sobretudo, uma população formada por gente racialmente
inferiorizada e oprimida pela classe dominante. É uma população malquista pelas elites, posta
em condição de subalternidade e, pois, sujeita a ser expulsa dos lugares onde vive. Essa gente
ribeirinha, cabocla, indígena, da floresta, foi condenada a não ser proprietária nem de seu
próprio pedaço de chão, que ocupa sem segurança, ali estando enquanto seu lugar não suscita
algum interesse de exploração econômica.
Moradores desde há muito, essa gente foi compactada, classificada toda como posseiros,
palavra que denota falta de legalidade na ocupação da terra pela ausência de documento que
comprove a compra ou a hereditariedade. Negros, indígenas e seus descendentes tiveram
origens étnicas arrancadas e não tiveram acesso a burocracias que lhes permitisse os
documentos de posse da terra. Desde a Lei de Terras de 1850, estratégias foram criadas
justamente para impedir-lhes a propriedade.
Posseiro é quem vive, trabalha e tira da terra seu sustento, mas que não é o legal dono
dela, uma vez que não tem a documentação da terra. Na Amazônia, posseiro é quem vive nas
terras consideradas devolutas125 sem ter a propriedade legal registrada em cartório, conforme
exige a lei. A própria permanência na classificação “devoluta” das terras ocupadas é uma
colonialidade, na medida em que nega potencialmente a terra a quem legitimamente a ocupa.
Posseiro é aquela gente que produz para sobreviver, mas pode perder a qualquer momento seu
meio de subsistência. A condição do posseiro é injusta. Sem o documento de propriedade da

125
Terras devolutas são terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum momento integraram
o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse.
141

terra, os posseiros passam a ser constantemente vítimas de grileiros126, que não ocupam a terra,
mas têm o documento legal falsificado, o que lhes confere uma propriedade ilegítima. Essa
injusta disputa é responsável por grande parte dos conflitos fundiários na Amazônia.
Nesse contexto, o avanço da produção capitalista se dá pela tomada de territórios
ocupados por um extenso campesinato, onde se situa o trabalhador rural, que passou a ser
ressignificado, na medida em que emergiam reivindicações por identidades. Muita gente passou
a ser identificada com sua atividade de subsistência: castanheiros, seringueiros, andirobeiras,
coletores, e/ou também extrativistas. Outros, apesar de morarem em áreas protegidas, ainda
continuam a se identificar simplesmente como trabalhadores rurais, uma identidade forte, ainda
que genérica. Também há aqueles que adotam mais de uma identidade, denominando-se
“trabalhador rural e extravista”. Outros, mais recentemente, assumiram suas identidades
indígenas, como os Borari e os Arapium da TI Maró. Os moradores, com identidades afirmadas
positivamente, reivindicam seus territórios e se colocam como um empecilho ao avanço
desregrado do capital na região.
O desprezo pelo Outro e a apropriação de território e natureza como mercadoria é rastro
do colonialismo, que hoje se apresenta na forma de colonialidade, perpetuando formas
internacionais hegemônicas de exploração de bens primários na Amazônia. As atitudes racistas
de outrora se reproduzem hoje no desprezo e exploração de gente e natureza.
Instalar complexos hidrelétricos para a produção de lingotes de alumínio para
exportação sem considerar os povos que vivem dos rios. Explorar o subsolo para exportar
minérios; derrubar floresta para pasto e exportar boi vivo; desalojar gente e desmatar para a
produção de soja e exportação de grãos. Todas essas atividades são faces do capitalismo
periférico brasileiro, ávido por divisas internacionais para manter sua economia.
Segundo Carlos Walter Porto Gonçalves (2010),
Seríamos simplistas se considerássemos que são exclusivamente os “de fora” da Amazônia os
únicos responsáveis por esse processo de permanente desorganização/reorganização, de
recontextualização do atrasado e do moderno. Não há região ou país colonial, dependente ou
periférico, que não seja, ao mesmo tempo, uma região ou país onde as elites dominantes vivam
essa ambiguidade de buscar uma identidade própria e, ao mesmo tempo, manter uma
mentalidade colonizadora. (p. 67)

De fato, os grupos hegemônicos brasileiros integram o sistema reproduzindo formas de


colonialismo através de uma legislação ambiental precária, falta de fiscalização e exploração

126
O nome grileiro vem da prática de colocar os documentos de posse falsificados em uma gaveta com grilos para
dar a impressão de serem antigos e por isso verdadeiros.
142

abusiva dos trabalhadores. Não é raro encontrar situações de pessoas escravizadas. Mesmo no
contexto urbano, a própria condição laboral tida como livre ainda se dá pela extrema exploração
dos trabalhadores, com salário mínimo insuficiente para permitir uma vida digna e impedindo
qualquer mobilização social.
Essa combinação de exploração de gente e natureza e esforços para atender demandas
internacionais figuram a reprodução de um modelo implantado ainda no colonialismo,
percebido hoje como colonialidade. Combinado com o conceito de colonialidade nasce o
desenvolvimento conceitual de descolonialidade, conforme explicam o filósofo colombiano
Santiago Castro-Gomez e o sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel:
El concepto ‘decolonialidad’(...) resulta útil para trascender la suposición de ciertos discursos
académicos y políticos, según la cual, con el fin de las administraciones coloniales y la
formación de los Estados-nación en la periferia, vivimos ahora en un mundo descolonizado y
poscolonial. Nosotros partimos, en cambio, del supuesto de que la división internacional del
trabajo entre centros y periferias, así como la jerarquización étnico-racial de las poblaciones,
formada durante varios siglos de expansión colonial europea, no se transformó
significativamente con el fin del colonialismo y la formación de los Estados-nación en la
periferia. (CASTRO-GOMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p.13)

Na sua condição periférica, o Brasil ainda exerce o papel de exportador de produtos


primários na divisão internacional do trabalho. Os cobiçados recursos naturais da Amazônia
servem sobretudo ao mercado internacional, colocando o Brasil nessa dinâmica que reflete o
colonialismo. Colonialismo, transformado em colonialidade, reproduzido internamente por
aquela pequena parte da sociedade que vem perpetuando dominação e exploração.
A pressão sofrida pelos Borari e Arapium do Maró tem a ver com a colonialidade que
combina mercado, ação do Estado, através das elites que o comandam, e desprezo pelas
populações locais, através de projetos de desenvolvimento/crescimento que ameaçam povos e
territórios. A colonialidade é tão evidente na região que o produto mais cobiçado é a madeira,
primeiro produto explorado pelos “brasileiros”, os extratores de Pau Brasil, durante a
colonização no século XVI. A intensa extração de madeiras de lei abre caminho para renovação
do ciclo de acumulação, cujo percurso passa pela abertura de pastos e mais recentemente pela
expansão da produção de soja. Além disso, a exploração mineral, a produção de energia para a
produção de alumínio, é feita por multinacionais, que em aliança com parceiros brasileiros,
esmagam gente e natureza na Amazônia.
143

VI - HISTÓRIA DA LUTA COLETIVA

Essa história fala de consciência, pertencimento e identidade. Primeiro foram os


indígenas, depois os cabanos, e então os migrantes nordestinos que povoaram as densas áreas
florestais dos rios Tapajós, Arapiuns e Maró. Nessa combinação de gente, inúmeros pequenos
povoados se formaram ao longo dos rios e igarapés, que passaram a ser caminhos que os
ligavam em uma ampla teia de parentesco, camaradagem, trocas de produtos, eventos sociais,
paroquiais e ainda de compartilhamento de crenças nos “encantados”.
Os que chegavam logo aprendiam a respeitar e pedir licença para os seres protetores das
águas e matas. Os caminhos abertos nas matas levavam às colônias, lugares de plantio de
mandioca e produção da farinha. Outros caminhos não tão evidentes levavam à procura de caça.
A floresta densa que parecia tão homogênea era conhecida na sua diversidade e diferenciada
pelos usos do povo local. Tinha áreas destinadas à produção, outras concentravam árvores cujas
cascas, frutos, folhas e sementes serviam ao uso medicinal. Outras áreas eram fartas em caças.
Outras tinham árvores cuja madeira servia para a construção das casas, móveis, canoas e barcos.
Nas nascentes dos igarapés era preciso ter respeito. Lá é morada dos encantados e lugar
propício para celebrações ritualísticas de alguns moradores. O respeito e cuidado com o lugar
da nascente garantia a proteção das águas, fonte de reprodução da vida de gente e mata. A
crença nos encantados ajuda a preservar a natureza numa dinâmica de aproveitar dela somente
o necessário à vida. Crença, religiosidade, modo de vida e de produção se assemelhavam entre
os moradores dos diversos povoados. Mas eles estavam lá abandonados pelo poder público que
os tratava como se eles não existissem.
Podiam gozar de uma natureza abundante, mas sofriam carência que iam da falta de
postos de saúde e escolas a microssistemas de água e energia elétrica. Penavam carregando latas
d’água na cabeça. Conviviam com a falta de eletricidade e a escuridão. Eram explorados pelos
regatões, donos de embarcações que trocavam gêneros de subsistência com preços
hiperinflacionados por produtos locais subvalorizados. Semelhanças e sofrimentos das
comunidades em um tempo não tão distante, na verdade um tempo que se estende em muitos
casos aos dias de hoje.
A década de 1960 foi marcada pela educação libertadora, através da formação das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). O povo se alfabetizava na medida em que se valorizava
mediante uma consciência crítica, com força transformadora. Se reuniram e posteriormente se
sindicalizaram. Percebendo seus espaços de vida serem invadidos com a instalação de empresas
madeireiras, sabendo da grilagem que se apropriava das terras onde viviam comunidades, e
144

sabendo dos projetos do governo ditatorial para o desenvolvimento da Amazônia, que


desconsiderava gente e natureza, eles se organizaram. Com assessoria de entidades da Igreja
Católica e de seus representantes no Sindicato dos Trabalhadores Rurais, eles começaram a
luta. Sabiam que qualquer luta por melhorias de sua condição de vida passava antes pela
garantia da terra em que viviam. Assim, a luta pela terra possibilitou a valorização pessoal de
cada morador e todos em conjunto formavam uma força capaz de garantir direitos.
Muitas ações foram feitas objetivando a garantia a terra, que resultaram na conquista de
uma área coletiva que se tornou a Reserva Extrativista127 Tapajós-Arapiuns e em outra parte
no que hoje é a Terra Indígena Maró. Nos primórdios da luta, não havia uma delimitação
precisa das áreas a serem transformadas em reserva extrativista e terra indígena, delimitação
que indicaria depois a forma identitária pela qual os ocupantes tradicionais permaneceriam
nelas. Até então as identidades não tinham sido reveladas, diferenciadas e afirmadas. A
qualificação das áreas em reserva extrativista e terra indígena, assim como o reconhecimento
dos grupos - extrativistas e indígenas –, ocorreram de acordo com possibilidades existentes no
Estado, que podia institucionalizar as categorias territoriais e também reconhecer direitos
étnicos, é verdade que só em virtude de muita mobilização social.
Nas ações coletivas, ainda que o mais importante seja a força integrada dos agentes, é
preciso reconhecer o papel das lideranças. Algumas pessoas foram determinantes para a
organização e o estímulo que antecederam os passos decisivos para a consolidação do
movimento que então se concebia e que garantiria primeiro o território da Resex e,
posteriormente, a TI Maró. Lideranças que em algum momento da história se encontraram e se
articularam, fazendo a ligação dos anseios locais com possibilidades já desenhadas na agenda
política nacional. Entre as lideranças estavam líderes comunitários, sindicais, religiosos, um
ativo procurador da República e representantes de organizações não governamentais. Assim,
no contexto das ações coletivas, o empenho de alguns atores individuais possibilitou a
transformação daqueles espaços em reserva extrativista e terra indígena.
Intensos conflitos ocorrem quando os moradores organizados em movimentos sociais
se tornam obstáculos aos interesses econômicos. O conflito tem mais de uma face, contudo.
Informados sobre a possibilidade de abraçar identidades capazes de garantir direitos étnicos e

127
A definição jurídica de Reserva Extrativista (Resex) foi determinada pela que institui o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, como “uma área utilizada por populações tradicionais, cuja
subsistência baseia-se no extrativismo e complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de
animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações
e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. A Reserva Extrativista é de domínio público, com
uso concedido às populações extrativistas tradicionais (art. 18 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000). A criação
e a regularização fundiária são de responsabilidade do órgão ambiental, federal ou estadual”.
145

territoriais, a população local, antes vista como um todo homogêneo, se divide por força de
políticas de identidade. Comunitários transformados em extrativistas se defrontam com aqueles
que se autonomearam indígenas.
A exacerbação de emergentes identidades indígenas estabelece novas relações nas
comunidades, ocasionando atritos em muitas delas. De um lado, o movimento indígena busca
se ampliar, através da conscientização de semelhantes e valorização do pertencimento através
da reconstrução da história, o que os permite ressurgir nela. Essa ação representa uma
decolonialidade do saber, do ser e do poder. O que é ser indígena hoje? Esta é uma pergunta
que rompe com o conhecimento estabelecido. Por outro lado, os que não se sentem indígenas
buscam afirmar a identidade extrativista, que em um momento da história lhes foi ofertada a
partir do repertório oficial. Indígenas e extrativistas são politizados na medida de suas inserções
nas lutas dos movimentos indígenas e sindicais, nesse complexo contexto de afirmações
identitárias. A polêmica se generaliza nas comunidades.
Nesse cenário de disputas, o conflito principal se dá pela resistência na terra e no modo
de vida, contra a agressão representada pelo avanço de atividades econômicas que ameaçam
territórios e uma identidade coletiva substancial. Esse cenário de disputas abre uma série de
indagações para as quais não tenho respostas. Seria possível um novo equilíbrio entre os
interesses dos diversos grupos? Onde está a solidariedade entre iguais, no trato com a natureza
e no modo de vida, que se verificou na conquista da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns e
da Terra Indígena Maró? A percepção de que indígenas e extrativistas têm inimigos comuns
permitiria uma luta conjunta? Os inimigos não são os mesmos que detém e reproduzem o poder
desde os tempos coloniais? A consciência indígena não abriria caminho para uma libertação de
todos os subjugados? Esse capítulo vai descrever a história de conscientização política, a luta
pela terra que resultou na Resex Tapajós-Arapiuns, a formação e afirmação do movimento
indígena logo após a criação da Resex, e a conquista da Terra Indígena Maró. Mas antes é
preciso falar do conflito principal para delinear o contexto.

Desenvolvimento e conflito
Santarém, cidade amazônica na região oeste do Pará, equidistante entre as metrópoles
de Belém e Manaus, com quase trezentos mil habitantes, é o ponto de partida para a Terra
Indígena Maró. Na frente da cidade, uma vez chamada de Aldeia dos Tapajós, se encontram as
águas marrons do rio Amazonas e as águas claras do afluente Tapajós. Nesse encontro as águas
não se misturam, diferente do povo local que foi se misturando ao longo do tempo. Ainda assim,
146

pele, olhos, bocas, cabelos, corpos e também expressões de muita gente lembram os indígenas.
Os olhares, muitas vezes desconfiados, carregam consigo a história de um povo e são
percebidos ainda mais fortemente na área do porto, que ocupa grande parte da orla da cidade.
Lá estão atracados centenas de barcos regionais de madeira, repletos de redes coloridas, que
diariamente levam gente que vai e vem para muitos povoados e cidadezinhas espalhadas pela
floresta.
Margeando o porto tem a feira de farinha e hortaliças, o mercado de peixe e o Mercadão
2000 com produtos de todos os gêneros. O barulho, de gente que grita oferecendo serviços, do
som de motor de barco regional e dos carros que passam na rua, acompanha o burburinho do
povo. A vida diária do lugar contrasta com a presença ao fundo de um outro porto, de
proporções muito maiores, onde nem gente nem barco há. É o porto da Cargill Incorporated de
Minnetonka, Minesota, poderosa empresa privada norte americana, que implantou um terminal
graneleiro subjugando os muitos protestos e manifestações dos movimentos populares.
Subjugou também a legislação ambiental, pois mesmo sem ter realizado o Estudo de Impacto
Ambiental (EIA-RIMA) exigido pela legislação brasileira, começou seu funcionamento no ano
de 2003.
Figura 30: O porto da Cargill ao fundo.

Foto: autora (jul.2013)

Destoando na paisagem, enormes navios cargueiros ancorados no porto da Cargill são


abastecidos anualmente com dois milhões de toneladas de soja. Logo serão cinco milhões. O
porto está sendo ampliado para atender à crescente demanda dos mercados mundiais. Demanda
que cresce junto com o agronegócio, que sobe pela BR-163 desde o Mato Grosso em direção
ao Pará ávido de terras férteis. Na região do baixo Tapajós a chegada dos sojicultores, a partir
147

de 1997, aqueceu o mercado de terras e provocou um aumento significativo de conflitos no


campo. Povos indígenas e comunidades tradicionais que moram em áreas florestais preservadas
são os que mais sentem a pressão sobre seus territórios. Por indução da venda e até por meio da
violência, a população local se sente coagida, conforme Solange Gayoso Costa explica:

Na disputa pelas terras, predominam os recursos e mecanismos ilícitos, tais como a grilagem de
terra, favorecidos por uma rede de agentes com influência em cartórios e órgãos públicos
responsáveis pela gestão territorial, o uso da violência contra populações tradicionais (de
posseiros, extrativistas, pequenos produtores, populações indígenas, quilombolas, entre outras),
conflitos entre grandes proprietários para definir a legalidade de documentos e legitimidade do
uso, conforme tem sido comprovado pelo Ministério Público Federal e pela imprensa. (2011,
p.81)

Mapa 1: BR 163 rota do agronegócio

FONTE: http://amazonia.org.br/2014/02/uma-corrida-aos-terminais-do-tapaj%C3%B3s

Disputa por terras


A disputa de terras, intensificada pela chegada da soja na região, caracteriza o oeste do
Pará como fronteira de expansão da sociedade nacional e do capital. Fronteira que lhe dita o
ritmo de expansão e avança abrindo e pavimentando estradas, instalando mineradoras e
148

projetando um complexo de hidrelétricas no rio Tapajós. Esse conjunto de transformações que


chega com o nome de progresso, atrai muitos migrantes em busca de oportunidades de trabalho
e de investimento. “A saga dos migrantes compõe capítulos de uma história, trágica para uns,
de sucesso para outros, mas sempre marcada por uma mesma dinâmica – a da incorporação de
novas terras à economia nacional no Norte do país”, afirma Castro (2005, p. 16). Entre os que
chegam na região, estão sojicultores, pecuaristas e madeireiros, ávidos por negócios lucrativos
e nem sempre idôneos nessa espécie de faroeste, onde a lei vige precariamente.
Na região do baixo Tapajós, os conflitos se intensificaram com a chegada da soja. Uma
das pessoas que me contaram sobre como o conflito de terras na região se acirrou com a chegada
da soja foi a então vereadora do município de Santarém, Maria Ivete Bastos dos Santos, 49
anos, em fevereiro de 2016128. Ivete Bastos, como é conhecida, se identifica como trabalhadora
rural e tem um histórico de resistência na luta pela terra contra os grileiros. Desde a chegada da
soja na região, ela é ameaçada de morte e vive 24 horas sob proteção policial, tendo sido
incluída, em 2007, no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.
Sua função de vereadora parece não combinar com sua aparência, “pelo conjunto de ser mulher,
pobre, trabalhadora rural”, como ela diz, sofre discriminações: “quando eu cheguei aqui as
pessoas queriam escrever um padrão talvez pra mim. Me olham até hoje, mas já se
acostumaram”. A voz debilitada e sua saúde frágil não parecem combinar com a força que ela
expressa, contando os inúmeros enfrentamentos e ameaças sofridas em nome da defesa da terra.
Ela me contou sobre a situação de conflito na região:
Na questão fundiária nós tínhamos um município com 90% dos agricultores familiares somente
como posseiros e deram essa nomenclatura pra gente e nós aceitamos isso por muito tempo e
ainda até agora. Falar que nós éramos posseiros da terra... A nossa luta foi muito pontuada na
resistência porque nós tínhamos o Porto da Cargill que chegou de uma maneira muito grosseira,
sem respeitar os trâmites. Nem o Ministério Público pôde barrar porque por tão pouco tempo
ele foi lacrado e ficou sem funcionamento, mas por muito pouco tempo. Então, a Cargill
proporcionou todo o problema que a gente vê hoje na questão do desmatamento no município
com o plantio da soja, que vem da linha do agronegócio. Por que a Cargill? Muitos dizem “mas
é só um porto”. Não, mas a Cargill também é uma financiadora. Então, a Cargill financiava os
produtores a plantar soja.

O Estado favorece o desenvolvimento capitalista, o que na Amazônia significa adotar


um posicionamento dúbio no trato de questões ambientais e relacionadas a direitos das
chamadas populações tradicionais. O Estado investe para atrair investimentos privados, e

128
Ivete Bastos cresceu como trabalhadora rural em uma família de treze filhos, começou a estudar aos nove anos
de idade e se envolveu com o sindicalismo, a partir de sua inserção nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBS);
se destacou como presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém por dois
mandatos consecutivos, entre 2002 e 2008.
149

apenas muito secundariamente atende as reivindicações das populações locais. Ivete Bastos
continua contando o que acontece quando da instalação do Porto da Cargill:

O próprio prefeito da época, Lira Maia, foi na região Sul convencer os agricultores da soja e
disse em uma revista chamada “A cidade”, que foi um processo muito duro de convencimento
de que esse povo viesse pra cá fazer seus investimentos. E o que foi bom, não sei pra quem, pra
nós foi muito ruim porque nós tivemos impactos sociais, ambientais, culturais, uma série de
problemas. Nós tivemos que fazer uma luta de resistência muito grande (...). Em 2002 já estava
bastante acelerada a compra de terras, expulsão de trabalhadores, porque eles não venderam
simplesmente porque queriam vender. Foi um processo muito, eu diria.... Eles usaram algumas
formas de conquista seduzindo e enganando o trabalhador pela ausência da questão da política
de reforma agrária, assumida pelos governos. O Incra trabalhava mais para atender a política do
grande latifúndio e não pra atender a necessidade dos pequenos, então o que acontecia?
Legalizavam áreas, fazendas, sobrepondo comunidades (...).

Ou seja, conforme as circunstâncias e os interesses, o Estado atua para remover as


comunidades e abrir espaço à produção. Pierre Leroy conta que, no Planalto Santareno, no
município de Santarém (PA), ao longo de mais de 100 anos, formou-se um campesinato
composto na sua origem por remanescentes da borracha. Em meia década, o chamado “eldorado
da soja” os varreu do mapa ali, no Planalto Santareno (2010, p.96).

“Viver é lutar” – Educação e conscientização para a ação.


É preciso considerar as ações coletivas para entender a luta pela afirmação das
identidades e garantia dos territórios. As possibilidades demarcam as estratégias dos
movimentos populares para seus objetivos materiais e simbólicos, em distintos momentos. A
história dos moradores subalternizados nas florestas do baixo Tapajós será contada com realce
para os processos que os tornaram sujeitos ativos. A mobilização das pessoas ocorre a partir do
acesso à informação, que possibilita a leitura do mundo mediante uma nova gramática. Educar
é possibilitar a interiorização de uma força pessoal, que liberta a pessoa de valores que a
oprimem. Motivar é também juntar a pessoa a uma causa comum. Algumas lutas são exitosas.
Na promoção do fortalecimento pessoal e coletivo alguns agentes tem papel decisivo.
As conquistas pessoais e coletivas, materiais e simbólicas, não acontecem abruptamente. A
postura crítica e o discurso decolonial, implícito na luta pela terra, resultam da conscientização
empreendida por agentes influenciados pelas ideias de educadores que entusiasmam até hoje.
Paulo Freire e sua “Pedagogia do Oprimido” e o trabalho de educação popular desenvolvido
150

por Dom Helder Câmara, a partir do Movimento de Educação de Base (MEB) 129, ajudaram a
alfabetizar e conscientizar a população rural na década de 1960.
O MEB se originou de uma experiência de educação para trabalhadores rurais no
Nordeste, realizada através de programa radiofônico. Modelo que foi replicado em outros
lugares, alcançando também resultados importantes, o que acabou por transformá-lo em um
projeto nacional de educação básica. O objetivo não era só alfabetizar, mas também possibilitar
uma educação integral para os trabalhadores rurais. De acordo com Condini:

Este trabalho pedagógico esteve atrelado à proposta da Ação Católica Brasileira que tinha como
principal objetivo o desenvolvimento da consciência política, social e religiosa do estudante
trabalhador. Esse processo de conscientização se deu através da valorização da oralidade e dos
costumes de cada comunidade a fim de que os trabalhadores pudessem entender a realidade que
os cercava e, a partir daí, transformá-la através de uma ação coletiva. O título de uma das
cartilhas do MEB traduzia a sua pedagogia: “Viver é lutar”. (CONDINI 2004, p. 88)

A conscientização, aliada à valorização da oralidade e dos costumes locais, alimentava


a esperança que levava as pessoas a agirem coletivamente na busca por justiça social. Dom
Hélder manteve viva interlocução com Paulo Freire através da “Pedagogia do Oprimido”, pois
acreditava que a conscientização levaria à ação e evitaria que um dia o oprimido se tornasse o
opressor. O MEB se consolidou, entre os anos de 1961 – 1964, e a partir dele surgiu uma igreja
mais progressista com a instituição das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) 130, projetos
sociais e comissões pastorais. Era a época em que o mundo estava dividido pela Guerra Fria.
Época em que o Brasil havia sofrido um golpe militar e que o regime de exceção cerceava os
direitos civis. As CEBs se tornaram uma plataforma onde as palavras “conscientização”,
“libertação”, “emancipação” e “consciência crítica” alimentavam a esperança de mudança do
cotidiano sofrido das populações “excluídas”.
O lema “Viver é lutar” continua vivo nas populações rurais do baixo Tapajós. A “luta
pela terra”, um lema mobilizador naquela época, foi determinante para a posterior configuração
de territórios e identidades nesse pedaço da Amazônia, e está na origem dos acontecimentos

129
O Movimento de Educação de Base foi idealizado por Dom José Vicente Távora e financiado pelo Governo
Federal
130
“Consistem em comunidades reunidas geralmente em função da proximidade territorial e de carências e
misérias em comum, compostas principalmente por membros insatisfeitos das classes populares e despossuídos,
vinculadas a uma igreja ou a uma comunidade com fortes vínculos, cujo objetivo é a leitura bíblica em articulação
com a vida, com a realidade politica e social em que vivem e com as misérias cotidianas com que se deparam na
matriz ordinária de suas vidas comunitárias. Através da hermenêutica do método ver-julgar-agir buscam olhar a
realidade em que vivem (ver), julgá-la com os olhos da fé (julgar) buscando nunca perder de vista o dom da
tolerância e o dom da caridade. Sem, no entanto, deixar que a razão fique obnubilada, e encontrar caminhos de
ação e conemplação, mesmo que impulsionados por este mesmo juízo prático ou teórico à luz da fé (agir)”.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Comunidades_Eclesiais_de_Base
151

contemporâneos. A afirmação de identidades agrega elementos materiais e não materiais, nasce


da valorização pessoal e da conscientização e se reforça na garantia da terra. As CEBs
contribuíram para a formação dos movimentos sociais e foram responsáveis pela formação das
lideranças comunitárias que tiveram um papel decisivo nas conquistas locais. Grande parte dos
personagens decisivos para a transformação da realidade local, através da conquista dos
territórios, sejam eles comunitários, membros da Igreja, sindicalistas ou integrantes de
Organizações Não Governamentais (ONGs) foram formados dentro das CEBs.
O rádio até hoje é importante para as populações da região, inclusive para muitas
comunidades da Resex Tapajós-Arapiuns e para as aldeias da TI Maró, para as quais ele é o
único meio de comunicação. A Rádio Rural de Santarém - rádio emissora do Sistema Diocesano
de Comunicação - foi inaugurada em 1964, com o nome de “Rádio Educadora de Santarém”,
para alcançar as comunidades mais longínquas. Quando inaugurada, um dos seus programas
era o Movimento de Educação de Base (MEB), e isso fez diferença na história de organização
do povo. Até hoje ela é a única emissora que alcança muitas comunidades do Arapiuns e do
Maró. É rotina das pessoas ligar o rádio para receber notícias dos parentes da cidade. Parte da
desconfiança do cacique Dadá, quando nos recebeu pela primeira vez na TI Maró, se deu porque
chegamos na aldeia sem ter previamente avisado via rádio.
A Rádio Rural tem papel ativo no diálogo com as comunidades. O movimento indígena
se consolida também pela transmissão radiofônica através do programa “A Hora do Xibé”. A
ideia de fazer o programa foi de um dos precursores do movimento indígena do baixo Tapajós,
o frei Florêncio de Almeida Vaz Filho, cuja liderança foi determinante na história da luta pela
terra coletiva, tanto da Resex quanto da TI Maró. Logo mais ele aparecerá na história da luta
pela terra na região. A finalidade agora é mostrar o quanto a luta está atrelada à valorização dos
costumes, oralidade e culturas locais, através da contação de histórias e “causos”, resgate de
cantigas, vocabulário local, piadas, receitas, remédios caseiros, entre outros. Frei Florêncio
conta na introdução do livro Isso tudo é encantado, sobre lendas e mitos locais, de que forma
nasceu a ideia de registrar as histórias, até então repassadas oralmente e transmitidas via rádio,
em livro. Chamo a atenção para como ele conta que o racismo foi acentuado com a chegada de
grandes empreendimentos na região, que se diziam portadores de desenvolvimento, mas que se
revelou ainda mais com a afirmação da identidade indígena e a conquista de certos direitos:
Os anos de 2005 e 2006 em Santarém foram marcados por intensa polêmica sobre a implantação
do porto da empresa Cargill. Empresários oriundos do Sul e Centro-Oeste e os defensores da
vinda da empresa demonstravam um claro desprezo pelo modo de vida dos nativos da região, a
quem acusavam de “preguiçosos” e de serem contra o “desenvolvimento”, e divulgavam a ideia
de que o porto da empresa transnacional significaria o desenvolvimento da região através do
152

agronegócio da soja. Também no final de 2006 a Prefeitura de Santarém instituiu a Educação


Escolar Indígena nas comunidades onde havia famílias que se identificavam indígenas. Foi o
estopim para que alguns grupos reagissem de forma preconceituosa contra os indígenas dizendo
que estudar nessas escolas seria “andar pra trás”, que os estudantes iriam andar nus etc. Isso era
dito abertamente nos jornais e nas rádios. (VAZ 2013, p. 13)

Nesse trecho de história existem elementos que se relacionam. A implantação do porto


da Cargill, representando o “desenvolvimento”, trouxe muitos migrantes para a região que
fizeram vir à tona um forte desprezo pela cultura local. Esse desprezo se reproduziu entre
muitos moradores locais, que passaram a olhar para si mesmos envergonhados de seu próprio
jeito de ser, falar, vestir, aparentar, que parecia atrasado e feio aos olhos de quem chegava. Isso
fez com que atitudes racistas contra aqueles que então se assumiam indígenas se acentuassem
ainda mais. O racismo, fortalecido pelo senso comum que relaciona o indígena ao passado,
fazia com que os não indígenas não quisessem “andar pra trás”.
De um lado, a chegada de migrantes ricos, com investimentos, que faziam o trânsito da
cidade encher de enormes caminhonetes, representando um futuro de progresso que finalmente
chegava na região. Por outro lado, indígenas resgatando línguas, valorizando sua cultura e
corporalidade, através de falas, crenças, danças, músicas, adereços, que muitos achavam que
havia se perdido no passado. Os indígenas inclusive conquistando direitos, como a implantação
de escolas, que também o povo não indígena por tanto tempo esperava. O conflito foi
irremediavelmente aguçado, em um jogo de interesses com três dimensões: terras, identidades
e direitos.
Assim, o programa da Rádio Rural “A Hora do Xibé” foi criado, em janeiro de 2007,
para combater o racismo, que se aguçou diante das ideias pejorativas sobre os moradores da
região. Florêncio Vaz explica que o objetivo foi “valorizar e divulgar a história, a cultura, os
valores e a identidade das pessoas e comunidades nativas ou originárias da região amazônica,
especialmente as do baixo Amazonas” (VAZ, 2013, p. 13-14). O programa foi muito bem
aceito, pois integrou os próprios moradores, como afirma Florêncio: “Temas da atualidade são
comentados, sempre buscando o ponto de vista dos nativos da região, que participam
intensamente da programação, seja por carta, pelo telefone e ao vivo no estúdio” (ibidem, p.
14).
Tendo traçado esse panorama que reúne a formação e a valorização das pessoas, a partir
das iniciativas da Igreja Católica ligada à Teologia da Libertação, e de como hoje o rádio como
instrumento de comunicação continua sendo importante para o diálogo com os nativos,
153

apresento as ações coletivas que uniram o povo da região em determinados momentos de luta
pela terra.

O sonho de uma terra coletiva: a Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns


A ação coletiva é motivada por pessoas informadas, conscientes e dispostas a lutar,
líderes que se dedicam, se mobilizam e acreditam. Para contar a história da luta pela terra na
região que se tornou Resex Tapajós-Arapiuns, que antecedeu a luta pela TI Maró, e toda a
questão da afirmação de identidades, apresento aqui dois líderes importantes. Aliás, acho
melhor deixar que um apresente o outro, pois nas entrevistas que fiz, separadamente com cada
um deles, eles falaram espontaneamente sobre a importância um do outro. Um deles é o Sr.
Antônio de Oliveira, conhecido como Seu Mucura, nascido em 1938, e que será apresentado
por Florêncio de Almeida Vaz Filho, o frei Florêncio, que é antropólogo, professor universitário
e mentor do movimento indígena do baixo Tapajós. Segundo frei Florêncio, o seu Mucura “tem
uma percepção fantástica. Ele é um intelectual nativo”, e continua falando sobre ele:
Ele é, ele é, como eu poderia dizer? Ele é uma pessoa total. Parafraseando o fato social total.
Porque ele foi empregado, tipo aqueles servos, que praticamente eram escravos dos donos dos
seringais. Ele pegou aquele tempo. Quando ele era criança, ele vivia como empregado desses
patrões. Não era o seringal clássico, mas em meados do século passado, que o Tapajós ainda era
terra dos Serique, dos Araújo, dos Cohen, filhos daqueles judeus que foram embora na época da
decadência da borracha. Então, o seu Mucura experimentou, digamos uma vida de servo de
seringal da borracha. Depois ele passou por esse processo de educação libertadora da Igreja
Católica, torna-se catequista. Imagina o que causou na cabeça dele essa leitura de libertação dos
oprimidos... eu imagino que essas coisas todas vão se juntar quando ele entra pro sindicato dos
trabalhadores e que eles começam a lutar contra as madeireiras, contra o IBDF/Ibama pelo
direito de continuar na terra.

Frei Florêncio descreve o Seu Mucura antes de contar como se concretizou a luta por
uma terra coletiva. Um pouco antes de eu ter essa conversa com o Florêncio, estava em uma
das minhas viagens de campo, quando um morador da Resex Tapajós-Arapiuns me mostrou um
livro131 sobre a história da Resex, escrito por Seu Mucura. Assim que voltei para Santarém132,
fui até o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) para tentar adquirir uma
cópia do livro e por acaso encontrei Seu Mucura lá. Ele foi solícito e me concedeu uma
entrevista, contando toda a história da luta pela terra na região onde hoje é a Resex. Falou mais
da luta do que de si mesmo, mas me contou que a família dele era muito pobre, explicando que
“naquele tempo não era fácil criar oito filhos”. Falou que por isso, quando ele tinha 7 anos, seus
pais deram ele para uma família. Nesse tempo ele ficou trabalhando. Ele só voltou para a casa

131
“Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns – Conhecer a vida é viver a vida” 2012.
132
Em 22 de outubro de 2013.
154

dos pais quando tinha 11 anos de idade. O tempo passou e Seu Mucura foi educado e formado
dentro dos ideais de consciência e libertação promovido pelas CEBs. Ele se tornou uma grande
liderança em diversos momentos de luta pela terra na região.
A primeira grande conquista de algumas comunidades, que pertencem hoje à Resex,
ocorreu quando os moradores se sentiram ameaçados pela intrusão da empresa madeireira
Amazonex, na margem esquerda do rio Tapajós, no ano de 1981. Foi a primeira vez que as
comunidades garantiram uma área de terra coletiva. Conquista que alicerçou e serviu de modelo
para as lutas pela garantia da terra nas demais comunidades, especialmente quando da
mobilização pela criação da Resex Tapajós-Arapiuns. Vale a pena fazer um breve retrospecto
dessa história que posteriormente motivou a criação da Resex.
Nos primórdios da década de 1970, os moradores locais viram chegar na região
empresas madeireiras ávidas por madeiras nobres. Com o passar do tempo, algumas
comunidades se sentiram ameaçadas pelo avanço rápido da derrubada da floresta nos seus
espaços de vida e tomaram a decisão de se unir para garantir uma área de terra coletiva. É bom
lembrar que nesse período, um fato relevante foi a retomada133 pelos trabalhadores do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais no início da década de 1980, com a eleição de Geraldo Pastana134
para a sua presidência. De acordo com Leroy (1991), o sucesso da eleição de Pastana foi
resultado do processo político-filosófico-educativo de formação dos trabalhadores rurais. Com
esse novo direcionamento na organização, o STR passou a incentivar e dar grande apoio às
comunidades na abertura de picos para a auto demarcação de uma área de 64 km ao longo do
rio Tapajós com 13 km de profundidade (da margem do rio para dentro da floresta). Seu Mucura
conta:
A história pra nós chegarmos na criação da Resex é a história pela luta do “ano da terra”135 que
foi a primeira luta no Tapajós. Nós lutamos contra as empresas Amazonex e Santa Izabel pra
adquirir essa área para que pertencesse a nós. Ela não era legal, mas nós conquistamos já das
empresas que elas dividiram a terra com nós. Aí nós ficamos com uma área que nós cuidávamos.

133
O sindicato foi criado em 1972 por políticos ligados à ditadura como instrumentos de controle do campesinato
e como curral eleitoral.
134
A eleição de Geraldo Pestana e com isso a retomada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais para as mãos dos
trabalhadores ocorreu com muita resistência e calúnia dos adversários ligados ao Governo que os acusavam de
serem agentes de pastoral que se interiorizaram e se transformaram em liderança. Um panfleto da época resumia
a atitude dos adversários dizendo “Os comunistas que estão apresentando Geraldo Pestana para ser presidente do
Sindicato Rural querem escravizar o trabalhador, e para conquistar isso, se fazem de bons moços pensando que
vão enganar o homem do campo, para depois escravizá-lo e colocá-lo no regime do chicote e da guilhotina (...)”
(LEROY, 1991, p. 95).
135
“Em 1980, a XVIII Assembleia Geral da CNBB aprovou o documento “A Igreja e os Problemas da Terra”. A
difícil situação em que viviam os trabalhadores e trabalhadoras do campo brasileiro interpelava a Igreja e exigia
seu compromisso e sua palavra. O documento de Puebla, com sua opção preferencial pelos pobres, estimulava a
fidelidade ao Cristo presente nos rostos dos irmãos e das irmãs vítimas da opressão e da exploração” .
155

Nós fizemos um acordo com as empresas que elas não podiam entrar na nossa área pra tirar
madeira e nem nós na área delas. Elas autorizaram a gente fazer algumas caçadas na área delas.

Garantiram a regularização oficial dessa área de terra coletiva através de pressões em


reuniões e audiências com autoridades – representantes do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), advogados das empresas madeireiras e policiais. Quatorze anos
depois, essa primeira conquista pautou a luta por uma terra coletiva bem maior que abrangeu
muitas outras comunidades e que resultou na criação da Resex Tapajós - Arapiuns.
Era já o ano de 1994 quando Seu Mucura, que trabalhava em barco de transporte de
passageiros pelas águas do Tapajós, reencontrou Florêncio, que ele havia conhecido ainda
menino. Florêncio retornava dos seus estudos no Rio de Janeiro influenciado pelas ideias e
ideais dos movimentos populares que aconteciam na América Latina. Ele me disse “era 94
quando no México rompeu a luta dos zapatistas. A luta por identidade. A luta de uma forma
diferente, depois de séculos de colonização”. O teor desse relato já era um discurso decolonial,
embora essa linha de estudos na academia viesse a se formar apenas alguns anos depois. Uma
luta por identidade e por justiça que confrontava a exploração de séculos de colonização. Com
esse sentimento motivador, Frei Florêncio relata o que aconteceu nesse encontro dele com Seu
Mucura:
A gente viaja de barco e tem muito tempo... a gente conversa, conversa... olha o rio passar e aí
se lembra, sonha. Então, o seu Mucura foi a primeira pessoa com quem eu comecei a trocar
essas ideias sobre formas de regularizar a terra nas mãos dessas comunidades. Isso era em 94 e
ninguém na época se identificava coletivamente como indígena, nem o seu Mucura. O próprio
pajé Laurelino com quem eu conversava naquele tempo, ele dizia que ele era índio, que ele não
se envergonhava de ser índio, mas que ele era um indivíduo né. A comunidade dele não dizia
isso.

A lembrança de seu Mucura conta como ocorreu o desenvolvimento dessa conversa:

Eu era diretor do sindicato. Ele [Florêncio] passou lá em Muratuba, onde eu morava e ele ficou
lá uma semana comigo. Foi o tempo que tinha outras empresas (madeireiras) se instalando aqui
no Tapajós. Inclusive uma lá no Cametá que já tinha uma serraria lá e tava explorando madeira
atrás de Pinhel. Aí o Florêncio conversa comigo perguntando qual seria uma ideia que a gente
ia fazer pra que a gente criasse uma área coletiva entre Arapiuns e Tapajós.

Esse encontro de ideias do frei Florêncio, então representante da Comissão Pastoral da


Terra (CPT) e do Seu Mucura, liderança histórica do STTR, motivou uma grande mobilização
por uma terra coletiva. Juntos pensaram uma solução para os abusos das madeireiras sofridos
pelas comunidades de Pinhel, Camarão e Escrivão. Surge a lembrança da conquista da terra de
1981 e a ideia de propor a luta por uma terra coletiva bem mais ampla, que envolvesse as
comunidades que ficaram de fora na época. Florêncio conta:
156

Esses meus contatos no Rio de Janeiro, em Brasília. Eles se somam a essa trajetória que ele (Seu
Mucura) já tinha. Aí quando eu falo da possibilidade da gente demarcar as terras ele diz “olha
ao invés de ficar com treze quilômetros é hora de a gente regularizar toda essa terra, não apenas
os quatorze quilômetros, mas toda a terra”.

Perguntei para Florêncio o que motivou esse pensamento de retornar para a terra natal
e se engajar na luta pela regularização da terra. Ele me fala:
Eu estava terminando a graduação, na UFRJ no Rio e logo em seguida, eu passei pro mestrado
na Federal Rural do Rio. Foi essa minha saída para outro lugar geográfico, cultural que me faz
descobrir a importância da minha história, da minha origem.

A ação pela garantia da terra reuniu várias pessoas e instituições por uma causa coletiva.
Já existia uma história anterior de conquista da terra que sustentava essa possibilidade. Essa
história era um terreno para que a ideia de uma pessoa, no caso o frei Florêncio, pudesse
germinar. Ele, ao sair do seu lugar de origem, mergulhou em outro contexto e absorveu novas
influências que o fez aguçar um olhar sobre a sua própria história. Mas a ideia foi amadurecida
e viabilizada através da experiente liderança de Seu Mucura.
Assim, juntos a partir das instituições que representavam, STTR e CPT, convocaram
uma assembleia geral extraordinária, em maio de 1995, que resultou na solicitação formal por
uma terra coletiva aprovada por unanimidade pelos comunitários e subitamente encaminhada
ao INCRA. Até aquele momento, era ainda desconhecida a possibilidade de criação de uma
reserva extrativista.
Livaldo Sarmento, líder comunitário e sindical, é outro personagem importante dessa
história, especialmente em um momento pós-criação do Movimento Indígena, mas sobre isso
falarei em seguida. Agora ele discorrerá sobre suas lembranças do período da luta pela criação
da Resex:
O tempo passou, a luta ficou marcada. Entretanto, ficou uma firma que entrou pelo rio Arapiuns,
já no início da década de oitenta, foi a Santa Izabel. Essa Santa Izabel entrou justamente na
minha comunidade, São Pedro. Na época ela deu uma conversada com as lideranças locais,
enganou as lideranças e elas deram então entrada para essa madeireira. Em 1986, eu fui eleito
delegado sindical e eu tinha sempre uma ideia de confrontar essas explorações.

Dez anos depois, em 1996, Livaldo conta que as comunidades do rio Arapiuns ficaram
indignadas com a exploração madeireira abusiva da empresa Santa Izabel, que naquele ano
havia extraído cerca de 2.000 hectares de madeira. Com o apoio do Grupo de Defesa da
Amazônia (GDA), as lideranças comunitárias locais denunciaram as operações da empresa à
Secretaria Executiva de Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente (Sectam), que confirmou a
ilegalidade do desmatamento e suspendeu suas atividades, que já duravam 16 anos. Livaldo
relembra:
157

Quando via a madeira saindo lá da nossa área, eles derrubando aqueles piquiazeiros, doía na
gente, doía em mim, me dava uma revolta tão grande, mas eu não tinha quase força. Eu
procurava força pra lutar contra aquela situação.

A força para lutar, ele conseguiu através do seu engajamento no STTR, especialmente
quando foi eleito presidente da organização em 1997. Esse período coincide com a mobilização
para a conquista da terra coletiva, que também contou com sua atuação e incentivo.
A luta pela terra estava dividida em duas frentes. Uma que organizava as comunidades
do rio Tapajós, e outra na região do rio Arapiuns. Os líderes comunitários Rosário, Célio Aldo
e Cacheado se empenharam em uma grande mobilização contra a exploração abusiva das
madeireiras na região do Arapiuns. Existia na época uma articulação de instituições - STTR,
CPT, GDA e CEAPAC136 (Centro de Apoio a Projetos de Ação Comunitária) - chamada Fórum
da Produção Familiar, que debatia a questão rural, seus anseios e dificuldades. Esse Fórum,
através das lideranças comunitárias, chamou a população dos rios Arapiuns e Maró para uma
assembleia na comunidade Cachoeira do Maró com a finalidade de discutir questões sociais,
ambientais e formas de defender suas terras das madeireiras.
A luta pela terra na margem esquerda do rio Tapajós se uniu à luta pela terra nos rios
Arapiuns e Maró nessa assembleia que aconteceu em Cachoeira do Maró, em 1996. Livaldo
Sarmento relembra a atuação do Frei Florêncio nesse encontro, que fez um questionamento:
“Por que a gente não une as lutas do Tapajós e a do Arapiuns, já que tem esse foco de luta em
Pinhel, Camarão e Escrivão e essa aqui do São Pedro?”. Todos concordaram e a primeira
estratégia para concretizar e sistematizar a luta pela regularização fundiária foi formar duas
grandes associações intercomunitárias.
As comunidades do lado do Tapajós - Pinhel, Escrivão e Camarão - reuniram-se na
associação Yané-Caeté (Nossa Floresta). Paralelamente, outras 21 comunidades compuseram a
Associação Intercomunitária das regiões Arapiuns, Maró e Aruã (Airama). Assim, as
comunidades teciam seu protagonismo através dos seus líderes que as representavam através
dessas associações.
Na sequência dessa mobilização, Frei Florêncio viajou a Brasília e teve a informação da
possibilidade da criação de Reservas Extrativistas e do apoio do governo federal para isso,
através de Rafael Pizón Rueda, então coordenador do Centro Nacional de Desenvolvimento
Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT/IBAMA). Ele informou das facilidades da
regularização fundiária por meio de uma Resex, pois envolvia baixos custos, poderia ser feita
coletivamente e respeitava os costumes das populações tradicionais (ICMBio – Ibama).

136
Organizações cujos líderes tiveram formação na Igreja Católica.
158

O CNPT foi criado em 1992 como reivindicação da sociedade civil que considerava a
questão ambiental indissociável da questão social, ou seja, considerava o homem como
indispensável na solução dos problemas ambientais. Como lembra Seu Mucura: “Lá tinha o
CNPT do Ibama que foi criado justamente pelo Conselho Nacional dos Seringueiros. O CNPT
não foi criado porque ele [o Estado] quis criar. Foi uma reivindicação do Conselho Nacional
dos Seringueiros, que eles queriam um órgão dentro do Ibama que representasse os ribeirinhos,
os povos tradicionais da Amazônia”. A instituição nasceu para promover um melhor diálogo
entre o governo e a sociedade, tendo como objetivo a promoção do desenvolvimento econômico
através de melhores condições de vida das populações tradicionais, respeitando seus
conhecimentos e sua cultura. Estando de acordo com seus princípios, o CNPT incentivou e
financiou a organização coletiva para a criação da Resex Tapajós – Arapiuns.
Na sequência, houve um grande seminário no Emaús de Santarém com cerca de 80
líderes comunitários, onde frei Florêncio informou sobre a possibilidade de criação de uma
reserva extrativista, que mostrava ser a forma jurídica viável para concretizar o sonho de uma
titulação coletiva. Afirma Livaldo Sarmento: “O Florêncio veio e trouxe a ideia, trouxe o
documento. E aí nós fomos ler os documentos e achamos uma coisa muito interessante e
decidimos: é isso que nós queremos! Nós queremos uma titulação coletiva que era esse o nosso
grande sonho”. Oliveira, o Seu Mucura, lembra no livro que escreveu sobre a Resex: “Foi muito
bom quando o Florêncio chegou aqui em Santarém com essa notícia porque o povo já estava
bem adiantado, daí se juntaram as entidades, campo e cidade, se uniram e se organizaram e de
imediato foi criado um Grupo de Trabalho (GT) para a efetivação” (Oliveira 2012, p.43).
Florêncio conta como o trabalho de levantamento das histórias das comunidades para
fazer a solicitação ao Governo Federal para a criação da Resex remetiam à origem indígena:
Quando a gente começa a mobilizar as pessoas para fazer o pedido, que tinha que fazer o pedido
pro Governo de criação da Resex. Pra fazer esse pedido era preciso que a comunidade
argumentasse que ela era nativa, que ela era dona da terra, que ela tava ligada com aquela terra,
que era ela a população tradicional. E a justificativa toda ia dar nos tais indígenas porque quando
a gente começava a perguntar “e aí essa comunidade começou quando? Da onde que nós
viemos?” O pessoal: dos índios. Foram os índios. Os primeiros moradores foram os índios. Eles
diziam isso, e eu já juntando isso com a minha teoria, com a minha busca do índio que eu queria
resgatar. Nesses trabalhos de mobilização ganha muita importância essa identidade cultural
indígena, que estava na origem. Ainda não era aquele índio que nós somos hoje. Era aquele
índio que nos originou. Mas, isso ajudou muito as pessoas a recolocarem o índio na história. Os
índios e os cabanos “ah! Porque os cabanos passaram por aqui (diziam)”. E a Resex foi
criada.(...) Então uma vez criada a Resex, esse processo fica em plena efervescência, esse
orgulho da origem, esse orgulho de ser nativo.

Nesse momento, o movimento de auto-afirmação indígena ainda não existia, mas um


embrião já estava se formando através desse levantamento da história que trazia de volta a
159

lembrança dos indígenas. Um orgulho da origem que os possibilitaria provar que eram donos
da terra. Importante destacar que não obstante forças contrárias relevantes, a segunda metade
da década de 90 foi o momento propício para a união de diversas instituições, que em ação
coletiva garantiram a criação da Resex Tapajós-Arapiuns. Era um momento favorável, porque
a luta dos seringueiros do Acre e a criação da primeira reserva extrativista do Brasil, a Alto
Juruá, abria caminhos para a regularização da terra para muitos outros povos da Amazônia.
Florêncio fala:
Não era como terra indígena, era como reserva extrativista que era a forma que na época estava
na moda. Tinha a Marina Silva. O Chico Mendes tinha morrido recentemente. Havia todo um
glamour em torno de reservas extrativistas.

Nesse contexto, a criação da Resex Tapajós-Arapiuns foi a primeira do estado do Pará,


e significou uma das mais importantes conquistas dos trabalhadores rurais da região. A Resex
causou uma relevante mudança no território com o reconhecimento e a afirmação de uma
população que se enquadrava dentro do que o governo chamava de populações tradicionais, e
que logo seria definida também como extrativista.
Nesse modelo, a conquista da terra deve estar atrelada ao desenvolvimento da sua
população, aliando manutenção da cultura e proteção do ambiente. Com propósitos tão
compatíveis com o desejo dos moradores, a conquista da Resex ganhou muita importância para
as pessoas de inúmeras comunidades espalhadas nas beiras dos rios e igarapés que contornam
as densas áreas florestais. Ali muitos pequenos povoados se formaram quando a extração da
borracha movia a economia regional numa combinação também com áreas remanescentes de
diversos povos indígenas que ocuparam a região. Não é demais lembrar que toda aquela
população mantém forte ligação com a terra e com a natureza que a envolve, por isso coincidia
exatamente com as normas estabelecidas para a criação da Resex.
Na ação da conquista da Resex, a Igreja Católica se fez presente através da CPT137, que
tem como lema o combate às injustiças através da conquista de direitos. Já o Grupo de Defesa
da Amazônia (GDA), que nasceu de um grupo de reflexão no seio da Igreja Católica, é a
Organização Não Governamental (ONG) mais antiga de Santarém138. O GDA presta assessoria
às populações locais para a garantia de direitos e de melhores condição de vida e trabalho. Os

137
A CPT tem como missão “ser uma presença solidária, profética, ecumênica e afetiva, que presta um serviço
educativo e transformador junto aos povos da terra e das águas, para estimular e reforçar seu protagonismo”
(www.cptnacional.org.br)
138
O GDA foi formado como um grupo de reflexão política na luta contra os grandes projetos que chegavam na
região Amazônica, como a hidrelétrica de Tucuruí e o projeto Grande Carajás.
160

membros da CPT e do GDA foram muito ativos quando da luta pela criação da Resex Tapajós-
Arapiuns e também nos demais eventos que antecederam essa conquista.
Durante o seminário realizado no Emaús, a notícia de que havia um mecanismo legal
para conquistar uma terra coletiva motivou as lideranças a trabalharem em função da conquista
da Resex. Assim foram mobilizadas todas as comunidades da margem esquerda do rio Tapajós
do município de Santarém, além de quatro comunidades do município de Aveiro (Camarão,
Escrivão, Pinhel e Andurú). E na região do Arapiuns, foram mobilizadas todas as comunidades
das duas margens do rio Arapiuns, do rio Maró e do rio Aruã.
O Grupo de Trabalho da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns foi composto por
entidades não governamentais139 que prestavam assessoria e estavam sintonizadas com o
discurso da preservação ambiental, associações comunitárias, STTR e CNPT/IBAMA, além do
Ministério Público Federal e Estadual. Conjuntamente, organizaram uma grande assembleia em
novembro de 1997, na comunidade de Tucumatuba. O evento contou com a participação de 22
associações comunitárias do Tapajós e Arapiuns, que representaram 82 comunidades e cerca
de 4.500 famílias. Nesse evento, um abaixo assinado solicitando a criação da Resex foi
encaminhado ao IBAMA, o que repercutiu em forte reação dos políticos locais e dos
empresários contrariados com a criação da reserva. Houve a disseminação de informações
distorcidas, que instigaram conflito e insegurança entre os próprios comunitários, inclusive com
ameaças de morte a algumas lideranças. Isso porque, com a criação da Resex, alguns
comunitários perderiam seus empregos nas madeireiras. “Os políticos do município e do estado
eram totalmente contra, contra, contra, sem exceção”, afirma Livaldo Sarmento.
O prefeito de Santarém era o Lira Maia, eleito em 1997, completamente contrário à
criação da Resex, tinha a clara intenção de atrair sojeiros para aquela região. O Poder Público
Municipal, ligado a interesses políticos econômicos de madeireiros e de empresas de mineração,
se opôs veementemente à criação da Resex e passou a estimular movimentos contrários. O
argumento da gestão pública do município de Santarém foi de que a criação da Resex levaria a
população à miséria, pois segundo eles se tratava de um instrumento primitivo de regularização
fundiária. A ideia do “progresso” prevalecia nos políticos locais que se confrontavam com os
anseios daquela população que optava por um instrumento que eles consideram “primitivo”.
A Resex nasce atendendo as reivindicações das comunidades, mas sofrendo forte
oposição da gestão pública local. Por isso, a luta pela criação da Resex Tapajós-Arapiuns se
caracterizou como um movimento de resistência, tendo como referência a luta de Chico Mendes

139
Grupo de Defesa da Amazônia- GDA, - CEAPAC, Projeto Saúde e Alegria - PSA, CPT.
161

no Acre. As estratégias utilizadas pelo Grupo de Trabalho da Resex foram a de organizar


reuniões e inúmeros encontros nas comunidades a fim de sensibilizar, esclarecer e mobilizar a
população em prol da criação da reserva. Para mediar essa disputa entre Poder Municipal e o
povo, o Ministério Público140 Federal foi acionado e representado pelo Procurador da República
Felício Pontes. O procurador acabou se transformando em um personagem decisivo, pois ele se
empenhou arduamente para organizar as ações jurídico-legais que viabilizaram a concretização
da Resex. Antônio José, do Grupo de Defesa da Amazônia confirma:
O Ministério Público foi muito importante na consolidação da criação Resex Tapajós-Arapiuns
aqui nessa região porque a Resex nasceu nesse enfrentamento de interesses que estavam
pautados para aquela região com apoio inclusive naquela época da gestão pública do município
de Santarém, que se opunha à Resex sob o argumento de que se tratava da criação de uma reserva
que levaria a população à miséria. Seria um instrumento primitivo de regularização fundiária e
dentre outros elementos que se taxavam em relação à criação da Resex. Então ela nasce pra dar
resposta ao anseio das comunidades, mas sofrendo fortemente a oposição da gestão pública
daquela época.

As mobilizações, abaixo assinados e reuniões, levaram ao momento determinante da


exigência de uma Audiência Pública para que finalmente fosse aprovada em votação a criação
da Resex. Esse foi um dos momentos mais tensos. A Audiência Pública foi realizada em 1998
na comunidade do Mentai, que tem uma localização estratégica, pois fica no cruzamento dos
rios Maró e Aruã, com participação de cerca de duas mil pessoas. De todos os lugares que havia
oposição à criação da Resex, as comunidades do Maró eram as que mais sofriam a pressão dos
madeireiros, o que gerava grande tensão. De acordo com Raimundo Lambiá da comunidade
Mentai, uma forte liderança quando da criação da Resex, que já idoso relembra que foi
humilhado por quem não aceitava a Resex e ele disse que foram “as madeiras. Gente de fora.
Os gaúchos” que organizaram um movimento contra a criação da Resex. A força contrária
estimulava as comunidades, especialmente as localizadas ao longo do rio Maró, a votarem
contra a criação da Resex.
No início da Audiência Pública, o papel do Procurador Felício Pontes foi determinante
para o encaminhamento dos trabalhos. O movimento contrário à criação da Resex providenciou
barcos que chegaram lotados ao Mentai, com gente disposta a defender suas opiniões a qualquer
custo, com cartazes, faixas e gritos. Foi um ato estratégico do procurador esclarecer, logo na
abertura dos trabalhos, que a gleba Nova Olinda e a gleba Lago Grande não poderiam pertencer
à Resex e por isso não teriam direito ao voto. Na gleba Nova Olinda fica a região do Maró, que

140
O Ministério Público Federal tem como missão “promover a realização da justiça, o bem da sociedade e o
estado democrático de direito” (www.mpf.mp.br).
162

não poderia fazer parte da Resex. Justamente na região do Maró estava a maior concentração
das comunidades contrarias à Resex. Já na gleba Lago Grande havia muitos títulos individuais,
o que impossibilitava seu pertencimento à Resex.
A informação do impedimento do voto desestruturou o movimento contrário, pois a
maior parte era da região do Maró. Não satisfeito com a determinação, o representante do poder
local, então presidente da Câmara Municipal, Osmando Figueiredo, imbuído da ideia de
progresso pediu a palavra para contestar, dizendo entre outras coisas que a criação da Resex era
“uma tentativa de engessar a economia local”. Quem estava presente conta que o Procurador
Felício Pontes interferiu chamando a atenção dele veementemente e pediu que se retirasse. O
resultado da votação foi a quase unanimidade dos votos favoráveis à criação da Resex, tendo
sido apenas quatro os votos contrários.
O decreto presidencial de criação da Resex Tapajós-Arapiuns foi assinado em 06 de
novembro de 1998 e publicado no Diário Oficial da União três dias depois. Assim foi criada a
primeira Reserva Extrativista do Estado do Pará, com 647.610 hectares, abrangendo 68
comunidades localizadas nos municípios de Santarém e Aveiro, perfazendo um total de cerca
18 mil habitantes.
Mapa 2: Áreas protegidas do baixo Tapajós
163

Por que 82 comunidades solicitavam terra coletiva e apenas 68 comunidades foram


beneficiadas? O que aconteceu com as outras 14 comunidades? Por que ficaram de fora? Iza
Tapuia, liderança indígena nos explica: “O Maró ia ser parte da Resex, só não foi porque aquela
era uma área estadual. Nós tivemos que um dia tomar uma grande decisão e foi uma das mais
difíceis decisões que nós tomamos, que foi a de tirar o Maró pra poder sair a reserva do outro
lado, que era tudo Federal”. As lideranças comunitárias do Maró, que lutaram pela Resex e que
acabaram ficando de fora, precisariam esperar um pouco mais para encontrar uma nova
possibilidade de garantia do território.
Foi em uma reunião no Ministério Público Federal em Santarém, com as lideranças do
movimento pela regulamentação fundiária, que o procurador da República Felício Pontes,
mostrando um mapa, indicou as terras sob jurisdição federal e, do outro lado do rio Maró, a
Gleba Nova Olinda, explicando que esta pertencia ao estado do Pará. O procurador, empenhado
na consolidação da Resex, esclareceu ainda que não seria possível criar uma reserva extrativista
federal sobre área estadual porque, para que isso pudesse acontecer, teria que ser feito uma
negociação com o Governo do Estado do Pará. Relembra Iza Tapuia:
O governo do estado não conseguia discutir com a gente, não conseguia receber porque eles
eram muito reacionários, então a gente pensou como é que a gente vai fazer? Eram 1.200.000
hectares. Aí a gente falou não, vamos fazer com 600.000 hectares, vamos fazer só o que é
federal, vamos garantir pelo menos a Reserva Extrativista. E eles [os comunitários do Maró]
ficaram lutando na terra. (...) A luta em defesa da terra no Maró é antiga, sobretudo Novo Lugar
que tem que ser respeitado. E no Maró, sobretudo Novo Lugar, eles sempre foram muito
rebeldes. (...) No Novo Lugar a concepção é indígena mesmo. Eles têm um tuxaua, um cacique,
alguém que diz o que tem que ser feito.

Odair Borari, o Dadá, que viria a se revelar como cacique de Novo Lugar, já era uma
das lideranças mais ativas do Maró. Ele conta que se entristeceu muito diante da
impossibilidade de pertencer à Resex. Assim, as lideranças que se empenharam para a criação
da Resex decidiram deixar o Maró de fora porque a urgência naquele momento era “fazer a
reserva extrativista para salvar o patrimônio, porque o lado de lá não tava em perigo
‘teoricamente’. O perigo tava na terra federal que ia ser vendida”, completou Iza Tapuia. No
entanto, as lideranças, se propuseram a continuar a lutar pela terra141. Foi dessa forma que as
comunidades do Maró perceberam que para garantir seu chão deveriam se valer de outros
instrumentos de luta, pois sem a posse da terra continuariam suscetíveis à cobiça alheia.
De acordo com dados da Tapajoara, associação que reúne todas as associações
comunitárias da Resex, em 2014 a reserva tinha 21 mil habitantes divididos em 5.660 famílias,

141
A base política para discutir a questão da terra foi formada a partir do Programa de Capacitação em Educação
Ambiental organizado pelo Grupo de Defesa da Amazônia – GDA, quando da criação da Resex.
164

de acordo com cadastro no ICMBio. A Resex possui 71 comunidades, das quais 22 se


reconhecem indígenas. Além dessas, em 4 comunidades existem famílias que se reconhecem
indígenas. Quando a Resex foi aprovada em 1998, um Conselho Deliberativo, formado por
representantes das associações comunitárias, foi eleito para ficar responsável pela sua gestão.
No entanto, em 2002, é aprovada a Lei 9985 de 18 de julho de 2002, que institui o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC. Com essa lei as comunidades
perderam a autonomia do comando da Resex, passando o Conselho Deliberativo a ter um
gerente representante do órgão federal responsável por áreas protegidas: Instituto Chico
Mendes (ICMBio/Ibama). Assim, ao passo em que o Estado oferece uma possibilidade de
titulação coletiva, e concretiza o sonho de anos de luta pela terra, cria novos instrumentos de
controle e poder. Oferece um documento chamado de Contrato de Concessão de Direito Real
de Uso que deverá ser renovado a cada 30 anos e, para executar qualquer atividade econômica
na Resex, as comunidades precisam de um Plano de Manejo.
O Plano de Manejo logo foi feito e aprovado pelas comunidades, mas demorou 16 anos
para ser aprovado pelo Governo Federal. Ao mesmo tempo em que o Estado comparece
atendendo certas demandas, ele se recoloca no poder através das instituições que gerenciam os
territórios. Moradores reclamam da “vigilância” do ICMBio: “o governo pega e cria o SNUC
e dá o poder absoluto de nos vigiar 24 horas e colocar propostas pra que sejam aprovadas no
Conselho deliberativo da unidade pra manter a Resex, como se o povo da Amazônia, como se
o povo que mora dentro da Resex quisesse destruí-la” reclama Dinael Cardoso, uma liderança
indígena da Resex. Ocorre que, em muitos casos, o saber técnico-cientifico desqualifica e
desvaloriza outros saberes e práticas (CASTRO e PINTON 1997). Um saber técnico-científico
ocidentalizado, uma colonialidade do saber, que despreza conhecimentos outros, daqueles que
um dia foram submetidos a uma falsa classificação racial com intenção de inferiorizar sua
humanidade, seus saberes e suas práticas.
165

VII - SOBREPOSIÇÕES: IDENTIDADES E TERRITÓRIOS

A luta pela defesa e garantia de territórios se dá em virtude de um conjunto de elementos,


inclusive a existência de legislações que favorecem a mobilização social e a adesão a novas
identidades. Afirmados em novas identidades, as gentes antes desprezadas se ressignificam,
ganham capacidade de resistência e insurgência, realizando uma descolonização da existência.
A região do baixo Tapajós reúne modalidades de organização territorial que resultaram
de lutas travadas pelas populações locais para garantir a permanência no lugar que vivem. A
conquista da Terra indígena Maró se relaciona com a história de luta pela terra que resultou na
Reserva Extrativista142 (Resex) Tapajós Arapiuns. Os momentos decisivos de luta pela terra
configuraram ações coletivas em diferentes momentos da história local. A partir de
possibilidades de regulamentação da terra criou-se a identidade extrativista, que muitas vezes
conflita com a identidade dos que se autonomeiam indígenas.
A busca pela identidade indígena é respaldada pela Convenção 169 (Art 1º, 2) da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo governo brasileiro em 2002. A
Convenção 169 ordena que “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser tida
como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições desta
Convenção”. Isso possibilita aos indígenas o direito à autonomeação. Assegurados por essa
legislação, os indígenas do baixo Tapajós lutam para fazer valer seus direitos e para serem
finalmente reconhecidos e respeitados pelo Estado e pela sociedade.
Indígenas e extrativistas têm modos de vida semelhantes e um mesmo histórico de
injustiça que gerou lutas por reconhecimento (HONNETH, 2009) e território. As identidades
indígena e extrativista promoveram o reconhecimento social de grupos, a conquista e a
transformação de territórios. Ensejou também conflitos, das comunidades locais contra a
expansão capitalista desregrada nessa área de fronteira, e conflitos inter e intra comunidades,
em razão de exacerbações típicas das políticas de identidade.
A partir de uma história comum, a possibilidade de garantir a terra fez com que as
pessoas se distinguissem por identidades. Identidade aqui será tratada como um fenômeno

142
A definição jurídica de Reserva Extrativista (Resex) é: “uma área utilizada por populações tradicionais, cuja
subsistência baseia-se no extrativismo e complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de
animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações
e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. A Reserva Extrativista é de domínio público, com
uso concedido às populações extrativistas tradicionais (art. 18 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000). A criação
e a regularização fundiária são de responsabilidade do órgão ambiental, federal ou estadual” (Benatti 2011, p. 98).
166

social dinâmico permeado por relações de poder. Junto com a adoção de identidades a terra se
dividiu em territórios que se formaram a partir de acordos e arranjos amparados pela legislação.
Ora os instrumentos legais permitiam diferentes modalidades de reconhecimento da terra e
consequentemente de sua população, ora os instrumentos legais possibilitavam o sentido
inverso: primeiro o reconhecimento de suas populações e posteriormente da sua terra.
Essa história se inicia com a conquista da Resex Tapajós Arapiuns, que era um território
de várias comunidades, ameaçado e invadido por madeireiras. O território constituía área
federal e, portanto, poderia ser transformado em Reserva Extrativista. Para tanto, os moradores,
identificados como trabalhadores rurais, posto que associados ao Sindicato dos Trabalhadores
e Trabalhadoras Rurais (STTR), assumiram-se extrativistas, o que significava exercer
atividades que eles já exerciam de fato, embora não conhecessem a palavra extrativista. Dona
Maria Odila, de 64 anos, uma liderança da reserva extrativista Tapajós Arapiuns, conta como
se descobriu extrativista:
eu era uma mulher, uma criança que nasceu e se criou andando no mato, convivendo com tudo,
colhendo as coisas da floresta, riscando seringa com meu pai - que isso é extrativismo também.
Fazendo todo um aparato pra sobreviver: pescar, caçar, tudo. “Ah o extrativista! ”. Então o que
eu fazia desde criança era o extrativismo. Mas, a palavra mesmo chegou na minha cabeça depois.

A palavra extrativista chegou na sua “cabeça” depois. Com o processo de luta pela terra
ela descobriu que existia um nome para as atividades que sempre praticou. Coletar produtos
naturais, pescar, caçar, extrair látex, todas as atividades então resumidas a um nome:
extrativismo. A Reserva Extrativista (Resex) é um modelo de reserva criada com base nas
reservas indígenas, para garantir a terra para quem nela vive e trabalha. A identidade extrativista
nasce de maneira positivada, associada à luta por território e à preservação ambiental promovida
pelos seringueiros.
A luta pela reserva extrativista se associa ao discurso ambientalista consonante com a
preocupação internacional de manter a floresta viva. Uma luta personalizada na figura de Chico
Mendes, seringueiro e sindicalista assassinado por fazendeiros, que se tornou um mártir do meio
ambiente. Extrativista é, portanto, uma identidade criada e vinculada a valores: proteção e
preservação da natureza aliada a um trabalho sustentável. Um trabalhador compatível com o
modelo retórico de “desenvolvimento sustentável”, quando este ganhava fama mundial,
fortalecido pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
a ECO 92. A vereadora Ivete Bastos, expressou com emoção a admiração por Chico Mendes e
o sentimento que tem pelo modelo de Reserva Extrativista:
167

Eu não convivi com Chico Mendes, mas respeito a história e amo a floresta que ele amava. E
amo o modelo reserva extrativista que é uma modalidade também pensada por Chico Mendes.
E a gente faz de tudo pra que esse povo ame essa floresta, ame esse rio, ame essa cultura e que
valorize. Eu convivi mais com Maria do Espírito Santo e Zé Claúdio. Eu convivi com o Dema,
com o Dézinho, com a irmã Dorothy e eu penso que não em vão. A gente só existe porque
alguém teve coragem de doar sua vida pra alguma transformação acontecer.

Assim como Chico Mendes, o casal Maria do Espírito Santo e Zé Cláudio, o Dema, o
Dézinho e também a irmã Dorothy, todos inspiram lideranças para a luta, todos eram
ambientalistas, todos se tornaram mártires da floresta. Lutavam pela terra e pela floresta em pé.
Foram assassinados a mando de fazendeiros e na maioria dos casos a impunidade prevalece.
Nos casos de assassinatos de lideranças indígenas pelas mesmas razões, a impunidade também
prevalece, mas eles não são chamados de mártires por não indígenas. Ser indígena é sofrer um
estigma.
Proponho debater as identidades extrativista e indígena nos próximos parágrafos.
Começo por dizer que existem razões práticas pelas quais algumas pessoas, apesar de
entenderem e respeitarem a causa indígena, optam por não assumir a identidade indígena.
Existem razoes práticas, existenciais e políticas nas escolhas das identidades. Diferente da
identidade extrativista, a identidade indígena não se relaciona diretamente ao trabalho ou a um
modo de vida cujo trabalho é o centro, tampouco se resume à luta pelo meio ambiente. A
identidade indígena engloba o sentido existencial, o modo de ser e estar no mundo, retoma
histórias e tradições, evoca antepassados e encantados, valoriza uma cosmologia própria e
contesta profundamente o sistema, que oprime o nativo desde os tempos coloniais. É uma
identidade que recupera e reforça raízes e afirma um sentido político na vida. É uma identidade
com profundo sentido descolonizador ao confrontar o modelo de sociedade imposto. Entretanto,
o indígena é também associado àquele que caça, pesca, colhe e planta para sobreviver sendo o
protetor da floresta, assim como é o extrativista.
Dona Maria Odila se dedica há anos a um projeto de criação de peixes nos lagos e
também trabalha em uma cooperativa, a Turiarte, que produz e vende artesanatos e que gerencia
uma pousada de turismo comunitário na Resex. Ela me falou espontaneamente sobre como sua
descendência se relacionava à identidade extrativista e também sobre a falsa ideia de que as
pessoas que moram na floresta são preguiçosas, uma atribuição que o senso comum também
confere ao indígena:
O que aconteceu com a gente? Nós somos extrativistas. Meu avô, meu pai, meu bisavô,
coletavam os frutos aqui, tudo o que precisava: bacaba, açaí, o cupu (cupuaçu) que foi começado
a plantar. Ia no lago, ia pegar o peixe. Ia no mato, ia pegar a anta, cotia, tinha paca, tinha
alimentação, não precisava plantar. Não precisava criar. Quando aqui tava escasso, íamos pra
168

outra parte procurar. Então, nós não tivemos a educação de plantar. Hoje a necessidade nos
obriga a parar pra fazer uma criação de peixe. A necessidade de alimentar nossa própria família
porque os lagos já não tão com peixe como antes.

Durante nossa conversa ela me contou histórias sobre seu pai. Descrevia seu modo de
vida e trabalho para dizer que ele também era um extrativista. Mas, acrescentava ao
extrativismo que ele fazia formas espirituais de lidar com a natureza, que ela não entendia
quando criança:
O meu pai morreu com 73 anos, mas nunca foi ferrado de arraia. Só que meu pai também nunca
entrava na água sem abaixar com a mão direita e pedir licença pra entrar na água. Pra quem ele
pedia licença? Na minha cabeça de menina, meu pai era maluco. Nós íamos caçar, os cachorros
tavam, a hora que ia entrar na mata pra caçar ele sempre dizia “dá licença que eu vou entrar no
seu reino, me dê umas caças pra alimentar meus filhos”. Eu comentava isso com minhas irmãs
“o papai é maluco, ele fala só”. Porque eu não via com quem meu pai falava. Hoje eu sei. O
meu pai tinha um grande respeito e uma integridade com a natureza, com o mato, com a água.
Até mesmo pra trabalhar com o fogo ele tinha um conhecimento. Por que ele fazia isso? Porque
ele tinha o domínio, ele conversava, ele sabia como lidar com essas coisas. Hoje não existe mais
isso não.

As histórias que Dona Odila me contava sobre o pai pedir licença para adentrar a
natureza me fez lembrar as práticas indígenas, de integração gente-natureza, conforme o relato
de Luana Kumaruara:
Era intensa a relação gente-natureza. Nós tínhamos de pedir permissão para entrar no rio, cuidar
para não ficar panema143 e nem ser judiado144. Na caçada e na entrada da mata também existem
regras que tem de ser respeitadas, como pedir licença ou deixar um agrado para curupira145 e
outros protetores da floresta, a fim de fornecerem caça ou não judiarem (fazendo a gente se
perder na mata). (2016, p.28).

Pela coincidência com as práticas indígenas, perguntei para Dona Maria Odila se o pai
dela era indígena, e ela respondeu: “ele tinha todinha a cultura, ele era direto. Na época eu não
ligava não. Hoje eu vejo que meu pai era índio sim”. Dona Odila morou alguns anos em São
Paulo e me contou que lá as pessoas costumavam perguntar, por causa das suas características
físicas, se ela era boliviana ou peruana e ela costumava responder: “eu sou mais brasileira do
que você porque eu sou indígena”. Eu perguntei: “então a senhora se dizia indígena?”. Ela
respondeu ressaltando suas características físicas e sua interação com a natureza:
Dizia “sou indígena” e digo até agora “eu sou”. A minha cara quadrada, o meu corpo sem pelo.
Não temos nenhum pelo, nem no braço, nem na perna. É uma das identidades. “Eu sou

143
Ficar panema é ter má sorte, é ficar azarado e não conseguir caça nem peixe.
144
Judiar é maltratar.
145
Curupira é um ser lendário protetor da floresta. Tem cabelos vermelhos e pés virados para trás, que deixam
pegadas e confundem quem está na floresta fazendo com que fiquem perdidos.
169

indígena”, só que pra isso eu não vou sair gritando, nem fazendo coisa não. Eu amo minha
natureza, eu respeito ela, eu peço que ela me respeite também. Quando a gente tem uma
integração a ela, ela também ouve a gente.

De acordo com a fala de Dona Odila, ser indígena é uma das suas identidades. A nossa
conversa seguiu e ela me contou das dificuldades e das conquistas para desenvolver projetos na
sua comunidade, Anã. Além da criação de peixes nos lagos, Dona Odila participa de uma
cooperativa que hoje conta com uma pousada de turismo comunitário e recebe muitos visitantes.
Ela geralmente é convidada para falar em nome desses projetos desenvolvidos pela MUSA
(Mulheres Sonhadoras em Ação). Já no final da nossa conversa perguntei como geralmente ela
se apresenta quando vai dar uma entrevista, gravar um programa, falar em um jornal. Ela
respondeu com a voz firme “Eu sou Maria Odila Duarte Godinho: uma brasileira, extrativista,
nortista”. Dona Odila mostrou durante toda a nossa conversa ter orgulho de ser extrativista.
A identidade extrativista nasceu a partir da construção e luta dos seringueiros como
forma de garantir seus territórios. Suas terras foram legitimadas pelo Estado como reservas
extrativistas. Os seringueiros passaram a ser também extrativistas e esse modelo se replicou. A
identidade extrativista serviu para outras populações amazônicas como base para a garantia do
território, através da vida no território vinculada ao trabalho. A pessoa é reconhecida a partir de
uma identidade de vida relacionada ao trabalho, mas também com sentido subjetivo que une
escolha, significado e também sentimento.
Enquanto a mudança e agregação de novos elementos culturais não é determinante para
validar ou não a identidade indígena, certos critérios de organização territorial estabelecidos
pelo Estado têm papel decisivo no jogo das políticas de identidade. Se a Reserva Extrativista
foi possível porque constituída em área federal, quando o Governo Federal era favorável a esse
tipo de organização territorial, em outra área contígua, mas pertencente ao Estado do Pará, seria
difícil uma negociação.
O governo do estado do Pará não tinha o menor interesse em oficializar aquela área
para as comunidades que nela viviam. Ao contrário, tinha planos de ceder aquela área para
fazendeiros. A intrusão dos madeireiros chegou paralelamente com a informação sobre a
possibilidade do autorreconhecimento étnico. Comunidades então se auto afirmaram indígenas,
desenterrando histórias e rituais. Tiveram sua identidade indígena reconhecida pela Funai e com
ela sua terra. Ambos os casos constituem áreas protegidas amparadas pela legislação. Todas as
comunidades dessas áreas se relacionam e um dia lutaram juntas pela garantia das suas
respectivas terras, apoiadas por um conjunto de instituições.
170

Contudo, a adoção de instrumentos jurídicos de legalização da terra, as identidades


assumidas e os territórios garantidos, não promoveram uma acomodação estática de identidades
e territórios, mas conferiu-lhes grande dinamismo. Algumas comunidades extrativistas
passaram a se afirmar indígenas, com consciência da sua condição e com a possibilidade de
garantia “permanente” na terra. Outras comunidades ficaram divididas entre os moradores que
de extrativistas passaram a ser indígenas e os moradores que optavam por permanecer
extrativistas. Em comum todos afirmam a descendência indígena. Territórios ficaram
sobreposicionados. Acordos, arranjos, estratégias, polemicas e conflitos passaram a permear
novas relações no que antes parecia ser homogêneo.
Razões práticas movem as escolhas e as políticas de identidade, mas não só elas e
tampouco razões apenas utilitaristas. Junto com a busca de relações mais justas com o Estado,
e o interesse na manutenção de relações com instituições e projetos, há também a intenção de
protagonismo social e político, de pertencer a um lugar, a uma história de luta que reuniu tanta
gente e produziu significado, a percepção de ser parte de um discurso que contesta o capitalismo
predatório, a informação, portanto, e o desejo de exercer uma consciência que os liga aos
antepassados e aos espíritos, especialmente no caso dos indígenas.
No cenário do baixo Tapajós estão pessoas ligadas por modos de vida e culturas
semelhantes, relações de parentesco, histórias de luta e inimigos comuns, que não obstante
tantas afinidades buscam demarcar fronteiras simbólicas, conforme a fundamentação de Fredrik
Barth (1969) sobre a constituição da etnicidade. Importa a percepção que cada grupo tem de
si, a maneira como o grupo quer ser reconhecido, e então a construção de um contraste, onde a
racialização do indígena por ele mesmo comparece como política de identidade. Marcelo Borari
diz onde ele percebe a diferença entre indígenas e não indígenas, dando o exemplo da Resex
Tapajós – Arapiuns:
Existe diferença na informação, alguns têm mais informação sobre as causas indígenas, outros
não. A diferença tá mais nisso. Nessa falta de informação que alguns têm em respeitar e
reconhecer o outro como indígena. E às vezes não é tão interessante para alguns ir em busca
dessas informações. Eu vou usar como exemplo a Resex, que existem os indígenas que se
afirmam e os indígenas que não se afirmam. Eu falo isso porque não tem como aquela população
que é indígena aqui do meu lado, que comunga da mesma cultura, que não tem nada que os
diferencie ali. Aí o outro vai dizer que não é indígena. Só que se você for analisar, aqueles que
se afirmam indígenas eles têm um pouco mais de informação sobre a sua história do que aquele
não indígena. Então, quer dizer as diferenças são no conteúdo que cada pessoa tem a respeito da
sua história. É só isso. Porque na questão física, cultural, não tem como fazer essa distinção.

As identidades são assumidas por escolhas conscientes, mas também por significados
que constroem e se alicerçam em sentimentos. Existem aqueles que se dedicam a retomar suas
171

raízes indígenas, fazer renascer suas histórias, construindo presente e futuro de acordo com um
profundo sentimento de pertencimento a um coletivo. Revelam e reconstroem rituais, falam
com propriedade da íntima e respeitosa relação com a natureza e seus encantados. Reconhecem
o quanto a sua indianidade foi violentada dentro de um projeto oficial de limpeza étnica.
Encarnam as lutas dos guerreiros de ontem e de hoje com orgulho. Lutam com o amor que os
vincula à sua causa que passa a ser o significado de suas existências. Sobretudo, reconhecem e
denunciam toda a violência cometida contra seus povos no passado e todo o racismo que os
penaliza até o presente. Reconstroem sua cultura através de novos parâmetros, mas também
recuperando elementos culturais distintivos que ligam presente e passado.
Por outro lado, existem aqueles que se sentem mais à vontade em assumir plenamente
uma identidade extrativista, ou de trabalhador rural, ou ambas, em vez de recorrer ao vínculo
com seus antepassados indígenas. Enxergam na sua condição uma possibilidade de garantir seu
modo de vida, construído simbolicamente de maneira positiva ao se sentirem plenamente
guardiões da floresta. Se espelham em símbolos de luta para alcançarem uma melhor condição
de vida no seu próprio ambiente. Desenvolvem projetos dentro de uma lógica que une
preservação e produção, como criação de peixes, produção de mel, turismo comunitário, entre
outros. Embora conheçam a história indígena na região ou apontem claramente algum
antepassado indígena, dizem não se sentir indígenas.
É provável que esse sentimento esteja ligado a uma construção histórica que vinculou a
imagem do índio a certos estereótipos. A identidade indígena foi estigmatizada e associada ao
passado para dar lugar ao que é considerado moderno ou “normal”.
Conforme Edilena, que se identificou como delegada sindical, falou sobre a adoção de
diferentes identidades:
O que causou muito nas comunidades foi muito conflito. Porque essas comunidades estavam há
muito tempo trabalhando como povo normal. Muitos foram influenciados, aí um grupo ficou
indígena, outro ficou extrativista, aí começou a briga. Todas as comunidades onde tem o
indígena e tem o extrativista, elas vivem em conflito.

Na fala de Edilena o “normal” é não ser indígena. O movimento indígena plenamente


consciente enfrenta a normalidade e a homogeneidade imposta pelo colonizador. O impasse
criado pela diferença entre semelhantes por causa da adoção de identidades poderia ser
resolvido a partir do entendimento de que as identidades são também elas móveis e dependendo
das circunstâncias podem ser afirmadas ou não. Trazer a condição indígena para a condição de
“normalidade” é um enfrentamento decolonial, um projeto que demanda a construção de
hegemonia. Edilena comentou sobre os amigos que se “assumem mesmo na conversa, na
172

cultura, na fala, na dança” e completou “nessa questão de terra eu sou a favor deles. Porque, se
eles tão defendendo a terra, é pra que as empresas não entrem, não destruam. Eu concordo eu
apoio”. Afirmação pessoal, protagonismo, diferenciação cultural para a defesa da terra,
resistência contra o sistema opressor, insurgência contra a “normalização”, construção de uma
contra hegemonia ideológica, esses são elementos vinculados ao reconhecimento da identidade
indígena.
Diante desse contexto, onde identidades se afirmam e muitas vezes tentam uma anular
a outra, a indígena Graça Tapajós, mestranda em Direito na UFPA, sugere:
É importante trabalhar na questão da sensibilidade. Essa sensibilidade que possa envolver o
reconhecimento, envolver o respeito. O direito de ambas as partes é importante porque os
indígenas têm direitos, mas os ribeirinhos também têm os seus direitos. É a gente tentar um
pouco trabalhar essa tolerância, esse respeito. E a gente tentar não excluir ninguém, mas somar
forças porque nessa luta seja o ribeirinho, seja o extrativista, o indígena, a gente sabe que tem
as forças contrárias que querem que a luta não avance, emperre. A gente sabe que em tudo tá a
questão da terra. Complica nisso aí.

Irrompeu um conflito interno ao movimento. Os grupos, na urgência de garantirem para


si direitos básicos, em saúde e educação, passaram uns a negar a identidade dos outros,
conforme expressa Melucci, tratando de identidade coletiva: “Both subjects involved deny each
others’ identities and refuses to grant to their adversary what they demand for themselves”
(1995, p.48). Um exemplo disso foi a implantação da escola indígena, que gerou atrito em
algumas comunidades em que parte da população se reconhecia indígena e outra não. O Estado
é mesquinho na concessão de direitos, e, magindo dessa forma, contribui para romper o respeito
e a solidariedade entre as comunidades, prejudicando a reciprocidade e fazendo-as perder a
percepção de que lutam por causas comuns. Afinal de contas, é verdadeiro o provérbio popular
que diz: “Em casa onde falta o pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Por outro lado,
ocorreu da parte dos comunitários, indígenas e extrativistas, uma rigidez no uso da escola, uma
inabilidade em ativar um processo democrático pleno, uma dificuldade em lidar com a
diversidade em uma comunidade extensiva, como considera Raymond Willians, quando
discorre sobre a aceitação de uma cultura comum, sobre a ideia de conseguir a solidariedade e
sobre “conseguir a diversidade sem criar separação” (2011, p. 357).
Quando a vereadora Ivete Bastos me recebeu no seu gabinete despojado, me chamou
atenção uma pequena estátua de Mahatma Gandhi. No meio da entrevista, quando ela me
contava que, embora sofresse ameaças, a vida dela era por uma causa, me falou sobre o prêmio
Mahatma Gandhi que recebeu em 2006, em cerimônia em Nova Délhi, por sua luta pela
173

preservação ambiental e como representante do empoderamento de mulheres na Amazônia. Ela


relata:
Eu acho que vale a pena (a luta). Olha, eu fui receber Mahatma Gandhi, e eu não sabia nada
sobre ele e a geração dele. Eu não sabia nada dele. A gente não estuda quase essas coisas. Tem
coisas que a gente não aprende na sala de aula, a gente aprende na convivência.

Ivete Bastos fala de convivência, e, à sua maneira, corporifica a ideia de que “você
precisa ser parte da mudança que deseja ver no mundo” (You must be the change you wish to
see in the world), incitação de Ghandi a uma atitude pessoal em favor do bem comum. É preciso
dissolver no interesse coletivo o ego de algumas lideranças. É fato que as políticas de afirmação
de identidade exacerbam posicionamentos, mas as comunidades não podem ser regidas pelo
antagonismo. “Satyagraha” é um princípio que inspirou grandes ativistas antirracistas. A
brandura pode ser uma arma para a conquista da hegemonia. Mas brandura não significa
passividade. Ghandi pregava fidelidade à consciência e a desobediência civil. De fato, as
grandes mobilizações antirracistas foram também atos descolonizadores de desobediência civil.
Enfrentar e desobedecer epistemicamente a ordem estabelecida é próprio do Movimento
Indígena no baixo Tapajós.

Sentidos da identidade
Identidade é escolha política fundada em razões práticas e discursivas. A identidade
indígena não se limita ao tipo de trabalho desenvolvido nem à proteção da natureza. É uma
identidade no sentido cosmológico de concepção da vida, que abrange o espiritual; mas é
também uma questão de consciência e escolha política a escolha de ser indígena. É uma
identidade que o movimento indígena positivou, mas que ainda é estigmatizado no senso
comum, que ao longo da história associou o indígena a uma série de características que marcam
diferenças significativas, associando a ele um sentido romantizado e convencional, e na maioria
das vezes depreciativo. Mas a identidade indígena também confere orgulho. Antes o indígena
tinha vergonha de ser, agora ele tem orgulho de assumir-se. Transformação muito importante,
uma decolonialidade do ser, uma libertação da “consciência infeliz”, conforme a expressão de
Roberto Cardoso de Oliveira. Uma drástica guinada, dos anos de 1970 para cá, à qual Eduardo
Viveiros de Castro dá a sua impressão:
Antigamente, muitos coletivos indígenas sentiam vergonha de sê-lo, e o governo tinha todo
interesse em aproveitar essa vergonha inculcada sistemicamente, tirando as conseqüências
jurídico-políticas, digamos assim, do eclipsamento histórico da face indígena de várias
comunidades ‘camponesas’ do país. Agora, ao contrário, ‘todo mundo quer ser índio’ – dizemos,
entre intrigados e orgulhosos (CASTRO 2006, p. 43).
174

Combatendo o senso comum, o movimento indígena valoriza a identidade indígena. Os


indígenas se autonomeiam e passam a ter orgulho de ser, conforme relato de Marcelo Borari,
indígena auto afirmado de 33 anos:
Ser indígena é uma questão muito de consciência principalmente quando a gente busca mais
informações a respeito da nossa história, porque nós crescemos em um determinado contexto
social, político e educacional. (...) A nossa língua nós perdemos por questões de sobrevivência
(...). Os indígenas na verdade se sentiram na obrigação de dizer que não eram indígenas por uma
questão de sobrevivência ou pra não ter que enfrentar esse preconceito que está instalado na
sociedade.

Marcelo mostrou esclarecimento em relação ao que é ser indígena hoje. Estudou o


quanto o contexto social, político e educacional foi determinante para o extermínio de povos
indígenas e suas culturas. Ele tem plena consciência do quanto os elementos que distinguiam
as culturas indígenas foram arrancados em nome da sobrevivência. Falou com sentimento de
todo o preconceito em relação ao indígena que vigora na sociedade. E disse que embora alguns
elementos da cultura tenham se perdido, ou se percam com o tempo, não é isso que faz deles
menos índios:
A minha bisavó por exemplo, fazia os alguidares, que eram panelas de barro, uma linguagem
que ainda é muito viva ali dentro do povo Borari. E minha avó já não manteve essa tradição de
fazer os alguidares e a tendência é com que isso se perca, mas isso não vai ser determinante pra
dizer que eu deixei de ser indígena.

Edwiges Ioris, em sua tese “A Forest of disputes: struggles over spaces, resources, and
social identities in Amazonia” (2005), analisa a criação e implementação da primeira reserva
florestal na Amazônia, a Floresta Nacional do Tapajós (Flona Tapajós), e o processo de
transformações sociais e espaciais conduzidas por políticas públicas a fim de exercer controle
sobre recursos e organizações sociais. A Flona Tapajós constitui uma área protegida localizada
na margem direita do rio Tapajós e foi criada em 1974, dentro da lógica de expansão da fronteira
econômica para a Amazônia. Já com o discurso da sustentabilidade, o Estado oferecia uma
maneira “racional” de exploração planejada da madeira por empresas. Entretanto, a modalidade
se apresentou “irracional” ao exigir a remoção das comunidades que residiam dentro da área.
Ioris relata como essa exigência criou indignação, união e um movimento de resistência
nas 19 comunidades atingidas. Elas se posicionaram e se articularam politicamente com o apoio
do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém. Com estratégias de luta e
dramáticos episódios de conflitos com o Estado, as pessoas resistiram nas suas comunidades.
Passaram-se 20 para a legislação sobre reservas ambientais ser alterada para permitir a
175

permanência das pessoas que nas áreas protegidas residem. A partir dessa alteração as
comunidades passaram a ser chamadas “populações tradicionais”.
Contudo, no final dos anos 90 uma nova dinâmica marcou a Flona quando os habitantes
de três comunidades -Taquara, Marituba e Bragança- passaram a reconhecer suas identidades
indígenas. Com a escuta da gravação do precursor depoimento de Seu Laurelino a Florêncio,
as pessoas passaram a se afirmar Mundurucu, contrapondo a designação identitária estabelecida
pela imposição oficial de população tradicional. Redefinindo espaço e identidade social, “O
movimento indígena dessas comunidades foi a reação imediata contra a imposição do governo
da identidade genérica de ‘população tradicional’”146 (IORIS 2005, p. 284, tradução pela
autora).
Ioris replica sua tese em artigo147 posterior, onde amplia sua pesquisa para a Resex
Tapajós-Arapiuns, considerando que as populações do baixo Tapajós que já renegavam a
identificação de comunidades “caboclas” passaram a “ser vítimas de novas designações a nível
oficial” (2009, p.223). A autora considera que existe um campo de disputas identitárias148,
marcado por três momentos distintos: 1- “caboclo cultural e territorialmente destituído”, 2-
“populações tradicionais em áreas de reservas ambientais”; 3- “indígenas e a reivindicação pela
‘terra indígena’”. Sendo este último momento a “expressão da resistência empreendida às
formas de identificação oficialmente atribuídas”, pois, de acordo com Ioris, tais identificações
“tiravam os vínculos com a terra e aparavam as distinções culturais, assim como da
determinação de permanecer em seus territórios, mas de principalmente, de assegurar
autonomia sobre eles e seus modos de uso” (ibidem).
No período em que a autora realizou seu trabalho, ela percebeu que o Estado, ao
reconsiderar as populações locais como “populações tradicionais”, afastou as ameaças de
desapropriação, porém não permitiu a elas autonomia149, sendo essa uma das motivações do
ressurgimento indígena na região, o que eu também constatei durante minha pesquisa. A autora
também percebeu as comunidades locais como “vítimas” da designação oficial “populações

146
The indigenous movement of these communities was the immediate reaction against the government’s
imposition of the generic identity of “tradicional people”. (IORIS 2005, p. 284)
147
Publicado na revista Ilha em 2009.
148
Em alusão a Bourdieu 2003.
149
Através da nova versão do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC, 2000, Lei
Federal nº 9.985), as populações locais foram obrigadas a seguir os planos de gestão da reserva, em uma relação
desigual com o Estado, que subjuga as formas de organização social e modo de vida das comunidades às
imposições de suas políticas.
176

tradicionais”, o que segundo ela, tolhe possibilidades culturais e territoriais, enfatizando que o
movimento indígena configura uma resistência a essa denominação oficial.
Concordo com a percepção da autora, enquanto reconheço que é preciso considerar que
a própria designação “populações tradicionais” acompanhou uma mudança na legislação sobre
unidades de conservação, reivindicada pela sociedade civil, que finalmente compatibilizou
preservação ambiental e a presença de quem nelas vive. Deste modo, mais do que uma
imposição do Estado, através da legislação (SNUC, 2000, Lei Federal nº 9.985), reconhecer os
habitantes das terras como “populações tradicionais” foi uma resposta a anos de lutas e
articulações e representou uma conquista para muitos coletivos até então ignorados. Resposta
do Estado aos habitantes que lá estavam que moveram uma estratégia de resistência. O Estado
brasileiro, patrimonialista como é, promove uma articulação que viabiliza a presença das
populações, mas tolhe delas liberdades e usufrutos sobre o território. De modo que as pessoas
acabam ocupando os territórios nos termos que lhe foram impostos.
Dando os primeiros passos na reflexão sobre o termo “populações tradicionais”,
Almeida e Cunha (2001) referem-se a termos inicialmente genéricos e superficiais surgidos no
encontro colonial, termos - tais quais “índio”, “tribal”, “nativo”, “negro”-, que foram aos poucos
sendo habitados por “gente de carne e osso”. Afirmam que “não deixa de ser notável o fato de
que com muita frequência os povos que começaram habitando essas categorias pela força
tenham sido capazes de apossar-se delas, convertendo termos carregados de preconceitos em
bandeiras mobilizadoras” (p. 186). E concluem dizendo que o termo ‘populações tradicionais’
é ocupado “por sujeitos políticos que estão dispostos a conferir-lhe substância, isto é, que estão
dispostos a constituir um pacto: comprometer-se a uma série de práticas, em troca de algum
benefício e sobretudo de direitos territoriais” (id, p.203). No entanto, no caso da Flona Tapajós
e de tantas outras áreas protegidas como na Resex, as exigências tecnicistas estatais, formuladas
por quem nunca viveu na área, tem minado esse comprometimento com o termo ao não
reconhecer os direitos reais das populações sobre o território.
Porém, ainda assim, para muitas comunidades, tanto da Flona como da Resex, ter seus
direitos reconhecidos não significa o retorno ou construção da identidade indígena. Por mais
que as comunidades indígenas tenham servido de modelo para os povos despossuídos,
especialmente quando se trata da criação de reservas, com nítida alusão a proteção garantida às
reservas indígenas, o termo “populações tradicionais” foi aos poucos sendo povoado por
diversas coletividades, inclusive pelos próprios indígenas. Berno de Almeida (2004, p. 21)
ilustra “populações tradicionais” com novos sujeitos, afirmando que a construção do termo “é
177

coletiva e se vincula ao advento dos vários movimentos sociais que passaram a expressar as
formas peculiares de uso e de manejo dos recursos naturais”. O autor enfatiza:
O advento nesta última década e meia de categorias que se afirmam através de uma existência
coletiva, politizando nomeações da vida cotidiana como: índios, seringueiros, quebradeiras de
coco de babaçu, ribeirinhos, castanheiros, pescadores, extratores de arumã e quilombolas, dentre
outros, trouxe a complexidade de elementos identitários para o campo da significação da questão
ambiental. Registrou-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que
historicamente apagou as diferenças étnicas e a diversidade cultural. O sentido coletivo destas
autodefinições emergentes impôs uma noção de identidade à qual correspondem
territorialidades específicas, cujas fronteiras estão sendo socialmente construídas e nem sempre
coincidem com as áreas oficialmente definidas como reservadas. (Ibidem)

Volto ao trabalho de Ioris (2005, 2009) para dizer que na minha pesquisa não percebi
três momentos distintos no campo das disputas identitárias e territoriais na Resex – quais sejam,
caboclo e as tentativas de expulsão da terra, população tradicional e reservas ambientais,
indígena e a ‘terra indígena’. Quero dizer que o legítimo reconhecimento e construção da
identidade indígena na região não excluem outras possibilidades de identificação, não anulam
a atuação dos que se incluem nessas modalidades como sujeitos políticos, conforme encontrei
na positiva afirmação da identidade extrativista. Trata-se de uma questão de intensidade, de
radicalidade: o movimento indígena, alcançando a raiz do problema, realiza uma
decolonialidade. Não necessariamente o movimento indígena precisa negar a convivência com
outros que também se identificam, mas diversamente, em virtude de subjetividades e razoes
práticas. Mais do que distintos momentos de disputas identitárias, não é possível traçar uma
linha clara entre eles, pois esses momentos se sobrepõem e se misturam, dependendo das
circunstâncias, gerando disputas e conflitos inter e intracomunitários.
Portanto, as escolhas identitárias são diversas e isso gera, dependendo das
circunstâncias, fraturas entre as comunidades e parentes. A identidade indígena rejeita
identificações atribuídas pelo Estado e confronta padrões estabelecidos desde cima. Revela uma
aguda percepção da história. Mas existem caminhos e labirintos para se alcançar a justiça social
e uma estratégia de convivência pode fazer sentido nessa direção. Indígenas e extrativistas
sofreram injustiças históricas, compõem uma mesma raiz, uma mesma gente historicamente
racializada e estigmatizada, e continuam a lutar contra inimigos comuns. Nesse sentido, ampliar
o foco para perceber como se constrói e se reconstrói a injustiça ao longo da história, através
de distintos tratamentos dado às suas gentes, é um caminho para a libertação.
178

Identidade indígena estigmatizada


A identidade indígena foi estigmatizada e associada ao passado para dar lugar ao que é
considerado moderno. Mas a modernidade exige uma inclusão subalterna do outro no sistema
mundo. Conforme Miguel Bartolomé constata no México:
O indígena carrega então um grande peso histórico e simbólico, embora, de um modo geral, se
tenda a estigmatizar a condição indígena conteporânea, ao considerá-la um arcaísmo que deve
desaparecer para dar lugar à “modernidade” entendida como integração a uma ocidentalização
planetária150. (1997 [2006], p. 24, traduzido pela autora)

Persiste em parte da sociedade a ideia de que a condição indígena é o oposto da


modernidade, posto que o índio é reificado no passado. Cabe desconstruir essa eternização do
indígena no passado, posto que não é o modo de vida o que determina a fronteira étnica.
Bartolomé segue explicando:
E se a raça não é um indicador relevante, em muitas oportunidades o estilo de vida tampouco
serve para determinar a presença de fronteiras étnicas. De fato, numerosas comunidades
campesinas que já não falam línguas nativas mantém práticas econômicas, sociais e culturais
não muito diferenciadas das que se realizam nos povoados indígenas151(...). (ibidem, p.24,
traduzido pela autora)

Para finalizar esse tópico, cabe desconstruir outro senso comum. A afirmação da
identidade indígena de alguns grupos fez com que um novo estigma fosse associado aos
indígenas: o de “interesseiros” ou “aproveitadores”. A ideia demasiada materialista da
afirmação de identidade indígena, como se quem o fizesse fosse motivado por interesses
estritamente materiais, provoca um sentimento de injustiça naqueles que se assumem indígenas.
Marcelo Borari toca nesse ponto:
Pensa que alguém se afirma indígena porque quer ter algum tipo de favorecimento do governo
ou benefício ou coisa parecida. Tô falando da realidade aqui, não sei fora. Mas, é como eu falei,
é falta de informação, porque a luta indígena acontece muito, muito antes que a acessibilidade
a essas políticas, que hoje, ainda que sejam poucas, mas está tendo.

O relato de uma técnica de enfermagem, de 28 anos, demonstra esse tipo de pensamento


em relação aos indígenas, quando diz que somente os povos isolados, que quase não tiveram

150
Lo indígena porta entonces un gran peso histórico y simbólico, aunque por lo general se tienda a estigmatizar
la condición india contemporánea, al considerarla un arcaísmo que debe desaparecer para dar lugar a la
“modernidade” entendida como integración a una occidentalización planetaria. (BARTOLOMÉ 1997 [2006], p.
24)
151
Y se la raza no es un indicador relevante, en muchas oportunidades el estilo de vida tampoco sirve para
determinar la presencia de fronteras étnicas. En efecto, numerosas comunidades campesinas que ya non hablan
lenguas nativas mantienen prácticas económicas, sociales y culturales no muy diferenciadas de las que se realizan
en los pueblos índios (...). (ibidem, p.24)
179

contato e que ainda vivem como quinhentos anos atrás são merecedores dos direitos, enquanto
os que foram transformados pela cultura do “homem branco” são “aproveitadores”:
Aqueles povos que estão isolados lá, que não foram tão invadidos pela cultura do povo normal,
local. Aí tudo bem. Mas, aqueles uns que já convivem aí se aproveitam. Pra mim tem regalias
porque eles respondem como índios, mas eles se comportam como o homem branco por assim
dizer.

A visão que associa o movimento de autoafirmação indígena exclusivamente ao


interesse de reparações materialistas, como garantia de terra, saúde e educação, é combatida
por Jonathan Warren em Racial Revolutions (2001). O autor chama esses pensamentos de
“racial huckster thesis” (ibidem, p. 55), que eu traduzo como “tese de aproveitadores raciais”,
que se refere a quem sustenta o argumento de que a afirmação indígena é pautada em
materialismos. Warren considera demasiado simplista reduzir a análise do ressurgimento
indígena à racionalidade materialista. Considera o autor:
Presumir que individuos escolhem identidades raciais da mesma forma que eles podem
equilibrar suas contas financeiras só pode ofecer um conhecimento superficialsobre o
ressurgimento indígena. Mas, isso não significa que uma análise de custo benefício não tenha
algum valor explicativo; isso indica, no entanto, que um modelo baseado na racionalidade do
mercado é capaz de produzir apenas uma imagem limitada do processo de indianização152.
(WARREN 2001, p.56, traduzido pela autora)

De fato, é limitante essa visão de que o movimento de ressurgimento indígena ocorre


apenas por necessidade de reparações materialistas. Warren diz que a ênfase sobre o plano
material faz com que elementos de ordem simbólica e moral percam relevância ou mesmo sejam
invisibilizados na análise desse processo, devido a um olhar demasiado economicista. Por outro
lado, não se pode negar que a privação econômica motiva também a luta por reconhecimento e
justiça. Analiso o caso da conquista de uma terra indígena, que não se desvincula de valores
morais e simbólicos. Mas terra, embora seja carregada de significados, é também espaço físico,
base material, meio de vida e recursos. Existe um conjunto de razões simbólicas e morais que,
aliadas ao recurso material terra, motivam a autonomeação indígena.

Identidade e legislação
Esse tópico pretende discutir uma influencia mútua entre identidade e lei. As áreas
protegidas no Brasil são regidas por legislação a qual leva a uma dinâmica em que ora a adesão

152
To assume that individuals select racial identities in the same manner that they might balance their financial
accounts can only provide a shallow knowledge of Indian resurgence. This does not therefore mean that a cost-
benefit analysis holds no explanatory value; it does suggest, though, that a market-rational-based model is likely
to yield only a limited picture of Indianization (WARREN 2001, p.56).
180

da identidade se conforma ao tipo da unidade de conservação, como é o caso das reservas


extrativistas, que criam o extrativista, e ora a área o território institucionalizado se conforma à
identidade do povo que o ocupa, como é o caso das terras indígenas. O movimento entre
legislação e identidades é circular.
French (2009) contatou essa circularidade entre lei e identidade analisando a emergência
de diferentes identidades em comunidades vizinhas no sertão nordestino, nas quais uma se
tornou indígena e outra quilombola. A autora criou o modelo explicativo legalizing identities
para demonstrar a dinâmica de como a interpretação da lei pela justiça varia de acordo com as
formas em que a lei é acessada ou rejeitada. O modelo ajuda a explicar como a lei e suas
interpretações sofrem alterações a partir da transformação de identidades por grupos, conforme
French explica:
A lei pode realmente existir ou não existir até que ela seja moldada e usada, muitas vezes para
quem ela não foi criada. Identidade, é um conceito em si mesmo escorregadio que tem a ilusão
de ser um pilar sólido, mas é na verdade uma série de experiências, incluindo a da luta, e é
mutável, permitindo revisões contra-intuitivas do que frequentemente assumimos como
imutável. 153 Comunidade, essa palavra que em si invoca sentidos de coesão, de grupos de
pessoas semelhantes cujos interesses comuns superam suas diferenças, é trazida ao debate. As
práticas culturais consideradas eternas e imutáveis como evidências de herança são mostradas
como renovação inventiva da cultura popular sertaneja que é crucial para a transformação da
identidade. (…) raça e cor podem não importar, mas ainda assim permanecem entrelaçadas com
experiências de pobreza e discriminação, bem como as medidas tomadas para combater esses
males (FRENCH 2009, p. 174-175, traduzido pela autora).

As conclusões a que chegou French coincidem com a análise de Rezende e Postigo


(2013) no artigo “Reconhecimentos Territoriais e desconhecimentos institucionais”. Os autores
analisaram dois casos de territórios nos quais terras indígenas se sobrepuseram a reservas
extrativistas. Um deles é a Terra Indígena Arara do rio Amônia, sobreposta à Reserva
Extrativista do Alto Juruá (AC). Pesquisando esse caso Elisa Costa (2013) percebeu que lá há
“um jogo de identidades escolhidas”. O mesmo acontece na Reserva Extrativista Tapajós-
Arapiuns que é o outro caso analisado por Rezende e Postigo. Eles explicitam que a Política
Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI (BRASIL, 2012)

153
Law can both exist and not truly exist until it is molded and used, often for whom it was not intended. Identity,
itself a slippery concept that has illusion of being rock solid, is in fact a series of experience, including that of
struggle, and is mutable, allowing for counterintuitive revisions of what we often assume is immutable.
Community, the word itself calling forth visions of cohesive, coequal groups of people whose common interests
supersede their differences, is called to question. Cultural practices that are usually considered timeless and
unchanging as evidence of heritage are shown here to be inventive refashioning of sertanejo folkways that are
crucial to identity transformation. (…) race and colour may not matter, yet still remain intertwined with
experiences of poverty and discrimination, as well as the measures taken to combat those ills. (FRENCH 2009, p.
174-175)
181

estabeleceu diretrizes para a gestão compartilhada entre povos indígenas e órgão ambiental em
territórios sobreposicionados entre TIs e UCs, no entanto, não resolveu a questão de áreas onde
a população se divide entre indígenas e não indígenas. Afirmam “Embora tenha se firmado com
a PNGATI uma política de cogestão de territórios indígenas sobrepostos a UCs, há muita
dificuldade institucional no que diz respeito ao tratamento de casos de sobreposição envolvendo
territórios tradicionalmente ocupados” (REZENDE e POSTIGO 2013, p. 120).
Em área estadual seria mais difícil uma negociação, com o governo da época. A
informação sobre a possibilidade do autorreconhecimento étnico fez com que comunidades
imediatamente se identificassem e se revelassem aldeias indígenas, desenterrando suas histórias
e seus rituais. A intrusão dos madeireiros chegou em seguida. Esse é o caso de três comunidades
do Maró que lutam para que sua identidade indígena reconhecida e com ela sua terra, processo
que será detalhado no próximo capítulo.
Outro caso foi a área onde comunidades residentes e fazendeiros portadores de títulos
de terra se misturavam. Ali a solução encontrada foi adotar o instrumento jurídico de criação
de um Projeto de Assentamento Extrativista (PAE), transformando a área em PAE Lago
Grande. Não cabe detalhar nesse trabalho a dinâmica territorial e identitária também complexa
e relevante desse PAE.
Todas as comunidades afirmam a ancestralidade indígena. Todos os moradores dessas
áreas se relacionam e um dia lutaram juntos pela garantia da sua terra, apoiados por um conjunto
de instituições, especialmente pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de
Santarém e por instituições da Igreja Católica.
Contudo, a adoção de instrumentos jurídicos de legalização da terra, as identidades
assumidas e os territórios garantidos não promoveram uma acomodação estática de identidades
e territórios. Ao contrário, conferiu-lhes grande dinamismo. Comunidades extrativistas
passaram a se reconhecer indígenas e com a possibilidade de garantia “permanente” da terra
reivindicavam uma terra indígena. Outras comunidades ficaram divididas entre os que de recém
extrativistas passaram a ser indígenas e os que optavam por permanecer extrativistas. Em
comum todos afirmam a descendência indígena. Territórios ficaram sobreposicionados entre
terras indígenas e unidades de conservação. Acordos, arranjos, estratégias e conflitos passaram
a permear novas relações entre o que antes parecia ser homogêneo.
Vale lembrar que o modo de vida desses grupos pouco ou nada difere um do outro.
Todas as comunidades, sejam elas indígenas ou extrativistas, igualmente fazem seus roçados
de mandioca, mantêm suas casas de farinha, usam os recursos naturais no seu cotidiano e creem
em santos católicos, assim como nos encantados da tradicional cosmologia amazônica. É fato
182

que os indígenas procuram resgatar rituais simbólicos em movimentado calendário político, que
inclui a semana dos povos indígenas, a celebração da Cabanagem, e a fundação da cidade de
Santarém, entre outros eventos, comparecendo, nessas ocasiões, com seus adereços e símbolos,
caciques e conselheiros.
183

VIII - O MOVIMENTO INDÍGENA NO BAIXO TAPAJÓS

Até o final do século XX, os habitantes da região do baixo Tapajós iam e vinham nos
barcos dos muitos povoados espalhados na floresta sem uma clara distinção entre eles. Na
virada do século, especialmente após as celebrações do “Brasil 500 anos”, grafismos de
jenipapo passaram a cobrir a pele de alguns, adereços com penas passaram a adornar cabelos,
os olhares se tornaram altivos. Uma diferença passou a marcar aqueles que começavam a
resgatar suas histórias e a conectá-las fortemente a dos seus ancestrais indígenas. Uma postura
firme aliada a um discurso de enfrentamento político caracterizava os recém autonomeados
indígenas. Embora, os que não se afirmassem os olhassem com desconfiança e desdém, como
certa vez ouvi em um barco alguém os acusando ofensivamente de “índios meia cara”, os
indígenas afirmados traziam, associado aos adereços, um orgulho e uma atitude firme perante
quem os negasse a identidade.
O movimento indígena brasileiro que se manifestou contra a celebração do “Brasil 500
anos”, promovida pelo Governo Federal, foi consonante com o que acontecia na América
Latina. A celebração dos quinhentos anos de “descoberta” pela Espanha do continente
americano, em 1992, fez com que os povos indígenas latino americanos criassem um
movimento de oposição. Rigoberta Menchú (2003)154 demonstra o sentimento dos povos
indígenas em relação aos quinhentos anos, afirmando não haver nada a celebrar:
Nosso povo diz que não tem nada para celebrar. Ao contrário, a ocasião ofendeu a nós e a
gerações de nossos ancestrais. Não era motivo para celebração, e muito menos para o encontro
de duas culturas. Nós queríamos comemorar nossos ancestrais e lembrá-los com digninidade no
próximo século. 155(MENCHÚ 2003, p. 119)

Com esse espírito de denúncia a “Marcha do Brasil 500 anos” foi organizada. Aliado ao
sentimento de orgulho de ser índio estava um sentimento de injustiça e busca por reparações
históricas através de direitos. Os líderes do movimento indígena do Baixo Tapajós voltaram das
manifestações em Coroa Vermelha com a necessidade de criar uma organização que os
representasse e assim nasceu o Conselho Indígena dos rios Tapajós e Arapiuns (CITA), que
passou representá-los na negociação de direitos com a Funai e outros órgãos públicos. De
acordo com dados do CITA de 2011, existem 55 aldeias e comunidades na região do Baixo
Tapajós que inclui os municípios de Santarém, Belterra e Aveiro, em que 5.150 moradores se

154
The Quincentenary Conference and the Earth Summit, 1992.
155
Our people said that there wasn’t anything to celebrate. On the contrary, the occasion offended us and
generations of our ancestors. It was no cause for celebration, and even less a meeting of two cultures. We wanted
to commemorate our ancestors, and remember them with dignity worthy of the coming century. (MENCHÚ 2003,
p. 119).
184

declaram indígenas. Eles se identificam como Munduruku, Apiaká, Borari, Maytapu, Cara
Preta, Tupinambá, Kumaruara, Arapium, Jaraqui, Tapajó, Tupaiu e Arara Vermelha.
Antes da participação dos indígenas do baixo Tapajós no evento “Brasil 500 anos”, na
Bahia, a identificação com a ancestralidade indígena florescera na reconstrução e registro da
história das comunidades para a solicitação da terra coletiva da reserva extrativista que se
projetava. A ancestralidade indígena pela primeira vez pôde ser expressa sem que a isso fosse
associado algum fator pejorativo. Ser descendente indígena passou a ser bom, pois confirmava
a perenidade na terra: fator exigido pelo Estado para a concessão do direito. Nesse movimento
de relembrar os antepassados, houve um olhar especial para o que nas representações cotidianas
eram heranças indígenas. Comidas, crenças, rituais foram elencados e positivados. Emergiu um
vínculo até então camuflado e até mesmo rejeitado. Mais uma vez Florêncio Vaz traz a
experiência que viveu enquanto estudante no Rio de Janeiro para a reflexão de origem e do
contexto local quando da criação da Resex:

A coisa vai por um lado cultural. Da identidade cultural, a nossa cultura, os pajés, as festas de
santos, a nossa história. É quando eu começo a me interessar por cabanagem, que ainda hoje é
uma linha das minhas preocupações. Os indígenas porque os indígenas estavam na origem das
coisas, mas era aquilo que ninguém queria ser, mas eu não colocava isso nessas conversas. O
negócio era terra e a preservação da terra.

Florêncio conta que era sempre chamado de índio no Rio de Janeiro, e isso o fez refletir.
Quando defendeu a sua dissertação de mestrado em 1997, em pleno processo de constituição
da Resex, ele ajudou a criar o Grupo de Consciência Indígena156 – GCI para recuperar a cultura
e a identidade indígena (VAZ, 2010, 2013). Inicialmente o GCI foi formado por estudantes,
moradores de Santarém e simpatizantes da causa indígena. Seu Mucura conta:
Quando foi criada a Resex já existia o início dessa questão, já tinha um grupo aqui em Santarém
chamado Grupo Consciência Indígena, que não era do pessoal do interior. Era gente da cidade
que criou um grupo aqui, mas foram pessoas que vieram do interior, que se formaram aqui em
Santarém que tinham esse pensamento.

As terras do baixo Tapajós, embora nomeadas reserva extrativista ou floresta nacional,


são requalificadas como terra indígena muito antes das atuais institucionalidades, e a
legitimidade sobre ela vem da restauração de um direito anterior. Nos últimos anos, esse
discurso, que inclui a recuperação e a prática de rituais e tradições, instaurou sentimentos de
indianidade e o movimento conquistou adesões. Assim é que, partindo de evento carregado de

156
Esse grupo se inspirou nos debates em torno da identidade dos Grupos de Consciência Negra, que se espalhavam
pelo Brasil.
185

simbolismo, denominado I Encontro dos Povos Indígenas do rio Tapajós157, que se deu na
passagem do século, na comunidade de Jauarituba, 150 representantes de 10 comunidades
celebraram os 500 anos de resistência indígena, promovendo cantorias, danças e rituais (VAZ
2010, p. 23). Nessa ocasião o representante da Coordenação da Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB), Euclides Macuxi, convidou os participantes do Encontro para
aderirem à Marcha do Brasil 500 anos que seguiria para Coroa Vermelha na Bahia. O convite
gerou muito entusiasmo e a vontade de pertencer a um coletivo nacional fez com que elementos
culturais associados à indianidade fossem ainda mais destacados.
A organização para a adesão à Marcha possibilitou ainda mais agregação nos indígenas
recém afirmados. Florêncio escreve sobre esse momento:
Quando a caravana da Marcha Indígena passou em Santarém, em 07 de abril de 2000, com 483
representantes de vários povos do Amazonas e de Roraima, foi recepcionada por uma multidão,
sendo a grande maioria os representantes das 11 aldeias assumidamente indígenas na região. As
pessoas portavam saiotes de fibras de cascas de árvores, cocares de penas de pássaros e variados
colares. O encontro dos índios que chegavam do Amazonas e os do Tapajós foi emocionante
(palavra usada por vários informantes que estiveram presentes). A passeata pelas ruas da cidade
mostrou à população local que os indígenas da região não estavam extintos, como se pensava.
(2013, p. 147).

Na sua tese de doutorado, Florêncio Vaz demonstra como foi incisiva sua participação
no processo, destacando sua participação com trecho de cartas por ele escritas, com documentos
e outras informações do seu acervo pessoal. Ele enfatiza seu papel de precursor do movimento
ao entrevistar o curador Seu Laurelino:
Entre 1994 e 1995, fui duas vezes a Takuara, no rio Tapajós, município de Belterra, para fazer
uma entrevista com o conhecido curador Seu Laurelino. Encontrei um homem de quase 80 anos,
cabelos brancos, já cego, fala mansa, que demonstrava profundo conhecimento sobre a
história e a vida naquela região. Conversamos muito sobre sua trajetória, seus saberes
ligados aos encantados e ao dom da cura, que lhe tinham granjeado tanta fama. Seu Laurelino
não tinha vergonha de dizer que era índio. (2010, p.29).

Florêncio em seguida teve contato com a realidade dos povos indígenas emergentes do
Nordeste que recusavam o termo caboclo e faziam questão de serem índios, reinventando a
indianidade para retomar territórios perdidos. Assim, ele concluiu “que, formalmente, os
caboclos do Tapajós poderiam também fazer aquele caminho” (p. 30). O que aconteceu no final
de 1998, depois do falecimento do Seu Laurelino, quando a comunidade de Takuara assumiu
sua identidade indígena, motivada por escutar “repetidas vezes, a entrevista que ele me
concedera, em 1994 e 1995. Causou profunda reflexão os trechos em que ele dizia que era índio,

157
Realizado nos dias 31 de dezembro de 1999 e 01 de janeiro de 2000.
186

filho de pais ‘puro índio’ e que não se envergonhava dessa condição” (idem, p. 34). Assim é
apresentado o nascimento do movimento indígena na região.
Takuara não faz parte da Resex, fica do outro lado do rio Tapajós em outra área
protegida, mas o que aconteceu lá contagiou inúmeras comunidades da Resex que passaram a
assumir sua indianidade. Pessoas dentro das comunidades passaram a reconstituir alegorias e
estabelecer continuidades com o passado, valorizando a permanência indígena como um fato
de resistência, ressignificando a existência na terra para além da classificação de caboclo ou
população tradicional.

Uma etnografia da polêmica


Até 2001, o movimento indígena crescia a cada ano conquistando mais comunidades.
Em algumas comunidades que assumiam a indianidade existiam aqueles que por razões outras
optavam por não se assumir indígenas, mas que respeitavam quem se assumisse. Não havia
discórdia sobre essa questão de escolha indentitária entre indígenas e não indígenas até o III
Encontro dos Povos Indígenas dos Rios Tapajós e Arapiuns, ocorrido nos dias 30, 31 de
dezembro de 2001 e 1º de janeiro de 2002. Na ocasião houve o rompimento do diálogo e a
fratura entre comunidades. A possibilidade de transformar a Resex em Terra Indígena assustou
os que não assumiam a indianidade.
Um dos maiores problemas foi a condução realizada pelas lideranças, cuja disputa
repercute até hoje. Enquanto a questão indígena se relacionava à conquista de direitos
diferenciados em saúde e educação havia divergências, mas quando entrou na pauta a questão
da terra houve sérios desentendimentos. O que gerou maior discórdia entre os participantes foi
a possibilidade de transformar toda a Resex em uma única terra indígena. Relembra, na época
vereador indígena, Livaldo Sarmento:
Quando aparece o assunto “defesa da terra” aí é que o negócio complicou. “Como?” Ninguém
entendeu mais. “Porque a terra, nós já conseguimos a reserva extrativista. Que luta pela terra
agora? Que terra é essa? ” A terra indígena. “Tá, mas como é isso? ” Aí que gerou uma confusão
por conta das ideias. Porque os benefícios, as terras indígenas na verdade têm esse aspecto
porque é assim: aonde é reconhecido terra indígena quem não é índio não pode ficar lá. Então
foi isso que foi a bronca.

E completa Livaldo Sarmento, contando como ouviu falar pela primeira vez sobre essa
questão da terra indígena em uma reunião na comunidade de Aningalzinho:

Aqui nós criamos a reserva extrativista e eu enquanto presidente do sindicato eu mergulhei nessa
luta e graças a Deus nós criamos. Eu ainda até usei o seguinte termo “lá em São Pedro, eu me
assumi como indígena, mas tem muita gente que não se assumiu e nem são obrigados a se
187

assumir como indígenas, o que é que vai acontecer com as pessoas que não se assumirem como
indígena? (...) Aí ele (uma liderança indígena externa) usou o seguinte termo que me deixou
muito chateado “olha, infelizmente esse pessoal vai ter que cair fora”.

É ainda Livaldo quem explica o sentimento dele na hora em que ouviu essa fala, e sobre
isso ele faz uma análise do que aconteceu:

Eu fiquei bastante revoltado, porque eu, enquanto sindicalista, a minha ideia é a terra para todos.
Todos, todos, todos (...). Eu tive um confronto com o próprio frei Florêncio. Ele que foi
companheiro de luta pela reserva extrativista e eu sempre vou reconhecer isso aí. Nós tivemos
uma assembleia aqui no Tapajós, onde eu disse: “olha Florêncio desculpa, mas eu tenho um
sério questionamento. Há controvérsia. Aí teve uma grande confusão. Mas depois acalmou.

Os indígenas afirmavam que a TI era mais segura e garantida que a Resex, pois essa
não seria permanente, posto existir um Contrato de Concessão de Uso da Terra de 30 anos.
Livaldo Sarmento questionou “como fica a situação de quem mora na área e não se reconhece
indígena? ” E teve a resposta de que é a comunidade que decide se tornar indígena e se alguém
não quisesse ser indígena teria que ser indenizado e sair. Esse foi o estopim do conflito entre as
comunidades, que teriam que optar por um dos dois caminhos apresentados: continuar como
Resex ou optar pela terra indígena. Disso resultou que o movimento indígena, que até então
crescia rapidamente, desacelerou, tendo sido esse o último encontro indígena que contou com
a participação do STTR e a Associação Tapajoara. A partir desse evento alguns líderes
abandonaram o movimento.
Formaram-se campos antagônicos na disputa pelo poder. De um lado as organizações
indígenas e suas lideranças. De outro, as lideranças do STTR, do Conselho Nacional dos
Seringueiros e da Tapajoara, organização que ficou sob o comando de não indígenas após as
eleições de 2002. O crescimento do movimento indígena, e sua ampliação de poder sobre as
comunidades, passou a contrastar com o poder já estabelecido do STTR e seus líderes. O
movimento indígena se formou e estava se expandindo rapidamente, mas a falta de brandura e
tato na condução da política de afirmação criou antagonismos.
Seu Mucura, que não se reconhece indígena, confirma e se coloca como alguém que
apoia o movimento indígena, mas que dialoga com ambas as partes. Ele analisa:
Eles se precipitaram. Não era pra ter colocado isso ainda no Encontro Indígena. Eu não me meti
nem de um lado nem de outro porque eu sou uma liderança. Eu respeitava eles porque eu fui
uma pessoa que andei nas comunidades, de comunidade em comunidade, pra criação da Resex.
Então eu fiquei pra resolver a situação entre índios e não índios. Por que que a minha
comunidade hoje é uma aldeia? Porque eu disse que era bom ser índio (...). Mas, eu fiquei pra
ser um líder aonde eu vou buscar resultado positivo pros dois lados.
188

Outra liderança tão ativa no processo de criação da Resex quanto seu Mucura foi
Carlindo, o Seu Visagem. Ele é da comunidade de Alto Mentai, que chegou a se reconhecer
indígena e depois desistiu. Seu Visagem disse: “somos descendentes de índios, mas somos
extrativistas”, e completou, “tínhamos acabado de entender que éramos extrativistas e
conquistar a Resex, que diziam ser a melhor alternativa para garantir nossa terra, quando chegou
o movimento indígena dizendo que o melhor era ser índio. Era melhor ter uma terra indígena”.
O Seu Visagem se apresentou como um trabalhador rural, sempre ligado ao sindicato, mas
também extrativista. Ele contou muitas histórias que revelaram escolhas bem marcadas, mas
não isentas de influências.
Alguns comunitários mais antigos dessa região da Resex contam que um padre158os
aconselhou a não assumir a identidade indígena. Embora a identidade seja suscetível a
influências de terceiros, de líderes carismáticos no sentido weberiano - no caso do
aconselhamento desse padre ou das lideranças sindicais ou indígenas-, percebi que um dos
motivos de o movimento indígena não ter alcançado outras comunidades foi porque também
havia sido feito todo um trabalho de sensibilização159 para que as pessoas assumissem uma
identidade extrativista. É preciso também considerar que a identidade extrativista está vinculada
a uma outra identidade com alicerces muito fortes, pois construída no processo de
conscientização e libertação: a de ser um trabalhador rural. Ser trabalhador rural significa estar
ligado ao STR, em um dinâmico engajamento político, que envolve reuniões, projetos, eventos
etc.
Por outro lado, no caso do baixo Tapajós, assumir a identidade indígena significava
resgatar e fortalecer sinais diacríticos que marcassem uma distinção cultural. E alguns não se
sentiam à vontade para assumir uma identidade tão estigmatizada pelo senso comum. Os
moradores das comunidades haviam apenas relembrado a ancestralidade indígena para assumir
uma identidade extrativista, que havia sido ofertada como a melhor escolha a ser feita, para
menos de um ano depois o movimento indígena questionar essa identidade recém-assumida.
Acontece que o ritmo da mudança de pensamento e de comportamento, ainda mais quando se
trata de escolhas tão pessoais quanto a identidade, pode não coincidir com a velocidade com
que o movimento indígena chegou. Ainda mais quando são estabelecidos critérios de
coletividade, como no caso indígena, para o reconhecimento dessa identidade.

158
Chamado José Gróis.
159
Pelo grupo de trabalho para a criação da Resex.
189

Pontos de incertezas pairavam sobre aqueles que ainda analisavam a possibilidade de se


auto-afirmarem indígenas, em um contexto em que o movimento chegava também com a
pretensão de um resgate cultural de tradições já esquecidas.
Houve desentendimentos sobre o que significava ser indígena em diversos aspectos,
inclusive sobre questões de gênero, pois naquelas comunidades as mulheres têm um papel
relevante com suas próprias associações, inserções e opiniões. Edilena Cristina, da comunidade
de São Francisco160, relatou que o CITA se aproximou, ensinou a fazer paneiros e até aí a
relação foi boa, mas quando chegaram com a ideia de escolher um cacique para a comunidade,
tudo mudou. Ela diz:
Eu lembro como se fosse hoje a rodada de mulheres lá, que sempre acontece, aqui tem muita
mulher. Ai, ele disse agora a reunião vai ser pra escolher o cacique, eu disse ‘como é que é o
cacique? ’ O cacique é um homem, de uma família que respeite muito, o que o cacique disser tá
dito. Eu nunca esqueço. “Não senhor! Aqui nós vivemos numa comunidade onde todo mundo
tem direitos iguais. Pra uma só pessoa mandar aqui não”. Foram saindo, foram saindo, foram
saindo e não foi escolhido o cacique pra comunidade.

Escolher um homem com autoridade absoluta, não condizia com as práticas locais. Mas,
esse não foi o único mal-entendido. Boatos, preocupações e dúvidas sobre o pagamento de
contribuição ao STTR geraram muitos desentendimentos. Alguns diziam que os indígenas não
precisariam mais pagar o sindicato, pois teriam direitos, especialmente o de aposentadoria,
garantidos. Isso desorganizaria uma representação social histórica. Outros afirmavam que não,
que os indígenas continuariam contribuindo com o sindicato. A confusão estava armada.
Lideranças se opunham e disputavam. A influência delas poderia mobilizar os membros das
comunidades para assumir ou não a identidade indígena. Mesmo entre parentes, as relações
cotidianas mudaram à medida que comunidades e famílias se autorreconheceram. Antigas
relações de colaboração, como os trabalhos em mutirão, foram afetadas.

Etnogêneses

Indígena eu sou
Por achar que os povos não sabiam
Sua vida defender e cuidar,
May -tini o soberano chegando sem avisar
Para ganhar sua alma, uma cruz veio plantar.

160
São Francisco é um exemplo de uma comunidade que no início do movimento se reconheceu indígena e que
voltou a ser extrativista.
190

Vestiu os povos com a túnica


Da dor, descaso e exploração,
Proibiu seu ritual e em nome da coroa real,
Fiquei sem informação.
Invadiram meu território,
Me deixaram sem direção,
Mataram meus ancestrais,
Chamaram-nos de animais,
Nós seres Culturais.
Minha cara, minha pele
Mostram bem quem sou.
Mas, qual a minha nação?
Se meus bisavós estão mortos
E dos que restaram vem só a interrogação.
Entenda povo brasileiro
O pertencimento está na afirmação,
Na força que vem da floresta,
Na minha veia ainda resta,
O sangue derramado pelo irmão.

Márcia Wayna Kambeba


May-tini = homem branco

A antropologia e o “outro”
A autonomeação indígena no baixo Tapajós, também referida como etnogênese, é a
afirmação de um Outro diferente do “outro” investigado, devassado e subalternizado pela
Antropologia etnocêntrica ou “ocidentalcêntrica”, como nomeia Grosfoguel. Antro + logos =
Antropologia. A ciência que estuda o homem. A ciência que estuda os povos chamados
“locais”, desumanizados, que habitam a “zona do não-ser”. Aqueles “outros” que estavam fora
da condição de “neutralidade”, de onde o antropólogo fala, desde onde o conhecimento se
impõe discursivamente como universal e, portanto, “neutro”. É desse local que esse antropólogo
etnocêntrico fala. A antropologia nasceu para estudar certos tipos de grupos humanos com suas
culturas “exóticas”, modos de vida “primitivos”, religiosidades fetichizadas, se isentando essa
antropologia de olhar para si mesma, na sua condição de instrumento imperial. Por quê? Porque
a disciplina surge no interior da geopolítica do poder e do conhecimento, que e faz inferior o
“outro”, objeto de estudo do civilizado, do evoluído e racional.
Para essa antropologia o índio é o “outro”, sempre situado no passado. Buffon, tido
como o fundador da antropologia a partir da história natural, na metade do século XVIII,
representava o nativo americano contrapondo-o ao padrão estabelecido na Europa. Padrão este
191

que estabelecia as disparidades de civilidade, capacidades física, mental e emocional. Gerbi


(1996) transcreve trechos do pensamento de Buffon sobre o nativo americano: “selvagem, é
débil ... menos forte de corpo ... covarde ... não demonstra qualquer vivacidade, qualquer
atividade d’alma ... Prive-o da fome e da sede, e terá destruído simultaneamente o princípio
ativo de todos os seus movimentos; ele permanecerá num estúpido repouso sobre suas pernas
ou deitado durante dias inteiros” (apud COLAÇO E DAMÁSIO, 2012, p. 56). Nesse rastro, no
século XIX, o racismo científico é criado para explicar essa disparidade vista aos olhos dos
estudiosos que se colocavam em condições plenamente superiores. A biologização do homem
agregava ao corpo físico feio comportamentos morais e capacidades intelectuais inferiores.
A antropologia foi útil para administrar as colônias e criar discursos sobre os povos
locais, que seriam consolidados como únicos, ou seja, fala-se do “outro” sem dar voz ao Outro.
Assim foram se estabelecendo discrepâncias para melhor servir à dominação, conforme Colaço
e Damásio explicam:
Durante o século XIX, que foi o século de consolidação dos impérios coloniais, a antropologia
(como disciplina científica) intervém como o melhor aliado de controle das especificidades
culturais dos povos considerados como selvagens e inferiores e, consequentemente,
necessitados de civilização. Desta forma, o discurso antropológico sobre o “outro”, a partir da
teoria evolucionária da civilização, serviu para confirmar e ratificar a posição “superior” dos
europeus e com isso legitimar todo o projeto colonialista. Ou seja, a antropologia e o
colonialismo têm uma longa histórica em comum. (2012, p. 61)

Dentro dessa ideia de superioridade, foram a campo renomados antropólogos que


formularam e registraram conceitos sobre a vida, a morte, os modos de ser, de agir, de se
reproduzir dos povos considerados “primitivos”. Ao determinar que se podia fazer isso e que
essa era a maneira válida de conceber o “outro”, aos antropólogos cabia a função de determinar
quem era ele, a quem era anulada a possibilidade de ter a própria concepção de si mesmo como
válida. Essa função dada ao antropólogo ainda hoje vigora, dando a ele o papel de determinar
quem é ou não índio, condição requisitada pelo Estado para conceder direitos. Jonathan Warren,
analisando como o papel da antropologia é exercido para definir quem é o índio, diz que a “A
antropologia assumiu um papel predominante como juiz da Indianidade161” (2001, p. 208).
Warren revela a ligação entre as mudanças na antropologia e o ressurgimento indígena. Baseada
nesse análise, vou abordar teorias de antropólogos brasileiros para entender como nesse
contexto ocorre a afirmação indígena no baixo Tapajós.

161
Anthropology has assumed a predominant role as a magistrate of Indianness (WARREN 2001, p. 208).
192

Os primeiros estudos etnográficos de grupos indígenas brasileiros eram permeados de


preocupações referentes à “aculturação” a que os índios eram submetidos por força das políticas
de Estado. O alemão Curt Nimuendaju[1], através de sua inserção no SPI, foi um dos primeiros
etnólogos a registrar estudos e relatórios que evidenciavam a transformação de grupos indígenas
em novos brasileiros. Nascido Curt Unckel, Nimuendaju, assim nomeado pelos Apapocúva
Guarani, registrava um momento no qual ocorria um “golpe” nas raízes culturais indígenas. Os
índios estavam sendo submetidos à violência da desindianizaçao para se tornarem cidadãos e
cristãos. Essa ideia de que o índio ao ser integrado deixava de ser índio foi sustentada por
Charles Wagley e Eduardo Galvão. Ao nativo não era permitida qualquer mudança cultural,
pois isso faria com que ele se tornasse menos índio aos olhos de quem se sentia no papel de
determinar a indianidade.
Não à toa as populações que sofreram algum grau de “aculturação” foram chamadas
caboclas por esses estudiosos. Galvão, inserido no quadro conceitual do “pensamento
selvagem” ultrapassa a prática de estudos etnográficos de tribos para pesquisar generalizações
no âmbito cultural. Seus estudos focaram o processo de assimilação de acordo com os esquemas
culturalistas. Teorias formuladas pelos antropólogos respondiam aos interesses do Estado de
assimilar o índio e dar um outro caráter à população nacional, “limpando” o povo das “raças”
malquistas. O nativo para ser entendido como índio deveria ser congelado no tempo, qualquer
resquício da cultura do branco que adotasse serviria como confirmação da perda de sua
indianidade. Conforme compara Warren:
Indianidade como primitivismo foi construída como a cultura mais vulnerável, a menos potente.
Foi a cultura não-indígena/moderna que teve o poder de contaminar, para racialmente
transformar a indianidade que poderia ser poluída e estragada. Isso é o por quê de brancos não
serem percebidos como sendo re-racializados através da troca cultural com os índios, enquanto
se acredita que os índios são desindianizados através do mesmo tipo de interação com os não
índios162. (2001, p. 211)

Warren faz uma analogia dizendo que era como se a regra da “uma gota de sangue”163
para considerar a pessoa racialmente como negra, valesse para os indígenas não como uma gota
de sangue, mas através de qualquer resquício de influência cultural do branco para assim negar-
lhes a identidade indígena. Uma essencialização cultural, portanto. Constatada qualquer

162
Indianess qua primitiveness was constructed as the more vulnerable, less potent culture. It was the non-
Indian/modern culture that had the power to contaminate, to racially transform Indianness could be polluted and
spoiled. This is why whites were typically not perceived as being reracialized through cultural exchange with
Indians, whereas Indians were believed to be de-Indianized by this same sort of interaction with non-Indians.
(WARREN 2001, p. 211)
163
No caso americano para ser negro basta que se tenha uma “gota de sangue” de origem africana.
193

influência externa, dos indígenas eram arrancados seus nomes, suas raízes, suas crenças. Tudo
seu era vulgarizado e demonizado para que ele também quisesse deixar de ser quem ele era. E
assim ele foi sendo “aculturado” e se “aculturando”, o que fazia com que se acreditasse que ele
estaria perdendo a indianidade.
Os estudos de Eduardo Galvão (1959), Egon Schalden (1965), Charles Wagley (1953)
se apoiaram no esquema tradicional de aculturação. A teoria da aculturação 164 entende que no
processo de contato há sempre um desnível propiciado por uma série de variáveis impostas pelo
determinismo econômico. Historiadores e alguns antropólogos acreditavam que as tribos
desapareceriam porque seriam absorvidas pela sociedade nacional, pois haveria uma
aculturação progressiva que acabaria por resultar em uma completa assimilação da cultura da
sociedade dominante através da miscigenação165. Wagley e Galvão ajudaram com seus estudos
a desindianizar, ao conceber que na Amazônia a aculturação significava a caboclização, ou seja,
a transformação do índio em caboclo. Wagley escreveu; “Biologicamente eles eram “índios”,
mas por cultura eles eram Brasileiros tendo mais coisas em comum com o mundo Luso-
Brasileiro do que com os índios autóctones ainda vivendo nas florestas isoladas da
Amazônia”166 (WAGLEY apud WARREN 2001, p. 212).
A brasilidade era então concebida com referência cultural portuguesa. Embora as
comunidades ao longo das margens dos rios vivessem com modo de vida semelhante aos grupos
indígenas “intocados”, elas foram chamadas caboclas. Todo esse contexto interpretativo gerou
grande inquietação em Darcy Ribeiro (2009 [1970]), que observando os grupos indígenas
percebeu que esses grupos de fato não haviam sido assimilados pela sociedade nacional, como
parte indissociável dela. Com lucidez, ele aponta que muitos povos foram exterminados, mas
os que sobreviveram se auto identificavam indígenas, eram diferentes dos demais brasileiros,
pois vítimas de sua dominação. Para Darcy, não aconztecia de fato uma assimilação, pois ela
“mataria” o outro pela transformação cultural. Ele não acreditava na assimilação plena e
concluiu que o que acontecia eram transfigurações étnicas.

164
A preocupação com o desaparecimento dos povos indígenas pela aculturação e assimilação é reflexo da era
boasiana da antropologia. A intenção era documentar tudo o que restava da cultura indígena antes que ela fosse
absorvida pela sociedade envolvente. Eduardo Galvão, como aluno de Charles Wagley, seguiu essa tradição
voltando seus estudos para a completa documentação da cultura indígena.
165
Pacheco de Oliveira afirma que a preocupação dos autores que estudaram os grupos indígenas brasileiros nessa
fase era “mostrar a progressiva descaracterização cultural daquelas sociedades e a absorção de crenças e costumes
precedentes do branco” e completa “o esquema teórico utilizado fez com que alguns descrevessem o processo de
mudança cultural como inexorável, prevendo como bem próxima a completa assimilação de um grupo étnico pelo
contexto e pela cultura regional” (1988, p.31).
166
Biologically they were “Indians”, but they were by culture Brazilians with more in common with the Luso-
Brazilian world than with the autochthonous Indians still living in the isolated forests of the Amazon.
(WAGLEY apud WARREN 2001, p. 212).
194

Entender o processo de transição de índio específico, com sua cultura e tradição, a índio
genérico quase idêntico ao caboclo, é a grande contribuição de Darcy ao estudo da etnologia. É
o que ele chamou de processo de transfiguração étnica. Significava que “sob pressões de ordem
biótica, ecológica, cultural, socioeconômica e psicológica, um povo indígena vai transformando
seus modos de ser e de viver para resistir àquelas pressões” (RIBEIRO 2009 [1970], p.13). De
acordo com o autor, o que acontecia com os indígenas era uma integração socioeconômica, sem
qualquer assimilação cultural. Assim, aderiram à massa de trabalhadores assalariados ou
passaram a produzir mercadorias para atender suas novas necessidades materiais, como
ferramentas, tecidos, remédios, mas sem deixarem de ser índios, pois se sentiam índios,
envolvidos por suas comunidades indígenas.
Revisando a análise do contato interétnico, Roberto Cardoso de Oliveira inaugura uma
nova fase na interpretação do contato. No seu livro “A Sociologia do Brasil Indígena” (1978),
o autor tece uma crítica à Antropologia, quando ela se reduz à uma etnografia parada em
descrições sem aprofundamentos teóricos. O autor expõe a necessidade de um método para o
desenvolvimento da disciplina. Adentrou na etnologia estudando como os Terena interagiam
com a população local, após dois séculos de contato, sem serem assimilados. Ele critica
veementemente a teoria da aculturação americana e encontra nos estudos de Georges Balandier,
reflexões sobre a atuação da ação colonialista na África, a base para sua teoria de fricção
interétnica. Tomou então a situação colonial enquanto “totalidade”, onde uma minoria
estrangeira faz uso da dominação, gerando antagonismo com os segmentos colonizados.
Para Cardoso de Oliveira, as sociedades tribais mantinham com a sociedade envolvente
“relações de oposição, histórica e estruturalmente demonstráveis” (1972, p.30), o que fariam
delas sociedades contraditórias, em que uma tenta anular a outra. Assim, a ação colonialista
atuava como um rolo compressor que implodia a sociedade tribal, criando caciques e fazendo
cooptação167, cuja finalidade era saber como as sociedades tribais funcionavam a fim de
dominá-las e administrá-las de acordo com seus próprios interesses. A fricção interétnica seria
então a principal característica da situação de contato. Cardoso de Oliveira exemplifica a
expansão da sociedade brasileira como altamente destruidora dos territórios tribais, afirmando
que:

167
O caso dos “te?ti” na sociedade Tukuna ilustra bem essa situação. Os “te?ti” eram homens que, entre outras
capacidades, eram responsáveis pelo contato com os civilizados. Estes por sua vez os manipulavam e acabaram
criando um novo sistema de poder. Os “te?ti” foram desaparecendo e surgiram então os tuxaua que tinham uma
liderança relativa e serviram como “instrumentos de dominação do alienígena, determinado a ocupar o território
indígena e a pôr o braço Tukuna a seu serviço” (RCO, p. 92, 1978).
195

As sociedades de oposição, em fricção, possuem também dinâmicas próprias e suas próprias


contradições. Daí entendemos a situação de contato como uma “totalidade sincrética”, ou em
outras palavras (...) enquanto situação de contato entre duas populações dialeticamente
‘unificadas’ através de interesses diametralmente opostos, ainda que interdependentes, por
paradoxal que pareça. (1972, p.30).

Ressalta Cardoso de Oliveira (1978), que as relações entre sociedades em conjunção


implicavam em uma oposição ou contradição entre sistemas societários em interação - o tribal
e o nacional - que seriam os subsistemas168 do que ele chamou de sistema interétnico. A análise
de Cardoso de Oliveira sobre o sistema abrange três esferas: a econômica, a social e a política.

“De volta ao umbigo”


João Pacheco de Oliveira trabalha sobre a chamada “emergência” de novas identidades
em populações consideradas de baixa distintividade cultural169. O autor tece investigações sobre
os “índios do Nordeste”, discutindo conceitos para a análise da etnicidade, significando uma
nova visão sobre o contato. Baseando-se em etnografias, o autor propõe uma chave
interpretativa para o entendimento do fenômeno de “emergência” de identidades. Antes de
continuar com o pensamento de Pacheco de Oliveira, é importante voltar o olhar para a questão
conceitual da etnicidade retomando Fredrik Barth (1969), que fundamentou estudos posteriores
de reelaboração étnica com sua noção de etnicidade e suas “fronteiras”.
Para Barth (1969) os grupos étnicos não surgem do isolamento geográfico, mas sim de
processos sociais que marcam a distinção cultural. Desse modo, o autor utiliza a categoria
fronteiras para compreender as dinâmicas dos grupos, dando dinamismo à identidade. Afirma
ainda que a identidade se transforma a partir da relação com outra identidade, seja ela coletiva
ou individual, de acordo com seus interesses e contextos. Assim, a identidade étnica se
transforma e se mantém de acordo com processos de inclusão ou exclusão, dependendo de quem
está inserido ou não. Ademais das muitas características que compartilham (sejam físicas,
culturais, de instituições entre outras), os grupos são considerados como unidades sociais que
se distinguem pela forma de organização a fim de definir o “eu” e o “outro”. Isso ocorre a partir
de mecanismos sociais de diferenciação estrutural entre grupos em interação. As fronteiras de

168
O autor faz uma analogia à noção marxista de “luta de classes”, considerando que os subsistemas tribal e
nacional teriam entre si e entre o sistema interétnico o equivalente da relação entre as classes sociais e a sociedade
global. O aprofundamento do entendimento de sistema interétnico se dá mediante mecanismos de integração
social, a qual é “o processo responsável pela constituição desse sistema” (ibidem, p.87) e esclarece que “o processo
em questão significa a integração do índio na sociedade nacional” (ibidem).
169
No artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”
(1998).
196

Barth são esses mecanismos que distinguem os grupos étnicos e é através desse contraste que
as etnias ganham relevo quando da interação.
A abordagem de Barth abandona o pensamento selvagem do foco culturalista, que se
concentra na observação de grupos étnicos de maneira isolada. Em vez disso, o autor destaca a
importância de estudar os processos identitários em contextos precisos, dando relevância à
percepção de que eles também se constituem como atos políticos. Ao considerar os processos
identitários como atos políticos, João Pacheco de Oliveira (1998) se inspira em Barth para
afirmar que um ponto-chave para entender mudanças relacionadas a chamada “viagem de volta”
é a base territorial. O território afetaria enormemente as instituições e a significação das
manifestações culturais do grupo170.
Pacheco de Oliveira considera a dimensão territorial como estratégica para pensar a
inclusão de grupos étnicos distintos em um Estado-nação. Afinal, “é uma intervenção da esfera
política que associa um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem
determinados” (ibidem, p.56). O autor propõe como fio condutor da investigação antropológica
esse ato político que constitui objetos étnicos por meios arbitrários. E esclarece o que chama de
processo de territorialização como:
O movimento pelo qual um objeto político-administrativo (no Brasil as “comunidades
indígenas”) vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade
própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as
suas formas culturais. (Ibidem, p.56)

Em diálogo com Barth, Pacheco de Oliveira dá ensejo à análise do objeto “Índios do


Nordeste”:
As afinidades culturais e linguísticas, bem como os vínculos afetivos e históricos porventura
existentes entre os membros dessa unidade político-administrativa (arbitrária e circunstancial),
serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em um contexto histórico determinado e contrastados
com características atribuídas aos membros de outras unidades, deflagrando um processo de
reorganização sociocultural de amplas proporções. (Ibidem, p.56)

O fato de os sujeitos retrabalharem suas afinidades culturais e seus vínculos afetivos,


sem se desvincularem de suas origens indígenas, retomando-as no contexto regional em que
buscavam fixar-se territorialmente, inspirou João Pacheco de Oliveira a sugerir a imagem da
“viagem da volta”. Impressa nos versos de Torquato Neto “desde que saí de casa, trouxe a
viagem da volta gravada na minha mão, enterrada no umbigo, dentro e fora assim comigo,

170
O autor considera a noção de territorialização e a define como um processo de reorganização social que implica:
(i) A criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica
diferenciadora; (iii) A constituição de mecanismos políticos especializados; (iv) A redefinição do controle social
sobre os recursos ambientais; (v) A reelaboração da cultura e da relação com o passado. (PACHECO DE
OLIVEIRA 1998, p.55).
197

minha própria condução”, a “viagem da volta” representa a conexão entre etnicidade e território
(OLIVEIRA, 1998). Pelo enterrar o umbigo, se dá a ligação com a terra, e pelo gravar na mão,
o vínculo com o grupo.
A contribuição de João Pacheco de Oliveira para o entendimento da etnicidade, como
se esta estivesse necessariamente conectada à terra e ao grupo, conduz a uma questão: para ser
índio é mesmo necessário estar fixado a um território? A possibilidade de autorreconhecimento
étnico, ensejada pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), atribui
à própria consciência da identidade indígena ou tribal do grupo o pressuposto básico para o
autorreconhecimento. Não fixa a identidade indígena ao território. Segundo Francisco Salzano
(2008, p. 33), “seja como for, minha opinião é a de que qualquer processo de identificação
étnica que tenha por fim assegurar algum direito à posse de terras está mal colocado. Isso
porque, pelo menos idealmente, todos deveriam ter esse direito. ” No entanto, é o vínculo com
o território, associado ao reconhecimento, o que vem caracterizando os muitos casos de
reelaborações étnicas, no Nordeste, na Amazônia e alhures. A força política e emocional do
vínculo do povo ao território caracteriza também a luta do movimento indígena do baixo
Tapajós. Mas existem outras possibilidades de afirmação indígena.
Durante a entrevista que fiz com Márcia Kambeba, ela me falou do preconceito que as
pessoas constantemente demonstravam ao questionar sua identidade por ela viver na cidade.
“Você é indígena e vive na cidade?”, era a pergunta recorrente. Na poesia AY KAKYRI
TAMA, que significa Eu Moro na Cidade, que dá nome a seu livro, Márcia Kambeba fala: “Em
convívio com a sociedade, minha cara de índia não se transformou, posso ser quem tu és, sem
perder a essência que sou, mantendo meu ser indígena, na minha identidade, falando da
importância do meu povo, mesmo vivendo na cidade”.
Figura 32: Márcia Wayana Kambeba

Foto: autora (jun 2016)


198

“Posttradicional Indian”
Ser um índio pós-tradicional é considerar esses fragmentos e sombras da tradição como
relevantes ou importantes, abraçá-los, privilegiá-los e valorizá-los. Trata-se de definir as raízes
ancestrais indígenas como essenciais à sua identidade, tornando-as âncoras dos sonhos e do
futuro e trabalhando para a sua recuperação171. (WARREN 2001, p. 21)

Jonathan Warren, em Racial Revolutions (2001), estuda o crescimento da população


indígena no Brasil em virtude de processos de ressurgência. Warren procura entender porque
os grupos indígenas ressurgem. Revela que, desde a colonização, a indianidade foi
“exorcizada”, através da morte cultural a que os indígenas foram submetidos, dentro de um
violento projeto oficial de formação de povo e construção da nacionalidade, como já tratado
acima. Segundo o autor, o extermínio de grupos indígenas e o exorcismo da indianidade foram
motivados pelo racismo, que os indígenas reconhecem e combatem.
Trazer o indígena para o estudo das questões raciais no Brasil, apontando o racismo
contra indígenas, e o antirracismo como um motivo de luta, é uma análise precursora da
realidade brasileira, que até então pensava o índio tão somente na esfera dos estudos étnicos.
Essa análise muito influenciou a minha tese, onde, a partir da nomeação de racismo pelos
próprios Borari e Arapium, eu argumento que reconhecer e nomear são ações necessárias para
um efetivo combate a essa violência.
Warren evidencia como a mobilização de coletivos indígenas e a Teologia da
Libertação, através do CIMI, influenciaram [no contexto político da Constituinte] a atuação do
Estado, reduzindo a violência oficial contra o indígena. Isso, associado a mudanças no
pensamento antropológico sobre etnicidade – ensejada por Barth (“The Barthian Break”) -, que
Warren aponta na critica ao “pensamento selvagem”, promoveu um repensar do que significa
ser índio, e o próprio crescimento da população indígena.
O Censo 2010 mostrou que a população indígena teve um aumento de 205% em duas
décadas172. O levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou
que os índios no Brasil somam 896,9 mil pessoas173, de 305 etnias, que falam 274 línguas
indígenas. Foi a primeira vez que o questionário incluiu perguntas específicas referentes às

171
To be a posttradicional Indian is to regard these fragments and shadows of tradition as relevant or important, to
embrace, privilege, and value them. It is to define one’s indigenous ancestral roots as essencial to one’s identity,
to make them the anchor of one’s dreams and future, and to work toward their recovery. (WARREN 2001, p. 21)
172
O Censo de 1991 mostrou uma população de 294 mil índios. http://censo2010.ibge.gov.br
173
Para chegar ao número total de índios, o IBGE somou aqueles que se autodeclararam indígenas (817,9 mil)
com 78,9 mil que vivem em terras indígenas, mas não tinham optado por essa classificação ao responder à pergunta
sobre cor ou raça. Para esse grupo, foi feita uma segunda pergunta, indagando se o entrevistado se considerava
índio. A responsável pela pesquisa, Nilza Pereira explicou que a categoria índios foi inventada pela população não
índia e, por isso, alguns se confundiram na autodeclaração e não se disseram indígenas em um primeiro momento.
"Para o índio, ele é um xavante, um kaiapó, da cor parda, verde e até marrom", justificou em entrevista para a
Agência Brasil (Empresa Brasil de Comunicação, http://agenciabrasil.ebc.com.br em 10/08/2012).
199

etnias e retomou após 60 anos o interesse pelas línguas faladas. Esses dados demonstram o
sentido inverso da preocupação sobre o destino dos povos indígenas que permeava os estudos
de etnólogos brasileiros em meados do século XX. O crescimento quantitativo dos povos
indígenas contradisse expectativas de vários etnólogos, como Nimuendaju, Eduardo Galvão e
Darcy Ribeiro, que apontavam a significativa e inexorável redução dos índios pelo extermínio
físico e cultural que sofriam.
O expressivo crescimento da população indígena é resultado da luta política, da qual
fazem parte o reconhecimento dos seus direitos coletivos e de suas terras, e inclui também toda
a re-elaboraçao teórica que recolocou conceitualmente o indígena na história. Esse novo cenário
confere agência e protagonismo aos indígenas. Significa uma tomada de consciência, a
transformação da vida como biologia em vida como biografia (FIORI, 1985).
Para Miguel Bartolomé, o autorreconhecimento étnico “Se tratou de uma eclosão de
uma nova consciência étnica positivamente valorizada; de uma clara afirmação cultural e
identitária dos grupos culturalmente diferenciados aos que se tinha pretendido fazer renunciar
a si mesmos174”. Na eclosão da consciência está uma nova valoração do ser indígena, que antes
haviam sido levados a renunciar a si próprios. Essa constatação é a mesma que faz Viveiros de
Castro, citado em outro lugar dessa tese, quando comenta a passagem da vergonha ao orgulho
de ser. Afirmaçoes identitárias em muitos lugares do mundo se dão em contextos de ameaça
aos territórios povoados por comunidades. A tomada de consciência crítica sobre si mesmos
reflete o contexto opressor. Conforme entende Paulo Freire em a Pedagogia do Oprimido (1983
[1970]), os oprimidos desvelam o mundo da opressão e se engajam numa práxis de
transformação. Práxis que traz com ela uma consciência crítica também nas ciências sociais e
em outros setores da sociedade, gerando solidariedades com essa forma de libertação, que
ocorre simultaneamente nos planos moral e material. “Enquanto a violência dos opressores faz
dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à violência daqueles se encontra
infundida do anseio de busca do direito de ser”. (FREIRE, 1983, p. 46).

Etnogêneses: sentimento e razão, uma dialética em contextos diversos.


Bartolomé (2006) chama de etnogêneses essas reelaborações étnicas que afirmam
culturas e identidades longamente silenciadas e que eclodem em determinado momento da
historia. Mostra como esse fenômeno é internacional, como de diversas maneiras, em vários

174
Se trató de la eclosión de una nueva consciência étnica positivamente valorada; de uma clara afirmación cultural
e identitária de los grupos culturalmente diferenciados a los que se había pretendido hacer renunciar a sí mismos”
(BARTOLOMÉ 2006 [1997], p. 32)
200

casos na América Latina, esses processos - de retomada e atualização de filiações étnicas, das
quais seus integrantes, por indução ou por terem sido obrigados, em algum momento
renunciaram - correspondem a essa dialética da tomada de consciência em contextos de ameaça
ao território175.
Essa dialética entre sentimentos morais de reconhecimento (HONNETH, 2009),
também referidos como idealistas, e razoes materiais, às vezes é analiticamente fraturada. José
Maurício Arruti comenta que, nos estudos referentes a reelaborações étnicas, tem ocorrido de
prevalecer um dualismo entre uma conduta materialista que considera que grupos “inventam
tradições”176, e a idealista, que busca vínculos na história: quando o grupo se dá conta de uma
realidade que lhe escapava (ARRUTI, 2009). A postura materialista percebe o fenômeno como
uma estratégia na disputa por recursos, especialmente na luta pela terra. Já os idealistas se
alicerçam na busca pela história aliada a construção e a percepção de uma série de
essencialismos culturais. Para Arruti as duas posturas se assemelham “no suposto de que as
diferenças culturais existem como um fator anterior e exterior à ação de significação dos
atores”. Ou seja, é porque existem tradições e diferenças culturais distintivas que se pode falar
em invenção de tradição; por outro lado, a história marca uma continuidade, sendo o passado a
explicação do presente.
Tocando na questão da identidade indígena, a tese de Omaira Bolaños Cárdenas (2008)
“Constructing indigenous ethnicities and claiming land rights in the lower Tapajós and
Arapiuns region, Brasilian Amazon” analisa os dilemas políticos e conceituais relacionados à
reivindicação por identidade indígena e por direitos a terra entre pessoas de múltiplas
descendências. A autora desenvolve seu trabalho procurando saber como é construído o
significado de ser índio Arapium e Jaraqui, sendo que esse criou ou “inventou” uma nova
identidade, enquanto aquele reconstruiu sua identidade: “Para o Arapium, onde vivem (a
paisagem Arapiuns) representa o que são (...). Para o Jaraqui, o significado do rio e seus recursos
(o peixe jaraqui) como base de subsistência é o que fornece a base para sua etnicidade. Nesse
sentido, o que comem (o peixe jaraqui) representa o que são177” (CÁRDENAS 2008, p. 183).

175
Na Amazônia brasileira, entre outras emergências étnicas, verificam-se processos no médio Solimões, no baixo
rio Negro, no rio Juruá e na Volta Grande do Xingu – onde os Juruna têm a “identidade a todo momento posta à
prova, tanto pelos técnicos da Eletronorte, quanto por indigenistas e missionários” (Saraiva 2007, p. 32).
176
Conforme Hobsbawn e Ranger (1983).
177
For the Arapium, where they live (the Arapiuns landscape) represents what they are (...). For the Jaraqui, the
significance of the river and its resources (the jaraqui fish) as a basis of subsistence is what provides the foundation
for their ethnicity. In this sense, what they eat (the jaraqui fish) represents what they are. (CÁRDENAS 2008, p.
183).
201

O estudo sugere que o movimento indígena constitui uma expressão política mergulhada em
memórias, história e significados territoriais que mobilizam pessoas em uma ação coletiva.
Cárdenas percebe que a construção de identidades é um processo ativo e interativo
através do qual os indivíduos constroem novas maneiras de interpretar a si mesmos, concluindo
que a identidade indígena não é produto de uma luta sócio – política do presente, mas é fundada
em histórias pessoais e memórias coletivas que possibilitaram aos povos Arapium e Jaraqui se
auto-identificarem na categoria índios. No que se refere aos territórios, a autora percebe que
eles são produtos do processo de construção de identidade e que as ameaças sofridas pelos
indígenas propiciaram a criação e recriação dos seus territórios. Finalmente, Cárdenas também
percebe que as reivindicações por reconhecimento estão baseadas em discursos político e moral.
A Amazônia concentrou um significativo aumento no número de índios, inclusive no
que diz respeito a pessoas que no último censo se declararam de outra cor ou raça, mas que se
consideravam indígenas seja pela tradição, cultura, costumes, antepassados, entre outros. De
78,9 mil que se declararam índios de outra cor ou raça178 36,9 estavam na região Norte (Censo
2010). Pardos foi como se declarou a maior parte da população de terras indígenas brasileiras
que responderam ser de outra cor ou raça (67,5%). A proporção se repetiu em quase todas as
regiões e chegou a 74,6% no Norte. Isso sem contar os inúmeros casos que não foram
contabilizados, pois na pesquisa só foram considerados os habitantes de 505 terras indígenas179,
ficando de fora os habitantes de 182 terras que ainda estavam em processo de demarcação.
Ficaram de fora a TI Maró e a TI Cobra Grande, cujos indígenas fazem parte do movimento de
afirmação étnica do baixo Tapajós180.
A indicação racial de pardo pelos habitantes das terras indígenas tem a ver com a
violência opressora da desindianização, que inculcou na população brasileira que qualquer
mistura faria o índio deixar de ser índio. Bartolomé, trabalhando à sua maneira com a
transformação da vida como biologia em vida como biografia, que Ernani Fiori desenvolve, diz
que esse não é um processo só biológico, mas é também político e ideológico. As populações
nativas retomaram heranças às quais haviam sido obrigadas a renunciar. Fazendo referência a

178
Pardos foi como se declarou a maior parte da população de terras indígenas que responderam ser de outra cor
ou raça (67,5%). A proporção se repetiu em quase todas as regiões e chegou a 74,6% no Norte.
179 Foram consideradas “terras indígenas” as que estavam em uma de quatro situações: declaradas (com Portaria
Declaratória e aguardando demarcação), homologadas (já demarcadas com limites homologados), regularizadas
(que, após a homologação, foram registradas em cartório) e as reservas indígenas (terras doadas por terceiros,
adquiridas ou desapropriadas pela União).
180 Sobre o Movimento Indígena no Baixo Tapajós ver o artigo “O Movimento Indígena no Baixo Tapajós:
etnogênese, território, Estado e conflito” Peixoto, Arenz e Figueiredo (Revista Novos Cadernos NAEA - 2012).
Para maior aprofundamento ver as teses de Ioris (2005) e Vaz (2010).
202

Guillermo Bonfil (1987), Bartolomé afirma que “Muitos daqueles socialmente considerados
mestiços são na realidade índios desindianizados181” (BARTOLOMÉ 2006 [1997], p. 31).
Warren (2001), em pesquisa sobre o ressurgimento indígena em Minas Gerais e no Sul
da Bahia, chamou os índios ressurgidos de pós-tradicionais. Com argumento que considera
raízes, terra e ancestralidade, Warren considera que o ressurgimento indígena se apoia no que
se consegue recuperar da tradição, mas demonstra como é invalido o argumento de parte da
população, do governo e de antropólogos que acusa os indígenas de falsa autenticidade, dando
ênfase ao fato de que geralmente a identidade étnica é tratada como condição estática, sem
direito a transformação. Embora a afirmação da identidade étnica não se relacione a
essencialismos culturais, a ideia que prevalece no senso comum sobre o que é ser índio fez com
que algumas famílias da comunidade São José III, na TI Maró, não quisessem assumir a
indianidade. Quando a comunidade se auto afirmou indígena, essas famílias atravessaram o rio
e foram morar na Resex Tapajós-Arapiuns. Dona Neide, vice cacica da aldeia de São José III,
relembra:
A questão foi que eles disseram que nós ia virar índio, nós ia andar tudo nu. E eles jamais
andariam nu. Não iam deixar os filhos andarem nu e também não iam andar nu. Aí foi a divisão.
E aí a gente ficou questionando. Aí disseram que iam tirar os filhos da escola porque eles não
iam querer que os filhos fizessem todas as coisas, andar pintado, não iam fazer certa
representação de índio, né?

Figura 33: Dona Neide - Vice cacique de São José III

Foto: autora (jul 2013)

181
Muchos de los socialmente considerados mestizos son en realidade indios desindianizados. (BARTOLOMÉ
2006 [1997], p. 31).
203

IX - TERRA INDÍGENA MARÓ: Afirmação Indígena e território

Do porto de Santarém dois barcos seguem para a região do Maró duas vezes por semana,
geralmente às 11hs da manhã, com atrasos regulares. É preciso chegar com muita antecedência
para garantir um bom lugar para atar a rede no emaranhado de umas sobre as outras. Vendedores
ambulantes aproveitam as horas de atraso para vender gêneros variados como agulhas, pilhas,
pentes, remédios, pão, batom, brinquedos. Seguindo para o Maró, o barco cruza o encontro das
águas do rio Amazonas e do rio Tapajós, para cerca de duas horas depois entrar nas águas claras
e transparentes do rio Arapiuns. Rio que no período da seca182 é margeado por inúmeras praias
de areias muito brancas. Durante a cheia183 suas águas alcançam troncos e copas das árvores da
floresta.

Figura 34: Interior do barco Figura 35: Vendedor

Fotos: autora (jan 2014)

Toda a extensão da margem direita do Arapiuns faz parte da Resex Tapajós-Arapiuns,


onde vão aparecendo inúmeros povoados. Na margem esquerda estão outras dezenas, que não
puderam pertencer legalmente184 a Resex e que posteriormente formaram o Projeto de
Assentamento Extrativista (PAE) Lago Grande. Dependendo dos ventos, o barco navega por
mais de oito horas no Arapiuns até encontrar as águas escuras dos rios Maró e Aruã que o

182
De agosto a janeiro.
183
De fevereiro a julho.
184
Embora as comunidades tenham lutado para pertencer à RESEX, essas terras não pertenciam à União, mas sim
ao Estado do Pará e lá havia já inúmeras pequenas propriedades tituladas.
204

formam. Nas margens do Aruã estão instalados diversos portos improvisados repletos de toras
de madeiras nobres, que nem sempre alcançam a medida mínima exigida para o corte, onde
balsas imensas são constantemente abastecidas. No Aruã quem domina são os madeireiros.
Vamos voltar a navegar pelo rio Maró.

Figura 36: Porto de escoação de madeira no rio Aruã

Figura 37: Balsa carregada de madeira

Fotos: autora (jul 2014)


205

De noite o frio invade o barco e nos avisa que estamos navegando pelo estreito rio Maró.
O intenso barulho da mata com os tons e notas dos cantos dos bichos confirma. São José III, a
primeira aldeia indígena da Terra Indígena Maró, surge cerca de duas horas depois. Mas o barco
aportará uma hora além, na aldeia de Cachoeira do Maró, para que seus passageiros durmam e
sigam viagem no dia seguinte. No período da seca, barcos grandes não conseguem prosseguir
pelo rio encachoeirado. No outro dia, bem cedinho, um barco menor enfrenta a cachoeira com
bagagens e mantimentos de todo tipo, enquanto os passageiros prudentemente seguem por uma
trilha até embarcarem onde as águas são mais calmas. Mais uma hora e meia navegando,
chegamos finalmente em Novo Lugar, última aldeia da TI Maró, onde o rio é ocupado por
crianças que se banham, mães que lavam roupa e pais voltando em canoas com as caças da
noite.
Figura 38: Barco “Creio em Deus” aportado na aldeia de Cachoeira do Maró

Foto: autora (jul 2013)


206

Figura 39: Barco pequeno segue para a aldeia de Novo Lugar

Foto: autora (jul 2013)

Figura 40: Autora viajando para Novo Lugar no interior do barco

Foto: Rodrigo Peixoto (jul 2013)


207

Figura 41: Chegando na aldeia de Novo Lugar

Foto: autora (jul 2013)

Situada no município de Santarém, região oeste do estado do Pará, a TI Maró possui


uma área de 42.373 (quarenta e dois mil, trezentos e setenta e três) hectares, inseridos nos
172.000 ha. (cento e setenta e dois mil) da gleba185 Nova Olinda I. Essa gleba em conjunto com
outras quatro formam as glebas Mamurú-Arapiuns, arrecadadas e matriculadas em nome do
estado do Pará. Terras públicas que totalizam uma área de 1 milhão e 312 mil hectares de mata
nativa, que alcançam os municípios de Santarém, Juruti e Aveiro.

185
Gleba é a área de terreno que ainda não foi objeto de parcelamento regular, isto é, aprovado e registrado. Após
o registro do parcelamento a gleba deixa de existir juridicamente, dando lugar aos lotes e áreas públicas dele
decorrentes.
208

Mapa 3: Conjunto de glebas Mamurú-Arapiuns, com delimitação em vermelho escuro.


Destacados estão a Gleba Nova Olinda, onde está localiza a TI Maró, e a cidade de Santarém
para servir de referência.

Fonte: Ideflor, Sema, Iterpa, Governo do Estado do Pará (2008)

As glebas Mamurú-Arapiuns concentram a última extensão de floresta contínua do Pará.


Desde o início dos anos 2000, as glebas passaram por uma intensa ocupação para fins de
exploração madeireira. Essa ocupação desequilibrou a vida das comunidades locais e gerou
conflitos vários, resultando em um processo de regularização fundiária proposto pelo governo
do estado do Pará, a partir do ano de 2007. Na gleba Nova Olinda I, onze comunidades se
adequaram às possibilidades186 ofertadas para a regularização da terra. Possibilidades essas que
foram rechaçadas por cerca de 240 habitantes de três comunidades - Novo Lugar, Cachoeira do
Maró e São José III-, que em 2002 se afirmaram etnicamente como Borari e Arapium. Os

186
Projetos de assentamentos.
209

indígenas exigiram que a terra, que viviam e que auto demarcaram, fosse regularizada como
Terra Indígena Maró. A partir de então, a luta pela homologação tem sido incessante.
Rica em madeiras nobres187, a TI Maró é uma área de interesses diversos. Por um lado,
está a cobiça de grupos madeireiros que anseiam explorá-la e se aliam a setores do Estado e da
mídia a fim de legitimar a usurpação. Por outro lado, os Borari e os Arapium não se sujeitam a
essa dinâmica e se fazem empecilhos ao delimitar e fiscalizar o próprio território e dificultar o
escoamento dessa madeira por dentro de ramais que cortam sua terra ou suas águas. Ao passo
que o Estado, ao longo do tempo, tem criado diversos instrumentos, de toscos a sofisticados,
para permitir a legalização da exploração madeireira, ele não garante a fiscalização necessária
da madeira que é continuamente retirada188. A regularização fundiária das comunidades no
entorno da TI Maró abriu caminho para os madeireiros, que atraíram moradores com ofertas de
emprego e geradores de energia elétrica, entre outras benesses. Assim, os madeireiros ganharam
colaboradores e colocam essa madeira, em estado semibruto, nos mercados internacionais.
“A gente vivia despreocupado. A gente não imaginava que vinha madeireira”, relata
Edil Soares Costa, então presidente do Conselho Indígena Intercomunitário Arapium e Borari
– COIIAB, organização que os Borari e Arapium formaram para representá-los. Antes de se
afirmar Arapium, Edil saiu de sua comunidade para tentar a vida por um tempo trabalhando em
Manaus. Não se adaptou à rotina da cidade e decidiu voltar para Cachoeira do Maró, onde
estava sua família. Voltando ele se engajou em uma banda da igreja católica e se envolveu nas
lutas para melhorar a vida na Terra Indígena Maró.
Conheci Edil em Cachoeira do Maró, ocasião em que a Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional (FASE) propunha instalar um pequeno projeto de produção
de galinha caipira nas aldeias. A intenção da ONG era ajudar as aldeias a produzirem mais
alimentos de forma sustentável. Edil estava cansado. No seu rosto transparecia a angústia de
quem se esforçava tanto e pouco conseguia. Ele aproveitou a carona no barco em que estava a
equipe da FASE para ir a Santarém mais uma vez, exclusivamente com a finalidade de abrir
uma conta, em nome da COIIAB, em um banco para receber a quantidade de dinheiro
necessário para comprar 150 pintos caipiras e o material para construírem as cercas para os
galinheiros e assim viabilizar o projeto. Já na cidade, encontramos Edil esperando em uma fila
enorme, em pé debaixo do sol de quase 10 horas da manhã, horário de abertura do banco. Ele
havia chegado cedo e aguardava para ser atendido novamente. Era o terceiro dia que ele tentava
abrir essa conta para a COIIAB no banco.

187
Segundo dados do IDEFLOR.
188
Falar da provável quantidade de madeira que sai de forma ilegal.
210

Edil estava indignado e dizia que todo dia era maltratado. O funcionário do banco que
nunca dava muita atenção sempre dizia faltar algum documento. A cada dia Edil explicava
sobre o projeto, levava os documentos solicitados e dizia que a COIIAB não tinha nenhuma
pendência jurídica. Ele reclamava: “sempre inventam alguma coisa nova”, e dizia que era
desculpa porque o banco não queria abrir a conta, e lamentava: “acho que é porque a gente é
indígena que nos maltratam”. Mais uma vez Edil não teve sucesso na tentativa de abrir a conta.
A atitude do funcionário do banco em relação à solicitação de Edil foi de desprezo. Edil sentiu
esse desprezo e mal tratamento, mas como enfrentar esse racismo disfarçado em regras e na
invenção de novas exigências?
As organizações indígenas e comunitárias se esforçam para desenvolver projetos que
melhorem a vida, mas sentem grandes dificuldades em resolver questões burocráticas. As
ONGs, em geral, gastam mais recursos formulando projetos do que os efetivando. Ainda dão
pouca assessoria para a resolução de questões burocráticas. Edil reclamava dizendo que nem
um computador a COIIAB tinha para produzir documentos. O ano era 2014 e ele dizia que
ainda conseguia resolver algumas necessidades com uma máquina de datilografia. Embora
enfrentando tantas dificuldades, Edil me falou com orgulho sobre a sua afirmação como
indígena:
Assumir ser indígena é uma coisa muito bonita. Não é vergonha não. Porque quando alguém
chega comigo e diz Edil você é índio. Eu digo “com certeza. Eu vou ser japonês ou alemão? ”.
A pessoa já fica toda sem graça. Eu acho que você tem que ter a convicção daquilo que você é.
Não deixar ninguém te discriminar, te desrespeitar.

Edil dizia com segurança do seu sentimento de pertencimento ao lugar e de como sua
posição era de enfrentamento àqueles que os quisessem discriminar:
Afinal de contas se você for ver na história do Brasil os índios já existiam aqui, já moravam
aqui, são os donos daqui. Então por que eu dizer... Só porque eu conheço outros lugares, já andei
em grandes metrópoles, eu vou dizer eu não quero ser índio? De jeito nenhum. Eu voltei pra cá
e em qualquer lugar que eu esteja, em qualquer lugar eu vou falar a mesma coisa, dizendo que
eu tenho amor pela minha região, pela natureza, pelos animais, pelas pessoas que moram aqui,
que não tem informação de nada. Eu sempre tô batendo de frente, não com as pessoas daqui,
mas com outras pessoas que venham querer discriminar, venham querer roubar os sonhos. O
nosso sonho continua ser ter a natureza, o peixe no rio, a caça no mato pra gente se alimentar.

Os indígenas querem a natureza, mas também melhorias no lugar onde vivem. Por isso
Edil, mesmo enfrentando tantas dificuldades, se esforçava para viabilizar os projetos da
COIIAB. Queria melhorar a vida dos indígenas, mas sempre com a atenção do cuidado com a
natureza, por isso esclarecia o papel da COIIAB na TI Maró:
211

A COIIAB tem o direito de dar autorização para você tirar (madeira) uma parede de casa, de um
barco, de uma canoa, mas tudo com limite. Pra que os filhos, os netos, os bisnetos, enfim, ainda
possam conhecer um ipê, uma itaúba, um cedro, um jacarandá, porque se acabar tudo agora, em
quinze anos, vinte anos não vão ver mais nada. O que é a minha preocupação? É essa.

Embora os indígenas se esforcem para viabilizar projetos que melhorarem a vida deles
sobre o território, eles sempre afirmam que a luta principal é pela homologação da terra
indígena. Os indígenas, paralelamente, lutam também por melhorias na saúde e na educação.
Sem ter os meios adequados para acompanhar sua saúde, Edil não realizou o sonho de ver sua
terra homologada. Nem mesmo conseguiu que o projeto das galinhas caipiras fosse implantado.
Ele adoeceu e faleceu em outubro de 2015.
Figura 42: Edil Soares Costa

Foto: autora (jul 2014)

Os Borari e os Arapium 189


A Terra Indígena Maró foi formada no ano de 2001, a partir de um processo de
autoafirmação indígena, quando os moradores de três comunidades se assumiram Borari e
Arapium. Eles afirmam estar estabelecidos naquele espaço territorial desde que seus
antepassados indígenas, se opondo à submissão imposta pelos “brancos”, se refugiaram naquele
lugar. Ameaçados, os indígenas buscaram fontes de água em florestas mais distantes, quase

189
Ver FIGUEIREDO & PEIXOTO 2013;
212

impenetráveis, acessíveis a um tempo apenas para aqueles que entendiam seus caminhos, seus
mistérios, seus perigos e se estabeleceram naquela floresta garantindo sua reprodução social e
cultural.
A história190 de Novo Lugar e de alguns povoados próximos tem cerca de 130 anos. Os
índios Borari viviam em Alter do Chão, no Atodi, quando viram suas terras tomadas pela
“grande migração”. Decidiram então subir o rio para encontrar um lugar onde pudessem
garantir sua sobrevivência e reprodução social. Inicialmente não se instalaram na beira do rio
Maró, entraram mais ao interno e se organizaram em Beiju-Açú191, em uma das “vidas”, como
eles denominam as nascentes da terra indígena. Dentro da mata, os indígenas mantiveram vivos
os seus rituais, mesmo que os praticando de forma velada, por sofrerem forte discriminação.
Garantem que a raiz do índio está na pajelança e que a comunidade sempre praticou os rituais
de cura. O grupo, ao longo do tempo, nunca deixou de se organizar sob a liderança de uma
sucessão de caciques.
Fato decisivo para a história do grupo ocorreu em janeiro de 2002, quando a comunidade
recebeu uma visita inesperada que viria a transformar sua perspectiva de vida. Uma equipe,
liderada pela irmã Emanoela Kumaruara, do Grupo Consciência Indígena (GCI), se reuniu com
a comunidade e informou sobre como a Constituição Brasileira ampara os direitos dos povos
indígenas. Explicou sobre a possibilidade do auto-reconhecimento étnico, direito que
sustentava o movimento indígena, ao qual outras comunidades da região estavam aderindo.
As comunidades viviam como seres “invisíveis” na floresta, completamente
desamparadas pelo poder público. Como disse Dona Zilda, uma anciã da aldeia de Novo Lugar
que não sabia dizer ao certo sua idade: “nesse tempo nós tava aqui pra viver, mas nós não tinha
condição de nada ainda. Vivendo porque vivendo porque Deus é bom, mas sem condição de
nada. Nós já passemo muita vida [dificuldade] aqui. Agora não, esses tempos já melhorou mais
um pouco”. Ali produziam sua farinha, caçavam, praticavam festas e rituais. Quando
informados sobre a possibilidade de perder o direito à terra em que viviam, e de que uma das
formas de garantir seu território seria a possibilidade de se auto afirmarem indígenas, os
moradores resolveram aderir ao movimento indígena que vigorava na região do baixo Tapajós.
Não tardou para que os conflitos começassem.

190
A história foi relatada por moradores na pesquisa de campo.
191
Vivendo em Beiju-Açú, no interior da mata, longe da beira do Maró, abriram diversas trilhas, fizeram seus
roçados, garantiram a extração de resinas medicinais, tinham suas áreas de caça e coleta e mantinham seus lugares
sagrados destinados aos seus rituais. No ano de 1990, as mães da comunidade exigiram que os filhos frequentassem
uma escola. Para viabilizar a educação das crianças, o grupo concordou em descer para se instalar na margem do
rio Maró.
213

Como colocado na introdução desse trabalho, na TI Maró, relata o cacique Dadá: “o


pessoal se reconheceu, mas para nós não existe isso [de se reconhecer]: a gente nascemos e
sempre fomos indígena”. Porém, com a informação sobre a possibilidade de
autorreconhecimento a comunidade ficou sabendo dos seus direitos. No mês seguinte em que
se afirmaram indígenas - fevereiro de 2002 -, seis empresas madeireiras entraram com pedido
de integração de posse das terras. Foi então que as comunidades se deram conta de que estavam
perdendo suas terras e assim se organizaram para iniciar a luta.
Nos grupos indígenas da TI Maró, o orgulho de assumir-se diz respeito ao pertencimento
a um grupo no qual a experiência de distinção social está relacionada à identidade e resistência
coletiva. Honneth (2009) explica que uma experiência de reconhecimento desse tipo
corresponde a “um sentimento de orgulho do grupo ou de honra coletiva; o indivíduo se sabe
aí como membro de um grupo social que está em condição de realizações comuns, cujo valor
para a sociedade é reconhecido por todos os seus demais membros” (HONNETH 2009, p. 209).
No Pará, o interesse dos empresários originários do Sul do país é a apropriação de ricas
áreas florestais para a realização de extraordinários lucros, já que a fiscalização é notoriamente
escassa e permite a retirada de grandes volumes de madeira ilegal. Afirma Castro “As ameaças
e os conflitos fundiários nas áreas de floresta decorrem em grande parte das modalidades de
apropriação dos recursos pelos atores envolvidos. No Pará como em outros estados da região,
além da extração ilegal de madeira, ela se dá com tecnologias intensivas que retiram espécies
nobres do interior da floresta” (1998, p. 15). O movimento indígena no baixo Tapajós denuncia
a pilhagem, tolerada pelo Estado, que ademais fomentou conflitos ao colocar madeireiros em
territórios reivindicados pelos indígenas. A experiência de outros grupos, como os quilombolas
que se consolidaram também cagmo ro-extrativistas, analisados por Castro (1998) pode ser
aplicada ao caso dos indígenas do Maró, pois de acordo com a autora:
A reivindicação maior é o reconhecimento e demarcação de suas terras. Campo de luta no qual
se movimentam com ações de duplo sentido: afirmação identitária e reconhecimento legal das
terras herdadas dos ancestrais. O reconhecimento dos lugares ocupados na história do grupo
permite refazer dimensões específicas de ser e existir enquanto camponês e negro. O território
é fundamental à reprodução de sua existência e a manutenção de sua identidade. (Ibidem, p.15-
16)

Esse é o contexto onde, a despeito das desvantagens de meios, o movimento indígena


conseguiu uma conquista relevante: o reconhecimento da Terra Indígena Maró pela Funai.
214

O desprezo do Estado induz o conflito


Entre os anos de 2003 e 2006, deu-se início a uma desenfreada ocupação visando à
exploração madeireira no conjunto de glebas Mamurú-Arapiuns. Esse processo foi conduzido
pelo governo do estado do Pará, comandado por Simão Jatene192, que se apoiava em dois
instrumentos jurídicos: as ADIPs (Autorizações para Detenção de Imóveis Públicos) e a
celebração de escrituras públicas de permuta. As ADIPs foram concessões estaduais de uso da
terra, que formalizavam o direito à exploração dos recursos naturais, impedindo que a situação
fundiária fosse um empecilho para a atividade madeireira. As ADIPs desconsideravam
deliberadamente a ocupação tradicional da área, bem como a fragilidade ambiental. As
escrituras de permuta garantem juridicamente o assentamento de “permutados” em terras de
usos de populações tradicionais.
Simão Jatene autorizou193, no último dia de mandato - 31 de dezembro de 2006-, o
assentamento na gleba Nova Olinda. Ele destinou o assentamento aos “permutados”:
fazendeiros do sul do país que adquiriram títulos fundiários do governo do Pará, no município
de São Félix do Xingu, na década de 1980, quando contaram com generosos incentivos do
Instituto de Terras do Pará (ITERPA)194. No entanto, a Funai195 determinou em 1990196, que
essas terras secularmente ocupadas pelos índios Kayapós, constituíam área imemorial indígena
e determinou a imediata retirada dos ocupantes exógenos. Forçados a sair, os fazendeiros
exigiram do governo do estado altas indenizações ou área de permuta como compensação.
Simão Jatene, então, destinou aos permutados parte da gleba Nova Olinda, que é ocupada por
dezenas de comunidades amazônicas e é onde está inserida a TI Maró. Esse foi o estopim para
uma série de conflitos que se instauraram na região. De acordo com documento do STTR e
CPT:
As permutas trouxeram em seu bojo a ocorrência de crime de pistolagem, ameaças às lideranças
locais, retirada ilegal de madeira, alteração nos costumes locais, caça altamente predatória, que
está sendo exercida pelos funcionários dos "permuteiros" que trabalham na extração de madeira,
e uma certeza de que ocorrerá o desmatamento futuro destas áreas. (STTR & CPT, 2008, p.26).

O documento de escritura de permuta concedido pelo governo atribui aos permutados a


tarefa e realizar a auto-demarcação e o geo-referenciamento de suas terras e das terras vizinhas
das populações tradicionais. Dessa forma, o governo se livra da sua obrigação de mapear e

192
Do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
193
Através do decreto 2.472-2006.
194
O órgão estadual incentivou a compra de títulos no âmbito do projeto Trairão.
195
Seguindo a ordem estabelecida pela Constituição Federal de 1988, que determinava a demarcação das terras
indígenas.
196
Por meio do decreto 98.865-1990.
215

delimitar, concedendo aos principais interessados uma função que deveria ser sua. Esse fato fez
com que as comunidades se sentissem indignadas, aguçando ainda mais o conflito na região.
Na aldeia de Novo Lugar, os indígenas relatam que seus espaços de vida foram “invadidos” por
homens munidos de GPS, que marcavam e demarcavam a terra como se deles fosse. Entraram
no território sem pedir autorização. Invadiram marcando e demarcando, sem dar explicações.
E assim se apropriaram de área do final da TI Maró, onde é grande a incidência da árvore
Mururé, da qual os indígenas extraem seiva medicinal. Cacique Dadá explica sobre a
importância das árvores medicinais concentradas nas áreas destinadas aos permutados e da
preocupação com a extração dessas árvores por parte dos madeireiros:
É como se tivesse acabado o antibiótico daquela cidade e muita gente precisa daquele antibiótico
e não tem. Da mesma forma é aqui. Se levam a nossa medicina, tão levando uma injeção, tão
levando um remédio que é nativo nosso. Isso é um problema. Isso é uma violência.

Os indígenas, por sua vez auto-demarcaram a sua terra, colocando-a no mapa, com essa
fração de terra onde estão os Mururés incluída. Reivindicaram uma área para a Terra Indígena
de 42 mil hectares. No limite dela se instalaram os permutados, que demandavam 15 mil
hectares dentro da TI Maró. Essa foi a disputa que instigou o principal conflito territorial da
região.

Autodemarcação da Terra Indígena Maró


Diante do desrespeito sofrido ao verem suas terras invadidas, os indígenas resolveram
agir. Em ação coletiva com instituições aliadas, tomaram emprestado GPS e se organizaram
para entrar na floresta e demarcar o seu território, que denominaram Terra Indígena Maró.
Assim, uma das primeiras iniciativas dos indígenas para garantir a permanência no território foi
realizar uma auto-demarcação. Cacique Dadá ajudou a organizar os homens das três
comunidades da TI Maró para demarcar a área e disse: “Na verdade, o nosso objetivo não era
demarcar o mapa, mas abrir os ramais abertos pelos meus bisavôs”. Cacique Dadá quis dizer
que não se tratava de entrar na área e delimitá-la aleatoriamente, mas de demarcar uma área que
há gerações vem sendo usada pelos indígenas. Trata-se de áreas vivas “nos bastidores da
memória coletiva”, de acordo com Little (2004), as quais agregam-se dimensões simbólicas e
identitária que vinculam o grupo à terra e isso “dá profundidade e consistência temporal ao
território” (LITTLE, 1994, 2004, p. 265). Heraldo Maués está de acordo com essa concepção,
pois diz “É, a meu ver, a construção social da memória coletiva que permite a própria
construção do sentido de pertencimento a um lugar específico” (2010, p 24).
216

Mesmo tendo sido desaconselhados pelo Ministério Público a entrar na mata para fazer
a demarcação, os indígenas escreveram uma carta aos órgãos competentes informando que
começariam a demarcar por conta própria. Uma pequena equipe de comunitários pegou
instruções sobre a utilização do GPS na ONG Projeto Saúde e Alegria (PSA) e tomou
emprestado um aparelho. Além disso, conseguiram a quantia de dois mil Reais com a Comissão
Pastoral da Terra (CPT), dinheiro que serviu para comprar alimentos e munição para sustentar
os homens que fariam a incursão na mata. Gilson Rego, da CPT de Santarém, explica o contexto
que impulsionou à autodemarcação da TI Maró:
A chegada dos gaúchos aqui em Santarém para ocupar espaços. Cooperativas chegando lá.
Grilagem de terra em nível assustador e os indígenas sendo acuados lá. Nesse processo a gente
começa a acompanhar principalmente essa questão do território porque assim a gente trabalha
mais nesse sentido, na garantia do território, das terras. Então a gente entrou nessa lógica de
garantir esses espaços e o estado do Pará não reconhecia isso. Ignorava isso. Os madeireiros
sempre hostilizaram essa situação. E os indígenas com muita sabedoria fizeram uma
autodemarcação e começaram a dizer qual era o território deles. E começou um grande problema
porque os madeireiros ignoravam isso e eles tem um problema de escoamento de madeira lá.
Então fizeram uma estrada por dentro da terra indígena, ameaçaram. (...) E eles resistiram muito
a isso.

É nesse contexto de resistência dos indígenas que é possível aplicar a teoria do


reconhecimento de Axel Honneth e sua “gramática moral dos conflitos sociais”. A luta pela TI
Maró é uma luta por sobrevivência que foi motivada por um ato de desrespeito social, através
da ameaça ao território e à identidade coletiva. Trata-se de “um modelo de conflito que começa
pelos sentimentos coletivos de injustiça” (HONNETH 2009, p. 261), que parte de uma
experiência moral de denegação jurídica e social (idem). A situação de injustiça motivou as
pessoas a se organizarem, se fortalecerem e a lutar para a conquista e garantia de vida na terra.
Os indígenas, que antes viviam silenciados e a margem dos direitos básicos, negligenciados
pelo Estado, passaram a lutar por reconhecimento e pela demarcação do seu território.
217

Figura 43: Cacique Dadá e os indígenas fizeram placas demarcando a TI Maró

Foto: autora (jul 2014)

Faltando três dias para começar os trabalhos de demarcação, capangas dos madeireiros
prenderam e torturaram o cacique Dadá, das 10 horas da manhã às 5 da tarde, mantendo-o sob
a mira de duas armas de fogo. Ele relembra: “subi pra cá doente, sem andar, provocando sangue.
O pessoal aqui com raiva. Mas eu disse não é matar ninguém, é pra retomar a nossa terra”. Esse
foi o primeiro de muitos outros ataques sofridos por lideranças das três comunidades. O
processo contra os torturadores corre até hoje na Justiça, mas “a Justiça pra nós é lenta, a gente
não tem grana pra fazer ela valer. E eu sou proibido de estar na minha própria terra por ordem
judicial, de ir pro rio Aruã, de ir pro final da terra indígena, sob ameaça”, completou o cacique
Dadá.
Esse depoimento torna evidente como os indígenas do Maró se encontravam debaixo da
linha do humano, de acordo com a definição de racismo em Fanon, na zona do não ser, onde a
humanidade do Outro não é reconhecida. Grosfoguel, interpretando Boaventura de Sousa
Santos e Fanon, afirma que:
Como tendência, os conflitos na zona do não-ser são geridos pela violência perpétua e somente
em momentos excepcionais são usados métodos de regulação e emancipação. Dado que a
218

humanidade das pessoas classificadas na zona do não ser não é reconhecida, dado que são
tratados como não humanos ou subhumanos, em outras palavras, sem normas de direitos e
civilidade, então se permitem atos de violência, violações e apropriações, que na zona do ser
seriam inaceitáveis197. (GROSFOGUEL 2011, p. 100, traduzido pela autora).

Grosfoguel completa: “Para De Sousa Santos, ambas zonas são parte do projeto da
modernidade colonial198” (ibidem). É nesse projeto de modernidade colonial que o conflito que
encerra a luta pela terra Maró se situa. Não é uma luta para se apropriar de um pedaço de terra.
É uma luta para quebrar a barreira imposta pelo racismo que coloca os indígenas abaixo da
“linha abismal do humano”, na “zona do não ser”. Na “zona do ser” estão os sujeitos que foram
racializados como superiores e que por isso desfrutam de privilégios raciais. A eles os direitos
estão disponíveis. Os Borari e os Arapiuns estão na zona do não ser, tendo sido racializados
como inferiores e por isso sofrem a constante opressão racial. Grosfoguel esclarece: “A zona
do ser e do não ser não é um lugar geográfico específico mas um posicionamento nas relações
raciais de poder que ocorre em escala global entre centros e periferias, porém que também
ocorre em escala nacional e local contra diversos grupos racialmente inferiorizados199” La zona
del ser y non ser no es un lugar geográfico especifico sino una posicionalidad en relaciones
raciales de poder que ocurre a escala global entre centros y periferias, pero que también ocurre
a escala nacional y local contra diversos grupos racialmente inferiorizados” (Ibidem).
Para os indígenas do Maró a Justiça é lenta, conforme reclamou o cacique Dadá: “a
gente não tem dinheiro pra fazer ela valer”. Por outro lado, ordens judiciais são emitidas
velozmente para impedir a livre circulação do cacique Dadá, quando ele é denunciado por
qualquer razão, especialmente em decorrência de manifestações contra o desmatamento ilegal.
A violação sofrida sob forma de tortura pelo cacique Dadá e posteriormente por outras
lideranças indígenas, ao mesmo tempo em que criou um profundo sentimento de
humilhação200, gerou um sentimento ainda mais forte de lutar pela causa coletiva.

197
Como tendencia, los conflitos en la zona del no-ser son gestionados por la violência perpetua y solamente en
momentos excepcionales se usan métodos de regulación y emacipación. Dado que la humanidad de la gente
clasificada en la zona del no-ser no es reconocida, dado que son tratados como no-humanos o subhumanos, es
decir, sin normas de derechos y civilidad, entonces se permiten actos de violência, violaciones y apropiaciones,
que en la zona del ser serián inaceptables. (GROSFOGUEL 2011, p. 100).
198
Para De Sousa Santos, ambas zonas son parte del proyecto de la modernidad colonial” (Ibidem)
199
La zona del ser y non ser no es un lugar geográfico especifico sino una posicionalidad en relaciones raciales de
poder que ocurre a escala global entre centros y periferias, pero que también ocurre a escala nacional y local contra
diversos grupos racialmente inferiorizados” (Ibidem)
200
Considera Honneth que a tentativa de se apoderar de corpo alheio, contra sua vontade, provoca um grau de
humilhação que interfere “destrutivamente na autorrelação prática de um ser humano, com mais profundidade do
que outras formas de desrespeito”, pois o que ocorre na tortura ou violação não é apenas a dor física, mas a sujeição
ao outro sem proteção, perdendo até o senso de realidade (idem, p.215).
219

A humilhação gerada pela dor física cria feridas psicológicas, no plano moral. Dona
Edith, mãe do cacique Dadá, em outra ocasião teve outro filho, o Poró, torturado. Ela conta com
pesar toda a angústia vivida:
O que me deu mais preocupação foi o Dadá e o Poró, então eles dois é que me deram mais
preocupação na minha vida por causa que ele (Dadá) era ameaçado de morte. Ele recebeu umas
intimações de juiz. Isso me preocupou muito. Não dava nem pra eu comer, pra eu dormir.
Quando veio pra prender ele, eu não sabia nem o que fazer mais. Eu rezava, pedia pra Deus
livrar ele de todo o mal e assim. O outro (Poró) pegaram ele numa festa aí pro Curi, bateram
muito nele. Ficou mesmo a ponto de morrer e isso também me deixou muito triste. Aí quando
foi esses tempos, tornaram a pegar esse mesmo, o Poró, bateram de novo, aí no progresso. Então
isso me preocupou muito, muito mesmo. Amarraram o Dadá na estrada de Alter do Chão. Foi
no dia que eu vim. Ele veio me trazer no barco pra eu vir pra cá, quando eu chego aqui eu liguei
o rádio uma hora dessas pra escutar o jornal e foi a primeira coisa que eu soube. Rapaz, parece
que isso eu ia morrer na mesma hora (...). Parece que eu ia morrer de sono. Eu não tinha sono
mais pra dormir de noite.

Honneth compara os sentimentos de rebaixamento e humilhação social, que ameaçam a


identidade do ser humano, com as doenças que ameaçam o seu corpo físico. As reações
emocionais negativas se expressam na vergonha social. Na comparação com a saúde física, o
autor considera que da mesma forma que agimos a fim de evitar doenças, as relações de
reconhecimento seriam capazes de proteger os sujeitos do sofrimento de desrespeito de maneira
mais ampla. Deste modo, “as reações negativas que acompanham no plano psíquico a
experiência de desrespeito podem representar de maneira exata a base motivacional afetiva na
qual está ancorada a luta por reconhecimento” (ibidem, p. 220). Diante do desrespeito sofrido
os indígenas elaboraram estratégias para lutar e buscaram apoios de aliados para que alcançasse
seu objetivo, pois a “tensão afetiva em que o sofrimento de humilhações força o indivíduo a
entrar só pode ser dissolvida por ele na medida em que reencontra a possibilidade da ação ativa”
(ibidem, p.224).
O apoio de instituições aliadas foi determinante para que o potencial cognitivo,
inerentes aos sentimentos de vergonha social e da vexação, se tornasse convicção política e
moral dos indígenas da terra Maró. Foi com a colaboração de um conjunto de organizações -
CIMI, CITA, PSA, CPT e GDA -, que as três comunidades demarcaram a TI Maró, e
elaboraram de modo participativo um primeiro mapa. A iniciativa dessa primeira cartografia
demonstra a emergência dos indígenas como sujeitos políticos e a importância das alianças
políticas. Em cenário de disputas, o fato de possuir uma representação cartográfica de si
mesmos tem se mostrado fundamental para encaminhar a garantia de direitos territoriais.
220

Território
As aldeias de Novo Lugar, São José III e Cachoeira do Maró lutam pela terra, base
física, mas também pelo significado existencial de suas vidas no território. Os Borari e os
Arapium constroem territorialidade, “como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar,
usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,
convertendo-a assim em seu “território” ” (LITTLE 2004, p. 253). Território entendido como
um produto histórico de processos sócio-políticos (ibidem). Assim, tomando a iniciativa de suas
ações, os indígenas da TI Maró se afirmam étnica e territorialmente “como forma de neutralizar
as pressões sobre seus territórios, ao mesmo tempo em que tentam dar visibilidade aos conflitos
que opõem práticas espaciais distintas” (FISHER 2010, p.175). Práticas essas que não se
resumem ao plano físico, mas a uma cosmografia no sentido dado por Little como:
Os saberes ambientais, ideologias e identidades - coletivamente criados e historicamente
situados - que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território. A cosmografía de
um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território
específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao
território e as formas de defesa dele. (2004, p. 254).

Lembro de uma reunião em Cachoeira do Maró, em julho de 2012, com lideranças das
três comunidades e alguns membros do Conselho Indígena Intercomunitário Arapium e Borari
(COIIAB), quando eram ditas as afirmações: “O território acabou há muito tempo”. “Queremos
resgatar o nosso território”. “O território foi dividido”. “É um espaço indígena que estamos
tentando recuperar”. Com tantos repetidos usos da palavra território, perguntei o que significava
território para eles. Um deles se antecipou e respondeu: “o território inclui tudo: a vida, o
espaço, a terra do ser humano, dos animais, da floresta”. É notável a coincidência com a ideia
de território por Little (2004), por Castro (1998) e por Haesbaert (2006), para quem território é
lugar de hibridação entre sociedade e natureza, entre elementos materiais e imateriais, o saber
fazer, o modo de vida, o simbólico, a existência de mecanismos de solidariedade.
Considerando a luta pela TI Maró, também o pensamento de Milton Santos (2006) sobre
território usado relaciona chão com identidade, e contribui para entender o que acontece com a
TI Maró:
O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas;
o território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território
usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e
espirituais e do exercício da vida. (SANTOS 2006, p.14).

A conquista da TI Maró se relaciona diretamente à sobrevivência do grupo. A ligação


dos povos tradicionais com o território significa a própria existência:
221

Pertencemos a um território, não o possuímos, guardamo-lo, habitamo-lo, impregnamo-nos


dele. Além disso, os viventes não são os únicos a ocupar o território, a presença dos mortos
marca-o mais do que nunca com o signo sagrado. Enfim, o território não diz respeito apenas à
função ou ao ter, mas ao ser. Esquecer este princípio espiritual e não material é se sujeitar a não
compreender a violência trágica de muitas lutas e conflitos que afetam o mundo de hoje: perder
seu território é desaparecer. (Bonnemaison e Cambrèzy, apud Haesbaert 2006, p.51).

Os Borari e os Arapium não querem desaparecer. Perder a terra é enterrar a história, os


lugares sagrados, a vida como povo. Aprendi com eles um sentido mais profundo do que é o
território, que não se limita ao espaço físico, mas que sempre se refere a ele. Os Borari e os
Arapium, embora estudando na cidade, sempre carregam consigo seu território. Ao carregar
consigo o território eles afirmam a própria indianidade e confrontam aqueles não querem
reconhecer suas identidades.
O território está neles na medida em que o vínculo com a terra faz parte do próprio ser,
que sempre deseja retornar ao lugar de origem. Os estudantes indígenas que estão na cidade
celebram com muita alegria, através das redes sociais, cada feriado, férias ou oportunidade de
ir para a aldeia. Voltam para a cidade postando fotos dos dias vividos junto aos seus, de suas
caças, banhos de rio, plantios, e expressam o desejo de não tardar a retornar. Se referem
constantemente à TI Maró, deixando transparecer o vínculo com o território, por isso viabilizam
estratégias para não desparecer do mapa.
Nas disputas cartográficas verificadas na Gleba Nova Olinda, os indígenas tomam a
iniciativa de mapear-se, fazendo-se visíveis, impedindo que outros os excluíssem do mapa. De
forma, que também no baixo Tapajós, a exemplo de outras mobilizações na América Latina
(ACSELRAD, 2010), a produção de mapas tem instrumentalizado a luta por afirmação
territorial (COLI, 2010). Significa dizer que as representações territoriais produzidas por
organizações indígenas têm superado o caráter meramente técnico das demarcações, antes
executadas somente pelo Estado, para ganhar um sentido político capaz de conferir aos
indígenas a condição de sujeitos políticos (OLIVEIRA, 2006).

Conflitos e “soluções”
O intenso conflito gerado, a partir do desrespeito pelas pessoas que viviam na área, pedia
solução urgente. A situação com os permutados, que ocupavam parte da área indígena, tinha se
complicado muito. Os permutados encontraram indígenas guerreiros que não aceitavam a
condição imposta pelo governo do estado. Lutavam pela terra e enfrentavam quem as quisesse
tomar. Queriam a desintrusão. O ano era 2007 e tentaram inclusive tocar fogo na casa do
cacique Dadá para intimidá-lo. Lembra Maria Rosenilda, a Rosa de 32 anos, esposa do cacique
Dadá:
222

Tentaram uma noite. Eu tava grávida. Ele (o cacique Dadá) disse ‘tem alguém andando atrás da
casa’. Começou a pegar fogo. Eu fiquei com medo e eles já tinham jogado óleo diesel em cima
da casa para pegar fogo. Começou a queimar a cozinha, mas não chegou a pegar na casa. Ainda
bem que foi uma noite que tinha chovido e a palha tava molhada.

Figura 44: Rosa e a sua filha Kamirran, nome indígena que significa mulher guerreira.

Foto: autora (jul 2014)

A fim de amenizar a situação dos conflitos, o governo estadual sucessivo, comandado


por Ana Júlia Carepa do Partido dos Trabalhadores (PT), consolidou a Área de Limitação
Administrativa Provisória201 (ALAP), no conjunto de glebas Mamurú-Arapiuns. O documento
da ALAP impedia202 atividades e empreendimentos causadores de degradação ambiental, assim
como vetava atividades relacionadas ao corte raso da floresta e da vegetação nativa. O
documento, que instituía a ALAP, proibia também atividades relacionadas ao uso direto dos
recursos naturais, exceto as práticas sustentáveis tradicionalmente realizadas pelas
comunidades tradicionais.

201
Pelo decreto 1.149∕2008, através de uma comissão formada por três órgãos estaduais (IDEFLOR, SEMA e
ITERPA).
202
No seu art. 2º.
223

Por outro lado, a promulgação da Lei Federal de Gestão de Florestas Públicas permitia
ao governo a regularização da exploração madeireira através de procedimentos de concessão
florestal. Contudo, antes da formalização das concessões, a lei obrigava que as florestas
públicas, ocupadas ou utilizadas por comunidades locais, fossem identificadas para a
destinação, seja através de criação de reservas extrativistas e/ou de desenvolvimento
sustentável, bem como por transferência de uso, seja por meio de assentamento florestal,
assentamento de desenvolvimento sustentável, agroextrativistas ou similares. A promulgação
da Lei Federal de Gestão de Florestas Públicas viabilizou o processo de ordenamento fundiário
no conjunto de glebas Mamurú-Arapiuns. Contudo, Fisher (2010) faz uma importante
avaliação:
A regularização fundiária dos territórios tradicionalmente ocupados pode ser vista como um
mecanismo de dupla eficácia, uma vez que garante os direitos territoriais pleiteados por
comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que, paralelamente, titula, estabiliza e insere no
mercado novas terras, que são passíveis de serem incorporadas às frentes de acumulação do
capital (FISHER 2010, p.173).

A legalização e disponibilização dessas terras no mercado faz com que interessados


como madeireiros influenciem no processo de escolha da modalidade de ocupação das
comunidades, as incentivando optar pela que mais facilite sua exploração. Quando o Governo
do Estado instituiu a ALAP, pretendia um processo participativo para que as comunidades
indicassem as modalidades de legalização do território pleiteadas. Contudo, antecipando-se ao
governo, as comunidades, apoiadas pelo STTR/Santarém e pela CPT, e com a colaboração do
IBAMA e do Projeto Saúde e Alegria (PSA), organizaram um seminário (13-14/11/2008) para
discutir a ALAP. Explica Tibério Allogio do PSA:
Aquele movimento que depois gerou as oficinas de mapeamento, zoneamento, ele foi motivado
principalmente pela questão fundiária. Aquela é uma região de glebas estaduais. Uma região
riquíssima de recursos naturais. Inclusive da mineração, que foi a primeira grande empresa 203
que se estabeleceu naquela região, no município de Juruti. Isso gerou uma grande preocupação
em relação ao avanço que teve em relação às empresas, principalmente, as madeireiras naquele
rumo. Então não havia destino, uma área enorme com várias glebas, inclusive a gleba Nova
Olinda. Uma área de um milhão e trezentos mil hectares. Aí começou esse movimento. Primeiro
foi feito um levantamento, depois foram feitas as oficinas e no mapa apareceu a situação
inclusive dos conflitos.

No “Seminário de Elaboração Participativa de Mosaico de Uso da Terra na ALAP Nova


Olinda/Mamurú no Oeste do Pará”, 51 comunidades elaboraram um mapa participativo, de
acordo com seus conhecimentos sobre a área que viviam, para o diagnóstico e planejamento

203
Trata-se da empresa ALCOA Juruti que explora mina de bauxita para a produção de lingotes de alumínio
para a exportação.
224

daquele espaço. Os comunitários apontaram suas áreas de uso e os limites de suas comunidades,
baseados na localização de rios e igarapés. No mapa indicaram as modalidades de titulação
mais convenientes a cada comunidade. Com a construção do mapa, as comunidades se
respaldaram frente ao Governo Estadual para o processo de destinação territorial nas glebas
Mamurú-Arapiuns.
Os mapas participativos permitem a documentação da realidade pelos grupos sociais que sempre
passaram desapercebidos pelos mapas e documentos oficiais, tornando visíveis os conflitos e
reivindicações. Configuram-se como uma estratégia de ação coletiva garantindo o direito à terra
e a conservação dos recursos naturais utilizados direta ou indiretamente. (STTR/Santarém&
CPT 2008, p.9)

O mapa alicerçou o “Plano Participativo de Mosaico de Uso da Terra nas Glebas: Nova
Olinda, Nova Olinda II e III, Cumurucuri e Mamurú no Oeste do Pará” (STTR/Santarém&
CPT, 2008) e indicou cinco Projetos Estaduais de Assentamento Extrativistas (PEAX)204 –
Curumucuri, Mamurú, Aruã, Vista Alegre e Mariazinha; três Projetos Estaduais de
Assentamento Sustentável (PEAS)205 –Aruã-Maró, Fé em Deus e Repartimento; o Parque
Estadual do Mamurú; a Floresta Estadual do Alto Aruã (Unidade de Conservação de Uso
Sustentável); e a Terra Indígena Maró, que não seria de competência do Governo do Estado
regularizar, mas sim do Governo Federal através da FUNAI.
No caso da TI Maró, as três comunidades indígenas (Cachoeira do Maró, Novo Lugar e
São José III) decidiram, após debates e reflexões, que as categorias “Projetos de Assentamento”
e “Unidades de Conservação” não condiziam aos seus objetivos de garantia do território. Os
moradores entregaram esse mapa propondo a forma como cada comunidade queria a sua
modalidade de assentamento:

204
“O Projeto Estadual de Assentamento Agroextrativista – PEAEX – destina-se a populações que praticam a
exploração sustentável dos recursos naturais voltadas para a subsistência. A área é de domínio público com uso
concedido às populações extrativistas. A destinação das áreas dá-se através de uma concessão de direito real de
uso, em regime de uso comum, associativo ou cooperativista por prazo indeterminado”. (STTR & CPT 2008, p.13)
205
“Os Projetos Estaduais de Assentamento Sustentável –PEAS- abrangem as áreas trabalhadas em regime de
economia familiar que utilizam racionalmente os recursos naturais existentes. A destinação das áreas dá-se
mediante um contrato de concessão de uso em regime individual, em nome da unidade familiar. O contrato de
concessão é intransferível e inegociável pelo prazo de dez anos, ao término do qual poderá ser expedido Título
Definitivo de Propriedade”. (STTR & CPT 2008, p.14)
225

Mapa 4: Proposta das comunidades para o ordenamento fundiário

FONTE: SEMA, Iterpa, Ideflor, 2008.

O esforço da produção do mapa não foi em vão. A representação cartográfica acima,


produzida pelas comunidades e seus aliados, foi acatada pelo governo. As demandas
comunitárias relativas aos assentamentos e uma reserva de área à TI Maró foram contempladas
226

no novo mapa produzido pelo Governo, que também destinou áreas ambientais para exploração
madeireira:
Mapa 5: Regularização Fundiária das glebas Mamurú-Arapiuns

FONTE: SEMA, Iterpa, Ideflor, 2009. Destaque feito pela autora.

Na gleba Nova Olinda estão 15 comunidades, entre elas algumas cooptadas pelos
madeireiros. De um lado, as que buscam a afirmação de sua identidade e de seu território, de
outro as seduzidas pelos benefícios oferecidos pelos madeireiros, como empregos na extração
227

da madeira, salários e geradores de energia. Em contrapartida, essas comunidades demandam


combinações de titulações individuais e coletivas no processo fundiário em curso. Tiberio
Allogio do PSA conta o que aconteceu com a comunidade Mariazinha que não faz parte da TI
Maró:
Por exemplo Mariazinha, ela vendeu o manejo de mil hectares da área dela para a Mundo Verde.
Acho que foi por um milhão e duzentos mil. Lá eles compraram dois barcos e dividem por
mensalidades entre eles. Aplicaram mal eu acho. Mas, o problema deles é o transporte. Da
Mariazinha porque eles têm que pegar uma bajarinha pra chegar até Repartimento e de lá pegar
um barco um pouco maior e demora. Então a obsessão deles era essa. Então compraram dois
barcos e o resto tão dividindo. O que eles não fizeram foi o investimento coletivo que poderia,
porque não tem água encanada. Eles tão nessa problemática.

Mas essa problemática, relacionada à água, eletricidade, transporte, é dever do Estado


suprir. O desprezo do Estado pelas comunidades faz parte de um planejamento de omissão, que
destrói a própria sobrevivência do grupo, na medida em que a exploração florestal, desmesurada
e com parca fiscalização, acaba inclusive com a segurança alimentar. Isso cria um desiquilíbrio
ambiental impactante, pois com a derrubada da vegetação as nascentes dos rios ficam
comprometidas, a fauna diminui, os peixes desaparecem, entre outros malefícios. Uma das mais
antigas moradoras da Cachoeira do Maró, a Dona Joana de 85 anos, reclama “Aqui tá ficando
faminto de comida. Teve uma época que era farto de peixe e caça”.
Figura 45: Dona Joana

Foto: autora (jul 2014)

No Maró, os indígenas tiveram que ser muito resistentes porque a sedução era ainda
mais forte quando viam bens de consumo dos vizinhos, que tinham vendido o manejo para os
228

madeireiros, passarem nos barcos em frente a aldeia. Ao comparar os benefícios que as


comunidades vizinhas tinham, com a condição de penúria da vida deles, alguns indígenas
podiam até duvidar de suas escolhas. Logo viram que os acordos não eram eternos, que o
dinheiro um dia acabava e que os comunitários vizinhos perdiam o direito de usar a madeira da
área que haviam vendido o manejo para as empresas madeireiras, o que não era de forma alguma
vantajoso. O cacique Dadá explica:
Hoje o nosso povo teve uma consciência melhor a partir do momento que começamos ver o
grande problema que o capital gera. Por exemplo, os caras venderam a área, ganharam
R$5.000,00 mensais durante 15 meses, esses vizinhos nossos ganharam. Mas, hoje e por 20 anos
eles não podem tirar um pé de árvore de dentro dos 80% que negociaram com a empresa. Então,
agora ele tão dizendo “poxa, mas agora o meu casco, a minha canoa, a minha bajara tá pra
quebrar e eu não tenho madeira. A madeira que eu tinha eu vendi. Pra onde que eu vou correr
agora? ”.

Cacique Dadá explica que o capital é muito atraente e eles sofrem uma pressão
psicológica muito grande porque cada um “coloca no seu psicológico que ele também deveria
ganhar aquele dinheiro. Aí ele diz: “hoje eu não tenho um tênis bom porque eu não negociei
minha área. É culpa do cacique!”. Ele reclama que ás vezes essas seduções do dinheiro faziam
balançar as convicções, geralmente dos mais jovens, e isso gerava um sentimento muito ruim
porque o processo de conscientização, para não se deixar explorar, é longo. Mas ele disse que
se sentia aliviado, pois a cobrança acabou quando a Funai reconheceu a TI Maró.
Em julho de 2014 chegamos mais uma vez em Novo Lugar, o cacique Dadá e a Rosa
nos receberam com expressão de dor no olhar. Nos falaram que tinham tido uma grande perda.
Irã, o filho caçula, havia falecido. Dadá disse que sentia que o pequeno Irã um dia seria o
cacique. Perguntamos o que havia acontecido e ele disse que ele havia adoecido e, de uma hora
para outra, falecido. Não souberam exatamente a causa. O atendimento à saúde, que é também
dever do Estado, para os indígenas é quase inexistente. Eles dizem que sentem a presença do
poder público somente uma vez ao ano, quando chega o barco de vacinação. Uma mãe, durante
uma reunião em Novo Lugar, disse: “eles vêm aqui vacinar só uma vez no ano, dão tudo de
uma vez e só faltam matar as nossas crianças com tanta vacina. A gente ainda tem que ouvir as
enfermeiras dizerem “mãezinha olha como você tá atrasada na vacinação’”, reclama.
229

Figura 46: Irã Borari, carregado pelo pai, o cacique Dadá

Foto: autora (jan 2013)

Rosa, contanto com o pequeno Irã, é mãe de oito crianças. Ela me contou sobre a
dificuldade de alimentação na rotina de sua família: “Almoço não é todo dia, mas a janta que é
o principal tem todo dia. Às vez quando eles tão com muita fome eles reclamam. Aí eu invento:
bolinho de farinha com café, cará de mandioca. É bom que eles come. Ás vez acontece de não
ter janta. Aí a gente tem que inventar”.
Os impostos recolhidos pelas concessões de manejo florestal não retornam para as
comunidades como benefícios. Assim elas se veem reféns de suas dificuldades cotidianas e
acabam negociando com as madeireiras para o provimento de carências básicas de
sobrevivência como luz e água encanada. A ausência do Estado para possibilitar melhores
condições de vida faz com que as comunidades recorram a quem lhes oferece qualquer “ajuda”
a um alto custo ambiental. O cacique Dadá, por sua vez, reconhece a violência desse processo
e denuncia essa negligência do Estado:
Aqui sai milhões e milhões de recursos, que é uma quantia muito alta de dinheiro, e o Estado é
pago pelos impostos dos empresários. E o Estado se (re)passa pro município essa verba, o
município não faz construção. Por exemplo, aqui nós temos uma péssima escola. Aqui nós não
230

temos posto de saúde. Então, a partir do momento que não faz isso, mas tem recursos e que vai
recurso da Gleba Nova Olinda pra lá e isso não chega de volta, então isso é violência.

As comunidades resistentes e politizadas expressavam indignação contra quem,


segundo elas, “se vendia” para os madeireiros. Contudo Gilson da CPT explica as estratégias
dos madeireiros para atrair as pessoas:
Eles são aliciados a todo momento, dizendo que vão ter carteira assinada, que podem ter um
melhor transporte, que as empresas podem colaborar com algumas coisas que eles têm
dificuldade, por exemplo, falta de energia, um microssistema de abastecimento de água ou
construção de um prédio. E aí vem as coisas mais complicadas, que é o patrocínio da festa do
santo, patrocínio da festa do time de futebol, essas coisas que o poder econômico compra. Eles
são muito aliciados. E o Estado brasileiro em todos os sentidos, apoia essas empresas. Então, o
comunitário se sente refém... Aí ele começa, desse jeito nós vamos só perder e se nós vamos só
perder...

Reconhecendo os danos e a exploração de gente e natureza, os indígenas politizados se


colocam como empecilhos ao sistema de opressão ao qual não se submetem. Especialmente as
lideranças acabam sendo criminalizadas por denunciarem os abusos constantes. O cacique Dadá
expressa sua indignação:
Quando o Estado consegue dominar uma liderança achando que aquela liderança tem que
mostrar pra sociedade que ele tem que se incluir no capitalismo. Quando ele renega o
capitalismo ele passa a ser uma pessoa ignorante, ele passa a ser uma pessoa que não quer
desenvolvimento dos demais. E o Estado o que ele quer é dinheiro. Então, quando a gente não
faz isso, a gente passa por todo um processo de criminalização.

E enormes balsas carregadas de toras de madeira continuam descendo o rio Arapiuns.


A madeira agora é escoada também por rotas terrestres, que inclusive invadem a terra indígena.
Balsas carregadas de madeira já trafegam pelo estreito rio Maró, destruindo parte de suas
margens. Nas aldeias da TI Maró a água do rio serve para tudo: beber, tomar banho, lavar roupa,
etc. Gilson da CPT fala que a intenção dos madeireiros de trafegar com balsas pelo rio é antiga
e denuncia o discurso de persuasão que usam com as comunidades:
Esse projeto de utilizar o rio Maró como espaço de escoamento da madeira não é novo. Eles já
propuseram inclusive pra duas comunidades lá. Principalmente pra Cachoeira do Maró, que é
onde fica a parte mais delicada pra transportar madeira por causa da cachoeira mesmo, da
corredeira lá. Era fazer a explosão daquelas pedras. Isso foi em 95, 94 eles já estavam fazendo
essa proposta de explodir as cachoeiras. E sempre aquele discurso filho da puta de dizer que é
pra ajudar a comunidade, pra ter mais facilidade de navegação, no inverno e no verão, esse papo
furado.
231

Figura 47: Boraris carregando baldes de água do rio para o consumo diário

Foto: autora (jan 2013)

Revolta coletiva
Cansados de ver subir pelos rios balsas carregadas de madeira, e de denunciar o fato às
autoridades sem qualquer resultado, indígenas e comunitários resolveram agir por conta
própria. No dia 10 de novembro de 2009, em ação coletiva, queimaram duas balsas carregadas
de madeira supostamente ilegal. A carga avaliada em 5 milhões de reais queimou por três noites.
O episódio da queima das balsas206 chamou atenção para a luta travada pelo povo local. Estava
completando um mês que indígenas auto afirmados da TI Maró, junto com moradores de
comunidades locais, estavam acampados em uma praia do rio Arapiuns.
Os moradores das margens dos rios exigiam fiscalização às autoridades, que respondiam
com descaso. O povo então se organizou e decidiu acampar e apreender as balsas para
pressionar um diálogo com responsáveis pelos órgãos fiscalizadores e assim denunciar a
extração ilegal de madeira e exigir do Estado agilidade no processo de demarcação das terras.
Receberam apenas a visita de um técnico para fiscalizar a madeira apreendida por eles,
negligenciando a reivindicação de uma fiscalização mais efetiva. O que movia tanto descaso
por aquelas pessoas que ali se manifestavam?

206
Ver artigo de Felipe Milanez (2010).
232

Depois de um mês aguardando uma resposta dos órgãos competentes, a multidão se


revoltou e cansada de esperar decidiu coletivamente queimar as balsas. O fato foi um divisor
de águas e marcou a história do lugar. Indígenas e moradores das beiras dos rios se insurgiram.
Por um lado, o episódio fortaleceu o movimento indígena. Por outro, a tensão na região crescia
após o incêndio. Madeireiros contrariados passaram a incentivar o ódio racial, ao mesmo tempo
em que alguns jornalistas da imprensa santarena veiculavam matérias acusando os indígenas de
falsos. As matérias jornalísticas informavam que a etnia Borari havia sido extinta há duzentos
anos e culpavam os indígenas pelo atraso econômico da região, acusando-os de inviabilizar o
uso produtivo das terras regionais.
Madeireiros contrariados passaram a incentivar o ódio étnico-racial na população local.
Alguns jornalistas da imprensa santarena veiculam matérias alegando que os indígenas não são
verdadeiros, pois, segundo eles, a etnia Borari já está extinta há duzentos anos. Essas matérias
apontam os indígenas como responsáveis pelo atraso econômico da região, acusando-os de
inviabilizar o uso produtivo das terras regionais. Desde então, a reação ao movimento indígena
se fez mais forte, inclusive com contestações207 a processos demarcatórios de terras por parte
inclusive de órgãos governamentais. A reação contra o movimento indígena se
institucionalizou.
Com a manifestação da queima das balsas, o Ministério Público Federal em Santarém
iniciou uma Ação Civil Pública para acompanhar o processo de demarcação. O processo
administrativo de demarcação da TI Maró foi iniciado em 2004 pela Funai. Porém, a Funai
tardou em publicar o Relatório de Identificação e Delimitação. Os indígenas ansiavam por essa
publicação, pois é este o documento que definiu o reconhecimento formal e o tamanho da área
da TI. Depois de uma longa espera, em 08 de junho de 2011, a Justiça Federal em Santarém
determinou à Funai que publicasse em trinta dias o relatório de identificação e delimitação da
TI Maró, sob pena de multa diária no caso de descumprimento. Finalmente em outubro de 2011
o Relatório foi publicado e em seguida contestado pelo governo do estado do Pará, através do
Iterpa.
No movimento indígena do baixo Tapajós, a conquista da Terra Indígena Maró é fato
relevante. A TI Maró sofre pressões da indústria madeireira, que tem dezenas de projetos de

207
A Constituição de 1988, artigo 67, ordenou a demarcação de todos os territórios indígenas no Brasil, dentro do
período de 5 anos após sua promulgação. No entanto, mais da metade dos territórios ainda esperam por uma
demarcação. Fato decisivo a entravar as demarcações é o decreto 1775, de janeiro de 1996, proposto pelo então
ministro da Justiça Nelson Jobim e assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. O decreto impôs o
chamado princípio do contraditório dentro do processo administrativo. “It provides a legal mechanism for those
who also claimed access to indigenous lands to appeal against their demarcation, giving a chance for commercial
interests, such as ranchers, miners, and loggers, to present their case” (BORGES &COMBRISSON, 2011).
233

manejo florestal na gleba Nova Olinda, alguns dentro mesmo do território indígena,
recentemente reconhecido pela Funai, que em outubro de 2011 publicou seu relatório
circunstanciado de identificação e delimitação. Contudo, quem assumiu a contestação,
manifestando impugnação ao despacho que abrigou o relatório foi o Instituto de Terras do Pará
(Iterpa), que reivindica a área para madeireiros, a fim de efetivar-se um arranjo de permuta e
compensação, promovido pelo governo do estado.
No Pará, a fiscalização é notoriamente escassa e permite a retirada de grandes volumes
de madeira ilegal. O movimento indígena no baixo Tapajós denuncia a pilhagem, tolerada pelo
estado, que ademais fomentou conflitos ao colocar madeireiros em territórios reivindicados
pelos indígenas. Esse é o contexto onde, a despeito das desvantagens de meios, o movimento
indígena conseguiu uma conquista relevante, com o reconhecimento pela Funai da Terra
Indígena Maró.
Em 06/01/2012, o Iterpa, em referência ao Despacho nº 107, da Presidência da Funai,
publicado no DOU em 10/10/2011, manifestou “impugnação àquele ato”, que contraria a
iniciativa do governo estadual de situar na TI Maró madeireiros oriundos do Projeto Trairão,
no município de São Felix do Xingu. O ofício do Iterpa se faz acompanhar de texto intitulado
“Flechas Enganosas”, em que o antropólogo Edward Luz critica o movimento indígena
evocando o fantasma de agentes externos interessados no subdesenvolvimento da Amazônia:
“Tais ações indigenistas obedecem uma agenda geopolítica externa, visando o engessamento
de enormes áreas de produção e servirem de óbices a realização de obras estruturantes na região,
a fim de mantê-la, sub-povoada e sub-desenvolvida.”
Por outro lado, a intrusão de atividades madeireiras na TI Maró e o prejuízo que ela
causa aos indígenas e à natureza estão reportados no Relatório Circunstanciado de Identificação
e Delimitação da Terra Indígena Maró/PA.
A atuação da indústria madeireira já tem causado assoreamento de cabeceiras de igarapés como
o Tirirical, Tobias e Raposa. O comprometimento destas cabeceiras tem conseqüências
negativas relevantes, especialmente para a aldeia de Novo Lugar, local onde todas estas
desembocam. No entanto, por ser esta a comunidade localizada à montante, certamente as
demais também sofrerão com a diminuição do fluxo do rio Maró e destruição de locais
importantes para a reprodução de peixes. (FUNAI, 2011)

O conflito, ao passo que se dá diretamente com agentes econômicos locais, tem como
agente principal o Estado brasileiro, que em lógica desenvolvimentista almeja a integração dos
territórios indígenas e seus respectivos recursos naturais aos processos econômicos, apesar da
retórica de defesa da pluralidade sociocultural (VERDUM, 2008). Apesar dos avanços
conceituais e legais, vigora ainda a prática do velho SPI de ‘abertura dos sertões à iniciativa dos
234

particulares’ (FREIRE 2009, p. 31). Por outro lado, indígenas recentemente assumidos retomam
“suas tradições a partir de uma identidade genérica de caboclos já assimilados” (ARRUTI 1997,
p.11), fazendo-se assim sujeitos políticos, subvertendo a indistinção (ibidem, p. 19) e o projeto
geopolítico regional.
Um trecho do relatório de identificação e delimitação da TI Maró se refere a essa
situação de conflito, com as cabeceiras dos igarapés, lugares sagrados para os indígenas, com
o acesso impedido por cercas e porteiras.
É importante destacar que cientes do processo de usurpação de sua área de ocupação
permanente, os Borari e Arapium em 2005 realizaram a primeira autodemarcação de seus limites
territoriais em projeto conjunto entre o Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns e Programa Saúde
Alegria. Em 2007 foi realizado o georeferenciamento dos pontos identificados. Os limites
apresentados no mapa de autodemarcação, em alguns momentos, contrastam com as narrativas
proferidas pelos indígenas quando da entrada na mata e da utilização dos recursos naturais lá
existentes. Alguns igarapés (especialmente suas cabeceiras), como o do Cachimbo e do Arraia,
são tidos pelos indígenas como importantes, mas não aparecem nos limites geográficos. Lendo
o mapa de autodemarcação é possível perceber que todos os pontos de conflito e na qual os
indígenas se sentem pressionados em seu território não são contemplados, numa nítida reação
de medo as ameaças sofridas. (...) Locais sempre utilizados para a caça e pesca hoje têm cercas
e portões, coibindo a entrada de “estranhos” e atividades produtivas. A cabeceira do Igarapé do
Cachimbinho está fechada com uma porteira. (FUNAI, 2011)

A história dos Borari e Arapium ganhou uma inflexão com o reconhecimento oficial da
Terra Indígena Maró. Após o reconhecimento os madeireiros propuseram um acordo: abririam
mão do pedaço de terra disputado, contanto que os indígenas afirmassem que ali não existia
conflito. Seria uma estratégia dos madeireiros para ganharem a certificação da madeira queriam.
Contudo, resistência tem sido uma palavra definidora dessa história, construída com o desejo
de pertencer a um povo, a um lugar e a uma luta. A conquista da terra fortaleceu a identidade,
que tem a ver com continuidades históricas, inclusive territoriais. Agora eles almejam uma vida
melhor sobre o território conquistado. Eles almejam educação e saúde indígenas em padrão
superior aos tacanhos serviços atuais, assim como a utilização autônoma dos recursos naturais
na terra indígena demarcada, e são movidos por esses direitos. Os indígenas têm consciência
que território é construção.
A luta principal das três comunidades que vivem na TI Maró diz respeito à garantia do
território. Mas planejam também uma vida melhor sobre ele. Com esse objetivo, os indígenas
selecionam os projetos que consideram importantes, com o cuidado de não abraçar iniciativas
desfocadas do seu principal objetivo. Todo o trabalho que desenvolvem nas comunidades visa
a afirmação do grupo e a luta pela TI. Por isso, criaram o Conselho Indígena Intercomunitário
Arapium e Borari – COIIAB, definindo que cada uma das comunidades teria suas prioridades
e vocações. Esse plano orienta a vida na TI Maró.
235

Em Cachoeira do Maró, os indígenas pretendem desenvolver o turismo de base


comunitária, recebendo turistas, para quem divulgam sua luta, mostrando a sua vida e a relação
afetiva com a natureza. Os comunitários têm a consciência que o turismo responsável é um
meio de gerar renda sem degradar o meio ambiente. “Chegam vinte turistas aqui. A gente
mostra a árvore que cura a artrose. Eles tiram vinte fotos e não levam uma folha da árvore.
Ainda por cima podem comprar o remédio que fazemos”, explicam com a clareza de quem
entende do assunto.
Na aldeia de Novo Lugar, a dedicação principal é o projeto denominado Farmácia Viva,
que pretende produzir remédios fitoterápicos e homeopáticos. Na comunidade, contam com a
tradição de conhecimento das espécies medicinais, havendo duas pessoas com grande sabedoria
nesse campo. Uma delas é o pajé e cacique Higino e a outra é a dona Edith, parteira experiente
e cuidadora das mães e dos nascimentos do lugar. Os comunitários garantiram a parceria com
uma associação budista208 para a construção de um mini-hospital indígena. Nesse hospital
projetam uma sala de recepção, banheiro e fossa, sala do pajé, sala da parteira, sala de fabricação
dos remédios, além de uma varanda de recuperação dos doentes.
A comunidade garantiu um pequeno recurso para a construção do mini-hospital e as
obras prosseguem, agora com o galpão já coberto com telhas de barro. No entanto, afirmam que
não tem recursos financeiros para colocar nada dentro, por isso buscam parceiros. Querem
conseguir um parceiro para viabilizar a formação em enfermagem de pelo menos uma pessoa
da comunidade, para que esse enfermeiro possa fazer suturas, aplicar injeções e vacinas. Face
ao descaso do Estado com as comunidades do lugar, as comunidades têm necessariamente que
se organizar por conta própria e buscar parceiros para ajudá-las na concretização dos seus
anseios.
Conforme o plano que define as vocações de cada comunidade, em São José III os
comunitários se dedicam ao reflorestamento. Na área da comunidade tem uma grande área de
capoeirão, formada por anos de roça de mandioca, que usam para a fabricação da farinha e seus
derivados. Eles sentem a necessidade de reflorestar esse capoeirão, mas informam que precisam
de um acompanhamento técnico para aprender como plantar de uma forma mais aperfeiçoada,
pois pretendem cultivar árvores medicinais e de madeira de lei.
A vida no território é ainda dependente de auxílios governamentais. “Os principais
benefícios recebidos são as aposentadorias como trabalhadores e trabalhadoras rurais e o
Programa Bolsa Família” (FUNAI, 2011). Dois professores, um agente comunitário de saúde e

208
ASHA.
236

um auxiliar de serviços gerais recebem salários como funcionários públicos (idem). Em um


momento da reunião em Cachoeira do Maró, em 2012, um indígena de Novo Lugar disse: “a
gente fez uma conta maluca e constatou que por mês entra na nossa comunidade cerca de R$
8.600,00 de aposentadorias e pensões, e esse dinheiro vai parar na mão dos donos dos barcos
de linha”. Para melhorar as condições de vida, sonham um dia comprar um barco para facilitar
a vida nas comunidades.
Figura 48: Cleilson Borari com um tatu para o jantar da família

Foto: autora (jan 2013)

Reconhecimento
Desamparados pelo poder público, os Borari e os Arapium viviam como seres
“invisíveis” na mata. Lá, plantavam, colhiam, pescavam, caçavam, faziam festas e praticavam
seus rituais. Contudo, tudo mudou quando perceberam que o lugar de reprodução da vida estava
ameaçado. Subitamente se assustaram ao ver seus espaços invadidos por homens munidos de
GPS que marcavam e demarcavam a terra como se a eles pertencesse. Descobriram que esses
homens eram fazendeiros do sul do Brasil, que haviam recebido do governo do estado do Pará
parte daquela terra como permuta por terras que haviam perdido no sul do Pará em uma área
decretada como território indígena.
O documento de permuta concedido pelo Governo dava aos “permutados” o direito de
marcarem e demarcarem suas novas terras e as das comunidades vizinhas. E como diz o ditado
“quem parte e reparte e não fica com a maior parte ou é tolo ou não tem arte”... Ao verem seus
237

espaços serem apropriados por terceiros, as comunidades se sentiram profundamente


injustiçadas e tal abuso foi o estopim para o conflito. Apoiados por instituições parceiras, os
indígenas decidiram demarcar seu território, e o chamaram de Terra Indígena Maró.
As glebas Mamurú-Arapiúns, onde está localizada TI Maró, passam por lento processo
de regularização fundiária. Não obstante a parca fiscalização dos órgãos de proteção existentes,
os que cobiçam a floresta para explorá-la a qualquer custo encontram agora uma dificuldade:
indígenas plenos de direitos reivindicam território, contestam destinações territoriais feitas pelo
governo do estado, concessões florestais e zoneamentos ecológico-econômicos, e defendem a
sua terra. O movimento indígena configura uma questão política importante e enfrenta a
exploração madeireira ilegal.
No movimento indígena do baixo Tapajós, a conquista da Terra Indígena Maró é fato
relevante. A TI Maró sofre pressões da indústria madeireira, que tem dezenas de projetos de
manejo florestal na gleba Nova Olinda, alguns dentro mesmo do território indígena. A TI Maró
foi reconhecida pela Funai em outubro de 2011, quando publicou seu relatório circunstanciado
de identificação e delimitação. Contudo, quem assumiu a contestação, manifestando
impugnação ao despacho que abrigou o relatório foi o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), que
reivindica a área para madeireiros, a fim de efetivar-se um arranjo de permuta e compensação,
promovido pelo Governo do Estado.
A pesquisa sobre a TI Maró evidenciava o quanto os indígenas eram desrespeitados,
sendo constantemente ameaçados e sofrendo preconceitos vários. Essa relação demonstrava
consciência e afirmação dos indígenas em contraposição à negação e rejeição por aqueles que
os vêem como símbolos do atraso. Revelava-se uma articulação entre as classes empresarial,
política e midiática, que no Brasil quase sempre se confundem, para combater os indígenas. Os
dados coletados em campo revelavam a realidade local como uma luta por reconhecimento
identitário e territorial indígenas em contraposição a uma postura de exclusão, quando não de
total desprezo, de setores do Estado e de indiferença de grande parte da sociedade perante os
indígenas. Por outro lado, os Borari e os Arapiuns puderam contar com aliados importantes.
Um deles foi a Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos que organizou uma
campanha pela demarcação da Terra Indígena Maró, construiu uma página na rede social
Facebook chamada “Somos Todos Terra Indígena Maró” e lançou a petição virtual “Ministério
da Justiça e Fundação Nacional do Índio (Funai): Pela demarcação da Terra Indígena Maró”
que recebeu mais de mil assinaturas.
Considero que a luta dos indígenas do Maró se inicia pelos sentimentos coletivos de
injustiça, mas que não se limita a eles. Não é só uma luta por reconhecimento e respeito no
238

plano moral. Os indígenas lutam por reparações materiais pautadas em direitos. Além do
desrespeito cultural os indígenas sofrem com a privação econômica. A injustiça no Maró é
caracterizada não só no plano cultural e simbólico, mas também no plano político e econômico.
Os indígenas querem garantir a terra e a demarcação dela é a principal prioridade apontada
pelos moradores das três aldeias, mas também querem viver dignamente sobre ela e por isso
constroem projetos e sonhos. Plantam ervas medicinais e sonham com um mini hospital
indígena através do projeto que chamaram “farmácia viva”. Plantam mandioca, produzem
farinha e querem vendê-la nas cidades próximas por isso sonham em ter seu próprio barco.
Constato que os Borari e os Arapium são sujeitos de um projeto descolonial, situando o
reconhecimento no plano moral de Honneth (2009) em um contexto onde é evidente a
colonialidade. As feridas morais, as negações e os abusos, que levam os indígenas à uma luta
por reconhecimento, nascem e se fortalecem em uma relação de injustiça racista. O racismo,
que foi instrumento e justificativa para a violência da colonização, é raiz de um comportamento
de negação. Essa violência e negação do Outro, que justificou a rapina de terras e riquezas
naturais, se reproduz e se perpetua hoje em desigualdade e pobreza daqueles que foram desde
a colonização explorados e excluídos. Os indígenas lutam por reconhecimento. Como
soberanos do seu território eles exercem na prática a redistribuição. Eles travam lutas por
território e por direitos nas esferas da saúde e da educação. Eles lutam sobretudo por respeito.
239

X - NOMEAR É COMBATER
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de
falsas palavras, mas de palavras verdadeiras com que os homens transformam o mundo. Existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se
volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Paulo Freire
em Pedagogia do Oprimido (1983, p. 92)

A autoafirmação e a adoção do nome dos seus povos pelos indígenas do baixo Tapajós,
entre eles os Borari e os Arapium da TI Maró, é uma forma de transformar o mundo. Os
indígenas passam a existir humanamente, no sentido atribuído por Paulo Freire e Ernani Fiori,
em que “a vida como biologia passa a ser vida como biografia” (1983, p. 8). Com a autonomeação
os indígenas transformam a si mesmos e o mundo no qual estão inseridos. Ao darem essa
substância ao mundo, os indígenas enfrentam a negação das suas identidades. Isso exige deles
um “novo pronunciar”. Ao se pronunciarem novamente eles nomeiam o racismo.
Dar nome é criar. É fazer existir uma realidade ocultada que servia a desumanizar. Que
os situava abaixo da linha do humano. Quem costuma nomear é o dominador, que se coloca no
poder de o fazer de acordo com seu entendimento autocentrado. Os dominados, para nomear,
têm que arrancar esse poder dos dominadores, esclarece Fiori, no prefácio da Pedagogia do
Oprimido: “Os dominadores mantêm o monopólio da palavra, em que mistificam, massificam
e dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá-
la. ” (1983, p. 11). Nomear-se indígena é sair da condição de massificados, generalizados e
dominados. A luta pelo reconhecimento é uma luta pelo domínio da palavra, que dá existência
através da insurgência. Para os Borari e Arapium nomear-se é existir. Nomear o racismo é
resistir.
Deborah Lima (1999), trabalhando sobre “estruturas e representações sociais no meio
rural amazônico” (p. 28), diz que “palavras não apenas criam, mas conservam as coisas que
criam” (idem), dai a importância do uso dos nomes seja para conservar seja para transformar o
social. Segundo a autora, o termo caboclo “carrega a história colonial de subordinação” e assim
“compromete o destino de uma população” (idem). Roberto Cardoso de Oliveira vem ao texto
de Deborah Lima para afirmar que os Ticuna, quando se referiam como caboclos, olhavam para
si mesmos com o olhar do branco. Ou seja, o nome cria a subjetividade, nesse caso uma
subjetividade de dominado. A nomeação nesse caso conserva uma colonialidade, que pode ser
transformada também pela palavra. Assim fizeram os Borari e os Arapium. O uso de palavras
impostas para identificar a si mesmo é o que Paulo Freire chama de autodesvalia, “característica
dos oprimidos” que absorvem a visão do opressor sobre eles. Termos generalizantes, como
240

ribeirinhos e populações tradicionais tem um sentido conservador ao manterem intocadas as


hierarquias na própria nomeação que vem de cima.

Desobediência epistêmica
Os Borari e os Arapium saem da invisibilidade fazendo uso da palavra como ação
transformadora. Assim como outros indígenas afirmados no baixo Tapajós, eles confrontam
nomeações e entendimentos estabelecidos desde os processos de assimilação e rejeitam a
história oficial. Eles ressurgem. Os indígenas, mediante uma práxis desobediente, de uma só
vez criam história, identidade e direitos. A partir de uma história reinterpretada eles oferecem
um novo entendimento para a questão indígena. Reconhecimento da condição indígena e
denúncia/nomeação do racismo que eles sofrem passam a ser eixos da luta.
Os Borari e os Arapium são sujeitos históricos, representam a resistência dentro de uma
história que lhes foi negada. Nomearam-se indígenas, quando Estado e capital os queriam
subordinados caboclos ou ribeirinhos. Conquistaram a TI Maró, demarcaram-na e ela agora
lhes pertence tanto quanto eles pertencem a ela, a despeito dos ordenamentos territoriais oficiais
que reservavam essa terra para a exploração de madeira. Na terra, concebem-na como território,
chão, usos, relações, vida material e espiritual. Concepção radicalmente oposta àquele que toma
a terra como fator de produção e progresso, que avança degradando gente e natureza, e “que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína”, como descreve Walter Benjamin Sobre o conceito
da História.
Território para os Borari e os Arapium representa uma união com a natureza – “o
universo inteiro é concebido como um ser vivente no qual não há uma separação estrita entre
humanos e natureza, indivíduo e comunidade, comunidade e deuses” (ESCOBAR 2005, p. 136)
-, condição de existência para eles, uma realidade muito diversa da terra como objeto de
exploração da natureza, condição para a realização de lucros. Um conhecimento muito diverso
do meramente econômico. Um conhecimento, “do que é humano e do que não o é, o que é
semeado e o que não o é, o doméstico e o selvagem, o que é produzido pelos humanos e o que
é produzido pelas florestas, o que é inato ou o que emerge da ação humana, o que pertence aos
espíritos e o que é dos humanos, etc” (ibidem). Os Borari e os Arapium realizam assim com a
TI Maró uma desobediência epistêmica.
Entendi que terra não se limita ao espaço físico através de um depoimento de um
indígena da Paraíba, durante o IV Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI), em
Santarém, que disse que carregava a sua “terra” dentro de si para onde fosse. Falou isso
relatando o quanto era difícil para alguns indígenas viver na cidade e o quanto era opressor o
241

espaço da universidade. Para amenizar os sentimentos de opressão, os indígenas da Paraíba


criaram uma sala na universidade para se encontrar, realizar rituais, entoar cantos, batucar e
principalmente para amenizar a tristeza que a falta que seus lugares imprimia neles. Entendi
que terra também é o sentimento de pertencimento a um lugar que os pertence.
Escobar fala sobre a importância que tem o lugar, uma localidade específica na vida das
pessoas. No lugar elas criam enraizamentos e vivem o cotidiano, mesmo que a identidade seja
construída e móvel. Para Escobar “existe um sentimento de pertencimento que é mais
importante do que queremos admitir” (2005, p. 133), que fortalece a ideia de “regressar ao
lugar”. Lugar é onde se constrói história e identidade. Assim, o lugar dá visibilidade a formas
subalternas de pensar e configurar o mundo. Escobar traz o significado de lugar para o centro
de sua análise, a fim de superar o domínio do espaço sobre o lugar, que “tem operado como um
dispositivo epistemológico profundo do eurocentrismo na construção da teoria social”
(ibídem).. Pensar o mundo como lugar é uma desobediência epistémica quando os que detêm o
poder de dominar queriam o lugar como espaço de derrubada da floresta para a produção de
madeira.
Os autonomeados Borari e Arapium tomaram a palavra e se afirmaram, significando
isso uma desobediência não tolerada pelo poder colonial representado na localidade de
Santarém por um juiz federal, que, afinado com os interesses madeireiros, os nomeou “falsos”.
A palavra foi nesse caso proferida do alto do poder judiciário, mas nem por isso cumpriu-se.
Ocorreu aí uma troca linguística com resultados inesperados para o poder. Embora a
autonomeação indígena seja assegurada por legislações, muitas vezes esse direito não é
respeitado no meio jurídico. Esse é o caso da sentença que será discutida adiante. O duelo entre
indígenas e magistrado deu-se em torno do direito de ter uma identidade afirmada, uma questão
muito importante nos processos decoloniais. A réplica dos indígenas foi nomear racista a
sentença. O não-reconhecimento do indígena afirmado ganhou o status de uma concepção
epistemológica socialmente validada.
De modo que pelo direito de ter suas identidades indígenas reconhecidas os Borari e os
Arapium identificaram, nomearam e denunciaram o racismo, o que ampliou o significado do
termo estigmatizante. A insurgência contrariou o padrão de conhecimento estabelecido e criou
uma nova episteme. O evento semântico reforçou o protagonismo dos indígenas, que atuaram
politicamente para escapar de uma política colonialista, promovendo também um novo
conhecimento e compreensão para a violência do racismo.
O evento mostrou também que existe mais de uma forma de conhecer o mundo, que
existem conhecimentos diversos sobre o direito, a ética e a felicidade. E que o conhecimento
242

do subalterno pode às vezes derrotar o conhecimento que se faz superior aos outros. E que,
enfim, se pode abalar a certeza do conhecimento. Que não existe conhecimento neutro nas
Ciências Humanas, não existe sujeitos neutros, embora a epistemologia ocidental dominante
pretenda fazer crer o contrário.
Castro-Gómez (2005) fala sobre o “ponto zero do conhecimento” para dizer que um tipo
de conhecimento se fez superior aos outros, em função da crença de que certos conhecimentos,
feitos por sujeitos supostamente neutros, através de determinados métodos, seriam capazes de
descobrir verdades universais. O ponto zero seria então o local de onde parte o observador, que
é capaz de olhar tudo e todos e não ser visto por ninguém de ponto algum. Os estudiosos
localizados nesse ponto seriam incapazes de compreender outro ponto de vista, rejeitando assim
a máxima que um dia proferiu Leonardo Boff, segundo a qual “cada ponto de vista é a vista de
um ponto”. Boff diz que “cada um lê com os olhos que tem e interpreta a partir de onde os pés
pisam”. A quem é dado o poder de ler e interpretar? Encontrar-se no ponto zero é, de acordo
com Castro-Gómez:
Ter o poder de nomear pela primeira vez o mundo; de traçar fronteiras para estabelecer quais
conhecimentos são legítimos e quais são ilegítimos, definindo quais comportamentos são
normais e quais são patológicos. Por isso, o ponto zero é o do começo epistemológico absoluto,
mas também o do controle econômico e social sobre o mundo. Localizar-se no ponto zero
equivale a ter o poder de instituir, de representar, de construir uma visão sobre o mundo social
e natural reconhecida como legítima e autorizada pelo Estado. (CASTRO-GÓMEZ apud
COLAÇO & DAMÁSIO 2012).

Ocorre que a neutralidade estabelecida pelo ponto zero é uma falácia. Sempre se parte
de um local específico para produzir conhecimento. Acontece que o lugar de onde se parte tende
a desprezar todos os outros conhecimentos ao colonizar mentes. Importa no discurso de onde
ele parte, tanto quanto o que ele diz. Importa que tem o poder de nomear. E quem como sujeito
histórico é capaz de tomar esse poder para nomear em sentido oposto. Os indígenas afirmados
reconhecem eles mesmos que “descolonizam o pensamento”. Tomando a palavra exercem um
contra-poder. Eles partem do lugar destinado ao colonizado e se insurgem em consonância com
outras experiências na América Latina e no mundo. Ao tomar a palavra, o discurso que
proferem tem conteúdo semelhante aos de outros movimentos, desde o levante zapatista, até o
de outros grupos que dividem saberes locais - línguas e a feitura de elementos culturais como
artesanatos e comidas - e que codividem histórias de dor, sofrimento, superação e resistência.
Dessa forma, os indígenas do baixo Tapajós transformam Santarém e a Ufopa de “lugares de
estudo” a “lugares de pensamento” geradores de decolonialidade (MIGNOLO, 2003).
243

Karina Bidaseca (2010) cita em seu livro um trecho da teórica feminista Judith Butler,
que vale a pena colocar aqui para explicar que esse “lugar de pensamento” se determina como
uma insurreição ontológica que questiona o sujeito universal:
Não se trata simplesmente de fazer ingressar os excluídos dentro de uma ontologia estabelecida,
mas de uma insurreição a nível ontológico, uma abertura crítica a perguntas tais como: O que é
o real? Que vidas são reais? Como poderia se reconstruir a realidade? Aqueles que são reais já
sofreram a violência da desracialização? Qual é então a relação entre a violência e essas vidas
consideradas “irreais”? A violência produz essa irrealidade? A dita irrealidade é a condição da
violência?209 (BUTLER 2006, p. 59 – 60 apud BIDASECA, 2010, p.148, traduzido pela autora)

Figura 49: Boraris desenhando o Mapa de Uso

Foto: Rodrigo Peixoto (Out de 2012)

O lugar do pensamento não se separa do lugar do fazer. Quando os Borari e os Arapium


da TI Maró, depois de terem realizado a autodemarcação e construído um primeiro mapa,
buscaram ajuda para desenhar no papel um outro mapa, agora com os usos do território, eles
propuseram a sua forma ver, a sua maneira de pensar o território. Não se tratava só de
coordenadas geográficas que dariam o número indicativo da fração de terra deles, era algo de
significado mais profundo. Queriam mostrar sobre o papel onde estavam suas trilhas, onde
realizavam seus rituais, onde eram as áreas de caça, onde encontravam a maior concentração
de árvores medicinais, onde era a morada dos encantados, onde plantavam, onde jogavam

209
No se trata simplesmente de hacer ingressar a los excluidos dentro de uma ontologia estabelecida, sino de una
insurrección a nivel ontológico, una apertura crítica a preguntas tales como: Qué es real? Qué vidas son reales?
Como podría reconstruirse la realidad? Aquellos que son reales ya han sufrido de la violencia de la desrealización?
Cuál es entonces la relación entre la violencia y essas vidas consideradas “irreales”? La violencia produce esa
irrealidad? Dicha irrealidad es la condición de la violência? (BUTLER 2006, p. 59 – 60 apud BIDASECA, 2010,
p.148)
244

futebol, onde estavam suas casas, igreja, escola. Esse uso do território resumido em um desenho
era de grande importância. Mostrou o conhecimento que era significante para eles, diverso do
que era importante para os demais, mas que nem por isso menos importante. Para eles mais
importante porque aquele era o lugar da vida. Construíram mapas para as três aldeias em aliança
com pesquisadores e instituições. Os mapas foram difundidos em uma cartilha210. O mapa de
uso de Novo Lugar na TI Maró é um exemplo de desobediência epistêmica:
Mapa 6: Mapa de uso da aldeia de Novo Lugar

Também como um ato de desobediência epistêmica, os estudantes indígenas da Ufopa


fizeram parte da criação de um movimento dentro da universidade chamado “me coloniza! Sqn
(só que não) ”. Os indígenas querem ter vez e voz na universidade e fazem da Ufopa um lugar
de pensamento aliado à ação. Luana Kumaruara, estudante de antropologia na Ufopa, relata:
Ao entrar na universidade, percebi que queriam negar minha identidade indígena. Trata-se de
um dos principais desafios enfrentados aqui dentro por todas as etnias do baixo Amazonas, que
por anos foram colonizadas. É um desafio ocupar os espaços. Precisamos enfrentar isso e
avançar. Precisamos enfrentar isso e chegar mais junto, fazendo valer a voz dos indígenas. As
dificuldades acontecem no dia a dia, mas isso não é motivo para desistir. Como por exemplo, o

210
Cartilha “Prazer em Conhecer – Terra Indígena do Maró”. Santarém: INCT; MPEG; PSA, 2011.
245

professor que chegou a me dizer que eu precisava escolher entre a universidade e o movimento
indígena. Não posso virar as costas para o movimento, pois foi com essa luta que garantimos o
ingresso dos indígenas na universidade. Isso é compromisso, é uma responsabilidade. Os
professores não sabem desse sentimento, nunca viveram isso. O que falta para os professores é
respeitar. Respeitar não é se impor. É saber compreender. (2016, p.29)

O relato de Luana Kumaruara revela que o conhecimento indígena encontra barreiras na


universidade. Os que impõem essas barreiras dentro da universidade usam a desculpa de que
tais conhecimentos fogem das regras disciplinares da produção do conhecimento (MIGNOLO,
2007). Os indígenas enfrentam o problema: “É um desafio ocupar os espaços. Precisamos
enfrentar isso e avançar”. Eles combatem o pensamento hegemônico como “sujeitos
epistemológicos” que desnaturalizam as injustiças e as violências.
O que faz o pensamento hegemônico é ratificar o presente e por isso precisamos criar um sentido
comum que não naturaliza as injustiças, as opressões, as violências que se cometem. (...) O
pensamento hegemônico nos impede de representar o mundo como nosso. As pessoas acabam
por ser representadas como objetos epistemológicos e não como sujeitos epistemológicos. E
essa mudança é importante porque se não represento o mundo como o meu, tampouco posso
transformá-lo. (SANTOS, 2013)211

O cacique Dadá da TI Maró, em resposta à polêmica suscitada pelo juiz que sentenciou
a inexistência dos povos Borari e Arapium, propôs algo interessante quando convidou as
pessoas a irem a sua aldeia para serem alfabetizadas: “pra quem questiona a minha etnia, eu
quero convidar: venha até minha aldeia, venha me conhecer, mas venha para ser alfabetizado
por nós”. O alfabetizar que o cacique propôs significa o ensinamento dado por ele e pelo grupo
do que significa ser Borari ou Arapium, que se traduz no que significa ser um indígena hoje.
Cacique Dadá fala a partir da razão dele e do seu grupo, que é uma razão outra, uma razão
própria, não gradeada pelo conhecimento Ocidental, que é racista ao se centralizar como
epistemologia verdadeira, única, desconsiderando conhecimentos outros.
Os Borari e os Arapium fogem do padrão do senso comum e das regras determinadas
por um conhecimento ocidentalizado, que se estabelece com critérios rígidos. É um movimento
que configura uma epistemologia, que não separa o pensar do fazer, a teoria e a prática. Mas
fazer com que o conhecimento dominante considere os conhecimentos indígenas não é tarefa
simples, de acordo com o que disse Poró Borari: “Isso é um trabalho muito árduo. Eu diria que
isso é uma alfabetização. A pessoa tá leiga, ela é ignorante do ponto de vista do conhecimento,
de se apropriar da história dos nossos povos”. Para entender essa epistemologia, eu mesma tive

211
Boaventura Santos na conferência “Descolonização Epistemológica”, proferida na Universidad Autonoma de
la Ciudad de México, em 11 de outubro de 2013.
246

que “aprender a desaprender”212, e ao me dar conta de que a razão imperial, como identidade
superior, eurocêntrica, na maioria das vezes serviu para diminuir, inferiorizar e negar gente,
nações, religiões e gênero, percebi que o que ocorre no Maró é um projeto descolonial.

“Fora Justiça Racista! ”

A gente chegou a uma conclusão: de que não é a Justiça Federal que ia ter que medir até que
ponto nós somos indígenas ou não. Poró Borari

A imagem do índio como o “outro” completamente diferente realçado por evidentes


sinais diacríticos, que o distanciaria demasiadamente da população regional das cercanias de
Santarém, ficou evidente na sentença emitida em 26 de novembro de 2014, pela Justiça Federal
de Primeiro Grau no Pará – Segunda Vara da Subseção de Santarém, assinada pelo juiz Federal
José Airton de Aguiar Portela. O teor do documento foi ancorado em argumentos de uma linha
antropológica ultrapassada para demonstrar os Borari e os Arapium como inexistentes. De
acordo com a concepção do juiz, em nada eles se distinguiriam da população local. O juiz tomou
para si o direito de dizer quem eles eram e os chamou de ribeirinhos. Conforme explica o
Procurador de Justiça Camões Boaventura do Ministério Público Federal de Santarém:
Isso na concepção do Ministério Público Federal é uma violência tremenda. Uma arbitrariedade
absurda. Porque coloca um terceiro como aquele responsável por apontar a identidade de um
grupo ou de um sujeito. O que contraria terminantemente, sem dúvidas, a Constituição, a
Convenção 169 quando trata do autorreconhecimento. E o que a gente percebe também, e o que
nos deixa um pouco mais preocupados, é de que esta ausência de reconhecimento ou esse
racismo institucional que tá vindo do Estado, ele se espraia pra sociedade. O que a gente vê na
sociedade santarena, na região oeste do Pará, é uma dificuldade tremenda de entender que esses
treze povos eles se autodenominam indígenas e que é assim que eles têm que ser tratados. Não
cabe à sociedade, não cabe ao Estado, não cabe a qualquer terceiro dizer o que que o sujeito é e
o que que o sujeito não é.

O juiz não ouviu os indígenas. Não considerou a palavra que diziam, o nome com o qual
se reconheciam. Isso bastaria para que o conteúdo da sentença fosse o oposto do que foi
determinado. O que deu motivos para que a sentença fosse completamente desconstruída,
através de apelação jurídica produzida pelo Ministério Público Federal213, e finalmente extinta
em decisão tomada por unanimidade pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
(TRF1), em 20 de janeiro de 2016

212
Conforme sugere Mignolo (2010) quando se refere à desobediência epistêmica.
213
Procuradoria da República no Município de Santarém, em 04 de fevereiro de 2015.
247

Ao tomar para si o poder da palavra e proferir o “Cumpra-se”, o juiz feriu aos indígenas,
gerando indignação e revolta. A palavra como instrumento de ação e poder ensejou a
possibilidade de a sentença surtir efeito. No entanto, isso não ocorreu porque a sentença
também feriu uma dimensão ética e moral, tão necessária quando se trata de relações
interétnicas (CARDOSO DE OLIVEIRA 2006). Essa falta de respeito está baseada no que
Paulo Freire chama de ação antidialógica de grande número dos profissionais que têm a
convicção “quase inabalável” de que devem “levar”, “transferir”, “entregar” ao povo seus
conhecimentos e técnicas. Para esses profissionais que se sentem promotores do povo: “Não há
que ouvir o povo para nada, pois que, ‘incapaz e inculto’, precisa ser educado por eles para sair
da indolência que provoca o subdesenvolvimento” (FREIRE 1983, p. 182).
A sentença foi denunciada publicamente como racista. A ferida moral, gerada por
palavras tão desrespeitosas em relação aos indígenas – “falso índio”, referindo-se ao cacique, e
“farsa”, referindo-se ao movimento – produziu o entendimento de que o racismo sustentava os
argumentos da sentença. A palavra racismo, que até então era camuflada e suavizada em
sinônimos e que não estava tão presente no cotidiano dos indígenas, se revelou com força plena
de significados. A força da palavra dita se potencializou através da escrita que cobriam os
cartazes carregados durante a manifestação. Um deles chamou atenção ao denunciar
publicamente o racismo e associá-lo à falta de respeito:
Figura 50: Poró Borari

Foto: Carlos Bandeira Junior (dez 2014)


248

Poró Borari, da TI Maró carregava o cartaz que denunciava como racista a atitude do
juiz. Logo após a manifestação, o jornalista e professor Felipe Milanez escreveu artigo
“Sentença da Justiça Federal acirra conflitos em Santarém” para seu blog na carta capital214, no
qual inicia com a seguinte citação de Fanon “O racista numa cultura com racismo é por esta
razão normal. Ele atingiu a perfeita harmonia entre relações econômicas e ideologia”. Milanez
explicita nessa matéria o teor racista da sentença na qual o juiz elencou argumentos que, em
uma sociedade de cultura racista, parecem “normais”. A ação judicial foi movida por
associações comunitárias preocupadas em perder suas terras com a demarcação da TI Maró.
Contudo, as associações haviam pedido desistência da ação quando souberam, através da
divulgação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Maró pela
Fundação Nacional do Índio (Funai), publicado em outubro de 2011, que a área da terra
indígena não coincidia com a das comunidades do entorno215. Cabe informar que durante os
trabalhos de delimitação da TI, a equipe da Funai foi ameaçada de morte por madeireiros. Além
disso, muitos integrantes das associações comunitárias, que entraram com a ação, trabalham
para empresas madeireiras.
Fato relevante é apontar que o mesmo advogado que assinou a ação judicial em nome
das comunidades, advoga para os madeireiros que conflitam com os indígenas (BRASIL. MPF,
2015). Assim, a ação judicial refletia o conflito entre indígenas e madeireiros e a sentença foi
parcial ao desconsiderar esse conflito, atendendo os interesses dos madeireiros, como afirma a
apelação civil do Ministério Público Federal contra a decisão da Justiça Federal de Santarém:

É muito mais conveniente utilizar como longa manus comunidades tradicionais, humildes, que,
supostamente, viam “seus direitos”, objeto de negócio com o Estado do Pará, serem
“arrancados”, a pretexto de, em seus dizeres, reconhecer os direitos dos “falsos índios”, fato que
mobiliza toda a sociedade para a causa, sensibilizando e colocando na pauta do dia das famílias.
Trazer à lume MADEIREIROS, de poder aquisitivo elevado, que se motivam tão somente pelo
lucro e vislumbram na área uma forma de fazerem fortuna não desperta o mesmo sentimento.
(BRASIL. MPF, 2015, p.16-17)

Essa parcialidade foi revelada quando o juiz ignorou o pedido de desistência da parte
litigante e deu seguimento ao processo, sentenciando a inexistência dos indígenas. Fato que

214
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/sentenca-da-justica-federal-exalta-
racismo-a-indigenas-e-acirra-conflitos-em-santarem-6596.html
215
De acordo com a apelação civil do Ministério Público Federal contra a decisão da Justiça Federal de Santarém:
“a ação nº 2091-80.2010.4.01.3902 foi manejada pelas Associações antes mesmo que houvesse a publicação do
Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Terra Indígena Maró, documento através do
qual foram explicitados os limites geográficos com as respectivas coordenadas da TI. Após a aludida publicação,
tiveram as Associações a clara percepção que as áreas ocupadas pelas comunidades que a compunham não se
sobrepunham, em nenhuma medida, com a área da TI Maró. Dessa maneira, mais do que justificável a formulação
do pedido de desistência da ação” (BRASIL. MPF, 2015, p.12)
249

aconteceu poucas semanas depois de uma fiscalização216 ter embargado todas as permissões de
exploração madeireira dentro da TI Maró. Conforme relata Poró Borari:
No momento em que um mês atrás nós tínhamos conseguido juntar o Ibama e cancelar nove
projetos de manejo na TI Maró, aí logo em seguida sai uma sentença negando nossa existência.
A gente fez a relação que [a sentença] era tendenciosa de fato. Que era pra justiça negar a
legitimidade da nossa identidade e com isso liberar as madeiras da nossa terra pros madeireiros.

Estrategicamente, os indígenas se mobilizaram com um conjunto de pessoas e


instituições aliadas e, representados pelo Ministério Público Federal, garantiram a anulação da
sentença e a extinção da ação judicial217, em janeiro de 2016. A sentença, que previa estagnar
a demarcação da TI Maró, baseada em uma disputa por terra, teve efeito diverso ao que
pretendia, ao aguçar nos Borari e nos Arapium a luta pelo direito de ser indígena. Essa é uma
luta antiga, que ultrapassa idiossincrasias jurídicas atuais.
A sétima vara federal não entrou no mérito se nós somos indígenas ou não porque não cabe a
eles também, mas julgou a forma que se concedeu a sentença, o teor da sentença “era uma
sentença tendenciosa, preconceituosa, racista. Poró Borari.

As reais intenções da sentença que determinou como não indígenas os Borari e os


Arapium estavam disfarçadas. A sentença foi performativa, no sentido dado por J. L. Austin,
em How to do Things with words (1962), pois empreendeu uma ação por meio de palavras
desqualificando o movimento indígena e acusando o cacique de “falso”. A ação empreendida
através das palavras da sentença, ao negar a identidade indígena, permitiria o avanço dos
madeireiros sobre a TI Maró. Os indígenas acusaram a sentença de racista, pois o teor foi
taxativo ao colocar trechos como o seguinte:
Aliás, prova disso é que o líder do movimento, Presidente do Conselho Indígena do Tapajós –
CITA, Odair José Sousa Alves, segundo afirma Basílio Matos dos Santos, [...] “Que é tio do
falso índio Odair José de Sousa Alves” [...] revela ainda a origem de sua família e refere-se ao
seu sobrinho Odair José Sousa Alves como falso índio [...] (BRASIL, Justiça Federal de
Primeiro Grau no Pará 2014, p. 48)

A sentença atribuiu “a pecha de farsantes aos indígenas autodeclarados (...) Nesse


sentido buscou-se a desqualificação dos indígenas o que fora feito de forma desrespeitosa e
racista” (MARQUES, 2016, p. 131). Ao ir além do que caberia às funções da Justiça,
determinando o preenchimento de quesitos de medição de identidade - como “tradicionalidade,
a permanência e a originariedade”; “origem e ascendência pré-colombiana”; e “ser identificado

216
Ação de fiscalização que uniu o Ministério Público Federal (MPF), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e
o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama).
217
Decisão tomada por unanimidade pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em 20 de
janeiro de 2016.
250

como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade


nacional” -, a sentença não teve receptividade social, e sequer teve recepção jurídica. Os
argumentos da sentença não foram acatados.
A sentença, a um só tempo, malferiu vários princípios norteadores do processo civil brasileiro
[...] Viola, ainda, o princípio da imparcialidade, uma vez que carrega consigo uma carga
valorativa totalmente impregnada de prévios conceitos sustentados apenas em ideologia própria
e de todo refletida em um pensamento hegemônico. (BRASIL, Ministério Público Federal 2015,
p. 54).

Ideologia e pensamento hegemônico etnocêntrico, refletidos na sentença que


deslegitima, que inferioriza os indígenas. O discurso jurídico não foi efetivo porque não deu
condições à sua recepção. Não teve competência, no sentido dado por Bourdieu, no qual
“Competência implica o poder de impor a recepção” (BOURDIEU 1977). O sofrimento que a
sentença causou aos indígenas, pelo teor de profundo desrespeito, e a manifestação de repúdio
que eles moveram, impossibilitou a recepção da sentença. Os indígenas feridos no plano moral
se motivaram para a ação e se manifestaram. Rejeitaram o juízo e o nomearam racista:
A sentença engendrou algo totalmente diverso da ação pretendida, pois, ao invés de
desqualificar os indígenas, e retirar deles o território cobiçado pelos madeireiros, a sentença os
fortaleceu na sua luta por reconhecimento. Tem-se aqui um caso típico do feitiço virando contra
o feiticeiro. (FIGUEIREDO & PEIXOTO 2016, p. 7).

A sentença foi invalidada porque as palavras contidas nela foram desautorizadas. Não
teve efetividade porque não foi capaz de demonstrar competência, de gerar os efeitos
pretendidos. Não teve competência porque não se fez escutar, o que não a confirmou como
instrumento de poder (BOURDIEU, 1977). Por outro lado, o grito de revolta dos indígenas foi
ouvido. Eles sim tiveram a competência de usar a palavra a seu favor, porque seus argumentos
foram capazes de gerar recepção.

O “terceiro parto”

As lutas mudaram. Evoluíram. Hoje a gente não briga mais com flecha, com arma. A gente
briga com o papel e a caneta. Luana Kumaruara

Luana Kumaruara cresceu como liderança indígena no ambiente da universidade, e


estava emocionada ao falar para o público, durante o IV ENEI, sobre a luta dos povos indígenas
do baixo Tapajós. Contou histórias recentes de doenças que afligiram seu povo, da negligência
do Estado para prestar auxílio, do quanto é grande o sofrimento daqueles que têm o direito à
saúde negado porque são povos auto afirmados. Pedia solidariedade dos parentes indígenas.
Chorou ao lembrar da injustiça da prisão de Poró Borari, quando ocupavam pacificamente a
251

Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)218, em agosto de 2016, para exigir que os treze
povos auto afirmados do baixo Tapajós tivessem direito à saúde219.
Mãe da pequena Yara, de dois anos, Luana Kumaruara teve um menino, o Kauê, em
janeiro de 2017. Marcelo Borari, que relatou sua percepção de racismo no II capítulo, é o pai
das crianças. Quando, durante entrevista, perguntei para ele como era possível combater o
racismo que sofriam, ele respondeu:
Só por meio da educação mesmo. O único caminho que tem é a própria educação. Não só na
escola, mas dentro da família. O fato de a gente ter colocado o nome da nossa filha Kumaruara
já é um processo de educação. De dizer pra ela que ser indígena não é aquilo que as pessoas
falam, mas é uma questão de orgulho, ter orgulho da sua própria história. Tentamos construir
isso desde agora.

Marcelo Borari falou sobre o papel fundamental da educação na construção de uma


Outra história, na qual a vergonha de ser passa a ser o orgulho de afirmar-se. Dar o nome da
etnia à filha, ou seja, nomeá-la Kumaruara significa construir um sentimento pessoal de
“orgulho da própria história”. Colocaram o nome indígena como segundo nome da filha, os
sobrenomes se mantiveram porque seria muito difícil substituí-los. Da época em que
frequentava a escola, Marcelo Borari só lembra de ter estudado pouca coisa sobre a história
indígena, quando a professora chegava e dizia que era o dia do índio220, ele conta “a gente não
teve uma boa formação. Eu tive que estudar pra poder me libertar desse contexto no qual eu
cresci. ” Essa libertação que veio ao afirmar se indígena tem a ver também com o poder de
nomear. O poder de dar o nome, de fazer existir. Para isso, Marcelo Borari e Luana Kumaruara
tiveram que “tomar” a palavra daqueles que a tinham como monopólio, na concepção de Fiori
(1983). Juntos partiram para o que Luana Kumaruara chamou de “terceiro parto”: o poder de

218
Órgão vinculado ao Ministério da Saúde.
219
As cenas da chegada da Polícia de forma truculenta foram gravadas. Dentre 65 indígenas que ocupavam o
prédio, a polícia prendeu somente o Poró. A Polícia arrancou os telefones celulares de alguns indígenas, inclusive
o da Luana. A Defensora Pública Ingrid Noronha contou que houve “uma série de irregularidades. Na tentativa de
fazer com que Poró assumisse uma culpa que não era sua, o delegado pressionou bastante. Ele queria que o detido
falasse o que ele queria ouvir e não o que, de fato, Poró tinha a relatar. ” Depoimento extraído da matéria “Como
um índio que protestava por acesso a saúde acabou preso em Santarém”, publicada em 16/08/16. Disponível em:
http://infoamazonia.blogosfera.uol.com.br/2016/08/16/como-um-indio-que-protestava-por-acesso-a-saude-
acabou-preso-em-santarem/

220
No Brasil, o dia do índio é 19 de abril, quando até hoje nas escolas as crianças são “caracterizadas” de
“índios” com pinturas e imitação de penas enfeitando as cabeças para lembrar e celebrar a origem indígena da
nossa populaçao.
252

colocar o nome de suas etnias no Registro Civil de Nascimento (RCN) de seu filho. Luana
Kumaruara divulgou, em sua conta em rede social, a importante conquista:

Essa semana foi o dia do "terceiro parto". Registradores civis de Santarém não estão preparados,
não tem informações precisas sobre o direito dos cidadãos indígenas à documentação do RCN.
Assim como demais parentes que procuram o serviço, tivemos que vivenciar momentos de
discriminação e negação da nossa nação. Até o chefe da FUNAI que nos acompanhava foi
desrespeitado. Foi com muita insistência e desconfortos, provando que eles estavam errados que
conseguimos sair com RCN do nosso filhote "Kauê Borari Kumaruara".

Figura 51: Parte da Certidão de Nascimento de Kauê Borari Kumaruara

Luana Kumaruara falou do direito que os indígenas têm de declarar e afirmar a


identidade através do Registro Civil de Nascimento. Ela agradeceu ao chefe da Funai, Alessio
Dantas, que manteve uma postura firme diante de tanto preconceito. Mas reclamou da condição
de até hoje terem que parecer “tutelados” para “provar” a identidade indígena. Dotada do poder
da palavra, ela sugere reunir CITA, Funai e MPF para mover uma ação junto aos cartórios de
registros para evitar que outros indígenas passem pelas “humilhações e constrangimentos” que
sofreram. No final da sua declaração, na rede social, Luana Kumaruara escreveu “resistir
sempre! Avante! SURARA! ”. SURARA!
253

Figura 52: Marcelo Borari, Luana Kamaruara, Yara Kumaruara e


Kauê Borari Kumaruara na barriga

Foto: autora (out 2016)


254

CONCLUSÕES

A tese revelou como o racismo contra o indígena é explícito socialmente e responsável


pela sonegação de direitos, embora muitas vezes não seja identificado como tal. Considerando
a vulnerabilidade como atitude, me sensibilizei com as vozes e circunstâncias das pessoas que
povoam esse trabalho. Os olhares, gestos e emoções associados aos relatos revelaram aspectos
do racismo que as vitima. Sentimentos foram considerados e na medida do possível registrados
no texto. O problema da pesquisa - entender a razão pela qual os indígenas afirmados do baixo
Tapajós sofrem a negação das suas identidades - foi construído com a ajuda da voz e
preocupação de um Arapium. “Por que nós somos considerados falsos índios? ”. Considerando
o ponto de vista dos indígenas, escrevi uma história Outra sobre as pessoas e seus territórios,
valorizando seus vínculos e suas próprias versões da história, que transpareceram nas
entrevistas e diálogos. Optei por uma escrita fluída com a intenção de facilitar a leitura e
devolver a tese para eles. Pretendi que esse trabalho fosse um aliado dos indígenas na luta pelos
seus direitos.
Revelei que há um quase generalizado desentendimento do racismo enquanto atitude
que atinge os indígenas. Descobri que eles identificam e combatem o racismo, mas nem sempre
usam a palavra. A partir de suas inserções no movimento indígena e na universidade, eles
começam a nomear de racismo as violências que sofrem. Percebi que o racismo é violência que
inferioriza o indígena. Abandonei eufemismos, como preconceito e discriminação. Os
preconceitos plantados na esfera da consciência e do desafeto levam à discriminação, que se
transforma em repulsa e ódio, enraizando o racismo. É o sentimento que leva à ação que torna
o racismo manifesto. Baseado no ódio e na indiferença para com o Outro, o racismo está
implícito nos discursos e comportamentos daqueles que negam as identidades dos indígenas.
O racismo foi dissociado da questão indígena porque o índio foi afastado dos estudos
raciais e destinado aos estudos da etnicidade. Uma coisa não invalida a outra. As
particularidades de cada etnia são tão importantes quanto o racismo que todos os indígenas
sofrem. Desconstruo a ideia de que raça se relaciona a fenótipo e que etnia se relaciona à cultura.
Mostro como fenótipo e cultura interagem na manifestação de racismo contra o indígena.
Aponto a universidade como espaço de violência através de abusos e desrespeitos, mas também
espaço de agregação e organização na luta antirracista empreendida pelos próprios indígenas
que nos últimos dez anos passaram a acessá-la. Foi a partir da universidade que os indígenas
começaram a denunciar o racismo e esclarecer que racismo é crime. A universidade tomada
pelos indígenas é lugar de pensamento decolonial.
255

Relacionei raça e classe ao associar o racismo ao desprezo pelo popular. O racismo no


Brasil perpassa toda a sociedade porque, além de subjetivado, é estrutural e institucionalizado.
É também naturalizado e se disfarça na ênfase dada à questão da classe. Apresento dados de
como o racismo se manifesta na esfera política e de como ele se espalha pela sociedade que não
se reconhece racista, mas aponta o racismo em terceiros. Revelo o racismo como o pilar das
desigualdades e injustiças sociais que atingem os que estão abaixo da “linha do humano”, na
“zona do não-ser”, na acepção de autores pós-coloniais e decoloniais. Nessa linha de
pensamento, apontei a “raça” como a linha que divide e rebaixa através da opressão aqueles
que têm sua humanidade negada e precisam lutar para garantir direitos básicos. O desprezo pelo
popular é o desprezo pelas pessoas que foram racializadas e inferiorizadas.
Trouxe a frase da irmã Emanuela Kumaruara para a tese a fim de entender o que é essa
“morte que mata a gente dentro”. Tracei um percurso histórico que une passado e presente
relatando a saga de gente desprezada na Amazônia. Estudando os povos indígenas, entendi que
não é possível fazer sociologia sem interpretar uma história que nem sempre está revelada.
Relacionei colonização com colonialidade e apresentei um passado que se estende até o
presente através da reprodução do poder, da dominação, do descaso e da opressão. Apresentei
o extermínio físico e cultural dos índios que os impediram ser, ainda que, a despeito de muitos
prognósticos, eles tenham ressurgido na história. Mostrei como o índio dotado de identidade,
língua e cultura própria foi descaracterizado, através das missões católicas, e transformados em
tapuios. Estes índios genéricos, falantes de uma única língua, o Nhengatu, foram aglutinados
para serem dominados e subordinados. A imensa aldeia dos Tapajó, onde hoje fica a cidade de
Santarém, foi amansada pelos jesuítas. O tapuio já assassinado pela “morte que mata dentro”,
já rejeitado em suas etnias, crenças, saberes e terras, foi mais uma vez ferido ao ser transformado
em caboclo. O Diretório Indígena, estabelecido pela Coroa Portuguesa, com o objetivo de
“civilizar”, proibiu que se falasse qualquer língua indígena sob pena de morte física. A morte
cultural já estava estabelecida. Dos indígenas foi arrancado o poder da palavra. Ficaram eles
sem seus nomes indígenas e foram obrigados a adotar sobrenomes portugueses. Como
resultado da mistura com o branco português foi chamado de caboclo, reduzido a uma condição
meramente biológica. Quando assim se reconhece, o caboclo o faz através dos “olhos do
branco”, que assim o nomeou. Estudos antropológicos ajudaram a consolidar essa
classificação. As identidades indígenas foram apagadas. Sem suas histórias, as pessoas se
misturaram em comunidades mestiças, e assim foram assimiladas subalternamente na
sociedade.
256

Busquei entender como foi formada a atual sociedade amazônica, e percebi que a
questão racial, desde sempre importante, foi determinante em dois momentos. O primeiro foi a
Cabanagem, onde reanalisei discursos e apontei no evento histórico características de uma
guerra racial que tingiu de sangue indígena e negro - o sangue dos cabanos - as areias das praias
de Cuipiranga, no baixo Tapajós, último reduto da insurgência dos desprezados contra o poder
dos brancos, na primeira metade do século XIX. Foi uma luta “do povo contra os poderosos”,
hoje retomada como discurso do movimento indígena. Outro momento na ocupação da
Amazônia foi o período da borracha, na transição do IX para o século XX, onde apontei o
imigrante nordestino, transformado em seringueiro, como um ser rejeitado pelas elites
“brancas” das capitais nordestinas. Durante o ciclo da borracha foi reforçado o
“branqueamento” das capitais amazônicas e se fortaleceu o desprezo pela cultura local. Padrões
e gostos europeizados marginalizavam o que era associado ao povo. Vale acrescentar que a
Amazônia, inferiorizada no contexto nacional, era o lugar considerado “sem gente” para onde
deveria ser enviado o povo do Nordeste, situado “abaixo da linha do humano”.
A desindianização, ocorrida desde a colonização, ganhou discurso e projeto oficiais
de formação da nação brasileira. Os índios, que até então haviam malmente sobrevivido, foram
submetidos a uma política oficial de transformação em brasileiros. Brasileiro passou a ser
antônimo de índio. O governo tratou assim: para ser brasileiro tem que deixar de ser índio. Para
o governo era preciso transformar o índio em trabalhador. Assim se efetivaria a mutação do
índio, visto como “selvagem”, em brasileiro “civilizado”. O projeto de “morte que mata dentro”
seguiu com a ideologia do progresso. Sintetizei como o discurso da modernidade estabeleceu
um projeto de branqueamento da população brasileira. Nesse projeto, a mestiçagem foi
incentivada como um dispositivo de poder para “limpar” o país da herança africana e indígena.
Destituídos de suas origens e de seus passados, os brasileiros foram conformados a atender o
padrão estético, moral, religioso, cultural do “branco, ” rejeitando outras heranças. Foram assim
dominados, valorizando-se o exótico em um ou outro resquício cultural, tornados a acreditar
que no país existia uma democracia racial. Entendi que a crença na democracia racial aliada a
crença de que só existe um tipo de racismo - o total apartamento entre os brancos e os negros –
funcionaram como instrumentos na consolidação da ideia de que no Brasil não existiria racismo.
As organizações sociais para a Constituinte foram determinantes para a garantia de
direitos na Constituição Federal de 1988. Direitos garantidos e adesão do Brasil à Convenção
169 do OIT propiciaram a emergência de vários grupos que se afirmaram indígenas, ressurgindo
na história. Pouco mais de 10 anos depois esse movimento de afirmação étnica chegou ao baixo
Tapajós, onde as pessoas já vinham politicamente sendo formadas dentro dos princípios da
257

Teologia da Libertação. Tinham já estabelecido uma luta pela terra. Nesse processo de
conscientização política, garantiram territórios coletivos e com eles vieram vínculos a
identidades positivadas, como é o caso dos indígenas e extrativistas. Com a afirmação de
vínculos identitários, irromperam polêmicas locais, em decorrência da sobreposição de
identidades e territórios. Para situar a luta pela Terra Indígena Maró, relatei a história da luta
pela terra coletiva e o confronto de identidades que ocorreu quando da afirmação indígena na
região. Contei detalhes dessa história, na forma de uma etnografia, povoando esse contexto com
gente e imagens. Relatei as violências sofridas pelos Borari e Arapium, por parte do Estado,
dos madeireiros, de parte da sociedade, e de como tudo isso é resultado do racismo que nega o
indígena. Escrevi a etnografia das polêmicas locais através as falas de extrativistas e indígenas,
colocando-os em diálogo, apesar de fraturas existentes. Fiz relatos detalhados para devolver às
populações que ali habitam o registro de um momento histórico, sugerindo brandura e respeito
entre semelhantes nas políticas de identidade e nos processos de construção de hegemonia.
Empreendi ainda o esforço de entender como os estudos de antropólogos brasileiros
tentaram responder a pergunta “quem é o índio? ”. Questionamento esse que sempre serviu aos
governos para permitir o avanço sobre seus territórios. Não cabe a terceiros, e muito menos a
juízes, dizer quem é o índio. Somente ao indígena cabe responder a essa pergunta, se ele quiser.
Os indígenas tomam o poder da palavra e se posicionam no mundo. Constroem sua própria
biografia. São insurgentes, decoloniais e desobedecem a ordem estabelecida com novas formas
de afirmar suas culturas, seus saberes, seus territórios e suas vidas. Nomeiam sua existência,
conquistando a condição de sujeitos históricos. Ressurgem na história e assim configuram a
chamada etnogênese. Os Borari e os Arapium afirmam-se indígenas, garantindo uma forma de
ser e viver na Terra Indígena Maró.
Na “zona do não-ser” estão aqueles que sofrem o racismo enraizado na sociedade e que
se reproduz subjugando gente. O racismo é o motor da negação da identidade indígena. Para
ser combatido, ele precisa antes ser reconhecido: “Fora Justiça racista. (...) Sou Borari Seu juiz.
Exijo respeito”. Os Borari e os Arapium, junto com outros indígenas do baixo Tapajós,
começam, a partir de suas conexões com o movimento indígena nacional e internacional, a
reconhecer e a nomear o racismo.
Os Borari, os Arapium e todo o movimento indígena do baixo Tapajós passam a
reconhecer e a nomear o racismo em práticas e discursos que pretendem nega-los. O racismo
contra o indígena é explicito socialmente sem a preocupação de quem o expressa ser taxado
racista. Essa é uma questão semântica. Racismo é uma palavra com estigmatizante significado
social. O racismo existe, nomear é revelar. Nomearam o racismo, mostraram a existência da
258

violência em “pormenores” do dia-a-dia, assim como em decisões oficiais autoritárias,


institucionalizadas, chamando-as de racistas. A palavra racismo carrega estigma e não contem
eufemismo. Com todas as letras expostas, eles passaram a confrontá-lo, para reafirmar: “eu
existo”.
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