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RESUMO
O texto esboça as linhas gerais ou bases teóricas de uma atitude crítica e reflexiva em relação
ao jornalismo moderno. O primeiro lance ressalta o caráter contraditório do processo de
surgimento do conhecimento comum nos tempos modernos. O seguinte examina a maneira
como esse processo foi mediado pelo desenvolvimento do jornalismo e revela as reflexões a que
ele deu origem. O terceiro momento relativiza crítica e dialeticamente essas teorias, pregando a
necessidade de entender o assunto no contexto mais amplo de conversão da indústria cultural
em sistema, verificado no século XX.
PALAVRAS-CHAVE
Jornalismo moderno
Conhecimento comum
Indústria cultural
ABSTRACT
This article outlines the theoretical ground from which we may develop a critical and reflexive
attitude in front of modern journalism. In the first step, we highlight the antagonistic character
of the common knowledge arisen in modern times. In the second, we examine the way this
process was mediated by the press and the theoretical reflections about it this process gave
place. Finally, we think critical and dialectically these theories, arguing that modern journalism
must be understood in the broader context of conversion of culture industry in system, verified
in 20th Century.
KEY WORDS
Modern journalism
Common knowledge
Culture industry
Francisco Rüdiger
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS/RS/BR.
frudiger@pucrs.br
do processo não pode ser abstrata. A verdade a acionado e reativado periodicamente por insti-
seu respeito não reside apenas em seu núcleo tuições especializadas, cujo coletivo acabou sen-
racional: a propagação do conhecimento. As do chamado de imprensa e, mais recentemente,
conexões objetivas em que aquele processo se de mídia. A expansão da economia de mercado,
enreda realidade histórica também precisam sem primeiro, criou as condições para a diferenciação
levadas em conta. do saber, ao mesmo tempo em que começou a
Nesse sentido, as referidas redes podem ser submeter sua difusão a um protocolo mercado-
vistas, por um lado, como fator que colaboram lógico. O passo seguinte foi minar as bases que
decisivamente para tornar o homem adulto, asseguravam o consenso coletivo, oportunizando
fazendo-o mais racional, lúcido, informado e o surgimento de situações vinculadas a diversos
habilidoso. As pessoas de nosso tempo tendem pontos de vista ou opiniões e em que aquele só
a aceitar o que tem de ser aceito, rejeitando o por exceção é alcançado.
que não pode ser provado como superstição. Por Embora não limitado a ele, o processo é, como
outro lado, porém, elas se sujeitam, assim, a uma dito, ininteligível, sem a consideração do papel
indústria da cultura, no contexto da qual essas que nele desempenha a publicação de impressos
redes servem de meio para distraí-los da própria mas, sobretudo, o desenvolvimento do jornalismo
vida, afastando da mente de muitos, talvez da desde o final do século XIX. Origina-se dos
maioria, as mudanças que teriam de fazer em seu pioneiros do estudo do jornalismo a conclusão,
mundo e seu modo de ser, para viver de acordo relativamente consensual ainda hoje, de que este
com suas inclinações mais individuais. é uma criação da era burguesa. O aparecimento
As comunicações, sim, ajudaram o indivíduo da atividade está ligado à transformação
a conquistar liberdade de opinião significativa e dos impressos em material de leitura e bem
servem de veículo de uma opinião pública que, de consumo desse grupo social. A formação
apesar de tudo, várias vezes, mas nem sempre, intelectual e os projetos de ascensão política em
ajuda evitar o pior, conservando de algum modo meio às quais surgiu exigiram o seu contínuo
suas funções emancipatórias. O progresso das desenvolvimento. O público leitor surgido com
mesmas é algo que se liga a um processo ainda sua era está dialeticamente ligado à expansão
mais amplo, que é o do desenvolvimento das da atividade editorial, à crescente publicação de
estruturas cognitivas e dos estoques de saber livros e periódicos, à formação de um mercado
socialmente compartilhadas. de bens culturais.
Visando entender melhor esse processo, é Na Europa, havia impressos circulando
preciso relacioná-lo com o fato de que, com a era publicamente desde o final do século XV: livros,
moderna, o conhecimento comum se tornou objeto volantes, editais, revistas, almanaques, mas só
de renovação constante e de alcance cada vez mais dois séculos mais tarde o recurso técnico que os
amplo, via o desenvolvimento de sucessivos meios criou, o prelo manual, começaria a dar lugar ao
de comunicação mas, sobretudo, da expansão que entendemos por jornalismo. No começo do
das práticas jornalísticas. O conhecimento século XVIII, efetivamente aparecem as primeiras
comum, cotidiano, lembremos, é elaborado em redações e se começa a publicar folhas diariamente
meio à prática coletiva como apropriação das de modo regular. A sociedade burguesa se
conexões em que se articula o mundo social e expande e em seu meio vai surgindo uma esfera
histórico4. A figura, todavia, tem baixo índice de pública, que se articula para discutir os fatos
especialização, enquanto as estruturas que lhe políticos e seus próprios interesses através, entre
subjazem conservam um caráter comunitário, outros meios, dos impressos. O conteúdo desses
de modo que, nessa situação, o movimento é variado e não perde de vista as conexões com o
de formação da opinião e consciência comum mercado, mas sua a forma de expressão é literária
tende a ter um cunho imediato e monolítico, e o sentido, predominante político.
a não se expressar como opinião elaborada ou A paulatina desterritorialização da consciên-
saber individualizado, mas antes como consenso cia promovida pela expansão das atividades
coletivo imposto tradicionalmente. mercantis é intermediada pelo aparecimento
Os tempos modernos importam, por razões de veículos de comunicação que a socializam,
que não é possível explicitar aqui, numa ruptu- engendrando um circuito permanente e cada
ra com esse registro do saber ordinário, na sua vez mais amplo de renovação e reestruturação
passagem para o plano de um conhecimento da experiência em diferentes níveis. A expansão,
a crença ingênua de que o periódico se resume principal função não é fiscalizar o poder de estado
em reportar os fatos para os seus auditórios, foi e assegurar que seus atos expressem a opinião
reformada em bases doutrinárias. pública.
Destarte, triunfou o formato noticioso, sugeri- Os jornais são empresas controladas pelos
do pelo crescente emprego do telégrafo, desde o setores sociais e econômicos mais fortes, que
final do século XIX. Os princípios fordistas esta- deles se servem para sustentar as coalizões
vam se transplantando para o campo jornalístico. políticas de seu endosso e conduzir os processos
A espontaneidade passou a ser mais reprimida. A de formação da vontade e expressão ideológica
reportagem foi caindo para um segundo plano. de acordo com seus interesses. Subjacente nos
As redações passaram para um novo patamar de escritos dos clássicos da social democracia, a
sociabilidade. O regramento da atividade se enri- tese aparentemente começou a ser explorada de
jeceu, com o surgimento dos manuais de redação, maneira mais sistemática por Heinrich Wuttke,
a formação especializada e outras exigências de Karl Kraus, Upton Sinclair e George Seldes,
profissionalização que não tiveram outro sentido para ser elaborada teoricamente nos escritos de
senão se acentuar mais tarde, quando o jornalis- Norman Angell e Antonio Gramsci.
mo passou a ser praticado nas empresas de rádio, Para o primeiro autor, os jornais são “meios
revista e televisão. públicos de informação, de seleção e apresentação
dos fatos que chegam às pessoas, de provimento
Poder à forma de saber do conhecimento que determinará sua opinião
Quando se busca entender como esse e atitude política”, cujo controle e emprego,
processo se estruturou teoricamente, construir entendido em termos de “instrumento”, está
os conceitos que permitam esquematizá-lo em “nas mãos de uma pequena claque de grandes
termos mais abstratos, a pesquisa via de regra capitalistas, estreitamente ligada em interesses
se depara com uma ou outra versão ou teoria (via a publicidade) aos demais grupos de
do que chamaremos de paradigma do 4º. Poder. capitalistas”. Afinal, remata o segundo,
Oriundo talvez de Burke (1787) e popularizado
por Carlyle (1841), o termo surgiu com sentido O exercício normal da hegemonia [de uma
ambíguo entre os intelectuais conservadores, para classe social], no terreno clássico do regime
indicar a influência da imprensa no processo de parlamentar, caracteriza-se pela combinação
da força e do consenso, que se equilibram
formação da opinião pública e na condução dos variadamente, sem que a força suplante o
negócios políticos de nosso tempo. A consagração consenso, ou melhor, procurando obter que a
do princípio, contudo, foi obra dos pensadores força pareça apoiada no consenso da maioria,
liberais. expresso pelos chamados órgãos da opinião
Para eles, os periódicos populares, sempre que pública – os jornais e as associações8.
não são controlados pelo estado, cumprem um
papel vital para a sociedade, que é o de fiscalizar Deixando de lado a tarefa que seria recons-
as ações dos governantes. Através da imprensa, truir a trajetória desse entendimento conjunto
a sociedade as traz à luz, mantém sob controle e durante o último século, verifica-se que sua raiz
faz saber aos seus agentes seu pensamento sobre comum, qualquer que seja a versão, é a atribui-
os assuntos de interesse público. “Tornou-se uma ção à imprensa de um poder mediador sobre a
trivialidade política afirmar que quem governa o condução dos assuntos políticos da sociedade.
mundo é a opinião pública” e que esta é formada Entre os pensadores liberais, os periódicos seriam
“por homens que estão mais ou menos à altura expressão do poder da sociedade civil sobre o es-
dos demais e que se dirigem a esses últimos por tado, enquanto seus antípodas socialistas argúem
meio dos jornais”, dizia Stuart Mill, em 18597. que eles antes expressam o poder dos grupos do-
Quando a era liberal entrou em colapso, na minantes, senão sobre o estado, pelo menos sobre
virada para o século XX, o entendimento do poder a maioria da sociedade.
que a imprensa representava, entretanto, passou O problema com essa visão é, em primeiro,
a ter mais um sentido: os periódicos começaram a sua relatividade histórica e, em segundo, sua falta
ser visto como meios de sustentar uma política de de especificidade conceitual. O jornalismo, nin-
estado, aquela defendida por seus proprietários. guém negará, se desenvolveu a reboque do curso
Para as forças sociais emergentes, os periódicos seguido pela vida política. As folhas de vários
são, sim, expressão da sociedade civil, mas sua tipos foram por muito tempo órgãos de partidos.
O panorama, contudo, começou a mudar, há mais processo social de elaboração coletiva do conhe-
ou menos um século, e chegou ao ponto de hoje cimento comum dos agrupamentos humanos e,
não mais conhecer a figura do jornalismo político- avançando um pouco mais, da própria constru-
partidário. ção de seu mundo histórico. O jornalismo é uma
A sociedade capitalista transitou, com o tem- forma social de conhecimento que ultrapassa a
po, para uma nova etapa, em que consciência ci- base social imediata que o promoveu, isto é: o
vil e ação política, categorias fundadoras da era capitalismo, porque corresponde a necessidades
burguesa, parecem estar se tornando anacrôni- sociais mais profundas e “que, teoricamente, in-
cas. O jornalismo, sem dúvida, segue agencian- dependem das relações mercantis e capitalistas,
do processos de poder e estes se consubstanciam embora tenham sido nascidas de tais relações e
na ficção eficaz que é a opinião pública. O fato, por elas [foram] determinadas” 12.
porém, é que esta opinião, passando a ser elabo- A perspectiva, sem dúvida, representa um
rada a partir da circulação de material noticioso, avanço na reflexão sobre o jornalismo, ao lembrar,
não mais surge da forma que era o caso quando a seu modo, que este, antes de ser uma agência
o centro das atividades jornalísticas era o texto de poder político, é uma mediação da consciência
doutrinário9. cotidiana. A abordagem também possui o mérito
Dentro do novo contexto e contrapondo-se a de ser afinada em termos de consciência histórica,
essa visão, predominante do ponto de vista do salientando o fato de que esse entendimento se
conjunto das reflexões sobre o assunto, surgiu aplica, sobretudo, para as formas de jornalismo
com o tempo um outro paradigma de entendi- contemporâneo. O enfoque só se aplica com pre-
mento do jornalismo. A revolução empresarial juízo ao jornalismo clássico, em que predomina o
que o subordinou à racionalidade mercadológica, discurso literário, o texto de opinião e a perspecti-
consagrando o estilo noticioso, impactou também va doutrinária. O compromisso com a elaboração
em suas formas de reflexão. Desde sua consoli- do conhecimento comum que nele se apresenta é
dação, o jornalismo fora visto em seu significado próprio de sua etapa avançada, do momento em
coletivo, sobretudo, sob a ótica da filosofia políti- que ele se organiza como empresa e se insere no
ca e, assim, como prática inserida no campo das âmbito do capitalismo massificado.
relações de poder entre estado e sociedade. Cou- O problema com essa visão, contudo, se apre-
be a Adelmo Genro Filho, entre outros, talvez, senta e, em nosso entendimento, consiste em seu
sistematizar uma mudança de perspectiva para o déficit de reflexão crítica sobre o estatuto da ativi-
campo do saber e, assim, subordiná-lo a ótica da dade jornalística neste contexto. O reconhecimen-
sociologia do conhecimento. to da função cognitiva exercida pelo jornalismo
Explorando as pistas deixadas por Robert em nosso meio precisa ser considerado critica-
Park10, o autor propõe que vejamos o jornalismo mente, sem ilusões, mantido a certa distância. À
moderno, sobretudo, como uma forma de conhe- sociologia do conhecimento que lhe subjaz cabe-
cimento da realidade. O conhecimento especiali- ria reconhecer que o saber, tanto quanto o poder
zado oriundo das ciências e que permanece em agenciado pelo jornalismo é, agora, articulado
boa parte esotérico tem contrapartida no conhe- socialmente por meio do mercado.
cimento ordinário mais ou menos livre, aberto Afinal, as comunicações, é certo, contêm um
e universal proporcionado pelas atividades jor- momento de liberdade, permitindo ao indivíduo
nalísticas. Os profissionais de imprensa ainda elaborar seu próprio conhecimento, pensar suas
hoje professam a filosofia espontânea de que seu próprias idéias, não professar o credo dominante
trabalho consiste apenas no registro imediato mas, por outro lado, são expressão de relações
dos fatos e em seu relato empírico para o público objetivas, que modelam sua existência e pensa-
supostamente interessado, conforme certos prin- mento, antes mesmo dessas idéias chegarem à
cípios, que seriam, em resumo, a objetividade, a sua consciência, sendo parte ou momento daquilo
imparcialidade e o equilíbrio de pontos de vis- que, recorrendo à linguagem conceitual, estamos
ta11. chamando de sistema da indústria cultural.
O jornalismo, porém, chama à atenção esta Adelmo Genro teve o mérito de recuperar
escola, é bem mais que isso, se levarmos em conta o caráter e explorar com seriedade o aspecto
seu modo de inserção na estrutura social mais cognitivo contido na atividade jornalística. Para
abrangente. A consideração do assunto desde este ele e seus seguidores, o jornalismo é uma forma
ponto de vista o converte em uma mediação do de produção de conhecimento, tanto quanto
pela via dos veículos sérios. A notícia, em algum uma categoria abstrata e sem sentido histórico
grau, impunha-se politicamente e, mais tarde, determinado. O fenômeno, noutros termos, não
como instrumento de acesso mais pluralista ao pode, no caso, ser entendido fora da tendência “às
conhecimento sobre o que acontecia à socie- informações se converterem em bens de consumo,
dade. produzirem um certo prazer, ou melhor: um
Conforme o capitalismo foi se expandindo prazer substitutivo, entre aqueles para as quais
quando da virada para o século XX, radicalizando estão destinadas”20.
a competição e formando mercados massivos, isso Durante muito tempo criticou-se o jornalismo
se alterou, de modo que, atualmente, sua situação por certas características que, na verdade, lhe
tende, em vez disso, a fazer do jornalismo “um são intrínsecas, enquanto for jornalismo e, assim,
meio de regulação e integração sistêmica à categoria da era capitalista. A fragmentação,
sociedade”. Os processos de formação da opinião efemeridade, superficialidade, imprecisão, per-
e síntese do conhecimento ordinário não somem sonalismo, estereotipia, seletividade da notícia,
de vista, mas retiram-se para os bastidores e já para ilustrar, não são expedientes para manter a
não refletem uma opinião formada em condições alienação da consciência. A notícia é uma forma
de baixa pressão. de informação mas, antes disso, é uma categoria
Atualmente, eles estão subordinados à pu- oriunda da economia de mercado e que se ela-
blicidade de opiniões ou opinião publicada dos bora de acordo com a dinâmica do capitalismo.
grupos de pressão mais organizados. As políticas A cobertura e a reportagem jornalísticas, sem-
editoriais são cada vez mais influenciadas não pre que não se resumem a amontoados de
apenas pelos resultados e análises das pesquisas notícias, preservando a profundidade e/ou a
de mercado, mas pelos conceitos e práticas merca- espontaneidade, provavelmente transcendem esse
dológicas, a ponto de a habilidade em saber fazer registro, mas ainda hoje são formas possuidoras
negócios ter se tornado um elemento altamente de menor ressonância no ambiente espiritual de
valorizado neste mercado profissional17. nosso tempo.
O jornalismo, ninguém discute, continua Da categoria, portanto, não se deve esperar
sendo uma prática formadora de conhecimento mais do que ela pode oferecer: pretender que
comum em escala de massas e, portanto, um fator ela passe sem as feições acima citadas seria o
de esclarecimento. O conceito de informação com mesmo que pedir pelo seu desaparecimento. A
que ele passou a operar no século passado é algo reivindicação, é claro, pode ser feita e defendida:
que não se esgota no plano dos fatos, sempre o jornalismo não necessariamente morreria
que o sujeito não perde o poder de reflexão com seu atendimento, mas não é isso o que
sobre a matéria. O relato noticioso sobre os fatos está em questão neste artigo. O principal aqui
é um produto cultural que, contrariamente ao é sublinhar que o problema do jornalismo não é
pretendido às vezes, “certamente possibilita um a particularidade do saber que ele difunde, mas
melhor juízo a seu respeito do que quaisquer antes a forma como ele a elabora, dependente,
longos discursos [doutrinários]”18. em última instância, do movimento da indústria
cultural.
Desde o affaire Dreyfus até o escândalo Conforme o capitalismo avança e se enraíza
Watergate, embora esporádico não deixa de na vida humana, tudo isso, aliás, não faz senão
ser notável o influente papel dos meios de se aprofundar, e prova disso são não apenas a
informação no controle da administração
crescente abstração do processo de elaboração
dos assuntos públicos. Quem não é capaz de
compreender isso, precisa saber que isso se desse saber quanto à própria vinculação desse
acha em profundo conflito com os estereótipos saber aos esquemas mais artificiosos com
ingênuos que julgam os meios de informação que a sua prática articula o mundo para a
como simples agências de reprodução do consciência. A reflexão crítica em jornalismo
sistema de dominação estabelecido19. começa pelo reconhecimento de suas categorias
fundamentais, listadas mais acima, e se prolonga
Contudo, isso não pode ser entendido de com o estudo e análise de suas excrescências
maneira abstrata. O conhecimento público e passíveis de alguma problematização prática,
imediato que as atividades jornalísticas nos como o são o sensacionalismo, o partidarismo, a
proporciona precisa ser situado em seus diversos espetacularização, o oficialismo, o vedetismo e a
contextos de intervenção, abstraído dos quais é artificialização (criação de factóides)21.
O problema, para ela, portanto, não é o pre- Quando alguém diante de uma ocorrência
sente declínio dos jornais impressos, porque fala: “chamem a imprensa”, como se diz, isso
não é o veículo que define uma prática, e sim o significa: o ocorrido, no limite, deve ser conhecido
contrário. O jornalismo é função de determinadas por toda a sociedade mas, mais especificamente,
relações sociais, cujos suportes acompanham o a sociedade capitalista. A expressão, na realidade,
seu progresso tecnológico, tanto quanto os demais significa: a sociedade capitalista ou setores dela
eixos. A linha de força que as puxa, contudo, não desejam que as ocorrências em questão sejam
é sem sentido objetivo: ela é, no caso, a linha de conhecidas. As regras, o alcance e o sentido
força da indústria cultural, cujos efeitos nesse dessa profissão, no entanto, variam conforme as
campo, na atualidade, vão além da diluição relações sociais, sob o impacto do contexto mais
generalizada, embora não total, da distinção entre abrangente, se desenvolvem.
jornalismo sério e leve (sensacionalista) que se Agora, verificamos, acontece, cada vez mais,
origina do século XIX. de os sujeitos começarem eles todos, sempre que
Neste novo momento, virtualmente pós- possível, a se conduzir de modo a serem notícia
moderno22, acontece de o jornalismo redirecionar ou tentarem criar, via os esquemas da indústria
seu foco e se reestruturar em valores, passando cultural, fatos jornalísticos. O fetichismo da
a mesclar-se com a publicidade e a se orientar mercadoria se amplia e toma conta de sua ação
no sentido do entretenimento. Os veículos que de uma forma mais criativa: os fatos “são cada
não se sabe mais se praticam o jornalismo ou vez mais ou provocados pela própria imprensa
o show de variedade se projetam numa nova ou construídos para que a imprensa os utilize”25.
esfera, que a falta de conceito melhor, se chama Os princípios do marketing se transladam para o
de infoentretenimento23. plano individual, retirando a prática da publicity
Neste âmbito, as categorias pelos quais se do segundo plano a que lhe havia relegado o
orientava (sério e leve), tomadas isoladamente, desenvolvimento das relações públicas oriundas
caducam. As empresas passam a ir para além do das organizações.
mero empacotamento de notícias para colocação A convergência dos meios de comunicação e
no mercado. A possibilidade de interferir na o seu reprocessamento ou apropriação em bases
realidade e fabricar deliberadamente certos fatos, cada vez mais moleculares observados atualmente
entrevista tantas vezes no passado24, deslancha. via as redes sociais da internet não são, por isso,
O jornalismo se deixa envolver pelo movimento senão a base de amparo e socialização da chegada
mercadológico mais amplo de criação e difusão à maturidade da cultura de consumo e do saber
de factóides que toma conta da sociedade e se mercadológico, do império da indústria cultural
manifesta em todos os campos, mas, sobretudo, e do triunfo do sistema capitalista.
no noticiário sobre as chamadas celebri- Nesse contexto, o conhecimento público se
dades. esvai de conteúdo conscientizador em termos
Dizendo isso, ninguém aqui está pensando políticos, econômicos e intelectuais e, no limite,
que os jornais, em algum momento, limitaram-se se reduz em sentido à diversão, passando a
a reproduzir fatos, porque fatos (jornalísticos) só girar em torno de referências fantasmagóricas,
há a partir do momento em que o processo social cujo único ou principal meio de contato com a
se imobiliza (parcialmente) pela ação da notícia, experiência cotidiana tende a ser o do consumo
da reportagem, da cobertura jornalística. Os mercantilizado. Porém, não é só: esse fenômeno
acontecimentos (jornalísticos) são tais porque o se explica e complementa pelo fato de, agora,
jornalismo assim os construiu para a consciência o problema enfrentado pelo indivíduo não
social: eles não são o real mas, antes, uma ser mais a falta, mas antes o excesso de infor-
realidade jornalística. Ainda com isso em mente, mação.
convém pesquisar e distinguir analiticamente, A crescente capilarização das fontes de in-
porém, os casos em que eles se originam da formação, exponenciada sempre mais pela in-
realidade (natural, histórica) e os casos em que ternet, é o indicador mais notável de um pro-
eles se originam imanentemente apenas das cesso cujo efeito principal, do ponto de vista
necessidades da indústria jornalística, senão das geral, talvez seja a paralisação de sua apropria-
estratégias com que os setores mais poderosos ou ção criativa e concreta, o bloqueio da elaboração
bem aparelhados a instrumentalizam, via os seus produtiva do conhecimento por parte do indi-
serviços e assessorias de comunicação. víduo26.
escapa ao sistema e revela-nos um mundo tal KRAUS, Karl. En esta gran época. Buenos Aires: Zorzal, 2008.
como ele não deseja ser visto e vivenciado29. A LIPPMANN, Walter. Public Opinion. New York: Harcourt,
prática da indústria cultural não está isenta de Brace, 1922.
sua manifestação, e o espaço privilegiado em que MARCONDES, Ciro. Jornalismo fin-de-siècle. São Paulo:
Scritta, 1993.
isso intervém e é elaborado, junto do que deriva
MARSHALL, Leandro. O jornalismo na era da publicidade. São
dos conflitos históricos, parece-nos ser o que hoje Paulo: Summus, 2003.
se conserva como sendo o próprio da atividade MCMANNUS, James. Market-driven journalism. Thousand
jornalística espontânea e criadora. Oaks (CA): Sage, 1994.
A circunstância de seu exercício estar cada vez MEDITSCH, Eduardo. O conhecimento do jornalismo. Floria-
mais fundido com aquela prática não a blinda aos nópolis: Editora da Ufsc, 1992.
acidentes naturais e aos antagonismos humanos MILL, Stuart. Sobre la libertad. Buenos Aires: Aguilar, 1954.
– por isso, sempre que possuir um elemento PARK, Robert. A notícia como forma de conhecimento
espontâneo, o jornalismo poderá ensejar um [1940]. In: Charles Steinberg (Org.) Meios de comunicação de
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conhecimento potencialmente emancipatório para
o indivíduo numa sociedade prisioneira do fetiche RIBEIRO, Jorge. Sempre alerta. São Paulo: Brasiliense, 1995.
da mercadoria, sobretudo se encontrar elaboração RÜDIGER, Francisco. Crítica. In: Ciro Marcondes Filho
(Org.). Dicionário da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2009,
epistêmica e, portanto, esclarecimento sensível p. 83-84.
e intelectual em uma ação séria e responsável, SCHUDSON, Michael. Discovering the news. Nova York: Basic
necessariamente auxiliada por alguma mediação Books, 1978.
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media criticism. Dallas: Black Rose, 2006. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 15.
2 O criticismo proposto nestas páginas é o de uma reflexão
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar,
1997. imanente à situação histórica, a nossa, e não o de uma
BURKE,Peter. Uma história social do conhecimento. Rio de atitude abstrata e propositiva em relação ao jornalismo. A
Janeiro: Zahar, 2003. crítica é uma atividade que costuma ser vista em termos
de confronto com seu objeto, senão de oposição a ele, em
DRÖGE, Franz. Wissen ohne Bewusstsein. Frankfurt: Fisher, nome de certos ideais. O problema é que tal atitude caduca
1972. totalmente a partir do momento em que não há ponto de
GENRO, Adelmo Filho. O segredo da pirâmide. Porto Alegre: apoio alternativo para ela fora do que está na consciência
Tchê, 1987. reflexiva de uma minoria pensadora da cultura e da
GOULDNER, Alvin. La dialéctica de la ideología y la tecnología. história, como é o caso quando a prática da indústria
Madri: Alianza, 1978. cultural se converte em sistema.
3 Adorno, T. Bajo el signo de los astros. Barcelona, Laia, 1986,
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o estado moderno.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 120-121. Cf. Franz Dröge: Wissen ohne Bewusstsein.
Frankfurt: Fisher, 1972. Marino Livolsi elabora o ponto
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de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. Manuale di sociologia della comunicazione. Bari: Laterza,
HARTLEY, John. Popular reality: journalism and popular 2000.
culture. Londres: Arnold, 1996. 4 Por conhecimento não é entendida aqui a síntese ou resul-
KARAM, Francisco. A ética jornalística e o interesse público. São tado especializado da relação sujeito e objeto, conforme
Paulo: Summus, 2004. estabelece a gnosiologia tradicional. A expressão refere-se,
antes de tudo, à consciência imediata de compartilhamen- intelectual, ainda que mórbida, despertada por um fato
to de um mundo: ao conjunto de referências práticas e enigmático passível de agenciamento narrativo (ainda
intelectuais que estrutura e orienta, só ás vezes inovado- que fragmentariamente). Atualmente, “quase tudo está
ramente, a conduta e o pensamento cotidianos de uma a serviço da informação” (Benjamin), mas ainda resta,
coletividade em um dado momento histórico. mesmo em meio a tanto, “algo a serviço da narrativa” (cf.
5
Habermas, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Hartley, John. Popular reality: journalism and popular culture.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 215. A obra é Londres: Arnold, 1996).
objeto de várias discussões em Craig Calhoum (Org.) 13 A consciência crítica não nega que se formem grupos de
Habermas and the public sphere. Cambridge (MA): MIT interesses e que esses, possuindo ou não seus próprios
Press, 1992. meios, eventualmente os usem para tentar manipular a
6
Cf. Schudson, Michael. Discovering the news. Nova York: visão do público – mas daí não tira a conclusão de que esse
Basic Books, 1978. emprego costuma ser bem sucedido e que, na hipótese
7 Mill, Stuart. Sobre la libertad. Buenos Aires: Aguilar, 1954, de ser o caso, o resultado é puro e simples efeito daquela
p. 136. manipulação.
14 Cf. Peter Burke: Uma história social do conhecimento. Rio de
8
Angel, Norman. The press and the organisation of society.
Londres: Labour Press, 1922, p. 12. Gramsci, Antonio. Janeiro: Zahar, 2003.
Maquiavel, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro: 15
Cf. Peter Sloterdijk: Critique of cynical reason. Londres:
Civilização Brasileira, 1980, p. 116. Cf. Heinrich Wuttke: Verso, 1988.
Die Deutschen Zeitschriften und die Entestehung der 16 Ribeiro, J. Sempre alerta. São Paulo: Brasiliense, 1995.