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Belém
2017
Kércia Priscilla Figueiredo Peixoto
Belém
2017
Kércia Priscilla Figueiredo Peixoto
BANCA EXAMINADORA
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Prof.ª Dra. Maria José da Silva Aquino Teisserenc – Universidade Federal do Pará
Orientadora
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Prof.º Dr. Jonathan Warren – University of Washington
Avaliador externo
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Prof.º Dr. James Fraser – Lancaster University
Avaliador externo
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Prof.ª Dra. Edna Maria Ramos de Castro – Universidade Federal do Pará
Avaliadora interna
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Prof.ª Dra. Violeta Refkalefsky Loureiro - Universidade Federal do Pará
Avaliadora interna
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Prof.ª Dra. Vanderlúcia da Silva Ponte - Universidade Federal do Pará
Avaliadora externa suplente
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Prof.º Dr. Heribert Schmitz - Universidade Federal do Pará
Avaliador externo suplente
Aprovação: 23/03/2017.
À minha mãe Helena Silva, com amor.
AGRADECIMENTOS
A vida social deixa de existir. Embora próxima fisicamente (na mesma cidade), você nunca se
sentiu tão distante dos teus amigos.
A família parece coisa do passado de tanto que você se ausentou nos últimos tempos (anos...).
Você acha que não vai conseguir acabar, mas colocou na cabeça que sua vida depende disso.
Isso vira crença absoluta.
Você se sente inteligente, mas vive se atormentando com pensamentos “ai como sou lenta” ou
“ai como sou burra”.
Seu corpo e a cadeira passam a ser “uma coisa só”. Vai dormir tão cansada que nem sabe como
parou ali.
Acha que nunca está bom. Lê e relê 500 vezes e sempre tem alguma coisinha para arrumar.
Mas um dia você acaba a tese e corajosamente a entrega porque confia no seu argumento.
E vai feliz para uma banca porque você sabe que completou seu trabalho e que ele é forte.
Agradeço a Deus, a Nhanderú, ao espírito divino que me deu toda a luz e energia que precisei
através das pessoas que fizeram parte da minha vida nesses cinco anos.
Agradeço a cada uma das pessoas que me ajudaram com solidariedade, conversas, entrevistas,
informações e que foram infinitamente pacientes. Especialmente agradeço aos guerreiros Borari
e Arapium da Terra Indígena Maró, em nome de todos os guerreiros do Movimento Indígena
do baixo Tapajós e do Brasil.
Agradeço à minha orientadora Maria José Aquino Teisserenc, por toda a liberdade e paciência
que teve com uma aluna demasiada rebelde como eu.
Agradeço aos membros da banca professoras Vanderlucia Ponte, Edna Castro, Violeta
Loureiro, e professores James Fraser e Jonathan Warren, pelas preciosas considerações e por
terem valorizado a coragem desse trabalho.
Ao prof. Warren tenho profunda gratidão por ter me presenteado com seu livro “Racial
Revolutions”, que mudou o meu fazer acadêmico e que me influenciou com seu jeito simples
de dizer e escrever coisas importantes. Sou grata por muitas coisas, mas especialmente por ter
me recebido na Universidade de Washington no ano de 2015.
Agradeço à minha mãe Helena Silva, “doutora em maternidade”, e ao meu padrasto Nicolau
Gomes que amam o neto Gabriel e que assumiram nossos cachorros e suas proles com todo
carinho e cuidado.
Agradeço aos meus irmãos: Keila, Karla e Charles que dividiram comigo o momento mais
difícil de nossas vidas que foi a perda do nosso amado pai Carlos Silva, que eternamente nos
fará falta. Obrigada manas e mano por dividirem tristezas e as mais lindas e doces alegrias com
a família, que agora está mais linda com a chegada da nossa pequena Maysa.
Agradeço aos tios e tias, primos e primas. À minha querida avó Enerina que foi morar em outro
plano, mas que continua cuidando da gente.
Agradeço aos meus mestres Cristina Maneschy, Louis Forline, Kátia Mendonça, entre outros.
Que me incentivaram e me formaram.
Agradeço à queridíssima Raquel e ao Caleb, que paciente e carinhosamente dialogou, leu, fez
críticas necessárias e me ajudou a construir esse trabalho.
Agradeço a minha querida mestra Eneida Assis, que me entusiasmou com o conhecimento e
amor que tinha pelos povos indígenas. Ela partiu do plano terreno, mas tenho certeza que onde
estiver está alegre com essa conquista.
Agradeço ao Paulo e à Rosângela que foram sempre dispostos a me ajudar em tudo que precisei
na Secretaria do PPGSA.
Agradeço ao meu companheiro nessa viagem da vida Rodrigo, que me deu o mais profundo
amor e força que precisei. Que me encorajou e me animou afirmando enfaticamente “sua tese
é boa”. Que deixou flores para enfeitar minha mesa de trabalho e litros de café com chocolates,
que me ajudaram a me manter acordada. Ao Rodrigo sou profundamente grata por segurar
minha mão nessa caminhada, por ter me ouvido tanto, por ter lido, relido e comentado meus
textos, e especialmente por ter me dado o mais lindo presente que ganhei na vida: o Gabriel. Eu
sou completamente apaixonada pelo seu desejo de fazer deste um mundo melhor e pela
capacidade intelectual que ele investe nesse projeto, que me prende e me motiva. Outras coisas
eu deixo para falar ao pé do ouvido.
Cada dia eu agradeço pela beleza de ser mãe do Gabriel, uma criança que enche meus dias de
alegria e de amor. Que com uma paciência enorme me acompanhou em aulas, congressos e que
se alegrou nas viagens de campo. Ele cresceu junto com a tese. Muitas vezes ele espertamente
teve que falar “mamãe EU EXISTO! ”. Desculpa pelas ausências pequenino.
Agradeço à D. Rosa, que mesmo com uma história de vida sofrida mantém em si a alegria. Sou
grata por ter me ajudado a cuidar da casa e do Gabriel e por todas as orações que dedica a mim.
Agradeço aos meus amigos antigos e novos que encheram minha vida com a riqueza de suas
vidas e que agora dividem comigo essa alegria.
A todos que estiveram presentes e que me energizaram na minha defesa: graças a vocês também
mantive toda a calma e clareza que precisava.
La tesis busca entender el porqué de los indígenas autoreconocidos del Bajo Tapajos (Pará)
sufren la constante negación de sus identidades por parte de la sociedad y por sectores del
Estado. Investiga en la historia indígena del Brasil y de la Amazonia elementos que revelan el
racismo como factor determinante del no reconocimiento. Atraves del analisis de la lucha del
movimiento indígena por identidad y territorio, constata que el racismo contra el indígena es
socialmente explícito. Pero no siempre esa forma de violencia contra los indígenas es
reconocida como tal. Racismo es una palabra que carga un pesado estigma social. Es común el
uso de eufemismos, como preconcepto y discriminacion, para referirse al racismo que los
indígenas sufren. Los Borari y los Arapium del territorio indígena Maró reconocieron
públicamente como racista una sentencia judicial que les negaba la identidad. Al reconocer el
racismo los indígenas lo combaten. Al reconocerse con los nombres de sus etnias los indígenas
pasan a existir como sujetos históricos, autores de su propia biografía.
This thesis intends to understand the reason why the self-recognized Indians of the low Tapajós
region (state of Pará) suffer a refusal of their identities from part of society and from sectors of
the State. The thesis researches in the indigenous history of Brazil and Amazonia elements to
reveal racism as a determinant cause for the Indians having their recognition denied. Through
the analysis of the struggle of the indigenous movement for identity and territory, I realize that,
despite being socially explicit, racism is not recognized as such. Racism is a word that bears a
heavy social stigma. So, it is common to adopt euphemisms, such as prejudice and
discrimination, in order to refer to the racism the indigenous suffer. The Borari and Arapium of
the Indian Land Maró publicly declared that a judicial decision which denied their identity had
racism as a determining factor. Naming themselves with the names of their ethnicities, the
Indians stand to exist against racism, as historical subjects, authors of their own biography.
MAPAS
Mapa 1 BR 163 rota do agronegócio 147
Mapa 2 Áreas protegidas do baixo Tapajós 162
Mapa 3 Conjunto de glebas Mamurú-Arapiuns 208
Mapa 4 Proposta das comunidades para o ordenamento fundiário 225
Mapa 5 Regularização Fundiária das glebas Mamurú-Arapiuns 226
Mapa 6 Mapa de Uso da aldeia de Novo Lugar 244
FIGURAS
Figura 1 Patrícia Juruna 06
Figura 2 Dinael Arapium 08
Figura 3 PEC 215: quando os ruralistas decidem demarcar terras indígenas 09
Figura 4 Interior da Igreja de São Benedito 21
Figura 5 Dona Edite, famosa parteira na região 25
Figura 6 Aldeia de Novo Lugar, na Terra Indígena Maró. 26
Figura 7 Reunião na Aldeia de Novo Lugar 27
Figura 8 Ariana Karipuna 44
Figura 9 Iza Tapuia 54
Figura 10 Juliana Fidelis 55
Figura 11 Imagens de alguns dos cartazes da campanha 57
Figura 12 Márcio Saw Munduruku 58
Figura 13 Gráfico Desigualdade racial na Política 65
Figura 14 Mario Juruna 66
Figura 15 “Primeira missa no Brasil”, de Victor Meirelles (1860) 71
Figura 16 Monumento simbolizando a primeira missa no Brasil 72
Figura 17 “O Cabano Paraense” (1940) 91
Figura 18 “O vendedor de amendoins” (1990) 91
Figura 19 “Os retirantes”, Portinari (1944) 103
Figura 20 Vítimas da seca no Ceará 1877/78 104
Figura 21 Seringueiro com a bola de borracha 105
Figura 22 “Irmãos Witoto” 107
Figura 23 Crianças e adultos morriam ao lado da linha férrea 109
Figura 24 “Vida Nova na Amazônia” 110
Figura 25 “Mais borracha para a Vitória” 110
Figura 26 Chegada dos médicos cubanos no Brasil 126
Figura 27 Postagem racista em rede social 126
Figura 28 Ailton Krenak 133
Figura 29 Charge Latuff sobre a visita da relatora da ONU 134
Figura 30 Tuíra Kayapó 135
Figura 31 O porto da Cargill ao fundo 146
Figura 32 Márcia Wayana Kambeba 197
Figura 33 Dona Neide. Vice cacique de São José III 202
Figura 34 Interior do barco 203
Figura 35 Vendedor 203
Figura 36 Porto de escoação de madeira no rio Aruã 204
Figura 37 Balsa carregada de madeira 204
Figura 38 Barco “Creio em Deus” aportado na aldeia de Cachoeira do Maró 205
Figura 39 Barco pequeno segue para a aldeia de Novo Lugar 206
Figura 40 Autora viajando para Novo Lugar 206
Figura 41 Chegando na aldeia de Novo Lugar 207
Figura 42 Edil Soares Costa 211
Figura 43 Cacique Dadá e os indígenas fizeram placas demarcando a TI 217
Maró
Figura 44 Rosa e a sua filha Kamirran 222
Figura 45 Dona Joana 227
Figura 46 Irã Borari, carregado pelo pai, o cacique Dadá 229
Figura 47 Boraris carregando baldes de água do rio para o consumo diário 231
Figura 48 Borari com um tatu para o jantar da família 236
Figura 49 Boraris desenhando o Mapa de Uso 243
Figura 50 Poró Borari 247
Figura 51 Parte da Certidão de Nascimento de Kauê Borari Kumaruara 252
Figura 52 Marcelo Borari, Luana Kamaruara, Iara Kumaruara e Kauê Borari 253
Kumaruara na barriga
LISTA DE SIGLAS
INTRODUÇÃO 1
I - CAMINHOS DA PESQUISA 5
Revelando o racismo 8
Primeiros passos 19
Instrumentos metodológicos 28
O racismo na universidade 54
Racismo é crime 62
Desencontro 73
De índio a tapuio 75
De tapuio a caboclo 77
IV - CABANOS E SERINGUEIROS - DESTERRITORIALIAÇÃO E 82
DESINDIANIZAÇÃO
Cabanos 84
Seringueiros 99
A Constituinte 131
Etnogêneses 189
Território 220
Reconhecimento 236
CONCLUSÕES 254
BIBLIOGRAFIA 259
1
INTRODUÇÃO
O branqueamento é fazer do nativo ele querer ser branco e rejeitar o nativo como o feio, o
preguiçoso, o preto, o falso, o traidor. Mas, pouco a pouco eu estou falando sobre esse
branqueamento que é a morte étnica cultural. Morte que mata a gente dentro. As pessoas
continuam vivas sendo escravas. - Irmã Emanuela, uma das precursoras do movimento indígena
do baixo Tapajós.
As palavras da Irmã Emanuela ajudam a responder o que esse trabalho propõe: entender
o porquê dos indígenas auto afirmados sofrerem a constante negação de suas identidades.
Introduzo essa tese com uma pergunta subjetiva, que poderia servir de conclusão: “O que
aprendi com esse trabalho? ” Aprendi que contra o racismo é preciso ser vigilante porque ele é
também internalizado, agindo na esfera do inconsciente, e quando menos esperamos ele pode
despontar. É preciso identificar o racismo para confrontá-lo. Faço esse preâmbulo para falar
sobre as palavras da Irmã Emanuela, mas antes vou falar sobre o meu pensamento de quem era
ela.
Quando visitei a Terra Indígena (TI) Maró pela primeira vez, em julho de 2011, os
Borari me contaram que foi a Irmã Emanuela, junto com membros do Grupo de Consciência
Indígena (GCI)1, quem os visitou e os informou sobre como a Constituição Federal Brasileira
ampara o direito dos povos indígenas. Isso foi em janeiro de 2002, quando os moradores de três
comunidades no rio Maró ficaram sabendo sobre a possibilidade de autorreconhecimento
étnico, e sobre o movimento de afirmação indígena que crescia na região. A partir daquele
momento, os Arapium, de São José III e de Cachoeira do Maró, se uniram aos Borari, de Novo
lugar, e afirmaram suas identidades indígenas. O cacique Dadá explica: “O pessoal se
reconheceu, mas para nós não existe isso [de se reconhecer]: a gente nascemos e sempre fomos
indígena”. Sempre foram indígenas, mas que nesse exato momento de sua história receberam
da Irmã Emanuela a informação de que poderiam revelar suas identidades e assim acessar
direitos.
Ao saber da importância da Irmã Emanuela na história dos então 240 indígenas da TI
Maró, senti vontade de conhecê-la e entrevistá-la. Ela já não morava em Santarém, mas sim na
aldeia Solimões no rio Tapajós. Uma aldeia que se localiza fora do meu caminho de pesquisa
para o Maró. Ainda assim fiz planos de visitá-la, que não se concretizaram. Também ouvir
dizer, sem ter nenhuma confirmação, que ela não gostava muito de dar entrevistas, então me
limitei a escrever sobre a importância dela através das palavras dos Borari e dos Arapium.
1
Grupo criado em 1997 por professores, estudantes, religiosos e simpatizantes da causa indígena em Santarém.
Com o objetivo de resgatar, valorizar e divulgar a cultura e a identidade indígenas (VAZ, 2013).
2
Escrevi artigos nos quais, ao contar a história da TI Maró, ela aparecia como um personagem
importante. Ao escrever os artigos, a identificava como Irmã Emanuela do GCI, me dando conta
de que ainda não sabia seu sobrenome. Também nunca havia parado para pensar em como ela
era fisicamente. Até que no final da escrita da tese assisti o documentário “Terra dos
Encantados”2, que fala sobre a luta dos povos indígenas da região do baixo Tapajós, Pará, onde
está inserida a TI Maró.
Qual não foi a minha surpresa ao ver sua imagem no documentário e constatar que ela
é indígena! Irmã Emanuela Kumaruara, portadora de conhecimento e de palavras cheias de
consciência e sabedoria. Não deveria causar surpresa. Então fiquei decepcionada comigo
mesma porque, mesmo tendo ideais antirracistas, por alguma razão inconsciente, a imaginei
branca. Explico: o fato de em algum momento tê-la imaginado branca deve ter ficado em um
canto despercebido da mente, tendo se revelado diante da surpresa ao ver sua imagem na tela.
Quem sabe eu tenha feito alguma associação mental e imaginado que fosse mais uma
missionária estrangeira na Amazônia. Mas, por que a imaginei branca? Logo eu que me sentia
esclarecida e tinha certeza que já não associava só ao branco determinadas características? Me
assustei ao perceber que involuntariamente, mesmo inserida com minha pesquisa no contexto
indígena e estudando o racismo, havia associado ao branco o conhecimento, a pessoa que leva
a informação, entendedora de direitos.
Uma vez mais percebi que, embora raça tenha sido desconstruída do ponto de vista
biológico, ela persiste enquanto “raça social” (GUIMARÃES, 2002). Longe de qualquer
abordagem pseudocientífica biológica sobre raça há muito desconstruída, raça é um conceito
nativo, que só faz sentindo em um contexto específico, prático, concreto, com um sentido
histórico para um determinado grupo humano (idem, 2003), nesse caso os indígenas brasileiros.
O racismo como estrutura de poder não se limita, explicitamente, a inferiorizar características
físicas, associando a ela comportamentos desprezíveis, mas também é internalizado desde que
nascemos, e por isso é mais forte do que imaginamos. Se aprendemos o racismo desde a
infância, ao acreditar que as melhores características físicas, morais, intelectuais e culturais são
dos brancos, podemos também desaprendê-lo, ou melhor, enfrentá-lo.
Entendi que para isso primeiro é preciso identificá-lo. Somente reconhecendo o racismo
é possível combatê-lo. De forma que essa tese pretende revelar como o racismo contra o
indígena foi inculcado na sociedade, de que forma ele se manifesta, quais as suas consequências
e como os indígenas respondem em um contexto de autorreconhecimento e afirmação de
2
Dirigido por Clodoaldo Corrêa. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=sZUz2I8j36s. Publicado em
23 de dezembro de 2016.
3
identidade. Introduzo essa tese, com a ajuda das palavras da Irmã Emanuela Kumaruara, que
esclarecem o que está por trás do racismo: o ideal de branqueamento, a “morte étnica cultural”.
Essa “morte”, que a ideologia do branqueamento induz, é um sistema de opressão e dominação.
A tese revela que os indígenas começam a reconhecer e a nomear as violências que
sofrem como racismo, abandonando eufemismos no contexto social brasileiro, como
preconceito e discriminação. Nomear é ação. Para os indígenas a nomeação é uma forma de
combater o racismo. Os indígenas entendem o racismo como um mecanismo de poder e por
isso ampliam seu conceito para incluir o não reconhecimento de suas identidades.
Entendendo que o racismo atuou no extermínio físico e cultural dos povos indígenas e
que hoje ele se expressa na negação da identidade indígena àqueles que se auto afirmam, a
intenção desse trabalho é compreender o papel do racismo direcionado aos indígenas e de que
forma eles o reconhecem e o combatem. Para isso apresento a estrutura da tese, em capítulos:
I – Caminhos da pesquisa - No primeiro capítulo escrevo sobre como o meu percurso pessoal
e acadêmico contribuíram para a escolha e definição do objeto de pesquisa. Apresento a
metodologia utilizada e o campo de pesquisa. Elenco conceitos que embasam a tese.
II – “Racismo contra indígena. Isso existe? ” - O segundo capítulo esclarece o racismo contra
o indígena. Aponta como na sociedade brasileira o indígena não é visto como vítima do racismo.
Demonstra como o racismo foi relacionado à população afrodescendente, e o indígena foi
estudado no plano de suas etnias.
III – “Morte que mata a gente dentro” - Através de um panorama histórico, o terceiro capítulo
apresenta o extermínio físico e cultural dos povos indígenas. Fala dos quinhentos anos do Brasil,
do desencontro no contato, da colonização, associando passado e presente.
IV – Cabanos e Seringueiros: desterritorialização e desindianização - Da guerra cabana que
foi racial à luta solitária dos seringueiros, o capítulo apresenta a gente que povoou o baixo
Tapajós. Explica como a Lei de Terras de 1850 contribuiu para o desamparo dessa população
inferiorizada. Finalmente expõe como o Estado, através do Serviço de Proteção aos Índios, foi
agente determinante da desindianização e responsável pelo genocídio indígena do século XX.
V – Progresso: palavra de ordem de uma ideologia – O capítulo mostra como a ideia de
progresso no Brasil se vinculou ao racismo na construção da nacionalidade. Progresso aponta
para um futuro que nunca chega. Em nome dele a população brasileira foi planejada e
branqueada. A mestiçagem foi um dispositivo para alcançar esse objetivo. O índio foi
romantizado e anulado. Direitos indígenas foram conquistados com a Constituição Federal.
Porém, o racismo foi naturalizado e se reproduz desprezando gente em nome de um retórico
desenvolvimento.
4
VI- História da luta coletiva - A atual configuração de territórios protegidos no baixo Tapajós
resulta de lutas em momentos importantes da história local. A população foi formada
politicamente dentro dos princípios da Teologia da Libertação. Organizadas em Comunidades
Eclesiais de Base os moradores se mobilizaram para a conquista da terra. Tomaram o Sindicato
dos Trabalhadores Rurais e no final dos anos 1990 conquistaram uma terra coletiva: Reserva
Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns.
VII – Sobreposições: identidade e território – A partir da criação da Resex os moradores
começaram a adotar a identidade extrativista. Um ano depois da criação da reserva, algumas
comunidades passaram a se reconhecer indígenas. A partir de então houve uma sobreposição
de identidades e de territórios que gerou conflitos e polêmicas.
VIII – O Movimento Indígena do baixo Tapajós – Expõe a história e trajetória do Movimento
Indígena na região do baixo Tapajós. Analisa o fenômeno da etnogênese através de um percurso
na Antropologia e do seu papel em relação ao “outro”.
IX – Terra Indígena Maró – A luta e afirmação dos Borari e dos Arapium para a demarcação
da Terra Indígena Maró se insere na luta pela terra e por afirmação de identidade no baixo
Tapajós. O racismo está presente nas instituições que desprezam os indígenas, seja através do
completo descaso, deixando de atender necessidades básicas, seja por uma presença que impõe
normas e decisões que negam aos indígenas identidade e direitos.
X- Nomear é combater – Como sujeitos políticos os indígenas identificam e nomeiam o
racismo abandonando eufemismos. Assim o combatem. Nomeiam a eles mesmos com os nomes
de suas etnias e passam a ser autores de suas próprias vidas.
5
I - CAMINHOS DA PESQUISA
Somos o que somos. Temos orgulho de ser o que somos e não precisa juiz vir dizer o que somos
e o que não somos. Essa é a nossa história. Essa é a nossa vida. Estamos no nosso território, na
TI Maró. E por isso vamos seguir na luta. Somos Terra Indígena Maró e daqui não vamos sair!
- Poró Borari, 2015.
3
A sentença foi publicada no dia 03 de dezembro de 2014.
6
As 106 (cento e seis) páginas usadas para justificar a sentença evidenciam uma
combinação de senso comum e ideologia, na qual a ideia de progresso e desenvolvimentismo
estatal ferem os direitos dos indígenas resistentes. O conflito que ocorre em relação à TI Maró
reproduz a histórica relação de desrespeito do Estado brasileiro frente aos povos originários. A
afirmação do juiz gerou indignação e revolta nos indígenas, que se adornaram com cocares e
pinturas corporais e cantando gritos de guerra – SURARA! SURARA! – saíram em passeata
pelas ruas de Santarém4. Protestaram até o prédio da Justiça Federal, onde discursaram e
queimaram a sentença. Estavam munidos de coragem, de arcos e flechas e carregavam faixas e
cartazes com os dizeres “Eu existo”. Conforme afirmou Enoque Arapium durante a
manifestação: “Nós estamos aqui para lutar pelos nossos direitos. Para que as pessoas
reconheçam nosso direito. Não neguem a nossa existência. Nós existimos sim” (BARBOSA,
20145) .
As ideias expressas na sentença e que permeiam pensamentos e atitudes fazem parte de
um assimilacionismo que é fruto da ideologia nacional. Naturalizado na mente e passado de
geração em geração, o assimilacionismo leva a crer em absurdos como a ideia de que o índio
na cidade deixa de ser índio, ou que para ser índio a pessoa tem que ter cem por cento sangue
indígena, senão ela é denominada de qualquer outra coisa – ribeirinho, caboclo, ou
simplesmente brasileiro – menos índio.
Figura 1: Patrícia Juruna
4
No dia 09 de dezembro de 2014.
5
Depoimento extraído do vídeo “Chama Surara”, produzido por Bob Barbosa, publicado em 28 de dezembro de
2014. Link https://www.youtube.com/watch?v=2x1pYKi3p6Q
7
Aos indígenas conferem rótulos que não condizem com a realidade, conforme explica
Patrícia Juruna, durante manifestação contra a sentença na cidade de Santarém:
Preservamos a nossa cultura, os nossos costumes e também participamos do mundo não
indígena, mas nem por isso a gente deixa de ser indígena, pelo fato de estar convivendo na
sociedade não indígena. Então, muita gente tem preconceito, que não pode ver um indígena com
celular, não pode ver um indígena acessando a internet. 6
Os estereótipos, que rotulam o indígena até hoje, são sustentados pela mídia e pelo
sistema educacional e geraram um comportamento social de apartamento e completo descaso
em relação às questões indígenas por parte da sociedade brasileira, que considera os indígenas
como o “outro” distante e absolutamente diferente. Permeando pensamentos e comportamentos
está o senso comum que congela o indígena ora no passado ora dentro da mata. Ou ambos.
Essas ideias estão na base da negação da identidade indígena para aqueles que se auto afirmam.
Dinael Arapium manifestou preocupação em entender o porquê de terem suas identidades
constantemente negadas:
Imagina só o questionamento que poderia ser feito, as dúvidas que poderiam ser tiradas, se
Santarém mandasse seus estudantes de Antropologia ou de Ciências Sociais viver dentro de uma
comunidade que se reconhece como indígena. Pelo menos tiraria essa visão que nós somos
falsos índios. Mas, infelizmente a gente não consegue trazer essas pessoas pra que faça uma
pesquisa ou comece a conviver pra descobrir o porquê que nós somos considerados falsos
índios. (Destaque da autora).
Figura 2: Dinael Arapium
6
Depoimento extraído do vídeo “Chama Surara”, produzido por Bob Barbosa, publicado em 28 de dezembro de
2014. Link https://www.youtube.com/watch?v=2x1pYKi3p6Q
8
Revelando o racismo
7
Instituição da Igreja Católica que apoia a organização política dos indígenas.
8
Divulgado em 31/08/2015. http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8302
9
impunes. Os indígenas estão na zona do não ser de Fanon, explicada por Grosfoguel: “Na zona
do ser temos formas de administrar os conflitos de paz perpétua com momentos excepcionais
de guerra, enquanto na zona do não ser temos a guerra perpétua com momentos excepcionais
de paz”9 (GROSFOGUEL 2011, p.100, tradução da autora). Por parte de setores do Estado há
uma criminalização dos indígenas, efetivada pela polícia, mas sustentada por grande parte dos
parlamentares que compõem a bancada ruralista, a qual não cansa de propor projetos de lei que
atacam diretamente os direitos indígenas.
Assim, apesar de a Constituição Federal ter representado um marco no reconhecimento
dos direitos indígenas, a história desses povos segue como um continuum de negligência e
desrespeito por parte do Estado, atitude que acaba servindo de modelo para outros setores da
sociedade. Conquistas históricas, como os direitos garantidos pela Constituição Federal de
1988, tornam-se frágeis diante de Projetos de Emendas Constitucionais, como a PEC 215, e de
projetos de lei que visam anular os indígenas. A charge de Latuff (2013) expressa a intenção
da bancada ruralista de enterrar de uma vez os povos indígenas:
Figura 3: PEC 215: quando os ruralistas
decidem demarcar terras indígenas
9
“En la zona del ser tenemos formas de administrar los conflictos de paz perpetua con momentos excepcionales
de guerra, mientras que en la zona del no-ser tenemos la guerra perpetua con momentos excepcionales de paz”
10
Lei (PL) vão, na surdina, sendo encaminhados para destruir os direitos dos indígenas, e
consequentemente, eles próprios. A violência não cansa de os perseguir. A líder Guarani
Kaiowá, Valdelice Veron, denuncia a ameaça que as lideranças indígenas receberam de um
deputado federal na Câmara dos Deputados, quando participavam de audiência da Comissão
dos Direitos Humanos, em 5 de outubro de 2015:
Eu quero aqui (...) registrar uma ameaça que nós líderes indígenas Guarani Kaiowá e Terena
sentimos aqui dentro da audiência da parte do Sr. Eduardo Bolsonaro, quando ele disse ‘eu não
tenho medo, eu sou da polícia’ (...). Olhem bem pra nossa cara, pra cara dos guerreiros Guarani
Kaiowá (...) que se um de nós tombar foi na frente de vocês essa ameaça. Estão tentando
intimidar nós aqui na casa. Quando o Sr. Eduardo Bolsonaro falou ‘olho no olho’, não existe
olho no olho. Meu pai o cacique Marcos Veron foi torturado, espancado e morto por um
latifundiário sem coração. Nós mulheres indígenas da TI Taquara fomos todas violentadas,
abusadas. Não existe olho no olho. Existe uma desigualdade (...). Quando ele diz ‘eu sou da
polícia’, a gente não aceita isso aqui. (...) A gente é ameaçado na nossa aldeia, mas a gente é
ameaçado aqui nessa casa. (...) Não existe morte dos dois lados. Existe morte de líderes
indígenas. Existe morte de mulheres e crianças indígenas Guarani Kaiowá e Terena, mas não
existe morte de latifundiários. Ele não pode sair ameaçando a gente aqui. Isso é atitude de
pistoleiro.
Tudo isso que Valdelice Veron denuncia é racismo, é colonialidade do poder. A fala do
deputado Bolsonaro, durante uma solenidade10, revela: “índio não fala nossa língua, não tem
dinheiro, é um pobre coitado, tem que ser integrado à sociedade, não criado em zoológicos
milionários”11. Hoje os povos indígenas protestam, pressionam e fazem atos públicos,
fortalecidos por uma rede tecida nacional e internacionalmente, que os une e os articula com
algumas instituições12.
Desde a década de 1970, se reverte a percepção de que os povos indígenas estariam à
beira da extinção13. De lá pra cá eles têm tido um crescimento expressivo, confirmado a cada
novo Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse fato surpreendente
significa uma inflexão na história. O número de indígenas cresce especialmente em razão do
10
Em homenagem recebida no Mato Grosso do Sul.
11
Publicada em 22/04/2015. Disponível em http://www.midiamax.com.br/politica/256370-indio-pobre-coitado-
vive-zoologicos-milionarios-bolsonaro.html
12
Walter Mignolo, na introdução de Maximilian Forte no livro “Indigenous Cosmopolitans: Transnational and
Transcultural Indigeneity in the Twenty-First Century (2002)”, afirma que “… hoje ‘vozes silenciadas e
marginalizadas estão elas mesmas se colocando dentro do diálogo de projetos cosmopolitas, em vez de esperarem
para serem incluídas” (tradução da autora) [“... today ‘silenced and marginalized voices are bringing themselves
into the conversation of cosmopolitan projects, rather than waiting to be included”] (FORTE, 2002, p. 8). Essa
citação é interessante porque reconhece o poder descolonizador dos indígenas, que assumem processos de
autoafirmação mundo afora. Enquanto os indígenas ressurgidos na história assumem seu protagonismo, o fazem
estabelecendo alianças que reúnem vários outros atores. Esse é o caso dos Borari e Arapium da TI Maró, que
conquistaram e lutam para assegurar seu território no oeste do Pará.
13
De acordo com Darcy Ribeiro, em 1957, a população indígena havia sido reduzida a menos de 100 mil
indivíduos (RIBEIRO, 2009).
11
fenômeno de ressurgimento de povos na história, que pareciam ter perdido suas raízes. Isso dá
significado ao movimento indígena no baixo Tapajós. No entanto, persistem na sociedade
crenças e atitudes sustentadas pelo senso comum, e segue a violência mediante exclusões
cotidianas, negação de direitos, assassinatos e criminalização das lideranças.
O movimento indígena denuncia o racismo institucional que permeia a sociedade
através das instituições. Mas não é só um tipo de racismo que está em jogo. É mais complexo. CIT*
O racismo está interiorizado nas pessoas e expresso nas atitudes. Ele está nas nossas mentes,
comportamentos e nas instituições. De acordo com Karl Monsma:
O racismo não é somente uma ideologia; é um aspecto do habitus. O habitus racial consiste em
categorias raciais de percepção dos outros e de si mesmo; um conjunto de relações entre essas
e outras categorias, classificando as capacidades, tendências comportamentais e qualidades
morais; disposições corporais e emoções - de atração ou repulsão, confiança ou suspeita,
segurança ou medo, etc. - a respeito das pessoas assim categorizadas; e esquemas de ação a
respeito delas. (2013, p. 7).
Produtos da dominação por parte dos europeus, essas construções foram consideradas
categorias “científicas” e “objetivas” de significado a-histórico, como fenômenos naturais e não
da história do poder. Contudo, a definição de colonialidade do poder foi e é um marco no qual
operam outras relações sociais, de classes ou de estamentos:
14
Estas ideas han configurado profunda y duraderamente todo un complejo cultural, una matriz de ideas, de
imágenes, de valores, de actitudes, de prácticas sociales, que no cesa de estar implicado en las relaciones entre las
gentes, inclusive cuando las relaciones políticas coloniales ya han sido canceladas. Ese complejo es lo que
conocemos como "racismo". (QUIJANO, 1992, p.2)
13
O pensamento descolonial entende que o racismo é o pilar mais forte das sociedades
fundadas pelo colonialismo. Para muita gente, penoso é reconhecer essa condição. Frantz Fanon
em “Pele negra máscaras brancas” (2008 [1952]) mostra que racismo e colonialismo são modos
socialmente construídos de ver o mundo e viver nele. A noção de racismo associada ao
expansionismo europeu atende a análise do racismo em determinadas partes do mundo e
desconsidera outras possibilidades de racismo exercidas em outros contextos temporais e
geográficos.
A definição de racismo oferecida por Fanon resolve esse problema, pois ele conceitua o
racismo como o estabelecimento de uma hierarquia de superioridade e inferioridade sobre a
linha do humano, que vem sendo reproduzida ao longo do tempo. Os que estão em posição
superior, nesse mundo hierarquizado, são considerados seres humanos por excelência, com
direitos plenos em todas as esferas da vida, sejam eles civis, trabalhistas, de cidadania, inclusive
os direitos humanos. Quem é situado em posição de inferioridade tem a sua própria humanidade
questionada, ou melhor, negada (FANON, 2008 [1952]). Fanon analisa a construção do negro
como negro, dizendo que, não fosse o colonialismo, não haveria motivos para que as pessoas
de várias origens geográficas pensassem em si mesmas em termos raciais.
Transporto esse pensamento para o caso dos povos nativos. Nativos também eram os
negros, mas índios foram chamados os nativos das Américas. A construção do índio como índio
é também uma construção do colonialismo que igualou e destinou a todos os povos locais um
lugar comum. Lugar que o naturaliza para desumanizá-lo e quando os humaniza os inferioriza.
Lugar que funde sua imagem no ser primitivo e o associa ao atraso, desmerecedor de uma
sociedade que busca o progresso, portanto. Lugar comum que fabrica razões para negá-lo.
A negação da existência racismo é uma dessas razões universais construídas para negá-
lo. Fala Godon (2008 [1952]) que durante muito tempo o racismo foi visto como doença
15
En efecto, si se observan las líneas principales de la explotación y de la dominación social a escala global, las
líneas matrices del poder mundial actual, su distribución de recursos y de trabajo entre la población del mundo,
es impossible no ver que la vasta mayoria de los explotados, de los dominados, de los discriminados, son
exatamente los membros de las “razas”, de las “etnias”, o de las “naciones” en que fueron categorizadas las
poblaciones colonizadas, en el processo de formación de esse poder mundial, desde la conquista de América en
adelante. (QUIJANO, 1992, p. 12).
14
16
Entre os membros do grupo modernid/colonialidad estavam os sociólogos Aníbal Quijano, Edgardo Lander,
Ramón Grosfoguel y Agustín Lao-Montes; os semiólogos Walter Mignolo y Zulma Palermo, a pedagoga Catherine
Walsh, os antropólogos Arturo Escobar y Fernando Coronil, o crítico literário Javier Sanjinén e os filósofos
Enrique Dussel, Santiago Castro-Gomés, María Lugones e Nelson Maldonado- Torres.
17
“One view is that race is not important: that is little racism and little sense of racial identity for most people.
Indigenous people may have their particular ethnic identities, based on local cultures, and people in general may
recognize phenotypical differences that are linked to skin color and other typically “racial” features, but none of
15
Para alcançar a linha do humano no Brasil não basta a negros, índios e seus descendentes
ascender economicamente e socialmente. O racismo também se instala nas intersubjetividades,
this creates a society in which racial identities are the basis for significant social divisions and exclusions (…).
The opposing view is that, while Latin American racism is different from that in the US, it still operates to create
significant disadvantage for indigenous and black people as collective categories”. (WADE, 2008, p. 182)
18
“El racismo es una jerarquía de superioridad/inferioridad sobre la línea de lo humano” (GROSFOGUEL 2011,
p. 98)
19
“Dependiendo de las diferentes historias coloniales en diversas regiones del mundo, la jerarquía de
superioridad/inferioridad sobre la línea de lo humano puede ser construida con categorías raciales diversas. El
racismo puede marcarse por color, etnicidad, lengua, cultura o religión. Aunque el racismo de color ha sido
predominante en muchas partes del mundo, no es la forma única y exclusiva de racismo”. (ibidem)
16
20
“Las élites occidentalizadas del tercer mundo (africanas, asiáticas o latinoamericanas) reproducen prácticas
racistas contra grupos etno/raciales inferiorizados donde dependiendo de la historia local/colonial la inferiorización
puede ser definida o marcada a través de líneas religiosa, étnicas, culturales o de color” (GROSFOGUEL, 2011,
p.98)
17
O racismo está na base das violências que acometem os Borari e os Arapium. A tese
explica que é pelo direito de ser indígenas que eles se insurgem ao reconhecer e confrontar os
mecanismos de reprodução do racismo. Contudo, ainda prevalece na sociedade a ideia de que
“se você fala em raça, você é racista”. Por isso, uma sensação de insegurança me acompanhou
durante o tratamento do tema. A escolha das palavras deveria ser calculada para evitar qualquer
entendimento errôneo, que poderia reduzir significados a essencialismos. Embora eu explique
o sentido de cada categoria que uso ao longo do trabalho, optei por construir um glossário para
afastar qualquer possibilidade de mal-entendidos. O glossário que segue servirá como
instrumento de orientação para a tese.
A formação do povo brasileiro foi estimulada por políticas oficiais voltadas a anular o
negro e assimilar o índio na comunhão nacional. O incentivo à miscigenação tinha o claro
propósito de branquear a sociedade anulando as formas de organização societárias, que não
fossem as do colonizador europeu. Através da morte física ou cultural de afrodescendentes e
indígenas, a sociedade foi homogeneizada atendendo ao desejo de uma “integração nacional”.
A academia teve papel relevante na construção da nacionalidade brasileira, pois a ideia de
democracia racial persiste, como uma marca profunda, mesmo anos depois de ter sido
desconstruída e denunciada como um “mito” por Florestan Fernandes (2008 [1964]).
Martiniano J. Silva, em “Racismo à brasileira: raízes históricas” (2009), revela o
racismo no Brasil:
Além de excluir o negro e convertê-lo em “anomalia social” ou “escória da sociedade”, impediu
aos índios a posse e o domínio da terra que era deles, para ficarmos só nesse, em que pese sutil
e disfarçado intuito de recusar a existência de um povo, primeiro tomando suas terras, em
seguida dizimando-o pelo lento, mas fulminante, processo de desculturação e caboclização,
quando é transformado em camada subalterna da sociedade, já destribalizado e sem sua robustez
original, muito bem contrastada com nosso caboclo desdentado, desnutrido e maltrapilho.
(ibidem, p. 53)
díspares, gerando subjetividades dóceis, mal delimitadas e manipuláveis” (2002, p. 3). Esse
conjunto de saberes e estratégias serviu para garantir o poder aos brancos, ao diluir índios e
negros na mestiçagem no desenhar da nossa identidade nacional. Tal dispositivo atravessou o
tempo e hoje se reflete na dificuldade de lidar com a questão racial brasileira.
Antes de continuar, preciso esclarecer quem é esse branco, detentor de poder e
privilégios, em uma sociedade não marcada pelo dualismo branco x negro, no sentido
essencialista dos termos. O branco é uma identidade racial que não é entendida como raça. É
uma condição de neutralidade onde tudo que é normal, bonito, civilizado, inteligente, capaz é
branco. É a condição humana por excelência, em uma neutralidade que concebe a humanidade
como branca, inferiorizando o negro e o indígena como “outros”.
Muitos no Brasil almejam a branquitude, tanto em termos essencialistas, que envolvem
questões fenotípicas - cor de pele, cabelos, traços -, mas principalmente como forma de estar
no mundo, de entender o mundo, de desejar o mundo. Então, branco não é questão apenas de
cor, mas de ideologia, que Lia Schucman (2012), na sua tese, explica como branquitude. Essa
ligação, entre compreensão do mundo e desejo de ser, garante aos brancos poder e privilégios.
Faço esse breve preâmbulo sobre como se constituiu a miscigenada sociedade brasileira para
situar minha própria ligação ao tema de minha pesquisa.
Primeiros passos
Racismo nunca foi questão discutida na minha família nem entre meus amigos. Nunca
foi um problema. Nos círculos que eu frequentava as pessoas eram misturadas, mas também
havia negros. Destaquei a preposição “mas” intencionalmente para confirmar a distinção racial
que damos ao negro. Frases como “ele é negro, mas um bom rapaz”, “ela é negra, mas de
confiança”, eram as formas sutis de distinguir o negro e colocá-lo em uma posição de
“normalidade”. Por outro lado, ouvia alguém comentar “prenderam o assaltante, mas ele nem
parece ladrão. É até um rapaz bonito, branco”, mas ninguém problematizava isso como racismo.
Outras formas pesadas de racismo eram difundidas em apelidos ou caracterizações, que
inferiorizavam as características fenotípicas ou comportamentais atribuídas aos negros e aos
índios. Nos círculos sociais não havia a presença indígena, afinal a sociedade brasileira tratava
o índio como se não fosse um ser social. O comum era ouvir “fulano não sai de casa, ele parece
índio”, sobre as pessoas que não interagiam socialmente. Qualquer resquício cultural associado
ao branco, fazia com que sua indianidade fosse arrancada. A destribalização e o morar na cidade
20
21
O bairro foi criado quando negros foram remanejados a força de uma área na frente da cidade em 1940. Eles
foram destinados um uma área de alagamento, cheia de lagos, em um claro movimento de segregação racial. Na
década de 1980 já era um bairro central e urbanizado, mas no fim da nossa rua existia um lago. Hoje não há mais
lago no bairro do “Laguinho”.
22
Sacaca é também nome de uma planta medicinal amazônica. A palavra também significa um pajé com alto poder
de cura que une remédios naturais e espiritualidade. O Seu Sacaca já faleceu e hoje em Macapá existe o museu
“Sacaca” em sua homenagem.
23
Movimentos de tração para colocar o osso de volta no lugar, mas não só. Puxação também é uma massagem
associada a um ritual de reza. Em Macapá contávamos muito com esse tipo de cura realizado pelas benzedeiras.
24
Música e dança dos escravos. As letras das músicas do Marabaixo são críticas, como esse trecho que segue: “A
avenida Getúlio Vargas tá ficando que é um primor, as casas que foram feitas foram só pra morar doutor”.
21
Na esfera do simbólico, o racismo agia. Assim, como age na mente de tantos brasileiros.
Atuando no plano simbólico, as pessoas não percebem nitidamente o racismo, mas o
reproduzem em relação ao outro e também a si, pois de alguma forma se sentem desconfortáveis
com a “desagradável imagem de si mesmo” (ARRUTI, 1997). Fruto da fusão racial em um
projeto de embranquecimento da raça, os brasileiros, em geral, reconhecem suas origens
africanas e indígenas como algo distante: “matrizes raciais” que formaram a sociedade, com as
quais eles não se identificam diretamente. De modo geral, a história quando lembrada ou
evidenciada tem a ver com alguma origem europeia. Embora nossos traços físicos sejam
evidentemente misturados, é muito difícil ter nítido conhecimento de algum bisavô que tenha
sido negro escravizado ou mesmo indígena. Sobre algum avô, bisavô português, espanhol,
italiano, japonês ou até mesmo árabe é mais fácil encontrar algum brasileiro para contar, se
orgulhar e até ter fotos para mostrar.
Ao me deparar com essa percepção de pesquisadores estrangeiros (WARREN, 2002),
bateu em mim um sentimento de estranheza e me dei conta que falar sobre meus antepassados
era missão impossível. Lembrei-me do quanto era difícil fazer trabalhos da escola nos quais
tivesse que construir minha árvore genealógica. Árvores genealógicas parecem ter sido feitas
para brancos, pois alguns pontos de interrogação preenchiam folhas não muito distantes do meu
nascimento. Era comum dirigir perguntas à minha mãe que por sua vez me mandava perguntar
para a minha avó materna, quem com destreza cortava o assunto e estabelecia como norma o
“não gostar de falar do passado”. Recordar é de certa maneira reviver. Como o passado pode
22
trazer dores à tona, para minha avó era melhor não falar dele. Mas, como entender o presente
desconhecendo o passado?
Da minha avó paterna pouco sei, não a conheci. Lembro de uma única foto que se perdeu
no tempo. Ela era negra. Meu avô paterno morreu quando eu ainda era bem pequena. Lembro
dele branco, mas tampouco tenho fotografias. Quero dizer que as fotos que se perdem no tempo
têm a ver também com a condição social, e não apenas racial. Raça e classe estão
intrinsecamente conectadas no Brasil. Do meu avô, me chamava atenção o sobrenome
“Tracaioli”, que não parecia brasileiro. Eu, de pele não branca, mas também não preta, com
evidentes traços negros e indígenas, sou a combinação25.
Entender de que forma se deu essa combinação não interessava tanto, afinal sou
brasileira. Filha de uma sociedade formada para negar, distanciar, anular, apagar histórias de
povos excluídos, massacrados, exterminados. Onde se estabeleceu um senso comum como a
continuidade do corte das raízes negras e indígenas e de valorização da origem branca. E que
por isso é um país em que ainda vigora a supremacia branca.
Vale lembrar que o branco no Brasil é mais uma vontade de ser elite do que uma
realidade fenotípica e genotípica. A branquitude é ideologia. Certa vez ouvi de uma professora
que o Brasil é um país de história curta porque apagamos a história. Por que a apagamos? Imersa
nesse contexto descobri que é importante falar da formação da sociedade brasileira para
entender como vem se perpetuando o senso comum que percebe os indígenas como seres muito
distantes.
Na minha infância convivi com um avô materno doce e afetuoso. Apesar da sua pele
morena, traços físicos e cabelos parecerem nitidamente indígenas, eu nunca havia ligado sua
vida aos índios e não sei a sua história. Sou do Amapá, estado amazônico de criação recente26,
cujas florestas são as mais preservadas do Brasil e onde vários grupos indígenas resistiram.
Quando pequena, no caminho diário para a escola, passava em frente a uma casa de acolhimento
aos índios na cidade da Fundação Nacional do Índio (Funai). Mal tinha coragem de olhar para
lá, pois na minha cabeça os índios eram selvagens, brabos e nus.
25
Pepetela (2013) registrou esse conflito pessoal em romance “Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi
a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em
mim o inconciliável e este é o meu motor. Num universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez.
Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os
homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os
homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se em dois grupos: os
maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta” (2013,
p.14). O Brasil é a sociedade do “talvez”, ideologicamente direcionada para optar pelo branco.
26
Em 1943 o Governo Federal criou o Território Federal do Amapá, mas só durante a Assembleia Nacional
Constituinte de 1988 ele foi transformado em Estado. O que se efetivou em 1º de janeiro de 1991.
23
Contudo, me vestia de índia com pinturas e roupas, que imitavam a dos índios
americanos, para dançar alegremente uma música que mandava a gente “brincar de índio”.
Quem cantava era a Xuxa, uma apresentadora de TV infantil famosa, branca, loira e de olhos
azuis: a “rainha dos baixinhos”. Ela e suas dançarinas, igualmente parecidas, eram as
referências de beleza para as meninas da minha época. O convite que ela fazia na música para
“brincar de índio” significava representar algo completamente diferente de nós: selvagens
guerreiros que caçavam com arcos e flechas, viviam somente na floresta e falavam o português
sempre no infinitivo, incapazes de conjugar verbos. Quanta contradição! Refletindo sobre o
porquê de agir assim quando criança, cheguei à conclusão de que também sou parte de uma
sociedade impregnada de senso comum. Enfim, a tese não é para falar de mim. Situar-me nela
é consequência.
27
É sobre essa indiferença e incapacidade de sofrimento em relação ao outro, que nos fala Susan Sontag (2003)
em seu livro “Davanti al dolore degli altri”.
24
Behar nos mostra que geralmente não somos muito vulneráveis à condição do Outro e
isso contradiz o princípio de responsabilidade para com o Outro. Seria essa uma atitude ética?
O estranhamento poderia incluir reflexivamente nossa própria condição e nossa própria prática.
Não seria pretensioso e hierárquico somente descrever o Outro? Ao nos tornarmos vulneráreis
à condição do Outro, diminuímos a distância que nos separa, propiciando um encontro com sua
humanidade, afirma Behar. Em vez de apenas descrever e até devassar o Outro, a
vulnerabilidade nos permite dialogar. O que nos leva a um diálogo interior, com a gente mesmo.
Behar valoriza o nosso envolvimento emocional a fim de que possamos nos perguntar “para
que serve nosso olhar, nossa pesquisa? ”. A autora afirma que só recentemente a emoção pôs
os pés na academia e me dei conta de que as etnografias que mais me informaram, e também
das quais eu mais gostei, trouxeram consigo uma dose de emoção dos seus autores.
Essa é uma questão metodológica. Trago Behar para explicar minha maneira de
escrever, que expressa também um pouco do meu ser. A antropóloga me faz lembrar a relação
dialógica da filosofia de Buber (2001 [1974]), que fala da relação Eu-Tu em três esferas: com
o Outro; com a natureza não humana; e consigo mesmo. Essa relação dialógica de respeito
permite uma real interação. Busquei diálogos para construir esse trabalho e escrevo para
dialogar com os leitores.
Não considero isso uma pretensão, para mim é uma forma de ação. Diante da exigência
de imparcialidade e de neutralidade, com que tenho me confrontado tantas vezes no mundo
acadêmico, me vi incapaz de lidar com o humano como se “coisa” fosse, como “objeto” apenas.
Como algo que nas ciências não humanas pode ser retalhado, esmiuçado, visto através de lentes
e de equipamentos tecnológicos, para depois ser guardado em vidrinho. Espero que meu esforço
de compreensão de uma realidade social, mas sobretudo humana, não seja guardado em uma
gaveta depois de me conceder o diploma.
Concordo com Behar, quando diz que não é nada fácil se colocar de maneira interessante
dentro do seu próprio texto sobre os outros. Ela propõe estabelecer conexões da própria
experiência pessoal com o tema de estudo, o que não requer uma autobiografia, um
detalhamento de si mesmo, mas sim uma aguda percepção de quais aspectos de mim funcionam
como filtros através dos quais percebo o mundo e meu tema de estudo.
A vulnerabilidade não significa que algo pessoal deva ir junto com o texto, mas que a
exposição de mim mesma, que sou também expectadora, deve levar a um entendimento que
não ocorreria se o texto fosse construído de outra maneira. Senti que de alguma forma era
necessário expressar a minha relação com o meu tema de estudo. Considerei isso importante
para o desenvolvimento do meu argumento. Assim me coloco nesse trabalho.
25
Figura 5: Dona Edith, famosa parteira na região, produz remédios naturais que vende para as
comunidades vizinhas.
Dona Edith e o cacique Dadá falaram do quanto eram pressionados para abrir mão de
um pedaço da terra deles, mas que resistiam e resistiriam sempre. Na ocasião participava de um
projeto sobre os impactos da BR 163, coordenado pelo pesquisador do Museu Paraense Emílio
Goeldi (MPEG) e também meu marido Rodrigo Peixoto. Logo, nos fizeram o convite para
conhecer a TI Maró de perto, explicando onde se localizava. A princípio a TI Maró nos pareceu
28
Evento realizado em Alter do Chão, no município de Santarém.
29
No encontro, os indígenas reclamavam da fraca e omissa presença da FUNAI na Região do Tapajós.
26
distante e difícil de alcançar, já que seria necessário navegar por três rios e, considerando o
tamanho dos rios amazônicos, estava certa de que tal empreitada me exigiria um tempo
razoável. Contudo, de tão caloroso o convite, e de tão forte a fração de história que nos contaram
sobre a vida e a luta do povo do Maró, nosso passo seguinte não foi outro senão o de nos
organizar para encontrá-los na aldeia.
Dois meses depois viajamos com o grupo de pesquisa30 para a aldeia de Novo Lugar.
Lá chegando, imediatamente senti que o calor do convite havia cedido lugar ao olhar
desconfiado do cacique Dadá, que friamente nos recebeu dirigindo a pergunta: “Vocês são do
bem? ”. A mudança de atitude e a desconfiança na nossa recepção careciam de ser interpretadas.
No plano filosófico, as aulas de epistemologia das ciências humanas ajudaram, pois ensina
Heidegger31 que a realidade precisa ser interpretada de acordo com as “possibilidades
projetadas na compreensão”. Essas possibilidades partiriam daquilo que eu conhecia e entendia,
do meu modo de ver e conceber o mundo, mas também da realidade que se apresentava com
nitidez, mas também com frestas que me pediam observar com atenção.
Figura 6: Aldeia de Novo Lugar, na Terra Indígena Maró.
Foto: autora (jul. 2011). No canto direito está o barracão da marcenaria. A casa no centro (atrás das palmeiras) é da Dona Edite. E a casa no
canto esquerdo era do cacique Dadá antes de se mudar com a família para uma casa que construiu perto de um igarapé, cuja nascente está
ameaçada pelo desmatamento ilegal das madeireiras.
30
Na ocasião estava com um grupo que participava de projeto de pesquisa coordenada pelo pesquisador Rodrigo
Peixoto e membros da ONG de Santarém “Projeto Saúde e Alegria”.
31
No livro “Ser e Tempo” (1998).
27
As sutilezas dos olhares e gestos, combinada com a pergunta tão direta do cacique,
demonstravam uma conduta cultural que excedia o fato aparente de o cacique Dadá, líder de
uma comunidade que só recentemente havia afirmado a identidade indígena, estar nos
recebendo com essa reserva. A mim caberia desvendar esses sinais em um complexo contexto
de afirmação indígena, que combinava lutas por reconhecimento e território, em área de
conflito, no oeste do Pará, uma fronteira de expansão do capital.
Ao longo do dia conversamos sobre os conflitos, ameaças e torturas sofridas pelos
indígenas em função da luta pela terra. Fiquei sabendo um pouco da história do lugar e do povo
que ali vivia. Me falavam das dificuldades pequenas e grandes que superavam a cada dia. Senti
que finalmente havia encontrado um assunto motivador para me dedicar a uma tese de
doutorado. Naquela noite os moradores da aldeia foram chamados para nos conhecer. Fizemos
a proposta de construir junto com eles uma cartilha com suas histórias e seus próprios mapas.
Adultos, crianças, idosos e jovens que moravam perto se reuniram em círculo, sentados em
bancos de madeira, sob uma luz fraca produzida por um gerador de energia a óleo 32 e se
apresentaram. Os indígenas demonstravam coletividade e que precisavam sentir confiança em
quem pisava na terra deles. Entendi que para isso seria necessário tempo e construção.
Figura 7: Reunião na Aldeia de Novo Lugar
32
O gerador era ligado somente em ocasiões especiais e por pouco tempo para economizar óleo diesel.
28
Instrumentos metodológicos
Considera Cardoso de Oliveira que “quando se complementa a perspectiva analítica,
inerente à metodologia estruturalista, com a perspectiva hermenêutica, articulando assim a
interpretação à interpretação compreensiva, enquanto abordagens complementares, pode-se
dizer que a investigação se completa” (2006, p.28). A partir dessa postura, me aprofundo nos
meios práticos. Um levantamento bibliográfico extenso foi realizado juntamente com a análise
de documentos. Entrevistas semi-estruturadas foram realizadas, a maioria delas gravadas, com
o critério de compreender o contexto local. Um resgate da história foi feito com as principais
lideranças quando do início da luta pela terra indígena. Outras entrevistas foram realizadas com
lideranças contemporâneas para entender as estratégias de luta. Como indígenas e não indígenas
se relacionavam com o tema da pesquisa?
29
conhecer a importante tese sobre racismo de Lia Vainer Schucman (2012)33, que, além dos
argumentos esclarecedores, resolvia meu problema sobre a questão metodológica.
Ela utilizou o método da psicologia social chamado “campo – tema” de Peter Spink,
onde o campo não se refere mais a um lugar específico, mas à processualidade do tema
privilegiando o dia-a-dia. “Assim o campo começa quando o pesquisador se vincula à temática
a ser pesquisada, o que vem depois é a trajetória que se segue a esta opção inicial”, explica
Schucman (2012, p. 46). Quando estava quase concluindo meu trabalho descobri um método
de pesquisa. Mas não era o único, porque eu tinha também Santarém e a TI Maró como lugares
específicos de desenvolvimento da pesquisa. Assim combinei a liberdade de observações
cotidianas com o material colhido no meu “campo – lugar”.
O lugar não se restringe ao plano físico. Hoje ele alcança o mundo virtual. A maneira
como se manifestavam os indígenas auto-afirmados do baixo Tapajós e também os não
indígenas – quando se referiam aos indígenas – nas redes sociais, ultrapassa o lugar como
espaço físico e me dava rico conteúdo para análise. Percebi então que o mundo virtual faz com
que o “campo – lugar” se mova constantemente e passe a fazer parte do cotidiano. Assim, ouso
descrever meu método como “campo – tema – lugar – virtual”, sem qualquer outra pretensão
que não aquela de esclarecer com sinceridade de que forma coletei as informações para a
construção desse trabalho.
33
O título da tese de Lia Schucman é “Entre o "encardido", o "branco" e o "branquíssimo": raça, hierarquia e
poder na construção da branquitude paulistana”, defendida na USP em 2012.
31
autonomearam indígenas passaram a ser elas sujeitos ativos na construção das suas vidas. Os
indígenas agem construindo sentido de suas próprias existências através de contínuas ações e
nomeações que afirmam identidades. A denúncia do racismo é uma delas.
Para Dubet (idem) o conhecimento da sociedade é construído na ação, onde está o
problema crucial da análise sociológica. Pois não existe mais um “conflito central”, mas sim
explosões sociais localizadas, ocorrendo a alienação quando as relações de dominação
impossibilitam aos atores terem domínio sobre sua experiência social. Ao saírem da condição
de inexistência, os indígenas superam a condição de alienação para agirem como um grupo que
coletivamente domina e direciona a experiência social de acordo com suas escolhas de
construção do mundo.
Esse desejo é manifestado inclusive na arena da construção do conhecimento, conforme
manifestação de Nanblá Xokleng, no IV Encontro Nacional de Estudantes Indígenas34, que
dizia que para fazer os trabalhos científicos eles eram sempre obrigados a apoiar seus textos em
teorias ocidentais, buscando muitas vezes autores franceses. Nanblá Xokleng, doutor em
linguística, questiona:
É claro que a gente tem que ter uma base, mas eu tenho que dizer “eu sou autor da minha
história”. Então, eu tenho segundo o relato de um ancião, segundo o relato do pajé. Então eu
não tenho só que me preocupar com autores porque eu estou construindo, nós estamos
construindo. Esse é espaço que nós temos que ter na academia. Porque na verdade esses grandes
autores... ah o Levis Strauss falou isso e nós temos que falar isso... E nosso conhecimento
tradicional? E o nosso pajé? Onde que vai estar? (...)
O que essa fala manifesta não é uma completa exclusão do conhecimento ocidental, mas
o desejo de ser autor da própria vida contemplando também os seus próprios conhecimentos,
ou seja, uma profunda descolonização do pensamento. É possível encontrar trabalhos que
expressam essa descolonização de pensamento no grupo transdisciplinar35 de intelectuais latino
americanos modernidad/colonialidad. O grupo desenvolveu o conceito de Colonialidade, que
vincula a modernidade à experiência colonial, através de estruturas de poder e de subordinação
refletidas pelos mecanismos do “sistema-mundo europeo/euro-norteamericano
capitalista/patriarcal moderno/colonial’ (GROSFOGUEL, 2005, p.13). É através de uma
abordagem transdisciplinar, com o uso do conceito de colonialidade, que a tese percebe os auto-
afirmados indígenas do baixo Tapajós, entre eles os Borari e os Arapium, como agentes de um
34
Encontro realizado em Santarém (PA) entre os dias 15 a 19 de outubro de 2016.
35
A transdiciplinaridade unifica o conhecimento, articulando elementos que passam entre, além e através das
disciplinas, a fim de compreender a complexidade do mundo. Além disso, a transdisciplinaridade permite a
abertura ao outro e ao seu conhecimento.
33
36
La idea naturalizada de que el conocimiento tiene su casa en el território que va de la antigua Grecia y la
antigua Roma a la Europa occidental moderna, y que en esse território hay casas habitadas por las figuras
canonicas del saber del occidente y las lenguas occidentales, llegó a su fin. (MIGNOLO 2011, p. 21)
34
Quero fazer uma digressão sobre o pensamento crítico. Mais de cinquenta anos antes,
em 1958, Guerreiro Ramos criou um método de análise de concepções e de fatos sociais
chamado “redução sociológica”, que significa uma apropriação crítica das teorias e experiências
estrangeiras. O autor critica o sociólogo acadêmico que se concentra apenas nos livros, dando
demasiada importância às ideias abstratas e às teorias importadas, sem se dar conta de que o
conhecimento sociológico está sujeito ao contexto. Para Guerreiro Ramos, na sociologia do ato,
ou habitus, o sociólogo deve ultrapassar a limitada alfabetização sociológica e assumir
compromissos em atitude “crítico-assimilativa” em relação às teorias e experiências
estrangeiras, para formar um saber criativo direcionado a melhorar a realidade. Portanto, a
postura do sociólogo deveria ser “pragmática-crítica”, em compromisso consciente com o
contexto que analisa, a fim de produzir uma “sociologia autêntica”, mantendo-se fiel a si mesmo
(AZEVÊDO, 2006). O método de Guerreiro Ramos prevê o comprometimento de incorporar
ao trabalho teórico a perspectiva existencial do teorizador.
Os indígenas do baixo Tapajós passam a fazer parte da construção do mundo que
desejam e isso é uma experiência social. Isso faz com que a experiência social tenha um caráter
subjetivo, pois representa o mundo vivido individual e coletivamente. A experiência social gera
a experiência cognitiva. A cognição atua na construção crítica do real. Essa construção crítica
permite aos indivíduos, através de um trabalho reflexivo, julgar suas experiências e as
redefinirem em uma nova realidade. Marginalizados como estavam os moradores das
comunidades do Maró, que escondiam sua indianidade porque estigmatizada pela sociedade
dominante, eles analisam suas próprias vidas e as transformam através da ação de afirmação da
identidade. A afirmação indígena, nascida de uma ação de reflexão, delineia uma nova
experiência social. A experiência passa então a ser objeto sociológico, conforme analisa Dubet
(1994).
Dubet afirma que a sociologia da experiência social é uma combinação de lógicas de
ação que vinculam o ator a cada uma das dimensões de um sistema, determinando que “o ator
deve articular estas lógicas de ação diferentes e a dinâmica que resulta desta atividade constitui
a subjetividade do ator e sua reflexividade” (ibidem, p.105). Diversas lógicas de ação - recorrer
a história, revelar crenças, usar adereços, mas sobretudo adotar um discurso - foram articuladas
para afirmar a identidade indígena, o que passou a constituir a subjetividade do grupo e também
a reflexividade, pois a partir da ação eles passaram a existir politicamente.
Uma existência política baseada na resistência em um contexto onde a forçada formação
da nacionalidade brasileira deixou heranças de atuações violentas e burocráticas excludentes,
dissonantes com as reivindicações sociais. A formação do Estado brasileiro forçou a
35
A pergunta do título do capítulo soa ingênua, já que a resposta parece óbvia. Mas no
Brasil não é. Vou ilustrar isso com uma história. Por um tempo frequentei aulas de conversação
em inglês. Minha turma era composta por cerca de dez alunos. Um dia o professor, que
demostrava ser crítico e preocupado com questões sociais, pediu que cada aluno preparasse uma
apresentação sobre algum problema social e logo perguntou quais seriam nossas escolhas. Cada
aluno anunciou um problema: fome, desmatamento, poluição, trânsito, violência de gênero. Um
colega escolheu racismo. Já imersa na construção da minha tese, não pensei outra coisa senão
anunciar como escolha “o racismo contra o indígena”. O professor, que na hora anotava tudo,
parou com expressão de dúvida, me olhou e questionou: “mas isso existe? Existe racismo contra
o indígena? ”.
Depois dessa pergunta, entendi que estava tratando o assunto como algo evidente, sem
questionar se o racismo contra o indígena era, de fato, reconhecido socialmente. Passei a ficar
mais atenta e percebi que falar sobre racismo fazia com que as pessoas evitassem o tema ou,
instantaneamente, o associassem o à relação entre o branco e o negro, e nunca ao indígena.
Como afirmou um estudante de Ciências da Computação, de 18 anos, que entrevistei na
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), “racismo é de raça, então o indígena sofre mais
preconceito tanto pelo modo de vestir, de se comportar, ele sofre mais pela cultura em si do que
pelo fato dele ser índio. O que faz ele querer se aculturar pra não sofrer tanto preconceito”.
Essa ideia de que o indígena não sofreria racismo foi reproduzida muitas vezes
involuntariamente pelos meus entrevistados. As violências sofridas pelos indígenas são
chamadas popularmente de preconceito ou discriminação, raramente racismo. O indígena é
ainda associado à questão cultural e isso é resultado da construção da nacionalidade brasileira,
como será posteriormente esclarecido. Embora a palavra raça não seja explicitamente referida,
ela é empiricamente presente no caso dos indígenas. Constata Guimarães (1995):
Quando a “raça” está empiricamente presente ainda que seu nome não seja pronunciado, a
diferenciação entre tipos de racismos pode ser estabelecida através da análise de sua formação
histórica particular, isto é, através da análise de modo específico como a classe social, a
etnicidade, a nacionalidade e o gênero tornaram-se metáforas para a “raça” ou vice-versa. (1995,
p. 32)
Concordo com Guimarães e comecei a analisar como a questão racial foi metaforizada
em discursos em relação aos indígenas. No contexto brasileiro, o racismo contra o indígena é
explícito, mas raramente é identificado como tal. No entanto, ao longo da minha pesquisa,
percebi que os indígenas começavam a nomear racismo para denunciar diversos tipos de
37
colocam tem sua imagem vinculada ao passado, sendo completamente inexistente uma imagem
contemporânea dos indígenas nas mídias atuais. A fala do estudante não indígena da Ufopa,
que citei no começo do capítulo, retrata bem essa realidade:
O racismo destinado aos negros é muito mais pertinente porque como os negros foram um povo
mais escravizado. Têm-se uma visão de que os negros não servem para ocupar posições de
prestígio social, servem só pra serviços básicos. O índio sofreu, mas não tanto o quanto a
população negra sofreu e até hoje sofre.
Essa é uma fala infiel à realidade que afasta o indígena do sofrimento e da exclusão
social. Quando se trata de racismo, o indígena continua a ser afastado das análises de
disparidades raciais. Na maioria das vezes, ele nem mesmo é citado nas pesquisas que resultam
em percentuais indicativos de disparidades sócio econômicas que refletem a dinâmica da
sociedade brasileira. Por isso acho oportuno falar um pouco mais da divisão estabelecida, que
associa o negro à raça e o indígena à etnia. Antes vou esclarecer como o racismo tantas vezes
é reconhecido como preconceito e discriminação.
confusão de ideias se formou e a conversa de repente ficou acalorada entre perguntas, respostas,
silêncios, reflexões, quando Waru repetiu firmemente:
Waru: É entre essas cores: negro e branco.
Kaxi: Mas, tu achas que não existe entre...
Waru: Indígena é mais discriminação mesmo.
Kércia: Você diz que o racismo não ocorre em relação ao indígena?
Waru: É sobre o negro e o branco...
Guerreiro: No caso é como eu tô te explicando, nós somos minoria.
Waru: Não é nem pelo fato de ser uma minoria...
Guerreiro: Nós somos minoria sim!
Waru: É porque nós não somos negros nem brancos!
Guerreiro: Não...
Nesse momento, Kaxi interrompeu e disse “Nós somos amarelos”. Ninguém deu
atenção ao fato dele ter qualificado os indígenas como “amarelos”. Essa foi mais uma
demonstração de que cor se refere a como a pessoa entende o pigmento de sua pele ou como
esse é entendido por outra pessoa. Geralmente, cor é auto descrita através do gesto comum de
olhar para a própria pele dissociando-a de traços e ancestralidade. Cor não estabelece uma rígida
classificação. No Brasil, cor parece não merecer tanta atenção e parece entrar em cena somente
quando se fala sobre racismo. Além disso, na arena social apenas duas cores parecem relevantes
para o entendimento do racismo: o negro e o branco. Assim, o indígena é afastado e acaba, por
sua vez, se afastando desse debate. Mas vamos voltar a conversa que seguiu com Guerreiro
justificando o que ele havia falado sobre indígena ser minoria:
Guerreiro: Minoria que eu digo no sentido de se auto afirmar porque se todo indígena fosse se auto
afirmar...
Kércia: E o indígena? Por que você acha que ele sofre discriminação e não racismo?
Waru: Pelo fato dele ser indígena mesmo. Não é questão de cor. É questão cultural mesmo.
Kércia: E você acha que o racismo é ligado a cor?
Guerreiro: É ligado a cor mesmo.
O diálogo demonstra que Waru associa discriminação à questão cultural e que esta é
relacionada ao indígena. A ideia de que o racismo é ligado à cor é ainda comum no Brasil. Logo
depois da incisiva afirmação de que racismo é ligado à cor, o silêncio tomou conta e deu lugar
à reflexão. Eu os agradeci e eles disseram que as perguntas foram “legais” para pensar sobre
isso. Os indígenas participantes dessa conversa são aguerridos, críticos, defendem com “unhas
40
e dentes” suas identidades, se orgulham de serem indígenas e lutam bravamente por seus
direitos. Têm consciência do processo histórico que sofreram e da violência que sofrem por
instituições e pessoas. Reconhecem e enfrentam o racismo cotidianamente, nomeando-o de
outras formas. Existe ainda pouca intimidade com a palavra racismo, mas aos poucos eles vão
se apropriando da palavra e denunciam o fato, especialmente dentro da universidade.
Os indígenas afirmados do baixo Tapajós têm certeza de quem são. Mas falar em raça
se referindo aos indígenas é algo inusitado, o que faz embaçar a percepção do racismo que
sofrem. Racismo contra os indígenas, apesar de a atitude ocorrer sistematicamente, é uma
nomeação rara, visto não serem eles compreendidos na categoria raça, socialmente construída.
O uso recente da palavra racismo pelos indígenas inaugura algo novo nas políticas discursivas.
A denúncia do racismo na sociedade brasileira vem sendo feita pelo movimento negro desde a
década de 1930. Isso fez com que, ao longo do tempo, essa constatação ganhasse “validade
técnica” e políticas públicas específicas de combate. Falar em racismo contra o indígena quebra
um paradigma.
Repetidamente ouvi no ambiente acadêmico que para trabalhar com povos indígenas eu
deveria considerá-los enquanto etnia e não como raça. Era preciso considerar suas diversidades
culturais. Acho que foi com essa percepção que me perguntaram, durante a minha entrevista
para entrar no curso de doutorado, o porquê da minha escolha ter sido sociologia e não
antropologia, já que iria trabalhar com indígenas. Considero louvável valorizar as diferenças,
costumes, línguas, modos de vida, religiosidade, enfim as culturas que caracterizam as etnias
dos indígenas. Porém considero tão importante quanto essa tradição acadêmica denunciar com
eles, os indígenas do baixo Tapajós, as violências racistas que eles sofrem. Eles passaram a
nomear a violência como racismo, eu interpreto a nomeação.
Entre os indígenas, especialmente aqueles ligados ao Movimento Indígena, o termo
racismo começa a ser empregado com mais frequência, mas ainda carrega uma característica
etimológica cujo significado parece ser movediço. Isso ficou claro enquanto entrevistava
Marcelo Borari, indígena auto afirmado de 33 anos do baixo Tapajós, graduado em artes e
professor, que, muito seguro de si, compartilhou histórias e percepções que me ajudaram a
compreender melhor a realidade e a costurar empiria e teoria. Ele respondia as minhas perguntas
com destreza e sabedoria até eu questioná-lo sobre racismo.
Quando perguntei para ele o que é o racismo, a fluência com que ele vinha respondendo
às perguntas deu lugar a uma breve pausa, seguida pela resposta inicialmente reflexiva:
“Racismo... Hum... racismo... A gente sente até pena dessas pessoas porque são muito fechadas.
Vivem num mundinho ali trancado e não conseguem enxergar essa questão da diversidade.
41
Olha eu não gosto do racista, mas é muito difícil eu lhe dizer o que é que é o racista. O quê que
é o racismo...”
A dificuldade de conceituar o racismo, que Marcelo Borari demonstrou, expressa a
pouca intimidade que geralmente as pessoas têm em identificar e utilizar o termo, especialmente
quando se trata de um tratamento deletério destinado ao indígena. Para facilitar, eu pedi que me
desse um exemplo de uma atitude racista. Depois de um breve momento pensativo ele pergunta:
“Fora essas coisas que a gente vê todo dia na televisão? ”. Respondi que poderia ser qualquer
uma, então ele me disse:
O branco foi rotulado como o bonito. Lembro de uma vez que eu fui pleitear uma vaga de
emprego e um branco entregou um curriculum e um negro também tinha entregado um
curriculum lá. E a menina de lá falou ‘olha esse daqui vai conseguir a vaga’: o branco. O negro
não ia conseguir, mas ela não falou que era porque ele era negro. Ela justificou dizendo que ele
tinha espinha no rosto. Eu disse ‘pra vê né? Como é que a sociedade funciona’. Será que era por
causa de espinha? Mas, isso também não seria nem um critério...
Aquela ideia. Pra ele a minha imagem não tava de acordo com a mentalidade que ele tinha do
que é um indígena. Eu acho que é por causa daquela sentença do juiz, do Airton Portela, porque
ele foi um dos repórteres que também falou um monte de bobagem. Eu tiro até uma brincadeira
tentando simular o pensamento dele, eu acho que naquela hora ele pensou “Mas, Borari... Mas,
tu não é daquele povo que não existe? Mas, tu existe?”
Rimos com seu tom jocoso. Embora ele tenha descrito o racismo que ele mesmo
vivencia e presencia em relação aos demais indígenas em Santarém, ele evitou a palavra
racismo. Na sua fala fluíram as palavras preconceito e discriminação, o que é natural em um
contexto onde a questão racial por muito tempo foi desconectada e o reconhecimento das
atitudes de negação do Outro como racismo ainda é muito tímido. Percebendo a clara
dificuldade em falar a palavra racismo, pergunto se ele considera que as pessoas percebem que
estão cometendo atos racistas. E em sua resposta fica clara a percepção da naturalização dessas
atitudes na sociedade. Ele fala:
Ás vezes é um ato involuntário. Isso já faz parte da cultura. A pessoa já carrega isso consigo.
Eu acho que as leis estão mais pra frear, pra começar a expelir aquilo que tu já tens dentro de ti.
Porque as leis não acabam com o racismo, elas acabam com o ato de tu manifestar isso
publicamente. Mas, o racismo... Quem me acha feio, nunca vai me achar bonito (...). Isso é uma
coisa muito do ser humano.
Essa conversa revelou para mim o quanto o racismo é afastado da questão indígena e
passei a adotar no meu cotidiano a pergunta: “Quando o indígena vai para a cidade e as pessoas
o ignoram, o maltratam, ou verbalizam expressões grosseiras contra ele, o que ele sofre? ”.
Dirigi a pergunta para cerca de 20 pessoas adultas de variadas faixas etárias, entre amigos,
vizinhos, colegas, familiares e também para indígenas. A resposta mais comum foi preconceito,
depois discriminação, algumas vezes a resposta era insegura, respondida com uma pergunta:
“preconceito, discriminação? ”, raras vezes injúria racial.
Um amigo advogado me causou surpresa ao responder “racismo”. Alonguei a conversa
e ele me explicou juridicamente o porquê de ser racismo, enfatizando o peso de ser um crime
inafiançável e imprescritível. Eu falei do uso popular e do quanto as pessoas raramente
reconheciam a violência contra o indígena como racismo. E foi pelo entusiasmo da nossa
conversa que ele teve a ideia de me apresentar Ariana dos Santos, indígena Karipuna, conhecida
como Ariana Karipuna, de 34 anos, que é professora e formada em Licenciatura Intercultural
Indígena, Ciências Humanas, e que foi candidata a vereadora no município do Oiapoque, no
estado do Amapá.
43
como processar uma pessoa, mas eu acho que como racismo sim. Assim a gente pode fazer uma
pessoa mudar a ótica dela sobre o indígena e a gente pode fazer ela respeitar”. Os casos de
preconceito e/ou discriminação racial estão enquadrados no crime de racismo. No entanto,
Ariana Karipuna não percebia tais violências como racismo, não considerando a possibilidade
de denunciar. Ela completou: “eu acho que, em vez de preconceito, se a gente falar racismo, as
pessoas vão pensar ‘poxa, racismo é mais pesado’, então elas vão começar a pensar sobre essa
questão”, afirmou Ariana Karipuna.
Figura 8: Ariana Karipuna
Eu mostrava algumas fotos de minha pesquisa para um amigo, de 30 anos, quando ele
olhou a imagem acima de Ariana Karipuna e imediatamente perguntou se ela era também uma
índia. Ao dizer que sim, que era uma Karipuna da aldeia Manga, ele respondeu “Ah! Não é não.
Toda produzida com óculos, batom e ainda por cima usando aparelho de dente, me desculpa,
mas não é índia não! ”. A reação dele expressava plenamente o senso comum que define uma
outra imagem ao indígena, como se a ele não fosse permitido qualquer influência cultural, pois
isso faria com ele perdesse a indianidade. A associação entre indígenas e traços culturais
diacríticos é resultado de uma política educacional que ainda hoje transmite essa imagem do
45
indígena às crianças. A mídia também cumpre o papel de reforçar essa imagem através de
transmissões que reforçam estereótipos37.
Nesse tópico esclareço a divisão comum que se estabeleceu entre raça e etnia no Brasil.
Geralmente, raça é associada aos afrodescendentes e essencializada em termos de cor e traços.
Já etnia é referida aos indígenas elencando uma série de padrões socialmente produzidos e
culturalmente estabelecidos. É importante entender de que forma ocorreu essa fratura para
compreender sua repercussão no meio social e assim buscar um maior esclarecimento para
tratar o racismo.
No ano 2000, participei de um seminário sobre os impactos da Hidrelétrica de Tucuruí,
a qual afetou muita gente, inclusive os povos Parakanã, Assurini e Gavião. O evento reunia
burocratas, lideranças comunitárias, indígenas, acadêmicos e pesquisadores. Uma das coisas
que mais me marcaram não fazia parte da programação do evento. Em um intervalo das
atividades, um respeitado professor-pesquisador relatou, para um grupo de acadêmicos, que
havia sido abordado por um índio “vestido de índio” (todo pintado e usando cocar), que o
ofereceu alguns artesanatos. O professor, tentando escapar da compra, disse como desculpa,
que não tinha dinheiro no momento. Em seguida ele contou, com tom de espanto e sarcasmo,
que o índio na mesma hora o apresentou uma máquina de cartão de crédito. Todos se
surpreenderam e riram se questionando se ele era mesmo um índio ou afirmando que o índio
parecia muito esperto. Se o fato de ter uma máquina de cartão fazia as pessoas duvidarem da
sua identidade ou o associarem à esperteza, o que faria dele um índio então?
Ser índio difere em muitos lugares do mundo de acordo com a imagem imputada a ele
e sustentada pelo senso comum. Conforme relatado, no Brasil o índio foi deliberadamente
associado ao ser selvagem que vive na mata, guerreiro, importante por ter sido uma das “raças”
formadoras do povo, mas para sempre fincado no passado. Por mais ridículo que pareça, ainda
hoje muita gente fica perplexa ao ver índio usando celular ou mesmo calça jeans. O acusam de
estar perdendo sua cultura por um errôneo entendimento do que significa cultura. Conforme
Clarice Cohn (2001, p.36), “muito se comenta, e se lamenta, que os índios estão perdendo sua
37
O Jornalista Leonardo Sakamoto faz uma crítica contundente no texto “Como cobrir o Dia do Índio para a
TV”, disponível em http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2012/04/19/como-cobrir-o-dia-do-indio-para-
a-tv/
46
cultura. Um índio calçado e vestido com calças jeans, falando português, utilizando gravadores
e vídeos ou morando em uma favela em São Paulo aparece aos olhos do público como menos
índio. Eles deveriam seguir suas tradições, se diz. ” Não cabe aqui aprofundar sobre o conceito
e dinamismo da cultura, mas, dentre os seres humanos, o índio é o único ao qual parece não ser
permitido alguma transformação. O que fortalece a imagem desse índio preso ao passado,
impedido de usufruir tecnologias que acompanharam o desenvolvimento da humanidade?
Novamente o senso comum.
Conhecido como um modo geral de pensar da maioria das pessoas, o senso comum faz
com que certas crenças ou afirmações sejam consideradas “normais”, sem que haja reflexão ou
busca para alcançar um entendimento mais coerente. Esse modo de pensar difundido e
compartilhado pela maioria das pessoas é imposto pela ideologia de uma minoria detentora do
poder, na maioria dos casos. No caso da construção do nacionalismo brasileiro, é o ideal da
elite que se impõe através de instrumentos de controle como a mídia e a educação. Esse ideal
da elite, apoiado pela antropologia de uma época, serviu para consolidar o entendimento sobre
povos indígenas, categorizados por distintos elementos culturais postos em realce. E serviu para
reduzi-los a uma análise exclusivamente étnica, vinculando-os tão somente à questão da
etnicidade.
Já os homens negros escravizados vieram de tribos africanas com variadas línguas,
mitologias, crenças, tradições e rituais. Ao serem vendidos no Brasil, os escravagistas os
misturaram para que se tornasse mais difícil qualquer forma de organização e revolta coletiva.
Perdida a liberdade, em uma terra longínqua, o banzo era sentimento comum e refletia a intensa
dor emocional. A escravização foi um golpe profundo nas culturas dos negros africanos, que,
contudo, resistiram, lutaram, sobreviveram e se reconfiguraram, recuperando elementos
culturais e agregando novos.
O homem negro foi identificado à escravidão, e, como essa era uma prática demasiada
perversa, mais fácil para os brancos era culpar e associar ao negro toda forma de difamação
moral e física. Assim, os africanos escravizados foram associados a tudo que é negativo,
mutilados em suas diversidades, apagados em suas expressões culturais e identificados somente
pela sua cor e traços, ou seja, pela sua condição genotípica e fenotípica: o que se resumiu em
“raça”. Associada à aparência, a “raça” negra assim foi compactada e estudada por uma gama
de acadêmicos e especialistas.
Já os povos nativos sofreram um duradouro extermínio e para os sobreviventes e
resistentes foi imposto o processo de “assimilação”, a fim de que se tornassem “cidadãos”
brasileiros, conforme será detalhado no quinto capítulo. Pretendo agora demonstrar como se
47
Deste modo, apesar de índios e negros representarem conjuntamente a parte não branca
e, portanto, indesejada da sociedade, eles foram analisados distintamente. Arruti demonstra
como cada uma dessas tradições acadêmicas, apesar de caminharem autonomamente nos seus
campos de estudo, resultaram em “eixos de mutações estruturalmente semelhantes entre si”: os
especialistas em etnia reduziriam a análise em índio/caboclo/civilizado, onde caboclo seria
apenas o termo fugaz para um momento de transição, tornando-se uma categoria sociológica
fraca; já os especialistas em raça adotariam a redução de negro/mulato/branco, na qual o mulato
ganhou uma positividade sendo exaustivamente referenciado. Distintos por abordagens, mas
não pela condição subalterna, caboclos e mulatos seriam condensados nos posteriores estudos
sobre o povo.
Com o fim do período ditatorial e a abertura democrática, a década de 1980 foi marcada
por grande mobilização popular. Os movimentos sociais se formaram, cresceram e se
fortaleceram, e com eles as lutas por identidades e direitos. Aquele caminho pré-determinado,
que condensava caboclos e mulatos na categoria povo, cujo destino era ser branqueado e
48
civilizado, foi redirecionado por grupos considerados minorias. Minorias conscientes que
exigiam reparações históricas. Isso deu uma nova configuração à questão racial. O grande
momento para o reconhecimento de identidades e direitos foi a Constituinte. Quero dizer que,
apesar dos estudos sociológicos ou antropológicos recortarem com bordas tão precisas os
estudos de raça e etnia, na prática raça e etnia estão imbricadas na sociedade. Essa imbricação
é percebida plenamente quando se trata do racismo que atinge seja índios ou negros. Que tanto
raça quanto etnia sejam construções sociais, esmiuçadas por inúmeros estudiosos de vários
campos, não há dúvida. Resta compreender o porquê de raça ter sido ligada à aparência, e de
etnia à essência.
Raça no Brasil passou a ser sinônimo de negro. Por mais que seja evidente a adoração
pelo branco e suas características fenotípicas, percebo que o uso da palavra raça é quase sempre
associada ao negro e era comum o racismo se manifestar através de frases com teor pejorativo
como “só mesmo sendo dessa raça”, para justificar algo ruim ou mal feito. Já falar de índio
passou a ser falar de etnia e elencar seus conteúdos e valores culturais. Teria sido essa uma
forma voluntária de afastar o índio do discurso racial e isolá-lo ora no passado ora dentro da
mata?
Pesquisando os índios do Sudeste brasileiro, Jonathan Warren (2001) percebeu o quanto
a questão indígena não se limitava apenas aos critérios culturais, mas abrangia também as
características fenotípicas, que pesavam no reconhecimento do índio, daquele considerado
como “índio mesmo”: quanto mais traços, pele ou fisionomia se associassem às feições
europeias ou negras, mais os índios eram vistos como “charlatões”. Warren toma como
referência a análise de Peter Wade (1997) sobre raça e etnia na América Latina, que entende a
divisão dos dois conceitos como um erro, pois reduz raça a fenótipo e etnia à cultura, como se
ambos os termos não fossem construções sociais.
Wade (2008) lembra que a categoria “índio” nasceu simultaneamente com o discurso da
raça e reforça o quanto índio foi uma categoria racial carregada de fortes elementos da história,
enquanto que a identificação racial do negro poderia graduar-se em vários graus entre o preto e
o branco, independente das características fenotípicas, dependendo se a pessoa estivesse bem
ou mal vestida:
Uma fotografia de uma pessoa despertará diferentes classificações dependendo de como a
pessoa está vestida e quem está fazendo a classificação. A categorização racial é móvel e
contextual, influenciada pela aparência, roupa, comportamento, e, especialmente pela classe
49
social: a negritude é fortemente associada à classe baixa38. (WADE 2008, p. 182, traduzido pela
autora).
A mesma análise vale para o indígena, pois sua imagem é fortemente associada à
pobreza. A maneira como se veste, se ele foge do estereótipo da pobreza, faz com que os não
indígenas neguem prontamente sua identidade. A reação que despertou a foto de Ariana
Karipuna é um exemplo sobre o quanto o critério da indianidade é ainda associado a como a
pessoa se veste. É muito comum que o indígena tenha sua identidade negada caso não use
roupas ou acessórios indígenas. Mas mesmo que os indígenas auto afirmados recorram a
elementos diacríticos como pinturas e acessórios, eles continuam a ter sua identidade
constantemente negada.
Um exemplo disso foi a matéria completamente desrespeitosa que o blog de Nelson
Vinencci39 publicou, cujo título se reportava aos indígenas do baixo Tapajós como “Caboclos
vestidos de índio”. Explicitamente racista, a matéria informava que, durante uma manifestação
na 5ª Unidade Regional de Ensino (URE), “caboclos disfarçados de índios” exigiam a
“recontratação do chefão deles”, e que o governo do Estado atendeu a reivindicação
recontratando o “indião todo poderoso”. O pesado e ridicularizador tratamento dado aos
indígenas na matéria demonstra, além de racismo, o quanto os indígenas auto afirmados
enfrentam acusações quando se caracterizam com elementos popularmente associados à
indianidade para demarcar discursivamente o pertencimento.
Por outro lado, o relato de um pesquisador não indígena, que mora em Santarém, revela
o quanto a questão da assimilação é bem aceita socialmente. Embora a pessoa traga evidentes
características de indianidade ela pode perfeitamente escolher não assumir sua identidade
indígena. Ao contrário, alguém que retome sua indianidade através do autorreconhecimento
indígena é completamente rejeitado:
Se uma pessoa tem descendência. Você olha pra ela, ela tem traços físicos, corporais
que remetem a uma ancestralidade indígena. Você fala “esse aí tem um pé na aldeia”.
Você percebe que ele tem uma ancestralidade obvia, marcada no próprio corpo: a pele,
o tipo de cabelo. Se pelo fenótipo ele tem essa descendência indígena e mesmo pela
própria questão cultural, ele veio de uma terra indígena e renega a terra indígena pra
viver na cidade: ele é aceito. Ele fala “eu não sou mais índio”. Ele pode até ser chamado
de índio por outras pessoas. Mas ele diz que ele que não é mais índio: “eu não sou índio
38
A photograph of a person will elicit different terms depending on how the person is dressed and who is doing
the classifying. Racial categorization is shifting and contextual, influenced by appearance, dress, behavior, and,
especially, class status: blackness is strongly associated with lower class position.
39
Publicada em 28 de maio de 2014 e disponível em:
http://blogdonelsonvinencci.blogspot.com.br/2014/05/caboclos-vestidos-de-indio-tomaram-de.html
50
porque eu não vivo mais numa aldeia”. A tendência da sociedade envolvente é aceitar
que essa pessoa não seja índio, passa a ser como todos os outros. Uma cidade
cosmopolita aceita pessoas de todos os lugares do mundo, isso é tranquilo. Agora o
oposto causa problemas: “como assim você é índio? ”.
Essa fala é forte e retrata o quanto os indígenas são associados a elementos carregados
de estereótipos, inclusive por quem por profissão escolheu estudar o humano. A resposta de
Célia Xacriabá foi precisa ao colocar a antropóloga em posição de não poder determinar quem
é indígena ou não, ainda mais baseada nos critérios usados para fazer o questionamento, como
contexto (universidade) - a índia estaria fora de lugar - e pinturas (cultura) – a índia precisaria
parecer índia para ser assim considerada. Célia Xacriabá deixou claro em sua resposta que o
papel do antropólogo não era o de avaliar quem é indígena ou não. Ela a comparou a um tipo
de advogado limitado, que não estuda o humano, e que se sente no direito de julgar quem é ou
não. E assim erroneamente embasar suas determinações de acordo com o senso comum, como
volta e meia ocorre no meio jurídico. O questionamento aparentemente respeitoso e delicado
da antropóloga não escondeu seu próprio preconceito, baseado em estereótipos socialmente
arraigados de quem é o indígena.
“Como vou negar essa minha cara? ”, um estudante da Ufopa questiona. A questão
fenotípica do indígena é também afirmada no relato da história do nascimento do movimento
indígena na região do baixo Tapajós. A antropóloga Iza Tapuia relata que tinha apenas voltado
de seus estudos no Equador e outra liderança, o frei Florêncio Vaz tinha apenas concluído seu
mestrado no Rio de Janeiro, no final da década de 1990, quando juntos conversaram sobre o
quanto a questão indígena era invisível na região, apesar da herança cultural indígena ser
fortemente sentida localmente. Eles tiveram a ideia de criar um movimento de conscientização
à luz do movimento negro, que formou grupos de consciência negra. Assim surgiu o Grupo de
Consciência Indígena (GCI) para buscar e fortalecer a raiz indígena local. Iza Tapuia relata o
quanto eles eram reconhecidos como indígenas em outros lugares:
O Florêncio voltava do Rio e lá ele foi identificado (como indígena). As pessoas não
perguntavam se ele era indígena. As pessoas perguntavam de que povo ele era porque sabiam
que ele era da Amazônia. No Sul ninguém tem nenhuma dúvida de que nós somos ou deixamos
de ser indígenas. E eu vinha do Equador já também nesse processo de construção de identidade.
A gente começa a construir esse movimento indígena e cria o GCI.
Florêncio por sua vez contou o quanto a sua ida para estudar no Rio de Janeiro foi
reveladora da sua própria identidade indígena:
Quando eu chego no Rio de Janeiro as pessoas literalmente me chamam de índio mesmo. Olho
amendoado, cabelo teso. Eu deixava o meu cabelo crescer de propósito quando as pessoas
começaram a me chamar de índio (risos). Como as pessoas demonstravam interesse pelo exótico
- “o que vocês nos contam de lá? O que vocês fazem lá? Como é que vocês vivem?” - aí que eu
começo ainda mais a me interessar por essa minha raiz que quando a gente tá aqui a gente não
se interessa muito, muito pelo contrário, a gente quer fugir dela e se aproximar de uma outra
maneira. (...) O indígena estava na origem das coisas, mas era aquilo que ninguém queria ser.
Interessante notar o quanto falar de Brasil é complexo, pois as diferenças regionais são
tão grandes que quase poderíamos as analisar como realidades distintas, porém conectadas.
Falar de Amazônia, então, mais complexo ainda, já que tem todo um imaginário que associa
floresta, animais e índios com a falta de desenvolvimento. Enquanto no Sul e Sudeste muitas
pessoas do Norte são reconhecidas como índios pelas suas características físicas, com o
crescimento do auto reconhecimento indígena, as pessoas são vítimas da negação de suas
52
40
People identified as black or indigenous do suffer racial discrimination to some degree. Modernity,
development and high status are often associated with whiteness or at least mixedness (WADE 2008, p.183).
53
ele fala, aludindo a Frantz Fanon, da “ordem” que serve aos opressores e que faz com que os
oprimidos se confrontem entre si:
Iza Tapuia conta que durante o período de tramitação do processo na UFT, seus filhos
sofreram grande perseguição e foram tratados como se tivessem usurpado vagas na
universidade que, segundo os acusadores, não deveriam lhes pertencer. Apesar de todo o
sofrimento gerado pela acusação que feria a própria identidade do seu grupo, os Tapuia
contaram com o apoio de várias lideranças do movimento indígena do baixo Tapajós, que
fizeram abaixo-assinado e reuniram a documentação exigida pela UFT. Ela conta o quanto seu
fenótipo causou surpresa ao chegar na universidade para conversar em defesa dos filhos e do
seu povo:
Quando o pessoal me viu, o pessoal ‘enlouqueceu’ (ela conta rindo). A diretora tava doente, o
pessoal falou assim: “olha, a mãe da Maira e do Uirá tá aqui”. E a menina no telefone falou para
a diretora assim: “ela é índia, índia, índia”.
A presença da Iza Tapuia na UFT causou certo alvoroço porque ao vê-la, com seus
traços, cabelos e cor tão reconhecidamente indígenas, facilmente alguém se questionaria como
era possível negá-la essa identidade. Com a documentação em mãos, ela foi conversar na
universidade para solucionar o problema dos filhos burocraticamente, mas a surpreendeu o
“peso” da sua presença física e a curiosidade que ela causou. Vencido esse primeiro processo,
outros se seguiram por outras instâncias. Um a um, os obstáculos foram vencidos por ela e pelos
filhos, mas certamente não foi vencido o preconceito evidente calcado no senso comum, do
qual eles são vítimas cotidianamente.
54
O racismo na universidade
Quando cheguei em Santarém, no dia 15 de fevereiro de 2016, pela sétima vez fazendo
pesquisas de campo, havia um clima de indignação e logo me falaram que mais uma vez os
indígenas haviam sofrido racismo dentro da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
Um deles aconteceu com Evaldeson Pereira, indígena de 30 anos, de São Pedro do Arapiuns,
estudante do curso de Economia, que um pouco introspectivo, com um tom de voz baixo, me
contou: “tem uma frase muito importante, que eu nunca vou esquecer, que o professor falou.
Ele falou assim: ‘gente, índio não é legal não, índio é ser feio. Índio é ser feio”. Senti em
Evaldeson uma certa tristeza quando relatou o ocorrido, me dizendo que na hora seu coração
disparou, e completou: “Porque todo mundo sabe que eu sou indígena lá na sala, mas o professor
não sabia porque foi o primeiro dia de aula dele, mesmo assim ele tá sabendo que em quase
todas as turmas tem um indígena”.
55
Ele contou que, na hora do intervalo, chamou o professor e o questionou sobre o porquê
de ele ter dito isso e que sua fala havia deixado ele muito nervoso. Em seguida, o professor -
que, por incrível que pareça, estava dando aulas da disciplina “Formação Social, Política e
Econômica do Brasil” - o pediu desculpas na frente de toda a turma. Contudo, Evaldeson não
se contentou com as desculpas e, apoiado pelo movimento indígena, denunciou o professor por
racismo, sem contar com a colaboração dos colegas de sala. A fim de sensibilizar alunos e
funcionários da Ufopa e chamar a atenção para o ocorrido, no dia 19 de fevereiro de 2016, o
movimento indígena fez uma mobilização em frente ao prédio da universidade, exigindo
respeito e denunciando esse e outros casos de racismo que ‘vez por outra’ ocorrem lá dentro. É
a partir dos indígenas inseridos na universidade que vai se ampliando a identificação e a
nomeação do racismo, com todas as suas letras.
A conversa que tive com os indígenas autoafirmados Guerreiro, Warú e Kaxi, referidos
no começo do capítulo, aconteceu dois meses antes desse evento. Caso tenham participado, é
provável que agora eles tenham um melhor esclarecimento sobre o racismo e comecem a
identificar os casos de preconceito e discriminação também como racismo. A Semana dos
Povos Indígenas foi aberta com um ritual que formou uma grande roda envolvendo os 900
participantes da “Audiência Pública: Racismo Institucional nas Universidades”, evento que deu
início a uma densa programação.
De acordo com a matéria publicada pelo site de comunicação da Ufopa41, na audiência
estavam presentes representantes do Ministério Público Federal (MPF), da Funai, da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e da própria Ufopa42 , cuja ouvidora, Janete
Sousa, disse que a denúncia de racismo institucional ainda é tímida e “não representa a realidade
conhecida”. O coordenador do Diretório Acadêmico Indígena (DAIN), Abimael Munduruku,
disse que para enfrentar o racismo deve-se reconhecer que o problema existe. Já o pró-reitor de
Gestão Estudantil, Valdomiro Sousa, pediu que a vigilância contra atitudes sutis, racistas e
opressoras, fosse feita diariamente, e completou dizendo que “o racismo é apenas uma face do
preconceito e da opressão contra grupos minoritários”. Entretanto, no caso sofrido pelos
indígenas, não seria o racismo que engloba as faces do preconceito e da opressão?
Com a Semana dos Povos Indígenas, o problema do racismo ganhou evidência na Ufopa
e, no período de 23 a 25 de maio de 2016, foi realizado na universidade o seminário e minicurso
“Alteridade, Raça-Etnia e Racismo”. Esse outro evento, que contou com a parceria da
Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso) e do Conselho Regional de Psicologia,
focou a contribuição da psicologia na compreensão das relações étnico-raciais, abordando
estigma, estereótipo e preconceito como construções sócio-culturais. Outro departamento da
Ufopa, que também se sensibilizou com a causa, foi o de Comunicação, que lançou uma
campanha contra o racismo. Nos cartazes produzidos, estavam estampadas frases racistas de
impacto, que os estudantes negros ou indígenas haviam ouvido nas dependências da
universidade. A campanha pedia atenção para as práticas cotidianas e naturalizadas de
discriminação, e também se posicionava contra a negação do racismo. A Ufopa incentivou as
pessoas a compartilharem as imagens dos cartazes nas redes sociais com a hastag
#OfimDoRacismoComeçaPorVocê.
41
http://www.ufopa.edu.br/noticias/2016/abril/audiencia-publica-marca-o-inicio-da-semana-dos-povos-
indigena. Publicado em 13/04/2016.
42
Representada pela Ouvidoria, a Reitoria de Gestão Estudantil, do Diretório Acadêmico Indígena (DAIN) e a
Coordenadoria de Cidadania e Igualdade Étnico-Racial.
57
FONTE: #ofimdoracismocomeçaporvocê
sentiu a necessidade de aprender informática e contou com a ajuda da mãe, que recebia uma
bolsa do governo, o que o permitiu pagar o curso.
Márcio Munduruku relata: “eu achava que os alunos da cidade eram muito inteligentes,
eram mais inteligentes, mas quando eu cheguei lá pela primeira vez, eu acho que eles tinham
mais vergonha que eu, de se expressar, de se apresentar”. Até mesmo ele, que nasceu e cresceu
na sua aldeia, dotado de tantos conhecimentos tradicionais da sua cultura, compartilhava a
crença do senso comum de que os não indígenas seriam mais inteligentes. Logo o percebi
arguto, através da clareza com que expressava suas ideias, mas ele quis me contar o quanto se
destacou na escola embora fosse indígena: “na sala de aula, todo mundo me reconhecia como
indígena. Eu era muito inteligente em matemática, quer dizer, em todas as disciplinas, porque
eu gostava de estudar, eu fui muito bom e os alunos sempre me consideravam como o melhor
aluno, sempre fui elogiado pelos professores também”.
A imagem do indígena estabelecida pelo senso comum é muitas vezes compartilhada
por eles mesmos. É uma ideologia pervasiva que penetra mentalidades. Paulo Freire, referindo-
se à análise da “consciência colonizada” de Albert Memmi, fala da auto-desvalia como
característica do oprimido: “Resulta da introjeção que fazem eles da visão que deles têm os
opressores”. De tanto ouvirem que os não indígenas são donos do “conhecimento universal” e
59
por isso mais inteligentes, acabam se convencendo de que isso é uma verdade. Só passam a ter
uma visão diferente na medida em que se inserem num contexto concreto e podem reavaliar
isso. “É preciso que comecem a ver exemplos da vulnerabilidade do opressor para que, em si,
vá operando-se convicção oposta à anterior. Enquanto isso não se verifica, continuarão
abatidos, medrosos, esmagados. ” Esse processo é precisamente a decolonialidade do ser, uma
libertação que em certa medida o movimento indígena opera. Uma libertação vivida por Márcio
Munduruku ao se inserir em um contexto concreto, no caso a escola, e confrontar a percepção
que antes tinha.
Essa mesma disposição em demonstrar inteligência para os não indígenas, eu percebi na
Ariana Karipuna, de quem eu falei no item anterior, quando ela me contou sua experiência de
estudar em uma escola não indígena. “Os colegas da sala mandavam bilhetinho pra mim
dizendo: ‘ih, índia cobra vai lá explicar, índia onça vai lá explicar teu trabalho. Ih, olha a índia!
A índia vai explicar o trabalho dela’. Entendeu? Só que eu relevava. Eu dizia com muito orgulho
eu sou índia e vou mostrar pra vocês como a índia é inteligente”, relata Ariana Karipuna. Os
indígenas têm sempre de enfrentar o senso comum estabelecido de que eles são intelectualmente
menos capazes e por isso, não obstante as dificuldades que enfrentam para garantir a educação
formal, costumam se empenhar muito mais para vencer as barreiras estabelecidas pelo
pensamento geral.
Foi lembrando do Márcio Munduruku que tive a ideia de questionar meus colegas na
ocasião do curso de inglês, que contei no começo do capítulo, sobre o que eles achariam se
tivéssemos um colega indígena na sala. Com expressões de espanto dos colegas, um deles disse
que seria “inacreditável”. Em uma de nossas conversas, Márcio Munduruku me falou do seu
interesse em aprender inglês. Contou-me que havia conhecido uma antropóloga linguista
interessada em aprender o Munduruku e que ele fez a proposta de ensiná-la sua língua em troca
de que ela o ensinasse o inglês. Falou-me com certo pesar que o plano não tinha dado certo,
pois ela teve que voltar para a sua cidade, mas que assim que puder pagar, ele vai começar a
frequentar um curso de inglês.
Márcio Munduruku diz que continua aprendendo o português, embora eu tenha
percebido o seu português muito fluente. Ele lembra de como se sentiu quando foi estudar em
uma comunidade não indígena: “eu não me sentia à vontade porque a maioria falava só
português. Eu não falava, eu não entendia”. O que ele diz confirma que a língua é uma das
maiores barreiras que os estudantes indígenas que saem de suas aldeias para estudar na
universidade enfrentam. Muitos deles estudaram o ensino fundamental e médio nas suas aldeias
60
com um método de ensino diferenciado usando suas línguas maternas, e sentem dificuldades
quando ingressam na universidade, na cidade, especialmente por causa do português.
Maike Vieira, que se identificou como índio negro da etnia Kumaruara, foi Coordenador
de Cidadania e Promoção Étnico Racial na Diretoria de Ações Afirmativas da Ufopa. Ele me
contou sobre as dificuldades que os indígenas enfrentam no processo de adaptação à
universidade:
O processo de adaptação no ambiente urbano marcado pelo individualismo, pelo preconceito,
pelo racismo, esse choque cultural é muito difícil pros indígenas. Muitos que são bilíngues,
como os Mundurukus e os Wai Wai, desistem logo no primeiro contato porque têm dificuldade
de conseguir um contrato para alugar uma casa, têm dificuldade pra se movimentar na cidade,
têm dificuldade pra abrir uma conta bancária, que é fundamental pra que eles tenham acesso à
bolsa pra permanência na universidade. Outro processo que é duro é o processo de permanência
na universidade porque ele se depara com o modelo acadêmico cartesiano, baseado na
meritocracia, na nota. E na hora de formar equipes, muitos ficam de fora. Eles têm dificuldade
com a língua, sobretudo os indígenas bilíngues. Os indígenas do baixo Tapajós também têm
essa dificuldade, mas como eles foram alfabetizados no português, essa dificuldade é menor.
Por conta disso, a gente já recebeu muitos casos [denúncias] de racismo, de preconceito em sala
de aula, de discriminação, de o indígena não conseguir fazer trabalho em nenhuma equipe, de
professores se negarem a orientar trabalhos de pesquisa.
Essa dificuldade com o português foi relatada por Márcio Munduruku, que afirmou: “os
alunos que vêm da aldeia pra cidade têm mais dificuldades de se expressar, de falar e até
entender eles não entendem”. Lembrei de mim mesma quando fiz doutorado sanduíche, durante
o ano de 2015, nos Estados Unidos. Embora tivesse frequentado cursinhos de inglês ao longo
da vida, de ser capaz de ler, e de crescer cercada de músicas, filmes e de toda a língua inglesa
difundida pela influência da cultura americana, me senti completamente perdida no início. Era
difícil entender completamente até mesmo discursos claros e pausados. Parecia que o inglês,
que havia aprendido até então, tinha ganhado uma velocidade incompatível aos meus ouvidos.
Expressar-me, então, era pior ainda, e se fosse em público, a minha costumeira facilidade de
falar dava lugar a uma desarticulação apoiada na insegurança, o que me deixava visivelmente
envergonhada. Pensando nas minhas próprias dificuldades, pude compreender um pouco a dos
indígenas acostumados às suas línguas maternas, que precisam se adaptar não só ao português,
mas também à dinâmica da cidade e ao método de ensino das universidades. E, para além de
todas essas adaptações, eles passam a confrontar diariamente o senso comum estabelecido na
sociedade, enraizado no pensamento e refletido no comportamento das pessoas.
Especialmente, as dificuldades dos indígenas para falar o português reforçam o racismo
na universidade. A língua “barra os estudantes indígenas a ponto de até chegar a desistir
61
também”, afirma Márcio Munduruku, que completou dizendo da sua própria dificuldade
quando se trata de uma linguagem mais técnica:
Eu nunca sentia um preconceito, tipo o que tá acontecendo agora na universidade e isso a gente
não aceita (...). Aqui na Ufopa, eu tenho mais dificuldade porque o método de ensino é mais
técnico. Por exemplo, em algumas disciplinas eu acabo não entendendo a explicação dos
professores. A linguagem é muito técnica e eu acabo não entendendo, mas também os alunos
não indígenas não entendem. Aí, como eu sou indígena, pior pra mim. A gente sofre preconceito
por parte dos professores, como dos alunos também. Aí a gente tá lutando pra ver se a gente
consegue diminuir ou até acabar mesmo (...). Na sala de aula a gente fica mais isolado, mas
alguns alunos são bacanas, não todo mundo.
Racismo é crime
A frase que titula o tópico é bastante difundida e já faz parte de um conhecimento geral.
As pessoas têm certeza de que “racismo é crime”, mas elas sabem o que é o racismo? A minha
intenção não é decifrar atitudes racistas, mas demonstrar como a palavra racismo, associada a
outros vocábulos definidores como preconceito e discriminação, atua no contexto social. É
estudando a legislação que partirei para uma primeira análise. Cabe ressaltar que esse não é um
trabalho jurídico, portanto não é intenção questionar a lei que pune o racismo, pormenorizar de
que forma ela é aplicada ou mesmo a sua real efetivação. O escopo é demonstrar como a palavra
“racismo” é estigmatizante e, portanto, leva pessoas e instituições a negar o “rótulo”. A palavra
tem o poder de criar a realidade. Sua omissão invisibiliza essa mesma realidade. Assim, o
enfrentamento do racismo, combinando os campos jurídico, moral e semântico – resultando
crime e vexação –, pode, como reflexo, gerar a própria negação discursiva da sua existência,
não apenas pela população em geral, mas também por instituições jurídicas. Não farei um
profundo apanhado histórico de como se construiu a lei atual, mas me empenharei em esclarecer
como sua definição, ao mesmo tempo em que incrimina atitudes, estimula silêncios sociais e
institucionais.
Não é possível falar da lei vigente contra o racismo sem mencionar a precursora “Lei
Afonso Arinos”. Aprovada em 3 de julho de 1951 e batizada com o nome do seu idealizador, o
deputado federal Afonso Arinos, a Lei 1.390 transformou o racismo em contravenção penal43.
O deputado propôs o projeto de lei motivado pelo racismo sofrido pelo seu motorista negro,
que foi impedido de acompanhar sua esposa branca e seus filhos em uma confeitaria do Rio de
Janeiro. No entanto, o projeto de lei só ganhou adesão total e sua aprovação no Congresso
depois do escândalo e indignação gerada pelo racismo sofrido por Katherine Dunham, em 1950.
43
É uma infração penal considerada “crime menor”, punida com prisão simples ou/e pagamento de multa.
63
A famosa bailarina americana foi impedida de se hospedar em um hotel de São Paulo, que não
aceitava negros. Sem dúvida, o fato de a vítima ter sido uma estrangeira e famosa pesou no
sentimento de reprovação ao racismo e ajudou na aprovação da lei. Por vezes, o sentimento de
inferioridade do brasileiro faz com que dedique ao estrangeiro graus de prestígio e adulação
desmesurados. O que se trata de mais uma colonialidade. Não que o caso desmereça indignação,
muito pelo contrário. Mas é possível imaginar quantos negros brasileiros haviam sido
impedidos de frequentar estabelecimentos até o caso de Katherine Dunham? Ou mesmo sofrer
o impedimento, sem que isso causasse comoção, mesmo depois da Lei Afonso Arinos?
De fato, essa lei foi muito criticada, pois não deu ao racismo a gravidade que merecia,
tratando os casos quase que como ‘meros descuidos’. Deixando de observar o racismo de
maneira sistêmica, a lei focava apenas nos atos de recusa, oposição ou negação de acesso de
pessoas negras a determinados lugares. A importância da referida lei se restringiu a dar
visibilidade ao racismo em um momento de grande crença na democracia racial do país, mas
ela foi ineficiente, pois em toda a sua existência não houve sequer um registro de prisão com
base na lei. Por isso, a Lei Afonso Arinos foi revogada e deu lugar à Lei 7.716 de 1989, que
elevou a crime com punição de até cinco anos de prisão, o que era apenas considerado
contravenção penal.
Conhecida como “Lei Caó”, a nova lei transformou a prática do racismo em crime
inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão. O ativista negro e deputado Carlos
Alberto Caó propôs a lei com a seguinte justificação:
O negro deixou, sem dúvida, de ser escravo, mas não conquistou a cidadania. Ainda não tem
acesso aos diferentes planos da vida econômica e política. É mais do que evidente que as
discriminações raciais marcam a sociedade, o Estado e as relações econômicas em nosso País.
Passados cem anos da Lei Áurea, esta é a situação real.
O racismo sofrido pela população negra motivou a criação da lei, mas as regras jurídicas
são válidas para o preconceito e discriminação contra qualquer raça. Ainda hoje, quando há
denúncias de crimes de racismo, os casos geralmente envolvem vítimas da “raça negra”. Para
os indígenas, em algumas situações, o racismo ainda prevalece na explícita segregação de
ambiente, sem que isso gere denúncia formal criminal ou punição. O antropólogo Rodrigo
Ribeiro relata o racismo que acontece com os Tikmũ’ũn, como se autodenomina o povo da TI
Maxakali, situado no nordeste de Minas Gerais, quando precisa comprar coisas:
Via de regra os indígenas são proibidos de entrar nos estabelecimentos, tendo de dizer a um
funcionário qual o item deseja comprar e este o apanha para o Tikmũ’ũn. Os proprietários
alegam que se deixassem os indígenas entrar na loja eles praticariam furtos ou “fariam bagunça”
em seu interior. Certa vez em conversa com Guigui Maxakali, o cacique de Aldeia Nova, ele
me disse que os Tikmũ’ũn tinham mãos, que não eram como os cachorros os quais apanhavam
64
as coisas com a boca e precisam de alguém para levar as coisas até eles. Obviamente nenhum
Tikmũ’ũn ignora o tom vexatório desta situação. (RIBEIRO, 2016, p 15 e 16)
44
http://www.folhabv.com.br/noticia/Indigenas-sofrem-preconceito-na-UFRR/12925
45
0,3% dos 1.675 candidatos eleitos nas eleições de 2014 se declararam negros. 76% de brancos venceram.
Nenhum negro venceu para cargos de maior prestígio como senadores ou governadores. O senado brasileiro é
composto por 81 senadores, dos quais 64 são homens brancos, seis são homens negros, e 10 são mulheres brancas.
Apenas 1 é negra (http://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160509_perfil_senado_impeachment_if_rm).
65
46
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/brancos-serao-quase-80-da-camara-dos-deputados-3603.html
66
Presidência da República. Causou ódio e furor nos adversários e foi difamado pela mídia. Darcy
Ribeiro o defendeu:
Este índio novo, tão melhor armado para a sua própria defesa, provoca grandes antipatias. O seu
símbolo maior, Mário Juruna, chega a desencadear ódios como se fosse um ser detestável. É
profundamente lamentável que até a imprensa mais respeitável do país, a exemplo do Jornal do
Brasil, tenha mantido, durante anos, uma campanha sistemática de desinformação contra o
deputado Mário Juruna, através dos procedimentos mais antiéticos, indignos da sua tradição
jornalística. (apud Menezes, 2015, p. )
A grande imprensa não deu trégua ao construir uma imagem nociva mesmo sustentando
uma aparente neutralidade. Retratava Juruna como um ser quase incapaz, que mal sabia falar o
português. Sem o menor cuidado e revisão, os jornais reproduziam seu discurso de maneira
esdrúxula tornando o texto incompreensível, prejudicando gravemente sua carreira política,
afetando sua grande popularidade e destruindo sua carreira política. Um tratamento
completamente diverso era destinado às falas do embaixador dos Estados Unidos, que falava o
português com o mesmo grau de dificuldade de Mario Juruna, mas que tinha suas falas
perfeitamente corrigidas a fim de se tornarem textos plenamente compreensíveis. “As
consequências desta campanha da imprensa estenderam-se para muito além da carreira política
do líder xavante, posto que a imagem negativa de Juruna terminou por afetar desfavoravelmente
outros xavante e – se a eleição para um cargo federal for usada como medida – todos os povos
indígenas do Brasil” afirmou Grahan (2011, p. 273). Embora, essa campanha destrutiva ao
deputado índio afetasse diretamente a imagem dos indígenas, ela não foi denunciada como uma
atitude racista da imprensa brasileira.
Figura 14: Mario Juruna
Fonte: http://jesusdacosta.blogspot.com.br/2013/07/
67
Logo em seu primeiro discurso, Juruna mostrou que seu mandato não seria dedicado
apenas aos índios. Ele enxergava a condição social e igualava o pobre trabalhador ao índio, os
distinguindo completamente dos políticos, que eram filhos de empresários ricos ou de outros
políticos. O líder xavante Mario Juruna não foi reeleito. Morreu pobre aos 59 anos de idade. O
seu mandato incomodou tanto porque a denúncia era sua arma e ele agia em nome do povo,
dando valor ao popular. Mas o que o popular tem a ver com o racismo?
Um texto que circula nos sites do movimento negro diz que, para se constatar o racismo
no Brasil, basta fazer o ‘teste do pescoço’, que seria girar a cabeça para ver em determinados
ambientes - como restaurantes, escolas e hospitais particulares, universidades, shoppings, entre
outros lugares – quantos negros existem, no caso de existirem. Por outro lado, o teste serviria
também para contar quantos são os negros servindo como garçons, pessoal de limpeza,
empregados domésticos, ou mesmo sendo linchados, presos e assassinados pelas polícias.
Frequentando feiras e espaços populares de Belém ou simplesmente em ônibus urbanos é
possível ver, para além da condição econômica, cor e características físicas de uma população
não branca: traços, peles, cabelos de uma população de afro e/ou de indígena descendência.
As escolas municipais e estaduais estão degradadas. Hospitais públicos cada vez mais
abandonados. Praças se deteriorando. A quem interessa o que é público? Por sua vez, espaços
públicos destinados ao turismo ainda seguem um padrão de qualidade, onde as pessoas podem
circular à vontade sem temer pela segurança. Quem são os frequentadores desses lugares?
Certamente não são, em sua maioria, os mesmos frequentadores dos demais espaços populares.
Entre os frequentadores desses espaços sofisticados estão alguns políticos representantes do
povo. O chamado ‘povão’ tem cor e traços e, no Pará, esses são afrodescendentes e indígenas.
Eles e seus espaços não parecem ser prioridade para as políticas governamentais. Isso aprofunda
a fratura da desigualdade social e cria por um lado a manutenção de privilégios e por outro um
deprimente estado de carência dos bens mais básicos nos lugares populares. Se é assim, como
essa estrutura político-social não seria racista?
Apesar de o racismo ser o pilar das desigualdades e injustiças sociais que marcam a
sociedade brasileira, ela não se reconhece racista. Embora seja evidente a distância que separa
os pretos e pardos dos “brancos’, “racista é sempre o outro”, conforme revelou pesquisa do
Datafolha realizada em 2008. Os resultados da pesquisa não se mostraram muito diferentes
daquela realizada em 1995 pelo mesmo instituto: o brasileiro é plenamente capaz de identificar
o preconceito no outro, mas raramente em si mesmo. Dentre os entrevistados, 91% afirmam
que os brancos têm preconceito de cor em relação ao negro. Porém apenas 3% (excluindo os
autodeclarados pretos) admitiram ter preconceito. A proporção das respostas no caso contrário
68
foi equivalente: 63% afirmaram que os negros têm preconceito em relação a brancos, mas
apenas 7% (excluindo os brancos) disseram ter preconceito. Os dados revelam que no Brasil o
racismo existe, mas está sempre no outro.
Racismo no Brasil é crime inafiançável e imprescritível, e também por isso está sempre
no outro. Melhor ainda é acreditar que ele não existe. Ou achar que, se existe, são apenas casos
isolados, sempre envolvendo terceiros. Foi o que revelou a pesquisa. Não se trata apenas da não
inclusão da população negra e indígena em cargos e no mercado de trabalho melhor
remunerado. Trata-se do desprezo pelo que é popular.
O popular está situado abaixo da “linha do humano” ou na “zona do não-ser”, onde o
“outro” não é reconhecido na sua humanidade e se torna sub-humano, onde autores pós-
coloniais e descoloniais, entre os quais Frantz Fanon, Ramón Grosfoguel e Boaventura de Sousa
Santos, reconhecem estar situados os que são tratados de forma racista, sem direitos, sem
civilidade, sujeitos a violências, violações e apropriações.
69
47
O português Duarte Pacheco Pereira teria passado entre os Estados do Pará e do Maranhão em 1498 e o espanhol
Vicente Yañez Pinzón teria passado pelo norte do Brasil em janeiro de 1500.
70
passado por aqui antes, o nome de Cabral ficou famoso e eternizado em ruas, avenidas e praças
espalhadas de Norte a Sul do Brasil.
Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à
terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou
para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como
se lá também houvesse prata!
A princípio não acharam nem ouro, nem prata, mas logo notaram que a terra era coberta
de uma árvore com alto valor no mercado: o Pau Brasil. A intensa exploração do Pau Brasil deu
o novo nome a essa terra, e os homens que extraíam a árvore, os brasileiros, deram nome ao
povo que se formou. Ao nativo da terra, independente do povo a que pertencia, chamaram-no
índio. Como índios, eles foram violentados, inferiorizados, compactados e anulados pelo
colonizador em suas diferenças. A “descoberta” dessas terras pelos portugueses marca o início
de uma história violenta do Brasil que apaga histórias correspondentes às organizações sociais,
culturais, territoriais e espirituais dos povos que pertenciam a essas terras. Era como se tudo
que se referisse à Pindorama49 – o Brasil antes da invasão portuguesa - não merecesse ser
contado ou registrado, a fim de não legitimar ocupantes e seus ancestrais como legítimos donos
desse vasto território. Atualmente, a palavra descobrimento vem sendo lentamente substituída
pela palavra conquista, em uma nova tentativa errônea de se aproximar da real história de
invasão dessas terras.
48
“A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus,
sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar
a cara. Acerca disso são de grande inocência” (1968, p. 2).
49
Palavra de origem Tupi que significa terra das palmeiras e era como os povos ando-peruanos chamavam a terra
que hoje é o Brasil (CASTANHA, 2007).
71
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5d/Meirelles-primeiramissa2.jpg
O governo brasileiro gastou quatro milhões de reais para construir réplica da nau usada
por Cabral para reproduzir o momento da chegada dos portugueses nas terras de cá. A caravela,
construída agora com tecnologia moderna, tentou por quatro vezes navegar sem sucesso, devido
a falhas técnicas. Depois das desastrosas tentativas de navegação, ela foi destinada a compor
um museu. Não bastasse a soberba de construir uma caravela, outro projeto grandioso se
materializava em sessenta toneladas de metal e pedras usados para reproduzir um altar, cujo
72
centro fora simbolizado com uma cruz de dezessete metros de altura. O ostensivo conjunto50,
que custou nada menos que meio milhão de reais, simbolizava a primeira missa celebrada no
Brasil. Reproduzindo uma atitude colonizadora, o Governo Federal impôs essa construção no
meio da Terra Indígena de Coroa Vermelha, sem consultar as mais de trezentas famílias
indígenas que ali viviam em uma aldeia em condições precárias. Na época, Paulo Maldos51,
assessor político do Conselho Indígena Missionário (CIMI), denunciou a simbologia do
conjunto como intenção do governo de recolonizar os territórios indígenas:
A arrogância feita de metal e pedra agride e anula tudo ao redor, como os efeitos de uma bomba
ou de um gás paralisante. Com relação à comunidade indígena Pataxó de Coroa Vermelha,
obrigada a aceitá-lo sem conhecer, o conjunto invasor significa a afirmação do poder do Estado,
da sociedade européia, ocidental e pretensamente cristã. Com relação aos demais povos
indígenas do Brasil, para onde o monumento necessariamente espalha seu significado, ele
projeta a mesma sombra: a do controle opressor do Estado nacional, espalha a exigência da
obediência, espalha o constrangimento e o medo frente ao poder.
Segundo Maldos, o medo que a obra poderia espalhar é enfrentado corajosamente pelos
indígenas que, sem ter o que comemorar, aproveitaram a ocasião do “Brasil 500 anos” para
reivindicar e protestar. Na ação do Governo percebe-se explicitamente a colonialidade do poder
(QUIJANO, 1997), que em uma condição pós-colonial reproduz a história em ações
colonizadoras internas, mediante a imposição de atitudes e pensamentos de dominação do
50
O projeto idealizado pelo escultor Mário Cravo, a convite do Governo Federal, custou meio milhão de reais.
51
Ver em “A cruz do colonizador”: http://www2.uol.com.br/aregiao/art/indcruz.htm
73
Outro. Para enfrentar esse poder imposto pelo Estado, vários grupos de todo o Brasil se
encontraram na aldeia pataxó de Coroa Vermelha, no sul da Bahia, para denunciar invasões,
genocídios e atrocidades enfrentados pelos povos indígenas desde a chegada dos portugueses.
Os indígenas, junto com estudantes e representantes de outras minorias, formaram o
movimento “Outros 500” e decidiram caminhar em passeata pacífica até a cidade de Porto
Seguro. Todavia, a rodovia foi bloqueada pelo batalhão de choque da polícia militar, que ao
avistá-los lançou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha com total desprezo e
violâcia. Trinta pessoas foram feridas, dentre elas nenhum militar. Só naquele evento houve
mais de cento e cinquenta manifestantes presos. A violência militar reproduzia o racismo com
que os indígenas foram desde sempre tratados, tanto pelos colonizadores quanto pelo Estado
Brasileiro. Mais uma vez a legítima violência do Estado mostrou seu poder em atitude que
reproduz, meio século depois, toda a brutalidade da colonização.
Na ocasião do “Brasil 500 anos”, três mil indígenas de cento e cinquenta povos de todo
o Brasil se reuniram na “Conferência do Povos Indígenas”, em Coroa Vermelha. Eles se
encontraram para denunciar a violência histórica e exigir um futuro com mais respeito e
dignidade. Foi a primeira vez que os povos do baixo Tapajós, auto-afirmados indígenas e
ressurgidos na história, participaram de uma conferência indígena. Por essa razão, o encontro
significou um marco para o movimento indígena do baixo Tapajós: um momento de orgulho,
afirmação e pertencimento em um coletivo que os fortalecia. Os indígenas do baixo Tapajós
denunciaram os abusos sofridos agora no presente e retomaram a história no relato do frei
Gaspar de Carvajal, participante da expedição de Francisco de Orellana, que descreve os
Tapajós como um grande povoado de complexa cultura material, onde hoje se situa a cidade de
Santarém (PORRO, 2008).
Desencontro
Antes da chegada de Cabral, na Amazônia viviam pelo menos oito milhões de pessoas.
Foi o que apontou pesquisa realizada por uma equipe liderada por Charles Clement (2015) do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). De acordo com dados do IBGE, esse
número de habitantes só foi atingido pelo Brasil “branco” no final do século XIX, isso somadas
todas as regiões do país. A pesquisa revelou que, há quatro mil anos, mais de oitenta espécies
de plantas selvagens foram domesticadas52. Os arqueólogos encontraram indícios dessa larga
ocupação da Amazônia através de restos de amplas estradas, diques e paliçadas defensivas;
52
Entre elas o cacau, batata, abacaxi, mandioca, tabaco, açaí e cupuaçu (CLEMENT et al, 2015).
74
resquícios de manejo dos rios para captura de peixe em larga escala 53; e produção de uma
cerâmica complexa54, que sugere sistemas de hierarquia e de mão de obra semiespecializada.
A despeito dessa longa história que abrange desde a construção de artefatos à uma
complexa tecnologia de cultivo, os europeus que aqui chegaram consideraram todos os grupos
e culturas indígenas como uma coisa só. Os compactaram, os homogeneizaram e os
consideraram parte indissociável da natureza. De forma que, para portugueses, de um lado
estava a “civilização” por eles representada, e de outro uma massa de índios tidos como
“primitivos”. Os invasores se apropriaram deste chão, chamando todas as formações
geográficas com nomes de santos (CUNHA, 2006), adestraram pessoas e batizaram-nas com
os mesmos nomes. Com a mesma facilidade com que abriram clareiras, destruindo mata e
explorando tudo o que dela lhes servia, esvaziaram quase toda essa terra de suas gentes. Esse
genocídio que começou no período colonial, de certa forma prevalece até os dias de hoje.
Os acidentes geográficos -montes, baías, ilhas, campos- foram desenhados, traçados em
mapas, enquanto as populações indígenas foram invisibilizadas e exterminadas. O índio
destituído de sua humanidade foi considerado como mais um elemento da rica e variada
natureza local. A ideia do índio como parte da natureza, plantada durante a invasão e
colonização, persiste até os dias atuais. Recentemente, o IBGE lançou o Atlas Nacional Digital
do Brasil 2016, com caderno temático sobre os indígenas e mapas interativos. O G1 do grupo
Globo, um dos canais digitais mais acessados do país, divulgou a notícia no caderno
“Natureza”55, junto com matérias sobre jacarés, ursos, peixes e leões. Assim como os invasores
do século XVI exterminavam nativos com a mesma brutalidade com que extraiam árvores, os
meios de comunicação hegemônicos do século XXI exterminam os povos indígenas da
sociedade, ao divulgar suas notícias na mesma seção que comunica sobre animais ou sobre o
desmatamento. Nas redes sociais, ativistas, estudantes e pessoas aficionadas à causa indígena
compartilharam a informação, sem se dar conta de que a notícia vinculada à natureza é parte de
um senso comum que ainda percebe o indígena como um ser selvagem e natural, e não social.
Fato é que o “encontro” entre o antigo e o novo mundo foi dilacerador para as
populações nativas. Mais adequado seria nominá-lo desencontro. Desencontro de visões de
mundo, de formas de viver, vestir, comer, crer, morrer56. De milhões, quando do contato, a
53
Na região do Xingu.
54
Na ilha do Marajó e na região Oeste do Pará.
55
Publicada no dia 02/07/2016 - http://g1.globo.com/natureza/noticia/2016/07/305-etnias-e-274-linguas-estudo-
revela-riqueza-cultural-entre-indios-no-brasil.html
56
“Para
os
que
chegavam,
o
mundo
em
que
entravam
era
a
arena
dos seus ganhos,
em ouro
e
glórias.
Para
os
índios
que
ali
estavam, nus na praia o mundo era um luxo de se viver. Esse foi o encontro fatal que ali
se
dera.
Ao
longo
das
praias
brasileiras
de
1500,
se
defrontaram,
pasmos
de
se
verem
uns
aos
outros
75
população indígena foi reduzida a menos de 100 mil em 1957 (RIBEIRO, 2009 [1970]). Como
se sabe, a primeira grande causa da depopulação indígena foram as epidemias trazidas pelos
europeus, que primeiro dizimaram os indígenas concentrados e aldeados por missionários e
órgãos oficiais (CUNHA, 2006). Além disso, a sede por escravos, para prover de mercadorias
o capitalismo mercantil, fez com que o colonizador fomentasse guerras entre os grupos
indígenas. As guerras combinadas com toda a crueldade da colonização trouxeram fome,
deslocamentos, desestruturação social dos grupos indígenas e luta para sobreviver alhures.
Esses eventos marcaram o início do genocídio indígena, que na região amazônica se estendeu
de maneira brutal até o período ditatorial.
Com dimensão continental e densa mata, a Amazônia só ganhou atenção da Coroa
Portuguesa entre os séculos XVII e XVIII, tendo sido os jesuítas os responsáveis pela sua
ocupação (ibidem). Nesse período, a cobiça era destinada à exploração das drogas do sertão 57
associada à exploração do trabalho indígena. Com o intuito de devassar e explorar os produtos
da floresta, Darcy Ribeiro afirma:
Os índios foram aliciados desde a primeira hora, através de toda a sorte de compulsões, desde a
“sujigação” e o descimento para as missões e núcleos coloniais até técnicas mais manhosas,
como a de acostumá-los ao uso de artigos mercantis cujo fornecimento posterior era
condicionado à sua participação nas atividades produtivas como mão de obra para todo serviço”
(2009 [1996], p. 36).
De índio a tapuio
59
Coletavam cacau, cravo, salsa e guaraná.
60
As missões eram também chamadas “reduções”.
77
As culturas dos nativos eram demasiadas distintas para serem compatíveis com os valores
eurocêntricos cristãos. Ou seja, a missão era a de desindianizar a partir do discurso da salvação
das almas, e assim formar uma sociedade cristã aos moldes da civilização europeia. O
historiador Ferreira Reis demonstra a sistemática redução da gentilidade indígena na região,
dado que em 1719 “havia 35 mil índios batizados na missão” (REIS 1979, p. 24/33).
De tão incapaz de compreender e respeitar a cultura dos nativos, a missão foi “o centro
por excelência de destribalização e de homogeneização deculturativa (...). O produto final é o
índio privado de sua identidade étnica, o tapuio” (MOREIRA NETO, 1988, p.23). De acordo
com o antropólogo Carlos Moreira Neto61 (1988), o tapuio era então o nativo que arrancado do
seu grupo de origem, violentado em sua identidade, se transformava no índio destribalizado e
etnicamente deculturado. O tapuio é o índio impossibilitado de entender a sua origem étnica,
de resgatar seu caminho de ancestralidade, de praticar a espiritualidade e a tradição do grupo
do qual se originou, não por opção, mas por desconhecer sua própria raiz. O índio, sempre
rejeitado pela sociedade branca colonizadora, foi remodelado com o auxílio dos missionários e
transformado em tapuio, e continuou sendo desprezado.
A sociedade dominante não enxergava o índio como uma pessoa, mas sim como uma
categoria genérica. O índio tapuio teve grande dificuldade de reconstruir modo de vida, crenças,
comportamentos por desconhecer sua própria origem e também por ter sido submetido a aderir
cultura e crença impostas pelos jesuítas. Para Moreira Neto (1988) nada caracterizava mais o
estado colonial do nativo do que o anonimato e a impessoalidade. Essa condição de quase
inexistência atravessa a condição dos nativos com seus respectivos grupos étnicos bem
identificados, passa pelo índio violentado em sua identidade, o tapuio, e alcança a condição do
caboclo, como é chamada atualmente grande parte dos habitantes da Amazônia rural.
De tapuio a caboclo
O século XVIII foi marcado pela assinatura do Tratado de Madri62 em 1750, que
acarretou consequências dramáticas para a vida do índio. O tratado colocava fim a uma disputa
61
Carlos Moreira Neto buscou compreender profundamente a categoria pouco conhecida Tapuio, revelada no livro
de sua autoria “Índios da Amazônia. De maioria à minoria. 1750 – 1850” (1988). Moreira Neto faz um estudo
detalhado dos mecanismos oficiais e extraoficiais que “civilizaram” o índio, deculturando-o e matando-o da
história.
62
Acordo firmado pelos reis João V de Portugal e Fernando VI da Espanha, na capital espanhola, em 13 de janeiro
de 1950.
78
histórica por territórios entre Portugal e Espanha nas colônias sul-americanas, concedendo à
Portugal mais ganhos territoriais na parte Norte, ou seja, na região Amazônica63. Assim, uma
nova estratégia foi formada para dinamizar economicamente a região. Dentre as ações da Coroa,
a partir das políticas implantadas por Marquês de Pombal64, estava a criação da Companhia
Geral de Comércio do Maranhão e Grão-Pará, que serviu à importação de escravos africanos
em grande escala a fim de desenvolver a agricultura e o comércio. Até sua criação em 1755,
cerca de 3.000 africanos escravizados entraram na região, número que saltou para 12.000 no
período de 1755 a 1777. Fato que deu uma nova face à população local. Além disso, o
posicionamento contrário à instalação da Companhia Geral de Comércio por parte dos jesuítas,
aliada aos seus interesses particulares, fez com que Portugal se sentisse ameaçado em sua
soberania e tomasse a decisão de expulsá-los dos seus domínios.
Para garantir a posse e o usufruto da região, a Coroa portuguesa instalou o Diretório dos
Índios em 1757, com o claro objetivo de “civilizar”. O Diretório transformava os aldeamentos
indígenas, organizados pelos jesuítas, em vilas e aldeias administradas por um diretor.
Assegurava a liberdade ao índio, mas impunha normas que golpeavam ainda mais suas
identidades culturais. Uma delas foi a implantação de escolas com o uso exclusivo da língua
portuguesa, ficando proibido falar em qualquer outro idioma. A punição era a de morte para
quem ousasse usar a “língua brasileira” (conhecida como nheengatu ou a língua geral). A nudez
e as habitações coletivas foram proibidas. Além disso, os índios foram obrigados a adotar
sobrenomes portugueses.
Tais políticas haveriam de considerar os índios enquanto colonos à semelhança dos vassalos
europeus. Em sintonia com o Diretório, outras medidas almejavam este intento: a lei de
incentivos de casamentos entre índios e europeus, o Alvará de liberdade dos índios, o Alvará
que retirava o poder temporal dos missionários sobre os aldeamentos e destinava aos índios a
gerência das povoações que habitavam, e, finalmente a elevação dos aldeamentos em vilas.
(ROCHA, 2009: 7 – 8).
Tais políticas causaram enorme confusão marcada por uma nova fase de submissão,
pois o Diretório significava ligar as populações indígenas aldeadas diretamente ao sistema
colonial, sem a intermediação dos jesuítas. E acarretaram “extraordinariamente o processo de
63
Maria Regina Celestino de Almeida informa que a colonização da Amazônia não foi homogênea, pois enquanto
no Oeste a maioria da população era indígena, a região leste (Belém e arredores) tinha uma presença muito maior
de brancos e negros, sendo mais povoada e mais produtiva (CELESTINO DE ALMEIDA, 1990).
64
Marquês de Pombal foi o primeiro ministro de Portugal entre os anos 1750 – 1777. Ele implantou uma série de
políticas controversas no país e em suas colônias. Tais políticas, chamadas Reformas Pombalinas, geraram
impactos nas esferas econômicas, administrativas e educacionais. A intenção era transformar Portugal em uma
metrópole capitalista, a exemplo da Inglaterra.
79
9). A antropóloga retoma Veríssimo (1970 [1878], p. 14 apud LIMA, 1999) para informar que
em tupi a palavra tapuio significa “o hostil, o inimigo, o escravo”. Ela diz que, após a
colonização, o termo tapuio foi usado para “designar o ameríndio assentado e trazia as mesmas
conotações de desprezo que tinha entre os índios” (ibidem, p.10).
O termo caboclo - “aquele que vem do mato” - carrega um sentido negativo (LIMA,
1999, p.6). A denominação é um desprezo, uma depreciação que classifica o negativamente.
Tem sua raiz na condição do índio perseguido, negado. É nome que surge durante o período
colonial da Amazônia, quando se forma o segmento camponês que compunha uma sociedade
profundamente hierarquizada, na qual caboclo ocupava a posição inferior (LIMA, 1999).
A indígena Márcia Kambeba me explicou como grande parte do seu povo perdeu sua
identidade indígena, passando a ser classificado como caboclo:
Restava ao Kambeba três opções: ou ele lutava e era morto, porque a flecha dele não ia resistir
à bala; ou ele se deixava escravizar e ele não queria ser escravizado (...); ou ele fugia pra mata
porque ele era da várzea ou adentrava a terra firme e negava sua identidade. (...). caa = mato;
boc = surgiu, apareceu. Aí você junta kaaboc: aquele que surgiu do mato. Quem que surgiu do
mato senão os indígenas, que são conhecedores dessa natureza, desse meio?
Assim como os Kambeba, vários povos na Amazônia passaram por essa mesma situação
de perseguição e negação, inclusive os Borari e os Arapium. Hoje, conscientes da história, eles
não querem mais se ver amarrados a nomes e definições dados por terceiros, com as quais eles
não se identificam, pois tais palavras são incapazes de expressar o próprio ser. “No caso de uma
palavra com sentido de exclusão como caboclo (em muitos aspectos o pária da sociedade
colonial amazônica), o nome atribui uma identidade que prende o grupo e os sujeitos a uma
imobilidade social. A permanência do nome restringe as possibilidades de emancipação” afirma
Deborah Lima (1999, p.27). Não se reconhecendo caboclos, os indígenas afirmados se
mobilizam na busca por reconhecimento e direitos.
Na introdução de “Índios e Caboclos, a história recontada” (2012), as organizadoras
Maria Rosário de Carvalho e Ana Magda Carvalho fazem uma alusão ao termo tapuia ao
falarem do termo caboclo: “A esse termo pode ter sucedido algo similar ao que ocorreu ao
termo tapuia, categoria englobante de todos os grupos indígenas ‘não Brasis’, portanto não
falantes do tupi” (2012, p. 15). Elas colocam no texto o depoimento de dois Pataxó, na década
de setenta do séc. XX, os quais afirmam que para eles falar de índio era coisa nova, pois eles
sempre se souberam tapuios, depois caboclos e só recentemente Pataxó, e assim ficaram:
“Pataxó toda vida”. Essa nomenclatura identitária imposta mas também reapropriada ao longo
do tempo, a exemplo desses Pataxó, é um processo que revela o quanto a identidade indígena
originária foi deliberadamente anulada por forças oficias que previam apagar de qualquer forma
81
o índio. Não conseguiram no caso dos Pataxó e de tantos outros grupos indígenas que ressurgem
na história.
Depois da extinção do Diretório, seguiram-se anos de agravamento da situação dos
índios na Amazônia, muitos deles emancipados e não mais identificados como índios. As
epidemias de doenças como o sarampo, a escravização e a profunda penúria social formaram o
cenário da maior revolta social na Amazônia e uma das maiores do Brasil: a Cabanagem.
82
que se submeter a trabalhos periféricos com ganhos que mal supriam sua necessidade alimentar.
Sem possibilidade de produzir em uma terra própria, a chance de mobilidade social era nula.
Os indígenas já estavam sofrendo um longo extermínio físico e cultural. A imagem do
indígena estava consolidada a estereótipos que o amarravam a características pré-cabralianas.
Muitos indígenas já haviam sido obrigados a renunciar a suas identidades étnicas e formavam
junto com os afrodescendentes uma população subalterna, engessada em termos de falta de
oportunidades e condições para uma ascensão social. Ao mesmo tempo, outros povos indígenas
ainda não submetidos a essa violência física cultural, especialmente na Amazônia, foram
confrontados durante a invasão de suas terras pelos seringalistas e suas “tropas” de seringueiros
escravizados ávidos por borracha, no primeiro ciclo econômico, que de fato transformaria
cidades e população na Amazônia.
Revelo a condição dos seringueiros que vieram do Nordeste como pessoas rejeitadas
por um padrão “branco” que as elites almejavam para suas capitais nordestinas. Ao mesmo
tempo em que as elites amazônicas modernizavam suas cidades à feição das cidades europeias,
reproduzindo padrões e gostos culturais, em total desprezo pelo que era local. Essa era uma face
evidente da colonialidade que as elites reproduziam, criando um verdadeiro apartamento do
povo pobre e marginalizado.
As populações indígenas tiveram suas terras invadidas e sofreram aterrorizantes
massacres durante o período da borracha, conforme o relato65 de Antônio Pereira, auto afirmado
Cara Preta, do município de Aveiro (PA), que ouviu histórias de um grande massacre e que
reconta talvez usando conotações metafóricas:
Naquele tempo o ouro era a seringa, que dava aquele respaldo danado, eles matavam muito, e
aonde chegavam aquelas crianças, que jogavam as crianças pra cima, aparavam na espada, isso
me revolta, revolta muito a respeito disso, então é por isso que a gente fica revoltado, quando
até mesmo agora tem esses preconceitos, que colocam, que eles falam contra os indígenas (...).
(Depoimento extraído de BELTRÃO, 2015, p. 19).
65
Relato extraído dos “Povos Indígenas nos rios Tapajós e Arapiuns” organizado por Jane F. Beltrão (2015, p. 19)
84
termos de padrões culturais e vida cotidiana muitas comunidades “mestiças” seriam constituídas
por índios etnicamente descaracterizados66. (2006 [1997], p. 24, traduzido pela autora).
Cabanos
A revolução social dos cabanos que explodiu em Belém do Pará, em 1835, deixou mais de 30
mil mortos e uma população local que só voltou a crescer significativamente em 1860. Este
movimento matou mestiços, índios e africanos pobres ou escravos, mas também dizimou boa
parte da elite da Amazônia. O principal alvo dos cabanos era os brancos, especialmente os
portugueses mais abastados. (RICCI, 2006: 6)
Esse trecho inicial de artigo67 de Magda Ricci (2006) revela o forte caráter racial da
Cabanagem. Cabanos eram os populares que moravam em habitações precárias, cobertas de
palha, semelhantes a cabanas, e que se insurgiram contra os poderosos da época. Daí o nome
Cabanagem. O movimento teve início em janeiro de 1835 e durou até 1840. Grande parte da
população da Província do Grão-Pará68 foi dizimada durante os confrontos. Vale informar que
a Província do Grão-Pará compreendia a área atual da Amazônia Brasileira, com exceção do
Estado do Acre, que na época ainda pertencia à Bolívia69. Estima-se que houve entre 30 e 40
mil mortos. Foi a única insurreição do país onde o povo tomou o poder.
66
‘no resulta legítimo diferenciar indígenas e non indígenas sobre la base de un listado de rasgos culturales, ya
que lo que realmente importa es la definición identitaria. Sin embargo cabe apuntar que em términos de patrones
culturales y vida cotidiana muchas comunidades “mestizas” estarían constituídas por índios etnicamente
descaracterizados’. (BARTOLOMÉ 2006 [1997], p. 24).
67
O artigo “Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre
1835 e 1840” (RICCI, 2006).
68
A Província do Grão-Pará surgiu da união das capitânias hereditárias do Grão-Pará e Rio Negro. Existiu desde
o fim do período colonial (1821) até o período Imperial (1889). Em 1833 a estimativa da população era 119.877
habitantes; 32.751 eram índios e 29.977, negros escravos. A maioria mestiça ("cruzamento" de índios, negros e
brancos) chegava a 42 mil. A minoria totalizava 15 mil brancos, dos quais mais da metade eram portugueses. Em
1850, a parte equivalente a capitânia do Rio Negro foi transformada em província do Amazonas.
69
A área do estado do Acre pertencia a Bolívia até o começo do séc. XX.
85
Apesar desses dados relevantes, a Cabanagem foi quase apagada na história do país.
Pouco se estuda sobre os meandros que motivaram a tomada do poder e pouca importância foi
dada a esse momento histórico. Mesmo em Belém, onde os cabanos tomaram o poder e
passaram a governar a província do Grão-Pará, poucos habitantes sabem o que foi a
Cabanagem. Raros documentos existem do período. As histórias, que dão vida a esse momento
e que inflamam o caráter social da revolta, foram em grande parte transmitidas oralmente. A
Cabanagem foi silenciada da história oficial.
Ricci (idem) critica os estudos que não dão a adequada importância ao que ela considera
como uma revolução cabana. Esses estudos geralmente reduzem a Cabanagem a mais uma
revolta social de caráter regional, como tantas outras70 do período regencial do Império do
Brasil. A autora revela que a Cabanagem exportou líderes e seu alcance foi bem mais amplo
que Belém e arredores, pois através do tráfico de pessoas e ideias, chegou até as fronteiras do
Brasil central, alcançando os litorais norte e nordeste, influenciando inclusive a América
Caribenha. Minha intenção aqui não é esmiuçar a Cabanagem, nem discutir teoricamente
enquanto uma revolução. Vou mostrar o quanto a cabanagem tem características de uma
insurgência racial que uniu índios e negros, e uma já mestiçada, portanto considerada
“genérica”, população contra o poder dos brancos abastados. Esse momento revelou uma clara
divisão racial da luta do povo que resultou no devastador “extermínio dos tapuios, índios e
mestiços que dela participaram”71, além da decadência das vilas e lugares tradicionais.
Existem várias análises72 do movimento da Cabanagem. Há inclusive quem associe os
ideais cabanos com os de “liberdade, igualdade e fraternidade” da Revolução Francesa (1789 -
1799), indicando uma possível influência que os cabanos possam ter recebido de franceses
exilados nas Guianas Francesas73. Não é objeto desse estudo pesquisar o campo dos
pensamentos que motivaram a luta do povo pelo poder durante a Cabanagem. Mas imagino que
as ideias de uma outra revolução possam ter viajado Caribe abaixo até chegar na Amazônia
brasileira. Seriam necessários levantamentos e aprofundamentos, mas acredito na possibilidade
de que notícias sobre a Revolução Haitiana (1791 -1804) tenham por aqui chegado. Ali os
negros se insurgiram e conquistaram o fim da escravidão e a independência do Haiti. Aqui
70
Balaiada no Maranhão (1838 – 1841) – revolta dos escravos, negros fugidos (quilombolas), pobres, artesãos
contra a situação miserável e a exploração dos comerciantes e produtores rurais; Revolta dos Malês na Bahia
(1835) – revolta de escravos de origem islâmica contra a escravidão e o catolicismo que lhes eram imposto; além
dessas teve a Sabinada na Bahia (1837 – 1838) e a Guerra dos Farrapos (1835 – 1845). Por todo o Brasil eclodiram
outras rebeliões de menor porte.
71
Moreira Neto (1988).
72
Magda Ricci faz um excelente apanhado de estudiosos da Cabanagem em seu artigo (2006).
73
Décio de Freitas mistura fantasia com realidade em “A miserável revolução das classes infames” (2005).
86
também os negros foram cabanos para lutar pela liberdade como escreveu o historiador Jorge
Huxley em 1936:
Emergindo dos mocambos e das senzalas ou afluindo dos quilombos ignotos, no seio das selvas
e nas praias desabitadas, os escravos acostaram-se à causa cabana, com o objetivo da reconquista
da liberdade.
Fischer (2004) fala sobre o bloqueio criado para evitar que outras colônias soubessem
do que acontecia no Haiti, pois havia demasiado temor de que o modelo de insurreição se
espalhasse e de que as pessoas se libertassem de seus algozes e tomassem o poder. A revolução
haitiana ensina que sem confrontar o racismo, alicerce do modelo escravista, não há como
alcançar ideais pregados pela revolução francesa (FISCHER, 2004). Tal qual a Cabanagem, a
Revolução Haitiana foi excluída em importância nos cânones da História e das demais
disciplinas científicas e por isso torna-se difícil entender como seu ideal se alastrou. Tal
exclusão atende aos interesses de associar revoltas populares, especialmente aquelas marcadas
pelo caráter racial, à barbárie e ao primitivismo. Esse silêncio que ronda importantes lutas
populares do passado faz parte da manutenção de um status quo político, social, cultural e
também científico de um sistema que se molda para justificar e perpetuar privilégios para
brancos abastados.
Vale fazer um brevíssimo resumo histórico para mostrar como se forma o cenário dessa
insurgência popular chamada Cabanagem. Após a colonização no século XVII, vários
momentos configuraram a realidade da população local. Primeiro a formação das missões
(aldeamentos), que destribalizaram indígenas e os transformaram em índios tapuios, seguida
pela expulsão dos jesuítas na metade do séc. XVIII. As missões deram lugar aos diretórios
indígenas, que atuaram durante trinta e um anos anulando qualquer traço de indianidade,
emancipando indígenas e tapuios. O resultado dessas políticas que desestruturaram os aspectos
físicos, econômicos, sociais e culturais dos povos locais foi uma grande penúria, com escassez
de alimentos e propagação de doenças.
Cabem “parênteses” para contar o episódio do brigue Palhaço que antecedeu a
Cabanagem. Várias juntas no Grão-Pará não aderiram à independência do Brasil, de 7 de
setembro de 1822. Isso indignou os liberais radicais, que lutavam para a província do Grão-
Pará deixar de ser colônia portuguesa. Eles então se refugiaram nas vilas de Macapá, Santarém,
Cametá, Vigia e Monte Alegre, onde difundiram suas ideias e ganharam o apoio das massas.
Esses lugares foram transformados em núcleos de conspiração contra aqueles que se opunham
à independência. Como manifestação a favor da independência, em outubro de 1823, um grupo
de soldados insurgentes do 2º Regimento de Artilharia de Belém atacaram estabelecimentos
87
comerciais portugueses. Eles foram detidos junto com quem mais estivesse pelas ruas. Cinco
deles foram fuzilados e os demais presos no porão de um brigue ancorado no porto. No porão
superlotado, com sede e calor, todos gritavam por água quando receberam tiros e uma nuvem
de cal. No dia seguinte foram contados 252 corpos e quatro sobreviventes, dos quais só restou
vivo João Tapuia. Ninguém se responsabilizou ou foi punido pelo ato, que ficou conhecido
como massacre do brigue Palhaço.
O povo da província do Grão-Pará chegou ao século XIX em situação de extrema
pobreza material e de certa forma existencial. Nesse momento, grande parte da polução já
violentada em suas identidades culturais, anulada em suas distinções politicamente racializadas,
obrigada a negar suas raízes, já começava a formar uma grande massa difusa e genérica que
recebeu o nome de mestiça. Ainda assim os mestiços, ao se juntarem aos índios e aos negros
africanos, reconheciam seus vínculos e sua condição social na luta por justiça.
A mestiçagem foi formada como um dispositivo de poder a partir de discursos, leis,
instituições e ações que serviram para incentivar a mistura entre índios do continente, negros
africanos e brancos portugueses. Tal dispositivo reflete uma combinação de saberes e de
estratégias que perpetuam o poder dos brancos. Nessa época, ainda no Império, esse conjunto
indica o início da construção de uma identidade nacional, que foi reforçada e epistemologizada
a partir da constituição da República do Brasil no final do século, em 1889.
Para Emanuel Mariano Tadei, a mestiçagem é um dispositivo “que dirige e comanda as
ações e saberes numa determinada direção, com a intenção de atingir seu objetivo final: criar
uma consistência entre todos esses elementos díspares, gerando subjetividades dóceis, mal
delimitadas e manipuláveis” (2002, p. 3). Tal dispositivo atravessou o tempo e hoje se reflete
na dificuldade de lidar com a questão racial brasileira. O mestiço de ontem é o pardo de hoje.
Mas para os cabanos teria sido importante essa definição de parte deles como mestiços? Ou
melhor, eles se sabiam mestiços? Era clara essa ideia para eles do que seria o mestiço? Seriam
necessários estudos históricos aprofundados para tentar responder essas perguntas, mas tudo
indica que não. Eles formavam um conjunto de força que unia quem foi chamado de mestiço,
índio ou negro. Esse conjunto se reconhecia na luta por justiça apontando um inimigo comum:
o branco.
Tinham plena consciência que suas condições materiais melhorariam se eliminassem os
brancos detentores do poder. De acordo com a historiadora Eliana Ferreira, os cabanos “em
algumas fazendas, castigaram os senhores com as mesmas torturas que haviam sofrido antes. O
porte de arma foi legalizado, o que dava aos cabanos a sensação de realmente pertencerem à
88
cidade. Isso tudo representava uma grande mudança no cotidiano” (FERREIRA, 2009). Os
cabanos se apropriaram de casas de famílias portuguesas ou ligadas ao antigo regime.
Por outro lado, os oficiais do Império reconheciam o que chamo de guerra racial.
Considero que a Cabanagem foi uma guerra travada não apenas na esfera da desigualdade
social, mas também, e sobretudo, pautada na diferença racial. Ricci (2002) procura decifrar um
“pacto secreto”, com nuances religiosas, que os cabanos tinham e que compunha as estratégias
para a sua revolução social. A autora não dá ênfase à disputa racial, mas essa questão é explícita
em trechos de documentos, que seu artigo traz. Um exemplo é um extrato de ofício do Marechal
Andréa para o Rio de Janeiro. Traçando um plano para a pacificação da Província do Grão-
Pará, Andréa enfatiza que não convinha ter como soldados os “filhos dela”, ou seja, os filhos
da terra. Para demonstrar essa guerra racial, vale a pena reproduzir o trecho deste ofício, tal
qual fez Magda Ricci (2002):
Todos os homens de cor nascidos aqui estão ligados em “pacto secreto”, a “darem cabo de tudo
o que for branco”. Não é uma história, é fato verdadeiro, e a experiência tem mostrado. É pois
indispensável por as armas nas mãos de outros; e é indispensável proteger, por todos os modos
a multiplicação dos brancos. Se o governo concordar com esta medida, enviarei sempre aonde,
quantas recrutas possa dessa Província, a troco de igual número de outras. 74
Com a guerra, os cabanos conquistaram o poder, mas não tinham um plano de governo
concreto e viável para garantir sua manutenção. Não cabe aqui detalhar a Cabanagem, mas
traçarei um breve panorama dos fatos que sacudiram a província do Grão-Pará durante os anos
em que os Cabanos detiveram o poder e das rupturas no próprio movimento. Em 7 de Janeiro
de 1835, comandados por Antônio Vinagre, os cabanos assassinaram o então presidente da
província e o comandante de armas, tomando de assalto o quartel e o Palácio do Governo em
Belém. Eles se apropriaram das armas e nomearam o liberal Félix Antônio Clemente Malcher
como presidente. A Cabanagem foi também apoiada por uma elite local antagônica aos
privilégios dos portugueses e que via em Malcher seu representante. Nessa primeira tomada de
poder, uma moeda antiga passou a vigorar com validade apenas no Grão-Pará. Os cabanos se
deram conta de que suas demandas não seriam atendidas, pois logo Malcher – tenente coronel,
latifundiário e dono de engenhos de açúcar - mostrou que serviria aos interesses das classes
dominantes.
Com pouco mais de um mês de governo, em 19 de fevereiro de 1835, Malcher foi
deposto. Ele mandou prender o expressivo líder cabano Eduardo Angelim e dois blocos
74
Ofício do Marechal Andréa, de 18 de dezembro de 1837. Arquivo Público do Pará, Correspondência
do Governo com a Corte, Ofício número 32, p. 29 v. apud Ricci (2002).
89
armados cabanos entraram em conflito. Malcher foi assassinado e dizem75 que seu corpo foi
arrastado pelas ruas de Belém. Francisco Vinagre comandou as tropas vencedoras e se tornou
o primeiro governador cabano que participou ativamente da tomada de Belém. Contudo,
Francisco Vinagre causou indignação ao aceitar fazer um acordo de entrega pacífica do posto
de governador à Jorge Rodrigues, em julho de 1835, em troca de anistia dos revolucionários e
de outras promessas de contentamento. Os cabanos estavam descontentes com sucessivas
traições e ainda viviam a dor do massacre do brigue Palhaço.
Liderados por Antonio Vinagre e Eduardo Angelim, os cabanos refugiados voltaram a
Belém em 14 de agosto e após nove dias de batalha sangrenta retomaram o poder. Morre em
batalha Antonio Vinagre. Eduardo Angelim então assume o governo atemorizando a elite
durante 10 meses. Contudo, o governo rebelde não se consolidou. O Império reagiu e nomeou
um novo presidente, mandando quatro navios de artilharia e declarando guerra total aos cabanos
em março de 1836. Naquele momento a cidade estava consumida por doenças, fome e miséria.
Todavia, em correspondência do presidente Manuel Jorge Rodrigues, que foi enviado pelo
Governo regencial para combater o movimento cabano, sua preocupação não é a terrível
condição social em que Belém se encontrava, mas ele demonstra todo seu ódio racial “A cidade
se encontra de um jeito deplorável e medonho porque não se encontravam senão pretos e tapuios
nas ruas, e os poucos estrangeiros que andam arranjando seus negócios para se retirarem [...]”
(apud FERREIRA, 2009, p. 2).
Os cabanos então fugiram pela mata e pelos igarapés em pequenas canoas. Se
refugiaram e resistiram no interior da Amazônia até 1840. Um último e maior bastião de
resistência foi a vila de Cuipiranga na confluência dos rios Tapajós e Arapiuns, com fundos
para a margem direita do rio Amazonas e distante três horas de barco da cidade de Santarém,
município ao qual hoje pertence. Fato curioso é que, em 1836 e 1837, enquanto Santarém,
principal vila da região, tinha uma população de cerca de duas mil pessoas, Cuipiranga atraiu
cerca de três mil e quinhentos moradores. Os cabanos usaram engenhosas estratégias de
resistência, um exemplo foi a simulação de canhões com toras de madeira, que afastaram por
certo tempo as naus dos legalistas.
O que restou da guerra da Cabanagem? Pouco muito pouco. Num ponto escondido no mapa da
Amazônia a Cabanagem não passa de um episódio tão distante quanto incompreendido na
confusa memória das 48 famílias de Cuipiranga. No entanto, foi neste lugar, que os guerreiros
mestiços e negros, auxiliados pelos índios mundurucus e maués, tiveram seu momento de glória
na bem organizada resistência que instalaram contra as forças militares do Império brasileiro.
Foi aqui também que se deu uma das batalhas decisivas, quando a multidão saiu em correria
pelas matas, muitos sendo abatidos e enterrados em vala comum ou jogados no rio. Começava
75
Os historiadores não garantem a veracidade dessa história que se popularizou sobre a morte de Malcher.
90
o fim de uma das guerras mais significativas e desconhecidas do Brasil pós independência.
(DUTRA, 2009)
76
Um grupo de estudantes da Universidade da Amazônia (UNAMA) fez matéria especial sobre a Cabanagem e
perguntou para várias pessoas em Belém o que foi a Cabanagem. A maioria dos entrevistados não sabia. Alguns
falavam que haviam estudado alguma coisa sobre a Cabanagem, mas que não lembravam do que se tratava.
91
(1860) e a fotografia “O vendedor de amendoins” de Luiz Braga (1990). Essa ligação social é
revelada nas duas imagens:
Figura 17: “O Cabano Paraense” (1860) Figura 18: “O vendedor de amendoins” (1990)
Fonte: https://artecriticapara.files.wordpress.com/2009/12/o-cabano-paraense-alfredo-norfini-1940.jpg
Essas alusões a uma série de atos violentos contra o povo que se insurgiu ao longo da
história, a qual reportamos em artigo (2012), faz parte de um movimento que liga o passado ao
presente. "O movimento indígena faz da Cabanagem uma história do presente” (ibidem). A
espoliação humana e econômica na fronteira continua como sempre, agora com o uso pelos
madeireiros de mão de obra de comunidades, convencidas por favores e ameaças a terem lotes
individuais menores e seguirem vendendo madeira, como querem os empresários. Relembrar a
Cabanagem e o massacre de dezenove trabalhadores do Movimento Sem Terra (MST) pela
polícia militar em Eldorado dos Carajás – Pará, em 1996, é reconstruir uma história que induz
à ação política daqueles que tiveram histórias e vidas violentadas e negadas. A voz e a fala
significam também instrumentos de luta, conforme constata Karina Bidaseca “A reivindicação
discursiva trará consigo a agência, suscitando a quebra da frágil linha que transita entre corpos
antropológicos e corpos políticos77” (2010, p. 19, traduzido pela autora). Os indígenas, com
seus corpos antropológicos transformados em corpos políticos, relembram a Cabanagem para
denunciar uma guerra que não acabou:
Uma guerra, que no dizer de alguns estudiosos, não terminou. E não terminou porque,
obviamente, as suas motivações continuam presentes nos assentamentos de trabalhadores sem
terra, nos movimentos dos atingidos por barragens hidrelétricas, nas lutas indígenas, nos
empates dos seringueiros, nos movimentos sociais urbanos. (DUTRA, 2009, p.3).
Essa ligação com o presente, confirmada por Dutra, sustenta a tese de Magda Ricci de
que a Cabanagem foi uma revolução social. Ela afirma que “hoje a Cabanagem na Amazônia é
símbolo de ação popular de massa” e diz que no pós-cabanagem “Os presos cabanos e muitos
outros suspeitos de ‘cabanagem’ foram recrutados forçosamente e engrossaram os chamados
‘corpos de trabalhadores’” (idem p.29). A esses cabanos transformados em recrutas foi dada a
responsabilidade da reconstrução produtiva do campo. Ricci completa que “O certo é que à
mortandade cabana se seguiu a dos corpos de trabalhadores” (ibidem) e que isso abriu caminho
para o período áureo da borracha na Amazônia, a partir de 1879. Mas, quem eram os cabanos,
os corpos de trabalhadores, as massas, o povo, senão aqueles que foram um dia racializados?
Por isso o social não se desvincula do racial. A Cabanagem ocorreu e continua pautada em
termos sócio raciais.
Antes de dar sequência a história do povo da região com o ciclo da borracha, voltarei
para o cenário nacional para mostrar como a condição social está profundamente vinculada à
questão racial. Paralelamente à Cabanagem, inúmeras revoltas e conflitos se difundiam pelo
77
La reivindicación discursiva acarreará consigo la agencia, suscitando el quiebre de la débil línea delgada que
transita entre cuerpos antropológicos e cuerpos políticos. (BIDASECA 2010, p. 19)
93
latifúndios pelo sistema de sesmarias estabelecido por doações feitas pela monarquia78. A lei
regulamentava a terra como propriedade privada para aqueles que já a ocupavam e nela
produziam, beneficiando assim os grandes fazendeiros. As terras ainda não ocupadas passariam
a ser propriedade do Estado e a posse somente se daria através da venda, com pagamento à
vista, nos leilões organizados. Essa forma de apropriação da terra inviabilizava a posse para os
destituídos de recursos financeiros e para aqueles que nem mesmo informação tinham. A injusta
distribuição das terras na Amazônia é também recorrente dessa lei que “institucionaliza o
regime da grande propriedade privada à custa dos territórios ocupados tradicionalmente por
índios e caboclos” (MOREIRA NETO 1988, p. 21).
Carvalho & Carvalho constatam que “a Lei de Terras colaborará decisivamente com a
política de confisco das terras indígenas, ao ordenar a incorporação dos próprios nacionais nas
terras de aldeias de índios” (2011, p. 15). Cunha (1992 apud CARVALHO e CARVALHO,
2011) observa que após um século incentivando a presença de estranhos nas aldeias, o governo
usará o argumento da existência de uma população não indígena, pois aparentemente
assimilada, para despojar os índios de suas terras. Conforme o caso, restava aos índios apenas
lotes individuais de terra. Porém, para melhor entender o impacto da Lei de Terras na
conformação da questão fundiária atual é preciso relacioná-la à Lei Eusébio de Queirós,
sancionada dias antes, que proibiu a entrada de africanos escravizados no Brasil pelo tráfico
negreiro, em 04 de setembro de 185079. Vale informar que escravização de indígenas já estava
proibida desde 1570, mas que na prática foi de fato suspendida em 175780.
Desde a década de 1820, o Brasil descumpria sistematicamente todos os tratados
internacionais que estabeleciam o fim do tráfico de escravos. Após a Revolução Industrial, a
Grã-Bretanha ganhou forças e precisava ampliar o mercado consumidor ao mesmo tempo em
que vários líderes religiosos denunciavam e exigiam o fim da escravidão. Com tamanha pressão
a Inglaterra aboliu a escravidão e decretou o fim do tráfico, através do que ficou conhecido
como Bill Aberdeen - Slave Trade Suppression Act. Tal lei autorizava a marinha real britânica
a prender qualquer navio suspeito de transportar escravos no Atlântico. A Lei Eusébio de
Queirós simplesmente respondeu à pressão inglesa, que inevitavelmente acabaria com o tráfico
78
A primeira divisão das terras brasileiras ocorreu em 1534 com a criação de 15 capitanias hereditárias. O rei de
Portugal D. João III dividiu o território brasileiro em grandes faixas e repassou a alguns nobres a tarefa colonizar,
proteger e administrar aquelas terras. Por outro lado, eles tinham total liberdade para explorar seus recursos
naturais.
79
A partir dessa lei se intensificou o tráfico interno de escravos indo das províncias do norte (Pernambuco e Bahia),
de economia decadente, em direção ao Sul do Império do Brasil, com franca ascensão na produção cafeeira. A
estimativa é que entre os anos de 1850 e 1880 foram negociados 200 mil negros (Barboza, 2011).
80
A partir de um decreto de Marquês de Pombal.
95
negreiro, pois, entre 1845 e 1851, foram abordadas e destruídas 368 embarcações brasileiras
que transportavam escravos81.
Vale ressaltar que a motivação inglesa não foi benevolência e/ou compaixão. Desde
1807 o governo britânico havia suspendido o tráfico de escravos e o Brasil, grande produtor de
açúcar, continuava a renovar sua mão de obra escrava. Como a Grã-Bretanha tinha colônias
produtoras de açúcar nas Antilhas, era crucial combater a concorrência com o Brasil através do
impedimento do abastecimento de novos braços escravos para a produção açucareira. Assim, o
problema inglês não era entender se o trabalho livre era mais produtivo, mas sim o de garantir
mercado para a sua produção (LEITE, 1998). O cenário internacional impôs ao Brasil a adoção
de uma lei para acabar com o tráfico de africanos escravizados.
As condições dos escravos no Brasil eram de tal forma degradantes por alimentação
escassa, violências e árduo esforço no campo - de 16 horas diárias - que seu tempo de vida não
ultrapassava doze anos de trabalho na lavoura. A taxa de natalidade nunca superava a de
mortalidade. De acordo com estimativas mais conservadoras, foram trazidos 3,5 milhões de
africanos ao Brasil (COMPARATO, s/d). Com a pressão inglesa pelo trabalho assalariado, a
mão de obra negra foi em grande medida descartada.
Desumanizado, o negro era visto como extensão do instrumento de trabalho e nunca
como gente, como trabalhador. Era preciso então incentivar a vinda de colonos europeus,
especialmente para trabalhar na produção cafeeira, pois em meados do século XIX o café já
despontava como grande produto de exportação. Mas por que europeus? Os europeus eram
brancos e desde sempre a classe dominante difundia a ideia racista de que eles eram
culturalmente superiores aos brasileiros. A semente da então futura política de branqueamento
foi lançada, mas antes de deixá-la germinar era preciso garantir a propriedade do solo. Para isso
em 18 de setembro de 1850 foi estabelecida a Lei de Terras.
Os grandes fazendeiros82 já se preocupavam com a garantia da propriedade de seus
latifúndios, visto que uma nova onda de homens livres entraria no país e que a abolição da
escravatura, seguindo o movimento internacional, não tardaria a acontecer. A Lei de Terras foi
a primeira medida com a finalidade de organizar a propriedade privada no Brasil e serviria a
impedir o acesso à terra aos ex-escravos, aos trabalhadores nativos e aos imigrantes que
entrariam no país. A lei foi formulada para assegurar os grandes latifúndios, pois estabelecia
que as terras só poderiam ser adquiridas mediante compra, venda ou doação do Estado.
81
Alfredo Carlos Teixeira Leite "O tráfico negreiro e a diplomacia britânica" EDUCS, 1998.
82
A quem foram dados títulos de barões do café por D. Pedro II.
96
83
Essa expansão desenfreada dos latifúndios sobre as pequenas lavouras ocorreu sobretudo no Vale do Paraíba,
no Estado de São Paulo.
84
Embora fosse grande a expectativa de receber americanos especialmente os do Sul, arrasado pela Guerra da
Secessão, no Pará só chegaram entre 160 e 200 imigrantes. Eles foram assentados próximo de Santarém onde
construíram a colônia Bom Gosto entra 1866 e 1867 (NUNES, 2012).
97
naturais da região e a presença de árvores de grande porte indicaria não apenas que o solo era
fértil85, mas que essa madeira deveria ser explorada para abastecer os centros urbanos. A
intenção das autoridades provinciais era a de que os colonos europeus dominassem essas áreas,
principalmente através da extração madeireira (ibidem).
A atenção prestada para o incentivo e recepção de colonos europeus e americanos pelas
autoridades foi em virtude de acreditarem que eles seriam mais competentes, inteligentes e
capazes que a população nativa. Essa crença racista desprezava o homem local e valorizava o
branco europeu e americano, conforme explícito nas palavras do presidente do Pará em 1867,
Pedro Leão Veloso, que afirmava os imigrantes europeus como “trabalhadores ativos,
inteligentes e moralizados”, que “não só por si [trariam] riquezas como também [seriam] por
seu benéfico exemplo, causa para melhor aproveitamento dos braços que já temos” (apud
Nunes, 2012). Aos imigrantes caberia o ensinamento “da melhor arte de cultivo, das sementes
mais aproveitadas e das modernas técnicas de plantação” (ibidem) desprezando totalmente os
saberes indígenas.
Conforme constata Nunes, “a relação com os colonos paraenses e os índios devia ser de
imposição dessas novas técnicas de produção agrícolas, de forma a superar as práticas de cultivo
herdadas das populações indígenas” (NUNES, 2012, p. 102). O que as autoridades provinciais
não esperavam era que a maioria dos imigrantes não tinha qualquer domínio sobre agricultura86.
O desejo de desenvolvimento e progresso para a Amazônia ficou adormecida e a região é
profundamente golpeada com essas ideias tempos depois. Golpes que a recortaram em enormes
latifúndios, sobretudo a partir do período ditatorial no Brasil (1964 – 1985), quando o caos
fundiário começa a mostrar a sua face na Amazônia.
Faço esse salto na história para traçar um panorama capaz de situar a Amazônia na
história do Brasil, que estabelece suas bases mediante ações racistas excludentes criando o
cenário de profunda desigualdade social. Esse conjunto que costura a história a uma
interpretação sociológica, alicerça o entendimento da atual luta e reivindicação por identidade
e território na região do baixo Tapajós. Para isso é preciso entender o quanto foi agressiva a
apropriação da terra na Amazônia e o quanto o Estado foi violento nesse processo. No primeiro
ano do período ditatorial (1964) é criado o Estatuto da Terra, que previa garantir o acesso à
terra para quem nela vive e trabalha, numa intenção clara de propor uma reforma agrária com
85
Estudos posteriores derrubaram essa crença ao informar que a fertilidade do solo ocorre pelos resíduos da própria
floresta. Uma vez retirada a mata, o solo se empobrece.
86
Para a colônia de Benevides (PA) apenas 46 dos 182 imigrantes foram registrados como agricultores pela
Agência de Colonização. Era provável que antes de vir ao Brasil eles se declarassem agricultores para poder
atender às exigências do Governo Brasileiro (NUNES, 2012).
98
objetivo de deter a explosão de movimentos campesinos que se espalhavam pelo país. O outro
objetivo do Estatuto era o de desenvolver a agricultura do país. Evidentemente, apenas esse
último ganhou atenção e incentivos através de políticas que sempre beneficiaram o agronegócio
em detrimento da agricultura familiar. O Estatuto da Terra, ainda em vigor nos dias atuais,
nunca foi levado em consideração no que se refere a garantir uma reforma agrária.
A estrutura fundiária brasileira vem sendo mantida com poder e violência e registra os
mais altos índices de concentração do mundo. Os latifundiários, geralmente fazendeiros
representados por grandes coronéis, ainda estão presentes hoje. No mundo fictício eles figuram
telenovelas brasileiras com tomadas de imagens acompanhada da afirmação de terem terras a
perder de vista. Como uma reprodução do esquema rei e súditos, senhores e servos, a
concentração de terras faz com que se reproduza um sistema de exploração humana que reedita
de uma certa forma o sistema escravagista na medida em que os salários dos trabalhadores são
tão baixos que não permitem uma vida digna. Quem não se submete ao trabalho assalariado,
com base em um salário mínimo insuficiente, e luta pelo seu próprio pedaço de chão para viver
e produzir, fica a margem da sociedade e é literalmente marginalizado.
Criminalizados são os que lutam pela reforma agrária no Brasil, são também os que
exigem a titulação da terra que sempre viveram. Esse é o caso dos Borari e Arapium da Terra
Indígena Maró. Eles estavam na terra muito antes que o governo ditatorial organizasse o projeto
de ocupação da Amazônia com o lema “vazio demográfico” e oferecesse uma “terra sem
homens para homens sem terra”, incentivando a vinda de fazendeiros do Sul do Brasil. Eles
estavam lá bem antes da viagem do navio “Rosa da Fonseca”, que durante a política de governo
chamada “Operação Amazônia”87 (1966 -1967), transportou em viagem luxuosa entre Manaus
e Belém quase trezentos investidores nacionais e estrangeiros, a quem eram oferecidas as terras
cobertas de florestas e ricas em minérios e, de acordo com o governo, vazia de gentes. A
socióloga Violeta Loureiro (1992) descreve esse momento:
O encontro é rico de simbologias. De uma forma simplista, dir-se-ia tratar-se do primeiro esforço
concreto do Estado autoritário no sentido de apresentar aos grandes investidores as riquezas da
região. E também garantir-lhes recursos, subsídios e facilidades de várias ordens, no que
concerne às matérias-primas e infra-estruturas, à apropriação privada da terra (ainda que com
sua gente dentro, como a história em breve começaria a registrar). (LOUREIRO, 1992, p. 77).
E quem era essa “gente dentro” que a história começaria a registrar e que para o governo
nem mesmo existia? Preciso falar do ciclo da borracha para falar dessa gente de dentro que
87
“O movimento denominado “Operação Amazônia” (1966/67) consistiu num conjunto de instrumentos de atração
de capitais, facilitando sua entrada com base em Incentivos Fiscais e oferecendo outras vantagens, como o fácil
acesso à terra e aos outros bens da natureza da Amazônia” LOUREIRO, 1992, p. 76.
99
povoava a Amazônia, mas que nem mesmo era vista como “gente”. Os cabanos que
sobreviveram ao fim da Cabanagem foram recrutados forçosamente para a reestruturação do
campo e isso abriu caminho para o período da borracha. O ciclo da borracha que tem seu início
em 1879 marcou profundamente o baixo Tapajós e reconfigurou a população que se espalhou
pelas beiras dos rios e igarapés da região. É preciso falar da borracha para demonstrar como na
virada do século XIX para o século XX se reproduziu na região o mais cruel regime de
exploração do trabalho, que arrancava a humanidade das pessoas as submetendo uma nova
forma de escravidão. Mas quem foram os escravos da borracha? O que eles têm a ver com os
cabanos de outrora? Qual a relação com os índios que lutam por reconhecimento e território? É
o que vamos entender no tópico seguinte.
Seringueiros
No livro “Os índios e a civilização”, Darcy Ribeiro (2009 [1970]) afirma que a economia
da borracha foi uma das “mais destrutivas e exigentes em vidas humanas, em sofrimento e em
miséria que jamais se conheceu”. Metaforizando: era como se as seringueiras chorassem, por
suas feridas, as lágrimas dos milhares de homens cujas vidas foram ceifadas em nome da alta
cotação da borracha, cujo período áureo foi entre os anos de 1879 e 1912. Época de grande
riqueza e transformação para as cidades de Belém e Manaus, que usufruíram de modernização
europeizada. A região que circunda Santarém foi uma das principais fornecedoras de borracha.
Nos meus caminhos de viagem para a TI Maró, pude ver seringueiras com troncos cheios de
cicatrizes deixadas por homens de uma época não tão distante assim. Conto essa história para
falar também da intrusão nos territórios indígenas e de como a população local se reconfigurou
naquele momento.
O ciclo da borracha foi um dos momentos mais expressivos da exploração humana e da
relação desigual entre o capital e o trabalho na Amazônia. A descoberta do processo de
vulcanização - que dá rigidez à borracha permitindo a fabricação de pneus de carro - pela
empresa americana Goodyear impulsionou, decisivamente, a demanda pela borracha
amazônica. Graças ao ciclo da borracha, as cidades de Belém e Manaus ganharam luxuosos
teatros, praças, bosques, monumentos, palácios e palacetes e planificação urbana aos moldes
europeus. Esse momento ficou marcado como a “Belle Époque”. A Europa era referência de
modernidade e civilização. Belém ganhou o apelido de Paris N’América e Manaus ficou
conhecida como a Paris Tropical. Ambas foram as primeiras capitais a implantar sistemas de
iluminação elétrica e de água e esgoto. As elites procuravam imitar não só a arquitetura
europeia, mas também os costumes.
100
Parece absurdo imaginar que, no forte calor tropical, os homens se vestiam com paletó,
casaca, gravata e chapéu de feltro, e as mulheres com grandes vestidos e chapéus cobertos de
plumas. Essa elite branca ostentava luxo, enquanto o resto da população não branca era
impedida de frequentar as áreas centrais das cidades, que contavam com forte sistema de
vigilância. A intenção dos governantes era manter a “assepsia” urbana, impedindo o povo
malquisto no centro, e garantir a segurança dos seringalistas: a classe privilegiada com as
riquezas da borracha.
A elite assistia óperas nos faustosos teatros sustentada pela mais cruel forma de
exploração do trabalho humano que a Amazônia conheceu. De um lado, o luxo de uma minoria
branca, do outro, a miséria da maioria não branca, conforme constata o jornalista Dutra (2012)
em seu blog:
No momento em que Belém, capital do Pará, era uma das cidades mais ricas do Brasil e a sua
elite branca exibia o luxo e a riqueza provenientes do ciclo da extração e exportação da borracha,
justamente nesse momento a cidade registrou mais mortes do que nascimentos em virtude de
doenças provocadas pela miséria da maioria não branca de sua população.
88
Doenças como a malária, o tifo, a febre amarela, béri-béri, tuberculose, varíola, sarampo, coqueluche, difteria e
as disenterias, eram a principal causa de mortes.
89
Nesse tempo de fartura para alguns, entre os anos de 1895 e 1899, foram assassinadas 226 pessoas em Belém,
um número alto para uma cidade de 100 mil habitantes.
101
verdadeiro boom da borracha. A exploração dos cauchais, realizada por bandos de caucheiros,
consistia no abatimento das árvores a fim de extrair todo o látex90. Esse tipo de exploração se
tornou insustentável, pois era preciso ir cada vez longe em busca de novos cauchais.
Sempre indo mais no interior da floresta, os caucheiros se deslocavam espalhando terror
e violência. Invadiam tribos e sequestravam mulheres e crianças, como forma de coagir os
homens a cooperarem na descoberta e usufruto de novos cauchais. Com a invasão das tribos,
eles garantiam “o abrigo, a alimentação e a satisfação dos seus apetites” (RIBEIRO, 2009
[1970] p. 37), em uma clara alusão à violência sexual cometida contra as mulheres indígenas.
Não demorou para que os cauchais ficassem escassos, o que deu início ao ciclo de exploração
do látex da seringueira, cujo processo de extração ocorre através do sangramento do tronco,
conhecimento que fazia parte da cultura indígena. Nesse caso, as áreas florestais garantiam
produção permanente e os seringueiros não precisavam se deslocar tanto, como faziam os
caucheiros. Mauro de Almeida (2004) fala que essa diferença na exploração do látex, entre
cauchais e seringais, foi acompanhada de “contrastes étnicos”:
Nos cauchais empregava-se mão-de-obra indígena, que era explorada de modo tão brutal e
temporário quanto as próprias árvores de caucho, sendo exemplo disso as atrocidades de
Putumayo e outras menos célebres de Madre de Dios/Mamoré. Já nos seringais do Acre, a mão
de obra era constituída de imigrantes nordestinos; a população local foi vítima de atrozes
“corredeiras”, em que os índios eram aniquilados não em função da submissão à disciplina do
trabalho forçado, mas para dar lugar aos imigrantes brasileiros. (ALMEIDA 2004, p. 37-38).
Fica claro que a população indígena, em qualquer das situações de exploração do látex,
era violentada. Não interessava se ela poderia gerar ou não retorno financeiro, para quem se
apropriava dos seringais, mesmo que com trabalho forçado. Muitos povos indígenas foram
aniquilados para “dar lugar” aos imigrantes brasileiros. Mas falar em “dar lugar” em uma região
tão vasta quanto a Amazônia e, naquela época ainda menos povoada, parece até brincadeira. O
que estava em jogo era o total desprezo, baseado em ódio formado pela crença na ideia de raça,
que existia contra os povos indígenas. Portanto, não apenas era uma questão material de
apropriação do território, era também uma questão racial, até porque naquela época as terras de
exploração dos seringais eram terras livres.
Ceder “lugar” aos imigrantes que, como logo veremos, foram também eles desprezados
em seus lugares de origem, significava colocar no lugar do índio uma população já miscigenada
e de certa forma integrada à nacionalidade brasileira. Portanto, que já se encontrava em algum
grau de tolerância diante de um Estado brasileiro influenciado por uma elite com ideais de
90
Cada caucho dava cerca de 30 quilos de látex por árvore.
102
91
Estima-se que morreram cerca de 500 mil pessoas por causa da Grande Seca de 1877 -79 no semiárido brasileiro.
92
A ocupação do semiárido nordestino foi intensificada desde que uma Carta Régia proibia a criação de gado em
uma faixa de dez léguas desde o litoral em direção aos sertões. Foi no século XVIII que os chamados sertanejos
ocuparam a região conhecida como Polígono das Secas (Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio
Grande do Norte, Sergipe e também Norte de Minas Gerais).
103
FONTE: http://www.doispensamentos.com.br/site/wp-content/uploads/2011/03/retirantes.jpg
93
Edson Barboza (2011) mostra em artigo uma série de anúncios que ofereciam recompensas para quem
encontrasse no Pará os escravos fugidos do Ceará. Alguns dos anúncios tinham teor de ódio racial, pois além de
caracterizar mutilações ou falta de dentes sofridas como castigo, falava de características físicas de uma forma
horrenda e repugnante, conforme esse trecho, de um anúncio de 1878, revela: “cabeça chata, testa de macaco,
olhos de porco, focinho de quati, tem uns cabelos raros no queixo e bigode de piaçava, cabelo carapinha, é cheio
para cima e tem as perna finas e tortas, nas espadoas mostra sinais de vergalhos; deve ter hoje 38 annos”. (Ibidem,
p. 411-412).
105
invisibilidade de sua condição era bem maior”. Além dos seringais, havia a chance de se
integrarem em obras de remodelamento e reformas em curso, graças ao “progresso” econômico
promovido pela exportação da borracha, e na composição de forças de segurança, como as
guardas municipais ou provinciais. Havia ainda colônias agrícolas, projetadas para o
povoamento e disciplinamento da população local para o trabalho, sem falar na oportunidade de
contato com comunidades de quilombolas e fugitivos encravadas no meio das matas. (ibidem,
p. 398).
94
www.altinomachado.com.br (30/12/2005)
106
seringueiros trocavam bolas de borracha por víveres. Não existia moeda e os patrões forneciam
a preços superfaturados o básico para a sobrevivência em troca da borracha. A própria viagem
já se tornava uma dívida, que junto com outras necessidades e a desvalorização do seu trabalho,
jamais conseguiria ser paga. Esse era o sistema de aviamento, no qual o patrão adiantava
equipamentos e mantimentos para o seringueiro e este deveria pagar com sua produção, a qual
nunca era suficiente para quitar a dívida, perpetuando-a. O seringueiro vivia um regime de
escravidão por dívida.
Nessa economia, explora-se um seringal até o seu esgotamento para então partir em
busca de outro. Não havia vinculação com a terra, mas sim uma peregrinação pelos rios por
onde se alcançaria o próximo seringal. Assim, indo mais longe, a exploração da borracha
alcançava as populações indígenas mais remotas. De acordo com Darcy Ribeiro:
Para o índio, o seringal e toda a indústria extrativa tem representado a morte, pela negação de
tudo o que ele necessita para viver: ocupa-lhe as terras; dissocia sua família, dispersando os
homens e tomando as mulheres; destrói a unidade tribal, sujeitando-a ao domínio de um
estranho, incapaz de compreender suas motivações e de proporcionar-lhe outras. Enfim,
submete o índio a um regime de exploração ao qual nenhum povo poderia sobreviver. Assim,
diante do avanço desta “civilização” representada pelos extratores de drogas da mata, só resta
ao índio resistir e quando isso se torna impraticável, fugir para mais longe, mata adentro, para
as zonas altas onde não cresce a seringueira. (ibidem, p.42)
Esse trecho de Darcy Ribeiro mostra o quanto a economia da borracha foi destrutiva
para os povos indígenas, que estavam no caminho de exploração das seringueiras. Para resistir,
muitos grupos se deslocaram para áreas onde não havia a árvore. Nos seringais mais próximos
dos portos de exportação, também viviam grupos indígenas remanescentes que desde os tempos
coloniais mantiveram contato com os neobrasileiros. Para eles, os indígenas forneciam mão de
obra ocasional e produtos florestais. Não obstante a relação contínua, os indígenas preservavam
seu modo de vida baseado no cultivo, caça, pesca e extrativismo e muitos conseguiam preservar,
mesmo de forma escondida, sua identidade étnica. O oeste do Pará95 era tão farto de seringueiras
que o Tapajós “era por excelência o rio da borracha” (REIS, 1979, p.168).
Quase nada existe de informação da situação indígena no período da borracha na
Amazônia brasileira. É uma história que não foi apagada porque nunca foi devidamente
registrada. É como se toda a violência sofrida pelos povos indígenas na época não merecesse
atenção. Um dos raros registros que encontrei foi uma reportagem96, da organização Survival
95
Na região do baixo Tapajós a exploração da borracha foi tamanha que o magnata americano Henry Ford
conseguiu a concessão de uma área de dois milhões de hectares de floresta, para construir uma grande indústria
acompanhada de uma company town, para a extração e produção da borracha: a Fordlândia. A indústria funcionou
entre 1927 e 1945.
96
Publicada em 1º de agosto de 2011. Disponível em http://www.survivalinternational.org/ultimas-noticias/7983
107
International, que conta que dois índios, irmãos Witoto da Colômbia, foram presenteados ao
Cônsul Britânico Roger Casement. Ele teria sido enviado à Amazônia pelo governo britânico
para verificar as atrocidades cometidas durante o período da borracha. No entanto, ele acabou
também cometendo um ato brutal ao aceitar o presente e levar os dois irmãos para a Inglaterra,
em 1910, a fim de divulgar os horrores que havia descoberto. Em 12 anos, Casement estimou
que cerca 30 mil indígenas “foram escravizados, torturados e assassinados” para suprir a
demanda de borracha para os Estados Unidos e Europa.
Mesmo após 100 anos que os irmãos Witoto foram levados, seus parentes ainda querem
saber o que houve com eles para que “os espíritos de nossos antepassados possam descansar
em paz” (Survival International, 2011), diz uma indígena. Eis a foto dos irmãos Omarino e
Ricudo, dois escravos Witoto, que foi publicada no jornal Daily News em 1911, quando
chegaram à Londres:
Figura 22: “Irmãos Witoto”
Por causa da borracha, pouco se produziu na Amazônia e grande parte dos gêneros
alimentícios passou a ser importado. No auge do ciclo da borracha, em 1910, ela representava
cerca de 40% das exportações nacionais. Nesse mesmo ano deu-se início ao declínio da
produção brasileira, com a introdução no mercado internacional de uma borracha de melhor
qualidade e mais barata, produzida nos seringais cultivados na Malásia. Tais seringais
resultaram do contrabando de 70.000 sementes de seringueira Hevea brasiliensis, da região de
Santarém no Pará, feito pelo botânico inglês Henry Alexander Wickham, em 1876. Na Malásia
as árvores foram plantadas lado a lado e em dez anos já produziam o látex. Não tardou para que
os seringais amazônicos fossem abandonados.
108
Essa situação foi revertida momentaneamente, entre 1942 e 1945, durante a II Guerra
Mundial, quando os nipônicos dominaram o Pacífico Sul e invadiram a Malásia. Os japoneses
impediram a comercialização da borracha asiática para os Estados Unidos, o que deu novas
esperanças para a produção de borracha na Amazônia. Nesse período, os Estados Unidos,
precisando abastecer sua indústria bélica, assinaram com o governo brasileiro os Acordos de
Washington. Os Estados Unidos financiariam a extração da borracha, enquanto o governo
brasileiro garantiria a mão de obra. Tais acordos significaram uma operação em larga escala de
extração do látex, que previa o aumento da produção anual de 18.000 para 45.000 toneladas.
Mas para alcançar essa meta seria necessário aumentar significativamente a mão de obra.
Na região amazônica havia cerca de 35.000 trabalhadores disponíveis, que por lá
ficaram depois do abandono dos seringais ao fim do primeiro ciclo da borracha. Para atingir a
produção estimada, seria necessária a força braçal de 100.000 homens. O então presidente do
Brasil, Getúlio Vargas, incentivou o alistamento compulsório para trabalhar na Amazônia. Tal
operação foi chamada de “batalha da borracha”, pois do Nordeste foram levados 54.000 homens
que se alistaram para fugir de mais uma prolongada e devastadora seca. Abro aqui “parênteses”
para falar mais uma vez da seca e das pessoas penalizadas por ela, que formaram levas de
migrantes à Amazônia. Depois da grande seca de 1877-79 e dos transtornos que ela causou,
como a chegada em massa de retirantes famigerados do Ceará à capital Fortaleza, o governo se
preparou de maneira desumana para novos episódios do gênero.
No ano de 1915, o governo cearense criou o primeiro “curral humano” 97, que era um
campo de concentração, onde os retirantes miseráveis ficavam confinados em área cercada por
arame farpado. Esse campo foi desativado logo após aquela gente, malquista pelas elites, ter
sido enviada para a Amazônia no mesmo ano. Em 1932, uma nova seca fez o governo recriar
esse campo de concentração e montar outros seis nas margens das ferrovias, que traziam trens
abarrotados de sertanejos fugindo da penúria da seca. Aqueles que não morriam no caminho
eram destinados aos campos, que chegaram a ter 73.918 aprisionados logo após sua abertura
(MUSEU DO CEARÁ, 2006). Os que morriam eram enterrados em vala comum. Uma imagem
da época choca e nos remete aos campos de concentração nazistas formados alguns anos depois.
A propósito dos significados do primeiro ciclo da borracha, que desde 1860 provocou a
migração de nordestinos à Amazônia – “Fala-se de 300 mil a 500 mil migrantes nordestinos
para a Amazônia durante o período de 1860 a 1912”–, Carlos Walter Porto Gonçalves escreve,
no livro Amazônia, Amazônias, um tópico intitulado “A borracha: o barracão, o outro lado da
97
O primeiro campo de concentração foi construído na região alagadiça de Otávio Bonfim (CE).
109
Quem eram essas pessoas tão desprezadas e desumanizadas que não combinavam com
os gostos da elite? Não teriam elas origens indígenas e africanas? Não teriam sido elas vítimas
de racismo? Vigiadas noite e dia por soldados, não podiam sair. A cabeça era raspada para
evitar piolhos. As vestes, sacas de farinha com um buraco para enfiar a cabeça. Eram
identificadas por números. Tinham água e comida escassa e controlada. Tudo para que essas
pessoas não chegassem à capital cearense, onde as elites desfrutavam da cidade que batizaram
de “loira desposada de sol”. Para as elites “aquela gente fedida, piolhenta, faminta e desesperada
110
tinha que ser mantida à distância”, como afirmou a jornalista Ballossier (2014) em reportagem
especial98 do jornal Folha de São Paulo.
Os Acordos de Washington davam uma nova chance de mandar toda essa gente
desprezada pelas elites para longe, nesse caso para os confins da Amazônia. Assim, o Governo
brasileiro incentivou o alistamento militar, principalmente na região castigada pela seca. Dos
54 mil nordestinos que se alistaram, cerca de 30 mil homens eram retirantes do Ceará. Eles
foram transformados em “soldados da borracha”. Houve inclusive recrutamento forçado de
jovens, que se não quisessem ir para a Amazônia seriam mandados para os fronts de guerra na
Europa. Os americanos investiram muito dinheiro para estruturar o envio dos novos
seringueiros para a Amazônia, como fornecimento de caminhões e de navios, que saiam dos
portos do Nordeste lotados de gente esperançosa. O governo prometia as maravilhas de uma
“vida nova” para os flagelados pela seca, conforme os cartazes produzidos pelo artista suíço
Chabloz, com a finalidade de atrair mais interessados:
Figura 24: “Vida Nova na Amazônia” Figura 25 “mais borracha para a Vitória”
FONTE: http://www.rondoniaovivo.com/noticia/soldados-da-borracha-a-propaganda-do-dip-e-o-pintor-suico-que-ajudou-a-
persuadir-nordestinos-a-virem-para-a-amazonia/90534
Os cartazes representam a ilusão de fartura, pois por mais que o acordo previsse a não
repetição da situação de escravidão do primeiro ciclo da borracha, depois de três meses de uma
dura viagem com condições insalubres, os soldados que sobreviviam eram entregues aos
seringalistas, já habituados a destinar os seringueiros a condições inumanas. Assim, os soldados
98
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/11/1554774-viagem-pela-memoria-de-campos-
de-concentracao-no-ceara.shtml
111
penaram com dívidas e muitos foram levados para a morte99 por doenças, ataques de animais e
solidão. Mauro Almeida conclui que “o trabalho escravo foi, assim, recriado na Amazônia
brasileira pelo próprio Estado, com apoio norte-americano” (ALMEIDA 2004, p.39).
A produção da borracha não atingiu o acordado e a batalha foi um fracasso. A guerra
acabou e enquanto era comemorado o seu fim, os muitos soldados confinados no meio da mata
só ficaram sabendo disso anos depois. O que representou a quebra da economia local e a miséria
de núcleos exclusivamente dependentes desse mercado se revelou como a salvação das
populações indígenas remanescentes na Amazônia (Ibidem).
Assim, os índios sobreviventes voltaram aos antigos territórios dos quais haviam sido
escorraçados e recomeçaram sua vida de nativos. Também o resto da população local retomava
as atividades agrícolas e voltava a garantir a sua subsistência. Nesse ínterim, “famílias se
formavam e cresciam, muitas delas frutos justamente da mistura entre migrantes (ou seus
descendentes) e índias. Os antigos seringueiros especializados eram agora camponeses da
floresta” (ALMEIDA 2009, p.21). Com o fim do ciclo da borracha, muitos dos novos habitantes
da Amazônia por ali ficaram e construíram suas vidas e famílias espalhados pelas margens dos
rios da região. Esse é também o cenário da região do baixo Tapajós, onde o movimento indígena
de reelaboração étnica assenta suas bases e identidades são afirmadas.
Desindianização oficial
A desindianização no Brasil foi sempre oficial. Em 1910, no Estado Republicano, foi
criado o primeiro órgão para prestar “assistência” aos índios do território nacional: o Serviço
de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais – SPILTN. Esse serviço de
proteção pode ser entendido como um eufemismo para a completa destruição da identidade
indígena que órgão pretendia concretizar, ao transformar o índio em trabalhador nacional.
Transformar em trabalhador para “civilizá-lo” era condição para que “assimilado” o indígena
se tornasse brasileiro. A política indigenista nacional nasce com a concepção racista de negar
ao índio sua indianidade. Ou melhor, de rejeitar o índio com tudo que se associasse à
indianidade. Esse era critério prioritário para que o Brasil alcançasse a desejada “civilização”.
99
Estima-se que cerca de trinta mil “soldados da borracha” morreram abandonados nos seringais. Muitos dos que
sobreviveram lutam ainda por aposentadoria. O caso do Sr. Antônio Falcão Ribeiro é emblemático: veio para a
Amazônia menino, acompanhando o pai, um soldado da borracha. Ele conta uma das muitas histórias de
sofrimento: aos oito anos de idade viu seu pai morrer e teve que enterrá-lo sozinho. Para quitar a dívida do pai
ainda ficou trabalhando como escravo naquele seringal por um ano. (Viagem pela Amazônia – Apogeu e queda da
borracha na Amazônia, em https://www.youtube.com/watch?v=1txwh-CHU18.
112
Para o Estado, ser índio era uma condição de transitoriedade, por isso se empenhou para
transformar os índios em “trabalhadores”.
O momento, começo do século XX, coincidia com a impregnação de ideias racistas que
colocavam o ideal branco europeu como centro do universo, todas as outras culturas
consideradas inferiores, bestializadas, devendo ser superadas. Para conquistar esse ideal
almejado, o processo civilizador do Estado brasileiro deveria intervir sobre o espaço geográfico
e dominar os grupos sociais considerados selvagens, que o ocupavam. Nada melhor do que
contar com agentes especializados para isso que registrariam as especificidades culturais dos
povos para melhor submetê-los e dominá-los. Esse foi o germe do nascimento da antropologia,
reproduzido aqui de acordo com o padrão europeu, quando a crença de diferenças biológicas
estabelecia uma hierarquia que colocava somente os brancos em condição plenamente humana.
A questão da antropologia brasileira será debatida no tópico sobre afirmação indígena. Retomo
agora as estratégias que o Estado usou para matar a indianidade dos sobreviventes dos tantos
genocídios indígenas ocorridos desde a colonização.
Por trás do discurso de proteção aos índios estava a intenção do Governo Republicano
de atender seus interesses de dominação territorial, aliando isso à afirmação de uma identidade
nacional. Dominar o território significava povoá-lo com gente “à imagem e semelhança” dos
governantes que viam a si mesmos como representantes da civilização. As regiões de fronteiras
- o Oeste e posteriormente a Amazônia –, isoladas dos grandes centros urbanos e com
populações indesejadas pelo Estado, precisavam de urgente intervenção. Era crucial para o
Estado interligá-las ao resto do Brasil, garantido o domínio do território e a transformação
daquela gente. O meio viável para isso era a construção de linhas telegráficas, então símbolos
da modernidade e do progresso, capazes de portar “civilização” aos seus remotos habitantes.
O engenheiro militar Cândido Mariano da Silva Rondon foi contratado para o
desbravamento e mapeamento das terras, o lançamento das linhas telegráficas e o
estabelecimento da relação com os povos indígenas que habitavam os vastos territórios. Nesse
trabalho, Cândido Rondon se destacou e acabou se tornando o idealizador e dirigente do
SPILTN100, que foi transformado em Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1918. O
sertanista tinha sucesso nas relações estabelecidas com os indígenas e creditava sua habilidade
aos ensinamentos de Auguste Comte. Tinha concepções racistas, que compartilhava com os
100
O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi planejado pelos integrantes do Ministério da Agricultura, Industria
e Comércio (MAIC), que desde sua instituição previram a criação de uma agência de civilização dos índios. Esses
integrantes frequentavam também o Museu Nacional e o Apostolado Positivista do Brasil. A intenção era oferecer
aos índios uma assistência leiga para acabar com a catequização católica e concretizar o princípio republicano da
separação entre Igreja e Estado.
113
101
A instrução de que os “índios nômades deveriam ser atraídos por meios brandos" foi dada pelo Decreto 8.072
(1910), que instituiu o Regulamento do SPI. Em 1928, a Lei nº 5.484 confirmou a instrução e dotou o Estado da
tutela dos índios, proibindo qualquer expedição armada contra eles.
114
para os índios, contudo, sem conhecer realmente a dinâmica de movimentação dos grupos. O
resultado dessa política integracionista foram incursões, financiadas pelos seringalistas, para
atrair e pacificar os índios, deslocando-os para fora da área de interesse econômico (idem).
Nesse período, de acordo com Darcy Ribeiro (2009 [1970]), os índios da Amazônia se
encontravam em situação de vida semelhante aos índios dos tempos dos descimentos para o
trabalho escravo e para as missões religiosas do período colonial.
Ali, índios e civilizados se defrontam e se chocam hoje em condições muito próximas daquelas
em que se deram os primeiros encontros da Europa com a América indígena. De um lado, são
índios armados de arco e flechas que, do recesso de suas matas, olham o brasileiro que hoje
avança sobre suas terras (...). De outro lado, são brasileiros engajados nas frentes de expansão
da sociedade nacional, que avançam por uma terra que consideram sua e veem no índio uma
ameaça e um obstáculo” (idem, p. 19).
O Golpe de Estado no Brasil ocorreu em 1964 dando início a uma ditadura que durou
21 anos. Em 1967, o SPI passou a integrar o recém-criado Ministério do Interior, cuja política
era alinhada à Doutrina de Segurança Nacional. O Ministério tinha a função de ocupar o
território facilitando o desenvolvimento regional. Para isso foram criadas as agências de
desenvolvimento para as regiões. Na Amazônia foi criada a Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Com o objetivo de desenvolver economicamente a
região foram atraídos grandes projetos com incentivos fiscais. Construiu-se hidrelétricas e
abriram grandes estradas para integrar um território considerado “vazio de gente”. Para Elena
Guimarães102:
As atrocidades cometidas pelo governo contra os povos indígenas foram registradas pelo
procurador Jáder Figueiredo Correia. Ele produziu o Relatório Figueiredo, entre 1967 e 1968,
que denunciava em as mais cruéis e desumanas formas de violências cometidas pelo Estado
102
Entrevista concedida ao Instituo Humanitas Unisinos. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/547493-relatorio-figueiredo-crimes-continuam-50-anos-depois-entrevista-
especial-com-elena-guimaraes
103
“O massacre dos Waimiri-Atroari, ocorrido a partir de 1968, por ocasião da contrução da rodovia Manaus-Boas
Vista, a BR-174. O processo de invasão do território, para a construção da rodovia que corta o território Kinã
(Waimiri-Atroari), foi imposto pelos militares, provocando a morte de 2.000 índios no período da ditadura militar,
sobretudo a partir de 1968/1969” (GUIMARÃES 2015, p. 54)
116
É espantoso que existe na estrutura administrativa do País repartição que haja descido a tão
baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos, cuja bestialidade tenha atingido
tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de
indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a
título de ministrar justiça. (BRASIL 1967, p. 2)
(...)
Nesse regime de baraço e cutelo viveu o SPI muitos anos. A fertilidade de sua cruenta história
registra até crucificação, os castigos físicos eram considerados naturais nos Postos Indígenas.
Os espancamentos, independentes de idade ou sexo, participavam da rotina e só chamavam
a atenção quando aplicados de modo exagerado, ocasionavam invalidez ou morte.
Havia alguns que requintavam a perversidade, obrigando pessoa a castigar seus entes queridos.
Via-se, então filho espancar mãe, irmão bater em irmã e assim por diante. (ibidem, p. 3)
104
A partir de 1968, com a instituição Ato Constitucional nº 5 iniciou-se o período mais duro da ditadura, foi
quando o Relatório Figueiredo desapareceu.
117
“O nosso lema - que não é de hoje - é ORDEM E PROGRESSO. A expressão da nossa bandeira
não poderia ser mais atual, como se hoje tivesse sido redigida”. Michel Temer, Presidente do
Brasil. Discurso de posse em 12 de maio de 2016.
Falando para uma plateia “branca”, cercado por homens também “brancos”, que
disputavam um pedacinho da imagem transmitida pela televisão brasileira, o presidente interino
Michel Temer toma posse depois do impeachment sofrido pela ex-presidente Dilma Rousseff.
Um ato orquestrado pelo legislativo e judiciário levou seu vice-presidente a assumir o cargo
oficial de presidente do Brasil. No discurso de posse, Temer diz que pretende reproduzir uma
frase - que teria visto em um posto de gasolina - em dez/vinte milhões de outdoors pelo país. A
frase era “não fale em crise, trabalhe! ”. O presidente seguiu seu discurso enunciando o lema
do seu governo: “Ordem e Progresso”. O público aplaudiu eloquentemente. Após os aplausos,
ele segue dizendo que seu governo está fundado em um processo de alta religiosidade e pede
as bênçãos divinas. A equipe de governo apresentada não tinha nenhuma mulher, negro ou
índio. Estamos no ano de 2016.
Estampado em nossa bandeira nacional, “ORDEM E PROGRESSO” é lema que todo
brasileiro conhece desde a mais tenra idade. Raras são as bandeiras de países que trazem nelas
uma mensagem tão evidente. Associado à nossa nacionalidade está o lema positivista inspirado
em Auguste Comte, que pregava “Amor como princípio, Ordem como base; e Progresso como
meta”105. Lema que motivou a desindianização oficial a qual mutilou os indígenas em suas
culturas e contribuiu para o extermínio físico e cultural de vários povos. Tivesse sido o amor
não negligenciado, quem sabe os brasileiros o tivessem interpretado como o respeito à
alteridade e assim as relações sociais poderiam ter sido um pouco mais equilibradas. Mas
“progresso” foi palavra de ordem e nos acompanha desde a formação da nossa nacionalidade
até os dias de hoje, como aspiração do Estado e da sociedade. O que seria esse progresso tão
almejado?
A busca pelo “progresso” no Brasil sempre apontou para o futuro e tem servido para
justificar atitudes e decisões autoritárias, sejam elas de caráter material, como obras e projetos
de investimento, ou mesmo de caráter simbólico, ao conformar a sociedade brasileira de acordo
com os ideais dos governantes, representantes das elites econômicas. Como o desenvolvimento,
que o “progresso” prega, está sempre em um futuro que não chega, pois nunca se torna presente,
o Brasil ao logo de sua história caminha sempre em uma direção que parece ser inalcançável.
105
L'amour pour principe et l'ordre pour base; le progrès pour but.
118
Ainda no início do século XIX, o Brasil era descrito de uma forma que combinava
elogios à natureza exuberante e à estranheza de seu povo “exótico”, que mais parecia compor
essa esquisita natureza do que serem humanos reconhecidos em sua alteridade. Um breve aceno
de elogio dava abertura à total repugnância que fazia da América um lugar estranho e decaído
que com sua gente era de todo inferior. Lilia Schwarcz afirma: “O fato é que, seja nas versões
mais positivas, seja nas evidentemente negativas, esse Novo Mundo sempre foi “um outro”,
marcado por suas gentes, com costumes tão estranhos. Isso tudo num período em que “raça”
nem ao menos existia como conceito definido” (2013, p. 21).
Já no final do século XIX, a modernização do país era anseio urgente e em nome dela
se derrubou a monarquia e junto com ela o sistema escravagista. O projeto de construção do
Brasil estava em consonância com a criação dos estados modernos que buscavam a formação
de uma comunidade nacional, forjando um novo sentimento de pertencimento identitário, que
se sobrepusesse às ligações afetivo-comunitárias anteriores.
Era urgente para a classe dominante conformar um estado brasileiro que imitasse os
países Europeus ou mesmo os Estados Unidos, referenciais de civilização, modernização e
progresso. Para os abastados donos de engenho, para os fazendeiros de café e para os grandes
comerciantes, era fácil imaginar um Brasil opulento, em termos monetários, já que se aliavam
para determinar os rumos da construção da nova nação. Mais difícil para eles era entender o
que fazer com a população que ficou de herança do sistema escravagista e também com o que
restava da população nativa.
A ideia de que progresso do país dependia não apenas do seu desenvolvimento econômico ou
da implantação de instituições modernas, mas também do aprimoramento racial de seu povo,
dominou a cena política e influenciou decisões públicas das últimas décadas do século XIX,
contribuindo efetivamente para o aprofundamento das desigualdades no país, sobretudo, ao
restringirem as possibilidades de integração da população de ascendência africana. (JACCOUD,
2008, p. 49).
Trazer a civilização para o país se fazia imprescindível e isso apresentava uma tensão
entre a imagem ideal da população e a realidade do povo pobre e simples, com o qual a elite
“olhando do alto” em nada se identificava e assim optava por o depreciar, o anular. Márcia
Naxara (1998) questiona quem deveria então ser chamado de povo, se todos ou somente alguns
brasileiros, e a essa indagação a autora responde com clareza: “depende de quem se fala, a
respeito de quem se fala e a quem se dirige a fala” (ibidem, p. 48). O que torna evidente um
conflito entre o que era a população e o que se desejava que ela fosse, a imagem quase
inalcançável que dela se almejava. Assim, criou-se uma imagem degradante do que é o
brasileiro. Uma figura negativa representava esse povo, tipificada na literatura, no início do
119
século XX, por Monteiro Lobato106, que criou o personagem Jeca Tatu: um mestiço indolente,
doente, ignorante, despreparado, incapaz de exercer cidadania, completamente desamparado
pelo poder público. Márcia Naxara fala da influência estrangeira que fez com que as elites locais
rejeitassem essa condição do brasileiro e fizessem “tabula rasa de sua existência”:
Um Brasil que foi, na maior parte das vezes, descrito por viajantes estrangeiros
impregnados do etnocentrismo europeu e procurando o exótico nos mundos tropicais
das antigas colônias. Em contato com a elites locais viram os grupos subalternos de fora,
imersos nas sombras da pobreza e da miséria, esmagados pelo peso do trabalho escravo,
feios, incapazes de constituir o povo de uma nação. (NAXARA, 1998, p. 38 – 39)
106
A obra de Monteiro Lobato reflete o racismo que permeava todos os campos da vida nacional. Ele representou
através da literatura todo o desprezo por aqueles considerados inferiores para a construção da nacionalidade: os
índios e os negros. Sua obra contribuiu também para imprimir na população um caráter de desprezo por si mesma.
Poucos anos depois da criação do personagem, Monteiro Lobata imprimiu nele um caráter menos racial que
higienista: Jeca Tatu passou a ser fruto doenças epidêmicas.
107
Positivismo, evolucionismo e darwinismo social.
108
Ver Laraia 2005.
109
Lilian Schwarcz elenca várias teorias de viajantes no período em “O Espetáculo das Raças” (2004).
120
Assim, o homem branco foi considerado nos planos biológicos e morais como superior.
Já o negro era associado à natureza bárbara e, pela condição de ter sido escravizado, era tido
como ser irracional destinado à servidão. Não obstante contrariar todas as evidências genéticas,
os intelectuais brasileiros chegaram à esdrúxula conclusão que, através da mistura, o
“elemento” negro se diluiria e permitiria formar através do branqueamento a desejada sociedade
brasileira.
Dante Moreira Leite, em seu livro “O Caráter Nacional Brasileiro – História de uma
Ideologia” (1969), faz um apanhado dos teóricos brasileiros que influenciaram na construção
da nacionalidade brasileira. Para Sílvio Romero (1851 – 1914) o branqueamento salvaria a
população da degeneração. Já Euclides da Cunha (1866 – 1909) acreditava que o mestiço do
Norte, resultado da mistura do branco com o índio, já havia se constituído enquanto raça,
estando assim apto ao desenvolvimento mental. Esse entusiasmo com a mestiçagem está na raiz
da ilusão de que no Brasil a questão da raça não seria um problema, como era em outros países.
No entanto, o escancarado preconceito contra índios e negros no Brasil se deu através
de Nina Rodrigues (1862 – 1906), que acreditava piamente no evolucionismo do século XIX e
relacionava a inferioridade do país tanto à presença dos negros quanto à dos mestiços. Moreira
Leite afirma que foi Oliveira Vianna (1883 – 1951) quem escreveu as palavras mais cruéis e
injustas em relação aos negros110, e que apesar das críticas recebidas, seus livros tiveram várias
edições, “como se representassem algo mais que a imaginação doentia de um homem que deve
ter sido profundamente infeliz” (1969, p.231).
No entanto, Moreira Leite mostra que a obra de Oliveira Vianna revela para o sociólogo
e para o psicólogo “a crueldade do domínio de um grupo, por outro: o grupo dominado acaba
por se ver com os olhos do grupo dominante, a desprezar e odiar, em si mesmo, os sinais que
os outros consideram sua inferioridade” (ibidem). É nesse movimento de desprezo por si mesmo
que foi germinada a semente do preconceito e do racismo. Cor escura da pele, traços, cabelos
se tornaram um estigma, com o qual era difícil lidar, mais fácil seria anular. A origem indígena
associada ao estado selvagem, ao atraso e à ignorância era melhor ser esquecida. Assim, o
racismo foi penetrando nas pessoas como algo íntimo, que de tão pessoal foi transmitido nas
gerações sorrateiramente, não como algo escancarado, mas talvez mais nocivo por ter sido
velado, confundido, não reconhecido.
110
Para Oliveira Vianna o negro é “simiesco, troglodita, decadente moral, inferior” (MOREIRA LEITE, p.231).
O mestiço também era considerado inferior e ele propunha um governo capaz de “impor novamente a mortalidade
da senzala” (Ibidem).
121
identificações e que esses diversos tons entre o negro e o branco expressam sim a realidade
brasileira, embora com isso eu não queira dizer que não exista o racismo.
À diferença do “racismo científico”, a tese do branqueamento sustentava-se em um otimismo
face à mestiçagem e aos “povos mestiços”, reconhecendo, dessa forma, a expressiva presença
do grupo identificado como mulato, sua relativa mobilidade na sociedade da época e sua
possibilidade de continuar em uma trajetória em direção ao ideal branco. (JACCOUD, 2008, p.
49)
Incita à mistura étnica; coloca a sexualidade num plano estratégico, ou seja, como o veículo
capaz de promover a confraternização das etnias; dilui a identidade nacional, ao apostar num
amálgama capaz de unir os vários elementos que compõem nossa nacionalidade, porém,
manobra essa identidade em construção para determinadas direções, conforme a conjuntura de
cada período de nossa História; coloca-nos numa busca insistente pela nossa identidade
nacional, impedindo um envolvimento maior com a própria nacionalidade por parte dos
brasileiros; ele é, ainda, produtor de subjetividades dóceis e maldelimitadas, uma vez que
promove a mistura étnica apagando as origens, apagando o passado e suas contradições,
voltando-se para o futuro e deshistorizando as raízes históricas individuais e nacionais. (TADEI,
2002, p. 8-9)
111
When the Spaniards arrived five hundred years ago, they raped our ancestors, our grandmothers, our mothers
to breed a race of mestizos. The result is the violence and cruelty that we are still living with today. The Spaniards
used a vile method to create a mixed race, a race of children who doubted their own identity, with their heads on
one side of the ocean and their feet on the other. That is what happened to our culture. (MENCHÚ 2003, p. 132).
123
A metáfora usada por Menchú -“cabeça de um lado do oceano e pés do outro”- é forte
e elucidativa. A ideologia, o desejo de ser o branco europeu, com saberes, culturas e estética,
reside na cabeça das pessoas. É expressão da colonialidade do ser que se submete a querer ser
um outro inalcançável. Os pés significam a base, o estar em um lugar não confortável porque
cultura, saberes e estética locais foram rejeitados. A metáfora expressa que houve a imposição
de uma cultura sobre a outra. Não houve diálogo, troca e respeito. Houve sim a imposição da
ideologia da superioridade do europeu sobre o nativo americano, que persiste através dos
tempos como uma colonialidade. Um mito que prossegue despedaçando o mestiço em um ser
dividido, a cabeça na Europa e os pés na América Latina. Menchú enfatiza que o passado não
pode ser reduzido a mitos. Para ela, o passado “deve ser uma fonte de força para o presente e o
futuro”112 (ibidem).
112
The past must be a source of strength for the presente and the future (MENCHÚ 2003, p. 132).
124
Dante Moreira Leite interpreta com maestria o conteúdo da obra de Gilberto Freyre,
demonstrando como ela é escrita a partir do ponto de vista da classe dominante brasileira, ou
seja, o quanto ela é ‘profundamente reveladora’ dos seus preconceitos mais conservadores e
arraigados, afirmando que:
A obra de Gilberto Freyre revela uma profunda ternura pelo negro. Mas, pelo negro escravo,
aquele que conhecia “a sua posição” – como o moleque da casa-grande, como o saco de
pancadas do menino rico, como cozinheira, como ama de leite ou mucama da senhora. Nesses
casos, o branco realmente não tinha preconceito contra o negro, podia até estimá-lo. (...) E nada
revela melhor esse preconceito contra o negro – ou seria melhor dizer, essa atitude escravocrata
– do que as ideias de Gilberto Freyre a respeito da evolução econômica e social do Brasil. Para
ele o negro vivia melhor sob a escravidão do que no regime de liberdade de trabalho; a
alimentação do escravo seria melhor até do que a do senhor branco. No entanto, embora diga a
certa altura que a vida do escravo ‘não era apenas de alegria’, não dá elementos da vida concreta
do escravo – a não ser nos aspectos em que esta se ligava à vida dos senhores. (MOREIRA
LEITE, 1969, p. 281)
Isso era o que temia o sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos, que organizou
junto com o grupo do Teatro Experimental do Negro (TEN)113, cujo idealizador foi Abdias
Nascimento, o 1º Congresso do Negro Brasileiro114, em agosto de 1950, onde ele apresentou
um documento que propunha à UNESCO o patrocínio de um “Congresso Internacional de
Relações de Raça”. O objetivo seria discutir a adoção de medidas de combate ao racismo, com
base na experiência do TEN - com ênfase no sociodrama e psicodrama para melhorar a
autoestima e valorizar a estética do negro-, definindo uma agenda política orientada de
intervenção social, em vez de limitar o investimento apenas em investigações acadêmicas.
Guerreiro Ramos, privilegiando o ativismo negro, propunha à UNESCO uma sociologia de
cunho pragmático de âmbito internacional com o incentivo de atitudes e valores novos em
relação às populações discriminadas, através das seguintes iniciativas:
a) a utilização do teatro como instrumento de integração social; b) os concursos de beleza
racial como processo de desrecalcamento em massa; c) as tentativas de aplicação em massa
de sociatria e de grupoterapia; d) a utilização de museus e filmes como instrumentos de
transformação de atitudes”. (GUERREIRO RAMOS apud MAIO 2015).
Contudo, ao mesmo tempo em que propunha uma aplicação mais prática da pesquisa,
Guerreiro Ramos115 considerava que o problema de classe se sobrepunha ao problema de cor,
e lembrava um ditado popular comum na Bahia, que diz que o branco pobre é negro e o negro
rico é branco (idem), ou seja, quanto mais rico social e culturalmente, menos preconceito o
negro sofria. Diferente de muitos ativistas negros brasileiros, que seguiam piamente os passos
do movimento negro americano, ele demonstrava o quanto a situação do negro no Brasil
divergia da americana, e enfatizava a discriminação por classe. Pesquisadores116 demonstraram
o quanto a raça está interligada à classe e o quanto é falsa a ideia de que progredir
economicamente e/ou educacionalmente significaria uma inclusão social, um
“branqueamento”.
Um exemplo disso foi a chegada dos médicos cubanos negros que vieram ao Brasil,
dentro do programa “Mais médicos” do Governo Federal, atender a população mais desassistida
113
O TEN foi criado em outubro de 1944, no final do período do Estado Novo, sob a liderança do jornalista e
teatrólogo Abdias Nascimento. “O TEN propunha-se a combater o racismo, que em nenhum outro aspecto da vida
brasileira revela tão ostensivamente sua impostura como no teatro, na televisão e no sistema educativo, verdadeiros
bastiões da discriminação racial à moda brasileira” (NASCIMENTO, 2004, p. 221).
114
Estiveram presentes os cientistas sociais Roger Bastide, Darcy Ribeiro, Charles Wagley, Luiz de Aguiar Costa
Pinto. Protagonizaram o evento os intelectuais negros Édison Carneiro, Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento.
Também estavam presentes os ativistas negros e os parlamentares Afonso Arinos de Melo Franco e Hamilton
Nogueira. Os coordenadores do evento solicitaram apoio de órgãos governamentais e agências internacionais
(ONU, UNESCO) (Maio, 2015).
115
Guerreiro Ramos compartilhava as ideias de Donald Pierson (1945) sobre as relações sociais no Brasil.
116
Howard Winant (1992); France Twine (2000).
126
no interior do país, em 2013. Eles foram recebidos no aeroporto de Fortaleza (CE), cidade um
dia chamada pela elite de “loira desposada de sol” (ver cap. IV), por um grupo de médicos
brasileiros, que gritavam a plenos pulmões: “escravos, escravos”, “incompetentes”, “voltem pra
senzala”. A “casa grande” se sentiu incomodada.
Figura 26: Chegada dos médicos cubanos no Brasil
FONTE: http://www.geledes.org.br/wpcontent/uploads/2013/09/m%C3%A9dicoscubanos.jpg
FONTE: http://s2.glbimg.com/fL1V9Cq1ZSDiAYuH_2UadJzX47Q=/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2013/08/27/borrada.jpg
127
Guerreiro Ramos, ao separar sua análise de classe e raça, era contrário à organização
política do Movimento Negro. Ele queria uma mudança estrutural da sociedade, o que não era
possível alcançar se a análise não fosse ampliada e politizada como sustentavam militantes e
intelectuais negros, como Abdias Nascimento, que considerava:
Era urgente uma ação simultânea, dentro e fora do teatro, com vistas à mudança da mentalidade
e do comportamento dos artistas, autores, diretores e empresários, mas também entre lideranças
e responsáveis pela formação de consciências e opinião pública. Sobretudo, necessitava-se da
articulação de ações em favor da coletividade afro-brasileira discriminada no mercado de
trabalho, habitação, acesso à educação e saúde, remuneração, enfim, em todos os aspectos da
vida na sociedade. (...) O TEN organizou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro para atuar a
nível político, reivindicando medidas específicas para melhorar a qualidade de vida de nossa
gente. (NASCIMENTO 2004, p. 221)
A situação racial brasileira merecia e ainda merece uma análise mais aguçada, a fim de
se encontrar o tom certo para o problema da cor. Considero que o problema não se restringe à
cor. O indígena foi completamente negligenciado nos estudos raciais. Desde a metade do século
XX, quando se consolidaram os estudos que revelavam o quanto o racismo era presente nas
relações, a questão do racismo contra o índio foi completamente apagada. Talvez porque nessa
época se acreditasse que as populações indígenas logo seriam exterminadas. Um vídeo
revelador sobre o racismo choca até hoje as pessoas. É a aplicação de um teste realizado pela
primeira vez nos anos de 1940, pelo psicólogo americano Kenneth Clark, onde crianças negras
e brancas deveriam apontar características físicas e morais de duas bonecas: uma negra e uma
branca. O teste foi reproduzido várias vezes e demonstra o quando características positivas são
associadas à boneca branca e negativas à negra.
Em um país latino americano, crianças mestiças com traços evidentemente indígenas
participaram da mesma experiência117. Em um momento perguntavam qual das bonecas se mais
pareciam com elas, se a branca ou a negra. As crianças de pele morena, cabelos lisos e pretos e
olhos pretos respondiam, com certa dúvida, a branca. Não havia uma boneca disponível que
retratasse verdadeiramente a imagem das crianças. A pesquisa era maniqueísta, como o foram
os diversos estudos raciais que desprezavam completamente a condição indígena da população
latino-americana.
A situação de classe é também fruto da histórica discriminação racial. No Brasil, traços,
cabelos e cor da pele ainda distinguem o tratamento e o acesso às oportunidades de pessoas
com as mesmas origens ou condições sociais. Schucman (2012) revela como mesmo na situação
117
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Sq4z2Vq2K1w
128
de miséria a cor branca concede privilégios. A pesquisadora relatou que um morador de rua
branco disse que ainda podia ter acesso a banheiros ou mesmo entrar em um mercado para
comprar algo, o que aos moradores de rua negros não era permitido. Se, por um lado, a
reprodução do modelo de combate ao racismo americano não serve na sua totalidade ao Brasil,
por outro a consciência e engajamento político são essenciais para a transformação das relações
raciais.
Se o ponto fraco de Guerreiro Ramos foi menosprezar o ativismo político em detrimento
de classe e cultura, seu mérito foi acreditar que “o estudo sociológico e a ação prática deviam
ser concomitantes, de tal forma que a formulação das pesquisas exigia uma clara definição de
seus alvos políticos”, afirmou o professor Marcos Maio (2015, p.86), que completou:
“Guerreiro Ramos acreditava que ‘o problema do negro’ não seria resolvido caso medidas
tópicas não viessem acompanhadas por transformações estruturais” (idem, p 87). De acordo
com Marcos Maio, a sugestão de Guerreiro Ramos foi publicada, em setembro de 1950, na
Declaração Final do Congresso do Negro, ao lado de outra sugestão de estudo de levantamento
das bem sucedidas soluções dos problemas de raça no Brasil, para que fossem recomendadas
aos demais países, o que reiterava o mito da democracia racial. Mesmo não tendo sido acatada
como projeto pela UNESCO, o Congresso do Negro e as considerações de Guerreiro Ramos
influenciaram seus pesquisadores que modificaram o plano original do projeto, ampliando as
possibilidades da pesquisa que chegou aos resultados já apontados por ele e pelo grupo do TEN.
A geral visão desracializada que vigorava nos anos de 1950 é criticada por Antônio
Sérgio Guimarães: “a palavra de ordem que ainda encontramos era a seguinte: a cor é apenas
um acidente. Somos todos brasileiros e por um acidente temos diferentes cores; cor não é uma
coisa importante; ‘raça’, então, nem se fala, esta não existe, quem fala em raça é racista” (2003,
p.101). Essa ideia, superada parcialmente nos meios acadêmicos, ainda vigora caladamente na
sociedade.
dota as pessoas de consciência política e isso faz com que elas, que antes não se sabiam negras,
passem a se reconhecer racialmente e a lutar por seus direitos.
Tal movimento de conscientização também vem acontecendo com os indígenas através
do Movimento Indígena, que também nasceu e se fortaleceu no período de redemocratização
do Brasil. Bem, abordei até agora como se fundou a chamada “hegemonia branca” no Brasil,
considerando em grande parte o negro, seu papel na sociedade e as bases da negação da raça,
mas onde está o índio nessa história? Essa lacuna é preenchida por uma dúbia abordagem em
relação aos povos indígenas durante o período da promoção do branqueamento e também do
mito da democracia racial: ao mesmo tempo em que consideravam que os índios estavam
acabando, os estudos sobre as suas culturas se intensificaram.
É a fantasia desse índio, nulo de sua identidade ou congelado no passado, que povoará
o imaginário da sociedade brasileira. É nesse imaginário que reside o senso comum em relação
ao indígena, formado e sustentado por um projeto ideológico de nação. Se por um lado o projeto
de branqueamento almejava anular o negro da sociedade, por outro lado existia a certeza de que
logo não haveria mais indígenas no Brasil. Assim, o índio não causava tanta preocupação
porque, pelo extermínio que sofrera e pela integração na sociedade, logo deixaria de existir.
Como esclarecido no segundo capítulo, as várias pesquisas que seguiram sobre grupos
indígenas os analisavam como etnias, abandonando a abordagem racial.
A sambista Clara Nunes eternizou sua voz cantando, nos anos de 1970, o “Canto das
três raças” composto por Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro. Na música o “ôôôôô” que
ritmiza o lamentar de dor, ainda ecoa nos ouvidos dos brasileiros:
Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil. Um lamento triste sempre ecoou desde
que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou um canto de revolta pelos
ares no Quilombo dos Palmares onde se refugiou. Fora a luta dos inconfidentes pela quebra das
correntes, nada adiantou. E de guerra em paz de paz em guerra, todo povo dessa terra quando
pode cantar, canta de dor. E ecoa noite e dia, é ensurdecedor, ai, mas que agonia o canto do
trabalhador. Esse canto que devia ser um canto de alegria soa apenas como um soluçar de dor.
Fazendo alusão às três raças formadoras do povo brasileiro, a música vincula as raças
ao trabalhador e seu sofrimento, produto da história do país. Porém, esse trabalhador, ou seja,
a classe explorada, hoje é reconhecida sobretudo como negra ou parda, categoria que o
movimento negro abraça. Mas onde está novamente o índio na história atual? Teria ele ficado
para sempre cativo ao passado? Jonathan Warren (2001; 2013) demonstra como o índio é
excluído do debate de igualdade racial e dos benefícios das políticas direcionadas, porque não
é considerado presentemente enquanto raça.
A transformação dos mestiços em negros e a desracialização dos índios ajudaram a engendrar
um movimento antirracista que amplamente vê a si mesmo como Negro – ou latente Negro –
movimento. Em outras palavras, os cientistas sociais tiveram um importante papel na definição
131
de Índios, de tal forma que ativistas e entidades antirracistas não consideram as comunidades
indígenas e seus problemas como importantes para o antirracismo. O resultado não é o
antagonismo, mas a negligência. A questão indígena, se considerada como um todo, é tratada
como se fosse completamente irrelevante para as questões de raça. (WARREN, 2013, p. 227,
traduzido pela autora).
A Constituinte
Embora com todos os estereótipos e jargões acusatórios pesando sobre eles, os indígenas
se organizam coletivamente e lutam pelo reconhecimento de seus direitos desde a década de
1970. Foi durante os anos violentos da ditadura no Brasil - de 1964 a 1985-, que os indígenas,
apoiados por um conjunto de organizações, começaram a se organizar na luta por direitos. Essa
luta culminou na aprovação dos artigos 231 e 232, da Constituição Federal de 1988, que
reconhecem os direitos indígenas, especialmente os direitos à diferença e à terra. Parecia
assegurado às populações indígenas as formas de manifestar a sua cultura, a sua tradição e uma
perspectiva de futuro sem as ameaças permanentes que sofriam.
Para a formulação da que ficou conhecida como a “Constituição Cidadã”, houve a
organização de uma Assembleia Nacional Constituinte, marcada por um discurso histórico do
porta-voz do então emergente Movimento Indígena. Foi Ailton Krenak que, em 04 de setembro
de 1987, defendendo a Emenda Popular da União das Nações Indígenas (UNI), subiu na tribuna,
elegantemente vestido de terno branco, discursou eloquentemente enquanto tingia seu rosto
todo de preto, com tinta de jenipapo. O preto representava o luto, mas também a denúncia e a
decisão de reverter a conjuntura política anti-indígena naquela legislatura do Congresso
Nacional. De maneira educada, forte e sensível, ele resumiu a realidade dos povos indígenas:
Eu espero não agredir com a minha manifestação o protocolo dessa casa, mas eu acredito que
os senhores não poderão ficar omissos. Os senhores não terão como ficar alheios a mais essa
agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um
132
povo indígena. (...) E, hoje nós somos o alvo de uma agressão que pretende atingir na essência
a nossa fé, a nossa confiança de que ainda existe dignidade, de que ainda é possível construir
uma sociedade que sabe respeitar os mais fracos(...) um povo que habita casas cobertas de palha,
que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como o povo que é o
inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação e que coloca em risco qualquer
desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare os 8 milhões de
quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso.
Com a aprovação dos artigos 231 e 232, a Constituição Federal foi uma grande vitória
para os povos indígenas. Finalmente, eles tiveram seus direitos formalmente reconhecidos.
Contudo, governo após governo, os indígenas viram, de 1988 para cá, seus direitos
gradativamente serem desrespeitados e tolhidos. A Constituição estabeleceu que fossem
demarcadas todas as terras indígenas118, no prazo de cinco anos da sua promulgação, quando se
alcançou a demarcação de apenas 50% delas. Ano após ano, os processos de demarcação ou
estagnaram ou se tornaram absurdamente morosos.
Os indígenas demandarem direito à saúde e à educação de qualidade com respeito às
suas diversidades e conhecimentos tradicionais. O Governo Federal destinou minguadas verbas
para o atendimento desses direitos, e pouco a pouco foram se instalando modelos de execução
cada vez mais distantes da necessidade daqueles que deveriam ser beneficiados. Esses modelos
têm dificultado que os recursos cheguem aos indígenas. O governo comandado pela presidente
Dilma Rousseff vinculou a sua imagem ao respeito aos povos indígenas, mas foi o que menos
demarcou terras indígenas desde a promulgação da Constituição Federal.
118
De acordo com Eneida Assis (2006), na Constituição Federal de 1988 a noção de terra indígena como
ocupação tradicional não se relaciona ao tempo de ocupação, mas a terra na qual os indígenas vivem e se
reproduzem física e socioculturalmente.
133
FONTE: https://i.ytimg.com/vi/kWMHiwdbM_Q/hqdefault.jpg
Depois de quase 30 anos do seu discurso na Constituinte, Ailton Krenak afirma que
“para os indígenas o pior momento é agora”. Ele critica o modelo de desenvolvimento e a
extração abusiva dos recursos naturais. Apesar de um histórico de luta e resistência heroico, os
povos indígenas estão vendo suas conquistas escorrerem pelas mãos. O CIMI denuncia que
existe um progressivo aumento da violência contra os indígenas, pois em 2007 foram
assassinados 92 líderes indígenas, já em 2014 esse número subiu para 138. A impunidade
reforça a violência.
A relatora especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria
Tauli-Corpuz, que esteve em missão no Brasil em março de 2016, observou que “os riscos
enfrentados pelos povos indígenas estão mais presentes do que nunca desde a adoção da
Constituição de 1988”, ela lembra que no passado recente “O Brasil tinha uma liderança
mundial no que se refere à demarcação dos territórios indígenas”. A relatora nem bem acabou
sua visita às aldeias indígenas no Mato Grosso do Sul e a violência voltou a tomar conta, como
se os ‘fortes’ quisessem expressar deboche, amedrontar e provar que de nada adianta a luta
indígena e de seus aliados. Victoria Tauli-Corpuz se expressou com grande preocupação:
Eu considero extremamente alarmante que uma série desses ataques, que envolveram tiroteios
e feriram populações indígenas nas comunidades de Kurusu Ambá, Dourados e Taquara, no
Mato Grosso do Sul, tenham ocorrido após minhas visitas a essas áreas. Eu condeno esses
ataques e exorto o Governo a pôr um fim a essas violações de direitos humanos, bem como
investigar e submeter os mandantes e autores desses atos à justiça.
134
FONTE: https://i.ytimg.com/vi/kWMHiwdbM_Q/hqdefault.jpg
Figura 30: Tuíra Kayapó, aos 19 anos, encosta o facão no rosto de diretor da Eletronorte.
FONTE: http://infograficos.estadao.com.br/especiais/favela-amazonia/capitulo-8.php
119
Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A.
136
120
Matéria publicada na revista Carta Capital em 18/02/2016. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/indigenas-e-mpf-suspendem-o-ceu-no-para
137
Na sequência do texto, Viveiros de Castro chama atenção para o que a história recente
ensina: essas “sereias” que encantam com seus discursos de desenvolvimento matam. Seu poder
assassino está na “dissolução progressiva dessas comunidades tradicionais, sua extinção, o
acaparamento121 de seus territórios por grandes empresas agroexportadoras e por grileiros e
especuladores profissionais”. Essa dinâmica expulsa os ocupantes dos territórios usurpados na
floresta para as baixadas, os alagados, as periferias urbanas mais desestruturadas e desprezadas
das cidades amazônicas. De maneira que quem na floresta habitava a “zona do não-ser”122 -
onde estão as populações desumanizadas, situadas abaixo da linha do humano fanoniana -
passará a habitá-la na cidade.
A retórica do “desenvolvimento sustentável” tem servido para mascarar o avanço do
capital sobre a natureza. Desenvolvimento é um termo antagônico à sustentabilidade, do que
resulta um conceito contraditório. Enquanto um termo do conceito significa explorar para
capitalizar, o outro é ligado à preservação. O desenvolvimento é mais forte que a
sustentabilidade, o que vem gerando devastação e pobreza (BOFF, 2012). A ideia é: “já que
preservo, exploro”. Assim, segundo Leonardo Boff, as áreas de proteção ambiental são como
ilhas e servem como discurso de permissão para se explorar tudo ao redor de maneira
devastadora, desconsiderando gente e natureza.
Henri Acserald (2012)123 contesta o status de desenvolvimento sustentável como
conceito porque, segundo ele, a noção não reúne atributos científicos. Para Acserald, o discurso
sobre sustentabilidade nasceu no seio da tecnoburocracia dos organismos multilaterais de
desenvolvimento124 em virtude da pressão do movimento ambientalista, dada a percepção de
ameaça ao desenvolvimento capitalista, em função do comprometimento das suas bases
121
A Oxfam define “acaparamiento de tierras” da seguinte maneira: é um termo que se refere à compra de grandes
extensões de terra para monocultivos para a exportação ou para a produção de biocombustívies, e que está
provocando fome e violando direitos humanos em muitos países em desenvolvimento. Disponível em
www.oxfamintermon.org/es/campanas/proyectos/acaparamiento-de-tierras.
122
Segundo Ramón Grosfoguel (2011), o ponto importante para Fanon é que os sujeitos localizados no lado
superior da linha do humano vivem no que ele chama de “zona do ser”, enquanto aqueles sujeitos que vivem no
lado inferior dessa linha vivem na “zona do não-ser”. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2010) , na “zona do
não-ser”, os sujeitos são racializados como inferiores e vivem uma situação de opressão racial.
123
Entrevista Henri Acselrad - Que desenvolvimento queremos? Entrevista concedida durante o Seminário sobre
a Rio +20: Que desenvolvimento queremos? Porto Alegre, 24 de maio de 2012. Publicado em 24 de abr de 2012.
https://www.youtube.com/watch?v=V5j25qHhoqo
124
Desenhada desde a conferência de Estocolmo, realizada em 1972, a noção de desenvolvimento sustentável
ganhou repercussão e força política através do documento “Nosso Futuro Comum”, de 1988, conhecido como
“Relatório Brundtland”.
138
Vazio demográfico e recursos inesgotáveis são mitos presentes no imaginário das elites
políticas, militares e de segmentos médios da sociedade brasileira em pleno século XXI. (2005,
p.10)
Gente desprezada
Gente desprezada é, sobretudo, uma população formada por gente racialmente
inferiorizada e oprimida pela classe dominante. É uma população malquista pelas elites, posta
em condição de subalternidade e, pois, sujeita a ser expulsa dos lugares onde vive. Essa gente
ribeirinha, cabocla, indígena, da floresta, foi condenada a não ser proprietária nem de seu
próprio pedaço de chão, que ocupa sem segurança, ali estando enquanto seu lugar não suscita
algum interesse de exploração econômica.
Moradores desde há muito, essa gente foi compactada, classificada toda como posseiros,
palavra que denota falta de legalidade na ocupação da terra pela ausência de documento que
comprove a compra ou a hereditariedade. Negros, indígenas e seus descendentes tiveram
origens étnicas arrancadas e não tiveram acesso a burocracias que lhes permitisse os
documentos de posse da terra. Desde a Lei de Terras de 1850, estratégias foram criadas
justamente para impedir-lhes a propriedade.
Posseiro é quem vive, trabalha e tira da terra seu sustento, mas que não é o legal dono
dela, uma vez que não tem a documentação da terra. Na Amazônia, posseiro é quem vive nas
terras consideradas devolutas125 sem ter a propriedade legal registrada em cartório, conforme
exige a lei. A própria permanência na classificação “devoluta” das terras ocupadas é uma
colonialidade, na medida em que nega potencialmente a terra a quem legitimamente a ocupa.
Posseiro é aquela gente que produz para sobreviver, mas pode perder a qualquer momento seu
meio de subsistência. A condição do posseiro é injusta. Sem o documento de propriedade da
125
Terras devolutas são terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum momento integraram
o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse.
141
terra, os posseiros passam a ser constantemente vítimas de grileiros126, que não ocupam a terra,
mas têm o documento legal falsificado, o que lhes confere uma propriedade ilegítima. Essa
injusta disputa é responsável por grande parte dos conflitos fundiários na Amazônia.
Nesse contexto, o avanço da produção capitalista se dá pela tomada de territórios
ocupados por um extenso campesinato, onde se situa o trabalhador rural, que passou a ser
ressignificado, na medida em que emergiam reivindicações por identidades. Muita gente passou
a ser identificada com sua atividade de subsistência: castanheiros, seringueiros, andirobeiras,
coletores, e/ou também extrativistas. Outros, apesar de morarem em áreas protegidas, ainda
continuam a se identificar simplesmente como trabalhadores rurais, uma identidade forte, ainda
que genérica. Também há aqueles que adotam mais de uma identidade, denominando-se
“trabalhador rural e extravista”. Outros, mais recentemente, assumiram suas identidades
indígenas, como os Borari e os Arapium da TI Maró. Os moradores, com identidades afirmadas
positivamente, reivindicam seus territórios e se colocam como um empecilho ao avanço
desregrado do capital na região.
O desprezo pelo Outro e a apropriação de território e natureza como mercadoria é rastro
do colonialismo, que hoje se apresenta na forma de colonialidade, perpetuando formas
internacionais hegemônicas de exploração de bens primários na Amazônia. As atitudes racistas
de outrora se reproduzem hoje no desprezo e exploração de gente e natureza.
Instalar complexos hidrelétricos para a produção de lingotes de alumínio para
exportação sem considerar os povos que vivem dos rios. Explorar o subsolo para exportar
minérios; derrubar floresta para pasto e exportar boi vivo; desalojar gente e desmatar para a
produção de soja e exportação de grãos. Todas essas atividades são faces do capitalismo
periférico brasileiro, ávido por divisas internacionais para manter sua economia.
Segundo Carlos Walter Porto Gonçalves (2010),
Seríamos simplistas se considerássemos que são exclusivamente os “de fora” da Amazônia os
únicos responsáveis por esse processo de permanente desorganização/reorganização, de
recontextualização do atrasado e do moderno. Não há região ou país colonial, dependente ou
periférico, que não seja, ao mesmo tempo, uma região ou país onde as elites dominantes vivam
essa ambiguidade de buscar uma identidade própria e, ao mesmo tempo, manter uma
mentalidade colonizadora. (p. 67)
126
O nome grileiro vem da prática de colocar os documentos de posse falsificados em uma gaveta com grilos para
dar a impressão de serem antigos e por isso verdadeiros.
142
abusiva dos trabalhadores. Não é raro encontrar situações de pessoas escravizadas. Mesmo no
contexto urbano, a própria condição laboral tida como livre ainda se dá pela extrema exploração
dos trabalhadores, com salário mínimo insuficiente para permitir uma vida digna e impedindo
qualquer mobilização social.
Essa combinação de exploração de gente e natureza e esforços para atender demandas
internacionais figuram a reprodução de um modelo implantado ainda no colonialismo,
percebido hoje como colonialidade. Combinado com o conceito de colonialidade nasce o
desenvolvimento conceitual de descolonialidade, conforme explicam o filósofo colombiano
Santiago Castro-Gomez e o sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel:
El concepto ‘decolonialidad’(...) resulta útil para trascender la suposición de ciertos discursos
académicos y políticos, según la cual, con el fin de las administraciones coloniales y la
formación de los Estados-nación en la periferia, vivimos ahora en un mundo descolonizado y
poscolonial. Nosotros partimos, en cambio, del supuesto de que la división internacional del
trabajo entre centros y periferias, así como la jerarquización étnico-racial de las poblaciones,
formada durante varios siglos de expansión colonial europea, no se transformó
significativamente con el fin del colonialismo y la formación de los Estados-nación en la
periferia. (CASTRO-GOMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p.13)
127
A definição jurídica de Reserva Extrativista (Resex) foi determinada pela que institui o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, como “uma área utilizada por populações tradicionais, cuja
subsistência baseia-se no extrativismo e complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de
animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações
e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. A Reserva Extrativista é de domínio público, com
uso concedido às populações extrativistas tradicionais (art. 18 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000). A criação
e a regularização fundiária são de responsabilidade do órgão ambiental, federal ou estadual”.
145
territoriais, a população local, antes vista como um todo homogêneo, se divide por força de
políticas de identidade. Comunitários transformados em extrativistas se defrontam com aqueles
que se autonomearam indígenas.
A exacerbação de emergentes identidades indígenas estabelece novas relações nas
comunidades, ocasionando atritos em muitas delas. De um lado, o movimento indígena busca
se ampliar, através da conscientização de semelhantes e valorização do pertencimento através
da reconstrução da história, o que os permite ressurgir nela. Essa ação representa uma
decolonialidade do saber, do ser e do poder. O que é ser indígena hoje? Esta é uma pergunta
que rompe com o conhecimento estabelecido. Por outro lado, os que não se sentem indígenas
buscam afirmar a identidade extrativista, que em um momento da história lhes foi ofertada a
partir do repertório oficial. Indígenas e extrativistas são politizados na medida de suas inserções
nas lutas dos movimentos indígenas e sindicais, nesse complexo contexto de afirmações
identitárias. A polêmica se generaliza nas comunidades.
Nesse cenário de disputas, o conflito principal se dá pela resistência na terra e no modo
de vida, contra a agressão representada pelo avanço de atividades econômicas que ameaçam
territórios e uma identidade coletiva substancial. Esse cenário de disputas abre uma série de
indagações para as quais não tenho respostas. Seria possível um novo equilíbrio entre os
interesses dos diversos grupos? Onde está a solidariedade entre iguais, no trato com a natureza
e no modo de vida, que se verificou na conquista da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns e
da Terra Indígena Maró? A percepção de que indígenas e extrativistas têm inimigos comuns
permitiria uma luta conjunta? Os inimigos não são os mesmos que detém e reproduzem o poder
desde os tempos coloniais? A consciência indígena não abriria caminho para uma libertação de
todos os subjugados? Esse capítulo vai descrever a história de conscientização política, a luta
pela terra que resultou na Resex Tapajós-Arapiuns, a formação e afirmação do movimento
indígena logo após a criação da Resex, e a conquista da Terra Indígena Maró. Mas antes é
preciso falar do conflito principal para delinear o contexto.
Desenvolvimento e conflito
Santarém, cidade amazônica na região oeste do Pará, equidistante entre as metrópoles
de Belém e Manaus, com quase trezentos mil habitantes, é o ponto de partida para a Terra
Indígena Maró. Na frente da cidade, uma vez chamada de Aldeia dos Tapajós, se encontram as
águas marrons do rio Amazonas e as águas claras do afluente Tapajós. Nesse encontro as águas
não se misturam, diferente do povo local que foi se misturando ao longo do tempo. Ainda assim,
146
pele, olhos, bocas, cabelos, corpos e também expressões de muita gente lembram os indígenas.
Os olhares, muitas vezes desconfiados, carregam consigo a história de um povo e são
percebidos ainda mais fortemente na área do porto, que ocupa grande parte da orla da cidade.
Lá estão atracados centenas de barcos regionais de madeira, repletos de redes coloridas, que
diariamente levam gente que vai e vem para muitos povoados e cidadezinhas espalhadas pela
floresta.
Margeando o porto tem a feira de farinha e hortaliças, o mercado de peixe e o Mercadão
2000 com produtos de todos os gêneros. O barulho, de gente que grita oferecendo serviços, do
som de motor de barco regional e dos carros que passam na rua, acompanha o burburinho do
povo. A vida diária do lugar contrasta com a presença ao fundo de um outro porto, de
proporções muito maiores, onde nem gente nem barco há. É o porto da Cargill Incorporated de
Minnetonka, Minesota, poderosa empresa privada norte americana, que implantou um terminal
graneleiro subjugando os muitos protestos e manifestações dos movimentos populares.
Subjugou também a legislação ambiental, pois mesmo sem ter realizado o Estudo de Impacto
Ambiental (EIA-RIMA) exigido pela legislação brasileira, começou seu funcionamento no ano
de 2003.
Figura 30: O porto da Cargill ao fundo.
Na disputa pelas terras, predominam os recursos e mecanismos ilícitos, tais como a grilagem de
terra, favorecidos por uma rede de agentes com influência em cartórios e órgãos públicos
responsáveis pela gestão territorial, o uso da violência contra populações tradicionais (de
posseiros, extrativistas, pequenos produtores, populações indígenas, quilombolas, entre outras),
conflitos entre grandes proprietários para definir a legalidade de documentos e legitimidade do
uso, conforme tem sido comprovado pelo Ministério Público Federal e pela imprensa. (2011,
p.81)
FONTE: http://amazonia.org.br/2014/02/uma-corrida-aos-terminais-do-tapaj%C3%B3s
128
Ivete Bastos cresceu como trabalhadora rural em uma família de treze filhos, começou a estudar aos nove anos
de idade e se envolveu com o sindicalismo, a partir de sua inserção nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBS);
se destacou como presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém por dois
mandatos consecutivos, entre 2002 e 2008.
149
apenas muito secundariamente atende as reivindicações das populações locais. Ivete Bastos
continua contando o que acontece quando da instalação do Porto da Cargill:
O próprio prefeito da época, Lira Maia, foi na região Sul convencer os agricultores da soja e
disse em uma revista chamada “A cidade”, que foi um processo muito duro de convencimento
de que esse povo viesse pra cá fazer seus investimentos. E o que foi bom, não sei pra quem, pra
nós foi muito ruim porque nós tivemos impactos sociais, ambientais, culturais, uma série de
problemas. Nós tivemos que fazer uma luta de resistência muito grande (...). Em 2002 já estava
bastante acelerada a compra de terras, expulsão de trabalhadores, porque eles não venderam
simplesmente porque queriam vender. Foi um processo muito, eu diria.... Eles usaram algumas
formas de conquista seduzindo e enganando o trabalhador pela ausência da questão da política
de reforma agrária, assumida pelos governos. O Incra trabalhava mais para atender a política do
grande latifúndio e não pra atender a necessidade dos pequenos, então o que acontecia?
Legalizavam áreas, fazendas, sobrepondo comunidades (...).
por Dom Helder Câmara, a partir do Movimento de Educação de Base (MEB) 129, ajudaram a
alfabetizar e conscientizar a população rural na década de 1960.
O MEB se originou de uma experiência de educação para trabalhadores rurais no
Nordeste, realizada através de programa radiofônico. Modelo que foi replicado em outros
lugares, alcançando também resultados importantes, o que acabou por transformá-lo em um
projeto nacional de educação básica. O objetivo não era só alfabetizar, mas também possibilitar
uma educação integral para os trabalhadores rurais. De acordo com Condini:
Este trabalho pedagógico esteve atrelado à proposta da Ação Católica Brasileira que tinha como
principal objetivo o desenvolvimento da consciência política, social e religiosa do estudante
trabalhador. Esse processo de conscientização se deu através da valorização da oralidade e dos
costumes de cada comunidade a fim de que os trabalhadores pudessem entender a realidade que
os cercava e, a partir daí, transformá-la através de uma ação coletiva. O título de uma das
cartilhas do MEB traduzia a sua pedagogia: “Viver é lutar”. (CONDINI 2004, p. 88)
129
O Movimento de Educação de Base foi idealizado por Dom José Vicente Távora e financiado pelo Governo
Federal
130
“Consistem em comunidades reunidas geralmente em função da proximidade territorial e de carências e
misérias em comum, compostas principalmente por membros insatisfeitos das classes populares e despossuídos,
vinculadas a uma igreja ou a uma comunidade com fortes vínculos, cujo objetivo é a leitura bíblica em articulação
com a vida, com a realidade politica e social em que vivem e com as misérias cotidianas com que se deparam na
matriz ordinária de suas vidas comunitárias. Através da hermenêutica do método ver-julgar-agir buscam olhar a
realidade em que vivem (ver), julgá-la com os olhos da fé (julgar) buscando nunca perder de vista o dom da
tolerância e o dom da caridade. Sem, no entanto, deixar que a razão fique obnubilada, e encontrar caminhos de
ação e conemplação, mesmo que impulsionados por este mesmo juízo prático ou teórico à luz da fé (agir)”.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Comunidades_Eclesiais_de_Base
151
apresento as ações coletivas que uniram o povo da região em determinados momentos de luta
pela terra.
Frei Florêncio descreve o Seu Mucura antes de contar como se concretizou a luta por
uma terra coletiva. Um pouco antes de eu ter essa conversa com o Florêncio, estava em uma
das minhas viagens de campo, quando um morador da Resex Tapajós-Arapiuns me mostrou um
livro131 sobre a história da Resex, escrito por Seu Mucura. Assim que voltei para Santarém132,
fui até o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) para tentar adquirir uma
cópia do livro e por acaso encontrei Seu Mucura lá. Ele foi solícito e me concedeu uma
entrevista, contando toda a história da luta pela terra na região onde hoje é a Resex. Falou mais
da luta do que de si mesmo, mas me contou que a família dele era muito pobre, explicando que
“naquele tempo não era fácil criar oito filhos”. Falou que por isso, quando ele tinha 7 anos, seus
pais deram ele para uma família. Nesse tempo ele ficou trabalhando. Ele só voltou para a casa
131
“Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns – Conhecer a vida é viver a vida” 2012.
132
Em 22 de outubro de 2013.
154
dos pais quando tinha 11 anos de idade. O tempo passou e Seu Mucura foi educado e formado
dentro dos ideais de consciência e libertação promovido pelas CEBs. Ele se tornou uma grande
liderança em diversos momentos de luta pela terra na região.
A primeira grande conquista de algumas comunidades, que pertencem hoje à Resex,
ocorreu quando os moradores se sentiram ameaçados pela intrusão da empresa madeireira
Amazonex, na margem esquerda do rio Tapajós, no ano de 1981. Foi a primeira vez que as
comunidades garantiram uma área de terra coletiva. Conquista que alicerçou e serviu de modelo
para as lutas pela garantia da terra nas demais comunidades, especialmente quando da
mobilização pela criação da Resex Tapajós-Arapiuns. Vale a pena fazer um breve retrospecto
dessa história que posteriormente motivou a criação da Resex.
Nos primórdios da década de 1970, os moradores locais viram chegar na região
empresas madeireiras ávidas por madeiras nobres. Com o passar do tempo, algumas
comunidades se sentiram ameaçadas pelo avanço rápido da derrubada da floresta nos seus
espaços de vida e tomaram a decisão de se unir para garantir uma área de terra coletiva. É bom
lembrar que nesse período, um fato relevante foi a retomada133 pelos trabalhadores do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais no início da década de 1980, com a eleição de Geraldo Pastana134
para a sua presidência. De acordo com Leroy (1991), o sucesso da eleição de Pastana foi
resultado do processo político-filosófico-educativo de formação dos trabalhadores rurais. Com
esse novo direcionamento na organização, o STR passou a incentivar e dar grande apoio às
comunidades na abertura de picos para a auto demarcação de uma área de 64 km ao longo do
rio Tapajós com 13 km de profundidade (da margem do rio para dentro da floresta). Seu Mucura
conta:
A história pra nós chegarmos na criação da Resex é a história pela luta do “ano da terra”135 que
foi a primeira luta no Tapajós. Nós lutamos contra as empresas Amazonex e Santa Izabel pra
adquirir essa área para que pertencesse a nós. Ela não era legal, mas nós conquistamos já das
empresas que elas dividiram a terra com nós. Aí nós ficamos com uma área que nós cuidávamos.
133
O sindicato foi criado em 1972 por políticos ligados à ditadura como instrumentos de controle do campesinato
e como curral eleitoral.
134
A eleição de Geraldo Pestana e com isso a retomada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais para as mãos dos
trabalhadores ocorreu com muita resistência e calúnia dos adversários ligados ao Governo que os acusavam de
serem agentes de pastoral que se interiorizaram e se transformaram em liderança. Um panfleto da época resumia
a atitude dos adversários dizendo “Os comunistas que estão apresentando Geraldo Pestana para ser presidente do
Sindicato Rural querem escravizar o trabalhador, e para conquistar isso, se fazem de bons moços pensando que
vão enganar o homem do campo, para depois escravizá-lo e colocá-lo no regime do chicote e da guilhotina (...)”
(LEROY, 1991, p. 95).
135
“Em 1980, a XVIII Assembleia Geral da CNBB aprovou o documento “A Igreja e os Problemas da Terra”. A
difícil situação em que viviam os trabalhadores e trabalhadoras do campo brasileiro interpelava a Igreja e exigia
seu compromisso e sua palavra. O documento de Puebla, com sua opção preferencial pelos pobres, estimulava a
fidelidade ao Cristo presente nos rostos dos irmãos e das irmãs vítimas da opressão e da exploração” .
155
Nós fizemos um acordo com as empresas que elas não podiam entrar na nossa área pra tirar
madeira e nem nós na área delas. Elas autorizaram a gente fazer algumas caçadas na área delas.
Eu era diretor do sindicato. Ele [Florêncio] passou lá em Muratuba, onde eu morava e ele ficou
lá uma semana comigo. Foi o tempo que tinha outras empresas (madeireiras) se instalando aqui
no Tapajós. Inclusive uma lá no Cametá que já tinha uma serraria lá e tava explorando madeira
atrás de Pinhel. Aí o Florêncio conversa comigo perguntando qual seria uma ideia que a gente
ia fazer pra que a gente criasse uma área coletiva entre Arapiuns e Tapajós.
Esses meus contatos no Rio de Janeiro, em Brasília. Eles se somam a essa trajetória que ele (Seu
Mucura) já tinha. Aí quando eu falo da possibilidade da gente demarcar as terras ele diz “olha
ao invés de ficar com treze quilômetros é hora de a gente regularizar toda essa terra, não apenas
os quatorze quilômetros, mas toda a terra”.
Perguntei para Florêncio o que motivou esse pensamento de retornar para a terra natal
e se engajar na luta pela regularização da terra. Ele me fala:
Eu estava terminando a graduação, na UFRJ no Rio e logo em seguida, eu passei pro mestrado
na Federal Rural do Rio. Foi essa minha saída para outro lugar geográfico, cultural que me faz
descobrir a importância da minha história, da minha origem.
A ação pela garantia da terra reuniu várias pessoas e instituições por uma causa coletiva.
Já existia uma história anterior de conquista da terra que sustentava essa possibilidade. Essa
história era um terreno para que a ideia de uma pessoa, no caso o frei Florêncio, pudesse
germinar. Ele, ao sair do seu lugar de origem, mergulhou em outro contexto e absorveu novas
influências que o fez aguçar um olhar sobre a sua própria história. Mas a ideia foi amadurecida
e viabilizada através da experiente liderança de Seu Mucura.
Assim, juntos a partir das instituições que representavam, STTR e CPT, convocaram
uma assembleia geral extraordinária, em maio de 1995, que resultou na solicitação formal por
uma terra coletiva aprovada por unanimidade pelos comunitários e subitamente encaminhada
ao INCRA. Até aquele momento, era ainda desconhecida a possibilidade de criação de uma
reserva extrativista.
Livaldo Sarmento, líder comunitário e sindical, é outro personagem importante dessa
história, especialmente em um momento pós-criação do Movimento Indígena, mas sobre isso
falarei em seguida. Agora ele discorrerá sobre suas lembranças do período da luta pela criação
da Resex:
O tempo passou, a luta ficou marcada. Entretanto, ficou uma firma que entrou pelo rio Arapiuns,
já no início da década de oitenta, foi a Santa Izabel. Essa Santa Izabel entrou justamente na
minha comunidade, São Pedro. Na época ela deu uma conversada com as lideranças locais,
enganou as lideranças e elas deram então entrada para essa madeireira. Em 1986, eu fui eleito
delegado sindical e eu tinha sempre uma ideia de confrontar essas explorações.
Dez anos depois, em 1996, Livaldo conta que as comunidades do rio Arapiuns ficaram
indignadas com a exploração madeireira abusiva da empresa Santa Izabel, que naquele ano
havia extraído cerca de 2.000 hectares de madeira. Com o apoio do Grupo de Defesa da
Amazônia (GDA), as lideranças comunitárias locais denunciaram as operações da empresa à
Secretaria Executiva de Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente (Sectam), que confirmou a
ilegalidade do desmatamento e suspendeu suas atividades, que já duravam 16 anos. Livaldo
relembra:
157
Quando via a madeira saindo lá da nossa área, eles derrubando aqueles piquiazeiros, doía na
gente, doía em mim, me dava uma revolta tão grande, mas eu não tinha quase força. Eu
procurava força pra lutar contra aquela situação.
A força para lutar, ele conseguiu através do seu engajamento no STTR, especialmente
quando foi eleito presidente da organização em 1997. Esse período coincide com a mobilização
para a conquista da terra coletiva, que também contou com sua atuação e incentivo.
A luta pela terra estava dividida em duas frentes. Uma que organizava as comunidades
do rio Tapajós, e outra na região do rio Arapiuns. Os líderes comunitários Rosário, Célio Aldo
e Cacheado se empenharam em uma grande mobilização contra a exploração abusiva das
madeireiras na região do Arapiuns. Existia na época uma articulação de instituições - STTR,
CPT, GDA e CEAPAC136 (Centro de Apoio a Projetos de Ação Comunitária) - chamada Fórum
da Produção Familiar, que debatia a questão rural, seus anseios e dificuldades. Esse Fórum,
através das lideranças comunitárias, chamou a população dos rios Arapiuns e Maró para uma
assembleia na comunidade Cachoeira do Maró com a finalidade de discutir questões sociais,
ambientais e formas de defender suas terras das madeireiras.
A luta pela terra na margem esquerda do rio Tapajós se uniu à luta pela terra nos rios
Arapiuns e Maró nessa assembleia que aconteceu em Cachoeira do Maró, em 1996. Livaldo
Sarmento relembra a atuação do Frei Florêncio nesse encontro, que fez um questionamento:
“Por que a gente não une as lutas do Tapajós e a do Arapiuns, já que tem esse foco de luta em
Pinhel, Camarão e Escrivão e essa aqui do São Pedro?”. Todos concordaram e a primeira
estratégia para concretizar e sistematizar a luta pela regularização fundiária foi formar duas
grandes associações intercomunitárias.
As comunidades do lado do Tapajós - Pinhel, Escrivão e Camarão - reuniram-se na
associação Yané-Caeté (Nossa Floresta). Paralelamente, outras 21 comunidades compuseram a
Associação Intercomunitária das regiões Arapiuns, Maró e Aruã (Airama). Assim, as
comunidades teciam seu protagonismo através dos seus líderes que as representavam através
dessas associações.
Na sequência dessa mobilização, Frei Florêncio viajou a Brasília e teve a informação da
possibilidade da criação de Reservas Extrativistas e do apoio do governo federal para isso,
através de Rafael Pizón Rueda, então coordenador do Centro Nacional de Desenvolvimento
Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT/IBAMA). Ele informou das facilidades da
regularização fundiária por meio de uma Resex, pois envolvia baixos custos, poderia ser feita
coletivamente e respeitava os costumes das populações tradicionais (ICMBio – Ibama).
136
Organizações cujos líderes tiveram formação na Igreja Católica.
158
O CNPT foi criado em 1992 como reivindicação da sociedade civil que considerava a
questão ambiental indissociável da questão social, ou seja, considerava o homem como
indispensável na solução dos problemas ambientais. Como lembra Seu Mucura: “Lá tinha o
CNPT do Ibama que foi criado justamente pelo Conselho Nacional dos Seringueiros. O CNPT
não foi criado porque ele [o Estado] quis criar. Foi uma reivindicação do Conselho Nacional
dos Seringueiros, que eles queriam um órgão dentro do Ibama que representasse os ribeirinhos,
os povos tradicionais da Amazônia”. A instituição nasceu para promover um melhor diálogo
entre o governo e a sociedade, tendo como objetivo a promoção do desenvolvimento econômico
através de melhores condições de vida das populações tradicionais, respeitando seus
conhecimentos e sua cultura. Estando de acordo com seus princípios, o CNPT incentivou e
financiou a organização coletiva para a criação da Resex Tapajós – Arapiuns.
Na sequência, houve um grande seminário no Emaús de Santarém com cerca de 80
líderes comunitários, onde frei Florêncio informou sobre a possibilidade de criação de uma
reserva extrativista, que mostrava ser a forma jurídica viável para concretizar o sonho de uma
titulação coletiva. Afirma Livaldo Sarmento: “O Florêncio veio e trouxe a ideia, trouxe o
documento. E aí nós fomos ler os documentos e achamos uma coisa muito interessante e
decidimos: é isso que nós queremos! Nós queremos uma titulação coletiva que era esse o nosso
grande sonho”. Oliveira, o Seu Mucura, lembra no livro que escreveu sobre a Resex: “Foi muito
bom quando o Florêncio chegou aqui em Santarém com essa notícia porque o povo já estava
bem adiantado, daí se juntaram as entidades, campo e cidade, se uniram e se organizaram e de
imediato foi criado um Grupo de Trabalho (GT) para a efetivação” (Oliveira 2012, p.43).
Florêncio conta como o trabalho de levantamento das histórias das comunidades para
fazer a solicitação ao Governo Federal para a criação da Resex remetiam à origem indígena:
Quando a gente começa a mobilizar as pessoas para fazer o pedido, que tinha que fazer o pedido
pro Governo de criação da Resex. Pra fazer esse pedido era preciso que a comunidade
argumentasse que ela era nativa, que ela era dona da terra, que ela tava ligada com aquela terra,
que era ela a população tradicional. E a justificativa toda ia dar nos tais indígenas porque quando
a gente começava a perguntar “e aí essa comunidade começou quando? Da onde que nós
viemos?” O pessoal: dos índios. Foram os índios. Os primeiros moradores foram os índios. Eles
diziam isso, e eu já juntando isso com a minha teoria, com a minha busca do índio que eu queria
resgatar. Nesses trabalhos de mobilização ganha muita importância essa identidade cultural
indígena, que estava na origem. Ainda não era aquele índio que nós somos hoje. Era aquele
índio que nos originou. Mas, isso ajudou muito as pessoas a recolocarem o índio na história. Os
índios e os cabanos “ah! Porque os cabanos passaram por aqui (diziam)”. E a Resex foi
criada.(...) Então uma vez criada a Resex, esse processo fica em plena efervescência, esse
orgulho da origem, esse orgulho de ser nativo.
lembrança dos indígenas. Um orgulho da origem que os possibilitaria provar que eram donos
da terra. Importante destacar que não obstante forças contrárias relevantes, a segunda metade
da década de 90 foi o momento propício para a união de diversas instituições, que em ação
coletiva garantiram a criação da Resex Tapajós-Arapiuns. Era um momento favorável, porque
a luta dos seringueiros do Acre e a criação da primeira reserva extrativista do Brasil, a Alto
Juruá, abria caminhos para a regularização da terra para muitos outros povos da Amazônia.
Florêncio fala:
Não era como terra indígena, era como reserva extrativista que era a forma que na época estava
na moda. Tinha a Marina Silva. O Chico Mendes tinha morrido recentemente. Havia todo um
glamour em torno de reservas extrativistas.
137
A CPT tem como missão “ser uma presença solidária, profética, ecumênica e afetiva, que presta um serviço
educativo e transformador junto aos povos da terra e das águas, para estimular e reforçar seu protagonismo”
(www.cptnacional.org.br)
138
O GDA foi formado como um grupo de reflexão política na luta contra os grandes projetos que chegavam na
região Amazônica, como a hidrelétrica de Tucuruí e o projeto Grande Carajás.
160
membros da CPT e do GDA foram muito ativos quando da luta pela criação da Resex Tapajós-
Arapiuns e também nos demais eventos que antecederam essa conquista.
Durante o seminário realizado no Emaús, a notícia de que havia um mecanismo legal
para conquistar uma terra coletiva motivou as lideranças a trabalharem em função da conquista
da Resex. Assim foram mobilizadas todas as comunidades da margem esquerda do rio Tapajós
do município de Santarém, além de quatro comunidades do município de Aveiro (Camarão,
Escrivão, Pinhel e Andurú). E na região do Arapiuns, foram mobilizadas todas as comunidades
das duas margens do rio Arapiuns, do rio Maró e do rio Aruã.
O Grupo de Trabalho da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns foi composto por
entidades não governamentais139 que prestavam assessoria e estavam sintonizadas com o
discurso da preservação ambiental, associações comunitárias, STTR e CNPT/IBAMA, além do
Ministério Público Federal e Estadual. Conjuntamente, organizaram uma grande assembleia em
novembro de 1997, na comunidade de Tucumatuba. O evento contou com a participação de 22
associações comunitárias do Tapajós e Arapiuns, que representaram 82 comunidades e cerca
de 4.500 famílias. Nesse evento, um abaixo assinado solicitando a criação da Resex foi
encaminhado ao IBAMA, o que repercutiu em forte reação dos políticos locais e dos
empresários contrariados com a criação da reserva. Houve a disseminação de informações
distorcidas, que instigaram conflito e insegurança entre os próprios comunitários, inclusive com
ameaças de morte a algumas lideranças. Isso porque, com a criação da Resex, alguns
comunitários perderiam seus empregos nas madeireiras. “Os políticos do município e do estado
eram totalmente contra, contra, contra, sem exceção”, afirma Livaldo Sarmento.
O prefeito de Santarém era o Lira Maia, eleito em 1997, completamente contrário à
criação da Resex, tinha a clara intenção de atrair sojeiros para aquela região. O Poder Público
Municipal, ligado a interesses políticos econômicos de madeireiros e de empresas de mineração,
se opôs veementemente à criação da Resex e passou a estimular movimentos contrários. O
argumento da gestão pública do município de Santarém foi de que a criação da Resex levaria a
população à miséria, pois segundo eles se tratava de um instrumento primitivo de regularização
fundiária. A ideia do “progresso” prevalecia nos políticos locais que se confrontavam com os
anseios daquela população que optava por um instrumento que eles consideram “primitivo”.
A Resex nasce atendendo as reivindicações das comunidades, mas sofrendo forte
oposição da gestão pública local. Por isso, a luta pela criação da Resex Tapajós-Arapiuns se
caracterizou como um movimento de resistência, tendo como referência a luta de Chico Mendes
139
Grupo de Defesa da Amazônia- GDA, - CEAPAC, Projeto Saúde e Alegria - PSA, CPT.
161
140
O Ministério Público Federal tem como missão “promover a realização da justiça, o bem da sociedade e o
estado democrático de direito” (www.mpf.mp.br).
162
não poderia fazer parte da Resex. Justamente na região do Maró estava a maior concentração
das comunidades contrarias à Resex. Já na gleba Lago Grande havia muitos títulos individuais,
o que impossibilitava seu pertencimento à Resex.
A informação do impedimento do voto desestruturou o movimento contrário, pois a
maior parte era da região do Maró. Não satisfeito com a determinação, o representante do poder
local, então presidente da Câmara Municipal, Osmando Figueiredo, imbuído da ideia de
progresso pediu a palavra para contestar, dizendo entre outras coisas que a criação da Resex era
“uma tentativa de engessar a economia local”. Quem estava presente conta que o Procurador
Felício Pontes interferiu chamando a atenção dele veementemente e pediu que se retirasse. O
resultado da votação foi a quase unanimidade dos votos favoráveis à criação da Resex, tendo
sido apenas quatro os votos contrários.
O decreto presidencial de criação da Resex Tapajós-Arapiuns foi assinado em 06 de
novembro de 1998 e publicado no Diário Oficial da União três dias depois. Assim foi criada a
primeira Reserva Extrativista do Estado do Pará, com 647.610 hectares, abrangendo 68
comunidades localizadas nos municípios de Santarém e Aveiro, perfazendo um total de cerca
18 mil habitantes.
Mapa 2: Áreas protegidas do baixo Tapajós
163
Odair Borari, o Dadá, que viria a se revelar como cacique de Novo Lugar, já era uma
das lideranças mais ativas do Maró. Ele conta que se entristeceu muito diante da
impossibilidade de pertencer à Resex. Assim, as lideranças que se empenharam para a criação
da Resex decidiram deixar o Maró de fora porque a urgência naquele momento era “fazer a
reserva extrativista para salvar o patrimônio, porque o lado de lá não tava em perigo
‘teoricamente’. O perigo tava na terra federal que ia ser vendida”, completou Iza Tapuia. No
entanto, as lideranças, se propuseram a continuar a lutar pela terra141. Foi dessa forma que as
comunidades do Maró perceberam que para garantir seu chão deveriam se valer de outros
instrumentos de luta, pois sem a posse da terra continuariam suscetíveis à cobiça alheia.
De acordo com dados da Tapajoara, associação que reúne todas as associações
comunitárias da Resex, em 2014 a reserva tinha 21 mil habitantes divididos em 5.660 famílias,
141
A base política para discutir a questão da terra foi formada a partir do Programa de Capacitação em Educação
Ambiental organizado pelo Grupo de Defesa da Amazônia – GDA, quando da criação da Resex.
164
142
A definição jurídica de Reserva Extrativista (Resex) é: “uma área utilizada por populações tradicionais, cuja
subsistência baseia-se no extrativismo e complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de
animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações
e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. A Reserva Extrativista é de domínio público, com
uso concedido às populações extrativistas tradicionais (art. 18 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000). A criação
e a regularização fundiária são de responsabilidade do órgão ambiental, federal ou estadual” (Benatti 2011, p. 98).
166
social dinâmico permeado por relações de poder. Junto com a adoção de identidades a terra se
dividiu em territórios que se formaram a partir de acordos e arranjos amparados pela legislação.
Ora os instrumentos legais permitiam diferentes modalidades de reconhecimento da terra e
consequentemente de sua população, ora os instrumentos legais possibilitavam o sentido
inverso: primeiro o reconhecimento de suas populações e posteriormente da sua terra.
Essa história se inicia com a conquista da Resex Tapajós Arapiuns, que era um território
de várias comunidades, ameaçado e invadido por madeireiras. O território constituía área
federal e, portanto, poderia ser transformado em Reserva Extrativista. Para tanto, os moradores,
identificados como trabalhadores rurais, posto que associados ao Sindicato dos Trabalhadores
e Trabalhadoras Rurais (STTR), assumiram-se extrativistas, o que significava exercer
atividades que eles já exerciam de fato, embora não conhecessem a palavra extrativista. Dona
Maria Odila, de 64 anos, uma liderança da reserva extrativista Tapajós Arapiuns, conta como
se descobriu extrativista:
eu era uma mulher, uma criança que nasceu e se criou andando no mato, convivendo com tudo,
colhendo as coisas da floresta, riscando seringa com meu pai - que isso é extrativismo também.
Fazendo todo um aparato pra sobreviver: pescar, caçar, tudo. “Ah o extrativista! ”. Então o que
eu fazia desde criança era o extrativismo. Mas, a palavra mesmo chegou na minha cabeça depois.
A palavra extrativista chegou na sua “cabeça” depois. Com o processo de luta pela terra
ela descobriu que existia um nome para as atividades que sempre praticou. Coletar produtos
naturais, pescar, caçar, extrair látex, todas as atividades então resumidas a um nome:
extrativismo. A Reserva Extrativista (Resex) é um modelo de reserva criada com base nas
reservas indígenas, para garantir a terra para quem nela vive e trabalha. A identidade extrativista
nasce de maneira positivada, associada à luta por território e à preservação ambiental promovida
pelos seringueiros.
A luta pela reserva extrativista se associa ao discurso ambientalista consonante com a
preocupação internacional de manter a floresta viva. Uma luta personalizada na figura de Chico
Mendes, seringueiro e sindicalista assassinado por fazendeiros, que se tornou um mártir do meio
ambiente. Extrativista é, portanto, uma identidade criada e vinculada a valores: proteção e
preservação da natureza aliada a um trabalho sustentável. Um trabalhador compatível com o
modelo retórico de “desenvolvimento sustentável”, quando este ganhava fama mundial,
fortalecido pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
a ECO 92. A vereadora Ivete Bastos, expressou com emoção a admiração por Chico Mendes e
o sentimento que tem pelo modelo de Reserva Extrativista:
167
Eu não convivi com Chico Mendes, mas respeito a história e amo a floresta que ele amava. E
amo o modelo reserva extrativista que é uma modalidade também pensada por Chico Mendes.
E a gente faz de tudo pra que esse povo ame essa floresta, ame esse rio, ame essa cultura e que
valorize. Eu convivi mais com Maria do Espírito Santo e Zé Claúdio. Eu convivi com o Dema,
com o Dézinho, com a irmã Dorothy e eu penso que não em vão. A gente só existe porque
alguém teve coragem de doar sua vida pra alguma transformação acontecer.
Assim como Chico Mendes, o casal Maria do Espírito Santo e Zé Cláudio, o Dema, o
Dézinho e também a irmã Dorothy, todos inspiram lideranças para a luta, todos eram
ambientalistas, todos se tornaram mártires da floresta. Lutavam pela terra e pela floresta em pé.
Foram assassinados a mando de fazendeiros e na maioria dos casos a impunidade prevalece.
Nos casos de assassinatos de lideranças indígenas pelas mesmas razões, a impunidade também
prevalece, mas eles não são chamados de mártires por não indígenas. Ser indígena é sofrer um
estigma.
Proponho debater as identidades extrativista e indígena nos próximos parágrafos.
Começo por dizer que existem razões práticas pelas quais algumas pessoas, apesar de
entenderem e respeitarem a causa indígena, optam por não assumir a identidade indígena.
Existem razoes práticas, existenciais e políticas nas escolhas das identidades. Diferente da
identidade extrativista, a identidade indígena não se relaciona diretamente ao trabalho ou a um
modo de vida cujo trabalho é o centro, tampouco se resume à luta pelo meio ambiente. A
identidade indígena engloba o sentido existencial, o modo de ser e estar no mundo, retoma
histórias e tradições, evoca antepassados e encantados, valoriza uma cosmologia própria e
contesta profundamente o sistema, que oprime o nativo desde os tempos coloniais. É uma
identidade que recupera e reforça raízes e afirma um sentido político na vida. É uma identidade
com profundo sentido descolonizador ao confrontar o modelo de sociedade imposto. Entretanto,
o indígena é também associado àquele que caça, pesca, colhe e planta para sobreviver sendo o
protetor da floresta, assim como é o extrativista.
Dona Maria Odila se dedica há anos a um projeto de criação de peixes nos lagos e
também trabalha em uma cooperativa, a Turiarte, que produz e vende artesanatos e que gerencia
uma pousada de turismo comunitário na Resex. Ela me falou espontaneamente sobre como sua
descendência se relacionava à identidade extrativista e também sobre a falsa ideia de que as
pessoas que moram na floresta são preguiçosas, uma atribuição que o senso comum também
confere ao indígena:
O que aconteceu com a gente? Nós somos extrativistas. Meu avô, meu pai, meu bisavô,
coletavam os frutos aqui, tudo o que precisava: bacaba, açaí, o cupu (cupuaçu) que foi começado
a plantar. Ia no lago, ia pegar o peixe. Ia no mato, ia pegar a anta, cotia, tinha paca, tinha
alimentação, não precisava plantar. Não precisava criar. Quando aqui tava escasso, íamos pra
168
outra parte procurar. Então, nós não tivemos a educação de plantar. Hoje a necessidade nos
obriga a parar pra fazer uma criação de peixe. A necessidade de alimentar nossa própria família
porque os lagos já não tão com peixe como antes.
Durante nossa conversa ela me contou histórias sobre seu pai. Descrevia seu modo de
vida e trabalho para dizer que ele também era um extrativista. Mas, acrescentava ao
extrativismo que ele fazia formas espirituais de lidar com a natureza, que ela não entendia
quando criança:
O meu pai morreu com 73 anos, mas nunca foi ferrado de arraia. Só que meu pai também nunca
entrava na água sem abaixar com a mão direita e pedir licença pra entrar na água. Pra quem ele
pedia licença? Na minha cabeça de menina, meu pai era maluco. Nós íamos caçar, os cachorros
tavam, a hora que ia entrar na mata pra caçar ele sempre dizia “dá licença que eu vou entrar no
seu reino, me dê umas caças pra alimentar meus filhos”. Eu comentava isso com minhas irmãs
“o papai é maluco, ele fala só”. Porque eu não via com quem meu pai falava. Hoje eu sei. O
meu pai tinha um grande respeito e uma integridade com a natureza, com o mato, com a água.
Até mesmo pra trabalhar com o fogo ele tinha um conhecimento. Por que ele fazia isso? Porque
ele tinha o domínio, ele conversava, ele sabia como lidar com essas coisas. Hoje não existe mais
isso não.
As histórias que Dona Odila me contava sobre o pai pedir licença para adentrar a
natureza me fez lembrar as práticas indígenas, de integração gente-natureza, conforme o relato
de Luana Kumaruara:
Era intensa a relação gente-natureza. Nós tínhamos de pedir permissão para entrar no rio, cuidar
para não ficar panema143 e nem ser judiado144. Na caçada e na entrada da mata também existem
regras que tem de ser respeitadas, como pedir licença ou deixar um agrado para curupira145 e
outros protetores da floresta, a fim de fornecerem caça ou não judiarem (fazendo a gente se
perder na mata). (2016, p.28).
Pela coincidência com as práticas indígenas, perguntei para Dona Maria Odila se o pai
dela era indígena, e ela respondeu: “ele tinha todinha a cultura, ele era direto. Na época eu não
ligava não. Hoje eu vejo que meu pai era índio sim”. Dona Odila morou alguns anos em São
Paulo e me contou que lá as pessoas costumavam perguntar, por causa das suas características
físicas, se ela era boliviana ou peruana e ela costumava responder: “eu sou mais brasileira do
que você porque eu sou indígena”. Eu perguntei: “então a senhora se dizia indígena?”. Ela
respondeu ressaltando suas características físicas e sua interação com a natureza:
Dizia “sou indígena” e digo até agora “eu sou”. A minha cara quadrada, o meu corpo sem pelo.
Não temos nenhum pelo, nem no braço, nem na perna. É uma das identidades. “Eu sou
143
Ficar panema é ter má sorte, é ficar azarado e não conseguir caça nem peixe.
144
Judiar é maltratar.
145
Curupira é um ser lendário protetor da floresta. Tem cabelos vermelhos e pés virados para trás, que deixam
pegadas e confundem quem está na floresta fazendo com que fiquem perdidos.
169
indígena”, só que pra isso eu não vou sair gritando, nem fazendo coisa não. Eu amo minha
natureza, eu respeito ela, eu peço que ela me respeite também. Quando a gente tem uma
integração a ela, ela também ouve a gente.
De acordo com a fala de Dona Odila, ser indígena é uma das suas identidades. A nossa
conversa seguiu e ela me contou das dificuldades e das conquistas para desenvolver projetos na
sua comunidade, Anã. Além da criação de peixes nos lagos, Dona Odila participa de uma
cooperativa que hoje conta com uma pousada de turismo comunitário e recebe muitos visitantes.
Ela geralmente é convidada para falar em nome desses projetos desenvolvidos pela MUSA
(Mulheres Sonhadoras em Ação). Já no final da nossa conversa perguntei como geralmente ela
se apresenta quando vai dar uma entrevista, gravar um programa, falar em um jornal. Ela
respondeu com a voz firme “Eu sou Maria Odila Duarte Godinho: uma brasileira, extrativista,
nortista”. Dona Odila mostrou durante toda a nossa conversa ter orgulho de ser extrativista.
A identidade extrativista nasceu a partir da construção e luta dos seringueiros como
forma de garantir seus territórios. Suas terras foram legitimadas pelo Estado como reservas
extrativistas. Os seringueiros passaram a ser também extrativistas e esse modelo se replicou. A
identidade extrativista serviu para outras populações amazônicas como base para a garantia do
território, através da vida no território vinculada ao trabalho. A pessoa é reconhecida a partir de
uma identidade de vida relacionada ao trabalho, mas também com sentido subjetivo que une
escolha, significado e também sentimento.
Enquanto a mudança e agregação de novos elementos culturais não é determinante para
validar ou não a identidade indígena, certos critérios de organização territorial estabelecidos
pelo Estado têm papel decisivo no jogo das políticas de identidade. Se a Reserva Extrativista
foi possível porque constituída em área federal, quando o Governo Federal era favorável a esse
tipo de organização territorial, em outra área contígua, mas pertencente ao Estado do Pará, seria
difícil uma negociação.
O governo do estado do Pará não tinha o menor interesse em oficializar aquela área
para as comunidades que nela viviam. Ao contrário, tinha planos de ceder aquela área para
fazendeiros. A intrusão dos madeireiros chegou paralelamente com a informação sobre a
possibilidade do autorreconhecimento étnico. Comunidades então se auto afirmaram indígenas,
desenterrando histórias e rituais. Tiveram sua identidade indígena reconhecida pela Funai e com
ela sua terra. Ambos os casos constituem áreas protegidas amparadas pela legislação. Todas as
comunidades dessas áreas se relacionam e um dia lutaram juntas pela garantia das suas
respectivas terras, apoiadas por um conjunto de instituições.
170
As identidades são assumidas por escolhas conscientes, mas também por significados
que constroem e se alicerçam em sentimentos. Existem aqueles que se dedicam a retomar suas
171
raízes indígenas, fazer renascer suas histórias, construindo presente e futuro de acordo com um
profundo sentimento de pertencimento a um coletivo. Revelam e reconstroem rituais, falam
com propriedade da íntima e respeitosa relação com a natureza e seus encantados. Reconhecem
o quanto a sua indianidade foi violentada dentro de um projeto oficial de limpeza étnica.
Encarnam as lutas dos guerreiros de ontem e de hoje com orgulho. Lutam com o amor que os
vincula à sua causa que passa a ser o significado de suas existências. Sobretudo, reconhecem e
denunciam toda a violência cometida contra seus povos no passado e todo o racismo que os
penaliza até o presente. Reconstroem sua cultura através de novos parâmetros, mas também
recuperando elementos culturais distintivos que ligam presente e passado.
Por outro lado, existem aqueles que se sentem mais à vontade em assumir plenamente
uma identidade extrativista, ou de trabalhador rural, ou ambas, em vez de recorrer ao vínculo
com seus antepassados indígenas. Enxergam na sua condição uma possibilidade de garantir seu
modo de vida, construído simbolicamente de maneira positiva ao se sentirem plenamente
guardiões da floresta. Se espelham em símbolos de luta para alcançarem uma melhor condição
de vida no seu próprio ambiente. Desenvolvem projetos dentro de uma lógica que une
preservação e produção, como criação de peixes, produção de mel, turismo comunitário, entre
outros. Embora conheçam a história indígena na região ou apontem claramente algum
antepassado indígena, dizem não se sentir indígenas.
É provável que esse sentimento esteja ligado a uma construção histórica que vinculou a
imagem do índio a certos estereótipos. A identidade indígena foi estigmatizada e associada ao
passado para dar lugar ao que é considerado moderno ou “normal”.
Conforme Edilena, que se identificou como delegada sindical, falou sobre a adoção de
diferentes identidades:
O que causou muito nas comunidades foi muito conflito. Porque essas comunidades estavam há
muito tempo trabalhando como povo normal. Muitos foram influenciados, aí um grupo ficou
indígena, outro ficou extrativista, aí começou a briga. Todas as comunidades onde tem o
indígena e tem o extrativista, elas vivem em conflito.
cultura, na fala, na dança” e completou “nessa questão de terra eu sou a favor deles. Porque, se
eles tão defendendo a terra, é pra que as empresas não entrem, não destruam. Eu concordo eu
apoio”. Afirmação pessoal, protagonismo, diferenciação cultural para a defesa da terra,
resistência contra o sistema opressor, insurgência contra a “normalização”, construção de uma
contra hegemonia ideológica, esses são elementos vinculados ao reconhecimento da identidade
indígena.
Diante desse contexto, onde identidades se afirmam e muitas vezes tentam uma anular
a outra, a indígena Graça Tapajós, mestranda em Direito na UFPA, sugere:
É importante trabalhar na questão da sensibilidade. Essa sensibilidade que possa envolver o
reconhecimento, envolver o respeito. O direito de ambas as partes é importante porque os
indígenas têm direitos, mas os ribeirinhos também têm os seus direitos. É a gente tentar um
pouco trabalhar essa tolerância, esse respeito. E a gente tentar não excluir ninguém, mas somar
forças porque nessa luta seja o ribeirinho, seja o extrativista, o indígena, a gente sabe que tem
as forças contrárias que querem que a luta não avance, emperre. A gente sabe que em tudo tá a
questão da terra. Complica nisso aí.
Ivete Bastos fala de convivência, e, à sua maneira, corporifica a ideia de que “você
precisa ser parte da mudança que deseja ver no mundo” (You must be the change you wish to
see in the world), incitação de Ghandi a uma atitude pessoal em favor do bem comum. É preciso
dissolver no interesse coletivo o ego de algumas lideranças. É fato que as políticas de afirmação
de identidade exacerbam posicionamentos, mas as comunidades não podem ser regidas pelo
antagonismo. “Satyagraha” é um princípio que inspirou grandes ativistas antirracistas. A
brandura pode ser uma arma para a conquista da hegemonia. Mas brandura não significa
passividade. Ghandi pregava fidelidade à consciência e a desobediência civil. De fato, as
grandes mobilizações antirracistas foram também atos descolonizadores de desobediência civil.
Enfrentar e desobedecer epistemicamente a ordem estabelecida é próprio do Movimento
Indígena no baixo Tapajós.
Sentidos da identidade
Identidade é escolha política fundada em razões práticas e discursivas. A identidade
indígena não se limita ao tipo de trabalho desenvolvido nem à proteção da natureza. É uma
identidade no sentido cosmológico de concepção da vida, que abrange o espiritual; mas é
também uma questão de consciência e escolha política a escolha de ser indígena. É uma
identidade que o movimento indígena positivou, mas que ainda é estigmatizado no senso
comum, que ao longo da história associou o indígena a uma série de características que marcam
diferenças significativas, associando a ele um sentido romantizado e convencional, e na maioria
das vezes depreciativo. Mas a identidade indígena também confere orgulho. Antes o indígena
tinha vergonha de ser, agora ele tem orgulho de assumir-se. Transformação muito importante,
uma decolonialidade do ser, uma libertação da “consciência infeliz”, conforme a expressão de
Roberto Cardoso de Oliveira. Uma drástica guinada, dos anos de 1970 para cá, à qual Eduardo
Viveiros de Castro dá a sua impressão:
Antigamente, muitos coletivos indígenas sentiam vergonha de sê-lo, e o governo tinha todo
interesse em aproveitar essa vergonha inculcada sistemicamente, tirando as conseqüências
jurídico-políticas, digamos assim, do eclipsamento histórico da face indígena de várias
comunidades ‘camponesas’ do país. Agora, ao contrário, ‘todo mundo quer ser índio’ – dizemos,
entre intrigados e orgulhosos (CASTRO 2006, p. 43).
174
Edwiges Ioris, em sua tese “A Forest of disputes: struggles over spaces, resources, and
social identities in Amazonia” (2005), analisa a criação e implementação da primeira reserva
florestal na Amazônia, a Floresta Nacional do Tapajós (Flona Tapajós), e o processo de
transformações sociais e espaciais conduzidas por políticas públicas a fim de exercer controle
sobre recursos e organizações sociais. A Flona Tapajós constitui uma área protegida localizada
na margem direita do rio Tapajós e foi criada em 1974, dentro da lógica de expansão da fronteira
econômica para a Amazônia. Já com o discurso da sustentabilidade, o Estado oferecia uma
maneira “racional” de exploração planejada da madeira por empresas. Entretanto, a modalidade
se apresentou “irracional” ao exigir a remoção das comunidades que residiam dentro da área.
Ioris relata como essa exigência criou indignação, união e um movimento de resistência
nas 19 comunidades atingidas. Elas se posicionaram e se articularam politicamente com o apoio
do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém. Com estratégias de luta e
dramáticos episódios de conflitos com o Estado, as pessoas resistiram nas suas comunidades.
Passaram-se 20 para a legislação sobre reservas ambientais ser alterada para permitir a
175
permanência das pessoas que nas áreas protegidas residem. A partir dessa alteração as
comunidades passaram a ser chamadas “populações tradicionais”.
Contudo, no final dos anos 90 uma nova dinâmica marcou a Flona quando os habitantes
de três comunidades -Taquara, Marituba e Bragança- passaram a reconhecer suas identidades
indígenas. Com a escuta da gravação do precursor depoimento de Seu Laurelino a Florêncio,
as pessoas passaram a se afirmar Mundurucu, contrapondo a designação identitária estabelecida
pela imposição oficial de população tradicional. Redefinindo espaço e identidade social, “O
movimento indígena dessas comunidades foi a reação imediata contra a imposição do governo
da identidade genérica de ‘população tradicional’”146 (IORIS 2005, p. 284, tradução pela
autora).
Ioris replica sua tese em artigo147 posterior, onde amplia sua pesquisa para a Resex
Tapajós-Arapiuns, considerando que as populações do baixo Tapajós que já renegavam a
identificação de comunidades “caboclas” passaram a “ser vítimas de novas designações a nível
oficial” (2009, p.223). A autora considera que existe um campo de disputas identitárias148,
marcado por três momentos distintos: 1- “caboclo cultural e territorialmente destituído”, 2-
“populações tradicionais em áreas de reservas ambientais”; 3- “indígenas e a reivindicação pela
‘terra indígena’”. Sendo este último momento a “expressão da resistência empreendida às
formas de identificação oficialmente atribuídas”, pois, de acordo com Ioris, tais identificações
“tiravam os vínculos com a terra e aparavam as distinções culturais, assim como da
determinação de permanecer em seus territórios, mas de principalmente, de assegurar
autonomia sobre eles e seus modos de uso” (ibidem).
No período em que a autora realizou seu trabalho, ela percebeu que o Estado, ao
reconsiderar as populações locais como “populações tradicionais”, afastou as ameaças de
desapropriação, porém não permitiu a elas autonomia149, sendo essa uma das motivações do
ressurgimento indígena na região, o que eu também constatei durante minha pesquisa. A autora
também percebeu as comunidades locais como “vítimas” da designação oficial “populações
146
The indigenous movement of these communities was the immediate reaction against the government’s
imposition of the generic identity of “tradicional people”. (IORIS 2005, p. 284)
147
Publicado na revista Ilha em 2009.
148
Em alusão a Bourdieu 2003.
149
Através da nova versão do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC, 2000, Lei
Federal nº 9.985), as populações locais foram obrigadas a seguir os planos de gestão da reserva, em uma relação
desigual com o Estado, que subjuga as formas de organização social e modo de vida das comunidades às
imposições de suas políticas.
176
tradicionais”, o que segundo ela, tolhe possibilidades culturais e territoriais, enfatizando que o
movimento indígena configura uma resistência a essa denominação oficial.
Concordo com a percepção da autora, enquanto reconheço que é preciso considerar que
a própria designação “populações tradicionais” acompanhou uma mudança na legislação sobre
unidades de conservação, reivindicada pela sociedade civil, que finalmente compatibilizou
preservação ambiental e a presença de quem nelas vive. Deste modo, mais do que uma
imposição do Estado, através da legislação (SNUC, 2000, Lei Federal nº 9.985), reconhecer os
habitantes das terras como “populações tradicionais” foi uma resposta a anos de lutas e
articulações e representou uma conquista para muitos coletivos até então ignorados. Resposta
do Estado aos habitantes que lá estavam que moveram uma estratégia de resistência. O Estado
brasileiro, patrimonialista como é, promove uma articulação que viabiliza a presença das
populações, mas tolhe delas liberdades e usufrutos sobre o território. De modo que as pessoas
acabam ocupando os territórios nos termos que lhe foram impostos.
Dando os primeiros passos na reflexão sobre o termo “populações tradicionais”,
Almeida e Cunha (2001) referem-se a termos inicialmente genéricos e superficiais surgidos no
encontro colonial, termos - tais quais “índio”, “tribal”, “nativo”, “negro”-, que foram aos poucos
sendo habitados por “gente de carne e osso”. Afirmam que “não deixa de ser notável o fato de
que com muita frequência os povos que começaram habitando essas categorias pela força
tenham sido capazes de apossar-se delas, convertendo termos carregados de preconceitos em
bandeiras mobilizadoras” (p. 186). E concluem dizendo que o termo ‘populações tradicionais’
é ocupado “por sujeitos políticos que estão dispostos a conferir-lhe substância, isto é, que estão
dispostos a constituir um pacto: comprometer-se a uma série de práticas, em troca de algum
benefício e sobretudo de direitos territoriais” (id, p.203). No entanto, no caso da Flona Tapajós
e de tantas outras áreas protegidas como na Resex, as exigências tecnicistas estatais, formuladas
por quem nunca viveu na área, tem minado esse comprometimento com o termo ao não
reconhecer os direitos reais das populações sobre o território.
Porém, ainda assim, para muitas comunidades, tanto da Flona como da Resex, ter seus
direitos reconhecidos não significa o retorno ou construção da identidade indígena. Por mais
que as comunidades indígenas tenham servido de modelo para os povos despossuídos,
especialmente quando se trata da criação de reservas, com nítida alusão a proteção garantida às
reservas indígenas, o termo “populações tradicionais” foi aos poucos sendo povoado por
diversas coletividades, inclusive pelos próprios indígenas. Berno de Almeida (2004, p. 21)
ilustra “populações tradicionais” com novos sujeitos, afirmando que a construção do termo “é
177
coletiva e se vincula ao advento dos vários movimentos sociais que passaram a expressar as
formas peculiares de uso e de manejo dos recursos naturais”. O autor enfatiza:
O advento nesta última década e meia de categorias que se afirmam através de uma existência
coletiva, politizando nomeações da vida cotidiana como: índios, seringueiros, quebradeiras de
coco de babaçu, ribeirinhos, castanheiros, pescadores, extratores de arumã e quilombolas, dentre
outros, trouxe a complexidade de elementos identitários para o campo da significação da questão
ambiental. Registrou-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que
historicamente apagou as diferenças étnicas e a diversidade cultural. O sentido coletivo destas
autodefinições emergentes impôs uma noção de identidade à qual correspondem
territorialidades específicas, cujas fronteiras estão sendo socialmente construídas e nem sempre
coincidem com as áreas oficialmente definidas como reservadas. (Ibidem)
Volto ao trabalho de Ioris (2005, 2009) para dizer que na minha pesquisa não percebi
três momentos distintos no campo das disputas identitárias e territoriais na Resex – quais sejam,
caboclo e as tentativas de expulsão da terra, população tradicional e reservas ambientais,
indígena e a ‘terra indígena’. Quero dizer que o legítimo reconhecimento e construção da
identidade indígena na região não excluem outras possibilidades de identificação, não anulam
a atuação dos que se incluem nessas modalidades como sujeitos políticos, conforme encontrei
na positiva afirmação da identidade extrativista. Trata-se de uma questão de intensidade, de
radicalidade: o movimento indígena, alcançando a raiz do problema, realiza uma
decolonialidade. Não necessariamente o movimento indígena precisa negar a convivência com
outros que também se identificam, mas diversamente, em virtude de subjetividades e razoes
práticas. Mais do que distintos momentos de disputas identitárias, não é possível traçar uma
linha clara entre eles, pois esses momentos se sobrepõem e se misturam, dependendo das
circunstâncias, gerando disputas e conflitos inter e intracomunitários.
Portanto, as escolhas identitárias são diversas e isso gera, dependendo das
circunstâncias, fraturas entre as comunidades e parentes. A identidade indígena rejeita
identificações atribuídas pelo Estado e confronta padrões estabelecidos desde cima. Revela uma
aguda percepção da história. Mas existem caminhos e labirintos para se alcançar a justiça social
e uma estratégia de convivência pode fazer sentido nessa direção. Indígenas e extrativistas
sofreram injustiças históricas, compõem uma mesma raiz, uma mesma gente historicamente
racializada e estigmatizada, e continuam a lutar contra inimigos comuns. Nesse sentido, ampliar
o foco para perceber como se constrói e se reconstrói a injustiça ao longo da história, através
de distintos tratamentos dado às suas gentes, é um caminho para a libertação.
178
Para finalizar esse tópico, cabe desconstruir outro senso comum. A afirmação da
identidade indígena de alguns grupos fez com que um novo estigma fosse associado aos
indígenas: o de “interesseiros” ou “aproveitadores”. A ideia demasiada materialista da
afirmação de identidade indígena, como se quem o fizesse fosse motivado por interesses
estritamente materiais, provoca um sentimento de injustiça naqueles que se assumem indígenas.
Marcelo Borari toca nesse ponto:
Pensa que alguém se afirma indígena porque quer ter algum tipo de favorecimento do governo
ou benefício ou coisa parecida. Tô falando da realidade aqui, não sei fora. Mas, é como eu falei,
é falta de informação, porque a luta indígena acontece muito, muito antes que a acessibilidade
a essas políticas, que hoje, ainda que sejam poucas, mas está tendo.
150
Lo indígena porta entonces un gran peso histórico y simbólico, aunque por lo general se tienda a estigmatizar
la condición india contemporánea, al considerarla un arcaísmo que debe desaparecer para dar lugar a la
“modernidade” entendida como integración a una occidentalización planetaria. (BARTOLOMÉ 1997 [2006], p.
24)
151
Y se la raza no es un indicador relevante, en muchas oportunidades el estilo de vida tampoco sirve para
determinar la presencia de fronteras étnicas. En efecto, numerosas comunidades campesinas que ya non hablan
lenguas nativas mantienen prácticas económicas, sociales y culturales no muy diferenciadas de las que se realizan
en los pueblos índios (...). (ibidem, p.24)
179
contato e que ainda vivem como quinhentos anos atrás são merecedores dos direitos, enquanto
os que foram transformados pela cultura do “homem branco” são “aproveitadores”:
Aqueles povos que estão isolados lá, que não foram tão invadidos pela cultura do povo normal,
local. Aí tudo bem. Mas, aqueles uns que já convivem aí se aproveitam. Pra mim tem regalias
porque eles respondem como índios, mas eles se comportam como o homem branco por assim
dizer.
Identidade e legislação
Esse tópico pretende discutir uma influencia mútua entre identidade e lei. As áreas
protegidas no Brasil são regidas por legislação a qual leva a uma dinâmica em que ora a adesão
152
To assume that individuals select racial identities in the same manner that they might balance their financial
accounts can only provide a shallow knowledge of Indian resurgence. This does not therefore mean that a cost-
benefit analysis holds no explanatory value; it does suggest, though, that a market-rational-based model is likely
to yield only a limited picture of Indianization (WARREN 2001, p.56).
180
153
Law can both exist and not truly exist until it is molded and used, often for whom it was not intended. Identity,
itself a slippery concept that has illusion of being rock solid, is in fact a series of experience, including that of
struggle, and is mutable, allowing for counterintuitive revisions of what we often assume is immutable.
Community, the word itself calling forth visions of cohesive, coequal groups of people whose common interests
supersede their differences, is called to question. Cultural practices that are usually considered timeless and
unchanging as evidence of heritage are shown here to be inventive refashioning of sertanejo folkways that are
crucial to identity transformation. (…) race and colour may not matter, yet still remain intertwined with
experiences of poverty and discrimination, as well as the measures taken to combat those ills. (FRENCH 2009, p.
174-175)
181
estabeleceu diretrizes para a gestão compartilhada entre povos indígenas e órgão ambiental em
territórios sobreposicionados entre TIs e UCs, no entanto, não resolveu a questão de áreas onde
a população se divide entre indígenas e não indígenas. Afirmam “Embora tenha se firmado com
a PNGATI uma política de cogestão de territórios indígenas sobrepostos a UCs, há muita
dificuldade institucional no que diz respeito ao tratamento de casos de sobreposição envolvendo
territórios tradicionalmente ocupados” (REZENDE e POSTIGO 2013, p. 120).
Em área estadual seria mais difícil uma negociação, com o governo da época. A
informação sobre a possibilidade do autorreconhecimento étnico fez com que comunidades
imediatamente se identificassem e se revelassem aldeias indígenas, desenterrando suas histórias
e seus rituais. A intrusão dos madeireiros chegou em seguida. Esse é o caso de três comunidades
do Maró que lutam para que sua identidade indígena reconhecida e com ela sua terra, processo
que será detalhado no próximo capítulo.
Outro caso foi a área onde comunidades residentes e fazendeiros portadores de títulos
de terra se misturavam. Ali a solução encontrada foi adotar o instrumento jurídico de criação
de um Projeto de Assentamento Extrativista (PAE), transformando a área em PAE Lago
Grande. Não cabe detalhar nesse trabalho a dinâmica territorial e identitária também complexa
e relevante desse PAE.
Todas as comunidades afirmam a ancestralidade indígena. Todos os moradores dessas
áreas se relacionam e um dia lutaram juntos pela garantia da sua terra, apoiados por um conjunto
de instituições, especialmente pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de
Santarém e por instituições da Igreja Católica.
Contudo, a adoção de instrumentos jurídicos de legalização da terra, as identidades
assumidas e os territórios garantidos não promoveram uma acomodação estática de identidades
e territórios. Ao contrário, conferiu-lhes grande dinamismo. Comunidades extrativistas
passaram a se reconhecer indígenas e com a possibilidade de garantia “permanente” da terra
reivindicavam uma terra indígena. Outras comunidades ficaram divididas entre os que de recém
extrativistas passaram a ser indígenas e os que optavam por permanecer extrativistas. Em
comum todos afirmam a descendência indígena. Territórios ficaram sobreposicionados entre
terras indígenas e unidades de conservação. Acordos, arranjos, estratégias e conflitos passaram
a permear novas relações entre o que antes parecia ser homogêneo.
Vale lembrar que o modo de vida desses grupos pouco ou nada difere um do outro.
Todas as comunidades, sejam elas indígenas ou extrativistas, igualmente fazem seus roçados
de mandioca, mantêm suas casas de farinha, usam os recursos naturais no seu cotidiano e creem
em santos católicos, assim como nos encantados da tradicional cosmologia amazônica. É fato
182
que os indígenas procuram resgatar rituais simbólicos em movimentado calendário político, que
inclui a semana dos povos indígenas, a celebração da Cabanagem, e a fundação da cidade de
Santarém, entre outros eventos, comparecendo, nessas ocasiões, com seus adereços e símbolos,
caciques e conselheiros.
183
Até o final do século XX, os habitantes da região do baixo Tapajós iam e vinham nos
barcos dos muitos povoados espalhados na floresta sem uma clara distinção entre eles. Na
virada do século, especialmente após as celebrações do “Brasil 500 anos”, grafismos de
jenipapo passaram a cobrir a pele de alguns, adereços com penas passaram a adornar cabelos,
os olhares se tornaram altivos. Uma diferença passou a marcar aqueles que começavam a
resgatar suas histórias e a conectá-las fortemente a dos seus ancestrais indígenas. Uma postura
firme aliada a um discurso de enfrentamento político caracterizava os recém autonomeados
indígenas. Embora, os que não se afirmassem os olhassem com desconfiança e desdém, como
certa vez ouvi em um barco alguém os acusando ofensivamente de “índios meia cara”, os
indígenas afirmados traziam, associado aos adereços, um orgulho e uma atitude firme perante
quem os negasse a identidade.
O movimento indígena brasileiro que se manifestou contra a celebração do “Brasil 500
anos”, promovida pelo Governo Federal, foi consonante com o que acontecia na América
Latina. A celebração dos quinhentos anos de “descoberta” pela Espanha do continente
americano, em 1992, fez com que os povos indígenas latino americanos criassem um
movimento de oposição. Rigoberta Menchú (2003)154 demonstra o sentimento dos povos
indígenas em relação aos quinhentos anos, afirmando não haver nada a celebrar:
Nosso povo diz que não tem nada para celebrar. Ao contrário, a ocasião ofendeu a nós e a
gerações de nossos ancestrais. Não era motivo para celebração, e muito menos para o encontro
de duas culturas. Nós queríamos comemorar nossos ancestrais e lembrá-los com digninidade no
próximo século. 155(MENCHÚ 2003, p. 119)
Com esse espírito de denúncia a “Marcha do Brasil 500 anos” foi organizada. Aliado ao
sentimento de orgulho de ser índio estava um sentimento de injustiça e busca por reparações
históricas através de direitos. Os líderes do movimento indígena do Baixo Tapajós voltaram das
manifestações em Coroa Vermelha com a necessidade de criar uma organização que os
representasse e assim nasceu o Conselho Indígena dos rios Tapajós e Arapiuns (CITA), que
passou representá-los na negociação de direitos com a Funai e outros órgãos públicos. De
acordo com dados do CITA de 2011, existem 55 aldeias e comunidades na região do Baixo
Tapajós que inclui os municípios de Santarém, Belterra e Aveiro, em que 5.150 moradores se
154
The Quincentenary Conference and the Earth Summit, 1992.
155
Our people said that there wasn’t anything to celebrate. On the contrary, the occasion offended us and
generations of our ancestors. It was no cause for celebration, and even less a meeting of two cultures. We wanted
to commemorate our ancestors, and remember them with dignity worthy of the coming century. (MENCHÚ 2003,
p. 119).
184
declaram indígenas. Eles se identificam como Munduruku, Apiaká, Borari, Maytapu, Cara
Preta, Tupinambá, Kumaruara, Arapium, Jaraqui, Tapajó, Tupaiu e Arara Vermelha.
Antes da participação dos indígenas do baixo Tapajós no evento “Brasil 500 anos”, na
Bahia, a identificação com a ancestralidade indígena florescera na reconstrução e registro da
história das comunidades para a solicitação da terra coletiva da reserva extrativista que se
projetava. A ancestralidade indígena pela primeira vez pôde ser expressa sem que a isso fosse
associado algum fator pejorativo. Ser descendente indígena passou a ser bom, pois confirmava
a perenidade na terra: fator exigido pelo Estado para a concessão do direito. Nesse movimento
de relembrar os antepassados, houve um olhar especial para o que nas representações cotidianas
eram heranças indígenas. Comidas, crenças, rituais foram elencados e positivados. Emergiu um
vínculo até então camuflado e até mesmo rejeitado. Mais uma vez Florêncio Vaz traz a
experiência que viveu enquanto estudante no Rio de Janeiro para a reflexão de origem e do
contexto local quando da criação da Resex:
A coisa vai por um lado cultural. Da identidade cultural, a nossa cultura, os pajés, as festas de
santos, a nossa história. É quando eu começo a me interessar por cabanagem, que ainda hoje é
uma linha das minhas preocupações. Os indígenas porque os indígenas estavam na origem das
coisas, mas era aquilo que ninguém queria ser, mas eu não colocava isso nessas conversas. O
negócio era terra e a preservação da terra.
Florêncio conta que era sempre chamado de índio no Rio de Janeiro, e isso o fez refletir.
Quando defendeu a sua dissertação de mestrado em 1997, em pleno processo de constituição
da Resex, ele ajudou a criar o Grupo de Consciência Indígena156 – GCI para recuperar a cultura
e a identidade indígena (VAZ, 2010, 2013). Inicialmente o GCI foi formado por estudantes,
moradores de Santarém e simpatizantes da causa indígena. Seu Mucura conta:
Quando foi criada a Resex já existia o início dessa questão, já tinha um grupo aqui em Santarém
chamado Grupo Consciência Indígena, que não era do pessoal do interior. Era gente da cidade
que criou um grupo aqui, mas foram pessoas que vieram do interior, que se formaram aqui em
Santarém que tinham esse pensamento.
156
Esse grupo se inspirou nos debates em torno da identidade dos Grupos de Consciência Negra, que se espalhavam
pelo Brasil.
185
simbolismo, denominado I Encontro dos Povos Indígenas do rio Tapajós157, que se deu na
passagem do século, na comunidade de Jauarituba, 150 representantes de 10 comunidades
celebraram os 500 anos de resistência indígena, promovendo cantorias, danças e rituais (VAZ
2010, p. 23). Nessa ocasião o representante da Coordenação da Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB), Euclides Macuxi, convidou os participantes do Encontro para
aderirem à Marcha do Brasil 500 anos que seguiria para Coroa Vermelha na Bahia. O convite
gerou muito entusiasmo e a vontade de pertencer a um coletivo nacional fez com que elementos
culturais associados à indianidade fossem ainda mais destacados.
A organização para a adesão à Marcha possibilitou ainda mais agregação nos indígenas
recém afirmados. Florêncio escreve sobre esse momento:
Quando a caravana da Marcha Indígena passou em Santarém, em 07 de abril de 2000, com 483
representantes de vários povos do Amazonas e de Roraima, foi recepcionada por uma multidão,
sendo a grande maioria os representantes das 11 aldeias assumidamente indígenas na região. As
pessoas portavam saiotes de fibras de cascas de árvores, cocares de penas de pássaros e variados
colares. O encontro dos índios que chegavam do Amazonas e os do Tapajós foi emocionante
(palavra usada por vários informantes que estiveram presentes). A passeata pelas ruas da cidade
mostrou à população local que os indígenas da região não estavam extintos, como se pensava.
(2013, p. 147).
Na sua tese de doutorado, Florêncio Vaz demonstra como foi incisiva sua participação
no processo, destacando sua participação com trecho de cartas por ele escritas, com documentos
e outras informações do seu acervo pessoal. Ele enfatiza seu papel de precursor do movimento
ao entrevistar o curador Seu Laurelino:
Entre 1994 e 1995, fui duas vezes a Takuara, no rio Tapajós, município de Belterra, para fazer
uma entrevista com o conhecido curador Seu Laurelino. Encontrei um homem de quase 80 anos,
cabelos brancos, já cego, fala mansa, que demonstrava profundo conhecimento sobre a
história e a vida naquela região. Conversamos muito sobre sua trajetória, seus saberes
ligados aos encantados e ao dom da cura, que lhe tinham granjeado tanta fama. Seu Laurelino
não tinha vergonha de dizer que era índio. (2010, p.29).
Florêncio em seguida teve contato com a realidade dos povos indígenas emergentes do
Nordeste que recusavam o termo caboclo e faziam questão de serem índios, reinventando a
indianidade para retomar territórios perdidos. Assim, ele concluiu “que, formalmente, os
caboclos do Tapajós poderiam também fazer aquele caminho” (p. 30). O que aconteceu no final
de 1998, depois do falecimento do Seu Laurelino, quando a comunidade de Takuara assumiu
sua identidade indígena, motivada por escutar “repetidas vezes, a entrevista que ele me
concedera, em 1994 e 1995. Causou profunda reflexão os trechos em que ele dizia que era índio,
157
Realizado nos dias 31 de dezembro de 1999 e 01 de janeiro de 2000.
186
filho de pais ‘puro índio’ e que não se envergonhava dessa condição” (idem, p. 34). Assim é
apresentado o nascimento do movimento indígena na região.
Takuara não faz parte da Resex, fica do outro lado do rio Tapajós em outra área
protegida, mas o que aconteceu lá contagiou inúmeras comunidades da Resex que passaram a
assumir sua indianidade. Pessoas dentro das comunidades passaram a reconstituir alegorias e
estabelecer continuidades com o passado, valorizando a permanência indígena como um fato
de resistência, ressignificando a existência na terra para além da classificação de caboclo ou
população tradicional.
E completa Livaldo Sarmento, contando como ouviu falar pela primeira vez sobre essa
questão da terra indígena em uma reunião na comunidade de Aningalzinho:
Aqui nós criamos a reserva extrativista e eu enquanto presidente do sindicato eu mergulhei nessa
luta e graças a Deus nós criamos. Eu ainda até usei o seguinte termo “lá em São Pedro, eu me
assumi como indígena, mas tem muita gente que não se assumiu e nem são obrigados a se
187
assumir como indígenas, o que é que vai acontecer com as pessoas que não se assumirem como
indígena? (...) Aí ele (uma liderança indígena externa) usou o seguinte termo que me deixou
muito chateado “olha, infelizmente esse pessoal vai ter que cair fora”.
É ainda Livaldo quem explica o sentimento dele na hora em que ouviu essa fala, e sobre
isso ele faz uma análise do que aconteceu:
Eu fiquei bastante revoltado, porque eu, enquanto sindicalista, a minha ideia é a terra para todos.
Todos, todos, todos (...). Eu tive um confronto com o próprio frei Florêncio. Ele que foi
companheiro de luta pela reserva extrativista e eu sempre vou reconhecer isso aí. Nós tivemos
uma assembleia aqui no Tapajós, onde eu disse: “olha Florêncio desculpa, mas eu tenho um
sério questionamento. Há controvérsia. Aí teve uma grande confusão. Mas depois acalmou.
Os indígenas afirmavam que a TI era mais segura e garantida que a Resex, pois essa
não seria permanente, posto existir um Contrato de Concessão de Uso da Terra de 30 anos.
Livaldo Sarmento questionou “como fica a situação de quem mora na área e não se reconhece
indígena? ” E teve a resposta de que é a comunidade que decide se tornar indígena e se alguém
não quisesse ser indígena teria que ser indenizado e sair. Esse foi o estopim do conflito entre as
comunidades, que teriam que optar por um dos dois caminhos apresentados: continuar como
Resex ou optar pela terra indígena. Disso resultou que o movimento indígena, que até então
crescia rapidamente, desacelerou, tendo sido esse o último encontro indígena que contou com
a participação do STTR e a Associação Tapajoara. A partir desse evento alguns líderes
abandonaram o movimento.
Formaram-se campos antagônicos na disputa pelo poder. De um lado as organizações
indígenas e suas lideranças. De outro, as lideranças do STTR, do Conselho Nacional dos
Seringueiros e da Tapajoara, organização que ficou sob o comando de não indígenas após as
eleições de 2002. O crescimento do movimento indígena, e sua ampliação de poder sobre as
comunidades, passou a contrastar com o poder já estabelecido do STTR e seus líderes. O
movimento indígena se formou e estava se expandindo rapidamente, mas a falta de brandura e
tato na condução da política de afirmação criou antagonismos.
Seu Mucura, que não se reconhece indígena, confirma e se coloca como alguém que
apoia o movimento indígena, mas que dialoga com ambas as partes. Ele analisa:
Eles se precipitaram. Não era pra ter colocado isso ainda no Encontro Indígena. Eu não me meti
nem de um lado nem de outro porque eu sou uma liderança. Eu respeitava eles porque eu fui
uma pessoa que andei nas comunidades, de comunidade em comunidade, pra criação da Resex.
Então eu fiquei pra resolver a situação entre índios e não índios. Por que que a minha
comunidade hoje é uma aldeia? Porque eu disse que era bom ser índio (...). Mas, eu fiquei pra
ser um líder aonde eu vou buscar resultado positivo pros dois lados.
188
Outra liderança tão ativa no processo de criação da Resex quanto seu Mucura foi
Carlindo, o Seu Visagem. Ele é da comunidade de Alto Mentai, que chegou a se reconhecer
indígena e depois desistiu. Seu Visagem disse: “somos descendentes de índios, mas somos
extrativistas”, e completou, “tínhamos acabado de entender que éramos extrativistas e
conquistar a Resex, que diziam ser a melhor alternativa para garantir nossa terra, quando chegou
o movimento indígena dizendo que o melhor era ser índio. Era melhor ter uma terra indígena”.
O Seu Visagem se apresentou como um trabalhador rural, sempre ligado ao sindicato, mas
também extrativista. Ele contou muitas histórias que revelaram escolhas bem marcadas, mas
não isentas de influências.
Alguns comunitários mais antigos dessa região da Resex contam que um padre158os
aconselhou a não assumir a identidade indígena. Embora a identidade seja suscetível a
influências de terceiros, de líderes carismáticos no sentido weberiano - no caso do
aconselhamento desse padre ou das lideranças sindicais ou indígenas-, percebi que um dos
motivos de o movimento indígena não ter alcançado outras comunidades foi porque também
havia sido feito todo um trabalho de sensibilização159 para que as pessoas assumissem uma
identidade extrativista. É preciso também considerar que a identidade extrativista está vinculada
a uma outra identidade com alicerces muito fortes, pois construída no processo de
conscientização e libertação: a de ser um trabalhador rural. Ser trabalhador rural significa estar
ligado ao STR, em um dinâmico engajamento político, que envolve reuniões, projetos, eventos
etc.
Por outro lado, no caso do baixo Tapajós, assumir a identidade indígena significava
resgatar e fortalecer sinais diacríticos que marcassem uma distinção cultural. E alguns não se
sentiam à vontade para assumir uma identidade tão estigmatizada pelo senso comum. Os
moradores das comunidades haviam apenas relembrado a ancestralidade indígena para assumir
uma identidade extrativista, que havia sido ofertada como a melhor escolha a ser feita, para
menos de um ano depois o movimento indígena questionar essa identidade recém-assumida.
Acontece que o ritmo da mudança de pensamento e de comportamento, ainda mais quando se
trata de escolhas tão pessoais quanto a identidade, pode não coincidir com a velocidade com
que o movimento indígena chegou. Ainda mais quando são estabelecidos critérios de
coletividade, como no caso indígena, para o reconhecimento dessa identidade.
158
Chamado José Gróis.
159
Pelo grupo de trabalho para a criação da Resex.
189
Escolher um homem com autoridade absoluta, não condizia com as práticas locais. Mas,
esse não foi o único mal-entendido. Boatos, preocupações e dúvidas sobre o pagamento de
contribuição ao STTR geraram muitos desentendimentos. Alguns diziam que os indígenas não
precisariam mais pagar o sindicato, pois teriam direitos, especialmente o de aposentadoria,
garantidos. Isso desorganizaria uma representação social histórica. Outros afirmavam que não,
que os indígenas continuariam contribuindo com o sindicato. A confusão estava armada.
Lideranças se opunham e disputavam. A influência delas poderia mobilizar os membros das
comunidades para assumir ou não a identidade indígena. Mesmo entre parentes, as relações
cotidianas mudaram à medida que comunidades e famílias se autorreconheceram. Antigas
relações de colaboração, como os trabalhos em mutirão, foram afetadas.
Etnogêneses
Indígena eu sou
Por achar que os povos não sabiam
Sua vida defender e cuidar,
May -tini o soberano chegando sem avisar
Para ganhar sua alma, uma cruz veio plantar.
160
São Francisco é um exemplo de uma comunidade que no início do movimento se reconheceu indígena e que
voltou a ser extrativista.
190
A antropologia e o “outro”
A autonomeação indígena no baixo Tapajós, também referida como etnogênese, é a
afirmação de um Outro diferente do “outro” investigado, devassado e subalternizado pela
Antropologia etnocêntrica ou “ocidentalcêntrica”, como nomeia Grosfoguel. Antro + logos =
Antropologia. A ciência que estuda o homem. A ciência que estuda os povos chamados
“locais”, desumanizados, que habitam a “zona do não-ser”. Aqueles “outros” que estavam fora
da condição de “neutralidade”, de onde o antropólogo fala, desde onde o conhecimento se
impõe discursivamente como universal e, portanto, “neutro”. É desse local que esse antropólogo
etnocêntrico fala. A antropologia nasceu para estudar certos tipos de grupos humanos com suas
culturas “exóticas”, modos de vida “primitivos”, religiosidades fetichizadas, se isentando essa
antropologia de olhar para si mesma, na sua condição de instrumento imperial. Por quê? Porque
a disciplina surge no interior da geopolítica do poder e do conhecimento, que e faz inferior o
“outro”, objeto de estudo do civilizado, do evoluído e racional.
Para essa antropologia o índio é o “outro”, sempre situado no passado. Buffon, tido
como o fundador da antropologia a partir da história natural, na metade do século XVIII,
representava o nativo americano contrapondo-o ao padrão estabelecido na Europa. Padrão este
191
161
Anthropology has assumed a predominant role as a magistrate of Indianness (WARREN 2001, p. 208).
192
Warren faz uma analogia dizendo que era como se a regra da “uma gota de sangue”163
para considerar a pessoa racialmente como negra, valesse para os indígenas não como uma gota
de sangue, mas através de qualquer resquício de influência cultural do branco para assim negar-
lhes a identidade indígena. Uma essencialização cultural, portanto. Constatada qualquer
162
Indianess qua primitiveness was constructed as the more vulnerable, less potent culture. It was the non-
Indian/modern culture that had the power to contaminate, to racially transform Indianness could be polluted and
spoiled. This is why whites were typically not perceived as being reracialized through cultural exchange with
Indians, whereas Indians were believed to be de-Indianized by this same sort of interaction with non-Indians.
(WARREN 2001, p. 211)
163
No caso americano para ser negro basta que se tenha uma “gota de sangue” de origem africana.
193
influência externa, dos indígenas eram arrancados seus nomes, suas raízes, suas crenças. Tudo
seu era vulgarizado e demonizado para que ele também quisesse deixar de ser quem ele era. E
assim ele foi sendo “aculturado” e se “aculturando”, o que fazia com que se acreditasse que ele
estaria perdendo a indianidade.
Os estudos de Eduardo Galvão (1959), Egon Schalden (1965), Charles Wagley (1953)
se apoiaram no esquema tradicional de aculturação. A teoria da aculturação 164 entende que no
processo de contato há sempre um desnível propiciado por uma série de variáveis impostas pelo
determinismo econômico. Historiadores e alguns antropólogos acreditavam que as tribos
desapareceriam porque seriam absorvidas pela sociedade nacional, pois haveria uma
aculturação progressiva que acabaria por resultar em uma completa assimilação da cultura da
sociedade dominante através da miscigenação165. Wagley e Galvão ajudaram com seus estudos
a desindianizar, ao conceber que na Amazônia a aculturação significava a caboclização, ou seja,
a transformação do índio em caboclo. Wagley escreveu; “Biologicamente eles eram “índios”,
mas por cultura eles eram Brasileiros tendo mais coisas em comum com o mundo Luso-
Brasileiro do que com os índios autóctones ainda vivendo nas florestas isoladas da
Amazônia”166 (WAGLEY apud WARREN 2001, p. 212).
A brasilidade era então concebida com referência cultural portuguesa. Embora as
comunidades ao longo das margens dos rios vivessem com modo de vida semelhante aos grupos
indígenas “intocados”, elas foram chamadas caboclas. Todo esse contexto interpretativo gerou
grande inquietação em Darcy Ribeiro (2009 [1970]), que observando os grupos indígenas
percebeu que esses grupos de fato não haviam sido assimilados pela sociedade nacional, como
parte indissociável dela. Com lucidez, ele aponta que muitos povos foram exterminados, mas
os que sobreviveram se auto identificavam indígenas, eram diferentes dos demais brasileiros,
pois vítimas de sua dominação. Para Darcy, não aconztecia de fato uma assimilação, pois ela
“mataria” o outro pela transformação cultural. Ele não acreditava na assimilação plena e
concluiu que o que acontecia eram transfigurações étnicas.
164
A preocupação com o desaparecimento dos povos indígenas pela aculturação e assimilação é reflexo da era
boasiana da antropologia. A intenção era documentar tudo o que restava da cultura indígena antes que ela fosse
absorvida pela sociedade envolvente. Eduardo Galvão, como aluno de Charles Wagley, seguiu essa tradição
voltando seus estudos para a completa documentação da cultura indígena.
165
Pacheco de Oliveira afirma que a preocupação dos autores que estudaram os grupos indígenas brasileiros nessa
fase era “mostrar a progressiva descaracterização cultural daquelas sociedades e a absorção de crenças e costumes
precedentes do branco” e completa “o esquema teórico utilizado fez com que alguns descrevessem o processo de
mudança cultural como inexorável, prevendo como bem próxima a completa assimilação de um grupo étnico pelo
contexto e pela cultura regional” (1988, p.31).
166
Biologically they were “Indians”, but they were by culture Brazilians with more in common with the Luso-
Brazilian world than with the autochthonous Indians still living in the isolated forests of the Amazon.
(WAGLEY apud WARREN 2001, p. 212).
194
Entender o processo de transição de índio específico, com sua cultura e tradição, a índio
genérico quase idêntico ao caboclo, é a grande contribuição de Darcy ao estudo da etnologia. É
o que ele chamou de processo de transfiguração étnica. Significava que “sob pressões de ordem
biótica, ecológica, cultural, socioeconômica e psicológica, um povo indígena vai transformando
seus modos de ser e de viver para resistir àquelas pressões” (RIBEIRO 2009 [1970], p.13). De
acordo com o autor, o que acontecia com os indígenas era uma integração socioeconômica, sem
qualquer assimilação cultural. Assim, aderiram à massa de trabalhadores assalariados ou
passaram a produzir mercadorias para atender suas novas necessidades materiais, como
ferramentas, tecidos, remédios, mas sem deixarem de ser índios, pois se sentiam índios,
envolvidos por suas comunidades indígenas.
Revisando a análise do contato interétnico, Roberto Cardoso de Oliveira inaugura uma
nova fase na interpretação do contato. No seu livro “A Sociologia do Brasil Indígena” (1978),
o autor tece uma crítica à Antropologia, quando ela se reduz à uma etnografia parada em
descrições sem aprofundamentos teóricos. O autor expõe a necessidade de um método para o
desenvolvimento da disciplina. Adentrou na etnologia estudando como os Terena interagiam
com a população local, após dois séculos de contato, sem serem assimilados. Ele critica
veementemente a teoria da aculturação americana e encontra nos estudos de Georges Balandier,
reflexões sobre a atuação da ação colonialista na África, a base para sua teoria de fricção
interétnica. Tomou então a situação colonial enquanto “totalidade”, onde uma minoria
estrangeira faz uso da dominação, gerando antagonismo com os segmentos colonizados.
Para Cardoso de Oliveira, as sociedades tribais mantinham com a sociedade envolvente
“relações de oposição, histórica e estruturalmente demonstráveis” (1972, p.30), o que fariam
delas sociedades contraditórias, em que uma tenta anular a outra. Assim, a ação colonialista
atuava como um rolo compressor que implodia a sociedade tribal, criando caciques e fazendo
cooptação167, cuja finalidade era saber como as sociedades tribais funcionavam a fim de
dominá-las e administrá-las de acordo com seus próprios interesses. A fricção interétnica seria
então a principal característica da situação de contato. Cardoso de Oliveira exemplifica a
expansão da sociedade brasileira como altamente destruidora dos territórios tribais, afirmando
que:
167
O caso dos “te?ti” na sociedade Tukuna ilustra bem essa situação. Os “te?ti” eram homens que, entre outras
capacidades, eram responsáveis pelo contato com os civilizados. Estes por sua vez os manipulavam e acabaram
criando um novo sistema de poder. Os “te?ti” foram desaparecendo e surgiram então os tuxaua que tinham uma
liderança relativa e serviram como “instrumentos de dominação do alienígena, determinado a ocupar o território
indígena e a pôr o braço Tukuna a seu serviço” (RCO, p. 92, 1978).
195
168
O autor faz uma analogia à noção marxista de “luta de classes”, considerando que os subsistemas tribal e
nacional teriam entre si e entre o sistema interétnico o equivalente da relação entre as classes sociais e a sociedade
global. O aprofundamento do entendimento de sistema interétnico se dá mediante mecanismos de integração
social, a qual é “o processo responsável pela constituição desse sistema” (ibidem, p.87) e esclarece que “o processo
em questão significa a integração do índio na sociedade nacional” (ibidem).
169
No artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”
(1998).
196
Barth são esses mecanismos que distinguem os grupos étnicos e é através desse contraste que
as etnias ganham relevo quando da interação.
A abordagem de Barth abandona o pensamento selvagem do foco culturalista, que se
concentra na observação de grupos étnicos de maneira isolada. Em vez disso, o autor destaca a
importância de estudar os processos identitários em contextos precisos, dando relevância à
percepção de que eles também se constituem como atos políticos. Ao considerar os processos
identitários como atos políticos, João Pacheco de Oliveira (1998) se inspira em Barth para
afirmar que um ponto-chave para entender mudanças relacionadas a chamada “viagem de volta”
é a base territorial. O território afetaria enormemente as instituições e a significação das
manifestações culturais do grupo170.
Pacheco de Oliveira considera a dimensão territorial como estratégica para pensar a
inclusão de grupos étnicos distintos em um Estado-nação. Afinal, “é uma intervenção da esfera
política que associa um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem
determinados” (ibidem, p.56). O autor propõe como fio condutor da investigação antropológica
esse ato político que constitui objetos étnicos por meios arbitrários. E esclarece o que chama de
processo de territorialização como:
O movimento pelo qual um objeto político-administrativo (no Brasil as “comunidades
indígenas”) vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade
própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as
suas formas culturais. (Ibidem, p.56)
170
O autor considera a noção de territorialização e a define como um processo de reorganização social que implica:
(i) A criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica
diferenciadora; (iii) A constituição de mecanismos políticos especializados; (iv) A redefinição do controle social
sobre os recursos ambientais; (v) A reelaboração da cultura e da relação com o passado. (PACHECO DE
OLIVEIRA 1998, p.55).
197
minha própria condução”, a “viagem da volta” representa a conexão entre etnicidade e território
(OLIVEIRA, 1998). Pelo enterrar o umbigo, se dá a ligação com a terra, e pelo gravar na mão,
o vínculo com o grupo.
A contribuição de João Pacheco de Oliveira para o entendimento da etnicidade, como
se esta estivesse necessariamente conectada à terra e ao grupo, conduz a uma questão: para ser
índio é mesmo necessário estar fixado a um território? A possibilidade de autorreconhecimento
étnico, ensejada pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), atribui
à própria consciência da identidade indígena ou tribal do grupo o pressuposto básico para o
autorreconhecimento. Não fixa a identidade indígena ao território. Segundo Francisco Salzano
(2008, p. 33), “seja como for, minha opinião é a de que qualquer processo de identificação
étnica que tenha por fim assegurar algum direito à posse de terras está mal colocado. Isso
porque, pelo menos idealmente, todos deveriam ter esse direito. ” No entanto, é o vínculo com
o território, associado ao reconhecimento, o que vem caracterizando os muitos casos de
reelaborações étnicas, no Nordeste, na Amazônia e alhures. A força política e emocional do
vínculo do povo ao território caracteriza também a luta do movimento indígena do baixo
Tapajós. Mas existem outras possibilidades de afirmação indígena.
Durante a entrevista que fiz com Márcia Kambeba, ela me falou do preconceito que as
pessoas constantemente demonstravam ao questionar sua identidade por ela viver na cidade.
“Você é indígena e vive na cidade?”, era a pergunta recorrente. Na poesia AY KAKYRI
TAMA, que significa Eu Moro na Cidade, que dá nome a seu livro, Márcia Kambeba fala: “Em
convívio com a sociedade, minha cara de índia não se transformou, posso ser quem tu és, sem
perder a essência que sou, mantendo meu ser indígena, na minha identidade, falando da
importância do meu povo, mesmo vivendo na cidade”.
Figura 32: Márcia Wayana Kambeba
“Posttradicional Indian”
Ser um índio pós-tradicional é considerar esses fragmentos e sombras da tradição como
relevantes ou importantes, abraçá-los, privilegiá-los e valorizá-los. Trata-se de definir as raízes
ancestrais indígenas como essenciais à sua identidade, tornando-as âncoras dos sonhos e do
futuro e trabalhando para a sua recuperação171. (WARREN 2001, p. 21)
171
To be a posttradicional Indian is to regard these fragments and shadows of tradition as relevant or important, to
embrace, privilege, and value them. It is to define one’s indigenous ancestral roots as essencial to one’s identity,
to make them the anchor of one’s dreams and future, and to work toward their recovery. (WARREN 2001, p. 21)
172
O Censo de 1991 mostrou uma população de 294 mil índios. http://censo2010.ibge.gov.br
173
Para chegar ao número total de índios, o IBGE somou aqueles que se autodeclararam indígenas (817,9 mil)
com 78,9 mil que vivem em terras indígenas, mas não tinham optado por essa classificação ao responder à pergunta
sobre cor ou raça. Para esse grupo, foi feita uma segunda pergunta, indagando se o entrevistado se considerava
índio. A responsável pela pesquisa, Nilza Pereira explicou que a categoria índios foi inventada pela população não
índia e, por isso, alguns se confundiram na autodeclaração e não se disseram indígenas em um primeiro momento.
"Para o índio, ele é um xavante, um kaiapó, da cor parda, verde e até marrom", justificou em entrevista para a
Agência Brasil (Empresa Brasil de Comunicação, http://agenciabrasil.ebc.com.br em 10/08/2012).
199
etnias e retomou após 60 anos o interesse pelas línguas faladas. Esses dados demonstram o
sentido inverso da preocupação sobre o destino dos povos indígenas que permeava os estudos
de etnólogos brasileiros em meados do século XX. O crescimento quantitativo dos povos
indígenas contradisse expectativas de vários etnólogos, como Nimuendaju, Eduardo Galvão e
Darcy Ribeiro, que apontavam a significativa e inexorável redução dos índios pelo extermínio
físico e cultural que sofriam.
O expressivo crescimento da população indígena é resultado da luta política, da qual
fazem parte o reconhecimento dos seus direitos coletivos e de suas terras, e inclui também toda
a re-elaboraçao teórica que recolocou conceitualmente o indígena na história. Esse novo cenário
confere agência e protagonismo aos indígenas. Significa uma tomada de consciência, a
transformação da vida como biologia em vida como biografia (FIORI, 1985).
Para Miguel Bartolomé, o autorreconhecimento étnico “Se tratou de uma eclosão de
uma nova consciência étnica positivamente valorizada; de uma clara afirmação cultural e
identitária dos grupos culturalmente diferenciados aos que se tinha pretendido fazer renunciar
a si mesmos174”. Na eclosão da consciência está uma nova valoração do ser indígena, que antes
haviam sido levados a renunciar a si próprios. Essa constatação é a mesma que faz Viveiros de
Castro, citado em outro lugar dessa tese, quando comenta a passagem da vergonha ao orgulho
de ser. Afirmaçoes identitárias em muitos lugares do mundo se dão em contextos de ameaça
aos territórios povoados por comunidades. A tomada de consciência crítica sobre si mesmos
reflete o contexto opressor. Conforme entende Paulo Freire em a Pedagogia do Oprimido (1983
[1970]), os oprimidos desvelam o mundo da opressão e se engajam numa práxis de
transformação. Práxis que traz com ela uma consciência crítica também nas ciências sociais e
em outros setores da sociedade, gerando solidariedades com essa forma de libertação, que
ocorre simultaneamente nos planos moral e material. “Enquanto a violência dos opressores faz
dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à violência daqueles se encontra
infundida do anseio de busca do direito de ser”. (FREIRE, 1983, p. 46).
174
Se trató de la eclosión de una nueva consciência étnica positivamente valorada; de uma clara afirmación cultural
e identitária de los grupos culturalmente diferenciados a los que se había pretendido hacer renunciar a sí mismos”
(BARTOLOMÉ 2006 [1997], p. 32)
200
casos na América Latina, esses processos - de retomada e atualização de filiações étnicas, das
quais seus integrantes, por indução ou por terem sido obrigados, em algum momento
renunciaram - correspondem a essa dialética da tomada de consciência em contextos de ameaça
ao território175.
Essa dialética entre sentimentos morais de reconhecimento (HONNETH, 2009),
também referidos como idealistas, e razoes materiais, às vezes é analiticamente fraturada. José
Maurício Arruti comenta que, nos estudos referentes a reelaborações étnicas, tem ocorrido de
prevalecer um dualismo entre uma conduta materialista que considera que grupos “inventam
tradições”176, e a idealista, que busca vínculos na história: quando o grupo se dá conta de uma
realidade que lhe escapava (ARRUTI, 2009). A postura materialista percebe o fenômeno como
uma estratégia na disputa por recursos, especialmente na luta pela terra. Já os idealistas se
alicerçam na busca pela história aliada a construção e a percepção de uma série de
essencialismos culturais. Para Arruti as duas posturas se assemelham “no suposto de que as
diferenças culturais existem como um fator anterior e exterior à ação de significação dos
atores”. Ou seja, é porque existem tradições e diferenças culturais distintivas que se pode falar
em invenção de tradição; por outro lado, a história marca uma continuidade, sendo o passado a
explicação do presente.
Tocando na questão da identidade indígena, a tese de Omaira Bolaños Cárdenas (2008)
“Constructing indigenous ethnicities and claiming land rights in the lower Tapajós and
Arapiuns region, Brasilian Amazon” analisa os dilemas políticos e conceituais relacionados à
reivindicação por identidade indígena e por direitos a terra entre pessoas de múltiplas
descendências. A autora desenvolve seu trabalho procurando saber como é construído o
significado de ser índio Arapium e Jaraqui, sendo que esse criou ou “inventou” uma nova
identidade, enquanto aquele reconstruiu sua identidade: “Para o Arapium, onde vivem (a
paisagem Arapiuns) representa o que são (...). Para o Jaraqui, o significado do rio e seus recursos
(o peixe jaraqui) como base de subsistência é o que fornece a base para sua etnicidade. Nesse
sentido, o que comem (o peixe jaraqui) representa o que são177” (CÁRDENAS 2008, p. 183).
175
Na Amazônia brasileira, entre outras emergências étnicas, verificam-se processos no médio Solimões, no baixo
rio Negro, no rio Juruá e na Volta Grande do Xingu – onde os Juruna têm a “identidade a todo momento posta à
prova, tanto pelos técnicos da Eletronorte, quanto por indigenistas e missionários” (Saraiva 2007, p. 32).
176
Conforme Hobsbawn e Ranger (1983).
177
For the Arapium, where they live (the Arapiuns landscape) represents what they are (...). For the Jaraqui, the
significance of the river and its resources (the jaraqui fish) as a basis of subsistence is what provides the foundation
for their ethnicity. In this sense, what they eat (the jaraqui fish) represents what they are. (CÁRDENAS 2008, p.
183).
201
O estudo sugere que o movimento indígena constitui uma expressão política mergulhada em
memórias, história e significados territoriais que mobilizam pessoas em uma ação coletiva.
Cárdenas percebe que a construção de identidades é um processo ativo e interativo
através do qual os indivíduos constroem novas maneiras de interpretar a si mesmos, concluindo
que a identidade indígena não é produto de uma luta sócio – política do presente, mas é fundada
em histórias pessoais e memórias coletivas que possibilitaram aos povos Arapium e Jaraqui se
auto-identificarem na categoria índios. No que se refere aos territórios, a autora percebe que
eles são produtos do processo de construção de identidade e que as ameaças sofridas pelos
indígenas propiciaram a criação e recriação dos seus territórios. Finalmente, Cárdenas também
percebe que as reivindicações por reconhecimento estão baseadas em discursos político e moral.
A Amazônia concentrou um significativo aumento no número de índios, inclusive no
que diz respeito a pessoas que no último censo se declararam de outra cor ou raça, mas que se
consideravam indígenas seja pela tradição, cultura, costumes, antepassados, entre outros. De
78,9 mil que se declararam índios de outra cor ou raça178 36,9 estavam na região Norte (Censo
2010). Pardos foi como se declarou a maior parte da população de terras indígenas brasileiras
que responderam ser de outra cor ou raça (67,5%). A proporção se repetiu em quase todas as
regiões e chegou a 74,6% no Norte. Isso sem contar os inúmeros casos que não foram
contabilizados, pois na pesquisa só foram considerados os habitantes de 505 terras indígenas179,
ficando de fora os habitantes de 182 terras que ainda estavam em processo de demarcação.
Ficaram de fora a TI Maró e a TI Cobra Grande, cujos indígenas fazem parte do movimento de
afirmação étnica do baixo Tapajós180.
A indicação racial de pardo pelos habitantes das terras indígenas tem a ver com a
violência opressora da desindianização, que inculcou na população brasileira que qualquer
mistura faria o índio deixar de ser índio. Bartolomé, trabalhando à sua maneira com a
transformação da vida como biologia em vida como biografia, que Ernani Fiori desenvolve, diz
que esse não é um processo só biológico, mas é também político e ideológico. As populações
nativas retomaram heranças às quais haviam sido obrigadas a renunciar. Fazendo referência a
178
Pardos foi como se declarou a maior parte da população de terras indígenas que responderam ser de outra cor
ou raça (67,5%). A proporção se repetiu em quase todas as regiões e chegou a 74,6% no Norte.
179 Foram consideradas “terras indígenas” as que estavam em uma de quatro situações: declaradas (com Portaria
Declaratória e aguardando demarcação), homologadas (já demarcadas com limites homologados), regularizadas
(que, após a homologação, foram registradas em cartório) e as reservas indígenas (terras doadas por terceiros,
adquiridas ou desapropriadas pela União).
180 Sobre o Movimento Indígena no Baixo Tapajós ver o artigo “O Movimento Indígena no Baixo Tapajós:
etnogênese, território, Estado e conflito” Peixoto, Arenz e Figueiredo (Revista Novos Cadernos NAEA - 2012).
Para maior aprofundamento ver as teses de Ioris (2005) e Vaz (2010).
202
Guillermo Bonfil (1987), Bartolomé afirma que “Muitos daqueles socialmente considerados
mestiços são na realidade índios desindianizados181” (BARTOLOMÉ 2006 [1997], p. 31).
Warren (2001), em pesquisa sobre o ressurgimento indígena em Minas Gerais e no Sul
da Bahia, chamou os índios ressurgidos de pós-tradicionais. Com argumento que considera
raízes, terra e ancestralidade, Warren considera que o ressurgimento indígena se apoia no que
se consegue recuperar da tradição, mas demonstra como é invalido o argumento de parte da
população, do governo e de antropólogos que acusa os indígenas de falsa autenticidade, dando
ênfase ao fato de que geralmente a identidade étnica é tratada como condição estática, sem
direito a transformação. Embora a afirmação da identidade étnica não se relacione a
essencialismos culturais, a ideia que prevalece no senso comum sobre o que é ser índio fez com
que algumas famílias da comunidade São José III, na TI Maró, não quisessem assumir a
indianidade. Quando a comunidade se auto afirmou indígena, essas famílias atravessaram o rio
e foram morar na Resex Tapajós-Arapiuns. Dona Neide, vice cacica da aldeia de São José III,
relembra:
A questão foi que eles disseram que nós ia virar índio, nós ia andar tudo nu. E eles jamais
andariam nu. Não iam deixar os filhos andarem nu e também não iam andar nu. Aí foi a divisão.
E aí a gente ficou questionando. Aí disseram que iam tirar os filhos da escola porque eles não
iam querer que os filhos fizessem todas as coisas, andar pintado, não iam fazer certa
representação de índio, né?
181
Muchos de los socialmente considerados mestizos son en realidade indios desindianizados. (BARTOLOMÉ
2006 [1997], p. 31).
203
Do porto de Santarém dois barcos seguem para a região do Maró duas vezes por semana,
geralmente às 11hs da manhã, com atrasos regulares. É preciso chegar com muita antecedência
para garantir um bom lugar para atar a rede no emaranhado de umas sobre as outras. Vendedores
ambulantes aproveitam as horas de atraso para vender gêneros variados como agulhas, pilhas,
pentes, remédios, pão, batom, brinquedos. Seguindo para o Maró, o barco cruza o encontro das
águas do rio Amazonas e do rio Tapajós, para cerca de duas horas depois entrar nas águas claras
e transparentes do rio Arapiuns. Rio que no período da seca182 é margeado por inúmeras praias
de areias muito brancas. Durante a cheia183 suas águas alcançam troncos e copas das árvores da
floresta.
182
De agosto a janeiro.
183
De fevereiro a julho.
184
Embora as comunidades tenham lutado para pertencer à RESEX, essas terras não pertenciam à União, mas sim
ao Estado do Pará e lá havia já inúmeras pequenas propriedades tituladas.
204
formam. Nas margens do Aruã estão instalados diversos portos improvisados repletos de toras
de madeiras nobres, que nem sempre alcançam a medida mínima exigida para o corte, onde
balsas imensas são constantemente abastecidas. No Aruã quem domina são os madeireiros.
Vamos voltar a navegar pelo rio Maró.
De noite o frio invade o barco e nos avisa que estamos navegando pelo estreito rio Maró.
O intenso barulho da mata com os tons e notas dos cantos dos bichos confirma. São José III, a
primeira aldeia indígena da Terra Indígena Maró, surge cerca de duas horas depois. Mas o barco
aportará uma hora além, na aldeia de Cachoeira do Maró, para que seus passageiros durmam e
sigam viagem no dia seguinte. No período da seca, barcos grandes não conseguem prosseguir
pelo rio encachoeirado. No outro dia, bem cedinho, um barco menor enfrenta a cachoeira com
bagagens e mantimentos de todo tipo, enquanto os passageiros prudentemente seguem por uma
trilha até embarcarem onde as águas são mais calmas. Mais uma hora e meia navegando,
chegamos finalmente em Novo Lugar, última aldeia da TI Maró, onde o rio é ocupado por
crianças que se banham, mães que lavam roupa e pais voltando em canoas com as caças da
noite.
Figura 38: Barco “Creio em Deus” aportado na aldeia de Cachoeira do Maró
185
Gleba é a área de terreno que ainda não foi objeto de parcelamento regular, isto é, aprovado e registrado. Após
o registro do parcelamento a gleba deixa de existir juridicamente, dando lugar aos lotes e áreas públicas dele
decorrentes.
208
186
Projetos de assentamentos.
209
indígenas exigiram que a terra, que viviam e que auto demarcaram, fosse regularizada como
Terra Indígena Maró. A partir de então, a luta pela homologação tem sido incessante.
Rica em madeiras nobres187, a TI Maró é uma área de interesses diversos. Por um lado,
está a cobiça de grupos madeireiros que anseiam explorá-la e se aliam a setores do Estado e da
mídia a fim de legitimar a usurpação. Por outro lado, os Borari e os Arapium não se sujeitam a
essa dinâmica e se fazem empecilhos ao delimitar e fiscalizar o próprio território e dificultar o
escoamento dessa madeira por dentro de ramais que cortam sua terra ou suas águas. Ao passo
que o Estado, ao longo do tempo, tem criado diversos instrumentos, de toscos a sofisticados,
para permitir a legalização da exploração madeireira, ele não garante a fiscalização necessária
da madeira que é continuamente retirada188. A regularização fundiária das comunidades no
entorno da TI Maró abriu caminho para os madeireiros, que atraíram moradores com ofertas de
emprego e geradores de energia elétrica, entre outras benesses. Assim, os madeireiros ganharam
colaboradores e colocam essa madeira, em estado semibruto, nos mercados internacionais.
“A gente vivia despreocupado. A gente não imaginava que vinha madeireira”, relata
Edil Soares Costa, então presidente do Conselho Indígena Intercomunitário Arapium e Borari
– COIIAB, organização que os Borari e Arapium formaram para representá-los. Antes de se
afirmar Arapium, Edil saiu de sua comunidade para tentar a vida por um tempo trabalhando em
Manaus. Não se adaptou à rotina da cidade e decidiu voltar para Cachoeira do Maró, onde
estava sua família. Voltando ele se engajou em uma banda da igreja católica e se envolveu nas
lutas para melhorar a vida na Terra Indígena Maró.
Conheci Edil em Cachoeira do Maró, ocasião em que a Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional (FASE) propunha instalar um pequeno projeto de produção
de galinha caipira nas aldeias. A intenção da ONG era ajudar as aldeias a produzirem mais
alimentos de forma sustentável. Edil estava cansado. No seu rosto transparecia a angústia de
quem se esforçava tanto e pouco conseguia. Ele aproveitou a carona no barco em que estava a
equipe da FASE para ir a Santarém mais uma vez, exclusivamente com a finalidade de abrir
uma conta, em nome da COIIAB, em um banco para receber a quantidade de dinheiro
necessário para comprar 150 pintos caipiras e o material para construírem as cercas para os
galinheiros e assim viabilizar o projeto. Já na cidade, encontramos Edil esperando em uma fila
enorme, em pé debaixo do sol de quase 10 horas da manhã, horário de abertura do banco. Ele
havia chegado cedo e aguardava para ser atendido novamente. Era o terceiro dia que ele tentava
abrir essa conta para a COIIAB no banco.
187
Segundo dados do IDEFLOR.
188
Falar da provável quantidade de madeira que sai de forma ilegal.
210
Edil estava indignado e dizia que todo dia era maltratado. O funcionário do banco que
nunca dava muita atenção sempre dizia faltar algum documento. A cada dia Edil explicava
sobre o projeto, levava os documentos solicitados e dizia que a COIIAB não tinha nenhuma
pendência jurídica. Ele reclamava: “sempre inventam alguma coisa nova”, e dizia que era
desculpa porque o banco não queria abrir a conta, e lamentava: “acho que é porque a gente é
indígena que nos maltratam”. Mais uma vez Edil não teve sucesso na tentativa de abrir a conta.
A atitude do funcionário do banco em relação à solicitação de Edil foi de desprezo. Edil sentiu
esse desprezo e mal tratamento, mas como enfrentar esse racismo disfarçado em regras e na
invenção de novas exigências?
As organizações indígenas e comunitárias se esforçam para desenvolver projetos que
melhorem a vida, mas sentem grandes dificuldades em resolver questões burocráticas. As
ONGs, em geral, gastam mais recursos formulando projetos do que os efetivando. Ainda dão
pouca assessoria para a resolução de questões burocráticas. Edil reclamava dizendo que nem
um computador a COIIAB tinha para produzir documentos. O ano era 2014 e ele dizia que
ainda conseguia resolver algumas necessidades com uma máquina de datilografia. Embora
enfrentando tantas dificuldades, Edil me falou com orgulho sobre a sua afirmação como
indígena:
Assumir ser indígena é uma coisa muito bonita. Não é vergonha não. Porque quando alguém
chega comigo e diz Edil você é índio. Eu digo “com certeza. Eu vou ser japonês ou alemão? ”.
A pessoa já fica toda sem graça. Eu acho que você tem que ter a convicção daquilo que você é.
Não deixar ninguém te discriminar, te desrespeitar.
Edil dizia com segurança do seu sentimento de pertencimento ao lugar e de como sua
posição era de enfrentamento àqueles que os quisessem discriminar:
Afinal de contas se você for ver na história do Brasil os índios já existiam aqui, já moravam
aqui, são os donos daqui. Então por que eu dizer... Só porque eu conheço outros lugares, já andei
em grandes metrópoles, eu vou dizer eu não quero ser índio? De jeito nenhum. Eu voltei pra cá
e em qualquer lugar que eu esteja, em qualquer lugar eu vou falar a mesma coisa, dizendo que
eu tenho amor pela minha região, pela natureza, pelos animais, pelas pessoas que moram aqui,
que não tem informação de nada. Eu sempre tô batendo de frente, não com as pessoas daqui,
mas com outras pessoas que venham querer discriminar, venham querer roubar os sonhos. O
nosso sonho continua ser ter a natureza, o peixe no rio, a caça no mato pra gente se alimentar.
Os indígenas querem a natureza, mas também melhorias no lugar onde vivem. Por isso
Edil, mesmo enfrentando tantas dificuldades, se esforçava para viabilizar os projetos da
COIIAB. Queria melhorar a vida dos indígenas, mas sempre com a atenção do cuidado com a
natureza, por isso esclarecia o papel da COIIAB na TI Maró:
211
A COIIAB tem o direito de dar autorização para você tirar (madeira) uma parede de casa, de um
barco, de uma canoa, mas tudo com limite. Pra que os filhos, os netos, os bisnetos, enfim, ainda
possam conhecer um ipê, uma itaúba, um cedro, um jacarandá, porque se acabar tudo agora, em
quinze anos, vinte anos não vão ver mais nada. O que é a minha preocupação? É essa.
Embora os indígenas se esforcem para viabilizar projetos que melhorarem a vida deles
sobre o território, eles sempre afirmam que a luta principal é pela homologação da terra
indígena. Os indígenas, paralelamente, lutam também por melhorias na saúde e na educação.
Sem ter os meios adequados para acompanhar sua saúde, Edil não realizou o sonho de ver sua
terra homologada. Nem mesmo conseguiu que o projeto das galinhas caipiras fosse implantado.
Ele adoeceu e faleceu em outubro de 2015.
Figura 42: Edil Soares Costa
189
Ver FIGUEIREDO & PEIXOTO 2013;
212
impenetráveis, acessíveis a um tempo apenas para aqueles que entendiam seus caminhos, seus
mistérios, seus perigos e se estabeleceram naquela floresta garantindo sua reprodução social e
cultural.
A história190 de Novo Lugar e de alguns povoados próximos tem cerca de 130 anos. Os
índios Borari viviam em Alter do Chão, no Atodi, quando viram suas terras tomadas pela
“grande migração”. Decidiram então subir o rio para encontrar um lugar onde pudessem
garantir sua sobrevivência e reprodução social. Inicialmente não se instalaram na beira do rio
Maró, entraram mais ao interno e se organizaram em Beiju-Açú191, em uma das “vidas”, como
eles denominam as nascentes da terra indígena. Dentro da mata, os indígenas mantiveram vivos
os seus rituais, mesmo que os praticando de forma velada, por sofrerem forte discriminação.
Garantem que a raiz do índio está na pajelança e que a comunidade sempre praticou os rituais
de cura. O grupo, ao longo do tempo, nunca deixou de se organizar sob a liderança de uma
sucessão de caciques.
Fato decisivo para a história do grupo ocorreu em janeiro de 2002, quando a comunidade
recebeu uma visita inesperada que viria a transformar sua perspectiva de vida. Uma equipe,
liderada pela irmã Emanoela Kumaruara, do Grupo Consciência Indígena (GCI), se reuniu com
a comunidade e informou sobre como a Constituição Brasileira ampara os direitos dos povos
indígenas. Explicou sobre a possibilidade do auto-reconhecimento étnico, direito que
sustentava o movimento indígena, ao qual outras comunidades da região estavam aderindo.
As comunidades viviam como seres “invisíveis” na floresta, completamente
desamparadas pelo poder público. Como disse Dona Zilda, uma anciã da aldeia de Novo Lugar
que não sabia dizer ao certo sua idade: “nesse tempo nós tava aqui pra viver, mas nós não tinha
condição de nada ainda. Vivendo porque vivendo porque Deus é bom, mas sem condição de
nada. Nós já passemo muita vida [dificuldade] aqui. Agora não, esses tempos já melhorou mais
um pouco”. Ali produziam sua farinha, caçavam, praticavam festas e rituais. Quando
informados sobre a possibilidade de perder o direito à terra em que viviam, e de que uma das
formas de garantir seu território seria a possibilidade de se auto afirmarem indígenas, os
moradores resolveram aderir ao movimento indígena que vigorava na região do baixo Tapajós.
Não tardou para que os conflitos começassem.
190
A história foi relatada por moradores na pesquisa de campo.
191
Vivendo em Beiju-Açú, no interior da mata, longe da beira do Maró, abriram diversas trilhas, fizeram seus
roçados, garantiram a extração de resinas medicinais, tinham suas áreas de caça e coleta e mantinham seus lugares
sagrados destinados aos seus rituais. No ano de 1990, as mães da comunidade exigiram que os filhos frequentassem
uma escola. Para viabilizar a educação das crianças, o grupo concordou em descer para se instalar na margem do
rio Maró.
213
192
Do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
193
Através do decreto 2.472-2006.
194
O órgão estadual incentivou a compra de títulos no âmbito do projeto Trairão.
195
Seguindo a ordem estabelecida pela Constituição Federal de 1988, que determinava a demarcação das terras
indígenas.
196
Por meio do decreto 98.865-1990.
215
delimitar, concedendo aos principais interessados uma função que deveria ser sua. Esse fato fez
com que as comunidades se sentissem indignadas, aguçando ainda mais o conflito na região.
Na aldeia de Novo Lugar, os indígenas relatam que seus espaços de vida foram “invadidos” por
homens munidos de GPS, que marcavam e demarcavam a terra como se deles fosse. Entraram
no território sem pedir autorização. Invadiram marcando e demarcando, sem dar explicações.
E assim se apropriaram de área do final da TI Maró, onde é grande a incidência da árvore
Mururé, da qual os indígenas extraem seiva medicinal. Cacique Dadá explica sobre a
importância das árvores medicinais concentradas nas áreas destinadas aos permutados e da
preocupação com a extração dessas árvores por parte dos madeireiros:
É como se tivesse acabado o antibiótico daquela cidade e muita gente precisa daquele antibiótico
e não tem. Da mesma forma é aqui. Se levam a nossa medicina, tão levando uma injeção, tão
levando um remédio que é nativo nosso. Isso é um problema. Isso é uma violência.
Os indígenas, por sua vez auto-demarcaram a sua terra, colocando-a no mapa, com essa
fração de terra onde estão os Mururés incluída. Reivindicaram uma área para a Terra Indígena
de 42 mil hectares. No limite dela se instalaram os permutados, que demandavam 15 mil
hectares dentro da TI Maró. Essa foi a disputa que instigou o principal conflito territorial da
região.
Mesmo tendo sido desaconselhados pelo Ministério Público a entrar na mata para fazer
a demarcação, os indígenas escreveram uma carta aos órgãos competentes informando que
começariam a demarcar por conta própria. Uma pequena equipe de comunitários pegou
instruções sobre a utilização do GPS na ONG Projeto Saúde e Alegria (PSA) e tomou
emprestado um aparelho. Além disso, conseguiram a quantia de dois mil Reais com a Comissão
Pastoral da Terra (CPT), dinheiro que serviu para comprar alimentos e munição para sustentar
os homens que fariam a incursão na mata. Gilson Rego, da CPT de Santarém, explica o contexto
que impulsionou à autodemarcação da TI Maró:
A chegada dos gaúchos aqui em Santarém para ocupar espaços. Cooperativas chegando lá.
Grilagem de terra em nível assustador e os indígenas sendo acuados lá. Nesse processo a gente
começa a acompanhar principalmente essa questão do território porque assim a gente trabalha
mais nesse sentido, na garantia do território, das terras. Então a gente entrou nessa lógica de
garantir esses espaços e o estado do Pará não reconhecia isso. Ignorava isso. Os madeireiros
sempre hostilizaram essa situação. E os indígenas com muita sabedoria fizeram uma
autodemarcação e começaram a dizer qual era o território deles. E começou um grande problema
porque os madeireiros ignoravam isso e eles tem um problema de escoamento de madeira lá.
Então fizeram uma estrada por dentro da terra indígena, ameaçaram. (...) E eles resistiram muito
a isso.
Faltando três dias para começar os trabalhos de demarcação, capangas dos madeireiros
prenderam e torturaram o cacique Dadá, das 10 horas da manhã às 5 da tarde, mantendo-o sob
a mira de duas armas de fogo. Ele relembra: “subi pra cá doente, sem andar, provocando sangue.
O pessoal aqui com raiva. Mas eu disse não é matar ninguém, é pra retomar a nossa terra”. Esse
foi o primeiro de muitos outros ataques sofridos por lideranças das três comunidades. O
processo contra os torturadores corre até hoje na Justiça, mas “a Justiça pra nós é lenta, a gente
não tem grana pra fazer ela valer. E eu sou proibido de estar na minha própria terra por ordem
judicial, de ir pro rio Aruã, de ir pro final da terra indígena, sob ameaça”, completou o cacique
Dadá.
Esse depoimento torna evidente como os indígenas do Maró se encontravam debaixo da
linha do humano, de acordo com a definição de racismo em Fanon, na zona do não ser, onde a
humanidade do Outro não é reconhecida. Grosfoguel, interpretando Boaventura de Sousa
Santos e Fanon, afirma que:
Como tendência, os conflitos na zona do não-ser são geridos pela violência perpétua e somente
em momentos excepcionais são usados métodos de regulação e emancipação. Dado que a
218
humanidade das pessoas classificadas na zona do não ser não é reconhecida, dado que são
tratados como não humanos ou subhumanos, em outras palavras, sem normas de direitos e
civilidade, então se permitem atos de violência, violações e apropriações, que na zona do ser
seriam inaceitáveis197. (GROSFOGUEL 2011, p. 100, traduzido pela autora).
Grosfoguel completa: “Para De Sousa Santos, ambas zonas são parte do projeto da
modernidade colonial198” (ibidem). É nesse projeto de modernidade colonial que o conflito que
encerra a luta pela terra Maró se situa. Não é uma luta para se apropriar de um pedaço de terra.
É uma luta para quebrar a barreira imposta pelo racismo que coloca os indígenas abaixo da
“linha abismal do humano”, na “zona do não ser”. Na “zona do ser” estão os sujeitos que foram
racializados como superiores e que por isso desfrutam de privilégios raciais. A eles os direitos
estão disponíveis. Os Borari e os Arapiuns estão na zona do não ser, tendo sido racializados
como inferiores e por isso sofrem a constante opressão racial. Grosfoguel esclarece: “A zona
do ser e do não ser não é um lugar geográfico específico mas um posicionamento nas relações
raciais de poder que ocorre em escala global entre centros e periferias, porém que também
ocorre em escala nacional e local contra diversos grupos racialmente inferiorizados199” La zona
del ser y non ser no es un lugar geográfico especifico sino una posicionalidad en relaciones
raciales de poder que ocurre a escala global entre centros y periferias, pero que también ocurre
a escala nacional y local contra diversos grupos racialmente inferiorizados” (Ibidem).
Para os indígenas do Maró a Justiça é lenta, conforme reclamou o cacique Dadá: “a
gente não tem dinheiro pra fazer ela valer”. Por outro lado, ordens judiciais são emitidas
velozmente para impedir a livre circulação do cacique Dadá, quando ele é denunciado por
qualquer razão, especialmente em decorrência de manifestações contra o desmatamento ilegal.
A violação sofrida sob forma de tortura pelo cacique Dadá e posteriormente por outras
lideranças indígenas, ao mesmo tempo em que criou um profundo sentimento de
humilhação200, gerou um sentimento ainda mais forte de lutar pela causa coletiva.
197
Como tendencia, los conflitos en la zona del no-ser son gestionados por la violência perpetua y solamente en
momentos excepcionales se usan métodos de regulación y emacipación. Dado que la humanidad de la gente
clasificada en la zona del no-ser no es reconocida, dado que son tratados como no-humanos o subhumanos, es
decir, sin normas de derechos y civilidad, entonces se permiten actos de violência, violaciones y apropiaciones,
que en la zona del ser serián inaceptables. (GROSFOGUEL 2011, p. 100).
198
Para De Sousa Santos, ambas zonas son parte del proyecto de la modernidad colonial” (Ibidem)
199
La zona del ser y non ser no es un lugar geográfico especifico sino una posicionalidad en relaciones raciales de
poder que ocurre a escala global entre centros y periferias, pero que también ocurre a escala nacional y local contra
diversos grupos racialmente inferiorizados” (Ibidem)
200
Considera Honneth que a tentativa de se apoderar de corpo alheio, contra sua vontade, provoca um grau de
humilhação que interfere “destrutivamente na autorrelação prática de um ser humano, com mais profundidade do
que outras formas de desrespeito”, pois o que ocorre na tortura ou violação não é apenas a dor física, mas a sujeição
ao outro sem proteção, perdendo até o senso de realidade (idem, p.215).
219
A humilhação gerada pela dor física cria feridas psicológicas, no plano moral. Dona
Edith, mãe do cacique Dadá, em outra ocasião teve outro filho, o Poró, torturado. Ela conta com
pesar toda a angústia vivida:
O que me deu mais preocupação foi o Dadá e o Poró, então eles dois é que me deram mais
preocupação na minha vida por causa que ele (Dadá) era ameaçado de morte. Ele recebeu umas
intimações de juiz. Isso me preocupou muito. Não dava nem pra eu comer, pra eu dormir.
Quando veio pra prender ele, eu não sabia nem o que fazer mais. Eu rezava, pedia pra Deus
livrar ele de todo o mal e assim. O outro (Poró) pegaram ele numa festa aí pro Curi, bateram
muito nele. Ficou mesmo a ponto de morrer e isso também me deixou muito triste. Aí quando
foi esses tempos, tornaram a pegar esse mesmo, o Poró, bateram de novo, aí no progresso. Então
isso me preocupou muito, muito mesmo. Amarraram o Dadá na estrada de Alter do Chão. Foi
no dia que eu vim. Ele veio me trazer no barco pra eu vir pra cá, quando eu chego aqui eu liguei
o rádio uma hora dessas pra escutar o jornal e foi a primeira coisa que eu soube. Rapaz, parece
que isso eu ia morrer na mesma hora (...). Parece que eu ia morrer de sono. Eu não tinha sono
mais pra dormir de noite.
Território
As aldeias de Novo Lugar, São José III e Cachoeira do Maró lutam pela terra, base
física, mas também pelo significado existencial de suas vidas no território. Os Borari e os
Arapium constroem territorialidade, “como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar,
usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,
convertendo-a assim em seu “território” ” (LITTLE 2004, p. 253). Território entendido como
um produto histórico de processos sócio-políticos (ibidem). Assim, tomando a iniciativa de suas
ações, os indígenas da TI Maró se afirmam étnica e territorialmente “como forma de neutralizar
as pressões sobre seus territórios, ao mesmo tempo em que tentam dar visibilidade aos conflitos
que opõem práticas espaciais distintas” (FISHER 2010, p.175). Práticas essas que não se
resumem ao plano físico, mas a uma cosmografia no sentido dado por Little como:
Os saberes ambientais, ideologias e identidades - coletivamente criados e historicamente
situados - que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território. A cosmografía de
um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território
específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao
território e as formas de defesa dele. (2004, p. 254).
Lembro de uma reunião em Cachoeira do Maró, em julho de 2012, com lideranças das
três comunidades e alguns membros do Conselho Indígena Intercomunitário Arapium e Borari
(COIIAB), quando eram ditas as afirmações: “O território acabou há muito tempo”. “Queremos
resgatar o nosso território”. “O território foi dividido”. “É um espaço indígena que estamos
tentando recuperar”. Com tantos repetidos usos da palavra território, perguntei o que significava
território para eles. Um deles se antecipou e respondeu: “o território inclui tudo: a vida, o
espaço, a terra do ser humano, dos animais, da floresta”. É notável a coincidência com a ideia
de território por Little (2004), por Castro (1998) e por Haesbaert (2006), para quem território é
lugar de hibridação entre sociedade e natureza, entre elementos materiais e imateriais, o saber
fazer, o modo de vida, o simbólico, a existência de mecanismos de solidariedade.
Considerando a luta pela TI Maró, também o pensamento de Milton Santos (2006) sobre
território usado relaciona chão com identidade, e contribui para entender o que acontece com a
TI Maró:
O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas;
o território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território
usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e
espirituais e do exercício da vida. (SANTOS 2006, p.14).
Conflitos e “soluções”
O intenso conflito gerado, a partir do desrespeito pelas pessoas que viviam na área, pedia
solução urgente. A situação com os permutados, que ocupavam parte da área indígena, tinha se
complicado muito. Os permutados encontraram indígenas guerreiros que não aceitavam a
condição imposta pelo governo do estado. Lutavam pela terra e enfrentavam quem as quisesse
tomar. Queriam a desintrusão. O ano era 2007 e tentaram inclusive tocar fogo na casa do
cacique Dadá para intimidá-lo. Lembra Maria Rosenilda, a Rosa de 32 anos, esposa do cacique
Dadá:
222
Tentaram uma noite. Eu tava grávida. Ele (o cacique Dadá) disse ‘tem alguém andando atrás da
casa’. Começou a pegar fogo. Eu fiquei com medo e eles já tinham jogado óleo diesel em cima
da casa para pegar fogo. Começou a queimar a cozinha, mas não chegou a pegar na casa. Ainda
bem que foi uma noite que tinha chovido e a palha tava molhada.
Figura 44: Rosa e a sua filha Kamirran, nome indígena que significa mulher guerreira.
201
Pelo decreto 1.149∕2008, através de uma comissão formada por três órgãos estaduais (IDEFLOR, SEMA e
ITERPA).
202
No seu art. 2º.
223
Por outro lado, a promulgação da Lei Federal de Gestão de Florestas Públicas permitia
ao governo a regularização da exploração madeireira através de procedimentos de concessão
florestal. Contudo, antes da formalização das concessões, a lei obrigava que as florestas
públicas, ocupadas ou utilizadas por comunidades locais, fossem identificadas para a
destinação, seja através de criação de reservas extrativistas e/ou de desenvolvimento
sustentável, bem como por transferência de uso, seja por meio de assentamento florestal,
assentamento de desenvolvimento sustentável, agroextrativistas ou similares. A promulgação
da Lei Federal de Gestão de Florestas Públicas viabilizou o processo de ordenamento fundiário
no conjunto de glebas Mamurú-Arapiuns. Contudo, Fisher (2010) faz uma importante
avaliação:
A regularização fundiária dos territórios tradicionalmente ocupados pode ser vista como um
mecanismo de dupla eficácia, uma vez que garante os direitos territoriais pleiteados por
comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que, paralelamente, titula, estabiliza e insere no
mercado novas terras, que são passíveis de serem incorporadas às frentes de acumulação do
capital (FISHER 2010, p.173).
203
Trata-se da empresa ALCOA Juruti que explora mina de bauxita para a produção de lingotes de alumínio
para a exportação.
224
daquele espaço. Os comunitários apontaram suas áreas de uso e os limites de suas comunidades,
baseados na localização de rios e igarapés. No mapa indicaram as modalidades de titulação
mais convenientes a cada comunidade. Com a construção do mapa, as comunidades se
respaldaram frente ao Governo Estadual para o processo de destinação territorial nas glebas
Mamurú-Arapiuns.
Os mapas participativos permitem a documentação da realidade pelos grupos sociais que sempre
passaram desapercebidos pelos mapas e documentos oficiais, tornando visíveis os conflitos e
reivindicações. Configuram-se como uma estratégia de ação coletiva garantindo o direito à terra
e a conservação dos recursos naturais utilizados direta ou indiretamente. (STTR/Santarém&
CPT 2008, p.9)
O mapa alicerçou o “Plano Participativo de Mosaico de Uso da Terra nas Glebas: Nova
Olinda, Nova Olinda II e III, Cumurucuri e Mamurú no Oeste do Pará” (STTR/Santarém&
CPT, 2008) e indicou cinco Projetos Estaduais de Assentamento Extrativistas (PEAX)204 –
Curumucuri, Mamurú, Aruã, Vista Alegre e Mariazinha; três Projetos Estaduais de
Assentamento Sustentável (PEAS)205 –Aruã-Maró, Fé em Deus e Repartimento; o Parque
Estadual do Mamurú; a Floresta Estadual do Alto Aruã (Unidade de Conservação de Uso
Sustentável); e a Terra Indígena Maró, que não seria de competência do Governo do Estado
regularizar, mas sim do Governo Federal através da FUNAI.
No caso da TI Maró, as três comunidades indígenas (Cachoeira do Maró, Novo Lugar e
São José III) decidiram, após debates e reflexões, que as categorias “Projetos de Assentamento”
e “Unidades de Conservação” não condiziam aos seus objetivos de garantia do território. Os
moradores entregaram esse mapa propondo a forma como cada comunidade queria a sua
modalidade de assentamento:
204
“O Projeto Estadual de Assentamento Agroextrativista – PEAEX – destina-se a populações que praticam a
exploração sustentável dos recursos naturais voltadas para a subsistência. A área é de domínio público com uso
concedido às populações extrativistas. A destinação das áreas dá-se através de uma concessão de direito real de
uso, em regime de uso comum, associativo ou cooperativista por prazo indeterminado”. (STTR & CPT 2008, p.13)
205
“Os Projetos Estaduais de Assentamento Sustentável –PEAS- abrangem as áreas trabalhadas em regime de
economia familiar que utilizam racionalmente os recursos naturais existentes. A destinação das áreas dá-se
mediante um contrato de concessão de uso em regime individual, em nome da unidade familiar. O contrato de
concessão é intransferível e inegociável pelo prazo de dez anos, ao término do qual poderá ser expedido Título
Definitivo de Propriedade”. (STTR & CPT 2008, p.14)
225
no novo mapa produzido pelo Governo, que também destinou áreas ambientais para exploração
madeireira:
Mapa 5: Regularização Fundiária das glebas Mamurú-Arapiuns
Na gleba Nova Olinda estão 15 comunidades, entre elas algumas cooptadas pelos
madeireiros. De um lado, as que buscam a afirmação de sua identidade e de seu território, de
outro as seduzidas pelos benefícios oferecidos pelos madeireiros, como empregos na extração
227
No Maró, os indígenas tiveram que ser muito resistentes porque a sedução era ainda
mais forte quando viam bens de consumo dos vizinhos, que tinham vendido o manejo para os
228
Cacique Dadá explica que o capital é muito atraente e eles sofrem uma pressão
psicológica muito grande porque cada um “coloca no seu psicológico que ele também deveria
ganhar aquele dinheiro. Aí ele diz: “hoje eu não tenho um tênis bom porque eu não negociei
minha área. É culpa do cacique!”. Ele reclama que ás vezes essas seduções do dinheiro faziam
balançar as convicções, geralmente dos mais jovens, e isso gerava um sentimento muito ruim
porque o processo de conscientização, para não se deixar explorar, é longo. Mas ele disse que
se sentia aliviado, pois a cobrança acabou quando a Funai reconheceu a TI Maró.
Em julho de 2014 chegamos mais uma vez em Novo Lugar, o cacique Dadá e a Rosa
nos receberam com expressão de dor no olhar. Nos falaram que tinham tido uma grande perda.
Irã, o filho caçula, havia falecido. Dadá disse que sentia que o pequeno Irã um dia seria o
cacique. Perguntamos o que havia acontecido e ele disse que ele havia adoecido e, de uma hora
para outra, falecido. Não souberam exatamente a causa. O atendimento à saúde, que é também
dever do Estado, para os indígenas é quase inexistente. Eles dizem que sentem a presença do
poder público somente uma vez ao ano, quando chega o barco de vacinação. Uma mãe, durante
uma reunião em Novo Lugar, disse: “eles vêm aqui vacinar só uma vez no ano, dão tudo de
uma vez e só faltam matar as nossas crianças com tanta vacina. A gente ainda tem que ouvir as
enfermeiras dizerem “mãezinha olha como você tá atrasada na vacinação’”, reclama.
229
Rosa, contanto com o pequeno Irã, é mãe de oito crianças. Ela me contou sobre a
dificuldade de alimentação na rotina de sua família: “Almoço não é todo dia, mas a janta que é
o principal tem todo dia. Às vez quando eles tão com muita fome eles reclamam. Aí eu invento:
bolinho de farinha com café, cará de mandioca. É bom que eles come. Ás vez acontece de não
ter janta. Aí a gente tem que inventar”.
Os impostos recolhidos pelas concessões de manejo florestal não retornam para as
comunidades como benefícios. Assim elas se veem reféns de suas dificuldades cotidianas e
acabam negociando com as madeireiras para o provimento de carências básicas de
sobrevivência como luz e água encanada. A ausência do Estado para possibilitar melhores
condições de vida faz com que as comunidades recorram a quem lhes oferece qualquer “ajuda”
a um alto custo ambiental. O cacique Dadá, por sua vez, reconhece a violência desse processo
e denuncia essa negligência do Estado:
Aqui sai milhões e milhões de recursos, que é uma quantia muito alta de dinheiro, e o Estado é
pago pelos impostos dos empresários. E o Estado se (re)passa pro município essa verba, o
município não faz construção. Por exemplo, aqui nós temos uma péssima escola. Aqui nós não
230
temos posto de saúde. Então, a partir do momento que não faz isso, mas tem recursos e que vai
recurso da Gleba Nova Olinda pra lá e isso não chega de volta, então isso é violência.
Figura 47: Boraris carregando baldes de água do rio para o consumo diário
Revolta coletiva
Cansados de ver subir pelos rios balsas carregadas de madeira, e de denunciar o fato às
autoridades sem qualquer resultado, indígenas e comunitários resolveram agir por conta
própria. No dia 10 de novembro de 2009, em ação coletiva, queimaram duas balsas carregadas
de madeira supostamente ilegal. A carga avaliada em 5 milhões de reais queimou por três noites.
O episódio da queima das balsas206 chamou atenção para a luta travada pelo povo local. Estava
completando um mês que indígenas auto afirmados da TI Maró, junto com moradores de
comunidades locais, estavam acampados em uma praia do rio Arapiuns.
Os moradores das margens dos rios exigiam fiscalização às autoridades, que respondiam
com descaso. O povo então se organizou e decidiu acampar e apreender as balsas para
pressionar um diálogo com responsáveis pelos órgãos fiscalizadores e assim denunciar a
extração ilegal de madeira e exigir do Estado agilidade no processo de demarcação das terras.
Receberam apenas a visita de um técnico para fiscalizar a madeira apreendida por eles,
negligenciando a reivindicação de uma fiscalização mais efetiva. O que movia tanto descaso
por aquelas pessoas que ali se manifestavam?
206
Ver artigo de Felipe Milanez (2010).
232
207
A Constituição de 1988, artigo 67, ordenou a demarcação de todos os territórios indígenas no Brasil, dentro do
período de 5 anos após sua promulgação. No entanto, mais da metade dos territórios ainda esperam por uma
demarcação. Fato decisivo a entravar as demarcações é o decreto 1775, de janeiro de 1996, proposto pelo então
ministro da Justiça Nelson Jobim e assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. O decreto impôs o
chamado princípio do contraditório dentro do processo administrativo. “It provides a legal mechanism for those
who also claimed access to indigenous lands to appeal against their demarcation, giving a chance for commercial
interests, such as ranchers, miners, and loggers, to present their case” (BORGES &COMBRISSON, 2011).
233
manejo florestal na gleba Nova Olinda, alguns dentro mesmo do território indígena,
recentemente reconhecido pela Funai, que em outubro de 2011 publicou seu relatório
circunstanciado de identificação e delimitação. Contudo, quem assumiu a contestação,
manifestando impugnação ao despacho que abrigou o relatório foi o Instituto de Terras do Pará
(Iterpa), que reivindica a área para madeireiros, a fim de efetivar-se um arranjo de permuta e
compensação, promovido pelo governo do estado.
No Pará, a fiscalização é notoriamente escassa e permite a retirada de grandes volumes
de madeira ilegal. O movimento indígena no baixo Tapajós denuncia a pilhagem, tolerada pelo
estado, que ademais fomentou conflitos ao colocar madeireiros em territórios reivindicados
pelos indígenas. Esse é o contexto onde, a despeito das desvantagens de meios, o movimento
indígena conseguiu uma conquista relevante, com o reconhecimento pela Funai da Terra
Indígena Maró.
Em 06/01/2012, o Iterpa, em referência ao Despacho nº 107, da Presidência da Funai,
publicado no DOU em 10/10/2011, manifestou “impugnação àquele ato”, que contraria a
iniciativa do governo estadual de situar na TI Maró madeireiros oriundos do Projeto Trairão,
no município de São Felix do Xingu. O ofício do Iterpa se faz acompanhar de texto intitulado
“Flechas Enganosas”, em que o antropólogo Edward Luz critica o movimento indígena
evocando o fantasma de agentes externos interessados no subdesenvolvimento da Amazônia:
“Tais ações indigenistas obedecem uma agenda geopolítica externa, visando o engessamento
de enormes áreas de produção e servirem de óbices a realização de obras estruturantes na região,
a fim de mantê-la, sub-povoada e sub-desenvolvida.”
Por outro lado, a intrusão de atividades madeireiras na TI Maró e o prejuízo que ela
causa aos indígenas e à natureza estão reportados no Relatório Circunstanciado de Identificação
e Delimitação da Terra Indígena Maró/PA.
A atuação da indústria madeireira já tem causado assoreamento de cabeceiras de igarapés como
o Tirirical, Tobias e Raposa. O comprometimento destas cabeceiras tem conseqüências
negativas relevantes, especialmente para a aldeia de Novo Lugar, local onde todas estas
desembocam. No entanto, por ser esta a comunidade localizada à montante, certamente as
demais também sofrerão com a diminuição do fluxo do rio Maró e destruição de locais
importantes para a reprodução de peixes. (FUNAI, 2011)
O conflito, ao passo que se dá diretamente com agentes econômicos locais, tem como
agente principal o Estado brasileiro, que em lógica desenvolvimentista almeja a integração dos
territórios indígenas e seus respectivos recursos naturais aos processos econômicos, apesar da
retórica de defesa da pluralidade sociocultural (VERDUM, 2008). Apesar dos avanços
conceituais e legais, vigora ainda a prática do velho SPI de ‘abertura dos sertões à iniciativa dos
234
particulares’ (FREIRE 2009, p. 31). Por outro lado, indígenas recentemente assumidos retomam
“suas tradições a partir de uma identidade genérica de caboclos já assimilados” (ARRUTI 1997,
p.11), fazendo-se assim sujeitos políticos, subvertendo a indistinção (ibidem, p. 19) e o projeto
geopolítico regional.
Um trecho do relatório de identificação e delimitação da TI Maró se refere a essa
situação de conflito, com as cabeceiras dos igarapés, lugares sagrados para os indígenas, com
o acesso impedido por cercas e porteiras.
É importante destacar que cientes do processo de usurpação de sua área de ocupação
permanente, os Borari e Arapium em 2005 realizaram a primeira autodemarcação de seus limites
territoriais em projeto conjunto entre o Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns e Programa Saúde
Alegria. Em 2007 foi realizado o georeferenciamento dos pontos identificados. Os limites
apresentados no mapa de autodemarcação, em alguns momentos, contrastam com as narrativas
proferidas pelos indígenas quando da entrada na mata e da utilização dos recursos naturais lá
existentes. Alguns igarapés (especialmente suas cabeceiras), como o do Cachimbo e do Arraia,
são tidos pelos indígenas como importantes, mas não aparecem nos limites geográficos. Lendo
o mapa de autodemarcação é possível perceber que todos os pontos de conflito e na qual os
indígenas se sentem pressionados em seu território não são contemplados, numa nítida reação
de medo as ameaças sofridas. (...) Locais sempre utilizados para a caça e pesca hoje têm cercas
e portões, coibindo a entrada de “estranhos” e atividades produtivas. A cabeceira do Igarapé do
Cachimbinho está fechada com uma porteira. (FUNAI, 2011)
A história dos Borari e Arapium ganhou uma inflexão com o reconhecimento oficial da
Terra Indígena Maró. Após o reconhecimento os madeireiros propuseram um acordo: abririam
mão do pedaço de terra disputado, contanto que os indígenas afirmassem que ali não existia
conflito. Seria uma estratégia dos madeireiros para ganharem a certificação da madeira queriam.
Contudo, resistência tem sido uma palavra definidora dessa história, construída com o desejo
de pertencer a um povo, a um lugar e a uma luta. A conquista da terra fortaleceu a identidade,
que tem a ver com continuidades históricas, inclusive territoriais. Agora eles almejam uma vida
melhor sobre o território conquistado. Eles almejam educação e saúde indígenas em padrão
superior aos tacanhos serviços atuais, assim como a utilização autônoma dos recursos naturais
na terra indígena demarcada, e são movidos por esses direitos. Os indígenas têm consciência
que território é construção.
A luta principal das três comunidades que vivem na TI Maró diz respeito à garantia do
território. Mas planejam também uma vida melhor sobre ele. Com esse objetivo, os indígenas
selecionam os projetos que consideram importantes, com o cuidado de não abraçar iniciativas
desfocadas do seu principal objetivo. Todo o trabalho que desenvolvem nas comunidades visa
a afirmação do grupo e a luta pela TI. Por isso, criaram o Conselho Indígena Intercomunitário
Arapium e Borari – COIIAB, definindo que cada uma das comunidades teria suas prioridades
e vocações. Esse plano orienta a vida na TI Maró.
235
208
ASHA.
236
Reconhecimento
Desamparados pelo poder público, os Borari e os Arapium viviam como seres
“invisíveis” na mata. Lá, plantavam, colhiam, pescavam, caçavam, faziam festas e praticavam
seus rituais. Contudo, tudo mudou quando perceberam que o lugar de reprodução da vida estava
ameaçado. Subitamente se assustaram ao ver seus espaços invadidos por homens munidos de
GPS que marcavam e demarcavam a terra como se a eles pertencesse. Descobriram que esses
homens eram fazendeiros do sul do Brasil, que haviam recebido do governo do estado do Pará
parte daquela terra como permuta por terras que haviam perdido no sul do Pará em uma área
decretada como território indígena.
O documento de permuta concedido pelo Governo dava aos “permutados” o direito de
marcarem e demarcarem suas novas terras e as das comunidades vizinhas. E como diz o ditado
“quem parte e reparte e não fica com a maior parte ou é tolo ou não tem arte”... Ao verem seus
237
plano moral. Os indígenas lutam por reparações materiais pautadas em direitos. Além do
desrespeito cultural os indígenas sofrem com a privação econômica. A injustiça no Maró é
caracterizada não só no plano cultural e simbólico, mas também no plano político e econômico.
Os indígenas querem garantir a terra e a demarcação dela é a principal prioridade apontada
pelos moradores das três aldeias, mas também querem viver dignamente sobre ela e por isso
constroem projetos e sonhos. Plantam ervas medicinais e sonham com um mini hospital
indígena através do projeto que chamaram “farmácia viva”. Plantam mandioca, produzem
farinha e querem vendê-la nas cidades próximas por isso sonham em ter seu próprio barco.
Constato que os Borari e os Arapium são sujeitos de um projeto descolonial, situando o
reconhecimento no plano moral de Honneth (2009) em um contexto onde é evidente a
colonialidade. As feridas morais, as negações e os abusos, que levam os indígenas à uma luta
por reconhecimento, nascem e se fortalecem em uma relação de injustiça racista. O racismo,
que foi instrumento e justificativa para a violência da colonização, é raiz de um comportamento
de negação. Essa violência e negação do Outro, que justificou a rapina de terras e riquezas
naturais, se reproduz e se perpetua hoje em desigualdade e pobreza daqueles que foram desde
a colonização explorados e excluídos. Os indígenas lutam por reconhecimento. Como
soberanos do seu território eles exercem na prática a redistribuição. Eles travam lutas por
território e por direitos nas esferas da saúde e da educação. Eles lutam sobretudo por respeito.
239
X - NOMEAR É COMBATER
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de
falsas palavras, mas de palavras verdadeiras com que os homens transformam o mundo. Existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se
volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Paulo Freire
em Pedagogia do Oprimido (1983, p. 92)
A autoafirmação e a adoção do nome dos seus povos pelos indígenas do baixo Tapajós,
entre eles os Borari e os Arapium da TI Maró, é uma forma de transformar o mundo. Os
indígenas passam a existir humanamente, no sentido atribuído por Paulo Freire e Ernani Fiori,
em que “a vida como biologia passa a ser vida como biografia” (1983, p. 8). Com a autonomeação
os indígenas transformam a si mesmos e o mundo no qual estão inseridos. Ao darem essa
substância ao mundo, os indígenas enfrentam a negação das suas identidades. Isso exige deles
um “novo pronunciar”. Ao se pronunciarem novamente eles nomeiam o racismo.
Dar nome é criar. É fazer existir uma realidade ocultada que servia a desumanizar. Que
os situava abaixo da linha do humano. Quem costuma nomear é o dominador, que se coloca no
poder de o fazer de acordo com seu entendimento autocentrado. Os dominados, para nomear,
têm que arrancar esse poder dos dominadores, esclarece Fiori, no prefácio da Pedagogia do
Oprimido: “Os dominadores mantêm o monopólio da palavra, em que mistificam, massificam
e dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá-
la. ” (1983, p. 11). Nomear-se indígena é sair da condição de massificados, generalizados e
dominados. A luta pelo reconhecimento é uma luta pelo domínio da palavra, que dá existência
através da insurgência. Para os Borari e Arapium nomear-se é existir. Nomear o racismo é
resistir.
Deborah Lima (1999), trabalhando sobre “estruturas e representações sociais no meio
rural amazônico” (p. 28), diz que “palavras não apenas criam, mas conservam as coisas que
criam” (idem), dai a importância do uso dos nomes seja para conservar seja para transformar o
social. Segundo a autora, o termo caboclo “carrega a história colonial de subordinação” e assim
“compromete o destino de uma população” (idem). Roberto Cardoso de Oliveira vem ao texto
de Deborah Lima para afirmar que os Ticuna, quando se referiam como caboclos, olhavam para
si mesmos com o olhar do branco. Ou seja, o nome cria a subjetividade, nesse caso uma
subjetividade de dominado. A nomeação nesse caso conserva uma colonialidade, que pode ser
transformada também pela palavra. Assim fizeram os Borari e os Arapium. O uso de palavras
impostas para identificar a si mesmo é o que Paulo Freire chama de autodesvalia, “característica
dos oprimidos” que absorvem a visão do opressor sobre eles. Termos generalizantes, como
240
Desobediência epistêmica
Os Borari e os Arapium saem da invisibilidade fazendo uso da palavra como ação
transformadora. Assim como outros indígenas afirmados no baixo Tapajós, eles confrontam
nomeações e entendimentos estabelecidos desde os processos de assimilação e rejeitam a
história oficial. Eles ressurgem. Os indígenas, mediante uma práxis desobediente, de uma só
vez criam história, identidade e direitos. A partir de uma história reinterpretada eles oferecem
um novo entendimento para a questão indígena. Reconhecimento da condição indígena e
denúncia/nomeação do racismo que eles sofrem passam a ser eixos da luta.
Os Borari e os Arapium são sujeitos históricos, representam a resistência dentro de uma
história que lhes foi negada. Nomearam-se indígenas, quando Estado e capital os queriam
subordinados caboclos ou ribeirinhos. Conquistaram a TI Maró, demarcaram-na e ela agora
lhes pertence tanto quanto eles pertencem a ela, a despeito dos ordenamentos territoriais oficiais
que reservavam essa terra para a exploração de madeira. Na terra, concebem-na como território,
chão, usos, relações, vida material e espiritual. Concepção radicalmente oposta àquele que toma
a terra como fator de produção e progresso, que avança degradando gente e natureza, e “que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína”, como descreve Walter Benjamin Sobre o conceito
da História.
Território para os Borari e os Arapium representa uma união com a natureza – “o
universo inteiro é concebido como um ser vivente no qual não há uma separação estrita entre
humanos e natureza, indivíduo e comunidade, comunidade e deuses” (ESCOBAR 2005, p. 136)
-, condição de existência para eles, uma realidade muito diversa da terra como objeto de
exploração da natureza, condição para a realização de lucros. Um conhecimento muito diverso
do meramente econômico. Um conhecimento, “do que é humano e do que não o é, o que é
semeado e o que não o é, o doméstico e o selvagem, o que é produzido pelos humanos e o que
é produzido pelas florestas, o que é inato ou o que emerge da ação humana, o que pertence aos
espíritos e o que é dos humanos, etc” (ibidem). Os Borari e os Arapium realizam assim com a
TI Maró uma desobediência epistêmica.
Entendi que terra não se limita ao espaço físico através de um depoimento de um
indígena da Paraíba, durante o IV Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI), em
Santarém, que disse que carregava a sua “terra” dentro de si para onde fosse. Falou isso
relatando o quanto era difícil para alguns indígenas viver na cidade e o quanto era opressor o
241
do subalterno pode às vezes derrotar o conhecimento que se faz superior aos outros. E que,
enfim, se pode abalar a certeza do conhecimento. Que não existe conhecimento neutro nas
Ciências Humanas, não existe sujeitos neutros, embora a epistemologia ocidental dominante
pretenda fazer crer o contrário.
Castro-Gómez (2005) fala sobre o “ponto zero do conhecimento” para dizer que um tipo
de conhecimento se fez superior aos outros, em função da crença de que certos conhecimentos,
feitos por sujeitos supostamente neutros, através de determinados métodos, seriam capazes de
descobrir verdades universais. O ponto zero seria então o local de onde parte o observador, que
é capaz de olhar tudo e todos e não ser visto por ninguém de ponto algum. Os estudiosos
localizados nesse ponto seriam incapazes de compreender outro ponto de vista, rejeitando assim
a máxima que um dia proferiu Leonardo Boff, segundo a qual “cada ponto de vista é a vista de
um ponto”. Boff diz que “cada um lê com os olhos que tem e interpreta a partir de onde os pés
pisam”. A quem é dado o poder de ler e interpretar? Encontrar-se no ponto zero é, de acordo
com Castro-Gómez:
Ter o poder de nomear pela primeira vez o mundo; de traçar fronteiras para estabelecer quais
conhecimentos são legítimos e quais são ilegítimos, definindo quais comportamentos são
normais e quais são patológicos. Por isso, o ponto zero é o do começo epistemológico absoluto,
mas também o do controle econômico e social sobre o mundo. Localizar-se no ponto zero
equivale a ter o poder de instituir, de representar, de construir uma visão sobre o mundo social
e natural reconhecida como legítima e autorizada pelo Estado. (CASTRO-GÓMEZ apud
COLAÇO & DAMÁSIO 2012).
Ocorre que a neutralidade estabelecida pelo ponto zero é uma falácia. Sempre se parte
de um local específico para produzir conhecimento. Acontece que o lugar de onde se parte tende
a desprezar todos os outros conhecimentos ao colonizar mentes. Importa no discurso de onde
ele parte, tanto quanto o que ele diz. Importa que tem o poder de nomear. E quem como sujeito
histórico é capaz de tomar esse poder para nomear em sentido oposto. Os indígenas afirmados
reconhecem eles mesmos que “descolonizam o pensamento”. Tomando a palavra exercem um
contra-poder. Eles partem do lugar destinado ao colonizado e se insurgem em consonância com
outras experiências na América Latina e no mundo. Ao tomar a palavra, o discurso que
proferem tem conteúdo semelhante aos de outros movimentos, desde o levante zapatista, até o
de outros grupos que dividem saberes locais - línguas e a feitura de elementos culturais como
artesanatos e comidas - e que codividem histórias de dor, sofrimento, superação e resistência.
Dessa forma, os indígenas do baixo Tapajós transformam Santarém e a Ufopa de “lugares de
estudo” a “lugares de pensamento” geradores de decolonialidade (MIGNOLO, 2003).
243
Karina Bidaseca (2010) cita em seu livro um trecho da teórica feminista Judith Butler,
que vale a pena colocar aqui para explicar que esse “lugar de pensamento” se determina como
uma insurreição ontológica que questiona o sujeito universal:
Não se trata simplesmente de fazer ingressar os excluídos dentro de uma ontologia estabelecida,
mas de uma insurreição a nível ontológico, uma abertura crítica a perguntas tais como: O que é
o real? Que vidas são reais? Como poderia se reconstruir a realidade? Aqueles que são reais já
sofreram a violência da desracialização? Qual é então a relação entre a violência e essas vidas
consideradas “irreais”? A violência produz essa irrealidade? A dita irrealidade é a condição da
violência?209 (BUTLER 2006, p. 59 – 60 apud BIDASECA, 2010, p.148, traduzido pela autora)
209
No se trata simplesmente de hacer ingressar a los excluidos dentro de uma ontologia estabelecida, sino de una
insurrección a nivel ontológico, una apertura crítica a preguntas tales como: Qué es real? Qué vidas son reales?
Como podría reconstruirse la realidad? Aquellos que son reales ya han sufrido de la violencia de la desrealización?
Cuál es entonces la relación entre la violencia y essas vidas consideradas “irreales”? La violencia produce esa
irrealidad? Dicha irrealidad es la condición de la violência? (BUTLER 2006, p. 59 – 60 apud BIDASECA, 2010,
p.148)
244
futebol, onde estavam suas casas, igreja, escola. Esse uso do território resumido em um desenho
era de grande importância. Mostrou o conhecimento que era significante para eles, diverso do
que era importante para os demais, mas que nem por isso menos importante. Para eles mais
importante porque aquele era o lugar da vida. Construíram mapas para as três aldeias em aliança
com pesquisadores e instituições. Os mapas foram difundidos em uma cartilha210. O mapa de
uso de Novo Lugar na TI Maró é um exemplo de desobediência epistêmica:
Mapa 6: Mapa de uso da aldeia de Novo Lugar
210
Cartilha “Prazer em Conhecer – Terra Indígena do Maró”. Santarém: INCT; MPEG; PSA, 2011.
245
professor que chegou a me dizer que eu precisava escolher entre a universidade e o movimento
indígena. Não posso virar as costas para o movimento, pois foi com essa luta que garantimos o
ingresso dos indígenas na universidade. Isso é compromisso, é uma responsabilidade. Os
professores não sabem desse sentimento, nunca viveram isso. O que falta para os professores é
respeitar. Respeitar não é se impor. É saber compreender. (2016, p.29)
O cacique Dadá da TI Maró, em resposta à polêmica suscitada pelo juiz que sentenciou
a inexistência dos povos Borari e Arapium, propôs algo interessante quando convidou as
pessoas a irem a sua aldeia para serem alfabetizadas: “pra quem questiona a minha etnia, eu
quero convidar: venha até minha aldeia, venha me conhecer, mas venha para ser alfabetizado
por nós”. O alfabetizar que o cacique propôs significa o ensinamento dado por ele e pelo grupo
do que significa ser Borari ou Arapium, que se traduz no que significa ser um indígena hoje.
Cacique Dadá fala a partir da razão dele e do seu grupo, que é uma razão outra, uma razão
própria, não gradeada pelo conhecimento Ocidental, que é racista ao se centralizar como
epistemologia verdadeira, única, desconsiderando conhecimentos outros.
Os Borari e os Arapium fogem do padrão do senso comum e das regras determinadas
por um conhecimento ocidentalizado, que se estabelece com critérios rígidos. É um movimento
que configura uma epistemologia, que não separa o pensar do fazer, a teoria e a prática. Mas
fazer com que o conhecimento dominante considere os conhecimentos indígenas não é tarefa
simples, de acordo com o que disse Poró Borari: “Isso é um trabalho muito árduo. Eu diria que
isso é uma alfabetização. A pessoa tá leiga, ela é ignorante do ponto de vista do conhecimento,
de se apropriar da história dos nossos povos”. Para entender essa epistemologia, eu mesma tive
211
Boaventura Santos na conferência “Descolonização Epistemológica”, proferida na Universidad Autonoma de
la Ciudad de México, em 11 de outubro de 2013.
246
que “aprender a desaprender”212, e ao me dar conta de que a razão imperial, como identidade
superior, eurocêntrica, na maioria das vezes serviu para diminuir, inferiorizar e negar gente,
nações, religiões e gênero, percebi que o que ocorre no Maró é um projeto descolonial.
A gente chegou a uma conclusão: de que não é a Justiça Federal que ia ter que medir até que
ponto nós somos indígenas ou não. Poró Borari
O juiz não ouviu os indígenas. Não considerou a palavra que diziam, o nome com o qual
se reconheciam. Isso bastaria para que o conteúdo da sentença fosse o oposto do que foi
determinado. O que deu motivos para que a sentença fosse completamente desconstruída,
através de apelação jurídica produzida pelo Ministério Público Federal213, e finalmente extinta
em decisão tomada por unanimidade pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
(TRF1), em 20 de janeiro de 2016
212
Conforme sugere Mignolo (2010) quando se refere à desobediência epistêmica.
213
Procuradoria da República no Município de Santarém, em 04 de fevereiro de 2015.
247
Ao tomar para si o poder da palavra e proferir o “Cumpra-se”, o juiz feriu aos indígenas,
gerando indignação e revolta. A palavra como instrumento de ação e poder ensejou a
possibilidade de a sentença surtir efeito. No entanto, isso não ocorreu porque a sentença
também feriu uma dimensão ética e moral, tão necessária quando se trata de relações
interétnicas (CARDOSO DE OLIVEIRA 2006). Essa falta de respeito está baseada no que
Paulo Freire chama de ação antidialógica de grande número dos profissionais que têm a
convicção “quase inabalável” de que devem “levar”, “transferir”, “entregar” ao povo seus
conhecimentos e técnicas. Para esses profissionais que se sentem promotores do povo: “Não há
que ouvir o povo para nada, pois que, ‘incapaz e inculto’, precisa ser educado por eles para sair
da indolência que provoca o subdesenvolvimento” (FREIRE 1983, p. 182).
A sentença foi denunciada publicamente como racista. A ferida moral, gerada por
palavras tão desrespeitosas em relação aos indígenas – “falso índio”, referindo-se ao cacique, e
“farsa”, referindo-se ao movimento – produziu o entendimento de que o racismo sustentava os
argumentos da sentença. A palavra racismo, que até então era camuflada e suavizada em
sinônimos e que não estava tão presente no cotidiano dos indígenas, se revelou com força plena
de significados. A força da palavra dita se potencializou através da escrita que cobriam os
cartazes carregados durante a manifestação. Um deles chamou atenção ao denunciar
publicamente o racismo e associá-lo à falta de respeito:
Figura 50: Poró Borari
Poró Borari, da TI Maró carregava o cartaz que denunciava como racista a atitude do
juiz. Logo após a manifestação, o jornalista e professor Felipe Milanez escreveu artigo
“Sentença da Justiça Federal acirra conflitos em Santarém” para seu blog na carta capital214, no
qual inicia com a seguinte citação de Fanon “O racista numa cultura com racismo é por esta
razão normal. Ele atingiu a perfeita harmonia entre relações econômicas e ideologia”. Milanez
explicita nessa matéria o teor racista da sentença na qual o juiz elencou argumentos que, em
uma sociedade de cultura racista, parecem “normais”. A ação judicial foi movida por
associações comunitárias preocupadas em perder suas terras com a demarcação da TI Maró.
Contudo, as associações haviam pedido desistência da ação quando souberam, através da
divulgação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Maró pela
Fundação Nacional do Índio (Funai), publicado em outubro de 2011, que a área da terra
indígena não coincidia com a das comunidades do entorno215. Cabe informar que durante os
trabalhos de delimitação da TI, a equipe da Funai foi ameaçada de morte por madeireiros. Além
disso, muitos integrantes das associações comunitárias, que entraram com a ação, trabalham
para empresas madeireiras.
Fato relevante é apontar que o mesmo advogado que assinou a ação judicial em nome
das comunidades, advoga para os madeireiros que conflitam com os indígenas (BRASIL. MPF,
2015). Assim, a ação judicial refletia o conflito entre indígenas e madeireiros e a sentença foi
parcial ao desconsiderar esse conflito, atendendo os interesses dos madeireiros, como afirma a
apelação civil do Ministério Público Federal contra a decisão da Justiça Federal de Santarém:
É muito mais conveniente utilizar como longa manus comunidades tradicionais, humildes, que,
supostamente, viam “seus direitos”, objeto de negócio com o Estado do Pará, serem
“arrancados”, a pretexto de, em seus dizeres, reconhecer os direitos dos “falsos índios”, fato que
mobiliza toda a sociedade para a causa, sensibilizando e colocando na pauta do dia das famílias.
Trazer à lume MADEIREIROS, de poder aquisitivo elevado, que se motivam tão somente pelo
lucro e vislumbram na área uma forma de fazerem fortuna não desperta o mesmo sentimento.
(BRASIL. MPF, 2015, p.16-17)
Essa parcialidade foi revelada quando o juiz ignorou o pedido de desistência da parte
litigante e deu seguimento ao processo, sentenciando a inexistência dos indígenas. Fato que
214
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/sentenca-da-justica-federal-exalta-
racismo-a-indigenas-e-acirra-conflitos-em-santarem-6596.html
215
De acordo com a apelação civil do Ministério Público Federal contra a decisão da Justiça Federal de Santarém:
“a ação nº 2091-80.2010.4.01.3902 foi manejada pelas Associações antes mesmo que houvesse a publicação do
Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Terra Indígena Maró, documento através do
qual foram explicitados os limites geográficos com as respectivas coordenadas da TI. Após a aludida publicação,
tiveram as Associações a clara percepção que as áreas ocupadas pelas comunidades que a compunham não se
sobrepunham, em nenhuma medida, com a área da TI Maró. Dessa maneira, mais do que justificável a formulação
do pedido de desistência da ação” (BRASIL. MPF, 2015, p.12)
249
aconteceu poucas semanas depois de uma fiscalização216 ter embargado todas as permissões de
exploração madeireira dentro da TI Maró. Conforme relata Poró Borari:
No momento em que um mês atrás nós tínhamos conseguido juntar o Ibama e cancelar nove
projetos de manejo na TI Maró, aí logo em seguida sai uma sentença negando nossa existência.
A gente fez a relação que [a sentença] era tendenciosa de fato. Que era pra justiça negar a
legitimidade da nossa identidade e com isso liberar as madeiras da nossa terra pros madeireiros.
216
Ação de fiscalização que uniu o Ministério Público Federal (MPF), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e
o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama).
217
Decisão tomada por unanimidade pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em 20 de
janeiro de 2016.
250
A sentença foi invalidada porque as palavras contidas nela foram desautorizadas. Não
teve efetividade porque não foi capaz de demonstrar competência, de gerar os efeitos
pretendidos. Não teve competência porque não se fez escutar, o que não a confirmou como
instrumento de poder (BOURDIEU, 1977). Por outro lado, o grito de revolta dos indígenas foi
ouvido. Eles sim tiveram a competência de usar a palavra a seu favor, porque seus argumentos
foram capazes de gerar recepção.
O “terceiro parto”
As lutas mudaram. Evoluíram. Hoje a gente não briga mais com flecha, com arma. A gente
briga com o papel e a caneta. Luana Kumaruara
Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)218, em agosto de 2016, para exigir que os treze
povos auto afirmados do baixo Tapajós tivessem direito à saúde219.
Mãe da pequena Yara, de dois anos, Luana Kumaruara teve um menino, o Kauê, em
janeiro de 2017. Marcelo Borari, que relatou sua percepção de racismo no II capítulo, é o pai
das crianças. Quando, durante entrevista, perguntei para ele como era possível combater o
racismo que sofriam, ele respondeu:
Só por meio da educação mesmo. O único caminho que tem é a própria educação. Não só na
escola, mas dentro da família. O fato de a gente ter colocado o nome da nossa filha Kumaruara
já é um processo de educação. De dizer pra ela que ser indígena não é aquilo que as pessoas
falam, mas é uma questão de orgulho, ter orgulho da sua própria história. Tentamos construir
isso desde agora.
218
Órgão vinculado ao Ministério da Saúde.
219
As cenas da chegada da Polícia de forma truculenta foram gravadas. Dentre 65 indígenas que ocupavam o
prédio, a polícia prendeu somente o Poró. A Polícia arrancou os telefones celulares de alguns indígenas, inclusive
o da Luana. A Defensora Pública Ingrid Noronha contou que houve “uma série de irregularidades. Na tentativa de
fazer com que Poró assumisse uma culpa que não era sua, o delegado pressionou bastante. Ele queria que o detido
falasse o que ele queria ouvir e não o que, de fato, Poró tinha a relatar. ” Depoimento extraído da matéria “Como
um índio que protestava por acesso a saúde acabou preso em Santarém”, publicada em 16/08/16. Disponível em:
http://infoamazonia.blogosfera.uol.com.br/2016/08/16/como-um-indio-que-protestava-por-acesso-a-saude-
acabou-preso-em-santarem/
220
No Brasil, o dia do índio é 19 de abril, quando até hoje nas escolas as crianças são “caracterizadas” de
“índios” com pinturas e imitação de penas enfeitando as cabeças para lembrar e celebrar a origem indígena da
nossa populaçao.
252
colocar o nome de suas etnias no Registro Civil de Nascimento (RCN) de seu filho. Luana
Kumaruara divulgou, em sua conta em rede social, a importante conquista:
Essa semana foi o dia do "terceiro parto". Registradores civis de Santarém não estão preparados,
não tem informações precisas sobre o direito dos cidadãos indígenas à documentação do RCN.
Assim como demais parentes que procuram o serviço, tivemos que vivenciar momentos de
discriminação e negação da nossa nação. Até o chefe da FUNAI que nos acompanhava foi
desrespeitado. Foi com muita insistência e desconfortos, provando que eles estavam errados que
conseguimos sair com RCN do nosso filhote "Kauê Borari Kumaruara".
CONCLUSÕES
Busquei entender como foi formada a atual sociedade amazônica, e percebi que a
questão racial, desde sempre importante, foi determinante em dois momentos. O primeiro foi a
Cabanagem, onde reanalisei discursos e apontei no evento histórico características de uma
guerra racial que tingiu de sangue indígena e negro - o sangue dos cabanos - as areias das praias
de Cuipiranga, no baixo Tapajós, último reduto da insurgência dos desprezados contra o poder
dos brancos, na primeira metade do século XIX. Foi uma luta “do povo contra os poderosos”,
hoje retomada como discurso do movimento indígena. Outro momento na ocupação da
Amazônia foi o período da borracha, na transição do IX para o século XX, onde apontei o
imigrante nordestino, transformado em seringueiro, como um ser rejeitado pelas elites
“brancas” das capitais nordestinas. Durante o ciclo da borracha foi reforçado o
“branqueamento” das capitais amazônicas e se fortaleceu o desprezo pela cultura local. Padrões
e gostos europeizados marginalizavam o que era associado ao povo. Vale acrescentar que a
Amazônia, inferiorizada no contexto nacional, era o lugar considerado “sem gente” para onde
deveria ser enviado o povo do Nordeste, situado “abaixo da linha do humano”.
A desindianização, ocorrida desde a colonização, ganhou discurso e projeto oficiais
de formação da nação brasileira. Os índios, que até então haviam malmente sobrevivido, foram
submetidos a uma política oficial de transformação em brasileiros. Brasileiro passou a ser
antônimo de índio. O governo tratou assim: para ser brasileiro tem que deixar de ser índio. Para
o governo era preciso transformar o índio em trabalhador. Assim se efetivaria a mutação do
índio, visto como “selvagem”, em brasileiro “civilizado”. O projeto de “morte que mata dentro”
seguiu com a ideologia do progresso. Sintetizei como o discurso da modernidade estabeleceu
um projeto de branqueamento da população brasileira. Nesse projeto, a mestiçagem foi
incentivada como um dispositivo de poder para “limpar” o país da herança africana e indígena.
Destituídos de suas origens e de seus passados, os brasileiros foram conformados a atender o
padrão estético, moral, religioso, cultural do “branco, ” rejeitando outras heranças. Foram assim
dominados, valorizando-se o exótico em um ou outro resquício cultural, tornados a acreditar
que no país existia uma democracia racial. Entendi que a crença na democracia racial aliada a
crença de que só existe um tipo de racismo - o total apartamento entre os brancos e os negros –
funcionaram como instrumentos na consolidação da ideia de que no Brasil não existiria racismo.
As organizações sociais para a Constituinte foram determinantes para a garantia de
direitos na Constituição Federal de 1988. Direitos garantidos e adesão do Brasil à Convenção
169 do OIT propiciaram a emergência de vários grupos que se afirmaram indígenas, ressurgindo
na história. Pouco mais de 10 anos depois esse movimento de afirmação étnica chegou ao baixo
Tapajós, onde as pessoas já vinham politicamente sendo formadas dentro dos princípios da
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Teologia da Libertação. Tinham já estabelecido uma luta pela terra. Nesse processo de
conscientização política, garantiram territórios coletivos e com eles vieram vínculos a
identidades positivadas, como é o caso dos indígenas e extrativistas. Com a afirmação de
vínculos identitários, irromperam polêmicas locais, em decorrência da sobreposição de
identidades e territórios. Para situar a luta pela Terra Indígena Maró, relatei a história da luta
pela terra coletiva e o confronto de identidades que ocorreu quando da afirmação indígena na
região. Contei detalhes dessa história, na forma de uma etnografia, povoando esse contexto com
gente e imagens. Relatei as violências sofridas pelos Borari e Arapium, por parte do Estado,
dos madeireiros, de parte da sociedade, e de como tudo isso é resultado do racismo que nega o
indígena. Escrevi a etnografia das polêmicas locais através as falas de extrativistas e indígenas,
colocando-os em diálogo, apesar de fraturas existentes. Fiz relatos detalhados para devolver às
populações que ali habitam o registro de um momento histórico, sugerindo brandura e respeito
entre semelhantes nas políticas de identidade e nos processos de construção de hegemonia.
Empreendi ainda o esforço de entender como os estudos de antropólogos brasileiros
tentaram responder a pergunta “quem é o índio? ”. Questionamento esse que sempre serviu aos
governos para permitir o avanço sobre seus territórios. Não cabe a terceiros, e muito menos a
juízes, dizer quem é o índio. Somente ao indígena cabe responder a essa pergunta, se ele quiser.
Os indígenas tomam o poder da palavra e se posicionam no mundo. Constroem sua própria
biografia. São insurgentes, decoloniais e desobedecem a ordem estabelecida com novas formas
de afirmar suas culturas, seus saberes, seus territórios e suas vidas. Nomeiam sua existência,
conquistando a condição de sujeitos históricos. Ressurgem na história e assim configuram a
chamada etnogênese. Os Borari e os Arapium afirmam-se indígenas, garantindo uma forma de
ser e viver na Terra Indígena Maró.
Na “zona do não-ser” estão aqueles que sofrem o racismo enraizado na sociedade e que
se reproduz subjugando gente. O racismo é o motor da negação da identidade indígena. Para
ser combatido, ele precisa antes ser reconhecido: “Fora Justiça racista. (...) Sou Borari Seu juiz.
Exijo respeito”. Os Borari e os Arapium, junto com outros indígenas do baixo Tapajós,
começam, a partir de suas conexões com o movimento indígena nacional e internacional, a
reconhecer e a nomear o racismo.
Os Borari, os Arapium e todo o movimento indígena do baixo Tapajós passam a
reconhecer e a nomear o racismo em práticas e discursos que pretendem nega-los. O racismo
contra o indígena é explicito socialmente sem a preocupação de quem o expressa ser taxado
racista. Essa é uma questão semântica. Racismo é uma palavra com estigmatizante significado
social. O racismo existe, nomear é revelar. Nomearam o racismo, mostraram a existência da
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