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PESQUISA EM PSICANÁLISE:

ALGUMAS IDÉIAS E UM EXEMPLO1

Luís Claudio Figueiredo* e Marion Minerbo**

RESUMO

Inicialmente, os autores diferenciam pesquisa em psicanálise de pesquisa com


o método psicanalítico. No primeiro caso, a psicanálise é o objeto da pesquisa, e o
pesquisador não precisa ser um psicanalista atuante. Pode ser um filósofo, um
historiador, um sociólogo ou um crítico literário. No segundo caso requer-se um
psicanalista. Após a pesquisa, o objeto, o sujeito (o pesquisador) e seus meios de
investigação (conceitos, técnicas) são transformados. Em seguida, o procedimento
é minuciosamente exemplificado pela análise de uma entrevista. Nas considerações
finais, considera-se, ao lado da dimensão investigativa, a dimensão terapêutica da
pesquisa, bem como o seu campo de validade.

Palavras-chave: Pesquisa em psicanálise. Pesquisa com o método psicanalítico.


Análise psicanalítica de entrevista.

Introdução

Todos nos lembramos das palavras de


1
Uma parte do presente texto, assinada Freud: a psicanálise, simultaneamente, é (1) um
por LCF, integrou uma resenha publi- procedimento para a investigação de processos
cada na Revista ide; outra parte, escrita mentais inconscientes (inacessíveis a outras for-
por MM (que agradece a interlocução
de Cintia Buschinelli), foi publicada, mas de pesquisa), (2) um procedimento terapêu-
em co-autoria com Giuliana Gouveia tico e (3) um conjunto de conhecimentos em
(responsável pela realização da entre- contínua expansão e reformulação sobre seu ob-
vista), no livro Adolescência e violên- jeto. Sabemos também da preocupação freudiana
cia, organizado por David Léo Levisky.
Ambas foram transformadas para com-
em não subordinar as atividades clínicas terapêu-
por o presente trabalho e a elas se acres- ticas, em seu livre curso, a metas especificamente
centaram partes novas escritas a quatro científicas — procura obstinada de conhecimen-
mãos. to —, embora tais processos estejam e precisem
*
Psicanalista, professor da PUC-SP e
da USP.
estar bem articulados. Muito do que conhecemos
**
Psicanalista, Membro Efetivo e Ana- da clínica freudiana vem dos seus historiais, em
lista Didata da SBPSP. que a dimensão de pesquisa e comunicação (fre-

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qüentemente colorida por razões políti- gem ou ausente, não sendo levada em
cas e polêmicas) era dominante e elabo- conta, por exemplo, nos momentos de
rada após o término do tratamento. Pouco avaliação: pode-se dar 10 a uma tese de
sabemos, na verdade, das centenas de doutorado sem considerar se o candidato
casos clínicos conduzidos por ele. Ou é um bom clínico, se é que exerce a
não parecem ter despertado sua maior clínica de forma significativa e minima-
atenção “científica”, ou não lhe serviam mente satisfatória. Um doutor em teoria
para a afirmação ou confirmação de suas psicanalítica pode muito bem ser um zero
posições no campo psicanalítico. Assim, à esquerda em psicanálise ou nem isso:
não vieram a se tornar peças ilustrativas um mero letrado curioso. Não há nenhum
nem de sua técnica, nem de suas idéias, critério universitário que permita discri-
nem de suas descobertas ou invenções minar entre um psicanalista e um interes-
conceituais. O que sugere que uma certa sado em psicanálise. Ambos podem tirar
distinção entre o Freud clínico e terapeu- 10 ou ser reprovados diante de uma banca.
ta e o Freud produtor de conhecimento Cabe perguntar diante de tanta
deve ser mantida, mesmo com a ressalva pesquisa em psicanálise: será que isso
de que na psicanálise pesquisa, prática existe? Ou, ao menos, existe como algo
clínica e teoria caminham juntas. merecedor de uma atenção tão concen-
Dito isso, o que ele poderia pensar trada? Será que nesta estranha segrega-
ao ver a “pesquisa em psicanálise” — o ção de uma das três facetas da psicanálise
que inclui, mas não se confunde com a de forma a que, isolada das demais, venha
“pesquisa com o método psicanalítico” a receber um grande investimento de
— ganhar a extensão que veio conquis- tanta gente e de parcelas ponderáveis de
tando no mundo e, em especial, no Bra- nossos dispositivos educacionais ainda
sil? É bem provável que, ao dizer que a há psicanálise viva? Será que a psicaná-
psicanálise é ao mesmo tempo as três lise tem algo a ganhar com tais, aparente-
ordens de processos e fenômenos acima mente aberrantes e desgarradas, ativida-
mencionados, não lhe passasse pela ca- des? O que se faz quando se pretende
beça a produção em grande escala de estar fazendo “pesquisa em psicanálise” e,
pesquisas tais como observamos, por mais especificamente, quando se está “pes-
exemplo, em diversos cursos de pós-gra- quisando com o método psicanalítico”?
duação no país e no exterior (França, Chamemos de “pesquisa em psi-
Estados Unidos e até Inglaterra). Mesmo canálise”, no sentido amplo, um conjun-
ao sugerir uma certa distância entre pes- to de atividades voltadas para a produção
quisa e clínica, talvez não lhe ocorresse a de conhecimento que podem manter com
possibilidade de existência de sistemas a psicanálise propriamente dita relações
de produção em série de pesquisas em muito diferentes. Em certas circunstânci-
que a dimensão terapêutica está à mar- as, por exemplo, observa-se uma respei-

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tosa distância: ora as teorias da psicaná- investigação e, aqui entre nós, repousa-
lise tornam-se “objeto” de estudos siste- rão para sempre na paz das bibliotecas
máticos, ora de estudos históricos, ora de universitárias, passada a festa da aprova-
reflexões epistemológicas; outras vezes, ção, garantido o diploma.
alguns conceitos psicanalíticos são mo- Disso se diferenciam as “pesqui-
bilizados como instrumentos para a in- sas em psicanálise com o método psica-
vestigação e compreensão de variados nalítico”, em que a exigência de presença
fenômenos sociais e subjetivos. Em ne- do psicanalista enquanto psicanalista é
nhuma destas modalidades de pesquisa incontornável, embora seus temas e al-
em psicanálise requer-se um psicanalista cances possam ser bastante amplos. Pes-
atuante. Estudos do primeiro tipo podem quisas em psicanálise com o método psi-
muito bem ser realizados por filósofos ou canalítico podem ter como alvo, entre
historiadores; trabalhos do segundo tipo outros, processos socioculturais e/ou fe-
podem ser feitos por críticos literários, nômenos psíquicos transcorridos e con-
teóricos da cultura, sociólogos, pessoas templados fora de uma situação analítica
bem-intencionadas em geral etc. Num no sentido estrito (embora também aí se
caso, algum aspecto da psicanálise — em constate uma dimensão clínica e se ob-
geral, suas idéias, mas eventualmente, servem efeitos terapêuticos, como se verá
suas práticas — é objeto de exame; no no caso da análise da entrevista que será
outro caso, a psicanálise é usada como apresentada a seguir).
um arsenal de idéias e conceitos que, mal Aqui desaparece a respeitosa dis-
ou bem manejados — muitas vezes, na tância entre “pesquisador” e “referencial
verdade, bastante mal, dada a distância teórico” para dar lugar a um corpo-a-
existente entre eles e os pesquisadores — corpo do qual a psicanálise, Deus seja
, deveriam lançar alguma luz sobre fenô- louvado, não sairá tal como entrou. Isso
menos e processos da cultura. Algumas é, aliás, digno de nota: na academia ou
vezes, mas não sempre, tais pesquisas em fora dela, uma “pesquisa com o método
psicanálise são divertidas, úteis e de inte- psicanalítico” é sempre obra de psicana-
resse para um vasto público letrado. Quan- lista e capaz de trazer novidades à própria
do isso acontece, expande-se e reforça-se psicanálise.
a “cultura psi” no campo social, o que não A especificidade da pesquisa com
deixa de ser bom, ao menos em termos o método psicanalítico, esta que requer o
mercadológicos. Às vezes, tais trabalhos psicanalista em atividade analítica, é
chegam a ser úteis até mesmo para psica- marcada por diversas características a
nalistas, embora raramente sejam indis- que aludiremos em seguida.
pensáveis na formação de um profissio- A relação sujeito e objeto em uma
nal do ramo. Muitas pesquisas acadêmi- pesquisa tal como concebida nas ciências
cas ilustram bem estas modalidades de naturais e nas ciências sociais ou huma-

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nas implica um sujeito ativo debruçado se realizada na condição de filósofo e que


metodicamente sobre seu objeto, munido fora seu mestrado (Mezan, 1985, p. 638)
de conceitos, instrumentos e técnicas de — “de me fabula narratur”; esta história
descoberta e de verificação — ou refuta- fala de mim pode ser o mote do pesquisa-
ção — de suas hipóteses. Não é bem dor psicanalista em todas as etapas de seu
assim nas relações entre o psicanalista, trabalho, que o vai alterando lentamente
suas “teorias” e seus “objetos”. A entrega e, às vezes, abruptamente. Aliás, o con-
do “pesquisador” ao “objeto”, o deixar- fronto entre o mestrado e o doutorado de
se fazer por ele e, em contrapartida, cons- Renato Mezan, ambos excelentes, serve
truí-lo à medida que avançam suas elabo- para diferenciar os estatutos de dois tipos
rações e descobertas faz desta “pesquisa” de trabalho com o texto freudiano: no
um momento na história de uma relação mestrado, obra de filósofo (ou teólogo), o
que não deixa nenhum dos termos tal texto de Freud (sagrado) é verdadeira-
como era, antes de a própria pesquisa ser mente “objeto” de exegese e pode ser útil
iniciada. Isso é mais óbvio em uma situ- ao estudioso da teoria freudiana sem che-
ação “terapêutica”, mas a atitude clínica gar a ser indispensável na formação do
pode se manifestar em outras condições e psicanalista; no doutorado, as relações se
sempre terá como efeito a transformação complicam e se instala o aludido corpo-a-
das partes em jogo, o “objeto” e o “sujei- corpo em que Renato, Freud e a cultura
to” da pesquisa, tal como se verá no ocidental se engalfinham com efeitos bem
exemplo de investigação psicanalítica mais interessantes e muito mais formati-
apresentado a seguir, uma análise de en- vos. Pois também o “objeto” e a própria
trevista. “teoria” passam pelo mesmo processo de
Mas qual a natureza da transfor- transformação sofrido pelo pesquisador
mação do objeto? Interpretar significa ao longo da pesquisa com o método psi-
olhar para o fenômeno investigado fora canalítico. Indo além, a pesquisa com o
de seu campo habitual. O olhar do psica- método psicanalítico é tanto um momen-
nalista é um olhar fora da rotina, que to na história do “objeto” (no caso do
desopacifica o objeto. Ele ressurge dife- exemplo abaixo, um momento para a
rente, desconstruído, transformado. O entrevistada poder se sentir escutada e
sujeito também se transforma na medida cuidada, embora não se estivesse prati-
em que se torna capaz de ver coisas que cando com ela uma psicanálise clínica),
não via antes. quanto na história do “pesquisador” (a
Como sublinha reiteradamente intérprete da entrevista vai claramente
Renato Mezan em sua tese de doutorado deixando-se embalar no processo e ga-
(Mezan, 1985), uma magistral pesquisa nhando uma desenvoltura de escuta e
com o método psicanalítico que tanto se interpretação inexistentes no início), e as
diferencia de sua pesquisa em psicanáli- transformações que a pesquisa engendra

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vão além das relações específicas que acederia sem o concurso do leitor que
estes elementos entretêm ao longo da responde, do seu modo, a tal apelo. Passa
“pesquisa”. O “objeto” — seja um paci- a existir assim, a cada boa leitura, na
ente, uma comunidade, uma formação da condição de texto descoberto e inventa-
cultura, um texto — não sai incólume do, como na lógica do paradoxo que
quando submetido a uma atividade de Winnicott elabora para tratar dos fenô-
“pesquisa” deste tipo, que, por outro lado, menos transicionais. O mesmo pode-se
ele mesmo convocou. Que um paciente dizer do depoimento colhido em uma boa
forme seu próprio analista e a escuta entrevista: descoberto e inventado pela e
analítica que o acolhe e reflete não nos na interpretação analítica.
espanta. Mas o mesmo pode ser dito de Ou seja, o “objeto” do psicanalista
uma obra pictórica, de um filme, de um goza deste mesmo estatuto ambíguo —
padrão sociocultural, de uma pessoa “sim- objetivo-subjetivo — próprio do que é
plesmente” entrevistada e realmente “ou- humano. Mas, em contrapartida, o inte-
vida” ou de um texto realmente lido e isso resse e os pressupostos (ideológicos e,
faz com que a atividade cognitiva e afeti- principalmente, teóricos e simbólicos)
va que tais “objetos” produzem e indu- com que o pesquisador entrega-se e diri-
zem faça parte de suas potencialidades de ge-se a tais “objetos” fazem da pesquisa
realização, expressão e autoconhecimen- que enceta também uma parte de suas
to. O leitor de um texto, por exemplo, transformações possíveis. A história do
responde ao apelo de leitura que tal peça pesquisador psicanalista não seria a mes-
constitui e ao responder seriamente a tal ma sem estas passagens e desvios pelos
demanda — ao ler com devoção, cuidado seus “objetos” e pelas interpretações que
e liberdade o texto — dá a ele novo suscitam.
fôlego, novas possibilidades interpretati- Estamos nos referindo, natural-
vas, novo futuro. Um texto, ao ser bem mente às relações transferenciais (e seus
lido, renova-se e sai da experiência de equivalentes2) e contratransferenciais que
leitura em direção a um porvir que, por dão a marca da singularidade ao que se
outro lado, fazia parte, como possibilida- descobre e ao que se inventa e cria em
de, do que o texto já “era” mas a que não uma “pesquisa com o método psicanalíti-

2
Nas relações entre o texto e seus leitores, há transferência a partir dos dois lados: o leitor atribui saber
ao texto a que se dedica e o escritor atribui, antecipadamente, o poder de leitura e decifração aos leitores
que, eventualmente, ainda nem existem, vindo a ser criados e inventados pelo próprio escritor através dos
textos que oferece. No caso da entrevista apresentada a seguir, nos termos de André Green (Green, 2002),
é nítida a transferência da depoente sobre as palavras e sobre o objeto (a entrevistadora, profundamente
afetada pelo que vê e ouve). A transferência sobre as palavras é a condição precisa da análise
psicanalítica deste material, mas a transferência sobre o objeto é o que abriu — na forma de uma
contratransferência — o horizonte da interpretação.

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co”. Chamaríamos, assim de “pesquisa ar de sua graça, é sempre ilusório. Já os


com o método psicanalítico” uma ativi- momentos de descoberta e invenção cri-
dade em que se constituem e se transfor- ativa predominam na psicanálise e neles
mam “objetos”, “pesquisadores” e “mei- o entrejogo das duas lógicas em regime
os” ou “instrumentos” de investigação de suplementaridade é decisivo: não há
(conceitos, técnicas etc). descoberta do inesperado e invenção do
Em acréscimo, nestas atividades novo sem as irrupções inspiradas dos
operam necessariamente e de forma su- nossos subterrâneos anímicos e corpo-
plementar as duas lógicas (ou duas for- rais. Na análise da entrevista que se se-
mas de ser) a que se refere Matte-Blanco: gue, nem o material analisado fundamen-
a lógica dos processos secundários — a ta e justifica cabalmente as interpreta-
da consciência e da razão — e a lógica do ções, nem estas explicam de forma indis-
inconsciente, a dos processos primários e cutível o depoimento: trata-se de um traba-
emoções, interligadas e, não apenas, mas lho de descoberta/invenção que se ali-
ao invés disso, incomensuráveis. Isso será menta do depoimento e, em contraparti-
verdadeiro, provavelmente, em toda ati- da, o enriquece e abre para dimensões
vidade criativa e, no caso de uma pesqui- psíquicas, individuais e sociais, inespe-
sa, dá conta da dimensão criativa do radas.
descobrir e, principalmente, do inventar. Pois bem, as duas características
Contudo, nas pesquisas ditas acadêmi- até aqui apontadas se articulam: é porque
cas, o momento da demonstração tende a as duas lógicas se mesclam sob a forma
predominar: prefere-se uma idéia idiota, da suplementaridade que “sujeito de pes-
desde que bem demonstrada, a uma idéia quisa”, “objeto de pesquisa” e “meios de
ousada e fecunda sem a devida demons- investigação” podem se constituir e se
tração. Daí imperar na pesquisa universi- deixar transformar, perdendo cada um a
tária a exigência da verificação e/ou da sua identidade monolítica e empedernida
refutação, o que quase sempre deixa o e existindo no regime do paradoxo: des-
psicanalista em palpos de aranha. Daí, cobertos e inventados simultaneamente.
igualmente, ser tão fácil no caso daquelas Mas será que isso em que o método
pesquisas convencionais anunciar-se cla- psicanalítico opera com tamanha inci-
ramente o quê e o como do que vai ser dência e tanta insistência deve ainda ser
feito, apresentando-se antecipadamente chamado de pesquisa? Não se prestaria
o material na forma de “projetos de pes- isso à confusão entre duas coisas total-
quisa” muito bem alinhavados e de fácil mente distintas? De um lado, temos a
compreensão por qualquer assessor dos pesquisa planejada e racional das ciênci-
chamados “órgãos de fomento”. Em psi- as modernas e, de outro, uma atividade de
canálise, ao contrário, o segmento de- descoberta e invenção característica da
monstrativo é bem pobre e, quando dá o atividade psicanalítica. Por que não assu-

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mirmos, enfim, que a psicanálise com- A estas questões poderemos retor-


porta em seu pleno exercício a dominância nar nas considerações finais sem que nos
da descoberta e da invenção criativas e que sintamos obrigados a dar a elas uma res-
a idéia de “pesquisa” veste muito melhor as posta unívoca. Passemos ao exemplo.
atividades em que descoberta e invenção A entrevista e sua interpretação,
podem até existir, mas subordinadas ao originalmente, fizeram parte de uma
momento da demonstração, da verificação monografia apresentada ao fim do curso
ou da refutação de hipóteses e teses? de especialização em psicanálise da Uni-
Indo além: será que a noção de versidade Federal de Uberlândia3, que
“método” é a que mais se afina com a um de nós (MM) teve a oportunidade de
mútua constituição e transformações de orientar. A autora partia da observação
objeto, sujeito e meios e com a primordi- de um fenômeno que a intrigava: por que,
al “entrega não mediada ao objeto”, sem mesmo tendo as informações necessárias
a qual não se exerce a psicanálise? Não à prevenção da AIDS, uma alta porcenta-
seria a psicanálise ela mesma uma matriz gem de mulheres se deixa contaminar
de estratégias de investigação (Minerbo, pelo HIV? Sua hipótese era de que há
2000) mais do que um “método de pes- outros fatores — quais? — que tornam a
quisa”, considerando-se o quanto a no- informação insuficiente. Optou, então,
ção de “método” está, desde Descartes, por entrevistar uma mulher nestas condi-
comprometida com a pretensão do ho- ções: tinha as informações, e estava con-
mem da modernidade de exercer um ple- taminada pelo vírus. A entrevista trans-
no controle sobre seus próprios proces- correu livremente: “Conte-me sua vida”
sos volitivos e cognitivos? Já as estraté- foi a única instrução dada à paciente.
gias vão se formando e transformando, Depois de transcrita, a entrevista
engendrando táticas e propiciando “sa- foi interpretada seguindo os mesmos pro-
cadas”, em função das condições atuais cedimentos usados na clínica psicanalíti-
em que são efetivadas; estratégias dei- ca: uma escuta flutuante, isto é, des-
xam uma larga margem para o improviso centrada do tema central, intencionado;
e para os processos primários, para as um recorte do texto privilegiando temas,
descobertas e para as invenções. A me- expressões, brechas, palavras, ou quais-
nos que se desconstrua a acepção corren- quer elementos que sirvam como cunha
te de “método”, forjada em muitos sécu- para desconstruir o texto; uma reconstru-
los da cultura ocidental, para retomar ção deste texto que permita ao analista
uma acepção mais arcaica e original do criar ali um sentido novo, inesperado,
termo, deixando de lado suas ressonânci- produzindo uma outra verdade sobre o
as modernas e “científicas”. texto. A escuta é informada pela contra-

3
Giuliana Gouveia.

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transferência, ou seja, pela maneira como nia, já esperados — do que qualquer


a entrevista, e depois o texto, interpelam desfecho feliz.
o intérprete4. Acompanharemos este pro- Na transcrição da entrevista, a fala
cesso — o pulo do gato — detalhadamente. da paciente aparece em itálico. A trans-
Antecipamos o que a interpreta- crição da entrevista é, tanto quanto possí-
ção da entrevista revelou. O processo de vel, literal, mantendo-se o estilo e voca-
contaminação, neste caso, se iniciou muito bulário da paciente.
antes da relação sexual em que a mulher
contraiu a doença. A causa da doença foi A entrevista
o ambiente familiar e social que deixou
esta paciente totalmente desprotegida e A história de minha mãe com meu pai...
vulnerável. A AIDS pode ser entendida
também como uma metáfora do modo de Para levá-la ao lugar em que deve-
vida de certas meninas/adolescentes/ ria entrevistá-la, a entrevistadora foi bus-
mulheres, transmitido de mãe para filha. car a paciente em sua casa; esta se despe-
Desde o berço, esta mulher foi exposta, de da filha pequena com um beijinho na
sem qualquer tipo de proteção, a uma boca. Ao ligar o gravador, a entrevistada
situação social altamente contaminada. recebe apenas a instrução de contar sua
Não houve, em seu cotidiano, uma matriz história de vida.
simbólica para que se construísse a noção Antes eu sabia contar minha vida
de “proteção”. Os significantes “prote- inteirinha, dava até um livro. (Agora
ger” e “ser protegida” permaneceram você não sabe?) Agora estou meio
vazios de experiência e de significação. tontinha.
Tal como o corpo sem imunidade, ela Você quer saber de quando eu era
começou a vida como uma lutadora, com mocinha ou quando eu era criança? (Eu
a esperança de vencer o destino. Foi quero saber tudo da sua história, você vai
perdendo as batalhas, uma após a outra, contando o que quiser.)
até desistir. É quando se descuidou, con- A história de minha mãe com meu
taminando-se. Sua história de vida “pe- pai vem lá do sul. Eu nasci lá, e vim para
dia” um final precoce e trágico. A AIDS cá com quatro anos de idade. Minha mãe
chegou sem surpresa, revolta ou ressenti- se casou com quinze anos e teve quatro
mento. Desta perspectiva, a doença faz filhos. Teve quatro não, teve seis, porque
mais sentido como desfecho desta vida dois gêmeos ela perdeu. Ela separou do
— como os acordes finais de uma sinfo- meu pai depois de doze anos. Era teste-

4
No caso, como se verá, algo que a entrevistadora observou antes de começar a entrevista a afetou
profundamente. Esta forte impressão passou à intérprete e instalou o horizonte antecipado de interpre-
tação em que os recortes do material foram sendo efetuados e as novas costuras foram ocorrendo.

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Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo

munha-de-jeová e fugiu para cá com a Eu sou menina direita igual a mi-


gente. Largou casa e tudo porque meu nha mãe, porque só eu puxei para minha
pai era violento, bebia e batia nela. mãe. Aí quando minha filha nasceu, com
Aqui, por incrível que pareça, mi- dois meses de vida eu fui na cadeia,
nha mãe trabalhava muito, era só ela que mostrei para ele e peguei os documentos
trabalhava. Meus irmãos mais velhos dele para registrar e disse que nunca
ficavam levando turminha em casa, fa- mais ia querer ele. Olha, para você ver,
zendo festinha, tudo quando minha mãe ele roubava e levava para casa da mãe, a
não estava. Usavam droga, maconha e mãe dele escondia droga, escondia rou-
tudo na frente das crianças — que era eu bo dele, mexia com macumba, esta coisa
e minha outra irmã mais novinha. horrível. Eu não, eu já gosto de Deus, eu
sempre rezava, eu me escondia dela todo
Menina direita, igual a minha mãe dia, lá fora, no banheiro, para rezar de
tanto medo que eu tinha daquela mulher,
Quando eu tinha treze anos, um de alguma macumba que ela pudesse fazer
rapaz malquerido me roubou e eu fugi para mim. E parece que foi mesmo, quando
com ele. (Roubou? Mas você quis ir com eu vim embora para cá, ela rogou mil e uma
ele?) Ah, eu quis, né. Dali uma semana pragas, disse que eu não ia dar certo, que
meu irmão foi me buscar, e eu não quis ir, eu não ia passar de uma prostituta, que se
quis ficar com ele, mas aí eu era mocinha eu não ficasse com o filho dela eu não ia
ainda, né, mas fiquei, mas minha mãe fez ficar com mais ninguém. Eu fiquei com
os papéis do casamento, fez eu passar medo... Eu não fiquei assim com medo, eu
pelo médico, mas os papéis caducou, nós falei, Deus é mais forte, sabe?
não casamos. Eu tenho uma filha com
este homem. Ele é dez anos mais velho do Eu sempre fui assim, uma venced... uma
que eu. Quando eu fugi com ele eu tinha lutadora
treze anos e ele tinha vinte e três. Aí a
gente se separou quando eu tinha dezes- Eu sempre fui assim, desde peque-
seis anos, foi pouco tempo, eu estava nininha fui uma venced... uma lutadora.
grávida de uns três meses de vida, ele foi Igual minha mãe. Quando eu vim pra cá
preso e larguei dele, eu já não gostava com a criança, aquela mulher (sogra) me
muito dele, eu queria largar dele, pois eu roubou a minha filha. Hoje minha filha
não gostava de drogas, destas coisas, né. mora lá com ela, ela tem doze anos. (Mas
Inclusive nesta época eu fumei até maco- como roubou?) Eu tenho seis processos,
nha com ele, mas quando fiquei grávida de seis anos que eu lutei pela minha filha,
da minha filha eu comecei a passar mal agora eu desisti tem três anos. Eu mora-
e parei e eu falei esta vida não é para va sozinha, minha mãe quando eu vim
mim. com minha filha disse que eu poderia

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ficar dois, três meses com ela, depois para lá, ganhou, levou. Eu não perdi nem
arrumar uma casa e cuidar de minha ganhei, não teve audiência, eu tenho seis
filha, pois ela não queria mais criança lá. advogados que trabalhavam para mim e
Eu teria que me virar, foi o que minha não faziam nada, todos desistiram da
mãe disse para mim. No prazo de três causa. É macumba que a velha fez.
meses, arrumei um emprego, arrumei
uma casa e fui morar sozinha, com dezes- E ele desistiu de mim
sete anos, eu e minha filhinha, mas aí eu
tinha que deixar ela com os vizinhos para Minha filha tem três anos e meio
poder trabalhar. que eu tenho, esta. Eu estava cansada de
A sogra veio de lá e pegou a meni- trabalhar e morar sozinha e disse para
na para levar, e para eu pegar nas mi- minha mãe que ia arrumar um homem e
nhas folgas. E foi assim, eu deixei ela casar, aí arrumei este namorado, que é
levar e pegava a menina de sábado e muito bom, não fuma, não usa droga, não
domingo, trazia para cá, ficava comigo, bebe muito, porque eu odeio homem que
e na segunda ela vinha buscar a menina usa droga, peguei trauma por causa dos
e levava para lá para eu poder trabalhar. meus irmãos.
Um fim de semana eu cheguei lá e ela não Este Juliano é um amor de pessoa,
quis mais me entregar a menina, que já ele tinha um irmão, aí tudo bem, comecei
tinha quatro anos e meio. namorar ele e com três meses de namoro
Aí eu fui no fórum, conversei com engravidei e olha que faz tempo que eu
uma juíza e a juíza falou para mim que eu tinha a outra menina, a outra tinha seis
deveria pegar a menina e vir embora, anos quando engravidei desta. E eu lu-
mas aí eles não deixavam. Aí, a mãe dele tando, aí eu disse que estava no meio de
falou que eu só levaria a criança da casa um processo, e disse a ele que era melhor
dela com ordem do juiz, mas eu perguntei a gente se casar logo porque aí ele me
que ordem do juiz ela tinha para estar dava uma força para eu entrar na justiça,
com minha filha. Não deixaram trazer a porque casada talvez era melhor do que
menina nunca mais e disseram que eu só mãe solteira, por causa da condição de
posso ir lá ver. Eu lutei todos estes anos, vida. Aí ele aceitou. De repente eu fiquei
mas todos os advogados que eu pegava grávida e ele veio morar junto, só que a
largavam a causa. gente não deu certo por causa do proces-
Agora eu não vou mais lá, porque so, aí o irmão dele morreu de acidente,
da última vez que fui elas queriam me morreu esmagado numa ponte, aí ele
bater. Não o pai dela, pois ele sumiu de muito triste e eu grávida, lutando para
casa, sumiu do mundo. Aí eu falei, ela ter a outra menina e ele desistiu de mim.
ganhou a causa. Ela quer levar a menina Por isso que sou mãe solteira.

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Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo

A pior coisa que fiz na minha vida disse que eu estava com AIDS, porque ou
é neném ou idosos que tem sapinhos na
Agora arrumei outro estes tempos boca. Fiz exame HIV em Ribeirão, deu
atrás. De novo falei para minha mãe, positivo duas vezes, estava muito carre-
disse que arrumaria um homem porque gado, eles tentaram me ajudar de todas
minha filhinha estava crescendo e queria as maneiras, mas demorou um pouco
arrumar um pai para ela, da outra eu minha internação, eu comecei a tomar o
desisti de lutar Aí minha mãe disse tá, coquetel no mesmo dia que deu positivo.
você é quem sabe. Aí conheci um rapaz Em agosto eu já tomava, 15 de agosto. Eu
que não fumava nem usava droga, mas vim embora para cá e passei junho e
bebia pinga. Foi a pior coisa que eu fiz na julho com ele, ele não queria me levar no
minha vida. Este homem se instalou na médico, não queria que eu fosse em Ri-
minha vida, morou comigo uns seis me- beirão, ele queria que eu morresse, você
ses e eu tentei largar, largar, largar, acha?
resultado de tudo, quando eu tentei mes- Eu vim para Jaboticabal e pedi à
mo largar dele, além de ele me tomar minha mãe para pôr meus móveis na
geladeira, fogão que compramos juntos, varanda da casa dela até eu arrumar
ele mandou eu ir na Marginal buscar um uma casa e um serviço, aí falei que estava
dinheiro e mandou uma mulher me ma- doente da barriga, ela achava estranho
tar, verdade, e ela me trancou no quarto e aquele tanto de remédio. Aí recebi oito-
me deu um monte de garrafada, queria me centos reais de seguro e desemprego,
matar, por isso eu tenho estas marcas. atrasado quatro meses, eu recebi de uma
Acho que foi ele que me passou a só vez. Aí fui no Córrego Rico, aluguei
doença (AIDS). Eu peguei até gonorréia uma casinha lá, eu e minha mãe. Fui em
dele, tive que tomar dez injeções dolorosas. Guariba e limpei a casa, pois tudo ali era
meu. Aí eu trabalhava na roça e deixava
Deu positivo duas vezes minha menina com minha irmã que mora
lá. Ela ia na escolinha.
Este homem ficava atrás de mim,
interessado em meu dinheiro. Quando eu Não sou depressiva, sou feliz
recebia pensão da minha filha, ele toma-
va de mim, gastava tudo, me dava só Com umas três semanas na roça
alguns reais para fazer compra, eu tive eu fui em Ribeirão e fui internada. O
que misturar leite com água. (Pede para médico disse que eu não podia trabalhar
desligar e começa a chorar.) em uma roça nem em um sol e falou do
Aí eu estava desnutrida e com sa- meu peso, eu estava dez quilos abaixo do
pinho na boca, diarréia, aí achei que normal e tinha febre de quarenta e oito
fosse falta de vitamina. Aí o otorrino graus. Aí deixei minha menina com a

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Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo

minha mãe e me internaram, disse que já agora vou para a católica, só que tenho
era para terem me internado, eu estava vergonha de ir porque não tenho roupa
com octoplasmose, era manchas pretas. para pôr e as pessoas reparam. Eu tenho
Aí fiquei dezoito dias lá, e eles não quise- muita fé em Deus e o médico até se
ram me deixar ocupando um quarto, a espantou com o tanto que eu melhorei. A
doença é no sangue e com o HIV, então, carga viral abaixou de 3800 para 800. O
a pessoa morre mesmo. Aí pedi para uma vírus está dormindo.
enfermeira amiga minha para contar para Eu fico com a boca amarga, com
minha mãe. vontade de deitar, cansada, se eu traba-
Meus irmãos dizem que sou de- lhar é capaz de me dar um trem, não
pressiva, mas não sou, sou feliz, em vista posso forçar meu corpo, nem para an-
do que eu estava com aquele monstro, dar. Não consigo mais trabalhar do jeito
porque estou melhor. Eles dizem para eu que eu trabalhava antes. Nem na padaria
sair de casa, mas eu gosto de assistir da esquina eu não vou. Só quando estou
televisão, de ficar em casa com a minha animadinha vou comer lanche com mi-
filha, eu me sinto bem, não sou depressi- nha filha. (Sua filha fez o exame?) Fez e
va. Para mim me divertir não é sair e acabou de dar negativo, demorou um
beber, é ir a um churrasco, em um aniver- mês para dar o resultado. Com a graça
sário. de Jesus.
Eu não tenho só o vírus da AIDS, O que mudou depois da doença foi
eu tenho a AIDS. Se eu não tomar cuida- que voltei a ser a menininha que eu era
do, tomar chuva, eu passo mal. Se eu antes dos treze anos. Minha mãe agora
beber eu fico só vomitando. me trata com o mesmo carinho de quan-
(Seu companheiro não fez o exa- do eu era criança. Minha mãe trabalha-
me?) Ele não quer fazer, ele diz se tiver o va e quando estava em casa fazia o que
vírus ele morre logo ou vai para a Bahia gostávamos de comer. Hoje, se estou
e toma um chá, olha o que ele pensa. Ele dormindo ela nem abre a porta do quarto
diz que não tem, que não pegou. Mas ele para não me incomodar. Sinto-me prote-
tem sim porque ninguém escapa desta gida com a minha mãe. Para minha mãe
doença, se tiver relação com quem tem a também foi bom, ela estava perdida, eu
doença, pega mesmo. Depois que eu ar- ajudei ela, dando força para ela psicolo-
rumei este homem minha vida acabou, eu gicamente. Ela me ajuda financeiramen-
me arrependi até o último fio de cabelo. te e estou sendo mais forte que ela porque
meus irmãos deram muito trabalho para
O único apoio que tive foi você ela. O mais velho esteve preso. Minha
irmã mais velha ficou sem-vergonha.
(Percebi que você fala em Deus, Bebe de bar em bar, e é casada ainda,
você tem religião?) Sou evangélica, mas hein. Ela dá dor de cabeça para minha

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Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo

mãe. Eu dei uns cacetes nela. Ela tem cesso de transformação: afetado pelo que
problemas e procura minha mãe. E ainda encontrou no material, ele já começa a se
diz que não é alcoólatra. pôr em sintonia para empreender sua
Ao fim de três entrevistas ela diz à tarefa.
entrevistadora: O único apoio que tive foi Embora a entrevistadora soubesse
você. que a AIDS não se transmite pelo beijo,
ficou alarmada com a idéia de que a mãe
O processo de interpretação: estaria fazendo mal à filha. Em lugar de
o pulo do gato descartar esta idéia, resolvemos tomá-la
em consideração, não no campo da medi-
Como dissemos, o texto original cina, em que não faz sentido, mas em
será desconstruído, desmontado, recor- outro. Em que outro campo a idéia de um
tado, e reconstruído segundo certas li- beijo perigoso faria sentido? Como vere-
nhas de força, tal como o faríamos na mos, as mães transmitem (pelo beijo) às
clínica de consultório. Começamos nos- filhas, não a doença, mas um modo de
so trabalho de leitura recortando um tre- vida completamente contaminado, o que
cho do início do material, uma observa- torna as filhas realmente vulneráveis a
ção que a entrevistadora registra antes todo tipo de perigo. A história dramática
mesmo de iniciar a entrevista. Diz respei- que acabamos de ouvir tende a se repetir
to à sua própria reação emocional ao que de geração em geração porque este modo
observara. de vida ultrapassa aquela mãe e aquela
A paciente estava no portão com a filha. Portanto, é no campo sociocultural
filha pequena e deu-lhe um beijinho na que a apreensão da entrevistadora faz
boca. O beijo na boca chama a atenção da sentido: é o meio em que nascem, cres-
entrevistadora. Ela imagina que este bei- cem e vivem estas mulheres que as torna
jo poderia ser perigoso. Sem querer, a tão vulneráveis.
mãe poderia estar fazendo mal à filha. Continuamos recortando a entre-
Esta fantasia da entrevistadora — vista.
“sem querer, a mãe poderia estar fazendo Antes eu sabia contar minha vida
mal à filha” — vai operar como eixo inteirinha, dava até um livro. Agora es-
norteador da escuta de toda a entrevista. tou meio tontinha.
Funciona como os primeiros acordes de A vida é dividida entre antes e
uma sinfonia: o tema nos é apresentado, agora, agora que tenho a doença. Mas
e reaparece, com variações, ao longo da podemos dividi-la, também, entre antes e
obra. Na atividade interpretativa, uma agora — agora, quando toma consciência
fantasia de forte conteúdo emocional dá de que já ter transmitido à filha um modo
o clima e o rumo ao que irá sendo de vida contaminado. Antes, o beijinho é
descortinado. O intérprete já está em pro- dado inocentemente, sem qualquer cons-

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006. 269


Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo

ciência deste fato. Agora, quando conta à Retornando ao beijinho na boca,


entrevistadora que precisou colocar água além do amor, vimos que ele simboliza a
na mamadeira da filha, ela chora. Chora transmissão de certo modo de ser mulher
porque sabe que transmitiu, desde a mama- no meio sociocultural em que vive: de-
deira, a desproteção (o leite aguado). Chora samparada, frágil, vulnerável, cumpridora
porque percebe que não tinha como evitar passiva e solitária de um destino terrível.
isto. Chora porque sabe que esta desproteção Sua história, portanto, começa com a
tornará sua filha tão vulnerável aos perigos história de sua mãe.
da vida quanto ela mesma foi. A história de minha mãe com meu
A menção ao livro revela o desejo pai vem lá do sul.
de registrar sua experiência. A entrevis- Sua história vem de longe, lá do
ta, como ela sabe, irá para um “livro”, a sul, perde-se na noite dos tempos. Estas
monografia. Seu testemunho está sendo mulheres tentam fugir — minha mãe
gravado. E o testemunho mostra, justa- fugiu, largou casa e tudo. Fugiu de um
mente, como antes ela era tontinha. An- marido alcoólatra que batia nela. Mas
tes ela não tinha consciência de sua condi- não há para onde fugir. A própria pacien-
ção. Agora, graças à AIDS — sem a qual te, em sua terceira tentativa de recons-
ela não estaria sendo entrevistada —, sua truir a vida, acabou com um marido alco-
vida, seu sofrimento anônimo, tem um ólatra, a pior coisa que fiz na minha vida,
sentido. Ela poderá legar à filha — e às da qual me arrependi até o último fio de
outras mulheres —, não um leite ralo, cabelo. É este homem que a contaminou
mas algo que poderá fortalecê-las: o co- com o HIV.
nhecimento de como se transmite a vul- Eu sempre fui assim, desde peque-
nerabilidade feminina. Neste sentido, sua nininha fui uma venced... uma lutadora.
última frase (o único apoio que tive foi Igual a minha mãe.
você) é curiosa. Que apoio teria recebido A mãe fugiu do pai na esperança
da entrevistadora? À primeira vista, apoio de ser uma vencedora, de conseguir
é sinônimo de ser escutada, por outra driblar seu destino. O máximo que con-
mulher, pela primeira vez na vida. Mas seguiu foi ser uma lutadora. Coube-lhe
podemos entender este “ser escutada” criar, sozinha, quatro filhos, sendo que
como a construção de uma ponte com os filhos tornaram-se drogados ou ban-
outras mulheres, como um apoio à sua didos, uma das filhas ficou “sem-ver-
“causa”: as mulheres precisam lutar con- gonha”, e ela mesma, que sempre foi
tra a mamadeira rala que a sociedade lhes direita, igual a minha mãe, está com
oferece5. AIDS.

5
Mais adiante, retornaremos a esta mesma passagem da entrevista agregando novos elementos.

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Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo

Era só ela, minha mãe, que traba- expôs ao perigo. Ele gostava mais de mim
lhava. Meus irmãos mais velhos, que do que dos outros, porém era muito vio-
podiam ajudar, ficavam fazendo festi- lento quando ficava bêbado. O mesmo
nha. irmão que usava drogas diante dela e da
É sua primeira experiência de vio- irmã menor esboça um frágil gesto de
lência social, da exploração da mulher proteção quando, aos treze anos, ela é
pelo homem, dentro de casa. A garotinha roubada por um rapaz malquerido.
é testemunha do esforço hercúleo e soli- Enfim, a idéia de proteção está
tário da mãe, e começa a internalizar as atravessada pela ambigüidade quando ela
representações do que significa ser mu- conta que rezava para Deus, trancada no
lher, e ser homem, neste meio social. banheiro, para escapar à sogra. Ela está
Homem, segundo sua própria experiên- restrita a ocupar um único lugar no mun-
cia, é aquele que pode se divertir de do: o banheiro. É ali que ela se sente a
maneira egoísta e irresponsável. Para ela, salvo, no lugar onde os seres humanos
os filhos homens “herdam” do pai uma deixam seus dejetos, no lugar do sujo e do
atitude de desprezo e de exploração da contaminado. É com os dejetos que ela se
mulher. identifica, e, enquanto tal, sente-se a sal-
E eles usavam droga, tudo na fren- vo, pois nem a sogra atacaria um dejeto
te das crianças. humano. Ainda assim, espera que Deus a
Vai-se delineando um cenário te- ajude, mas será que ele ouviria os apelos
nebroso: em lugar de proteger, o homem vindos de um banheiro?
expõe a mulher, ainda criança, ao perigo. Como vemos, a imagem paterna
A idéia, a própria noção de “proteção”, (Deus), geralmente associada à proteção,
não tem como se formar porque a experi- se constitui a partir da idealização (o
ência cotidiana não contém uma matriz puro, o sagrado), do sujo e contaminado
simbólica para este significado. O signi- (banheiro) e do persecutório (a sogra).
ficante “proteger” permanece vazio de Com relação à figura materna, há a mes-
experiência e de significação. Assim, não ma indistinção entre proteção e persegui-
há como internalizar uma atitude de pro- ção: a sogra começa por ajudá-la, mas
teção e de autoproteção diante da vida, acaba roubando sua filha. Esta confusão
resultando numa vulnerabilidade que ela impede que se forme a idéia de proteção,
irá carregar para sempre. o que exigiria uma cisão bem demarcada
Com mais rigor, pode-se dizer que entre o limpo e o sujo. Embora não fosse
a representação de proteção que ela traz nossa intenção no processo interpretati-
é ambígua. Em outra entrevista (que não vo deste material identificar a forma da
está transcrita neste texto), ela diz que, constituição psíquica da entrevistada,
segundo a mãe (pois ela mesma não se parece claro que a ausência de uma noção
recorda), o pai tanto a protegeu quanto a de proteção, ou a ambigüidade da noção

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006. 271


Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo

existente, são indícios de uma organiza- Nunca mais ia querer ele.


ção subjetiva extremamente precária e Não existe nunca mais: uma vez
vulnerável. Poderíamos vislumbrar uma entrando nesta vida que se passa no ba-
configuração egóica muito frágil, o que nheiro do mundo, ninguém sai limpo ou
justifica a hipótese de que “ser escutada” ileso. Seu destino está selado aos dezes-
e “ser levada a contar sua história”, regis- sete anos, quando volta para casa com a
trando-a em um gravador (para inclusão filha no colo.
em um “livro”), possa ter o sentido de Ao perder a filha para a sogra,
“receber um apoio”, mesmo que nada tendo lutado durante anos na justiça —
mais lhe seja oferecido. seis advogados que trabalhavam para
Passemos adiante. mim e não faziam nada, todos desistiram
Um rapaz malquerido me roubou da causa. É macumba que a velha fez —,
e eu fugi com ele. Meu irmão foi me temos a primeira metáfora para a AIDS.
buscar e eu não quis ir. Os advogados e a justiça, que funcionam
Nesta frase, temos uma adolescen- como sistema imunológico da sociedade,
te que já se acostumou a desejar (no desistiram, corrompidos pela macumba.
sentido psicanalítico) ser malquerida. Há Ela lutou, lutou, e morreu na praia. A filha
também uma ambigüidade em ele me não a quis mais/ela desistiu da filha. É
roubou e eu fugi com ele. Foi roubada ou como um corpo esgotado que aceita, frá-
fugiu? Gostava do rapaz ou ele era gil e vulnerável, as infecções da vida.
malquerido? Se antes ela era uma vítima Estamos falando, aqui, de cidadania. Eu
passiva da falta de proteção, agora ela já sou menina direita igual a minha mãe.
a recusa abertamente: o irmão foi buscá- De nada lhe vale ser direita. O mundo, de
la, mas ela não quis ir. A mãe ainda tenta seu ponto de vista, é injusto, e quando ela
protegê-la, fez os papéis do casamento, se vê, de fato, abandonada pela justiça,
fá-la passar pelo médico, mas os papéis fica claro que para ela não existe prote-
caducou. Não adianta mais. Ela já está no ção. Os direitos básicos do cidadão, da
mundo, sozinha, vulnerável, exposta aos mulher — educação, saúde, emprego,
perigos. O pai de sua filha está na cadeia, creche etc. — não são, nem jamais serão,
a sogra macumbeira acoberta os crimes para ela. Já temos, aqui, plenamente cons-
do filho, a mãe diz lhe diz que tem que se tituída, uma adolescente sem qualquer
virar sozinha. É na adolescência, aos tre- imunidade contra a vida: sem camisinha,
ze anos, que começa a cumprir seu desti- sem abrigo, sem proteção, sem residên-
no de vítima. Ela imagina que pode ser cia própria.
uma venced..., logo se corrige, é uma Ainda assim, não se entrega à do-
lutadora, e, quando as forças se esgota- ença social, e tenta recomeçar. Agora,
rem, sua vulnerabilidade fará dela uma apesar de jovem, já tem experiência de
perdedora. vida e pode escolher melhor seu parceiro.

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Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo

Este Juliano é um amor de pessoa. É sua condição social que lhe fecha todas as
muito bom, não fuma, não usa droga, não saídas. Esta condição social se inscreve
bebe muito. Pode inclusive ter outra fi- no plano intrapsíquico como uma ausên-
lha. E, por um tempo, parece que a vida cia de recursos próprios e de espaços
lhe sorri. Mas a sensação de fragilidade internos protegidos.
persiste, como um mau presságio. Eu Finalmente, este homem lhe trans-
disse que era melhor a gente se casar mite a doença. Isto nos é dito sem grandes
logo. Logo, quer dizer imediatamente, emoções, tanto ela como nós já o esperá-
antes que o destino acorde, e que outra vamos. Há duas frases que passam quase
desgraça lhe aconteça. E acontece. O despercebidas, mas, quando nos damos
irmão de Juliano morre esmagado numa conta do que significam, são terríveis.
ponte. Um acontecimento tão absurdo Uma é a que mencionamos logo no início
como um aidético morrer de gripe, uma desta interpretação: ela pede que a entre-
bobagem que coloca a vida a perder. O vistadora desligue o gravador e chora
marido bom que ela poderia ter, seu pri- quando conta que teve que misturar água
meiro protetor, também desiste dela. E no leite da mamadeira. E a outra é: Tive
ele desistiu, por isto sou mãe solteira. Ela que tomar dez injeções dolorosas.
solta no mundo, perdida sua segunda Nestas duas frases ela parece en-
batalha. trar em contato, pela primeira vez, com a
Terceira tentativa. Este homem se dor. Quando o corpo sente dor, adota uma
instalou na minha vida. posição antálgica, que protege o local
A idéia que esta fala nos transmite dolorido. Sua vida é, do começo ao fim,
é de algo ruim que se instala para sempre, uma dor só. Mas é na ponta da agulha que
como uma doença fatal, como o HIV. entra na carne que se condensam todas as
Desta vez o furo da camisinha estava num dores. A dor psíquica e a doença lhe
lugar novo para ela — ele não fumava trazem, paradoxalmente, um alívio para
nem usava droga, mas bebia pinga. Foi a as dores da vida. Meus irmãos dizem que
pior coisa que eu fiz na minha vida. O sou depressiva, mas não sou, sou feliz,
homem lhe tirava todo o dinheiro, dei- em vista do que eu estava com aquele
xando-a, e à filha, desvalidas. O relato monstro.
desta vida nos encaminha, como os acor- Os pequenos prazeres são mencio-
des finais de uma sinfonia, para um des- nados pela primeira vez, nesta longa en-
fecho precoce e trágico. A AIDS é quase trevista. Para mim me divertir é ir a
uma decorrência natural da vida. Aliás, a churrasco, em um aniversário. Foi preci-
morte entra em cena bem antes da doen- so que ela chegasse ao fundo do poço
ça. Ele mandou uma mulher me matar. para que seu pedido de ajuda fosse escu-
Por isto tenho estas marcas. De fato, ela tado. Ela relata que recebe atenção dos
é uma mulher marcada, sobretudo por médicos e remédios; recebeu seguro-saú-

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Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo

de e passou a ter sua própria roça; a irmã navam os rumos das invenções, e vice-
cuida da filha, a mãe agora a trata com versa. Ou seja, é a própria interpretação,
carinho. Se estou dormindo ela nem abre à medida que tramita, que funciona como
a porta do quarto para não me incomo- eixo para a escuta/recorte de novos frag-
dar. Sinto-me protegida com a minha mentos, os quais, quando interpretados,
mãe. Deus está cuidando dela: a carga terão a mesma função com relação ao
viral baixou de 3800 para 800, o vírus material que virá.
está dormindo, e sua filha não foi conta- O primeiro recorte, como vimos,
minada, com a graça de Jesus. Concluin- foi efetuado a partir da sensação contra-
do, graças à doença a idéia de proteção, transferencial de “beijo perigoso”. Mes-
antes um significante vazio, ganha um mo sabendo que AIDS não se transmite
sentido nesta história de vida. Em contra- por beijos, o psicanalista toma em consi-
partida, é apenas no processo da entrevis- deração o impacto emocional experimen-
ta que uma história de vida chega a se tado diante da cena, sabendo que há de
constituir. fazer sentido em algum outro campo. É
então que se abre — em uma espécie de
Considerações finais lance antecipatório — o campo da inter-
pretação.
A conclusão — a interpretação Cabem algumas considerações
psicanalítica da transcrição da entrevista sobre o alcance do “método psicanalíti-
— foi apresentada no início do trabalho co”. Este pode ser usado para interpretar
interpretativo para que agora possamos qualquer fenômeno que faça parte do
discutir a idéia de pesquisa em psicanálise. universo simbólico do homem: sessões
Como ficou ilustrado, o que pode de psicoterapia, entrevistas, qualquer tipo
ser apresentado como “método psicana- de material apresentativo-expressivo
lítico” — guardadas as ressalvas já (projetivo), fenômenos sociais ou insti-
esboçadas — consiste em efetuar certos tucionais, material clínico colhido de gru-
recortes que não são arbitrários, pois vão pos de pacientes (colostomizados, fóbicos
sendo solicitados pela própria análise em etc.). Por outro lado, não é adequado para
andamento e se transformam à medida descobrir relações de causa e efeito, nem
que a análise transcorre. No caso, foi a para transpor descobertas feitas num cam-
contratransferência da entrevistadora di- po para outro. Nem é preciso dizer que
ante do beijo da mãe aidética na boca da investigações feitas por meio deste pro-
filha — uma sensação forte de perigo e cedimento não se prestam para tratamen-
falta de proteção — que instalou o hori- to estatístico. Com relação à verdade da
zonte e o espaço por onde os recortes e interpretação, ela é sempre relativa ao
costuras interpretativos caminharam. A processo que a produziu e este processo
partir daí, eram os achados que determi- — como qualquer estratégia — é

274 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006.


Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo

irrepetível e singular. No caso, ele teve grupos ofereceriam, no aqui-e-agora do


início com a escuta do “beijo perigoso”. campo transferencial, criado entre agen-
Mas pode haver outra interpretação igual- tes de saúde e participantes, a experiên-
mente verdadeira, e uma pode ser mais cia emocional de “serem cuidados”, fun-
útil do que a outra, dependendo do con- dando-se, assim, esta matriz simbólica
texto, e do uso, que se venha a fazer dela. compartilhada. Espera-se que, por meio
De qualquer modo, a verdade de uma deste processo, as informações “técni-
interpretação não pode ser tomada como cas” possam vir a se tornar realmente
definitiva, mas sempre provisória. Nem operantes.
como totalizante, pois é sempre uma ver- Nada impede, porém, que, saindo
dade parcial, uma perspectiva seleciona- do campo próprio a esta investigação,
da do seu objeto. pensemos no efeito terapêutico de que se
Ainda com relação ao alcance des- beneficiou a moça entrevistada. Em certo
te método, é importante enfatizar que momento ela diz: “O único apoio que tive
toda investigação psicanalítica tem al- foi você”. Ao sentir-se escutada, e, prin-
gum efeito terapêutico, no sentido ampli- cipalmente, sabendo que sua narrativa
ado do termo. Recordemos que esta in- dará “um livro”, ela está expressando, à
vestigação partiu da observação de uma sua maneira, que a sua vida e a sucessão
mulher que, apesar de ter todas as infor- de seus sofrimentos passaram a ter um
mações sobre prevenção da AIDS, era sentido — passaram a se constituir em
HIV positivo. Ora, o efeito terapêutico da acontecimentos de sua história. Nesta
investigação deste fragmento da realida- condição, podem vir inclusive a benefici-
de só pode incidir diretamente sobre ele, ar outras mulheres que, como ela, não
e não sobre a moça entrevistada. Daí, a puderam contar com um ambiente sufici-
idéia de efeito terapêutico no sentido entemente bom. Poderíamos ainda dizer,
ampliado do termo, pois, neste caso, o avançando para a dimensão intrapsíquica
efeito terapêutico se dá com/pela desco- da moça entrevistada, que a incapacidade
berta de que uma campanha meramente de conceber um espaço protegido desfal-
informativa tem seus limites; de que es- cara este psiquismo de uma função egói-
tes limites se relacionam com a ausência ca fundamental e, assim, privara o eu
de certas matrizes simbólicas, tornando a desta pessoa da capacidade de se apropriar
informação inoperante; e de que as estra- de recursos e usar em seu proveito informa-
tégias em saúde pública não podem fazer ções cruciais. Uma certa dimensão destas
a economia da construção destas matri- falhas de constituição subjetiva parece ter
zes simbólicas. Instrumentando-se o efei- sido tocada na entrevista, o que se expressa
to terapêutico obtido, o ideal seria que no agradecimento pelo “apoio”.
estas informações fossem passadas aos De todo modo, em termos de pes-
poucos, em grupos terapêuticos. Estes quisa psicanalítica, convém que o inves-

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006. 275


Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo

tigador não pretenda mais do que sua


investigação permite. Quando investiga
na clínica, suas conclusões valem para a
clínica. Quando investiga um fragmento
da realidade, suas conclusões valem para
o fragmento estudado. E isto já é o bas-
tante para tornar a atividade de pesquisa
em psicanálise perfeitamente respeitável.

REFERÊNCIAS

Green, A. (2002). Idées directrices de la


psychanalyse contemporaine. Paris:
PUF.

Mezan, R. (1979). A trama dos concei-


tos. São Paulo: Perspectiva.

Mezan R. (1985). Freud, pensador da


cultura. São Paulo: Brasiliense.

Minerbo, M. (2000). Estratégias de inves-


tigação em psicanálise. São Paulo:
Casa do Psicólogo.

276 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006.


Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo

SUMMARY

Research in psychoanalysis: some ideas and an example

Initially the authors differentiate research in psychoanalysis and research with


the use of the psychoanalytic method. In the first case psychoanalysis is the object of
research. The researcher does not need to be an active psychoanalyst. He may be a
philosopher, a historian, a sociologist or a literary critic. In the second case a
psychoanalyst is required. In this case, the object, the subject (the researcher) and his
means of investigation (technical concepts) are transformed in the end of the research.
The procedure is then minutely exemplified by the analysis of an interview. In the final
considerations, the therapeutic dimension and its field of validity are considered along
with the investigative dimension.

Key words: Research in psychoanalysis. Research with the psychoanalytic method.


Psychoanalytic analysis of an interview.

RESUMEN

Investigación en psicoanálisis: algunas ideas y un ejemplo

Inicialmente, los autores presentan una diferenciación entre la investigación en


psicoanálisis y la investigación que usa el método psicoanalítico. En el primer caso,
el psicoanálisis es el objeto de la investigación, y el investigador no necesita ser un
psicoanalista actuante. Puede ser un filósofo, un historiador, un sociólogo o un crítico
literario. En el segundo caso se requiere un psicoanalista. Después de la investigación,
el objeto, el sujeto (el investigador) y sus medios de investigación (conceptos,
técnicas) sufren transformaciones. Enseguida, el procedimiento es minuciosamente
ejemplificado con el análisis de una entrevista. En las consideraciones finales se
coloca, al lado de la dimensión investigativa, la dimensión terapéutica de la investigación,
así como su campo de validad.

Palabras-llave: Investigación en psicoanálisis. Investigación con el método


psicoanalítico. Análisis psicoanalítico de entrevista.

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006. 277


Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo

Luís Claudio Figueiredo


Rua Alcides Pertiga, 65
05413-100 São Paulo, SP
Fone: 3086-4016
E-mail: lclaudio@netpoint.com.br.

Marion Minerbo
Rua João Moura 647, cj. 152
05412-911 São Paulo, SP
Fone: 3898-0074
E-mail: marion.minerbo@terra.com.br

Recebido em: 11/04/06


Aceito em: 11/05/06

278 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006.

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